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A MALDIÇÃO DA LUA / Ronda Thompson
A MALDIÇÃO DA LUA / Ronda Thompson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MALDIÇÃO DA LUA

 

A faísca de uma paixão. Uma maldição. Um amor para todo o sempre..

Rosalind Rutherford está ciente do escândalo que irá provocar ao tentar seduzir um homem como Armond Wulf. Acontece que, para ela, essa é a única maneira de escapar do controle de seu cruel meio-irmão. Para seu desamparo, Armond não cede à primeira tentativa, porém a deixa com um gostinho tentador do que poderia ser uma noite de amor entre ambos. E quando surge uma oportunidade de mudar não só seu próprio destino como também o de Armond, Rosalind não a deixa escapar. Ela sabe que a atração que sente por Armond é correspondida; o que ela não sabe é que ele é vítima de uma maldição que o submete, a cada noite de lua cheia, a se transformar numa criatura cujo desejo pode ser tão ardente quanto perigoso...

  

                   Londres 1821

O coração de Armond se encontrava no mais profundo hiato do inferno. Ali era um lugar frio e amargo, onde sonhos e esperanças havia muito estavam sepultados.

Sem sonhos ou esperanças por que então se preocupar? Armond Wulf, o marquês de Wulfglen, conde de Beaumont, movimentava-se livremente pelos círculos sociais, mas como um fantasma, uma presença obscura que assombrava a própria existência, esperando que a maldição viesse tomá-lo de surpresa.

Apesar de vir de uma família abastada e com título de nobreza, os Wulf estavam amaldiçoados e sem esperanças.

Os homens nasceram para aceitar riscos, testar os limites de suas forças e fraquezas. No entanto, Armond não poderia se aventurar a nada daquilo, pois uma existência normal estava fora de questão.

A vida resumia-se em um caminhar penoso, sem se importar com direção ou um destino particular. Mesmo assim, restava um fio de esperança ao qual ele se apegava para tornar sua existência mais suportável.

Talvez fosse aquela a razão por não querer ficar sozinho no primeiro baile da estação de Greenley.

Apesar de não conviver bem com o enfado das reuniões sociais, vez por outra sucumbia à simples necessidade de sentir a vida fervilhando a sua volta. Porém, ninguém ousava se aproximar de um homem envolvido por uma aura de mistério, assassinato e loucura. Contudo, ele era simplesmente um homem... pelo menos por enquanto.

O som dos risinhos femininos chegou aos ouvidos ultra-sensíveis de Armond, que sabia ser o centro das atenções de muitas mulheres. Impossível ignorar o perfume daquela atração que tinha cheiro de terra, do almíscar feminino, docemente disfarçado pela água de rosas.

Se ele fechasse os olhos e se concentrasse, seria possível ouvir o descompasso dos corações. Contudo não se deixava torturar por aqueles estranhos. Já havia aceitado o que a vida lhe reservara, sua posição na sociedade, ou mesmo a ausência dela.

Embora fosse intenso o apelo ao mistério que emanava de sua aparência, nenhuma mulher era corajosa o suficiente para se aproximar. Outra maldição que ele teria que sofrer... ou talvez uma conseqüência do que já regia sua vida: a maldição da família Wulf.

— Lorde Wulf, que prazer em vê-lo. Por que está aqui sozinho e amuado no canto? Deveria estar caçando jovens donzelas ou ao menos jogando cartas nos quartos do fundo com os outros cavalheiros.

Um raro sorriso brotou nos lábios de Armond, enquanto observava o olhar esmorecido da condessa de Brayberry.

A condessa era uma velha amiga da família e a única mulher de sangue azul de Londres que não hesitava em se aproximar dos irmãos Wulf. A bem da verdade, ela se divertia em confrontar a sociedade, recusando-se a evitá-los como todos faziam. E Armond era grato por isso.

— O problema de caçar jovens donzelas hoje em dia é que elas simplesmente se recusam a correr — ele brincou. — Fora isso, os senhores que estão lá nos quartos dos fundos tampouco têm espírito esportivo. Eles são capazes de se darem por vencidos, entregando-me o dinheiro sem a menor emoção do confronto.

A risada alta da condessa ecoou no canto escuro da sala. Em seguida ela fingiu bater no ombro de Armond com o leque.

— Você é terrível, meu querido. Se fosse um anjo não atrairia tanto as mulheres. Acho que é o contraste de sua aparência que exerce um fascínio intrigante sobre elas — ela acrescentou, observando-o com atenção.

Armond bem sabia que o encanto era por conta de sua indiferença. Era só fingir um mínimo interesse por alguma donzela que ela não hesitaria em correr ao seu encontro.

Os rumores, o mistério e a aura intrigante que pairava sobre os Wulf era o que atraía as mulheres da mesma forma como uma mariposa corria para a luz.

— Você já conheceu sua nova vizinha? — a condessa interrompeu-lhe os pensamentos.

Interessante, ele nem sabia que tinha uma nova vizinha. Aliás, mal conhecera o último... Se não lhe falhava a memória, o homem que se mudara com a mãe para a propriedade ao lado havia uns dez anos, chamava-se Chapman, mas nunca trocaram uma só palavra.

— Chapman vendeu a casa? — perguntou interessado. A condessa meneou a cabeça negativamente.

— A mãe dele herdou-a do último marido, o duque de Montrose. Enquanto você esteve fora, a meia-irmã dele veio morar com eles. A moça vivia escondida no campo até então. Quando o pai faleceu, ela quis conquistar seu espaço na sociedade. Mas você ainda pode ter uma chance de encontrá-la.

— Ora, chance para quê? — ele perguntou em tom seco. — A senhora sabe que se não houver nada de indecente com essa moça, não estarei interessado. Não é isso que diz minha reputação obscura?

Ela contraiu os olhos, fingindo-se chocada pela resposta.

— Ah, que homem malvado! Estou falando da possibilidade de você finalmente encontrar uma esposa. Se não me engano, você ainda possui títulos, propriedades e bens. Além disso, basta se aproximar com essa sua aparência arrasadora para roubar o coração daquela moça. E se for rápido, ela nem chegará a saber dos rumores que correm a respeito de sua família. Talvez haja uma chance de ficarem juntos.

— E o que a faz pensar que são apenas rumores? — Armond manteve o tom sério. — Talvez os Wulf sejam de fato uns loucos repulsivos.

Desta vez a condessa bateu com um pouco, mais de força nos ombros largos, descartando outra brincadeira.

— Besteira. Não acredito que você e seus irmãos sejam insanos. Aliás, boa estratégia essa de permanecer solteiro e ao mesmo tempo ter várias mulheres à volta.

Contudo não havia ninguém aos pés de Armond... a não ser que estivessem mortas. Além do mais, os irmãos Wulf não haviam criado aquele padrão de comportamento, era um acordo que mantinham entre si para ficar em segurança.

Todos, menos Sterling, o mais jovem que fugira de Londres pouco depois que a maldição se abateu sobre a família. Os irmãos, Armond, Gabriel e Jackson fizeram um pacto de jamais entregar o coração a uma mulher.

O amor era supostamente a maldição e a chave, qualquer que fosse o significado das duas palavras em conjunto.

A única referência da maldição era um poema, encontrado no meio de um livro que pertencera ao pai. Estava ali a elucidação do mistério, contudo nenhum deles fora capaz de decifrar.

— E quanto ao outro assunto? — ele perguntou. — Lembra-se do assassinato que ocorreu há apenas oito meses?

O brilho nos olhos da condessa esvaiu-se, ela aproximou-se como se quisesse falar em segredo com medo que alguém ouvisse:

— Você faria um bem enorme a si mesmo se não tocasse mais nesse pote negro. Foi um infortúnio ter achado o corpo daquela pobre mulher em seu estábulo. Além do mais, ninguém conseguiu provar nada. Seus irmãos e você tinham um álibi. Tudo o que você precisa é se casar com uma bela dama da sociedade e assim acabar com essas maledicências. — E depois de uma breve pausa, completou: — Seus pais, que Deus os tenha, podem até ter sido insanos, mas não vejo outra coisa em seus olhos se não inteligência. Por que assumir os fardos de seus ancestrais? Deixe o passado para trás e siga sua própria vida. Prove a esses esnobes todos como estão errados.

No entanto, a sociedade não estava errada sobre Armond.

Sim, era verdade que não havia cometido assassinato algum. Mas o fato de uma mulher aparecer morta em seu estábulo manchara o nome da família com sangue. Armond sequer havia contestado o álibi dos irmãos. No entanto, considerava a possibilidade de aquela mulher ter sido plantada ali propositadamente para tornar ainda mais difícil a sina de sua família.

Ele passara os últimos meses tentando provar sua inocência, mas a pista que o levaria a encontrar o verdadeiro criminoso havia esfriado.

— Lorde Wulf?

De repente, uma voz suave chamando-o, interrompeu a conversa. Ouvir seu nome pronunciado tão docemente caiu como uma carícia.

Virando-se vagarosamente ele ficou frente a frente com uma bela mulher vestida de branco; a personificação desafiadora do pecado, disfarçada em inocência.

Se no mundo houvesse alguém que o fizesse esquecer seus princípios e promessas mais secretas, estava bem ali, diante de seus olhos. Apenas vislumbrá-la fez com que seu sangue corresse apressado pelas veias, convergindo para o centro de sua masculinidade. Naquele instante seu corpo vibrou em descompasso com a couraça que lhe protegia. No entanto, se manteve impassível, observando-a do alto de sua arrogância, mas ciente de já ter sido cativado.

— Detesto ser intrometida. — A moça quebrou o breve silêncio. — Não encontrei ninguém que nos quisesse apresentar formalmente. Lamento se o incomodo, mas tive que tomar a iniciativa sozinha.

Armond imaginou-a tomando atitudes bem mais ousadas e que aqueles lábios carnudos fossem a representação de sua feminilidade escondida. Naquele instante totalmente confuso pelas próprias reações, ele não conseguiu dizer uma só palavra.

A mulher à sua frente tinha os cabelos escuros como a noite. Seus lábios cheios e vermelhos eram capazes de tentar até um santo. A pele clara, suave e delicada do colo se insinuava pelo decote do vestido.

— Pois então sinta-se apresentada, querida — a condessa de Brayberry antecipou-se a fazer as honras. — Mas devo dizer que a escola que freqüentou não a educou apropriadamente.

— Passei boa parte da minha vida morando no campo — a moça respondeu sem desviar a atenção de Armond. — Peço desculpas por minha grosseria, mas, agora, o tempo é mais importante do que meus modos. Eu gostaria de requisitar a ajuda do lorde Wulf em caráter de urgência.

Ainda sob o efeito das emoções ambíguas que o assolavam, ele continuou a encará-la apenas.

Como uma mulher daquelas, que poderia ter qualquer homem a seus pés diante de um simples estalar de dedos, estaria pedindo ajuda justamente a ele? O que estaria a seu alcance que ela própria não pudesse conseguir com sua beleza estonteante?

— Em que posso lhe ser útil, srta...?—perguntou, lutando contra o descompasso do coração.

— Rutherford — ela respondeu quase que em um sussurro. — Lady Rosalind Rutherford.

— Ora se não é a sua vizinha? — a condessa de Brayberry interrompeu. — Esta é a jovem herdeira de quem falávamos há pouco, Armond.

— A última semente... — Rosalind corrigiu, corando ao perceber que havia deixado transparecer um ressentimento.

— Já que somos vizinhos de fato, lorde Wulf, não acho que seria inapropriado se dançássemos juntos.

Armond estava tão hipnotizado que não havia notado que a música já ecoava pelo salão. A imaginação o transportara para bem longe dali, seguindo os desejos mais profanos, que certamente não incluíam simplesmente dançar.

— Sinto muito, lady Rosalind, além de não dançar também não sou um vizinho muito sociável.

Em uma primeira reação, ele tentou ser rude e virar as costas, mas ela tocou seu braço paralisando-o. O simples contato fez com que seu corpo sucumbisse ao calor daquelas mãos pequenas.

O desejo pulsava em sintonia entre os dois. Armond era capaz de sentir a pulsação do pescoço de pele alva.

Rosalind, porém, muito determinada, continuou prendendo-o com um olhar desafiador. Uma mistura de petulância com sensualidade que o intrigou ainda mais.

Sem oferecer resistência, ele permitiu ser puxado para longe da condessa, que espreitava a conversa dos dois.

— Será que preciso implorar? — ela perguntou, fazendo uma pausa para umedecer os lábios com a ponta da língua num gesto sensual. — Não importa o que dizem a seu respeito.

— E o que falam a meu respeito? — ele desafiou.

Se Rosalind realmente soubesse dos rumores que circulavam pela cidade, saberia que ele não teria escrúpulo algum em fazer mulheres implorarem por um minuto de sua atenção. Além disso, era considerado um assassino, um homem amaldiçoado pela loucura e como tal não poderia ser tratado com compaixão.

— Sei que você é Armond Wulf, o marquês de Wulfglen, o mais velho dos irmãos Wulf de Londres. Um homem temido e proibido para qualquer mulher. Certamente nenhuma debutante decente se relacionaria com você.

— E mesmo assim quer dançar? — Armond perguntou, encarando-a.

Rosalind deu de ombros, empertigando-se num gesto que ele julgou ser uma demonstração de coragem. O decote pronunciado do vestido insinuava os seios fartos, que em um ritmo acelerado, movimentavam-se sensualmente a ponto de ele querer tocá-los.

— Meu desejo não se limita a uma dança apenas, lorde Wulf. Eu agradeceria muito se você tomasse minha honra.

Armond esforçou-se ao máximo para manter o ar de enfado, porém uma revelação inesperada como aquela o atingiu como o coice de um cavalo selvagem.

— Mas aqui? — ele perguntou, forçando um sorriso irônico.

Rosalind levantou o queixo delicado e insistiu:

— Agora, ainda esta noite e neste salão em frente a todas essas pessoas.

Armond teve vontade de beliscar o próprio braço, para ter certeza de que não estava em meio a um sonho bizarro. As mulheres não costumavam fazer propostas daquele gênero, muito menos aquele tipo de mulher.

Lady Rosalind Rutherford, e toda a tentação que representava, seria tão louca quanto a família Wulf, ou guardava algum mistério maior?

Desviando o olhar daquela boca sedutora, ele tentou recuperar o controle. E se havia uma coisa que sabia fazer com maestria era não demonstrar o que se passava em sua mente, muito menos no coração.

Não seria daquela vez que se deixaria perder por um anjo de cabelos negros. Era sabido que ao perder a razão, o coração não tardaria a seguir o mesmo caminho. E ele sabia que não devia permitir que aquilo acontecesse... jamais.

— Você me ouviu, lorde Wulf? — Rosalind falou mais alto dessa vez.

Aquela altura, todos os presentes prestavam atenção aos movimentos dos dois. Ele então tomou-lhe o braço, conduzindo-a para a pista.

Ao enlaçar a cintura fina notou uma delicadeza singular sob suas mãos, mas imbuído que estava em disfarçar seu desejo, conduziu-a ao compasso da melodia, ignorando o ritmo agitado do próprio corpo.

A platéia observava atenta o casal que tomara conta do salão. Porém Armond estava tão concentrado em dar os passos que não ligou a mínima para os comentários e olhares maledicentes.

— Eu esperava mais de você — Rosalind comentou fazendo bico.

— Ora, não estamos dançando?—Armond perguntou atônito, como se não fosse capaz de dizer uma só frase inteligente na presença dela.

—Está muito comportado. Pela sua fama, ninguém ficaria chocado perante uma agressividade maior.

— Posso assegurar que só o fato de estarmos dançando já causa espanto. — Quando percebeu que seu comentário não a satisfez, acrescentou: — Você quer ser raptada?

Rosalind arqueou as sobrancelhas, considerando a proposta.

— Achei que não precisaríamos chegar a medidas tão drásticas, mas agora vejo que elas se fazem necessárias. Você se importaria?

— Se me importo? — Quase errou o passo. Ela era decididamente maluca. — Qual o nome do jogo, lady Rosalind?

Em vez de responder, ela desviou a atenção para as outras pessoas que os observavam atentamente.

Em silêncio, ele fez o mesmo e notou um grupo de debutantes que, com risinhos, sussurravam algo a respeito dos dois. Entendeu então que fora alvo de uma aposta entre amigas. E Rosalind, além de levar o prêmio, teria feito sua estréia na sociedade em grande estilo. Bela estratégia.

— Meu desejo é sincero, lorde Wulf— ela disse, voltando a fitá-lo. — Estou muito desapontada com o seu bom comportamento até agora. Sua reputação me fez criar expectativas que nem de longe estão sendo correspondidas. Creio que para conseguir a ajuda de que preciso, talvez seja melhor procurar outro.

Agora ela tinha ido longe demais, tirando-o do estado letárgico que se encontrava ao tê-la nos braços.

Durante os últimos dez anos, ele fora motivo de chacota na sociedade. No entanto, não podia permitir que o fizessem de tolo.

Quando Rosalind fez menção em deixá-lo no meio do salão, ele a puxou de encontro a seu corpo, fazendo-a sentir sua respiração quente.

— Se a senhorita quer ficar falada, então procurou o homem certo — garantiu. — Aposto que não a desapontarei, pois comigo não há meio-termo, lady Rosalind.

Sem esperar por uma reação, conduziu-a para longe da pista à procura de um lugar mais reservado.

Rosalind havia brincado com o orgulho de um Wulf. O desafio estava lançado e se ela queria motivos para rir com as amigas tolas, certamente teria vários.

Armond abriu as portas da varanda, permitindo que o ar frio da noite invadisse o ambiente.

Perplexa, Rosalind o seguiu pelo jardim até a rua, onde as carruagens alinhadas esperavam os ocupantes retornarem do baile.

Seu coração pulsava tão ruidosamente que imaginou senti-lo saltar do peito. Apesar da atitude ousada, suas pernas estavam trêmulas. O que antes era considerado como bravura, agora poderia ser chamado de desespero por aventurar-se a ficar sozinha com um Wulf.

Logo que viu Armond Wulf entre os convidados do baile de Greenley, Rosalind ficou surpresa pela aura sinistra que o envolvia e não disfarçou a forte atração que sentiu ao aproximar-se daquele homem misterioso.

Nunca antes vira alguém tão charmoso. Alto e musculoso, ele era dono de um corpo que se assemelhava ao de uma pantera negra com olhos de um azul-acinzentado, tão intenso quanto o prenuncio de uma tempestade.

O rosto de Armond, marcado pelo maxilar protuberante, era emoldurado por fartos cabelos castanho-claros que caíam sobre os ombros da roupa bem cortada. O amarelo vívido dos cabelos remetia aos campos de trigo, que cobriam a paisagem dos campos. A boca de lábios carnudos parecia sensualmente desenhada. O contraste das sobrancelhas escuras e o cabelo claro, em perfeita harmonia com o tom bronzeado da pele, deixavam claro que ele passava boa parte do seu tempo ao ar livre.

Assim que Armond chegou a Greenley todas as mulheres presentes no baile viraram-se para admirá-lo. Não demorou muito para começarem os sussurros curiosos.

Ao saber seu nome, Rosalind entendeu que se tratava do vizinho que Franklin, seu meio-irmão, a advertira para manter distância. Armond estava sumido desde que ela chegara a Londres, mas seu retorno naquela noite não poderia ser mais providencial. Ela tinha um plano para arruinar o esquema que o irmão havia montado para ela, e com isso, esperava que a mandasse de volta à propriedade de seu pai no interior, para onde ansiava voltar.

— Thomas, pode ir dar uma volta — Armond dispensou o cocheiro ao chegar à carruagem.

Rosalind sentiu o rosto corar. O que o cocheiro iria pensar a seu respeito? Se bem que já não havia mais tempo para se preocupar com falsos conceitos.

—Por quanto tempo devo me afastar, milorde? — Thomas perguntou.

Wulf estudou Rosalind dos pés à cabeça antes de responder:

— O tempo que quiser.

Desesperada, ela olhou para a casa onde estavam e para os dois homens à sua frente. Eram grandes as chances de Franklin aparecer a qualquer momento e estragar tudo.

— Será que não poderíamos dar uma volta enquanto nós... Bem, você sabe... — Estava constrangida demais para completar a frase.

— Interessante — ele comentou. — Mudança de planos, Thomas. Leve-nos para dar um passeio.

Thomas assentiu com um sinal de cabeça.

Armond abriu a porta e em vez de estender a mão para ajudá-la a subir, tomou-a nos braços, colocando-a dentro da carruagem. Em seguida subiu e sentou-se à sua frente.

A situação era muito estranha e agora que Rosalind conseguira seu objetivo, não tinha a menor idéia do que fazer.

Observou que Armond parecia bravo. Mas por quê? Afinal ela tinha se oferecido, e não era isso que todo homem desejava? Poder tocar uma mulher por baixo de suas saias na primeira oportunidade não era um pensamento comum a todos eles?

A noite estava linda e a carruagem movia-se lentamente. Rosalind reconsiderou se fizera a escolha certa. Ainda estava em tempo de desistir, olhando pela janela, pensou que se pulasse naquele instante não se machucaria muito, já que o coche movimentava-se devagar.

— Está arrependida? — ele perguntou, adivinhando os pensamentos dela.

Apesar de a noite estar clara, Rosalind não conseguiu ver a expressão daquele rosto sombrio, mas estava ciente do efeito do olhar que lhe queimava a pele.

— A minha oferta foi sincera.

— Não estamos mais sendo observados por ninguém. — Armond suspirou. — Portanto não precisa mais fingir.

Rosalind esperava que ele a seduzisse e achou que ele houvesse entendido a proposta. Contudo, talvez tivesse sido presunçosa demais.

A simples presença de um homem tão imponente tirava sua razão a ponto de fazê-la esquecer o propósito que a trouxera ali. Qualquer fantasia que tivesse sonhado não chegava perto do que vivenciava naquele momento. As emoções embriagavam seus sentidos, embora estivesse consciente de que eram perniciosas.

—Você deveria saber que homem nenhum gosta de servir de joguete. E eu não sou diferente — ele a alertou com uma voz rouca.

Pelo aviso, ficou claro que Armond não havia acreditado na seriedade de sua proposta. Foi então que Rosalind se deu conta de que era mesmo difícil de acreditar que uma dama, bem-nascida, se aproximava de um homem para pedir que roubasse sua honra.

— Talvez eu tenha sido impulsiva — admitiu e mesmo no escuro procurou encará-lo. — Se voltarmos logo, quem sabe nossa ausência não tenha sido notada.

Ele soltou uma gargalhada sonora.

— Não há a menor chance de voltarmos agora. Você não queria criar um escândalo, lady Rosalind? Pois então conseguiu. — Armond assumiu um tom ameaçador. — Além do mais, fui usado para atingir um objetivo que sequer compreendi direito. Aliás, você poderia me esclarecer melhor, não acha?

Não. Ela não podia explicar. Como dizer a ele que tudo o que desejava era obter sua liberdade de volta? A idéia era simples, se alguém a desonrasse, seria possível fugir dos planos mirabolantes de Franklin. Porém, escolhera a pessoa errada. Armond estava longe de prestar qualquer favor, sem entender as verdadeiras razões.

— Estou surpresa por me pedir explicações, lorde Wulf. Duvido que qualquer outro homem o faria. — Ergueu o queixo, desafiando-o. — Pensei que pudesse contar com você. Eu...

De repente em meio à penumbra viu-se tomada por uma boca ávida, cobrindo seus lábios com um beijo lascivo. Rosalind tentou impedir, contraindo-se, mas, com as mãos fortes e determinadas, Armond prendeu seu o queixo, impedindo-a de virar o rosto.

Apesar do medo e da surpresa, ela entregou-se ao gosto embriagante de champanhe e morangos frescos. Era um beijo de punição, como se ele quisesse ensiná-la a lição de não                       brincar com um homem poderoso. Rosalind reagiu, afastando-se com um suspiro de medo.

— Está me machucando — sussurrou.

Armond soltou-lhe o queixo, acariciando a pele aveludada com as costas das mãos, tocando o que parecia ser uma delicada asa de uma borboleta. Em seguida, inclinou o rosto novamente e apenas roçou os lábios nos dela. A diferença entre a delicadeza daquele beijo e a impulsividade do primeiro deixou-a intrigada quanto à facilidade com que ele transitava pacificamente entre a agressividade e a sedução.

Ele continuou proporcionando momentos de puro prazer ao delinear seus lábios com a ponta da língua quente, ansiando por descobrir mais e mais. Uma força desconhecida fez com que ela relaxasse para receber a carícia.

— Oh, Deus, como você é doce. — A voz rouca atuou como um carinho obsceno nos lugares mais íntimos do corpo de Rosalind. Então derrubando barreiras, ela rendeu-se aos beijos ardentes e permitiu que ele a guiasse em uma viagem de desejo e entrega.

Rosalind havia sido beijada apenas uma vez, aos doze anos, pelo filho do jardineiro. Fora um beijo inexpressivo se comparado à volúpia que a consumia naquele momento. Era como se estivesse sonhando, embora jamais imaginasse que pudesse ficar naquele estado de total torpor.

A paixão passou a dominar a razão e as carícias ficaram ainda mais ousadas. E respondendo a um anseio de amoldar-se ao corpo de Armond, ela enlaçou-o pelo pescoço.

As respirações ofegantes entraram em sintonia e ressoavam no interior da carruagem, um sussurro do prazer que os dominava. Rosalind já não se preocupava se estava correndo perigo, pois nada mais tinha importância no mundo de sonhos que estava vivendo.

Inesperadamente, a carruagem passou por uma pedra. Perdendo o equilíbrio, ela caiu de costas no assento; não demorou muito para que Armond se inclinasse sobre ela.

Sentir o peso daquele corpo másculo a deixava totalmente vulnerável, despertando sensações que durante anos ela tentara abafar. No entanto, a força do desejo era tamanha que sequer podia imaginar o caminho de volta.

Armond deslizava os lábios levemente por seu rosto, provocando suaves arrepios em sua pele. A língua ávida traçava uma linha de fogo a cada centímetro que passava, porém sem qualquer aviso prévio ele parou de repente para observá-la longamente.

Rosalind assustou-se com a interrupção brusca. No entanto, não teve tempo de imaginar as razões, pois sua boca foi coberta por outro beijo sedento, transportando-a novamente pelos caminhos sinuosos do prazer.

Quando mãos fortes cobriram seus seios, ela recobrou um pouco do bom senso e esgueirou-se. Foi um movimento tolo, admitiu no minuto seguinte. Claro, se não permitisse que Armond a tocasse mais intimamente, como esperava que ele pudesse manchar sua honra?

Tentando retomar o clima de sedução, ela então arqueou as costas, oferecendo os seios fartos. Antes de tomá-los com as mãos, ele mais uma vez cobriu seus lábios com um beijo provocante. A língua a tocava ansiosa por descobrir seus segredos mais íntimos. Rosalind se deixou levar por cada uma das sensações alucinantes, fingindo não perceber por onde aquelas mãos fortes passeavam. Com extrema habilidade, Armond desamarrou as fitas do corpete e acariciou-lhe os mamilos até enrijecê-los. Foi quando ela deixou escapar um gemido alto, traduzindo o desejo que a consumia.

Agora se oferecia por inteira, sem barreiras, deixando claro que sua vontade maior era ser tocada nos recônditos de seu corpo virgem por aquelas mãos experientes.

Dominada que estava pela paixão, ela só se deu conta de que os seios estavam expostos quando sentiu o ar frio da noite em sua pele. Envergonhada, tentou cobrir-se cruzando os braços sobre o peito. Porém, antecipando o movimento, Armond segurou-a pelos pulsos, voltando a desnudá-la.

— Está com medo?

— Sim—ela respondeu, embora soubesse estar mentindo. — Estou com medo de mim.

— Quer que eu pare?

A resposta não veio, pois não havia espaço para palavras. Com a breve interrupção, Rosalind experimentou uma sensação diferente, como se fosse possível, perante a avalanche que a havia assolado na última hora. De repente, compreendeu que a saudade podia se instalar em um curto espaço de tempo. Não pretendia perder-se em palavras que descrevessem um receio, pois sabia que existia muito mais a ser trocado.

Em seu íntimo sabia estar agindo errado, contrariando todos os preceitos morais que aprendera. Mas daquele minuto em diante, estava decidida a seguir suas próprias regras. E para começar, era preciso ser desonrada e frustrar um casamento que seu irmão tinha em mente.

O que ela não previra era que fosse se afogar em um mar de sensações desconhecidas. Sua mente agora fervilhava com dúvidas.

— Não. Por favor, não pare — finalmente respondeu, deixando para resolver depois como lidaria com o futuro,

Armond, porém, não obedeceu imediatamente ao pedido de seguir adiante. A longa pausa aumentou ainda mais sua insegurança. Que atitude tomaria se ele resolvesse parar com a exploração minuciosa de seu corpo? Começou a considerar a humilhação de ser rejeitada por um homem a quem se oferecera de corpo e alma. Conforme os minutos se arrastavam, ocorreu-lhe que o problema poderia ser dele também. Por que não?

— Você tem problemas para...? — perguntou sem saber ao certo como abordar o assunto.

— Problemas de consciência? — Armond indagou em tom irônico.

Ela limitou-se a sorrir, fazendo-o entender que estava preocupada com outro aspecto da masculinidade dele.

— Que insolência a sua! — Armond exclamou, ao pressionar seu corpo contra o dela, fazendo-a sentir a intensidade do seu desejo.

— Então, continue — insistiu ela persuasiva.

Vagarosamente Armond baixou a cabeça e aprisionou um dos mamiíos em sua boca, sugando-os. A língua indecente movia-se agilmente de um seio a outro.

Eosalind sentiu cada músculo de seu corpo contrair em resposta àqueles carinhos tão insinuantes. Foi com certa surpresa que percebeu uma umidade diferente por entre suas coxas.

Armond levantou-se o suficiente para voltar a beijá-la. Conforme explorava a boca bem desenhada, conduzindo-a naquele frenesi de línguas ansiosas, ele pressionava os quadris contra o corpo frágil e iniciava outra dança de ritmo tão conhecido. Ela o seguiu na cadência sensual até ficar quase sem fôlego, trêmula, desejando que o ritual se completasse em um êxtase profundo.

Rosalind estava totalmente perdida em um abismo de sensações onde só cabiam os dois e as mais devastadoras respostas de seus corpos. De repente, os toques ficaram ainda mais atrevidos e as mãos fortes começaram a explorar por baixo do vestido.

Com uma paciência ensaiada, ele começou a tirar-lhe as meias, deslizando-as suavemente pelas coxas. Em seguida, desabotoou a camisa fina de linho, deixando visíveis o torso de músculos definidos.

Rosalind não podia decifrar a expressão daquele rosto másculo na escuridão da carruagem, mas percebeu que ele fitava com intensidade. Os olhos de Armond brilhavam estranhamente no escuro como se fossem de um animal prestes a atacar uma presa inofensiva. Ao sentir um calafrio, ela levou as mãos ao pescoço para se proteger.

A luz baça da rua invadiu a carruagem, e Rosalind vislumbrou o peito forte insinuando-se pela abertura da camisa, revelando a pele bronzeada. No entanto, o brilho intenso daqueles olhos azuis continuava misterioso, fazendo-a encolher-se ainda mais.

Inesperadamente, ele alcançou a bengala e bateu com força no teto da carruagem.

— Cubra-se — ordenou, mudando por completo o comportamento de até então.

Rosalind levantou-se envergonhada, puxando o vestido para cobrir os seios, embora ainda entorpecida pelo emaranhado de emoções que acabara de viver... e pelo que ficou por acontecer.

— Quando voltarmos siga direto para sua carruagem e peça ao cocheiro que a leve para casa — Armond instruiu-a. — Não fale com ninguém. Vou mandar uma mensagem para seu irmão, dizendo que você não estava bem, entendeu?

Rosalind estranhou por ter ganhado um álibi que não havia pedido.

— Está sugerindo que eu minta sobre onde estive?

— É melhor que algumas pessoas não saibam da verdade — ele respondeu, abotoando a camisa. — Mas pode confidenciar tudo às suas amiguinhas. Espero que tenha atingido seu objetivo.

Ela mal acreditou no que ouvira! Armond não cumprira o prometido, e ela ainda estava tão pura quanto quando saíra do baile de Greenley.

Além do mais, não tinha amigas para trocar segredos. Por que aquela sugestão tão absurda? E pior, por que ele não tinha terminado o que começara?

— Não me deseja... — sentenciou ela. Talvez fora desprezada por seu atrevimento.

— O jogo acabou — Armond concluiu friamente, contrariando a atração que ainda pairava entre ambos. — Já passamos do limite, mas agora já tem motivo suficiente para fofocar com suas amiguinhas tolas. Fui responsável por tornar o seu début memorável na sociedade. Fique feliz por não ter conseguido o que pediu.

Naquele instante, a carruagem parou. Sem demora, ele desceu e estendeu a mão para ajudá-la a fazer o mesmo. Rosalind seguiu-o em silêncio, embora seu corpo ainda estivesse trêmulo. Contudo não saberia explicar se estava insegura por ter sido rejeitada ou se temia as conseqüências que teria de enfrentar.

— Qual é a sua carruagem?

Sem nada dizer, ela apontou para o coche estacionado não muito longe dali.

— Boa noite, lady Rosalind. O prazer foi... bem, foi basicamente meu — Armond disse após acomodá-la. Então fechou a porta, e ela ouviu as ordens sendo dadas ao cocheiro.

Por um impulso juvenil, ela debruçou-se sobre a janela assim que a carruagem começou a andar. Armond continuava parado no mesmo lugar, observando o coche se afastar.

Os olhares se cruzaram e ela percebeu que o desejo ainda os unia. Sentiu que toda a sua inocência esvaia-se rapidamente. Por meio de um pedido inconseqüente, alcançara muito mais do que havia solicitado. Agora tinha certeza de que eles haviam compartilhado um desejo comum.

Entretanto ainda restava um mistério por descobrir: por que ele se recusara a consumar a relação? Talvez fossem infundados os rumores de que um Wulf não tivesse o mínimo senso de decência.

Por outro lado, se Armond houvesse respeitado um código de ética, estipulado por uma sociedade que o havia abominado, ela então errara na escolha. Pois em vez de cumprir o que havia prometido, ele brincara com uma proposta tão séria.

Foi então que o calor, que ainda a consumia pela experiência avassaladora, foi substituído por uma raiva incontida. Armond zombara de suas intenções tão verdadeiras. Pior, havia arruinado seus planos e agora haveria de enfrentar sérias conseqüências, a começar pela ira de Franklin.

— De todos os rumores que ouvi a seu respeito, lorde Wulf — murmurou baixinho. — Nenhum chega aos pés da impressão que tive. Você é um covarde.

 

A força do tapa quase a fez cair. Rosalind levou a mão ao rosto, já coberto por lágrimas de dor e humilhação.

— Como ousou se comportar assim?—Franklin Chapman vociferou. — Você deveria estar se guardando para um marido rico e com título de nobreza e não criando escândalos com um tipo como Armond Wulf.

— Mas foi apenas uma dança — ela respondeu em um fio de voz.

Imaginou o que Franklin faria se soubesse o que de fato havia acontecido. Se tudo tivesse saído conforme planejara, contaria ao irmão como se deixara seduzir por Armond e ele a mandaria de volta para o interior. Mas, infelizmente, não havia acontecido nada, portanto aquela reação violenta e exagerada era infundada.

Rosalind era ainda uma criança quando Franklin foi expulso da própria casa pelo pai. O irmão fora uma criança odiosa e o tempo só o fez piorar.

As intenções dele eram claras, o fardo de restaurar a fortuna da família estava sobre as costas dela. Ele não soubera administrar o dinheiro e havia esbanjado negligentemente toda a herança.

Casá-la com um homem rico, disposto a pagar um dote alto era a solução mais fácil... pelo menos na ótica de Franklin Chapman.

Ela não rejeitava a idéia de se casar, mas era totalmente contra ser forçada para tal. Afinal não era sua culpa se o irmão estava enfiado em dívidas de jogo.

— Uma dança só? — ele repetiu, vermelho de raiva. — Você deixou o salão com ele! Todo mundo viu! Eu tinha avisado para ficar longe daquela família. Qualquer proximidade com aquele homem amaldiçoado pode colocar sua reputação em risco. Sem contar que ele seria capaz de devorar sua alma. Armond Wulf é perigoso!

Rosalind, entretanto, tinha fortes razões para acreditar que não havia homem mais perigoso do que Franklin Chapman. As memórias que trazia da infância não eram as melhores.

Antes de voltar para Londres, tivera a impressão de que o irmão havia mudado, mas estava enganada.

A desculpa para trazê-la de volta fora a doença da duquesa de Montrose, que estaria à beira da morte e gostaria de vê-la pela última vez. O pai havia se casado com a duquesa de Montrose após a morte de sua mãe. Enquanto viveram todos sob o mesmo teto, a duquesa tinha sido sua segunda mãe.

Em consideração a ela, Rosalind saiu do interior de onde vivia e veio para Londres com Franklin. A duquesa, segundo a versão dele, estava em um quarto na parte superior da casa, morrendo aos poucos, muito fraca, mas vê-la talvez trouxesse algum alento.

No entanto, não demorou muito para que ela descobrisse as verdadeiras intenções do irmão.

— Seu comportamento tolo virou fofoca. Agora não me resta outra alternativa senão encerrar sua temporada social mais cedo. Vou aceitar a oferta que recebi do visconde Penmore. — Rosalind o encarou espantada. — Você se lembra dele? Nós o encontramos na cidade na semana passada quando visitamos a modista de chapéus.

Era fácil lembrar-se do visconde, pois não obteve permissão de conhecer muitas pessoas antes de ser devidamente apresentada a todos no baile de Greenley. Lorde Penmore era um homem de baixa estatura, gordo e careca. Tão cedo não se esqueceria da maneira asquerosa como ele havia beijado sua mão.

— Ele tem idade para ser meu pai — ela contra-argumentou. — Já que sou forçada a me casar, imaginei que ao menos teria o direito de escolher o noivo.

Franklin tomou-lhe o queixo com sua mão fria, apertando-o com força.

— E uma caipira do interior como você saberia escolher um marido? Eu sei o que é melhor para você. Serei seu tutor até que passe a tarefa para um homem que julgo capaz. — Os dedos frios apertaram ainda mais a pele delicada. — A não ser que você já tenha arruinado suas chances por conta do deslize desta noite.

— Já disse que não houve nada de mais — mentiu. — Eu me senti mal na pista de dança e lorde Wulf me escoltou até a carruagem antes que eu caísse ali mesmo.

O irmão era muito mais violento do que ela julgara. Já era a segunda vez, em poucas horas, que era humilhada por um tapa no rosto. O primeiro havia sido naquela tarde quando se recusara a usar o vestido decotado que ele escolhera.

Se de fato a relação entre ela e Armond Wulf houvesse se consumado, era certo que Franklin a mataria.

Depois de um breve silêncio, ele afastou-se, mas o clima tenso continuou pairando sobre os dois.

— É bom que não esteja mentindo — ele vociferou. — Sua virgindade é um bem importante para garantir um bom marido. Fique longe de Armond Wulf. Ele poderia tê-la violentado. Poucas mulheres conseguem sair ilesas depois de encontrar-se com ele... isto é, quando sobrevivem para contar.

— O que quer dizer com isso?

— Eu deveria tê-la prevenindo sobre Wulf. — Franklin respondeu com um tom sibilar. — Ele matou uma mulher há alguns meses no próprio estábulo, mas não foi chamado para prestar contas do crime.

— Um assassino... — ela sussurrou, sentindo um calafrio na espinha. — Mas comigo ele foi um perfeito cavalheiro ao evitar que eu desmaiasse em pleno salão.

Talvez tivesse exagerado ao chamá-lo de "perfeito cavalheiro", mas enquanto estiveram sozinhos não sentiu que sua vida estivesse em perigo... Sua virtude sim, mas não a vida.

— Vocês foram vistos ao saírem juntos — Franklin lembrou. — Ele não seria tolo o suficiente para imaginar que poderia livrar-se de um crime pela segunda vez com tantas testemunhas.

Rosalind continuou ouvindo incrédula.

—Ah, temos um encontro com Penmore — avisou o irmão, mudando de assunto. — Ele estará no chá de lady Pratt depois de amanhã. Seja simpática.

— Serei civilizada se ele se comportar melhor do que da última vez em que nos vimos.

Mais uma vez, Franklin a segurou com força, dessa vez pelos ombros.

— Você usará todo o seu charme, independentemente da maneira como ele a tratar. Penmore e eu temos acordos de negócios. Eu devo a ele uma razoável quantia. Isso entre outras coisas... — acrescentou como se estivesse falando sozinho. — A atração que ele sente por você caiu como uma luva. Sorte a minha ele gostar de coisas bonitas.

Franklin jamais a vira como uma pessoa com sonhos, esperanças ou sentimentos.

Desde criança ela se sentia amedrontada perto dele. Na verdade, suspeitava que Franklin houvesse sido a razão da discórdia entre seu pai e a madrasta.

— Vou ver se sua mãe está bem — disse ela, dirigindo-se até a escada. — Suponho que Mary queira descansar de sua vigília constante.

— Minha mãe sequer sabe quem é você — Franklin atacou. — Em vez disso acho melhor escolhermos a roupa que você vai usar no chá da lady Pratt. Quero que esteja deslumbrante.

Ninguém melhor do que Rosalind para entender por que Franklin valorizava mais a beleza exterior do que os sentimentos de uma mulher. Seu irmão se passava por um homem muito charmoso na presença de estranhos. No entanto, apenas ela e o pai o conheciam verdadeiramente. Não fora à toa que o pai o expulsara de casa. Na época a madrasta optara por acobertar o filho, deixando a casa também.

Por aquelas e outras razões que Rosalind não o queria em seu quarto, pois ali era o único lugar onde se sentia protegida dos abusos que ele cometia.

— Acho que posso perfeitamente escolher uma roupa sozinha — ela argumentou. — Não precisa se incomodar com um assunto tão superficial.

—Não é incomodo algum — Franklin respondeu de forma calculada. — Os credores logo baterão à porta para receber a soma considerável que paguei por renovar seu guarda-roupa. Você precisa expor seus dotes na vitrine. E quem melhor para lhe dizer que vestidos caem melhor para esse propósito do que um homem?

Quando ele tomou a frente na escada, esperando que ela o seguisse como um cachorrinho ensinado, Rosalind bateu o pé.

— Eu não o quero em meu quarto, Franklin. Foi meu pai quem pagou por esta casa, mesmo que por direito pertença à sua mãe. Ele jamais deixaria meu futuro em suas mãos se soubesse que ela adoeceria logo em seguida da sua morte.

Franklin sequer virou-se para responder.

— Verdade, uma pena para a duquesa. Mas os advogados concordam em dizer que ela não tem condições de cuidar do seu futuro, muito menos da herança. — Quando virou-se para encará-la, seu rosto estava vermelho de raiva. — Eu tenho controle absoluto sobre você, Rosalind. Seu papaizinho não está mais vivo para me expulsar de casa. E você vai fazer exatamente o que eu disser, pois duvido que goste do que poderá acontecer, caso não obedeça... quer dizer, talvez até goste. Está interessada em descobrir?

Por mais corajosa que Rosalind fosse, precaução era a melhor atitude naquele momento. Franklin estava de fato com sua tutela, não havia como contestar. Agora, tinha controle sobre seu dinheiro, por isso a fortuna havia se perdido tão descuidadamente.

Franklin voltou a subir as escadas.

— Você não vem comigo, irmãzinha?

Rosalind olhou para a porta e ficou tentada a sair correndo e voltar para o interior, mas não poderia arcar com as despesas da viagem. Ao menos por enquanto estava à mercê de Franklin.

— Rosalind! — ele gritou ainda mais agressivo. — Obedeça e venha logo.

Sentindo um peso nos ombros e ainda sentindo a pele do rosto queimar pelo tapa, não lhe restou outra alternativa senão segui-lo.

 

—Ele é tudo o que você disse mesmo. O animal é magnífico — lorde Pratt elogiou.

Armond tirou o pó dos ombros com certa soberba. Não conseguia acreditar que sua reputação como íntegro criador de cavalos não fizesse com que as pessoas mudassem de opinião a seu respeito.

Recentemente havia retornado de sua propriedade no interior, Wulfglen, onde cuidadosamente escolhera os cavalos que traria de volta a Londres para vender.

— Vamos entrar — o conde convidou. — Podemos tomar um brandy, e eu faço o pagamento pelo animal.

— Está quase na hora do chá — Armond lembrou. — Não ligo muito para bebidas. Vamos tratar apenas do pagamento e eu tomo meu rumo.

O conde meneou a cabeça, provavelmente por se ver livre das formalidades de um bom anfitrião. Armond acompanhou-o pelo caminho de pedra que conduzia à porta da frente da casa. Assim que entraram no hall, ouviram-se vozes vindas da sala de estar.

— Minha esposa está recebendo alguns convidados para o chá — Pratt anunciou. — Ela está apresentando a filha caçula do duque de Montrose para a sociedade. Oh, desculpe-me. Esqueci que vocês já se conheceram no baile de Greenley.

A julgar pelo brilho malicioso dos olhos do duque, Armond percebeu que as maledicências sobre o baile já haviam chegado aos seus ouvidos.

— Eu a conheço. Aliás, uma mulher adorável. — Surpreendeu-se com o próprio comentário. — Foi uma pena que o prato servido durante o jantar não lhe fez muito bem e tive que acompanhá-la até a carruagem, poupando-a do constrangimento no meio da pista de dança.

— Ah. — Suspirou o conde. — Bem, foi isso mesmo que eu soube. Mas acho que ela foi imprudente ao dançar com um homem a quem não tinha sido apresentada de forma adequada.

— Imprudente por dançar comigo, o senhor quer dizer, não é? — Armond desafiou. — A srta. Rosalind é minha vizinha. Como veio do interior, provavelmente não sabia que eu não era um parceiro de dança apropriado.

— Ora, não é bem assim. — Pratt percebeu sua insinuação maldosa e corou. — Mas, por favor, passemos ao meu escritório.

— William.

O duque parou abruptamente, forçando Armond a fazer o mesmo.

—Você me prometeu participar do chá e disse que poderia resolver o assunto dos cavalos depois.

Lady Pratt veio encontrá-los no hall mal iluminado e quando viu Armond levou uma das mãos ao peito instintivamente.

— Oh, eu não sabia que você ainda estava tratando de negócios com lorde Wulf. Por favor, perdoem-me pela interrupção.

Armond sorriu para a tão atormentada senhora, sabendo que assim a irritaria ainda mais.

— Sou eu quem deve desculpas por desviar seu marido das obrigações sociais.

Ela respondeu que aceitava as desculpas com um sinal de cabeça, mantendo ainda a mão no peito, demonstrando que não havia se recuperado do susto de vê-lo ali.

— Eu ofereci um brandy para lorde Wulf, mas ele recusou. Seria de bom-tom, querida, oferecer uma xícara de chá, enquanto eu me ocupo em pagar pela compra do cavalo.

— Ora, mas é claro que lorde Wulf é muito bem-vindo para tomar chá conosco — resmungou lady Pratt, olhando assustada para Armond.

— Será uma honra acompanhá-la.

Ele mesmo se espantou com a resposta, e lady Pratt revirou os olhos mostrando que também se surpreendera. No instante seguinte, ele teve vontade de mudar de idéia, mas o orgulho o impediu. Se bem que a verdadeira razão que o fazia agir de modo contrário ao comportamento normal era a vontade de rever Rosalind e nada o dissuadiria de seu propósito.

Armond seguiu lady Pratt até a sala. A conversa estava animada, mas no momento em que ele entrou, transformou-se em sussurros ditos ao pé do ouvido. Além de tudo, não estava vestido de acordo para o evento, mas mesmo que estivesse, o choque dos presentes seria o mesmo.

—Lorde Wulf— lady Pratt anunciou. — Ele irá nos fazer companhia para o chá enquanto meu marido termina uma negociação com cavalos.

Ele se acomodou em uma cadeira que estava um pouco afastada dos outros convidados e aceitou uma xícara de chá.

Uma vez que os sussurros sobre sua presença diminuíram, correu os olhos pelo salão e imediatamente reconheceu Rosalind, apesar de ela estar de costas.

A postura ereta realçava ainda mais o corpo curvilíneo. Os cabelos encaracolados caíam pelas costas como se fossem Uma cascata, cuja nascente era um delicado chapéu azul com um pequeno véu.

A pele de Rosalind parecia mais pálida em contraste com o véu escuro. As maçãs salientes do rosto e os grandes olhos expressivos também estavam parcialmente escondidos pelo tecido fino. Mas a boca... Ah, aquela boca de lábios tão vermelhos... Aquela sim era a responsável por prender o olhar de Armond e fazê-lo lembrar do prazer de provar daqueles doces lábios.                            

Como se pudesse sentir o olhar perturbador, Rosalínd virou-se em sua direção. Os olhares se cruzaram e se fixaram por um breve momento, mas o véu camuflou qualquer emoção que aqueles olhos adoráveis pudessem demonstrar.

Ela voltou-se novamente, fingindo não ter notado a presença perturbadora. Mesmo com pouco tempo de cidade, já havia aprendido como jogar com um homem perigoso.

Quando saiu da roda de amigas, afastando-se para admirar um quadro, Armond ficou com o olhar preso na figura tão feminina.

O vestido mostrava uma cintura fina e caía em camadas por um quadril proporcional ao corpo miúdo. Não era uma mulher alta, porém tudo em seu corpo guardava uma perfeita simetria sensual. Apesar da roupa modesta, a curva dos seios, marcada sobre o corpete, era capaz de levar um homem à loucura só ao imaginá-la nua. Armond já conhecia a sensação devastadora de tocar aquela pele macia e isso só intensificava a idéia de haver provado apenas uma pequena gota do orvalho existente em uma imensa vegetação viçosa.

Colocando a xícara sobre a mesa de centro, ele ignorou os olhares de reprovação e aproximou-se.

— Vejo que já se recuperou do baile — disse quase sussurrando-lhe ao ouvido. — E presumo que não aconteceu o pior por conta da sua ousada escapadela, caso contrário não estaria aqui hoje.

— Por favor, não fale comigo. — Rosalind virou-se rapidamente apenas para responder e voltou a atenção parado quadro.

Contrariando seu comportamento-padrão, que seria obedecer a uma ordem insolente como aquela, Armond estreitou ainda mais a distância entre eles. E, parado a seu lado, fingiu estudar a pintura atentamente.

— Há duas noites me pediu para desonrá-la. Hoje me pede para agir como se não a conhecesse. Como entender as mulheres...

— Errei ao me aproximar de você naquela noite — ela murmurou. — Se tivesse um mínimo de consideração, faria o que estou pedindo e me deixaria sozinha.

— Lamento, mas não tenho tal consideração — ele respondeu, passando a mão pelo queixo. — Pensei que já soubesse disso.

Rosalind deu alguns passos para o lado, parando diante de outro quadro.

— Discordo. Você é muito bem-educado, apesar de permitir que a sociedade inteira pense o contrário.

— Eu não ligo a mínima para o que a sociedade pensa — sentenciou. — Pensa que não sei qual era a sua intenção no baile? Você se aproximou de mim num ato de coragem, fazendo-se de isca para ganhar favores de suas amigas. Sorte a sua que não levei a brincadeira até as últimas conseqüências, como era seu desejo.

— Sorte? — Percebendo que tinha falado alto demais, ela deu um passo atrás. — Sorte não tem nada a ver com isso. Apesar de sua reputação sombria, eu sabia que não corria sérios perigos. Nenhum homem é tolo o suficiente para achar que pode seduzir uma dama inocente e não arcar com a repercussão de seus atos. Nem mesmo você.

— Isso quer dizer que sou um covarde.

Rosalind virou-se bruscamente para encará-lo.

— O que foi que disse?

Armond estreitou a distância entre eles.

— Você acha que sou um covarde — repetiu. — Acredita que não me aproveitei da situação por temer alguma represália? Não está totalmente sem razão, mas o que pretendo em relação à sociedade não tem nada a ver com que você imagina. Gostaria de ter uma chance para provar o quanto está errada.

— Não haverá um segundo encontro. — Ela sentiu-se corar desde a base do pescoço. — Cometi um erro e não tenho intenções de repeti-lo.

Quando Rosalind se afastou, ele não a seguiu. Ainda restava um pouco de bom senso, que se esvaía a cada vez que a encontrava. Porém, não deixou de observá-la com o canto dos olhos e viu quando ela perguntou algo para a esposa de Pratt e deixou a sala. Provavelmente fora ao toalete.

Armond bem sabia que deveria sair também, tinha negócios a concluir e quanto mais cedo o fizesse, melhor. No entanto, tornaram a se cruzar no hall da casa mais uma vez. Cada um tentou dar um passo para o lado oposto a fim de evitar o encontro, mas terminaram por fazê-lo na mesma direção.

— Quer dançar novamente? — ele brincou.

— Por favor, deixe-me passar — Rosalind respondeu sem esboçar um sorriso sequer.

Diante da resposta fria o senso de humor de Armond desapareceu também.

— Não está sendo tão simpática quanto na primeira vez em que nos vimos. É um hábito seu sair fazendo propostas a homens que mal conhece? Caso seja, vejo-me na obrigação de avisá-la que talvez não seja uma atitude recomendável.

— Já disse que não haverá uma próxima vez, lorde Wulf — respondeu ela friamente. — Não foi uma atitude apropriada da minha parte provocar um encontro, talvez eu tenha agido sob o efeito do champanhe. Já me avisaram para evitar bebidas alcoólicas, bem como evitar sua companhia. Compreendi que nada disso faz bem à saúde de uma dama.

A luz do hall estava fraca, mas Armond viu algo que maculava a imagem do rosto lindo sobre o véu. Quando tentou aproximar a mão, ela afastou-se, o que não o impediu de tentar novamente. E o que viu o fez estremecer.

— O que aconteceu com seu rosto?

Mais uma vez, ela afastou a mão dele e abaixou o véu.

— Isso não lhe diz respeito, lorde Wulf. De novo peço que me deixe passar. — Ao tentar passar, ele bloqueou o caminho.

— Fui eu quem fez isso com você?

— Não. Sou muito desastrada e tropecei ao chegar em casa depois do baile e bati com o rosto numa cadeira. Mas não foi nada.

Armond levantou o véu novamente e tocou na pele ferida.

— Jamais vi uma mulher que se movimentasse tão graciosamente como você. Vê-la passar é como observar uma princesa desfilando diante da corte.

— É seu costume ofender mulheres que mal conhece, lorde Wulf, para depois vir com poesias no instante seguinte?

— Não, nunca. E pode me chamar de Armond. Creio que podemos dispensar as formalidades depois do que compartilhamos.

— Já pedi mais de uma vez para esquecer aquele incidente. — Rosalind levantou os olhos para encará-lo.

Ele reconheceu aquele olhar, porém não sabia ao certo se poderia traduzi-lo por raiva... ou desejo.

— Pode ter certeza que tentei — admitiu. — Tentei centenas de vezes.

— Pois então deveria tentar mais algumas. Será que é difícil acreditar que eu não sabia do perigo de...

— Entendo — Armond interrompeu-a. — Mas você não tinha dúvidas sobre minha pessoa quando se aproximou durante o baile.

Rosalind fitou-o friamente através do véu.

— Você é um assassino, lorde Wulf?

Armond estava acostumado que falassem a seu respeito pelas costas. Ela era a primeira a ter coragem o suficiente para confrontá-lo frente a frente.

— O que você acha? — perguntou e aguardou a resposta ansioso.

— Se eu o achasse um assassino, provavelmente não estaríamos conversando agora. Só quis ter certeza...

Ele sorriu perante a resposta e ela o surpreendeu acrescentando:

— Você deveria sorrir com mais freqüência, assim não parece tão assustador.

Armond assumiu um ar sombrio. Rosalind poderia não acreditar que ele era um assassino. Porém, estava longe de saber de toda a verdade, sobre a maldição que pairava sobre sua cabeça. Ambos eram proibidos um para o outro.

— Prometa-me que daqui para a frente, tomará mais cuidado antes de subir na carruagem de desconhecidos.

Rosalind de repente sentiu o rosto em brasa sobre o véu quando percebeu que estava flertando, apesar de ter pouca prática no assunto.

— É bem verdade que lhe devo minha gratidão. — Tentou recobrar a compostura e terminar logo a conversa. — Que bom que ao menos um de nós conservou o bom senso. Suponho ser afortunada por você ser um...

— Um covarde?

Um arrepio a fez tremer. Como ele poderia saber o que dissera naquela noite ao voltar para casa sozinha?

— Eu ia dizer um homem honrado. Demorei para dizer porque também não é verdade.

— Foi você quem pediu — ele a lembrou. — Eu apenas obedeci.

Na verdade Armond não tinha cumprido com o que prometera, mas ali não era a hora nem o lugar mais adequado para continuar a conversa. Era melhor voltar para a sala e afastar-se daquela presença tão perturbadora.

— Quando você me olha dessa forma, chego a me arrepender do nosso primeiro encontro.

Ela baixou o olhar rapidamente.

— Envergonho-me do meu comportamento também. Precisamos esquecer o que aconteceu.

— Eu me arrependi por não ter aproveitado mais da sua presença, por não ter me inebriado com o seu perfume doce e por ter interrompido a viagem por sua pele macia.

Rosalind voltou a encará-lo. Armond estava com uma idéia errada a seu respeito. Mas também, que outro homem não estaria? Não poderia culpá-lo, pois o ato leviano de aproximar-se de um estranho com uma proposta daquelas era mesmo inusitado, por mais que estivesse repleta de razões para abordá-lo.

— Você não é um gentleman, lorde Wulf.

— Mas você já sabia disso. — Ele tomou-lhe a mão, virando-a e beijando a parte sensível do pulso.

Ao sentir os lábios quentes roçarem sua pele, Rosalind puxou a mão rapidamente como se houvesse sido queimada.

— Algum problema, Rosalind?

O som frio da voz a fez estremecer. O que mais temia acabara de acontecer. Franklin estava parado, encarando-a numa calma aparente, mas ela percebeu que a veia saltada na testa denunciava o real estado de espírito do irmão.

— Está tudo bem, Franklin. Eu já estava voltando para a sala.

Armond virou-se e olhou para o irmão de Rosalind e o reconheceu das mesas de jogo, apesar de nunca terem conversado.

— Peço desculpas por afastar sua irmã da festa. Nós nos encontramos por acaso aqui no hall. Como dançamos juntos no baile de Greenley e ela não passou bem, quis saber se tinha melhorado.

— A saúde dela está ótima — Franklin respondeu friamente. — Pelo menos por enquanto.

Sendo dotado de uma intuição aguçada, Armond percebeu a estranha ligação entre Rosalind e o irmão.

— Volte para a sala, Rosalind — Franklin ordenou. — Vou encontrá-la daqui a pouco.

Ela olhou de um para outro e tentou evitar um confronto entre os dois:

— Pensei que você fosse me acompanhar — sugeriu ao irmão.

— Faça o que pedi — Franklin respondeu com um tom ríspido.

Em silêncio, Armond observou-a passar por eles e atravessar o hall, admirando o movimento sensual dos quadris femininos. Percebendo a intenção, Franklin comentou:

— Ela é encantadora, não é?

— Muito.                                      

—Pois mantenha distância.—Estreitou os olhos em sinal de ameaça.

Apesar de não culpá-lo por estar protegendo a irmã, Armond percebeu algo em Franklin que o intrigava, fazendo com que acreditasse que havia outros interesses escusos na relação entre os dois.

— Lady Rosalind não precisa ter medo de mim... E espero que não tenha medo de você também.

— Não sei o que está querendo dizer. — Franklin respondeu com o rosto em brasa. — Mas minha irmã é assunto meu.

— Meia-irmã, não é? — Armond continuou a provocar. Franklin mudou de estratégia e sorriu, apesar de sua expressão continuar sombria.

— É verdade. Apesar de não termos laços de sangue, posso garantir que tenho Rosalind na mais alta estima. Espero que ela arrume um noivo digno nesta temporada—anunciou do alto de uma falsa arrogância.

— Com certeza tem toda a razão — Armond respondeu com indiferença, porém mantendo também o sorriso cínico nos lábios. — Eu não terei essa honra.

Em seguida, virou-se para ir encontrar com o conde em seu estúdio. Sentiu o olhar de Franklin queimando suas costas, mas isso não o intimidou a virar-se para também ameaçá-lo.

— Ah, daqui para a frente mantenha suas mãos longe de Rosalind, caso contrário terá que acertar as contas comigo. Pode ter certeza de que isso não será comparável nem a uma vingança de seu pior inimigo.

Não houve resposta, mas Armond não esperava outra reação. Por mais que aceitasse sua condição de viver nas sombras e à margem da sociedade, tampouco poderia aceitar um homem abusando de uma mulher. Talvez Rosalind tivesse se machucado sozinha, mas havia fortes indícios de que não era o caso.

Por enquanto, se manteria apenas como espectador.

Franklin, porém, se arrependeria amargamente se porventura encostasse a mão em Rosalind mais uma vez.

Se alguém lhe dissesse que um dia estaria preocupado em proteger uma mulher, ele próprio teria feito galhofa da situação. Mas agora, sentia que algo o impulsionava para perto daquela mulher deslumbrante e tão frágil.

A bem da verdade seria mais prudente preocupar-se com quem a protegeria contra ele mesmo, uma vez que perdera totalmente o controle durante o baile. Ele não se lembrava de ter ficado tão fascinado por uma mulher quanto ficara por Rosalind. Só em lembrar-se do encontro que tiveram na carruagem, sentia o corpo pulsar de desejo.

E a certeza de que a encontraria novamente era tão forte quanto a maldição que pairava sobre seu futuro. Que os Céus o ajudassem, porque seria difícil resistir.

 

Quando Penmore aproximou-se, Rosalind imaginou por que Armond não poderia ser considerado um bom partido em vez daquele homem asqueroso que Franklin a estava forçando a aceitar.

— Lady Rosalind — Penmore cumprimentou-a, tomando-lhe a mão e repetindo o beijo melado. — Ainda bem que consegui encontrá-la por aqui ainda. É uma lástima que me atrasei tanto.

Rosalind pensou que lástima mesmo era sua presença odiosa, mas mesmo assim forçou um sorriso.

— Que bom encontrá-lo de novo — respondeu e puxou a mão para em seguida limpá-la disfarçadamente no vestido.

— Boa tarde, visconde — Franklin cumprimentou-o aproximando-se também. — Infelizmente você se atrasou e perdeu a chance de enxotar Wulf daqui.

— E que animal seria esse? — Penmore levantou uma das sobrancelhas com um ar de desdém.

— Lorde Armond Wulf— Franklin respondeu. — Parece que ele está interessado na minha doce irmãzinha.

Rosalind ficou chocada ao ver-se motivo de chacota de dois homens tão repugnantes.

— O amaldiçoado nunca mostrou interesse em alguém que não fosse ele mesmo. Além do mais, se não me engano, ele só gosta de prostitutas — Penmore acrescentou e piscou para Rosalind, que não achou graça nenhuma no comentário.

— Lorde Penmore está se referindo à mulher encontrada morta na propriedade dos Wulf — Franklin explicou. — Ela era uma dessas moças de reputação duvidosa.

Rosalind continuou sem achar a menor graça.

— Não acho que falar sobre lorde Wulf ou esse tipo de mulher, seja um assunto adequado para se discutir entre damas e cavalheiros.

Os dois homens olharam-na em sinal de reprovação, como se ela não tivesse o direito de expressar sua opinião. Por fim, Penmore deu de ombros.

— Desculpe-nos pela falta de educação. Claro que podemos encontrar algo mais agradável para conversar do que os irmãos Wulf. Você sabe da maldição que os assombra?

— Maldição? — Apesar de o assunto não ter mudado, Rosalind ficou curiosa.

— Insanidade — Penmore continuou. — O pai se matou. A mãe faleceu pouco depois, também totalmente louca. Os irmãos, os quatro, apesar de eu não saber o que aconteceu com o mais novo, foram envenenados pelo mesmo sangue. Como a doença veio dos dois lados, eles não têm escapatória. Nenhuma mulher decente se comprometeria com alguém assim. Acredito que por esta razão, eles tenham jurado nunca se casarem. O que certamente foi uma decisão sábia.

— Talvez devêssemos mesmo mudar o rumo da conversa — Franklin interrompeu. — Você irá ao clube depois que sairmos desse encontro enfadonho?

— É uma excelente idéia. Por que não vem comigo, Franklin? Quem sabe não tenha sorte o suficiente para ganhar e me pagar parte da fortuna que já me deve?

Rosalind percebeu que o irmão estava sendo cobrado acintosamente, mas não estava interessada na conversa. Seus pensamentos estavam voltados para Armond Wulf.

Que sina terrível ser amaldiçoado pela doença dos pais. Teria ele herdado a mesma loucura? Até então ele não mostrava nenhum sinal, no entanto se a família padecera daquele mal, não restava dúvidas que em algum momento a doença se manifestaria.

Mas acreditava que a decisão de não se casar teria sido imposta pela sociedade e não por vontade dos irmãos.

— Você irá nos acompanhar amanhã?

A pergunta de Penmore tirou-a dos devaneios, trazendo-a de volta à conversa.

— Desculpe, não estava prestando atenção.

— Considerando os últimos fatos, não acho que seja uma boa idéia — Franklin respondeu por ela.

— Ora vamos, meu amigo, ela estará conosco. Quero pegar Wulf de surpresa.

Franklin sorriu ante a possibilidade de enfrentar Wulf novamente, mas Rosalind ainda não estava certa sobre o real motivo do confronto.

— Sinto muito, mas não entendi aonde quer que eu o acompanhe, visconde.

— Estou pensando em comprar um par de cavalos para minha carruagem. Wulf pode ser um assassino prestes a enlouquecer como os pais, mas é um excelente criador de cavalos. Pensei que talvez você pudesse nos acompanhar nessa aventura.

— Acredito que negociar cavalos seja um assunto entre homens — comentou ela, embora não acreditasse nas próprias palavras. Desde criança gostava muito de cavalos e saberia distinguir perfeitamente as qualidades de um belo exemplar.

— Mas eu quero que você vá — Penmore sentenciou e assumindo um ar mais sério, dirigiu-se para Franklin. — Eu a quero conosco.

Franklin encarou o outro homem por alguns instantes, depois encolheu os ombros.

— Não vejo mal algum que ela nos acompanhe. Como você disse, nós a protegeremos.

Rosalind entendeu que não havia nada a dizer uma vez que os dois voltaram a discutir sobre o jogo que teriam assim que saíssem dali. Então ficou acertado que se veriam novamente no dia seguinte. Só em imaginar-se diante de Armond outra vez, ela sentiu o corpo inteiro reagir, lembrando-se do prazer que haviam compartilhado na meia-luz da carruagem.

— Vou pedir ao cocheiro que a leve em casa — Franklin anunciou. — Nos veremos mais tarde, aí então falaremos sobre seu pequeno incidente de hoje no hall de entrada.

Rosalind fora uma tola ao pensar que o irmão teria dado aquele caso por encerrado. Só em imaginar a possibilidade de enfrentá-lo sentiu uma pontada de dor no peito. A tarde se arrastaria enquanto estivesse esperando pela volta de Franklin.

Costumava andar para se acalmar. E foi isso que fez enquanto Lydia, sua criada de quarto, trocava os lençóis de linho da cama. Sua opinião a respeito de Penmore não mudara, continuava achando-o desagradável e repugnante. No entanto, já não pensava da mesma forma quanto a Armond Wulf. Mas não queria pensar nele. Muito embora desejasse afastá-lo de seus pensamentos, ao sair na varanda do quarto e olhar para a propriedade vizinha, foi ele que veio a sua mente.

— O que devo fazer?

— Deve fazer o que seu irmão diz e encontrar um marido — Lydia respondeu, embora soubesse que Rosalind estava apenas divagando. — Já percebi o jeito que ele olha para seu corpo quando está distraída. Não demora muito estará recebendo visitas noturnas em sua cama.

— Lydia!! Não diga uma coisa dessas.

Rosalind sabia que Franklin tinha costumes sexuais bizarros, mas recusava-se a acreditar que estivesse incluída neles. No entanto, Lydia era a única amiga que tinha e tornara-se sua confidente.

— Acha que não conheço o apetite secreto do patrão? — Lydia continuou apesar da reprimenda. — Ele consegue tudo o que quer. Na última vez em que ordenou que eu deitasse em sua cama, pensei que fosse morrer com a maneira rude com que ele me dominou. Sangrei durante uma semana.

Rosalind ficou boquiaberta. Já ouvira muitos comentários de criados, mas nada semelhante ao que acabara de ouvir.

— Você está me dizendo que Franklin... que ele forçou-a a fazer alguma coisa?

— Acho que nenhuma mulher diria não a um homem tão bonito — a criada comentou, enquanto afofava os travesseiros. — Mas nós duas sabemos que ele não é tão bonito por dentro, não é?

— Por que não contou isso para alguém? Por que continua aqui, já que é obrigada a fazer coisas contra sua vontade?

— Não tenho família — Lydia argumentou dando de ombros. — E preciso do emprego. O patrão disse que se eu não obedecesse, não teria boas referências para os próximos empregos.

— Esse comportamento é inaceitável. Franklin não tem poder algum sobre seus desejos. Creio que ele a vê como um cordeirinho que Deus colocou em um pasto verde sob os comandos dele e assim pode dominar inclusive suas vontades.

— Agora já é tarde. — Lydia colocou a mão sobre o ombro de Rosalind. — Fico com medo por vocês viverem sobre o mesmo teto. Faça o que ele pede para continuar em segurança. Nenhuma mulher merece sofrer tamanha humilhação.

— Sinto muito — Rosalind disse docemente. — Lamento por sua vergonha e sofrimento. Pode estar certa de que vou falar com Franklin a respeito.

— Não, milady — Lydia implorou. — Se ele souber que ando contando histórias, vai me machucar ainda mais. Não fale nada, por favor.

Quando Rosalind ia responder, uma batida seca na porta interrompeu a conversa. Foi só mencionar o monstro, que ele apareceu em pessoa no quarto. Lydia abaixou a cabeça e saiu rápido, deixando Rosalind frente a frente com o irmão.

— Precisamos conversar, irmãzinha.

Ainda cheia de ódio pelas confissões que acabara de ouvir, sem saber se tomava as dores da criada ou não, Rosalind optou por ficar em silêncio, na defensiva.

— Foi por acaso que encontrei com lorde Wulf no hall da casa de lady Pratt — justificou, antes de ser inquirida. — Eu não o procuraria depois de você ter me alertado.

Franklin limitou-se a levantar uma das sobrancelhas. No entanto, para ela, foi impossível calar-se diante do abuso contra Lydia.

— E... você não deve tocar em nenhuma criada novamente.

A reprimenda transformou a expressão complacente do rosto de Franklin.

— O que aquela vadia andou contando?

— Ela deixou escapar, sem querer, que você tem pedido certos favores. Soube também que a forçou a fazer o que ela não queria.

Franklin tomou-a pelos ombros com as mãos pesadas, enterrando os dedos fortes na pele delicada. Ela tentou recuar, mas foi em vão.

— Os empregados desta casa não lhe dizem respeito — disse ele por entre os dentes. — Você prefere acreditar na palavra de uma vagabunda, e não na minha? Pois eu digo que foi ela que veio para a minha cama, na esperança de ganhar algumas moedas. Eu não tomei nada que ela não quisesse me dar. Como ousa me enfrentar em um assunto como este?

Quanto mais forte era a dor que sentia nos ombros, mais difícil se tornava enfrentar o inimigo. E não tinha dúvida alguma de que o irmão era de fato seu inimigo.

— Eu entendo — disse baixinho. — Por favor, Franklin, você está me machucando.

Movido por uma força maior que a própria vontade, ele a soltou, virando-se de costas.

— Você me provoca. Parece esquecer que está numa condição bem diferente de antes. Seu pai me expulsou de casa, lembra-se? Mas agora a casa é minha.

— Isso já faz muito tempo. — Rosalind relembrou, enquanto massageava os ombros. — Eu era criança e não tive nada a ver com sua expulsão. Chorei muito quando a duquesa me disse que estava indo embora também. E só voltei para cá porque você me disse que ela estava doente e precisava me ver.

— Claro que eu sabia do seu amor por ela e a recíproca era verdadeira. Foi assim que tive a certeza de que a atrairia para cá. Você caiu na minha armadilha, irmãzinha — ele sentenciou em tom de chacota. — Agora voltemos para os assuntos mais urgentes. Amanhã de manhã você vai acompanhar a mim e Penmore à casa do nosso vizinho para comprarmos alguns cavalos. Espero não ter mais nenhum problema entre vocês dois. Eu odiaria ter que espancá-lo. Como contei a Penmore, Wulf ficou amedrontado depois que eu o avisei para manter-se afastado.

Rosalind segurou a língua, mas duvidava sinceramente que seu irmão pudesse assustar Armond Wulf.

— Se você deseja assim, então irei — ela assentiu. — Posso visitar sua mãe hoje à tarde? Tenho sido relapsa e quero reparar minha falta.

—Faça como quiser. — Franklin deu de ombros. — Acabei de pedir que uma bandeja com o chá fosse levada até o quarto. Dê a ela minhas lembranças.

A maneira como ele se referiu à mãe foi sarcástica, mas Rosalind fingiu não perceber, para que não houvesse mais comentários.

A duquesa estava cochilando em uma cadeira em frente à janela. A bandeja com os restos do chá estava em uma mesinha. Mary, a governanta, estava ocupada arrumando o quarto melancólico.

— Ela teve alguma melhora hoje?

— Há dois dias não consigo ver nenhum sinal. — Mary negou com um sinal de cabeça. — Ela está muito cansada e mal consigo levá-la até a cadeira.

Rosalind ajoelhou-se em frente à madrasta e tomou as mãos finas nas suas.

— Boa tarde, duquesa. Lamento não ter vindo vê-la mais vezes. — E virando-se para Mary, continuou: — Vou ficar aqui um pouco mais. Pode seguir com seus afazeres.

—Ah, abençoada seja, milady! —Mary admitiu. —Desde que o sr. Chapman reduziu os empregados estou cheia de serviço por fazer.

Depois que Mary saiu, ela tentou pensar em alguma coisa alegre para conversar com a madrasta, embora não esperasse resposta alguma. A duquesa mantinha um olhar apático, como se não pertencesse mais a este mundo e sim houvesse escapado para algum outro lugar distante.

Naquele momento, Rosalind quis fugir da realidade também. Mas infelizmente seu destino já estava traçado. A dor nos ombros era a lembrança vivida de que teria que continuar a viver em uma casa onde o abuso tornara-se um companheiro diário.

De repente, lágrimas começaram a cair e para seu espanto, a duquesa tocou em seus cabelos.

O toque de uma pessoa que estava quase vegetando era um sinal de esperança. Rosalind deitou a cabeça no colo da madrasta e chorou ainda mais. A duquesa ainda mantinha o olhar perdido no horizonte, mas continuava a afagá-la. As duas confortaram-se mutuamente por mais alguns segundos, até que a mão da madrasta escorregou e Rosalind percebeu que ela havia adormecido.

A noite começava a cair quando a criada preparou um banho quente para Rosalind. Entrar na banheira com água perfumada foi um bálsamo para suas dores. Porém nada poderia abrandar o tumulto de emoções que a dominava, para isso somente uma pessoa poderia ajudá-la.

Pensando nisso, a visão do rosto bonito de Armond surgiu em sua mente. Talvez tivesse lembrado por ele se parecer com um anjo com aqueles cabelos dourados.

Recobrando a razão, balançou a cabeça para afastá-lo dos pensamentos. Pelo pouco que o conhecera, sabia que ele não era um anjo. Por outro lado, não acreditava nos boatos que o tachavam de assassino e louco.

Depois do banho, deitou-se ainda intrigada por tantas dúvidas. Estava quase pegando no sono quando sentiu que havia alguém bem perto de sua cama.

Lembrou-se da conversa com Lydia e encolheu-se amedrontada. Franklin tinha a chave de todos os aposentos. Assustada, apertou os olhos, procurando enxergar na penumbra do quarto, quando viu um vulto perto da porta dupla da varanda.

— Franklin? — perguntou em um sussurro com o coração aos pulos.

Ele entrou no quarto e o luar desvendou uma figura bem diferente de seu irmão. E em vez de ficar mais apavorada, sentiu-se aliviada.

— O que está fazendo aqui? Como entrou?

Vestido com uma camisa branca, desabotoada o suficiente para revelar parte do peito musculoso e calças pretas justas, Armond aproximou-se da cama.

—Você não deveria dormir com as portas do terraço abertas — anunciou ele com aquela voz gutural. — E a treliça na parede só facilita a subida de um homem determinado.

Rosalind puxou as cobertas até o queixo, procurando proteção.

— E determinado a fazer o quê?

— Eu precisava saber como conseguiu esse hematoma no rosto. Fiquei muito preocupado.

Rosalind respirou mais fundo para se acalmar e sentiu um perfume cítrico tomar conta do ambiente. Armond não exalava a uma loção comum, mas sim uma fragrância inebriante, carregada de perigo, masculinidade ou talvez algo ainda mais selvagem.

— Eu já disse que sou desastrada — ela relembrou. — Não deveria estar aqui.

— Por um instante você pensou que fosse seu irmão que estivesse aqui.

Ela desejou que a penumbra do quarto disfarçasse seu constrangimento.

— E por que não? Ele é o homem da casa. Para mim faz todo o sentido pensar que você fosse Franklin, que talvez tenha vindo checar se estou bem.

— E ele costuma fazer isso?

Rosalind suspirou quando ele sentou na beira de sua cama.

— Não. E mesmo que fizesse isso não é assunto seu. É melhor sair agora. Não é apropriado ficarmos aqui sozinhos. Se não sair imediatamente, chamo meu irmão. Franklin me disse que o assustou na última vez em que nos encontramos.

Armond soltou uma gargalhada alta e seus dentes brancos reluziram na escuridão.

— E você acreditou?

A resposta sarcástica confirmou o que ela já suspeitara.

— O que quer, afinal?

Ele não respondeu de imediato, limitando-se apenas a estudá-la.

— Você sabe o que eu quero.

Armond tentara se convencer que só iria procurá-la para perguntar sobre a marca roxa no rosto. No entanto, mentira para si mesmo. A verdadeira intenção era poder tocá-la novamente, beijá-la e atiçar a chama do desejo que brotara na noite do baile de Greenley. Rosalind o fizera ter sentimentos como qualquer outro homem. Como se fosse um rapaz tolo e apaixonado, ele estava ali diante daquela figura frágil e amedrontada contendo o impulso de tomá-la nos braços mais uma vez.

— Eu deixei uma impressão errada a meu respeito — ela disse, acuando-se ainda mais. — Apesar do meu comportamento no baile, não sou o tipo de mulher que permite que um homem entre no quarto sem ser convidado. Que esse assunto fique bem claro entre nós de uma vez por todas.

Ele bem sabia que tipo de mulher tinha diante dos olhos.

Os beijos trocados o afetaram mais do que qualquer outro que já havia recebido de outras mulheres. Os lábios se tocaram, mas com a pureza de uma amante inocente.

— Essa formalidade toda comigo não lhe cai bem, principalmente quando sei que por baixo desse olhar frio, existe o calor do desejo. Não apague a faísca que brilha impune a cada vez que nos encontramos — pediu ele.

Com as mãos trêmulas, Rosalind fechou o botão do decote.

— Se pudesse voltar atrás e mudar o que aconteceu entre nós em Greenley, eu o faria. Só agora entendo como fui tola ao deixar o baile em sua companhia. Acredito que não estava raciocinando direito, pois não considerei as conseqüências da minha ousadia. Eu o usei por razões minhas e já me desculpei por isso. O que mais quer de mim?

Armond desejou responder que queria muito mais do que desculpas, mas apesar daqueles lábios tão convidativos, Rosalind ainda possuía uma aura de inocência que o fez recobrar a razão. Porém, deparar-se com aquela figura tão feminina, com os cabelos negros caindo em desalinho sobre os ombros e as curvas do corpo insinuando-se através da camisola, não haveria como conter o desejo. Como que uma mulher podia despertar a doce contradição entre a decência e a paixão selvagem? O que mais ele poderia pedir? Nada mais do que seu instinto queria, mas certamente muito mais do que deveria. Dominado ainda pelo desejo, indiferente aos sentimentos opostos, aproximou-se:

— Quero ao menos um beijo.

— Só isso? — ela sussurrou quase sem ar e ergueu a mão para impedi-lo. — Um beijo e nada mais? Depois você vai embora?

—Se esse for o seu desejo... — dizia a verdade. No entanto, sabia que seria difícil ater-se a um beijo apenas, mas ignorando a razão, deixou-se dominar pela ânsia de sentir aquela boca úmida contra a sua, e ele tomou os lábios macios num beijo faminto.

Rosalind também queria beijá-lo de novo. Além do mais, sentiu que poderia confiar que seria apenas um beijo, pois na noite em que estiveram juntos, ele poderia ter se aproveitado da ocasião e não o fez. Tudo indicava que estaria relativamente a salvo com ele... até acontecer outro beijo. O desejo que começara com um arrepio, agora lançava labaredas por todo o seu corpo.

— Rosalind... — ele sussurrou. — Como posso prometer que não pedirei mais quando a vejo como a interpretação dos mais escondidos desejos? Preciso do seu calor, do seu corpo, sentir muito mais do que minha vida amaldiçoada pode me dar.

E a simples menção da maldição, despertou-a, tirando-a parcialmente daquele delicioso estado letárgico. Será que ele era louco de fato? Se fosse então ela já estava totalmente contaminada.

Rosalind achou-se igualmente insana ao permitir que a beijasse dentro de seu próprio quarto. Mesmo sabendo que deveria afastá-lo, optou pela insanidade total, puxando-o pelo colarinho, aproximando-o novamente.

— Quanta insensatez... — murmurou ela entre beijos. — Isso não está certo, mal o conheço.

De repente Armond se afastou, deixando visível um estranho brilho no olhar. Algo como uma cor latente que por uma fração de segundos se misturou ao azul daqueles olhos indecifráveis, mas sumiu tão rápido quanto apareceu.

— É verdade, você não me conhece...

Armond tirou delicadamente os braços que o envolviam e sem nenhuma palavra mais, afastou-se e sumiu pela porta.

Rosalind ficou com a impressão de que havia sonhado acordada. Mas não havia como duvidar, pois seus lábios ainda latejavam. O corpo permanecia dominado pela mistura pecaminosa de prazer e desejo.

Por baixo da camisola fina, os seios estavam inchados e doloridos e uma estranha umidade brotava entre suas pernas.

Contudo, o mais intrigante era o fogo implacável que a consumia por dentro, deixando-a faminta, ansiosa por receber mais do que aquelas simples carícias.

Como um homem teria o poder de transformá-la daquela forma? E pela segunda vez, ele praticamente fugira. Foi possível sentir que Armond também a desejava e estava totalmente entregue aos beijos, mas então por que deixá-la tão inesperadamente?

Bem, ele era um completo mistério.

 

Na manhã seguinte, Rosalind estava exausta, tinha demorado a pegar no sono depois que Armond saíra de seu quarto.

Durante o café da manhã, implorou a Franklin para que a deixasse ficar em casa, mas ele se recusou a ouvi-la. Algumas horas mais tarde, ali estava ela na propriedade dos Wulf, na companhia forçada de dois homens, a quem desprezava com igual fervor. A companhia forçada de Penmore a deixava com os nervos à flor da pele. Franklin agia de maneira estranha. Ele estava com o rosto todo arranhado e Rosalind lembrou-se de que não vira Lydia naquela manhã. Havia alguma coisa errada... um mau presságio.

— Ah, aí está você, lorde Wulf.

Rosalind desviou a atenção de seus pensamentos e viu Armond parado, observando os dois homens de costas para ela.

Ao observá-lo, sentiu um arrepio percorrer seu corpo para finalmente instalar-se em seu ventre. Que homem maldito! Como ele era capaz de afetá-la daquele jeito?

— O que você está fazendo aqui, Chapman?

— Estou aqui a convite de Penmore — Franklin respondeu. — Eu e minha irmã...

Uma vez que Franklin meneou a cabeça em sua direção, Rosalind esperou que Armond a visse, porém não contava com o forte vínculo que se estabeleceu quando seus olhares se encontraram, e assim permaneceram por longos e desconfortáveis segundos.

— Os cavalos cinzentos estão presos à minha carruagem, Penmore — Armond informou mudando o foco de atenção. — Achei que você quisesse testá-los antes de tomar uma decisão final.

Penmore consentiu com um sinal de cabeça que fez com que suas bochechas gordas se movessem sobre o colarinho da camisa.

—Excelente idéia, Wulf. Talvez lady Chapman queira me acompanhar em um passeio — ele sugeriu, lançando um olhar lânguido para Rosalind.

— Não permito que mulheres acompanhem o teste de meus cavalos — Armond interveio. — Acho muito perigoso e presumo que você queira forçá-los ao máximo, não é?

Penmore contraiu os lábios, mas concordou.

— Você vem comigo, Chapman? Gostaria de sua opinião sobre os cavalos.

— Não acho que seja apropriado deixar Rosalind sozinha — Franklin disse. — Fico aqui esperando você voltar.

— Pode ir, Franklin, não me importo.

— Posso assegurar que lady Rosalind ficará bem — garantiu Armond. — Mas compreendo se decidirem voltar outro dia. Quem sabe os animais ainda estejam disponíveis até lá.

O visconde mostrou-se contrariado, mas acabou cedendo.

— Vamos, então. Acho que ela ficará bem enquanto nós damos uma volta com os animais. Se me fizer esse favor, posso reconsiderar suas dívidas da noite passada.

Franklin não titubeou em aceitar a proposta tentadora.

Quando os dois saíram do estábulo, Rosalind teve vontade de gritar de alegria. Eram raras as oportunidades em que podia ficar sozinha.

Suspirando, se pôs a acariciar uma bela égua árabe. O animal tinha linhas perfeitas e os olhos castanhos lembravam o seu cavalo que gostaria de ter consigo em Londres. Andar pelas campinas do interior sempre foi seu maior prazer, pena que agora não podia mais desfrutá-lo.

— Você tem bom gosto para cavalos.

A voz de Armond a assustou, fazendo-a virar rapidamente e perceber que estava sendo observada.

— Achei que iria conduzir a carruagem, quer dizer, presumi que você tivesse ido junto com eles...

— Meu cocheiro é bem habilitado para mostrar melhor as qualidades dos animais. Além do mais, não vi razão alguma para acompanhar dois homens que me irritam profundamente.

— Ah...

Rosalind sentiu-se uma tola por não ter conseguido pensar em nada melhor para responder. Mas o que poderia dizer depois da noite anterior? A mesma aura de sedução os envolvia naquele momento, apesar de estarem distantes. — Não quero interromper seus afazeres — ela disse finalmente. — Não me importo em esperar sozinha.

— Você está com medo?

— Medo de quê?

Armond seguiu em sua direção, recostando-se a uma cocheira próxima.

— Medo de ficar sozinha comigo, onde uma mulher morreu — ele especificou.

O sopro frio do mistério pela simples menção do crime fez com que ela tremesse da cabeça aos pés.

— Onde você a encontrou?

— Lá no fundo. — Armond indicou um canto escuro do estábulo. — O lugar está vazio agora, não posso mais colocar os animais ali, pois parece que eles sentem o cheiro de sangue.

— Você a conhecia?

— Seu nome era Bess O’Conner, mas eu não a conhecia — respondeu sem encará-la. — Ela era uma prostituta sem muita importância, caso contrário o esforço para encontrar o assassino teria sido muito maior.

— Como será que ela chegou aqui? — Rosalind caminhou até o centro do estábulo e observou a longa fileira de cocheiras.

— Não sei. Um dos cavalariços ia se casar naquela noite e eu tinha dispensado os empregados para a cerimônia. Quando voltei para casa, tarde da noite, e fui guardar meu cavalo, ouvi um gemido e então a encontrei.

— Ela disse algo? — Rosalind cruzou os braços sobre o peito numa tentativa inconsciente de se proteger.

Armond continuou perdido em pensamentos, mas quando percebeu que ela aguardava uma resposta, afastou-se da cocheira e voltou a encará-la.

— Ela havia sido espancada e não estava em condições de dizer nada. Mais tarde, tentei descobrir mais a seu respeito, e fazer com que o responsável pagasse por aquilo.

— Rosalind!

O grito de Franklin, parado à porta do estábulo junto com Penmore, fez com que seu coração disparasse.

— Já voltaram? — Armond propositadamente postou-se entre ela e os dois homens. — Eu estava mostrando os cavalos a lady Rosalind. Ela gostou muito da égua árabe. Quer que eu a sele para testá-la?

— Você nos enganou de propósito — Franklin acusou-o com a raiva estampada no rosto. — Pensei que você conduziria a carruagem. Se eu soubesse que não nos acompanharia, jamais teria permitido que minha irmã ficasse aqui, e você sabe disso!

Armond manteve-se impassível diante do tom ameaçador de Franklin.

— Lady Rosalind não me pareceu temerosa na minha companhia. Veja você mesmo.

— A questão não é essa — Franklin disse por entre os dentes.

— Ah, não? Então qual seria? — Armond limitou-se apenas a levantar uma das sobrancelhas em sinal de desdém.

Franklin estreitou a distância entre eles, ameaçando-o.

— Alguém poderia suspeitar que alguma coisa a mais estaria acontecendo se visse vocês dois sozinhos aqui. Penmore tem outros planos para ela. Garanto que ele não iria querer se casar com uma mulher com a honra manchada.

Armond continuou com a mesma postura inabalável, nem um pouco intimidado quando virou-se para o visconde:

— É verdade, Penmore? Pretende fazer uma oferta por lady Rosalind? Seria uma proposta semelhante a que vai me fazer pelos cavalos?

Penmore, que até então parecia se divertir com o confronto, assumiu um ar sério diante da insinuação.

— Meça suas palavras, Wulf! O que pretendo oferecer a ela só diz respeito a mim e a Franklin Chapman. — E assumindo também um tom de provocação, levantou uma sobrancelha. — A não ser que você também queira fazer uma oferta por ela.

Ainda temerosa pelas conseqüências daquele encontro, Rosalind limitou-se a olhar de um homem para outro. Por um breve momento desejou que Armond dissesse que a tiraria do martírio em que se tornara sua vida.

Porém quando ele desviou o olhar e o manteve fixo no horizonte, ela teve a certeza de que até aquela opção lhe tinha sido tirada. Armond ficou em silêncio.

— Foi o que pensei — Penmore resmungou. — Você bem sabe que não deve ficar de olho nas senhoritas bem-nascidas. Nenhuma mulher haveria de querer um louco como marido a ter a doença disseminada para os filhos. — E depois de clarear a garganta, questionou: — Será que agora podemos resolver a questão da venda dos cavalos?

Rosalind ficou desapontada ao perceber que por um instante Armond perdeu sua postura superior diante de Penmore, por não poder responder à altura.

— Por que não vamos discutir os detalhes da venda em minha casa enquanto peço para servirem um chá para lady Rosalind e Franklin? — perguntou Armond.

— Não acho que sua casa seja um lugar apropriado para minha irmã — Franklin adiantou-se em responder. — Vamos esperar por você na carruagem, Penmore.

— Assim está bem para você? — Armond a inquiriu cordialmente. — O dia está muito úmido. Presumo que seria bem mais confortável ficar em minha sala de visitas, bebendo um chá quente.

— Ficarei bem na carruagem, obrigada — ela respondeu, evitando encará-lo.

Assim que subiu na carruagem, Franklin começou a interrogá-la.

— O que houve entre você e Wulf no estábulo?

— Nada. Ficamos vendo os cavalos.

— Quando cheguei ouvi que vocês estavam falando do assassinato que aconteceu ali. O que ele contou sobre o assunto?

— Não falou muita coisa — Rosalind respondeu, dando de ombros. — Disse apenas que não conhecia a pobre mulher e não tem idéia de como ela foi parar no estábulo. Ele também disse que está à procura do assassino.

— Pelo que se sabe, foi ele mesmo que a matou. E se não foi ele, certamente foi um de seus irmãos. Por isso, insisto para que você se mantenha distante. Qualquer ligação com ele pode acabar com sua reputação. Penmore pode passar a impressão que não liga a mínima para os ditames da sociedade, mas pode acreditar que ele segue a cartilha social direitinho.

Rosalind estava distraída observando a garoa fina cair sobre o campo e esperando que o visconde voltasse logo.

— Saiba que não me importo com Penmore. Não gosto da maneira vulgar como ele olha para mim, sinto-me observada como um corpo sem alma.

— Já disse que não quero sua opinião sobre isso. — Franklin suspirou. — O que importa é que ele está interessado e você deve fingir estar de acordo. O visconde pode parecer um sujeito alegre, mas está acostumado a conseguir que quer, sem se importar em destruir alguma coisa durante o processo. Minhas dívidas com ele são altas e por mais que eu odeie, tenho que dançar conforme a música que ele toca...

Franklin calou-se ao ver que o visconde abria a porta da carruagem.

— Que homem degenerado e arrogante! — resmungou Penmore sentando-se perto de Rosalind. — Consegui fechar negócio, mas por um preço muito maior do que o esperado. Quando fiz minha oferta, Wulf riu e saiu da sala. Precisei ir atrás dele pelo corredor para fechar o negócio.

— O homem devia ser escorraçado de Londres — Franklin concordou.

— É eu sei, mas ele conhece cavalos como ninguém — o visconde admitiu com rancor. — Não há melhor criador no país, além de não se deixar enganar nas negociações. — Dando o assunto por encerrado, virou-se para Rosalind. — Nós nos veremos no sarau de lady LeGrande daqui a duas noites, meu docinho?

Rosalind demorou a perceber que Penmore se dirigia a ela. Até então evitara olhar para aquele rosto tão suado, que deixava-o com uma aparência ainda mais asquerosa.

— Claro que sim — Franklin adiantou-se em responder. — Na verdade você terá a honra de escoltá-la e eu irei de acompanhante, claro.

Ela precisou morder a língua para não deixar claro que ele estava de acordo com nada daquilo. Mesmo que a intenção fosse dizer alguma coisa, não houve tempo, pois Penmore fechou a cara como de costume.

— Eu gostaria de estar a sós com lady Rosalind. Precisamos nos conhecer melhor.

— Você sabe tão bem quanto eu que uma moça solteira não deve ser vista em público sem acompanhante — Franklin contrapôs. — Você a terá no tempo devido, mas primeiro deve cortejá-la. Não se pode saborear um doce antes de pagar por ele.

— Por que vocês falam de mim como se eu não estivesse presente? — Rosalind não conseguiu mais ficar em silêncio. — Eu...

Antes que pudesse terminar de falar, Franklin aproximou-se e deu-lhe um tapa no rosto. O susto e a dor fizeram com que ela levasse as mãos à face, mas não sem antes lançar um olhar suplicante para que Penmore a salvasse de tamanha vergonha e humilhação. Ele, no entanto, limitou-se apenas a franzir as sobrancelhas.

— Se você for disciplinar sua irmã, Franklin, não bata no rosto. Ela é muito bonita para aparecer com marcas visíveis. Controle-se, embora sei que esse não é o seu forte.

Ambos trocaram um olhar cúmplice. Rosalind estava indignada por Penmore aceitar o abuso do irmão sem defendê-la. Era esse tipo de marido que a esperava? Um homem que afirmava que bater em mulher era permitido, desde que não se deixasse marcas visíveis? Olhar para um e para outro era o mesmo que ferir os olhos e despedaçar o coração.

Se Armond estivesse ali certamente não teria reagido como Penmore.

Talvez houvesse dito a verdade a Armond... Se bem que ele não poderia fazer nada, pois não era sequer um pretendente.

 

No dia seguinte Lydia não apareceu para ajudar Rosalind a se preparar para a festa dos LeGrande. Mary contou que Franklin a despedira. Sabia que ele tomara aquela atitude pelo fato de ela ter enfrentado o irmão, pedindo explicações. Embora soubesse que a amiga ficaria bem melhor longe dali, gostaria de ter se despedido da criada. Seus pensamentos ainda estavam voltados ao que mais poderia ter feito pela moça, quando Penmore chegou para acompanhá-la até a festa.

Ao chegarem ela notou que todos pareciam animados com a ocasião, menos ela.

— Como se sentiu? — Amélia Sinclair, a jovem socialite a quem tinha sido apresentada anteriormente, perguntou baixinho.

—Desculpe-me, não entendi. — Rosalind achou que havia se distraído e perdido parte da conversa. — Como é dançar e depois sair acompanhada pelo lorde Wulf? — a moça reformulou a pergunta. Era certo que todos haviam testemunhado sua atitude no baile anterior.

— Foi um erro — ela murmurou, tentando mostrar desinteresse pelo assunto.

— Você foi a única a realizar o sonho de todas nós — a dama admitiu. E disposta a saber mais detalhes, Amélia puxou-a pelo braço, afastando-a do pequeno grupo. — O que aconteceu quando vocês ficaram sozinhos?

Rosalind não gostou muito de ser interrogada daquela forma, mas se não satisfizesse a curiosidade da moça com muita educação, seria alvo de mais fofocas.

— Não houve nada, lorde Wulf foi um perfeito cavalheiro — mentiu.

— Ah, que pena — Amélia lamentou, franzindo a testa em sinal de desapontamento, mas seus olhos claros brilhavam maliciosamente. — Acho uma injustiça que o homem mais atraente de Londres seja proibido para nós.

Chocada pela franqueza da moça, Rosalind apenas assentiu.

— Acho que os rumores de ele ser um homem perigoso são um tanto exagerados. Não acredito que o fato de eu tê-lo procurado para dançar tenha chamado tanta atenção assim.

— Pois é aí que você se engana, todos notaram. Eu mesma morri de inveja da sua audácia. Imagine ter a coragem de dançar com o monstro em pessoa. Ninguém jamais vai esquecê-la, Rosalind, pode estar certa disso. Acho sua ousadia admirável. Nenhuma teria coragem suficiente para desrespeitar as regras e ser alvo de fofocas.

— Você também não é nada comum, não é? — Rosalind comentou sorrindo.

— Acho que não sou mesmo — Amélia respondeu, dando de ombros. — Minha mãe costuma dizer que com esse atrevimento vai acabar manchando minha reputação. Cá entre nós, espero que ela esteja certa.

Amélia era de fato diferente das demais. Rosalind sorriu novamente e descobriu-se divertindo na companhia da nova amiga.

— Seu irmão parece mantê-la sob rédea curta — Amélia comentou. — Aliás, ele está vindo em nossa direção e não me parece satisfeito por estarmos conversando.

Rosalind olhou na direção em que vira Franklin e Penmore pela última vez.                                                                                  

— Com licença, o acompanhante da minha irmã precisou se ausentar, mas pediu que eu me certificasse de que ela aproveitaria o baile — Franklin as interrompeu, tomando Rosalind pelo braço com uma força desnecessária.

Ele não precisou dizer mais nada para fazer com que Amélia voltasse às pressas para o lado da mãe.

— Eu estava apenas fazendo amizade com Amélia...

— Você não precisa de amigas — Franklin disse em tom ríspido. — Se precisar, Penmore as escolherá para você depois de casados.

— Eu ainda não concordei com esse casamento. E se eu escolher outra pessoa? Quem sabe um homem que aceite pagar suas dívidas e me aceite sem dote?

— Não conte demais com sua aparência, minha querida. Você não tem muita escolha. Eu até tinha outros nomes, mas desde que Penmore se interessou por você, seu futuro ficou decidido. Aliás, ele deixou isso claro hoje à tarde.

— Aquele homem me causa repulsa, se ao menos ele fosse um pouquinho mais gentil...

— Pare com essa lamentação tola — Franklin a repreendeu. — Não estou nem um pouco interessado em suas opiniões. Mas como não sou tão ruim assim, posso confortá-la contando um segredinho sobre o nosso visconde.

— Um segredo? — perguntou ela curiosa.

— Nosso visconde tem problemas com suas partes masculinas. Duvido que consiga manter sua masculinidade ereta por tempo suficiente para consumar o matrimônio. Embora goste de um bom jogo, como se fazer passar por um homem capaz de tudo.

Rosalind não era tão ingênua para não entender o que Franklin acabara de dizer. Embora fizesse o casamento com um homem parecer um pouco menos intolerável, o visconde ainda a enojava com sua conversa libidinosa e mãos grudentas. Ela se perguntou então por que sua reputação seria tão importante para um homem que não podia cumprir com suas obrigações maritais.

— Sei o que está pensando — Franklin comentou. —Penmore está solteiro há muito tempo, por isso é muito importante que se case com uma dama de boa reputação e boa linhagem, para afastar qualquer comentário. Devo avisar que se tiverem filhos, não serão dele e sim de um pai que ele próprio escolherá.

Ela sentiu o estômago se contrair só em pensar naquela hipótese.

Desviou o olhar para o salão e assustou-se ao vislumbrar Armond se movimentando fora da pista. Como de costume, ele estava de preto em um contraste perfeito com os cabelos claros e a pele bronzeada.

De repente ela percebeu que aqueles olhos misteriosos estavam concentrados em seus movimentos pela pista. A distância, como um felino à espreita, ele continuava parado, analisando-a.

— Não olhe para ele — Franklin sibilou. — Vocês dois estão dando um espetáculo!

Difícil imaginar que faziam parte de algum show quando estavam distantes por dez passos. Contudo, havia certa razão no comentário do irmão. De uma hora para outra o ambiente ficou pesado, como se o ar estivesse carregado de especulações. Entretanto não conseguia desviar do olhar que a hipnotizava. Sentia-se como um coelho indefeso, prestes a ser devorado por um predador.

Sentiu o sangue corar suas faces, mas Franklin a trouxe de volta à realidade, apertando sua mão com uma força que quase a fez gritar de dor.

— Está na hora de nos despedirmos e partir — falou ele entre os dentes. — Aquele homem a faz perder a cabeça. Não deixarei que ele estrague tudo! Está me ouvindo, Rosalind?

— Franklin... — chamou ela, apressando o passo para alcançá-lo.

— Você não tem jeito mesmo, Armond Wulf— a condessa de Brayberry declarou. — Aqui estava eu pensando no halo que rodeia sua cabeça angelical, erroneamente julgado pelas fofocas infundadas, quando o pego em flagrante, provando que estão todos certos.

Armond forçou-se a desviar seus olhos de Rosalind e encontrar a testa franzida da condessa. Ele ergueu uma sobrancelha como que inquirindo sobre o que estava fazendo de errado. E a resposta silenciosa veio por meio do leque apontado para Rosalind, de quem ele não havia tirado os olhos desde que chegara à festa de lady LeGrande.

— Agindo assim tão descaradamente, lançando olhares significativos a lady Rosalind, vai acabar levantando as piores especulações a seu respeito.

— Não tinha notado que a estava encarando — disse com ar maroto.

— Ora, ora — a condessa comentou sorrindo. — Armond Wulf finalmente se apaixonou! Já era hora. Eu estava certa quando disse que vocês fazem um belo par.

— Posso garantir que não é meu coração que olha para lady Rosalind.

A condessa o golpeou fortemente com o leque.

— Mas que coisa! Você deveria controlar sua libido em público! Do jeito como a encara parece que vai despi-la e possuí-la aqui mesmo, em frente a todos nós. Você é sempre tão intenso assim?

Sem desviar os olhos de Rosalind, ele pensou um momento antes de responder.

— Sou sim.

— O irmão dela está ficando cada vez mais tenso — comentou a condessa. — Você deveria disfarçar um pouco, Armond. Sabia que ela chegou aqui pelos braços rechonchudos de Penmore? Espero que a pobrezinha consiga alguém melhor do que ele. Seria uma pena vê-la casada com aquele canalha.

Então, Rosalind havia permitido que o visconde a conduzisse à festa? Uma resolução difícil de entender, quando se tratava da mulher mais linda que ele já tinha visto. Se quisesse, ela poderia ter qualquer homem! Qualquer um, menos ele próprio...

— Não pense que vou fazer papel de idiota perante ela — advertiu ele, forçando-se a desviar o olhar de Rosalind. — A senhora bem sabe que fiz um juramento de nunca me casar.

— Não percebeu que já está fazendo papel de tolo? — perguntou a condessa em tom suave. — Não foi para me ver que está aqui, tenho certeza.

Sim, estava ali para encontrar Rosalind novamente, admitia-se totalmente incapaz de lutar contra a forte atração que os unia.

— Não entendo a dúvida. Claro que vim vê-la, milady. — Armond direcionou todo o seu charme e atenção para a mulher que fora amiga de seus pais e que não abandonou as crianças quando a maldição se abateu sobre sua família. — Eu a adoro, e se existe uma mulher em toda a Londres que me faça considerar quebrar o juramento de permanecer solteiro, é a senhora.

A condessa, apesar da idade, corou como uma garota. Porém, logo se recompôs, acertando o leque no braço forte.

— Ora, pare com isso.

Durante a viagem para casa, Franklin não tirava os olhos da irmã. Para fugir do assédio, Rosalind fechou os olhos e se recostou contra o assento, revivendo os acontecimentos da noite.

Os sentimentos conturbados que a invadiam toda vez em que se aproximava de Armond não lhe faziam bem. Seu futuro marido já estava escolhido, e mesmo se não estivesse, Franklin jamais permitiria que fosse cortejada por um Wulf.

O barulho dos cascos dos cavalos contra as pedras da rua e o balançar da carruagem embalaram os sonhos de Rosalind. De súbito estava revivendo aquela noite inesquecível em outra carruagem, com outro homem.

E na escuridão, Armond se fez presente, fazendo-a arrepiar-se diante das súplicas daqueles lábios exigentes contra os seus. Sentiu os seios doídos com saudade das carícias, da boca sequiosa e da língua atrevida. Em segundos seu corpo inteiro voltou a clamar por aqueles braços fortes que amoldaram seus corpos com a habilidade de um escultor, transformando-os em um só. O calor do desejo a envolveu, a voracidade da paixão... E foi o som do próprio gemido rouco que a trouxe de volta à realidade, e abriu os olhos abruptamente.

Franklin a encarava com a expressão de um gato faminto que estuda o rato adormecido, pensando em torturá-lo, antes de qualquer outra coisa.

— Com o que você estava sonhando ainda agora? —- inquiriu ele. — Ou devo perguntar, com quem?

Rosalind se endireitou.

— Devo ter cochilado. Já chegamos em casa? — Abriu a cortina da carruagem. — Oh! Vejo que já chegamos. Estou exausta!

— Não pense que vai se refugiar no quarto e escapar da punição pelo seu comportamento dessa noite — Franklin sibilou. — Tenho pensado no que seria apropriado.

— Sou uma mulher adulta. Não posso admitir ser punida como uma criança nem por você e nem por homem algum.

A sobrancelha erguida e o ar de falso espanto foi uma resposta muito mais contundente do que se ele tivesse reagido com raiva.

— Isso é o que veremos. — Ele se inclinou e abriu a porta da carruagem, então saiu. Quando estendeu a mão para ajudá-la a descer, Rosalind se recusou, saindo sozinha do coche.

— Você não vai me bater — sentenciou ela severamente. — Não vou mais suportar esse abuso.

A máscara de cinismo caiu do rosto de Franklin e os olhos brilharam com a fúria conhecida.

— Como ousa me dizer o que posso ou não fazer sob meu teto?

Franklin agarrou-a pelo braço, quase o deslocando. Ela engasgou com a dor. Em pânico, tentou escapar. O primeiro lugar que pensou em ir foi para a casa vizinha. Mas teria que correr muito antes que o irmão a alcançasse.

— Você acha que ele pode ajudá-la? — Franklin falou em baforadas ao ouvido dela. Apertou o braço já dolorido com mais força, fazendo-a choramingar. — Ninguém pode ajudá-la, Rosalind!

O desespero a fez pronunciar o nome de Penmore enquanto Franklin a arrastava em direção da casa. Ele apenas riu da insinuação.

— Ele não se importa, desde que os machucados não apareçam. — Passeou os olhos pelo corpo dela. — Claro que primeiro precisamos nos livrar desse vestido. Custou uma fortuna e eu não quero vê-lo rasgado ou manchado.

Rosalind tentou afundar os saltos do sapato no chão, mas não funcionou. Franklin era muito forte. Mesmo se Mary abrisse a porta e testemunhasse a cena, não seria capaz de ajudá-la. Realmente não havia qualquer saída a não ser submeter-se à vontade do irmão. Franklin arrastou-a para dentro, levando-a na direção das escadas. De repente pararam diante da visão aterrorizante que surgiu à frente dos dois.

Ali, presa à viga que corria pela extensão do teto havia uma corda, da qual pendia um corpo, que balançava para frente e para trás. Rosalind levou as mãos à boca. Era Lydia.

Armond havia acabado de chegar em casa, depois de umas poucas rodadas de carteado e acabara de tirar o casaco quando o som chegou até ele. Aguçou os ouvidos em direção à janela aberta e ouviu o som distante de um choro.

Por conta da maldição, alguns de seus sentidos eram mais aguçados do que em outras pessoas. A audição e o olfato eram os mais afiados. Era como se fosse um animal... que aguardava para ser libertado a qualquer momento.

E por isso não tinha dúvidas de que quem chorava era Rosalind. Havia algo errado e a necessidade de vê-la tornou-se iminente.

Sem se importar em colocar o casaco, ele deixou o quarto apressado. A mansão estava em silêncio, nenhum serviçal acordado.

Desceu as escadas e irrompeu pela porta da frente. A noite estava úmida, a grama molhada e uma neblina espessa não permitia a visão ao longe. Ainda assim, seguiu sob uma chuva fria e fina. Quanto mais se aproximava da casa de Rosalind, mais nítido era o choro, mais palpável tornava-se aquela angústia.

Sem esforço algum, escalou as treliças até a varanda do quarto. Por um instante imaginou se as portas não estariam trancadas, mas por sorte estavam apenas encostadas. Com a agilidade de um ladrão, esgueirou-se para dentro do quarto. Seus olhos se ajustaram facilmente à escuridão. Foi então que ele a viu, encolhida sobre as cobertas.

— Rosalind? — chamou-a em um sussurro.

Com um pulo, ela jogou as cobertas de lado e se sentou.

— Oh! Armond!—Ela saiu da cama e atravessou o quarto, surpreendendo-o ao enlaçá-lo pelo pescoço à procura de proteção. — Foi horrível!

Por impulso, ele deixou as mãos deslizarem por entre os longos cabelos soltos, que pareciam a mais fina seda debaixo de seus dedos.

— O que foi horrível? Por que está chorando?

— Lydia — ela começou a contar entre soluços. — Ela se enforcou!

Armond conduziu-a até a cama, sentando-se a seu lado.

— Quem era Lydia?

— Minha criada — ela respondeu. — Franklin a demitiu no começo da semana, mas hoje à noite quando chegamos dos LeGrande, lá estava ela, o corpo inerte pendendo de uma corda.

Quando Rosalind cobriu o rosto com as mãos soluçando, Armond cedeu ao impulso de aconchegá-la, passando o braço sobre os ombros trêmulos.

— Foi por minha culpa. Foi por minha causa que Franklin a expulsou daqui. Acredito que por não ter arranjado outro emprego, ou outra maneira de sobreviver, ela não viu outra saída senão dar fim à própria vida.

O sofrimento profundo de Rosalind por causa da criada o surpreendeu. Se ela fosse como as outras moças da sociedade, teria esquecido o problema rapidamente. O que reafirmava o fato de ter a seu lado uma mulher diferente e sensível.

— Ela deixou algum bilhete? Qualquer explicação sobre o motivo de ter tomado tal decisão? — Armond quis saber.

— Não. Nada que alguém tivesse achado pelo menos. Ela...

— O que houve?

— Ela estava com o corpo tomado por hematomas.

— Hematomas? — No mesmo instante Armond associou os fatos.

— No rosto — Rosalind continuou. — A impressão é que havia sido espancada recentemente. Segundo Franklin, ela andava com um bando de arruaceiros. Eu o ouvi dizendo ao policial que provavelmente um desses homens a teria machucado.

— Seu irmão a acompanhou durante a noite inteira?

— Sim, por que pergunta?

Armond tinha fortes suspeitas sobre Franklin, porém se Rosalind confirmava que ele estivera em sua companhia, talvez não tivesse participado diretamente.

— Por que ela foi demitida?

De repente, Rosalind desviou o olhar para evitar a resposta. Armond tocou-a no braço e ela involuntariamente soltou um gemido de dor.

— O que foi isso? — indagou ele, notando os hematomas no braço delicado.

— Eu devo ter esbarrado em alguma coisa — Rosalind respondeu baixinho, ainda recusando-se a encará-lo.

— Como?

— Não me lembro.

Uma onda de ódio o invadiu. Movido pela certeza que já tivera antes, Armond rasgou a manga da camisola e, perplexo, viu a nítida marca de dedos na pele alva de Rosalind.

— Quem fez isso a você?

Diante da dolorida evidência, ela soluçou, desta vez não disfarçando o pranto que precipitava em seus olhos.

— Franklin — respondeu depois de respirar fundo. — Não é a primeira vez. Ele tem um temperamento horrível!

Armond praguejou, levantou-se e dirigiu-se para a porta do quarto.

— Vamos ver se ele é valente o suficiente para agredir um homem!

Rosalind saltou da cama, postando-se à sua frente, impedindo a passagem.

— Não, Armond, não piore a situação! Franklin nem mesmo está em casa. Depois do incidente ele saiu, provavelmente para ir jogar cartas.

Determinado, Armond voltou para a sacada. A raiva crescendo a cada minuto, tomando-o por completo.

— Então, vou procurá-lo.

— Por favor, não me deixe sozinha!

Ele cedeu ao apelo e, movido por um misto de sensações entre desejo e afeto, aproximou-se e envolveu-a num abraço terno.

— Volte para a cama. Você deve estar exausta.

Como uma criança obediente, ela entrou debaixo das cobertas, sem deixar de observá-lo. Armond sentou-se na beira da cama. Sua camisa estava úmida por conta da garoa ou talvez pelo calor da paixão que o fazia transpirar.

— Naquela noite do baile de Greenley você não tropeçou se machucando também, não foi?

— Não — ela murmurou. — Franklin me bateu por eu... ter saído com você.

— Isso deixa claro que você não me procurou naquela noite para impressionar suas amigas, não é?

— Não tenho amigas. Franklin não permite. Ele decidiu que devo me casar para ajudá-lo em suas finanças. Se você tivesse manchado minha honra naquela noite, não haveria casamento e eu poderia voltar para o interior.

Armond suspirou, afastando uma mecha de cabelos úmidos da testa.

— Rosalind, deve haver alguém que possa ajudá-la. Família...

— Engano seu, não tenho ninguém. Meu pai me deixou aos cuidados de minha madrasta. Infelizmente ela adoeceu e minha guarda passou para Franklin, que já acabou com minha herança.

Armond percebeu que a realidade era ainda pior do que suas suspeitas.

Se Franklin aparecesse naquele instante, ele o esganaria.

— Por que você não me disse a verdade quando nos encontramos?

— Eu não o conhecia. Não sabia como poderia pedir ajuda, além da maneira como fiz — ela respondeu com o olhar baixo.

Rosalind tinha razão. O que poderia fazer por ela exceto matar o homem que ousava tratá-la daquela forma? Porém, se o fizesse, a sociedade iria aplaudir por finalmente poder provar que ele era de fato um assassino.

Como faria para protegê-la sem que seu nome fosse citado? O que poderia oferecer a ela? Provavelmente muito menos do que ela merecia, pois seu futuro estava preso a uma maldição que não lhe permitia laços afetivos.

— Você está tremendo...

Armond puxou as cobertas para cobri-la. No entanto, o tremor não seria apaziguado por lã, tampouco pelo fogo. Ciente disso, ele tirou a camisa úmida e, ao deitar-se, puxou-a para bem perto, emprestando o calor do seu corpo.

— Não tenha medo de mim — disse, fazendo-a apoiar a cabeça em seu peito.

Não demorou muito para que Rosalind se aquietasse sob o bálsamo daquele perfume cítrico e se deixasse envolver pela ternura do momento.

—Você não me disse por que a criada foi demitida.

Rosalind aninhou-se ainda mais àqueles músculos firmes, como se procurasse abrigo até por mencionar o nome do irmão.

— Poucas horas antes, Lydia me contou que Franklin a violentava. Fiquei furiosa quando soube e chamei a atenção dele. Ele ficou furioso e a demitiu.

Um estuprador, além de espancador de mulheres? Quanto mais a verdade sobre Franklin se desnudava, mais Armond pensava em Bess Conner. Na época, ele não havia entendido como aquela mulher aparecera em seu estábulo.

Mas agora, os fatos começavam a fazer sentido. E se Bess estivesse fugindo da propriedade vizinha para se esconder ali?

— Por favor, fique mais um pouco — Rosalind pediu. — Até eu adormecer.

— Está bem, eu fico — ele respondeu, acariciando-lhe os cabelos. De repente uma dúvida o assolou: — Qual é o papel de Penmore em tudo isso?

— Franklin deve muito dinheiro a ele por dívida de jogo. Ele me quer em troca.

— E seu irmão se propôs a negociá-la como se fosse um objeto?

Rosalind permitiu que um silêncio eloqüente servisse de resposta. Sentia-se humilhada por revelar seus segredos e por não ter como reagir. Naquele instante, Armond lhe fez uma promessa velada: faria tudo o que estivesse ao seu alcance para tirá-la daquela casa. E o mais rápido possível. Finalmente a exaustão a dominou. Havia praticamente esgotado seu pranto. Permitiu-se fechar os olhos enquanto ele gentilmente afagava suas costas. Não precisaria existir o amanhã, se o mundo terminasse naquele momento, ela estaria feliz.

A madrugada já estava alta quando Armond levantou-se da cama de Rosalind. Enquanto vestia a camisa, seu olhar estava fixo na silhueta feminina desenhada sobre os lençóis. O rosto perfeito era emoldurado por uma profusão de cachos escuros. A boca rosada era um convite a beijos tórridos, ao início de uma busca por uma plenitude maior.

Difícil acreditar que passara a noite inteira ali, abraçado à dona de seus pensamentos, sem sequer tentar seduzi-la. Mas saber que conseguira com que ela relaxasse em seus braços já o compensava, ao menos por enquanto...

A uma certa hora da noite ouviu Franklin chegar e teve vontade de enfrentá-lo. Porém com receio de não ter explicações convincentes para estar no quarto de<Rosalind àquela hora, preferiu dominar a ira. Pretendia agir com cautela, agora que sabia das verdadeiras intenções de Rosalind ao abordá-lo naquela noite. Decidiu que visitaria a condessa de Brayberry e solicitaria sua ajuda para tirar Rosalind daquela casa.

Já vestido, dirigiu-se à porta da sacada.

Depois de descer pela treliça e vencer a distância que separava as duas propriedades, Armond alcançou seu estábulo, quando notou algo estranho. Os cavalariços já estavam acordados e conversando.

Um deles, Henry, o viu antes de ele chegar ao estábulo. Os olhos do rapaz se arregalaram assustados, enquanto fazia sinais para que Armond se afastasse. Mesmo sem entender a razão ele se escondeu atrás de uma árvore. Em seguida dois homens saíram do estábulo. Eram os inspetores que o interrogaram na noite em que Bess O’Connerfora assassinada.

— Lá está ele! — gritou um deles ao vê-lo. — Não tente correr, lorde Wulf!

Por que correria? De longe já sentira o cheiro de sangue, antecipando pelo pior. Mantendo-se calmo, caminhou em direção aos homens da lei.

— Lorde Wulf — o inspetor o interpelou assim que se reuniu ao grupo. — O senhor está preso por assassinato!

Armond passou pelo grupo e entrou no estábulo. Ali no chão do mesmo jeito que encontrara Bess havia outra mulher espancada e morta. A pintura do rosto, nos lábios e a maneira de se vestir mostravam claramente que também era uma prostituta.

— Lorde Wulf, existe alguma testemunha que possa nos dizer onde passou a noite?

Sim, ele tinha um álibi, mas jamais o revelaria.

— Não — respondeu seco.

— Então terá de nos acompanhar.

 

Rosalind surpreendeu-se ao ver Franklin ainda pela manhã. Era de costume sabê-lo dormindo durante a maior parte do dia, por conta das altas horas que costumava chegar em casa.

Estranhou ao notar que o irmão, contrariando o costume, estava de bom humor e muito contente.

— Tenho novidades sobre nosso vizinho — anunciou ele, passando manteiga em uma fatia de pão. — Parece que lorde Wulf foi preso hoje de manhã por assassinato. Encontraram outra mulher morta em seu estábulo.

Rosalind o encarou por sobre a mesa com o garfo a meio caminho da boca.

— Duvido que desta vez alguém o ajude a livrar-se da culpa. Não há testemunhas de que o tenham visto a noite passada, eu inclusive. Nos depoimentos, os empregados dele disseram que, por volta da meia-noite, estava tudo normal, quando terminaram uma rodada de carteado antes de se recolher. Além disso, o responsável pela segurança se embebedou até cair e não ouviu nada.

— Ele não é culpado — Rosalind murmurou.

— Como pode ter tanta certeza? — Franklin perguntou, parando de mastigar. — Só porque ele é atraente? Ou por que você quer que seja verdade? — indagou, rindo alto antes de morder o pão. — Todos os desejos do mundo não salvarão o pescoço dele dessa vez, irmãzinha.

Rosalind sentiu o estômago embrulhar. Outro assassinato. Outra mulher morta encontrada no estábulo de Armond. Tentou se lembrar do momento em que o sentiu levantar-se de sua cama. Não podia precisar, apenas sabia que já amanhecera, prova incontestável de que ele não era o assassino.

Armond continuava sendo interrogado por várias horas a fio. As perguntas repetiam-se, alterando-se apenas na forma e as respostas também eram iguais. Estivera sozinho durante toda a noite. Não, nada tinha a ver com a morte de outra mulher, encontrada em seu estábulo, mas não tinha testemunhas para depor a seu favor.

Uma leve batida na porta interrompeu o interrogatório. Antes mesmo que o visitante fosse convidado a entrar, Armond sentiu o perfume de lavanda já tão conhecido.

Que diabos Rosalind estava fazendo ali?

Depois de trocadas algumas palavras, ela entrou na sala minutos depois.

— Essa dama tem informações sobre lorde Wulf — um dos inspetores comunicou ao outro. — Parece que ela sabe onde ele esteve na noite passada.

—Não faça isso, Rosalind — Armond ordenou calmamente. Ela endireitou os ombros, ignorando-o.

— Quem é a senhorita? — o inspetor, que estava sentado, perguntou.

— Lady Rosalind Rutherford, filha do falecido duque de Montrose e vizinha de lorde Wulf.

— A senhorita por acaso viu algum movimento estranho de sua janela ontem à noite? — o inspetor perguntou, arqueando as sobrancelhas.

— Não — Rosalind admitiu. — Não vi nada, mas sei onde lorde Wulf esteve.

— Rosalind — Armond a advertiu novamente. — Pense bem no que está fazendo.

— Cale-se enquanto lady Rosalind estiver falando — um dos homens interveio. — Caso contrário, seremos forçados a tirá-lo da sala até que a dama tenha saído.

— Mas ela está mentindo! — Armond estava quase gritando.

— Como pode saber se ainda não ouvimos o que ela tem a dizer? — foi o que um dos inspetores perguntou atônito.

— Sei o que ela vai dizer — Armond respondeu. — Espero estar errado — acrescentou, encarando Rosalind, que fingia não vê-lo.

— Lady Rosalind, se não o viu pela janela, ou de sua propriedade, como sabe onde lorde Wulf estava? — o inspetor reiniciou o interrogatório.

Ela observou a tensão de Armond com o canto dos olhos antes de prosseguir, mesmo assim não desistiu de ir em frente.

— Sei porque ele estava comigo — ela respondeu sem titubear. — Em meu quarto, na minha cama.

Armond teria adorado apreciar a expressão de espanto de todos na sala se não fosse pela seriedade da situação. Depois da confissão receou as conseqüências que recairiam sobre Rosalind.

—A senhorita jura estar dizendo a verdade, lady Rosalind? Admitir uma coisa dessas vai gerar comentários a seu respeito. Pessoas duvidarão do seu caráter. Pergunto mais uma vez: Tem certeza do que está me dizendo?

— Sim, eu estou ciente das conseqüências, inspetor. Mas não posso permitir que um homem inocente seja condenado por um crime que não cometeu. Tenho obrigação de dizer a verdade.

— Posso ter uma palavrinha a sós com ela? — Armond pediu.

Era preciso fazer com que Rosalind retirasse a declaração. Ela precisava entender que se arruinasse sua reputação, nem mesmo a condessa de Brayberry poderia ajudá-la. Se assim fosse, teria que voltar a ficar à mercê de Franklin e o sonho de liberdade jamais seria alcançado.

— Lorde Wulf, até agora não podemos inocentá-lo. Seria loucura demais de nossa parte deixar um assassino a sós com uma dama — um dos homens ressaltou.

—Mas eu sei que estarei perfeitamente segura — Rosalind os interrompeu. — Lorde Wulf não é um assassino. Caso contrário, não permitiria sua presença em meu quarto por mais de uma vez.

— Então, são... amantes?

— Tudo indica que sim — ela respondeu sentindo o rosto arder em brasa.

Armond teve vontade de gritar para impedi-la de continuar falando. Aquela altura não sabia se era melhor morrer enforcado ou passar o resto da vida atrás das grades, que certamente eram opções melhores do que a atitude que se via obrigado a tomar. Mas Rosalind o forçava a quebrar um juramento feito aos irmãos. Não restava outra saída.

— A senhorita faria um depoimento por escrito? — pressionou-a o inspetor.

— Sim, claro que sim.

O inspetor que estava sentado em silêncio até então, inflou as bochechas, soltando o ar ruidosamente. Em seguida, lançou um olhar gélido para Armond ao acrescentar:

— Estranho, lorde Wulf, mulheres aparecem mortas em sua propriedade e o senhor tem sempre um álibi que o permite se safar dos crimes.

— E se a culpa for de alguém que obviamente está querendo me incriminar? — Armond perguntou com uma calma apenas aparente. — Quando sair daqui, meu maior objetivo será descobrir quem é essa pessoa.

— Se for verdade, garanto que compartilhamos do mesmo desejo — o inspetor assegurou antes de dirigir-se a Rosalind: — Mora sozinha, lady Rosalind? Preciso do seu depoimento por escrito, admitindo estar com lorde Wulf na hora do crime.

— Moro com minha madrasta e meu irmão — ela respondeu. — Franklin Chapman.

— Chapman? — O inspetor estava providenciando papel e tinta. — Se não me engano houve uma morte em sua casa também. Embora sabemos que não foi crime, a mulher se enforcou, não foi?

— Sim, uma criada, Lydia. Franklin a havia demitido e acredito ser essa a razão de seu suicídio. Aliás, foi por isso que lorde Wulf me procurou... para me confortar.

Os investigadores se entreolharam com risos maliciosos. Era evidente que todos imaginaram como ele a havia confortado.

— Seu irmão o deixou entrar pela porta da frente? — o interrogatório recomeçou.

Rosalind negou com um sinal de cabeça.

— Não. Lorde Wulf escalou uma treliça que termina na varanda do meu quarto. Meu irmão não tem sequer noção dessas visitas.

— Sei. — O inspetor entregou papel, pena e tinteiro. — A senhorita sabe que o Sr. Chapman logo saberá do seu depoimento, não?

— Sim, Rosalind, você tem consciência disso? — Armond acrescentou. — Ainda está em tempo de mudar de idéia.

Ela finalmente encarou Armond.

— Eu não poderia viver com a culpa de ver um inocente ir para a cadeia se soubesse como devolver sua liberdade. Entendo e agradeço que esteja sacrificando a vida para manter minha reputação, mas não vou voltar atrás na minha decisão.

— Bem, Rosalind, se assinar esse papel, estará concordando em ser minha esposa — Armond sentenciou para surpresa de todos.

— Como? — ela perguntou, sentindo o sangue sumir do rosto.

— Eu seria incapaz de expô-la a esse ponto para depois deixá-la vivendo sob o mesmo teto de Franklin — Armond justificou-se. — Pense muito bem antes de assinar porque estará se comprometendo comigo. Mas será um casamento sem amor. — Embora o olhar significativo de Rosalind o tenha atingido profundamente, ele não vacilou em continuar: — Eu não a amo e provavelmente nunca amarei. Rosalind sentiu o corpo inteiro falhar e ouviu quando o inspetor praguejou contra Armond. Contudo chegou a duvidar que aquele homem que a confortara na noite anterior fosse o mesmo que estava ali sentado à sua frente, assumindo uma frieza incomum.

Por mais que doesse o fato de ele não ter amor por ela, admitia que estava recebendo o amparo e a ajuda que solicitara quando o conhecera. No entanto, por mais que a razão favorecesse Armond, ouvi-lo admitir que jamais a amaria era de uma crueldade ímpar. Ao mesmo tempo, sabia que estava fadada a um casamento por conveniência. Se não fosse esposa de Armond seria de Penmore. Ao menos tinha certeza de que lorde Wulf jamais levantaria a mão para agredi-la, mas talvez para acariciar-lhe os cabelos ou aninhá-la em seus braços fortes.

Mesmo com todas as considerações favoráveis, sabia que a sociedade a evitaria no momento em que entrasse para a família Wulf. Contudo era melhor ser rejeitada, mas casada, do que ser aceita por todos e viver sob o mesmo teto de Franklin ou Penmore.

Rosalind tentou controlar o tremor enquanto escrevia a declaração inocentando-o do assassinato. Quando terminou, deixou a pena sobre a mesa e respirou fundo, aprumando-se.

— Você está livre, lorde Wulf — concluiu o inspetor. — Mas saiba que o estaremos vigiando. Reze para não aparecer outra mulher assassinada em sua propriedade.

Armond levantou e encaminhou-se para a porta. Rosalind o seguiu.

Quando saíram da delegacia, a carruagem de Armond os aguardava.

— Para onde vamos, agora? — ela questionou assim que entraram no coche.

— Vamos procurar o arcebispo de Canterbury. Conseguirei uma licença especial e nos casaremos hoje.

— Hoje?

— Você acha que teremos tempo e permissão para publicar os proclamas e planejar uma festa?

— Claro que não.

Imaginar a reação de Franklin quando soubesse que ela se casara sem seu consentimento a fez tremer de pavor.

— Você não precisa tomar uma atitude tão drástica, Armond — ela ponderou tão logo a carruagem se pôs em movimento. — Não quero forçá-lo a se casar. Vim ajudá-lo da mesma forma como fez comigo ontem à noite.

— Entenda Rosalind, não pretendo ser cruel. Mas fiz um juramento com meus irmãos que nunca nos casaríamos. Existe uma forte razão para isso.

— Por causa da maldição?

— Isso mesmo.

— Talvez você e seus irmãos sejam poupados da insanidade que acometeu seus pais.

Armond a surpreendeu com uma sonora gargalhada. Era um riso cínico e sem humor, como se estivesse fazendo chacota da própria sorte.

— Dizem que a maldição que recaiu sobre os irmãos Wulf está ligada à loucura, mas a verdade é bem diferente.

— Então qual é? — Rosalind perguntou confusa.

—Reze para nunca descobrir—sentenciou ele, virando-se para a janela.

Já era noite alta quando Rosalind acordou com a parada da carruagem em frente à casa de Armond.

O dia havia sido extenuante e tão logo iniciaram a jornada de volta, ela adormeceu profundamente. O casamento fora realizado em uma pequena paróquia a duas horas de viagem, tendo como testemunhas o ferreiro e seu filho.

Agora, em vez de desfrutar de momentos mágicos ao lado do homem amado, Rosalind foi invadida por uma onda de medo e insegurança.

Mal se lembrava de ter dito "sim" durante a cerimônia que a unia para sempre a Armond Wulf. Sim, havia se casado com um estranho, pois o conhecera havia apenas uma semana.

Armond ajudou-a a descer da carruagem e seguiram para a porta da frente, que foi imediatamente aberta pelo prestativo Hawkins.

— Por favor, prepare o quarto ao lado do meu para lady... lady Wulf.

— Está certo, milorde — o mordomo respondeu sem demonstrar qualquer espanto pela novidade. — Coloquei à mesa uma refeição fria, na esperança que voltasse para casa ainda esta noite.

— Obrigado, Hawkins — Armond agradeceu e conduziu Rosalind para dentro da mansão sombria.

A sala de jantar estava iluminada por um enorme candelabro, colocado ao centro da mesa longa com apenas um lugar arrumado à cabeceira. Armond dirigiu-a para uma poltrona ao lado da sua.

— Como sua presença não era esperada, vamos dividir o prato. Está com fome?

— Muita — ela respondeu, ansiosa por livrar-se do vazio no estômago.

A mesa era farta e Armond serviu-os com pedaços de presunto, galinha, grossos pedaços de queijo e pão. Em seguida, pegou a taça de vinho, provou a bebida e passou-a para que Rosalind fizesse o mesmo. Por mais bizarro que pudesse parecer, compartilhavam de um jantar íntimo.

— Precisamos discutir alguns assuntos importantes — ele anunciou.

De fato havia muita coisa por definir, a primeira delas seria estabelecer quais os deveres de uma esposa em um casamento tão inusitado quanto aquele. Depois, certamente teriam que resolver como procederiam em relação a Franklin e sua mãe. Em meio a tamanho tumulto, Rosalind esquecera-se completamente de suas obrigações com a madrasta.

— Não quero que volte àquela casa sem a minha companhia.

— Está bem — Rosalind concordou. — Não pretendo ficar sozinha com Franklin. Nunca mais.

— Da mesma forma como se você quiser sair ou mesmo comparecer a algum evento social, eu a acompanharei. Se bem que, agora que estamos casados, tenho dúvidas de que será convidada para algum evento, infelizmente. Se quiser fazer compras, Hawkins ou eu mesmo a acompanharemos. Não pretendo mantê-la como prisioneira, mas quero protegê-la como prometi.

Armond assumiu um tom extremamente formal, embora sem perder o charme.

— E quanto a nós dois? Qual o tipo de relacionamento que teremos daqui para frente? — Rosalind perguntou, corajosa.

A luz amarelada das velas refletiu-se nos olhos de Armond, quando ele a encarou.

— Está em dúvida se partilharemos o mesmo leito?

— Exatamente — ela respondeu, ignorando o sangue arder em suas faces.

— Não...

— Não? — Rosaiind insistiu, corando ao perceber a doce provocação. — Nunca?

—Prefiro deixar a seu critério. Apesar de ter direitos como marido, não vou exigi-los a menos que seja de sua vontade. O que não me impede de tentar infringir a regra...

— E filhos?

Mesmo antecipando a resposta, Rosalind resolveu arriscar. Àquela altura já sabia ao menos que Armond trapacearia naquele jogo de sedução se preciso fosse.

— Nem pensar. — E assumindo um ar mais grave, continuou: — A maldição se perpetuará por todas as gerações.

— Não entendi o que disse.

Prendendo-a com o olhar, ele tomou um gole de vinho providencial antes de mudar de assunto.

— Você acha que Franklin seria capaz de matar?

Rosalind foi tomada de surpresa com a pergunta e terminou por engasgar com um pedaço de galinha.

— Você quer saber se o considero um assassino? — ela perguntou, aceitando o vinho que ele lhe oferecia.

— Acredito que ele tenha assassinado Bess Conner, ou a tenha ferido bastante. Acho que ele foi o responsável por plantar o corpo, encontrado em minha propriedade esta manhã, por vingança, ou para me afastar do seu caminho.

— Mas quais as razões que ele teria para praticar algo tão horrível assim?

Armond deu de ombros.

— Você é a razão de tudo. Na certa, Franklin achou que você me pediria ajuda. Ou talvez por eu ser um alvo fácil no jogo que ele próprio criou.

Rosalind ficou em silêncio, considerando que as suspeitas eram de fato verdadeiras. Franklin era um homem cruel, violento, mas seria também um criminoso?

— Sei que ele perde a cabeça facilmente. Mesmo assim, não consigo crer que Franklin seja capaz de matar uma mulher.

— Caso eu consiga provar que seu irmão é responsável pelos dois crimes, como você reagirá?

Era difícil prever uma reação diante de fatos tão sórdidos. Ela temia pela madrasta. Se bem que a duquesa de Montrose não estava consciente o suficiente para perceber o que se passava à sua volta. Quem poderia se machucar seria ela própria.

— Como pretende provar que Franklin é culpado? Aliás, quando vamos enfrentá-lo para comunicar nosso casamento? A essa altura ele já deve ter notado minha ausência.

—Vamos encontrá-lo logo pela manhã — Armond respondeu servindo-se de mais um pedaço de pão. — E quanto ao que farei para prová-lo culpado, vou segui-lo até pegá-lo em flagrante.

O medo que a atingira quando da chegada à mansão, voltou a lhe causar arrepios pelo corpo. Embora soubesse que em algum momento teria que enfrentar Franklin, estava temerosa das reações de Armond e também ao perigo que se exporia se seguisse um criminoso.

— Acho que seguir Franklin é muito perigoso — ponderou.

— Se ele for tão vil a ponto de matar uma mulher, não acredito que pensará duas vezes antes de enfrentar um homem.

— Estou ciente disso. Saiba que o que eu menos queria naquele momento era ser covarde — ele sentenciou, delineando a borda da taça com a ponta do dedo para depois chupá-lo.

—Vejo agora que estava sendo sensato, enquanto eu não... — ela respondeu, atenta aos movimentos daquela mão forte. Rosalind entendeu que ele de fato não jogaria honestamente. O jogo da sedução estava apenas começando. Na verdade, começara desde a noite em que trocaram o primeiro olhar. Havia uma forte atração física entre eles, inútil negar a resposta dos corpos sedentos. Rosalind ansiava por mais, merecia muito mais. Mas como fazê-lo entender seu desejo?

—Desculpe-me interromper, lorde Wulf, mas Gabriel acaba de chegar.

Perplexa, ela desviou a atenção de Armond para Hawkins que acabara de entrar sem se fazer notar.

— Gabriel? — Armond pareceu tão surpreso quanto Rosalind. — O que ele está fazendo aqui?

—Tomei a liberdade de chamar seus irmãos quando soube que tinha sido preso.

— Está certo, mande-o entrar.

Armond tomou mais um gole de vinho, enquanto ela mantinha os olhos fixos na porta da sala. Não demorou muito e ouviu o ruído surdo de botas pesadas no assoalho de madeira e um homem imponente entrou na sala. Gabriel não era tão alto quanto Armond, mas era mais musculoso, dono de um físico de camponês.

Impossível manter o olhar longe da figura tão atraente de Gabriel. Este, por sua vez, mostrou-se menos refinado do que o irmão mais velho. No entanto, o que faltava em refinamento era perfeitamente compensado pela beleza selvagem. O rosto marcante era delineado por escuras suíças. O maxilar era tão protuberante que parecia ter sido esculpido em granito. Os cabelos eram mais escuros do que os de Armond, mas entremeado por mechas tão claras que pareciam brancas à luz das velas. Gabriel era capaz de tirar o fôlego de uma mulher com a simples força de sua presença.

— O que diabos aconteceu esta manhã e como... — Gabriel parou de falar assim que notou a presença de uma mulher na sala.

— Essa é lady Rosalind, minha esposa — Armond fez as devidas apresentações. — E esse é meu irmão Gabriel.

— Esposa? Você está louco?                          

— Vamos conversar no escritório — Armond instruiu o irmão. — Estarei lá daqui a pouco.

— Mas antes responda por que se casou? — Gabriel insistiu, ignorando a presença de Rosalind. — Em nome de Deus, por que fez uma coisa dessas? Nós combinamos que...

— Gabriel — Armond o advertiu, subindo o tom de voz. — Cumprimente minha esposa e saia daqui.

A voz imperativa do irmão foi acatada e Gabriel empertigou-se, dirigindo-se à cabeceira da mesa.

— Sra. Wulf... — Uma leve reverência terminou o cumprimento.

—Pode me chamar de Rosalind — ela respondeu, sorrindo para o cunhado.

— Se assim o desejar... — Gabriel murmurou com expressão grave no rosto.

—Meu irmão não é dos homens mais educados — Armond apaziguou. — Talvez seja porque passa a maior parte do tempo no interior.

— Acho melhor eu me retirar — informou ela pressentindo que seu casamento não começara bem.

— Como quiser. Hawkins lhe mostrará o quarto — respondeu Armond, levantando-se para puxar a cadeira para que ela fizesse o mesmo.

Quando a distância entre eles se estreitou, ele a enlaçou pela cintura, puxando-a contra si. Rosalind então reparou que os olhos dele assumiam novamente aquele brilho enigmático. Ou talvez fosse apenas o efeito da luz indireta.

— Boa noite, Rosalind.

Aproximou-a ainda mais, e ela limitou-se a fechar os olhos e entreabrir a boca em um convite. Talvez tenha sido pelo vinho ou quem sabe estivesse embriagada pela proximidade dos corpos. Armond deixou que seus lábios brincassem com aquela boca ansiosa por alguns segundos, antes de tomá-la em um beijo ávido. Rosalind permitiu que a língua explorasse sua boca enquanto as mãos dele deslizavam por suas costas, pressionando seus quadris contra as coxas musculosas.

O desejo se materializou através da protuberante masculinidade que pressionou seu ventre. Agora tinha certeza de sua habilidade em excitá-lo, encharcando-o pelas mais primárias emoções. A fantasia, ensaiada no copo de vinho, foi aos poucos sendo realizada quando as mãos do marido percorreram as curvas de seu corpo.

Não demorou muito para que ela subisse as mãos pelo torso forte e terminasse por emaranhar os fios da vasta cabeleira loira.

— Ainda me lembro do que senti a primeira vez que a toquei — Armond sussurrou-lhe ao ouvido. — Não me esqueci do seu perfume, do seu gosto... desde então você é única em meus sonhos, Rosalind.

Um calor já conhecido umedeceu suas partes íntimas latentes e se fez presente na recordação da boca quente beijando seus seios, mordicando os mamilos. Ah, como era difícil controlar a vontade de implorar para que aquelas carícias extasiantes se repetissem. Doce tortura à espera por sentir novamente os lábios dominando seus sentidos, deixando em chamas a alma desprotegida.

De repente foram despertados da hipnose que os transportara para um lugar distante pela voz grave de Hawkins que anunciava:

— Lorde Gabriel está ficando impaciente, milorde. Pediu para que eu verificasse o porquê da sua demora. O quarto da senhora já está pronto.

Rosalind agradeceu silenciosamente ao mordomo por tê-la resgatado do estado de torpor em que se encontrava. Como pôde deixar que a emoção suplantasse a razão? Momentos antes, concluíra que desejava muito mais do que prazeres sexuais, mas quem sabe, havia esquecido de avisar ao próprio corpo daquelas decisões. No entanto, resistir a Armond não era tarefa fácil. Ele exalava sedução, bastava estarem na mesma sala para que a química se estabelecesse e ela se esquecesse das juras que fizera anteriormente.

— Acho melhor subir com Hawkins — ela anunciou já se dirigindo para a porta. — Boa noite.

Rumando em direção à saída, mesmo não olhando para trás, sentiu um olhar penetrante devastando suas costas.

Quanto mais se afastava de Armond, mais fácil ficava recobrar a consciência. E foi subindo os degraus para o segundo piso, que sentiu dissipar o calor que a deixara lânguida momentos antes, permitindo que reassumisse a lucidez.

Hawkins abriu a porta de folha dupla, revelando um quarto enorme muito bem mobiliado, embora um tanto antiquado.

As chamas do fogareiro relutavam em acender pelas mãos do mordomo, fazendo-a passar as mãos pelos braços, na tentativa de se esquentar.

O mordomo fez uma mesura e deixou o quarto. Somente quando a porta bateu que Rosalind entendeu o que tinha acontecido: estava casada. Casada com Armond Wulf, vivendo sob o mesmo teto.

— Vou perguntar mais uma vez, você está louco? Armond serviu um cálice de brandy e estendeu-o para o irmão. Gabriel estava sentado em uma poltrona de veludo em frente à mesa de mogno de Armond, que preferiu sentar-se ao lado do irmão.

— Bem, o boato é esse mesmo, não é? — Armond respondeu seco e apoiando os cotovelos nas pernas dobradas, afundou o rosto nas mãos. — As coisas não são assim tão simples. Rosalind é nossa vizinha. Eu estive em seu quarto em duas ocasiões, a noite passada foi uma delas. Passamos a noite juntos, porém eu apenas a confortei. Quando cheguei em casa hoje cedo, havia dois inspetores à porta do estábulo me aguardando. Outra mulher foi assassinada e encontrada em nossa propriedade.

— Entendi, a vizinha é seu álibi?

— Exatamente, mas ela se apresentou sem que eu tivesse pedido. Arriscou-se arruinando a própria reputação sem que tivéssemos qualquer relação mais intensa... bem, ao menos não totalmente. Não me restou outra alternativa senão pedi-la em casamento.

— Você não perde a mania de bancar o cavalheiro, não é Armond? — Gabriel quis saber em tom de ironia. — E por quê? Não fará diferença alguma perante a sociedade. Aqueles que um dia foram amigos dos nossos pais, hoje ficarão felizes em nos ver pelas costas.

Apesar da triste situação, Armond riu do jeito como o irmão descreveu.

— Além do mais, tenho fortes suspeitas de que o irmão de Rosalind é o culpado pela morte de Bess O’Conner e pela outra, encontrada hoje cedo. Franklin Chapman tem sido violento com Rosalind, sem contar que queria forçá-la a se casar com um devasso. Ela precisa da minha proteção — ele continuou o relato, endireitando o corpo na cadeira.

— Você não pode assumir esse papel — Gabriel concluiu, meneando a cabeça. — Aliás, nenhum de nós pode. Não temos sequer o direito de sermos os cavalheiros que aprendemos. Você já está apaixonado por ela. Não precisa esconder. Mas... quem irá protegê-la de você?

A pergunta feriu-o como uma adaga afiada. Por que imaginara que casando-se com ele, Rosalind estaria mais segura do que ao lado de outro homem? Ele não se imporia a ela, mas se por acaso viesse a se apaixonar, podia também matá-la. Isso não podia acontecer. Nunca.

— Bem, agora é tarde — finalizou ele. — Não posso desfazer o que está feito. Serei o protetor de minha esposa, nem que para isso precise usar a fúria do lobo que existe em mim. Ao menos essa inverdade ao nosso respeito conseguirei provar.

Gabriel levantou-se pensativo e dirigiu-se até o móvel das bebidas para servir-se de mais uma dose.

— Temos um outro problema. Jackson sumiu.

Armond presumiu que o irmão mais novo estivesse mais interessado em visitar os bordéis londrinos do que procurar saber o que acontecera no estábulo da família naquela manhã.                                                          

— Desaparecido desde quando?

—Logo depois que você saiu. Pensei que ele havia decidido acompanhá-lo e estivesse por aqui. Hawkins me disse que não o vê desde que você voltou para casa.

— Eu também não o vi.

Jackson era uma das preocupações de Armond. O caçula dos irmãos Wulf era o responsável pela má reputação da família. Era um mulherengo vaidoso e amigo de um bom copo, desde que voltara do exterior oito meses atrás. Jackson não tinha interesse algum nas propriedades da família. Aliás, em nada além de mulheres ou bebidas.

— Não quero preocupá-lo e não direi nada antes de ter provas. Mas acredito que alguma coisa aconteceu a ele enquanto esteve no exterior.

— Você acha que ele caiu de amores por alguém? — Armond sentiu o sangue congelar.

Gabriel estreitou a distância que o separava do irmão.

— Ele tem passado muito tempo embrenhado pelos bosques atrás da nossa propriedade; principalmente nas noites de lua cheia.

De repente um pensamento obscuro ocorreu a Armond. Jackson estivera na cidade quando haviam encontrado o corpo de Bess. E agora, que outro corpo fora encontrado, ele também estava por perto, apesar de andar sumido. A suspeita causou-lhe arrepios. Talvez fossem apenas estranhas coincidências, daria ao irmão o benefício da dúvida.

— Precisamos encontrá-lo. Vamos iniciar a busca logo cedo — Armond concluiu.

Gabriel assentiu com um sinal de cabeça, para em seguida olhar em direção ao estábulo.

— E o que vai fazer com sua esposa? Ela não estará esperando pelo marido na cama? Que tipo de casamento é esse, Armond?

— É um casamento de conveniência e nada mais.

— Ah, sei. — Gabriel soltou uma sonora gargalhada. — Reparei que ela também é convenientemente bonita, certo?

— Melhor afastar qualquer olhar em direção a ela — Armond o repreendeu, com um tom sério de voz. — Rosalind é problema meu. Pode deixar que eu me encarregue desse assunto.

— Não se esqueça do que aconteceu com nosso pai, quando um casamento do mesmo tipo transformou-se em algo mais sério, mesmo depois de anos convivendo com mamãe. Você foi testemunha de como todos nós... Quer ter o mesmo triste destino?

Armond se lembrava muito bem do que havia acontecido e claro que não deixaria que o mesmo acontecesse novamente.

—Assim que encontrarmos Jackson, quero que vocês dois voltem para o interior. Deixe que eu mesmo enfrente meus conflitos.

—Talvez seja esse o conflito que poderá nos salvar a todos.

Armond não havia considerado que aquela poderia ser a chave deixada em poema pelo primeiro Wulf amaldiçoado. Ele não saíra à procura do inimigo, o caminho havia sido o inverso.

O banho estava delicioso. Sabendo que Rosalind não levara nenhum de seus sabonetes perfumados, Hawkins lhe entregara uma barra com o perfume de Armond. Tinha um toque de sândalo que remetia à masculinidade do marido.

Teria de se conformar com o que recebera, enquanto não pudesse buscar suas coisas na casa do irmão. Só em pensar na possibilidade de encontrar com Franklin, sentiu um arrepio de medo percorrer seu corpo inteiro. De qualquer forma, não sentiria saudade dos vestidos que ganhara do irmão. Eram roupas compradas apenas para exibir seu corpo escultural e assim atrair um possível casamento lucrativo.

E por ironia do destino, percebeu que tinha atraído um casamento de conveniência de uma forma ou de outra.

Passara a primeira noite sozinha e havia acordado várias vezes com a nítida sensação de estar sendo observada, desnudada por um olhar misterioso. Embora tivesse certeza de que estava cochilando, a sensação de ter como companhia a sombra de um corpo másculo, com olhos azuis brilhantes como brasa, fora muito real.

Mais uma vez sentiu a pele levantar em um doce arrepio, talvez pelas lembranças reais e imaginárias, ou mesmo porque a água do banho já estava fria.

Pondo de lado os pensamentos, alcançou a toalha que Hawkins havia providencialmente deixado ali. Ao sair da banheira, enrolada no tecido aveludado, a porta de ligação se abriu com um estrondo.

O olhar assustado deparou-se com o de Armond que sequer preocupou-se em desviar a atenção de seu corpo frágil e trêmulo.

— Desculpe se a interrompi — ele disse, estudando-lhe as pernas bem torneadas. — É melhor buscarmos suas coisas.

— Vamos sair agora? — ela perguntou esquecendo-se de sua nudez parcial.

— Eu disse a noite passada que seria a primeira coisa que faríamos hoje. Você precisa dos seus pertences.

— Fico pensando se não seria melhor vestir o mesmo vestido pelo resto da vida. Poderia dormir com as suas camisas...

Armond pegou a camisa que estava jogada sobre a cama, levou-a ao rosto e de olhos fechados sentiu o perfume que dali exalava. Em seguida, recolocou-a na cama.

— Sou um homem de bens, Rosalind. Posso inclusive comprar um guarda-roupa novo, se essa for a sua vontade. Mas pensei que você quisesse pegar algumas coisas de uso particular.

— Quase nada restou que me seja realmente importante.

Lembrou-se quando meses atrás fora procurar um par de brincos de pérolas, que pertenceram à sua mãe, e descobriu que a caixa de jóias estava vazia. Não havia nada de muito valor, mas mesmo assim Franklin penhorara tudo. Quando questionado, ele dera de ombros dizendo que precisava do dinheiro.

— Tenho uma escova de cabelos e um pente de prata que pertenceram à minha mãe. Gostaria de mantê-los comigo.

— Você dormiu bem?

Armond mudou de assunto tão repentinamente que a pegou de surpresa.

— Sim... — respondeu sem jeito. — Agora gostaria de me trocar, se você não se importar.

— Ora, fique à vontade — ele respondeu com um sorriso malicioso nos lábios.

— Bem, com você aqui vai ser impossível. Sei que sou sua esposa, mas espero que isso não signifique que perderei minha privacidade.

— Bem, não temos uma aia de quarto para você. Então, pensei que enquanto não arrumarmos alguém, eu poderia...

Imaginar Armond ajudando-a se vestir foi como imaginá-lo tocando sua pele.

— Obrigada, posso resolver o assunto sozinha — respondeu, virando-se para esconder o rosto corado.

Mesmo de costas para ele, sentiu o calor da respiração ofegante de encontro à pele nua do pescoço. Em um gesto sensual, Armond afastou uma mecha de cabelo que cobria um dos ombros desnudos e encaixou a boca na curva insinuante, cobrindo-a de beijos ardentes.

— Você tem idéia do quanto é linda? Sua beleza beira a perfeição. Sabe o quanto a desejo, não?

Rosalind lutou contra a vontade de se deixar apoiar naquele corpo viril. O timbre da voz de Armond era como uma carícia que a deixava enfeitiçada. No entanto, a razão sobrepujou o desejo, fazendo-a lembrar que queria mais do que prazer físico. O que desejava era uma comunhão de almas.

— Você disse que eu diria o momento exato para as carícias — ela relembrou apesar de sentir as pernas trêmulas. —Há muito tempo que não faço as minhas próprias escolhas. Além disso, quero muito mais do que você imagina me dar.

Pela reação de Armond, ela sentiu que suas palavras não o afetaram apenas fisicamente e sorriu com a pequena vitória.

— O prazer que podemos compartilhar pode ser um frágil substituto para o amor que deseja, mas é o máximo que poderemos ter. Eu avisei antes mesmo que fizéssemos nossas promessas diante da igreja.

A sinceridade poderia ser admirável em certos momentos, mas em outros tinha o poder de arrasar um coração. Foi o que sentiu Rosalind ao ouvir aquelas palavras e prever um futuro sombrio para ambos.

— Presumo que então fizemos promessas falsas — concluiu, amarga. — Nada em nossa união é verdadeiro. Eu teria o mesmo destino se houvesse casado com Penmore.

Ele surpreendeu-a ao encará-la no fundo dos olhos com a mais séria das expressões:

— Você realmente acredita no que está dizendo?

Uma onda de culpa a invadiu, pois sabia que nada poderia ser melhor do que estar ao lado de Armond.

— Não — admitiu. — Peço desculpas pelo que disse. Mas aconteceu tudo muito rápido. Preciso de tempo para me acostumar à nova realidade e saborear a idéia de tomar minhas próprias decisões novamente.

O que ela omitiu foi o fato de que havia muito tempo que não se sentia tão segura de si, mas ansiava por mais, queria ser amada. Sabia que tinha forças para enfrentar qualquer desventura, contanto que contasse com uma ligação afetiva muito forte.

— Então cabe a você decidir — Armond sentenciou, embora não estivesse satisfeito com a postura que ela acabara de tomar. E antes de sair do quarto, virou-se para acrescentar: — Encontre-me na sala de refeições quando estiver pronta. Vou pedir a Hawkins que prepare um generoso café da manhã.

Segurando a toalha com força, como se estivesse se protegendo, Rosalind limitou-se apenas a assentir com a cabeça. Assim que ele saiu, deixou escapar um longo suspiro. A situação toda era muito estranha. Era como se houvesse pulado as fases da conquista, do noivado, para depois tornar-se a esposa de Armond. Agora portavam-se como pessoas educadas, dançando ao som de frases de cortesia e mesura.

Concluiu que era melhor ocupar-se dos percalços mais próximos. Lembrou-se da conversa que tiveram na noite anterior e o medo voltou a assombrá-la. E se Franklin fosse mesmo um assassino? Apesar de tudo, não acreditava que seu irmão fosse capaz de tamanha atrocidade, mas àquela altura, já não tinha mais certeza de nada. Um homem que não tinha o menor respeito a ponto de bater em uma mulher, podia muito bem desprezá-la o suficiente para tirar-lhe a vida.

Pouco depois, já pronta, desceu as escadas e ouvindo o som de talheres batendo nos pratos, dirigiu-se para a sala de refeições. Armond e o irmão estavam à mesa, em silêncio.

Embora caminhasse sem fazer barulho, Armond levantou os olhos antes de ela entrar na sala.

— Venha, Rosalind, sente-se ao meu lado — convidou, levantando-se, e, com um sinal de mão, instruiu o irmão para fazer o mesmo.

Não se preocupando em demonstrar o descontentamento, Gabriel levantou e fez uma leve mesura cumprimentando-a.

— Bom dia, lorde Gabriel — ela cumprimentou, enquanto Armond puxava a cadeira.

— Dia... — ele murmurou, voltando a se sentar e concentrar-se na comida.

Um silêncio constrangedor tomou conta do ambiente. Tudo fazia crer que conversar durante a refeição não era o forte dos irmãos Wulf. Contudo, Rosalind achou importante tentar ser simpática com o cunhado, pelo bem de Armond. Mas, qual assunto que deveria abordar? Logo, lembrou-se de que ele gostava de ficar no campo, cuidando das propriedades da família.

— Fale um pouco sobre a propriedade Wulfglen, lorde Gabriel. Eu adorava morar nas terras do meu pai no campo. Fui muito feliz lá até precisar vir a Londres — interrompeu o que dizia ao lembrar que depois do casamento, Montrose passaria para as mãos de Armond, porém o título de nobreza não faria parte do dote, que seria de seus filhos... mas por que se preocupar? Sabia que não teriam filhos.

— O lugar é lindo — Gabriel admitiu, embora relutante. — A terra é muito boa, o pasto é ótimo para os cavalos, sem contar o espaço que eles têm para galopar.

— Eu amo cavalos — ela disse com os olhos brilhando. — Já me encantei com a égua árabe que vi no estábulo de Armond.

— Sim, ela é muito bonita. — Gabriel largou o garfo. — Ela ainda não procriou. Armond acha que ela não tem estrutura para tanto e que serviria melhor como montaria de uma mulher.

— Ela é mesmo delicada e tem uma bela linhagem. Percebe-se que é um exemplar árabe, com as narinas largas e um arco de pescoço perfeito. Talvez se a cruzasse com um garanhão não muito maior do que ela, fosse possível gerar potros com a mesma linha, mas com uma estatura mais robusta.

— É exatamente isso que tenho sugerido ao meu irmão — Gabriel vibrou e Rosalind notou que o havia conquistado enfim. — Viu, até lady Wulf concorda comigo.

Armond pareceu confuso com a sintonia repentina entre os dois.

— Rosalind gostou tanto da égua que eu já tinha decidido em presenteá-la com o animal —Armond informou. — Agora cabe a ela decidir se a égua deve procriar ou não.

— Um presente? — Rosalind gostou da idéia. — Obrigada, Armond, mas não posso aceitar. É um animal muito caro.

— Claro que pode, afinal estamos casados. Não há nada de errado em um marido querer presentear a esposa.

Novamente, o silêncio se fez reinar e assim permaneceu até o final da refeição.

Hawkins e mais dois empregados entraram para tirar a mesa. Armond levantou-se e puxou a cadeira para que Rosalind se levantasse.

— É hora de irmos buscar suas coisas.

— Você está armado? — ela perguntou, sentindo o estômago revirar com a antecipação do encontro. — Não tenho idéia do que Franklin é capaz de fazer, temo que ele atire em você.

— Se quiser posso acompanhá-los — Gabriel ofereceu. — Os Wulf sabem se proteger.

— Seria bom se estivesse na minha retaguarda — Armond concordou.

Os três seguiram para o hall de entrada. Quanto mais perto se aproximavam da saída, maior era a ansiedade de Rosalind. Ao contrário de Armond, que não demonstrava nervosismo, mas sim determinação.

Hawkins abriu a porta e o sol entrou glorioso, iluminando a todos. Menos a Rosalind que sentia-se nas trevas.

Mal haviam saído, quando uma carruagem parou à porta dela e saltaram Franklin e Penmore. Rosalind viu o ódio estampado no rosto do irmão, quando este a viu ao lado de Armond e não hesitou em partir para cima dos dois.

— Solte minha irmã agora mesmo! — gritou. — Você não tem o direito de tirá-la de mim.

Armond sequer respondeu, apenas desferiu-lhe um soco do maxilar. Franklin cambaleou e não teve tempo de se equilibrar, quando outro soco o atingiu em cheio de novo.

— Eu deveria matá-lo — Armond vociferou. — E farei isso mesmo se ousar tocá-la novamente.

— Wulf — Penmore tentou intervir.

— O que disse, visconde? — Gabriel perguntou em tom ameaçador postando-se ao lado do irmão.

O rosto gordo de Penmore ficou vermelho e ele retrocedeu alguns passos.

— Covarde! — Franklin zombou.

— Ele é tão grande quanto uma árvore, Chapman, você que o enfrente. — Penmore apressou-se em voltar para dentro da carruagem, fechando a porta.

Enraivecido pela covardia do companheiro, Franklin enfiou a mão dentro do casaco e sacou uma arma. Rosalind quase gritou de pavor.

De repente, ela ouviu o som de uma outra arma sendo engatilhada. Virou-se e viu Hawkins apontando um revolver para seu irmão.

— Presumo que não seja bem-vindo aqui, senhor — disse, fazendo uso de sua linguagem formal, agravada pela expressão séria.

Franklin baixou a arma, mas seus olhos frios faiscavam de raiva ao encarar a irmã:

— Você estragou tudo. Uniu-se a um assassino. Ele vai matar de novo, tenho certeza. E a próxima vítima poderá ser você, irmãzinha.

— Não dirija a palavra à minha esposa novamente — Armond ameaçou. — Não sou criminoso, mas a tentação de fazer minha primeira vítima é enorme. Não me provoque, Chapman.

O desafio estava lançado. Franklin seguiu em direção à carruagem de Penmore e entrou sem dizer mais nada. Depois do comando do visconde, partiram em disparada.

Rosalind respirou aliviada. O primeiro confronto já havia passado. Notou que a carruagem não seguiu para a propriedade vizinha, o que significava que ela poderia ir até lá e pegar suas coisas.

— Ele já foi — ela disse, vendo que Armond ainda estava parado vendo a carruagem se afastar.

— Por enquanto — ele concordou, sem desviar o olhar da estrada. — Mas não acho que isso tenha terminado. Você me odiará se eu der um fim à vida dele.

— Espero que não chegue a tanto. Quem sabe você não o tenha assustado para sempre?

— Não acredito que ele se amedronte tão facilmente. Nunca baixe a guarda quando ele estiver por perto... talvez seja melhor ficar com um pé atrás em relação a mim também — ele acrescentou, encarando-a.

Rosalind estremeceu ao conhecer um outro lado de Armond. Um lado perigoso, de raiva contida, que não notara antes. Era quase palpável o desejo de matar Franklin e terminar o assunto de uma vez por todas.

— É aquela casa? — Gabriel perguntou, apontando para a propriedade vizinha.

— Sim — Rosalind respondeu. — É melhor irmos agora enquanto ele não está.

Armond virou-se para Hawkins e ordenou:

— Mande um coche até lá para buscar os pertences de lady Wulf. — Virando-se para Rosalind, acrescentou: — Venha.

Ela concordou com um aceno de cabeça.

— Vou também — Gabriel avisou. — Acho que vocês precisam de alguém para vigiar a porta.

E os três partiram com Rosalind preocupada em acompanhar as largas passadas de Armond. O perigo estava evidente em cada traço do rosto marcante e, para sua surpresa, ela notou o quanto aquilo a estimulava.

Foi com enorme satisfação que viu Franklin apanhar. Durante meses havia sofrido a violência calada, sem poder revidar. Mas agora tinha alguém para protegê-la. E, querendo estar ligada àquele homem pelo mais simples dos gestos, ela tomou as mãos grandes nas suas.

Armond sorriu, deixando transparecer que sua raiva fora amenizada. Durante todo o trajeto não trocaram olhares, mas, ao se aproximarem do destino, ele apertou a mão delicada como se quisesse ter certeza da sua vontade de entrar naquela casa novamente.

Com a ajuda de Mary, Rosalind embalou seus pertences, deixando de lado os vestidos que Franklin a presenteara. Depois pediu que o cocheiro subisse para carregar os baús. Graças à ganância de seu irmão, saía de casa com pouquíssima coisa.

— Preciso falar com minha madrasta antes de partir — ela comunicou a Armond e seguiu para os aposentos do terceiro andar da casa.

Infelizmente a duquesa não apresentava nenhum sinal de melhora. Rosalind curvou-se e tomou as mãos frias da madrasta e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Eu me casei. Não moro mais aqui, mas prometo vir visitá-la sempre que puder.

Não houve resposta. Rosalind levantou suspirando e dirigiu-se a Mary:

— Preciso de um favor.

A criada estava parada em um canto, enxugando as lágrimas com um lencinho de linho.

— Lamento tanto por tudo isso. A senhora forçou esse casamento com esse homem misterioso. Não ouso imaginar o que pode acontecer, milady.

— Estou bem — Rosalind procurou tranqüilizá-la. — Mas preciso continuar visitando a duquesa.

— Milady pede que eu vá até aquela casa sombria?

— Pensei em outra coisa para não sujeitá-la a isso. Quando Franklin não estiver em casa, estenda um lençol na varanda do quarto que eu costumava ocupar. Se ele perguntar, diga simplesmente que está colocando as roupas de cama para arejar.

— Acho que vai funcionar — Mary concordou. — Acredito que a duquesa sabe que está aqui, mesmo que não expresse. Acho que sua presença a conforta.

Rosalind colocou a mão carinhosamente sobre o ombro da madrasta.

— Espero que ela saiba o quanto a amo — disse com os olhos marejados. — Franklin vem visitá-la, Mary?

— É muito raro. A única coisa que faz é preparar o chá que ela costuma tomar diariamente.

— Só Deus sabe quanto sacrifício ela fez por ele, a começar pelo casamento com meu pai. Espero que meu irmão reconheça essa devoção de sua mãe.

— Se permite dizer, o Sr. Chapman não se preocupa com mais ninguém a não ser com ele mesmo. Presumo que saiba disso, não?

Rosalind não precisou responder. Mary sabia o quanto Franklin a maltratava. Tudo o que se passava sob o teto da família os empregados ficavam sabendo. De repente se lembrou das suspeitas de Armond quanto à ligação de Franklin no assassinato de Bess O'Conner.

— Mary, alguma vez Franklin trouxe mulheres para cá?

— Ele costumava receber algumas — confessou a criada. — Mas isso foi antes de a senhora vir para cá. Ele me pedia para passar a noite fora quando ia receber seus amigos.

— Quando exatamente a duquesa começou a mostrar sintomas da doença?

— Ah, já faz tempo. — Mary franziu o cenho, tentando lembrar. — Ela começou a ficar estranha de uma hora para outra. Ficava nervosa e chateada por qualquer coisa. Nessa época, os dois brigavam muito. Acho que ela não gostava dos amigos e das festas.

— Rosalind, sua bagagem já está na carruagem — gritou Armond do andar de baixo.

— Já estou descendo — anunciou e abaixando-se para beijar a testa da madrasta, murmurou: — Não a abandonarei jamais. Virei vê-la sempre que puder. Se fosse possível, eu a levaria para morar comigo — sentenciou, olhando em volta do quarto sombrio e frio.

E ao puxar a mão para sair, teve a nítida sensação de que a duquesa apertou seus dedos levemente. Mesmo que tivesse sido só impressão, ao menos era um alento de que um dia a veria com saúde de novo.

— É melhor a senhora ir antes que o Sr. Chapman chegue — Mary advertiu.

Rosalind abraçou a governanta antes de sair. Armond a aguardava no pé da escada. Ao vê-lo a sua espera, soube que sua vida, a partir daquele momento, teria outro sentido e que valeria a pena. No entanto, não sabia se conseguiria conviver com o pouco sentimento que o marido estava disposto a oferecer. Gostaria muito de acreditar que o seu casamento fosse diferente dos tantos que aconteciam diariamente em Londres. Ao contrário das outras esposas que dividiam o leito matrimonial apenas por obrigação, Armond havia deixado ela escolher se o queria em sua cama ou não. Mas demandaria muito manter a opção feita, sabendo que o homem que tanto desejava estava ali ao lado, separados por apenas uma porta destrancada.

Ao deixá-la de volta em casa, Armond sabia que Rosalind passaria o restante do dia desfazendo os baús. Então, instruiu Hawkins para não perdê-la de vista enquanto ele e Gabriel saíam à procura de Jackson.

— Por onde devemos começar? — Gabriel perguntou ao montar em seu cavalo.

— Achei que soubesse — Armond comentou secamente.

— Quero saber por qual bordel deveremos começar.

— Sabemos que a preferência de Jackson era pelo Queenie's, fora dos limites da cidade. Vamos até lá — Armond respondeu, enquanto selava o alazão castanho.

Os dois homens deixaram o estábulo, e Armond procurou não olhar para o lugar onde haviam recentemente achado uma mulher morta. Apesar de não a ter conhecido, olhar para aquele corpo lívido o deixara transtornado, com um desejo de vingança tanto por ela quanto por ele próprio. Talvez a primeira mulher que fora encontrada naquele mesmo lugar, tivesse ido para lá por achar que encontraria em sua propriedade um refúgio de um provável criminoso. Contudo, daquela vez havia sido diferente. Era certo que alguém plantara o corpo ali para incriminá-lo, aproveitando o precedente. Acreditava que Franklin tinha motivos de sobra para fazer tamanha maldade. Mas por que ele fora tão descuidado em cometer um segundo crime, logo após o corpo da criada ter aparecido em sua própria casa?

— Sua mulher parece ser boa pessoa — Gabriel comentou de repente. — Em outras circunstâncias eu a teria olhado com outros olhos.

— E eu a amaria se pudesse — Armond retrucou na mesma hora.

— Já o irmão não merece consideração nenhuma. Aliás, ficaria melhor com uma bala bem no meio da testa.

Gabriel estava com um semblante sério. Sempre fora briguento.

Seguiram em silêncio até o centro de Londres.

— Estamos causando espanto — Gabriel observou ao notar que as pessoas procuravam se esconder ao vê-los passando pela rua principal. — Mas afinal o que esperam de nós? Que deixemos à mostra as patas e os caninos afiados para persegui-los?

Armond observou as pessoas desviarem do caminho, pararem de fazer suas atividades para espreitá-los. Em meio a todos, viu uma jovem com quem Rosalind conversara durante o baile dos LeGrande, lady Amélia. Ela e a irmã os encararam para em seguida levarem um cutucão severo da mãe preocupada. Claro, eles não mereciam sequer os olhares das mulheres de bem.

— Quem era?

— Como? — Armond fingiu não entender.

— A linda loira de olhos azuis que acabamos de passar.

— Acredito que seja uma amiga de Rosalind. Eu as vi conversando quando cheguei a um dos últimos bailes da temporada.

Gabriel ficou surpreso.

— Meu Deus! Não me diga que você anda freqüentando as rodas sociais. O que aconteceu? Você sabe que quanto mais reservados formos, melhor será para vivermos em paz.

— Eu andava muito sozinho. Não me diga que não sente o mesmo, Gabriel.

— Não — respondeu seco. — Não me deixo abater pela solidão. Além do mais, não me envolvo com mulheres, mesmo porque não as deixo se aproximar. Você deveria ter seguido meu exemplo.

Armond sentiu-se aliviado por saírem dos limites da cidade. Logo chegariam ao Queenie's. Assim a discussão estaria encerrada. A última coisa de que precisava naquele momento era levar sermões de Gabriel.

A própria Queenie atendeu a porta quando Armond e Gabriel chegaram. A senhora já tinha certa idade, apesar da tentativa de disfarçar com uma maquiagem pesada.

— Voltem à noite. As meninas ainda estão dormindo.       

A mulher estava prestes a fechar a porta quando Armond a impediu, colocando a bota entre a porta.

— Estamos procurando nosso irmão.

— Não os tenho visto aqui há muito tempo — ela respondeu, ajeitando os cabelos vermelhos. — Mas Jackson está lá em cima.

— Gostaríamos de vê-lo, é possível?

— Entrem, mas não façam barulho. Estão todos dormindo.

Armond e Gabriel seguiram a senhora por um hall todo decorado com peças douradas, em forte contraste com a mobília de veludo vermelho.

— Bem, vocês conhecem o caminho. — Ela indicou a escadaria. — Batam na primeira porta à esquerda. Fiquem à vontade para sair depois — instruiu, amarrou o roupão em volta da cintura e seguiu para o quarto.

— Pode deixar que eu subo sozinho — Armond disse a Gabriel. — Não vejo necessidade de os dois invadirem o quarto de supetão. Espere por mim aqui.

— Não demore — Gabriel assentiu.

Armond subiu as escadas e bateu de leve na porta indicada. O ruído do ronco dava para ser ouvido do lado de fora. Ele entrou no quarto totalmente às escuras, e viu o irmão jogado na cama. Dada a situação, chegava a ser irônico encontrá-lo tão inocente e desprotegido. Havia uma mulher nua a seu lado. Ao aproximar-se um pouco mais, notou que havia outras duas mulheres enroscadas em Jackson, ressonando também.

— Jackson, acorde!

De repente o irmão se mexeu languidamente e levantou para encarar Armond com os olhos nublados.

— O que está fazendo aqui?

— Eu poderia perguntar o mesmo, apesar de ser óbvio, não?—indagou, apontando as mulheres ainda adormecidas. — Já sei de onde vem a nossa fama...

Jackson abriu um sorriso encantador que lhe conferia um ar de menino inocente.

— Ora, onde está o pecado em se gostar de mulheres?

— Talvez o pecado seja em estar com três mulheres na cama ao mesmo tempo. Mas, ande, vista-se. Precisamos conversar.

— Como sabia que eu estava aqui? — Jackson perguntou, levantando-se cuidadosamente para não acordar as mulheres.

— Gabriel está nos esperando lá embaixo. Hawkins o chamou a Londres para discutirmos um assunto importante. Quando Gabriel chegou e não o encontrou, presumimos que estaria aqui, ou em algum outro lugar similar.

— Eu estava entediado — Jackson disse ao espreguiçar-se demoradamente. — Queria me despedir de todas as mulheres e bebidas antes de partir.

— Bem, vista-se e nos encontre lá embaixo — Armond disse e deixou o quarto.

Jackson demorou mais do que o esperado para descer.

— Já não era sem tempo — Gabriel resmungou. — Já estávamos cansados de ficar aqui esperando.

— O dever estava me chamando — Jackson respondeu só para irritar o irmão.

— Vamos embora — Armond ordenou, antes que a briga se prolongasse.

Jackson passou o caminho de volta reclamando de dor de cabeça.  

Hawkins apressou-se em abrir a porta antes mesmo que eles terminassem de subir as escadas da frente.

— Lady Rosalind está bem? — Armond perguntou.

— Acredito que esteja cochilando. Até agora está tudo em paz, lorde Wulf.

— Posso saber quem é lady Rosalind? — Jackson postou-se ao lado do mordomo.

— Vamos até o escritório — Armond ordenou.

— Vou arrumar um banho para o senhor imediatamente, lorde Jackson — Hawkins sugeriu com cara de desgosto pelo cheiro do rapaz.

Quando estavam os três reunidos no escritório, Armond trancou a porta e sentou-se na poltrona de costume. Jackson seguiu direto para o armário de bebidas.

— Será que agora posso saber quem é lady Rosalind e o que ela está fazendo nesta casa?

— É minha esposa — Armond sentenciou.

— Como assim? — perguntou o irmão mais novo, deixando o copo de bebida cair no chão.

Jackson ficou petrificado, encarando o irmão com os olhos arregalados. E antes que ele explodisse em perguntas, Armond começou a contar a mesma história que havia dito a Gabriel na noite anterior. Não omitiu dizer também a respeito de Franklin Chapman e sobre as suspeitas que mantinha.

Jackson tomou outro copo e serviu-se de outra bebida.

— E pensar que sou eu que tem fama de se meter em encrencas. Santo Deus, Armond, até mesmo eu, que sou o mais avoado de todos, consigo manter o acordo que temos de não nos casarmos. Você não ama essa mulher, não é? Por acaso já está sentindo os efeitos da maldição?

— Não — Armond garantiu. — Mas ela não me deixou outra alternativa. Pretendo protegê-la, dar meu nome e nada além disso.

Por alguns instantes Jackson ficou perdido em pensamentos, enquanto observava a bebida. Depois virou tudo em um gole só.

— Espero sinceramente, para o seu bem, que você resista a qualquer sentimento em relação a essa mulher. Acredito que seja responsável o suficiente para não cair na maldição e ficar à mercê das fases da lua.

Como Jackson levantou o assunto, Armond sentiu-se confiante para perguntar:

— E quanto a você, meu irmão? Gabriel anda preocupado com seu comportamento desde que chegou de viagem. Aconteceu alguma coisa em Paris?

Jackson estreitou os olhos em direção a Gabriel antes de responder.

— Não aconteceu nada fora do normal; jogos, mulheres e caça, não necessariamente nessa ordem.

— Conheceu alguém em especial?

— Quer saber se me apaixonei? — Jackson perguntou, levantando uma das sobrancelhas. — Eu me apaixono toda noite. Não se preocupe comigo, Armond. Aliás, não fui eu quem casou — ele completou com um sorriso irônico. — Quando terei a honra de conhecer a noiva? Eu gostaria de tirar uma soneca. Talvez seja melhor eu subir, deitar com ela e já me apresentar — concluiu zombeteiro. Em vez de responder, Armond limitou-se a lançar um olhar ameaçador ao irmão, que faria tremer um desconhecido. Jackson, no entanto, apenas deu de ombros.

— Já percebi que o casamento lhe tirou o bom humor. Espero que seja só isso que você tenha perdido.

— O que vamos fazer em relação ao canalha do irmão da sua esposa? — Gabriel, que estava em silêncio até então, pronunciou-se. — Acho que deveríamos acabar com essa ameaça ainda esta noite.

— Preciso ir também? — Jackson perguntou com ar de desdém. — Meu forte não é brigar, só amar. Mas se vocês fizerem questão da minha presença, posso dar um jeito.

— O seu problema é esse, você perde muito tempo preocupando-se com coisas sem importância — Gabriel disse. — Melhor deixar que eu e Armond cuidemos disso.

Naquele momento, Armond tomou uma decisão, talvez não a mais sábia, mas a melhor como chefe da família.

—Este é um assunto meu e pretendo cuidar sozinho. Quero que os dois voltem para o campo amanhã e fiquem longe do perigo.

Os dois irmãos estavam prontos para protestar quando ele levantou a mão, pedindo silêncio:

— Tenho um pressentimento de que os assassinatos não vão parar. E enquanto eu não capturar o criminoso, sou um suspeito. Se vocês estiverem em Londres estarão na mesma posição.

— Não precisa se preocupar comigo — Jackson defendeu-se. — Ao contrário do que pensam, sou muito responsável quando a hora se faz necessária.

— Gabriel, se você não se importa, gostaria de conversar a sós com Jackson.

A princípio Gabriel não gostou da idéia, mas acabou concordando e saiu da sala. Armond indicou uma cadeira para que Jackson se sentasse em frente a ele.

— Qual é o sermão agora? Ando bebendo muito? Presumo que seja verdade, mas e daí? Não tenho muitos planos para o futuro. Então, você vai me dizer que só ando com vadias. Costumo me prevenir para não pegar nenhuma doença ou mesmo para que alguma delas seja fertilizada por uma semente amaldiçoada minha. Então, está vendo? Posso ser perfeitamente responsável pelas coisas.

Por um breve momento, Armond teve vontade de acariciar a cabeça do irmão. Jackson ainda era muito pequeno quando a maldição havia lhes tomado o pai. Pouco depois perderam a mãe como resultado da maldição.

— Preciso fazer uma pergunta séria — Armond sentenciou. Mesmo não acreditando que o irmão tivesse alguma coisa a ver com os assassinatos, ele precisava ter certeza. — Quero saber se você tem alguma coisa a ver com esses crimes.

— Você acha que eu matei essas mulheres?

— Bem, você estava aqui quando aconteceu a primeira morte e agora também. Gabriel também está preocupado por causa de suas atitudes. Se acho que você matou essas mulheres? Não, não da forma como eu o conheço e amo. — Armond não conseguiu verbalizar seu maior temor. — Se por alguma razão de força maior você não estiver falando a verdade...

— Entendi onde você quer chegar. Um bêbado mulherengo tem o perfil de assassino, não é? — Jackson vociferou e levantou-se. Naquele momento, o semblante juvenil de garoto rebelde foi substituído pelo de um homem irado. — Quer saber o que acho dessas acusações? Vá para o inferno, Armond. E leve Gabriel com você.

— Jackson! — Armond gritou quando o irmão saiu da sala batendo a porta.

Decididamente aquela não tinha sido a melhor maneira de abordar o irmão. Ele tinha todo o direito de estar furioso, pois merecia a confiança ao menos daqueles com quem convivera desde criança. Quando a porta do escritório se abriu novamente foi para que Hawkins entrasse:

— Pelo que pude perceber, lorde Jackson não vai ficar para o banho que eu estava por preparar. Ele acaba de deixar a casa.

— Pode deixar que eu tomo no lugar dele — Armond disse, pensando que mais tarde pediria a Gabriel que fosse atrás de Jackson. Com sorte, o caçula teria voltado para o campo. Com os dois irmãos fora do caminho, seria mais fácil concentrar-se nos problemas. Como Rosalind, por exemplo, e os problemas que o casamento trouxera para dentro de sua casa.

Rosalind estava dormindo quando Armond foi vê-la. Ela havia trocado de vestido, os cabelos negros caíam como um rio escuro e caudaloso sobre os lençóis. Os cílios escuros contrastavam com a pele clara do rosto. Ali estava o retrato perfeito da incoerente mistura da inocência com a tentação.

Os lábios entreabertos sussurraram-lhe o nome em um convite silencioso. A vontade de beijá-la tomou-o por completo. Sem mencionar que seus dedos tiveram vontade de desabotoar os minúsculos botões que desciam do pescoço até abaixo dos seios. Ele estava quase sucumbindo ao desejo de deitar ao lado da mulher e passar o resto da tarde, e se possível, o resto dos dias fazendo amor.

E antes que a volúpia ganhasse a batalha contra a razão, Armond virou-se e seguiu para seu quarto.

Conforme prometido, Hawkins havia deixado o banho preparado à sua espera. Sentir a água quente envolvendo toda a tensão serviu apenas como afago diante da vontade que tinha de possuir Rosalind, e embriagar-se na doce temperatura entre aquelas pernas bem torneadas. Desde a manhã quando tinha vislumbrado as coxas por baixo da toalha, não conseguia pensar em outra visão mais enternecedora, tanto que a imagem tomou conta de seus pensamentos durante o dia todo.

Qual seria a sensação de ter aquelas pernas envolvendo seu quadril? Impossível não imaginar como seria dominá-la e em seus braços esquecer-se de todos os tremores que o afligiam.

De onde estava, foi possível ouvir Gabriel sair atrás de Jackson, que esperava, tivesse rumado para o campo.

Agora a casa seria só dele... bem quase.

Terminado o banho, ele espiou pela porta e viu que Rosalind ainda dormia profundamente. Uma forte vontade de abraçá-la para protegê-la o invadiu. Naquele momento prometeu que nunca mais permitiria que qualquer homem a maltratasse.

Contudo era irônico imaginar que ela corria muito mais perigo a seu lado do que ao lado do irmão cruel. Não, aquilo não aconteceria de novo. Havia se tornado mestre no autocontrole. Ele podia impedir o amor de se apoderar do coração, garantindo que o que sentiam um pelo outro não passasse de uma forte atração física.

Mesmo sabendo que travaria um eterno conflito entre a razão e os sentimentos verdadeiros, deveria seguir daquela forma. Caso contrário, não conseguiria protegê-la das conseqüências de atos impensados.

Rosalind não estava dormindo. Com os olhos ligeiramente abertos, ela observava Armond por entre os cílios. Viu quando ele tirou a camisa e a caminho do quarto ao lado, desabotoou as calças e livrou-se das botas. Jamais havia visto um homem tão perfeito quanto aquele. Era bem verdade que sua experiência em ver homens seminus não era vasta, mas algo lhe dizia que o que tinha diante dos olhos era de fato um homem único.

Quando o vira pela primeira vez, lembrou-se de tê-lo comparado a um gato selvagem: elegante e poderoso. Desde então observava os músculos bem delineados sobre o tecido fino da camisa, sempre que se encontravam, fazendo um contraste maravilhoso com a pele bronzeada.

Lembrou-se também dos inúmeros suspiros de encantamento sempre que se imaginava ao lado dele. E agora, pensar que o sonho tornara-se realidade, transformando aquele deus grego em seu marido...

Mas, ao ficar mais desperta, recordou-se que Armond não lhe pertencia e para que continuasse senhora de sua razão, era melhor convencer-se do doloroso fato. Ele fora muito claro ao estabelecer que manteriam apenas contato cordial, nada de dividir emoções. Entretanto, a emoção foi a responsável por mantê-la de olhos bem abertos quando ele finalmente livrou-se das calças, deixando à mostra as pernas delineadas pelas sombras dos pêlos. Ao imaginá-lo correndo, com o sol iluminando ainda mais o corpo exuberante, ela precisou respirar fundo para conter o desejo que tomava conta do seu corpo inteiro.

Enquanto permitia-se explorar com o olhar atento cada centímetro do corpo de Armond, ele se virou exibindo as costas largas. Desejou tocar cada linha daquela musculatura, até tocar as nádegas igualmente firmes.

Ainda estudava os detalhes, quando ele virou-se de frente novamente, revelando toda a sua protuberante masculinidade. Rosalind imaginou-se gemendo alto.

— Está gostando do que seus olhos vêem?

De súbito ela o encarou e percebeu que ele sabia estar sendo observado. Rosalind sentiu o sangue subir-lhe às faces. Naquele instante todo o seu corpo reagia por ter sido flagrada em pleno deslumbramento. Os bicos dos seios estavam visíveis sob a fina camisola.

— Não — murmurou, envergonhada.

Não? Como dissera o oposto do que estava sentindo? Queria gritar que sim, que estava em pleno êxtase, observando o corpo perfeito e que dificilmente conseguiria desviar o olhar.

— Se for a sua vontade, posso continuar aqui parado, enquanto você me devora com os olhos. Mas terá que estar preparada para a transformação que esse seu olhar pode causar em mim.

Sabia ao que ele se referia, mesmo assim, continuou encarando-o e estranhamente achando natural que assim o fizesse.

— Eu nunca vi um homem sem roupas antes.

— E nem verá outro que não seja eu — Armond confessou sua possessividade, mas retraiu-se no momento seguinte. — Bem, se você já terminou sua expedição, vou entrar no banho antes que a água fique gelada. A não ser que deseje mais alguma coisa.

Tinha plena consciência do que desejava, porém limitou-se a dizer:

— Não, já terminei, obrigada.

Rosalind virou-se e pregou os olhos no teto, pensativa. Mal podia acreditar que acabara de agradecer ao marido pela exibição. Sentiu-se a mais tola das mulheres. De onde estava podia ouvi-lo banhar-se. Oras, por que ele não fechara a porta?

Imaginando que ele fizera com o propósito de chamar a atenção, resolveu levantar. Diante do espelho, arrumou o cabelo e percebeu que dali também podia vê-lo na banheira.

Foi então que pensamentos libidinosos invadiram sua mente de novo. Gotas de água desciam formando pequenos riachos nas linhas entre os músculos das costas. A pele brilhava com a umidade e o vapor subia pesado ao redor do corpo viril, fazendo-a tremer de desejo por compartilhar daquele banho. Armond estava com as pernas dobradas, deixando à mostra parte das coxas.

E pensar que estivera naquela mesma banheira...

— Já que você não consegue tirar os olhos de mim, que tal se ensaboasse minhas costas? — Armond surpreendeu-a com a pergunta.

Ora, como ele sabia que ainda o estava observando?

— Como? Eu não estava olhando, estou ajeitando minhas coisas na cômoda.

— Posso ver o que está fazendo.

Curiosa, Rosalind entrou no quarto ao lado e notou que havia outro espelho, posicionado convenientemente para que ele pudesse vê-la também.

Desta vez optou por não se mostrar envergonhada e corajosamente aproximou-se da banheira.

— Onde está o sabão?

Armond não se virou, apenas estendeu a barra, aquela mesma que rescendia o perfume tão característico dele.

Rosalind começou a deslizar as mãos pelas costas largas, sentindo um extremo prazer em tocá-lo.

— Qual é a sua maior curiosidade em relação ao meu corpo, Rosalind?

O tom grave de voz afagou o coração inseguro, derrubando algumas reservas, mas ela ainda estava presa para poder expressar-se livremente.

— Não estou curiosa — mentiu, enquanto ensaboava os ombros.

— Mentirosa — ele acusou em um sussurro. — É natural que tenha vontade de explorar o desconhecido. Fique à vontade...

Rosalind sorriu. Não, não cairia naquele truque.

— Se eu aceitar o convite estarei permitindo que faça o mesmo comigo, não é?

— Não farei nada que não seja de sua vontade. Já disse que a escolha é sua, o que não interfere na sua exploração.

Rosalind respirou fundo, queria muito acreditar no que acabara de ouvir, assim poderia continuar a conhecer cada centímetro daquele corpo adorado.

— Não está certo.

— E por que não? Somos casados — Armond respondeu dando de ombros.—Nada do que fizermos entre essas quatro paredes está errado.

Por um breve momento, ela esqueceu-se de que eram marido e mulher. Àquela altura os preceitos morais não se aplicavam mais a eles. No entanto, não eram as barreiras estabelecidas que a impediam e sim as que seu coração erguera.

— Acho que não seria justo — ela arriscou. — Não estou pronta para consumar nosso casamento dessa forma. Tocá-lo pelo simples prazer de brincar ou...

— Provocar — ele completou. — Você não está pronta para os jogos do amor.

— Como assim?

Armond riu maliciosamente, deixando-a mais intrigada ainda.

— Sente-se em frente a mim que vou lhe mostrar. Rosalind duvidou que sua ousadia chegaria a tanto.

— Jura que posso fazer o que quiser e que você não exigirá nada em troca?

— Impossível. Quero fazer amor com você agora. Mas, sim, juro que refrearei meu desejo até que esteja pronta. Tenho um impressionante autocontrole, caso contrário, eu já a teria possuído naquela noite do baile de Greenley.

A lembrança de como o desejara e não fora correspondida doeu como um tapa em seu rosto delicado. No entanto, naquela noite só tinha em mente fugir de Franklin e de certa forma ele havia lhe estendido a mão. Mas ajudou-a a fugir de um cárcere para outro, o de um casamento sem amor.

Além do mais, irritava-a profundamente aquela presunção de autocontrole. Era como uma ofensa, já que ela própria não continha o desejo e a paixão que a consumia.

Ao menos agora podia fazer exatamente o que tinha vontade. Por isso, levantou-se e postou-se na frente dele. Os olhares se encontraram e no mesmo instante estabeleceu-se o vínculo intenso. Pelo brilho dos olhos claros, ela percebeu que a atitude de enfrentá-lo o surpreendeu.

Com vagar, ela sentou-se na beirada da banheira e deixou as mãos curiosas ensaboarem o tórax ofegante. Aos poucos, ela permitiu que a ponta de seus dedos massageassem os mamilos dele, e com um suspiro de prazer, percebeu-o reagir ao seu toque. Os músculos do peito contraíram, evidenciando a trilha de pêlos escuros que cortava a pele bronzeada, insinuando-se para a virilha.

Rosalind sucumbiu à força de seus devaneios e seguiu com mãos provocantes a trilha até onde os pêlos se tornavam mais espessos. Nesse instante o brilho do olhar de Armond ficou mais intenso, evidenciando seu desejo mais íntimo.

Ela mergulhou a mão na água, ainda titubeante sem saber se teria coragem o suficiente para tocá-lo mais intimamente. Mas a proximidade e a vontade de saber como seria a misteriosa textura que denotava o peso da masculinidade, fez com que ela se despisse de pudores e deslizasse a mão pelo membro rígido.

Fechou os olhos, deliciando-se com a pele aveludada. Percorreu a extensão toda, detendo-se na ponta macia. Armond gemeu arqueando o corpo, sem perder o contato visual.

— Estou machucando? — ela perguntou inocente, ao perceber a tensão no maxilar dele, os dentes cerrados já não expressavam mais o sorriso maroto que se divertia com sua curiosidade.

— Você me leva à loucura. Perco a razão com a sua presença...

Aos poucos a distância que os separava foi se estreitando até que as respirações se mesclaram em um mesmo ritmo. Sem resistir à boca feminina tão próxima, Armond puxou-a pelo pescoço e tomou-lhe os lábios com paixão. O perfume do sabão cedeu lugar à essência dos corpos combinados, o desejo transcendia-se voluptuosamente.

As línguas se tocavam, enroscavam-se numa mistura de sabores. Rosalind estava tão envolvida que não percebeu quando ele desabotoou os botões da camisola, puxando-a até a cintura. Só percebeu-se invadida quando mãos fortes tomaram-lhe os seios, acariciando primeiro a pele com insinuantes movimentos circulares até deter-se nos mamilos, beliscando-os delicadamente até deixá-los rijos.

A essa altura a boca quente já deixava um caminho de beijos rápidos em seu pescoço. Com a urgência dos amantes, ela arqueou o corpo, oferecendo-se, ficando nua e pronta para sentir o prazer que ele estava disposto a proporcionar.

— Adorável... — Armond disse enquanto mergulhava alternadamente em um seio e outro, sugando os mamilos.

De repente ele alcançou a mão delicada, impedindo-a de continuar o movimento alucinante que vinha fazendo em seu membro.

— O que está fazendo comigo? — perguntou, afastando-se para encará-la.

— Não entendi... — ela respondeu confusa.

— Você já aprendeu o suficiente para abalar minhas estruturas. É melhor parar agora.

O que ele queria dizer com aquilo? E por que parar quando seus seios ainda doloridos aguardavam para serem ainda mais acariciados? Doce a ilusão de achar que por estar no controle da situação, conseguiria frear as próprias emoções. Rosalind percebeu que caíra na própria armadilha da sedução. Mal sabia que ao tocá-lo, sentiria também o próprio corpo ansiar por ser explorado.

Assustada, tirou as mãos da água, suspendeu a camisola, abotoando-a rapidamente:

— Desculpe-me — ela sussurrou e saiu correndo para o outro quarto.

 

Armond resistiu ao desejo de irromper no quarto de Rosalind e terminar o que haviam começado. Em vez disso, preferiu vestir-se e sair de casa.

De longe, viu que Franklin deixava a cocheira e decidiu segui-lo. A noite já estava alta, mas não era de se estranhar que ele estivesse se dirigindo a Covent Garden, ponto de prostitutas da cidade.

Armond descobrira, fazia oito meses, que Bess O'Conner freqüentara aquela mesma região. Ele tinha fortes suspeitas de que a última mulher que fora achada em seu estábulo também trabalhava nas ruas.

Um pouco adiante, o coche de Franklin parou em uma esquina onde quatro mulheres estavam paradas. Uma delas usava um vestido bem curto, revelando as coxas esbranquiçadas, uma indumentária típica para mulheres daquela profissão.

Armond fechou os olhos, concentrando-se em ouvir o que diziam:

— Está procurando companhia, querido? — uma das mulheres perguntou a Franklin.

— Estou sim, mas não a sua. Quero aquela morena de vestido vermelho. Ela faz mais o meu gênero.

— Ela é esquelética — a mulher contra-argumentou. — Minhas formas são bem mais generosas. Acho que os homens preferem o meu corpo àquele monte de ossos. Comigo você tem mais o que segurar, amor.

— Tome aqui uma moeda para fazer o que peço. Chame a morena e seja rápida.

Um pesado silêncio se seguiu e Armond apertou os olhos para conseguir enxergar no escuro a mulher que se aproximou da carruagem de Franklin.

— Molly disse que você está interessado em mim — disse ela, olhando por cima dos ombros. — Tenho uma cama...

— Não será necessário — Franklin a interrompeu. — Vamos a um lugar especial.

A moça colocou as mãos nos quadris, contrariada.

— E como você espera que eu volte? Não quero andar até a cidade...

— Não se preocupe, eu arrumo um jeito de trazê-la de volta. Agora, ande, suba logo.

Armond seguiu o coche a uma distância segura para não ser visto. Onde quer que Franklin estivesse levando aquela mulher, era o lado oposto de sua casa. A vizinhança ficava pior na medida em que avançavam. Se não estivesse com a atenção voltada para o coche, Armond teria notado que ele próprio estava em perigo. Mas quando percebeu, era tarde demais.

De repente, cinco homens surgiram das sombras e partiram para cima dele. O cavalo de Armond empinou e enquanto ele tentava controlar o animal, um dos homens puxou-o pela perna, fazendo-o cair no chão.

Na queda, ele bateu a cabeça em uma pedra.

— Pegue a bolsa de moedas. — Ouviu um homem dizer. — Vamos aproveitar para tirar mais alguma vantagem depois de tanto trabalho.

Mãos pesadas buscaram nos bolsos de Armond que não estava totalmente consciente para impedi-los. Os rostos daqueles que o atacaram ainda estavam fora de foco por conta da pancada na cabeça, mesmo assim ele reuniu forças para agarrar um deles pelo pescoço. Depois, com o punho fechado conseguiu desferir um soco no nariz do agressor e imediatamente sentiu o sangue jorrar em suas roupas. O homem levantou-se cambaleando.

— Diabos, ele quebrou meu nariz!

O cheiro e o gosto do sangue agiu estranhamente em Armond, dando-lhe forças para se reerguer e livrar-se dos outros quatro atacantes. Não demoraram muito para formar um semicírculo à volta dele, como se fossem lobos famintos.                                                            

— Segure-o pelas costas — um deles gritou para o outro. Armond virou-se rapidamente, acertando o pé na cabeça do agressor. O bandido foi ao chão. Com agilidade impressionante, virou-se para os outros dois, levantou os punhos e aguardou o ataque.

— Você viu a agilidade do homem? — um dos ladrões comentou. — Nunca vi um homem se movimentar tão rapidamente quanto este.

— Peguem-no — alguém gritou.

Dois homens foram de encontro a Armond, enquanto um outro, após se recuperar, prendeu-lhe os braços por trás. Armond levou um soco no maxilar, mas lançou a cabeça para trás com força suficiente para atingir o homem que o segurava, que gemendo de dor, soltou-lhe os braços.

Com os pulsos livres, ele acertou o estômago de um, fazendo-o perder o ar. Quando o outro tentou atacá-lo, com um golpe rápido de pernas, ele passou uma rasteira, derrubando-o.

Armond sentiu o sangue pulsar em suas veias, fazendo-o lutar como nunca houvera feito antes. Todos os seus sentidos estavam aguçados ao máximo, a ponto de proporcionar a nítida sensação de poder ler a mente dos agressores. Novamente em posição de ataque, esperou ser agredido outra vez. Só não esperava que os homens fossem bater em retirada.

— Santo Deus. Olhe os olhos dele! Nunca vi nada parecido.

Armond não teve tempo de imaginar como estava encarando aqueles homens, pois de repente, uma pedra atingiu sua cabeça e tudo se transformou em total escuridão.

 

Rosalind ocupava-se em prender o cabelo quando notou as marcas. Aproximando-se do espelho, afastou a mecha de cabelo que cobria seu pescoço e notou aquelas manchas estranhas. Eram como se fossem duas pequenas pintas vermelhas que se destacavam na pele alva. Poderiam ser marcas de dentes, mas eram muito pequenas. Observou mais atentamente e concluiu que eram marcas de dentadas de um cão talvez.

Lembrou-se de como Armond beijara avidamente seu pescoço na noite anterior. A sensação que sentira voltou com a mesma intensidade, fazendo-a corar.

Depois da intimidade compartilhada na noite anterior, esperava que Armond invadisse seu quarto, exigindo os direitos de marido, mas não foi o que aconteceu.

Na verdade, não o via desde que adormecera, esperando por ele.

A primeira coisa que fez ao acordar foi fixar os olhos na porta ainda trancada, depois de um breve silêncio, colou o ouvido na madeira, mas não ouvindo nada.

Ainda indecisa, colocou a mão na maçaneta, girando-a bem devagar para não fazer barulho. Em seguida entrou no quarto e viu que o marido não estava ali.

A banheira já havia sido removida, a cama arrumada e intacta. Procurando uma proximidade maior com Armond, ela sentou-se à beirada da cama. Imaginou que não demoraria para dividir o leito com ele. Depois de senti-lo tão vulnerável em sua mão e perceber através da intensidade daquele olhar, que provava que o desejo não se limitava somente a sexo, Rosalind entendeu que o casamento não demoraria a se consumar.

Logo lembrou do corpo viril e sentiu o sangue aquecer seu corpo por inteiro. Naquele momento, seu maior desejo era sentir a masculinidade latejante pressionada contra suas coxas.

Levantando-se da cama, esticou a colcha, tirando assim a marca de sua presença dali. Depois olhou em volta, tocou os objetos de barba e outros itens pessoais que tanto lembravam o perfume de Armond.

De repente, uma batida na porta e Hawkins entrou no quarto.

— Bom dia, lady Wulf— ele cumprimentou-a sem alterar a expressão do rosto por encontrá-la ali. — Vim para dizer a lorde Wulf que o café da manhã está servido.

— Ele não está lá embaixo?

— Não, milady — Hawkins respondeu, franzindo a testa. — Eu não o vejo desde ontem à noite, quando saiu de casa.

— Armond tem o costume de fazer a própria cama? — Rosalind quis saber.

— Muito raramente, milady.

Os dois se entreolharam sabendo que, em vista das evidências, Armond não havia dormido em casa. Rosalind ainda não conhecia os costumes do marido para saber se era comum ele pernoitar fora ou se deveria ficar preocupada pelo comportamento inusitado. De qualquer maneira, como esposa deveria mostrar-se preocupada, pois, se não estava ali, estaria na cama de quem?

— O café está pronto, não é? — inquiriu, quebrando o silêncio pesado que se abateu no quarto.

— Sim, milady. A senhora vai descer ou prefere que eu traga uma bandeja aqui no quarto?

— Vou descer.

Rosalind seguiu Hawkins pelo corredor. Ao entrar na sala de jantar, a esperança de encontrar Armond ali como passe de mágica, esvaiu-se. O lugar à cabeceira da mesa estava vazio. Procurando agir normalmente, sentou-se e começou a se servir, embora não estivesse com fome alguma.

Depois de alguns minutos, Hawkins atravessou a sala.

— Lorde Wulf já chegou?

— Ainda não, milady — o mordomo respondeu, erguendo uma sobrancelha, mas não demonstrando qualquer sinal de preocupação.

Rosalind levantou-se, desistindo de comer. Enquanto Armond não aparecesse não conseguiria digerir nada. De volta ao quarto, tomou a cesta de costura, com esperança de distrair-se com os bordados.

 

Armond acordou vagarosamente confuso e com a cabeça latejando. Não conseguia se lembrar de onde estava e nem como fora parar na cama. Aliás, não se recordava como chegara em casa na noite anterior. Ao se virar, deparou-se com Rosalind dormindo de costas para ele.

O que ela estaria fazendo em sua cama? Tocando-a no ombro nu, tentou acordá-la:

— Rosalind?

Ela não respondeu e ele notou como sua pele estava fria. Sentou-se na cama e virou o corpo da mulher. Assustou-se ao deparar-se com um par de olhos vidrados. Um veio de sangue escorria pela boca, terminando no colo, passando pelo queixo tomado por um enorme hematoma.

— Meu Deus!

Aquela não era Rosalind. Apavorado, olhou em volta e percebeu que estava em um quarto estranho. Não havia nada além da cama onde passara a noite ao lado de uma mulher .morta! Imediatamente pulou da cama, sentindo uma forte pontada na cabeça.

Olhando em volta mais uma vez, tentou reconhecer o lugar e lembrar como fora parar ao lado daquela desconhecida. Tornou a observar a mulher, nua com o corpo parcialmente coberto por um lençol.

De repente os acontecimentos da noite anterior voltaram à sua mente. Havia seguido Franklin até Covent Garden, e o vira conversar com uma prostituta... uma mulher, tal como a que jazia ali.

Ao passar a mão na cabeça percebeu o galo que se formara e recordou-se da luta com os ladrões. Ao apalpar os bolsos, percebeu que haviam levado sua carteira. Um daqueles homens o atingira fortemente com uma pedra provavelmente.

Um movimento do lado de fora da casa chamou sua atenção. Foi até a janela e viu que estava no segundo andar de uma casa abandonada. No jardim, havia um homem, que seguido por um casal dirigiam-se para a entrada.

Armond tentou abrir a janela, mas estava emperrada. Fechou os olhos e concentrou-se em ouvir a conversa dos três:

—A casa precisa de uma reforma. É por isso que o aluguel está barato. Acho que é exatamente o que vocês estavam procurando. Nada que uma boa faxina e um pouco de tinta não resolva.

—A vizinhança não me parece boa — a mulher comentou. — Não quero viver com medo de ser assaltada.

— Ora, Emma, não é tão ruim assim — replicou o homem mais moço. — Aqui teremos muito mais espaço do que todos os outros lugares que já vimos.

Armond ouviu um barulho de chaves e a porta da frente sendo aberta.

— Vejam só, a porta da frente nem está trancada — comentou o senhor com um riso nervoso. — Devo ter esquecido de trancá-la depois da última visita.

Armond sabia estar em apuros, pois não demoraria muito para aquelas pessoas subirem e encontrá-lo ali com uma mulher morta. Em desespero, tentou abrir a janela novamente, sem sucesso.

— Há dois quartos lá em cima — dizia o senhor. — Acho que um deles será perfeito para o bebê.

Ouviu-se o som do ranger da madeira da escada.

 

— Onde está meu irmão?

Mary ficou surpresa ao encontrar Rosalind parada à porta.

— Ele está no escritório, lady Wulf. Mas a senhora não deveria estar aqui sozinha.

— Preciso falar com ele — Rosalind anunciou, abrindo caminho até a saleta onde Franklin deveria estar.

A tarde já havia caído e Armond ainda não voltara para casa. Rosalind estava com o estranho pressentimento de que algo grave havia acontecido ao marido. E o maior suspeito pelo desaparecimento era certamente Franklin.

Ao abrir a porta com um empurrão, deparou-se com o irmão estudando alguns papéis.

— O que você fez com Armond? — exigiu saber. Franklin limitou-se a levantar a cabeça com a maior calma.

— Que bom revê-la, irmãzinha.

— Onde meu marido está? — ela continuou inquirindo sem se deixar levar pela falsa gentileza.

Franklin saiu de trás da escrivaninha e aproximou-se.

— Eu não vejo seu marido desde que nos encontramos na manhã em que você se casou com o infeliz. Por acaso tem noção da situação complicada em que me deixou? Mas não se importa comigo, não é?

— Não — respondeu com rispidez. — Da mesma forma como você também não liga a mínima para os meus sentimentos. Armond não voltou para casa ontem à noite. Alguma coisa me diz que você é responsável por isso.

— Ora, ora... Já está tendo problemas de relacionamento? — Franklin arqueou uma das sobrancelhas. — Fique sabendo que não tenho a menor idéia de onde esteja seu marido. Quem sabe ele não tem o costume de passar a noite na farra? Pode ser que prefira passar a noite com mulheres mais experientes do que você. Por um acaso considerou alguma dessas hipóteses antes de vir aqui me acusar? — Fez uma pausa para continuar: — Não que eu não goste da idéia de vê-lo sumido. Afinal ele roubou uma coisa que me pertence.

- Eu nunca pertenci a ninguém — Rosalind argumentou de queixo erguido. — Muito menos a você.

Logo percebeu que agira como tola, imaginando que o irmão pudesse ajudá-la. Sem dizer mais nada, virou-se para sair, mas Franklin a interpelou.

—Você realmente não faz idéia de como estou furioso com você, não é?

Infelizmente sabia muito bem...

— Por favor, deixe-me passar. Não preciso mais obedecer às suas ordens. Daqui em diante terá que sair de suas encrencas sozinho, nunca mais vai poder me usar para nada.

— Sua vadia! — Franklin vociferou, levantando a mão para agredi-la.

Ela encolheu-se para se defender de um golpe que não aconteceu, pois o irmão congelou com os olhos estáticos.

— Se encostar um dedo nela, será a última coisa que fará na vida, Franklin.

— Armond! — Rosalind exclamou, correndo para refugiar-se nos braços dele. Ele estava sujo e com aparência horrível, mas ainda era o homem mais bonito e forte que conhecera.

— Volte para casa, querida — ele disse, sem desviar o olhar de Franklin. — Vá, agora!

— Você não é bem-vindo nesta casa, Wulf. Saia imediatamente! — Franklin gritou, baixando o braço.

— E você também não tem permissão para ameaçar a minha esposa — Armond continuou a ameaça. — Nunca mais faça isso, caso contrário eu o matarei.

Franklin gargalhou, deixando evidente sua culpa no que acontecera a Armond.

— Dormiu bem a noite passada, Wulf?

Rosalind entendeu que estivera certa ao desconfiar do irmão.

— Você matou aquela mulher! — Armond agora estava ainda mais feroz.

— Verdade? Então prove. — Franklin sorriu como se já tivesse triunfado.

— É isso que vou fazer. Você não perde por esperar. — Em seguida, virou-se para amparar Rosalind. — Venha, querida, vamos embora.

Tomou a mão da esposa, conduzindo-a para fora da sala.

Saíram em silêncio, mas a mente dela fervilhava com perguntas. Contudo, só começou a falar quando já estavam perto de casa.

— O que houve? Onde esteve a noite passada? Que mulher era essa que vocês falavam?

— Depois explico — Armond respondeu, seco. — Espere até chegarmos em casa.

Engraçado ele se referir à sua casa como sendo dela também. Poderia vir a ser um dia, mas por enquanto não era assim que ela sentia. Depois de morar por um breve período com Franklin, percebeu como era solitária e carente de uma família de verdade.

Hawkins abriu a porta assim que os ouviu chegar. Apesar de manter a expressão inalterada, Rosalind sabia do seu alívio ao ver o patrão chegar em casa a salvo.

— Preciso de uma tina de água para me lavar — Armond pediu, assim que entrou em casa. — Por favor, leve até o meu quarto.

— Imediatamente, senhor — Hawkins respondeu. Rosalind seguiu Armond escada acima. Assim que ele bateu a porta do quarto, mirou-a enraivecido:

— Já não pedi para não ir à casa de seu irmão sem que eu estivesse junto?

Ela ficou chocada com a ira do marido.

— É verdade — admitiu. — Mas eu estava preocupada com você. Imaginei que Franklin...

— Não me importa a razão que a fez ir até lá — ele a interrompeu. — Você se arriscou muito. Foi um ato tolo e impensado.

Rosalind sentiu as pernas fraquejarem depois de tantos acontecimentos seguidos. O sumiço de Armond, depois o confronto com Franklin, e agora aquela agressividade toda do marido levaram-na às lágrimas.

— Desculpe-me por me preocupar com você — disse quase num sussurro e em seguida seguiu para seu quarto, batendo à porta.

No segundo seguinte, Armond irrompeu quarto adentro.

— Se eu não tivesse chegado a tempo, Franklin a teria agredido, Rosalind. Ou quem sabe não teria feito pior. Você não percebe que estamos lidando com um bandido? Ou quem sabe até um assassino?

— Como tem tanta certeza do que diz? — Rosalind sentiu um aperto no peito. — O que aconteceu na noite passada?

— Milorde? — Hawkins interrompeu a discussão. — Aqui está a tina. Quer que eu o ajude?

Sem dirigir mais nenhuma palavra a ela, Armond virou-se e voltou para o outro quarto. Rosalind o seguiu, parando à porta ao observá-lo arrancar o capote e a camisa imunda. Gemeu quando viu vários cortes nas costas e nas mãos dele. Afinal, o que teria acontecido? Ele não tinha o direito de esconder os fatos. E antes que pensasse em ajudá-lo, Hawkins umedeceu uma pequena toalha e começou a limpar os ferimentos.

— Pode deixar que eu mesma cuido disso — Rosalind disse, tomando a toalha.

Em dúvida, Hawkins buscou um olhar de aprovação do patrão.

— Tudo bem — Armond consentiu.

Assim que o mordomo deixou o quarto, ela prosseguiu com a limpeza e com o interrogatório:

— Como você se cortou? E onde esteve a noite passada? — seguiu, sem dar tempo para respostas. — Como tem certeza de que Franklin é responsável pelos assassinatos?

Em silêncio, Armond ainda lutava para se acalmar. Até Rosalind entrar em sua vida, nunca tivera problemas em se controlar diante de situações adversas. Agora enfrentava desafios nunca antes imaginados.

— Fui forçado a me jogar do segundo andar de uma casa hoje cedo.

— Ainda bem que não se machucou muito — Rosalind comentou, piscando atônita diante do relato.

De fato, a atitude também o surpreendera, mas não tivera outra alternativa a não ser se jogar contra a janela emperrada. Por sorte, conseguira cair sobre o telhado, que cobria o andar inferior, rolar até a beirada e pular para o gramado. Por certo Rosalind aguardava por maiores explicações, porém ficou quieta enquanto, na ponta dos pés, tentava alcançar os ferimentos do pescoço. Notando sua dificuldade Armond sentou-se na beira da cama para facilitar o trabalho.

— Por que precisou pular da janela? — perguntou ela, finalmente. — Por favor, conte o que aconteceu.

A toalha roçava nos ferimentos, enquanto ele tentava reconstituir o que acontecera na noite anterior, até o momento em que havia acordado ao lado do corpo de uma mulher. Aos poucos lembrou-se de cada passo, contudo hesitou em contar a Rosalind os detalhes.

— Oh, Deus... — ela murmurou. — Não consigo acreditar. Poderiam tê-lo assassinado. Você não estava inconsciente?

De repente, Armond entendeu tudo.

— Foi uma armadilha! — exclamou. — Franklin sabia que eu ia segui-lo e contratou os bandidos. Lembro-me de ter ouvido um deles dizer que pegaria minha carteira, para ganhar um pouco mais na barganha. — Passando a mão pela cabeça, notou o galo que se formara ali. — Isso virou um jogo para ele. Ele está brincando com assassinatos!

Rosalind sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O marido estava tão bravo por ela ter desobedecido, que sequer pensou na coragem que tivera para enfrentar o homem que mais temia, e por amor a ele!

Ao mesmo tempo, Armond a estudava, imaginando que poderia ter sido ela a estar sem vida naquela manhã. Movido pelo carinho, tocou a face delicada com a ponta dos dedos, para em seguida puxá-la de encontro a seu peito. Ao afastar os longos cabelos para trás dos ombros, viu a marca.

— O que é isso em seu pescoço?

No mesmo instante, Rosalind passou os dedos sobre o machucado.

— Não sei. Talvez seja uma mordida.

— Mas, mordida de quê? — ele quis saber, afastando a mão para analisar o ferimento mais de perto.

—Acho que foi você — Rosalind respondeu num sussurro.

 

Começava a escurecer quando Armond voltou a Covent Garden. Chapman o ameaçara com a acusação de assassinato de outra mulher, então ali era o melhor caminho para começar a descobrir a verdade.

Como era mais cedo do que o dia anterior, havia mais mulheres circulando pelas ruas. Mas ele estava procurando uma em especial e se bem recordava, seu nome era Molly.

Não demorou muito até vê-la subindo a rua em sua direção. Caminhava movendo os quadris de forma sensual, expondo a coxa nua pela fenda do vestido justo. Ele esporeou o cavalo, aproximando-se. Quando ela o divisou, lançou um olhar de soslaio, piscando insinuante.

— Será que tirei a sorte grande por ser procurada por você, amor?

Armond apeou do cavalo, segurando as rédeas enquanto a mulher estreitava a distância entre eles.

— Molly? É esse seu nome, não?

— Como sabe? — perguntou, surpresa. — Não me lembro de já termos saído juntos. Como eu poderia esquecer um homem tão charmosos como você?

— Quero apenas fazer algumas perguntas.

— Lamento, mas não tenho tempo a perder. Estou trabalhando.

— Então eu pago a sua hora — Armond ofereceu, tirando a carteira do bolso do casaco.

— Se é assim... Suponho que conversar seja mais fácil do que suportar seu peso sobre mim, não que eu me importe.

Ele continuou impassível, não cedendo ao charme feminino.

— Você estava com outra mulher ontem à noite; uma morena, vestida de vermelho.

— Não acredito que um homem se interesse por aquele monte de ossos — Molly replicou, girando os olhos em desaprovação. — Minhas curvas são muito mais interessantes. Não entendo essa preferência.

— Ela foi assassinada.

Qualquer reação seria esperada, menos a risada de escárnio de Molly.

— Bem, então acredito que é uma morta-viva que vem descendo a rua agora mesmo.

Armond virou-se na direção que Molly apontava e viu outra mulher se aproximando. A morena estava com o mesmo vestido vermelho da noite anterior.

— Olá, Lily, você deveria estar morta. O que está fazendo aqui na minha esquina? — Molly perguntou.

— E quem disse que não estou viva? — Lily quis saber, apreciando Armond dos pés à cabeça.

— Eu a vi saindo com um homem ontem à noite e... — respondeu ele, visivelmente embaraçado por ter sido pego de surpresa.

— Era um cretino — praguejou Lily. — Ele me levou para dar um passeio, trouxe-me de volta e me mandou descer. Não pagou nem pela minha hora perdida.

Não seria aquele mais um truque? Franklin poderia ter presumido que seria seguido. Na certa conversara com Molly para que ela pudesse servir de álibi, dizendo que ele fora o último a ser visto com a vítima. E a armadilha funcionara perfeitamente. Franklin trouxera a suposta vítima de volta e escolhera outra para que fosse encontrada morta a seu lado. Não havia dúvida de que se tratava de um ardil.

— Bem, deve ter ocorrido algum engano — desculpou-se e, tirando algumas moedas do bolso, distribuiu entre as duas. — Desculpem-me por incomodá-las.

No caminho de volta, imaginou no trabalho que Franklin estava tendo para incriminá-lo. Mas além do fato de ter se casado com Rosalind, por que mais ele o odiaria tanto? De repente teve uma idéia. O próximo passo para desvendar o mistério que o envolvera na noite anterior seria procurar as casas para alugar ou vender nos arredores de Londres.

Rosalind estava na sala de visitas, tentando ler um livro, quando ouviu um barulho vindo da porta da frente.

— Boa tarde, meu senhor — Hawkins cumprimentou. — A sra. Wulf está na sala. Devo lhe trazer algo?

— Um brandy, por favor — Armond pediu. — Aceita um cálice também, Rosalind?                                

Afora ocasionais taças de champanhe, ela nunca provava outras bebidas alcoólicas.

— Acho que vou experimentar — disse ela ao mordomo, que assentiu com um sinal de cabeça e deixou a sala.

Armond deixou-se cair em uma poltrona, e esfregou o rosto com as mãos.

— Franklin cobriu todas as pistas deixadas ontem à noite.

Rosalind fechou o livro, colocando-o na mesinha ao lado. O fogo da lareira aquecia o ambiente e ela havia tirado os chinelos, colocando os pés no sofá.

— O que houve em Covent Garden? Você se encontrou com a mulher que procurava?

— Encontrei as duas e também conversei com a que supostamente estava morta.

— Como assim?

— A uma certa altura da noite, Franklin a deixou em Covent Garden e tomou outro rumo. Acredito que em algum outro ponto da cidade, ele pegou uma mulher morena, matou-a e depois deixou-a ao meu lado.

— É muito trabalho para um homem só, não? — Rosalind quis saber, ajeitando-se no sofá.

— Foi exatamente o que pensei — comentou ele, passando os dedos pela cabeleira farta.

Hawkins entrou na sala trazendo uma bandeja com dois cálices cheios de um líquido cor de âmbar, deixou as bebidas ao lado de Rosalind e saiu.

Armond levantou-se, pegou os dois cálices e estendeu um à esposa.

— E agora? O que você pretende fazer? — indagou ela, levando o cálice à boca e tossindo ao tomar o primeiro gole. Armond sorriu. — Nossa, isso queima.

— Não, querida, aquece — ele a corrigiu, sentando-se a seu lado. — Preciso sair para tomar algumas providências amanhã, mas não gosto de deixá-la sozinha. Especialmente com um vizinho como Franklin.

— Ah... — Rosalind lembrou-se do convite que havia colocado dentro do livro. — A condessa de Brayberry convidou-me para um chá amanhã.

Armond observou-a atentamente e estreitou a distância que os separava.

— Já lhe disse o quanto a desejo?

Rosalind deu uma tossidela. Agora que o assunto assassinato tinha se esgotado, voltavam a falar de sedução... e como ele era bom naquele assunto.

— Devemos aceitar o convite para o chá amanhã? — quis saber, numa tentativa de mudar de assunto.

— Sim, acho que você estará em segurança lá — Armond sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto mordiscava o lóbulo da orelha.

Rosalind tremeu de prazer ao senti-lo alternar beijos rápidos pelo pescoço, rosto, colo... até concentrar-se em apalpar os seios fartos. Seus mamilos enrijeceram, enquanto ele se ocupava em desabotoar os minúsculos botões do vestido.

Não demorou muito para que Armond conseguisse desabotoar o vestido inteiro, para depois encará-la. Não houve tempo para perguntas, pois ele a beijou em total volúpia. O restinho de brandy que sobrou nos lábios dos dois, misturou-se à saliva de cada um, transformando-se em uma bebida única, doce como o mel, que apenas começaria a saciar a sede pelo prazer.

Armond puxou-a para si, amoldando os corpos e aprofundando ainda mais o beijo com uma língua afoita. Foi como se o calor da lareira, que antes apenas amornava a sala, se transformasse em fogo ardente.

Ele era mestre na arte de beijar, de fazer brotar em Rosalind seus desejos mais primitivos. Com vagar, prendeu-lhe o lábio inferior, sugando-o, para libertá-lo em seguida, numa trégua calcinante.

Rosalind estava tão entregue às carícias que não percebeu quando mãos hábeis e rápidas puxaram seu vestido.

— Armond — sussurrou-lhe ao ouvido. — A porta está aberta...

Ele levantou-se para fechar as portas da sala, enquanto Rosalind ria baixinho.

— Onde estávamos mesmo? — perguntou em tom insinuante e voltou a trilhar os ombros e o colo ofegante com a ponta da língua, divertindo-se ao ver a resposta nos ligeiros espasmos.

— Degustar seu sabor é como provar o néctar dos deuses. Quero sentir você inteirinha...

E assim Rosalind deixou-se beijar nos seios sobre a camisola, arqueando o corpo para facilitar o caminho de um seio a outro, oferecendo os mamilos para serem beijados.

— Quero vê-la nua.

Foi então que ela se lembrou que já o vira nu e que ficara extasiada com o corpo perfeito. Será que ele também a admiraria da mesma forma?

Como se para sanar suas dúvidas, Armond a beijou novamente. E ela esqueceu o que havia pensado. O fato é que não conseguia concatenar as idéias quando era tomada daquela forma. Bastava um simples toque para que a razão ficasse esquecida; para prevalecer a indiscrição do coração, que já não se importava mais em ocultar o seu pulsar.

Enquanto estava sedada pelas carícias loucas, Armond tirou-lhe também a camisola, aprisionando os seios com as mãos. A partir dali, seguiram-se carícias ainda mais voluptuosas. As mãos que acariciavam e circulavam os mamilos operavam milagres na libido feminina.

Quando Rosalind gemeu de prazer, ele entendeu que ambos mereciam mais e, de súbito, tomou-a nos braços, fazendo-a sentar em seu colo. Como que preparada pelo instinto para o que viria, ela virou-se de frente para ele, tratando de acomodar suas pernas lado a lado nas coxas musculosas.

Por um laivo de lucidez ainda pensou em ressaltar a indecência da posição, porém Armond não lhe deu tempo para expressar nada além do prazer de elevá-la à altura da boca pecaminosa e continuar a explorar com a língua a pele alva dos seios.

Ela deixou os receios de lado e ofereceu-se inteira, tomando-o com força, guiando a boca ávida a alternar-se de um mamilo a outro, esfregando os seios na pele áspera do rosto tão amado.

Afoito para prová-la inteira, Armond permitiu que ela sentisse a força de seu desejo bem próxima ao ventre. Ao percebê-la em total arrebatamento, beijou-a com lascívia. Aquela altura, ela não mais era dona do próprio corpo, que agia sozinho, dançando num insano ir e vir de quadris na tentativa de acomodar o membro rijo.

Entendendo a súplica do corpo feminino, Armond insinuou os dedos por entre a calçola, atingindo-a em seu ponto mais sensível.

A frustração deu lugar ao êxtase de ser tocada tão profundamente. A reação instintiva de fêmea foi de mexer os quadris, ajudando o movimento dos dedos hábeis.

— Vamos, querida, liberte-se — sussurrou ele, aumentando a pressão dos dedos.

A voz gutural serviu como a derradeira carícia para levá-la às alturas. Com as unhas cravadas nas costas de Armond, ela experimentou sensações únicas, intensas, jamais sonhadas. Murmurando ofegante, aninhou-se a ele como se o corpo musculoso fosse seu único contato com a realidade e deixou-se descansar da viagem enlevada da qual acabara de chegar.

— O que foi isso? — perguntou sem entender o que havia acontecido.

—Você conheceu o prazer na acepção mais pura da palavra.

Qual seria a estranha magia que ainda fazia seu ventre latejar? Apesar de terem partilhado um momento tão magnífico, Rosalind sabia que faltava algo mais.

Amor, pensou ela, na busca por uma explicação. É isso que falta entre nós.

Armond levantou-se e segurou-a no colo.

— O que está fazendo?

— Vou levá-la para a cama.

Rosalind sentiu o coração pulsando em descompasso, enquanto Armond a carregava para o quarto. Imaginou que havia chegado o momento de ele querer consumar o casamento. Afinal, provocara-o demais, permitindo toda sorte de liberdades. Agora era tarde para chorar, embora sua vontade fosse essa mesmo. Armond já havia provado que o ato de dar e receber prazer entre um homem e uma mulher poderia ser a coisa mais extasiante do mundo. Mas ainda restava a curiosidade de saber como seria aquela entrega se de fato existisse amor. Talvez nunca descobrisse...

Depois de acomodá-la gentilmente na cama, Armond curvou-se para beijá-la. Ainda entorpecida pelo toque dos lábios quentes, Rosalind imaginou se ele não se despiria e se aconchegaria a ela sobre as cobertas.

— Boa noite, querida — disse ele formalmente, já a caminho do outro quarto.

— Você vai me deixar aqui sozinha? — Rosalind quis saber, arqueando uma das sobrancelhas.

— Quer que eu fique?— Armond virou-se no mesmo instante, dependendo de uma resposta para seguir com o próximo movimento.

— Não... — ela titubeou. — Digo, sim... Bem, não sei!

— Então, quando decidir, estarei no quarto ao lado. — Saiu, fechando a porta ao passar.

Rosalind ficou olhando para o vazio que a presença dele deixara. Entretanto, depois de alguns minutos naquele estado meio hipnótico, começou a sentir o sangue ferver de raiva. Teve vontade de invadir o quarto ao lado e exigir que ele a possuísse, consumando o casamento de uma vez por todas. Aquela altura já havia rompido as barreiras, pouco se importando se estava pronta para o ato ou não.

De repente, a razão impediu-a de prosseguir. Lembrou-se de que ele a avisara de que não jogaria limpo naquela questão. E foi exatamente o que fizera, invertendo as posições. Passara a agir como o rejeitado, esperando que ela tomasse a iniciativa.

— Muito esperto — murmurou. — Mas não o suficiente... Reunindo toda a coragem, ela se levantou e com passos firmes seguiu até a porta, abrindo-a sem pensar duas vezes. Armond estava se lavando sem camisa. Ao vê-la entrar, endireitou o corpo, permitindo que a água escorresse pelos músculos do peito, delineando-os. Passada a surpresa, pegou uma toalha e enxugou o rosto.

— Precisa de alguma coisa?

Ainda entretida em observá-lo, ela suspirou antes de responder:

— Eu... esqueci de dizer boa noite... meu marido.

Dizendo isso, voltou para o quarto, apoiando o corpo trêmulo de encontro à porta fechada, blasfemando contra a tolice que acabara de cometer.

 

Armond acordou de péssimo humor. Não dormira quase nada na noite anterior e a dor de cabeça agravava ainda mais o humor irascível. Rosalind decididamente o estava levando à loucura. Ele a desejava como jamais imaginara ansiar por algo ou por alguém. Presenciar o doce clímax que havia proporcionado a ela, seguido de murmúrios de prazer quase destruíram sua sanidade. Estava tão ansioso por possuí-la na noite anterior que a tentação havia superado os limites e por pouco a promessa feita de não ultrapassar os limites não permitidos, quase se perdera.

Depois do café da manhã, resolveu tratar de outros assuntos para aliviar a dor e a frustração da noite anterior.

Agora entrava no escritório de um corretor imobiliário. Aquele já era o terceiro estabelecimento que visitava naquele dia. Um homem magro, com os óculos apoiados na ponta do nariz e um grande molho de chaves pendurado no cinto, cumprimentou-o:

— Boa tarde, senhor. Em que posso ajudá-lo?

De imediato Armond reconheceu aquela voz. Era a mesma do corretor que estava mostrando a casa ao casal quando do incidente do dia anterior.

— Estou interessado em comprar algumas propriedades — anunciou. — O que o senhor teria disponível para mostrar?

Por trás das lentes, os olhos do corretor reluziram com o brilho da ganância.

— Sente-se, por favor — ele convidou, indicando uma cadeira à frente da escrivaninha já em estado de virar lenha de lareira. Em seguida, abriu uma gaveta, de onde tirou um enorme livro. — Tenho várias propriedades à venda, como pode ver — continuou, mostrando a lista dos imóveis. — Precisamos apenas restringir a busca. Devo procurar por bairro, preço, ou...

— Procuro algo do lado leste — especificou ele. — Não quero nada muito caro.

— Claro — concordou o homem, examinando a lista. — Tenho algumas propriedades perto da área em que está interessado. A maioria das casas está alugada a trabalhadores de fábrica. Algumas delas inclusive precisam de uma boa reforma.

— Teve alguma delas que sofreu uma queda de preço recentemente?

Armond estava certo de que o boato sobre a mulher morta já havia se espalhado. O proprietário da casa, com certeza, não lucrara nada com o ocorrido.

— Bem... — O corretor afastou uma mecha de cabelo da testa e deu uma tossidela antes de continuar. — Tenho uma casa que o proprietário está muito ansioso por vendê-la, baixou o preço esta manhã. Houve um incidente desagradável ontem. — Fez uma pausa e Armond levantou uma sobrancelha, ainda parecendo casual. — Acharam uma prostituta morta no local.

— Alguém chegou a ver o assassino?

— Não.

— É uma pena — Armond comentou, fingindo estar desolado. —Houve mais gente procurando pela casa em especial?

— Nada definitivo — o homem respondeu, meneando a cabeça. — Eu ia mostrá-la hoje a outro comprador que perdeu o interesse depois do acontecido.

Bem, até aquele ponto, Armond entendeu que não havia sido difícil para Franklin escolher uma casa para concluir seu plano e menos complicado ainda, saber se a casa seria visitada por corretores na manhã seguinte ao crime.

Agora, precisava ir até o fim e ir diretamente ao ponto que o levara até ali.

— A pessoa que perdeu o interesse na compra por acaso chama-se Franklin Chapman?

Os olhos do corretor mostraram mais espanto.

—Mesmo que fosse, eu não poderia divulgar a informação. Tenho diversos clientes que investem na compra e venda de imóveis e todas as transações são mantidas no mais absoluto sigilo.

— O senhor está certo. O Sr. Chapman é meu vizinho e sei que ele lida com esse tipo de negociação. Quis saber para evitar uma situação constrangedora entre vizinhos, fazendo uma oferta a um mesmo imóvel que ele.

— Isso quer dizer que o senhor está interessado na casa? — o corretor quis saber, já com os olhos brilhando.

— Talvez sim... —Armond respondeu vagamente, levantando-se. — Vou pensar no assunto e volto a lhe procurar.

— Está certo, Sr...

Armond saiu do escritório sem dizer seu nome e desceu a rua em direção à carruagem.

Uma hora antes de ir tratar de negócios, ele havia deixado Rosalind na casa da condessa de Brayberry. Mas antes de ir buscá-la, iria passar em uma das lojas da Bond Street e solicitar que uma costureira atendesse a esposa, pois sabia que ela havia saído de casa com poucas roupas.

— Como foi o chá? — Armond perguntou, enquanto ajudava Rosalind a subir na carruagem.

— Foi ótimo. A condessa e eu nos demos muito bem. Amélia, uma moça que conheci nos baile dos LeGrande também estava lá com a mãe e conversamos bastante.

— Fico contente que tenha se divertido. Entre uma reunião e outra que tive esta manhã, parei em uma loja da Bond Street e marquei uma hora com a costureira para tirar suas medidas. Achei que talvez quisesse renovar seu guarda-roupa.

Armond poderia ser egoísta em compartilhar sentimentos, mas em coisas materiais parecia não haver limites. Primeiro lhe dera a égua, agora um novo guarda-roupa, que ela de fato precisava e muito. Com um sorriso, ela colocou a mão sobre a dele.

— Obrigada, Armond. Não tinha idéia de como estava fora de moda. Os poucos vestidos que Franklin me deu, não eram do meu gosto, por isso não os levei quando fui para sua casa.

— Eu quero que seja feliz — Armond disse, ao entrelaçar os dedos nos dela. — Redecore a casa se quiser. Sei que a mobília é antiquada, mas como sabe, os solteiros não ligam muito para essas coisas.

Armond deu a impressão de que daria tudo o que ela quisesse... menos seu coração. Rosalind não viu muita vantagem na compensação, porém optou por não comentar nada. Mesmo porque, ainda estava tentando decifrar os próprios sentimentos por ele. Debatia-se com a idéia de amá-lo de fato. Havia algumas evidências a favor, como por exemplo, o quanto ficara preocupada quando ele não voltara para casa na noite anterior. Sabia também que tinha ciúme e que o desejava de corpo e alma. No entanto, será que a somatória dessas emoções resultaria em amor?

A carruagem passou pela casa de sua madrasta e ela olhou de relance. Só em observá-la ao longe, sentiu um frio na espinha, como se o diabo morasse ali.

Quando a carruagem fez uma curva, ela lembrou-se das instruções que havia dado a Mary. Naquele momento, foi possível ver que o lençol branco estava estendido na varanda de seu antigo quarto.

— Lá está o sinal de Mary — ela disse a Armond. — Franklin não está em casa e posso visitar minha madrasta em segurança. Será que podemos ir até lá? Preciso ver como a duquesa está passando.

— Bem, vou acompanhá-la e ficar observando de longe. Se Franklin voltar e você ainda estiver lá, vou resgatá-la num piscar de olhos.

Assim que chegou à casa do irmão, Rosalind se dirigiu à porta dos fundos e bateu. Mary veio atendê-la com um sorriso no rosto.

— Fiquei em dúvida se veria o meu sinal — disse ao fechar a porta.

— Como está a duquesa? — Rosalind quis saber.

— Infelizmente, está na mesma. Estava preparando o chá que ela toma diariamente.

— Pode deixar que me encarrego disso. Não tem sentido subirmos as duas até o terceiro andar.

— Deus a abençoe, milady. Ando com muitas dores nas pernas, acho que estou ficando velha. Se ao menos o Sr. Chapman contratasse mais alguém para me ajudar, mas agora que a senhora se foi, acredito que ele não vai mais se importar com isso.

Então Franklin não mudara, continuava avarento, cruel e, se Armond estivesse certo, assassino. Assim que a criada aprontou tudo, ela levou a bandeja escada acima.

— Veja se consegue fazer com que ela beba tudo — Mary instruiu do pé da escada. — O Sr. Chapman disse que é a única coisa que a mantém viva, e tenho de concordar. Ultimamente não consigo fazê-la tomar nenhum caldo.

— Farei o possível.

Ao entrar no quarto, viu a duquesa sentada em sua cadeira usual perto da janela, com o olhar perdido.

— Boa tarde, senhora — cumprimentou, tentando passar um pouco de ânimo pelo tom de voz. — Trouxe seu chá.

Conforme o esperado, a duquesa não demonstrou ter entendido. Ao servir-lhe o chá, Rosalind notou que o líquido não estava fumegante, e resolveu prová-lo para ter certeza de que a temperatura estava adequada. A bebida tinha um gosto exótico com forte sabor de cravo. Para certificar-se do sabor, curiosa, tomou outro gole, mas o chá realmente não era dos melhores.

Aproximando-se, colocou a xícara nos lábios frágeis da madrasta.

— Seria tão bom que tomasse um pouco. A senhora precisa se alimentar, está ficando mais fraca a cada dia.

Para sua surpresa, a duquesa bebeu todo o conteúdo da xícara, como se quisesse deixar claro que o fazia para agradar a enteada.

— Queria tanto que estivesse bem. Tenho tanta coisa para lhe contar, perguntar... Sinto falta da mãe que a senhora foi para mim. Preciso tanto dos seus conselhos, um abraço, um carinho...

A duquesa havia fechado os olhos, com certeza já caíra no sono. Com um suspiro, Rosalind caminhou até a mesa e recolocou a xícara vazia na bandeja.

— Acho que estou apaixonada... — comentou calmamente. — Bem, estou casada e deveria mesmo estar amando, não é? Mas nem todos os casamentos são resultado de um grande amor. Gostaria tanto que pudesse me explicar esse sentimento. A sensação é muito boa, mas de vez em quando me sinto tão sozinha...

De repente, lembrou-se de que Armond a aguardava para um passeio a cavalo, e animou-se em partir. A caminho da porta, pegou a bandeja, deu um beijo na testa da duquesa e saiu.

— Vou embora, mas voltarei logo. Por favor, tente melhorar. Preciso muito da senhora.

Era certo que a madrasta não ouvia sua súplica. Contudo, para sua surpresa, em um último olhar, notou que uma única lágrima descia naquele rosto sofrido e marcado pelo tempo.

Armond estava quase indo buscar a esposa quando a viu caminhando pelo gramado na direção do estábulo. Ela o viu e acenou.

Ao se aproximar, Rosalind tropeçou e ele imediatamente correu para ampará-la, mas ela logo se recompôs, alcançando-o. Os cavalos estavam selados, e Armond carregava uma cesta de piquenique.

— O que temos aí? — ela quis saber com um sorriso terno no rosto.

— Uma porção de coisas gostosas. Vamos aproveitar que está um dia lindo.

— Que surpresa ótima! Acho que não vou a um piquenique desde criança.

Quando Armond foi ajudá-la a montar, ela quase desfaleceu. Por sorte, estava ali para segurá-la.

— O que houve?

— Senti uma tontura, mas já passou — respondeu, embora ainda estivesse zonza.

Apesar da tentativa de esconder o mal-estar, Armond percebeu que ela estava muito pálida e decidiu descartar os planos do passeio.

— Vamos para casa. É melhor deitar-se.

— De jeito nenhum! — Rosalind protestou. — Não quero estragar nossos planos. Logo estarei melhor, acredite.

—Não se brinca com a saúde. Iremos outro dia. É perigoso cavalgar nesse estado.

— Mas... — E antes que terminasse a frase, suas pernas fraquejaram novamente. — Creio que tenha razão.

Armond fez menção de levá-la no colo para dentro de casa.

— Estou bem. Acho que posso andar.

— O caminho até em casa é acidentado demais. Temo que tropece novamente. Além de não estar bem, acredito que esteja muito cansada depois de tantas coisas que aconteceram nos últimos dias.

— É verdade. Estou me sentindo exausta e acho que dormir um pouco me fará bem.

Rosalind tinha o peso de uma pluma para aqueles braços fortes. Armond levou-a até o quarto, depois de sentá-la gentilmente na cama, começou a desabotoar os botões do vestido.

— Posso perguntar o que está fazendo? — ela quis saber com a voz ligeiramente modulada.

— Estou fazendo com que se sinta mais confortável...

Como não houve nenhum outro comentário, continuou com a tarefa sensual. Não demorou para as mãos fortes fazerem deslizar a roupa, desnudando a pele clara dos ombros.

— Parece que tem muita habilidade em despir uma mulher.

Ele sorriu com malícia.

— Não sou um santo. Você sabia disso quando se casou comigo.

Ela franziu a testa, contrariada.

— Aliás, é uma das poucas coisas que sei a seu respeito.

Armond ajoelhou-se e começou a tirar-lhe os sapatos. Em seguida puxou o vestido, deixando-a apenas de combinação, espartilho e uma fina anágua. Depois foi a vez de soltar os cabelos, que estavam presos em fileiras de cachos, que caíam pelas costas com um sedoso véu negro.

— Você é linda... — Sabia que não era hora para elogios, mas a emoção de dizer o que sentia se fez mais forte. A resposta veio com um sorriso.

— Você também é...

Os braços penderam ao lado do corpo cansado, foi então que Armond deitou-a na cama. A impressão foi de que Rosalind adormeceu antes mesmo de ele puxar as cobertas. Encantado com a expressão tranqüila, ficou a observar a respiração cadenciada, assumindo que estava tudo bem. Mesmo assim, tomou-lhe o pulso e, ao sentir a pulsação normal, relaxou. Porém antes de soltar o braço, Armond sentiu a visão embaçada e, de repente, suas mãos se transformaram: estavam cobertas por grossos pêlos, garras despontavam de seus dedos. Com o coração aos pulos, ele levantou as mãos para observá-las. Entretanto, a visão voltou ao normal e com ela suas mãos também.

O que estaria acontecendo? Já havia sido estranho pular da janela do quarto de Rosalind e cair sem se ferir. E a maneira como seus sentidos se aguçaram ainda mais durante a luta com os ladrões? Armond pressentiu que a maldição o rondava.

O barulho acordou Rosalind de sobressalto. Raios de luz invadiram o quarto, seguidos por um barulho ensurdecedor. Ainda sonolenta, sentiu-se desorientada, olhando pelo quarto escuro na tentativa de reconhecer onde estava. De repente, viu a silhueta de um homem, parado diante da janela. A sucessão de flashes o iluminou.

— Armond? — perguntou, assustada.

— Você está melhor? — Saindo das sombras, ele se aproximou da cama. — Está dormindo há muito tempo.

Aos poucos ela lembrou-se da vertigem que a acometera.

— Já é tarde?

— Quase meia-noite — respondeu ele ao lado da cama. — Pensei que fosse dormir até amanhã de manhã.

— A tempestade me acordou. — Um novo trovão ecoou. — Não gosto desse tempo. Tenho medo.

Armond dirigiu-se até a lareira e colocou mais lenha no fogo. No mesmo instante o amarelo das chamas dissipou as sombras do quarto, fazendo-a sentir-se melhor.

— Você não está com fome? Não comeu nada desde o café da manhã.

— Sim, estou — ela admitiu, sentindo o estômago reclamar.

— Tenho uma bela surpresa — anunciou ele, trazendo até a cama a cesta de piquenique.

Rosalind desmanchou-se em um sorriso, sentindo-se como uma criança travessa, comendo na cama.

— Vai ficar aqui, não? Aposto que tem muita coisa aí dentro, não vou conseguir comer tudo sozinha.

— Mas é claro que vou, afinal não tem graça nenhuma fazer piquenique sozinho — brincou ele, sentando-se e tirando as botas.

— Bem, vamos ver o que temos aqui. — Rosalind sentou-se, prendendo os cabelos atrás da orelha.

— Duas tortas de carne — Armond anunciou, conforme tirava os pratos da cesta. — Queijo, pão, vinho e maçãs cortadas. O que quer experimentar primeiro?

— A torta e um pouco de vinho, estou com a boca muito seca.

— Não parece — Armond encheu uma taça, servindo-a em seguida. — Seus lábios me lembram frutinhas vermelhas, reluzentes pelas gotas de orvalho.

Rosalind sentiu o rosto corar.

— Ora, ora. Vejo um poeta diante de mim, ou talvez o mais sábio dos sedutores — ela acrescentou, aproveitando a chance para provocá-lo.

— Não exagere... — comentou ele, ao mesmo tempo em que servia a torta.

Rosalind começou a comer de imediato e o fitou. Com um cálice de vinho na mão, ele esticou-se na cama e ficou a observá-la.

Naquela posição, ele mais parecia um gato selvagem com o brilho do fogo conferindo uma tonalidade dourada aos olhos claros.

— Você saiu esta tarde? — ela perguntou.

— Não. Eu queria ter certeza de que você estava bem.

— Estou melhor agora. Nunca me senti daquele jeito antes. Talvez tenha sido o cálice de brandy que tomei — acrescentou, sorrindo timidamente.

—Não há nada de mais em uma mulher tomar um brandy — ele retorquiu. — Gostei de lhe servir um à noite passada.

— Você não está comendo — comentou ela, mudando de assunto.

— Não, mas satisfaço-me com o banquete de poder observá-la.

Rosalind corou ao perceber que estava diante dele vestindo apenas roupas de baixo.

— É comum tentar seduzir mulheres doentes?

— Você disse que estava se sentindo melhor — Armond respondeu, espreguiçando-se languidamente como um felino.

Em vez de responder, ela escondeu o sorriso maroto. Tomou um gole de vinho e terminou de comer a torta e as fatias de maçã. O silêncio que se abateu sobre os dois, levou-a a lembrar-se da maneira como aquelas mãos grandes a haviam acariciado, levando-a às alturas de um prazer que jamais sonhara existir.

— Por que você não toma aquilo que lhe pertence? — Rosalind respirou fundo, recobrando-se da coragem que a fizera fazer uma pergunta tão ousada.

— Isso é um convite? — Armond quis saber, olhando-a por sobre o cálice.

— Não. Mas você é meu marido e tem todo o direito de exigir seus direitos como tal.

— Mas não é o que você deseja. Fiz uma promessa e não pretendo quebrá-la. Não importa o quanto eu esteja tentado — sentenciou ele, com o brilho da paixão dançando em seus olhos. — Você parece irritada em saber que posso resistir. É por isso que ficou brava de repente?

Seria muito infantil aborrecer-se pelo fato de ele cumprir a promessa que fizera. Talvez o que a deixasse chateada fosse ele ter um surpreendente controle, enquanto que o bom senso a abandonava, quando estava presa naqueles braços fortes. No entanto, além do aborrecimento, pesava ainda mais a mágoa de estar apaixonada enquanto que ele havia jurado não corresponder.

— Por que você disse que nunca vai me amar? — ela quis saber, ao colocar o cálice de vinho na mesa lateral, arrependendo-se de ter perguntado no mesmo instante.

— Já disse o porquê — foi a resposta evasiva que Armond deu ao desviar o olhar.

— Aquilo foi uma desculpa — reagiu ela. — Depois você disse algo sobre uma maldição e uma oração que nunca descobri o real significado.

— Vamos deixar este assunto de lado, está bem? Contente-se com o que posso oferecer agora. Não peça por mais.

— E o que você pode me dar? Proteção? Vestidos bonitos e uma casa bem decorada? E por que não filhos? Amor? É preciso que haja sempre de maneira tão fria?

— Fria? — interrompeu ele. Já não era mais um gato preguiçoso, de repente estava de pé, colocando o cálice de vinho na mesinha. E num gesto imprevisível, tirou a camisa, fazendo-a tocar em seu peito. — Pareço frio? Eu vivo em chamas por você e a sinto queimar por mim. Sempre houve um calor intenso entre nós. Por que você não se conforma com isso?

Sem mais explicações, tomou-a num beijo para elucidar que "frio" não era uma palavra adequada para definir o que existia entre eles. Com um dos braços, jogou no chão tudo o que estava sobre a cama e deitou-se sobre Rosalind, comprimindo seu corpo contra o dela.

Enquanto deslizava os lábios pelo pescoço delicado, com as mãos em concha, prendia um dos seios, acariciando-o com vagar.

Se aquela fosse uma lição de anatomia, ela desejava ser uma aluna exemplar. Uma estudante querendo decorar cada músculo daquele peito forte, delineando-o com os dedos. Armond tinha uma pele aveludada e macia. Gemeu ao sentir que mãos ansiosas a despiam da camisola, desnudando seus seios. Enquanto o marido sugava-lhe os mamilos, ela entremeou os dedos pela vasta cabeleira, conduzindo os movimentos, como se fosse preciso mostrar o caminho do prazer para o mestre, que agora fazia pequenos círculos com a língua, levando-a a perder a razão.

Aos poucos as roupas foram jogadas ao chão e Rosalind se viu totalmente nua e ardente, exatamente do jeito que ele a desejava... ou que ela própria ansiava. Compreendeu então que Armond havia provado que não era necessário amar para compartilhar daquele doce desvario.

— Não... — sussurrou ela. — Isso não é o suficiente.

Ao fitá-lo notou que os olhos felinos não estavam apenas incandescentes, mas exibiam as labaredas do fogo que o estava consumindo.

Rosalind sentiu medo pelo que viu naqueles olhos e pelos traços que agora conferiam uma aparência selvagem a Armond. Ele estava ofegante, e, por entre os lábios entreabertos, ela vislumbrou o que poderiam ser presas e não dentes.

Fechando os olhos e soltando um urro, Armond deixou-se cair a seu lado.

—Desculpe. Não sei qual demônio que se apossou de mim, mas fique certa de que eu jamais a machucaria. Jamais tomaria algo que você não quisesse me dar.

Em silêncio ela o observava, recusando-se em acreditar que o que acabara de ver não era normal. A estranha luz que reluzia naqueles olhos já havia apaziguado e ele a olhava do mesmo jeito de sempre: sensual, lindo e irresistível.

— Diga alguma coisa... — pediu ela, reparando que os dentes dele voltara ao normal.

— O que quer ouvir?

— Você me odeia?

Armond gargalhou e tomando a pequena mão, conduziu-a até sua rígida ereção.

— Isso responde a sua pergunta?

— Mas você não me ama.

— Esta parte do meu corpo a ama.

Rosalind pensou em puxar a mão, mas uma força oposta a fez continuar ali, lembrando-se do quanto tinha gostado de tocá-lo no dia em que o vira nu na banheira. Armond dissera que suas carícias inocentes o levariam ao êxtase. Será que seria algo similar ao que ele lhe proporcionara na noite anterior?

— Posso tocá-lo de novo? — perguntou, reunindo toda a sua coragem.

— Por que quer me torturar?

— Só estou querendo retribuir o prazer que me fez sentir.

Deitando-se de lado e apoiando-se no cotovelo, ele a encarou.

— Só se você realmente quiser. Você não me deve nada, fui eu quem começou esse jogo sensual entre nós.

— A verdade é que estou curiosa — admitiu. Embora soubesse aonde aquilo os levariam. — Ensine o que devo fazer.

Armond pensou que se tivesse o mínimo de bom senso, levantaria da cama naquele instante, seguiria para o outro quarto, e trancaria a porta ao passar. No entanto, algo maior que a razão o atingiu. Luxúria. Uma luxúria irracional e despreocupada. Por um momento, sentiu a tentação de possuir Rosalind fosse esse ou não o desejo dela.

— Estou sendo muito ousada — disse ela, puxando a mão, mas ele a impediu.

— Sou seu marido, você nunca será ousada demais comigo.

Em um consentimento silencioso. Ela então passou a desabotoar as calças, insinuando a mão pelo membro túrgido, expondo-o.

Sentir os dedos delicados envolvendo-o foi o suficiente para mostrar a ela que estava no caminho certo para o total delírio.

—Você é tão grande. Será que quando... vai me machucar?

Ele riu, embora não tivesse tão bem-humorado assim.

— Não, minha querida, você foi feita para me acomodar, não se preocupe.

— Como faço para agradá-lo? — ela perguntou, deslizando habilmente as mãos para cima e para baixo.

Ele estremeceu ao toque, contraindo-se em pequenos espasmos de prazer.

— Continue fazendo exatamente assim.

E ela continuou. Senti-lo crescer em sua mão, saber-se responsável por excitá-lo, deixou-a também em estado semelhante. Com movimentos suaves, continuou a acariciá-lo, sempre atenta às mudanças no corpo, na expressão do rosto, dos olhos...

Movida pelo desejo de saborear o fruto de sua audácia, Rosalind se inclinou e beijou-o, abocanhando-o por inteiro, saboreando e brincando com a língua sobre toda aquela masculinidade voluptuosa.

Armond a guiou, fazendo-a aprender rapidamente o ritmo que suas carícias deveriam ter, convidando-a para entregar-lhe o corpo que também ansiava pelos toques mais íntimos. Não demorou muito para que ela entrasse em sintonia e estivesse pronta para recebê-lo.

A luz dourada do fogo conferia uma cor bronzeada ao corpo musculoso, deixando-o ainda mais belo, primitivo, poderoso. E totalmente à sua mercê, ao menos naquele instante. Seguindo o instinto, ela aumentou a pressão da mão. Ele fechou os olhos. Os longos cílios apoiados no rosto contraído e o maxilar tenso foram prova de que ele lutava contra o poder que Rosalind exercia sobe a parte mais sensível de seu corpo. Percebendo a relutância, ela aumentou o ritmo, querendo liberá-lo dos medos e receios. De repente, um gemido ecoou no quarto e os dedos longos entremearam-se pelos cabelos dela, trazendo-a de volta para selar o momento com um beijo ardente e selvagem...

Em seguida Armond jogou-se ao lado, agarrou os lençóis com as mãos e implorou:

— Continue, não pare...

Rosalind obedeceu e sentiu que ele crescia e enrijecia ainda mais, como se fosse possível. Até que de repente ele deixou escapar um som diferente, animalesco, com o corpo estremecendo por inteiro. Ela o segurou até sentir o líquido quente escorrer por entre seus dedos, espalhando-se pelos lençóis.

Tentando protegê-lo, ela se amoldou ao corpo forte que ainda se contraía de prazer. Com a cabeça apoiada no peito largo, foi possível sentir a respiração acelerada, acalmando-se aos poucos.

Lá fora, a chuva ainda fustigava, mas o quarto estava envolvido por uma aura morna e diferente. Aquela noite havia sido diferente, pois parte dele ainda estava em suas mãos. Rosalind sentiu que seria apenas uma questão de tempo para que ele a amasse.

Tempo que se esvaía sem que Armond pudesse ter o menor controle. Na noite anterior havia adormecido nos braços de Rosalind, acordara na madrugada fria e fugira para o outro quarto como se fosse um covarde. Se por algum instante preocupara-se com a perda do controle, agora afligia-se com os fortes sentimentos que o invadiam ao acordar aninhado ao corpo da esposa. Assustou-se ainda mais ao perceber que o que sentia era o natural, o certo. Oh, Deus, eles pertenciam um ao outro.

E os sentimentos que ela despertava não eram apenas sexuais, e sim emoções que havia muito estavam enterradas em seu coração. E, fosse de sua vontade ou não, Rosalind já habitava a parte mais pura de seu coração.

Nunca antes havia se visto como um covarde, mas, naquela manhã, ele saiu de casa para não ter de encarar Rosalind no café da manhã. Temia que ela visse em seus olhos os sentimentos verdadeiros trancafiados ali.

Caminhou pela Bond Street sem nenhum destino em mente. Não havia nenhuma notícia nos jornais a respeito de outra prostituta assassinada. Naquela noite seguiria Franklin, apenas seria mais cauteloso para não cair em possíveis armadilhas novamente.

De repente, uma carruagem parou ao seu lado, afastando-o dos pensamentos.

—Armond, querido, venha até aqui — chamou a condessa de Brayberry.

Sorrindo ao reconhecê-la, Armond aproximou-se para cumprimentá-la.

— Entre — instruiu ela, abrindo a porta.

— Que bom encontrá-la — disse, entrando na carruagem. — Precisava mesmo pedir um favor.

— Faço qualquer coisa, menos ir para a cama com você — ela brincou. — Você é um homem casado agora.

Ele gargalhou e foi direto ao ponto:

— Rosalind precisa de vestidos novos. Não quero que ela se exponha a fuxicos desnecessários indo à loja sozinha. Posso marcar com a costureira para atendê-la em sua casa? Duvido que encontre alguém que se disponha a ir até a minha.

— Claro, meu querido. Providenciarei para que sua esposa seja vestida como uma rainha.

— Já cheguei a imaginá-la uma princesa — comentou ele, pensativo.

— Fico feliz que tenham se encontrado. — A condessa acariciou-lhe a mão. — Ela o ama. Ame-a também.

— Como sabe que ela me ama? — quis saber, sentindo o coração acelerar.

— Ora, qualquer tolo enxerga o óbvio, não? E é evidente que você também a ama. Peço que não demore muito em dizer isso a ela.

De repente o momento doce transformou-se em pânico. O peito apertou a ponto de fazê-lo temer não conseguir respirar.

— Jamais poderei confessar uma coisa dessas.

— Claro que pode — ela argumentou. — Você não é um fraco!

— A senhora sabe do que estou falando!

— Fui a melhor amiga de sua mãe. Sei como ela padeceu com o coração dilacerado. Seu pai fez a pior escolha para os dois, não dando nenhuma chance a ela. Não cometa o mesmo erro.

Armond sentia-se sufocado. Para aliviar a sensação afrouxou a gravata. Não contente, abriu a porta e saiu da carruagem. Sem se despedir da condessa, saiu andando. Precisava pensar, fugir, correr...

 

O dia estava ensolarado e a terra exalava um perfume revigorante depois da tempestade da noite anterior.

Após o café da manhã, Rosalind decidiu caminhar até o estábulo para apreciar a vista dali. E, admirando o pasto verdejante até a propriedade vizinha, viu o lençol branco tremulando ao vento. Era o sinal de Mary.

A duquesa não havia melhorado. Rosalind acompanhou-a no chá com esperanças de poderem manter um diálogo, mas como isso não aconteceu, ela se viu cochilando em vários momentos, enquanto a madrasta roncava sonoramente, sentada na cadeira em frente à janela.

— É melhor ir embora, lady Wulf — advertiu Mary, tocando-a no ombro. — Já é tarde e não tenho idéia de quando o Sr. Chapman retornará.

Rosalind sentiu as pálpebras pesadas, precisou forçá-las para abrir e perceber que o sol já tinha se posto e que a lua se apressava em tomar seu lugar.

— Devo ter cochilado — comentou sonada. Ao tentar se levantar, as pernas fraquejaram. Mesmo assim conseguiu levantar e foi tropeçando até a porta.

— A senhora está bem? — Mary inquiriu com a testa encrespada de preocupação.

— Sim... — assegurou Rosalind. — Acho que minhas pernas adormeceram também.

— Mary!!

Ao som da voz conhecida, as duas sentiram o sangue gelar.

— Quero meu jantar pronto imediatamente! Tenho outros planos para hoje à noite.

— Deus meu, ele chegou — Rosalind constatou. — É melhor que ele não saiba que estou aqui.

— Mas como a senhora vai sair? — Mary quis saber, preocupada. — Ele está lá embaixo.

Rosalind lembrou-se de que só havia uma maneira de escapar.

— A treliça do lado de fora do meu quarto. Foi por lá que desci uma vez e posso fazer o mesmo outra vez.

— Oh, Céus. — Mary continuava apavorada. — Eu não deveria ter permitido que ficasse por tanto tempo.

— Mary, desça e fique na escada para se certificar que ele não vai subir.

A criada assentiu com um sinal de cabeça.

Rosalind foi para seu antigo quarto. Andar rápido não estava sendo uma tarefa muito fácil, uma vez que seus olhos estavam embaçados e a escada parecia mover-se sob seus pés. Mesmo assim ela conseguiu descer.

— Ande logo — sussurrou Mary da escada.

— Mary! Não está me ouvindo?

— Desculpe, Sr. Chapman, eu estava no quarto de sua mãe.

— Então desça logo para preparar meu jantar. Preciso sair de novo e gostaria de comer antes.

— Sim, senhor — acatou Mary, descendo as escadas. — O senhor vai subir?

— Ora, mas é claro que vou. Quero trocar de roupa antes de sair.

— Como preferir, senhor.

Rosalind esforçou-se para chegar ao quarto antes que Franklin chegasse ao primeiro andar. O mundo parecia girar a sua volta, foi preciso amparar-se na parede para não perder o equilíbrio.

Finalmente ela conseguiu abrir a porta e entrar. A porta-balcão estava aberta. Pulou a mureta, esgueirando-se pela parede lateral da casa até a treliça. Aguardou um pouco na esperança de o coração se acalmar e a cabeça parar de girar. De repente, ouviu passos. Oh, Céus, ela havia deixado a porta do quarto aberta. Franklin certamente desconfiara de algo.

Com a respiração suspensa, ouviu os ruídos de gavetas sendo abertas e fechadas, rezando para não ser vista ali. Não demorou muito, ouviu o barulho da porta sendo fechada e supôs que ele houvesse saído.

Por garantia, permaneceu imóvel por mais alguns minutos. Quando o silêncio pareceu reinar, alcançou a treliça. Pela experiência, sabia que as duas anáguas que usava por baixo do vestido só atrapalhariam na descida. Então com destreza, removeu-as, deixando-as amontoadas em um canto, antes de se firmar na grade.

Ainda titubeante, apoiou-se na mureta e procurou apoio para o pé. Assim que sentiu que estava firme, pôs o outro pé. Neste momento, um dos pés escorregou e ela ficou pendurada com as pernas balançando até encontrar apoio novamente. Olhou para baixo e sentiu a cabeça girar, temendo cair e quebrar o pescoço.

Reunindo todas as forças, agarrou-se na grade até que conseguiu apoiar os pés por entre as folhas da videira e começar a descer lentamente. As folhas ainda estavam molhadas da chuva da noite anterior, fazendo com que escorregasse a todo instante.

Sentindo-se zonza, imaginou que fosse ficar enjoada, o que complicaria ainda mais a empreitada. Quando estava quase chegando, escorregou novamente.

De repente, ela perdeu o controle e começou a cair, mas foi amparada por braços fortes.

— Que diabos está fazendo, Rosalind?

Armond! Assim que o reconheceu, agarrou-se a ele, puxando-o para encostar na parede.

— Você ainda não me respondeu.

— Shhh! Fique quieto. Franklin está em casa. Tive de fugir sem que ele me visse.

— Não ligo a mínima se for visto — ralhou ele, afastando-se da parede.

— Mas eu me preocupo. Se ele me vir, não permitirá que eu volte para ver minha madrasta.

— Você já passou dos limites. Achei que não conseguiria chegar a tempo de impedi-la de cair.

— Você está falando alto demais — advertiu Rosalind. — Podemos discutir isso mais tarde.

— Pode estar certa que vamos falar a respeito.

A volta para casa não foi rápida. Rosalind tropeçava e Armond tinha de voltar para socorrê-la a todo instante. Ao final, ele terminou por carregá-la no colo.

Ao entrarem em casa, ele seguiu direto para o quarto. Hawkins correu para saber o que havia ocorrido, mas pelo olhar do patrão, achou melhor se recolher.

Armond colocou-a gentilmente sobre o acolchoado macio, embora sua expressão fosse bem distinta de seus gestos.

—Hawkins não faz idéia de onde você foi — repreendeu-a. — Quando eu seguia para o estábulo para selar meu cavalo, vi o lençol estendido na janela. Logo em seguida a vi descendo pela treliça.

— Eu adormeci — ela explicou. — Não disse a Hawkins aonde estava indo porque pretendia ficar pouco tempo por lá. Acontece que Franklin chegou e não tive como fugir senão pela grade. Eu estava com muita tontura e acabei por perder o equilíbrio.

—Vou chamar um médico. Essas tonturas têm acontecido com muita freqüência.

—Foram só duas vezes. Estranho é que foram exatamente nas vezes em que visitei minha madrasta. — Rosalind buscou alguma lógica, quando de repente lembrou: — O chá!

— Como assim? Do que você está falando?

Os acontecimentos começaram a fazer sentido. E se estivesse certa, talvez a madrasta não estivesse doente de fato.

—Acho que ele a está drogando — explicou. — Tem algum ingrediente a mais no chá que Mary dá para a duquesa diariamente.

— Do que você está falando, Rosalind?

Ela sentiu mais uma onda de vertigem, fazendo-a levar a mão à testa.

— Acho que as folhas que Franklin dá a Mary para preparar o chá têm alguma substância de efeitos entorpecentes, mantendo-a naquele estado de letargia. Da última vez que estive lá, tomei um golinho do chá para testar se não estava muito quente. Hoje tomei uma xícara inteira.

— Mas qual o interesse de Franklin em dopar a própria mãe?

Rosalind ficou pensativa por alguns instantes.

— A menos que ela tenha informações importantes — Armond concluiu.

— Sobre os assassinatos?

— Sobre Bess O'Conner—ele insinuou. — Se ela soubesse que o filho havia matado uma mulher, o que faria?

— Bem, minha madrasta sempre o protegeu, sem se importar se ele houvesse cometido os atos mais hediondos. Por outro lado sei que ela é uma pessoa de princípios, então não sei o que pensar... Franklin vai sair esta noite — Rosalind se lembrou de comentar o que ouvira.

— Isso quer dizer que eu também vou sair. Quero que durma para se livrar da droga que causa essas vertigens.

— A razão por ele dopá-la ainda não faz muito sentido. Se pressentisse que ela soubesse alguma coisa sobre os crimes, por que então não matá-la?

Armond afastou uma mecha que caía sobre o rosto delicado.

— Talvez não tenha coragem o suficiente para matar a própria mãe. Ou quem sabe, imaginou que seria muito mais esperto manter a duquesa drogada e contar a todos de sua morte lenta. Ninguém questionaria a morte de alguém que já estava tão debilitada.

— Preciso salvá-la — prometeu Rosalind em um sussurro.

— É melhor dormir um pouco.

Aos poucos ela sentiu o manto da escuridão da noite envolvê-la como se quisesse niná-la.

 

Talvez fosse louco como todos acreditavam. Armond cerrou os dentes com força, enquanto se prendia embaixo do coche de Franklin. Aquela fora a única maneira que encontrara para seguir aquele verme sem ser visto, a única forma de ter certeza de que não cairia em outra armadilha. A carruagem já havia parado uma vez para pegar um passageiro. Armond sabia ser mulher pelo perfume e o sotaque carregado. O coche fez outra parada, agora em uma rua escura onde apenas o silêncio predominava.

— Você quer que eu entre aí? — a mulher quis saber. — Mas está vazia!

— É exatamente assim que queremos — Franklin respondeu em um tom frio. — Tem alguma diferença o lugar onde você irá se entregar em troca de algumas moedas?

— Não precisa ser tão sem educação assim. Mas tem razão, acredito que o lugar não importa mesmo.

As molas da carruagem estalaram quando Franklin e a mulher desceram. Armond decidiu esperar um pouco antes de sair do esconderijo. Ainda sob o coche, viu uma luz ser acesa no quarto dos fundos da casa deserta. Foi então que fechou os olhos e concentrou-se em ouvir o que estava sendo dito naquele quartinho:

— Você quer que eu vista isso? Para quê? — indagou a mulher.                                

— O cavalheiro que se juntará a nós deseja que você se pareça com uma lady.

— Que cavalheiro? Você não disse que seríamos três.

— Não? — Franklin indagou em tom de sarcasmo. — Lamento informar que haverá mais uma pessoa conosco.

— Espere um pouco — retrucou ela. — Não concordei em agradar dois de uma vez. Não faço esse tipo de coisa.

— Então esta noite será exceção — garantiu Franklin. — E não serão os dois ao mesmo tempo. O cavalheiro gosta de assistir primeiro, para depois desfrutar a sua vez.

— Nada disso. Estou indo embora.

Um sonoro tapa se fez ouvir. Armond contraiu os punhos com vontade de esmurrar Franklin por bater em uma mulher.

— Vista esse vestido agora! — Franklin ordenou.

— Está certo, eu visto. Não me bata mais.

— Faça o que estou pedindo e não se machucará mais. E fez-se o silêncio. Armond presumiu que a mulher estivesse se trocando.

— Solte os cabelos — comandou Franklin. — Quanto mais escondido estiver seu rosto, mais estará parecida com outra pessoa.

— Quem é o outro cavalheiro?

Mais um tapa se fez ouvir.

— Cale essa boca. Ele não pode fazer com uma lady o que pretende fazer com você, a menos que esteja casado.

— Entendi...

— Tire o vestido e se mostre para mim — pediu Franklin. — Quero me certificar que você não é doente.

— Já lhe disse que não...

Outro tapa.

— Ande logo!

Não houve resposta, apenas um choro tímido. De repente ouviu-se um grito agudo.

— Volte aqui, sua vadia!

Armond ouviu sons de luta, e gritos de desespero chegaram a doer seus ouvidos sensíveis.

Praguejando, ele entrou na casa e chutou a porta do quarto.

— Chapman! Tire suas mãos dela!

Um tiro soou na escuridão e Armond se jogou no chão.

— Vamos lá, Wulf— zombou Franklin. — Tudo o que eu queria era enfiar uma bala na sua cabeça.

Armond também tinha um arma, porém por mais tentado que estivesse a usá-la, ainda não tinha provas suficientes para condenar Franklin pela morte das duas mulheres, encontradas em sua propriedade. Tampouco ouvira ameaças de morte àquela mulher ali presente. Mais uma vez seria sua palavra contra a de Franklin, o que não valeria nada perante as autoridades e a sociedade.

— Deixe-a ir! — ele vociferou. Podia vê-lo mesmo escondido nas sombras e percebeu que a mulher estava sendo usada como escudo.

— Pode atirar, Wulf! — desafiou Franklin.

Armond contraiu o maxilar e esperou ele fazer o próximo movimento, que não demorou a acontecer. Franklin arrastou a mulher até a porta aberta para em seguida atirá-la na direção de Armond e sair correndo.

Quando ele conseguiu se desvencilhar do corpo feminino e alcançar a rua, foi a tempo de ver a carruagem dobrar a esquina. Respirando fundo, Armond começou a correr, as passadas vigorosas ecoando na noite. Um homem jamais alcançaria cavalos velozes, mas ele podia.

Tomando fôlego, arremessou o corpo para a frente. As formas escuras das casas abandonadas e dos becos passavam por ele em uma velocidade inacreditável. De repente as formas se transformaram em apenas listras coloridas. Os cavalos, correndo a sua frente, transformaram-se em borrões vermelhos em contraste com o breu da escuridão. Armond conseguiu ver o sangue que corria nas veias dos animais.

Quanto mais corria mais tinha noção de que já não era um homem. De repente avançava em quatro patas, com longos caninos aparentes em vez de dentes. Havia garras no lugar de unhas, pêlos no lugar da pele. Tornara-se tão obscuro quanto a noite, com o coração pulsando alto, fazendo correr o sangue quente pelas veias.

Estava quase alcançando a carruagem, preparando-se para pular e avançar no pescoço de Franklin, quando um corpo veio em sua direção. Não houve tempo de evitar a colisão e os dois rolaram pela grama.

— Seu idiota! — reclamou o homem atropelado. — Olhe por onde anda.

Enquanto o homem se ajoelhava com dores, Armond tentava controlar a respiração ofegante. Em segundos voltou a ser um humano e não a fera que tomara seu corpo instantes atrás. Quando recuperou a calma, levantou-se e depois de desculpar-se com o outro homem, seguiu de volta para a casa abandonada.

A casa estava vazia, a mulher havia sumido. O vestido que Franklin pedira que usasse estava esquecido no chão.

Armond levantou a peça e contraiu-se ao sentir o perfume tão conhecido. Aquela era a roupa que Rosalind vestia quando a conhecera no baile de Greenley.

 

Armond acariciou o rosto de Rosalind que estava adormecida com as roupas que vestira no dia anterior. Ela acordou com o carinho, arregalando os olhos.

— Jackson?

As mãos de Armond congelaram ao ouvir o nome do irmão.

— Você me chamou de Jackson?

Ela meneou a cabeça para clarear as idéias.

— Já amanheceu?

— Você me chamou de Jackson? — repetiu ele. Rosalind apoiou-se nos cotovelos para erguer o corpo e olhou para a janela. Os raios intensos do sol infiltravam-se pelas frestas da cortina, iluminando o quarto.

— Tive um sonho dos mais estranhos. Sonhei que seu irmão estava aqui, no meu quarto, conversando comigo.

—É mais estranho ainda se considerarmos que você ainda não o conhece.

Rosalind passou os dedos pelos cabelos.

— Bem, ao menos achei que estivesse sonhando. Você o acusou dos assassinatos?

— Sim, e ele ficou furioso. — Armond sentiu o peso da culpa. — Foi por isso que ele se foi antes de conhecê-la.

— No sonho ele dizia que iria matar uma bruxa para salvar a família. Isso não faz sentido, Armond.

Embora Rosalind não tivesse entendido, Armond bem sabia a que ele estava se referindo. Era uma decisão tola de Jackson e não poderia ter vindo em pior momento.

— Estive pensando em mandá-la para o campo — contou Armond. — Acho que lá você estará em segurança na companhia dos meus irmãos.

— Não posso ir para o campo agora. Quer dizer, não sem antes ajudar minha madrasta.

— Você está em perigo.

Depois do que vira na noite anterior, ele havia juntado novas peças ao quebra-cabeça de Franklin. Primeiro fora a escolha de uma mulher parecida com Rosalind, depois o vestido. Estava claro que o terceiro homem, esperado naquela noite, tinha obsessão por ela.

— O que aconteceu à noite passada? — indagou ela.

Armond não iria contar nada, especialmente sobre o vestido ou sobre a maneira que ele havia perseguido o coche em disparada.

— Não consegui pegá-lo — ele resumiu.

O toque suave das mãos delicadas no rosto cansado, assustaram-na.

— Parece esgotado. Você dormiu?

— Não — ele admitiu enquanto a admirava com as roupas amassadas.

— Acho que deveria descansar. Vou pedir a Hawkins que prepare um banho quente.

— Você vai me ajudar com o banho de novo? — perguntou, erguendo uma das sobrancelhas.

Rosalind não riu, ao contrário, encarou-o no fundo dos olhos.

— Você vai me trancar para fora?

Ele percebeu que Rosalind se referia ao fato de ele ter pedido a Hawkins para colocar uma tranca na porta que separava os dois quartos. Sabia que ela estava magoada, contudo era para o próprio bem dela.

— Às vezes prefiro ficar sozinho.

Rosalind continuou firme, porém com os olhos marejados.

— Fui muito ousada na outra noite? Agora sente repulsa por mim?

— Eu jamais a rejeitaria — confessou ele, correndo os dedos pelos cabelos despenteados. — Você é a mulher mais desejável que já conheci e a mais corajosa.

— Então por que me evita? — ela perguntou com uma expressão de súplica.

— Porque você merece mais do que posso dar. Não quero que aceite menos do que isso. Certa vez você me ofereceu sua amizade, acho que esta será a solução para nós.

Ela deu as costas, mas não sem antes deixar visível a lágrima que correu pelo rosto delicado.

— Droga de vida amaldiçoada — murmurou ele. E como não suportaria vê-la chorar, levantou-se e atravessou a porta de interligação, trancando-a.

 

Rosalind precisava solucionar o quanto antes o problema da duquesa de Montrose, mesmo sabendo que o marido ficaria furioso quando soubesse que ela agira por conta própria. Com o assunto em mente, cobriu-se apenas com uma capa e foi procurar Hawkins. Ele era um serviçal e como tal não poderia impedi-la, mas dessa vez deixaria avisado por onde andava. O mordomo tentou impedi-la, mas ao final informou que se demorasse a voltar acordaria lorde Wulf.

Era muito cedo e provavelmente Franklin ainda estivesse dormindo. O plano era chegar pela porta dos fundos, encontrar Mary na cozinha e instruí-la para que não servisse mais o chá para a duquesa.

Com o coração batendo acelerado, Rosalind chegou à porta dos fundos da casa vizinha e bateu sem demora. Mary franziu o cenho ao vê-la ali.

— O que faz aqui, milady? — ela sussurrou. — O Sr. Chapman está dormindo.

— Preciso falar com você — Rosalind respondeu em voz baixa, entrando na cozinha. Olhando ao redor, viu o vidro onde as folhas de chá estavam guardadas. Ao abrir a tampa, sentiu o cheiro forte invadir suas narinas.

— O que está fazendo, milady?

— Acho que é este chá que deixa a duquesa nesse estado letárgico. Acho que Franklin a vem drogando.

— E por que ele faria uma coisa dessas? — a criada perguntou de olhos arregalados.

Rosalind não tinha tempo para entrar em detalhes sobre suas suspeitas.

— Ouça, Mary. Quero que você substitua essas folhas pelas normais. Se a duquesa começar a melhorar e assim provar que estou certa, então posso explicar em detalhes o que está acontecendo. Não tenho tempo agora.

— Não sei se devo, milady — Mary disse, torcendo as mãos. — Ir contra as ordens...

— Por favor, Mary — pediu Rosalind. — Se eu estiver enganada, não fará mal algum em trocar o chá por alguns dias. Mas se eu estiver certa, ela vai começar a melhorar logo.

— Está bem — Mary aquiesceu, temerosa. — Mas se o Sr. Chapman descobrir que desobedeci suas ordens, vai me mandar embora, então quem vai tomar conta da pobre senhora?

— Tenho fé de que a duquesa logo estará bem para cuidar de si própria.

Rosalind também tinha esperanças de que tão logo a madrasta soubesse dos crimes do filho, tomaria providências para que ele pagasse pelo que havia feito.

— Mary!! Já chamei duas vezes! Onde diabos você se meteu?

Rosalind prendeu a respiração e Mary empalideceu. Ouviu-se os passos de Franklin em direção à cozinha.

— Vá embora logo!

— Não posso, ele vai me ver correndo pelo gramado e saberá que estive aqui — Rosalind sussurrou.

Mary empurrou-a pela porta que levava ao porão e aos quartos dos empregados.

— Fique aqui até que eu veja o que ele quer — ordenou. Rosalind se esgueirou pela porta no momento em que ouviu Franklin entrar na cozinha.

— Aqui está você — ele grunhiu. — Minha cabeça está latejando tanto que não consigo dormir. Estou pensando em tomar aquele chá que comprei para minha mãe. Faça uma xícara e leve até meu quarto.

— Sim, Sr. Chapman, já estou levando. Eu estava mesmo preparando um bule para sua mãe.

Houve um breve silêncio e Rosalind pressionou o ouvido contra a porta.

— Onde está a lata de chá? Não está no lugar de costume. Apavorada, Rosalind percebeu que ainda estava com a lata nas mãos.

— Devo ter posto em outro lugar, senhor. Não se preocupe, vou achar e já levo o chá ao seu quarto.

Rosalind prendeu a respiração até ouvir os passos pesados se afastarem.

— Lady Wulf— Mary chamou-a em voz baixa. — Preciso da lata. Ele já subiu.

Em poucos segundos ela abriu a porta e entrou na cozinha.

— Então faça o chá para ele, mas não dê o mesmo para a duquesa.

A governanta assentiu com um sinal de cabeça e Rosalind saiu correndo pela porta dos fundos. Enquanto seguia para casa, lembrou-se de que Franklin havia pedido uma dose do chá para ajudá-lo a dormir, confirmando suas suspeitas de que a duquesa estava sendo drogada.

Assim que Armond acordasse, ela contaria o que acabara de descobrir.

Armond passou o dia em um sono inquieto. Teve sonhos obscuros de Rosalind naquela casa deserta, vestida para o baile de Greenley, morta sobre um colchão jogado no chão. As figuras se alternavam. Em alguns momentos, viu o próprio reflexo no espelho e horrorizado notava que tinha presas, pêlos e um brilho azulado nos olhos.

O mundo havia se transformado desde que conhecera Rosalind. Sentia-se como se estivesse trilhando o caminho da autodestruição num passo desenfreado, como se não houvesse rédeas para diminuir a velocidade ou impedir que o inevitável acontecesse.

Tinha que frear os próprios instintos de matar Franklin, sem antes prová-lo assassino. Salvaria Rosalind mesmo que isso significasse a própria destruição. A hora do encantamento estava se aproximando e negar a verdade não o salvaria.

Uma leve batida na porta o despertou completamente.

— Armond? Está acordado? Preciso falar com você.

Ele decidiu que seria melhor ignorar Rosalind.

— Armond — ela chamou novamente. — Descobri uma coisa na casa da minha madrasta que acho importante contar.

Oras, mas será que ela o tinha desobedecido de novo? A idéia de vê-la na casa de Franklin o apavorava. Aquela era uma boa hora para adverti-la.

Enrolando a nudez no lençol, levantou-se, destrancou a porta e abriu-a. Rosalind entrou de supetão.

— Fui dar instruções a Mary para não servir mais o chá para minha madrasta e... — começou ela, mas as palavras morreram assim que o percebeu nu. — Por que está sem roupas?

Ele sorriu diante da reação de embaraço.

— Costumo dormir nu.

— Oh, está bem. — Ela suspirou antes de continuar. — Como eu estava dizendo, fui ver minha madrasta e...

Armond sentou-se na cama.

— Eu queria mesmo falar sobre suas visitas. Sei que está preocupada com sua madrasta, mas não vou mais permitir que se arrisque por causa dela — ele a interrompeu.

Rosalind entendeu que não deveria insistir no assunto e deu de ombros, permitindo assim que a capa deslizasse, revelando a pele alva e macia dos ombros. Armond engoliu em seco.

— Você está só com...

Em vez de responder, ela mordeu o lábio inferior. Armond então estreitou a distância entre eles.

— Na noite em que nos casamos você me disse que só consumaríamos a união quando fosse de minha vontade — sentenciou ela em meio à respiração entrecortada e permitiu que a capa deslizasse pelo corpo esguio até o chão. — Tomei uma decisão. Será esta noite, Armond.

Os olhos dele deliciaram-se diante de tamanha beleza. Dos pés pequenos, erguiam-se as pernas longilíneas, terminando no ventre coberto por sedosos pêlos encaracolados. A linha dos quadris seguia sinuosa até delinear a lateral dos seios firmes. Rosalind era a mais perfeita tradução de uma obra de arte.

— Você disse que queria mais tempo... — ele a lembrou. — Por que mudou de idéia?

— Estou ouvindo o chamado do meu coração — ela o desafiou, erguendo o queixo.

Era preciso desviar os olhos daquele corpo tão feminino. A força de vontade de Armond estava em risco, mas aquilo não era o pior. Ele sentia que a fera que habitava seu corpo estava disposta a emergir da pele. A fera que sentia o perfume da fêmea a sua frente e que se interessava apenas pela luxúria, nunca pelo amor.

— Volte para seu quarto — ordenou ele. — Qualquer que seja o sentimento que habita seu coração será desperdiçado comigo.

Rosalind não respondeu e ele temia em encará-la e deparar-se com aqueles lindos olhos cheios de lágrimas, que fatalmente o fariam abraçá-la. Bastaria um simples toque para colocar tudo a perder.

No entanto foi Rosalind que tomou-lhe a mão, repousando-a sobre o seio, da mesma forma como ele havia feito na noite anterior.

— Tem certeza?

As mãos fortes amoldaram aquele monte macio, as palmas instigadas pelos mamilos retesados. O sangue corria quente pelas veias, concentrando-se no membro que já estava em riste, desde o momento em que ela havia entrado no quarto. Ele podia ouvir o canto da sereia que o encantava com sua música.

— Você não sabe tudo a meu respeito — ele tentou avisá-la, mas sem deixar de tocar a pele sedosa. — Sou amaldiçoado, Rosalind.

—Então eu quero compartilhar a maldição com você. Renda-se, Armond. Eu amo você e estou me entregando de corpo e alma.

Rosalind amava o homem para quem olhava naquele instante, no entanto não seria capaz de ter qualquer sentimento pela fera que ele logo se transformaria.

Lentamente, ele desceu a mão do quadril, acompanhando a curva sedutora. No instante seguinte ele a levou para cama e deitou-se ao seu lado.

— Pensei que tivesse aprendido, quando em nosso primeiro encontro, disse para ter cuidado com o que deseja. Você pode conseguir.

— Não quero me preocupar com as conseqüências. Esse é o nosso momento.

O corpo de Armond amoldou-se ao dela, separados apenas pelo lençol que o envolvia. Ao deslizar as mãos delicadas pelas costas largas, Rosalind encontrou uma pele macia e firme, que proporcionava um toque quente. Os seios, já doloridos pela excitação, espremiam-se contra o peito musculoso.

Um beijo terno e lento contradizia o pulsar dos sentidos. Os lábios se tocavam gentis, mas possessivos ao mesmo tempo. A fome de ambos era voraz e logo ele aprofundou ainda mais o beijo, procurando muito além de uma simples sensação prazerosa. A língua impiedosa avançou pela boca ardente, tocando, sentindo, convidando para um bailado único.

Estavam escancarados os portões da paixão, deixando fluir os fortes sentimentos represados.

Rosalind anunciou sua entrega com um gemido, correndo as unhas pelas costas de Armond, como se quisesse marcar sua passagem. Aquela altura, com a sensibilidade à flor da pele, os corpos registravam cada movimento, cada sensação, eternizando-os no coração.

O lençol que os separava jazia amontoado ao pé da cama. Ao percebê-lo rígido de prazer, ela seguiu seu instinto de fêmea e movimentou os quadris, roçando, acariciando, excitando-o ainda mais.

— Calma — murmurou ele. — Quero prepará-la para me receber.

Foi então que a boca ávida deslizou sobre a pele alva do pescoço de Rosalind, mordicando-a suavemente, movendo-se para baixo. As mãos em concha aconchegando os seios volumosos, como se os preparasse para serem beijados.

Ele a provocava sem piedade, a língua desenhando círculos preguiçosos ao redor dos mamilos antes de sugá-los. Ela cravou as unhas mais profundamente e, de novo, não conseguiu controlar a necessidade de se arquear contra ele.

As respirações combinavam com os gemidos. Os dedos habilidosos escorregaram, invadindo-a no âmago de sua feminilidade, massageando-a como já havia feito anteriormente.

Rosalind conhecia o ritmo e sabia para onde a levaria aquelas carícias enlouquecedoras. Ansiosa, arqueou o corpo para que a pressão daqueles dedos fosse mais forte. No entanto, era Armond o dono dos movimentos, tanto que a surpreendeu introduzindo o dedo pela fenda já umedecida, sentindo a pressão dos músculos dela se retesarem em surpresa.

— Não se preocupe — ele garantiu em um sussurro. — Só quero que fique ainda mais úmida para me receber...

Gradualmente o temor de Rosalind se esvaiu e ele continuou a massagear a flor do prazer com o polegar, enquanto os outros dedos eram recebidos por uma umidade quente. A combinação das carícias acentuava ainda mais os doces delírios, levando-a em uma alucinante viagem. Ao perceber o corpo reagir com suaves contrações, ela tentou demonstrar o prazer que sentia, por meio da pressão dos músculos do ventre nos dedos mágicos que a invadiam. Mas não demorou para que perdesse o controle diante das sensações tão arrasadoras. Sentiu o corpo tremer, levando-a quase à loucura. Aquela altura podia sentir o líquido que escorria por entre os dedos de Armond, chegando a molhar suas coxas. Era como se estivesse em febre, pronta para receber o lenitivo de ser preenchida pelo membro ereto que a roçava impaciente.

— Armond... — murmurou ela ofegante. — Eu preciso... quero...

— Eu sei...

Gentilmente ele deitou-se sobre ela, encaixando-se entre as pernas, deixando que seu membro apenas a roçasse de leve.

Rosalind contraiu-se no início da penetração. Sentindo-a insegura, Armond segurou-la pelos quadris e continuou a penetrá-la devagar.

— Não fique tensa — instruiu ele. — Procure relaxar e permita que eu a sinta por inteiro. Vou fazê-la mulher, minha mulher.

E antes que ela pudesse compreender o significado daquelas palavras, ele se impulsionou para dentro dela, como se a quisesse atingir até a alma. Armond a completava por inteiro, fazendo-a transbordar. O tamanho e a força daquele membro viril a fazia ficar sem ar a cada investida, fazendo-a arfar. Mas excitada como estava, surpreendia-se com o extremo prazer atingido a cada manobra que ele fazia com extrema facilidade, dado seu tamanho.

Rosalind descobriu-se inchada e também intumescida e soube que se movesse também potencializaria o contato com a fonte de maior prazer.

Ao perceber-se cada vez mais satisfeita, esqueceu-se das inibições iniciais. Os dois foram tomados por algo primitivo. Estavam em total euforia, mal se dando conta que era a sintonia da natureza comandando tudo.

Armond parecia focado em um único objetivo, dar e receber o maior dos prazeres. Os corpos suados se fundiam em um só, atingindo uma completude divina. Haviam sido transportados para um lugar onde só o desejo e o prazer pareciam habitar, escondendo-os de qualquer outra coisa que pudesse macular a perfeição daquele momento.

Por mais uma vez, ela deixou as unhas deslizarem pelas costas largas até agarrar os músculos firmes das nádegas de Armond. Seguindo ainda seus instintos, enlaçou-o com as pernas, como se estivesse acostumada a abraçá-lo daquela forma sedutora, abrindo-se em um convite irrecusável.

Ele sussurrou o nome dela, levando-a às alturas em uma espiral quase que selvagem. Os dentes de Armond cravaram-se no pescoço alvo, não de forma dolorida, mas deixando ali sua marca, tatuando-a como sua propriedade. Porém ela estava tão presa às garras da paixão que assistiu de camarote ao show do homem que a dominava. A verdade reluzia esplendorosa como a luz do sol. Ele a possuía de fato, coração, corpo e alma.

Entretanto, naquele instante era a vontade física que falava mais alto. As estocadas firmes a estimulavam, fazendo-a mais uma vez confundir dor e prazer, uma sensação indescritível, próxima à obsessão.

De repente Armond aumentou o ritmo e Rosalind percebeu que ele ainda não a havia penetrado até o fim. A impressão que teve foi de um ardor estranho, mas que vinha mesclado de prazer. Sentindo que cruzava a tênue fronteira entre a sanidade e a loucura, agarrou-se a ele com toda a força que conseguiu reunir, presa em um redemoinho de emoções, muito mais intensas do que as que havia sido sentido anteriormente.

Quando não pôde mais conter a onda de êxtase que a levava às alturas, ela enfiou as unhas nos ombros fortes, chegando a tirar sangue. Gritou o nome de Armond seguidas vezes em plena convulsão, chegando a mordê-lo até mesmo onde já o tinha machucado com as unhas.

— Solte as pernas.

A voz de Armond parecia vir de outra esfera. Impossível obedecer ao comando, pois o corpo másculo era a única coisa que a prendia ao mundo real. O medo de ser transportada para algum lugar, de onde não conseguiria voltar, impediu-a de soltá-lo.

— Rosalind, por favor!—gritou ele, enquanto a penetrava mais rápido do que antes. O desejo insano falou mais alto e ele acabou por inundá-la com seu sêmen por completo.

Com o peso do corpo sobre o dela, Armond blasfemou toda a sorte de impropérios aos ouvidos de Rosalind. Ela então soube por que ele queria que ela o soltasse...

Tarde demais.

Aos poucos ele foi saindo de dentro dela até se deixar cair de costas, com um dos braços cobrindo os olhos e o peito relutando para voltar à respiração normal.

— Meu Deus, o que foi que eu fiz — disse finalmente. Embora sua experiência fosse pouca, Rosalind sabia que aquilo não era o tipo de frase que uma mulher gostaria de ouvir depois de fazer amor com um homem.

— Apesar de ser a minha primeira vez, acho que você se saiu muito bem.

Um silêncio pesaroso caiu sobre ele.

— Da próxima vez, não deve permitir que eu deixe minhas sementes em você. Meu sêmen é maldito e não quero que seja gerado em seu corpo.

Mais uma frase que uma mulher não gostaria de ouvir do marido.

— Então teremos uma próxima vez? — ela quis saber. E erguendo o corpo sobre o cotovelo continuou: — Ainda esta noite?

Armond tirou o braço de cima dos olhos, que ainda estavam sem brilho. Quanto mais ela o encarava, mais rápido a intensidade daquele olhar aumentava.

— Pretendo fazê-la minha por quantas vezes forem possíveis até o amanhecer. Eu disse para ter cuidado com o que pede.

Ela suspirou sonhadora e se deitou de costas ao lado dele.

— Bem, se é assim...

Armond ainda a possuiu duas vezes até sentir a primeira pontada de dor. Ele agora estava encolhido em um canto do quarto, coberto de suor, tremendo convulsivamente enquanto ela dormia em sono profundo. Mesmo sentindo dores agudas que o faziam se contorcer, ele ainda a desejava. Seria o homem que não se saciava ou era a fera que jamais se dava por satisfeita? Ele a amava. Tinha consciência daquele amor, mesmo antes de terem unido os corpos em um só. Desde quando a vira da primeira vez, sabia que não haveria outra mulher a dominar seu coração. Em vão, acreditou que, negando o amor, estaria livre da maldição. Porém, era uma força superior, impossível de ser vencida.

A brisa suave entrava pela janela, fazendo as cortinas dançarem silenciosamente na escuridão. De onde estava, ele conseguia ver a lua cheia em todo o seu esplendor. Rosalind se mexeu, pronunciando seu nome ainda adormecida. Desejou tocá-la novamente, mas não podia. Ao menos enquanto estivesse lutando contra o que se transformaria em breve.

O momento o fez recordar do pai e foi então que entendeu seu desespero. Ele também tivera medo de machucar a esposa e os filhos. A arma fora sua única amiga para ajudá-lo a alcançar a paz.

— Armond — Rosalind o chamou, sentando-se na cama. Ele a observou procurá-lo pelo quarto escuro. Fechou os olhos, forçando inspirar e espirar diversas vezes, na tentativa de parar de tremer e ignorar a dor que o estava virando do avesso.

— O que está fazendo aqui no chão? — inquiriu ela, tocando o ombro trêmulo.

Como poderia contar a verdade? Não, ela não compreenderia.

— Estou tentando me controlar para não possuí-la novamente. Você deve me achar um monstro.

— Bem, se for assim, você acaba de me transformar em um também. — Ela abaixou para beijá-lo e aconchegou-se a seu lado.

Rosalind sentiu como se tivesse levado uma surra. Cada centímetro de seu corpo estava dolorido. Em algum momento da noite, Armond a carregara de volta para a cama num ato de extremo carinho. Seriam todos os homens tão viris assim? Quando ele a possuíra novamente ali no chão, foi um amor primitivo, beirando a selvageria e havia despertado uma fêmea desconhecida que estava adormecida em seu corpo frágil.

Hawkins tirou-a de seus devaneios ao bater suavemente na porta.

—Lorde Wulf pediu que eu trouxesse água para um banho.

Rosalind imaginou que nada poderia ser melhor do que um banho. Sentiu-se triste por Armond não estar ali para fazer-lhe companhia. Enfim, tirou o roupão e deixou o corpo dolorido relaxar na água. Suas barras de sabão estavam arrumadas ao lado e o perfume de lavanda logo a acalmou. Submergindo um pouco mais, deixou-se ficar com os olhos fechados. As doces lembranças de fazer amor com Armond brindaram o rosto sonolento com um sorriso.

O desejo de ambos havia se consumado e estabelecido. Mesmo que o dia não houvesse começado da melhor forma, não significava que o relacionamento não se desenvolveria conforme o esperado.

Tentou manter-se confiante e não pensar nos problemas com a madrasta, aquela nódoa escura que manchava sua felicidade. Se ao menos tivesse uma prova irrefutável da culpa de Franklin, eles poderiam entregá-lo às autoridades.

Imaginou se a mãe de criação estaria melhorando sem a dose diária do chá.

A quantidade de pensamentos que povoavam a mente de Rosalind impediram-na de relaxar durante o banho. Saiu da banheira e se enxugou em uma toalha felpuda. Depois de se vestir foi até o quarto de Armond. Tocou os objetos pessoais dele, sentindo falta da presença forte e masculina a seu lado naquela manhã. De súbito, deparou-se com um livro antigo e curioso. Puxando-o da prateleira considerou tomá-lo emprestado para ler.

Ao abri-lo, um pedaço de papel amarelado caiu no chão. Ela curvou-se para pegá-lo. Estava escrito em latim, mas graças aos tutores que tivera, conseguiu decifrar o que estava escrito. Era um poema.

— Já está vestida, lady Wulf? — Hawkins perguntou, batendo na porta.

Assustada, Rosalind colocou o pedaço de papel de volta dentro do livro.

— Sim, Hawkins, pode entrar.

— Lorde Wulf me pediu para informá-la de que a condessa de Brayberry irá mandar um coche para buscá-la agora de manhã — informou o mordomo.

— Será que pode trazer uma bandeja com o meu desjejum? Ainda preciso terminar de me arrumar.

— Sim, lady Wulf — Hawkins anuiu e deixou o quarto. Sozinha novamente, Rosalind olhou para o livro, colocou-o embaixo do braço e seguiu para o outro quarto. Sentada à escrivaninha, pegou a folha de papel, desdobrou, esticando-a sobre a mesa. No entanto, só teve tempo de traduzir a primeira linha antes que Hawkins batesse à porta, trazendo a bandeja com o café.

Pela maneira como Hawkins encarou os cabelos desarrumados, ela entendeu que deveria perder um pouco mais de tempo com a aparência. Isso significava que não teria tempo de voltar a ler o poema, cuja primeira linha a intrigou:

Maldita seja a bruxa que me amaldiçoou.

Hawkins acompanhou Rosalind até a carruagem, onde um lacaio a aguardava segurando a porta do coche.

Com a carruagem já em movimento, ela olhou para trás e notou o lençol estendido na sacada da casa vizinha.

— Oh, Deus!

— Milady? — perguntou o lacaio, notando-a inquieta. De repente sentiu-se invadida por uma onda de emoções conflitantes.

E se Mary estivesse precisando de ajuda? E se sua madrasta tivesse saído do estado letárgico e já pudesse conversar?

Movida pela necessidade premente de verificar o que estava acontecendo, pediu para que o coche fosse parado.

— Desculpe-me, mas eu me esqueci de um compromisso que havia marcado para esse mesmo horário. Por favor, peça desculpas à condessa por mim.

Como não poderia contestá-la, o lacaio desceu para abrir a porta do coche.

Assim que ficou sozinha, Rosalind seguiu pelo caminho pedregoso até chegar ao gramado que ficava entre as duas casas.

Mary havia deixado a porta dos fundos aberta para que ela entrasse pela cozinha. Apesar de o sinal ter sido dado, subiu cuidadosamente as escadas. A porta do quarto de Franklin estava aberta, não havia ninguém. Subiu mais um lance de escadas até o quarto da madrasta e encontrou Mary ralhando:

— Acalme-se, Vossa Graça. Debatendo-se assim, vai acabar se machucando.

— Nossa Senhora! — Rosalind exclamou, correndo para ajudar a governanta. — O que está acontecendo?

— Eu sinalizei para milady porque já não sabia mais o que fazer. Eu suspendi o chá ontem e hoje pela manhã, conforme combinamos, e ela está enlouquecida. Não posso nem contar ao Sr. Chapman o ocorrido porque ele descobrirá que desobedeci suas ordens.

Rosalind tentou deitar a duquesa, depois sentou-se ao seu lado na cama.

— Por favor, fique deitada ou vai acabar se machucando.

— O chá — sussurrou ela num fio de voz. — Preciso tomar o chá.

Apesar de lamentar o estado da duquesa, Rosalind regozijou-se por ouvi-la.

— Não pode tomá-lo. A senhora vem sendo drogada há meses.

A testa da duquesa estava coberta por uma fina camada de suor e o corpo frágil tremia inteiro.

— Ele me viciou — ela murmurou, batendo os dentes. — Se eu não tomar o chá, vou enlouquecer.

Rosalind não havia considerado que a falta do chá causaria uma série de sintomas de abstinência. O certo seria ir deixando a bebida cada vez mais fraca.

— Mary, você ainda tem as folhas de chá?

A governanta respondeu que sim com um sinal de cabeça.

— Ótimo. Corra e faça uma xícara para a duquesa, mas bem fraco.

Quando Mary desceu, Rosalind ficou acariciando a cabeça da madrasta, enquanto falava palavras de conforto. Apesar dos sintomas desconfortáveis, era a primeira vez em que via a duquesa dando sinais de vida desde que chegara a Londres. Aquilo renovava suas esperanças, ao mesmo tempo em que a deixava muito preocupada. E se a decisão de tirar o chá a fizesse piorar?

— Sinto muito — sussurrou ela no ouvido da madrasta em meio às lágrimas. — Eu só queria ajudá-la.

Para sua surpresa, a senhora segurou-lhe a mão, acariciando-a.

— Sei que tem vindo me ver. É um conforto vê-la sempre.

— Eu não vou deixar que Franklin saia ileso dessa maldade. — Rosalind levou a mão enfraquecida da madrasta ao rosto. — Vou cuidar para que ele pague pelo que está fazendo com a senhora.

De repente o corpo da duquesa tremeu ainda mais.

— Você está em perigo. Esse meu menino é um monstro. Pensei que pudesse mudá-lo, mas não consegui.

— Não diga nada agora — Rosalind pediu. — Salve suas energias.

— Pronto, milady, aqui está o chá — anunciou Mary ao entrar no quarto apressada.

Juntas, Rosalind e Mary ajudaram a duquesa a tomar. Assim que terminou, ela recostou-se e caiu no sono.

—Acho que agora ela vai sossegar — Rosalind assegurou à governanta. — Dê mais uma xícara mais tarde, porém deve ser cada vez mais fraco, assim ela não sofrerá com a abstinência.

A última coisa que Rosalind desejava era deixar a madrasta, mas já tinha ficado tempo demais longe de casa.

— Mary, daqui em diante só estenda o lençol se for realmente urgente. Só poderei voltar aqui na companhia de Armond. Franklin é um homem perigoso. — Rosalind começou a se preparar para sair. — Você também tem que tomar cuidado com ele. Em hipótese alguma ele pode saber o que fizemos com minha madrasta.

A criada assentiu com um sinal de cabeça e Rosalind correu para fora do quarto, escada abaixo. Só tornou a respirar com calma quando ultrapassou a cerca divisória das propriedades, e já seguia pelo caminho de pedregulhos que conduzia à casa.

 

De sua carruagem, Armond observava o escritório do corretor. Vários homens entravam e saíam, mas não aquele que o interessava.

De posse de uma mochila, ele saiu da carruagem e se aproximou do escritório. O corretor levantou os olhos quando o viu entrar e o reconheceu imediatamente.

— Ah, então o senhor voltou.

Armond sentou-se à frente do homem e resolveu perguntar diretamente:

— O visconde Harry Penmore é um de seus clientes?

— Já lhe disse que não posso dar informações sobre meus clientes — respondeu o corretor, piscando seguidas vezes. — Quem é o senhor? E com que direito vem aqui...

— Sou lorde Wulf, marquês de Wulfglen, conde de Beaumont — ele interrompeu o corretor e apanhou a mochila, de onde tirou vários maços de dinheiro, espalhando-os sobre a mesa. — Quero comprar a propriedade que Penmore estava interessado recentemente.

— Mas o senhor nem perguntou o preço.

— Estou certo de que esta quantia é mais do que suficiente, não?

—- Sim — concordou o corretor, com os olhos brilhando de cobiça pelo dinheiro.

Depois de sair da corretora, Armond seguiu direto para a casa da condessa de Brayberry para ver como Rosalind estava lidando com as roupas novas.

Rosalind. Só em pensar naquele nome, já sentia o corpo reagir, além da culpa que o assolava por tê-la destratado na noite anterior. Aquele corpo virginal não estava preparado para recebê-lo com tamanha voracidade.

Foi preciso muita força de vontade para deixar o quarto de manhã e não possuí-la novamente. Agora que ela havia se entregado plenamente, não teria mais como resistir. Na realidade, sabia que sua sede por ela jamais seria aplacada. Bastava se afastar por alguns minutos que já se sentia no mais árido dos desertos.

Contudo, não havia esperanças porque sabia que estava fadado a viver sem ela. A maldição logo se encarregaria de afastá-la para longe, aliás, sua vida inteira seria conduzida para uma floresta de sombras sem uma nesga de luz para guiá-lo ou dar alguma esperança.

 

Rosalind estava com o poema nas mãos novamente, quase o tinha esquecido por conta do problema com a madrasta. E ainda havia um problema para terminar a leitura: a tradução. A noite se aproximava e a luz do dia despedia-se rapidamente.

Aproximando-se da janela, notou que algumas linhas estavam menos apagadas do que as outras. Ela, então, leu em voz alta:

Traída por amor, minha própria língua falsa, ela ordenou à lua que me transformasse. O nome de família, antes meu orgulho, tornou-se a besta que me assombra.

Quando pensou em que nome de família seria aquele, ela olhou para a assinatura. Em uma primeira leitura, havia ignorado porque aquela era a parte mais apagada e mais difícil de ser decifrada do poema.

— Ivan Wulf... — murmurou quando finalmente conseguiu ler e imediatamente sentiu um calafrio subir por seus braços, chegando a levantar a pele do pescoço em arrepios.

Piscou seguidas vezes e deixou o olhar perder-se pela paisagem da janela, para descansar a vista depois de tê-la forçado muito. Assim que recuperou o foco, avistou o lençol estendido na varanda da casa vizinha.

Se Mary havia dado o sinal era porque alguma coisa tinha acontecido.

Deixou o poema em cima do livro em seu criado-mudo. A preocupação a fez esquecer as palavras que acabara de ler.

Não levou muito tempo para que chegasse ao gramado que dividia as duas propriedades e correr até a casa. Estava ofegante quando encontrou a porta dos fundos aberta, outro sinal de que era esperada. Passou às pressas pela cozinha e quando começou a subir as escadas uma voz grave a deteve:

— Olá, Rosalind.

Prendendo a respiração, ela olhou para trás e viu Franklin parado no segundo lance de escadas, bloqueando sua passagem.

— Onde está Mary? — ela quis saber ofegante, enquanto lutava para que sua respiração voltasse ao normal, disfarçando o medo.                                                      

— Eu insisti para que ela fosse visitar a filha — retorquiu ele. — Pretendo cuidar da minha pobre mãe esta tarde.

Rosalind relanceou o olhar para a escada que levava ao quarto da duquesa.

— Ela está dormindo, como sempre — informou ele. — Eu queria vê-la, Rosalind. Descobri sobre o sinal do lençol. Se queria segredo não deveria esquecer as anáguas jogadas na sacada. Eu as vi na última vez em que esteve aqui, quando saía de casa. Naquela manhã, fingi estar saindo e esperei para ver se Mary penduraria o lençol. Quando ela o fez, não demorou muito e a vi correndo pelo gramado.

— Você me enganou — sussurrou ela.

—Você não me deixou outra alternativa — respondeu ele sorrindo, embora a expressão não tivesse atingido o olhar. — Penmore já cansou de substitutas, agora quer você.

— Penmore? — Então era ele o parceiro de Franklin nos crimes? Agora tudo fazia sentido.—Ele é tão culpado quanto você — concluiu.

— Mas o título e a riqueza dele fazem sua palavra valer mais do que a minha. Ele gosta de jogar. Ele matou Lydia, deixando-a em minha casa, como um lembrete de que não posso negar-lhe nada, nem mesmo você. Foi ele quem me forçou a deixar outra mulher morta no estábulo de Armond, afastando assim a suspeita de que matei Lydia. Ele não mede esforços quando se trata de conseguir o que quer. É uma pena que queira você.

— Por que você me trouxe de volta a Londres?

— Eu tinha um plano de fuga — admitiu ele. — Pensei que se conseguisse vendê-la pelo maior preço, venderia a casa e pegaria a herança de minha mãe, deixada pelo seu pai, uma vez que já tivesse providenciado sua morte. Daí então, eu poderia escapar. Ir para outro país, comprar um título e desfrutar a vida que seu pai me negou. Só não contei com que Penmore aparecesse e decidisse que queria tê-la.

A medida em que ele ia confessando, Rosalind ficava mais lívida. Franklin não hesitava em usar as pessoas para se favorecer. Ele simplesmente não tinha coração.

— Se você planejou matar sua mãe por ganância, então é um monstro igual a Penmore.

— Eu sei — admitiu ele, dando de ombros. — O mundo está cheio de pessoas como ele, Rosalind, meu pai era um deles. Ele batia na duquesa e em mim. Foi uma pena o dia em que ele me pegou caçando, quando eu tinha dez anos, e acidentalmente desviei a mira e o matei. Minha mãe pensou que ainda havia esperanças para mim, mas ela estava errada. Era tarde demais, eu já tinha descoberto que a única maneira de sentir-se bem era controlando as pessoas, exatamente da maneira como venho fazendo.

Franklin a considerava fraca, mas ela não era, embora tivesse sido humilhada a ponto de quase sucumbir antes de Armond resgatá-la.

Ela não se lembrava se a porta do quarto da duquesa tinha tranca, mas valia a pena tentar mesmo que isso o segurasse por um tempo apenas. Talvez tivesse a sorte de encontrar alguma coisa que servisse de arma para se defender.

Tentou escapulir pelas escadas, porém Franklin a alcançou, puxando-a pela mão. Quando tentou gritar, ele tapou-lhe a boca e arrastou-a para o patamar do primeiro andar. Ela lutou com todas as forças, enfiando as unhas na mão que a amordaçava. Quando conseguiu mordê-lo, ele a soltou blasfemando, mas só conseguiu subir alguns degraus, e foi pega novamente pelos cabelos. Virando-a Franklin a esmurrou com tanta força, que ela viu pontos de luz dançarem à sua frente, antes de mergulhar na escuridão.

 

Armond chegou em casa de péssimo humor. Fora buscar a esposa na casa da condessa e descobriu que ela não estivera lá. Foi informado pelo lacaio de que Rosalind havia dito que tinha outro compromisso, por isso não pôde comparecer à casa da condessa de Brayberry. Mas que compromisso?

Hawkins o cumprimentou quando chegou em casa.

— Lady Wulf está em casa?

— Acho que sim, milorde. Não a vi desde que subi para informar que o jantar seria servido em breve.

Em passos firmes, Armond passou pelo mordomo e seguiu escada acima para o quarto dela, mas não havia ninguém ali. Olhando ao redor, viu o livro na mesinha-de-cabeceira com o papel amarelado. Quando percebeu do que se tratava, sentiu o coração pulsar mais rápido.

Então, ela descobrira a verdade...

Na certa, havia lido o poema e associou que fazia referência a ele e aos irmãos. Com as mãos trêmulas, colocou a folha de volta onde estava. Era preciso conversar com ela, explicar tudo o que sabia, preveni-la do que poderia acontecer, suplicar que o perdoasse por não haver contado antes.

Mas para onde ela teria ido? Será que tinha fugido em desespero? Se fosse isso, onde iria procurar proteção?

Decidiu buscar pela casa primeiro. Se Hawkins não a tinha visto sair, ela poderia estar escondida, tal pensamento o fez padecer fisicamente. Imaginá-la escondida como se temesse ser machucada por ele... Pior era saber que não podia garantir que não o faria caso a besta o dominasse.

Movimentou-se pelo cômodo, sentindo o perfume mais forte em certas áreas onde ela provavelmente havia estado por último.

Ao sentir o cheiro mais forte perto da janela, parou ali, olhando a paisagem com os pensamentos em turbilhão. Quando já estava de saída, olhou mais uma vez pela janela e viu o lençol na sacada da casa vizinha. A busca terminava ali, pois sabia o que aquele sinal significava.

Saiu às pressas, desceu a escada correndo e seguiu pelo caminho pedregoso até a porta da casa vizinha, que estava trancada. Ele bateu seguidas vezes para anunciar sua presença, mas não foi atendido.

Seguiu até a lateral e viu que a carruagem e o coche estavam ali, o faeton não. Não havia movimento algum dos criados.

Olhando para a sacada viu que o lençol ainda estava lá, dançando com a brisa. Aproximou-se da treliça e começou a subir. Como as portas da varanda do antigo quarto de Rosalind estavam abertas, ele entrou na casa silenciosa; parecia não haver ninguém por ali. O fato o intrigou, ao menos a madrasta de Rosalind haveria de estar em casa. Resolveu subir as escadas até o terceiro andar. A porta do quarto estava aberta e dali vinha uma luz fraca, iluminando o corpo da senhora adormecida na cama. Aproximando-se, ele ficou a observá-la. O pressentimento de que Rosalind estava em perigo vinha cada vez mais forte, pois o perfume de alfazema e o cheiro de Franklin eram sensíveis na casa inteira.

No desespero, ele tocou gentilmente os ombros da senhora, que abriu os olhos e o encarou.

— Vossa Graça sabe onde está Rosalind? — perguntou em tom baixo.

A duquesa fechou os olhos novamente. Sabendo de seu estado, ele virou-se para seguir procurando pela casa.

— Ele a levou. — Ouviu uma fraca voz vinda da cama. — Eu a ouvi gritar e não pude fazer nada para ajudá-la. Você precisa salvá-la. Ele é um monstro.

Armond sentiu o sangue congelar e ao imaginar o que Franklin seria capaz de fazer com Rosalind, aproximou-se da cama novamente.

— Onde está sua governanta? Não posso deixá-la sozinha aqui.

— Imagino que ele tenha dado folga a ela para poder praticar suas maldades — a duquesa respondeu com voz fraca. — Você precisa detê-lo, ele é louco, tão louco quanto o pai. Sempre tive esperanças de que ele mudaria, tentei salvar sua alma, mas não fui capaz. Percebi que não havia mais jeito quando ele matou aquela mulher aqui em casa, eu a ouvi gritar. Aconteceu em uma das festas que ele costumava fazer aqui. Alguma coisa saiu do controle e ele quis jogar a culpa em outra pessoa. Eu disse que não poderia e que seria melhor que confessasse e se responsabilizasse por seus crimes. Mas a ira dele se virou contra mim.

— Posso carregá-la até minha casa — Armond ofereceu.

— Não — insistiu ela. — Minha vida já está no fim, enquanto que a de Rosalind está apenas começando. Ela está apaixonada. Eu a ouvi confessar para mim. Você deve ir agora, tire-a das garras de Franklin.

 

Rosalind abriu os olhos e se viu diante de Franklin que, encostado na parede, a encarava. Chamas de várias velas tremeluziam dentro do quarto vazio. Ela estava deitada no chão sobre um colchão sujo. Sentiu o maxilar doendo e imaginou que estava machucado. Tentou mexer as mãos para tocar o ponto dolorido, mas percebeu-as amarradas atrás das costas. Quando tentou mover os pés notou que também estavam imobilizados.

— O que vai fazer comigo? — ela quis saber e odiou o tremor de sua voz, que fez Franklin sorrir.

— Não tenho tanta certeza de que queira saber — informou ele. — Lembra-se quando contei que Penmore tinha problemas com sua masculinidade?

Ela respondeu com um sinal de cabeça.

— Bem, não contei o problema todo — disse ele, desencostando-se da parede e começando a andar de um lado a outro, em frente ao colchão. — É certo que Penmore tem um problema, mas na noite em que eu e Bess o estávamos divertindo, ele percebeu que uma coisa o ajudava, e muito, com o problema.

Rosalind tentou mexer as mãos que já estavam adormecidas. Percebendo o movimento, ele colocou um pé sobre as frágeis costelas, provocando-a:

— Preste atenção, você não pode fugir — garantiu. — Agora, onde eu estava mesmo? Ah sim... Então estávamos bebendo e jogando cartas quando decidi que queria ficar com Bess mais intimamente e eu a possuí ali mesmo na sala. Penmore ficou excitado em nos ver, contudo quando foi sua vez, Bess não quis colaborar. Eu a espanquei até que concordasse em servi-lo, mas a vagabunda insistia em gritar e espernear. — Franklin fez uma pausa para voltar a caminhar de um lado a outro, antes de continuar: — Minha mãe dormia em seu quarto, por isso eu não podia permitir que aquela mulher continuasse gritando. Então, bati com mais força e a estrangulei. Penmore ficou ainda mais motivado pela surra do que pelo ato sexual que tive com Bess. Achei que a tivesse matado. Penmore a possuiu, enquanto ela estava inerte no chão. De repente, minha mãe me chamou de seu quarto. Eu tinha que mantê-la afastada, impedindo que descesse e visse a mulher morta, então subi e conversamos por algum tempo. O idiota do Penmore distraiu-se ao servir uma bebida, dando as costas para o corpo inerte de Bess.

— Mas ela não estava morta — Rosalind acrescentou, já sabendo o final daquela desgraça.Franklin enfureceu-se com a interrupção e agarrou-a pelo pescoço.

— Ainda não terminei a história. Cale a boca! Rosalind engasgou-se, procurando   desesperadamente respirar. Quando Franklin percebeu que a estava sufocando, soltou-a. Depois, levantou-se, ajeitou a roupa e continuou com aquelas passadas irritantes pelo quarto.

— A vagabunda escapou pela porta dos fundos e conseguiu chegar até o estábulo do seu marido. Eu a segui, mas assim que cheguei lá o bastardo voltou para casa. Foi quando percebi que a sorte havia virado para o meu lado. Todos sabem que os Wulf são perigosos e amaldiçoados pela loucura.

Armond pareceria mais suspeito do que eu, se tivesse a péssima idéia de chamar as autoridades, o que é claro, foi exatamente o que fez. Pensei então que o desfecho havia sido melhor do que eu imaginara. Penmore gostou tanto da aventura que me ameaçou, dizendo que se não repetíssemos a dose, ele me acusaria e eu acabaria enforcado. Eu estava nas mãos dele, não só pela dívida de jogo, mas também pela ameaça de me entregar às autoridades.

Franklin fez uma nova pausa para limpar o suor que escorria de sua testa com a manga da camisa.

— Tentamos repetir a festa, mas sem matar as prostitutas. Porém, Penmore não ficava satisfeito. Ele não conseguia uma ereção e tivemos que brincar com novos jogos para mantê-lo entretido. Uma delas era vestir a mulher com roupas sofisticadas e ele fingia estar possuindo uma inocente lady da sociedade, que obviamente não seria possível sem enfrentar sérias conseqüências... até você aparecer. Eu deveria ter previsto... — ele admitiu, embora não parecesse sentir culpa alguma. — Ele sabia que você não tinha família, além de mim e minha mãe, que aliás tive que drogar para mantê-la calada. Quando ela soube que uma moça fora encontrada morta na casa vizinha, concluiu que eu era o responsável. Quis que eu me apresentasse para as autoridades, contando toda a verdade e assumindo a responsabilidade pelo meu ato. Fingi considerar a proposta até conseguir dopá-la com o chá que mandei fazer: chá com ópio. Bem, depois... você sabe o restante da história.

— Por que Penmore queria se casar comigo? — ela quis saber.

— Para que pudesse saborear um banquete sozinho. Ele teria uma dama da sociedade que trataria como uma prostituta, e que não teria absolutamente ninguém para vir em sua defesa.

Rosalind sentiu o corpo inteiro tremer, não só de medo, mas de desgosto também. Pensou em acusá-lo, dizendo que sabia sobre o chá adulterado, mas só colocaria a duquesa em perigo.

— O que vai fazer comigo?

— Faremos tudo o que quisermos — respondeu ele, estreitando a distância que os separava.

De repente, ouviram-se passos se aproximando e Penmore entrou no quarto. Quando a viu abriu um largo sorriso.

— Lady Rosalind, que prazer em vê-la.

— Vocês não vão se safar impunes — Rosalind ameaçou. — Meu marido sabe de seus planos maquiavélicos. Sabe que você também está envolvido, Penmore.

— Seu marido é uma peste. — Penmore zangou-se. — Nunca o perdoarei por ter pego uma coisa que me pertencia. Ele estragou tudo.

— Ele o matará se puser a mão em mim — garantiu ela. Os dois homens se entreolharam com ares de desdém.

— O mais divertido de tudo — explicou Penmore. — é que planejamos que parecerá óbvio que ele seja o responsável por sua morte. E pensar que você poderia ter continuado viva se não tivesse se casado com Wulf. Você seria minha esposa e seria forçada a divertir seu irmão e eu até nos cansarmos da brincadeira. Se bem que acredito que não nos cansaríamos por um bom tempo. Você é tão linda, Rosalind.

— Vocês são loucos! — ela vociferou.

— Vamos lá, Franklin — ordenou Penmore. — Cansei de conversa fiada. Quero experimentar os encantos dessa dama e preciso de um estímulo adicional.

Franklin ajoelhou-se ao lado dela e quando seus olhares se encontraram ela tentou apelar pelo bom senso:

— Franklin, por favor, não faça isso — sussurrou. — Sou sua irmã, temos praticamente o mesmo sangue.

Um laivo de tristeza o tomou, mas em seguida ele estudou cada centímetro do corpo perfeito.

— Há anos espero por isso — confessou. — Você se lembra do dia em que a convidei para um jogo no celeiro?

— Não... — respondeu ela, tentando se lembrar.

— Bem, seu pai se lembraria se estivesse vivo. Eu a teria possuído se um estúpido cavalariço não nos tivesse ouvido e corrido para pedir ajuda. Foi por isso que fui expulso de casa e avisado para nunca mais voltar.

Franklin estreitou ainda mais a distância que os separava e em um rompante rasgou o corpete do vestido, deixando-a ofegante de medo e repulsa. Ela tentou lutar, mas amarrada, seus esforços foram em vão.

Franklin puxou uma faca do cinto. Rosalind imaginou que ele rasgaria seu pescoço e achou que a morte seria melhor do que os dois tinham em mente. Em vez disso, ele começou a cortar os laços do espartilho, para depois escorregar a faca pelo tecido fino da combinação, cortando-o de repente. Não demoraria muito para que ela ficasse nua até a cintura. — Deixe-me vê-la — exigiu Penmore. — Quero admirá-la também.

Humilhada, viu Franklin se afastar para que Penmore pousasse os olhos odiosos sobre seu corpo.

— Perfeita. Exatamente como eu imaginava... — disse ele com o brilho da luxúria nos olhos.

Franklin se aproximou e colocou a mão sobre um seio, fazendo-a gemer de ódio. Em seguida, desceu as mãos calejadas, cortando a corda que prendia os tornozelos delicados. Vendo-se livre, Rosalind não hesitou em chutá-lo e golpeá-lo no braço, fazendo com que a faca voasse longe. Praguejando, ele agarrou-lhe as pernas, separando-as com força antes de arremessar seu peso sobre ela, deixando-a sem ar.

— Encoste a mão nela e farei com que tenha uma morte lenta e dolorosa...

Rosalind sentiu que Franklin ficou paralisado. Armond havia chegado para socorrê-la.

— Saia de cima da minha esposa, Franklin. Odiaria precisar sujar a arma que tenho apontada para sua cabeça.

Franklin obedeceu, movendo-se para longe dela.

— Agora quero os dois imóveis ali no canto.

— Há uma faca em algum lugar do assoalho — Rosalind advertiu. — Eu a chutei das mãos de Franklin,

— Presumo que um dos dois esteja com uma arma escondida — Armond disse. — Abram os casacos.

Os dois obedeceram e a arma de Penmore reluziu na cintura. Armond o instruiu para colocá-la no chão e chutá-la em sua direção. Sem desviar a mira dos dois facínoras, agachou-se para procurar a faca, encontrando-a sem muita dificuldade.

Cuidadosamente, colocou a faca ao lado de Rosalind e tirou o casaco para cobrir a nudez, antes de ajudá-la a se levantar.

— Como foi que me encontrou? — perguntou ela, ainda trêmula.

— Comprei esta casa hoje. Não foi difícil convencer o corretor a me dizer em qual propriedade Penmore estava interessado. Bastou pagar o dobro pelo que a casa valia para tê-la imediatamente.

Franklin lançou um olhar acusador para Penmore, obviamente culpando-o por não prever aquela possibilidade e deu um corajoso passo em direção a eles. Bastou Armond erguer a pistola para que voltasse para o lugar.

— Adoraria que algum de vocês tentasse fazer alguma coisa enquanto libero os pulsos de minha esposa. É só o que me impede de não matá-los agora, mas não vou forçar Rosalind a testemunhar uma cena tão deprimente.

— Deixe-me chamar a polícia — Rosalind pediu. — Não quero que suje suas mãos com sangue criminoso.

Ao olhar para o marido, notou que sua testa estava coberta de suor e que as mãos estavam tremendo ao cortar a corda de seu pulso. Ele parecia doente.

— Pode ser — Armond concordou antes de desviar o olhar para os outros dois. — Sua mãe está bem melhor, Franklin. Foi ela mesma quem me contou que você estava com minha esposa.

Rosalind sentiu uma profunda satisfação ao notar o rosto de Franklin empalidecer e o maxilar contrair de tensão.

— Quero que saia daqui — Armond pediu. — Pegue meu cavalo e vá embora.

— Chamar as autoridades?

— Não — respondeu ele em tom suave. — Vá para casa de sua madrasta e cuide dela. Ela está sozinha, logo estarei lá também.

Ela sabia que Armond iria matar os dois por sua causa. Será que conseguiria viver com aquele peso na consciência?

— Armond — sussurrou, colocando a mão no braço dele. — Deixe que a Justiça decida como puni-los.

— Sou eu quem vai decidir!

Rosalind viu que os olhos de Armond adquiriram um brilho azulado e conforme falava, seus caninos mais longos e pontiagudos ficavam evidentes.

— O que está acontecendo com você?

De repente ele curvou-se em dor. Em seguida, arfou e tentou se endireitar, colocando as duas armas nas mãos dela e tomando a faca, atravessou o quarto a passos largos.

— Vá embora agora!

Franklin tentou mover-se, mas ela o viu com o canto dos olhos e virou-se no mesmo instante, empunhando as duas armas apontadas para os dois assassinos. Seu pai a havia ensinado a atirar, por isso não foi difícil engatilhar rapidamente uma arma depois a outra.

— Para trás — advertiu.

— Vá, Rosalind! — Armond exclamou, curvando-se novamente.

— Não vou a lugar algum — ela o enfrentou, alterando o olhar para o marido e para os dois homens. — Não vou deixá-lo enquanto estiver doente.

Apesar da dor, ele levantou os olhos para encará-la e por uma fração de segundo aquele misterioso brilho azulado desapareceu.

— Eu te amo, Rosalind. Sempre a amei, mas a maldição está tomando conta de mim. Por favor, vá.

Lágrimas turvaram-lhe a visão, mas piscando seguidamente ela conseguiu manter Franklin e Penmore sob a mira das armas. Lembrava-se de ter lido sobre a maldição naquele poema. Era algo sobre a lua transformá-lo em uma besta. Seria possível acreditar em uma coisa daquelas?

Rosalind sentiu-se tão vulnerável quanto o marido, ao vê-lo agachado no chão. Penmore e Franklin observavam Armond como dois abutres acompanhando a morte de um animal.

De repente Armond fechou os olhos e gemeu. Começou a rasgar as roupas enquanto suas mãos se transformavam; as unhas sobressaíam das pontas dos dedos como garras. Por instinto, afastou-se.

— Que diabos está acontecendo com ele? — indagou Penmore.

Franklin estava espantado demais para responder, enquanto Rosalind observava horrorizada a transformação do marido.

Armond continuava a se retorcer no chão. O corpo mudava de forma, os pêlos cresciam perante seus olhos até cobrirem-no por inteiro. Um homem foi ao chão, mas foi um lobo que se ergueu sobre quatro patas.

Era um lobo de olhos prateados brilhantes e presas ameaçadoras que apareciam conforme rosnava para Franklin e Penmore.

— Atire nele, Rosalind! — Franklin gritou.

Uma das pistolas foi direcionada para a besta, que parou para olhar para ela. Rosalind o encarou no fundo dos olhos e sentiu que Armond estava preso em algum lugar daquele corpo de fera. Preso e amaldiçoado. Por um instante achou que iria desmaiar, mas não podia. Lembrou-se que ainda estava com a outra arma apontada para Franklin.

— Não — respondeu em um sussurro. — Eu não vou matá-lo.

Penmore correu para a porta e em um salto mortal a fera o alcançou. Os gritos ecoaram pela casa vazia.

No momento seguinte Franklin estava lutando com Rosalind, tentando pegar uma das armas. Ela sabia que se deixasse, ele mataria o lobo e junto com ele, Armond. Uma força descomunal apoderou-se dela, a adrenalina correu por suas veias, enquanto tentava atirar no irmão. Ele conseguiu tirar a pistola de sua mão e em uma última tentativa de defesa ela o chutou.

Franklin a estapeou, prensando-a contra a parede. A pistola caiu e ele curvou-se para pegá-la quando de repente o lobo acercou-se, rosnando baixo, os irradiantes olhos focados na presa.

Em vez de tomar a arma, Franklin colocou Rosalind a sua frente, deixando-a face a face com a besta. O rosnado parou imediatamente. Ela encarou o lobo.

— Armond — sussurrou. — Não me mate.

Ela desviou o olhar para ver Penmore arrastar-se pelo chão, com a mão segurando o pescoço ensangüentado. Com o medo aflorando na pele, voltou a olhar para o lobo, que direcionava os olhos ameaçadores para Franklin, retraindo os lábios, expondo as presas mortais.

Franklin usava Rosalind como escudo na tentativa de chegar até a porta do quarto. O lobo os seguiu, grunhindo, porém sem atacá-los.

Penmore soltava sons sufocantes, arrastando-se até eles.

— Não me deixem aqui...

A voz gutural atraiu a atenção da besta que pulou em cima dele. Franklin usou aquele momento de distração para puxar Rosalind porta afora, fechando-a ao passar antes que o lobo percebesse. Os sons das patas arranhando a porta foram ouvidos logo em seguida.

Franklin segurou-a pelo braço, arrastando-a pela casa. A porta da frente estava aberta e não demorou muito para que pegassem o faeton, deixado ao lado da casa. Havia outra carruagem ali. Ela imaginou que fosse de Penmore e o cavalo de Armond tinha as rédeas esquecidas no chão.

Franklin a fez subir no faeton, pegou as rédeas, desceu-as sobre os cavalos e partiram. Estavam indo rápido demais para que Rosalind pudesse pular. Como se tivesse adivinhado suas intenções, Franklin a golpeou, deixando-a desnorteada. Vacilando ainda, pensou novamente em se jogar do coche antes de desmaiar.

Ao acordar, Rosalind se achou deitada em uma cama conhecida. Estava na casa de Franklin. Tentou se mexer, mas o pulso doía muito, lembrou-se de que o irmão o forçara várias vezes desde que a levara até ali. O malfeitor de todas as suas dores estava sentado em uma cadeira em frente à lareira fria, encarando-a.

— Com o quê afinal você se casou? — ele inquiriu. — Um monstro?

O que quer que Armond fosse, não era tão monstruoso quanto o homem à sua frente.

Ele a reconhecera e não atacara; ao contrário, tentara protegê-la, inclusive quando estava dominado pela besta.

Compreendeu que aquele era o segredo que ele tanto escondia. A mesma maldição descrita por seu antepassado. Desejou ter tido tempo de ler o poema todo. Não tinha a menor idéia com o que estava lidando, ou o que Armond estava passando.

— Eu pensei que ele estivesse amaldiçoado pela loucura, mas o que vi é algo impossível de existir — comentou Franklin, e ela percebeu que a cena tinha atingido inclusive sua alma demoníaca. Suas mãos estavam visivelmente trêmulas, quando o viu corrê-las pelo cabelo. — Se souberem a verdade, ele será caçado e morto como um animal — ponderou. — Essa será a minha vantagem.

Não demorou muito para que Franklin voltasse a atenção para sua grande preocupação: ele mesmo.

— Como espera reverter as coisas a seu favor? — provocou ela. — Você é um assassino. Tanto eu como sua mãe somos testemunhas.

— Nenhuma de vocês representa uma ameaça para mim. Já fiz minha mãe tomar mais chá. Ela está dormindo. O único problema que me resta é você.

Rosalind imaginou se ele sabia que o chá que estava na lata não era mais aquele adulterado. Olhando pela janela, percebeu que o amanhecer já estava clareando o céu, o que significava que havia ficado inconsciente por horas.

— Tenho quase certeza de que a esta altura Penmore está morto — Franklin considerou. — E o corpo será encontrado na casa, cujo proprietário é seu marido. Armond é um animal e certamente assim permanecerá para sempre.

Céus! Rosalind não havia pensado naquela hipótese. Será? Não, seu ancestral fora amaldiçoado também e escrevera o poema. Um animal não podia escrever. O pai de Armond também padecera do mesmo mal e se suicidara. E provavelmente ao fazê-lo estava sobre a forma humana, pois um animal não conseguiria segurar uma arma e puxar o gatilho. Ela não fazia a menor idéia como Armond estaria naquele momento... um homem ou um lobo. Mesmo não tendo certeza, sabia que ele viria procurá-la de um jeito ou de outro. Mas como continuar viva até ele chegar?

— Ninguém sabia da sua ligação com Penmore, além da paixão pelo jogo — considerou ela. — Mas se você matar a mim e a sua mãe, na certa, as suspeitas recairão sobre você.

— Minha mãe continuará à beira da morte por mais um tempo. Quanto a você e Penmore, todos vão achar que vocês foram mais duas vítimas de lorde Wulf.

— E o que o faz pensar que eu queira continuar com um homem... que não é mais humano? — perguntou, sentindo-se tomada por um turbilhão de emoções: medo, choque e, acima de tudo, preocupação em como Armond estaria e o que seria de seu futuro. — Talvez possamos entrar em um acordo.

— Boa tentativa — respondeu ele, arqueando a sobrancelha. —Você não atirou nele, mesmo correndo risco de morte. Você está apaixonada por um monstro.

Rosalind calou-se, pensando no que acabara de ouvir. Suas emoções estavam tão machucadas quanto os arranhões em seu rosto delicado. Teria de julgar Armond pelo que ele fora antes da noite anterior. Ele não lhe ocultara a verdade. Contudo se ele tivesse contado, será que ela acreditaria se não tivesse visto a transformação com os próprios olhos?

Desde que o conhecera, ele a havia protegido e cuidado. Ele tomara a atitude certa quando Franklin e Penmore ameaçaram sua vida, primeiro como homem, depois como lobo.

— Ele pode ser um monstro — admitiu ela. — Mas não chega perto da sua maldade.

— Não precisava acabar dessa forma. — Franklin ficou em pé e aproximou-se da cama onde ela estava. — Você nunca deveria ter me deixado. Ao menos sob o meu teto, poderia continuar viva.

— Não consigo viver sob a sua tirania, sendo abusada e usada para seu próprio benefício. — Ela o enfrentou com o olhar.

— Entendo que não se importará em morrer, então...

 

Armond acordou nu e tremendo, deitado próximo a um homem morto. Quando percebeu, rolou para longe de Penmore, enojado pelos olhos vitrificados e pelo pescoço esfacelado. Olhou em volta e lembrou-se de Rosalind, Franklin e da maldição que o havia tomado, quando tentava salvar a esposa de ser morta. Puxando o cobertor, cobriu o corpo trêmulo. A preocupação revirava seu estômago, aumentando o enjôo. Olhando para a porta fechada, imaginou o que encontraria do outro lado. Teve medo, uma vez que não se lembrava do que havia ocorrido enquanto estava amaldiçoado. Teria Rosalind morrido de susto ao vê-lo naquela forma?

A porta estava toda arranhada. Notou que seus dedos estavam ensangüentados e as unhas quebradas. As lembranças ainda estavam turvas, mas recordava ter dito a Rosalind que a amava. Será que a tinha matado? Levantou lentamente e aproximou-se da porta fechada.

Ao abri-la, perscrutou o pequeno corredor, deparando-se com a porta da frente aberta. A luz da manhã infiltrava-se pela casa. Do lado de fora ainda se encontravam uma carruagem e seu cavalo.

Franklin havia escapado. O pressentimento de que ele levara Rosalind consigo era forte. Precisava salvá-la, embora sua vontade fosse fugir e se esconder do mundo, afundar-se na autocomiseração que ameaçava subjugá-lo. Mas ainda não era a hora, pois Rosalind precisava dele.

Voltando para o quarto onde jazia o corpo de Penmore, viu que suas roupas estavam rasgadas e jogadas a um canto; não lhe restou outra alternativa senão tomar as roupas do visconde.

Depois de vestido, rolou o corpo inerte de Penmore no cobertor para finalmente jogá-lo sobre o ombro. Uma vez fora da casa, aproximou-se dos cavalos, que se assustaram com sua presença. O próprio cavalo castanho com que chegara ali o estranhou. Ele entendeu na hora que seu cheiro estava diferente. No mesmo instante imaginou se Rosalind também se amedrontaria ao vê-lo novamente. Enfim, não havia tempo para se preocupar com aquilo, tinha de encontrá-la e salvá-la.

Ocorreu-lhe que Franklin a levara para sua casa, pois na certa estaria tão chocado por ter se defrontado com a besta, que não pensaria em outro lugar para escondê-la.

Depois de colocar o corpo de Penmore na carruagem, bateu para que os cavalos disparassem rumo à casa do dono. Em seguida, aproximou-se mais uma vez de seu cavalo, agora fazendo sons para ser reconhecido e esticando a mão para que o animal o cheirasse. O cavalo ainda estava arisco, mas não havia mais tempo a perder. E sem perder mais tempo, montou-o e seguiu galopando pelas ruas.

 

— Não me peça silêncio — Rosalind disse para Franklin. — Não vou me acovardar com a dor dos seus punhos, ou deixar que sinta poder pelo meu medo. Você não terá satisfação ao me matar. Eu não permitirei.

— Bravas palavras para uma mulher — zombou ele. — Quero presenciar sua bravura quando eu a possuir naquela cama.

Mesmo sentindo nojo e uma repulsa sem igual, ela não mudou a postura e continuou a encarar o irmão.

— Amei e fui amada pelo homem que escolhi, aquele que ganhou meu coração. Nada do que você fizer irá macular a memória do que vivi junto dele.

O sangue de Franklin subiu, fazendo-o vestir uma máscara carmim. Quão frustrante não se transformara sua vida desde que ela se casara com Armond? Ele a tinha tão perto, contudo distante de seu cruel alcance. Ah, ela pagaria o preço por toda aquela raiva represada. Disso não restava a menor dúvida.

Ela o encarou no fundo dos olhos à medida que ele se aproximava. Fechou as mãos em punhos, desejando ter garras, desejando ser acossada pela mesma maldição de Armond. Maldição que havia sido uma bênção na noite anterior e a salvara de ser estuprada por dois homens asquerosos.

— Você não tocará nela, Franklin.

A voz de comando surpreendeu a ambos. Ele se voltou para encontrar a duquesa, apoiada no batente da porta.

— A senhora não deveria estar aqui!

— Eu gostaria de ter chegado antes para salvar Rosalind — a duquesa murmurou com um fio de voz. — Durante meses você me prendeu na cama, mas eu sabia que ela vinha me visitar. E a cada vez que a via meu coração se apertava ao vê-la sofrer em suas mãos.

Os olhos de Rosalind se encheram de lágrimas na esperança de que a madrasta soubesse o quanto ela a amava. Imaginou o sofrimento de pertencer a um corpo que não respondia a qualquer estímulo, enquanto a mente ainda era capaz de entender as injustiças que aconteciam ao seu redor.

— Eu devia tê-la matado há tempos, mãe — Franklin disse. — Deveria ter calado para sempre essa sua voz de bondade para não ouvi-la nunca mais. A senhora é fraca. Se já não enfrentava meu pai, quando apanhava, não me confrontará hoje. Volte já para seu quarto. Mais tarde lido com a senhora.

— Não — assegurou a duquesa com a voz mais forte. — Não desta vez, Franklin. Pensei que pudesse ajudá-lo, mas você está além de qualquer auxílio. Você é a própria semente do seu pai, acabou herdando o que eu mais detestava nele. Rosalind sempre foi uma criança querida. Uma inocente que trouxemos para as trevas de nossas vidas. Não vou salvá-lo, mas a ela sim.

Dizendo isso, a duquesa levantou uma arma.

A velocidade com que Franklin pulou sobre a mãe foi tanta que a duquesa mal teve tempo de puxar o gatilho da arma e atirar.

Os dois foram ao chão e Rosalind pulou sobre as costas do irmão batendo com toda a sua força para impedi-lo de machucar ainda mais a duquesa.

Com um grito de indignação por se ver ameaçado por duas mulheres, Franklin conseguiu agarrar os cabelos de Rosalind num golpe rápido, levando-a ao chão.

Era evidente que sua paciência havia se esgotado. Assim, no minuto seguinte, ele a estrangulava com as mãos fortes, roubando-lhe o ar. Ela tentou livrar-se, ansiosa por respirar.

O som dos estilhaços do vidro da porta o distraiu, fazendo-o soltar a pressão dos dedos. Rosalind tossiu e tentou recuperar o fôlego.

Com os olhos marejados, viu Armond irromper no quarto. Ele usava um casaco estranhamente pequeno, que mal cobria o largo tórax nu. Mais parecia um pirata ensandecido, e ela exultou de alegria ao vê-lo.

—Wulf— Franklin balbuciou, saindo de cima de Rosalind.

— Eu avisei que se tocasse nela novamente, eu o mataria — sentenciou Armond. — Considere-se morto.

— Mas você é... é um lobo — Franklin gaguejou. — Vi com os meus próprios olhos sua transformação.

— Sim, mas agora sou um homem. —Armond aproximou-se a passos lentos. — Sou alguém que vai se certificar de que você nunca mais vai ameaçar minha esposa.

Franklin tentou correr e Armond o agarrou num piscar de olhos. Naquela manhã ele podia ser um homem, mas tal como a besta, não mostrou piedade alguma. Socou Franklin com tanta força até vê-lo dobrar-se de dor, para levantá-lo e golpeá-lo uma vez mais.

Rosalind não tinha dúvidas sobre o destino de Franklin. Engatinhou até a duquesa, que ainda estava deitada no chão.

— Vossa Graça — sussurrou, repousando a cabeça da velha senhora no colo. — A senhora está bem?

— Perdoe-me, querida — ela implorou, abrindo os olhos.

— Peço desculpas se por minha causa, Franklin à prendeu nesta casa. Quando deixei seu pai, parti com o coração apertado, mas tinha certeza de que poderia ajudar meu filho, pensei que seria capaz de mudar seu caráter. Doce ilusão, pois este já havia sido deformado fazia muito tempo pela violência.

— Não diga nada — pediu Rosalind. — A senhora não deve se culpar. Sempre foi muito carinhosa comigo. Jamaisirei acusá-la pela crueldade de Franklin comigo. Vou levá-la desta casa.

A duquesa fechou os olhos ao segurar a mão de Rosalind.

—Meu tempo terminou, minha querida; o seu está apenas começando...

Lágrimas corriam soltas pelo rosto de Rosalind, ao ver que a duquesa se despedia lentamente. Precisava ajudar a madrasta a qualquer custo.

— Armond! Temos de buscar um médico para a duquesa.

Mas ele estava ocupado demais para ouvir seus lamentos.

Franklin parecia inconsciente. Rosalind levantou-se e aproximou-se do marido, segurando-o pelo braço, antes que ele deferisse outro golpe.

— Pare! — gritou a plenos pulmões para romper a névoa de ódio que o dominava. — Minha madrasta está morrendo. Precisamos de ajuda.

Por um breve momento, ele se voltou como se não conseguisse focalizá-la o suficiente para entender suas palavras. Até que finalmente os braços relaxaram ao lado do corpo e largou o corpo inerte de Franklin.

— Franklin desferiu um golpe mortal — explicou ela. — Temo que a duquesa não sobreviva.

—Vossa Graça?—Armond chamou gentilmente. — Pode me ouvir?

— Eu o conheço — ela disse em um suspiro, abrindo os olhos. — Já ouvi muito a seu respeito, mas se Rosalind o ama é porque você tem um bom coração. Cuide dela.

— Não... — a voz de Rosalind falhou de emoção. — Não me deixe. Todos aqueles que amei me abandonaram.        :

— Vocês devem ir embora. — A duquesa lutou para respirar. — Eu não queria deixar essa propriedade como fardo para Rosalind. Ateei fogo no andar superior.

Rosalind estivera muito envolvida para notar o cheiro de fumaça, mas agora não havia como não senti-lo.

— Precisamos sair daqui! — vociferou para Armond.

Ele assentiu e rapidamente tentou levantar a duquesa pelos braços. Rosalind percebeu os olhos da madrasta se arregalarem em pavor. Ao virar-se, viu Franklin agigantando-se para cima dela, empunhando o atiçador de lareira.

— Não! —Armond gritou, porém antes que pudesse soltar a duquesa e impedi-lo, ouviu-se o estampido de um tiro.

Um filete de sangue escorria pela testa de Franklin. Rosalind voltou-se para Armond, não havia sido ele. De alguma maneira inexplicável, a duquesa ainda segurava a arma e conseguiu atingir o filho. A dor agora estampava aquele rosto sofrido, os olhos encaravam Rosalind, porém o brilho já não existia mais.

— Seja feliz. — Foram as últimas palavras ditas, antes de a duquesa desfalecer nos braços de Armond.

— Vossa Graça! — Rosalind cobriu as faces com as mãos e no instante seguinte, sentiu o toque reconfortante do marido sobre seus ombros.

— Ela se foi, minha querida. Precisamos sair daqui. Agora!

A fumaça começava a invadir o cômodo, fazendo-os tossir.

Armond tomou-a nos braços e seguiu pelo corredor em direção às escadas. As chamas já alcançavam o andar em que estavam. Em um ímpeto de desespero, ele abriu a porta do hall, e saiu para fora.

Só parou à entrada do estábulo dos Wulf, onde ele gritou para que os cavalariços tirassem os cavalos dali. Depois correu pelo caminho pedregoso e praguejou por Hawkins ainda não ter aberto a porta, pois teve que por Rosalind no chão para realizar a tarefa. Assim que o fez, ela entrou antes que ele.

— Hawkins! — Armond gritou e o mordomo apareceu em seguida.

— A casa vizinha está em chamas. Fique atento porque o fogo pode se alastrar.

Puxando-a pela mão, subiram as escadas. Assim que entraram no quarto, ele começou a livrar-se das roupas estranhas. Rosalind percebeu então que eram de Penmore.

— Queime-as — ordenou ele, depois de livrar-se da última peça.

Ela ainda estava em choque, parada no mesmo lugar, limitando-se a observá-lo correr de um lado a outro.

— Vou pedir para meu cocheiro levá-la para a casa da condessa de Brayberry — sentenciou, vestindo a camisa. — Diga a todos que depois de salvá-la, voltei à casa dos Chapman para salvar sua madrasta e Franklin. Mas você não me viu voltar e não sabe do meu paradeiro, entendeu?

— Como assim? — ela quis saber, enquanto piscava na tentativa de manter a calma.

— É o melhor que temos a fazer. Agora você sabe o motivo de eu não poder amá-la e por que nunca poderíamos ter filhos. A maldição passa de semente a semente.

Depois de tudo o que acontecera, tudo que ela havia testemunhado e suportado, ainda não conseguia entender o porquê daquelas palavras tão hostis.

— Você está me deixando. — De repente teve a dura consciência das intenções do marido.

— Estou poupando-a — corrigiu ele. — Pegue o que precisar e vá para a casa da condessa. Você é uma mulher livre. Franklin e Penmore não vão mais ameaçá-la. Estou lhe devolvendo a vida!

— Minha vida não significará nada se não o tiver a meu lado.

Ele desviou os olhos, e, por uma fração de segundo, Rosalind pensou tê-lo visto com os olhos marejados.

— Infelizmente não podemos ter tudo o que queremos. Adeus, Rosalind. Lembre-se de mim como um homem que te amou e não no monstro que me transformei.

Ele se afastou e saiu do quarto, deixando-a petrificada no lugar. Mas em meio a todo aquele turbilhão de emoções, restava uma certeza: não poderia terminar daquele jeito. Como que acordando de um pesadelo, ela saiu correndo pelo quarto até debruçar-se sobre o balaustrado da escada.

— Armond! — gritou a plenos pulmões, cheia de emoção. Inútil tentativa, ele já havia sumido.

 

— Sinto muito, minha querida — disse a duquesa de Brayberry, tomando a mão de Rosalind nas suas. — Conheci sua madrasta em várias ocasiões e gostava muito dela.

Rosalind tomou um gole do chá que havia sido servido assim que chegou.

— Ela era uma mulher adorável — respondeu automaticamente sem emoção alguma. Os sentimentos passaram de intensos para um estado de total estagnação.

— Seu irmão, contudo, não conheci bem — continuou a duquesa.

— Não sofro por ele — ela respondeu tomando mais um gole de chá. — Melhor não falarmos sobre ele.

Seguiu-se um momento de pesado silêncio.

— Onde está Armond? — a condessa indagou. — Ele está tomando as providências necessárias por você?

Ela olhou para a xícara, como se as pequenas marolas na bebida pudessem trazer uma resposta acalentadora.

— Ele quer que eu diga a todos que não sei de seu paradeiro.

Com as mãos trêmulas, a condessa colocou a xícara na mesinha de centro.

— O que está acontecendo?

— Armond é... ele não é mais o mesmo.

— Ah, minha querida. Então finalmente aconteceu o que ele mais temia...

— O que sabe a respeito dele? Alguma coisa sobre a família? — Rosalind quis saber, curiosa pelas palavras da condessa.

— Sei apenas o que a mãe dele me contou pouco antes de enlouquecer. É uma história chocante, qualquer um que a ouvisse a julgaria insana de fato.

— Só a senhora sabia que ela não era louca. Ela ainda amava o marido?

— Você quer dizer quando a maldição o tomou ou quando ele se matou?

— Depois da maldição — especificou Rosalind.

— Ele não deu tempo para que ela dissesse que não faria qualquer diferença — respondeu a condessa com um sorriso triste. — Ele assumiu que aconteceria o pior. Imagino que achou que fosse machucar a ela e as crianças. O caminho escolhido foi o mais fácil, os homens geralmente preferem agir assim.

E Armond seguira a tradição. A vida não era simples e o amor muito menos. Rosalind ainda não tivera tempo suficiente para absorver o que tinha acontecido ao marido e se aquilo havia afetado seus sentimentos. Seria ridículo dizer que nada havia mudado, mesmo assim seu coração doía. Seu corpo todo sofria pela falta de Armond e pelo futuro que o destino havia roubado de ambos.

—Você está com uma aparência péssima, minha querida. Deixe-me preparar um banho e depois deve ir descansar. Já mandei preparar o quarto de hóspedes para você.

— Estou mesmo muito cansada — Rosalind admitiu. — Aprecio sua hospitalidade.

— Armond tinha razão em mandá-la para cá. Venha, querida.

Rosalind deixou a xícara de chá sobre a mesa e seguiu a condessa escada acima. A cama parecia chamá-la, mas ela esperou paciente, enquanto as criadas preparavam tudo para deixar o quarto o mais confortável possível. Permitiu-se ser mimada, desnudada e ter ajuda no banho. Não via a hora de vestir a roupa que Armond enviara para a casa da condessa. Agora, desfrutava da água quente e reconfortante, enquanto a criada passava a bucha em seu corpo dos pés a cabeça.

Em seguida, entrou por baixo dos lençóis limpos e perfumados. Sentindo o corpo inteiro dolorido pela exaustão, não demorou a pegar no sono.

O primeiro pensamento que veio em sua mente, quando acordou, foi Armond. O que estaria pensando ou fazendo? E ela? O que deveria fazer dali em diante. Deveria fazer o que ele havia pedido? Contar a todos que o incêndio o havia matado? A única coisa de que tinha certeza naquele momento era que os laços entre ela e o marido jamais se desfariam, por mais agruras que passassem.

Precisava vê-lo novamente. Se tivessem a chance de se encontrar, seu coração falaria por si. Será que ele seria capaz de dar as costas para um grande amor? Mesmo estando ele amaldiçoado, será que ela também conseguiria seguir seu caminho sem olhar para trás?

Aquelas eram perguntas que teriam de ser respondidas pelos dois.

Decidida, levantou-se e foi encontrar a condessa para agradecer-lhe a hospitalidade e perguntar se poderia usar a carruagem, pois o que mais queria era encontrar-se com Armond.

— Tem certeza de que não quer ficar mais alguns dias?

— Sinto que preciso estar em casa — explicou Rosalind, meneando a cabeça.

A condessa ficou preocupada.

— Tem certeza que é seguro voltar para lá? — perguntou, tocando o braço de Rosalind e erguendo uma das sobrancelhas.

Por instinto ela pensou em responder que não, mas no fundo do coração sabia que Armond, não importando a forma em que estivesse, jamais a machucaria.

— Estarei bem — respondeu, tentando passar tranqüilidade. — Eu mando uma mensagem assim que possível.

Rosalind sentiu a ansiedade crescer dentro de si, conforme a carruagem atravessava as ruas de Londres em direção à sua casa. Já era quase noite. Será que Armond se transformaria na besta novamente? Precisava esclarecer com ele tudo a respeito daquela maldição. Precisava reler o poema.

A casa que seu pai havia comprado para a madrasta estava em ruínas. Ainda havia fumaça levantando do pasto que também fora atingindo.

Hawkins abriu a porta assim que a viu se aproximar.

— Lorde Wulf está em casa?

— Está em seus aposentos desde que milady saiu esta manhã. Deixou ordens para não ser incomodado até a noite.

A porta do quarto de Armond estava trancada e a de ligação entre os quartos também. Rosalind seguiu até a mesinha-de-cabeceira. O poema estava exatamente onde ela havia deixado. Ela o tomou e começou a ler:

A maldição e o enigma foram minha ruína, desta bruxa que amei, mas não pude desposar. Batalhas lutei e venci, porém é derrota que deixo em meu rastro. São os Wulf que sofrem por meus pecados, os filhos que não são bestas nem homens. Decifrem o enigma que não resolvi, e sejam dessa maldição libertados.

Rosalind piscou ao prestar mais atenção à última linha... e sejam dessa maldição libertados. Então havia esperanças? Por que Armond nunca dissera nada a respeito? Ao que parecia, o destino não era tão obscuro como supunha. Decidiu que deveria perguntar a ele. Assim, dirigiu-se para a porta de conexão e surpreendeu-se ao vê-lo parado ali, encarando-a.

— Você deveria ter ficado na casa da condessa. Já está anoitecendo e não ficará segura comigo.

— Por que não me disse que a maldição poderia ser quebrada? — perguntou ela, ignorando o aviso.

— Porque não descobrimos ainda como nos defender.

Rosalind seguiu até ele, mostrando o pedaço de papel amarelado.

— Esse poema aponta o caminho a ser seguido. Segundo diz, é preciso procurar em você o seu pior inimigo, enfrente-o com bravura e não fuja.

— Já enfrentei meus piores inimigos — sentenciou ele, passando a mão pelos cabelos. — Enfrentei Penmore e Franklin, e não fugi. Nem sempre quem o ofende é seu pior inimigo.

— Mas você os enfrentou ontem à noite. Talvez hoje a maldição não o acometa novamente.

— Não quero que fique aqui — ordenou, encarando-a com expressão grave. — Não a quero perto de mim.

Aquelas palavras a feriram no coração, porém Rosalind entendeu que Armond não temia que a maldição o acossasse apenas naquela noite, mas sim para o resto da vida.

— Por que você não luta por nós? — ela perguntou, indignada.

Num ímpeto, ele a tomou pelos ombros, puxando-a de encontro ao peito.

— Não é tão simples assim quebrar a maldição. Você não leu o poema inteiro? Batalhas lutei e venci, porém é derrota que deixo em meu rastro. Se isso não é uma ameaça, olhe para mim com atenção, Rosalind.

Assustada, ela viu que os dentes estavam mais longos e as mãos sobre seus ombros tinham as unhas como se fossem de um animal.

— Não... — sussurrou ela, sentindo o coração doer.

— Sim. A transformação já começou e sua segurança está em perigo. Prefiro morrer a pensar que posso machucá-la. Agora entendo por que meu pai tomou uma decisão tão drástica.

— Mas ele deixou sua mãe sem alternativa, da mesma maneira que está fazendo comigo agora. Você diz que quem quer que me faça mal é seu inimigo. Então, eu lhe digo que você é meu maior inimigo. Seu desejo de renegar o amor que sentimos fere mais do que o punho de um homem, ou um punhal no centro do meu coração. Se deixar o medo derrotá-lo, permitir que ele estraçalhe nossas vidas, então você também é seu pior inimigo.

— Vá embora, Rosalind. Volte para casa da condessa e fique lá até que eu encontre meus irmãos e conte o que houve. Você merece mais do que isso — sentenciou, fitando-a com aquele intenso brilho azul nos olhos.

Ela prendeu a respiração e recuou ao vê-lo se transformar na besta tão depressa. Armond alcançou a porta e começou a fechá-la, mas ela se interpôs, encarando-o novamente.

— Qual é seu maior medo?

— Tenho medo de machucá-la. Não me lembro do que acontece quando me transformo. Se a maldição domina minha mente, como posso controlá-la? Quem me garante que não vou atacá-la?

— Você poderia ter me matado na noite passada. Sei que jamais me machucaria, não importa a forma em que esteja.

— Mas eu não tenho essa certeza — ele gemeu e a dor o fez dobrar-se, caindo de quatro no chão.

Rosalind se lembrou do que acontecera na noite anterior. Sabia que depois daquela dor lancinante, não demoraria muito para a fera tomá-lo totalmente. Em outra ocasião, havia pedido a ele para ter fé, mas naquele momento era ela que precisava reunir todas as crenças para encontrar forças e continuar ali. Era preciso confiar em Armond, quando ele próprio não confiava. Respirando fundo, ela tomou coragem, entrou no quarto e fechou a porta. Agora estava ali diante da besta sozinha, contando apenas com a força de seu amor.

A dor deixou Armond sem respiração e turvou-lhe a mente. Agindo por instinto para se proteger, ele encolheu as pernas contra o peito. Por baixo da pele, sentiu os ossos se remodelando. Teve forças para puxar a camisa pela cabeça. E, com os dedos já desfigurados, tirou as calças também. A dor não o permitia pensar de maneira racional, funcionando como um prenúncio para o pior, quando não seria mais dono de seus atos.

Ainda assim, sentiu o perfume de Rosalind invadir seus sentidos torturados, e soube que ela estava ali, no mesmo quarto. Seria sua ruína completa se a machucasse. Seu coração havia permanecido enclausurado durante muitos anos, até ela aparecer e roubá-lo com apenas um olhar, naquele primeiro baile da temporada. Agora já tinha certeza de que a amava mais que a própria vida. Haveria de lutar contra aquela dor maldita e tirá-la do quarto... enquanto ela ainda pudesse sair.

— Deixe-me, Rosalind. Fuja enquanto é possível — suplicou ele, esforçando-se ao máximo para falar.

Como se estivesse a milhas de distância ainda ouviu-a dizer:

— Confio em você, Armond, sei que não vai me machucar.

A agonia de sabê-la ali em companhia de um lobo o assolou com a alegria de saber que o amor que dedicava a ele era tão profundo.

Houve um tempo, quando sua vida era um lugar escuro e frio, em que as pessoas sussurravam a seu respeito, evitando um contato mais próximo. Rosalind mudara o cenário, embora não o tivesse mudado por inteiro. Pois ela não podia impedir a maldição que o dominava. Ele tampouco tinha esse poder, embora usasse toda a sua força naquele momento para evitá-la.

Forçando-se a ficar de olhos abertos, perscrutou o quarto todo, enquanto seu corpo convulsionava em dor. Não tinha a visão completa de Rosalind, apenas o delinear de seu corpo, preenchido por veias de sangue latejantes. Por mais uma vez, tentou gritar para que ela corresse dali e salvasse sua vida, porém o único som que conseguiu emitir foi um uivo de frustração.

Apesar do medo que a invadia, Rosalind manteve-se firme e enfrentou o olhar profundo e brilhante do lobo que rosnava para ela.

O que mantinha sua coragem era saber que Armond estava aprisionado dentro do corpo daquele lobo em algum lugar. Era preciso ter muita força de vontade para não abrir a porta que ligava os dois quartos e sair correndo. No entanto, fugir não era seu objetivo e sim provar que ele não seria capaz de machucá-la. Esperava não ter que pagar com a própria vida o preço de confiar em Armond. Aos poucos os rosnados foram diminuindo e o animal limitou-se apenas em fixar os olhos nos movimentos dela sem demonstrar agressividade.

Apesar do temor que ainda mantinha sua respiração em descompasso, ela abriu a porta de ligação e deixou-a aberta. A passos lentos, seguiu para seu quarto, aumentando a distância que os separava. O lobo continuava a observá-la atentamente.

Rosalind então procurou fazer coisas corriqueiras, embora soubesse que a normalidade era algo que não cabia naquela situação. Sentou-se na poltrona, pegou a cesta de costura e se pôs a costurar uma peça de roupa. Suas mãos, porém, tremiam tanto que seus esforços foram em vão. Colocou a cesta de lado e pegou um livro para ler, sempre olhando com o canto dos olhos para aqueles brilhantes olhos que a observavam.

A noite que caía dava mostras de ser longa...

Armond acordou deitado no chão frio. Estava nu e tremendo da mesma forma como estivera na noite anterior, quando se vira ao lado do corpo inerte de Penmore. Com a mente ainda entorpecida, lembrou-se de Rosalind no quarto quando da transformação.

O pânico o fez levantar tão rápido, que chegou a sentir tonturas e procurou apoio para não cair. Olhou ao redor e não a encontrou. Viu que a porta estava aberta e com passos lentos entrou no quarto dela, para encontrá-la deitada na cama.

Com o coração aos pulos, aproximou-se e enalteceu-se diante de tão singela beleza. Os cabelos negros estavam espalhados, fazendo um belo contraste com os lençóis brancos.

Sentiu as pernas fraquejarem diante do alívio de encontrá-la viva e ao que tudo indicava, sem qualquer ferimento. Fazia frio e seus dentes batiam tanto que mal conseguia falar. Provavelmente o corpo sentia a falta dos pêlos para aquecê-lo.

Rosalind abriu os olhos e o encarou. Ela nada disse, mas o gesto que fez foi de um afeto que nenhuma palavra teria tamanho sentimento para expressar. Levantou a coberta, convidando-o para compartilhar do calor da cama e de seu corpo.

Ele aceitou o convite apenas para que os espasmos incontroláveis de frio cessassem.

Rosalind usava as mesmas roupas, e com as mãos trêmulas, ele tentou despi-la.

Entendendo o desejo iminente, ela afastou as mãos dele e levantou-se para rapidamente fazer o vestido deslizar sobre si e voltou a aninhar-se junto ao corpo que clamava pelo seu. Em um gesto terno, Armond repousou a cabeça cansada na maciez dos seios fartos. No instante seguinte, inalou o perfume de lavanda e ouviu o compasso forte do coração, que sabia retumbar por sua causa.

Gradualmente o calor foi penetrando por cada poro da pele arrepiada, ajudando-o a dimensionar o sacrifício que ela havia feito na noite anterior. Rosalind havia confiado a própria vida a uma besta, quando ele mesmo não tinha como fazê-lo.

Naquele momento, sentiu o coração preenchido e inchado pelo amor que sentia por ela.

Na posição em que estava, pareceu natural virar-se e tomar os mamilos rosados com a boca. Rosalind percebeu a intenção, mas não o empurrou, ao contrário, ofereceu-se ainda mais, ajeitando-se melhor para receber a boca ávida. Ansiosa por maior intimidade, entrelaçou os dedos pelos cabelos dele e guiou-o de um seio a outro em um movimento sensual, gemendo de prazer ao sentir o sangue correr pelas veias como se fossem lavas incandescentes.

Sem pressa, saboreando a fragrância do desejo misturado à lavanda, Armond desceu com a boca úmida, deixando uma trilha de pequenos beijos, livrando-a das últimas roupas de baixo que ainda o impediam de senti-la por completo.

Quando atingiu o baixo-ventre, enfurnou-se no triângulo de pêlos sedosos que escondiam a flor que exalava o mais doce dos perfumes. O contato inesperado fez Rosalind comprimir as coxas, que ele gentilmente afastou para poder sorver o néctar da feminilidade. O receio, que antes a fazia respirar apressadamente, transformou-se em um desejo ansioso com a acústica de murmúrios telúricos.

Embevecido, ele acariciou com a ponta da língua a glande em forma de botão de rosa. Entendeu que quanto mais sugava mais forte era o aroma inebriante que dali exalava. A cada espasmo, Rosalind dava um grito de prazer, até que na ânsia de prolongar um pouco mais a deliciosa tortura, ela o puxou para encontrar a boca que o aguardava sedenta.

Cobrindo-a com seu peso, enquanto devorava os lábios macios, Armond a penetrou, deixando-se envolver pelas entranhas quentes e úmidas que o acariciavam lentamente, contraindo e soltando os músculos em movimentos rítmicos.

Sentindo-se como uma fêmea voluptuosa, ela mudou de posição, passando a cavalgá-lo como a mais bela amazona. Embora surpreso pela mudança da inocente dama para a amante experiente, com as mãos fortes que envolviam quase todo o quadril arredondado, ele ensinou-a a movimentar-se de maneira a proporcionar maior prazer a ambos ao mesmo tempo. Agiu como um cavalariço ingênuo quando a viu mover-se com a maestria recém-aprendida.

Admirá-la daquele ângulo era um prazer extra, perceber o rosto delicado contorcendo-se de satisfação quase o levou à loucura. Porém esperou vê-la atingir o clímax antes de consumar o seu próprio, jorrando sua semente fora do corpo receptivo.

Exaurida, Rosalind deixou-se cair sobre o peito forte. Os corpos suados, amoldaram-se à perfeição de uma escultura. E quando ainda lutava para voltar ao compasso normal da respiração, percebeu que não haviam trocado uma palavra sequer.

Depois de consumarem a união por tantas vezes, o amor já estava tatuado na pele de ambos. Rosalind sabia que o amava e o amaria sempre. Não permitiria que a maldição fosse empecilho, roubando um futuro feliz que ela tanto almejara.

 

— Isso não podia ter acontecido.

— Embora você seja tão habilidoso em fazer amor, não posso dizer o mesmo quanto à escolha das palavras. Por que me faz sentir como se eu fosse a personificação do arrependimento?

— Talvez seja porque eu não me julgue merecedor de você e de toda a felicidade que representa — respondeu ele tristemente, enquanto brincava com uma mecha do cabelo dela.

— Bem, agora melhorou, mas ainda precisamos conversar.

— Ouça, minha querida, quando eu partir, não quero que nada além da mancha de ter sido minha esposa estrague seu futuro.

Foi como se ele tivesse dado um tapa em seu rosto.

— Nós acabamos de fazer amor e você me diz que ainda pretende me abandonar? Quer dizer que posso ser sua prostituta, mas não posso ser sua mulher?

Armond encarou-a com um olhar gélido.

— Eu disse que aquilo foi um erro.

A resposta fria apenas contribuiu para enfurecê-la ainda mais.

— Depois de dizer esse absurdo ainda fizemos amor duas ou três vezes, repetimos o erro então?

— E sobre a maldição? — vociferou ele. — Droga, Rosalind, não posso pedir que compartilhe das minhas sinas. Eu te amo demais!

— Se você me ama de verdade, deveria entender que não existe nada pior para mim do que perdê-lo. Não provei ontem à noite que você não fará nada contra mim?

— E você quer dividir uma vida com uma fera? Deseja que a maldição fique pairando sobre nossas cabeças, ou sobre a dos nossos filhos? Como pode desejar uma coisa dessas quando pode ter muito mais?

Soltando um longo suspiro de resignação, ela disse:

— É esse o seu desejo? Que eu me case com outra pessoa? Que eu compartilhe com outro tudo o que anseio em dar a você? Seu pai errou com sua mãe, não deixando que ela escolhesse o próprio destino. E a decisão dele acabou por destruí-la.

— Foi a maldição que a destruiu — defendeu Armond. — Ela foi testemunha do que poderia um dia atingir um de seus filhos.

— Não! Seu pai partiu o coração dela da mesma forma que você quer fazer com o meu — ela disse com veemência e virou-se para deixar a sala.

— Para onde está indo?

Rosalind já havia esgotado seus argumentos. Armond sabia que seu amor era imune à maldição que o rendia. Porém, não podia forçá-lo a enxergar a luz, enquanto ele teimava em ficar preso às trevas. Ele próprio teria que lutar pela felicidade de um futuro ao lado da mulher amada. Era preciso enfrentar o pior inimigo: ele próprio.

— Estarei na casa da condessa. Ela pode me ajudar a construir a lápide para minha madrasta. Quanto a nós, a decisão cabe a você. A escolha está entre esconder-se na escuridão da noite, ou caminhar ao meu lado com o sol nos aquecendo. É claro que a maldição é um inconveniente, mas se estivermos juntos podemos enfrentá-la. Separados não teremos força para tanto.

Armond ficou em silêncio, observando-a sair. Deixá-la partir era a mais árdua tarefa que já executara. Entretanto, era por amor a ela que estava renunciando à própria felicidade. Observar o sofrimento de ser tomado por uma besta não a abalou, mas e se aquilo continuasse a se repetir pelo resto da vida?

O que seria mais justo? Ser um egoísta e fazer valer sua vontade acima de tudo, desprezando o que aquilo poderia representar para Rosalind? Lembrou-se de que havia jurado protegê-la, e o faria mesmo que fosse contra ele próprio. Sabia que a estava punindo por não lhe dar filhos, contudo acreditava ser melhor assim do que ver os próprios filhos já nascerem amaldiçoados.

Sim, havia tomado a melhor decisão por ela. Com o tempo ela acharia alguém que a fizesse feliz. Embora só o fato de considerar a possibilidade já lhe roubava a paz.

Levantou-se da mesa e começou a caminhar de um lado a outro. Não suportaria vê-la com outro homem, alguém que fosse tocá-la...

Ela me pertence, droga! É o meu amor, minha vida!, pensou.

Mas a razão o fez entender que precisava fazer a felicidade de Rosalind sobrepujar o ciúme. E por aquela razão, tinha que deixá-la partir.

Desde que Rosalind partira, Armond não saía de casa. Somente Hawkins o sabia perambulando pelos quartos e corredores. Contudo, cedo ou tarde o mordomo também se aposentaria. E então o que seria de sua vida?

Lembrou-se do dia em que Rosalind entrara em sua vida. Imaginou se a notaria em meio a tantas pessoas, se ela não tivesse tomado a iniciativa de tirá-lo para dançar. Ficou se perguntando se ela teria roubado seu coração mesmo sem dizer palavra. Claro que sim, de alguma maneira, tudo o que havia acontecido entre eles já estava escrito. Se não se encontrassem naquela noite, fatalmente seria em outra qualquer.

E o mesmo destino que os uniu os separou.

Mas, de qualquer forma, julgava-se abençoado por tê-la conhecido e amado, mesmo que por um curto espaço de tempo.

E pensar que Rosalind o tinha convidado para caminhar ao sol, quando ele não tinha certeza de ser merecedor de um raio sequer por ser amaldiçoado. Jamais tivera esperanças de ter uma vida melhor antes de conhecê-la. Era justamente aquilo que ela exigia, que deixasse a amargura que o mantinha prisioneiro em um calabouço de medos...

Porém, restava a dúvida se deveria abrir mão do presente que ganhara. Rosalind o havia presenteado com um amor incondicional. Seria possível? Bem, ele esperava que a resposta à questão viesse nos dias que se seguiriam, enquanto a lua ainda estava cheia, à mercê da maldição.

 

Já havia se passado uma semana que Rosalind não via Armond, e também não tivera qualquer notícia.

Durante aqueles dias não participara de nenhum evento. Ela pedira a condessa que mantivesse silêncio sobre o destino de Armond. Resolveu que se fosse preciso, ela diria o que haviam combinado: lorde Wulf havia morrido no incêndio na casa dos Chapman. Perante a sociedade, a morte do marido a livraria do casamento, mas era uma liberdade que ela não desejava ter.

Percebeu também que sua menstruação estava atrasada. Quem sabe, na primeira noite em que fizeram amor, não havia ficado frutos além da saudade. Mesmo ciente da maldição, o coração explodia de alegria com a possibilidade de trazer um Wulf no ventre.

Enquanto passeava pelo belo jardim da casa da condessa, ela parou para admirar uma rosa perfeita, a fim de inalar o perfume sutil.

Neste momento percebeu a presença de um homem que a observava por detrás de uma árvore. Seu coração começou a bater descompassado. Deus, como havia sentido a falta daquele homem! Porém não se levantou, aguardou ele se aproximar.

Armond ainda mantinha aquele andar elegante tal qual um gato selvagem, dono de uma graça perigosa. Os olhos azuis prenderam-se aos dela, mas a expressão do rosto não deu nenhuma pista do que ele estava pensando.

— Decidi sair para a luz do sol, Rosalind.

Em segundos, ela se levantou e com lágrimas de felicidade nos olhos, atirou-se nos braços dele. Desejou que nunca mais lhe fosse negado estar aninhada nos braços fortes, ouvindo o tom baixo e sensual daquela voz tão masculina.

— O que o fez mudar de idéia? — perguntou ela em um sussurro.

— O que você me disse. — Ele acariciou os cabelos longos e a puxou para perto novamente. — Você tinha razão. Sou meu pior inimigo. Durante anos tranquei meu coração e me enjaulei na autocomiseração. E vivi passivamente até ser forçado a agir. Aquela não era uma vida digna e para chegar a esta conclusão precisei repensar tudo o que você me ensinou. De fato, meu pai fez a escolha errada. Ele deveria ter continuado vivo e lutado. Sua rendição à maldição nos derrotou, antes que pudéssemos entender que viver requer muita coragem. Sua bravura me inspirou. Não me entregarei à besta, mas meu coração rende-se a você.

Rosalind sentiu o coração ser invadido por uma felicidade esfuziante. Armond a havia salvado e agora era a sua vez de fazer o mesmo por ele.

— Enfrentaremos juntos o que o futuro nos reserva. Dois corações são mais poderosos do que um só.

Ele baixou a cabeça para beijá-la. No entanto, as bocas mal se tocaram quando ele precisou inspirar forte, dando um passo para trás. Em seguida, caiu de joelhos, com os braços cruzados sobre o estômago.

— Armond! O que está acontecendo?

— Pensei que estava livre por ora — disse ele com dificuldade. — Nas últimas duas noites fui me deitar como homem e levantei igual. Mas agora, essa dor... — Fez uma pausa para respirar fundo. — ...é a mesma.

— Como pode ser se estamos em plena luz do dia?

Retorcendo-se por inteiro, ele não respondeu. Mesmo assim tentou se levantar. E de repente, como que tomado por uma força desconhecida, foi arremessado para trás, batendo com força em uma coluna de pedra.

Rosalind piscou em surpresa. Na última vez em que o vira se transformar não havia acontecido daquela maneira.

Ele grunhia de dor, quando seu corpo foi novamente arremessado contra o passadiço do jardim.

Enquanto Rosalind o observava, sem nada poder fazer, a boca de Armond foi abrindo cada vez mais, ao mesmo tempo que o corpo se arqueava, para, de súbito, expelir uma luz azulada muito forte pela boca escancarada.

Assustada, ela gritou e recuou. A luz enevoada começava a tomar a forma de um lobo. E de repente, lá estava ele, de quatro, encarando-a.

Rosalind recuou um pouco mais, estarrecida, hipnotizada pelo brilho daquele olhar, mais intenso do que a luz embrumada do corpo animal. Mais forte do que a luz do dia. A razão que o fazia encará-la não estava evidente, mas ela sabia que deveria expulsá-lo para bem longe.

— Tome seu caminho — ela ordenou. — Suma daqui para sempre!

O espírito, aquilo só podia ser um espírito, virou-se para Armond, que jazia no gramado. Fitou-o por alguns instantes e então saiu correndo por cima das flores, dos arbustos, pela amurada até perder-se na escuridão da floresta.

Rosalind permaneceu parada a fim de recobrar os sentidos, e engatinhar até onde estava o marido.

— Armond — chamou, sacudindo-o. Ele não estava respirando.

— Armond!

Desesperada, começou a fazer pressão sobre o peito dele. Armond engasgou, para, em seguida, respirar fundo antes de abrir os olhos.

— O que aconteceu?

Ela foi às lágrimas de alívio quando o viu falar e respirar.

— Não faço idéia, meu amor. Mas graças a Deus que você está vivo.

Ao sentar-se, ele procurou tocá-la na face, fitando-a por um longo momento.

— Acabou, Rosalind. Não o sinto mais. Durante toda a minha vida, eu sabia que ele estava me consumindo, aguardando a hora para tomar conta de mim.

— A maldição foi quebrada. Você a quebrou, Armond.

— Não. Você a quebrou. O meu amor por você foi o responsável. O amor era a maldição, mas também a chave para desvendá-la. Você me forçou a enfrentar meu pior inimigo, a deixar de lado minhas dúvidas e medos para me entregar à magia de amar e ser amado.

— Eu te amo — ela sussurrou.

Então, ele a puxou para terminar o beijo que haviam começado.

 

                                                                                Ronda Thompson  

 

                      

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