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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MALDIÇÃO DE ANNE / Dama Beltrán
A MALDIÇÃO DE ANNE / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Londres, 14 de outubro de 1882, residência Moore.
Anne se olhou no espelho e suspirou.
Ela não queria, nem deveria participar de uma festa depois do que aconteceu, mas seus pais prometeram que seria a última vez que a obrigariam a fazer algo parecido. Desde que soube, fez tudo em seu poder para que Mary ocupasse seu lugar. Até fingira um tornozelo torcido! Mas foi inútil. Seus pais descobriram a mentira rapidamente e novamente rejeitaram a ideia de sua segunda filha acompanhando a terceira porque eles não queriam que ela se tornasse, novamente, o centro de qualquer conversa social. E eles não estavam errados... se alguém ousasse contradizê-la em alguma conversa sobre medicina, Mary se tornaria uma loba e acabaria chamando a todos aqueles que a contrariaram: bando de corpos sem cérebro. Apesar da explicação, ainda achava que estavam errados. Era preferível que Elizabeth sofresse um choque momentâneo pela reação de Mary, a ser constantemente humilhada pela sua presença. Porque a culpa pela transformação de Elizabeth ela dera, apenas dela e da maldição que padecia.
Desde que todos finalmente aceitaram sua existência, Elizabeth deixou de ser uma menina doce e terna para se tornar uma mulher frívola, descarada e ousada. Essa mudança se devia à falta de pretendentes. De fato, enquanto suas outras irmãs não estavam procurando um homem para casar, porque no caso das gêmeas eram muito jovens e Mary por ser fria como um bloco de gelo, Elizabeth usava sua maravilhosa beleza e audácia para encontrá-lo prontamente. No entanto, ela não conseguia o resultado desejado porque, depois do que aconteceu aos dois noivos de Anne, nenhum cavalheiro se atrevia a cortejar uma irmã Moore por medo de morrer...

 


 


Anne continuou a se olhar no espelho enquanto se lembrava de seus anos de infância. Fora muito feliz naquela época. Como qualquer criança, ela só se concentrava em atender a professora contratada pelos pais, cumprir as regras da casa e pintar. Sim, seu único dom, porque era muito desajeitada em todo o resto, era pintar. Portanto passava dias e dias apreciando a paz que seu jardim oferecia em dias de sol, enquanto pintava milhares de paisagens imaginárias em suas telas. Tudo estava indo bem até a puberdade chegar. Qualquer mulher a dominaria com integridade e bom senso, mas ela era incapaz de fazê-lo. Como deduziu, aquele sangue cigano que corria em suas veias era a causa de tudo. Ele queimava. Sim, a queimava tanto que houve momentos em que a dor era tão insuportável que ela se jogava no chão chorando. Por que sua natureza cigana era tão cruel? Por que era incapaz de controlá-la? Com o passar do tempo, aceitou e assimilou essas mudanças nela. Mas nessa nova vida, Anne Moore deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher com apenas um desejo: sedução. Ela se sentia tão adulta, tão radiante, tão sensual que, toda vez que andava por Londres e observava homens admirando-a, sua sexualidade brotava de dentro como uma flor abrindo suas pétalas. Por causa disso, uma tarde, enquanto suas irmãs apreciavam um piquenique, sua mãe a arrastou para a sala e decidiu confessar o que mantivera em segredo durante os dezessete anos de casamento.

—Seu avô, meu pai, adoeceu — Sophia começou a dizer quando as duas se sentaram no sofá perto da lareira, — e nenhum médico queria comparecer, exceto o bondoso Dr. Randall Moore. Eu sei que, desde que ele entrou na carruagem, não conseguia tirar os olhos de mim, como nem eu dele. Muitas vezes me pergunto como ele foi capaz de descobrir sobre a doença, se não prestou atenção — ela continuou sorrindo. A atração que tivemos foi instantânea. Ele olhou para mim, eu olhei para ele e o amor nasceu.

—Realmente? Foi tão fácil? — Ela perguntou com espanto.

—Já disse que as mulheres da nossa raça têm o dom de sonhar com o homem da nossa vida? — Anne negou com um movimento suave da cabeça. —Bem, eu o vi por muitas noites no mesmo sonho: Ele aparecia entre as chamas de um fogo, o que para nós significa amor e paixão, estendia a mão e.... bem, o resto pode imaginar — explicou, desenhando um enorme sorriso.

— Ainda não entendo o que isso tem a ver com a maldição que fala — disse ela enquanto esfregava as mãos.

— Desde aquela noite, seu pai e eu nos encontrávamos escondidos. Nem meu pai nem minha avó aceitaram a presença de um gajo, exceto para serem curados quando a feiticeira de nossa aldeia não era capaz de curá-los. Na primeira noite em que me entreguei de corpo e alma a seu pai, ele me pediu para fugir com ele, casar e ser a Sra. Randall para sempre. Durante vários dias pensei nessa proposta... — Ela suspirou. Então aconteceu algo que me fez tomar uma decisão mais cedo do que eu esperava.

—O que aconteceu? — Anne perguntou com expectativa.

—Minha avó paterna, Jovenka, arranjou um casamento para mim. Ela queria que me casasse com o filho de outra família cigana para que, segundo ela, o sangue não fosse contaminado.

—Ela sabia que estava se encontrando com o papai, certo?

—Sim, receio que nos descobriu... — disse tristemente. — Por essa razão, na noite seguinte, aceitei sem hesitação a proposta de Randall.

—Foi ela quem a amaldiçoou? Os procurou? Como fez? — Ela perguntou sem respirar.

—Nós ficamos fora de Londres por um mês. Seu pai tinha economizado o suficiente para alugar uma pequena casa e ficamos lá por algum tempo. Mas seu trabalho exigiu e tivemos que voltar. Quando me apresentou à sociedade, porque todo mundo estranhara que ele finalmente encontrasse uma esposa...

—Como estranharemos se Mary encontrar um homem que a aceite? — Interveio Anne alegre.

—Implorei para que não revelasse minhas origens.

—Por que fez uma coisa dessas? — Disse, se levantando. — Rejeita seu sangue?

—Não! Jamais rejeitaria! ?Defendeu-se, se levantando também. — Mas não era sensato, na época, declarar que um homem como Randall, com a reputação que estava sendo forjada depois de tantas dificuldades, acrescentasse que sua esposa era cigana. Parecia mais apropriado dizer que era filha de um burguês.

—O que aconteceu depois? — Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

?Uma noite, nos preparávamos para uma reunião com outros médicos. Sabe, aquelas que Mary tanto ama e eu não suporto nem dez minutos. Estava de pé na porta, esperando pelo seu pai que tinha ido pegar seus óculos. Senti um forte vento ao meu lado, mas ignorei até que, momentos depois, percebi uma presença. Muito lentamente me virei para o jardim e.... lá estava minha avó Jovenka. Ela olhou para mim com tanta raiva que notei como sua fúria perfurava meu corpo.

—O que ela disse? — Anne insistiu, olhando para a mãe.

—Sem falar, me pegou pela mão e puxou com força. Queria me afastar da vida que escolhi. Mas naquele momento seu pai apareceu e me tirou de suas mãos. «Ela fica comigo! » — Ele gritou.

—O que Jovenka fez? ?Insistiu.

—Sorriu com tanta maldade que me deixou congelada — recordou, acariciando os braços como se o frio tivesse voltado para ela. — Ela fechou os olhos e começou a evocar as almas ruins. Depois daquele cântico infernal, cuspiu no primeiro degrau da escada, curvou-se, fez vários círculos com sua saliva e disse: «Eu a amaldiçoo, Sophia. A amaldiçoo por rejeitar quem é, por negar o sangue que corre em seu corpo e por se tornar a mulher de um gajo. E para que a dor seja mais duradoura e cruel, não sofrerá essa maldição, mas sim a mais velha de suas filhas. Ela, se quiser lutar contra a vida que a espera, terá que se casar com um cigano, desta forma assumirá que a única verdade que existe no mundo é o poder da raça e do nosso sangue» — relatou.

—Como? O que é isso de que devo casar com um ...? — Anne apertou os lábios para não mostrar à mãe a negação que sentia em relação àquela palavra. Em nenhum momento de sua vida pensou que seu futuro seria em um acampamento cigano. Nem muito menos se imaginava vivendo em uma carroça daquela maneira e de se tornando a esposa de um nômade. — O que o papai fez?

—Sabe como é.... — Disse com um leve sorriso. —Ele não acreditou nem acreditará nesse tipo de rituais ou feitiços, por isso me fez prometer que nunca diria o que aconteceu naquela noite. No entanto, aqui me tem, quebrando uma promessa.

—Por que faz isso, mãe? Por que confessa isso para mim agora?

—Porque tem meu sangue, Anne — ela disse, voltando para o sofá, — e eu vejo como ele a altera cada dia que passa.

E isso era verdade. De uns tempos para cá, ela sentia com muita força certa necessidade que não entendia. Se sentia como um campo cheio de orquídeas na primavera ao notar os primeiros raios do sol da manhã. Suas emoções, seus sentimentos sobre o mundo ao seu redor haviam se tornado, em pouco tempo, irracionais e incorretos. Quantas vezes olhou para um homem com indiscrição? Por que quando se contemplava no espelho, queria exaltar seu erotismo?

—Somos e seremos selvagens — esclareceu Sophia ao ver sua filha franzir a testa. —Nascemos da Mãe Natureza e, como tal, só buscamos a liberdade de amar. Mas quero avisá-la, antes que algum cavalheiro ocupe seu coração, que não será fácil lutar contra essa maldição. Não sei o que acontecerá, juro, mas não tenho dúvidas de que sofrerei quando a ver sofrer.

—Realmente acredita que estou amaldiçoada e que terei que casar com um cigano para fazer essa maldição desaparecer? Não seriam, como o papai disse, palavras sem sentido e que apenas expressaram semelhante estupidez para proporcionar medo? — Ela falou enquanto se sentava ao lado da mãe.

—Não, Anne. Minha avó nunca evocaria almas ruins para me assustar — disse, acariciando seu rosto jovem. — Acredito nessa maldição, a única coisa que tento descobrir é como se livrará dela sem ter que se casar com um cigano.

Como ela poderia se apaixonar por um cigano? Como poderia abandonar uma vida confortável para transformá-la no oposto? Jamais rejeitaria a mistura de seu sangue, mas nunca aceitaria viver como eles. Por essa razão, decidiu que a única maneira de lutar contra essa parte selvagem era se trancar em casa e deixar que os anos passassem. No entanto, seu problema cresceu e cresceu a ponto de atingir uma loucura sem precedentes. Aos 22 anos ela decidiu enfrentar essa possível maldição. Começou a sair, aparecer nas festas em que era convidada e aproveitar tudo aquilo que não tinha aproveitado por ter se submetido ao isolamento. Durante essas celebrações, sua atitude era muito parecida com a de Elizabeth: ela conversava com os convidados sem se importar com a classe social a qual pertencia, aceitava danças até mesmo dos homens menos apropriados e não evitava os olhares daqueles que a observavam. Só deixava as festas quando seus pés doíam tanto que não suportaria uma dança mais. Naquela época, ela conheceu Dick Hendall, um burguês bonito com quem se encontrou em muitas ocasiões. Primeiro, houve alguns olhares discretos, depois algumas conversas e acabaram ficando nas áreas mais escuras dos jardins. Dick era um verdadeiro sedutor e a transformou em uma mulher apaixonada e desinibida. Cada vez que estavam sozinhos, ela se apaixonava não apenas pelas palavras bonitas, mas também pelos beijos e carícias que a deixavam tremendo. Nunca imaginou que o cortejo de um homem em relação a uma mulher era tão enganador e assim acabou cedendo àquela paixão que ambos mantinham em segredo. Depois de vários encontros de amor, Dick propôs casamento argumentando que não tinha uma mulher no mundo que pudesse amar tanto. Naquele momento e prisioneira da felicidade, Anne aceitou sua proposta, esquecendo, novamente, a maldição que sua mãe havia comentado.

Na tarde em que seu belo Sr. Hendall apareceu na residência dos Moore para formalizar a proposta de casamento, ela estava tão nervosa que mal conseguia ficar sentada por mais de três segundos. Andou pelo corredor esfregando as mãos enquanto esperava que um dos pais saísse do escritório e reivindicasse a presença dela. Nesse ir e vir ao redor da casa, rezava para que sua mãe, porque seu pai não acreditava em maldições ou feitiços, esquecesse a ideia daquele encantamento familiar. Desperdiçou quase sete anos de sua vida acreditando nessa insensatez e esperava que todos aceitassem, de uma vez por todas, que não havia maldição. Uma hora depois da chegada de Hendall, sua mãe abriu a porta e chamou por ela. Quando entrou, pôde ver a emoção nos olhos de Dick. Seus pais aceitaram o compromisso e, a partir daquele momento, ela se tornou noiva do sr. Hendall.

Nada poderia deixá-la mais feliz ou mais orgulhosa de si mesma. Não só se casaria com o homem por quem estava apaixonada, mas, com essa atitude, tinha abolido a estupidez de que estivesse amaldiçoada.

Foram dias muito felizes para a família. Suas irmãs se uniram nessa alegria, ajudando-a a procurar um vestido de noiva e a elaborar a lista de convidados. Até seu pai se unia, toda vez que seu trabalho permitia, àquelas divertidas reuniões de mulheres. A única pessoa que não compartilhava esse estado de euforia coletiva era sua mãe. Desde que Dick saíra de sua casa, ela permaneceu em silêncio, esquiva e misteriosa. Anne, furiosa com tal atitude inadequada, teve a audácia de censurá-la por ter passado toda a sua juventude assustada por uma mentira e que demonstraria, com o seu casamento, que estava errada e que não precisaria se casar com um cigano para ser feliz. Sophia relutantemente concordou que tudo o que pensara sobre seus ancestrais era uma mentira e que nenhum de seus parentes tinha a habilidade de amaldiçoar.

Os dias passaram e, pela primeira vez em muito tempo, a palavra maldição foi banida de sua mente. Mas tudo isso mudou na noite em que um criado de Dick apareceu para informá-los da trágica notícia...

Depois de ouvi-lo, ela teve que sentar no primeiro degrau da escada do corredor para não cair no chão. Lágrimas lutavam para brotar, enquanto ela se recusava a assumir o que havia acontecido. Foi seu pai quem decidiu descobrir o que havia acontecido e, depois de ouvir várias vezes a versão do criado, pegou o casaco e saiu com ele. Aturdida e petrificada, Anne sentiu os soluços de suas irmãs como se estivessem a vários quilômetros de distância dela. Tudo ao seu redor havia desaparecido; ela deixou de ser Anne Moore, a noiva de Hendall, para se tornar um fantasma sem nome ou destino. Esse estado de choque a manteve longe da realidade por três dias, o tempo que os pais de Dick definiram para velar seu corpo inerte. Mesmo assim, embora se encontrasse durante aqueles dias ao lado de um caixão, só reagiu quando duas pessoas vestidas de rigoroso luto colocaram o caixão no mausoléu da família. Então ela teve que aceitar a verdade: seu noivo havia morrido. Um cavaleiro experiente, que competira em cem corridas, caiu de um garanhão ao galopar em direção à sua casa.

Após o cortejo fúnebre, ela se trancou em seu quarto e não saiu até que vários dias depois seu pai entrou e lhe disse a versão do Dr. Flatman: que a morte de Dick poderia ter sido evitada se ele não estivesse andando em um cavalo não castrado depois de ter ingerido tanto álcool como para embebedar a tripulação do maior navio de Londres. Apesar dessa descoberta, embora Randall tentasse convencê-la de que ela não tivera nada a ver com isso, Anne não deu ouvidos as razões. Durante um ano e meio manteve um luto severo pelo noivo morto e o pensamento de que estava amaldiçoada voltou à sua mente.

Uma vez que o período de luto passou, a mesa de seu pai foi novamente preenchida com convites. Nessa ocasião, não convocavam apenas a ela, mas também Mary, que completara vinte anos, e Elizabeth, que tinha dezenove. A resposta de Mary foi sempre negativa, no entanto, Elizabeth não estava disposta a deixar passar o tempo sem aproveitar os benefícios de ser a filha do famoso Dr. Randall Moore. Embora a garotinha sempre tentara chamar a atenção dos presentes, dificilmente conversava porque era jovem demais. Para a angústia de Anne, os olhares se voltavam novamente para ela. Ninguém estava falando sobre a noiva infeliz que, faltando um mês para o casamento, seu pretendente morreu, nem ouviu rumores sobre uma possível maldição. Até aquele momento, o segredo ainda estava protegido. Mas isso mudou depois da morte de Lorde Hoostun, o único filho do conde de Hoostun...

Ela não sabia nada sobre o menino, talvez porque nunca tivesse saído da residência onde vivera desde que nascera. O único que conhecia era o conde viúvo. O velho a observava com atrevimento quando coincidiram em algum evento e tentava, por meio de conhecidos, iniciar conversas. Logicamente, ela recusou essas abordagens, mas a fixação do viúvo por Anne tornou-se cada vez mais exaustiva.

Na noite em que o velho conde apareceu em sua casa para pedir um compromisso entre ela e seu filho, Anne gritou aos céus. Repetiu para seus pais até que estivessem cansados de que deveriam se lembrar da maldição à qual ela foi submetida e que se eles aceitassem a proposta matariam outra pessoa. Randall refutou todas as suas alegações lembrando-a de que a morte de Hendall aconteceu por ele mesmo ser um tolo e não devia se tornar egoísta porque suas irmãs sofreriam um futuro incerto por causa dela. Anne implorou a sua mãe, a única que ainda pensava sobre a existência dessa maldição, mas ela não a ouviu. Talvez porque, depois de confessar que perdera a virtude com Dick, achasse que era a última chance que a vida lhe ofereceria para encontrar um marido que não a rejeitasse por não ir inocente para o casamento. Como o viúvo esclareceu, nem ele nem seu filho se importavam com o que Anne fizera no passado, mas com o que lhe ofereceria no futuro próximo: a descendência de que tanto precisavam para que o título não voltasse à coroa. Apesar de seus gritos e pedidos, Randall concordou com o compromisso. Dois dias depois que os jornais anunciaram que estavam noivos, o jovem Hoostun, a quem ela ainda não havia encontrado pessoalmente, morreu. Nesta ocasião, foi o próprio Dr. Flatman que a visitou para falar sobre o que aconteceu. Por mais que ele insistisse que fora algo fortuito, porque ninguém previu que a arma dispararia durante a limpeza, Anne se sentiu tão culpada que mergulhou em uma terrível depressão. Embora não tenha saído de casa por meses, rumores sobre a aura maligna que a cercava chegaram aos seus ouvidos. Eles a nomearam de tantas maneiras diferentes que não podia contar com os dedos das mãos. Até mesmo uma cartunista, que trabalhava para um jornal semanal, fez uma caricatura explicando que, se quisessem fazer com que um libertino que estivesse atrás de uma dama honesta desaparecesse, a melhor maneira de se livrar dele seria promete-lo a filha mais velha do Dr. Moore. Logicamente, os convites para eventos sociais desapareceram. A mesa de seu pai estava vazia e isso causou uma controvérsia familiar muito perigosa. Por um lado, Mary ainda não queria um marido, Josephine aperfeiçoava a habilidade militar com a qual nascera e Madeleine manteria sua excessiva timidez em segurança. Por outro lado, Elizabeth não queria adotar essa posição. Cada vez que o tema aparecia nas poucas reuniões de família em que participava, a repreendia que, por culpa dela, nunca alcançaria seu sonho: casar com um aristocrata. Anne, desesperada, decidiu se afastar, inclusive, da própria família. Se trancou em uma sala e passou muitas horas praticando aquilo que a fazia feliz quando criança: a pintura.

Lentamente, se levantou do banquinho, alisou o vestido e caminhou até a porta. Antes de sair, olhou para Mary, que, como de costume, já estava na cama e lendo um novo livro sobre medicina.

—Não faça essa cara — comentou ao descobri-la olhando para ela sem piscar. — Certamente apreciará a bela cerimônia.

—Se tem tanta certeza, por que não vai? — Ela a repreendeu com um pouco de raiva.

—Porque tenho um compromisso que não posso adiar — comentou, levantando o livro que ela tinha em suas mãos. — E parece mais apropriado me informar de como enfrentaremos doenças futuras do que evitar os olhares de desaprovação dos cavalheiros que irão a essa bendita festa. —Além disso, não estou tão desesperada quanto Elizabeth. Não estou procurando por um homem para arruinar a minha vida.

—De acordo com Madeleine, acabará casada — comentou Anne, mordaz.

—As visões de nossa irmã mais nova não me causam nenhuma preocupação. Só as aceitei para que você não saísse de Londres depois da morte do seu segundo pretendente. Embora eu já tenha ouvido que continua com essa ideia e que o papai vai se encontrar hoje à noite com a pessoa que irá levá-la para a sua amada Paris — explicou ela enquanto se sentava na cama.

—Não posso ficar mais aqui, a machucarei — disse Anne tristemente.

—Não penso o mesmo. Estamos todos muito felizes, exceto você.

—Não está ciente da atitude que nossa irmã tomou? Não vê o que eu vejo? Enquanto continuar assim, terminará mal e nunca encontrará um marido.

— O que Elizabeth faz com a vida dela é problema dela, não meu. Ela deve estar ciente de que é burguesa e que não realizará o sonho de se comprometer com um aristocrata. O que acho insuportável é que se culpe por isso. Se ela usasse alguma outra coisa em seu cérebro, em vez de se olhar tanto no espelho, perceberia que tem um dom tão precioso que qualquer homem, seja ou não um aristocrata, cairia a seus pés. Mas, felizmente para ela do que para você, é mais fácil culpar os outros pela imprudência que ela faz diariamente.

—E a maldição? — Anne perguntou, se aproximando da cama da irmã.

—Isso é estupida! Pelo amor de Deus, realmente acredita nela?

—Depois das mortes de...

—Eles eram ineptos! Hendall era tolo por andar bêbado em um garanhão, o pobre Hoostun não tinha cérebro e seu pai acreditava que, casando-o com uma mulher saudável, ele resolveria o problema. Além disso, você mesma testemunhou a impaciência do conde. Qualquer homem honesto teria gritado aos céus quando nossa mãe confessou que não guardou sua virtude e o que ele disse?

—Que ele não se importava com o que fizera no passado, que a única coisa que lhe interessava era que seu filho tivesse filhos logo — comentou Anne, corando com a frieza com que sua irmã expunha o fato de que ela entregara o tesouro de sua virgindade para Dick.

—Exatamente! —Disse Mary, ajoelhada na cama. — Aquele homem só queria netos saudáveis para mostrar seu título nobre, mas ele se esqueceu da insanidade de seus próprios filhos. Talvez se ele a tivesse reclamado como sua esposa, teria tido uma chance.

—Ou ele teria morrido — disse Anne um pouco com raiva.

—Bem, certamente seu coração não teria suportado uma noite ao seu lado. Se o sangue cigano, que nossa mãe diz que a enlouqueceu a ponto de não ter consciência do que fez com Dick, ainda está em suas veias, o velho teria morrido só de vê-la nua. —E depois dessa declaração, ela soltou uma risada.

—E você? Não tem sangue cigano? Porque sua mãe é a mesma que a minha — ela recriminou.

—Como já ouvi, o sangue cigano nos incita a viver paixões e desejos para com os homens e eu, por enquanto, não quero deitar nos braços de ninguém. Então, felizmente para mim, eu não deveria ter uma única gota. É mais provável que o Moore predomine, então só preciso encher minha mente com sabedoria e não ter sonhos absurdos. A castidade, minha querida irmã, deve ser o segredo de eu ser mais inteligente que você —disse ela com orgulho.

—Espero que encontre o homem que Madeleine viu e se torne mais luxuriosa do que eu fui! —Anne gritou enquanto caminhava em direção à saída.

—Outra maldição? —Rosnou Mary com sarcasmo.

—Se isso a fizer uma mulher menos instruída, sim, é outra maldição —declarou antes de fechar a porta.

Não suportava à frivolidade que Mary expressava quando falava sobre o problema que tinham com Elizabeth, ou como podia zombar dela por se entregar ao homem que amava, ou como ria daquela maldição. Ela era culpada por tudo o que aconteceu! Só ela! Mas logo o problema seria resolvido... naquela mesma noite, o pai conversaria com o homem que a levaria para longe de Londres e da sua família. Uma vez que a filha amaldiçoada deixasse de existir para a sociedade, suas irmãs recuperariam o que haviam perdido por sua causa e finalmente encontrariam a paz.

Quando apareceu no topo da escada, notou que Elizabeth estava esperando por ela na entrada ao lado de seus pais. Sua irmã havia escolhido um vestido azul claro para a ocasião e, como sempre, sua escolha foi muito sábia. O tom do tecido não apenas destacava a cor dos seus olhos, mas também enfatizava dourado do cabelo. Anne sentia pena dela. Ela era linda demais para adotar esse comportamento tão inadequado. Se ela se tornasse uma mulher respeitável e deixasse seu dom ser conhecido, como Mary explicou, os homens cairiam loucamente a seus pés.

—Finalmente! —Exclamou ao vê-la. — Por que escolheu esse vestido horrível? Não percebe que essa cor não a favorece? Se usar algumas joias de estanho, vai parecer uma verdadeira cigana e estarão lhe pedindo o tempo todo para que leia o futuro —disse antes de soltar uma risada.

—Elizabeth... —advertiu sua mãe. — Deveria estar agradecida por sua irmã ter decidido acompanhá-la até a cerimônia, em vez de zombar dela.

—Anne, agradeço por me acompanhar, —Eli resmungou. —Mas preferiria a Mary.

—Elizabeth! —Seu pai gritou. — Como pode ser tão pérfida?

—Não sou pérfida, pai — ela disse, suavizando o tom. — Sou realista e a única coisa real que vejo neste acompanhamento, é que ninguém se aproximará de mim porque estarei sob a proteção de uma amaldiçoada que também usa um vestido horrível.

—Elizabeth Moore! Está de castigo! — Gritou Sophia, com raiva.

—Não vai me deixar ir? O que minha amiga pensará quando não me ver? Que boato os convidados vão espalhar quando não houver representação dos Moore no evento mais importante do ano? —Ela perguntou com rancor.

—Não se preocupe, mãe. Cuidarei dela —Anne apaziguou.

—Se observar algo inapropriado, se o comportamento de Elizabeth se tornar insuportável, não hesite em arrastá-la até aqui —pediu Sophia, apertando os olhos. —Então me ocuparei para que mude sua atitude quando ela passar pela porta.

—Lembre-se, mãe, que o sangue cigano corre pelas minhas veias e, como a senhora fez na época, eu também procuro por um homem que me faça feliz —expos Elizabeth enquanto Shira a ajudava vestir o casaco.

—Meu sangue cigano me avisa que sofrerá por um longo tempo —Sophia murmurou. —Enquanto a tristeza cobrira esse coração sombrio, não encontrará a luz.

—Por favor... —Anne interveio. —Não é hora de começar outra discussão. Certamente nada acontecerá e Elizabeth se comportará corretamente.

—Espero que sim —Randall sussurrou antes de pegar a mão de sua esposa e beijá-la para tranquilizá-la.

Depois que saíram de casa, Elizabeth subiu primeiro na carruagem, sentou-se no banco e olhou para Anne com os olhos apertados.

—Espero que não me envergonhe novamente.

—Eu? —Anne perguntou atordoada. —Se alguma coisa a envergonha, é o seu comportamento. Parece uma prostituta.

—Se não tivesse enterrado dois pretendentes, não teria que mostrar o decote para encontrar um marido.

—Madeleine disse que iria encontrá-lo —Anne lembrou.

—Sim, ela também disse que apareceria no caminho entre a nossa casa e a do Bohanm, e você viu um cavaleiro rondando aquela área?

—Deveria ter paciência e....

—Não tenho tempo! —Ela exclamou em voz alta. —Não percebe que estou prestes a completar vinte e dois? Estou muito velha!

—Mas...

—Não há mais, Anne. Os dias passam cada vez mais rápido, minha beleza desaparecerá, e se não encontrar um marido antes do final do ano, me tornarei uma solteirona amarga como você —ela disse antes de virar o rosto para a janela da carruagem finalizando a conversa.

Anne a observou em silêncio. Ela estava tão desesperada para alcançar seu propósito que, como Mary dissera, qualquer coisa poderia acontecer com ela, da qual se arrependeria pelo resto de sua vida. Mas, felizmente, ela permaneceria ao seu lado naquela noite para não cometer nenhum disparate e, quando voltassem para casa, seus pais cuidariam dela. Só esperava que o capitão do navio aceitasse a proposta de seu pai e que partissem o mais rápido possível...

Depois de suspirar profundamente, colocou as mãos involuntariamente no peito. Não entendia por que estava tão inquieta ultimamente. Talvez fosse devido à angústia que sentia por Elizabeth ou à ansiedade de descobrir de uma vez quando iria embora. Independentemente da razão disso, o latejar aumentou durante a viagem e seu sangue cigano, que congelara após a morte de Dick, recuperou a vida, como se indicasse que seu destino mudaria para sempre naquele dia....


I


Como já temia, a cerimônia nupcial não apenas consistia em acompanhar o futuro casal na igreja, mas depois tiveram que assistir à celebração que o Marquês de Riderland havia preparado em sua residência em Londres. Anne, cansada depois de muitas horas sem poder se sentar, decidiu se esconder e se apoiar atrás de um dos pilares que cercavam a sala. Aquele lugar isolado permitiria que ela continuasse observando sua irmã enquanto apaziguava a dor insuportável em seus pés. Incapaz de piscar, para não perder um único movimento de Elizabeth, notou que ela e sua amiga Natalie, agora Sra. Lawford, olhavam com desconfiança para o local da sala destinado para jovens solteiros. Anne silenciosamente amaldiçoou ao descobrir quem eram os possíveis protagonistas da conversa. Como Elizabeth poderia agir dessa maneira? Ela não tinha nem um pouco de dignidade? Os dois rapazes aos quais observavam não eram apenas mais jovens do que ela, mas também eram os filhos de dois importantes aristocratas londrinos. Isso confirmava que o problema de sua irmã era maior do que pensava. Quando as duas amigas olharam para outro lado, Anne contemplou silenciosamente aqueles dois jovens. O primeiro, exceto pela cor dos olhos, era uma réplica idêntica ao duque de Rutland. Até se assemelhava à retidão de sua grande corpulência. Como suas clientes comentavam, a quem ela retratava diante de uma bela paisagem e com vestidos que nunca compraria por sua exagerada extravagancia, o belo adolescente tornara-se um dos solteirões mais cobiçados da cidade. Sendo o primogênito do duque, e o único homem, herdaria um legado que muitas jovens casadoiras estavam ansiosas por conseguir, embora, felizmente para ele, ainda não estivesse interessado em encontrar uma esposa com quem compartilhar essa herança, mas em terminar os estudos que acabara de começar. O segundo menino que Elizabeth observou por um momento foi Eric Cooper, o filho do barão de Sheiton. Um jovem alto, com olhos de safira e uma cor de cabelo incomum, já que naquele cabelo avermelhado, umas mechas loiras brilhavam como ouro. Outro candidato a marido, pelo qual não apenas as jovens suspiravam, mas também as mães delas. Porque, se o filho do duque tinha uma aura de respeito, seriedade e honestidade que intimidava qualquer um que se aproximasse dele, lorde Cooper assustava ainda mais com seu comportamento nobre. Ninguém se atrevia a espalhar um boato falso sobre ele. Sua honestidade excedia em muito a do homem mais honesto do mundo e, de acordo com as declarações das jovens que se fascinavam por serem retratadas, o futuro barão de Sheiton recusou, sem rodeios, mostrar uma vida de devassidão. Que mulher em sã consciência não sonharia em ter um marido dedicado apenas para agradar a sua esposa? Esse comportamento incomum entre os aristocratas de Londres se confirmava em qualquer evento social. Um dos exemplos mais significativos dessa atitude fria e distante poderia ser notado no momento das danças. Ele nunca levava uma mulher para dançar, exceto a esposa de seu pai, sua irmã Hope, a filha do marquês de Riderland ou as do duque de Rutland. Devido a essa atitude distante, cada vez que o jovem caminhava ao lado de um grupo de jovens casadoiras, os suspiros se tornavam tão profundos quanto os gemidos de tristeza.

Depois de refletir sobre os dois jovens, ela decidiu deixar a área onde estava e ir para os lugares que eram destinados para as senhoras idosas, que se cansavam durante a noite, ou para aquelas jovens que esperavam um generoso cavalheiro que as levasse para dançar. Ela estava na primeira opção, embora não tivesse chegado aos vinte e cinco. Mas não conseguiria ficar de pé por nem mais um segundo. Enquanto caminhava pelo amplo corredor formado pelas colunas e a parede, observava os convidados. Todos bebiam, sorriam, dançavam e falavam sem prestar atenção à sua presença, como se ela não existisse. Isso, de certa forma, a agradava. Dessa forma, não teria que oferecer desculpas absurdas sobre o comportamento esquivo que mantinha ou ouvir de novo a triste história da morte de seus noivos. A sociedade, em vez de falar sobre a habilidade que adquirira com a pintura e o que era considerado entre as damas da alta sociedade por seus trabalhos, preferia se alegrar nos piores momentos de sua vida. Embora isso não importasse depois dessa noite. Quando a pessoa que seu pai visitaria concordasse em levá-la em seu barco, ela partiria. Desta forma, esqueceria quem era e iria se concentrar em quem queria ser: Anne Moore, a pintora.

Fora Dick quem lhe contara sobre a viagem a Paris durante os encontros românticos que tiveram. Ela sempre dizia que estava cansada de morar em Londres porque, por mais que tentasse, não conseguia encontrar seu lugar em uma cidade tão esquiva e orgulhosa. Claro, nunca disse a ele que uma parte dela, seu lado cigano, insistia para que viajasse de um lugar para outro e descobrisse novos mundos como se fosse uma nômade. No final, ficou evidente que seu sangue cigano era maior que o Moore...

Após a morte do filho do conde, relembrou todas as histórias que Dick contara sobre a cidade e acabou obcecada com um ponto: a sociedade parisiense era muito diferente da inglesa. Ninguém perguntava sobre o passado das pessoas. A única coisa que os interessava era a pessoa que havia chegado e jamais perguntariam o que aconteceu para que saísse de sua cidade. Essa nova visão da vida seria fabulosa porque, uma vez que pisasse em Paris, esqueceria a tragédia que vivera em Londres e se apresentaria como uma jovem artista que procurava ter sucesso na arte da pintura.

?Uma jovem artista ... ?suspirou para si mesma.

Ela não era mais tão jovem, mas uma grande pintora nasceu dentro dela e tudo se devia à morte de seu segundo pretendente. Algo bom despontou desse passado horrível!

Durante a depressão que sofreu após o episódio, ela se concentrou em pintar e desenvolver sua técnica. A única coisa que a fazia sair de casa, era visitar uma livraria onde comprava livros que explicavam como evoluir no dom que possuía desde criança. No início, representava apenas paisagens sombrias e tenebrosas, no entanto, com o passar do tempo, começou a ver luz e beleza nelas. Sua mãe, como recompensa por essa nova perspectiva, colocou as telas que ela chamava de belas na entrada da casa, permitindo que todos que as visitassem pudessem admirá-las. Uma dessas visitas foi o casal Flatman. O parceiro de seu pai queria descobrir como estava após o segundo transe. Mas não falaram sobre a enfermidade mental que sofreu porque a esposa do médico concentrou todas as conversas em sua maravilhosa habilidade. Durante o jantar, a Sra. Flatman decidiu pedir-lhe para retratar suas filhas porque, segundo ela, ambas tinham uma beleza semelhante à das deusas gregas. Ela aceitou o trabalho rapidamente, esperando que essa alternativa fosse benéfica para ela. E assim foi. Antes de terminar o segundo retrato das filhas do médico, havia confirmado uma série de outros pedidos. Quase todas as senhoras, que podiam pagar seu preço, exigiam seus serviços. Embora só pintasse mulheres, porque os cavalheiros não se atreviam a olhar para ela, no caso de envenená-los com os olhos, gostava daquele novo rumo que a vida lhe dera. No entanto, com o passar do tempo começou a se cansar de ir de um lugar para outro com o cavalete, das conversas que as jovens lhe ofereciam e de retratar mulheres bonitas que escondiam uma maldade parecida com a de sua bisavó Jovenka.

Essa era a segunda razão pela qual queria se afastar de sua família. Além de libertá-los da maldição, poderia se dar uma oportunidade. Não queria se tornar uma testemunha silenciosa das projeções maravilhosas que as moças que ela retratava apresentavam, ela queria ser a protagonista dessas experiências. Já havia assumido que seu sangue materno era mais poderoso que o do pai, que dentro dela havia uma mulher apaixonada que queria amar e ser amada e que, a cada dia que passava trancada, seus anos de vida eram reduzidos. O que sua mãe disse? Que deveria casar com um cigano para que a maldição desaparecesse, mas em nenhum momento explicou que não poderia manter relações com os homens. Logicamente, devido à reputação de seu pai, não pretendia encontrar amantes em Londres, mas os encontraria em Paris. Talvez... até... sim, poderia até se tornar mãe. Anne fechou os olhos e suspirou. Se conseguisse ter um filho em seu ventre, se conseguisse gerá-lo, ela o amaria e cuidaria dele até o fim de seus dias. Nunca diria ao pai sobre a existência daquele filho, de modo que ele não insistisse em se casar e se tornasse a terceira vítima da maldição. Nunca pensou nisso enquanto mantinha relações amorosas com Dick. Talvez porque era muito jovem ou talvez porque ele prometera que, até que eles se casassem, não deixaria sua semente dentro dela. Independente do motivo, não se imaginou com uma criança em seus braços até que decidiu deixar a cidade que odiava. Só Paris poderia oferecer-lhe o que sonhava e desejava!

Quando estava prestes a chegar na área da sala a qual se dirigia, escutou vozes masculinas muito próximas a ela. Por causa do tom que usavam, não pareciam estar tendo uma conversa cordial, muito pelo contrário. Embora devesse ser discreta, Anne olhou para aquelas duas figuras masculinas que afastadas dos convidados. Um, sem dúvida, era o marquês de Riderland. Mesmo que estivesse de costas, o cabelo loiro e a altura eram seus traços mais característicos. No entanto, os olhos castanhos de Anne se fixaram no cavalheiro desconhecido. Suas costas eram tão largas quanto às do Marquês e diferiam pouco em altura. Suas pernas longas e torneadas estavam perfeitamente moldadas pelas calças. Eles pareciam duas figuras exatas, no entanto, o estranho usava um longo cabelo escuro preso em uma fita preta, de acordo com o tom do terno que usava. Anne, percebendo que ele começava a mover seu lindo corpo virando para o lado dela, começou a andar em direção às cadeiras, tirando rapidamente os olhos daquele lugar. Se repreendia Elizabeth por seu comportamento descarado, não poderia fazer exatamente o que estava recriminando. Mas a curiosidade em descobrir quem irritou o marquês em um dia tão importante para a família, fez com que ela lentamente virasse o rosto para eles. No momento em que viu as feições do estranho, estendeu a mão para o encosto da cadeira mais próxima e se agarrou a ela com força. Eles eram da família, disso não havia dúvidas. Somente os Riderland poderiam ter aquela cor de olhos tão especial e rara. Como Elizabeth dissera, era uma característica muito típica dos Bennett. Mas Anne não fixou apenas os olhos no homem, mas continuou a observá-lo com ousadia. Sua mandíbula, forte e máscula, ostentava uma barba bastante espessa e comprida. Parecia que ele havia demitido seu valete anos atrás. Lentamente, e sem conseguir parar de olhá-lo, contemplou seu nariz aquilino, as rugas em sua testa e aquela forma de coração que mostravam seus lábios vermelhos como o carmim. Atordoada por esse comportamento tão atrevido, se colocou na frente da cadeira que estava segurando e se sentou. No entanto, seus olhos pareciam não ter percebido aquele constrangimento que percorria seu corpo e permaneceram presos no estranho, reunindo todos os detalhes daquele corpo tão másculo e magnético. Conseguiu rapidamente a resposta a uma das perguntas que se fez mentalmente; ele era um legítimo Bennett, apesar de ser moreno. Talvez fosse um sobrinho, um primo ou um tio jovem do marquês. Mas sem dúvida, um Bennett.

Estava tão encantada com ele, tão atraída por aquele corpo musculoso e sensual, que não percebeu que o observara por tanto tempo que acabaram cruzando seus olhares. No momento em que aquele estranho ergueu a sobrancelha direita, perguntando em silêncio para o que estava olhando, Anne, ainda mais envergonhada, abaixou a cabeça. No entanto, percebeu que ele não tirara os olhos dela. Sentia como a olhava, como contemplava cada centímetro dela, e naquele exato momento queria que uma cortina de fumaça, como a usada pelos ilusionistas que atuavam no teatro, a cercassem para que pudesse escapar. Mas aquela névoa espessa não apareceu e continuou percebendo o escrutínio daquele homem sobre ela. Mereceu. Causara aquele constrangimento por ser tola. Como se atrevera a olhar para um homem assim? Não estava zangada porque Elizabeth fizera o mesmo com os dois jovens aristocratas? Bem, agora... quem ficaria chateado por sua atitude inadequada? Ela. Ela mesma ficou irritada com sua indiscrição e com a repercussão que sua atitude inconveniente havia causado.

Ela colocou as mãos no vestido, eliminou as poucas rugas que havia e respirou fundo para se acalmar. Como era a única culpada dessa indecência era, colocaria um fim nela. Muito lentamente, foi se levantando, precisava voltar para o lugar onde passara às últimas duas horas. Ninguém iria vê-la ali e esse homem pararia de olhá-la. Mas quando ergueu o rosto, quando seus olhos se dirigiram de maneira involuntária para o lugar em que ele estava, descobriu aterrorizada que continuava a observá-la. Suas pernas começaram a tremer, suas mãos estavam tão suadas que podia ver as manchas de suor em suas luvas e seu coração, que tinha parado de bater quando Dick morreu, começara a palpitar com tanta força que a obrigou a se balançar ao ritmo dessas batidas. O que diabos estava acontecendo com ela? Por que estava tão paralisada? E.... por que sua temperatura subira? Desesperada, porque não havia palavra melhor para defini-la, virou-se, desviou os olhos daquele estranho e, ao dar o primeiro passo, esbarrou com uma mulher que conhecia há mais de vinte anos.

—Senhorita Moore, está bem?

—Milady —disse Anne, fazendo uma leve reverência. —Sim, muito bem, obrigada.

—Já vai? —A baronesa perguntou.

—Não, acabei de chegar. Estava prestes a sentar — mentiu.

Estendeu a mão para a idosa e ajudou-a a ficar em pé na frente da cadeira ao lado da que ela havia permanecido.

—Então me acompanhe, se não tiver nada melhor para fazer —pediu à filha mais velha de seu bom amigo Randall.

—Será uma honra —Anne respondeu, se acomodando novamente.

—Está aqui há muito tempo? Não a vi antes.

—Desde o início da tarde, milady. Como sabe, Elizabeth é a melhor amiga da atual esposa do Sr. Lawford e não poderíamos perder um dia tão especial —explicou lentamente.

—Então o fato de não ter ouvido falar a seu respeito até agora é porque passou esse tempo cuidando da integridade de sua irmã em vez de aproveitar a festa, estou errada? —Vianey perguntou com grande confiança.

—É muito astuta, baronesa —disse Anne, esboçando um leve sorriso.

—Bem, tenho que informá-la que não serve como dama de companhia — ela disse de forma repreensiva. —Caso não tenha notado, Elizabeth decidiu dançar com Lorde Lorre e posso assegurar-lhe que esta companhia não é muito apropriada.

Anne, diante do comentário da baronesa, olhou para a pista de dança e confirmou suas palavras. Elizabeth dançava e sorria para seu acompanhante. Como aceitou dançar com ele sem pedir permissão? Estava tão desesperada para ignorar os protocolos sociais? E o que ela fez para impedir isso?

—É só uma dança...—Anne murmurou para a baronesa. —Tenho certeza de que quando eles terminarem, ela virá até mim e tudo será resolvido.

—Sua irmã, querida, não deixará nada resolvido. Não sei se seus pais são conscientes da atitude inadequada que a terceira de suas filhas tem adotado, mas o resto da sociedade sim — disse ela severamente. — Seria uma lástima se, após o tempo que o seu pai levou para se posicionar onde está, a má reputação de uma de suas filhas o destrua.

—Milady, com todo o respeito, devo dizer que está dramatizando uma atitude afável. Minha irmã não adota uma...

—Como definiria o comportamento de uma jovem que, desesperadamente, tenta se casar com um aristocrata, Anne?

O fato de que aquela mulher a chamava pelo primeiro nome a deixou aturdida. Era verdade que seus pais e a baronesa de Swatton tinham um relacionamento muito íntimo depois que seu pai salvara seu amante, o administrador Arthur Lawford, de uma terrível doença. Mas nunca se dirigiu a ela com tanta familiaridade. Isso só poderia indicar que estava muito preocupada com a fama que Elizabeth poderia adquirir e o drama que acarretaria à sua família.

—Irá passar... — Anne admitiu depois de respirar fundo.

—Acredita mesmo que depois que sair da cidade a sua irmã irá mudar? —Ela retrucou, olhando-a sem piscar.

—Como sabe...? —Tentou dizer.

—Sua mãe e eu, como bem sabe, somos muito boas amigas e me contou que decidiu ir para Paris pelo bem de suas irmãs —confessou.

—Não só por isso, milady, mas também pelo desejo de evoluir como artista. Não posso passar o resto da minha vida retratando damas, isso vai me destruir de novo e, como bem sabe, depois do que aconteceu no passado, só fui capaz de sair daquele estado horrendo através da pintura.

—Então... nenhum cavalheiro tentou se tornar seu terceiro pretendente, certo? ?Vianey estava interessada.

—Não. Nenhum e também não quero que o façam. Cheguei à conclusão de que quero ficar sozinha. Não quero um homem ao meu lado que esteja continuamente verificando o que farei durante o dia. Preciso de liberdade para fazer o que me agrada — disse ela com as mesmas palavras que Mary usou quando sua mãe insistiu, três semanas atrás, que levantasse os olhos dos livros e os colocasse em algum homem.

—Entendo... — a baronesa murmurou, desviando o olhar de Anne e o prendendo no outro extremo da sala. Para sua surpresa, descobriu que o irmão do marquês, o visconde de Devon, continuava observando o lugar onde estavam. Muito a contragosto, tinha certeza de que aquele belo cavalheiro não a contemplava, mas sim a sua companheira. Rapidamente voltou seus olhos para a filha mais velha de Randall e fez uma expressão de aborrecimento com a cor daquele vestido. —Paris não me agrada. Lá os cônjuges são infiéis.

—Os desta cidade não? —Anne perguntou, levantando as sobrancelhas castanhas.

—Os daqui também, mas menos do que os dessa cidade — continuou em seu discurso. ?Além disso, nem tudo está perdido. Talvez apareça um cavalheiro que não tenha medo de enfrentar a morte e queira descobrir o que está escondendo sob este horrível vestido laranja. Sua mãe não a proibiu quando a viu? Porque se fosse minha filha, teria feito isso em pedaços.

—Minha mãe, como bem sabe, respeita as decisões de suas filhas. Por essa razão, me permitiu usar este lindo vestido de seda laranja e me apoia na decisão de partir para Paris —disse sarcasticamente.

—Bem, sendo esse o caso, devo avisá-la para se concentrar, durante o tempo que permanecer aqui, na atitude de sua irmã, não acho que minha querida Sophia deseje ouvir conversas sobre a posição que sua terceira filha ocupará se desejar manter um relacionamento com o senhor Lorre.

—A qual posição está se referindo? —Ela perguntou, se virando para a baronesa.

—Não ouviu os últimos rumores sociais, certo?

—Como deve compreender, não estou disposta a prestar atenção a diálogos absurdos sobre o que a aristocracia faz ou não —disse seriamente.

—Nesse caso, farei um resumo. Aparentemente, os barões de Pherguin, os pais de Lorde Lorre, fizeram tudo ao seu alcance para trazê-lo de volta da Espanha. O muito ingrato dilapidou mais de dois terços da herança familiar e foram obrigados a concordar com um futuro casamento com a filha do casal Bakalyan, os donos da segunda mais poderosa empresa de ferro. Assim que o acordo se tornar público, o único lugar que o ilustre Lorde Lorre poderá oferecer é o de uma amante. Sua linda irmã quer se tornar amante de tal homem? Sophia também respeitará essa alternativa para sua filha? —Disse de má vontade.

—Tenho certeza de que Elizabeth não sabe do que aconteceu, milady. Caso contrário, ela teria se recusado a conceder aquela dança —murmurou enquanto observava o casal sorridente. —Mas não se preocupe, assim que a peça terminar, falaremos sobre isso e verá como tudo foi um grande engano.

—Espero que a coloque em seu lugar —disse a baronesa, levantando-se depois de descobrir que Arthur estava indo em sua direção. —Seria horrível que tal comportamento selvagem que resolveu ter, a levasse a se perder. Testemunhei catástrofes irreparáveis sobre a honra de uma mulher.

—Como eu disse, tenho certeza que foi um engano —disse Anne, se levantando também.

—Bem, confio em seu bom senso, Anne. Não gostaria de testemunhar a terrível humilhação que seus queridos pais suportariam —ela insistiu.

—Não seria a primeira vez... —murmurou para si mesmo, mas a baronesa ouviu.

—Que seus noivos tenham morrido não é tão importante quanto ver arruinada a honra de sua irmã. E agora, se me der licença, tenho que me encontrar com Arthur. Estará cansado e quererá ir embora.

—Boa noite, milady —disse Anne, com uma leve reverência.

—Boa noite, Anne e lembre-se de uma coisa, a esperança é a última coisa que se perde.

—Se está se referindo a Elizabeth, não se preocupe, tenho certeza que tudo terminará em breve.

—Não me refiro a essa harpia disfarçada de menina, mas a você. Não perca a esperança de viver aqui o que sonhou, porque prevejo que sua vida mudará muito mais cedo do que imagina —disse ela antes de caminhar lentamente para o local onde o administrador a estava esperando.

Enquanto tentava se acalmar, observou a baronesa caminhando em direção ao amante sem se importar com a fofoca dos outros. Era ilógico que uma mulher como ela, que mantinha um caso com o tio do marido de Natalie há cinco décadas, notasse o comportamento infantil de Elizabeth. Mas isso só fortaleceu o que já havia concluído: que a aristocracia estaria sempre acima do resto do mundo. Incapaz de aplacar a raiva que sentia, Anne franziu o cenho e silenciosamente amaldiçoou que seus pais não tivessem escolhido Mary para ocupar seu lugar. Certamente, depois de ouvir as palavras da baronesa, ela teria se levantado, ido até os dois e, depois de esbofetear aquele rosto masculino bem-cuidado, teria agarrado Elizabeth pelo braço para arrastá-la para fora da residência do marquês. No entanto, ela, estava paralisada olhando para as expressões coquetes de Elizabeth e rezando para que as cordas de todos os violinos arrebentassem e o baile acabasse de fato.

«Mais alguns minutos...», pensou enquanto começava a caminhar para aquela área onde queria se esconder até que a música terminasse. Se já era penitência suficiente suportar que todos a evitassem e sua irmã não se comportasse adequadamente, não queria acrescentar, a essa lista, que os convidados percebessem que ela estava zangada, muito zangada. Certamente sairiam correndo gritando que a bruxa queria matar outra pessoa. Mas quando ia se colocar atrás daquela grande coluna que a protegeria até que pudesse pegar sua irmã e fazê-la voltar para casa, tornou a sentir uns olhos fixos nela. Com medo, porque estava ciente de quem era a única pessoa que teria a coragem de fazê-lo, levantou o queixo lentamente e teve a confirmação. Lá estava ele, aquele estranho de olhos azuis, a observando. Sem tirar os olhos dela, levou o copo que tinha na mão até a boca, bebeu devagar e, depois de tomar aquele gole, lambeu lentamente os lábios. Aquele ato tão descarado causou um ardor tão imenso em Anne que ela quase se ajoelhou. Seu coração batia descontroladamente de novo, suas mãos suavam novamente e uma dor estranha apareceu em seu abdômen. O que diabos estava errado com ela? Seu sangue cigano tinha ressurgido das cinzas ao vê-lo? O que havia de especial naquele homem? Por que estava tão alterada? Anne respirou fundo e, embora suas pernas não respondessem como desejava, se escondeu atrás do pilar, mas a saia de seu vestido laranja, uma cor bonita, mas não muito discreta, derramava de ambos os lados como se vestisse aquele pilar de mármore. «Se existe, me ajude a sair daqui», ela pediu fechando os olhos.

—Mais uma vez se escondendo? —Elizabeth perguntou.

—Elizabeth! —Exclamou surpresa.

—O que? —Ela retrucou, olhando-a com espanto. —O que aconteceu? Alguém riu do seu vestido horrível? —Ela zombou.

—Temos que ir. Temos que sair daqui... agora! —E, como havia pensado, agarrou o braço dela e arrastou-a para o corredor.

—Tenho que me despedir de Natalie! — Ela disse uma e outra vez.

—Amanhã envie uma missiva para ela, se desculpe dizendo que não queria que ela perdesse mais tempo e que partiu porque já era muito tarde —ela indicou sem olhar para ela.

Seu casaco. Tudo o que ela precisava para sair de lá era o casaco. Mas se o mordomo demorasse muito para oferecê-lo, sairia sem ele. E enviaria Shira para buscá-lo no dia seguinte.

—Mas Anne! —Insistia Elizabeth. —Não. Não está correto agir...!

—Está depois do que fez! Sabe o que a Baronesa de Swatton sugeriu para mim enquanto dançava com Lorde Lorre?

—Vindo dela, qualquer coisa —disse Eli divertida.

—Que os homens não te veem como uma futura esposa, mas como amante —disse ela sem hesitar.

—E é isso que uma mulher que esteve em um relacionamento secreto por décadas com um administrador de fama suspeita disse? —Trovejou Elizabeth, ofendida.

—Se ela pensa assim, o resto do mundo também. Ela só quer nos informar o que acontecerá se não reagir em breve.

Quando ela se virou para pegar o casaco que um mordomo finalmente oferecia, seu corpo endureceu como uma tábua. Ele a seguiu. Aquele homem a estava seguindo. Por que ele fez isso? Que interesse tinha em relação a ela?

—Ouça uma coisa, Anne Moore —disse Eli, apontando o dedo para ela. —Nem pense em contar aos nossos pais tanta tolice. Não procuro ser amante de ninguém, mas a esposa de alguém. Talvez tenha desistido quando seus dois pretendentes morreram, talvez a tolice daquela maldição de nossa bisavó a tenha assustado, mas não a mim. Não quero me tornar uma solteirona e pretendo me aproveitar do físico que tenho para encontrar um homem para casar.

—O físico não é importante... —Anne murmurou assombrada.

—Para se tornar a esposa de um aristocrata, sim —disse ela antes de se virar e sair da residência com o queixo tão alto quanto uma duquesa.

Anne, antes de dar um passo à frente e correr atrás de Elizabeth, virou-se para o lugar onde ela tinha visto o homem e descobriu que ele ainda estava lá, encostado na parede, naquele impecável terno preto, mostrando uma aura de mistério e olhando para ela sem piscar. Atordoada, pela forma tão ousada de observá-la, se virou e correu em direção à saída. Uma vez que entrou na carruagem e está partiu, seus olhos perfuraram involuntariamente a entrada da residência do Marquês e, quando observou a figura encostada no batente da porta, seu sangue cigano começou a ferver queimando a pele.


II


Quando Randall chegou à sua casa, depois de falar com o visconde de Devon, foi diretamente para o corredor norte, onde ele e sua esposa costumavam tomar o café da manhã com tranquilidade antes de suas filhas acordarem. Ao entrar, Sophia, como eles combinaram antes de ele partir, estava esperando sentada em frente ao calor da lareira. Ela havia soltado os cabelos e aquela esteira de fios negros e lisos chegava à cintura. Lentamente Randall foi em sua direção, colocou-se atrás dela e lhe deu um beijo carinhoso na cabeça.

—Ele se recusou a levá-la, certo? —Ela perguntou sem tirar os olhos do fogo.

—Sim, recusou, apesar de ter lhe dado o envelope — respondeu. Se virou gentilmente e sentou-se ao lado de sua esposa. —Nem o olhou... —ele acrescentou depois de respirar. —Não posso culpá-lo, Sophia. Porque o culpado de tudo sou eu... —continuou aflito.

—Não tem nada a ver com esse rechaço. As coisas acontecem por uma razão e estava previsto que ele não aceitaria essa proposta, mesmo que tenha lhe oferecido um milhão de libras —assegurou.

—Não sei se estava ou não —disse ele, descansando a cabeça no ombro dela. —A questão é que ele se recusou completamente depois de falar sobre a maldição de nossa filha.

—E, porque contou a ele sobre isso? —Sophia retrucou, pulando para cima. Ela olhou para ele e, vendo a tristeza naquele rosto que ela amava, relaxou.

—Não sei... —Randall disse esfregando o rosto em desespero. — As palavras saíram da minha boca sem que pudesse controlá-las e quando eu quis parar, já era tarde demais.

—O que disse... exatamente? — Ela exigiu saber enquanto se colocava na frente dele. Se ajoelhou, colocou as mãos nos joelhos de Randall e olhou para ele com muito carinho.

—Quando ele se recusou a navegar com uma mulher em seu navio, pensei que, explicando o seu passado, mudaria de ideia.

—E? —Sophia insistiu.

—Eu confessei sua verdadeira origem, o que sua avó fez, o sonho que teve no nascimento de Anne e a morte de seus pretendentes —disse ele sem olhar para ela.

—E? —Ela continuou insistindo.

—E, claro, ele se recusou ainda mais. Que capitão de navio levaria uma mulher amaldiçoada entre sua tripulação?

—Essa foi a razão pela qual ele rejeitou? Essas mesmas palavras saíram da sua boca? —Ela insistiu novamente.

—Não. O visconde não se referiu à maldição, mas à ideia maluca de tirar nossa filha de nós.

—O que aconteceu quando contou sobre a morte dos pretendentes de nossa filha?

—Pensei que me chutaria para fora de sua casa —ele disse com pesar. —Primeiro ele ficou pálido, como se não acreditasse em minhas palavras, então, quando expliquei que nenhum homem se aproximava dela e que ele pode confirmar isso na festa, me culpou pela infelicidade de nossa filha. Segundo o visconde, foram nossas escolhas equivocadas que provocaram essa catástrofe.

—Nós não temos nada a ver com a aceitação de Anne para o Sr. Hendall. Ela mesma decidiu o que queria com seus atos inapropriados —Sophia o lembrou.

—Verdade, e se aquele canalha não tivesse confessado que Anne perdera sua virtude com ele, não o teria aceitado. Mas também testemunhou como ele usou a honestidade de nossa filha para alcançar seu propósito.

—E o destino puniu seu trabalho maligno com a morte —disse Sophia, levantando-se. Ela se virou devagar e sentou-se ao lado do marido.

—Sorte dela... —ele meditou em voz alta. —Ainda estou me perguntando como Anne não foi capaz de descobrir quem esse homem realmente era e o que ele pretendia com esse casamento —disse Randall, colocando as mãos nos joelhos, como se para apaziguar a frieza que sentia após a retirada de sua esposa. —A cidade inteira conhecia a má reputação de Hendall e, apesar disso, Anne deixou-se seduzir sem se importar com o motivo pelo qual se aproximava.

—Uma mulher apaixonada é incapaz de ver além dos olhos de seu amado. Mesmo que ela ouvisse rumores sobre os casos de amor de Hendall e as pretensões que tinha de se casar, ela negaria cegamente —assinalou Sophia, colocando as mãos na de seu marido. — Acredita, realmente, que nossa filha poderia admitir que seu noivo deixou um clube em estado semelhante de embriaguez e depois de ter relações sexuais com prostitutas? Ou que a razão pela qual ele queria se casar com ela era conseguir o prestígio que seu bom nome ofereceria à sua companhia?

—Não.

—Bem, tem a resposta, Randall. Nenhuma mulher seria capaz de sobreviver a tal humilhação. Nem mesmo seu dom para pintar a teria libertado daquela amargura.

—E o filho do conde? Alguém achou que ele estava tão perturbado que se mataria com sua própria arma? —Perguntou o médico, virando-se para Sophia.

—Nós dois sabíamos que o jovem não estava bem quando não conseguiu se aproximar para pedir a mão da nossa filha. Além disso, recriminou o velho conde pela decisão de escolher Anne porque era uma mulher saudável e poderia usá-la como parideira... —ela refletiu acariciando as palmas das mãos do marido com os dedos.

—Não sei o que fazer ou o que pensar. A única opção que ponderei até agora desapareceu quando o visconde se recusou a levá-la em seu navio. Talvez Anne devesse assumir que seu destino é ficar aqui conosco e deixar passar o tempo até que todos esqueçam o que aconteceu. O único inconveniente que vejo nisso é que ela não vai aceitar facilmente. Viu sua insistência em partir, em se tornar uma mulher diferente e, infelizmente, a depressão que passou voltará quando lhe explicar o que aconteceu — Randall disse com pesar.

—Tem toda a razão. Anne não vai ficar de pé com os braços cruzados quando souber que o visconde se recusou a levá-la embora e irá procurar outro jeito de conseguir. Além disso, não faz isso apenas por ela, mas também por suas irmãs. Não percebeu como está triste depois da mudança de atitude de Elizabeth? Ela se sente culpada pelo desespero de sua irmã e acha que Eli será a jovem que era quando ela for embora —explicou, voltando o olhar para o fogo.

—A única coisa que eu entendo é que, por causa da nossa má escolha...

—Pela maldição —interrompeu Sophia.

—Sabe que não acredito nesse absurdo! Não há estudo científico que explique tal coisa, querida. São apenas conjecturas de uma crença... —Randall ficou em silêncio enquanto observava as feições de sua esposa endurecerem. Doía falar sobre seu povo, sua cultura e tudo em que ela acreditava desde criança. Mas ele não aceitava essa ideologia. Sua filha não era amaldiçoada. Sua primogênita sofria apenas das más decisões de seus pais, como o visconde dissera, e a recriminação de uma sociedade frívola e injusta. Quanto ele teve que lutar para pular todos os obstáculos que colocaram em seu caminho? Muito! Mas ao longo dos anos e com sua tenacidade manteve a reputação que merecia. Nem a aristocracia poderia ofusca-lo! Então... por que a filha dele não poderia lutar como ele? A resposta que apareceu em sua cabeça lhe causou muita dor, tanto que sentiu suas entranhas se abrissem. Mulher. Só porque Anne era uma mulher, tinha que sofrer essa agonia miserável.

—Por que está tão quieto? —Ela perguntou depois de beijá-lo na bochecha.

—Penso sobre a injustiça, sobre a sociedade tão miserável em que nossas filhas vivem. Estamos prestes a terminar um século e não vejo nenhuma evolução.

—Sobre que?

—Sobre nossas filhas, sobre o fato de que elas são mulheres e o futuro que terão... —confessou Randall depois de respirar fundo.

—Não deveria se preocupar tanto porque Morgana vai cuidar delas e transformá-las em mulheres abençoadas —disse ela, virando-se para ele.

—Não está pensando sobre a visão de Madeleine novamente, está? —Ele disse, apertando seus velhos olhos.

—Ela não teria dito nada sobre esse assunto se não acreditasse. —Ela a defendeu com firmeza.

—Madeleine ama sua irmã mais velha e estaria disposta a fazer qualquer coisa por ela, até mesmo mentir, embora, como bem sabe, toda vez o faz aparece, uma erupção aparece em seu rosto.

—Se me lembro bem, não tinha nada em seu rostinho quando disse isso —ela a defendeu novamente. Embora Randall não admitisse suas crenças de sangue, ela o fazia e tinha certeza de que o que Madeleine vira no sonho de que falava se tornaria real.

—Não parou de comer?

—Não.

—Não teve uma erupção cutânea em qualquer parte do corpo? —Randall continuou dando um pequeno sorriso.

—Não — Sophia negou novamente.

—Então... acha mesmo que vamos encontrar um marido para a nossa Mary? —Ele disse zombeteiramente.

—O que Madeleine disse sobre isso? —Ela perguntou timidamente, levantando-se.

—Mas... realmente não duvida dela?

—Não.

—Tem muita fé... —ele sussurrou olhando para o fogo.

—Mary descobrirá aquele marido que venerará sua inteligência e aplacará sua língua.

—Aham —Randall continuou, seus olhos nunca deixando o fogo.

—Josephine...

—Josephine? ?Ele perguntou, virando o olhar para sua amada esposa e erguendo as sobrancelhas. —Se Mary é um tema complicado, Josephine é duas vezes mais— acrescentou sarcasticamente.

—Se não encorajasse sua atitude de guerreira, se não tivesse comprado àquela arma infeliz, Shira teria tomado o cuidado de vesti-la como uma menina e ela não usaria aquelas benditas calças. Sabe como as vendedoras olham para mim quando peço roupas masculinas que uma mulher possa usar? —Ela retrucou com raiva.

—Josephine tem uma alma guerreira e tem que admitir que nenhum homem tem a habilidade que ela tem para a luta. Não tenho dúvidas de que ela seria o soldado mais valente de um exército.

—Não é um homem, Randall! Ela é uma mulher! Não percebeu que começam a brotar certas protuberâncias em seu peito? De acordo com o termo médico são seios, certo?

—Como eu gosto quando fala assim! —Ele exclamou, levantando-se, mas quando foi abraçar sua esposa, ela o rejeitou.

—Mary encontrará um marido, Josephine o seu, Elizabeth... ela vai se apaixonar pelo homem que Morgana escolheu, embora ele não seja aristocrata e Madeleine terá que abandonar esse medo para enfrentar o seu próprio.

—Esqueceu Anne... Se casará com um cigano?

—Sim —ela disse sem hesitar por um único segundo. —O fará.

—Como? Não pensa em levá-la a um acampamento cigano, certo?

—Não, eu não farei tal tolice. Amanhã falarei com ela e contarei o que aconteceu com o visconde. Entre nós duas, vamos procurar uma solução. Talvez possamos encontrar um cliente que more fora de Londres e, desse modo, poderá sair daqui, mesmo que não seja Paris. Certamente que esse cigano aparecerá a qualquer momento...

—E enquanto isso, o que fazemos com Elizabeth? Não podemos permitir que ela continue agindo de maneira tão pouco descente —ele perguntou, estendendo a mão para Sophia.

—Se for necessário trancá-la em seu quarto até que mude seu comportamento, o farei —Sophia disse com firmeza, aceitando a mão do marido.

—Espero que Anne não fique muito chateada quando disser a ela que seu pai contou que era amaldiçoada —disse o médico enquanto os dois caminhavam em direção à saída.

—Ele realmente o olhou como se estivesse louco?

—Não pode imaginar... quando disse a ele que teria que tê-la notado porque nenhum homem se aproximava dela, seus olhos quase saltaram fora. E isso que não contei sobre esse vestido laranja infeliz! Como permitiu que ela fosse vestida assim? Se o que ela tentou foi passar despercebida, não teve sucesso. Até mesmo um cego a teria visto! —Ele exclamou divertido.

—Eu juro que quando a vi descendo as escadas com essa cor quase a fiz voltar para seu quarto para mudar, mas algo dentro de mim gritou que não fizesse isso —disse Sophia, inclinando a cabeça no ombro esquerdo do marido.

—É, de todas as nossas filhas, a que mais se parece com você. Tem tanto sangue cigano correndo em suas veias que ela não pode controlá-lo. Só faltaram as joias que Elizabeth falou para ir gritando quem realmente é.

—É por isso mesmo está amaldiçoada e por isso se entregou àquele canalha. Se ela fosse mais sensata e menos apaixonada, teria analisado sobre a perda de sua honra —murmurou Sophia.

—Não fique zangada com algo que não podemos mais remediar. Anne tem quase vinte e cinco anos e pode fazer o que quiser. Além disso, já conhece o caráter boêmio que os artistas têm... —ele continuou falando em tom de brincadeira.

—Se Madeleine estiver certa, o sangue cigano logo evocará a pessoa que está destinada a ela e esse homem acalmará a paixão que surge nela.

—Acredita? —Randall questionou duvidosamente.

—Eu não fiz isso com você?

—De verdade? Pensei que tinha ido à sua aldeia para curar um homem doente, não para procurar uma esposa —disse o médico, em pé na frente da escada que os levaria ao segundo andar.

—Meu querido Randall, é a pessoa mais gentil que eu já conheci. Ainda pensa, depois de saber o que nossa raça é capaz de fazer, que meu pai adoeceu sozinho? Que não fiz um feitiço para fazê-lo aparecer antes que eles me obrigassem a uma união arranjada?

—Fez isso? —Ele perguntou, levantando as sobrancelhas.

—Não, claro que não —ela disse antes de soltar uma risada e subir os primeiros degraus. Quando ela viu que Randall não a estava seguindo, se virou para ele. — Vai ficar aí a noite toda?

—Fez isso? —Ele repetiu novamente.

—Randall Moore —ela começou descendo os dois degraus que os separavam —eu faria qualquer coisa para encontrá-lo.

—Até envenenar seu pai?

—Até envenenar meu pai —ela repetiu antes de beijá-lo nos lábios. —E agora vamos para a cama. Nós temos que descansar. Espero que amanhã seja um dia muito especial para todos nós.

—Especial? —Ele exigiu, apertando os olhos.

— Sim —disse Sophia antes de encorajar Randall a subir para o quarto. —Muito especial...

— Outra clarividência? —Ele perguntou ao se colocar ao seu lado e abraça-la.

—Um pressentimento cigano —disse ela.


III


Anne se inclinou contra o tronco ao lado dela e manteve os olhos fixos na frente. A música, a que a puxou para fora da cama e a atraiu para aquele lugar desconhecido, tornou-se mais intensa a cada passo que dava. A escuridão da noite a impedia de ver além do que encontrava quando se movia para a frente, mas isso não lhe causava pavor; ao contrário, nesse momento sentia tanta força e segurança que esqueceu o significado da palavra medo. Ela retirou a mão do tronco em que estava segurando, deu outro passo e ouviu um ruído acima de sua cabeça. Lentamente, ela levantou o rosto e encontrou o maior corvo que já vira. Este último, depois de bater as asas, grasnou e foi para o lugar onde a melodia estava ficando mais alta. Encantada pela música, ela esqueceu o pássaro e entrou na floresta frondosa. Sem se perguntar por que estava indo em direção àquela voz cantando, cruzou o caminho íngreme até chegar a uma pequena clareira no meio daquela floresta. Com espanto deduziu, vendo uma grande fogueira no centro daquele lugar amplo, que não estava sozinha e que talvez a pessoa que acendeu o fogo fosse a mesma que cantava. Parando, sem ao menos mexer os dedos dos pés descalços, olhou em volta, procurando a figura humana que deveria estar em algum lugar. No entanto, não encontrou ninguém. Ela estava sozinha na frente do fogo que a convidava, com seu calor e luz, a se aproximar e se sentir protegida sob suas chamas.

Quanto mais perto ela chegava da grande fogueira, mais confiante ela estava, apesar do tecido de sua camisola queimar tanto que ardia sua pele. Mas era incapaz de parar no meio do caminho, ela precisava, sem saber por quê, tocar aquelas chamas tão atraentes e seguras.

Deu um passo, depois outro, enquanto seus ouvidos captavam com mais clareza as frases daquela canção: Aproxime-se do fogo, sinta-o em sua pele, em sua alma, em seu peito. Ele te livrará da sua dor, da sua tristeza e te conduzirá ao que almeja.

Como poderia entender essas frases se as ouvia em outra língua? Por que eram tão familiares? O que havia de especial naquela música para deixá-la sem o poder da decisão? Sua mente procurava as possíveis respostas quando estendeu a mão para o fogo. Não se queimou, nem sentiu dor. Por mais estranho que parecesse, não percebeu nada além de tranquilidade, como quando chegava em casa depois de um dia intenso de trabalho. Com os olhos fixos naquele vai e vem amarelo e laranja e com aquela música que repetia várias vezes que encontraria o que procurava, respirou fundo. O que havia desejado durante seus anos de vida? Como se livraria da dor? O que tinha de especial naquele fogo? Teria que atravessá-lo para descobrir as respostas?

Fechou os olhos, abriu as mãos e, determinada a conhecer todos os enigmas que surgiram em sua mente, colocou os pés sobre as brasas ardentes. Mas estas também não queimavam. Sua camisola ainda estava intacta e ela ainda estava... viva.

—O que quer? —Se atreveu a dizer no meio da fogueira. —O que encontrarei? Por que me trouxe aqui? —Mas tudo ficou em silêncio. Até a voz cantada, que a acompanhara no caminho, cessou no momento em que entrou no fogo. —O que quer? —Repetiu abrindo os olhos.

Depois de passar alguns segundos esperando a resposta, decidiu sair e voltar para aquela cama fria que havia deixado. No entanto, quando saiu do fogo, ouviu o vento agitar as copas das árvores.

—Eu te amo e só tem que me encontrar — disse a voz de um homem atrás dela.

Assustada, ela se virou e descobriu que o fogo tinha desaparecido. Em seu lugar havia uma figura masculina, que reconheceu rapidamente. Aterrorizada, colocou as mãos no peito e gritou.

—Leve-me porque eu sou seu, assim como é minha —ele continuou falando.

Ela tentou andar para trás, longe daquele homem que estendia as mãos para ela, mas seu corpo se recusava a fazê-lo. Sentia uma atração tão imensa por ele que podia sentir sua pele se separando dela e voando para aquele estranho.

—Não lute, não precisa fazer isso. É minha e eu sou seu —ele continuou falando com ela enquanto cortava a distância entre os dois.

Ela fechou os olhos, não queria ver mais nada. Queria voltar para a cama que não deveria ter deixado, para sua casa, para sua vida horrível, para a solidão..., entretanto, quando o homem a abraçou para consolar aquela inquietação agonizante, tudo ao seu redor deixou de existir e uma liberdade apareceu em seu interior.

Sede, tinha sede e calor. Tanto calor que poderia derreter a qualquer momento. E essa sede não era humana, mas espiritual. Como se ao permanecerem unidos, seu corpo não tivesse sangue e precisasse dele.

—Olhe para mim... —ele disse, levantando o queixo com um dedo. Olhe para mim e descubra em meus olhos tudo o que questiona.

Muito lentamente, ela fez o que lhe foi dito e, aqueles olhos azuis como o mar, lhe ofereceram visões tão claras que pareciam reais. Ela se viu na festa, escondendo-se atrás da parede, mas ele a seguia, a procurava. Também assistiu à cena de sua partida e percebeu a angústia que sentiu ao sair. Então uma casa apareceu, grande e sólida como um castelo. Ela corria rindo, divertida, enquanto pegava suas saias para não cair no chão. Sua risada misturada com outras, as dele. Outra cena apareceu, não estava mais no meio de um prado, mas em uma sala. Ela estava nua, gemendo, aceitando os beijos que ele lhe oferecia. Se retirou, empurrou-a para a cama, ela bateu no colchão e sorriu. Então ele se colocou em seus quadris, guardando em seu interior aquele sexo masculino. Ele continuou ofegando, movendo-se, enquanto tocava seus seios, levava sua boca para a dela e sugava todos os seus gemidos. Seus cabelos castanhos dançando ao ritmo daquele ato apaixonado, daquele encaixe, daquela união...

—Não! —Ela exclamou desesperadamente quando se viu daquela maneira luxuriosa. —Não! —Ela gritou apoiando as mãos naquele duro tronco nu e empurrando-o para longe dela.

Anne sentou-se na cama, puxou bruscamente as cobertas e pôs as mãos no rosto. Suas bochechas queimavam e alguns fios de cabelo estavam presos a elas por causa do suor produzido pelo sonho. Atordoada, ela puxou o cabelo úmido para trás, olhou para frente e suspirou angustiada. Como tinha sido capaz de sonhar com algo tão proibido com um homem que não conhecia? Por que sua mente lhe oferecia imagens tão descaradas? Espantada e ao mesmo tempo com medo, moveu-se lentamente pelo colchão, pôs os pés no chão e tentou apaziguar esse estado de excitação. Mas ela achou impossível relaxar. Mesmo que já estivesse acordada e ciente de onde estava, as imagens daquela fantasia ainda estavam em sua cabeça como se fossem reais. Fechou os olhos, pressionou as mãos no rosto e soluçou. Ela não podia permitir que sua mente lhe mostrasse algo tão imoral, tão pecaminoso ou tão real, porque isso a levaria à loucura. Ela não era... ela não podia... ela era amaldiçoada.

Depois de respirar fundo, se levantou, caminhou até o pé da sua cama, se agarrou ao dossel de madeira e descansou a testa. Não podia chamar o que viveu de um sonho, mas de um pesadelo. Um em que ela se deixava levar pela paixão de um homem que só vira uma vez e que, possivelmente, não encontraria novamente. Então, por que sua mente gritava que ela seria dele? «É minha e eu sou seu», ouviu de novo como se estivesse ao seu lado. Sem se afastar do dossel, tentou eliminar o que aconteceu, mas não conseguiu. Se viu novamente em um lugar que ela não conhecia e a música retornou. O que esse sonho significava? Ela estaria enlouquecendo? Tão encantada ficou ao vê-lo? Não podia negar que, desde que o viu, uma atração inconfessável nasceu nela. Qualquer mulher teria tido ao vê-lo! Era, entre os cavalheiros que estavam na festa, o homem mais viril, sedutor e enigmático. Sua aura perigosa exalava tanto magnetismo que nenhuma mulher podia desviar o olhar de tal pessoa. No entanto, isso não poderia servir como uma desculpa para tê-lo em seus sonhos, para sentir seu toque em sua pele e ouvir novamente seus próprios suspiros ao possuí-la... com os olhos ainda fechados, Anne agarrou o dossel com as duas mãos e choramingou novamente. Nem mesmo seu amado Dick fizera amor com ela daquele jeito tão apaixonado, tão selvagem e.... antinatural. Aquele estranho a levara a um estado de frenesi tão grande que ela tomara as rédeas daquele encontro e fora ela que o atacara. Ela! Desde quando uma mulher evitava a modéstia e se comportava de maneira tão desavergonhada? Nua! Totalmente nua e desinibida! E ele a tocava... E a beijava... E....

E as bochechas queimaram novamente ...

Irritada com essa reação, se afastou da cama e foi até a sala de banho. Devia encontrar alguma sanidade e bom senso. Não era uma mulher que se deixasse levar por emoções ardentes, não mais. Tinha feito quando conheceu Dick, mas depois de sua morte, seu coração e alma foram aprisionados em uma urna de gelo.

—Anne? O que aconteceu?

A voz de sua mãe a tirou daquele transe. Ela estava tão absorta em si mesma que não a ouviu entrar no quarto ou se aproximar dela.

—Mãe? —Ela perguntou confusa. — O que faz aqui?

—O que há de errado, Anne? Por que está tremendo? Porque está chorando? Os ataques de pânico retornaram? —Perguntou se aproximando da filha. A última vez que a viu naquele estado foi após a morte do filho do conde.

Anne olhou para ela um tanto confusa. Deveria ser sincera? Era apropriado confessar que ela tinha visto um homem, a quem havia encontrado na noite passada, sair do fogo e viu em seus olhos cenas pecaminosas? Não, claro que não.

—Foi apenas um pesadelo — disse ela por fim.

—Um pesadelo? Que pesadelo? O que viu? —Ela insistiu em saber. Até agora, Anne herdara um dom, o da pintura. Poderia ser possível que também fosse clarividente?

—Estava em uma floresta, sozinha, sem nada ao meu redor. De repente, um corvo apareceu e começou a me perseguir. Por mais que eu corresse, ele ainda estava ao meu lado porque queria me machucar.

—Um corvo? —Perguntou Sophia erguendo as sobrancelhas. —Se assustou com um corvo?

—Era enorme. O maior que eu já vi na minha vida —acrescentou.

— Não viu mais nada? Um fogo? Ouviu uma música?

Naquele momento, Anne esqueceu de respirar. Como sua mãe sabia disso? Teve um sonho parecido? O sangue que compartilhavam era tão semelhante que ambas sonhavam o mesmo? Esperava que isso não fosse verdade porque não conseguiria nem olhar para a sua cara...

—Não —ela disse devagar, segurando a camisola com força. Ela não teria bolhas como Madeleine quando estava mentindo, mas seu rosto estava tão corado que ninguém duvidaria de sua mentira.

—Bem, então, só se assustou com um corvo... —pensou Sophia sem desviar o olhar.

Se sua intuição não se confundia, Anne acabara de sonhar com seu homem, embora não quisesse confessar. Isso significava que ele entrara em sua vida e que seu sangue cigano o evocava. Mas... onde o viu? Na cerimônia da Sra. Lawford? Quem seria?

—Só um corvo... —admitiu Anne, incapaz de levantar os olhos do chão.

—E.... te bicou? Te machucou? — Perseverou Sophia audaciosa. — Quando sonhei com um corvo, juro que me machucou tanto...

—O que queria, mãe? —A interrompeu bruscamente.

—Vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem. — Sophia deixou Anne mudar de assunto. Se ela tivesse sonhado com o que ela supunha, teria que assimilar muitas coisas.

—Quer que saia agora, enquanto minhas irmãs ainda dormem? — Ela falou desesperada para sair de lá.

—Falaremos sobre isso quando se aprontar —disse a mãe, caminhando até a porta. —E, exceto Mary, estão todas acordadas. Ela olhou para a segunda de suas filhas, de quem só se via os tubos de metal que Shira colocava em seu cabelo antes de dormir. —Outra vez esteve lendo até o amanhecer?

—Ela começou um novo livro —Anne esclareceu.

—Vou queimar todos eles! —Sophia rosnou. —Farei a maior fogueira de Londres quando jogá-los no fogo.

E naquele exato momento, Anne colocou as mãos no peito e sua mãe sorriu, quando descobriu que, na verdade, o homem que Morgana escolhera para sua filha tinha finalmente aparecido.


***


Quando Sophia fechou a porta, Anne foi a sala de banho, mas não antes de olhar para Mary. Estava tão calma, dormia tão docemente que ansiava ser ela por alguns momentos. Como ela disse ontem à noite, seu sangue Moore era tão poderoso que a salvava de pensar coisas tão imprudente como ela fez aquela noite.

Ligou a torneira de água quente, se despiu e esperou que o sabão espumasse. Pelo menos estava sozinha para refletir sobre o que tinha acontecido. Graças à tenacidade do pai e à aceitação de certas inovações, não precisava da ajuda de uma criada para ter um pouco de água quente. O que menos desejava naquele momento tão urgente era ter Shira ao seu lado perguntando-lhe mil vezes por que sua pele estava tão vermelha quanto uma flor.

A diferença entre Mary e ela reapareceu. Ali, onde aceitara de bom grado as reformas da sala de banho, Mary gritou aos céus e chamou as novas banheiras de engenhocas demoníacas. Como pensou em chamá-las dessa maneira? Ela! Uma mulher que não acreditava em anjos, deuses, demônios ou qualquer coisa sobrenatural. Se quando sua mãe falava sobre as visões que teve no passado, perguntava quanto ópio tinha tomado! Anne levou as mãos à boca para acalmar a risada que queria soltar, recordando os castigos que Mary sofrera por expressar tais comentários. Mas ela nunca mudara de ideia. Era tão forte, tão segura de si mesma e tão... especial. Embora sua mãe a repreendesse, embora estivesse muito zangada com ela quando o pai lhe contava sobre outra discussão em uma reunião de médicos, na qual sua filha havia destroçado o orgulho de algum outro cavalheiro, Mary não mudava sua atitude e isso fazia dela a mais poderosa das cinco filhas.

Ela colocou os pés na água e moveu os dedos impregnados com espuma branca. A água há relaxara um pouco. O suficiente para refletir sobre esse sonho. Não tinha nada a temer. Aquele homem não apareceria novamente em sua vida, e se houvesse algo do qual deveria ter medo, era que a caldeira explodisse e saltasse para a outra extremidade da sala de banho, como Mary disse quando a viu pela primeira vez. Recordando aquele momento, aquela risada reprimida fluiu suavemente. Só a ela poderia ocorrer esse tipo de coisa! Não havia dúvida de que Mary tinha mais sangue Moore do que Arany.

—Realmente quer que nós confiemos nisso? —Ela perguntou a seu pai quando as reformas tinham terminado.

—Nada acontecerá. Há muitos nobres que as usam e todos elogiam o conforto de ter água quente imediatamente —respondeu Randall.

—Quer se livrar de nós... —Mary resmungou.

—Sophia! —Ele gritou chamando sua esposa. Cada vez que eles discutiam, pedia a ela para interceder na conversa. Talvez porque ele e Mary fossem tão parecidos que, depois de um debate angustiante, estariam empatados. —Vem por favor! Pode explicar à sua querida filha Mary que não quero me livrar dela e que não está em perigo se entrar na nova banheira?

—O que acontece desta vez? —Sophia perguntou com resignação.

—O pai me garante que nada acontecerá comigo enquanto tomo banho, porém, percebo que ele não se lembra do artigo que os jornais publicaram há alguns anos atrás.

—O que dizia o artigo, Mary? —Disse a mãe com uma voz cansada.

—Que o aquecedor a gás de Lorde Fhautun quebrou e explodiu a banheira e o próprio lorde que estava dentro dela. Ambos estavam do lado oposto da sala! —Ela exclamou desesperadamente.

—Isso é verdade, Randall? —Ela se virou para o seu marido, que não parava de rir ao se lembrar daquele dia, porque ele teve que atender o pobre barão.

— Sim, mas em defesa dessa criação inovadora, tenho que explicar que isso aconteceu há alguns anos e que eles a aperfeiçoaram para que ninguém saia disparado como a bala de um canhão.

—Não deixarei nenhuma das minhas filhas voarem pela casa como pássaros, Randall Moore! —Sophia exclamou horrorizada. —Que Shira e outra donzela continuem a aquecer a água na cozinha. Este método é mais seguro para elas —declarou solenemente.

E enquanto o médico acompanhava a esposa até o quarto e lhe oferecia uma série de razões pelas quais ela não deveria ter medo de usar as novas torneiras, Mary observava do corredor enquanto uma de suas criadas levantava baldes de água quente e os derramava dentro da banheira novinha em folha.

No entanto, tudo mudou quando as gêmeas adoeceram. Shira, sua mãe e as donzelas estavam tão ocupadas cuidando das pequenas que Mary decidiu aceitar a derrota. Nos primeiros meses, apesar de sua mãe ficar muito zangada, ela se banhava de camisola para o caso de voar como Lorde Fhautun. Se parecia embaraçoso sofrer tal situação, era mais se isso acontecesse com ela nua. E, apesar de ter acontecido há algo em torno de cinco anos, os banhos de Mary não duravam muito...

Alegre depois da lembrança, saiu da banheira, vestiu um robe de seda preta e caminhou até o quarto. Ela precisava se preparar o mais rápido possível para conversar com a mãe. O que diria? Informaria sobre a decisão do capitão? Ele teria aceitado a proposta de seu pai? Esperava que fosse isso e que pudesse finalmente sair de Londres. Talvez, afastando-se da cidade, nunca mais sonhasse com aquele homem, e Elizabeth nunca mais manteria uma atitude tão descarada com outro Lorde. Lembrando o que aconteceu na tarde anterior, a agonia que o sonho produziu desapareceu de repente e a dura realidade retornou. Que palavras sua mãe usou para informar que ela queria falar com ela?

«Eu vim procurá-la para falar sobre o que aconteceu ontem». Mas ontem à tarde várias coisas aconteceram e entre elas...

—Oh, meu Deus! —Exclamou, abrindo bem os olhos. —A baronesa lhe contou o que Elizabeth fez com lorde Lorre!


IV


Sophia olhava seu jardim pela janela. Nele, apenas Josephine permanecia com aquela arma horrível em suas mãos. Estava apontando para outro alvo. Ela se aproximou um pouco mais do vidro e exalou todo o ar em seus pulmões quando viu outro jarro de porcelana branca da louça que guardava na despensa. Teria que falar muito seriamente com a quarta de suas filhas. Ela não podia usar os poucos pertences que Randall herdara de seus pais como alvos para seus tiros, porque quando terminasse com eles, qual seria o próximo? Apoiando-se na moldura da janela, viu Elizabeth emergir da estufa para gritar com Josephine. Isso só poderia indicar que a bala havia atravessado um vidro na estufa.

—Pelo amor de Morgana! —Exclamou horrorizada, levando as mãos ao peito.

Os problemas cresciam e não sabia como eliminá-los. Precisava colocar ordem em todo esse caos familiar e a primeira coisa séria ordenar que Randall desaparecesse com o rifle. Talvez se dissesse a ele que o jardim era pequeno demais e que algumas de suas filhas ou criados pudesse se machucar, ambos reconsiderariam. «Bobagem! —Pensou —Algum deles ouviria? Ouviriam suas explicações? » Não, claro que não. Randall continuaria aplaudindo a habilidade de sua filha e, em vez de obrigá-la a guardar a arma, a levaria para o campo, onde o perigo de matar alguém seria minimizado.

Se virou para o sofá, onde passara muitas horas costurando, e olhou para sua caixa de costura. A bobina laranja chamou sua atenção. Como ocorreu a Anne usar um vestido tão pouco discreto? Quando o comprou e por que não disse nada sobre isso? Sempre mostrou a ela tudo o que adquiria e nunca escondia nada. Então, o que mudou? O que estava acontecendo?

Sophia se sentou na cadeira de balanço, colocou as mãos no colo e apertou-as. A única pessoa que conhecera em sua vida e que se vestira de maneira tão pouco discreta era sua avó Jovenka. Todos os dias ela usava algo de cor laranja. Senão era um vestido, era um lenço ou um casaco, porém nunca faltava em seu traje aquele tom tão cigano. Ela suspirou profundamente quando se lembrou da avó e da horrível obsessão de não contaminar o sangue. Se Randall não tivesse aparecido naquela noite... O que teria acontecido com ela? Mas, embora tenha se afastado, mesmo que tenha parecido que ela os havia deixado viver em paz, não foi assim. Ela ficou, embora o acampamento tenha decidido sair de Londres. Viveu resguardada na floresta, perseguindo-os em silêncio até cumprir sua palavra...

Uma noite, que ao longo do tempo descobriram ser a mesma em que geraram Anne, decidiram deixar a janela aberta para que a luz da lua ambientasse aquele momento tão romântico e apaixonado. Corria uma leve brisa e as cortinas se moviam suavemente, como se fossem dançarinas elegantes e delicadas. Ambos se entregaram como haviam feito tantas vezes. No entanto, desta vez foi especial porque quando Randall terminou, depositando sua semente dentro dela, o silêncio do lado de fora desapareceu ao ser interrompido por um trovão horrível. O marido, vendo-a tremer de medo, se levantou, fechou a janela e voltou para a cama para acalmar seu medo. Mas o que ele encontrou quando chegou a ela o deixou aturdido. Em questão de segundos, aqueles que demorara em voltar para o lado dela, a temperatura do seu corpo subiu tanto que ela se agitava pelos tremores de febre. Como ele fizera desde que a viu naquela carroça, ajudara-a o tempo todo. Toda vez que colocava um pano de água fria nela, as mãos dele avermelhavam com o calor que transpirava do tecido. Assustado, ele chamou um dos empregados para pegar a carruagem e trazer o máximo de blocos de gelo possíveis. A colocaram em uma banheira cheia de gelo, mesmo assim, a febre não diminuiu até o amanhecer chegar. Como se fosse apenas um sonho terrível, essas convulsões e o calor desapareceram antes na chegada dos primeiros raios de sol. Claro, Randall nunca admitira que o sol a tivesse curado, mas que o gelo, as emersões e seus panos a aliviavam.

Depois de passar uma noite tão agitada, decidiram ficar descansando pelo resto do dia. Mas seu marido teve que sair porque alguém apareceu na residência solicitando seus serviços. Quatro horas depois de sua partida, ele retornou e informou-a de que o assunto que o levara de casa fora sua avó. Um homem, que caminhava pelo campo, descobriu um corpo caído, pensando que havia desmaiado, correu até ela, mas quando descobriu que tinha uma adaga presa no abdome e que era cigana, pediu ajuda à polícia e estes a dele, porque nenhum outro médico iria atendê-los.

Depois de contar o que aconteceu, ela chorou, não de tristeza, mas de alegria, prazer e entusiasmo, porque acreditava, estupidamente, que a morte os salvara da maldição. Mas estava errada, tinha acabado de começar...

Dois meses depois, ela soube que estava grávida. Estava tão animada para ser mãe, que não conseguia pensar em nada além do bebê que estava chegando e que sua avó não estava mais viva para machucá-la.

Não foi assim....

Quando Anne nasceu, quando a segurou nos braços e olhou para aquele rosto, aquele cabelo e aqueles olhos castanhos, teve tanto medo ao ver que era tão parecida com Jovenka que ficou inconsciente. Durante aquele desmaio, ela viu sua avó na sacada, na noite em que conceberam Anne. Então a observou se afastar de casa para onde a encontraram morta. Ela mesma cravou a adaga assim que o trovão soou. Estava com ela durante o desmaio e mostrou-lhe o nascimento de suas outras quatro filhas enquanto gritava várias e várias vezes que o sangue contaminado as destruiria. Quando acordou, estava com tanto medo que nem queria olhar para sua pequena recém-nascida. Anne estava chorando no berço porque precisava se alimentar da mãe que lhe dera a vida, mas ela recusou seu contato. Graças à ajuda de Randall, sua ternura, sua compreensão e aquela grande paciência, ela finalmente admitiu que fora apenas um pesadelo gerado pelo cansaço do parto e, quando se acalmou, ele ofereceu seu bebê. Com os olhos fechados, amamentou-a. Mas os abriu ao sentir o calor daquele pequeno corpo e a sensação de suas pequenas mãos na pele. Naquele momento concluiu que a única coisa que Anne tinha de sua avó era o físico que Randall afirmara ser algo que ele chamara de coincidência genética. No entanto, o tempo indicara que havia se enganado novamente. Anne era tão ardente e apaixonada quanto Jovenka. Ela até herdou seu dom para pintar! Quantos rostos masculinos sua avó pintou com o carvão das fogueiras? Todos os que passavam por sua carruagem. Nenhum foi deixado sem retratar. Era seu triunfo, seu destino, sua vida e, infelizmente, esse espírito diabólico voltava muito mais jovem e mais forte do que antes. Ela só esperava que o desejo de gerar não aparecesse em Anne, porque quinze filhos bastardos nasceram do ventre de sua avó. Alguns pararam de respirar em seu ventre, outros foram abandonados nas portas das igrejas das aldeias em que se instalaram e outros... outros não tiveram nem uma sorte nem outra e tornaram-se servos de seu povo. Escravos sem opção de vida, exceto a servidão a que ela os sujeitou. O único filho de sangue puro era seu pai, então ansiava que sua neta continuasse seu legado de pureza casando-a com outro cigano. Mas ela não queria morar no povoado ou seguir as regras de sua avó porque, desde que Randall apareceu em seus sonhos, ela o amara.

Sophia se balançou devagar enquanto recordava o que acontecera vinte e cinco anos antes. Seus olhos, até então fixos em suas mãos, foram pregados na porta por onde Anne iria entrar. Não deveria apenas se concentrar em comentar a resposta do visconde, mas tentaria extrair algo sobre o sonho que ela tivera durante a noite. Quem ela conheceu? Quem, de todas as pessoas em Londres, teria sangue cigano? Onde o viu? Em que momento? Se falaram? Se conheceram?

—Morgana —disse ela em voz alta, —se minha filha encontrou esse homem, se finalmente permitiu que encontre a pessoa que irá salvá-la da maldição, que esqueça a ideia de partir, dê a ela forças para tomar seu destino e eliminar seu passado. Afaste o espírito que a atormenta de uma vez por todas, liberte-a da pressão, da prisão, da minha avó...

Fechou os olhos, segurou as mãos e começou a cantar para essa mãe que criara sua raça, a única que poderia escutá-la. Mas esse canto foi interrompido quando ouviu uma batida no vidro da janela em que havia permanecido. Assustada e preocupada, deu um pulo, caminhou até a sala e soltou um grito.

—Josephine Moore! Está de castigo! —Trovejou ao ver um buraco e vidros no chão.

—Eu prometo, eu juro que... —a jovem tentou dizer. —Foi culpa da Elizabeth! Ela me jogou uma pedra!

—Elizabeth Moore! Está... ?mas não terminou a imposição daquela segunda punição. A terceira de suas filhas se virou para a estufa sem ouvi-la.

Anne estava certa. O comportamento da jovem mudou desde que seu segundo pretendente morreu. Pensou que, depois da visão de Madeleine, ela deixaria de agir dessa maneira horrível, mas estava errada. A única coisa que a revelação da menina causou foi uma pequena trégua familiar. No entanto, a incerteza havia retornado... quando aconteceria tudo o que Madeleine previu? Levaria muito tempo para chegar? Morgana silenciosamente esperava pela destruição de suas filhas para agir? Afligida, ela voltou para a cadeira de balanço, ouvindo Shira repreendendo Josephine. Sentou-se muito devagar, como se em vez de 45 anos tivesse noventa, fechou os olhos e lembrou-se da tarde em que Madeleine confessou o que vira em seus sonhos para descobrir se, em algum momento, ela havia apontado uma data exata.

—Mas que bobagem! —Mary exclamou levantando. — Realmente quer se afastar de nós por causa dessa irracionalidade?

—É a coisa mais sensata —disse Anne, depois da explicação de sair de Londres e viajar para Paris. Aqui não terei a vida que mereço como artista e vocês não encontrarão um bom futuro por causa da maldição.

—Eu lutarei contra essa maldição até o fim! —Josephine comentou, levantando a mão direita como se estivesse carregando uma espada. —Uma Moore não desiste tão facilmente!

—A maldição só afeta ela, certo? —Elizabeth perguntou depois de ouvir Anne. Não lamentava pelo desejo da irmã de deixar a família, mas por ela. Desde que o filho do conde morrera, ninguém os convidou para nenhuma festa, nenhum homem olhou para elas... O tempo passava e ela não conseguia encontrar seu aristocrata.

—Sim —respondeu Sophia. —Mas como podem ver, todas estão envolvidas porque, até agora, ninguém veio aqui pedir um compromisso com nenhuma de vocês.

— Bendita maldição! —Mary exclamou eufórica. — Agora sim acredito nela! Por favor, Anne, continue a se comprometer com todos os ousados que a desejam como esposa, para ver se ficam tão assustados que saem do nosso caminho e deixem as ruas de Londres livres para andarmos em paz. Além disso, posso preparar uma lista de nomes dos presunçosos para que possa aniquilar. Se quiser, amanhã começamos com A.

—Mary! —Sophia repreendeu-a. Que não deseje encontrar um marido não significa que suas irmãs pensem o mesmo.

—Alguma de vocês quer viver sob o domínio de um homem, exceto Elizabeth? —Ela perguntou olhando para o rosto da mencionada. Ao ver que se mantinha em silêncio, sentou-se abruptamente e cruzou os braços.

— Eu também não quero me casar! — Josephine interveio novamente.

—Claro que não quer fazer isso agora, querida, é jovem demais para pensar nisso —disse Sophia com ternura. ?Mas futuramente não quer se tornar uma solteirona, certo?

—Um soldado não pode se comprometer com nada além de amor ao seu país — declarou solenemente enquanto colocava as mãos no cós da calça.

—Soldado? —Randall perguntou a sua esposa um pouco confuso.

—Desde que comprou aquela bendita arma e ela dispara em todos os vasos que colocou no jardim, decidiu que quando tiver idade suficiente para se alistar no exército, cortará aquele lindo cabelo loiro, enfaixará seu peito e lutará contra qualquer inimigo que Londres possua —resmungou Sophia, olhando para o marido como se quisesse derrubá-lo ali mesmo.

—Bem... não é uma opção muito descabida. Como não tem a esperança de encontrar um marido que seja mais habilidoso do que ela em esgrima ou caça, é uma alternativa a considerar. Além disso, não acredito que haja um homem no mundo que possa descansar ao lado de nossa Josephine sem pensar que, a qualquer momento, ele vai cortar seu pescoço —explicou o pai com algum divertimento.

—Randall Moore! Como pode proclamar algo tão horrível sobre Josephine? Ela é uma jovem corajosa, não uma criminosa! —Ela o repreendeu.

Como sempre, a educação que o marido dava à quarta filha era motivo de discussão. Ela insistia em esclarecer que não era uma criança, mas uma pequena mulher que logo teria que participar de festas e que todos falariam sobre o comportamento masculino de Josephine. Prosseguiu esse debate com a atitude inadequada de Elizabeth. Seu marido declarou em voz alta que preferia uma filha que pudesse se defender da audácia de um homem do que os movimentos sedutores de Elizabeth. Então, assim que o tom da conversa começou a exceder o limite correto, uma voz suave e terna os deixou sem palavras.

—O que disse? — Sophia perguntou Madeleine, a gêmea de Josephine, ao não a ouvir claramente.

—Anne não terá que sair porque o homem que vai resgatá-la da maldição está prestes a chegar — ela repetiu timidamente. Moveu seu corpo ligeiramente, sentada no peitoril da janela, em direção a sua família e depois de observar a expectativa nos rostos, ela continuou: — Eu vi nos meus sonhos. Anne se casará com um homem com sangue cigano, mas ninguém sabe que porque ele o mantém em segredo e só admitirá quando a encontrar. —Ela apontou com o queixo para sua irmã mais velha.

Randall olhou para ela estupefato, só faltava saber que uma de suas filhas tinha alucinações para morrer naquele momento, mas quando sua esposa levantou e abaixou os ombros, tirando a importância das palavras de sua filha mais nova, respirou com facilidade. A coisa mais sensata a fazer era deduzir que a jovenzinha estava fazendo todo o possível para que sua irmã mais velha, por quem tinha grande afeição, não deixasse a família.

—O que viu? —Anne perguntou com voz aveludada, enquanto caminhava em direção a ela.

—Vejo o homem que será seu marido. Ele olhava nos seus olhos enquanto sussurrava que nada lhe aconteceria, porque a libertaria da sua maldição —ela respondeu calmamente. —E será verdade.

—O que mais viu? —Sua mãe perguntou sem sair do lado de seu marido caso ele precisasse de uma mão para não cair no chão.

— Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente impedir os sentimentos que aquele homem causará a ela a partir do momento em que se encontrarem pela primeira vez —ela continuou com firmeza.

—Eu? Bobagens! —Bufou fazendo um gesto de desdém. —Tenho certeza de que na noite em que aparecer tomara mais suco de laranja do que deveria e sabe que um excesso de vitamina C não é bom para a mente.

—Não dê ouvidos a ela —Sophia a consolou depois de ameaçar Mary com um olhar. —Sabe que sua irmã não gosta de ouvir que alguém vai mudar sua vida, muito menos um homem.

—Mas ela vai —disse Madeleine, olhando para sua irmã Mary fixamente.

—Viu mais alguma coisa? Sonhou comigo? Vou casar com um aristocrata? —Elizabeth perguntou impaciente.

—Não sei... — murmurou a menor das irmãs, voltando o olhar para quem lhe fazia as perguntas. — Só pude ver que o homem que está esperando aparecerá no caminho que conecta nossa casa com a de Bohanm. Não posso confirmar se é um familiar do casal ou parente de alguém que logo conheceremos, mas tenho certeza de que será a pessoa com quem se casará — disse ela antes de fixar os olhos verdes na irmã gêmea. —E Josephine...

—Serei um soldado? Vou lutar com honra? Me tornarei a mulher mais valente do meu batalhão? Me condecorarão? —A jovem perguntou sem respirar.

—Não. Se tornará a esposa de um homem mais honrado do que um soldado, mais temeroso que uma espada e mais severo que o impacto de uma bala —declarou ela.

—Isso sim que eu não esperava! —Randall exclamou olhando para sua esposa achando graça. —Vê, minha querida, no final, meus presentes inadequados servirão para protegê-la de um marido folgado! — Ele argumentou antes de soltar uma gargalhada.

—E você? — Anne perguntou acariciando suavemente seu cabelo enquanto ouvia o riso de seu pai.

—Eu saberei que ele é o escolhido quando se aproximar de mim para me ajudar a levantar de uma queda infeliz —disse ela, fixando seus olhos verdes na mão que ele tocaria.

—Então, tudo ficou claro —disse Mary. — Anne não precisa ir embora e, para sua paz de espírito —disse ela à Sophia, —nos verá casadas. Embora eu só espero que meu futuro marido tenha um cérebro admirável e um corpo preguiçoso, então ele não me visitará à noite e eu poderei continuar lendo em silêncio... —ela comentou ironicamente.

—Mary Moore, não fale assim de novo na frente de suas irmãs ou eu vou queimar todos os seus livros! — A ameaçou enquanto apontava o dedo.

«Anne não terá que sair porque o homem que irá resgatá-la da maldição está prestes a chegar» ela evocou a frase que estava procurando na memória. Bem, dois anos se passaram desde aquela conversa e o tempo estava lutando contra a família. Se Madeleine estivesse certa e Anne tivesse tido seu primeiro sonho com fogo, isso poderia dar à família um halo de luz. Talvez, apenas talvez, aquele momento de paz estivesse prestes a aparecer. Mas... quem mantinha em segredo que o seu sangue era cigano? Porque motivo?

—Mãe? —Anne perguntou quando ela apareceu no pequeno quarto.

—Entre —ela disse sem se levantar da cadeira de balanço. —Sente-se ao meu lado. Quero falar sobre o que aconteceu com o capitão desse navio.

Ao ouvir o tema da conversa, Anne sentiu que a forte pressão em seu peito desaparecia imediatamente. Por sorte, a baronesa lhe dera uma pequena trégua, embora não tivesse certeza de quanto tempo duraria.

—O que ele disse? Aceitou o pedido para me levar? —Ela quis saber quando se sentou ao seu lado.

—Não.

—Não? Por quê? —Perguntou, amassando em suas mãos o vestido que escolhera para aquele dia. Que, para a tranquilidade de sua mãe, não era laranja, embora pudesse apreciar essa cor na presilha de seu cabelo.

—Porque, segundo ele, não seria apropriado navegar com uma mulher.

—E se eu prometer que não sairei da minha cabine? — Ela propôs esperançosamente.

—Pelo que seu pai contou, até ofereceu cortar seu cabelo, mas recusou-se a completamente.

— Ele realmente fez tudo ao seu alcance? —Perguntou desconfiada.

—Está questionando as palavras do seu pai? —Sophia soltou com raiva.

—Não, mãe, me desculpe —ela disse, abaixando a cabeça.

—Acredite em mim quando digo que ele fez tudo o que pôde, até ofereceu-lhe um envelope com....

—Um envelope? —Anne perguntou olhando-a sem piscar.

—Sim, um envelope que ainda não voltou —esclareceu ela.

—Então... talvez... —ela disse, se levantando. —Talvez eu tenha uma chance! —Exclamou eufórica.

—Eu não consideraria nenhuma esperança, Anne. Talvez hoje um criado apareça com esse envelope.

—Mãe... —ela disse, ajoelhando-se diante dela — tudo que me resta é ter fé de que esse homem reconsidere a oferta.

—Mas...

—Não há mais, mãe. Não notou a destruição que minhas irmãs sofrem por minha causa? — Soluçou.

—Vi que apenas Elizabeth mudou sua atitude, as outras ainda são as mesmas de sempre —disse ela, acariciando o cabelo de sua filha para tranquilizá-la.

—Eu preciso sair daqui... quero esquecer o meu passado... —ela riu.

—Eu sei, Anne. Eu sei ..., entretanto, algo me diz que deve esperar um pouco mais.

—Teve outra visão? —Perguntou levantando o rosto.

—Não, é um ligeiro palpite. Talvez, se me disser o que sonhou e porque esse corvo a assustou tanto... —ela insistiu.

Anne sentou-se devagar, caminhou até a janela, que tinha um buraco e suspirou. Seria conveniente dizer-lhe a verdade? O que pensaria dela quando revelasse o que viu? Por muito tempo a olhou com ódio, com receio depois de confessar que perdera a virgindade com Dick. Ele cometeu um erro, e pagou com acréscimo. Agora era hora de libertar sua dor, seu pesar e fazer com que sua mãe a observasse com respeito.

—Anne... —disse Sophia se levantando. Caminhou até ela, pôs a mão no seu ombro e apertou com ternura. Eu prometo que não vou julgá-la. Sei que está pensando sobre o que aconteceu entre nós no passado. Eu sinto isso aqui, no meu coração. Mas não é mais uma jovenzinha, mas uma mulher inteira, e eu juro, pelo sangue que ambas temos, que não irei mais julgá-la, mas sim ajudá-la em tudo que puder.

—Tem certeza? —Perguntou sem olhar para ela.

—Totalmente.

—Ontem conheci um homem —disse ela depois de respirar. —Tentei desviar o olhar, para não o notar, mas não consegui controlar algo tão básico quanto meus olhos. Talvez eu não devesse ter olhado tanto para ele... possivelmente ele não teria me descoberto se.... — Ela suspirou tristemente.

—E?

—E sonhei com ele. Uma música me tirou de uma cama que não era minha, andei em uma estrada desconhecida, vi aquele corvo e ele me levou para um prado. Havia uma fogueira... não queimava... eu toquei, entrei e....

—Ele saiu do fogo? Mostrou em seus olhos imagens do seu futuro? —Perseverou, virando-a para ela.

— Não sei se era meu futuro, mas sei que tudo me assustou —confessou.

—Oh, querida! —Sophia exclamou segurando-a com força. —Chegou! Ele chegou!


V


—Bem, aqui me tem. O que diabos quer? — Philip disse quando abriu a porta do escritório de Logan sem esperar ser anunciado.

—Boa tarde, obrigado por vir tão rápido. Desta vez, apenas quinze horas se passaram desde que lhe pedi para vir à minha residência — disse estendendo a mão para seu amigo.

—Sou um homem muito ocupado, lorde Bennett —disse sarcasticamente enquanto apertava a mão forte e o abraçava com um irmão. ?Ou se não, pergunte a amante que deixei para vê-lo.

—Uma nova? ?Logan perguntou quando se sentou.

—Não me lembro do nome dela, mas sim, é nova. Essa vida sedentária me aborrece demais para ficar sempre com a mesma mulher... —disse desabotoando os botões da jaqueta marrom.

—O dia que encontrar sua futura esposa, certamente que terá que suportar uma vida estável e virtuosa...

—Antes prefiro comer um rato vivo! —Exclamou Philip horrorizado. —O que aconteceria comigo sem o prazer do sexo? Ah, nem quero pensar nisso! —Exclamou divertido. Se recostou na cadeira, moveu as costas da direita para a esquerda para caber em um encosto tão pequeno e olhou para Logan. —Qual é a sua preocupação?

—Como sabe...? —Ele tentou dizer.

—Porque me chamou com urgência e porque seu rosto tem tantas sombras que parece um espírito errante. O que ocorre? Tem problemas na vida idílica de Riderland? Ou sua amante o expulsou do quarto dela?

—Terminei meu relacionamento com ela há algumas semanas atrás —ele disse enquanto pegava a caixa de charutos.

—Porque motivo? Não era mais tão carinhosa? Ela mostrou sua verdadeira personalidade? —Persistiu zombeteiramente.

—Queria consolidar o relacionamento e não aceitei. Ela sempre foi...

—Uma amante —disse Philip. —Muito poucas reconhecem a posição dada a elas. É por isso que nunca durmo com a mesma mulher duas vezes.

—Por acaso dorme uma? —Perguntou estreitando os olhos.

—Certo! —Giesler exclamou divertido. Uma vez que parou de sorrir, pegou um dos charutos que Logan oferecia, acendeu e soltou a fumaça calmamente. —O que há de errado? —Repetiu.

—Três dias atrás, depois da festa que meu irmão Roger fez em sua residência...

—Uma loucura, segundo ouvi — interveio Philip.

—Foi convidado.

—Não pude ir.

—Porque não quis.

—Porque eu tinha outro arranjo mais interessante —explicou Giesler, soltando outra nuvem de fumaça.

—Continuo ou irá me explicar que arranjo foi esse?

—Mulheres e sim, pode continuar.

—Quando voltei da festa, o Sr. Moore veio aqui.

—O médico? Está doente? Por que não me contou? O que diagnosticou? —Philip gritou, arregalando os olhos e inclinando-se para a frente.

—Não estou doente, então pode ficar tranquilo —Logan assegurou-lhe esboçando um grande sorriso.

—Menos mal... —comentou com alívio. Só faltava ficar doente e ter sua irmã Valeria o dia todo ao seu lado falando sobre dever, lealdade e o futuro que o aguardaria sendo o barão.

—A razão pela qual o médico apareceu foi implorar para que eu levasse a primogênita de suas filhas com a tripulação em nossa próxima viagem.

—Por que pediu tamanha loucura? —Falou, erguendo as sobrancelhas loiras.

—Porque, de acordo com ele, uma maldição recai sobre ela que afeta toda a família —explicou com uma voz cansada.

—Santo céu! Eu pensei que tinha ouvido todas as besteiras do mundo! —Exclamou Philip brincalhão. —Esse homem é realmente um dos melhores médicos de Londres? Porque, depois disso, começo a duvidar de seu grande julgamento... —acrescentou ao trocar o charuto de mão.

—Bem, acredite ou não, aquele pobre homem parecia muito convencido de suas palavras —disse Logan ao pegar o envelope que o Dr. Moore lhe dera antes de sair. Fechou-o de má vontade e jogou-o na mesa. —Me pagou adiantado —resmungou —e me deu uma foto da moça.

—Viu a foto? Sua imagem não está enfeitiçada? —Ele perguntou divertido.

—Não diga bobagem! Isso é muito sério... — ele avisou. — O Sr. Moore quer se livrar da jovem o mais rápido possível.

—Mas... o que aconteceu para aquele pobre coitado alegar tal absurdo? Por acaso não pensou que usando a palavra maldição, a rejeitaria antes que terminasse a frase? —Ele retrucou, pegando o envelope. Olhou-o de maneira esquiva e observou que havia cerca de quinhentas libras dentro. Muito dinheiro para um médico. Isso só avisava que estava muito desesperado.

—Deduziu tanta loucura —enfatizou —porque os dois noivos de sua filha morreram.

—Augen des Teufels[1]! — Trovejou Philip engasgando com a fumaça do charuto e largando o envelope sobre a mesa como se estivesse queimando. —Os dois? Mortos? —Retrucou perplexo. — E quer que nos acompanhe na próxima viagem? Se estivesse no seu lugar, teria chamado uma sacerdotisa para limpar a aura da minha casa... não percebeu que somos jovens demais para morrer? O que aconteceria se viajássemos com ela? Um polvo gigante nos atacaria? Ah, pobre Valeria! Quão triste seria quando seu irmão morresse entre os tentáculos de um polvo sem ter aceitado o baronato! ?Ele ironizou, incapaz de parar de rir.

—Quer levar o assunto com um pouco de seriedade? —Logan trovejou. — Estamos falando sobre a reputação de uma mulher e daquela que assumido durante esse tempo.

—Eu levo, meu amigo, eu levo —continuou ironicamente.

—Não entendo como pode estar tão desesperado para acreditar que isso mudaria minha decisão — disse se levantando. Colocou as mãos nas costas e começou a andar. — Entendo que ele não pensou, nem por um momento, no problema que sua filha causaria no navio. Quando os homens estivessem em alto mar por um pouco mais de duas semanas... —Logan apertou os lábios. Não queria pensar sobre o que aconteceria se ocorresse uma fatalidade, ou o que ele poderia fazer naquele momento. Era melhor deixar sua mente em branco do que imaginar que um homem pudesse tocá-la... cortaria sua garganta no ato!

—Sim, não tenho dúvida de que eles se matariam pelo prazer daquela mulher —continuou zombeteiramente. —Acho que até eu participaria dessa briga. Sabe que eu não posso ficar muito tempo sem uma amante na minha cama...

—Feche essa boca agora mesmo! —Ele ordenou. —Ninguém irá tocá-la! Entendido?

Philip afastou a fumaça do charuto com a mão para poder observar melhor o amigo. Aqueles olhos azulados tinham mudado para uma cor tão escura que até uma noite tempestuosa no meio do oceano não poderia assustá-lo tanto. Meditou calmamente as palavras que iria dizer, mas, como não encontrara algo sensato ou sério, permaneceu em silêncio.

—Vou devolver esse maldito pagamento e deixar claro que não irei levá-la no meu navio —disse Logan depois de recuperar a atitude serena.

—Acho que é uma decisão muito sábia. Dessa forma, continua a manter a educação e a dignidade de um cavalheiro de sua linhagem e protege suas costas dessa maldição, no caso do médico não estar errado ...

—Não faço por isso! — Ele gritou novamente.

—Então... por que está fazendo isso, meu amigo? —Insistiu. —Existe algo que não me contou? Essa talvez seja a razão pela qual me fez sair do meu quarto sem dizer adeus à mulher com quem descansei esta noite?

—Antes de lhe dizer por que o fiz vir, gostaria de explicar o que John descobriu sobre essas mortes —disse Bennett, voltando para a cadeira, recostando-se e olhando para o amigo sem piscar.

—John? Ótimo! Isso está ficando cada vez mais interessante! —Disse Philip, apagando o charuto no cinzeiro de vidro que Logan tinha em sua mesa. Estendeu a mão e encheu um copo de conhaque. Era muito cedo para beber, mas algo lhe dizia que precisaria se embriagar novamente para aceitar a conversa que manteria em seguida. —Por que diabos pediu ajuda àquele índio? Dúvida das minhas capacidades? Lembre-se que, antes de vigiar as suas costas, trabalhei com Borsohn na Scotland Yard. Ele poderia ter me informado o que aconteceu sem ter que pedir favores ao cão fiel de seu irmão.

—Não fique com raiva, Giesler, mas sabe que John é o melhor rastreador que já conheci e, além disso, não recebi um sinal de vida seu desde que desembarcamos. O assunto tinha prioridade absoluta —declarou rapidamente. O maior defeito que seu amigo poderia ter era o orgulho e, se ele não queria que sua amizade estivesse em perigo, teria que escolher suas palavras muito bem, de modo que uma questão tão pessoal não afetasse o relacionamento deles.

—Como bem sabe, tenho uma irmã muito irritante, e se eu não tivesse aparecido em casa assim que colocasse meus lindos pezinhos em Londres, ela teria aparecido na minha residência gritando como um vendedor de peixe — ele resmungou.

—Certo. É por isso que não queria incomodá-lo. Além disso, sei que Martin fica ansioso para vê-lo quando voltamos e também estou ciente de que a Sra. Reform poderia me mandar para a forca, se eu tirasse seus dias de folga —esclareceu Logan, finalmente esboçando um enorme sorriso. É claro que ele conhecia o caráter da Sra. Reform e não havia dúvida de que o sangue espanhol, que vagava em suas veias, era mais perigoso do que dez homens habilidosos no arremesso de facas. —É por isso que escolhi o John.

—E o que descobriu? —Disse Philip, aceitando a derrota.

A explicação foi tão convincente que não se sentiu magoado. Era verdade que seu irmão Martin esperava por ele toda vez que desembarcava. Por mais improvável que parecesse, durante os dias em que morava em Londres, ele deixava a universidade, onde lecionava aulas de matemática avançada, e conversava durante horas sobre o que acontecera durante sua ausência. Logicamente, para Martin descobrir uma nova fórmula com a qual encontrar o mesmo resultado era algo fascinante, tanto que seus olhos brilhavam. Já seus olhos só brilhavam desse modo quando uma nova amante se despia em seu quarto. Mas é claro, Martin Giesler não herdara o dom de seduzir mulheres, mas a capacidade de matá-las de tédio por que... quem queria ouvir essas palestras sobre questões aritméticas quando poderiam se esconder em um canto e satisfazer uma paixão repentina? E, por outro lado, havia Valeria... ela poderia esquecer o tema do baronato e da procura de uma esposa? Nunca! Sua irmã tinha esses dois temas gravados em sua mente e mal o cumprimentava, com sua efusividade usual, já perguntava... «Visitou nosso avô? Encontrou uma mulher? » «Não e não», respondia antes de ouvir os gritos ensurdecedores de Valeria e os conselhos amorosos que seu marido Trevor lhe oferecia.

—Seu primeiro pretendente foi o senhor Hendall —começou a explicar. ?Morreu depois de cair de um garanhão. De acordo com John, ele visitou um dos clubes de Hondherton antes de tentar retornar à sua residência.

—Bem, a única coisa que ouvi sobre Hendall foi que a sua empresa não prosperava como desejava e que a principal razão para essa destruição era seu amor pelo jogo, bebida e as companhias inapropriadas todas as noites —disse Philip depois de tocar sua barba loira incipiente.

—Sim, isso mesmo. John conversou com o Dr. Flatman e com um dos ex-funcionários de Hendall e ambos concluíram que ele ingerira muito Bourbon para controlar o cavalo que montava —Logan disse calmamente.

—Isso é chamado de imprudência ou estupidez da parte do estimado Sr. Hendall, então não tem nada a ver com a maldição que Moore fala. Pode me dizer quem foi o segundo pretendente? Estou ansioso para conhecer a versão que o índio lhe deu —disse Philip com um tom inquisitivo. Descansou as costas ligeiramente no respaldo da cadeira e cruzou as pernas compridas pelos tornozelos.

—Era o filho dos Condes de Hoostun —disse depois de respirar. —E toda Londres sabia que ele não nasceu com uma mente sensata, por isso seus pais o mantiveram escondido na residência. Embora o conde desesperado como era, vendo que seu fim estava próximo, temia por seu famoso título, caso não tivesse descendentes, e decidiu encontrar uma mulher saudável para ajudá-lo com seu propósito.

—Em suma, esse pretendente era um tanto demente e o conde exasperado pensava que o casando com a filha de um médico, não só ele fixaria a cabeça de sua prole, mas também poderia dar a ele uma prole normal —resumiu Giesler. —Bom raciocínio, sim senhor. O que o matou?

—Infelizmente, depois que o noivado foi divulgado, ele decidiu limpar a arma e levou um tiro —disse Logan, irritado. —Embora tenha receio de que a versão correta tenha sido a de que ele não aguentou a pressão do casamento e decidiu encerrá-la ele mesmo.

—Uma vez que um acordo é feito, apenas a morte pode livra-lo dele —disse Philip antes de deixar escapar uma risada.

—Não é engraçado! —Logan gritou, se levantando e colocando as palmas das mãos sobre a mesa. —Ela acha que é a culpada por essas mortes!

—Me desculpe excelência. Não queria zombar do sofrimento daquela jovem desventurada —disse Giesler com uma mistura de espanto e sarcasmo. —Foi uma impertinência de minha parte alegar tamanha insensatez. Imploro seu perdão.

Logan olhou para ele com raiva. Apesar dessas palavras, seu rosto não mostrava nenhum sinal de arrependimento. Em vez disso, ele expressava escárnio, o mesmo que queria fazer desaparecer com um bom soco de direita. No entanto, não o havia chamado para discutir, nem para se envolver em uma briga, mas porque precisava, mais do que nunca, da sua ajuda.

—Sinto muito... —disse depois de se acalmar. —Este tema me incomoda muito. Mas odeio a injustiça e me parece muito cruel que uma jovem carregue a morte de dois homens nas suas costas —acrescentou ele, sentando-se novamente.

—Aceito suas desculpas e espero que aceite as minhas —ele disse calmamente.

Logan assentiu levemente, admitindo o pedido de desculpas, enquanto Philip, sem deixar de olha-lo, tomava outro gole da bebida.

—Quero que me acompanhe até a residência dos Moore —pediu. — É por isso que o chamei com tanta urgência.

E naquele momento, o licor que Philip escondia dentro de sua boca, saltou como se fosse água de uma das fontes que sua irmã tinha no jardim.

—O que disse? —Perguntou, enxugando os lábios na manga. —Está sugerindo que o acompanhe até aquela casa onde o próprio Moore declara que há uma maldição? —Não disse que não quero morrer ainda? O que pretende?

—Não há maldição —ele murmurou. —Nós dois deduzimos que foram incidentes infelizes. E a única coisa que pretendo é devolver esse bendito pagamento. —Ele indicou com o queixo o lugar onde estava o envelope.

—Não pode enviar Kilby? Certamente estará muito mais seguro do que nós —explicou como uma alternativa.

—Quero ir pessoalmente, Philip. Para mostrar a ele que não há maldição naquela casa.

—Kilby também pode enviar uma nota explicando que é um homem ocupado e....

—Não! Não farei isso! Pensaria que tenho medo dela!

—Ela? Quem? A viúva negra? Certamente já tem assumido...

—Vai me acompanhar? —Logan gritou com raiva.

—Então a razão pela qual me chamou foi, única e exclusivamente, continuar protegendo suas costas... —ele refletiu, tocando sua barba novamente.

—De certo modo...

—O que está me escondendo, Logan Bennett? —Giesler perguntou, apertando os olhos. —Se não acredita nessa maldição, por que precisa da minha presença?

—Porque não seria apropriado aparecer desacompanhado em uma casa onde há cinco jovens casadoiras —disse por fim.

—Cinco! —Exclamou, arregalando os olhos. —Esse pobre homem tem que casar cinco mulheres? Essa é a maldição, amigo! Como pode ter tantas filhas?

—Sua irmã tem quatro —disse ele.

—Sim, e mais dois homens. Mas ela não terá nenhum problema em encontrar um marido. Reform será o problema porque não achará apropriado nenhum homem que tente se casar com elas. No entanto, estamos falando do Sr. Moore e da maldição. Embora já tenha me explicado que todas as mortes ocorreram de maneira racional, começo a duvidar... O que acontecerá se entrarmos nesse castelo mortal? Nós vamos morrer quando sairmos? Uma carruagem vai nos atropelar? Um raio nos atingirá, apesar de não ver uma única nuvem no céu? Ou pior ainda... —continuou falando enquanto se levantava e se dirigia para a porta, como se dentro do escritório de seu amigo não houvesse oxigênio suficiente para respirar. —Não pensou que alguém poderia nos ver entrar naquela casa e espalhar o boato de que pretendemos cortejar uma dessas cinco mulheres?

—Vai expor mil desculpas para não ir? Me forçará a pedir ajuda a John? Quer que o informe que se recusou a me proteger porque tem medo de cinco meninas? —Rosnou. Philip Giesler era tão orgulhoso que não consentiria em ser substituído pelo índio em outra missão.

— Amaldiçoo o índio, seu senso de honra e a miserável maldição! —Exclamou, abrindo a porta bruscamente.

—Isso é um sim?

—Que diabos está esperando? —Grunhiu, pegando a maçaneta como se quisesse arrancá-la. —Não tenho o dia todo.

—Obrigado —Logan disse depois de pegar o envelope e caminhar em direção ao seu amigo.

—Não me agradeça até eu voltar para casa vivo —disse ele antes de bufar como um dragão. —Espero não encontrar uma bruxa naquela casa ou terá que me levantar do chão.

—John me disse que são jovens adoráveis... cinco adoráveis mulheres que não são capazes de ferir nem uma pequena flor —disse sorrindo como uma criança travessa.

—Sim, amáveis e amaldiçoadas —Philip acrescentou antes de fechar a porta do escritório com um grande estrondo.


VI


Anne saiu da cama com o cabelo molhado. Três noites... O sonho não a deixava em paz e se repetia toda vez que adormecia. Fizera todo o possível para fazê-lo desaparecer. Até leu um dos livros de Mary! Mas nem mesmo enchendo a cabeça com dados clínicos e doenças mortais o manteve fora de sua mente. Pelo contrário, estava se tornando mais real e o sentia com tanta intensidade que acordava banhada em suor pela paixão que vivia nele. Não via mais nos olhos do homem o que aconteceria, segundo sua mãe, no futuro. Desde a segunda noite, ambos acabavam nus no chão daquele pequeno prado e se entregavam a um desejo sem precedentes.

Perturbada, esfregou o rosto, se levantou e foi a sala de banho. Não podia perder muito tempo, sua mãe apareceria a qualquer momento para perguntar se o corvo a visitara novamente. Como não queria mentir, responderia sim e ela sairia com um sorriso de orelha a orelha. No entanto, a felicidade de sua mãe lhe causava uma dor terrível, porque não tinha sido capaz de explicar que o homem que aparecia naquele sonho era um parente do Marquês de Riderland. Como um aristocrata poderia ter sangue cigano? Um primo, sobrinho ou o que quer que o relacionasse com o marquês, não teria sangue vermelho nas veias, mas azul. Ainda admitiria que a maldição estava prestes a terminar se ela descobrisse quem ele era? Possivelmente não. A ilusão que a mãe mostrara durante o dia se transformaria em agonia e Elizabeth sairia de casa procurando o pretendente ideal. As únicas que pareciam impassíveis a essa esperança eram suas outras irmãs, que continuavam com suas vidas rotineiras após a feliz reunião de família.

Ela abriu a torneira, tirou a camisola e deixou o corpo relaxar em um banho quente de espuma. Algo que uma vez pareceu maravilhoso para ela, já não dava prazer. Não estava contente com nada e era esmagador não encontrar alguma paz onde antes havia encontrado. Ensaboou o cabelo e enxaguou sem confirmar se estava brilhante. Retirou-se da banheira, vestiu o robe de seda preta e, quando saiu da sala de banho, encontrou Sophia debruçada sobre Mary.

—Ela ainda está dormindo como um tronco — disse com raiva. ?Cobri o nariz dela para ver se acordava, mas começou a respirar pela boca.

—Ontem leu outro livro até... — ela tentou dizer.

—Tanto faz! —Interrompeu. —Não vou deixar que passe seus anos vivendo desse jeito! —Exclamou com raiva. —A partir de hoje, Shira removerá as cortinas da janela —apontou com o dedo para o lugar onde a janela estava —de modo que alguma luz entre no quarto. Vamos ver se, dessa forma, ela entende que não pode dormir até a hora do almoço —acrescentou, enquanto caminhava em direção a ela. —Mas não vim aqui para ficar com raiva... —suavizou seu tom de voz. — Queria saber se sonhou com ele hoje.

—Sim, mãe. O corvo também apareceu essa noite —respondeu, fixando os olhos no chão, para não mostrar o constrangimento causado por falar de algo tão íntimo com sua mãe.

—Maravilhoso! —Exclamou dando-lhe um beijo na bochecha. —Isso significa que aparecerá em breve e que nossas tristezas estão prestes a terminar —continuou em uma voz satisfeita.

—Se diz... —ela murmurou.

—Não confia em minhas palavras? Duvida de mim? —Como sua filha não levantou o rosto, ela colocou um dedo sob o queixo e o levantou. —Anne, se lembra de onde eu venho? Está ciente do sangue que eu tenho?

—Sim —ela disse, olhando-a nos olhos. Nunca, em seus quase vinte e cinco anos de vida, havia visto tanto brilho naquele olhar verde.

—Querida, esta noite, antes de ir para a cama eu orei a Morgana e pedi a ela que me levasse para o seu sonho.

—O que disse? —Perguntou se afastando dela e arregalando os olhos.

—Mas ela não me presenteou esse momento —disse, sorrindo de orelha a orelha. —A criadora nunca interrompe a intimidade de um casal.

E Anne pôde respirar com tranquilidade.

—O que mostrou?

—Morgana me ofereceu uma bela foto da família, a mesma que Madeleine comentou naquela tarde. Pela primeira vez em vinte e cinco anos, não havia escuridão sobre nós, mas luz.

—Tem certeza? Realmente acha que o homem que vejo dormindo vai nos livrar de tudo isso?

—Por que desconfia? Está escondendo algo importante de mim? —Perguntou, apertando os olhos.

—Não, mãe.

—Então, com o que está preocupada? Pensa que estou tão desesperada que sou capaz de provocar essas visões?

—Não! Nunca faria uma coisa dessas! —Disse rapidamente.

—Por favor... —Mary disse em uma voz sonolenta. —Meu cérebro precisa de descanso...

—Seu cérebro precisa de umas palmadas! —Sophia trovejou virando-se para a segunda filha. —Levante-se de uma vez! Não se lembra que esta manhã nós temos que sair?

—Vai me comprar mais livros? —Perguntou sem tirar os lençóis do rosto.

—Claro que não! —Exclamou a mãe para a cama, na qual ela só podia ver uma colcha rosa e os tubos metálicos que Mary havia enrolado em seus cabelos negros.

—Então... me deixe dormir!

—Mary Moore, quero que afaste essas cobertas agora mesmo! —Sophia ordenou como se ela fosse do alto escalão do exército.

—Mãe, reconsidere sua decisão —Anne pediu quando a viu se aproximar dela. ?Acho que seria mais apropriado não nos acompanhar nessa saída familiar. Esqueceu o que aconteceu da última vez que a forçou a se juntar a nós?

Sophia olhou para a primeira filha, depois para a segunda e franziu a testa. Claro que ela se lembrava! Não só ela, mas qualquer habitante de Londres! Como poderia esquecer que ela bateu na carruagem do filho de um lorde com os punhos, porque, depois de uma conversa acalorada sobre uma descoberta médica, ele disse a ela que deveria se concentrar em manter a boca fechada? Nem mesmo as quatro xícaras de tília que tomou quando retornaram acalmaram o constrangimento que ela e o resto de suas filhas sofreram.

—Tudo bem, —disse. —Até que sua situação seja esclarecida, é melhor ficar longe de nós.

—Obrigada. Fez o correto.

—Se diz... —murmurou. — Vou esperar na sala de costura. Preciso verificar certas coisas antes de sair.

—Minhas irmãs estarão lá? —Queria saber enquanto seguia em direção ao guarda-roupa.

—Não, Elizabeth está na estufa, ela me disse que precisava plantar algumas sementes que o seu pai trouxe ontem à noite. Madeleine ajuda a cozinheira com uma nova sobremesa e Josephine disse algo sobre tentar limpar o cano de um instrumento —explicou sem tirar os olhos de Mary.

—Não demorarei a descer —assegurou Anne, apertando os lábios para não rir quando ouviu a palavra instrumento. Sua mãe não percebia que o instrumento era outra arma? Apesar da reprimenda que recebeu depois de ter perfurado o vidro da sala de descanso, ela ainda estava determinada a colocar em suas mãos o que era proibido.

—Antes de descer preciso que faça duas coisas.

—Que deseja? —Perguntou se virando para ela.

—Quero que hoje use o vestido esmeralda —a informou.

—Não é muito elegante? Lembre-se que compramos para uma ocasião especial. —Tentou dissuadi-la.

—Se aquele homem está prestes a chegar, quero que note sua beleza e não os decotes que Elizabeth exibe.

—Mas...

—Não há discussão possível sobre esse assunto! Entendido? —Assegurou.

—Sim mãe, o vestido esmeralda. Qual é a segunda coisa que quer me pedir? — Perguntou Anne com resignação.

—Antes de sair, lembre à sua querida irmã que, mesmo que não estejamos em casa, ela tem que descer arrumada. Se ousar deixar esse quarto de camisola... será punida para sempre! — Sophia apontou antes de sair do quarto.

?Nem pense em repetir, ?disse Mary, virando-se no colchão. Já ouvi isso. Eu e qualquer um que esteja a cinco quilômetros de distância.

—Mas ela está certa Mary. Não é apropriado que saia de camisola. Se tiver dificuldade em se vestir antes de tomar o café da manhã, peça a Shira para subir com ele.

—Acho que é uma boa ideia... irei deixar o quarto de camisola e gritar para ela do alto da escada para trazê-lo.

—Mary...

—Faça-me um favor, Anne. Vista-se em outro quarto. Minha cabeça dói depois de ouvir tanto absurdo.

—Acha que a mamãe vai esquecê-la? Realmente acredita que poderá evitá-la para o resto da sua vida?

—No momento, só quero evitá-la hoje... amanhã, amanhã me preocuparei em continuar lutando contra ela.

Anne olhou para ela sem piscar, maravilhada com a atitude desafiadora de Mary. Não entendia como era capaz de continuar dormindo depois de ouvir as ordens de sua mãe. Até o mais feroz soldado tremeria! No entanto, ela não parecia se importar com nada além de seus livros. Depois de suspirar profundamente e rezar para que um dia mudasse de comportamento, virou-se para o guarda-roupa, pegou o vestido que a mãe indicara, um lenço laranja e foi na ponta dos pés até a porta.

—Se encontrar Shira, diga a ela que estou doente, assim não abrirá as cortinas —ela pediu, se virando de novo na cama.

Sem responder a esse pedido, Anne saiu do quarto, fechou a porta e, quando estava caminhando em direção ao quarto das gêmeas, encontrou Shira.

—Senhorita! —Exclamou horrorizada ao ver que levava nas mãos as roupas escolhidas para sair. — Por que não esperou por mim?

—Bom dia, Shira. Mary está doente e não quero incomodá-la.

—Doente? O que tem dessa vez? —Retrucou, colocando as mãos na cintura.

—Febre, eu acho...

—Bem, a senhora ordenou que abrisse as cortinas e sabe que nunca desobedecerei a sua mãe.

—Pode esperar, por favor, até nós estarmos fora de casa? Não quero ouvir mais gritos por hoje —pediu.

—Sua mãe indicou que o faça depois de ajudá-la a se vestir, então...

—Entendo —disse, entregando suas roupas para Shira.

Uma vez que chegaram ao quarto das pequenas, a donzela fez um grande esforço para deixá-la como sua mãe havia indicado. Apertou tanto o espartilho que seus seios pareciam tão grandes quanto os melões que comprava no mercado. O que ela queria? Que lutasse contra a beleza de Elizabeth? Então, era uma batalha perdida. Onde a terceira das Moore tinha uma altura ideal para ser mulher, ela superava uma cabeça. Seus olhos eram castanhos e seu cabelo era tão escuro como a noite. Elizabeth herdara os olhos azuis e os cabelos dourados como ouro. Além disso, quando andava mal movia o tecido da saia, Eli parecia uma dançarina de balé. Compará-la? Superá-la? Não, poderia se comparar a ela ou superá-la. A única coisa em que ela se destacava era aquela paixão selvagem com a qual nasceu. Elizabeth, ao contrário, se comportava descaradamente, mas no momento da verdade valorizava sua virgindade acima de tudo.

—Como sua mãe previu, esse vestido se encaixa perfeitamente —recuou Shira quando terminou de arrumá-la.

—Ainda não estou satisfeita, mas é verdade que é tão bonito que não notarão a minha altura, mas o brilho de seda —disse, olhando para si mesma no espelho.

—Se subestima, senhorita, é uma mulher muito bonita, tudo o que precisa fazer é confiar em si mesma.

—Obrigada Shira —agradeceu dando-lhe um beijo enorme na bochecha.

—Desça o mais cedo possível, sua mãe está esperando e tenho que deixar a luz entrar em seu quarto. Espero que sua irmã não decida me jogar o último livro que tem debaixo do colchão.

—Se o fizer, feche a porta, porque é enorme! —Exclamou entre risadas.

Depois de relaxar, caminhou na ponta dos pés, para que Mary não a ouvisse antes que Shira abrisse a porta, parou no topo da escada e olhou para baixo. De repente, alcançou o corrimão e o agarrou. O que acontecia com ela? Por que ao olhar para a porta seu coração começou a bater tão rápido? Por que seus joelhos queriam tocar o chão? Sufocada e assustada com essa mudança repentina, ela desceu lentamente as escadas sem largar o corrimão. No entanto, quanto mais perto chegava da entrada, mais sua fraqueza aumentava e seu batimento cardíaco ecoava em seus ouvidos como as balas das armas de Josephine.

—Morgana... —se dirigiu pela primeira vez à mãe sobre quem Sophia falava —o que acontece comigo? O que quer me dizer?

Depois de descer o último degrau, emaranhou o lenço laranja nas mãos e respirou com dificuldade. Queimava. Aquela peça de roupa que no andar de cima estava fria pela temperatura ambiente, na frente da porta, ardia. Desenrolou-o de suas mãos, pegou-o com as pontas dos dedos e o arejou. As quatro borlas costuradas nos quatro cantos se moveram quando o sacudia e, de repente, um halo de luz cruzou aquele lenço. Assustada, mais do que nunca, o agarrou com força e, sem diminuir o passo, foi a sala de descanso. Quanto mais cedo se apresentasse à mãe, mais cedo tudo o que estava acontecendo desapareceria.

—Está ótima! ?Sophia exclamou ao vê-la. —Mas não quero que use isso —acrescentou, apontando para o lenço laranja que sua filha estava segurando firmemente em sua mão direita. —Não vê que não é apropriado?

—Gosto dele... —sussurrou. Como havia imaginado, assim que entrou na sala, seu corpo recuperou a normalidade e o lenço parou de queimar.

—É horrível! — Insistiu sua mãe. — Não gosto da cor, nem do tecido nem das borlas. Onde comprou? Ultimamente faz coisas sem me consultar...

—Comprei no mesmo dia em que Elizabeth comprou aquele chapéu de flores —explicou, caminhando em direção a ela.

—No estabelecimento da Sra. Jancks? Ela não mostrou outros menos... laranja?

—Oh sim! Mas nenhum me agradou tanto quanto este... —ela comentou enquanto o colocava em seus ombros.

—Nem pense em sair com isso, Anne Moore! Ou deixa na cadeira ou...!

Não conseguiu terminar a frase de aviso porque alguém bateu na porta. Sophia olhou para a entrada da sala, depois para a filha e respondeu.

—Entre.

—Senhora, me perdoe por te interromper —disse Shira, mostrando duas bochechas vermelhas no rosto —mas tem uma visita.

—Uma visita? —Perguntou Sophia levantando as sobrancelhas. —Para nós?

—Não Senhora. Dois cavalheiros vieram procurando pelo Senhor. No entanto, quando os informei que não estava em casa e não chegaria até o final da tarde, um deles insistiu...

—Em que? —Sophia exigiu saber.

—Em conversar com a senhora —afirmou sufocada.

—Comigo? —A sra. Moore perguntou perplexa.

Por que queria falar com ela? O que poderia ser tão urgente para não esperar pela chegada do marido? Quem seriam esses cavalheiros? Sophia respirou fundo, empurrando as perguntas e a inquietação que causavam a ela. Teria que adotar o comportamento da esposa de Randall, o médico mais admirado de Londres, e receber aquelas visitas inesperadas como ditava o protocolo. Caminhou lentamente até o meio da sala, espalmou no vestido de seda bege, levantou o queixo e disse para sua governanta:

—Faça-os entrar. Irei recebê-los —disse com determinação.

—Tem certeza? —Shira perguntou, de olhos arregalados. —Posso dar uma desculpa razoável. Uma senhora com suas filhas, sem a companhia do marido...

—Estou —disse Sophia, lançando um olhar furtivo para a mais velha de suas filhas para que ela pudesse ficar ao seu lado e adotar a postura adequada para receber os visitantes.

—Quem serão? —Anne perguntou olhando para a porta. —Por que insistem em falar com a senhora e não retornam quando o papai estiver?

—Assim que eles aparecerem por aquela porta, descobriremos —declarou Sophia solenemente.


***


Shira, depois de confirmar que mãe e filha haviam se colocado no lugar certo e adotado a postura perfeita, afastou-se da entrada, voltou ao salão e informou ao homem insistente que a sra. Moore os atenderia naquele momento.

—Me acompanha? —Logan perguntou para Philip, que tinha dado um único passo em frente e não tinha a intenção de dar nem um mais.

—É seu problema, não meu. Além disso, em nosso acordo não há referência sobre protegê-lo de uma dama amaldiçoada —disse Giesler.

—Vai me deixar sozinho? Não quer descobrir como é a mãe dessas cinco filhas? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas.

—Não quero saber nada sobre nada. Tudo o que estou tentando fazer é salvar minha pele enquanto devolve esse bendito envelope. Além disso, se me encontrar em perigo, esta área da casa é o local ideal para sair sem olhar para trás —declarou Philip depois de estudar com precisão o interior da casa dos Moore.

Enquanto seguiam para a residência, pensou em como seria a casa e seu entorno. Para sua paz de espírito, não encontrou nada de estranho. A residência era bastante espaçosa e iluminada. Aquela escuridão que tinha visto em sua mente não era real. A luz do dia entrava pelas janelas do primeiro andar e alcançava os vasos cheios de flores colocados em ambos os lados da escada que se comunicava com o segundo andar. A construção desse segundo andar era muito parecida com a sua. Um amplo patamar, uma escadaria de cerca de quarenta degraus de mármore claro, uma grade de madeira escura e, atrás daquele amplo patamar, havia duas galerias; uma levava para a ala direita e a outra levava para a esquerda. Também havia percebido que do lado de fora, no grande jardim, uma pequena estufa de vidro fora construída. Tudo isso lhe dizia que a família Moore, apesar dessa maldição que supostamente caía sobre eles, era uma família razoavelmente rica; do contrário, não teriam um lar tão semelhante ao de um aristocrata.

—Está bem. Se algo assustá-lo, grite e virei em seu auxílio —Logan disse, achando graça antes de começar o caminho que a criada apontava para ele.

Giesler o observou até que estava na frente da porta e recuperou o fôlego quando o viu endireitar o casaco, adotar uma postura rígida e confirmar que o envelope ainda permanecia no bolso direito. Naquele momento, não o invejava. A única coisa que sentia por seu amigo era misericórdia. O pobre tolo foi para a sala onde estava a mãe das meninas amaldiçoadas. Só esperava que ele saísse de lá inteiro e.... vivo.

Logan respirou fundo, pegou a maçaneta, a girou e, quando deu um passo à frente, congelou. Tinha pensado nisso. O pensamento cruzara sua mente mil vezes enquanto se dirigiam para a residência Moore, mas uma coisa era a atitude que adotara durante aquela imagem mental, na qual controlara perfeitamente seu estranho desejo por ela, e outra bem diferente era encontrá-la de uma maneira real. Se na festa, naquele vestido laranja, ela já parecia a mulher mais bonita de Londres, vê-la ali, no meio da sala, esperando sua chegada com aquele vestido esmeralda o deixara tão impressionado que teve que chamar sua razão para poder dar mais um passo em frente.

—Bom dia, Sra. Moore. —Ele olhou para a esposa do médico, fazendo um grande esforço para parar de observar a jovem, que, ao vê-lo, empalidecera. —Sou o visconde de Devon e pretendia falar...

Logan não terminou a frase porque nesse momento correu em direção a Anne. A jovem, depois de dar o segundo passo, começou a vacilar.

—Anne! —Sophia exclamou quando viu como sua filha estendia uma mão para ela, para evitar uma queda. —Anne! O que há de errado? — Gritou desesperada.

E, justamente quando Anne estava no meio desse colapso para cair, quando o seu corpo ia bater no chão, Logan chegou a tempo de pegá-la e erguê-la em seus braços.

—Pelo amor de Deus! —Sophia gritou, imitando as palavras que o marido usava quando alguma coisa o deixava perplexo.

Não sabia o que a chocava mais, se o desmaio inesperado Anne ou como o homem a segurava. Suas mãos grandes e poderosas se agarraram ao vestido de Anne de um jeito tão possessivo, tão rude, que as pontas daqueles dedos perfurariam a roupa da filha e acabariam criando marcas em sua pele.

—Madame... —Logan começou a dizer colocando a cabeça da jovem em seu tórax, sentindo o hálito de sua respiração acariciando seu peito e como seu coração respondia àquelas respirações. —Onde posso...?

—Lá! —Apontou o sofá que o marido utilizava para cochilar enquanto ela costurava.

Com um passo firme, Bennett foi até o lugar que a Sra. Moore indicara e, com muita gentileza, colocou Anne no sofá.

—Shira! —Gritou Sophia enquanto corria para a porta. —Shira! Repetia desesperada.

—Senhora? —Perguntou, aparecendo quando Sophia ia sair da sala.

—Pegue os sais! —Ordenou. —Anne sofreu um desmaio.

E naquele momento, um grito veio da entrada.


VII


Ele sabia amaldiçoar em muitos idiomas, todos aqueles que aprendera desde que começou a ler.

Quando notou que seu rosto estava aquecido pela luz que entrava pela janela, Mary cobriu os olhos com o antebraço direito e gritou horrorizada. Por que as cortinas estavam abertas? Anne não explicou à Shira que ela não deveria fazer isso porque estava doente? Não acreditou nela? Sua mãe continuava a impor seus desejos? Ninguém na casa entendia que ela deveria descansar depois de passar uma noite enchendo seu cérebro com uma sabedoria exaustiva?

—Für alle Übel der Welt[2]! —Gritou depois de puxar o lençol de seu corpo como se em vez de ser feito de algodão ele estivesse cheio de cardos espinhosos. —No dia em que tiver minha própria casa, ordenarei que deixem o quarto no escuro até eu acordar — disse, emburrada, enquanto colocava os pés no chão. — E miserável de quem ousar desobedecer a minha ordem!

Levantou-se e, como de costume, caminhou até a porta descalça, de camisola e com aqueles rolos nos cabelos que Shira a forçava a usar antes de dormir. Quando a mão dela tocou a maçaneta, sorriu de orelha a orelha, olhou em direção a janela, para confirmar que o desafio que faria era uma resposta para a batalha que sua mãe começou ao puxar as cortinas, e abriu a porta. Com uma atitude confiante e corajosa, porque imaginara que todos haviam ido às compras, caminhou pelo corredor sem se preocupar e bocejando. Um café. Ela precisava de um café antes de aguentar a árdua tarefa de se lavar, vestir e pentear o cabelo.

Com os olhos fechando e abrindo, pois, a sonolência não desapareceria até que tomasse o primeiro gole de café, pensava sobre a diferença entre as cinco irmãs ao acordar. Anne pulava da cama, entrava na banheira e desfrutava de um longo banho de espuma. Elizabeth não saia do quarto sem estar asseada, vestida e, claro, perfeitamente penteada. Se a curvatura do lado esquerdo não se ajustasse às dimensões e ao laço exato, de modo que a ponta do cabelo tocasse levemente a pele de seu enorme decote, voltava para o quarto e não saía até conseguir. Josephine tinha que fazer seus exercícios matinais. Claro, esses exercícios não eram usuais em uma mulher. A quarta filha jogava facas em uma pintura que ela escondia debaixo do colchão, no mesmo lugar em que mantinha aquela meia dúzia de punhais com os quais ela praticava. Se verificasse que sua pontaria não tinha melhorado desde a noite anterior, se asseava, vestia as roupas que sua mãe odiava, descia, tomava café da manhã e saia para o jardim com a nova arma em suas mãos. Madeleine... a pequena era de outro mundo. Toda vez que se levantava, ela mostrava um enorme sorriso no rosto. Tudo a fazia feliz, nada a incomodava e ela se sentia muito à vontade... em casa. Seu rosto angelical desaparecia quando tinha que sair de casa. E por outro lado, estava ela, que precisava de uma boa xícara de café para entrar na banheira porque, enquanto suas irmãs desfrutavam de um banho quente, ela ficava em alerta no caso de, em algum momento, a caldeira a gás emitir ruídos estranhos, como aconteceu com Lorde Fhautun antes de ele sair disparado junto com a banheira.

Em suma ... cinco filhas, cinco personalidades.

Antes de virar à esquerda para se colocar no patamar do segundo andar, ela coçou a bunda por cima da camisola e um enorme bocejo fez com que fechasse os olhos e abrisse tanta boca que parecia a mandíbula de uma baleia. Com os olhos ainda fechados, ela estendeu a mão que havia tocado sua nádega ao corrimão e começou a descer as escadas até ouvir algo parecido com um grunhido. Surpresa, ela juntou os lábios, abriu os olhos e.... gritou com toda a sua força.

—O que está fazendo aí parado? Quem o deixou entrar? ?Perguntou, quando terminou de gritar, para o homem que estava parado na porta, olhando para ela com uma expressão de medo e se aproximando da porta, como se precisasse confirmar que ainda estava perto da saída.

—Eine Hexe! — Philip exclamou, incapaz de tirar os olhos daquela imagem aterrorizante. O que era aquilo que via? Um fantasma? Um diabo? Que criatura da natureza seria? O que quer que fosse, tinha que sair dali o mais rápido possível, porque, pelo que tinha na cabeça, deduzia que era parente da deusa Medusa e poderia transformá-lo em pedra a qualquer momento.

—Me chamou de bruxa? —Mary explodiu irritada ao ouvir como ele a chamara em alemão. —A mim? —Naquele ataque de raiva ela colocou as mãos no cabelo, rapidamente desfez os rolos de metal que tocava lançando-os com toda a força que sua raiva lhe dava. —Não sou uma bruxa pedaço de asno! —Continuou gritando irritada, jogando os bobes nele como se fossem dardos.

—O que diabos está jogando em mim, bruxa? —Philip perguntou, movendo-se da direita para a esquerda, para que o que ela estivesse jogando não o atingisse. —Quer me transformar em pedra?

—Em pedra? — Agora sim que não podia ficar com mais raiva. Ele a estava comparando a Medusa, a deusa que, através dos seus olhos, transformava as pessoas em pedra? Dando um puxão forte em seus cabelos, ela conseguiu tirar mais de cinco rolos de metal de uma só vez e atirou todos contra aquele ingrato. — Vai saber o que significa se tornar uma pedra, titã desgraçado! Arsch! Dumm[3]!

—Mary Moore! —Exclamou Sophia, vendo o que a segunda de suas filhas estava fazendo. —Chega!

—Não! Nunca vou parar porque esse asno me chamou de bruxa! A mim! Na minha própria casa! —Gritou com tanta raiva que as veias de seu pescoço pareciam as cordas que eles usavam na Idade Média para enforcar os ladrões.

E naquele momento Josephine veio em socorro, segurando com força a última espingarda que seu pai lhe dera. Se colocou entre sua irmã e o estranho, levantou o cano e apontou para o peito grande.

—Saia desta casa se quiser continuar vivo porque, mesmo sendo uma mulher, posso puxar o gatilho e ter uma bala atravessada no seu coração —avisou.

—Josephine Moore, abaixe essa arma agora mesmo! —Sophia gritou sufocada, aturdida e prestes a se tornar a bruxa que nomeara Mary.

E como não há dois e sim três, Madeleine correu da cozinha quando ouviu tantas vozes. Mas quando viu um homem de tal tamanho na porta, sua irmã Josephine apontando a arma para ele, Mary na escada de camisola, puxando os bobes, e sua mãe tentando colocar a paz na situação, ela parou a corrida, se virou e abriu a porta da sala de descanso, o lugar ideal para se esconder. No entanto, também havia pessoas na sala. Madeleine arregalou os olhos, levou a mão direita à boca e gritou ao ver que um homem, que beijava Anne até que o interrompeu, virou a cabeça para ela e a olhou sem piscar.

—Já... está! Veio...! Maldição! Ele... —Ela voltou para a cozinha, gritando entre soluços.

Sophia ficou a cinco passos da sala e a sete de onde estava aquele cavalheiro loiro. Olhou para a esquerda e bufou enquanto observava Madeleine correndo e gritando palavras sem sentido. Então ela voltou os olhos para Josephine. Ela ainda não havia cumprido sua ordem e continuava a apontar para o peito daquele cavalheiro hercúleo cujo rosto estava mais branco do que o da menina assustada. Por que Morgana lhe oferecia uma situação tão absurda? Deveria passar por esse calvário para encontrar a paz? Não era normal o que acontecera em menos de dois minutos: Anne desmaiara ao entrar aquele cavalheiro que não pôde nem se apresentar, Madeleine tinha visto algo naquela sala que a desequilibrara, Josephine ainda com a arma nas mãos, apontando o peito do homem que não conseguia afastar os olhos de Mary. Se alguma vez pensou que os espetáculos que sua segunda filha oferecia nas reuniões médicas eram bastante humilhantes para ela, estava errada. Aquilo superava tudo o que tinha visto em sua vida!

—Josephine Moore, eu disse, abaixe a arma! —Ela repetiu com mais energia e desespero.

—Mãe, eu prometo que vou fazer isso assim que esse homem afastar o olhar de Mary. Caso continue a observá-la dessa maneira, descobrirá que sob a camisola ela está nua —Josephine exclamou.

E naquele momento Mary gritou novamente. Josephine continuou apontando para Philip e, apesar de ouvir o aviso de quem segurava a arma, não desviou o olhar da mulher, a quem chamaram de Mary, tentando descobrir que figura feminina teria a diabólica Medusa.

—Vá agora para o seu quarto, Mary Moore! Espero que isso a ensine a não descer sem se arrumar —explodiu Sophia. —Eugine! — Chamou a cozinheira.

Mas Mary não subiu, ela ficou lá, petrificada pelo constrangimento, contemplando furiosa como o atrevido estava procurando o ângulo perfeito para descobrir o que estava escondido sob a longa camisola.

—Sim senhora? —Disse rapidamente a criada, que, antes do burburinho que se formara em um piscar de olhos na casa pacífica, abandonou suas tarefas para ir até a entrada.

—Faça para Madeleine um chá calmante e que não saia da cozinha até que tudo isso esteja sob controle —disse sem tirar os olhos de Josephine.

—Sim, senhora —disse antes de se virar e procurar a filha mais nova.

—Shira! —Chamou a governanta.

—Estou aqui, senhora —respondeu às costas de Sophia.

—Dirija-se à sala de estar e deixe que Anne inspire os sais para ver se ela acorda imediatamente. Não saia de lá até eu limpar toda essa bagunça porque o cavalheiro que queria falar comigo, continua sozinho com ela —disse seriamente.

—Agora mesmo —Shira respondeu, dando passos rápidos para a sala.

—Se não abaixar a arma, Josephine, prometo que não terá uma enquanto estiver respirando. Juro pelo meu sangue que as aulas de esgrima e as escapadas para o campo com o seu pai irão acabar —ameaçou sua quarta filha.

—Mãe... —ela disse, abaixando a arma. —Esse homem...

—Senhor! —Sophia a corrigiu. —Ele é um homem que apareceu em nossa casa para procurar seu pai e.... como o trataram? —Ela gritou, olhando para Mary e depois para Josephine. —Que imagem minhas filhas ofereceram? É assim que expressam a educação que com tanto esmero demos às duas? — Persistiu em voz alta.

Josephine, descobrindo a extensão da raiva materna e assustada com as repercussões que teria, decidiu pedir desculpas antes que sua mãe pegasse todas as suas espadas, facas, rifles e os entregasse ao primeiro ferreiro que passasse pelos arredores de sua casa. Ela deu dois passos em direção a Philip, abaixou a arma e estendeu a mão.

—Desculpe por apontar a arma e por querer atirar no senhor. Mas, como entenderá, não foi correto olhar para a minha irmã desse jeito —ela esclareceu com orgulho. —Só fiz o que qualquer homem faria no meu lugar.

—Desculpas aceitas, senhorita Moore e acredite em mim eu a entendo perfeitamente. —Aceitou uma saudação tão masculina. —Certamente eu teria reagido como a senhorita se um estranho entrasse em minha casa e olhasse com atrevimento o corpo seminu da minha irmã —acrescentou, ainda incapaz de afastar os olhos de Mary Moore e lhe dar um sorriso leve e sedutor.

Depois que ele a perdoou, Josephine se virou, olhou para a mãe, assentiu, colocou a arma no ombro direito e voltou para o lugar de onde havia saído com um passo militar.

—Mary... —avisou sua mãe quando viu que ainda estava no alto da escada e tinha mais alguns cilindros de metal na mão.

—Nunca me desculparei com um sujeito rude! —Gritou, se virando para subir as escadas.

Mas justo quando chegou ao patamar, quando apenas devia sair pelo corredor da esquerda para ir ao seu quarto, olhou de lado para o homem e seu corpo se encheu de raiva. Ele estava olhando seu traseiro? Aquele grosseiro, mal-educado e desbocado tinha os olhos fixos na sua bunda? Respirou fundo, lançou um olhar assassino e, depois de jogar outro daqueles rolos metálicos que segurava na mão direita, correu para seu quarto.

Assim que a calma reinou no local, Sophia respirou fundo, esboçou um largo sorriso, caminhou em direção ao cavalheiro que suportara estoicamente aquela situação desastrosa, estendeu a mão e disse:

—Bom dia senhor...

—Giesler —disse Philip, escondendo na palma da mão esquerda o último rolo que a bruxa morena de olhos azuis jogara nele, depois de descobrir que ele não desviou o olhar do seu traseiro.

Aceitou a mão dela e deu-lhe um beijo casto nas juntas.

—Bom dia, Sr. Giesler. Sinto esse alvoroço, espero que possa esquecer facilmente. Minhas filhas são meninas muito calmas e sensatas —ressaltou.

—É claro, Sra. Moore. Testemunhei o bom senso do qual fala e devo parabenizar a senhora e seu marido pela educação erudita que elas estão mostrando.

—Sarcasmo, Sr. Giesler? —Sophia disparou, erguendo a sobrancelha.

—Completamente, senhora —disse com um sorriso que cruzou seu rosto.

—Quer me acompanhar até a sala? Exceto pelo desmaio da minha primogênita, certamente será um lugar menos perigoso.

—Obrigado pelo convite, mas, se não se importar, continuarei no corredor, perto da saída, para o caso de suas queridas filhas quererem me mostrar de novo aquelas atitudes tão tranquilas e delicadas que ensinou —ele disse tentando não olhar para cima, onde a bruxa dos rolos de metal tinha saído.

—Como quiser —Sophia disse, estreitando os olhos para descobrir para onde os do Sr. Giesler estavam se dirigindo. «Eu vi Mary apaixonada, embora ela tente combater os sentimentos que esse homem despertará nela a partir do momento em que se encontrem pela primeira vez», lembrou. Se virou, olhou para cima, confirmando que Mary não estava, endireitou as costas, adotando a atitude mais digna que poderia ter naquele momento e retornou à saleta. Ainda tinha que resolver a questão mais importante, quem era aquele homem e o que queria.


***


Uma vez que a deitou no sofá que a Sra. Moore apontara, Logan se forçou a manter as mãos longe da jovem. Por que agia assim? Por que todo o seu ser o incitava a não se afastar da jovem e a guardá-la como se nada no mundo importasse a não ser ela? Atordoado por aquele súbito desejo de proteção, mesmo acima de sua própria vida, ele deu um passo para trás.

—Pegue os sais! —Ele ouviu a ordem da esposa do médico quando se afastou deles. —Anne sofreu um desmaio.

Mas naquele exato momento um grito foi ouvido na casa. Logan se virou para a porta e deu um passo à frente. Aquele grito de terror só poderia ser de Philip. Foi isso que lhe disse antes de deixá-lo na porta, que se algo terrível acontecesse, ele gritasse e deixariam a casa dos Moore sem olhar para trás. No entanto, o desejo de descobrir o que aconteceu com seu amigo desapareceu quando percebeu que a própria Sra. Moore estava correndo em direção ao salão e deixando-o sozinho com a jovem a quem ela chamara de Anne. O médico lhe contou o nome de sua filha? Naquele momento, não se lembrava bem de ter feito isso, a única coisa que podia especificar era o estado de ansiedade que o pai mantivera durante sua breve visita.

Sem pensar se era conveniente estar sozinho com ela, ele se virou e a olhou por algum tempo. Como poderia se sentir tão atraído por uma mulher que não conhecia? Por que seu sangue atingiu uma temperatura sem precedentes? O que havia de especial nela? Ainda pensando em como seu corpo reagia ao estar tão perto da jovem, ele recuou do passo que havia dado e se colocou tão perto dela que seus joelhos tocaram o vestido. De onde estava, podia ver aquele grande e volumoso seio subindo e descendo no ritmo da respiração lenta. Ela parecia tão relaxada, tão longe de onde estava, que notou como essa paz que ela sentia se apoderava dele também. Aquele rosto, apesar de pálido devido ao desmaio, mostrava uma beleza incomparável. Seus lábios, ligeiramente separados, convidaram-no a beijá-los com ternura e discrição. Logan se recusou a fazer o que sua mente estava gritando com desespero, apenas um vilão se aproveitaria de tal ocasião.

Ele preferia beijar mulheres acordadas e ver nos olhos delas o brilho que oferecia a paixão de seus lábios. No entanto, ela era tão especial, tão diferente de todas as que conhecia... ela não tinha a beleza de sua última amante, Rose, nem a força de Barbara, a mulher africana com quem ela vivera durante sua viagem à África. A senhorita Moore era única, diferente e especial. Logan a olhou de cima a baixo, concentrando-se no lenço laranja que ainda segurava na mão esquerda. Ela não percebia que aquela tonalidade era imprópria a uma mulher em sua posição? Só precisava levar algumas joias em suas mãos e orelhas para expressar a todos quem ela realmente era. «Minha esposa é cigana —recordou a conversa com o médico, —mas mantivemos segredo para o bem das nossas filhas». Pois a primogênita do casamento, não arrastava apenas a maldição da qual ele falou, mas suas entranhas gritavam que seu sangue era diferente do resto de Londres.

«Ela não esconde o que é», disse a si mesmo enquanto se ajoelhava. «Você, ao contrário, foge da realidade, da sua natureza, da sua verdadeira origem», continuou pensando enquanto sentia como o sangue que ele chamava de contaminado assumia o controle quanto mais tempo passava com ela.

Parecia estranho, não só por causa do que estava acontecendo com ele ao lado de Anne, mas por causa dos sentimentos que vinham de dentro dele. Tentou raciocinar, como costumava fazer aquela parte Bennett que aparecia nele toda vez que estava em apuros. No entanto, a parte que ele odiava, seu lado cigano, atacou com força dentro dele, sua cabeça se encheu de ideias absurdas. Como ele apagaria de sua vida o que aconteceu depois de seu nascimento? A humilhação a que foi submetido, a desordem que sofreu até aquela piedosa mulher levá-lo até seu irmão e, depois de implorar piedade por um filho bastardo que tinha que viver com dignidade, permaneceu sob sua proteção. Não podia esquecer sua origem, nem como todos gritavam que ele era o filho do diabo, nem se davam conta de que a pessoa que finalmente lhe dava seu sobrenome tinha sido um vilão apenas para uma mulher que ele mal conhecia.

Olhou para os lábios dela novamente, aumentando a preciosa visão de seu desejo de beijá-la. Anne tinha uma boca tão tentadora, tão sedutora que queria descobrir como eram aqueles lábios vermelhos. Se inclinou sobre ela, respirou com dificuldade, como se precisasse inspirar o perfume da jovem para sobreviver, levou sua boca à dela, fechou os olhos, beijou-a e, naquele instante, algo ainda mais estranho aconteceu.

De repente, tudo ao seu redor ficou escuro como se alguém tivesse apagado a luz do sol. O silêncio que permanecia no quarto foi interrompido por uma música suave. Ele estreitou os olhos, esperando poder visualizar algo naquela escuridão e o encontrou. Uma luz laranja e rosada apareceu na sua frente. Atônito, estupefato e inquieto, ele estendeu as mãos para frente, procurando pelo corpo de Anne, mas ela não estava ali, desaparecera como uma névoa matinal. O que era aquilo? Onde estava? Logan sentiu os pelos em seu corpo eriçarem, como a temperatura do corpo começou a subir tanto que sobravam todas as roupas que tinha. De repente, um estranho sufocar tomou posse de sua garganta. Oprimido, levou as mãos à gravata e puxou para se livrar do nó. Quando conseguiu que seus pulmões tivessem um pouco de oxigênio, levantou-se lentamente, incapaz de desviar o olhar daquela luz na sua frente. Suas mãos adquiriram vida própria e se espalharam novamente, como se buscassem um ponto para se segurar. Inexplicavelmente, apesar da escuridão, apesar de não distinguir nada ao redor, exceto aquela luz, seus dedos atingiram algo suave, delicado.

—O que quer de mim? — Perguntou. — Onde estou?

Ninguém respondeu. A única coisa que continuava ouvindo era a música que dizia para ele atravessar o fogo, para andar sobre ele, porque entre as chamas estaria à verdade. Respirou fundo, olhou para aquela luz inquieta e, quando pretendia seguir em frente, Anne chamou sua mãe e tudo desapareceu...

Logan piscou várias vezes, tentando acostumar seus olhos àquela súbita mudança de luz. Ele havia voltado para a casa dos Moore, estava ao lado da jovem e ela o fizera voltar, com um simples sussurro, de onde havia estado. Muito lentamente, se ajoelhou novamente diante de Anne, estendeu a mão direita sobre seu rosto e o acariciou devagar.

—Quem é você Anne Moore? O que me aconteceu ao beijá-la? — Perguntou com um leve murmúrio.

Enquanto seus dedos acariciavam aquele rosto com cuidado, percebeu uma ligeira mudança de cor vermelha onde quer que ele a tocasse. Era como se ele pudesse reacender a pele que tocava. O dom da vida, o dom da eternidade... sem tirar os dedos de sua bochecha lisa, Logan se inclinou em direção a ela para respirar o ar que expelia de sua boca. Aqueles lábios, que uma vez sussurraram uma palavra que o tirou daquela alucinação, novamente lhe pediam um beijo. Sem se separar de Anne, tomando cada respiração de seu ar, tentou assimilar o que estava acontecendo com ele. Havia beijado mais de cem mulheres desde que começara a masculinidade, tinha beijado apaixonado, suave, insuportável, ruim, prejudicial e até louco, mas nenhum como o que tivera com Anne. Apenas um toque, um toque leve e casto o transportara para um mundo sombrio e distante. Essa seria sua maldição? Ao tocar seus lábios já estaria predestinado a morrer? Aquela escuridão que tinha visto era a última coisa que seus pretendentes viram? Então, quando terminou de se fazer essa pergunta, balançou a cabeça lentamente. Não, pelo menos um deles não tinha visto isso: o filho do conde. De acordo com John, eles nem se conheciam para que pudessem se beijar, apenas o Sr. Hendall teve tal privilégio. E de repente, um sentimento de posse tomou conta dele outra vez. Queria pegar Anne em seus braços novamente e deixar aquela casa com ela enredada debaixo de seu corpo.

—Maldita seja! — Exclamou sentado em seus próprios calcanhares. Acariciou seus cabelos, oprimido por esses pensamentos, pela ansiedade de beijá-la, tirá-la de lá, afastá-la do mundo e ficar com ela... para sempre. — O que fez comigo, cigana? —Perguntou baixinho. —Me enfeitiçou? —Continuou enquanto os dedos de sua mão se moviam lentamente pelo queixo e pelo pescoço, passando devagar pelo generoso decote. —Porque se assim for, me tem ajoelhado, prostrado aos seus pés.

Como continuava sem responder, sem acordar, Logan afastou os dedos daquele busto feminino e baixou lentamente para pegar sua mão. Estendeu os dedos, longos e finos, próprios de uma mulher tão magra quanto ela e prestou atenção a uma pequena mancha entre eles. Tinta. Ela havia sido manchada com tinta branca. Detalhe que não o surpreendeu porque John também contara sobre sua fama como retratista. Aproximou seus lábios para aquela área e, com um movimento suave, fez aquela mão negligente acariciá-lo. Aquele contato, aquele leve toque de uma mão delicada em sua barba, causou uma alteração sem precedentes nele: sua masculinidade saiu de controle, seu corpo se alargou tanto que as roupas estavam muito apertadas e ele estava sem fôlego. Surpreendido ainda mais por essas reações, abaixou a mão lentamente, colocando-a no lugar em que estivera e, quando estava debruçado, quando deveria se afastar para não tentar a sorte duas vezes, ele a beijou. Embora desta vez não se contentasse com um toque suave. Seus lábios prenderam o lábio inferior de Anne, capturando o gosto de sua boca, a suavidade daquele lábio feminino. Fechou os olhos, para aproveitar por mais tempo aquele prazer simples e requintado, e foi quando a porta se abriu. Logan tentou se afastar para que a pessoa que acabara de aparecer não deduzisse o que havia acontecido ali. Mas tudo o que pôde fazer foi virar lentamente seu rosto para a jovem de cabelos ruivos e olhos azuis que, ao tentar explicar que só queria confirmar que estava respirando, se virou e começou a gritar desesperada. Irritado por não conseguir se controlar, caminhou até a porta. Precisava sair dali e tentar explicar o que havia acontecido. No entanto, naquele momento a Sra. Moore ordenava que uma criada fosse para onde ele estava. Se virou para o centro da sala, mantendo uma distância considerável de Anne, enquanto a donzela entrava.

—Milorde, com sua permissão... —ela disse, mostrando o pote de sais.

—Claro —respondeu, sem desviar o olhar da moça.

Rapidamente, a criada, a quem a Sra. Moore chamara de Shira, se ajoelhou ao lado dela, colocou o braço esquerdo sob a cabeça de Anne e a fez inalar esses sais para despertá-la.

—Shira... —a jovem murmurou quando abriu os olhos. —Oh, Shira! —Ela exclamou, descobrindo que, exceto por ela, não havia mais ninguém ao seu redor. Finalmente o pesadelo acabou. O homem não estava...

No entanto, quando Logan se aproximou para perguntar se estava bem, ela o olhou e desmaiou novamente.

—Acho que é melhor deixá-las sozinhas porque, como posso ver, a minha presença não causa nenhuma melhoria para a senhorita Moore —Logan comentou, um tanto confuso.

Por que desmaiava ao vê-lo? Por que não podia ficar acordada? O que acontecia com ela? Tinha ouvido alguma conversa sobre ele? Teriam dito que era um libertino, que andava com mulheres de reputação discutível? Ou, talvez, pensava que ele queria propor casamento a ela e, depois das mortes de seus pretendentes anteriores, não queria assumir mais uma morte? «Maldição», essa foi a palavra que seu pai usou para confirmar seu desejo de tirá-la de Londres. Mas depois do que aconteceu, ele precisava descobrir muito mais sobre ela.

—Obrigado, milorde —disse a criada, tirando-o de seus pensamentos.

Com solenidade, com o andar próprio de um Bennett, Logan seguiu para a saída com a firme ideia de esclarecer o que acontecera. No entanto, quando estava prestes a chegar à porta, a Sra. Moore apareceu. Seu rosto ainda mostrava confusão e um leve tom de vermelho persistia em suas bochechas, provocado, talvez, pelo que acontecera do lado de fora da sala.

—Milorde —ela não comentou nada, mas o viu.

—Ela ainda está inconsciente —explicou Logan.

Sophia se aproximou da filha, acariciou suas bochechas e apertou sua mão com força, a mesma que Logan havia beijado momentos antes.

—Seria melhor se nos retirássemos —ela pediu, olhando para ele com preocupação. —Posso atendê-lo no escritório do meu marido, se ainda quiser falar comigo.

—Sim, claro. Vim para resolver um assunto e não irei embora sem fazê-lo —respondeu Logan com firmeza.

—Então, se fizer a gentileza de me acompanhar —disse Sophia, andando na frente do visconde.


VIII


Silenciosamente, Logan deixou a sala atrás da esposa do médico e a seguiu até a sala ao lado. Antes de virar para a esquerda, para onde a anfitriã se encaminhava, olhou para Philip. Ele nem sequer notou sua presença porque não tirava os olhos do andar de cima. O observava como se, a qualquer momento, a própria rainha fosse aparecer. O que teria acontecido e por que ele não conseguia tirar os olhos daquela parte da casa? Ele parecia até mais alto do que já era, com seu corpo estando tão rígido! Se não se acalmasse, as costuras de seu terno cor de vinho estourariam. Logan ficou ainda mais desconfortável quando observou o rosto de seu amigo. Ele tinha um desespero semelhante ao que expressava depois de navegar por três meses em alto mar sem uma amante para aquecer sua cama. Quem ele conheceu para deixá-lo tão desnorteado? Estaria com medo ou talvez ansioso? O que quer que fosse, uma vez que os dois se afastassem da residência, falariam sobre isso, porque, se ele estava confuso depois de beijar Anne, Philip revelava um caos ainda maior na dureza de sua expressão.

Com uma caminhada serena, ele avançou pelo escritório do Sr. Moore. Uma grande estante cheia de tomos negros estava atrás de uma mesa de mogno escuro. Sobre ela encontrou uma centena de papéis, dando-lhe a entender que o bom doutor passava várias horas naquele lugar e que a desordem era um dos seus grandes defeitos, além de achar que Anne estava amaldiçoada.

—Peço desculpas pelo comportamento que minhas filhas demonstraram, milorde —começou a dizer Sophia, enquanto caminhava em volta da mesa. —Meu marido geralmente não recebe visitantes em nossa casa. Todos aqueles que desejam falar com ele aparecem na clínica que fica localizado na Baker Street —esclareceu. —Aceita um café, talvez chá?

—Não, obrigado — Logan respondeu enquanto esperava que a anfitriã lhe oferecesse um lugar para sentar. —Peço-lhe que me perdoe por ser a causa de tal situação, mas a razão pela qual estou em sua casa é da maior importância e não tem nada a ver com a ocupação de seu marido.

—Estou ouvindo, milorde —disse Sophia, apontando para uma das duas cadeiras que Randall tinha diante de sua mesa.

—Primeiro de tudo —Logan começou tirando algo do bolso esquerdo. —Gostaria de lhe oferecer meu cartão de visita. Não fui capaz de entregá-lo a sua criada porque ela ficou nervosa e saiu correndo, nem tampouco pude me apresentar adequadamente quando entrei na sala.

—Meu marido sempre me advertiu que minhas filhas precisam fazer o desjejum antes que se possa manter uma conversar com elas —explicou, aceitando o cartão e observando o visconde abrir os botões de seu paletó verde-escuro antes de se sentar. ?Mas hoje pulei essa regra e, como pôde ver, tiveram as consequências que meu amado marido me advertira —acrescentou como meio de desculpa para o desmaio de Anne. Não era conveniente explicar que a sua presença a havia perturbado de um modo sobre humano e que estava ansiosa em terminar essa conversa para descobrir a verdadeira razão pela qual sua filha desmaiou quando o viu.

Depois de falar, Sophia leu o nome que havia escrito no cartão de visitas e se esqueceu de respirar. Esse homem era o irmão do marquês de Riderland e da melhor amiga de Elizabeth? Seu marido não havia dito que a pessoa a quem ele pedia o favor era o visconde de Devon? Ele não percebeu que era um parente direto do marquês e de Natalie Lawford? «É tão inteligente para as suas coisas e tão desleixado para outras... » ela pensou. Sophia respirou fundo, fazendo com que seu peito se sentisse pressionado pelo espartilho, devolveu o cartão de visitas e adotou a postura que deveria oferecer a esposa de Randall Moore, um excelente médico, mas um distraído sem esperança.

—Sei quem é, milorde —ela explicou sem rodeios. —Meu marido me contou sobre a visita que ele fez há algumas noites atrás e também me informou que se recusou a aceitar sua proposta.

—Esse foi o motivo para me apresentar em sua casa neste momento tão inapropriado —disse ele, pegando o envelope do bolso direito. —Não irei aceitar a sua oferta —acrescentou ele, depositando-o sobre a mesa.

—Não parece quantidade suficiente? —Sophia insistiu, olhando dentro do envelope, procurando a foto de Anne. Randall não dissera que lhe dera um retrato para que ele soubesse quem era? Então... onde estava? Teria sido perdido?

—Não é sobre isso, senhora. A quantia é muito adequada, no entanto, rejeito essa proposta por razões morais —ele respondeu seriamente.

Logan ficou perplexo ao ver como a esposa do médico olhou para o envelope. Duvidava dele? Desconfiava de sua honra apesar de se apresentar em sua casa? Porque não faltava nada no envelope, a não ser a foto que, depois de pegá-la do chão, estava guardada no bolso esquerdo do colete que ele usava.

—Motivos morais? —Ela disse, deixando o envelope sobre a mesa. —O que quer dizer, milorde?

—Seu marido apareceu em minha residência me pedindo para levar sua primogênita entre minha tripulação. Quando me recusei a fazê-lo, ele disse algo sobre uma maldição —disse Logan com um pouco mais de calma, observando que a Sra. Moore não notara que a foto da filha estava faltando. —Pelo que entendi, acreditam que Anne é amaldiçoada e que é a causa da morte de seus dois noivos. Estou certo?

—Não acredita em maldições, milorde? —Disse Sophia direta, suportando a satisfação de ouvir como o visconde se referia à sua filha pelo seu primeiro nome.

—Não quero dizer que elas não existam, mas no caso de sua filha não existe —afirmou com integridade.

—Como pode ter tanta certeza? —Sophia perguntou, apertando as mãos e mantendo as costas completamente rígidas.

—Depois da visita do seu marido, pedi a um dos meus homens mais leais que falasse com o Dr. Flatman sobre as verdadeiras causas das duas mortes. O primeiro, embora fosse um cavaleiro experiente, bebeu mais de duas garrafas de Bourbon antes de montar um garanhão. Deduzindo que seu estado de embriaguez não permitisse que ele controlasse o feroz animal em que galopava.

—Continue —disse Sophia, surpresa e confusa ao ouvir que ele se dera ao trabalho de investigar os pretendentes de Anne.

Como deveria se sentir? O mais sensato era com raiva, mas não estava. Ela estava muito relaxada, demasiado para estar na frente de um aristocrata tão famoso pelo berço em que nasceu. No entanto, a forma como a olhava, o modo como falava com ela e até mesmo a expressão em seu rosto não eram comuns a um homem de sua classe social. O visconde tinha algo que era muito familiar para ela, mas... o que era?

—O segundo pretendente de sua filha, não era um homem pleno. O conde o manteve preso em sua casa desde que nasceu porque, como descobri, ele sofria episódios de delírios e depressões.

—Delírios e depressões? Interessante... —Sophia murmurou, movendo o pé esquerdo rapidamente sob a mesa. Sinal inequívoco de que aquele homem lhe transmitia tranquilidade. Até agora, toda vez que ela tinha que falar com um aristocrata, se mantinha rígida como uma tábua e controlava cada movimento, no entanto, com ele tudo parecia diferente. Elizabeth não havia dito em alguma ocasião que os Bennetts eram uma família peculiar? Bem, talvez ela estivesse certa...

—Então, temo que não suportou a pressão que o conde exercia sobre ele —assegurou com firmeza.

—Então, de acordo com seu julgamento, não há maldição, estou certa? —Ela falou, apertando os olhos.

—De fato, não existe. E parece injusto que faça sua filha acreditar nesse tipo de tolice —disse ele com relutância.

—Suponho que tenha perguntado sobre esses terríveis acontecimentos porque queria confirmar que a maldição não era real e que sua exposição seria irrefutável. —Logan afirmou com um aceno suave. —Sendo esse o caso, por que se recusa a levá-la em seu navio? A que se referiu quando disse razões morais, milorde?

—Não é apropriado para uma mulher viajar em um barco cheio de homens —disse Logan.

—Conheço muitas mulheres que viajaram de barco para a Europa e nada lhes aconteceu porque o capitão observou pessoalmente a sua segurança. Não é um desses, milorde? Se recusaria a protegê-la? —Disse mordaz.

—A trataria com o respeito e a proteção que eu ofereceria à minha própria irmã, a senhora Moore —disse solenemente ao sentir como sua virilidade estava sendo questionada.

—E se fosse sua irmã, como disse, e não pudesse levá-la, a quem confiaria sua segurança? —Ela reiterou com calma.

—Insiste em afastá-la de Londres? —Explodiu, levantando-se e colocando as palmas das mãos naqueles papéis desordenados.

—Ela quer ir embora, milorde —disse, olhando para ele sem piscar.

Toda Londres conhecia a natureza dos Bennetts: apaixonada, corajosa, orgulhosa, teimosa, trabalhadora, inteligente, respeitosa, sincera, confiável e.... libertina. Mas o que Sophia nunca pensou foi que ela pudesse acrescentar àquela interminável lista de características a falta de respeito. Por que ele perdia o controle tão facilmente? Por que o incomodava tanto que Anne partisse para Paris?

—Por que quer fazer isso? Não é capaz de encontrar um lugar nesta maldita cidade? —Perguntou fora de si.

—Minha filha, visconde —começou, sua voz terrivelmente suave quando se levantou —nasceu com um dom, o da pintura. Graças a ele, foi capaz de se recuperar da depressão que sofreu após a morte de seu segundo pretendente, mas não a salvará do próximo. —Ela andou até se colocar ao seu lado esquerdo e olhou-o com tanta força que poderia derrubá-lo. —E peço sinceramente que não levante a voz em minha própria casa. Não sou uma mulher comum, milorde. Lembre-se que minha família me ensinou a não me basear nos absurdos protocolos sociais nos quais nasceu. Se não se acalmar, deixará minha casa e não voltará até que meu marido possa atendê-lo, entendeu? —Disse com o mesmo tom que minutos antes repreendera suas filhas.

—Peço mil desculpas —disse Logan, abaixando a cabeça. —Fui impulsivo. —Como havia perdido a compostura tão rapidamente? Por que motivo tratou a Sra. Moore dessa maneira? «Raiva», ele pensou. Sim, a raiva o cegara de tal maneira que não conseguiu raciocinar. Apenas imaginar que Anne iria se afastar de Londres em outro navio, que ela pudesse estar ao lado de outro homem ou que se ela se sentisse em perigo em algum momento e ele não estivesse lá para salvá-la, o irritou. ?Como sabe, venho de uma família que precisa estar unida para ter uma vida plena e tenho dificuldade em acreditar que outras pessoas não mantenham o mesmo apego —disse calmamente.

—Desculpas aceitas milorde e nossa família é muito parecida com a sua. Tenho que explicar que meu marido agiu com desespero e agonia a pedido de Anne. Nós não queremos que ela saia, pelo contrário, queremos que fique aqui, mas, como eu disse antes, se ela sofrer outra depressão, nada e ninguém poderia salvá-la.

—Porque diz isso? Ela está doente? —Logan perguntou depois de respirar fundo e sentar-se novamente.

—Não agora, mas estará em breve — disse Sophia com um suspiro. Caminhou até onde o visconde estava e sentou ao seu lado. —Se investigou essas mortes, imagino que também descobriu ao que minha filha se dedica, certo?

—Sim —respondeu sem hesitar.

—E o que acha disso?

—Não entendi sua pergunta —respondeu, virando-se para ela.

— O que disseram sobre o seu trabalho? —Sophia esclareceu.

—Que tem um grande talento, mas até agora só foi usado por mulheres, embora não tenha havido uma única queixa sobre ela —confessou.

—Sim, de fato —disse se movendo na cadeira até que estivesse olhando para as prateleiras em frente a eles. ?Mas toda essa fama mudaria se alguém descobrisse quem eu realmente sou.

—Se refere a sua origem cigana?

—Exato. Por enquanto, minhas filhas foram respeitadas porque seu pai se casou com uma burguesa, mas... o que aconteceria se tudo viesse à tona? Tenha em mente, milorde, que a vida para nós não é tão fácil quanto é para o senhor. A sua sociedade —disse corajosamente —as rejeitaria e nenhuma delas teria um futuro adequado.

—Acho que é um assunto bem ridículo. Se tem um dom, deve ser elogiado por isso, independentemente de sua procedência ou origem —disse Logan se levantando. Colocou as mãos nas costas, apenas em torno da cintura e começou a andar pelo escritório. —Mas está certa em argumentar que essa questão não beneficiaria suas filhas. Erroneamente ainda se repara no berço em que nasce.

—Isso mesmo —disse Sophia.

—No entanto, ainda não entendo o que tem a ver a maldição que seu marido me contou sobre todo esse assunto —disse ele, virando-se para ela.

—É muito fácil de entender, milorde. —Falou olhando em seus olhos, confirmando não apenas que o jovem havia herdado a cor azul do pai, mas também encontrou certa inquietude em seu rosto. Se preocupa com o assunto? Porque motivo? —Se minha filha Anne partir, não só ela conseguirá se tornar a mulher que deseja ser, mas os cavalheiros desta cidade esquecerão a miséria que sofremos com seus noivos e cortejarão minhas outras filhas. Com o tempo, todas encontrarão um marido para protegê-las e ninguém se perguntará se a primogênita realmente matou seus pretendentes.

—Mas ela não os matou! —Ele exclamou um pouco irritado. —A morte chegou a eles por causa de seus maus atos!

—Qualquer pessoa sensata entenderia dessa maneira, mas nem todo mundo esconde uma mente erudita dentro de uma linda cabeça —argumentou Sophia.

—Seu marido não tentou esclarecer as razões pelas quais eles morreram? —Ele perguntou, diminuindo seus passos abruptamente e virando para a Sra. Moore. —Ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico com sua fama.

—De fato, o senhor mesmo disse; ninguém duvidaria do esclarecimento de um médico, mas de um pai —esclareceu.

—Entendo... —disse Logan novamente caminhando pensativo.

—Por mais que o tempo passe, o estigma social que Anne possui não poderá ser eliminado a menos que ela saia daqui.

—Não há outra maneira de fazê-lo desaparecer? —Bennett disse.

—Não. Como disse, até agora, minha filha só retratou mulheres porque os homens se recusam a ficar com ela. Não sei se a viu na festa da sua irmã, milorde. Se assim for, tornou-se uma testemunha desse comportamento indescritível.

—Talvez com o passar dos anos tudo seja esquecido e ela consiga a reputação que merece —sugeriu Logan.

—Talvez, mas... o que aconteceria se, durante esse tempo, minha origem fosse descoberta? Tenho mais quatro filhas e duas delas já são maiores de idade para encontrar um marido. Se houvesse um cavalheiro na cidade que estivesse interessado em alguma delas, tenho certeza de que se perguntaria o motivo pelo qual ainda não encontraram um marido para cuidar delas. Que futuro elas terão caso se revele que sua mãe é filha de ciganos e que os pretendentes da primogênita morreram? Pensarão que foram enfeitiçados, amaldiçoados por meus ancestrais.

—Não acredito que sejam razões suficientes para um homem eliminar seus sentimentos em relação a uma de suas filhas... —disse calmamente. —Quando um homem se apaixona, ele luta contra o mundo para conseguir a mulher que ama.

—Palavras preciosas para um homem que ainda não se comprometeu —Sophia apontou maliciosamente. —Mas acredite em mim quando digo que minhas filhas têm uma marca oculta nas costas e que nenhuma teria um futuro digno se descobrissem que sua mãe é uma cigana miserável.

—Ninguém deve julgar o sangue dos outros —Logan murmurou.

—Não deveriam, mas fazem. Não pode nem imaginar o que sofrerão porque não nascera com sangue azul. Os de sua classe —apontou sarcasticamente — não são capazes de enxergar além da linhagem das pessoas e, embora meu marido tenha uma fortuna ainda maior que a de alguns aristocratas, nunca o tratarão com a dignidade que merece. —Ela apontou sem reduzir sua raiva.

Logan franziu a testa e se rendeu ao debate porque a Sra. Moore estava certa. Se descobrissem quem realmente era, a sociedade os separaria como se tivessem a peste. Ele mesmo participou da rejeição de outros e de si mesmo. Quantas vezes negou ser a pessoa que realmente era? Talvez desde que soube a verdade sobre o seu nascimento. Mas em sua história o sangue negado era o do Marquês, por violar sua mãe até que ela ficasse grávida. No entanto, graças a Roger, havia seguido em frente e também havia esquecido que, no fundo, não era nada mais que um simples bastardo.

—Quem sabe sua origem? —Perguntou depois de ponderar sobre a parte de sua vida que o machucava.

—Acha mesmo que poderíamos divulgar um segredo de tal índole? Não me escutou atentamente quando expliquei que minhas filhas não teriam um futuro decente se alguém descobrisse que sua mãe é uma simples romani? —Ela disse com tanta raiva que suas bochechas ficaram vermelhas novamente.

—Posso assegurar que muitos daqueles que afirmam ser cavalheiros com sangue azul não são —disse Logan calmamente. —Mas respeito sua preocupação e a de seu marido, mesmo que não entenda isso —disse ele caminhando em direção a ela.

Sophia bufou de resignação, o mesmo que Mary fazia quando retornava de uma reunião médica na qual um nobre tentava discutir uma nova descoberta científica.

—Por essa razão, gostaria de propor um acordo —começou a dizer depois de concluir que, se havia alcançado a felicidade graças ao apoio de Roger, a jovem teria a sua chance de se livrar desse resquício social.

—Um acordo? —Sophia apontou intrigada. —Qual e por que quer oferecê-lo para mim?

—Entendo sua posição como mãe de cinco filhas e até começo a entender o desespero que seu marido me mostrou algumas noites atrás, mas continuo insistindo em que não deveriam desistir de sua primogênita para que as outras irmãs possam alcançar o futuro que desejam para elas.

—Não queremos nos separar de uma de nossas filhas, milorde —repetiu Sophia. —Mas temos a certeza de que é a melhor opção para todos.

—Minha proposta é a seguinte: se dentro de um mês, a data em que pretendo partir novamente, não conseguir que sua filha mais velha seja aceita na sociedade e alcance a reputação que merece, irei pessoalmente levá-la para Paris.

—O que irá receber em troca, milorde? —Disse sem aceitar esse compromisso ainda.

—Faça seu marido entender que não há nenhuma maldição e que o sangue que corre em suas veias não é um impedimento para suas filhas serem felizes —disse se aproximando dela e estendendo a mão direita.

—Terá muitos problemas... —ela disse duvidosamente. —Talvez não devesse se envolver nessa questão porquê...

—Haverá acordo, Sra. Moore? — Logan insistiu, movendo levemente a mão que ainda estava estendida para ela.

—Um mês? —Repetiu, se levantando.

—Sim.

—E mudará a vida da minha filha? Isso a fará feliz?

—Prometo, Sra. Moore — disse ele sem vacilar.

—Aceito sua proposta, milorde. Só espero que não saia prejudicado —disse finalmente.

—Acha que, diante da sociedade que nomeou, as loucuras de um futuro marquês serão levadas em conta?

Com essa pergunta, Sophia sorriu amplamente, colocou-se na frente do visconde e aceitou a mão que ele oferecia. No entanto, quando as palmas das mãos tocaram para selar esse acordo, a Sra. Moore sentiu uma inexplicável descarga elétrica percorrer seu corpo. Por que notou que esse homem era especial? Por que estava tão confortável? O que estava escondendo? Por que Morgana o colocou na vida de sua filha? Um leve arrepio percorreu sua figura esbelta, trazendo uma satisfação e bem-estar que poucas pessoas forneceram ao toca-la. Quem era esse homem? Por que era tão familiar?

—Sra. Moore? —Perguntou Logan ao ver como seu rosto empalidecia.

—Eu... eu sinto muito...—Sophia se desculpou, recuando o suficiente para respirar. —Entenda que tudo isso me desconcertou. Talvez meu marido esteja certo em insistir que devemos tomar café antes de ter uma conversa exaustiva e racional.

—Bem, deveria ouvir o conselho de um dos melhores médicos da cidade —disse Logan, feliz por ter um acordo com a mãe de Anne.

—Eu vou —Sophia respondeu com um longo suspiro.

—Não quero tomar mais do seu tempo, Sra. Moore. —Ele apontou para ela, tomando a mão com a qual havia selado a aliança para dar um beijo casto. —Foi um prazer conhecê-la e descobrir que o Sr. Moore escolheu uma esposa digna e respeitável.

—O prazer é meu, milorde —respondeu Sophia, desconcertada com esse estranho bem-estar.

—Prometo que terá notícias minhas em breve — argumentou Logan, dando um passo à direita para que a Sra. Moore se movesse em direção à saída.

—Estaremos esperando, milorde. Mas lembre-se de que, se em algum momento hesitar em seu acordo, não o levarei em conta.

—Não hesitarei senhora, meu juramento é sagrado —disse solenemente.

Em silêncio, acompanhou-o até a entrada onde seu acompanhante o esperava.

—Sr. Giesler —disse estendendo a mão para ele —foi um prazer conhecê-lo. Espero que da próxima vez que nos encontremos, minhas filhas saibam como se comportar.

—Certamente o farão —disse divertido.

—Espero que sim... —Sophia suspirou olhando para o segundo andar.

—Vamos? —Logan perguntou a Philip.

—Claro —disse depois de suspirar e desviar o olhar do andar de cima. Não havia descido. Desde que aquela Medusa raivosa tinha desaparecido, depois de jogar o último tubo de metal, não tinha decidido descer e isso, embora não devesse alterá-lo, o fez e muito. —Tenha um bom dia, Sra. Moore —disse enquanto fazia um leve gesto com a cabeça.

—Obrigado pela visita, Sr. Giesler —respondeu, dando um passo em direção a eles.

—Madame... —Logan disse beijando sua mão novamente.

—Milorde... —respondeu com uma ligeira genuflexão.

—Nós veremos em breve.

—Quando puder —ela respondeu antes de os dois cavalheiros se virarem para a porta, abrirem e saírem.

Sophia esperou que os dois se afastassem de sua propriedade, fechou a porta lentamente, recostou-se nela e suspirou. O que planejava o visconde? Por que assumia tantos problemas? Não entendia o motivo que o levou a se preocupar com sua filha se eles não se conheciam e só haviam estado juntos...

—Madeleine! —Gritou, cortando a respiração e andando rapidamente em direção à cozinha.


***


—Vai me dizer o que aconteceu enquanto permaneci retido no salão —disse Logan depois de colocar o chapéu e dar o primeiro passo que os levou para os arredores da residência. —A Sra. Moore enfatizou que suas filhas não tomaram café da manhã e que, por essa razão, elas se comportaram como pequenas feras.

—Pequenas feras? Bela maneira de mascarar esses comportamentos selvagens! Uma dessas donzelas apontou com um rifle para o meu peito, outra foi gritando de um lugar para outro como se o próprio diabo a tivesse possuído e outra...

—E outra? —Logan perguntou enquanto estendia o manto sobre os ombros.

—Tudo o que posso pedir é que, da próxima vez que quiser voltar, chame o índio —murmurou.

—John? —Perguntou, erguendo as sobrancelhas. —Isso não prejudicará seu grande orgulho?

—O que destruiria meu orgulho é que essa terceira filha me lançasse de novo mais objetos demoníacos como este. —Philip pegou o tubo que tinha no bolso e mostrou para ele.

—O que é isso? Bala?

—Não acho que são balas porque essa bruxa os usava enrolados em seu cabelo —disse guardando-o novamente.

—E? Porque os pegou? —Perguntou Logan curioso. —Não acha que essa mulher vai descobrir que levou um? Talvez o chamem de ladrão... —ele disse divertido.

—É uma prova! —Choramingou.

—Uma prova? Para que? —Insistiu Bennett.

—Não se lembra de que eu era um agente? Se Borsohn me ensinou alguma coisa, foi estudar a evidência de um caso e está —ele colocou sua grande mão direita no bolso da calça e apertou-o com força — é a única coisa que precisará se, nos próximos dias, eu me transformar em pedra.

E depois dessa abordagem tão surreal, Logan soltou uma gargalhada.


IX


Felizmente para Sophia, Madeleine ainda estava entrincheirada na cozinha. Eugine fez o melhor que pôde para que tomasse um chá, mas se recusara completamente a beber um misero gole. Devia ter ficado tão atordoada com a algazarra que foi montada na casa que nem uma gota entrava em seu estômago. Isso costumava acontecer toda vez que ela sofria um episódio de terror. Até se recuperar, era incapaz de provar algo. Sophia a observou da porta e refletiu novamente sobre a conversa que teria com ela. Se não abordasse o assunto com cuidado, deixaria de comer e toda a família indagaria o motivo dessa atitude. Sua pequena Madeleine era uma criança muito frágil e retraída. Sua aparência física, apesar de muito bonita, lhe acarretava certa inferioridade em relação às irmãs e isso agravava seu comportamento reservado. Passou muito tempo observando-as e enumerando as diferenças entre elas. Sempre quis ter cabelos escuros, como Anne ou Mary, e olhos verdes, como os de Josephine. No entanto, aquela juba cor de fogo, aquelas sardas no rosto e as pupilas azuis davam-lhe uma aparência mais bonita do que imaginava. Se, em vez de ser tão tímida e assustada, ela fosse tão descarada quanto Elizabeth, teria cem pretendentes na porta de sua casa esperando serem atendidos por Randall. Mas a vida não era justa para nenhuma de suas filhas e reafirmara sua crença depois do que aconteceu momentos antes: Anne desmaiou quando viu o visconde, assunto do qual falariam assim que recuperasse a consciência, Mary jogou aqueles rolos metálicos, que Shira a forçava usar, o cavalheiro que permaneceu atordoado na entrada, Josephine apontava para ele com a arma e Madeleine gritava como uma menina selvagem. O que mais teria para ver? Que novo espetáculo suas meninas ofereceriam se voltassem a ter uma visita? A melhor maneira de manter uma ordem adequada em sua casa era dizer a Shira que não admitiriam mais presenças masculinas, desta forma, salvaguardaria o verdadeiro comportamento de suas filhas queridas e não revelariam que tinham um caráter bastante peculiar.

Depois de ter certeza de que a melhor maneira de proteger a família era conversar com Madeleine para tranquilizá-la enquanto pensava em como devia abordar o problema com seu marido, deu vários passos para a cozinha, olhou para Eugine, que estava ao lado de sua filha, e disse-lhe:

—Deixe-nos a sós, Eugine. Vá para a sala de estar com Shira e confirme se Anne despertou do desmaio. Assim que Madeleine tomar o chá, irei verificar como ela está.

—Sim, senhora —respondeu antes de obedecer a sua ordem.

Sophia se colocou na frente de sua quinta filha e ficou olhando sem piscar. A coitada ainda tremia de medo e seu cabelo, que costumava prender num simples rabo de cavalo, estava revolto, como se tivesse sido acariciado com desespero. Ela pegou a xícara que ainda emitia fumaça, aproximou-se e disse:

—Beba um pouco, Madeleine. Isso irá acalmá-la.

—Mãe... eu juro que eu... eu não queria gritar assim diante de estranhos ?balbuciou pensando que iria repreendê-la.

Lágrimas apareceram em seus olhos e percorreram seu rosto alvo. Sophia estendeu os braços e a jovem, percebendo que não tinha ido para repreendê-la, mas para acalmá-la, se levantou, deu a volta na mesa e pulou em direção à mãe.

—Calma, pequena. Tudo bem... eles já se foram —falou acariciando o cabelo vermelho emaranhado. ?Eles não queriam nos machucar, só queriam falar com o seu pai, mas como ele não se encontrava, o visconde resolveu falar comigo porque o assunto que o trouxe até aqui era bastante urgente —explicou em voz baixa e relaxada.

—Mary... Mary... —ela riu. ?Mary jogou alguma coisa no cavalheiro que estava na porta. Josephine estava apontando a arma para ele, pensei que ela dispararia, e a senhora... e então Anne e aquele homem... a beijou —ela revelou finalmente.

—O que acabou de me dizer? —Perguntou segurando-a gentilmente pelos ombros e empurrando-a alguns passos longe dela.

—Esse homem a beijou e.... e eu entrei e.... descobri ... E, quando ele olhou para mim.... Ah, é ele! —Ela exclamou depois de esconder o rosto no peito de sua mãe. —É ele! —Ela repetiu. — É o homem que vi no meu sonho, aquele que nos libertará da maldição! —Ela exclamou.

—Tem certeza? —Ela insistiu, porque não podia imaginar que o visconde, o filho de um marquês e com uma linhagem tão azul quanto a cor de um dos vestidos que ela guardava em seus armários, pudesse ajudá-los a se livrar daquele feitiço cigano. Sua avó não lhe disse que o sangue seria puro novamente? Bem, sendo assim, a pequena Madeleine estava confusa.

—Sim, mãe —respondeu afastando o rosto do seu seio. —Não confia em mim? Acha que estou mentindo?

—Não, querida. Sei que não faz isso e confio muito em você —declarou acariciando suas bochechas para afastar suas lágrimas. —Mas não seria prudente falar sobre esse assunto sem corroborar certos aspectos. Tudo o que sabemos é que o visconde é o irmão do Marquês de Riderland e que veio até aqui para se recusar a levar Anne em seu navio.

—Mas... na minha visão... eu... além disso, o vi beijando-a.... —Ela gaguejou.

—Ele realmente a beijou? Viu exatamente como seus lábios se uniram aos de Anne? —Ela insistiu.

—Não, porque ele levantou o rosto quando eu apareci —ela explicou.

—Então, não podemos afirmar algo que só suspeitamos, não acha? —Madeleine arregalou os olhos e apertou os lábios contra a boca para parar de falar. —O melhor para todas é mantermos silencio, querida. Não quero que suas irmãs fiquem loucas com a ideia dessa liberdade e seu pai... —Ela suspirou. —Sabe como é. Seria capaz de procurar por um alfinete no palheiro.

—Então, como quer que eu aja? —Ela insistiu, se afastando de Sophia e voltando a sua cadeira. —Quer que eu minta? Que apague da minha memória o que eu vi?

—Realmente a beijou? —Sophia repetiu, em pé na frente de sua filha.

—Eu juro que foi isso que vi —disse ela.

—Madeleine lembra que a maldição só vai desaparecer com um homem que tem sangue cigano e esse lorde só tem...

—Lembre-se que eu disse que ele manteve essa parte de sua vida escondida e só revelaria quando visse sua relação com Anne em perigo —disse ela com a mesma firmeza que Mary ao falar sobre as causas da febre.

Sophia colocou as palmas das mãos na mesa e observou a filha sem piscar. Em seu rosto não havia dúvida alguma, e mais, só mostrava segurança, uma que não tivera até agora. Mas... e se estivesse errada? E se estivesse confusa? Era verdade que ela mesma sentira uma ligação estranha com o visconde, mas ainda não sabia como nomear. O que devia fazer? Um mês. O visconde lhe pedira um mês para... fazê-la feliz e jurara por sua honra. Poderia Madeleine suportar um segredo durante um mês?

—Tem certeza da sua visão, certo? —Insistiu.

—Sim —afirmou novamente.

—Bem, sendo assim, vou te pedir um favor.

—Qual? —Perguntou, erguendo a sobrancelha direita.

—Vamos manter tudo isso em segredo até que a própria Anne descubra que o visconde é o homem que Morgana escolheu para ela —disse Sophia.

—Não quer que minha irmã saiba que ele será seu marido? O que nos libertará da maldição? —Perguntou desesperada. —Ela ficaria muito feliz em saber, então pararia de pensar em partir e se prepararia para conquistar esse homem.

—Do que gosta mais, Madeleine, que lhe digam o que está dentro de um presente antes de abri-lo ou descobrir por si mesma o que se esconde dentro?

—Descobrir por mim mesma, o que tem dentro —ela respondeu rapidamente.

E nisso sua mãe estava certa. Toda vez que seu pai lhe dava alguma coisa, Josephine se aproximava e dizia o que era antes de poder desembrulhá-lo. Por essa razão, no último Natal, antes que alguém revelasse o que escondia seu presente, pegou-o e correu para o seu quarto.

—Bem, esta situação é muito parecida para a sua irmã. Ela não deve saber que este homem será seu marido, porque então não será uma surpresa para ela —disse com determinação.

—E se uma das minhas irmãs me perguntar por que gritei quando o vi? Eu sei que Josephine e Mary me viram entrar na sala e logo correr para cá —ela esclareceu depois de suspirar.

—Bem, dirá que ficou com medo quando viu dois estranhos em casa —disse se aproximando de Madeleine novamente para abraçá-la com força. —De acordo? —Insistiu.

—Se acha que Anne conseguirá ser feliz, farei —comentou, não sabendo muito bem se sua mãe estava agindo corretamente.

—Obrigada, querida —disse Sophia antes de beijá-la na cabeça. ?Agora, tome aquele chá antes que fique frio e vamos ver se suas irmãs estão mais calmas.

E no exato momento em que Madeleine se separou de sua mãe para tomar o chá, a porta da cozinha abriu com um estrondo, causando outro grande susto.

—O que aconteceu mãe? —Elizabeth perguntou nervosa. —Josephine me disse que Madeleine estava gritando e que Mary estava em perigo porque um cavalheiro não parava de olhar para ela de camisola.

—Plantou suas sementes? Colheu mais flores? Deveria encher os vasos na entrada porque as rosas estão um pouco murchas —Sophia disse tentando não responder às perguntas no caso de Madeleine ainda não ser capaz de manter a boca fechada.

—Peço-lhe que não mude de assunto. Quem veio? Quem eram esses homens? Que motivo eles alegaram para se apresentar a essa hora? Por que não me avisaram? —Ela disse, irritada, imaginando que era algum pretendente perguntando por ela e sua mãe recusou a sua presença.

—O senhor Giesler e o visconde de Devon foram os cavalheiros que nos visitaram —Sophia finalmente respondeu quando viu Madeleine pegar a xícara com as duas mãos e olhar dentro dela.

—Logan? —Ela disse, erguendo as sobrancelhas.

—Logan? —Retrucou a mãe, franzindo a testa ao ouvir como a terceira de suas filhas falava com tamanha familiaridade do visconde.

—Me desculpe mãe, queria dizer o visconde. O que sua Excelência queria? —Se corrigiu rapidamente. —Queria me informar que Natalie voltou da viagem que tinha planejado?

—Não —sua mãe negou enfaticamente. —A intenção do visconde era deixar claro que não levaria Anne em sua próxima viagem.

—O papai pediu que ele a levasse para Paris? Esse era o homem com quem ele falaria? —Ela gritou de olhos arregalados, assombrada com a loucura que seu pai fizera.

—De fato, há algum problema nisso, Elizabeth? —Sua mãe exigia saber depois de ver a filha tão perplexa.

—Mãe, todo mundo sabe que o visconde não pode viajar com mulheres em seu navio.

—E, por que não pode viajar com mulheres? —Sophia insistiu.

—Porque é o maior libertino de Londres desde que o atual Marquês de Riderland e seus amigos decidiram se casar. Nenhum pai sensato ofereceria a proteção de sua filha nem a ele ou a seu primeiro a bordo, o Sr. Giesler —disse Elizabeth.

Então Madeleine soltou um grito e, quando as duas olharam para ela para descobrir o que estava acontecendo, ela disse:

—Queimei meus lábios com chá.


***


Não queria abrir os olhos. Embora escutasse as vozes de Shira e Eugine, não queria abri-los para o caso de encontrá-lo novamente. Se sentia tão idiota, tão infantil, que a vergonha não permitia que movesse um só dedo das mãos. O que o visconde teria pensado ao observar como desmaiara quando o viu entrar? Que opinião concebeu sobre ela? Só de pensar nisso, sentia como suas bochechas queimavam e seu corpo tremia. Foi o pior momento de sua vida e, infelizmente, tivera alguns depois da morte de seus noivos.

Sem prestar atenção à conversa que as duas servas mantinham sobre o homem que foi agredido em frente à entrada da casa por suas irmãs, Anne só foi capaz de lembrar o momento em que seus olhos estavam fixos nele e na maneira como ele a observava. Ele parecia satisfeito em vê-la e tão surpreso quanto ela. Mas isso era real ou tinha sonhado? Não tinha mais certeza de nada...

Respirou fundo para se acalmar. Precisava ganhar algum controle sobre si mesma novamente e colocar seus sonhos equivocados fora de sua cabeça. Embora fosse incapaz de fazê-lo. Como poderia apagar de sua mente essa aparência magnífica? Ele a deixou tão impressionada que perdeu suas forças. Sem mencionar que, quando ele entrou pela porta, quando deu aquele passo para a sala de estar, sua mente, sua mente perversa e odiosa, o imaginou naquele prado, nu, beijando-a e tocando-a por toda parte. Como se deixara levar pela luxúria tão facilmente? Por acaso perdera seu raciocínio? «Morgana – pensou – por que o conduziu para mim? Por que me faz sofrer? Não tive o suficiente? Deveria morrer para aplacar este sofrimento? »

—Senhorita, está se sentindo melhor? —Shira perguntou.

Diante da pergunta e do fato de que ela se movera inquieta, lembrando-se dele ao seu lado daquele jeito tão lascivo, Anne abriu os olhos, abriu as mãos e se deixou ajudar.

—Está bem? Precisa de mim para lhe trazer um chá? —Eugine interrompeu.

—Não, obrigada. Estou muito melhor. Sabe onde minha mãe está? —Ela perguntou enquanto tocava o cabelo que havia caído do coque. De repente, aquela mão direita começou a queimar. Assustada, olhou para ela e sentiu uma estranha vermelhidão nela. Mas quando a levou aos olhos para confirmar a formação daquele círculo vermelho, seus lábios também arderam. O que acontecia? Por que sentia que sua boca e aquela mão não pertenciam mais a ela? O que acontecera durante o seu desmaio?

—Já acordou? —Ela ouviu a voz de sua mãe na entrada da sala.

—Mãe? —Falou olhando para ela.

—Estou aqui —respondeu. Caminhou rapidamente até Anne e sentou-se ao lado dela. —Se recuperou?

—Mãe! Que vergonha! —Exclamou, se jogando em seus braços. —Como eu pude... —E não terminou a frase porque observou como as servas olhavam-na ansiosas por informações.

—Eugine, prepare o salão matinal. Nós temos que tomar o desjejum antes de seguir com o plano combinado. Shira suba até o quarto de Mary e não saia até que esteja bem arrumada. Informe a ela que, já que atrasamos a hora da partida, virá conosco —disse com autoridade.

—Sim, senhora —responderam em uníssono antes de saírem da sala e deixarem-nas sozinhas.

As duas ficaram em silêncio até a porta se fechar. Foi então que Sophia se afastou da filha, foi até a janela e pensou no assunto que iriam discutir. Não seria fácil perguntar sem rodeios se o visconde de Devon era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Foi horrível —Anne começou enquanto tentava se levantar. —Mas garanto que nem eu mesma esperava a reação que tive. Aquele cavalheiro terá pensado que...

—É o visconde de Devon —ela corrigiu. —O irmão de Natalie Lawford.

—Seu irmão? —Perguntou, sentando-se de repente no sofá.

Ela suspeitava que fosse parente do marquês, mas nunca imaginou que fosse um irmão. Agora, como essas informações afetariam seus sonhos? Voltaria a vê-lo durante as noites depois de confirmar que era um homem inatingível? Como poderia tira-lo da cabeça? Só conseguiria partindo, por esse motivo, seu desejo de fugir de Londres aumentou.

—O conheceu? —Sophia retrucou, caminhando até ela.

—Não pessoalmente —respondeu enquanto descansava os pés no chão novamente. —Eu o vi discutindo com o Marquês de Riderland na outra noite. Mas até este dia, não sabia que existia.

—Bem, ele existe e, conforme constatei, sua irmã Elizabeth o conhece bem o suficiente —disse mordazmente.

—Em que sentido? —Perguntou, arregalando os olhos e notando como seu coração estava batendo rápido.

—Em um sentido fraternal —esclareceu. —Segundo ela, o visconde é um homem leal à sua família e amigos.

—Se ela diz isso... —murmurou um pouco ciumenta. Olhou para os pés, moveu-os devagar enquanto pensava se era adequada a pergunta que rondava sua cabeça, mas a curiosidade era tanta que a fez sem pensar: —O que o trouxe para a nossa casa?

—Se lembra de que seu pai, depois de ter aceitado a decisão de manda-la para Paris, procurou um navio que partisse nas próximas semanas de Londres?

—Sim —respondeu sem tirar os olhos dos sapatos brancos.

—Bem, pediu a ele —disse atenta à reação que sua filha mostraria.

—Lorde Bennett? —Perguntou, arregalando os olhos e dirigindo-os para a mãe com espanto.

—O mesmo —assegurou com um leve aceno de cabeça.

—Não existem mais homens em Londres? Como o nosso pai pode ter o dom do absurdo? Não há mais capitães, mais barcos, mais pessoas nesta cidade a quem recorrer? — Gritou desesperada.

—Mas... —interrompeu Sophia, levantando o dedo indicador da mão direita para silenciá-la.

—Mas? —Anne perguntou com expectativa.

—Ele se recusou a fazê-lo.

—Graças a Deus! —Disse Anne com um longo suspiro. —Não seria capaz de ficar ao lado desse homem por um único segundo.

—Por quê? —Sophia perguntou, aproximando-se dela. —Pelo que vi, é um homem honesto.

—Por que... desmaiei quando ele apareceu? O que pensará de mim? —Soltou horrorizada.

—Nada.

—Nada? —Anne repetiu dando um pulo. —Perdi a consciência ao vê-lo!

—Não será a primeira nem a última a fazê-lo —ela disse mordazmente. —Pelo que diz sua irmã, ele é um homem que levanta paixões onde quer que apareça.

—Perfeito! E meu pai volta a fazer das suas me enviando às garras de um homem libertino! —Exclamou desesperada.

—Anne, por que desmaiou quando o viu? —Ela rapidamente mudou de assunto.

—Como? —Perguntou se virando para ela com tanta força que a saia do vestido rodou entre as suas pernas.

—Responda.... Por que agira de maneira tão inadequada? —Persistiu sem afastar os olhos da filha.

—E as vertigens têm sempre uma explicação lógica? —Se defendeu.

—Bem, eu disse ao visconde que não tinha feito o desjejum e que, devido a isso, sofreu um leve atordoamento, mas temo que não seja o motivo correto, estou certa? —Continuou obstinada.

—E ele acreditou?

—Claro! —Disse com firmeza. —Por que duvidaria das minhas palavras?

—Menos mal... —sussurrou para si mesma. Colocou as mãos no estômago, como se a desculpa de sua mãe também servisse para que não precisasse lhe contar a verdade, abaixou a cabeça e declarou: —Com certeza foi isso. Não tomei o chá antes de falar com a senhora.

—Acha que eu sou tola, Anne Moore? —Soltou a mãe zangada. —Diga-me o que aconteceu de uma vez! E nem pense em mentir para mim, por muito que seja uma mulher adulta irei castigá-la —disse.

—O que quer que eu diga mãe? —Perguntou levantando o rosto para olhá-la.

—A verdade —disse Sophia. —Preciso que seja honesta comigo porque eu e o visconde selamos um acordo antes dele sair.

—Um acordo? —Retrucou, arregalando tanto os olhos que poderiam sair de suas órbitas.

—Sim. Ele veio aqui para devolver o envelope que seu pai lhe ofereceu. Em meio a sua negativa categórica, perguntei se ele conhecia outra pessoa honesta que pudesse levá-la a Paris e sabe como ele agiu?

—Não —murmurou.

—Ficou furioso. E não sei que diabos está acontecendo entre vocês e nem quero perguntar! —Gritou. — Mas deve esclarecer o motivo pelo qual o visconde me pediu um mês para fazê-la feliz.

—Ele pediu isso? Por quê? O que quer? —Perguntou sem fôlego.

—Não sei, embora tenha medo de que você saiba a resposta —assegurou-a com firmeza.

Anne continuou com as mãos no estômago. Ele começou a rosnar, como se quisesse eliminar o pouco que abrigava nele. Caminhou lentamente até o sofá, onde alguém a havia deitado, pegou o lenço laranja como se lhe desse a força necessária para confessar e respirou.

—Anne, seja o que for, estou aqui para ajudá-la —disse depois de sentar ao seu lado e segurar o lenço nas mãos. —Juntas lutaremos contra todos os perigos que apareçam em sua vida.

—Contra todos? —Disse virando o rosto, permitindo que sua mãe observasse as lágrimas que vinham de seus olhos.

—Contra todos —Sophia repetiu solenemente.

—E como podemos lutar contra o homem que aparece nos meus sonhos?

—Com paciência e com muito amor —assegurou antes de abraçá-la.


X


Uma vez que ambos estavam em frente ao portão de Whespert, olhou de relance para Philip. Seu amigo estava absorvido em algum pensamento irritante que o fazia franzir a testa e apresentar uma cara azeda. Supôs que ainda estava pensando sobre o que aconteceu na casa dos Moore. No entanto, não achou um episódio desagradável, mas exatamente o oposto. A conversa que tiveram durante a caminhada foi tão engraçada que sua mente esqueceu do beijo que roubou da primogênita do médico e da alucinação que teve quando o fez. Mas uma vez que se viu em frente à sua residência e Giesler não tinha mais nada para contar, a realidade retornou, assim como a memória do acordo que fez com a esposa do médico. Por que havia oferecido tal loucura? Um mês? Como poderia, em tão pouco tempo, colocar a jovem no lugar que havia prometido? Por que agira tão impulsivamente? Talvez o desespero da mãe, depois de confessar o que aconteceria se sua verdadeira procedência fosse revelada, o fez reagir de maneira tão impetuosa.

Na verdade, a Sra. Moore não estava errada. Se alguém descobrisse que o famoso médico casou com uma cigana e não com a filha de outro burguês, não só a reputação do médico estaria em risco, como suas filhas sofreriam uma rejeição social que acabaria arruinando a família. Assim, a única razão pela qual se ofereceu para ajudá-los não era outra senão empatia, e isso não abrangia nenhum sentimento estranho por Anne.

Ele mesmo, por muitos anos, temeu que as pessoas de seu convívio murmurassem sobre a possibilidade de ele não ser um filho legítimo dos marqueses. Infelizmente, a falecida marquesa ameaçou Roger a revelar a verdade e interromper tudo o que ele havia construído com tanto esforço. No entanto, uma vez que ela morreu, seu irmão confirmou que a mulher traiçoeira havia levado o segredo ao túmulo e que a partir daquele momento ele deveria esquecer seu passado e se concentrar no presente. Ainda assim, todos os dias se colocava em frente ao espelho e contemplava o reflexo de quem ele realmente era: um bastardo, filho de uma mocinha que não superou o parto e morreu ao dar à luz.

—O que pretende fazer agora?

A pergunta de Philip tirou-o de suas reflexões. Olhou para ele sem piscar, como se não reconhecesse a pessoa ao seu lado.

—Tenho que pensar no acordo que propus à senhora Moore —respondeu. —Quanto mais cedo descobrir como oferecer à jovem o reconhecimento que merece, mais cedo poderei voltar à minha antiga vida —disse pensativo.

—Se eu estivesse em seu lugar, recusaria a todo custo me encontrar novamente com uma filha daquele casal. Mesmo que não acredite na maldição, eu testemunhei isso. Essas moças são amaldiçoadas —disse ele, colocando a mão no bolso, onde guardara o tubo de metal e apertando-o com tanta força que quase o dobrou ao meio.

—Não seja teimoso. Sabe tão bem quanto eu que o que aconteceu na casa dos Moore não tem nada a ver com essas bobagens que está falando. Admita de uma vez por todas que nossa presença provocou uma tremenda algazarra —resmungou antes de avançar pelo caminho de seu grande jardim. E já que quer se colocar no meu lugar, me colocarei no seu para cuidar da sua língua quando falar sobre elas. Acredito que elas sofreram muito com a miséria que a morte desses homens trouxe, para continuar a adicionar mais tristeza em suas vidas. Além disso, lembre-se de que o único interesse que esses pais têm é casar suas filhas e, à medida que mais testemunhos falsos forem divulgados, eles nunca conseguirão fazê-lo.

Claro, guardou para si o que aconteceu com a mais velha das irmãs depois de beijá-la. Sua mãe havia proclamado que ela tinha o dom de pintar, mas ele tinha vivido em sua própria carne outro muito diferente. Como poderia tê-lo feito projetar essa visão mesmo quando estava inconsciente? Ela teria mais habilidades do que a mãe confessou? Poderia se encontrar em um lugar onde apenas ciganas feiticeiras haviam nascido?

—Cinco! —Philip exclamou revirando os olhos. —Tem que casar as cinco! —Acrescentou com a mesma ênfase. —E uma delas é tão malvada quanto a terrível Medusa. Quem poderá se casar com essa mulher? Só um louco terá a coragem de se ajoelhar na frente dela e pedir que se torne sua esposa! — Gritou fora de si.

—Deduzo, velho amigo, que para apaziguar o trauma que sofremos, ambos precisamos de uma bebida. Não é todo dia que mulheres lhe jogam tubos de metal, apontam para o seu peito ou gritam por quão desinteressante é —Logan disse sarcasticamente quando Kilby, atento como sempre, abriu a entrada principal.

—Aquela menininha não gritou por minha causa! —Philip se defendeu. Que seu amigo tenha atacado sua atração masculina doeu mais que um chute na canela. Não passou muito tempo treinando e exercitando um corpo tão grande para ser ridicularizado. —Se bem me lembro, aquela bruxa ruiva gritou quando abriu a porta do salão em que você estava. —Indicou, apertando os olhos na hora em que estava tirando o paletó para oferecê-lo ao mordomo. — O que estava fazendo? Não me disse que a mulher estava inconsciente? Levitou? —Diante dessa pergunta, ele arregalou os olhos. —Aquela mulher podia sair do chão voando?

—Sim, claro! E não a viu passando pelo corredor montada em uma vassoura? —Murmurou. —Não diga bobagem, Philip. As irmãs Moore não são amaldiçoadas, nem lançam tubos envenenados, nem serão vistas no meio do jardim fazendo poções malignas. —Virou-se para Kilby para que o ajudasse com o manto, colocou-o no antebraço e virou-se para Giesler para pegar a jaqueta. —Só precisam de uma pessoa que acredite nelas e que as ajude.

—Bem, nesses momentos, o que preciso é que meu bom amigo abra a porta da adega e me deixe escolher o melhor licor. —Colocou a mão no ombro de Logan e caminhou com ele até a biblioteca, o lugar onde eles ficariam bêbados até que nenhum deles se lembrasse do que tinha acontecido naquela manhã.

—Se está com tanta sede, pode ir ao clube —Logan ofereceu divertido. — Não quero ter que embarcar em alguns dias porque minhas reservas de vinho do Porto acabaram prematuramente.

—Eles me negaram a entrada no clube por seis meses —disse Philip, puxando o amigo contra ele em um abraço camarada.

—Bentinck? —Exclamou Logan levantando a sobrancelha direita. Não poderia ser outra pessoa. Implicava com Philip desde que jogou cartas pela primeira vez, quando tinha apenas quinze anos de idade, e o acusou de trapacear na frente de todos os convidados do Reform.

—O mesmo —respondeu, desenhando um enorme sorriso depois de recuar e bater no peito como se fosse um gorila celebrando o triunfo de uma disputa.

—Pode esvaziar a adega de uma das suas amantes —ofereceu enquanto abria a porta da biblioteca e permitia que ele entrasse.

—Mais mulheres? Não obrigado. Com a visita de hoje, tive o suficiente por alguns dias. Além disso, tenho que confirmar se essa aspirante a Medusa não me envenenou —resmungou, dando um passo para dentro.

—Não ficará doente exceto por....

—Milorde...

Kilby tentara informar que o marquês de Riderland estava em casa, mas não ousou interromper a conversa, a não ser quando os viu ir à biblioteca. Uma vez que eles fechassem aquela porta, pediriam uma caixa do melhor uísque e não poderiam ficar de pé por alguns dias.

—Qual é o problema, Kilby? —Logan perguntou se virando para o mordomo.

—Quero te informar que sua Excelência o está esperando no ginásio. Chegou antes das onze e, por mais que tenha insistido que não poderia recebê-lo hoje, porque tinha saído para cuidar de um assunto importante, ele não foi embora.

—Está sozinho? —Exigiu saber enquanto seus olhos estavam ampliados pela excitação de descobrir que seu irmão não havia esquecido o encontro de toda quinta-feira.

—Não, milorde. Vossa Excelência pediu ao jovem jardineiro que se apresentasse diante dele enquanto esperava seu regresso —esclareceu, expressando certo temor em suas palavras.

Logan deu um grande sorriso quando ouviu que Roger começara a treinar com um de seus criados. Talvez, quando aparecesse na frente dele, uma hora depois de sua chegada, estaria tão exausto pela luta que poderia vencê-lo.

Quando comprou Whespert, a primeira coisa que fez foi construir aquele ginásio localizado na parte de trás da residência. Lá ele ensinava esgrima, treinava no ringue que tinha do lado direito e continuava praticando seu passatempo favorito: lançamento de facas. Olhou de soslaio para Philip que sorria da mesma maneira que ele. O brilho que seus olhos consagravam só podia indicar uma coisa: diversão.

—Sente vontade de dar uma boa surra naquele velho? —Sugeriu a seu amigo, sabendo a resposta.

—Pensei que nunca me perguntaria! —Exclamou, agitando os cílios como se fosse uma mulher tentando seduzir um amante.

Com passos longos e rápidos, os dois homens foram em direção ao salão de vidro, que chamavam de ginásio. Enquanto caminhavam em direção àquele lugar, os dois tiraram suas roupas: jaquetas, gravatas, coletes e até camisas caíram no corredor limpo e brilhante. Como sempre, não ficaram muito tempo nos ladrilhos de cor marfim, porque as donzelas, sufocadas ao ver como dois homens tão grandes e esbeltos se comportavam como crianças, as apanhavam antes de se sujarem.

—O que diabos fez para não lembrar que hoje é quinta-feira? — Gritou assim que viu seu irmão aparecer na porta.

Roger tinha o corpo do jardineiro contra o dele. Seus braços tinham rodeado o pescoço do moço e ele tentava afastá-los apertando os antebraços do marquês com as mãos.

—Bom dia irmão. Saí para atender a um assunto urgente. —E logo depois de falar, caminhou em direção ao marquês com os punhos erguidos.

Roger, prevendo suas intenções, jogou seu oponente para a direita, libertando-o daquela amarração abrupta e se defendendo contra o ataque de Logan. Quando o punho do visconde ia tocar seu rosto, ele se virou e aproveitou a confusão para dar um soco no torso nu.

—Um assunto urgente? —Respondeu no mesmo instante em que pulava para trás, exibindo o brilho do suor que a parte superior de seu corpo mostrava pelo treinamento e fazendo seu cabelo loiro, molhado do esforço, se mover como um leque. —Que urgência poderia fazê-lo esquecer nossa reunião semanal? —Adicionou outro golpe quando Logan tentou atacá-lo por trás.

Imediatamente, o rapaz espancado se dobrou ao meio e olhou suplicante para o amigo. Levou a mão esquerda para a mecha de cabelos negros que se soltou do rabo de cavalo e observou os movimentos do titã Giesler.

—Mulheres —Philip acrescentou, levantando os punhos para enfrentar o marquês, enquanto Logan se recuperava daqueles golpes duros.

—Lady Rose voltou a sua vida? —Perseverou, respondendo ao convite de Philip, colocando-se em guarda.

—Não, acredito que Lady Rose tenha deixado de existir para o seu irmão, Excelência —disse Giesler antes de acertar a mão direita no Marquês.

Colocou o antebraço esquerdo como escudo e, quando o terceiro impacto de Philip atingiu aquela parte de seu corpo, Roger sorriu e deu um forte golpe no queixo do titã loiro. Embora, para seu pesar, não o tenha movido do chão. A única coisa que Giesler fez, depois do impacto, foi levar a mão direita até o queixo e movê-lo da direita para a esquerda.

—Vejo que meu irmão ouve meus conselhos... —o marquês comentou dando vários passos para trás. Olhou para o alemão de cima e para baixo e sorriu. De fato, Logan escolheu a pessoa mais qualificada para cobrir suas costas. O peito do gigante era duas vezes maior do que o dele e havia montanhas de músculos em seus bíceps.

—Estou ciente disso —Logan comentou sobre o assunto de Philip atacando seu irmão pelas costas.

—Sou mais velho, mas ainda estou em forma—comentou brincando quando viu que, depois de fazer uma pequena pausa, seu irmão colidiu com o alemão. Evelyn cuida de mim corretamente.

—Vou pedir à minha amada cunhada que deixe Londres por algumas semanas —disse Logan, virando-se para encarar seu irmão novamente.

—Minha esposa não vai a lugar nenhum sem mim. —Roger se afastou um pouco, pegou-o pelos punhos e jogou-o no chão, fazendo as costas de Logan estalarem ao tocarem o piso frio.

—O que foi isso? —Disse Philip diante da manobra que o marquês fez.

—Isso se chama wu shù[4] —disse Roger com orgulho. — Yeng vem praticando esse tipo de luta com Evah desde que ela voltou de seu país e eu também queria aprender.

—Permite que sua filha aprenda a lutar? —Philip perguntou incrédulo.

As mulheres estavam mudando, elas não eram as donzelas que precisavam ser salvas. Naquela época, elas lutavam com os punhos e com o que usavam para enrolar seus cabelos.

—Minha filha, Giesler, está sempre em perigo porque é uma Bennett e precisa se defender contra as ameaças que a perseguem —afirmou Roger, estendendo a mão para o irmão.

—É verdade —disse Logan, aceitando a ajuda para se sentar. —E, por essa razão, minha querida sobrinha foi instruída pelos dois melhores lutadores que conhecemos: o índio e o chinês. Agora, Evah poderia matar um homem, com apenas um dedo, se ele quisesse beijá-la sem a autorização de seu reverenciado pai.

—Ninguém ousará fazer uma coisa dessas se quiser continuar respirando —disse Roger soberbo.

Um sorriso arrogante cruzou o rosto do pai orgulhoso. Sua amada filha havia herdado a beleza de Evelyn, mas a natureza provocativa era inteiramente sua e esse era o maior perigo que ela poderia enfrentar.

Logan olhou para ele por um curto período de tempo, imaginando se seria a melhor hora para expor que sua amada Evah, sua tenra e inocente filha, era tão apaixonada quanto todos os que tinham sangue de Bennett e que durante a festa de Natalie ouviu como ela beijava Terry, o primogênito de seu sócio Leopold.

—Que mulher aquece sua cama agora? —Perguntou o marquês para Logan enquanto voltava os punhos para ele de novo.

—Não há nenhuma mulher —disse oferecendo-lhe outro golpe que, por sorte, foi certeiro.

—Cinco! —Philip disse depois de aplaudir Logan por aquele impacto de sorte.

—Cinco? Rompeu seu relacionamento com Lady Rose porque decidiu manter cinco novas amantes? —Roger perguntou ao tentar devolver o reverso. —Não pode se contentar com uma?

—Elas são irmãs... —Logan argumentou, esquivando-se daquele ataque.

—Quer manter um idílio com cinco irmãs ao mesmo tempo? —Disse o Marques confuso. Naquele momento, ele se esquivou de um novo desafio, levantou as palmas das mãos e parou a luta no ato. —Explique-se agora mesmo! —Berrou colocando as mãos em cada lado da cintura, brilhando de suor.

—Não podia ficar de boca fechada? —Gritou para Philip, que tinha os braços cruzados defensivamente. —O que está querendo? Que meu irmão me faça mudar de ideia?

—O que está acontecendo, Logan Bennett? —Roger rosnou adotando na mesma posição que Giesler. —Dê-me uma explicação razoável antes de me ver obrigado a dizer a Evelyn que meu amado irmão não levou a amante, com quem viveu por dois anos, porque decidiu —enfatizou —jazer sob a horrível repugnância da poligamia.

—Está equivocado... —o visconde resmungou. Virou as costas para eles, caminhou em direção a uma das cestas da sala e pegou várias toalhas.

—Bem... vá em frente, vamos conversar! —Roger pediu um tanto irritado. —Preciso de uma resposta coerente imediatamente! —Exigiu, adotando a atitude de pai.

—Nosso estimado lorde decidiu visitar a educada e gentil família Moore esta manhã —começou Philip, sarcasticamente. ?E esse casal respeitável tem cinco filhas adoráveis —esclareceu com aborrecimento.

—Por que apareceu na casa dos Moore? Está doente? —Perguntou o Marquês enquanto estendia a mão para a toalha que Logan atirou nele.

—O Sr. Moore veio me ver várias noites atrás. Desejava que, na próxima viagem, eu levasse sua primogênita no meu barco —começou a explicar enquanto caminhava na direção deles.

—Está falando sobre a jovem retratista? Por que quer tirá-la de Londres? Não tem clientes suficientes? Deixaram de contratá-la? —Roger perguntou enquanto limpava o suor do rosto e do peito.

—Segundo parece, a mulher é amaldiçoada e o bom pai quer se livrar dela porque o impede de encontrar um marido para as outras... —Philip não terminou sua exposição porque a toalha que Logan jogou o atingiu com força no rosto.

—Ela não é amaldiçoada e não é a causa de nada —resmungou o jovem Bennett. —A moça, como disse, é uma excelente pintora e eles acham que, se ela deixar Londres, poderá ter a fama e o prestígio que merece.

—Eu não entendo... —murmurou Roger, olhando de um e para o outro. —Ela está amaldiçoada ou anseia por um futuro melhor?

—Não consigo entender depois do que aconteceu com aqueles cavalheiros —disse Philip, jogando a toalha encharcada de suor no cesto de vime que tinha as suas costas. Ele jogou os braços para trás, como se precisasse de mais espaço em suas costelas para respirar depois de lembrar da jovem Medusa e seus rolos novamente. Por que diabos não conseguia tirá-la da cabeça? Ficou inebriado ao pensar que ela não estava usando nada sob aquela camisola? Ou talvez ele se mantinha em estado de alerta no caso de ficar doente logo? O que quer que fosse, a senhorita Mary Moore estava dentro de sua mente e não podia eliminá-la como fazia com qualquer amante.

—Primeiro de tudo, investiguei as mortes dos seus noivos e....

—Seus pretendentes morreram? —Soltou Roger, abrindo bem os olhos e interrompendo seu irmão.

—Dois, Excelência. Morreram os dois únicos homens que ousaram desafiar essa... —Philip ficou em silêncio de novo porque Logan, traiçoeiramente, o atingiu de lado.

—Nenhuma maldição! —O visconde exclamou com raiva. — Aqueles cavalheiros procuraram a própria morte! — Continuou com raiva ?Ela é uma vítima do desempenho de dois homens absurdos!

Queria bater em Giesler de novo, mas este evitou o golpe, agarrou-o com força e virou-o para o marquês.

—Deixando essa suposição de lado —Roger começou calmamente. ?O Sr. Moore não foi cauteloso o suficiente para procurar outro dono de um navio?

—Por que deveria fazer isso? —Disse Logan se esforçando para se afastar de Philip. —Não acredita que eu poderia protegê-la até que desembarcasse no país ao qual desejam enviá-la? —Deu um passo à frente, depois de atingir seu objetivo, virou-se para o amigo e olhou-o como se quisesse arrancar seu coração.

—Os homens iriam se revoltar se houvesse uma mulher em um navio! E essa maldição seria cumprida em alto mar! Nós nos tornaríamos um navio fantasma, cercados por cadáveres e seríamos devorados por essa mulher e sua infeliz irmã do diabo! —Exclamou Giesler dando um passo para trás. Se sua experiência não o enganasse, como ele não fechava a boca, o que não faria para salvar seu companheiro, este tentaria acertá-lo novamente.

—Use esse tom de novo para falar sobre ela e ficará sem dentes —alertou Logan, levantando os punhos.

—Chega! —Roger interveio que, espantado com o olhar que seu irmão oferecia ao seu melhor amigo, resolveu colocar a paz entre os dois e esclarecer, de uma vez por todas, o que tinha acontecido. —O que diabos aconteceu naquela casa para manter esse comportamento tão desprezível?

—Quer que eu explique, Excelência? —Disse Philip sarcasticamente.

—O avisei! ?Logan gritou antes de pular na direção do amigo.

Como duas crianças, eles começaram a se socar. Roger, a princípio, permitiu essa atitude infantil por alguns minutos, mas quando descobriu que havia sangue em ambas as bocas, se colocou ao lado deles e os removeu bruscamente.

—Ele fez um acordo com a Sra. Moore —disse Philip enquanto afastava o sangue de um dos lábios para longe com as costas da mão.

—Um acordo? —Roger perguntou ao irmão, que fez o mesmo que Giesler. —Que acordo fez com essa família, Logan?

—Quero mostrar a esse pai que não há nenhuma maldição. Que tudo aconteceu de uma forma acidental e que a jovem pode encontrar um marido quando e onde ela quiser —disse sem qualquer preocupação.

—É melhor comprar um colarinho de alho ou dizer ao seu irmão onde quer ser enterrado se for se aproximar dela de novo —disse Giesler, desesperado.

—Não teve o suficiente? —Retrucou Logan dando um passo em direção ao amigo, mas os dedos de Roger pressionaram seu braço esquerdo, impedindo-o de começar outra briga.

—O que pretende fazer? Como vai conseguir o que prometeu? —Quis saber o marquês sem soltá-lo.

—Se o que eles querem é que a moça consiga o prestígio que ela merece, eu darei a ela —começou a dizer mais calmo. — Não tenho dúvidas de que, se conquistar a fama que deseja, a senhorita Moore terá milhares de pretendentes na porta de sua casa —disse muito seguro de si mesmo.

—E o dono do coche funerário esfregará as mãos quando esses imbecis estiverem à sua porta! —Philip gritou com raiva.

—Giesler, silêncio! —Roger repreendeu-o como a uma criança pequena.

—Excelência —disse Philip em uma voz mais calma. —Seu irmão, meu amigo, que usou meu corpo como escudo em muitas ocasiões —enfatizou —não pensa com clareza. Não só a primogênita está amaldiçoada, mas o resto das irmãs também. Sofri, na minha própria carne, a ira de uma bruxa —disse sem respirar.

—Neste momento, vamos nos concentrar na filha mais velha e teremos tempo para as outras —disse Roger, adotando a atitude do marquês que era. Se virou para Logan, que ainda estava segurando seus punhos tão apertados que suas juntas ficaram brancas. —Como conseguirá que uma pintora consiga a fama que deseja nesta maldita cidade? — Insistia em descobrir.

Roger sabia que ela poderia ser a melhor artista de Londres, que poderia ter nascido com uma habilidade sem precedentes, mas temia que mesmo a sociedade de Londres não estivesse preparada para que uma mulher ocupasse uma posição superior à de um homem, a menos que fosse a cortesã mais experiente de um bordel de prestígio.

—Não sei... —Logan murmurou girando em seus calcanhares e parado em frente à porta. —Estou pensando nisso...

—Poderia pedir a ela para retratá-lo —disse Philip sarcasticamente. —Não me disse que só pintava rostos de mulheres ou crianças? Bem, se aceitar um contrato de trabalho seu, poderia ser o precursor de outros cavalheiros. Não só as mulheres devem exibir seus belos rostos na entrada das casas —acrescentou com violência. — Assim, todas as casas terão um retrato dos homens que vivem nelas e.... —deu um sorriso largo — e se não estão, os amantes dessas tristes viúvas poderão ver o rosto daquele que construiu a casa em que se deitará com sua antiga esposa.

—Ou pode pintar minha querida Evelyn —explicou Roger como uma alternativa. —Certamente ela ficará encantada e, desta forma, os viciados em fofocas sociais permanecerão de boca fechada.

—Que quer dizer? —Logan perguntou se virando para eles.

—É um Bennett e sabe para o que nossos ancestrais masculinos se dedicaram. Se fizer essa menina ficar em sua casa mais do que estipulado como correto, seu prestígio seria arruinado, assim como sua honra.

—Verdade... —Philip refletiu, relaxando com o julgamento razoável do marquês. —Não posso nem imaginar os prós e contras que ofereceriam sobre a pintora e o visconde. Seriam semanas, meses e até anos para debater sobre quando, como e por que essa mulher conseguiu o que as outras não conseguiram. Sem mencionar como sua última amante aceitaria a notícia. Tenho certeza de que Rose perguntaria sobre ela e arrancaria seus olhos assim que a tivesse na sua frente. Embora também... —disse enquanto tocava o queixo coberto por um arbusto de barba loira —essa moça possa ser protegida pela discípula de Medusa. Certamente Rose virará pedra quando notar o estranho penteado que usa sobre sua cabeça. —E depois dessa afirmação, soltou uma gargalhada enorme.

—Deve pensar sobre este assunto com calma e não agir com pressa —disse Roger, colocando a mão esquerda no ombro do irmão. —Não quer se ver na obrigação de casar com ela por esse absurdo, certo?

—Casar? Que estupidez! Logan não pode se casar! Certamente ele prefere ter varíola a viver com aquela moça pelo resto de sua vida! —Philip exclamou enquanto se afastava do ginásio.

Mas o marquês não escutou as frases dolorosas de Giesler. Não conseguia desviar o olhar do irmão e, se não estava enganado, parecia que a ideia de ficar mais tempo com essa mulher misteriosa não era tão desagradável quanto o amigo pensava.


***


—Que Deus tenha piedade de nós! —Exclamou Randall sem parar de andar de um lado para outro, enquanto acariciava seu velho rosto de maneira desesperada. —Tenha piedade desta família! —Acrescentou exasperado.

Sophia o observava sentada no sofá, esperando pacientemente que ele se acalmasse. Sabia que depois daquele episódio de ansiedade refletiria sobre o assunto. Mas parecia que o tempo de espera ia ser maior do que em ocasiões anteriores, porque seu rosto estava completamente vermelho, apenas respirava calmamente e acariciava seu cabelo como se quisesse arrancá-lo de sua cabeça.

De repente, Randall ficou na frente dela, levou as mãos à gravata e tentou retirá-la, como se a peça de roupa estivesse sufocando-o.

—Randall, querido, respire devagar —sugeriu, levantando-se e pegando a peça de roupa da qual ele não podia se desvencilhar. —Como lhe disse, selamos um acordo e não duvido da sua palavra.

—Um acordo? Realmente acredita que um aristocrata agirá de acordo com suas palavras? Desde quando confia tanto nesse tipo de gente? —Soltou com mais raiva do que nunca.

Com aquela expressão de fúria, Sophia deu vários passos para trás. Não estava com medo, mas confusa. Até então, o marido nunca estivera tão zangado. Ela errou no acordo? Seu marido não concordava que o visconde deveria tentar ajudar sua filha? Não tinha ido até ele para pedir ajuda? Pois, ele havia vindo, mas não com a opção que havia pedido. No entanto, ela sentia que a nova decisão era a melhor alternativa para todos desde que Anne confessara que o visconde era o homem que aparecia em seus sonhos.

—Sinto muito —ele se desculpou enquanto observava sua esposa recuar. ?Lamento oferecer-lhe este horrível espetáculo —disse inclinando a cabeça, arrependido por uma atitude tão desagradável.

Nesse momento, Sophia voltou para o seu lado e o abraçou confortando-o.

—Ele me deu sua palavra e, quando nossas mãos se uniram para selar esse acordo, notei em seus olhos que estava dizendo a verdade. Esse homem é diferente dos outros.

—Tem certeza? Quantos aristocratas são confiáveis? Quantos escrevemos no caderno negro, querida? Você, melhor do que ninguém, sabe o quanto são cruéis e os danos que podem nos causar —disse com mais calma.

—Reflita um pouco, Randall. Ele apareceu em nossa casa, trouxe o envelope que lhe ofereceu e, depois de ouvir uma das razões pelas quais Anne deve sair de Londres, ficou tão interessado que decidiu colocá-la no lugar a que a corresponde. Logicamente, todo o resto deve permanecer em segredo.

—Mas esquece que nossa filha diz ser amaldiçoada —murmurou, colocando o queixo no cabelo preto de sua esposa — e suas irmãs, especialmente Elizabeth, acham que é verdade. Talvez, como Anne diz, deveria partir para alcançar um futuro favorável longe desta cidade.

E depois de expor essas palavras, Sophia deu vários passos para trás. Agora era ela quem estava com raiva e rezou a sua mãe criadora para que não estivesse escutado bem.

—Quer que ela vá embora? —Gritou. É tão obtuso que ainda acha que Anne deveria se afastar de nós? Não é você quem está sempre dizendo que prefere suas filhas por perto?

—Não me entenda mal... —disse abaixando a voz. —Anne pode fazer o que quiser e se conseguir ficar aqui, ela me faria o pai mais feliz do mundo.

—Então? —Perguntou colocando as mãos na cintura. — Não gostou que eu interferisse neste assunto? Não me vê capaz de ajudar a família?

—Ah não, não, não! —Exclamou o médico mexendo as mãos da direita para a esquerda. — Tenho certeza de que suas intenções estão corretas. A única coisa que questiono é a posição do visconde. Lembre-se de que é um Bennett? Sabe o que aconteceu com os antigos marqueses?

—Sim, claro que sei! E você também sabia quando foi pedir a ele para levá-la em seu navio! —Disse.

—Mas não é o mesmo... — murmurou.

—Por que não é o mesmo? —Esbravejou. — Por acaso sua palavra é superior à minha? Explique-se agora mesmo, Randall Moore, ou dormirá naquele sofá pelo resto dos seus anos! —Ameaçou.

—Sophia, querida, entende que a vida nesta cidade é diferente...

—O que? — Interrompeu-o.

—Se o visconde, com essa reputação que o precede, passear com a nossa filha ou ela espera em sua casa mais tempo do que é devido, o que vai acontecer?

—Pelo menos eu prevejo que não acabará enterrado abaixo da terra — declarou ela solenemente.

—Não se importa com a reputação da sua filha? —A repreendeu.

—Acaso não sabe a reputação que tem? —Contra-atacou.

—Por favor... não discutam por minha causa —disse Anne, que entrou na sala sem que seus pais a ouvissem.

—Não é uma discussão, querida — disse Randall, caminhando para ela. Ele a abraçou com força, beijou-a na testa, colocou as mãos em seus antebraços e lentamente retirou. Sua mãe fez um acordo com o visconde e não me pareceu apropriado.

—Por quê? —Anne queria saber.

—Porque eu não sei o que pretenderá. —Explicou —Esse homem é um Bennett. Sabe que fama tem todos àqueles que levaram esse nome?

—Não confiou a ele a tarefa de me levar em seu navio? —Soltou Anne, defendendo o homem que aparecia em seus sonhos.

Randall ficou pálido, engoliu em seco, virou-se para Sophia e disse:

—Toda sua. Tenho certeza que no final...

O médico não pôde terminar a frase porque alguém bateu na porta. Os três se viraram e olharam para ela, esperando pelo aparecimento de outra das filhas que teriam ido até lá pelas vozes. No entanto, a pessoa que apareceu na entrada foi Shira.

—Senhorita... Senhorita... —ela tentou dizer, mas as palavras não saíram. A única coisa que podia fazer era estender o envelope que tinha nas mãos para a deles.

—Shira? —Perguntou Sophia ao vê-la tão inquieta. —O que ocorre? Por que está tão nervosa?

—Um... um servo acaba de me dar essa missiva e está endereçada a senhorita Anne — informou.

—Quem mandou? —Randall exigiu saber caminhando em direção à criada.

—Tem o selo do visconde de Devon —esclareceu Shira.

E nesse momento Anne notou que a sala começou a girar em torno dela. O visconde estava se dirigindo a ela? Por quê? O que queria? Falaria sobre o acordo que fez com sua mãe? Teria pensado melhor e rejeitado?

Com as mãos trêmulas, ela avançou em direção a Shira antecipando seu pai, pegou o envelope, aproximou-se de um dos assentos e, sem que seus pais pudessem se separar dela nem um único passo, abriu-o:


Cara senhorita Moore:

Estou lhe escrevendo pessoalmente para indicar que, depois do que foi acordado com sua mãe, encontrei a melhor maneira de obter nosso acordo. Peço-lhe que apareça amanhã em minha casa às doze horas. Espero que apareça com uma acompanhante. Não quero difamar seu bom nome. Prometo que comentarei, com mais detalhes, o plano que elaborei.

Uma cordial saudação

Logan Bennett, visconde de Devon.


Anne leu a carta várias vezes e depois deu aos seus pais para que eles pudessem descobrir o que ele havia escrito sem ter que sentir a respiração deles na nuca. Seu coração batia tão rápido que, novamente, queria sair do peito. Agarrou a saia do vestido com força, impedindo-os de descobrir o tremor de seus dedos. Em pessoa. Ele exigia sua presença. Falariam sobre o acordo, sobre o plano. Mas... seria capaz de ouvi-lo antes de desmaiar? Teria a coragem de se manter de pé sem perder sua força?

—Deve comparecer —disse Sophia, devolvendo a carta. —Amanhã se apresentará em sua casa acompanhada por Mary.

—Acha que é conveniente? —Perguntou levantando o rosto, que empalideceu depois de descobrir o que estava escondido na missiva.

—Sim —disse Sophia sem hesitação.

—O que acha pai? — Em seus olhos mostrava uma súplica. Até agora, toda vez que olhava para Randall dessa maneira, sentia pena dela e dava outra alternativa. No entanto, o brilho de seus olhos castanhos lhe disse que ambos concordaram que deveria fazer essa loucura.

—Deve ir —Randall disse sem pensar por um único segundo.

—Claro que ela deve ir! — Sophia repetiu com autoridade. —Ele deu sua palavra e eu dei a minha —acrescentou.

—Nesse caso... se os dois concordarem, eu vou —disse Anne, dobrando a carta em porções tão pequenas que poderia escondê-la dentro de sua palma.

—Espero que seja um bom acordo —interveio Randall.

—Posso negar se o que me oferecer não me convier? —Soltou Anne, levantando-se bruscamente.

—Claro! —Sophia respondeu rapidamente. — Se o que sugerir não for do seu agrado, pode rejeitá-lo imediatamente.

—Obrigada! —Agradeceu.

—Agora, avise as suas irmãs que vamos jantar antes das cinco. Vamos conversar sobre o que elas fizeram com o pobre Sr. Giesler, com o seu pai e o que acontecerá amanhã. Além disso, devemos escolher as palavras certas para informar Mary que amanhã irá acompanhá-la —Sophia comentou calmamente.

—Poderia acompanhá-la Josephine com sua arma —disse Randall. — Desta forma, a honra de nossa filha não... —Ele ficou em silêncio, pensando no nome que sua mulher dissera, virou-se para ela, com os olhos arregalados e soltou: — Disse Sr. Giesler?

—Sim, querido, eu disse isso — falou caminhando para ele.

—Disse que algo aconteceu com o Sr. Giesler e nossas filhas? —Perseverou.

—Algo... Sim. Algo aconteceu... —disse evasiva.

—E.... o que é esse algo, Sophia? Sabe que ele não é um homem comum, certo?

— Não? —Perguntou inocentemente.

—Não, ele é um futuro barão alemão —o médico determinou muito seriamente.

—Isso explica a cor do seu cabelo, seus olhos e sua pele... —continuou misteriosamente.

—Mas... o que aconteceu na minha ausência? —Randall perguntou espantado.

—Anne, por favor, procure suas irmãs e informe-as do que vamos fazer enquanto eu explico ao seu pai o que aconteceu com.... lorde Giesler? —Retrucou, agarrando o braço dele.

—Sim, mãe — respondeu Anne.

—Por favor... não me deixe em suspense, Sophia. Sabe que posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento —disse Randall enquanto sua filha se afastava deles.

Anne caminhou em direção à saída tentando controlar o tremor de seu corpo. No dia seguinte, ela apareceria na casa do visconde. Eles ficariam sozinhos, falariam... O que ele teria pensado em fazer com ela? Como ele tinha idealizado um plano tão rapidamente? Depois de fechar a porta, apoiou as costas sobre ela, olhou para o papel dobrado e suspirou. Seria uma loucura e sabia disso. A ideia de ficar com aquele homem era uma insensatez porque não conseguia parar de pensar no que os dois faziam em seus sonhos. Ela não seria capaz de respirar ao seu lado, ou ficar sã, ou... nada. Levou a mão esquerda aos lábios e acariciou-os. Ainda sentia um toque imaginário, um beijo inexistente, uma sensação e um calor sonhado. Porque tudo era irreal, como o que via à noite...

—O que aconteceu lá? —Perguntou Elizabeth quando a viu daquela maneira tão estranha.

—Vamos! —Disse, pegando sua mão e puxando-a para as escadas que levavam para o quarto.

—O que há de errado, Anne? O que está acontecendo? —Insistiu Eli intrigada.

—Quero que me conte tudo o que sabe sobre o irmão de Natalie.

—Sobre o Marquês?

—Não, sobre o visconde de Devon —esclareceu quando se viraram para o corredor da esquerda.

—Oh, meu Deus! —Elizabeth exclamou apavorada. —Esse homem não é adequado! É um libertino! Um homem que não é capaz de amar qualquer mulher porque não tem coração!


XI


Que pudesse conciliar o sono facilmente estava descartado...

Uma vez que Mary apagou a lamparina na mesa, depois das três horas da manhã, Anne esperou silenciosamente que caísse no sono. Não queria que a irmã descobrisse que ainda estava acordada porque se sentaria na cama e tentaria falar sobre todos os pontos negativos que a reunião teria, e não estava disposta a ouvir outro sermão sobre a sensibilidade feminina. Tudo o que queria era se acalmar e assimilar as repercussões que teria após a convocação inesperada.

Quando ouviu os roncos singulares de Mary, se levantou e foi até a janela. Ao afastar a cortina, observou a luz da lua iluminar os arredores da sua casa, dando-lhe uma aparência bastante serena. Colocou a mão direita no vidro, sentindo o frio do lado de fora na pele. Sem esperar que a palma voltasse a temperatura do resto de seu corpo, colocou-a na camisola, logo acima do peito, para aplacar a batida do coração, mas não conseguiu. Pelo contrário, ia contra a sua dona e, como vingança, vibrava com mais força. Desconcertada por essa reação incomum, Anne pressionou a testa contra a janela e suspirou. A incerteza de descobrir o que o visconde queria dela tornou-se mais angustiante e seu pesar aumentava à medida que percebia que no dia seguinte estariam juntos... de novo.

Seu corpo, pensando sobre essa reaproximação, estava cheio de tanta energia que poderia sair do quarto e passar por todas as ruas da cidade sem se cansar. Era como se, das profundezas de seu ser, aparecesse uma força estranha que tentava viver ou sentir tudo o que nunca havia vivido ou sentido. Mas devia controlar essa emoção tão explosiva. Não podia se deixar levar de novo por sentimentos impulsivos. Cometeu um erro no passado, aprendeu com ele e agora se tornara uma mulher muito diferente.

Olhou para fora, fixando os olhos na copa da árvore mais alta do jardim. Balançava de maneira semelhante àquela que via em seus sonhos. Foi assim que tudo começou, com a chegada de um pequeno sopro de ar que fazia as folhas das árvores e as chamas da fogueira se moverem. Então tudo se apagava e até mesmo o canto parava para dar lugar à figura masculina mais perfeita que já conhecera. Desviou o olhar do lado de fora e focou em suas mãos. Elas a pinicavam e o mantinham inquieta, como sempre acontecia quando se colocava diante de uma tela em branco. O que estavam tentando lhe dizer? Queriam pintá-lo? Mas... como poderia capturar o poder e o fascínio que ele mostrava em uma pintura? Com um leve movimento, sentou-se no peitoril da janela, colocou a carta dobrada sobre a camisola branca e agarrou-se aos joelhos para continuar apaziguando o tremor das mãos segurando-as em si mesma. Mesmo assim, continuavam se movendo, inquietas, agitadas, pedindo, com tremores leves, que abandonasse o quarto, se trancasse na sala de pintura e não desperdiçasse mais tempo.

Respirou fundo, olhou para fora e focou na imagem do homem que despertara nela um instinto tão selvagem. Não podia fazer tal loucura. Não podia pintar o rosto daquele homem. Mas sua mente lançava uma batalha contra essa persistência. Ela gritava que deveria se render ao desejo e não se opor mais. Mas... qual seria a primeira coisa que pintaria sobre ele? Seus ombros? Os braços fortes? Não, isso não era tão importante. Depois de pegar um carvão e escolher a tela certa, daria forma àqueles olhos puros, àquele olhar sincero. Marcaria as sobrancelhas e os cílios escuros e deixaria os círculos de sua íris em branco, para dar-lhe o tom de céu azul quando terminasse com o rosto. Enfatizaria a forma de coração que seus lábios apresentavam, marcaria o queixo masculino, iria embelezá-lo com aquela espessa barba negra e, assim que a mandíbula mostrasse sua masculinidade, continuaria com o cabelo. Como gostava mais? Com o cabelo solto, movendo-se com o ritmo daquele vento que aparecia em seu sonho, ou como o usava nas duas ocasiões em que o viu; amarrado em um laço? Anne pressionou a testa no vidro novamente e uma cerca de névoa quente, devido a sua respiração, foi refletida nele. Ergueu a mão direita sem estar consciente, colocou a ponta do dedo indicador na direção daquela leve marca de vida e desenhou o contorno dos olhos em que pensava. Ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para admirar o que tinha feito e, de repente, algo nela mudou. Poderia chamá-lo de entusiasmo? Ou melhor, se tratava de uma loucura? Anne não podia definir essa nova atitude que tomou conta dela, porque nunca havia sentido nada parecido. Sem pensar, se colocou de pé no parapeito da janela, sem lembrar que tinha sobre os joelhos a carta do visconde, e que terminou descuidadamente no chão e começou a expelir todo o vapor que podia pela boca para continuar desenhando. Durante pouco mais de uma hora, aquela janela se tornou a tela mais apropriada para ela. De cima para baixo, da direita para a esquerda, sua respiração se tornou a tinta de cor que usava para o trabalho, seu dedo o pincel e os pulsos, as borrachas para apagar o que não era preciso. Quando terminou, quando não havia sequer um pequeno detalhe para pintar naquele rosto, colocou os pés no chão, caminhou para trás e admirou seu trabalho. A lua brilhava tanto que parecia um farol na janela. Seus raios atingiram o vidro, cruzando apenas as áreas que ela não havia desenhado. Os olhos, as sobrancelhas, o nariz, os lábios, a barba e os cabelos que finalmente pintou livres e agitados pelo vento, se apresentava com tal realismo que parecia respirar e observá-la em silêncio. Sem ser capaz de desviar o olhar daquelas linhas perfeitas, ela colocou as mãos no peito e sentiu como ele batia sem controle.

—Me parece tão... vivo, tão ... meu, que agora tremo de medo — ela sussurrou. Mas não posso...

Um ronco mais alto do que o habitual fez os lábios de Anne apertarem e se virou para Mary. Aqueles encrespadores na cabeça não permitiam que ela respirasse corretamente e, toda vez que se movia, bufava alto. Depois de confirmar que ela não tinha acordado, se virou para aquela imagem que parecia persegui-la e olhou para ela por um longo tempo. O que ele iria querer dela? O que pensava dizer a ela? Por que ele aparecia em seus sonhos? Por que seu corpo reagia estranhamente desde que apareceu em sua vida? Seria a maldição ou o medo de que ele tivesse o mesmo futuro que seus dois pretendentes? Enquanto tentava encontrar respostas para todas as suas perguntas, se abaixou, pegou a missiva, voltou para a cama, cobriu-se com a colcha e adormeceu olhando para aquele rosto.


***


—Vamos! Hoje não é um bom dia para descansar! —Sophia exclamou depois de abrir a porta e encontrar suas filhas dormindo pacificamente. —Há muitas coisas para fazer antes de visitarem o visconde —acrescentou enquanto caminhava até a janela.

Anne abriu os olhos muito devagar, com certa preguiça. Era a primeira vez, em muito tempo, que havia descansado dessa maneira. E nem sonhara com o visconde! Essa ideia a perturbou tanto que se sentou rapidamente na cama. O que diria a sua mãe quando perguntasse sobre o sonho? Devia mentir para ou contar a verdade? Mas sua ansiedade mudou de direção quando descobriu que ela estava indo em direção à janela onde tinha pintado seu rosto. O veria através da luz do dia? Como pode ser tão descuidada que não a limpou antes de ir dormir?

—Nem pense em descer sem se arrumar —disse Sophia a Mary depois de puxar a cortina da janela da esquerda, sem perceber por que a outra não estava em seu lugar. Se virou para a segunda de suas filhas e continuou: ?Viu o que aconteceu ontem e não estou disposta que suas irmãs fiquem alteradas novamente por sua causa. Hoje é um dia especial para a família e nada deve nos preocupar, exceto a reunião de Anne com o visconde.

Ao ouvir essa afirmação, Anne notou como seu estômago apertava e como seu coração batia tão rápido que os ecos dessas palpitações retumbavam em sua cabeça.

—Está preocupada, querida? — Perguntou depois de afastar bruscamente os lençóis de Mary. Não fique. Sabe que seu pai e eu iremos apoiá-la em qualquer decisão que tome.

O rosto de Sophia, apesar dessas palavras, mostrava desapontamento. Não duvidava da sabedoria de sua filha, mas tinha certeza de que o visconde se dispusera a oferecer-lhe algo que não podia ser negado.

—Levante-se imediatamente! —Gritou para Mary quando, ao sentir o frio em seu corpo, alcançou o pé da cama e se cobriu novamente.

—Cinco minutos a mais... —pediu depois de colocar o travesseiro naquele ninho de bobes de metal.

—Eu disse a Foderhy para trazer uma xícara de café bem forte —explicou Sophia, tirando os lençóis novamente. —Espero que seja o suficiente para que se mova.

—Nem pense mãe —Mary começou a dizer enquanto se espreguiçava. — Se me fizer beber mais café do que o habitual, meu corpo reagirá de maneira contrária a que quer.

—Sabe o que está tentando me dizer? —Perguntou a Anne enquanto arregalava os olhos.

—Não —disse a primogênita, colocando os pés no chão. — Mas certamente a resposta estará no livro que ela guarda debaixo da cama.

Quando Mary ouviu essa declaração, se ergueu rapidamente do colchão e foi à sala de banho. Não seria apropriado, pelo menos dessa vez, que sua mãe lesse o título do livro que estava escondendo. O que pensaria dela quando descobrisse que pegara um dos romances de Elizabeth? Que ficara louca! E talvez estivesse certa, porque nem ela sabia por que, depois do confronto com aquele maldito cavalheiro, queria encher a cabeça com bobagens.

—Não demore —Anne disse antes que sua irmã fechasse a porta.

—Não se preocupe, só quero esvaziar minha bexiga para que possa enchê-la novamente com o que nossa mãe determinou que eu preciso.

—Mary Moore! —Sophia disse, colocando as mãos na cintura. Está zombando da mulher que lhe deu vida? Que a levou em sua barriga durante uns agonizantes nove meses e meio?

—Nove meses e meio? —Ela perguntou, levantando as sobrancelhas. —Posso confirmar que sou inteligente desde então. Sabia que o mundo era tolo o suficiente para uma mulher tão instruída quanto eu nascer nele ? hesitou antes de fechar a porta.

—Não sei o que fazei com ela! —Exclamou Sophia com raiva. —Ninguém pode parar essa língua tão insolente!

—Não se aflija, mãe. Quando o homem de quem Madeleine falou aparecer, usará sua língua para outra coisa —disse Anne divertida.

— Não diga bobagem, Anne Moore! Sua irmã não é como você!

E nesse momento se sentiu a mulher mais estúpida do mundo.

—Dessa vez será Shira quem a vestirá. Disse a ela que vestido deverá usar.

—Como? — Perguntou atordoada. — Não confia na minha escolha?

—Claro que não. Ultimamente mostra uma imagem bastante inapropriada. Então, a partir desse momento, aviso que, se levar uma peça de roupa sequer da cor laranja, abrirei seu armário enquanto estiver fora e queimarei tudo o que me causar repulsa —disse severamente.

—Senhora... —a criada falou justamente quando Anne estava planejando dizer que não deveria ameaçá-la ou projetar nela a fúria que Mary criou.

—Vá em frente —disse a Sra. Moore.

Sophia foi até a porta quando Shira começou a procurar o vestido no armário, olhou para a filha, depois para a donzela e apontou:

—Que ela não arrume o cabelo sozinha. Eu quero que a penteie e não faça aquele coque absurdo que insiste em usar. Deixe alguns fios em seus ombros, mas não esconda seu rosto.

—Sim, senhora —Shira confirmou, pegando o vestido escolhido e caminhando para a moça.

Anne, quando descobriu o vestido que deveria usar, olhou de lado para a mãe, que estava imóvel na porta, e apertou os lábios para não responder. Por que tinha decidido arrumá-la como se estivesse indo para uma festa? Não estava ciente de que ia mostrar ao visconde uma imagem errônea? Não pretendia seduzi-lo com o decote oferecido por aquele vestido rosa pastel, nem que se distraísse observando alguns cachos tocavam a pele de seus ombros levemente. Ela precisava que ele falasse sobre o acordo, ponderar se estava interessada ou não e sair de lá o mais rápido possível.

—Mary Moore! Saia do banho de uma vez ou queimarei seus livros na lareira da sala! —Sophia gritou ao perceber que estava demorando mais do que prometera.

—Como pode expressar tal heresia? —Respondeu a jovem, abrindo a porta rapidamente.

—Porque sabe que farei —respondeu com firmeza.

—Pelo amor daquele Deus que constantemente evoca! —Mary exclamou, enquanto levava as mãos para os rolos. Hoje não consigo nem urinar tranquila?

—Urin... o que? —Shira perguntou, olhando para a segunda das irmãs duramente enquanto observava como tirava os rolos metálicos de forma inadequada.

—Urinar —Mary repetiu, caminhando até o armário. —A função que alguns seres vivos realizam para esvaziar o que nós contemos em nossa bexiga —ela acrescentou. —As mulheres têm um...

—Nem pense mais em falar sobre esse assunto! —Sophia esbravejou horrorizada. —Não é hora de falar sobre um assunto tão efêmero.

—Disse efêmero? —Mary retrucou, virando-se para a mãe com um sorriso de orelha a orelha. —Oh! O que meus ouvidos captaram? Posso concluir que tudo ainda não está perdido nesta família? —Continuou zombando.

—Mary Moore —Sophia começou a dizer, caminhando lentamente até a sua segunda filha. —Realmente acredita que a inteligência que possui vem do seu pai?

—De quem mais? —Ela respondeu arrogantemente.

—Pois está errada...

—Não tenho tanta certeza. De acordo com alguns estudos que tenho...

Ela ficou em silêncio quando sua mãe levantou um dedo da mão direita.

—Elimine tudo o que tem nessa cabeça teimosa e seja, por uma vez, uma mulher respeitável. Quero que se comporte corretamente na casa do visconde hoje. Se Anne me informar que causou uma briga, usarei todos os meus encantos de mulher para seu pai concordar em excluí-la de suas próximas reuniões médicas —garantiu, colocando as mãos na cintura.

—O papai não aceitará isso —desafiou, apertando os olhos. — Ele, melhor do que ninguém, ama minhas réplicas e não vai querer perder como sua filha erudita destrói qualquer abordagem masculina irracional.

—Acho que não teria tanta certeza. Porque, uma vez que feche a porta do nosso quarto, ele fará tudo o que eu pedir —disse mordazmente.

—Por favor! —Mary disse, revirando os olhos. —Joga com vantagem!

— E? —Sophia insistiu sem reduzir seu tom de voz cruel.

—Não vou demorar mais um minuto! —Afirmou caminhando até Foderhy, a donzela encarregada de atendê-la e que esperava do lado de fora do quarto até que a discussão entre mãe e filha tivesse terminado.

Enquanto Shira ajustava o vestido para Anne, Mary não parou de reclamar sobre como a vida era injusta para ela. Murmurava sobre sua felicidade e sobre a única coisa que precisava para alcançá-la: viver cercada de livros sem que ninguém a interrompesse. Mas Anne mal a ouvia. Estava profundamente envolvida em seus próprios pensamentos. Ficou se perguntando por que sua mãe tentou dar a ela um visual tão elegante e tão diferente do que queria ter. Por que proibiu a cor laranja se sabia que ela amava? Se existia uma tonalidade que pudesse defini-la com exatidão era essa. Não só expressava um caráter alegre, mas também mostrava ao mundo que ela não se importava com a opinião que tinham sobre ela. Ou não era assim?

—Prenda a respiração —Shira pediu a Anne enquanto ajustava os laços nas costas.

— Se achar melhor, pare de respirar por alguns minutos para ver o que acontece —Mary comentou mordaz quando ouviu as palavras da donzela.

—Não preste atenção nela —Anne interveio. —É que ela ainda não tomou o café que nossa mãe lhe prometeu.

—Oh, desculpe-me! —Foderhy disse, afastando as mãos do vestido de Mary e levando-as à boca. —Deixei no aparador do corredor.

—Frio! —Disse Mary, caminhando pelo quarto. —Terei que tomar frio!

—Eu... eu... sinto muito, senhorita Moore —disse a donzela angustiada.

—Não se preocupe, vai tomá-lo de qualquer maneira —disse Anne depois de caminhar até o banquinho em frente à penteadeira.

Agora era a vez do penteado. Shira obedeceria a ordem de sua mãe sem questionar. Então, quando terminasse com ela, estaria pronta para participar para uma festa em vez de ir a uma reunião com o visconde.

—Nós continuamos com a batalha? —Mary perguntou quando ela apareceu no quarto.

Uma hora depois, as duas irmãs saíram do quarto, caminharam lentamente pelo corredor, ainda olhando uma para a outra e, assim que chegaram à escada, mostraram o melhor sorriso quando viram Sophia esperando na porta.

—Nós parecemos adequadas? —Perguntou Mary com certa animosidade: —Ou quer que voltemos para mudar?

—Só precisam de uma coisa —respondeu a mãe, ignorando o comentário mordaz de sua filha: —Esta manhã está bastante fria —disse Sophia depois de abrir a porta e sentir uma leve brisa vinda de fora. —Coloquem seus casacos e peguem seus regalos.

—As luvas vão manter minhas mãos aquecidas —Mary comentou enquanto Shira a ajudava a vestir o casaco. —Se colocar o regalo, vão suar como se estivéssemos no meio do verão.

—Anne? —Sophia perguntou, levantando a sobrancelha esquerda.

—Acho o mesmo que Mary — respondeu.

—Não demorem muito quando saírem da residência do visconde. Como podem imaginar, todos estaremos sem viver até que saibamos o que quer —disse Sophia, afastando-se um pouco da porta.

—Sim, mãe —responderam em uníssono.

Depois que as duas beijaram Sophia na bochecha, foram para fora, onde o cocheiro estava esperando por elas. A primeira a entrar foi Anne e Mary a seguiu depois de um rápido olhar para a entrada da casa e confirmar que a mãe ainda se agarrava à maçaneta da porta, olhando para elas.

—Espero que a reunião seja curta —disse Mary quando o cocheiro atiçou os cavalos. —Porque estou na melhor parte do livro.

—O que está lendo agora, Mary? —Anne perguntou depois de estender o vestido no banco.

—É.... se trata... —Ela hesitou por alguns segundos. — É um artigo sobre os procedimentos antissépticos que o Dr. Semmleweis explicou —mentiu.

Era melhor do que contar a verdade. O que Anne pensaria se ela confessasse que estava lendo Orgulho e Preconceito? Talvez seu coração tenha finalmente despertado daquela letargia a qual o submetera e começasse um discurso sobre o tratamento adequado de um cavalheiro. Então, para não ouvir um assunto tão absurdo, decidiu continuar oferecendo a imagem de uma mulher racional. Nenhuma de suas irmãs deveria suspeitar que, depois de descobrir a reação absurda do cavalheiro loiro de olhos azuis, ela decidiu investigar, cientificamente, sobre a mente dos homens. No entanto, uma vez que foi até a biblioteca e revisou livro por livro todos os acordos científicos sobre o cérebro humano, visitou a seção de livros de Elizabeth e escolheu o que aparentemente, descrevia muito bem seu caráter e atitude do titã alemão.

—E, por que está tão intrigada com esse médico? —Anne insistiu, inclinando-se levemente.

—Porque se estiver certo, muitas doenças que aparecem após o parto podem ser evitadas com um simples ato de limpeza antes de serem atendidas. Segundo sua teoria, há microrganismos em nossas mãos —tirou as luvas e as mostrou para Anne —que podem ser transmitidos, até mesmo por um leve carinho, e se tornarem mortais. Com isso, recomendo que nunca tire suas luvas. Alguém poderia alisar sua mão e envenená-la sem estar consciente —disse sarcasticamente enquanto as cobria novamente.

—Pelo amor de Deus, Mary! Se tiver razão, todos deveríamos cobrir o corpo com uma luva gigante —exclamou Anne, lamentando por perguntar.

—Seria suficiente que as costureiras fizessem peças de roupas que cobrissem nossas cabeças e, como uma dica, elas deveriam rasgar o tecido ao redor dos olhos. Desta forma, poderíamos ver o que temos diante de nós e evitar nos infectar de doenças que...

—Chega! Não continue! Prefiro me infectar com mil insetos desses que diz a cobrir meu corpo com esse tipo de roupa —resmungou antes de desviar o olhar de sua irmã para fixá-lo na janela.

Sua mãe realmente havia escolhido bem ao elegê-la como acompanhante? Bem, estava errada! O que Mary faria depois de ler algo tão absurdo? Rejeitaria a saudação do visconde quando pensasse que seus lábios poderiam transmitir algum tipo de doença? Começaria uma conversa sobre todos os prós e contras que envolveria uma saudação cortês? Anne fechou os olhos e bufou. Sem dúvida, o desastre estava do seu lado. Ela apenas rezou para que o visconde falasse sobre o que pensara antes de expulsá-las de sua residência.

Quando a carruagem parou, ela abriu os olhos e focou em Mary. Esta continuava com o olhar perdido, pensando em algo que a fez relembrar porque apresentava uma cara muito azeda. Sem querer descobrir o que estava causando aquela amargura, ela agarrou o vestido e desceu quando o cocheiro abriu a porta para ela. Então, Mary desceu, e, como ela deduziu, não aceitou a mão do criado porque não usava luvas.

—Por Cristo! —Mary exclamou ao olhar para a casa do visconde. —É linda!

—Como todas as que possuem os aristocratas — disse Anne com desdém.

—Bem, eu passaria muito tempo nessa área do jardim —disse ela, apontando com o queixo para uma gangorra branca colocada ao lado de uma fonte redonda de mármore escuro.

—Com um livro? —Disse a mais velha sarcasticamente.

—Com centenas! —Mary respondeu depois de esfregar as mãos.

Durante a curta caminhada que fizeram da entrada até a porta da frente, ambas permaneceram em silêncio, observando atentamente a residência do visconde. Mas quando elas subiram as escadas e Anne estava prestes a bater para que abrisse, ela se virou para a irmã e disse:

—Se comporte adequadamente.

—Prometi mil vezes que eu vou —comentou desesperadamente. —O que aconteceu ontem não teve nada a ver com lorde Bennett, mas com aquele arrogante e rude Sr. Giesler. Oh, não me perdoe, soube que ele é um barão... bem, lorde imbecil Giesler!

—Só agiu como qualquer pessoa faria em seu lugar ao vê-la daquela forma —disse Anne, repreendendo-a.

—Se lembra que ele me chamou de bruxa? —Mary murmurou, franzindo a testa e cerrando os punhos. — Ele vai engolir suas palavras! Algum dia ele vai engolir essas malditas palavras! —Sentenciou.

—Mary, pelo amor de Deus! — Anne exclamou, revirando os olhos.

—Se Deus existisse, o que eu me recuso a acreditar, me dará a oportunidade de encontrá-lo novamente e farei com que ele pague por toda palavra desdenhosa que me ofereceu — declarou ela solenemente. O único arrependimento que sinto é que não tinha pedras em vez de alguns bobes miseráveis. Eu o teria apedrejado naquele momento.

—O papai a trancará no quarto se tentar assustá-lo de novo.

—Aceitarei de bom grado essa punição, se me permitir encher o quarto com livros que vão apaziguar a minha solidão —disse ela, sorrindo maliciosamente.

—Talvez devesse recusar ler por várias semanas, então aprenderá a se comportar — Anne a repreendeu enquanto pegava a aldrava para chamar.

—Se por acaso sugerir essa opção, vou dizer ao papai que finalmente acredito na ideia absurda da maldição e que a melhor coisa para todos nós é matar dez galos e banhá-la com seu sangue —ameaçou.

—Não se atreveria? — Perguntou, arregalando os olhos.

—Me teste —disse severamente.

—Boa tarde, senhoras. Que desejam? —Kilby as cumprimentou depois de abrir a porta. Primeiro olhou para uma e depois para a outra. As duas mulheres eram muito parecidas, embora uma delas, a que tinha olhos castanhos, mostrasse um semblante mais amável. No entanto, a outra, que tinha belos olhos azuis, exibia uma dureza no rosto mais parecida com um burro do que com uma dama.

—Boa tarde, somos as senhoritas Moore. O visconde nos espera —disse depois de respirar e encontrar alguma calma.

—Entrem, por favor —respondeu o mordomo, afastando-se da entrada. — Se forem amáveis em me dar seus casacos.

—Claro —respondeu Anne, desfazendo os botões.

—Uma manhã fresca, certo? —Kilby perguntou gentilmente às duas mulheres.

—Não tão fresca quanto poderíamos ter se vivêssemos no Polo Norte, mas sim, é um pouco frio para os corpos fracos da aristocracia de Londres —respondeu Mary, incapaz de desviar o olhar da residência do visconde.

—Desculpe minha irmã —disse Anne rapidamente. —Ela odeia o frio e, como pode ver, não senta bem a sua cabeça.

Com esse comentário, Kilby suavizou o rosto e olhou com compaixão para a mais velha das duas irmãs. No entanto, quando Mary ofereceu-lhe o casaco, ele o segurou como se tivesse piolho.

—Se forem gentis em me seguir, o visconde as espera na biblioteca.

E então Mary sentiu mil borboletas se agitarem em seu estômago. Seus olhos brilhavam de emoção e um sorriso cruzou seu rosto. Como seria a biblioteca do visconde? Ele seria um homem culto? Teria lido todos os livros que guardava nas prateleiras? Permitiria que ela lesse enquanto os dois falavam sobre esse acordo? Ela esfregou as mãos, como uma menininha prestes a abrir um presente, olhou para Anne e fez seu sorriso crescer ainda mais.

—Esse visconde parece agradável —murmurou.

—Como pode declarar isso, se ainda não conheceu? —Anne respondeu, estreitando os olhos.

—Apenas ter citado a biblioteca, tem minha absoluta aprovação.

—Mas não disse que odeia homens? Que todos se parecem com jumentos com orelhas curtas? —Murmurou.

—Bem, mas esse parece diferente. Além disso, não procuro um marido para humilhar por causa do meu grande intelecto. Tudo o que quero é uma boa biblioteca para passar o tempo e, se o visconde a possui, estarei encantada em oferecer-lhe a sua mão —sussurrou.

—Mary! —Exclamou indignada em voz baixa. —Isso não posso esconder de nossa mãe!

—Lembre-se dos galos... —lembrou antes de esticar as costas e caminhar serenamente para o lugar mais idílico para ela.


XII


Logan olhou para o relógio de bolso pela sexta vez. Elas estavam prestes a chegar. Andou de um lado para o outro, inquieto, ansioso para vê-la entrar e descobrir o que aconteceria quando se encontrassem novamente. Voltou para a cadeira, sentou-se e pegou a carta que o próprio Moore escreveu para informá-lo de que sua filha, acompanhada por Mary, a segunda das irmãs, o visitaria no horário combinado. Com o papel na mão direita, ele olhou para a porta e sorriu. Desde que recebeu a nota, não conseguiu ficar quieto um único instante. Em menos de dez minutos, elaborou um plano. Um onde ele teria que controlar tudo o que aconteceria quando as duas irmãs chegassem em sua casa. Dessa vez, não deixaria Anne desmaiar na sua frente ou permitiria que a presença de sua irmã o impedisse de descobrir o que passava pela mente de Anne desde que seus lábios tocaram a boca dela. Então pediu a Philip, que ainda continuava em sua casa, saciando a sede que a luta proporcionou, que perguntasse sobre aquela irmã e descobrisse o que a agradava. Se a mantivesse entretida com o que a interessava, ambos poderiam ter um momento fortuito de intimidade para conversar livremente.

Logicamente, depois de pedir o favor, Giesler se recusou terminantemente a cumprir a missão alegando que, aquela mulher, foi quem jogou os tubos de metal e quem causou o maior choque de sua vida. No entanto, depois de ingerir mais dois copos de seu melhor uísque, ele aceitou a encomenda e saiu em busca de respostas. Enquanto isso, Logan começou a concretizar tudo o que aparecia em sua cabeça. Fez com que a cozinheira preparasse doces, na travessa onde estariam as tortas, que adicionasse algumas tâmaras que trouxe de sua última viagem ao Magreb, que pegasse o melhor chá que tinham no armário e comprasse o café mais saboroso de Londres. Ordenou que vários criados decorassem sua casa com as mais belas flores que pudessem encontrar no jardim. Falou com seu criado para que ele mesmo escolhesse e engomasse o traje que melhoraria sua masculinidade. Não parou de organizar, de ter controle total da situação, até o relógio bater oito horas da noite e que um dos criados anunciasse que o jantar estava pronto. No momento em que se sentou e se preparou para servir uma taça de vinho, Kilby lhe disse que a carruagem do sr. Giesler acabava de entrar no jardim. Um sorriso cruzou seu rosto quando entendeu que o desejo de seu servo era antecipar aquela aparição, já que uma vez que ele passasse pela porta da frente, Philip não permitiria que alguém o anunciasse corretamente.

Depois da partida de Kilby, ele se levantou, foi até o móvel de bebidas, encheu dois copos e os segurou nas mãos até que seu amigo aparecesse como sempre, sem pedir permissão. Mas o sorriso que desenhou antes desapareceu ao observá-lo, porque Giesler mostrava um rosto sério, irritado e até ressentido.

?O que descobriu? ? Perguntou, caminhando em direção a ele com os copos erguidos.

Com raiva, Philip se aproximou, pegou o copo, bebeu de um só gole e, como não parecia o suficiente, assumiu o controle do outro e fez o mesmo.

?Verdammte Leute[5]! ? Ele exclamou depois de beber o licor.

?Que diabos aconteceu? Com quem conversou para estar com esse mau humor? ? Logan perguntou.

?Maldita seja! Bastardos malditos! ? Trovejou com raiva indo até a mesa, ignorando a presença de seu amigo.

?O que acontece, Giesler? ? Bennett insistiu, virando-se rapidamente e indo até ele. ? Quão horrível foi? O que eles disseram? Quais informações teve?

?Não gosto de comer comida fria, ? disse Philip, olhando para os pratos. ?Além disso, preciso recuperar um pouco das minhas forças antes de sair daqui e arrancar cabeças, ? ele resmungou.

?Quer me dizer de uma vez o que diabos aconteceu! ? Gritou desesperado.

?Sente-se e vamos conversar com calma. Hoje deve tirar aquela parte sensata da qual sempre fala para me apaziguar, porque senão amanhã terá que me tirar da prisão, ? pediu sem relaxar seu tom de raiva.

Logan, atento às palavras de seu amigo e sem tirar os olhos daquele corpo tão tenso quanto às cordas de um violino, caminhou lentamente até a cadeira, sentou-se e cruzou os braços.

?Com quem conversou? O que foi dito sobre essa irmã para que tenha ficado assim? Alguém reforçou sua teoria sobre o caráter amargo da mulher? Acha que será incapaz de se afastar de sua irmã? ? Considerou com o tom de voz que seu amigo pedira.

?Não tem um caráter amargo, ?Philip murmurou. ? Tudo o que essa jovem possui é uma inteligência sublime.

?Isso não é ruim, é? ? Logan insistiu.

?De acordo com quem... ? ele comentou antes de cortar um pedaço de carne que ele mesmo tirou da bandeja e fatiá-lo como se estivesse rasgando a pele de um adversário. ? Depois de indagar pelas ruas de Londres, consegui falar com a única pessoa que conhece perfeitamente a família Moore, ? anunciou ele, mastigando aquele pequeno pedaço de carne.

?Quem?

?Dr. Flatman, ? ele disse, fatiando o bife novamente.

?E? ? Logan perguntou depois de descruzar os braços e pegar a taça de vinho que havia sobre a mesa.

?No começo se recusou a falar sobre a família Moore porque, segundo ele, uma grande amizade os une. Com isso, tive que esclarecer ao bom médico que não queria interferir na vida familiar de seu colega de profissão, mas que tudo o que queria era saber sobre uma das filhas ? disse ele, depositando o garfo com aquele pedaço de carne no prato. ? Quando o nome da jovem em questão foi revelado, ficou branco como se, de repente, tivesse ficado doente.

?É tão horrível? Das cinco irmãs é mais feia? Tem algum defeito físico? ? Logan perguntou, arregalando os olhos.

?Não! ? Philip respondeu rapidamente. ? Ela não é feia nem tem defeitos! É verdade que não tem a beleza da pequena Elizabeth, mas seu corpo é tão... Como eu estava dizendo ? mudou de assunto rapidamente ao lembrar novamente as curvas de Mary sob a camisola ? o bom médico ficou atordoado ao ouvir o nome. Quando se recompôs, me informou que, se eu estava procurando por uma esposa, ele tinha duas filhas adoráveis que superavam a segunda do Sr. Moore em beleza.

?Achou que estava procurando por uma esposa? ? Logan soltou rindo.

?Isso mesmo. Não me ofereceu algo para saciar minha sede, mas sim algo para me matar antes de sair de sua casa ? Philip explicou seriamente.

?O que mais?

?Depois de supor que minhas intenções estavam longe de encontrar uma esposa para distorcer minha vida, gentilmente me convidou para me retirar da casa porque, de acordo com seus princípios morais, não podia falar sobre qualquer família em Londres, ? disse ele com mordacidade.

?Mas... não me disse que falou com ele?

?Realmente falei.

?Como o fez mudar de ideia? Não o ameaçou, não é? Sabe que não posso tolerar...

?Não o ameacei, ? disse Philip. ? Tudo que fiz foi tirar do bolso a bolsa que me deu antes de sair.

?E ele aceitou o pagamento? Não se sentiu humilhado ao ver que pagava pela confissão? ? Ele perguntou.

?Humilhado? Eu não definiria isso assim... ?murmurou sarcasticamente. ? O bom homem empilhou as moedas em uma pequena montanha, abriu uma das gavetas de sua mesa e as colocou dentro enquanto sorria para mim muito feliz.

?Bem, todo mundo sabe que sua esposa é uma mulher muito volúvel e tenho certeza de que com a soma pagará algumas contas, ? argumentou Logan antes de tomar um pequeno gole da bebida.

?Eu não ligo para onde vai o pagamento! ? Exclamou, irritado novamente. ? Mas juro por minha honra que esse homem não cuidará da vida de nenhum membro da minha família. Ele não possui um único valor moral daqueles que declara e podem dizer tudo o que deseja se tocar um bolso de sua jaqueta. Rato podre, bastardo! ? A raiva atacou novamente.

?Philip, por favor, concentre-se na conversa que teve e não pense mais sobre a natureza imoral de um médico. O que ele disse sobre ela? Que informação conseguiu para entrar em minha casa com essa amargura? Eu só o vi desse jeito sanguinário quando uma de suas amantes rejeitou seus encantos, ? ele comentou ironicamente.

?Tenho que confessar que preferiria ser rejeitado por mil mulheres do que permanecer impassível após a descoberta, ? ele murmurou.

?Mas... quer me contar de uma vez o que aconteceu? Talvez tenha descoberto que as pessoas acham que ela também é amaldiçoada? - Logan perguntou.

?Não, felizmente para ela, sua maldição não tem nada a ver com matar seus pretendentes, de fato, parece que nenhum homem se atreveu a cortejá-la, ? disse ele sarcasticamente.

?Por sua irmã?

?Não, por ela mesma, ? ele disse. Pegou a garrafa de vinho, tirou a rolha com os dentes e encheu a taça em frente ao prato. ? O honorável médico me explicou que a segunda filha de Randall Moore tem uma mente tão brilhante que assusta o intelectual mais destacado de Londres.

?Por Cristo! ? Exclamou Logan, aliviado. ? Esse é o mistério? É por isso que vem tão alucinado? Deve ser muito difícil entender que a única mulher que rejeitou sua presença tem uma mente formidável ? Logan disse zombando.

?Realmente acredita que estou com medo de uma mulher inteligente? ? Ele perguntou, levantando as sobrancelhas loiras. ? Porque se a resposta for sim, está muito enganado. Depois de descobrir o que é, quero saber ainda mais o que está escondido debaixo de todo aquele cabelo.

?Por Cristo! ? Logan disse espantado. ? O que descobriu sobre ela para que esse estranho interesse tenha crescido?

?De acordo com Flatman, essa moça acompanha seu pai em todas as assembleias que os médicos celebram uma vez por semana. Ele me contou que debate energeticamente princípios médicos que leu em diferentes artigos ou manuais. Adquire um caráter tão correto e firme que destrói qualquer declaração errônea sobre princípios médicos. ? Depois dessas frases, ele tomou um longo gole de vinho, se recostou na cadeira e olhou para Logan sem piscar. ? Ele também me revelou que na última reunião vários jovens estudantes tentaram refutar um tópico sobre uma nova doença e ela os silenciou expondo todo o conhecimento que tinha sobre o assunto.

?Interessante... ? ele murmurou, tocando o queixo. Não achava que uma de suas filhas tivesse herdado a habilidade do Sr. Moore e que ele permitisse que ela falasse livremente na frente de seus companheiros. Embora seja compreensível. Viu como meu irmão trata Evah. Parece que a sociedade está finalmente mudando em relação às mulheres.

?Nem todo mundo pensa como seu irmão, ? disse ele cruzando os braços. ? Mas é verdade que o Dr. Moore é muito especial e mantém um tratamento digno de elogios. Aparentemente, pai e filha visitam pacientes de bairros pobres, aqueles que não podem pagar sequer uma mísera massa de pão. De acordo com Flatman, Moore permite que sua filha os ajude. E sabe o que eles pensam dela?

?Não.

?Que é maravilhosa, que é a mulher mais benevolente do mundo e que eles não sabem como agradecer pela solidariedade que ela demonstra ao ficar com eles e curá-los.

?Pelo que diz, a segunda filha do Sr. Moore é uma mulher admirável. Muitas pessoas nem sequer poderiam pisar na rua onde vivem essas pessoas pobres, ? disse Logan, sem tirar os olhos do rosto de Philip, que cada vez ficava mais sombrio.

?Essa bondade teve consequências... ? Ele respirou fundo, franziu a testa e continuou com uma voz rouca. ? Outra coisa que o Sr. Flatman me contou é que um pequeno grupo de adversários masculinos foi criado para tentar humilhá-la toda vez que acompanha o pai nas assembleias.

?Imagino que muitos homens não irão gostar de encontrar uma mulher com esse tipo de intelecto e bondade, ? disse Logan, observando todas as expressões de seu amigo.

?Costumam rir dela. Zombam de seus conhecimentos e a recriminam por estudar tanto para não ser nada na vida. Os próprios cretinos aconselham que pare de ler e se concentre em encontrar um marido para sustentá-la! ? Ele murmurou. Se serviu de vinho novamente e bebeu em um só gole. ? Flatman foi bem discreto ao falar das opiniões que outros médicos têm sobre Mary. Mas antes de sair, me confessou que, se alguma vez adoecesse, não hesitaria, nem por um momento, em estar sob seus cuidados.

?Então, ela tem minha absoluta admiração, ? disse Bennett, levantando o copo para brindar. No entanto, ele ficou com o copo levantado porque Philip não aceitou o brinde.

?Lê tudo o que cai em suas mãos, embora prefira livros que possam fornecer mais treinamento em medicina ? continuou olhando seu amigo com desconfiança.

?Bem, vou encontrar todos os livros sobre ciência e medicina da minha biblioteca e colocá-los diante de seus olhos, ? disse Logan, abaixando o copo sobre a mesa. ? Quer me dizer mais alguma outra coisa? Porque eu posso ler no seu rosto que tem muitas coisas para me dizer sobre isso.

?Não. A vida de Mary é bem simples. A única coisa que vê no meu rosto é a raiva que gerou em mim, descobrir que a maioria dos homens que moram nessa cidade são idiotas completos. Não poderiam ouvi-la? Tanto ódio pode ser causado pelo fato de que uma mulher sabe como usar a cabeça para algo mais do que usar um bom penteado? ? Philip disse, apertando a mandíbula.

?Bem, talvez, como me disse quando cheguei esta manhã, o mau humor dela também ajudou a descrevê-la dessa maneira.

?Isso não explica por que eles desejam humilhá-la e, sobre o que comentei de Mary esta manhã, esqueça. Tenho de lembrá-lo de que eu invadi sua privacidade e ela me recebeu como eu merecia. ? Ele a defendeu.

Seus olhos mostravam tanta raiva que Logan permaneceu em silêncio. Era verdade que Philip adorava mulheres e as protegia sempre que tinha oportunidade. Mas sempre fez isso com um objetivo: deitar com elas. No entanto, dessa vez era diferente: Mary Moore nem mesmo estava presente para ver como a ira de Philip apareceu quando descobriu que ela foi humilhada por outros homens, nem ela cairia em seus braços ante um ato de proteção contra uma donzela em perigo. Fosse o que fosse, seu amigo tinha mudado drasticamente seu parecer depois de descobrir quem era a segunda filha de Randall Moore.

?O que pretende fazer? Como pensa separar Mary da irmã? ?Philip perguntou a Logan, depois daquele silêncio em que só ouviu como respirava profundamente.

«Tenha cuidado, pensou Bennett, ele acaba de chamá-la, pela quarta vez, pelo primeiro nome, e isso não é comum em Philip. É melhor medir suas palavras, se não quiser ver como o ataca com o garfo que estava prestes quebrar».

?Só preciso que ela me deixe ficar algum tempo sozinho com a sua irmã, ? ele o informou calmamente.

?Como vai conseguir essa intimidade? ? Ele perguntou, apertando os olhos claros.

?Usando as informações que me deu, ? ele continuou em uma voz relaxada. ? Eu as receberei na biblioteca, um lugar que... Mary vai adorar. Durante essa noite procurarei todos os livros que possam interessa-la e, se eu não errar, quando passar pela porta e descobrir esses volumes, pedirá permissão para revisá-los e lê-los. Quando eu aceitar o seu pedido, vou levar Anne até a minha escrivaninha e lá estaremos longe de sua irmã para falar com alguma paz de espírito.

?Bom, ? disse Philip, levantando abruptamente, como se estivesse com pressa para sair. — Espero que a trate apropriadamente.

?Claro, antes de tudo sou um cavalheiro! ? Logan exclamou com raiva. ? Quando Anne sair por aquela...

?Não estava me referindo a ela, mas a Mary. Espero que não a humilhe como todo mundo faz, ? declarou ele, colocando as mãos sobre a mesa.

?Confie em mim, Philip. Não farei nada de errado com nenhuma delas, ? ele disse solenemente.

?Perfeito, eu tenho sua palavra. Agora, se me der licença, vou descobrir quem são esses homens que querem degradar mulheres como Mary e fazê-los ver a razão, ? ele murmurou.

?Não vai querer lutar com todos aqueles que desprezaram a senhorita Moore, certo? Porque deveria começar batendo em si mesmo. Quero lembrá-lo novamente que esta manhã...

?Não sou como eles, nem queria insultá-la! ? Exclamou Philip. ? Nunca humilharia uma mulher que dedica sua vida a cuidar da saúde dos outros! Quem acha que eu sou, Bennet?

?Está bem... ? Logan disse rapidamente, confirmando suas suspeitas hipotéticas. ? Tenha uma boa noite ? disse em despedida.

?Vou tê-la quando eliminar a praga de ineptos, ? disse ele antes de virar para a porta e sair deixando para trás uma trilha tão sombria que causava arrepios.

Logan se levantou quando ouviu o som de uma carruagem entrando em seu jardim. Correu para a janela, cuidadosamente afastou a cortina e os espiou até pararem na frente da entrada. Animado, ansioso para vê-la chegar, voltou ao seu lugar, colocou alguns papéis à sua frente, como se revisse algo interessante, e tentou controlar a respiração agitada, por poder admirá-la novamente. Tudo devia seguir de acordo com o plano para que nada os perturbasse. Sua casa, a comida que haviam colocado em sua mesa, para o caso de elas não terem tomado o café da manhã, os livros, para que a irmã desse a ele a intimidade que desejava ter, até ensaiara o tipo de voz que ofereceria para não a assustar. Já agiu assim com suas amantes? Tomou o cuidado de se preparar para um ambiente descontraído e confortável? Alguma delas lhe causou aquele estado de excitação que Anne provocava? Não. Absolutamente não. Em primeiro lugar, nenhuma delas fazia seu coração bater em um ritmo tão desenfreado e ele não queria fazê-las se sentirem em casa. Para não mencionar o trabalho que teve para fazer sua casa parecer diferente. A única coisa que as mulheres que passaram por sua vida causaram nele, até agora, foi a ansiedade da paixão que viveria instantes depois. No entanto, Anne era diferente. Não preparou tudo para levá-la para o quarto. Seu único objetivo era contar sobre o plano que elaborou para colocá-la no lugar que merecia e, ao fazê-lo, buscar respostas para as perguntas que surgiram em sua mente. Uma vez que ele as encontrasse e fosse a hora de Anne se tornar uma mulher adequada para a sociedade, ele a deixaria ir, ficaria longe dela e permitiria aos outros cavalheiros a oportunidade de seduzi-la.

A felicidade de ver isso acontecer começou a se dissipar. A ilusão de tê-la por um tempo ao seu lado transformou-se em raiva. Como seria ficar em segundo plano? Como ele agiria quando se tornasse uma mera testemunha dos truques que uma multidão de cavalheiros planejaria para fazê-la se apaixonar? Ele seria capaz de não se incomodar quando a visse dançando com outros homens? Será que seria impassível quando ouvisse as risadas de paquera que Anne daria a eles? O que faria se um deles se atrevesse a beijá-la, tocar aquela mão que ela deslizou em seu rosto e acariciou?

Então, bastou imaginar que outro homem sentiria os lábios que ele beijou e tocaria aquela mão que ela levou a sua bochecha, para a raiva se apoderar dele fazendo seus olhos azuis ficarem negros.

?Milorde? ? Kilby disse depois de abrir a porta.

?O que?! ? Ele gritou de maneira inadequada.

E depois daquele rude tom de voz todo o esforço que ele fez, durante a tarde e à noite anterior para que ambos permanecessem calmos, foi eliminado de uma só vez.


XIII


Logan estava tão rígido e pálido quanto uma das esculturas brancas de marfim que adornavam a entrada da biblioteca. Ele permaneceu perplexo e mudo por alguns minutos. Durante esse tempo de silêncio, olhou para a expressão nos olhos cinzentos de Kilby e viu a mesma confusão neles. Por que diabos agiu de uma maneira tão brusca? Nunca ficou bravo com seus servos. Ele os tratava como parentes, os considerava pessoas como ele, mas agiu instintivamente ao pensar que outros homens tentariam seduzir Anne. Todo o seu domínio desapareceu e surgiu uma falta de controle que o transformou em uma besta sedenta de sangue. Quanto ela poderia significar para ele? E por quê? Por que sentir algo estranho com apenas dois míseros beijos? Ou talvez a resposta estivesse na visão que teve quando a tocou. O tinha enfeitiçado? Estaria sob a influência de um feitiço? Apertou a mandíbula e os punhos, aumentando a raiva que havia brotado. Não se tratava de magia ou feitiço. O que sentiu por dentro foi... ciúme! «Eu não posso ficar sem ela, - ele lembrou as palavras de seu irmão. - Toda vez que ela sai do meu lado, percebo como minha alma deixa de ser completa. Sou possessivo, egoísta, ciumento e dominador, mas Evelyn sabia disso desde o momento em que a descobri naquele vestido vermelho. Ela é minha, só minha, até que eu pare de respirar ».

Logan abriu aqueles dedos rígidos que haviam formado dois punhos duros e os esfregou em seu rosto com desespero. Ele não se parecia em nada com seu irmão. Sua situação com aquela mulher era diferente: Anne não pertencia a ele, não tinha nada com ela, exceto o acordo que iam fazer. No entanto, a imagem mental que sua mente oferecia de outros cavalheiros tentando cortejá-la, o levou a uma extraordinária loucura. Por quê? Alguma vez se importou tanto com uma mulher para que fosse dominado pelo ciúme? Não, nem mesmo com Rose havia acontecido. Conhecia as escapadas amorosas que a viúva fazia quando ele estava navegando e o que acontecia quando desembarcava de uma longa viagem? Ele ficava com raiva? A censurava por não o respeitar? Não. Nem uma vez ele mencionou isso. A única coisa que acontecia, quando ele chegava a Londres, é que ocupava a cama que outros homens tinham visitado durante sua ausência, não se importando com nada além de satisfazer o prazer sexual de que seu corpo precisava.

?Milorde, as Senhoritas Moore chegaram, ? informou Kilby, percebendo que seu senhor era incapaz de falar, um ato tão impróprio nele.

E todo o controle que insistiu em reaver foi reduzido a nada quando confirmou que elas estavam no corredor e que ouviram sua explosão.

?Desculpe minha reação, Kilby, foi totalmente inapropriada, ? disse ao seu mordomo enquanto se levantava da cadeira. ? Se puder ter a gentileza de fazê-las entrar. Irei recebê-las agora mesmo, ? acrescentou enquanto caminhava ao redor da mesa.

?Claro, ? disse o mordomo.

O empregado se virou devagar e olhou para o lugar onde as jovens estavam paradas. Seus corpos estavam tão rígidos quanto um tronco de árvore e seus rostos estavam pálidos. Ele deu vários passos em direção a elas, esboçou um sorriso, minimizando o que aconteceu e falou no tom mais caloroso que poderia oferecer.

?Podem entrar, o visconde as atenderá como haviam combinado.

Mas nenhuma delas entrou na sala, estavam presas no chão que haviam pisado antes de ouvirem o tremendo grito de Sir Devon.

?É melhor voltarmos outra hora, ? disse Mary, pegando a irmã pelo braço para puxá-la para a saída. ? Como vimos, o visconde não está de muito bom humor.

?Senhoritas, por favor, milorde deseja ajudá-la...

Percebendo que não mudariam de ideia, Kilby virou-se para a porta da biblioteca, viu que o visconde se posicionara no meio da sala, arregalou os olhos e disse:

?Milorde, a senhorita Moore está saindo.

Logan reagiu depressa. Saiu da biblioteca e não parou até estar na frente delas. Respirou fundo, abaixou a cabeça ligeiramente, em sinal de arrependimento, e estendeu a mão direita para as irmãs.

?Senhoritas Moore, eu imploro seu perdão. Não pretendia assustá-las. Juro que a terrível falta de controle não se deve à sua presença. Apenas que, quando meu servo entrou, eu estava revendo algumas contas do meu barco que pareciam excessivas para mim. Peço-lhes que esqueçam esse comportamento inadequado e não partam.

?Excelência, não deve se desculpar, está em sua casa e pode fazer o que quiser. Nós é que não devemos ficar aqui. Se concordar, voltaremos em outro momento. Um em que não esteja tão incomodado com os pagamentos excessivos, ? Mary disse desconfiada.

?Eu imploro, ? ele disse olhando para Anne, que expressava um grande medo em seus olhos. ? Prometo que não vou incomodá-las e que meu tom não subirá mais do que o que ouve agora.

?Anne? ? Mary perguntou, notando que ela estava tão paralisada que nem se movia para a porta de saída, nem desviava o olhar do visconde.

?Eu lhe imploro, não saia. Me dê uma chance, ? Logan insistiu.

Anne observou silenciosamente o visconde. Primeiro contemplou seu rosto, notando o desespero que apresentava; seus lábios permaneciam firmes, assim como sua mandíbula. Ele tinha um profundo vinco na testa, o que aumentava sua expressão de angústia. Notou até o movimento suave que as narinas faziam quando ele respirava. Então continuou, discretamente, pelo resto do corpo. Aquele terno se agarrava ao seu corpo como se quisesse mantê-lo prisioneiro. Uma de suas mãos estendeu a mão para ela, convidando-a a aceitar seu pedido. Mas o que a deixou intrigada foi a leve inclinação de seus joelhos. Dava a impressão de que estavam prestes a tocar o chão, para se ajoelhar diante delas para que pudessem perdoá-lo. Embora fosse apenas uma percepção falsa, porque aquele homem, que emanava domínio, segurança e bravura, não poderia exibir tal atitude submissa. Ela ergueu o queixo, confrontando sem medo naqueles olhos claros que a encantavam toda vez que olhava para eles e, depois de respirar, finalmente respondeu ao que perguntava.

?Nós aceitamos suas desculpas, Excelência. ? Imediatamente ouviu como Mary bufou em negação. —Mas, se em qualquer momento nos sentirmos desconfortáveis, sairemos e nunca mais retornaremos, ? ela disse, assumindo a integridade que desenvolveu por ser a irmã mais velha.

?É claro, ? disse Logan, exalando todo o ar que retinha em seus pulmões e desenhando, pela primeira vez, durante essa aproximação, um grande sorriso. ? Se fizerem a gentileza de me acompanhar, vou levá-las para a biblioteca.

Ele colocou a mão, que ele havia estendido para cumprimentá-las e que não haviam aceitado, nas costas e com a outra, ele apontou o caminho, convidando-as a irem na frente. No entanto, as irmãs não se mexeram, continuavam paradas. Depois de deduzir que não seguiriam o protocolo habitual de cortesia, decidiu esperar que ambas se colocassem ao seu lado. Como iguais. Embora fossem burguesas, essas mulheres eram tão orgulhosas quanto qualquer aristocrata masculino. E embora ele devesse ter ficado surpreso, depois do que aprendeu através de Philip, não estranhava nada.

?Gostam de flores? ? Lançou a pergunta no ar. ? Elas foram colhidas em nosso jardim. Minha cunhada, a marquesa de Riderland, ficou encarregada de plantá-las quando comprei a residência.

?Sim, elas são lindas, ? respondeu Mary cortês. ? Apesar de não prestar muita atenção a elas. É minha irmã Elizabeth que ama jardinagem.

?Ah, pequena Eli! ? Logan exclamou, esperando que essa maneira afetuosa de falar sobre a terceira irmã quebrasse a tensão no ar.

?É assim que a chamamos em nossa casa, ? resmungou Mary. ? É íntimo demais para...

?Não me entenda mal, ? ele disse parando em seco. ? Sua irmã é a melhor amiga da minha e depois de descobrir esse laço afetivo, ela se tornou uma pessoa muito importante para mim. Como bem sabe, nem todo mundo é respeitoso com os herdeiros de Bennett.

?A fama que precede seu sobrenome é um pouco peculiar, ? Mary insistiu. Ela notou como Anne agarrou seu braço para silenciá-la. Mas não estava disposta a manter meus lábios fechados como ela. Tomaria as rédeas da situação, já que sua irmã não era capaz de fazê-lo depois do impacto que sofrera ao vê-lo.

?Sabe que as pessoas costumam falar sem conhecimento de causa? ? Logan respondeu de uma maneira estudada.

?O que dizem sobre seus ancestrais é falso? ? Mary comentou, estreitando os olhos.

?Todos nós temos um caráter próprio, senhorita Moore, ? explicou Bennett, de pé junto ao batente da porta e apontando para a entrada, ? e não é justo que todos sejam julgados com o mesmo martelo. Não se sentiu discriminada em algum momento?

?Em alguns... ? disse recordando todas aquelas situações que poderiam se equiparar à quantidade de estrelas no céu.

?Uma comparação apropriada, para explicar meu raciocínio, é argumentar que por ser mulher, não possa superar o intelecto de um homem.

E nesse momento, Mary abriu bem os olhos, deu um leve sorriso e afastou a mão da irmã, que não parava de machucá-la.

?Acha que as mulheres podem superar um homem em inteligência? ? Ela perguntou, atordoada e animada.

?Sabe ler? É capaz de manter em sua cabeça algo mais do que banalidades? Já ouviu conversas tão absurdas que poderia refutá-las com os olhos fechados? ? Logan continuou corajosamente.

?Sim, ? ela respondeu com um suspiro suave.

?Certamente, senhorita Moore, é mais inteligente do que muitos dos cavalheiros que conheço, ? disse ele antes de insistir para que entrassem na biblioteca.

Feliz por esse comentário, Mary ultrapassou Anne e entrou no lugar mais agradável para ela. Sem dúvida, esse homem não era comum. Não apenas pelo que havia indicado, mas também pelo que guardava naquela sala. Poderia abrir mais os olhos? Não, porque se o fizesse, eles cairiam no chão e parariam de observar a parte mais bonita da vida. Depois de olhar para as duas esculturas que o visconde tinha em cada lado da entrada, que para seu gosto eram um pouco ousadas por mostrar, sem pudor, dois corpos nus de mulheres, fixou os olhos naquilo que ansiava descobrir e ficou tão surpresa que não conseguia respirar. Centenas, milhares de livros, colocados perfeitamente em prateleiras de madeira escura, variando do chão ao teto, encontraram-se na frente dela e todos gritavam para ela tocá-los.

?Mary, se comporte, ? murmurou Anne quando passou por ela, que andava como se pedras tivessem sido colocadas em suas meias.

Depois de grunhir baixinho, desviou os olhos daqueles belos tomos e acompanhou sua irmã até as duas cadeiras em frente a uma mesa grande. Passaria muito mal o tempo. Péssimo! Porque de onde estaria sentada, a visão daqueles maravilhosos livros ficaria longe dela nos próximos minutos.

?Se fizerem a gentileza de se sentarem, ? Logan disse quando as viu em pé ao lado das cadeiras.

Enquanto as irmãs se acalmavam, ele deu a volta na mesa, sentou-se e afastou os papéis, aqueles que, supostamente, lhe deram a tremenda raiva, e aproximou a pasta na qual Arthur Lawford havia escrito o contrato que iria oferecer a Anne.

Uma vez que estava na frente dela, não conseguia parar de olhá-la. Ela estava linda naquele vestido rosa e os cachos tocando seus ombros nus, fazendo com que ele quisesse afastá-los para tocar a pele sedosa. Sem dúvida, Anne era uma mulher muito sedutora. Não só por causa de sua figura, que, apesar de muito alta, mostrava perfeita elegância, mas também por causa dos seus olhos, do formato de seus lábios, do modo como tocava o tecido daquele vestido..., no entanto, faltava alguma coisa. Logan não sabia exatamente o que sentia que faltava nela. O que chamou sua atenção na primeira vez que a viu? O que tinha em comum com a segunda? ? A cor laranja... ? ele pensou. Hoje ela deixou a essência de seu sangue cigano em sua casa.

Anne era incapaz de abrir a boca para falar. Ela ficou atônita olhando para ele sem piscar. Seus cabelos escuros novamente estavam presos com uma fita preta. Seus olhos azuis brilhavam com entusiasmo. A barba, apesar de estar maior do que na última vez, continuava afastada de seus lábios, mostrando a forma de coração que a atraía tanto. O terno combinava perfeitamente com seu corpo esbelto e a convidava a observá-lo até que ficasse cega. Embora, sem dúvida, o que estava prestes a fazê-la desmaiar fosse que, quando desabotoou os botões de sua jaqueta para se sentar, pôde ver muito de perto como o colete se agarrava a seu peito largo e forte. Como poderia ser tão magnífico? Cultivaria seu corpo como a maioria dos aristocratas? Qual esporte gostava de praticar? No entanto, enquanto essas questões surgiram em sua mente, seus olhos não paravam de contemplá-lo até que se concentraram em um detalhe. Um que chamou sua atenção. No bolso daquele impecável colete cinza de pérolas, logo atrás do lenço azul para combinar com o terno, viu a ponta de um papel de cor sépia. Naquela extremidade, naquele canto minúsculo, quase imperceptível, havia um ponto verde. O que seria esse minúsculo papel? O que seria tão importante para que carregasse escondido perto de seu coração?

Mary esperou que qualquer um deles começasse a conversa pela qual tinham ido, mas eles não o fizeram. Ambos estavam em silêncio, pensativos e olhando um para o outro sem piscar. Com o canto do olho observou sua irmã e suspirou. Por que o visconde a inquietava tanto? Ainda estava assustada com o grito? Ou estava desconfortável em um lugar que exalava tanta masculinidade? Ela, por outro lado, se sentia muito calma. Talvez o fato de descobrir que esse homem não era como os outros e que pudesse valorizar o intelecto de uma mulher de uma maneira diferente a relaxasse. Mas sem dúvida ela teria que fazer algo antes que a situação se tornasse mais desconfortável. Mais uma vez teve que interceder em algo que não lhe dizia respeito e não a importava em nada.

?Segundo nossos pais, encontrou uma maneira de colocar Anne em seu lugar de direito nesta sociedade, ? disse ela depois de esticar a saia de seu vestido cinza.

?Certo, ? disse Logan, olhando para ela e agradecendo que o silêncio constrangedor foi finalmente interrompido. ? Como sabem, seu pai veio me ver para propor um acordo: o de embarcar com a mais velha de suas filhas na minha próxima viagem. Era de se esperar que eu recusasse, já que velejar com uma mulher em um navio cheio de homens é uma loucura. No entanto, devo confessar que a angústia expressa por seu pai naquela noite me deixou intrigado, por isso perguntei sobre a senhorita, ? disse ele olhando para Anne. ? Porém a única coisa que encontrei sobre sua pessoa, foram as mortes trágicas de seus dois prometidos e o talento que tem como retratista.

?Por que fez uma coisa dessas? ? Mary interveio rapidamente.

Se para seu julgamento, a recepção foi catastrófica, o fato de que comentasse a pior parte de Anne rematava sua má escolha.

?Foi estranho para mim que o Sr. Moore, cuja reputação como um homem sábio e protetor de sua família é memorável em Londres, desejasse afastar uma de suas amadas filhas.

?Como disse, após as infelizes mortes, Anne não recebe o reconhecimento merecido como artista e todos pensamos que, se ela sair daqui, encontrará um futuro melhor em outra cidade, ? resmungou Mary.

?É lamentável que as pessoas não sejam valorizadas por seus méritos e sim pelo berço em que nasceram ou pelo gênero. Mas é ainda mais horrível que sejam acusados por algo que não fizeram, ? disse ele solenemente.

?Estamos de acordo novamente, ? disse ela com mais calma.

?Como eu estava dizendo, ? ele continuou, sua voz lenta enquanto entrelaçava os dedos, ? depois da visita do Sr. Moore, senti a necessidade de devolvê-la para esclarecer pessoalmente minha decisão e fazer chegar as suas mãos o envelope com o pagamento que me ofereceu. ? Quando não o encontrei na residência, decidi que, apesar de ser mulher, sua esposa teria a mesma capacidade que ele para que pudesse apresentar minha decisão e estabelecer um acordo, ? enfatizou desconfiado.

?Um acordo, ? disse Anne. ? Conforme disse nossa mãe, depois da conversa que teve com o senhor, ambos estabeleceram um acordo.

?De fato, ? ele disse em um tom calmo. ? E essa é a razão pela qual a chamei. Sei como posso ajudá-la a encontrar a reputação que deseja e fazer todo mundo esquecer seu passado.

?Poderia ser mais concreto? ? Mary interveio, que, apesar de tentar não virar a cabeça para os livros que insistiam em olhar para ela, não conseguiu evitar. Era como se sussurrassem para que se levantasse da cadeira, que os deixasse sozinhos e se colocasse na frente deles para tocá-los com as pontas dos dedos.

?Até agora, quem retratou, senhorita Moore? ? Logan perguntou a Anne, olhando para ela sem piscar.

?Quase todas minhas encomendas foram feitas por membros da aristocracia e da burguesia de Londres, ? respondeu com dignidade. Eles...

?Eles ou... elas? ? Logan interrompeu, levantando a sobrancelha direita.

?Elas, claro. Nenhum cavalheiro quer uma mulher para retratá-lo. Eles preferem artistas de seu próprio gênero para evitar controvérsias, ? explicou ela, movendo-se desconfortavelmente em seu lugar.

?Eu temia isso... — disse Logan acariciando a barba. ? Mas não sou um homem que tem medo da controvérsia. Como já deixamos claro, os Bennett não temem nem os rumores nem as controvérsias geradas nessa sociedade. De fato, até o presente, sempre fizemos o que queríamos sem discernir o resultado que terá no futuro.

?No entanto, a família Moore sempre se manteve discreta, ? disse Anne, estreitando os olhos.

?Não tenho a menor dúvida. Tanto seu pai como o resto da família são muito bem considerado entre os seus pares, ? ele argumentou com um certo encantamento. ? Senhorita Moore, algo está errado? Está chateada? Quer pegar algo da bandeja? Eu a noto distante, como se não quisesse estar aqui, ? ele perguntou a Mary, que estava observando as estantes de livros desde que ele começou a falar.

?Desculpe minha indiscrição, excelência. Estava apenas admirando sua biblioteca. ? Ela se desculpou enquanto tentava acalmar seu rubor.

?Gosta de ler? ? Logan perguntou com algum entusiasmo. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez o destino lhe desse uma segunda chance de estar sozinho com Anne.

?Sim milorde, ? disse Mary, um pouco embaraçada.

?Foi o que entendi... ? comentou enquanto se levantava.

?Também perguntou sobre mim? ? Ela retrucou com raiva. ? Porque motivo?

Nesse momento, suas bochechas não mostraram rubor por causa da vergonha, mas da raiva.

?Não perguntei sobre a senhorita, ? disse ele, virando-se para ela. ? Mas asseguro-lhe que testemunhei conversas nas quais era o assunto principal.

Não mentia. Ele e Philip haviam falado sobre ela, embora ele tenha preferido, naquele momento, referir-se à descoberta do amigo na tarde anterior, em vez de como ele a descreveu depois do primeiro encontro.

?Nem tudo o que eles dizem é verdade... ? ela resmungou. ? Há muitas pessoas entediadas nesta cidade e usam esse tempo livre para falar sobre as falhas dos outros, ? ela argumentou com altivez.

?Deve me deixar dizer que a última conversa que ouvi sobre a senhorita foi muito interessante e não encontrei nada de depreciativo sobre ela, ? disse Bennett, esperando por sua reação.

?Então não falavam sobre mim, milorde, ? disse Mary com raiva. ? Não sou uma mulher que tenha um grupo de amigos, mas sim inimigos e, até onde sei, os inimigos geralmente não exaltam as virtudes das pessoas, mas os defeitos.

?Então, a senhorita não é a filha que acompanha o Sr. Moore nas assembleias que a associação médica realiza todos os meses? ? Ele insistiu, mantendo uma distância adequada para que a segunda das irmãs não se sentisse encurralada ou intimidada.

?Sim, ? ela disse, erguendo o queixo com orgulho.

?Portanto, eu confirmo que a senhorita é aquela de quem foi falado. Pelo que entendi, tem uma mente privilegiada e não é valorizada como merece. Embora eu deva declarar que a pessoa que me informou sobre suas façanhas ficou zangada com o despotismo masculino e gritou em voz alta que uma mulher tem os mesmos direitos que um homem.

Naquele momento, Mary estendeu tanto os lábios que os cantos quase tocaram os brincos de pérola que ela usava, as mãos relaxaram, ela começou a respirar calmamente e um brilho de felicidade apareceu em seus olhos.

?Comentaram isso? ? Retrucou surpresa.

?Sim, ? disse Logan, não só com aquele monossilábico, mas também com um leve aceno de cabeça. ? Mais de um distinto cavalheiro pediria sua ajuda se adoecesse. Pelo que entendi, tem um dom maravilhoso para a medicina e, infelizmente, muito poucos sabem apreciar.

?Obrigada por suas palavras, Excelência, e tenho que dizer que o senhor está certo. Eles ainda não me permitem entrar para a associação, mesmo que meu conhecimento de medicina exceda o do aluno mais notável, ? ela declarou com tal felicidade, que Anne teve que piscar duas vezes para estar ciente de que não estava vivendo um sonho.

O que Elizabeth avisou sobre o visconde? Que era um libertino, que seduzia mulheres com sua habilidade de falar e que todas acabavam se rendendo diante dele. Bem, por mais improvável que parecesse, ali estava Mary, a irmã mais mal-humorada de todas, movendo os cílios como as asas de uma borboleta e sorrindo tanto que seus lábios seriam danificados.

?Gostaria de mostrar-lhe o maior tesouro que tenho, se não se importar, ? ele disse a Mary, estendendo a mão. ? Muito poucos podem avaliar um livro semelhante e tenho certeza de que a senhorita está entre esse pequeno grupo.

?Medicina, filosofia, aritmética? ? Mary perguntou sem respirar quando aceitou a mão, que a segurava como se ela fosse uma linda e tenra fada.

Entretanto, Anne não saia de seu assombro. O que devia fazer? Seria apropriado se levantar e lembrá-los de que deveriam se concentrar no acordo e não desviar o assunto? Que imagem mostraria ao visconde? A de uma pessoa egoísta e egocêntrica. Então, para seu espanto, ela decidiu ficar quieta enquanto assistia à ilusão de Mary. Embora fosse incrível, esse homem estava conseguindo de sua irmã o que ninguém havia conseguido: entusiasmar e lisonjeá-la. Apenas em sua casa, e quando seu pai lhe trazia um novo livro ou conversava sobre o tratamento de outro paciente, Mary mostrava esse brilho em seus olhos.

?Medicina, claro, ? respondeu Bennett, sorrindo docemente. ? Uma mente como a sua certamente apreciará o que mantenho com o maior cuidado.

?Isso me deixa sem palavras, milorde, ? disse Mary depois de suspirar e adotar um tom de voz incrivelmente gracioso. ? Mas não acho que deva.... Nós viemos para que o senhor...

?Por favor, senhorita Moore... ? ele insistiu com bravura.

?Mary, pode me chamar de Mary, sua Excelência, ? sugeriu, revelando um toque de timidez em suas palavras.

?Só se concordar em me chamar de Logan. E tenho que explicar que será uma grande honra para mim poder manter um relacionamento tão cordial com uma mulher tão inteligente. Além disso, pode me adicionar a essa interminável lista de pacientes aos quais deve curar.

E naquele momento, Mary soltou uma gargalhada enorme.

O que estava acontecendo? O visconde cortejava Mary sem se importar com sua presença? Anne, zangada, apertou as mãos, transformando-as em dois pequenos punhos. Ela não estava disposta a vê-los flertar, nem ouvir as palavras sedutoras do visconde. Abriu as palmas das mãos e sentiu um leve conforto quando parou de cravar suas unhas. Se mexeu na cadeira, se virando para eles. Devia parar aquela cena ipso facto[6] ou teria que dar muitas explicações para sua mãe. Mas no momento em que abriu a boca para interrompê-los, os dois estavam em frente à grande estante e apreciou a expectativa de sua irmã. O que havia de errado em permitir a ela um momento de felicidade? Se o visconde não fingia sua atitude, Maria devia se sentir, pela primeira vez, a princesa de uma história. Então ela se virou e fixou os olhos nos papéis que o visconde tinha sobre a mesa. A melhor opção era deixá-los sozinhos enquanto recapitulava o pouco que ouvira sobre o assunto que a trouxera.

?Não sei se já ouviu falar dele, ? disse Logan, virando as costas para Mary para procurar aquele volume muito apreciado. ? Porque é muito jovem...

O som de um sorriso fez Bennett se virar para Mary, mas não era ela quem ria baixinho, mas Anne. Então, afastou os olhos da acompanhante e os pregou nela. Por alguns segundos, a mais velha das irmãs não olhou para ele, no entanto, notando que era observada, virou o rosto levemente para e, quando seus olhos se encontraram, Logan a olhou tão apaixonadamente que ela corou instantaneamente.

«Eu estarei com você em breve, querida — ele pensou. E quando tivermos a intimidade que quero, essas bochechas nunca mudarão de cor».

?Eu sou, ? Mary respondeu à sugestão sobre sua idade. Enquanto os olhos do anfitrião estavam em sua irmã, os dela não conseguiam fugir dos volumes desses livros. «Poderia bater palmas? Seria apropriado uma mulher de vinte e cinco anos realizar um ato tão infantil»?

?Acredito que esteja aqui... ? Bennett murmurou assim que voltou para a tarefa de encontrar o livro. ? Aha! É este! ? Ele pegou com cuidado e levantou a capa gentilmente. ? O próprio médico deu ao meu avô. Aparentemente, ele era um dos patronos do Sr. Huxham, ? ele especificou.

?É um livro de John Huxham? ? Ela gritou, arregalando tanto os olhos que eles podiam sair de suas órbitas.

?O mesmo, ? disse Logan, estendendo a cópia para ela. ? Pode tocá-lo, ? insistiu ele quando viu que as mãos dela tremiam tanto que não ousava colocá-las sobre ele. ? Se quiser, se gostar tanto deste assunto, pode lê-lo enquanto converso com sua irmã.

?Eu não deveria... ?Mary comentou, incapaz de tirar os olhos do título do livro. ? Minha mãe confiou-me a tarefa de cuidar dela e, se descobrir que passei todo o tempo lendo, queimará todos os livros que tenho em casa.

?Mas ela não precisa saber disso, não é? ? Perguntou tentadoramente. ? Sua irmã não revelará esse segredo e se encontra diante de um cavalheiro que cumpre suas promessas, ? ele insistiu, colocando o volume nas mãos de Mary. ? Além disso, vamos ficar na mesma sala e pode nos observar daqui, ? acrescentou. Vendo que ela ainda estava duvidando, ele adotou uma voz ainda mais sugestiva, quase como um sussurro: ? É a primeira edição do Essay on Fevers. Como bem sabe, foi publicado em...

?Mil setecentos e cinquenta, ? Mary terminou com uma voz trêmula.

?Exatamente, ? disse Bennett, afastando-se um pouco do sofá, que havia sido colocado na tarde anterior para que ela pudesse ler em voz baixa. ? Não se segure, Mary. É um livro único. Muito poucos são os afortunados que podem apreciar a beleza e a sabedoria que há nele, ? ele continuou naquela voz aveludada.

Anne ainda estava esperando pela situação. Aquele homem parecia a serpente da qual falava Gênesis. Ele estava prendendo sua irmã com aquela cópia, ele a estava afastando porque, se Mary concordasse em ler, sua mente e corpo se afastariam desse lugar. Então, enquanto ponderava sobre essa opção, ficou tensa. Ele não estaria fazendo tudo isso para que ambos pudessem falar com alguma privacidade, certo? Qual era o seu plano ao ficar obcecado por manter Mary longe? O que ele dissera antes que sua irmã o interrompesse? « Trabalhará para mim», lembrou ela.

E nesse exato momento, ela sentiu sua força desaparecer. Envergonhada, confusa e desconcertada, estendeu a mão para a mesa, onde colocaram uma bandeja de doces saborosos e pegou um. Se Mary estivesse certa, o açúcar lhe daria energia suficiente para não desmaiar de novo.

?Gosta deles? ? Logan perguntou uma vez que estava ao lado dela. ? Minha cozinheira, a senhora Donner, se gaba de preparar os melhores doces de Londres, embora não saiba se é verdade. Nunca comi outros que não fossem os dela porque, se descobrisse que sou infiel, poderia preenchê-los com veneno como uma vingança. ? Ele pegou um igual ao que ela havia escolhido e colocou em sua boca.

?Pode dizer a sua cozinheira que ela não está errada, são deliciosos, ? disse Anne depois de tragar aquela bola doce, que havia se formado em sua garganta e que lhe custou engolir porque não tinha notado sua presença até que ele falou.

?Vou dizer a ela, ? disse ele, virando-se para Anne. Ele descansou as coxas na borda da mesa, cruzou os braços e, depois de confirmar que Mary não tirara os olhos do livro, preparou-se para continuar com o seu plano. ? Como estava dizendo, quero que trabalhe para mim.

?Quer me encomendar um retrato? ? Bennett assentiu. ? Sua irmã, a marquesa, talvez? ? Ela perguntou com expectativa.

?Não. No retrato que desejo encomendar, aparecerei sozinho. ? Ele disse imutável, como se tivesse informado sobre as nuvens que cobriam o céu naquela manhã.

?Seu? ? Ela retrucou, surpresa.

?Pelo que ouvi da senhorita mesmo, os homens não se atrevem a posar na frente de uma mulher por causa da luxúria que isso pode produzir. No entanto, não tenho medo de despertar qualquer interesse e, de acordo com seu pai, devo ficar longe porque é amaldiçoada. Embora depois de conhecer as verdadeiras razões pelas quais seus noivos faleceram, não tenho tanta certeza sobre isso.

Anne corou tanto que poderia acender um pedaço de papel se chegasse perto de suas bochechas. Por que ele estava se dirigindo a ela com tanta imprudência? Onde ele havia deixado àquela voz aveludada que oferecera a Mary? Respirou fundo, se acalmando quando sentiu os pulmões se encherem, levantou o queixo, olhou para ele e disse:

?Não.

?Não, senhorita Moore? ? Ele perguntou, descruzando os braços e franzindo a testa.

?Não vou aceitar o seu acordo, ? ela esclareceu.

?Não tem outra escolha, ? ele respondeu com firmeza. Prometi a sua mãe que a colocaria no lugar que merece e que a única maneira de o realizar é fazer com que os senhores entendam que, quando há talento, não se deve olhar para o gênero da pessoa.

?Se eu aceitar sua proposta, todo mundo vai falar sobre um relacionamento amoroso entre nós dois e não estou disposta a manchar meu sobrenome. Está acostumado a ouvir milhares de rumores sobre sua família, mas na minha não houve nenhum...

?Exceto por essa maldição, certo? ? Ele apontou com malícia. Se forçou a não olhar para ela. Não queria ver seu rosto zangado ou refletindo aquele desejo de dar-lhe uma bofetada na cara por sua ousadia. Precisava que ela relaxasse, que ficasse calma e que ouvisse cuidadosamente tudo o que planejava contar a ela. ? A vi na outra noite, na festa que minha irmã Natalie ofereceu quando se casou com o Sr. Lawford. No começo pensei que tinha uma personalidade azeda e por isso que nenhum cavalheiro pediu uma dança. No entanto, após a visita de seu pai, cheguei à conclusão de que esse rumor sobre sua maldição se espalhou e a senhorita não está ciente disso.

?É discutível... ? ela comentou em voz baixa depois de entrelaçar algumas dobras da saia do vestido entre os dedos.

?O que é discutível, senhorita Moore? O fato de que eu poderia posar por alguns dias ou aquele sobre essa maldição? ? Ele perguntou. ? Não acha que esse acordo pode ajudá-la? Ou acredita que posso morrer ficando tanto tempo ao seu lado? Prometo que não irei pedi-la em casamento, se é isso que a preocupa.

?Acha apropriado que uma mulher solteira e um homem com sua reputação permaneçam por tantos dias sozinhos? ? Ela se defendeu diante da afirmação absurda.

E essa ideia parecia muito interessante para Logan, no entanto, ele prestou mais atenção ao tom e às palavras ofensivas que ela escolheu para descrevê-lo do que em sentir prazer imaginando-a sozinha com ele.

?Minha reputação? ? Ele disse ao dar a volta na mesa para se sentar novamente.

?Lembre-se, milorde, que todo mundo fala sobre sua atitude libertina quando sai ou retorna de suas viagens, ? ela apontou com mordacidade.

Poderia ser mais perversa? Poderia rezar aos seus ancestrais para que tirassem o seu dom para a pintura por alguns minutos e concedessem a ela o poder de aniquilar a pessoa à sua frente? Porque naquele momento estava disposta a fazer um feitiço para que parasse de respirar. Onde estava o visconde de palavras bonitas, aquele sedutor que fez Mary rir? Talvez ele tivesse desaparecido no breve e furtivo caminho até ela.

?Está certa, ? disse ele, recostando-se na cadeira, adotando a mesma postura que ofereceu quando Philip apareceu na cabine para explicar por que havia voltado para lutar com um tripulante. ? Minha reputação de libertino excede a que meu irmão, o marquês ou até mesmo meu pai, poderia possuir. Por essa razão, será interessante e benéfico para a senhorita que um homem com minha reputação de sedutor possa ficar ao seu lado sem pensar, nem mesmo um segundo, em seduzi-la e levá-la para o meu quarto, ? disse ele com firmeza.

?Ainda não entendi os benefícios do qual está falando, ? ela respondeu com indignação. Para o seu quarto? Como lhe ocorria dizer tal coisa? Ele falava para todas as mulheres com aquela sinceridade angustiante? Eli se referia a esse comportamento inadequado quando o chamou de charmoso e sedutor? Porque com ela era um homem completamente espinhoso. ? Apesar dessa abordagem, minha honra será destruída e não creio que uma pessoa decente me contratará novamente.

?Decente? ? Logan estalou, erguendo o lábio superior para enfatizar seu sarcasmo. ? Posso assegurar que não há pessoas decentes nessa cidade.

?Nós somos! ? Ela exclamou furiosamente.

?De fato, são. Por isso que seu pai me implorou para embarcá-la na minha próxima viagem para levá-la para longe de sua família e desta cidade, ? lembrou-lhe cruelmente.

?Acho que estamos perdendo nosso tempo, ? disse Anne, levantando-se. ? O acordo que oferece é insano e nunca aceitaria tal atrocidade.

?Não deve sair sem ouvir tudo o que tenho analisado, Senhorita Moore. Até agora nos concentramos apenas na minha má reputação e não quis que me explicasse, ? disse ele severamente.

?Não permitirei que manche o meu nome, milorde. Meus pais são...

?Seus pais são como todo mundo, ? ele interrompeu, se levantando, colocando as mãos sobre a mesa e olhando para ela desafiadoramente. ? Sua mãe é cigana e eles esconderam isso por anos alegando que ela era filha de um burguês, certo? ? Anne arregalou os olhos e sentiu suas bochechas queimarem. Como eles tinham sido tão tolos em desvendar um segredo tão importante? Eles estavam tão desesperados que não conseguiam pensar com clareza?

?Para mim, a mistura que transporta esse sangue não parece repulsiva, Excelência. Tenho muito orgulho em ter a mãe que tenho e que ela pertencesse a uma comunidade cigana é insignificante, ? explicou com firmeza. ? Há muitas pessoas em Londres que são bastardos e ninguém as aponta para humilhá-las. Por essa razão, não entendo qual é a sua intenção. Quer ridicularizar o bom nome da minha família por não ser tão perfeito quanto o seu?

?Não, ? ele disse, rangendo os dentes. ? Não é minha intenção degradar seu sangue, senhorita Moore e está certa, nas ruas desta cidade andam muitos bastardos se escondendo sob ternos elegantes e títulos nobres que não merecem.

?Então? O que pretende? ? Ela retrucou, de forma agressiva.

?Quero fazer o que prometi a sua mãe: posicioná-la no lugar que merece. Para isso vai pintar um retrato de meu e não terá que ficar sozinha, pode estar acompanhada por suas irmãs. Além disso, eu apreciaria se elas ficassem ao seu lado durante o tempo que precisar para realizá-lo. A senhorita não quer ver seu bom nome manchado, nem quero que todos pensem que tenho certas intenções com a senhorita.

Naquele momento, depois de ouvir aquelas palavras duras, Anne desabou na cadeira e se lembrou de Josephine e sua arma inseparável. Se a menina estivesse ao seu lado, teria ordenado que ela atirasse em sua virilha por ser tão cruel.

? O tio do meu cunhado, o Sr. Arthur Lawford, foi capaz de elaborar um contrato. Quero que o leia lentamente e entenda que a única ligação que pode existir entre nós se restringe, única e exclusivamente, ao trabalho. A senhorita me pinta em uma bela tela e eu vou exibi-la, elogiando seu excelente dom para a pintura e o profissionalismo que manteve durante o tempo que passou trabalhando nele ? explicou oferecendo o papel escrito pelo Administrator. ? Assim, não terá que se afastar de sua família, aumentará as encomendas e poderá ter tudo o que uma mulher deseja quando chega a sua idade.

?Não sabe quantos anos tenho, nem pode saber o que desejo, ? disse ela com raiva.

?Vinte e sete. Nasceu no dia 14 de fevereiro, vinte e sete anos atrás. Sua mãe, depois de dar à luz, ficou inconsciente por alguns dias e, quando acordou, contou ao seu pai que estava amaldiçoada. Também contou a ele sobre a visão que teve durante aquele desmaio. Revelou que teria várias filhas e que Elizabeth, a amiga de minha irmã Natalie, nasceria prematuramente. Estou errado, senhorita Moore? ? Ele perguntou rudemente.

Felizmente para ele, o médico disse-lhe tudo na noite que o visitou e nada tinha sido apagado de sua memória, uma vez que descobriu quem era a jovem que estava na foto. A mesma que estava atrás do lenço que usava.

?Verdade... ? ela respondeu confusa.

Como o visconde poderia ser um homem importante para ela? Seus sonhos estavam errados! Ele não poderia ser a pessoa que iria salvá-la da maldição! Nem tão pouco que a amaria daquela maneira... O visconde era cruel, desprezível, despótico e tão petulante quanto qualquer aristocrata. Naquele instante, se arrependia de ter sonhado com ele, de ter sentido em seus sonhos um desejo tão ardente que ainda queimava sua pele, e até queria esquecer a possibilidade de criar um vínculo entre eles. Estava fora de alcance! Como Elizabeth tinha avisado, o visconde não era o homem que ela esperava.

?Leia o acordo, ? disse ele, segurando o papel ainda mais perto, ? e o aceite se não quiser navegar em um navio cercado por homens e lutar em cada segundo de sua viagem para que nenhum deles se aproxime da senhorita. A experiência me diz que eles acabarão arruinando a honra que orgulhosamente declara.

Anne, ainda mais zangada se pudesse, pegou o documento e leu em silêncio. Mas não conseguia se concentrar no que estava escrito. Sua mente não parava de pensar em milhares de males para aquele aristocrata arrogante. Talvez devesse seduzi-lo até que acabasse se apaixonando por ela e, uma vez que pedisse para se casar com ela, como seus dois pretendentes tinham feito, ela deixaria a maldição funcionar. Ao imaginar a situação, um leve sorriso apareceu em seu rosto irritado.

?Algo engraçado? ? Logan perguntou, levantando as sobrancelhas. ? Se sim, diga-me, porque posso assegurar que li o acordo cem vezes e não encontrei nada engraçado. Para mim, é uma condenação estar vinculado a uma mulher por um período tão longo de tempo.

?Uma condenação? ? Anne retrucou, estreitando os olhos.

?Sim, ? disse Bennett sem piscar.

Antes desse comentário, ela não pensara nisso. Se a única maneira de fazê-lo sofrer era ficar com ele por um mês, seria a melhor vingança que jamais imaginara. Ela se inclinou para frente, pegou a caneta na mesa e assinou ao lado da assinatura do visconde.

?Fico feliz por finalmente concordar em algo, ? disse ela, oferecendo o documento. — Espero fazê-lo sofrer tanto que finalmente admita a existência de uma maldição.

?Eu irei, tenho certeza, ? disse ele, pegando o papel.

Uma vez que ele contemplou sua assinatura, seu lábio superior apareceu triunfante. Conseguiu. Anne aceitava o acordo. Agora era necessário anunciar onde iriam trabalhar e como, mas isso seria deixado para o dia seguinte, uma vez que o contrato estivesse guardado com Lawford e ela não conseguisse rasgá-lo em mil pedaços.

Com o documento em suas mãos, ele se inclinou ligeiramente para ela e sussurrou:

?Este é apenas o começo, senhorita Moore. Espero que se prepare para tudo o que vai acontecer conosco.

?Isso? ? Disse Anne, levantando-se.

?Sim isso. Nosso acordo, nossas reuniões...

?Trabalho, milorde. Eu assinei apenas um novo trabalho que farei o mais rápido possível. Espero que me diga a hora e o dia certo para começar e não se esqueça de enviar um servo o mais rápido possível para minha casa.

?Para que? ? Queria descobrir.

?Terá que arcar com todas as despesas desse trabalho ? comentou orgulhosa. ? Telas, tintas, papel, carvão, pincéis... ? ela enumerou satisfeita, esticando o pescoço para poder olhar diretamente para ele.

?Compre cinco de tudo que precisar, ? disse Logan depois de virar a cintura o suficiente para colocar o documento sobre a mesa.

?Cinco? ? Ela disse com uma carranca.

?Claro. Tenho que confessar que se não gostar de como me retratará pela primeira vez, vamos fazer um segundo e assim por diante, até que eu e esteja satisfeito, ? disse ele dando um passo em direção a ela.

?Ninguém se queixou de nenhuma das minhas obras, Excelência, e até hoje só precisei de um mês para completar os trabalhos, ? ela respondeu arrogantemente.

?Possivelmente porque todos com quem trabalhou se contentassem com pouco. No meu caso, não é assim, senhorita Moore, ? explicou ele, estendendo a mão, apontando a saída descaradamente. ? Amanhã terá aquele servo à sua porta, ? acrescentou.

?Esperarei por ele com prazer, ? ela disse caminhando tão ereta para onde sua irmã estava, que acabaria machucando suas costas. ? Mary, vamos embora ? informou quando passou por ela.

Mary se levantou e observou os dois. Ela estreitou os olhos e se perguntou o que teria acontecido para que ambos mostrassem tanta raiva em seus rostos. Eles não chegaram a um acordo?

?Excelência... ?reportou, oferecendo-lhe o livro, ? foi um verdadeiro prazer.

?Por favor, lembre-se de me chamar de Logan e não me devolva. Tenho certeza de que ele estará melhor em suas mãos do que nas minhas ? disse Bennett, devolvendo o volume. ? Aceite isso como um avanço para o acordo que estamos fazendo.

?Temos um acordo? ? Mary perguntou surpresa quando pegou o livro novamente.

?Claro. Lembre-se que a única pessoa que poderá me curar, no dia em que ficar doente, será a senhorita, ? Logan disse com um meio sorriso.

?Eu ficarei encantada, Logan, ? ela respondeu, fazendo uma ligeira reverência antes de ficar ao lado de Anne, que já estava de frente para a porta.

?Bom dia, senhoritas Moore, ? disse o visconde, incapaz de tirar aquele sorriso do rosto. ? Logo terão notícias minhas.

?Milorde, se me permite o atrevimento ? disse parando na metade do caminho e virando-se para ele ? quero dizer que foi um prazer conhecê-lo e descobrir que há no mundo um cavalheiro que entende as mulheres que não querem ser simples vasos.

?Garanto que conheço outro cavalheiro que raciocina de uma maneira similar, ? argumentou Logan antes de estender a mão para ela para se despedir como se ela fosse uma dama de alto nascimento.

?Estarei ansiosa para conhecê-lo, ? ela disse depois de aceitar o beijo casto em seus dedos.

?Talvez já o tenha feito, ? disse ele em um tom misterioso.

No momento em que Mary ia perguntar o nome do cavalheiro, sentiu uma grande pressão no braço. Anne estrangulava suas veias, tendões, músculos e poderia quebrar seus ossos se continuasse a apertá-los daquela maneira. Depois de mostrar ao visconde um último sorriso, porque ele parecia ser o homem mais encantador do mundo, se colocou ao lado de sua irmã e deixou a biblioteca.

Em silêncio, as duas caminharam em direção ao corredor. Kilby lhes devolveu os casacos e ficou surpreso ao notar que, após a reunião, quem mostrava um rosto duro antes, naquele momento exibia tanta felicidade e gentileza que parecia outra mulher.

?Ele é um homem adorável, ? disse Mary quando o cocheiro abriu a porta para elas. ? Agora entendo a razão pela qual todas as mulheres caem em seus braços.

?É petulante, arrogante, elusivo, severo, frio, insensível e....

?Nós falamos do visconde? ? Mary retrucou, arregalando os olhos.

?Nós conversamos sobre ele, sim, ? murmurou Anne depois de se sentar.

?Acho que perdi algo interessante enquanto lia esse magnífico ensaio, ? concordou Mary, incapaz de desviar o olhar da irmã.

?Perdeu tudo, como sempre, ? ela murmurou, se recostando no banco.


XIV


Quando voltaram para casa, Anne esperava encontrar sua mãe e o resto de suas irmãs na porta, ansiosas para descobrir o que teria acontecido. Mas não havia ninguém lá, exceto Shira, que pegou seus casacos e informou que estavam esperando por elas na sala de jantar. O tempo passara muito depressa, tanto que não percebera que haviam ultrapassado as duas da tarde e que a família costumava almoçar às 13h30. Quando elas apareceram, todos os olhos estavam nelas. Mary, faminta como sempre, caminhou até a cadeira, escondendo o novo livro nas costas, sentou-se e permaneceu em silêncio enquanto era servida. No entanto, Anne não conseguia pensar em levar nada à boca. Seu estômago permanecia fechado e a única coisa que podia engolir era uma xícara de chá para acalmar a inquietação produzida pelo comportamento atrevido do visconde. Lentamente, e sem tirar os olhos de sua mãe, que a inspecionava sem piscar, sentou e pediu a Eugine para servi-la da única coisa que poderia engolir. Estranhamente, ninguém falou. Permaneceram em silêncio, comendo o que tinham em seus pratos. Por que não faziam perguntas? Sua mãe avisou-os para não as fazerem até que terminassem de almoçar? Recostou-se na cadeira, depois de perceber que a criada estava se aproximando com a xícara de chá de limão, colocou as mãos em torno dela e, embora estivesse muito quente, as segurou juntas.

?Por Deus! Quão horrível foi? ? Elizabeth finalmente perguntou, ansiosa para descobrir o que havia acontecido e ignorando o suposto comando de sua mãe. ? Não se interessou pelas condições que ele ofereceu?

?Há apenas uma condição, ? disse Anne, acariciando a borda da xícara com as pontas dos dedos da mão direita.

?Qual? ? Elizabeth insistiu em saber.

?Que ele apareça em um quadro, ? disse a mais velha das irmãs.

? Ele? ? Disse Sophia, espantada. ?Por que decidiu fazer um retrato de si mesmo?

?Conforme deduziu, depois da minha breve explanação, o fato de eu pintá-lo incitará a sociedade a valorizar minha habilidade como artista, evitando assim o absurdo preconceito de uma mulher retratar um homem sem cair na luxúria. ? Informou.

?Firmou esse acordo? ? A mãe perguntou.

?Sim, embora no começo tivesse minhas dúvidas sobre como ele me tratou ? disse ainda irritada com o que havia experimentado.

?Não exagere, ? rebateu Mary. ? O visconde se comportou de maneira educada durante nossa visita.

?Tem certeza? ? Ela perguntou, franzindo a testa. Teria se esquecido de como agiu quando elas chegaram? Sim, deve ter esquecido quando ele lhe deu o livro que ela segurava nos joelhos, fora do alcance dos olhos da mãe.

?Não me lembro dele ter feito nada inapropriado quando entramos na biblioteca, ? comentou com um tilintar. ?Mas é verdade que Anne, depois do que aconteceu ontem, estava predisposta a recusar tudo o que o visconde oferecesse. Sabe a mudança que sofreu desde que seu primeiro pretendente morreu. Não é a mesma de antes...

?Bobagem! ? Exclamou a vítima. ? Ela fala assim, porque a verdade é que ele a tratou com muito carinho, demais pelo que percebi. No entanto, quando se dirigiu a mim, foi cruel e despótico ? ela se defendeu.

?Acho que a atitude que manteve ao seu lado foi muito sensata, ? Sophia ponderou enquanto colocava os talheres no prato vazio. ? O visconde quis colocar alguns limites desde o início e não deveria recriminá-lo, mas agradecer a ele. Outro, em seu lugar, teria tentado seduzi-la e esquecer por que apareceu em sua residência.

?Viu! Eu não disse! ? Exclamou Mary exultante. ? Se o boato sobre ser um libertino fosse real, ele não teria se comportado dessa maneira. A única coisa que ele tentou, com suas palavras e ações, foi confirmar que não o atrai de nenhuma forma e que a única coisa que os unirá no futuro será a relação de profissional que aceitou. Além disso, depois de fazer referência à sua reputação, pediu que ela não aparecesse sozinha. Qualquer uma de nós pode acompanhá-la sempre que quisermos, ? acrescentou com um sorriso enorme. O fato de Anne ter contado a ela durante a viagem o que tinha acontecido, a ajudou para que sua mãe não a repreendesse por ter ficado distante.

?Logan nunca age assim, ? Elizabeth interveio novamente. Quando sua mãe franziu a testa ao ouvir o nome do visconde daquela forma familiar, pegou o guardanapo, limpou os lábios com cuidado e continuou: ? Ele não permite que as mulheres apareçam em sua casa. É verdade que está relacionado a elas, com muitas, como dizem, mas nenhuma, exceto aquelas que compõem sua família, visitam a residência Whespert. Devo acrescentar também que ele não fala sobre sua vida particular, não é um homem que se orgulha de suas conquistas. Por essa razão, não entendo por que ele mencionou sua vida libertina, ? ela disse, olhando para Anne.

?Bem... talvez eu tenha dito a ele sobre a fama que o precede em Londres e, por essa razão, quis me lembrar que uma maldição recai sobre mim para levar em conta. Ele também deixou claro que não há espaço para um relacionamento romântico entre nós, apenas trabalho, se ele quiser continuar vivendo, é claro ? disse Anne, olhando para a xícara de chá.

?O que disse, Anne Moore? ? Sophia gritou de espanto. ? Foi capaz de olhar o visconde no rosto e censurá-lo pela vida que ele leva?

?Não me repreenda, eu apenas insisti em avisá-lo que não haverá nada entre nós, exceto o acordo que assinamos. Além disso, o que as pessoas vão pensar se me virem em sua casa todos os dias? Um libertino nasce e morre sendo um libertino, nada o fará mudar. Eles são como corvos que se lançam em tudo que brilha, no caso do visconde, a todo ser humano que usa um vestido. E, para que não houvesse dúvidas, me parecia coerente, para a família e para mim, esclarecer certos pontos inflexíveis entre nós.

?E o que ele respondeu? ? Madeleine interveio, prendendo a respiração toda vez que ouvia o tom que Anne usava para falar sobre o visconde. Talvez tenha interpretado mal sua visão e o que viu na sala na tarde anterior.

?Que estaria seguro porque eu não sentiria qualquer atração por ele, nem ele tentaria se aproximar de mim depois do que meu pai contou sobre a maldição, ? ela explicou indignada. ? Não que fosse me apaixonar por um arrogante como ele! Sabe que ele tentou me intimidar me falando sobre a mistura do nosso sangue? Como visconde, ? disse ela com sarcasmo, ? ele tem uma linhagem pura, se vê na posição de julgar os outros. Mas deixei bem claro que tenho orgulho de quem sou e de quem serei. ? Ela terminou erguendo a voz como se fosse a líder de um grupo de combatentes.

?Disse bem! ? Josephine exclamou ao aplaudir a atitude guerreira de sua irmã.

?O visconde está certo, ? Sophia comentou solenemente. Quando suas filhas olharam para ela espantadas, respirou fundo e continuou: ? Apesar de se sentirem orgulhosas de sua origem, é certo que, se descobrirem de onde vem, terão muitos problemas. Temo que suas amizades desapareçam e que o trabalho de seu pai diminua. É por isso que nunca falamos com ninguém sobre minha verdadeira identidade.

?Exceto com o visconde, ? disse Anne com raiva.

?Exceto com ele, ?disse a mãe. ? Mas sei que ele é um homem em quem podemos confiar e nunca quebrará sua promessa de permanecer em silêncio. Como estão entendendo por si mesmas, seu único propósito é ajudar sua irmã e isso faz dele um homem digno da minha confiança.

?Não pensou que isso nos coloca em uma posição delicada? Porque pode chegar o dia em que esqueça essa promessa e tente nos chantagear ? acrescentou Anne com mais raiva ainda.

?Impossível! Ele nunca agiria dessa maneira indigna! Conheço a família Bennett há quase vinte anos e nenhum deles usaria tal segredo para coagir ninguém. Pelo contrário, eles nos ajudariam a protegê-lo. Não se recordam com quem Natalie se casou? Com o sobrinho do Sr. Lawford, não menos! ? Elizabeth disse em voz alta: ? E.... sabe o que é dito sobre aquele homem? Quão longe poderia ter ido? Sem contar o romance com....

?É claro que sabemos quem é o Sr. Lawford e, nesta casa, ele sempre foi respeitado, ? interrompeu Sophia, se levantando e concluindo o almoço e o assunto que Elizabeth havia começado. ? Mas não estamos falando da vida desse estimado administrador, mas do pacto que o visconde ofereceu à sua irmã. Temos que ser coerentes com o que acontecerá se tudo correr bem, mas também devemos considerar a possibilidade de não alcançarmos nosso propósito. O fato de o visconde ter se oferecido pessoalmente para ser retratado é um triunfo insuperável. Assim que Anne terminar o trabalho e ele puder expô-lo publicamente, conseguirá a posição social que merece, ? acrescentou ela, ao começar a caminhar em direção à saída.

?Mas não pretendíamos encontrar um homem que nos salvaria da maldição? Como esse trabalho ajudará Anne? —Josephine perguntou, se levantando também.

?Se sua irmã se tornar uma artista famosa, ninguém se lembrará das infelizes mortes de seus noivos e aparecerá em nossa casa um grupo de pretendentes ansiosos para se casar com uma mulher tão esplêndida, ? ela disse se virando para suas filhas, esperando que todas se colocassem do seu lado.

?E ela vai matá-los um por um até que o certo chegue? ? Josephine espetou de novo, arregalando os olhos.

?Não, ? disse Sophia, aproximando da menina para acariciar sua bochecha esquerda. ? Seu pai e eu investigaremos a procedência de qualquer um que deseje ser prometido a sua irmã e não aceitaremos ninguém novamente, a menos que seja a pessoa certa para ela.

?Entendo... ? Josephine murmurou.

?Agora temos que esperar que o visconde informe a Anne quando e onde ele quer que este trabalho comece. Alguém irá querer acompanhá-la? ? Sophia perguntou.

?Vou primeiro! ? Apontou Elizabeth caminhando em direção a sua mãe. ? Ficarei feliz em ajudar minha irmã. Lembre-se de que sou amiga da família há muito tempo e ninguém questionará minha presença na residência do visconde ou na casa dos Lawford.

?Se não estou enganada em meu palpite, o visconde não vai querer que o pinte na frente de uma bela paisagem, ? disse Anne.

?Porque pensa isso? ? Mary se interessou, se aproximando de sua mãe.

?Porque tem um comportamento severo e dominante. Talvez ele sente em uma cadeira preta chique, cruze as pernas e exiba orgulhosamente outro de seus preciosos trajes, ? disse Anne, se aproximando-se do pequeno grupo familiar.

?Não é tão petulante, ? disse Mary, ? e não deveria reclamar tanto. É afortunada por poder retratar um homem tão bonito, desta forma seu talento será aprimorado e não ofuscado.

?Bonito? ? Anne estalou, franzindo a testa. ? Os sapos da lagoa no nosso jardim são mais bonitos do que ele!

?Está falando sério? ? Elizabeth perguntou. ? O visconde é o homem mais desejado entre as damas de Londres. Todas suspiram quando o veem aparecer.

?Bem, essas damas estão confusas, ? disse Anne, cruzando os braços. ? Vi homens muito mais atraentes do que ele.

?Sim, onde? ? Interveio Mary novamente. ? Porque estive ao seu lado esses vinte e cinco anos e não vi ninguém assim.

?Meninas... ? Sophia chamou quando previu uma disputa sobre um assunto tão absurdo. ? Vamos continuar com nossas vidas. Não podemos ficar o dia todo falando sobre a aparência física do visconde. Se não me engano, antes de Mary e Anne chegarem, a três conversavam sobre tudo o que planejavam fazer durante a tarde.

?Sim, mãe, ? disseram as três citadas em uníssono.

Em silêncio, as irmãs andaram atrás de Sophia. Assim que saíram da sala de jantar, Josephine foi ao jardim, alegando que aproveitaria o bom tempo para limpar a arma e realizar mais alguns tiros, porque, finalmente, sua punição havia sido perdoada. Madeleine foi para a cozinha, porque Eugine precisava dela para preparar o jantar e Elizabeth à estufa. Mary, Anne e Sophia estavam na escada observando os três saírem. Uma vez sozinhas, Sophia se virou para a segunda de suas filhas e ficou olhando o livro que ela guardava nas costas.

?O que está escondendo de mim, Mary?

?Eu? Nada, ? ela respondeu, corando.

?Comprou outro livro? Voltou a gastar suas economias em outro ensaio absurdo? Não disse para vir direto para casa? ? Ela perguntou com um pouco de raiva.

?Ela não comprou, o visconde deu a ela, ? disse Anne.

?Explique-se, ? perguntou Sophia.

?Sabe que Mary gosta de livros e, felizmente para ela, a reunião foi realizada na biblioteca, ? começou Anne. ? De repente, e embora ela tenha tentado, seus olhos se fixaram nas prateleiras e o visconde percebeu.

?Então ele disse que tinha ouvido conversas sobre mim, ? continuou Mary, agarrando-se ao livro. ? E elas não falavam mal, mas bem.

?Isso é novo... ? Sophia murmurou, observando a felicidade da segunda de suas filhas.

?Portanto, nem todos os cavalheiros criticam meu conhecimento sobre medicina. Há alguém que os elogia, ? ela disse com tal satisfação que seus olhos voltaram a brilharam. ? Ele me levou a este livro e explicou que o próprio John Huxham o deu ao seu avô. Um tesouro, mãe! Uma cópia única! ? Ela exclamou eufórica.

?Por que ele lhe deu o livro, Mary? ? A mãe insistiu imperturbável para a emoção de sua filha.

?É o adiantamento de um acordo que fizemos ? confessou.

?Outro acordo? Em que consiste exatamente?

?O visconde confia na minha habilidade em medicina e me pediu que se, um dia, ele ficasse doente, eu fosse a única a tratá-lo, ? ela disse com orgulho.

?E você irá?

?Claro! Dei minha palavra e vou cumpri-la, ? ela respondeu um pouco ofendida. ? Ele sabe que o papai não vai negar isso para mim.

?Esperamos que isso aconteça daqui há muito tempo, certo? Queremos que o visconde permaneça saudável e forte até que Anne consiga a posição que merece ? lembrou-a.

?Não pensei em envenená-lo, mãe. Por enquanto estou contente em ler este ensaio e descobrir a cura para certas febres, ? ela disse sarcasticamente.

?Esse é o seu plano para esta tarde? Vai se trancar em seu quarto novamente e passar horas lendo? ? Ela censurou.

?Por acaso vê um cavalheiro ilustre na porta que queira andar comigo pelas ruas de Londres? ? Ela retrucou mordazmente.

?E mesmo se houvesse, não o aceitaria, ? sussurrou Anne divertida.

?Se não tem mais nada a me dizer, quero me retirar e encher minha cabeça com sabedoria antes que o cavaleiro misterioso apareça, ? ela murmurou, caminhando em direção à escada.

?Vou pedir a Eugine que suba quando se aproximar a hora do chá. Seria bom que descansasse um pouco. Acho que não é muito benéfico encher sua cabeça com tanta sabedoria em uma tarde ? anunciou Sophia com certa animosidade.

?Prefiro tomar uma xícara de café se.... ? Vendo o rosto zangado de sua mãe, Mary se calou e terminou dizendo: ? O chá será bom para mim e esse descanso intelectual também.

E subiu as escadas pisando nos degraus como se quisesse quebrá-los em seu caminho. Enquanto escutavam os sussurros de Mary, Sophia agarrou o braço de Anne e empurrou-a para o lado.

?Mãe? ? Ela perguntou espantada. ? O que acontece?

?Quero que me conte toda a verdade ? ela pediu.

?Eu te disse mãe. O acordo que assinamos...

?Não! Não me refiro a esse acordo! ? Insistiu. ? Por que Mary tem um livro que pode custar mais de duas mil libras? Por que tem uma opinião tão estranha sobre o visconde? Por que vejo tristeza e dor nos seus olhos? O que aconteceu, Anne?

Anne notou como seus olhos se encheram de lágrimas. Toda aquela força que mantivera até o momento, foi se eliminando pouco a pouco. Ela agarrou os braços de Sophia, olhou para ela, deixando aquelas gotas salgadas escorrerem por suas bochechas e disse:

?Alguma vez os sonhos erraram?

?Os que teve durante essas noites? ? Anne afirmou com a cabeça lentamente. ? Eu não sei... por que está me perguntando?

?Porque acho que os meus são falsos. Ele não pode ser o homem que Morgana tem em mente para mim... ? ela soluçou.

?Minha avó materna sonhou com meu avô, minha mãe com meu pai e eu com o seu.... Seria a primeira vez que algo assim aconteceria na família ? ela explicou confusa. ?Tem certeza do que diz?

?Sim. Tenho. Não sabe como é esse homem. Não nutro a esperança de manter nada com ele, exceto o miserável acordo que assinamos. Garanto que, depois de deixar a casa, meus desejos e anseios desapareceram.

?Por quê? ? Sophia disse.

?Porque ele é um aristocrata da cabeça aos pés. Além disso, asseguraria que ele seria o primeiro Bennett a destruir sua própria família.

?Talvez... ? a mãe começou a dizer abraçando-a com força ? esteja certa e a única coisa que pode acontecer é que ele a leve ao homem que vai nos libertar da maldição.

?Se existir, se Jovenka realmente jogou essa maldição em nós, tenho que dizer que não acho que sobreviva...

?O que? ? Sophia perguntou, abrindo os olhos e afastando levemente a filha para longe dela.

?Para suportar a presença daquele homem, ? ela disse com firmeza.


***


?Quero que acompanhe a senhorita Moore pessoalmente, ? Logan disse a Kilby depois de contar sobre o acordo a que ambos tinham chegado. ? Conforme me informou, ela tem que comprar novos utensílios. Não economize nas despesas e, se a considerar em dúvida, lembre-a de que sou uma pessoa exigente e que nunca ficarei satisfeito com mediocridades.

?Sim Excelência. Não se preocupe, contarei à senhorita Moore o quão meticuloso é o cavalheiro e como fica satisfeito quando se faz um bom trabalho ?disse o mordomo, de pé à mesa de Bennett.

Depois que as irmãs saíram, Kilby ficou tentado a falar com seu lorde e informá-lo de que uma delas parecia furiosa, mas não precisou abusar da confiança entre eles. O próprio visconde o chamou e explicou tudo o que havia acontecido, enfatizando o presente que ele oferecera à jovem chamada Mary, para o caso de as empregadas não o encontrarem ao limpar a estante.

?Deseja algo mais, milorde?

?Sim, ? ele respondeu, entregando-lhe três envelopes. ? Primeiro, leve esse documento selado para Arthur Lawford, ele sabe do que se trata. A segunda é para o meu irmão Roger, quero informá-lo de que estarei fora da cidade por um mês e não quero que se preocupe. O terceiro e último é para a senhorita Anne Moore. Seria aconselhável que o lesse antes de fazer as compras. Terá que prover de tudo o que será necessário antes de sair de Londres. A cidade mais próxima de Harving House é Brighton e é cerca de uma hora de distância.

?Quer ir para a sua residência no campo? ? Kilby estalou, arregalando os olhos. ? Com a senhorita Moore? ? Ele acrescentou estupefato.

?Não virá sozinha, peço-lhe na carta que seja acompanhada por todas as irmãs que desejar. Não quero que minha fama de libertino destrua a reputação da qual ela é tão orgulhosa, ? esclareceu amargamente.

?Muito eloquente da sua parte, mas pensou na possibilidade de que ela possa não querer viajar? Poderia se recusar a deixar a cidade por ser uma jovem solteirona. Talvez devesse reconsiderar sobre isso, milorde, ? disse ele.

?Não terá escolha, ? ele disse, se levantando. ? Ela assinou um contrato e até mesmo o Sr. Lawford é uma testemunha, com sua assinatura nele.

?Fala do tio de seu cunhado? Aquele a quem todos procuram para conseguir o que ninguém pode fazer legalmente? ? Ele disse estupefato.

?O próprio, ? ele respondeu com certa arrogância.

?Mas... assinou um contrato de trabalho, certo? ? Ele retrucou com uma mistura de surpresa e confusão.

?Sim, Kilby, é apenas um contrato de trabalho, ? ele respondeu, esboçando um leve sorriso. ? Fui eu quem redigiu o contrato e posso assegurar-lhe que não usei uma única frase em que aparece contrato de casamento. O que aconteceu com meu irmão aconteceu há muito tempo e ele estava tão bêbado que não sabia o que assinava. Embora, segundo ele, repetiria o que fez mil vezes.

?E tem que viajar para Harving House? Não acha que a entrada desta residência é linda? Poderia mandar os jardineiros arrumarem para uma linda pintura. Talvez se o jardineiro aparasse as sebes da entrada, a luz do sol, se fosse um bom dia, poderia atravessar a....

?Está tentando me convencer a não sair daqui? ? Ele estalou, erguendo as sobrancelhas.

?Não, milorde, ? ele respondeu rapidamente. ? Só cuido do seu bem-estar e proteção.

?E?

?E gostaria de continuar trabalhando para o senhor por muito tempo, ? disse ele.

?Teme pela sua posição? A que vem isso? O que diabos está acontecendo, Kilby? Por que mantém essa atitude estranha? ? Logan insistiu.

?Excelência, não sei se ouviu o que estão dizendo sobre a senhorita Moore.

?Qual delas? Porque são cinco irmãs, ? ele disse, apoiando os quadris na mesa e cruzando os braços.

?A pintora, claro, ? esclareceu o mordomo.

?Sim, ouvi o que é dito sobre ela e pode ficar tranquilo, a única relação que existirá entre a senhorita Moore e eu é o trabalho, ? ele disse solenemente.

?Apesar dessa afirmação, muitas donzelas que trabalham aqui, quando a viram sair, começaram a rezar e acender velas, ? ele disse em voz baixa. ? Elas dizem que é amaldiçoada e que matou seus dois pretendentes.

?E acha que vou cair aos seus pés? Ou que vá me enfeitiçar até a morte? ? Ele perguntou antes de soltar uma risada.

?Não, milorde. Tudo o que queremos, todos nós que trabalhamos para o senhor, é continuar fazendo isso por mais algumas décadas, ? disse Kilby.

?Prometo que não haverá nenhum romance estranho entre a senhorita Moore e eu, nem morrerei de uma maldição, ? disse Logan, acariciando seu fiel lacaio no ombro esquerdo. ? Lembre-se que meu sangue é Bennett e tenho muitas tentativas de assassinato nas minhas costas.

?Sim, milorde, mas até agora o Sr. Giesler cuidou de sua segurança.

?Certo! ? Ele exclamou, parando brevemente. Se virou, foi até a mesa e, depois de escrever algumas palavras ao amigo, ofereceu-a a Kilby. ? Isso é para ele. Quero que nos acompanhe na viagem.

?Graças a Deus! ? O mordomo exclamou como se uma enorme pedra tivesse sido removida de cima dele. ? Agora nada de ruim acontecerá com o senhor.

?Se diz... ?Logan murmurou, saindo da biblioteca primeiro.


XV


?Não, não e mil vezes não! ? Randall gritou desesperado depois de ser informado do acordo que Anne assinou com o visconde. ? Como foi capaz de assinar um acordo tão descarado? ? Ele atacou sua primogênita. ? Não está ciente do que vai acontecer?

Esfregou o rosto desesperado e olhou para as mulheres. Sentia-se como um leão enjaulado, embora não estivesse cercado por barras de ferro, mas por cinco figuras de carne e osso. Ele olhou para Anne e observou-a se arrepender. Sob o vestido marrom, que ela usava toda vez que se fechava na sala de pintura, ele podia observar sua respiração sufocante. Então fixou os olhos em Mary, sentada em uma cadeira com aquele vestido cinza áspero parecendo mais uma governanta do que uma moça cheia de juventude e feminilidade. Ele continuou com Elizabeth. A terceira de suas filhas, como sempre, usava um lindo vestido verde, muito apropriado para suas feições e a cor de seu cabelo. Continuou com Josephine, que novamente mostrava uma aparência de bucaneiro com sua camisa branca e calça marrom. Tentou descobrir o que Madeleine estava usando, no entanto, sua quinta filha estava tão longe dele que não podia dizer se era um vestido vermelho com tons amarelos ou amarelo com tons vermelhos. Sem espantar sua raiva, se virou para a esposa e, depois de desamarrar o nó da gravata, que o impedia de respirar, olhou-a suplicante e disse:

?Fale com ele e diga que não concordamos, que nossa filha não estava em seu juízo perfeito para assinar aquele maldito contrato e que decidimos inutilizá-lo imediatamente.

?Como irei fazer tamanha loucura, Randall? ? Sophia perguntou incrédula. ? Anne é uma mulher sensata e o acordo não é tão ruim.

?O que não é tão ruim? ? Ele gritou. ? Estamos falando de um visconde, um libertino, um homem sem escrúpulos e....!

?Um homem a quem se dirigiu para colocá-la em seu navio, ? sua esposa o lembrou.

?Por acaso sou tão perfeito que não posso me dar ao luxo de cometer um erro miserável? Além disso, foi ela quem me implorou para procurar um capitão de navio para levá-la àquela maldita cidade, e o único nome que apareceu, ao pedir informações, foi o visconde de Devon ? ele se defendeu.

?Ninguém é, e nós não pedimos que seja perfeito, ? disse Mary, que ainda carregava o precioso presente em suas mãos. ? Mas é verdade que foi o senhor quem colocou o visconde em nossas vidas.

?Sim, eu não nego, no entanto, tudo que queria era que ela zarpasse em seu navio, não que se intrometesse em nossos negócios ? Moore resmungou quando viu que nenhuma de suas filhas, ou mesmo Mary, parecia apoiá-lo nessa ocasião.

?Não parece uma boa alternativa? Realmente quer que fique longe de nós e viva em um lugar estranho? ? Josephine disse tristemente.

?Não, Josh, eu não quero que ela vá embora. Além do mais, se o negócio tivesse sido feito por outro cavalheiro, eu a levaria todos os dias até a porta principal da residência. Mas... estamos falando do visconde de Devon, de um Bennett!

?As pessoas falam sem estarem conscientes do que podem fazer com seus rumores indesejados, ? Mary concordou novamente, ? e, depois de encontrá-lo esta tarde, ele tem meu apoio absoluto. É um cavalheiro, um nobre que só quer ajudar uma pobre família desesperada.

?Diz essas palavras com sinceridade ou foi seduzida pelo que tem em suas mãos? ? Randall retrucou, levantando os óculos com um dedo.

?Estive presente durante toda a conversa, ? ela disse indignada, ? e não ouvi uma única palavra maliciosa, maldosa ou suspeita dele, ? ela disse altiva.

?Anne ? O médico perguntou a sua filha, que permaneceu em silêncio o tempo todo. ? Acha que o acordo é gratificante para você? Está realmente capacitada para passar o tempo que precise para terminar o trabalho com esse homem?

Anne ficou pálida com a compreensão do significado das perguntas. Seu pai acreditava que ela cairia no mesmo erro de quando era jovem. No entanto, após a reunião, ela saiu pronta para abater o visconde e isso não tinha nada a ver com a rendição a uma paixão que havia desaparecido nos primeiros minutos da conversa.

?Estou ? ela assegurou com firmeza. ? Além disso, como expliquei à mamãe, ele mesmo pediu que não fosse sozinha em suas propriedades.

?Josephine? ? Randall gritou, olhando para a quarta de suas filhas e pulando de seu assento.

?Sim papai? ? Ela respondeu em um tom militar.

?Conhece uma arma que tem vários canhões? Acho que vou ter que te presentear...

?Randall Moore! ? Exclamou Sophia, horrorizada. ? Não pretende usar a nossa filha para tal atrocidade, certo?

?Ela vai acompanhar Anne em todas as suas visitas e se ele tentar se aproximar de nossa filha de forma inadequada, ela tem a minha permissão para matá-lo, ? disse o pai a sua esposa.

?Chega! ? Exclamou Elizabeth indignada. ? Não está ciente sobre quem está se referindo?

?Não falamos sobre o Bennett? ? Randall respondeu, apertando os olhos. ?Porque, se meu estado de irritação não afetou meu senso de audição, passamos mais de duas horas lidando com um problema que diz respeito a eles.

?Acha que são ogros? Eles são tão normais quanto nós! ? Ela os defendeu enfaticamente. ? Tenho frequentado suas casas desde que Natalie e eu nos conhecemos e, em momento algum, agiram de forma inadequada.

?Enquanto estava presente, ? o médico murmurou. ? Mas duvida da fama de libertino que ostenta o visconde que mencionamos?

?É verdade que ficou com muitas mulheres, no entanto, todas elas aceitaram seus abraços com prazer ? continuou seu argumento de defesa.

?Elizabeth! — Sophia gritou quando a ouviu falar de maneira tão desrespeitosa.

?É verdade mãe. Natalie me contou, em muitas ocasiões, que seu irmão manteve várias amantes ao mesmo tempo, porque elas aceitavam.

?Acho que estamos nos desviando do assunto, ? disse Mary, que, idolatrando o visconde por ser um homem tão atencioso com ela, não gostava que falassem de tais intimidades. ? Nossa irmã só fará outro trabalho. A única coisa que este terá de especial será que ao invés da imagem de uma mulher aparecerá a de um homem. Esta família começa a discriminar o gênero das pessoas? ? Ela disse, levantando-se. ? Não acha que é pesar suficiente a provação que sofro porque nasci uma mulher? Ninguém aprendeu nada sobre esse assunto absurdo?

?É diferente... ? Randall bufou com a pergunta, toda a sua raiva desaparecendo rapidamente.

?Por quê? O que acha diferente, pai? ? Mary disse. ? O senhor mesmo escolheu Josephine para atirar nele quando quiser, o que parece irracional para mim depois do buraco que ela fez na pequena janela da sala de estar, e Elizabeth pode se juntar a essa pequena comitiva de proteção, pois ela conhece, como bem disse, a família há anos e ninguém terá dúvida sobre o relacionamento entre ele e nós.

?Também posso pedir a Natalie para vir conosco, ? disse Eli com um sorriso. ? Se a própria irmã do visconde supervisionar o trabalho, os rumores desaparecerão antes de aparecerem.

Randall relaxou os ombros, suspirou profundamente e deixou os óculos caírem na ponta do nariz. O que devia fazer? Devia permitir essa loucura? Suas filhas estariam certas? Como haviam comentado durante as duas longas e intensas horas que discutiram o assunto, ele mesmo fora pedir ajuda ao visconde. No entanto, nunca pensou que ele se apresentaria em sua casa, oferecendo outra alternativa. Isso deveria indicar que talvez, como se preocupavam em defender Elizabeth, eles não fossem tão maus quanto pensava?

?Pai? ? Anne perguntou, se aproximando lentamente daquela figura cansada e angustiada que ela adorava mais do que sua própria vida.

?Eu não sei o que fazer... ? ele disse com uma voz cansada. ? Não quero que seja o centro das fofocas novamente. Saiu de uma grande depressão, que eu sofri como se fosse minha, e gostaria de...

?Vou atirar nele, pai! Eu juro, que se ele se aproximar de Anne mais do que deveria, vou puxar o gatilho sem hesitar por um único segundo! ? Clamou Josephine com aquela segurança militar que corria por suas veias.

?Randall, querido, ? disse Sophia depois de se aproximar dele e colocar a mão em seu peito. ? Nós devemos dar uma chance. Não quero que Anne parta, mas se não quiser aceitar o acordo, se realmente tem dúvidas...

?Está bem! ? O médico finalmente cedeu, um segundo depois, o pai se viu cercado por braços e sentiu em suas bochechas dezenas de beijos.

Quando todos começavam a sorrir, quando finalmente os rostos sérios começaram a desaparecer, alguém bateu na porta da sala, pedindo permissão para entrar.

?Entre! ? Randall respondeu uma vez que sua esposa e filhas se separaram dele.

?Senhor... ? Shira comentou quando abriu a porta. Seu rosto estava pálido de novo e seu corpo rechonchudo estava tenso como uma barra de ferro.

?Sim? ? O médico perguntou, temendo que ela fosse portadora de outra má notícia que perturbaria a família novamente.

?Chegou uma carta para a senhorita Moore, ? informou.

?Para qual delas? ? Sophia interveio.

?Para a senhorita Anne, ? ela esclareceu.

Anne abriu os olhos como janelas, colocou as mãos no peito e estava prestes a desmaiar de novo. Seus instintos de mulher gritavam que havia apenas uma pessoa que poderia se dirigir a ela: uma pessoa arrogante que ordenava através de um papel miserável e que não admitia qualquer rejeição.

?Obrigada, ? disse Sophia, pegando o envelope ela mesma. Depois de verificar que era do visconde, desviou os olhos da missiva e fixou-o na filha, que permanecia imóvel diante do divã em que seu marido costumava descansar. ? Abra! ? Ela proferiu, sacudindo o papel com a mão direita.

Um estranho silêncio tomou conta da sala. Nem se ouviam os ligeiros movimentos feitos ao caminhar em direção a Anne. Todos olhando para ela com expectativa, todos prendendo a respiração...

Esquecendo que se tornara o centro das atenções, Anne lentamente abriu o envelope, não sem antes notar que dentro havia mais do que apenas uma folha. Lentamente, sem pressa de descobrir o que aquele arrogante exigia dela, tirou a primeira folha que encontrou, desdobrou e começou a ler:


Cara senhorita Moore:

Entro em contato novamente para informá-la de que houve uma pequena mudança de planos. Não tenha medo, nosso acordo continua, embora tenha que ser feito em outro lugar. Para meu pesar, exigiram minha presença em Harving House, a residência rural que possuo em Brighton, e tenho de ir com urgência. Imagino que essa mudança não será um revés porque, pelo que entendi, artistas como a senhorita amam paisagens costeiras. Não acha que é uma ótima ideia? Me retratar em frente ao mar, quero dizer. Deixe seus estimados pais saberem que pode ir com várias de suas encantadoras irmãs e que todas as despesas que esse pequeno contratempo traz, sairão da minha conta. Também quero esclarecer que meu mordomo Kilby se apresentará amanhã de manhã para ajudá-la da maneira que quiser.

Primeiro PS: Gostaria que informasse à sua querida irmã Mary que a biblioteca que possuo naquela residência excede a que encontrou essa tarde.

Segundo PS: Caso veja a necessidade de adquirir mais de cinco peças de tudo o que listou, dou à senhorita o poder de fazer o que quiser. É claro que, quando terminar o trabalho, eu mesmo supervisionarei se estará apropriado para mim como já o referi.

Terceiro PS: A senhorita tem até amanhã à tarde para preparar sua bagagem, porque, como disse antes, minhas tarefas como visconde são uma prioridade a qualquer momento.

Quarta PS: Nunca tive que usar tantos esclarecimentos, mas com a senhorita faço uma exceção. Como notará, estou lhe enviando uma cópia do contrato que assinou esta tarde para provar que, entre as cláusulas, concordou em se deslocar comigo se precisarem da minha presença fora da cidade.

Atenciosamente:

Logan Bennett, visconde de Devon.


Anne rompeu o envelope para verificar se o contrato estava dentro. Rasgou como se fosse a pele de uma galinha que tinha que preparar imediatamente. Como podia ser tão impertinente? Como podia forçá-la a se deslocar? Com a carta entrelaçada em seus dedos, leu atentamente o contrato que assinou e, com efeito, uma das cláusulas era viajar com o visconde durante o tempo que durasse o trabalho.

? Maldito filho da mãe! ? Gritou fora de si. ? Que o diabo o carregue!

?Santo Deus! ? Exclamou Randall, horrorizado com as palavras de sua filha. De Mary esperava tudo, mas de Anne, nunca!

?O que diz? O que ele escreveu? ? Se interessou Sophia que, ao ver o rosto vermelho de sua primogênita, temia o pior.

?Leia! ? Ela disse, sacudindo os papéis como se para atiçar um fogo que estava quase extinto. ? Não disse que os Bennett eram pessoas gentis e educadas? ? Ela repreendeu Elizabeth. ? Bem, não é verdade!

?Pelo amor da nossa mãe! ? Exclamou Sophia depois de ler o conteúdo dessa carta. ? O que está ocorrendo?

?O que acontece, mãe, é que essa pessoa vaidosa acha que todos devem fazer o que ele manda sem oferecer resistência. Como toda aquela aristocracia miserável! ? Ela gritou, mostrando em sua garganta o desespero que estava vivendo.

?Randall! Faça algo! ? Ela perguntou ao marido que estava imerso na leitura do contrato.

Ele, enquanto passava as páginas, caminhou para trás, esperando que suas panturrilhas se deparassem com uma cadeira onde poderia se sentar. Ele não acreditava no que sua filha havia assinado. Por acaso não era tão sensata quanto supunha?

?De quem é esse selo? Quem elaborou o contrato? A quem devemos ir para cancelar? ? Sophia perguntou.

?Não há como invalidar isso ? Randall comentou depois de encontrar uma cadeira para se acomodar. ? O visconde usou Lawford como advogado e há várias testemunhas...

?Não pode falar com ele? ? Sophia perguntou desesperadamente. ? Ele lhe deve um favor e acho que é o momento certo para lembrá-lo do que aconteceu no passado. Essa é a assinatura de Arthur, certo? De quem é a outra? Nós o conhecemos?

?O príncipe, ? acrescentou ele.

?O que?! ? Sua esposa disse com tanta impetuosidade que ficou rouca.

?O contrato foi selado pela coroa e a coroa concordou com o acordo, ? disse ele, estendendo os documentos para ela.

?Não existe uma maneira de cancelá-lo? ? Ela insistiu, pegando aqueles papéis que sentenciavam sua filha com a mão direita trêmula.

?Não.

?E o que vamos fazer? ? Ela continuou desesperadamente.

?O que nossa filha assinou, ? disse Randall, finalmente erguendo o olhar para fixá-lo no rosto zangado de Anne.

?Ele diz que pode ir com algumas irmãs. Eu vou, ? Elizabeth falou. ? Ele também fala sobre Mary.

?Sobre mim? ? A garota ficou surpresa.

?Sim, leia, ? disse Eli, mostrando-lhe a carta.

?Não posso. Me desculpe, mas me recuso a ficar em um lugar que não quero. O contrato especifica que é Anne quem deve aparecer e, embora a ideia de estar diante de uma biblioteca maior do que a que vi hoje me agrade, não irei embora.

?Eu... eu... ? Madeleine tentou dizer, mas como ela não conseguiu terminar a frase, disparou em direção à saída.

?Randall... querido... não podemos encontrar uma solução antes...? ? Sophia sugeriu.

O médico negou rapidamente com um duro aceno de cabeça.

?Como já disse, vou junto. Não quero que minha irmã esteja em apuros e sei que Natalie virá assim que eu a informar do que aconteceu ? disse Elizabeth com voz firme.

?Se Mary se recusa e Madeleine é incapaz de imaginar.... Sobrou apenas, Josephine, ? disse Sophia, olhando para sua quarta filha.

Ela sorriu de orelha a orelha. Parecia que era a única que estava feliz com tudo o que estava acontecendo. E assim foi. Quando ela leu a carta, já podia ver a si mesma correndo nas costas de um rápido corcel, com uma arma nas mãos e atirando em todos os animais que voavam sobre sua cabeça. Havia uma imagem mais bonita do que essa? Por fim, ela teria a liberdade que queria, afinal em um lugar onde pudesse se vestir como homem e ninguém a olharia com desprezo.

?Estou disposta a assumir essa responsabilidade, ? disse em seu tom habitual. ? A honra da minha irmã mais velha está em jogo e juro que aquele homem não se aproximará dela inapropriadamente.

?Randall? ? Sophia perguntou a ele, ao não o ouvir respirar.

?Está bem! ? Ele exclamou, se levantando do seu lugar. — Isso será feito conforme foi acordado. As duas podem preparar suas bagagens. ? Ele apontou para Anne e Elizabeth.

?E eu? ? Josephine perguntou, um pouco desanimada.

?Virá comigo ao armeiro e me dirá de que armas precisa, ? ele disse, caminhando firmemente em direção à porta.

?Tudo o que quiser? ? Ela exclamou esperançosa. ?Também posso comprar alguns punhais? Os que tenho guardados são antigos e alguns têm a folha amassada.

?Pode comprar a maior e mais afiada adaga que pudermos encontrar ? Randall assegurou antes de sair da sala.

?Bendito seja, visconde! ? Josephine exclamou, correndo atrás de seu pai.

Sophia e as três filhas ficaram na sala em silêncio até que ouviram pai e filha fecharem a porta depois de sair da residência. Elas não precisavam conversar para expressar o que pensavam: que tudo era uma loucura.

?Anne, Elizabeth, vão para seus quartos agora e façam com que Shira as ajude a preparar sua bagagem, ? ela ordenou com firmeza. ? Antes de nos reunirmos para o jantar, quero confirmar que tudo está pronto.

?Mas...? ? Anne tentou dizer.

?Não me venha com mas! ? Ela repreendeu-a. ? Assumiremos com coragem o que selou com sua assinatura e não reclame. Espero que esta catástrofe a ajude. É a segunda vez que mancha o sobrenome do seu pai. A única coisa que espero é que seja a profissional que declara ser e termine o seu trabalho o mais rápido possível.

?Sim, mãe, ? disse ela antes de girar nos calcanhares e sair do quarto com Elizabeth, a segunda irmã mais feliz depois do que aconteceu.

?Não parece estranho que, horas depois de Anne assinar o acordo, o visconde tenha decidido deixar a cidade? ? Mary perguntou uma vez que estavam sozinhas.

?O que parece estranho para mim é que, como acompanhante de sua irmã, permitiu que ela assinasse um contrato dessa natureza. O que estava fazendo, Mary? Não cumpriu sua missão?

?Tem razão, mãe. Nossa irmã deve ser uma profissional respeitosa e digna do nome que temos. Se me der licença, tenho que cuidar de um assunto muito importante nesse momento e que ninguém pode fazer por mim, ? comentou ela rapidamente.

?O que? ? Sophia perguntou, levantando as sobrancelhas.

?Urinar, mãe. Com tanto escândalo, fiquei com vontade de urinar, ? ela respondeu caminhando rapidamente em direção à saída.

?Vejo-a no jantar, Mary, ? disse Sophia.

?Não se preocupe. A essa hora, terei livrado minha bexiga de um tremendo inchaço, ? disse ela antes de levantar as saias do vestido cinza com uma mão, porque a outra ainda segurava o livro, e subir as escadas como se o próprio Lúcifer a estivesse perseguindo.

Uma vez que Sophia foi deixada sozinha, ela se sentou em uma cadeira e juntou as mãos. Ele tinha planejado. Não tinha dúvida de que o visconde já tivesse em mente porque, se não, para que acrescentara uma cláusula tão estranha? Ela suspirou profundamente, tentando adotar uma postura calma, mas não conseguiu. Como fazer se três de suas filhas permaneceriam sob a proteção de um homem com uma reputação tão imoral? Por que o visconde planejou tal loucura? Desesperada, ela pulou da cadeira, foi até o escritório do marido, sentou-se e pegou uma folha de papel em branco para escrever uma nota para o próprio visconde. Suas filhas iriam embora se ele desse a sua palavra de que nada de mal lhes aconteceria, porque, se não o fizesse, seu sangue vingativo e cigano iria se sobrepor àquele criado depois do casamento com Randall e agiria de acordo com a justiça de seus ancestrais. Depois de pegar a caneta e escrever tudo o que lhe passou pela cabeça, chamou uma de suas donzelas.

Leve esta carta para o Visconde de Devon e avise-o de que não sairá de sua residência até receber uma resposta.

?Sim, madame ? disse a criada antes de fechar a porta, vestir o casaco e sair de lá tão rápido quanto suas pernas curtas conseguiam.

Se ele contestasse o que pedia, ela deveria apenas rezar para que Morgana vigiasse as vidas dos três tesouros que sairiam em breve.


XVI


Logan se afastou da escrivaninha, colocou as mãos atrás das costas e caminhou calmamente até a janela. Estava começando a amanhecer. Os primeiros raios do novo dia mal eram vistos nos telhados dos edifícios de Londres. Foi a primeira vez que ele se levantou tão cedo em sua casa. O habitual era ficar até as primeiras horas da manhã, bebendo e fumando acompanhado de um parente, amigo ou cliente em potencial e, depois de terminar a eterna noite, subia para o quarto e tentava fechar os olhos para encarar um novo e aborrecido dia. No entanto, aquele hábito monótono havia sido interrompido desde que ele agendara a viagem para sua residência em Brighton. Estava excitado, nervoso e muito inquieto para adormecer. Teria feito a coisa certa ou talvez tivesse se deixado levar por um impulso inadequado? Olhou para a mesa e franziu a testa para a carta que recebera da Sra. Moore. Ela enumerou severamente todas as consequências do novo plano e implorou que não deixasse suas filhas à mercê do destino. Ela literalmente implorou a ele para cuidar delas como se fossem sua própria irmã Natalie. Embora quando terminou esses extensos pedidos, normais em uma mãe, ela o avisou que se algo acontecesse com elas, faria de sua vida uma tortura, uma sentença tão terríveis que ele só se livraria dela se matando.

Um sorriso extenso se desenhou em seu rosto quando afirmou que, por trás daquela aparência dócil e estudada, se escondia uma autêntica cigana. Uma que cortaria sua garganta no meio da praça sem pensar no que aconteceria depois de fazê-lo em público. Havia vivido com pessoas assim. Teve até mesmo que lutar contra seus pares para conseguir algum respeito. No entanto, a única maneira de ter alguma obediência e consideração surgiu quando assinou os documentos que o declararam como o filho legítimo do marquês. Esse pensamento passado apagou seu sorriso. Ele nunca esperou alcançar a situação em que estava. Nem pediu a Roger para torná-lo seu sucessor. A única coisa que queria, se pudesse sonhar com algo, era se tornar uma pessoa diferente da que ele havia nascido. E, embora parecesse ilógico, mesmo que já fosse, não gostava de sua vida. Onde estava a liberdade? Por que ele deveria pesar cada fato ou ação sua? Por que olhavam para ele com desconfiança? Todos se sentiam obrigados a examiná-lo quando ele aparecia, quando se movia ou quando falava...

Fixou os olhos em suas propriedades e reconsiderou novamente a trama que havia começado. É claro que as três irmãs estariam sob sua proteção e cuidaria delas acima de sua própria vida. Tudo o que ele queria era passar algum tempo com Anne e descobrir o motivo pelo qual, ao tocá-la, tivera uma visão tão real. O que o fogo significava? Por que ele saia de uma fogueira sem se queimar? Novamente houve perguntas para as quais não tinha resposta. Talvez, assim que saíssem de Londres e ambos pudessem estar livres para agir como bem entendessem, receberiam as respostas relevantes.

?Milorde, ? Kilby comentou depois de ouvir o visconde lhe dar permissão para entrar, ? o desjejum está pronto. Quer que o traga a esta sala?

?Hoje eu ficaria feliz em tomar o desjejum fora, ? disse ele, virando-se para o criado. Quando viu o rosto surpreso deste, acrescentou: ? Preparou tudo o que precisa para ir à residência dos Moore?

?Se refere a levar sua autorização de compra ou a carregar um crucifixo que me proteja da dama em questão? ? Disse Kilby.

?Que não poupe despesas, ? anunciou ele, sorrindo novamente para a transparência de seu leal criado. ? Não quero que, uma vez em Harving, ela interrompa seu trabalho pela falta de algum material.

?Como me explicou nossa cozinheira, a senhorita Moore costuma usar poucos utensílios para seus retratos, embora também tenha feito referência ao bom resultado dessas obras.

?Como a senhora Donner conhece um assunto tão específico? ? Ele perguntou, caminhando em direção à saída e mantendo as mãos na cintura.

?Porque uma das criadas de Lady Whatninfer é uma parente distante dela e, na ocasião, ela explicou como a Senhorita Moore trabalhou com suas filhas, ? informou Kilby, andando atrás de Logan.

?Ela contou mais alguma coisa? Algo que deveria me interessar? ? Ele perguntou.

?Exceto pelo fato de que todos fofocam sobre a morte de seus dois pretendentes saudáveis, nada mais, ? disse ele.

?Pediu que preparem a bagagem? ? Ele perguntou, não se referindo ao comentário sobre Anne. Já estava se acostumando com a maldita injustiça, mesmo que não conseguisse evitar que seu sangue fervesse sempre que a ouvisse.

?Tudo está pronto, milorde. Inclusive poderá partir esta mesma tarde ? sugeriu ele.

Não, quero acompanhar as Moore durante a viagem. Não acho apropriado mantê-las desprotegidas durante uma viagem tão longa, ? disse ele, virando-se para a entrada principal. ?A que horas planeja se apresentar na casa do médico?

? Estou apenas esperando as lojas abrirem, milorde. Não acho que os lojistas gostem de que os levantem de suas camas quentes antes que a luz do dia passe através de suas janelas ? ele disse sarcasticamente.

Que o visconde deixasse seu quarto antes das dez da manhã, não fazia com que todos agissem da mesma maneira no mesmo instante. Ele tinha que ser paciente, o que sempre tinha sido, até agora. No entanto, notou que, desde o aparecimento das duas irmãs, seu senhor estava bastante nervoso e mostrava uma atitude imprópria. Alguma noite, de todas as que o havia servido, ele se retirou para a cama antes das três da manhã? Nunca. Apenas durante as viagens que fazia em seu navio que abria os olhos antes do resto da tripulação. Segundo percebera, durante a sua permanência naquela casa, ele esquecia a retidão de um capitão de navio para se tornar o jovem que realmente era. Mas lá estava ele, mais acordado do que ele mesmo e com um rosto pensativo. Lamentaria sua decisão? Estaria pesando, finalmente, nas consequências que acarretaria a ele mesmo pela decisão que tomara? Se fosse assim, seria a primeira vez que o faria, como se levantar tão cedo.

?Recebi alguma resposta às cartas que enviou ontem? ? Ele perguntou, mesmo sabendo que o fiel mordomo teria informado a ele no ato, caso tivesse recebido.

?Não, Excelência.

Não era normal que seu irmão adiasse uma resposta, e muito menos não lhe pedir uma explicação para sua viagem repentina. Se a experiência não o iludisse, uma vez que Roger lesse a carta, investigaria o motivo de sua rápida partida. Acharia que estava fugindo de um marido irritado? Não duvidava que esse fosse seu primeiro raciocínio. Os Bennett tinham uma reputação de libertinos que não podiam eliminar, embora não tenham feito nada para que desaparecesse. Quando se tem o sangue contaminado pela devassidão, a mantém até que, como Roger, encontre a mulher perfeita. No entanto, ele não a encontrou nem estava procurando por ela. Precisava esclarecer muitas coisas antes de dar um passo tão importante.

Olhou novamente para as janelas ao lado da porta da frente. O sol ainda estava escondido atrás das montanhas. Concluindo que dez minutos não haviam passado desde que olhou pela janela do escritório. Se durante o dia ele não procurasse certos entretenimentos que pudessem acalmá-lo, as horas pareceriam anos.

?Diga ao cavalariço para preparar Bucéfalo[7] imediatamente. Decidi cavalgar antes do café da manhã, ? ele comentou, depois de entender que precisava sair dali antes que o seu desespero o enganasse.

?Tem certeza? ? Kilby perguntou, perplexo.

?Sim, ? Logan respondeu depois de virar para a esquerda e subir os degraus de três em três.

?Vou checar seu valete imediatamente! ? O mordomo informou-o, assim que seu senhor alcançou o meio daquelas intermináveis escadas de mármore cinza.

?Ele já deveria estar alisando meu terno! ? Logan respondeu sem olhar para ele.

Kilby suspirou profundamente, caminhou até a ala dos criados e, depois de explicar ao jovem Howlett que o lorde precisava dele, foi até a cozinha dizer a cozinheira que o café da manhã seria atrasado... de novo.


***


Anne, como todas as manhãs, depois do seu banho habitual, caminhou para a saída do quarto sem fazer nenhum barulho. Mary esteve lendo até altas horas de novo e não queria ouvi-la resmungando sobre o descanso mental que precisava para continuar sendo a irmã mais instruída. Antes de abrir a porta, deu uma última olhada na dorminhoca e suspirou. Não conseguia ficar zangada com ela por dispensar o convite do visconde, a entendia. No entanto, teria gostado que ela viajasse ao seu lado em vez de suportar as conversas agonizantes que teria com Elizabeth ou cuidando de Josephine para que não atirasse onde não devia com sua nova arma. Pensando em como enfrentaria as atitudes malucas de suas irmãs e se concentrar em terminar seu trabalho o mais rápido possível, ela saiu, fechou a porta devagar e caminhou pelo corredor na ponta dos pés. Se a luz que entrava pelas janelas não a iludisse, estava amanhecendo e, com exceção da mãe ou do serviço, ninguém teria acordado tão cedo. Desceu as escadas suavemente, como se estivesse andando entre algodões. Quando parou em frente à porta de entrada, estendeu as mãos para ela, como se estivesse sendo convidada a sair de casa e encontrar alguma paz. Uma que não tivera desde que o visconde invadiu sua vida. Pensando nas alterações que ele provocava, franziu a testa. Estava com raiva, demais para não gritar e acordar todo mundo. Era inconcebível que tivesse que seguir as ordens daquele homem. Imagino que essa mudança não será um revés porque, pelo que entendi, artistas como a senhorita amam paisagens costeiras. Não acha que é uma ótima ideia? Me retratar em frente ao mar, quero dizer. Como poderia ser tão arrogante? Como poderia ter como certo que ela adoraria uma paisagem costeira? Bem, ele estava errado! A melhor paisagem para um ser tão odioso quanto ele seria colocá-lo em uma caverna escura, cercado por insetos repugnantes e exibindo aquela aura autoritária e sombria que tentava esconder sob aquela figura espetacular. Sim, um par de cobras iria de acordo com sua imagem. Pintaria uma de cada lado, enroladas em volta do pescoço, como se tentassem sufocá-lo. A imagem desse retrato provocou nela uma grande gargalhada, que calou colocando as mãos sobre a boca. O que o orgulhoso visconde pensaria quando o visse? Pareceria correto para sua pessoa? Sem apagar aquele sorriso do rosto, ela caminhou em direção à cozinha. Deveria tomar café antes de enfrentar a chegada do criado. Ainda não havia elaborado a lista com tudo o que precisava para realizar seu trabalho e teria que se concentrar nela. Ele não disse para comprar cinco unidades de cada coisa? Bem, aumentaria essa quantidade. Talvez a triplicasse, para que sua grande fortuna diminuísse.

Enquanto caminhava para aquela parte de sua casa, continuava pensando no contrato que assinara e na velocidade em que o usara. Planejara isso? Antes do acordo ser assinado, o visconde já havia decidido onde aconteceria? Lembrou novamente das frases que usou para se expressar e ficou com raiva de novo. Como ele podia ser tão insolente? Seu ego era tão grande quanto os mares nos quais navegava? Bem, pelo menos teve a gentileza de se encarregar de todas as despesas que o infeliz plano traria. E, claro, ela se encarregaria de fazê-lo gritar mais do que a fatura que seu navio naquele dia. Quantas criadas seriam necessárias para servi-la? Uma para cada irmã? Ela acrescentaria mais dois, um para ajudá-la a mover o pesado cavalete e outro para acalmar a sede causada pelo esforço de pintá-lo. Certamente, quando tivesse que enfrentar os pagamentos, aquele sorriso malicioso desapareceria de seu rosto...

?Bom dia, Shira, ? disse para a donzela quando a encontrou em frente ao fogão.

?Senhorita Anne! ? Ela exclamou surpresa. ? Por que se levantou tão cedo? São apenas sete e meia ? ela apontou, abandonando suas tarefas para se aproximar da jovem.

?Não fui capaz de dormir, ? disse enquanto se dirigia para uma das cadeiras que cercavam a mesa de madeira grossa e escura.

?Imagino, ? Shira murmurou.

?Mamãe está acordada? Está no salão matinal? ? Ela perguntou, escolhendo a cadeira à sua direita.

?Não, a senhora não se levantou ainda.

?Não? ? Ela exclamou um pouco antes de suas nádegas roçarem o assento.

?Seu pai foi o único que se levantou antes da senhorita. Um par de horas atrás, um servo de Lady Fingher reivindicou sua presença porque ela entrou em trabalho de parto, ? declarou antes de se virar para o fogo. Quer que eu faça chá para a senhorita?

Anne não conseguiu se sentar, ficou parada quando soube que seu pai ajudaria a trazer outro bebê ao mundo. Como a futura mãe se sentia? Ficaria nervosa? Gostaria que sua dor parasse logo? O que faria quando tivesse aquele filho há muito esperado em seus braços? O rejeitaria como tinha feito a sua mãe?

?Ainda não estou com fome, ? disse, se afastando da mesa e da cadeira. ? Acho que vou dar um passeio no jardim.

?Sua mãe não vai gostar de saber que saiu sem café da manhã. Sabe disso...

?Não se preocupe. Antes de que saia do seu quarto, terei cumprido essa regra estrita, ? ela disse, caminhando em direção à porta.

?Precisa do seu casaco? ? Ela insistiu em atendê-la.

?Vou pegar o manto que deixei na sala de estar. Com isso terei o suficiente, porque não quero me demorar muito, ? disse antes de deixá-la sozinha.

Caminhou lentamente até a sala onde encontraria sua amada mantilha laranja, se sua mãe não a tivesse feito em pedaços como avisara. Felizmente para ela, depois da comoção que se formou na tarde anterior, ela se esqueceu de cumprir aquela ameaça absurda e, depois de chegar na sala, encontrou-a nas costas da cadeira de balanço de sua mãe. Sem perder um único segundo, a pegou, cobriu os ombros com ela e saiu de casa com pressa. Se ela quisesse ficar sozinha por um tempo, não poderia se demorar.

Quando abriu a porta, o frescor de um novo amanhecer a saudou. Esfregou os braços, para aquecê-los, olhou para cima e suspirou. Como seria o céu de Brighton? Haveria nuvens ou poderia contar todas as estrelas que seus olhos veriam à noite? Quantas haviam? Com certeza, Mary saberia a resposta...

Lentamente, ela desceu os degraus e continuou olhando para o céu até que seus sapatos afundaram no gramado do jardim. Sem saber por que, fixou os olhos no portão de entrada, que ainda não havia sido aberto. Sua mãe iria repreendê-la se descobrisse que sairia sem uma criada? Que perigo poderia causar uma pequena caminhada na rua? Chegaria à última residência e voltaria logo. Só precisava, por alguns minutos, sentir uma liberdade que não alcançava por muitos anos.

Abriu o trinco na cerca, olhou de lado para a sua casa e esboçou um sorriso infantil. Ela ia fazer uma pequena travessura, mas ninguém saberia por que voltaria antes que sua mãe se levantasse.


***


Seu cavalo galopou com uma fúria sem precedentes. Parecia que, depois de montá-lo, ele transmitira seu desejo de liberdade, que não possuía quando estava em Londres. Mal teve que estimulá-lo a percorrer as ruas solitárias da cidade. Ansioso, desesperado e cheio de energia, ele continuou com aquela corrida que durou pouco mais de meia hora. A crina de seu cavalo negro dançava ao ritmo do vento. Como seu garanhão, Logan decidiu montar com o cabelo solto. Qualquer um que saísse de suas casas retornaria rapidamente ao testemunhar uma imagem tão bárbara. Mas não se importava com o que pensavam dele, aqueles momentos pareciam tão bons que não interromperia o laço que cavalo e cavaleiro adquiriam quando estavam juntos. Ambos precisavam daquele tempo de liberdade e paz.

Logan fechou os olhos novamente para sentir o vento batendo em seu rosto. Era maravilhoso para ele abandonar, por um breve espaço de tempo, o controle de sua vida, do seu entorno e longe da pressão da realidade... seu sangue cigano, controlado a cada minuto, fluía em suas veias com tal ardor que fazia seu corpo doer. Como poderia esquecer essa parte dele? Como conseguiria tirar definitivamente essa metade do seu verdadeiro eu, se ela lhe trazia tanta felicidade? Perdido pelo pensamento repentino, abriu os olhos e diminuiu o ritmo. O que estava acontecendo com ele? Por que ansiava por algo que havia derrubado no passado? Não se lembrava das consequências do seu nascimento? Não podia aludir a esse estágio de sua vida. Precisava esquecê-lo e continuar sendo a pessoa na qual se tornara: um aristocrata.

Irritado, por se deixar persuadir sobre algo que rejeitara com firmeza, entrelaçou as rédeas do cavalo e reduziu a corrida a um trote suave. Anne era a culpada desses distúrbios. Ela, em sua bravura e arrogância, confessara a ele que adorava ser uma mestiça e que seu sangue cigano era tão valioso quanto o da burguesia. Isso o chocou tanto que, embora não quisesse, sua mente determinou que talvez ele pudesse fazer o mesmo: ter orgulho de ser uma pessoa diferente daquela que mostrava aos outros. Mas era errado. Ele se tornaria um marquês. Se Deus fosse benevolente, talvez ele não tomasse posse do título. No entanto, até agora, não havia outra opção.

Lentamente, soltou as rédeas para incitar Bucéfalo, mas as reteve rapidamente tentando notar onde estava. Visitou aquela área de Londres há dois dias. Por que estava andando pela rua onde os Moore moravam? Por que agia estranhamente desde que conheceu Anne? Tinha certeza de que aquela mulher, de cabelos e olhos castanhos, não o enfeitiçara? Freou seu cavalo, puxando as rédeas rudemente. Bucéfalo relinchou em desagrado. Logan, como recompensa por sua submissão, acariciou seu pescoço grosso e o satisfez com palavras amorosas. E lá permaneceu por vários minutos: montado em seu grande cavalo, mantendo uma pose ereta, como se fosse o próprio Alexandre, o Grande, observando o poder de suas tropas, e sem poder desviar o olhar da entrada da casa dos Moore. Por um momento, apenas por um décimo de segundo, a ideia de aparecer na casa do médico e acompanhar Anne até as compras pareceu requintada. Mas ele rapidamente eliminou isso de sua mente. Não poderia ser tão ousado. Deveria se comportar como um cavalheiro enquanto eles estivessem em Londres. Tudo seria diferente em Harving. Lá, longe dos olhares que o observavam com mesquinhez, ele se deixaria levar e permitiria que Anne descobrisse quem ele era realmente.

Com um trote suave, ele desceu a rua, tentando desviar o olhar da propriedade dos Moore. Era arriscado ser visto vagando por aquele lugar. As pessoas podiam sussurrar sobre o motivo real sobre presença dele e a viagem repentina das irmãs. Ele não devia estar ali, tinha que fugir, devia ficar afastado até que ela estivesse sob sua proteção.

Levantou as duas mãos, pronto para incitar o cavalo a outro galope selvagem, mas novamente seu desejo se dissipou enquanto observava uma figura alta deixar a casa do médico. Quem seria? Qual irmã deixaria seu lar acolhedor neste momento? Porque motivo? Seria Mary? Ela iria em segredo para alguma residência onde permitissem sua presença? Lentamente, avançou para essa imagem feminina. A cada passo que Bucéfalo dava, o perfil dessa figura ficava mais claro. Não era Mary, mas Anne. O manto laranja revelava quem estava escondido debaixo dele. Ele parou o trote, pensando se seria certo abordá-la. Não, não seria. Deveria esperar até que estivessem em Harving. No entanto, sob seu olhar atento, a jovem continuou sua caminhada sem perceber que alguém a observava. Ela parecia andar decidida, como se soubesse para onde deveria ir. Logan sentiu um calor estranho em seu corpo. A mente ofereceu-lhe uma miríade de razões pelas quais uma mulher deixaria seu lar tranquilo naquela hora da manhã e sem a devida vigilância. Aquele calor se tornou tão intenso que as mãos, envolvidas nas luvas que costumava usar, começaram a suar. Não podia ser. Ela não faria essa loucura. Ela era... diferente?

Atordoado, irritado, bateu os calcanhares de suas botas na barriga Bucéfalo e ele assumiu outra corrida semelhante a anterior. No entanto, quando nem de dez passos o separavam de Anne, puxou com força as rédeas, fazendo com que o cavalo levantasse os seus quartos dianteiros e relinchasse com a brutal frenagem.

?Por Cristo abençoado! ? Anne gritou, colocando o antebraço esquerdo em seu rosto para que nenhum casco daquele animal feroz pudesse alcança-la.

?Que diabos está fazendo aqui? ? Bennett explodiu depois de tranquilizar o cavalo dando uma palmadinha em seu pescoço.

Anne, ouvindo a voz do terrível cavaleiro, que quase a atingiu, lentamente afastou o braço do rosto e olhou para ele com ódio.

?Que diabos eu faço aqui? ? Ela respondeu. ? O que diabos o senhor está fazendo aqui?

?Por acaso perdeu o pouco raciocínio que poderia ter? Como se atreve a caminhar a essa hora e sem uma proteção relevante?

?Que? Como...? Quem pensa que ele é, milorde? ? Ela levantou tanto a voz que sentiu uma dor terrível na garganta.

?Sou um cavaleiro entusiasta que interrompeu sua esplêndida cavalgada matinal por sua causa ? disse ele, desenhando um sorriso enorme.

Mas toda essa zombaria que ele queria mostrar era falsa. Os pensamentos que teve sobre ela, antes de reconhecê-la, atormentavam sua cabeça. Pretendia visitar seu amante? Ela teria ido em busca do homem que amava depois de ser informada de que deveria empreender uma longa viagem? Quem seria ele?

Ciúme. Aquele maldito ciúme voltara e fizera dele uma fera furiosa.

?Não está ciente do que pode acontecer com a senhorita se alguém a encontrar andando sozinha? ? Ele perguntou com raiva quando desmontou. Que imagem quer oferecer, senhorita Moore?

?Mais do que está me culpando? ? Anne disse fora de si.

?Da imagem que mostra ? Ele respondeu tentando manter a compostura.

?E, de acordo com seu bom julgamento, que imagem eu ofereço, milorde? ? Ela perguntou, colocando as mãos na cintura.

?A de uma amante desesperada que deixou sua casa respeitável para visitar a cama quente de um homem ? ele disse, em pé na frente dela.

Mesmo que os olhos de Anne estivessem cheios de raiva, para Logan pareciam preciosos. Apesar de que sua testa estivesse enrugada como um acordeão, era perfeita e, embora seus lábios estivessem apertados, para não cuspir após o comentário audacioso, eles pareciam tão sensuais e eróticos que ele queria beijá-los e eliminar a pressão a que eram submetidos.

?Para um homem que reprova ser julgado incorretamente, devo dizer que tem uma língua muito afiada, ? resmungou, se virando.

Nem dois minutos. Não havia desfrutado daquela caminhada nem dois miseráveis minutos quando o visconde a agrediu. Ele se escondeu como um ladrão para vigiá-la? Por que a interrompera daquele jeito não-decoroso? E, ao invés de se desculpar, a acusou de ser uma prostituta? Ela não tinha o suficiente com o boato de que as mortes de seus pretendentes para que acrescentasse o da concubina! Mas o que ela havia feito para o mundo?

?Não pretende visitar seu amante? ? Logan disse mordazmente.

?Se não quiser que o mande para o inferno, por favor me deixe em paz. Até que apareceu, estava muito calma e salvaguardava a minha honra, ? ela murmurou.

?Garanto que sob minha proteção, sua honra permanecerá intacta, ? ele astutamente apontou.

?Acredita? ?Ela se virou para ele, apertando os olhos. ? Porque entendo que não é a companhia que uma mulher respeitável gostaria de ter. Sua reputação como um libertino o acompanha onde quer que apareça, ? ela acrescentou vitoriosamente.

?Percebo em seu tom de voz, certa nuança espinhosa? ? Logan insistiu.

?Percebeu apenas isso? ? Ela disse antes de dar um longo passo em direção à sua casa.

Logan observou esse corpo rígido com cuidado. Ele a insultou, humilhou-a e só porque sua cabeça lhe ofereceu informações erradas. Por que era tão insensível a Anne? Por que começou uma conversa tão inapropriada? O que teria feito se não fosse ela? Teria se desculpado pelo susto, teria se apresentado e, depois de desmontar, teria conversado cordial e sedutoramente até marcar um encontro. No entanto, ele novamente agiu de forma inconsistente com a senhorita Moore.

?Mil perdões, ? ele disse, de pé atrás dela. ? Sinto muito, Anne. Eu não queria assustá-la desse...

?Não me chame assim de novo! ? Ela disse, se virando com tanta força que a saia de seu vestido azul se emaranhou entre as pernas. Essa brusquidão fez com que vários fios de cabelo escapassem do coque, dando a ela uma imagem mais sedutora do que a que estava tentando oferecer àquele homem. ? Não é ninguém para se dirigir a mim dessa maneira familiar.

?Serei seu próximo cliente, ? ele disse, dando um longo passo em direção a ela. As botas de montar, pretas e brilhantes, emitiam alguns sons leves quando pisavam na estrada. Seu cabelo solto, arrepiado pela corrida, deu-lhe a imagem do homem selvagem que ele era. A camisa branca, liberada da pressão da jaqueta, agarrava-se ao peito como se fosse uma segunda pele. Mas o que deixou Anne horrorizada não foi aquela aparência indomável, mas o tom de voz que ele utilizou para falar com ela e a intensidade de seu olhar. ? Lembre-se que pela duração do contrato, posso chamá-la pelo seu nome se isso me agradar.

?Adicionou essa cláusula ao contrato também? ? Ela disse indignada, afastando-se da fera na frente dela. Uma que, apesar de tudo, causou uma queimação em seu baixo ventre. Como era capaz de despertar nela algo tão inapropriado naquele momento? Por que seu coração batia tão rápido? Por que suas pernas enfraqueceram? Por que não conseguia voltar para casa e concluir essa conversa absurda? Talvez porque, apesar de tudo, a ferocidade que o visconde exibia no rosto era o resultado de um sentimento que a seduzia completamente.

?Caso não tenha lido, tenho que dizer que há muitas cláusulas nele ? ele disse com firmeza, encurtando novamente aquela distância que ela insistia em manter.

?Então acrescente está aqui, ? Anne comentou, mostrando sua raiva na mistura daquelas sensações que não podia controlar.

?Qual? ? Logan perguntou com expectativa.

?A de não se aproximar de mim... nunca! ? Ela gritou.

?Impossível.... Sabe bem que devo estar presente para que...

?Não me siga, ? ela disse, levantando um dedo para ele. ? Fique longe de mim. Eu não quero vê-lo ao meu lado, exceto o que for estritamente necessário.

?E o que significa para a senhorita o estritamente necessário? ? Ele estalou zombeteiramente.

?Descobrirá ? disse antes de se virar com tanto ímpeto que a saia de seu vestido girou inadequadamente entre as pernas.

Quando tentou dar um primeiro passo, não conseguiu separar as pernas e sentiu o corpo começar a cair em direção à calçada. Mas não chegou a tocar o chão. Os grandes e fortes braços do visconde ergueram-na como se ela não pesasse mais do que uma pluma.

?Isso foi o que quis dizer com suas palavras, senhorita Moore? ? Ele perguntou divertido. ? Porque se não for assim... Poderia deixar...

Logan não conseguiu terminar o comentário suspeito. Seus olhos permaneciam fixos nos de Anne, que expressavam modéstia. Sua boca entreaberta, respirando por ela, convidou-o a beijá-la, até que acalmasse a sede que crescia por ela. E seu corpo, sustentado pela força de seus braços, se petrificou ao contato de ambos. Lentamente, devagar demais para um homem bruto fazendo movimentos indesejados, ele a colocou no chão.

?Senhorita Moore... ? ele disse quase sem voz, ? está bem?

Anne não respondeu. Ela ficou tão embaraçada que as palavras não saíram. Ela levantou a saia até os tornozelos, se virou e correu chorando em direção a casa. Como tinha ocorrido a ela sair sem Shira? Como pensou que uma caminhada insignificante poderia lhe trazer alguma paz? Não. Ela nunca encontraria um momento de calma enquanto continuasse a respirar. E por que havia assumido que sua alma não teria mais paz? Porque os olhos do homem lhe mostraram algo que ela nem sequer podia explicar.


XVII


Anne observou a comoção formada em frente à entrada de sua casa. Cinco carruagens estavam atrás do portão de metal preto, esperando por elas. O temido dia havia chegado. Por mais que orasse para que as horas passassem devagar, para deixá-lo doente ou que torcesse o tornozelo, suas súplicas não foram ouvidas. Tudo correu como planejado pelo afortunado visconde. Ela emaranhou os dedos da mão direita na cortina ao observar a figura enorme caminhando em direção ao interior de sua casa. Ali estava o homem que a assustava, exibindo muita segurança e determinação, com seu terno elegante e grande porte. Ela levou as mãos ao peito, tentando aplacar as batidas alteradas. Como de costume, desde que ele invadiu sua vida, não diminuíram, mas aceleraram. Encostou a testa no vidro e suspirou. A sorte estava lançada, não havia como voltar atrás, tudo o que tinha que fazer era se controlar e exibir a atitude sombria que Mary havia ensinado a ela na tarde de ontem. «Se ele sorrir, você mantém os lábios apertados. Se ele a convidar para acompanhá-lo a uma área solitária, peça que Josephine fique ao seu lado. Explique que ela é tão corajosa que poderia salvar os dois de uma situação perigosa, mas deve estar atenta ao cano daquela arma abençoada. Sabe que ela puxará o gatilho sem pensar nisso e não seria certo que levasse outra maldita morte nas suas costas. Não se esqueça de se cercar de pessoas. Se for deixada sozinha, terá um problema. Responda com monossílabos, os homens se aborrecem com mulheres incapazes de manter uma conversa, bem, também com aquelas que podemos tê-las.... Jamais fale de si mesma, isso a faria se mostrar vulnerável. Os homens são como hienas, perseguindo suas presas até que a debilidade delas os torne fortes». Com o conselho ecoando em sua cabeça, ela suspirou novamente. A primeira coisa que devia explicar era o que ela precisava fazer para não sentir o turbilhão de emoções que sentia quando o via. Se pudesse controlar essa preocupação, poderia continuar com todo o resto.

Virou para a porta quando ouviu passos. Retirou-se da janela, caminhou até a cama e enrolou em um lenço branco as poucas joias de cor de laranja que pode esconder de sua mãe, que se certificara de que não haveria nada com aquela tonalidade nos baús. Colocou em seu corpete, adotou uma atitude serena e foi até a saída para confrontar a pessoa que veio para informá-la de que tudo estava pronto e que ela tinha que descer imediatamente.

?Corra! Depressa! ? Josephine gritou animada depois de bater na porta. ? O visconde chegou!

Sem poder negar esse pedido efusivo, partiu, não sem antes dar uma rápida olhada ao lugar ao qual demoraria para voltar. Por que sentia que era a última vez que descansaria em sua cama? Por que sentia anseio pelo que ainda não havia perdido? Ficaria fora de casa apenas por um mês. No entanto, esses trinta dias já pareciam trinta anos.

?Vamos embora! ? Estalou a irmã pegando no braço dela e puxando-a ao vê-la andar tão devagar. ? Estão esperando por nós!

Com um sorriso fingido, ela apareceu no topo da escada, com o vestido que sua mãe forçou que usasse. Embora não gostasse da cor magenta, supunha que lhe convinha muito bem. Josephine deu um passo à frente, saltando os degraus como se fossem troncos jogados em um caminho. Ela, por outro lado, desceu devagar, esperando que, a qualquer momento, alguém informasse que não iria embora porque havia ocorrido um contratempo. Mas ninguém disse nada para ela. Seus pais e irmãs ficaram parados, observando-a com expectativa e em completo silêncio.

Assim que chegou ao salão, ficou diante deles e olhou para seus rostos. Sua mãe mostrou uma estranha ilusão da qual tentara disfarçar. Seu pai não escondeu a tristeza que sentia naquele momento, expressou-a com total liberdade. Elizabeth amarrou cuidadosamente a fita do chapéu. Um que comprou na manhã anterior porque, segundo ela, isso traria sorte. Mary usava um vestido casto com sua cor favorita, cinza. Pelo menos tinha que agradecê-la por não descer de camisola e com aqueles bobs na cabeça. Madeleine se escondeu atrás das cortinas, como se não quisesse estar lá ou testemunhar sua partida. E Josephine... bem, para a ocasião ela havia comprado outras calças pretas e uma camisa turquesa, prendera os cabelos loiros num rabo de cavalo, muito parecido com o que o visconde usava, e escondia no cinto o novo facão que compraram para ela. Eles eram a imagem da família digna de uma pintura. Talvez, quando voltasse, pudesse se trancar em sua sala de pintura para capturá-los. Assim, nunca esqueceria o primeiro dia de seu temido fim.

Logo quando ia abrir a boca para dizer algumas palavras amorosas para Madeleine, para fazê-la eliminar aquelas lágrimas e sua tristeza, a porta da entrada abriu e apareceu uma figura alta que reconheceu rapidamente.

?Bom dia, Sr. Moore. Senhora... ? Logan cumprimentou o casal com respeito e admiração. Mostrando aquela educação dos aristocratas: estudada em detalhe, feita com precisão e apresentando uma imagem de homem honrado. ? Garanto que cuidarei da segurança de suas filhas e que nada de ruim acontecerá com elas durante essas semanas. Espero que confiem em minhas palavras porque elas são verdadeiras, ? acrescentou, olhando para eles sem piscar, assegurando que aquele rosto firme selava um acordo que ele cumpriria até a morte.

?Milorde, ? Sophia disse com uma leve reverência, ? parte com três de minhas filhas e espero que elas voltem com a mesma integridade com a qual foram.

?Juro que voltarão tal como partiram, ? disse o visconde, estendendo a mão para ela para selar um acordo entre iguais.

?Logan! ? Exclamou Elizabeth ao poder finalmente se dirigir a ele. ? Milorde ? se corrigiu rapidamente, abaixou a cabeça e fez uma pequena genuflexão. ? É uma honra poder acompanhar minha irmã e me tornar sua protegida.

Diante desse comentário sério e inadequado da jovem, Logan ergueu a sobrancelha esquerda, perplexo com a estranha apresentação, mas quando Elizabeth fez um leve movimento com os olhos, indicando que deveria se comportar assim diante de seus pais, ele sorriu, aceitou a mão que se estendia e deu um beijo casto nas juntas brancas.

?O prazer e a honra são meus, senhorita Moore, ? assegurou-lhe antes de apresentar novamente a retidão e o porte aristocrático.

?Milorde, esta é Josephine, a quarta das minhas filhas. Ela também estará com o senhor ? disse Randall, pegando a filha pelo braço e colocando-a entre ele e o visconde.

?Senhorita Moore, ? Logan disse elegantemente. Por um segundo miserável, ele observou a garota. Ela não era tão alta quanto as outras, mas tinha cabelos dourados semelhantes aos de Elizabeth, embora seus olhos fossem tão castanhos quanto os de Anne. Ele também notou que seu rosto mostrava uma dureza mais típica de um homem do que a de uma terna jovem.

?Visconde, ? disse ela, estendendo a mão de maneira masculina.

Logan aceitou aquela saudação, minimizando o rosto amedrontado da mãe, que parecia horrorizada pela a forma como sua filha se vestia e se comportava, o que contrastava com a satisfação expressada pelo médico. «Bem, Josephine, imagino que seja a irmã que apontou uma arma ao meu amigo», pensou ele. No momento em que ia direcionar seu olhar para Anne, que seria a próxima a saudar, algo chamou sua atenção. Estreitou os olhos quando descobriu que a menina, que o médico havia colocado como se fosse um temível soldado, escondia um cabo escuro nas costas. Philip não disse que uma das garotas apontou uma arma para ele? Bem, ele havia se esquecido de dizer que ela também usava pequenas adagas. Sorriu maliciosamente ao perceber que era um punhal igual ao que ele mesmo havia adquirido duas semanas antes no armeiro. Então o médico havia escolhido uma escolta ameaçadora para Anne? Bem, ele sabia como agir diante de novos contratempos e essa jovem mudaria seu propósito durante a viagem.

? Procurando problemas, senhorita Moore? ? Ele perguntou com um halo de mistério.

?Porque diz isso? ? Josephine respondeu com seu tom militar habitual.

?Porque se alguém... com um leve movimento... avisa que...

Josephine arregalou os olhos quando o visconde tirou a adaga do cinto sela sem que ela notasse. Então, depois daquele torpor, estendeu a mão e a tomou de volta, irritada com sua falta de experiência e descuido.

?Conforme fui informada, o lugar para onde está nos levando pode estar repleto de perigos, ? ela explicou rudemente e mostrando em seu tom de voz a brecha que fizera em seu orgulho.

?Sabe como usá-lo? ? Logan perguntou, depois de colocar as mãos atrás das costas e fixar o olhar no brilho da lâmina afiada.

?Acha que carregaria uma arma de dimensões semelhantes se não soubesse como lidar com ela? ? Repreendeu ofendida.

?Boa resposta, ? ele assegurou, esboçando um enorme sorriso. ? Então, se quiser, quando nos instalarmos em Harving, posso mostrar a coleção que guardo no meu escritório. Adquiri cem adagas de diferentes países.

E o rosto de Josephine se iluminou... O sorriso que apareceu em seus lábios se estendeu tanto que Logan pôde ver o brilho de dentes dela.

?Será uma honra, milorde, ? ela respondeu com tal cortesia e respeito, que Randall piscou várias vezes para admitir a nova atitude de sua filha feroz.

?Devemos ir embora, ? ele disse sem saudar Anne, que estava completamente em silêncio. ? Quero chegar a Crowley antes do anoitecer. Lá nós vamos descansar em uma pousada e no dia seguinte seguiremos para Harving, ? ele informou. Foi até Sophia, beijou sua mão novamente e então terminou com o médico que, pela palidez de seu rosto, parecia ter se arrependido da decisão de enviar a jovem valente. ? Garanto que suas filhas estarão seguras e que irei devolvê-las com a honra intacta, ? disse ele sarcasticamente. Ele juntou os saltos de suas botas, que soaram ao leve impacto, balançou a cabeça para a frente e se virou.

Quando Logan se virou para a porta, notou que a cortina da janela da direita estava se movendo, instintivamente, ele olhou para o chão, encontrando dois sapatos femininos azuis. Com as mãos para trás novamente, as costas completamente rígidas, ele deu vários passos em direção a esse tecido, inclinou-se para a frente, como se estivesse sussurrando no ouvido de um amante e adotando a voz terna e encantadora que ele usava para deslumbrar uma mulher e disse:

?Deve ser a tímida Madeleine Moore. Prazer em conhecê-la, mesmo através desta cortina dura. Garanto que suas irmãs estarão seguras sob minha tutela e que elas retornarão sãs e salvas. Caso contrário, eu mesmo irei até o telhado do edifício mais alto e me jogarei como um pássaro sem penas.

Uma pequena risada foi ouvida por trás do tecido, que se movia de um lado para o outro, continuando a esconder a figura de Madeleine.

?Chegamos a um acordo, senhorita Moore? ? Ele insistiu sem se mexer.

?Sim... milorde, ? ela disse timidamente.

Madeleine puxou a cortina um pouco para estender a mão para ele. Por mais estranho que parecesse a ela, o tom quente e despreocupado do visconde a relaxara a ponto de querer se mostrar por completo, mas mantinha a reserva porque, segundo sua mãe, a desconfiança em relação aos outros não podia ser esquecida.

Enquanto aceitava esse gesto, ouviu os ofegos de vários membros da família. Uma vez que soltou a mão macia e pálida da jovem, se virou e descobriu que os gemidos foram provocados pelo médico e por Anne. Era tão estranho que ele soubesse como conquistar uma mulher? Eles achavam que a fama de um libertino, aquela que Anne recriminava, era falsa? Pois eles haviam testemunhado sua graça e autoconfiança. Com um sorriso triunfante, ele caminhou até a porta, voltou para se despedir do casal com um leve aceno de cabeça e desceu devagar as escadas.

Em alguma ocasião ela havia dito que aquele homem a assustava? Bem, agora ele triplicou seu medo. Como poderia ser tão encantador e perverso ao mesmo tempo? Como era possível que a presença dele perturbasse o mundo inteiro? Que diabos ele escondia sob aquela figura masculina? Como poderia suportar isso por trinta dias?

?Lembre-se de tudo o que dissemos, ? o médico disse a Anne depois de lhe dar dois sonoros beijos. ? Fique no seu lugar, que ninguém poderá difamá-la. Se tiver algum problema, escreva para nós. Se quiser nos perguntar algo, escreva-nos. Se quiser vir para casa antes de terminar o trabalho...

?Calma, pai, escreverei todos os dias, ? ela disse antes de abraçá-lo com força.

?Embora tenha dado sua palavra, embora tenha mostrado tanta seriedade, pode voltar quando quiser, ? disse Sophia, abraçando-a também.

?Estaremos fora apenas algumas semanas e temos certeza de que nada acontecerá conosco, ? ela disse, expressando em seu tom uma certeza que não sentia.

?Claro que nada acontecerá conosco! ? Elizabeth exclamou impaciente, ela beijou seus pais, suas irmãs e desceu as escadas correndo para descobrir em que carruagem viajaria.

?Josephine, atire assim que o ver se aproximar, ? Randall pediu a sua quarta filha depois de beijar suas bochechas. ? Sabe que tem meu apoio total.

?Sim, pai, ? ela respondeu com alguma relutância, porque em sua mente havia apenas uma imagem: a daquelas adagas que logo contemplaria. De onde elas seriam? Encontraria diferenças com a sua? O visconde saberia como lançá-las? Deixaria que ela praticasse? Como se comportaria seu novo guardião quando pedisse um cavalo para galopar por seus domínios? Permitiria que ela fosse caçar?

?Então já sabe, avise-nos assim que chegarem... ? Sophia terminou de dizer a Josephine.

A jovem olhou para ela com os olhos arregalados, escondeu a surpresa e respondeu a algo que havia dito, mas ela não escutara.

?Acalme-se, tudo ficará bem.

?Sentirei sua falta, pequena, ? Anne disse a Madeleine depois de abraçá-la e beijá-la. ? Mas voltarei em breve. Pode riscar os dias no calendário que papai tem na biblioteca.

?Eu sei, ? disse Madeleine, que não tinha mais uma única lágrima no rosto. E mais, parecia feliz demais para uma jovem que passara as últimas horas chorando pela partida de suas irmãs.

-?Sabe? ? Anne perguntou levantando as sobrancelhas.

?Sim! ? Ela exclamou antes de beijá-la na bochecha e correr ao redor da galeria pulando.

?O que deu a ela? ? A pergunta foi dirigida a sua mãe, muito propensa a obrigá-la a beber várias xícaras de tília para que a pequena suportasse qualquer situação angustiante.

?Nada. Também estou surpresa ? disse Sophia. ?Talvez tenha entendido que era o melhor a acontecer e tenha aceitado isso com integridade.

Mas Anne não se conformava com esse raciocínio. Sua bruxinha nunca pulou daquele jeito infantil. Algo a deixara feliz e, quando voltasse, perguntaria sobre essa mudança de atitude.

?Quer sair de uma vez? ? Mary disse irritada com a pantomima familiar. ? Eles à estão esperando, ? ela disse apontando para as carruagens.

?Não vai me dar um beijo de despedida?

?Não existe despedida, Anne, nos veremos em apenas algumas semanas, ? disse rudemente.

Não, é claro que ela não ia chorar, que não ia dizer que sentiria falta dela toda vez que aparecesse no quarto e que não ficaria feliz em apagar a luz sem vê-la dormir. Tinha que manter seus sentimentos em segredo para que não ficasse vulnerável, como havia explicado na tarde anterior.

?Então... vamos nos ver, ? disse Anne, colocando o casaco.

?Sim, isso, ? ela disse, se virando e indo para algum lugar onde pudesse chorar sem ser observada.

Anne desceu os degraus com cuidado. Agora que tudo estava pronto, não seria correto torcer o tornozelo que desejara luxar na tarde anterior. Andou calmamente pelo caminho estreito que levava ao portão, à saída, a ele. A borda do vestido arrastou as pequenas pedras que estavam em seu caminho. Apertou o casaco com força, como se um furacão tivesse aparecido de repente. Cruzou o portão, se apresentou diante das cinco carruagens que a aguardavam e procurou por suas irmãs.

?Pode sentar onde quiser... ? Uma voz sussurrou atrás dela.

Anne se virou para enfrentar esse homem respeitável e educado. Olhou para cima, pois embora ela fosse alta o suficiente para uma mulher, ele estava um par de cabeças acima dela. E, quando seus olhos se encontraram, seu coração deixou seu peito para se acomodar em sua garganta.

?Vou viajar ao lado de minhas irmãs, ?disse com uma voz quase inaudível.

Seu cheiro, aquela mistura de essências picantes, colônia e tabaco, alcançou seu nariz e entrou em seus pulmões sem uma barreira para detê-lo. Ela engoliu em seco, tentou manter a calma e respirou fundo. Como enfrentaria um homem como ele todos os dias? Como poderia esquecer aquelas sensações estranhas que sentia toda vez que ele estava ao seu lado?

?Se fizer a gentileza, ? ele disse, oferecendo-lhe o braço, ? eu a levo até elas.

Mantendo uma força que ela não sentia, Anne colocou a mão naquele antebraço. Quando o tocou, sentindo-o, uma faísca elétrica a fez se sobressaltar. Tentou afastar a mão, mas ele colocou uma das mãos dele sobre a dela, forçando-a a ficar ao seu lado.

?Quero me desculpar pela interrupção de ontem, ? Logan comentou, dando uns passos tão curtos que até uma menina de dois anos os ultrapassaria. ? Meu comentário sobre... estava fora de lugar.

?Visitar um amante? ? Ela o interrompeu, sem olhar para ele e quase sem mover os lábios.

?De fato, ? ele assegurou a ela. ? Foi uma loucura falar com a senhorita daquele jeito e eu não tinha o direito de...

?Nada. ? Ela cortou novamente. ? Não tem direito a nada. A única coisa que nos une é um contrato de trabalho.

?Sim, senhorita. Isso é o que nos une até o momento..., ? ele sussurrou antes de parar na frente da porta da carruagem em que as irmãs estavam viajando. Ele a ajudou a subir, fechou a porta e a observou sentar no banco. Ela não o olhou. Agiu como se não existisse, mas essa atitude elusiva iria mudar... Depois da noite em claro que ele havia passado por causa dela, muitas ideias haviam aparecido e, felizmente, ele teria trinta dias para realizá-las.

?A informação foi útil? — Kilby perguntou quando seu senhor subiu na carruagem.

Por causa das exigências do visconde e do espaço, porque a Srta. Moore acrescentara cinco donzelas à lista infinita de artigos para atendê-las, ele deveria viajar com sua Excelência.

?Não pode imaginar o quanto... ? Logan respondeu depois de bater no teto para o cocheiro começar a viagem.

Kilby mordeu a língua para não insistir em falar sobre isso, mas a culpa que sentia o torcia por dentro. Quando o visconde lhe disse que deveria falar com a Srta. Anne para extrair informações sobre sua família, tentou dissuadi-lo, embora não tenha conseguido. Ele havia proposto reunir-se com todos os membros por algum motivo estranho. Dessa forma, descobriu que Anne adorava a cor laranja, que sua fruta preferida era a Pêra e que gostava de passar as tardes de chuva sentada na cadeira de balanço de sua mãe. O que ele descobriu sobre Mary, a irmã que a acompanhou até a residência Whespert, o deixou congelado. Ele nunca imaginou que uma mulher tivesse tal talento na medicina. No entanto, ficou muito triste ao saber que todos os homens a rejeitaram por causa de seu grande intelecto. Agora ele entendia a razão de seu caráter azedo e a razão pela qual ela estava tão feliz quando apareceu com o livro. A senhorita Elizabeth a conhecia desde que ela era uma criança carinhosa, mas a informação que obteve sobre a doença que sofreu cinco anos atrás era nova para ele. Deve ter sido difícil olhar no espelho e ver um lindo rosto cheio de pústulas. Felizmente, tudo aconteceu e não houve sequelas. Então havia a quarta irmã, Josephine para o resto do mundo e Josh para a privacidade dos Moore. De acordo com o que Anne dissera, ela era a irmã soldado e essa atitude só agradava ao seu pai, porque viu naquela garota o filho que não pode ter. Embora tenha ficado surpreso ao ouvir que ela praticava todos os tipos de atividades perigosas. Logicamente, uma que deixou seu senhor muito surpreso foi atirar facas. Quem chamaria esse tipo de horror de esporte? No entanto, o sorriso que o visconde mostrou ao ouvir tal loucura permaneceu gravado em sua mente. Finalmente, contou a ele sobre uma jovem garota chamada Madeleine, a última criança a nascer. Anne assegurou que ela era a mais bela e mais doce e que no dia em que um homem a descobrisse, ficaria tão enamorado daquela criatura que seria incapaz de esquecê-la. Mas a timidez que sofria desde o seu nascimento, por parecer tão diferente de suas irmãs que se achava inferior, era uma barreira pessoal intransponível. A única maneira no mundo de levantar o escudo de ferro era fazê-la sorrir. A pessoa que causasse uma leve risada, descobriria o charme da quinta irmã. Também confessou que costumava sair para o jardim e admirar os pássaros.

Kilby olhou de relance para o visconde, que se acomodara no banco, estendendo as pernas compridas para o assento oposto. Um dos desconfortos sofridos pelos Bennett era isso, não serem capazes de se ajustar à estreiteza das carruagens. Desviou o olhar daquelas pernas intermináveis e fixou no rosto dele. Ele sorriu de orelha a orelha, satisfeito com o que fizera antes de entrar na carruagem. O que seria desta vez? Teria usado toda a informação que pediu para fazer algo de que se orgulhasse? Ele teria feito bem? Fez a coisa certa ao obedecer a seu senhor?

O mordomo jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Preferia pensar que sim, caso contrário, a viagem de dois dias se tornaria um inferno para ele.


XVIII


?Acha que o visconde fará uma festa em nossa honra?

O período de evasão mental a que havia sido submetida desde que partiram, porque não queria ouvir o incessante palavreado de Elizabeth sobre tudo o que faria quando chegassem à Harving House, foi interrompido quando a ouviu fazer a pergunta. Anne abriu os olhos, pregou-os na irmã e fez um gesto horrendo.

?Como pode pensar em tal coisa? Não está ciente de que devemos passar despercebidas? Se o visconde oferecer uma festa, depois da nossa chegada, todos se perguntarão por que motivo quer nos apresentar na sociedade, ? ela disse com raiva.

?Motivo? Não acha que é um ótimo motivo se tornar nosso tutor por um mês? ? Respondeu Elizabeth, tão zangada quanto ela.

?Nosso tutor?! ? Esbravejou Anne. Franziu a testa, apertou as mãos e soltou toda a fúria que havia contido desde que saíram. ? Ainda não sabe qual é o nosso propósito nesta viagem? Porque, até onde entendo, a única razão pela qual deixamos nosso lar acolhedor é cumprir com um contrato de trabalho.

?Não vou ficar sentada sem fazer nada enquanto estará pintando em uma estúpida tela, ? Eli murmurou, movendo-se desconfortavelmente no banco. ? Pretendo aproveitar ao máximo a magnífica oportunidade que a vida me deu.

?Para que? ? Estalou, virando-se para ela. ? O que planejou, Elizabeth? Não pensa fazer uma das suas loucuras normais, certo? Minha missão, durante este mês, é fazer um bom trabalho para que possamos retornar para nossa casa, conforme solicitado pela mamãe ? disse ela com firmeza. ? Se em algum momento, se em algum miserável momento, tiver imaginado que é livre para fazer o que quiser, está enganada! ? Ela berrou.

?Se tornou tão obtusa que não conserta nosso futuro? ? Ela perguntou cruelmente.

?O que? ? Anne perguntou desnorteada. ? A que futuro se refere? O de se converter na prostituta de um porco aristocrata?

Depois daquelas palavras duras, Anne apertou os lábios e tentou parar sua língua maligna que desejava liberar mais atrocidades. Não era hora de discutir o comportamento descarado de Elizabeth ou sua falta de consideração. A única coisa que deveriam focar era mostrar o respeito e o conhecimento que seus pais lhes ensinaram desde a infância e se esconder dos outros o que realmente eram.

?Fala assim porque tem tudo muito fácil... ? Eli disse, dando as costas para as irmãs. Olhou pela janela e suspirou.

?Fácil? ? Josephine repetiu, silenciosamente e sem olhá-las, continuou a limpar a lâmina de sua nova faca. ? Por que diz esse absurdo, Eli?

?Porque todas são especiais, exceto eu, ? disse com um ligeiro soluço.

?Todo mundo é especial porque, graças a Deus, não somos iguais, ? disse Anne, aturdida. ? Seu dom para criar belas e estranhas flores é.... lindo ? acrescentou com ternura.

?Sim, claro. Amanhã, quando meu rosto estiver cheio de rugas e me tornar uma velha rabugenta, direi a todos que meu maior charme é cultivar flores. Que apelo aos cavalheiros que ainda são solteiros! ? Ela comentou sarcasticamente.

?Acha que...? Realmente aceita isso...?

Anne não conseguiu terminar nenhuma das perguntas que começara. Talvez porque fosse incapaz de assimilar a confissão de sua irmã. Ela achava que era inferior aos outros? A bela Elizabeth Moore era autoconsciente? Não, não poderia ser verdade. Essa revelação era outro artifício para prejudicá-la. A mente, escondida sob o lindo chapéu, traçou um plano miserável para fazê-la se sentir uma mulher abominável.

?Bem, eu a invejo, ? disse Josh.

?A mim? ? Elizabeth perguntou atordoada, virando-se para ela. ? Por quê?

?Porque está feliz com suas flores, embora agora não queira admitir isso. Cada vez que obtém o crescimento de um novo broto, que ao longo do tempo se transforma em uma bela planta, vejo em seu rosto uma felicidade que não possuo, ? explicou.

?Bobagem! Diz isso para que não me sinta mal... ? Eli murmurou, acrescentando a essa declaração um movimento de desdém com a mão esquerda.

?Não, é verdade, ? ela assegurou. ? Muitas manhãs, quando me levanto e olho pela janela do meu quarto, vejo que sai da estufa bem feliz. Isso, mesmo que não acredite, me dá uma certa inveja. Eu a vejo tão empolgada, tão apaixonada pelo que faz lá, que ninguém suspeitaria que, no fundo, se sente infeliz.

?No dia em que me casar com um aristocrata, alcançarei essa felicidade. Enquanto isso, tenho que me contentar com o pouco que tenho, ? ela assegurou com firmeza.

?Porque tem que ser um aristocrata? ? Josh perguntou, colocando a adaga no banco.

?Porque esse tipo de cavalheiro não valoriza o intelecto de uma mulher. Eles só querem ter ao seu lado uma linda esposa com quem andar e assistir às celebrações.

?É isso que aspira na vida? ? Anne se intrometeu, estava tão confusa quanto surpresa.

?Sim, essa é a única coisa com que posso sonhar, ? ela respondeu antes de voltar para a janela e ficar em silêncio.

Não podia ser verdade. Anne não podia aceitar que a atitude da terceira de suas irmãs se devia a um sentimento de inferioridade em relação a elas. Era verdade que poderia se sentir assim quando Mary falava, mas... das outras? Seus olhos não eram capazes de ver a realidade que a rodeava? Ela estava sentada na frente de uma jovem que limpava a lâmina de uma faca com tanto cuidado que a transformou em um espelho. Sem mencionar o número de vezes que quebrou o vidro de sua estufa ou da casa com aquela espingarda perigosa. E as roupas dela? Não a observava com os mesmos olhos que ela? Porque parecia um jovem sem barba, mais do que uma mocinha na puberdade. E Madeleine? Ela também invejava o comportamento retraído e ilusório? Ela desejava se esconder toda vez que alguém entrasse em sua casa ou gritar horrorizada quando se sentia desamparada? E sobre ela? Não havia a humilhação e a tristeza das mortes de seus dois pretendentes ao seu lado? Anne cruzou os braços, reclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. Elizabeth a enganou novamente, não havia dúvida sobre isso. Porque só assim poderia dar uma explicação para suas palavras errôneas e absurdas.

Por pouco mais de duas horas, as três irmãs permaneceram em silêncio. Anne manteve em sua mente que tudo o que Eli havia exposto era uma mentira e estava procurando mil maneiras para garantir sua segurança enquanto permanecessem em Harving. Josephine, depois de limpar novamente os grãos de poeira alojados sobre a lâmina brilhante, decidira dormir e evitar a visão horrível que mostravam suas duas irmãs. No entanto, Elizabeth mantinha seu corpo rígido, não querendo que suas costas tocassem o encosto, o chapéu inclinasse ou o rosto mostrasse os sinais típicos de uma leve sonolência. Aquele silêncio infernal só foi interrompido quando notaram que a carruagem começava a desacelerar. Parecia que finalmente iam sair daquela maldita e agonizante prisão.

?Senhoritas Moore, ? disse Logan depois de abrir a porta, ?decidi descansar nesse bonito e pacífico lugar. Avisei as criadas que contratei, com grande prazer, que as ajudassem em tudo o que precisarem durante essa curta parada.

Depois de comentar e usar o tom encantador que decidira adotar quando se aproximava delas, Logan ficou pensativo ao descobrir que seu comportamento estudado não dera o resultado que imaginara. Sem desviar o olhar das três mulheres, tentou descobrir o que havia acontecido lá dentro para mostrar rostos tão assustadores.

?Muito obrigada, visconde, ? disse Josh, saltando de seu banco depois de pegar a faca novamente. Sem aceitar sua mão, ela deixou a carruagem, colocou a arma na cintura, esticou os braços para o céu e bocejou alto.

?Que lugar lindo! ? Exclamou Elizabeth aceitando aquela mão que sua irmã havia recusado. ? Escolheu um lugar idílico. Certamente poderemos descansar desta árdua jornada e nos esforçaremos para retomar a marcha.

Desceu devagar, sorriu para o visconde, levou as mãos ao chapéu, para confirmar que não se movera e caminhou sozinha pela estrada até que um dos servos se aproximou para ajudá-la.

?Devo imaginar que sua viagem não tenha sido tão complacente quanto a minha? ? Ele perguntou cruzando os braços.

Não, claro que ele não iria oferecer a mão para ela descer. Não tinha gritado para ele que deveriam ficar afastados? Bem, ele agiria de acordo com seu mandato.

Anne o olhou como se quisesse matá-lo. Agarrou a maçaneta na parte superior da porta com a mão direita, enquanto com a outra levantava o vestido e, sem afastar o olhar fulminante, desceu devagar.

?Seus pais não explicaram que é desrespeitoso ficar quieta quando um gracioso cavalheiro faz uma pergunta? ? Logan insistiu, andando atrás dela. ? Da mesma forma que não é cortês dar as costas a um visconde.

Irritada, ela se virou para ele e quando o encontrou tão perto, olhou em seus olhos, deu um passo para trás, literalmente mordeu a língua e foi para o lugar onde suas irmãs estavam sem gritar tudo o que tinha aparecido em sua cabeça. Nada de agradável para um gracioso cavalheiro...

O que aconteceu nas quatro horas em que estiveram viajando? O que aconteceu com as irmãs adoráveis? Elas teriam discutido? Porque motivo? Ele e Roger faziam isso com frequência, mas depois de várias bebidas, a raiva causada pela discussão desaparecia e eles agiam como se nada tivesse acontecido. No entanto, as irmãs mostravam uma expressão dura, como se nunca pudessem se reconciliar.

Ainda pensando no por que estavam agindo assim, ordenou a Kilby que tirasse a cesta de lanches que a Sra. Donner havia preparado para a ocasião. Talvez, como a Sra. Moore explicou quando se conheceram, as três ficassem com raiva e azedassem sua natureza dócil por não terem nada em seus estômagos. Mas também não deu um bom resultado. Uma vez que aquelas criaturinhas provaram e elogiaram a comida de sua cozinheira, a jovem que se vestia como homem pegou a faca e se afastou das outras. Elizabeth decidiu fazer uma pequena caminhada acompanhada por sua criada e Anne, sentada no cobertor, agarrou seus joelhos e manteve o olhar perdido no prado. O que devia fazer para quebrar essa situação angustiante?

?Milorde, se deseja chegar à estalagem de Crawley antes do anoitecer, não podemos demorar muito, ? Kilby informou que, como seu senhor, não deixava de observar o estranho distanciamento das irmãs Moore.

?Dê-me quinze minutos, ? ele disse enquanto pegava uma maçã e, enquanto se dirigia para Josh, a jogava para o alto e a pegava.

Se ele quisesse descobrir o que havia acontecido entre elas, a melhor opção era conversar com a jovem atiradora de facas, já que Anne ainda estava absorvida em um mundo alheio ao que viviam e a doce Eli, caminhava em direção a um pequeno bosque onde poderia desempenhar suas funções vitais com intimidade.

Uma vez que se aproximou de Josephine e a descobriu lançando sua adaga, cruzou os braços, se apoiou em um tronco e contemplou a destreza da fera.

?Pena! ? Josh exclamou, vendo que sua pontaria não fora tão precisa quanto esperava. Ela caminhou até o robusto carvalho, pegou a faca presa na árvore, colocou a folha que havia usado como alvo em outro lugar no tronco e percorreu a distância que havia estipulado como adequado para atirar.

?Deve segurar a respiração, ? Logan sugeriu suavemente de onde estava.

?Desculpe? ? Josh perguntou, apontando a ponta da faca para ele como se quisesse perfurar seu estômago.

?Se quiser cravar a adaga naquela folha, tem que prender a respiração, ? ele continuou explicando enquanto caminhava em direção a ela. ? Me permite? ? Ele perguntou, estendendo a mão direita para o punho da arma.

?Todo seu! ? Josephine ofereceu, com relutância.

?Quantos passos contou? ? Quis saber, sem tirar os olhos da jovem.

?Vinte desde.... Por todos os diabos do submundo! ? Ela exclamou quando viu como o visconde, sem olhar, jogara a faca e perfurara a folha. ? Como fez isso? Como conseguiu fazer isso sem visualizar o alvo?

?Tenho que confessar que nasci com um desses na mão, ? disse Logan divertido. Deixou que Josh, enquanto ainda gritava de surpresa, fosse até a árvore e elogiasse sua destreza. Ela teve que esperar até que o cabo, devido ao forte impacto, parasse de balançar de um lado para o outro para pagá-lo. Então, desenhando um enorme sorriso, a garota voltou ao visconde. ? Não quero parecer um fanfarrão, ? prosseguiu Logan. ? Mas asseguro que posso apontar para uma aranha, andando na moldura mais fina de uma janela e furar seu minúsculo corpo com a ponta de qualquer um de meus punhais, ? explicou ele, lembrando das noites em que Roger fechava as travas das janelas de seu quarto para que ele não tentasse escapar e respondia com boa noite lançando nele uma ou duas facas. ? Quer que tentemos com esta maçã? Podemos começar com dimensões maiores e ir devagar...

?Se não for doloroso ou lamentável desperdiçar seu tempo me mostrando como fazer, ficarei encantada ? ela disse com entusiasmo.

?Será uma honra, ? falou antes de colocar aquele pedaço de fruta entre dois galhos. Ele se virou para a jovem, que levantava a adaga da maneira errada. Se aproximou dela lentamente, abriu sua mão e a colocou como deveria ser. ? Agora deve se concentrar nessa maçã. Nada pode distraí-la. Precisa manter a calma e, quando sentir como o coração relaxa o batimento cardíaco, segure a respiração e solte.

?Assim tão fácil? ? Josh perguntou, olhando para ele com o canto do olho e expressando alguma descrença em seus olhos.

?Eu garanto, ? disse Logan, cruzando os braços novamente.

Por mais tempo do que ele achava suficiente, a jovem Moore tentou relaxar. Logan esperou ansiosamente que ela prendesse a respiração, e nesse ponto ela lançaria de uma vez por todas o punhal. Mas seu desespero começou a crescer, assim como seu desejo de descobrir o que havia acontecido durante a viagem. Apenas quando abriu a boca para incentivá-la a jogar antes do anoitecer, Josh o lançou e passou pela maçã.

?Perfeito! ? Logan a recompensou. — É a aprendiz mais eficaz que já tive.

Com aquelas palavras tão lisonjeiras para ela, Josephine pegou as calças e fez uma reverência exagerada.

?Obrigada milorde. Não teria conseguido se não fosse um professor tão bom.

?Anda! Traga essa maçã e vamos ver o alcance de sua força! ? Continuou encorajando-a.

A jovem foi correndo até o tronco, pegou o pedaço com o punhal enfiado e, depois de ficar ao lado do visconde, mostrou-se orgulhosa.

?O melhor lançamento que vi em anos! ? Logan comentou quando viu. ? Sem dúvida, confiaria a minha vida a senhorita se estivéssemos em perigo e não duvido que ambos fôssemos vitoriosos.

?Está exagerando, milorde, ? disse Josh, abaixando o rosto.

?Logan, pode me chamar de Logan e não estou exagerando, apenas explicou uma grande verdade. Nunca vi uma pessoa aprender tão rapidamente, ? disse ele, acariciando seu ombro esquerdo com cuidado, assim como faria com um jovem sem barba.

?Josh, ? disse a jovem depois de erguer o queixo. ? Pode me chamar de Josh, se quiser.

?É um lindo nome. Me parece muito de acordo com sua personalidade. Acho que Josephine é muito enfadonho, ? ele disse astutamente.

?Penso o mesmo, mas meus pais decidiram que o melhor nome para mim era o da minha avó paterna.

?Josephine Moore, ? disse Logan, franzindo o nariz. ? Josh Moore.... É mais curto e mais intenso, não é? ? Ele declarou, oferecendo metade da maçã.

?Concordo totalmente, ? ela disse, aceitando o pedaço de fruta.

Com um leve movimento, Logan se virou para o caminho que os levava para as carruagens. Ele permaneceu em silêncio por um breve período de tempo, ponderando se o que pretendia fazer seria correto. Mas o desejo de descobrir o que havia acontecido durante a viagem superou em muito a culpa que teria depois de extrair da garota a informação que queria.

?Josh? ? Ele perguntou, parando de repente.

?Sim, Logan? ? Ela respondeu imitando a freada.

?Preciso da sua ajuda em algo muito importante. Vital para mim, se puder confessar algo tão...

?Pode confessar o que desejar! ? Ela disse rapidamente. ? Sou muito eficaz em guardar segredos.

?Mas talvez... talvez... eu não devesse... isso poderia... ? Ele continuou falando enquanto dava um longo passo à frente.

?Garanto que meus lábios estão selados e que a conversa que mantivermos não sairá daqui ? expos com solenidade.

?Confiarei na senhorita como se fosse o soldado mais leal do meu regimento. ? E um enorme sorriso apareceu novamente nos lábios da menina. Um que expressava honra, respeito, orgulho e felicidade. ? Pode explicar o que aconteceu durante a viagem? Observei que suas irmãs estão com muita raiva e não gostaria de ser a razão para esse distanciamento.

?Não se preocupe, o senhor não teve nada a ver com a discussão que Anne e Elizabeth mantiveram.

?Ah não? ?Exclamou, levantando as sobrancelhas novamente. ? Então... discutiram porque não estavam confortáveis? Não gostaram da carruagem que escolhi? ? Ele disse desconfiado.

?Não se trata disso, Logan, ? ela disse, caminhando lentamente para o lado do visconde. Elas são sempre assim. Anne repreende Eli por mostrar um comportamento descarado e Eli insiste que é a única coisa que pode fazer, depois do que aconteceu com os pretendentes de Anne. Não sei se me entende... ? ela disse olhando para ele pelo canto do olho. Quando viu que o visconde assentiu, continuou: ? Nossa casa não é a mesma desde que o primeiro noivo dela morreu. Como sabe, metade do nosso sangue é cigano.

?Sim, eu sei. Sua mãe me contou quando falei com ela no outro dia.

?A nossa bisavó Jovenka foi...

?Jovenka? ? Logan interrompeu olhando para a jovem, ela fez o mesmo gesto que ele para afirmar. ? Não entendo muito bem a razão, mas esse nome me soa muito... ? Logan comentou pensativo enquanto acariciava a barba.

?Segundo ouvi pela boca da minha própria mãe, ela era uma mulher perversa, como as bruxas que algumas histórias de criança narram. Certamente sua ama de leite lhe contou alguma dessas histórias antes de ir dormir.

?Não tive uma ama de leite, ? ele respondeu com sinceridade.

?De verdade? Pensava que os filhos dos aristocratas eram criados por criadas que os estragavam e os transformavam em crianças manhosas ? Josh disse, um pouco desapontada.

?No meu caso, não. Embora seja verdade que tive uma mulher que cuidou da minha vida durante a infância, mas não a chamaria de babá, mas de mãe, ? Logan disse calmamente.

?Oh, nossa! ? Josh respondeu surpresa. ? Não sabia que os homens eram educados de forma diferente...

?Questão de nascimento, ? Logan disse desconfiado. Se ela imaginava que sua educação tinha sido diferente porque nasceu homem, melhor. Dessa forma, evitaria a verdade. ? Então... o que aconteceu com a sua avó malvada? ? Ele arriscou voltar a conversa ao tópico que o interessava.

?Como estava dizendo, ? ela continuou depois de engolir um pedaço de maçã, ? minha mãe se apaixonou por meu pai e eles escaparam para evitar a ira de Jovenka. Uma mulher acostumada a que todos a obedecessem por causa do medo que lhes causava. No entanto, o amor entre meus pais sempre foi tão grande que eles fugiram de Londres por muito tempo para evitar sua ira. Embora ela os tenha encontrado e, como não conseguia separá-los, gritou que a primeira de suas filhas nasceria amaldiçoada e que a família sofreria a dor que ela sofreu ao ver sua neta casada com um gajo.

?Como poderia amaldiçoar uma pessoa que ainda não havia nascido? ? Logan perguntou com expectativa.

?Não sei, acho que é coisa cigana..., mas a coisa é que, até agora, a maldição foi cumprida. Os únicos pretendentes que Anne teve estão mortos.

?Sim, mas suas mortes podem ser explicadas de maneira lógica, ? disse Logan.

?Essa é a mesma opinião do meu pai. No entanto, minha mãe, embora queira apoiá-lo em todas as suas explicações, não está conformada e continua acreditando que Anne deve se casar com um cigano para que o feitiço desapareça. Mas, como pode ver, não deseja procurá-lo.

?O que não deseja procurar? —Quis saber, enquanto observava os criados começarem a recolher as coisas e as irmãs retornavam para a carruagem, sem sequer olharem uma para a outra.

?Um cigano para se casar, ? disse Josephine.

?Essa é a razão pela qual discutiram? ?Perguntou, levantando as sobrancelhas escuras.

?Não. A razão pela qual não querem falar uma com a outra é porque Anne repreende Eli pelo caráter descarado que ela adquiriu há alguns anos atrás e ela a culpa de que, por causa dela, tem que agir dessa forma para encontrar um marido. Embora, lá dentro, tenhamos descoberto que a verdadeira razão pela qual Elizabeth se comporta assim é porque se sente inferior a todas nós.

?Está realmente falando sobre Eli? ? Perguntou estranhando, parando novamente.

?Sim, dela mesma. Acredito que ela pensa que não é tão inteligente quanto o resto de nós e que só pode se casar com um aristocrata porque eles não gostam de mulheres inteligentes ? ela disse, depois de jogar o resto da maçã no chão.

?Realmente acreditam que nós aristocratas não percebemos o que nossas futuras esposas têm em suas cabeças? ? Disse, espantado.

?Exatamente, Logan. Nós pensamos assim. E agora, se me der licença, vou me sentar com elas antes que voltem a colocar as unhas para fora. Um traço muito característico do nosso sangue mestiço é continuar a guerra que enfrentamos até que um dos oponentes morra.

?Claro, pode ir, ? disse Bennett sem se mover.

Enquanto observava a jovem se aproximar da carruagem, não parou de pensar na disputa absurda. Como Eli poderia se subestimar? Impossível! Ela não só nasceu com uma beleza impossível de superar, mas, ao falar sobre como fazer uma nova flor germinar, usava palavras que ele mesmo não compreendia. Além disso, quantos homens a contemplavam com discrição? Quantos desejavam tê-la em seus braços? Ele jogou o resto da fruta que mantinha na mão direita, secou-a na perna da calça e esfregou o rosto em desespero. Teria que mudar o plano que havia feito para aquela viagem. Precisava eliminar os problemas entre elas se quisesse alcançar algo do que planejara na noite anterior. No final, sua atitude como tutor seria verdadeira e ele teria que adotar esse comportamento com as Moore. Embora não fosse a melhor pessoa para resolver esses tipos de disputas entre mulheres. Ele fugia de mulheres furiosas! Só se aproximava delas para persuadi-las, para deslumbrá-las com suas boas maneiras e transformá-las em amantes apaixonadas. Nunca tentou descobrir o que tinham em suas cabeças ou ordenou que escondessem suas unhas!

?Por Cristo! ? Exclamou enquanto caminhava em direção à carruagem. —Como consegui entrar em tal encruzilhada?

?Tudo bem, milorde? ? Kilby perguntou quando abriu a porta abruptamente.

?Não! ? Gritou antes de se sentar, batendo no teto com o punho, cruzando os braços e esticando as pernas.


XIX


Durante as cinco horas seguintes, ele permaneceu em silêncio, pensando em como sair vitorioso daquela situação. A última coisa que queria era aparecer em Harving House com três gatas furiosas. O que seus servos pensariam quando as irmãs andassem pela residência sem se olhar ou falar umas com as outras? Ou pior ainda... e se elas se envolvessem em uma discussão na frente deles? O serviço não daria crédito ao que seus olhos contemplariam porque, até agora, ele nunca levara mulheres à sua residência no campo e, de repente, aparece com três irmãs que tentavam arrancar as línguas umas das outras. Sem dúvida, acreditariam que seu senhor teria enlouquecido. Na verdade, ele também considerou isso, uma vez que, como ele mesmo percebeu, estava cometendo o maior erro de sua vida. Sem abrir os olhos, franziu a testa com o desconforto que aquele pensamento produzia e esfregou as têmporas, como se sofresse de uma terrível dor de cabeça. Como tinha sido tão ingênuo em fingir que tudo correria conforme o planejado? Não prestou atenção às conversas em que Evelyn se referia ao comportamento volátil das mulheres? Não. É claro que não aprendeu nada do que ela falara e o exemplo claro estava na carruagem ao lado da dele, na qual três irmãs poderiam arranhar seus rostos e puxar os cabelos a qualquer momento.

Não esperou que Kilby abrisse a porta quando a carruagem estacionou em frente à pousada que escolheu para passar a noite. Saiu sem ajuda. Quando o criado deixou o interior, com uma expressão de horror devido a sua atitude, esperou por uma ordem, como sempre. Logan observou-o em silêncio, depois fixou o olhar na carruagem em que as irmãs estavam viajando e disse:

?Informe ao estalajadeiro que precisamos de cinco quartos. Em um deles irão dormir as três irmãs. Eu imagino que vão querer se lavar e descansar antes de jantar. Então diga às criadas que contratei para vê-las o mais rápido possível. Quero que sejam cuidadas e mimadas como se fossem membros da minha própria família. Se uma delas não se comportar como ordenado, retornará a Londres na próxima carruagem.

?Sim, milorde. Quer que eu peça um celeiro para abrigar os cavalos? Não seria justo que estes animais nobres descansassem aqui fora.

?Claro! ? Ele comentou um pouco antes de caminhar em direção ao horror.

O que teria acontecido durante essas horas? Elas ainda estariam zangadas? Teriam puxado os cabelos, como imaginou? Josh apaziguaria as brigas entre Anne e Eli, ameaçando-as com a ponta de sua adaga? Haveria a possibilidade remota de que finalmente tentaram a paz? Isso, embora parecesse uma opção muito improvável, também poderia acontecer. Tantas horas lá dentro, todas as três... pensando sobre mil maneiras de atacar umas às outras e uma única alternativa de reconciliação, ele parou aquela caminhada a quatro passos da porta. Respirou fundo, esboçou um sorriso, estendeu a mão e....

?Por Deus! ? Josh exclamou, abrindo a porta com desespero. Nunca vão parar? Prefiro usar um vestido horrendo a sofrer novamente a ira de suas línguas! Quando ela desceu os três degraus de metal e seus pés finalmente tocaram o chão, olhou para o céu e bufou. Então, no meio daquele bufo, ela sentiu que não estava sozinha. Quando virou a cabeça para a direita, o viu. O visconde estava logo atrás da porta da carruagem, imóvel e olhando para ela sem piscar. Ela o machucou? Teria acertado seu rosto? Ao imaginar que sua exasperação de sair do interior poderia tê-lo ferido sem querer, se ergueu como um soldado diante do capitão e, com um tom desconfortável, perguntou: ? Está bem? Bati no senhor? Juro pela minha honra que não o vi se aproximar. Se eu tivesse feito isso...

?Fique tranquila, Josh, está tudo bem. Não estava tão perto que pudesse me acertar, ? ele disse em um tom gentil enquanto batia de leve nas costas dela.

?Menos mal... ? Ela respirou tranquila. ?Não quero me tornar a próxima razão pela qual elas comecem outra discussão inconveniente.

?Está tão horrível? ? Ele perguntou, rapidamente colocando as mãos atrás das costas.

?Já andou sobre as brasas de um incêndio? ? Ela perguntou, afastando-se da carruagem para que as irmãs não pudessem ouvi-la.

?Não, e a senhorita? ? Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas.

?Também não, mas suponho que seria menos doloroso notar como a pele queima em um incêndio do que o que passei ali dentro. Se fosse adulta, beberia um uísque para eliminar esse sofrimento.

?Quantos anos tem, Josh? ? Logan perguntou, olhando para a porta. Por fim, várias donzelas se colocaram ao lado das duas irmãs e as ajudaram a descer. Esperava que o tratamento gentil que ordenou aos servos reduzisse a raiva delas. Talvez depois de um banho morno, um jantar farto e uma noite sossegada, suas línguas viperinas decidissem dar uma trégua.

?Dezessete, ? ela disse, contemplando a mesma situação que o visconde observava.

?Tomei meu primeiro gole de uísque quando tinha quinze anos, então está dois anos atrasada. Convido-a para essa taça, se não achar que será perigoso para sua reputação me acompanhar.

?Aceito Logan. E não se preocupe com a minha reputação, prefiro ver o rosto de perplexidade expresso por aqueles que me assistirem beber ao seu lado a ouvir novamente as queixas das minhas irmãs, ? disse olhando para ele e sorrindo de orelha a orelha.

?Sendo esse o caso... ? Logan respondeu, abrindo a porta para que ela entrasse na frente dele, ? vamos tomar vários deles.

?O que acha de esvaziarmos uma garrafa?

?Poderá aguentar uma ingestão assim em sua primeira vez? ? Ele retrucou suavemente enquanto se dirigia ao bar da taverna.

?Isso irá me deixar inconsciente por várias horas? ? Josh perguntou, colocando o antebraço direito no balcão de madeira, cruzando as pernas nos tornozelos e adotando a mesma postura masculina do visconde.

?Posso assegurar que em algumas ocasiões bebi tanto que, quando acordei, vários dias haviam passado.

?Bem, é o que eu quero, ? ela disse sem tirar os olhos das garrafas.

?Taberneiro, nos dê o melhor uísque que tiver nesta pocilga! ? Logan ordenou sem disfarçar a excitação que sentia por ter ao seu lado a primeira mulher que raciocinava como um homem.

Olhares podiam matar? Porque os olhos de Anne, quando o descobriu ao lado de Josephine, bebendo como se fossem dois piratas miseráveis, causaram a mesma dor que o impacto de uma bala na testa. Logan se endireitou, esperando que ela se aproximasse e o repreendesse por seu comportamento inadequado em relação a sua irmã. No entanto, ela não disse nada. Apertou os lábios, pegou o vestido magenta com as duas mãos e subiu em silêncio. Por que não reprovou sua má ação? Preferia evitar a situação a enfrentá-lo? Sentia tanta repulsa? Em que momento a feriu? Logan engoliu o que tinha no copo, inclinou-se no bar, estalou a língua e imediatamente o taberneiro voltou a enchê-lo. Estava com raiva. Sim, o calor que sentia percorrendo seu corpo não se devia à ingestão de álcool, mas à raiva que aumentara quando ela o evitara. Teria sido o suficiente um... obrigada, milorde, por dizer às donzelas que cuidassem tão bem de nós, como Elizabeth havia feito momentos antes, ou... o que pretendia? Não está ciente de que há uma jovem ao seu lado? Mas não. Aqueles olhos castanhos o olharam com desprezo e subiram as escadas como se ele não existisse. Não iria proteger a reputação de sua irmã? Não o considerava um homem perigoso? Ou talvez... aquela jovenzinha de olhos castanhos e cabelos loiros, que se vestia como um dos clandestinos em seu navio, fosse mais perigosa que ele?

?Quando disse que a comprou? ? A pergunta de Josh, referindo-se à residência do campo, interrompeu seus pensamentos.

?Faz uns seis anos, logo depois da minha primeira viagem à África.

?Já foi para a África? Como é? Existem muitos selvagens, como diz nosso pai? Já navegou no Nilo? ? Ela exclamou animadamente.

?Não, desembarquei em Cabo Verde, uma ilha na ponta mais ocidental do continente, ? ele disse antes de tomar outro gole. ?Tive que transportar a mercadoria de um dos meus clientes para essa área da África. Mas devo confessar que era um lugar tão agradável que adiei meu retorno a Londres por algumas semanas.

Sede. Sentia muita sede depois daquele olhar intenso e nem mesmo bebendo o Nilo inteiro, poderia acalmá-la. Por que se sentia como uma criança que fez algo errado e sabia que sua má atitude teria sérias repercussões? Nem Anne era uma mãe ranzinza nem ele obrigara Josh a ficar ao seu lado bebendo. Apenas fez um convite cordial...

?Pode repetir a pergunta? ? Perguntou à jovem que parecia esperar pela resposta sobre algo que ele não ouviu.

?Perguntava se o senhor se sente livre quando navega. Um dos meus maiores desejos, e que aguardo ansiosamente, é no futuro visitar outros países. É por isso que quero me tornar um soldado.

Ao ouvir essas palavras, Logan cuspiu o delicioso gole que havia dado.

?Quer se juntar à milícia? ? Ele exigiu, arregalando os olhos.

?Sim. Quando atingir a maioridade, irei me juntar ao nosso valente exército. Sei que estou preparada para enfrentar esse tipo de vida com total integridade, ? ela assegurou sem hesitação. ? O senhor mesmo testemunhou a facilidade com que aprendo a lidar com punhais e, quando chegarmos à Harving House, mostrarei quão habilidosa sou com as armas e com que aptidão posso cavalgar.

E naquele momento ele entendeu não apenas o olhar que Anne deu, mas também muitas outras coisas sobre a família Moore. Como a jovem era capaz de pensar tal atrocidade? Josh não se olhava em um espelho? Era uma mulher! Por todos os santos! Não havia estranhado suas roupas ou seu amor por armas, já que seu próprio irmão ensinava a Evah coisas ainda piores. No entanto... um soldado? Como o pobre médico poderia suportar uma vida tão atormentada? Agora entendia o desespero que o infeliz pai mostrou naquela noite. Ele teria agido da mesma maneira!

?Tem certeza? ? Ele perguntou, colocando cuidadosamente o copo no balcão.

?Sim, ? ela disse com firmeza.

?Se assim for, desejo-lhe um bom futuro, ? disse ele, se virando para ela. Apoiou o cotovelo direito no balcão, olhou nos olhos dela, notou que não estava mentindo e falava com muita confiança, sorriu para ela e continuou: ? Com certeza vai se sair muito bem. Só tem que levar em conta um pequeno detalhe.

?Qual deles? —Josh perguntou atenta.

?Que por um longo tempo estará cercada de homens e que eles têm certas necessidades... ? «como expressaria isso para não a machucar»? Ele acariciou sua espessa barba negra por alguns segundos, procurando as palavras certas para uma garota como ela. Deveria ser respeitador ou rude? Ele não hesitou em adotar a segunda opção. Se mostrasse a ela um mundo irreal, continuaria com aquela loucura em sua cabeça. ? As necessidades sexuais dos homens os enlouquecerão. Nenhum militar irá contemplá-la como um deles. Eles vão tratá-la como uma cortesã e, quando se recusar a satisfazê-los, irão estuprá-la. Talvez até engravide... esse é o futuro que quer alcançar? Tornar-se uma prostituta?

?Não! ? Trovejou Josh com raiva. ? Claro que não estou procurando por esse fim!

?Então é melhor repensar esse sonhado futuro. Se o que realmente quer é viajar, há outras alternativas menos... indignas, ? continuou ele severamente.

?Pensei que me apoiaria, ? Josephine murmurou, deixando o copo descuidadamente no balcão. ?Pensei que me entenderia, depois de suas palavras lisonjeiras.

?Entendo uma coisa, Josh. Sob essa aparência masculina esconde-se uma linda mulher, que está prestes a brilhar como uma estrela. Terá centenas de homens encantados e procurando a menor possibilidade de abordá-la e cortejá-la. Pode parecer irreal, mas garanto que não estou errado. Sabe que tive muitas amantes e aprecio as mais belas qualidades em cada uma das mulheres. A sua é a coragem, além do físico espetacular que quer esconder sob essas roupas masculinas absurdas. Apenas poucas mulheres têm esse dom. Elas são tímidas, indescritíveis e sempre ansiosas pela proteção de um homem. No seu caso, não precisa dos cuidados de um marido para enfrentar o mundo. Isso, querida menina, é mais sensual e atraente do que usar um lindo vestido apertado ao corpo.

?Está errado! ? Exclamou ofendida.

?Não. Não estou, ? disse ele. ? Deixe passar um par de anos Josh, e verá que meu palpite será correto. Terá tantos homens a cortejando que não saberá qual deles escolher.

?Acha mesmo que sou como a Elizabeth? ?Rosnou, erguendo as sobrancelhas.

?Não. Não é como ela.

?Então? ? Atacou, colocando as mãos na cintura.

?Josh... São todas diferentes, mas essa diferença a faz especial e bonita.

?Não sou bonita, milorde! ? Ela respondeu, apagando de sua mente o nome daquele que a estava insultando com palavras doces.

?Minha querida Josh.... deveria olhar mais assiduamente em um espelho. Caso não tenha notado, os homens que estão sentados às mesas não a olham com desprezo, mesmo que adote um comportamento tão masculino. Eles a observam com expectativa porque veem o que eu notei quando a conheci. A sorte que tem, é que seu segredo estará seguro comigo. Se não, tenho certeza de que hoje à noite alguns deles subiriam no seu quarto, a colocariam em seus ombros, como se fosse um saco de feno, e a fariam sua esposa antes do amanhecer.

?Impossível! Degolaria em um único segundo, sem hesitação, qualquer homem que ousasse entrar no meu quarto sem a minha permissão! ? Ela disse com raiva.

?Se continuar aumentando o tom de voz, ? ele disse em um sussurro, ? se entregará e não poderei fazer nada para salvá-la.

?Ao inferno! ? Ela esbravejou. Olhou para os homens a quem o visconde se referia e percebeu que não estava mentindo. Seus olhos estavam cheios de inquietação e luxúria. Algo que não havia contemplado, exceto naqueles que observavam Elizabeth. Puxou a adaga em seu cinto, mostrou-a e sorriu maliciosamente. ? Posso matá-los antes que terminem seus licores, ? ela murmurou.

?E tenho certeza de que mais do que um quer comprovar isso, ? disse Logan sarcasticamente.

Ainda mais irritada, ela se virou para o visconde, franziu a testa e apontou para ele sua adaga.

?Não sou bonita, nunca me tornarei a vadia de um homem e realizarei meu sonho, ? ela assegurou com firmeza.

?Espero que sim, ? respondeu Logan, se virando para o bar sem se importar com aquele gesto ameaçador. Pegou o copo, bebeu devagar e fixou os olhos no estalajadeiro horrorizado. ? Que a sala de jantar seja preparada em uma hora.

?Sim, milorde, ? ele respondeu sem ser capaz de desviar o olhar daquela lâmina tão brilhante.

?Vá para o seu quarto e descanse enquanto eles preparam o jantar. Informe suas irmãs que elas não devem se atrasar. Me forçaram a ser seu tutor e a agir assim até retornar com sua família. Algum problema? ? Ele estalou, erguendo as sobrancelhas.

?Não milorde, ? Josh murmurou, colocando a arma no cinto. ? Nenhum problema.

Ela se virou, caminhou até a escada de madeira que a levaria ao segundo andar e, pisando com força cada degrau, afastou-se dele.

?Uma pequena megera... ? o estalajadeiro murmurou espantado. ? Esse tipo de mulher deveria ser açoitada com um látego para adotar o comportamento apropriado, ? ele se atreveu a dizer, como se fossem velhos amigos que se aconselhavam sobre um problema grave.

?Eu garanto, se tentar tocá-la, ela cortará sua garganta antes que possa usar esse ditoso látego, ? ele murmurou. Bebeu o uísque de um só gole, procurou por Kilby e, quando o encontrou, fez um ligeiro movimento com a cabeça para que se aproximasse. ? Preciso me limpar antes do jantar. Confirme que a sala esteja preparada para todos os que viajaram conosco.

?Quer que o pessoal de serviço o acompanhe? Nós podemos ficar aqui. Não seria bom se.... ? Ele tentou persuadi-lo de outro possível erro.

?Disse todos eles, ? falou antes de sair em direção ao seu quarto.


***


Naquele momento, ele entendeu o rigor que Roger mostrou quando Evelyn propôs um almoço em família. Ele se sentia como o protetor daquelas catorze pessoas e essa responsabilidade era muito intoxicante para ele. O que inicialmente começou como uma pequena excursão ao seu domínio, de modo que ele e Anne passassem mais tempo juntos e obtivessem as respostas para todas as perguntas que se fazia referente a ela, se tornara mais complexa. Depois de observar a beleza de Eli, que estava sentada à sua esquerda, a nova roupa de Josh, que mudara de cor, mas ainda vestia roupas masculinas e o vestido marrom áspero que Anne exibia, se recostou no encosto da cadeira e notou que todos imitavam seu movimento. Pegou o copo de vinho e tomou um gole. Então, doze pessoas beberam de seus copos. Apenas duas mulheres, Anne e Josephine, se recusaram a continuar com essa pantomima.

?Eli, não tive tempo de perguntar se as sementes que lhe dei, da minha última viagem, germinaram, ? finalmente quebrou o silêncio que estava na sala de jantar.

?Elas estão crescendo, ? disse a jovem com um enorme sorriso ao ser objeto de atenção. ? Embora deva confessar que no começo tinha muitas dúvidas.

?Porque motivo? ? Logan perguntou, se virando para ela enquanto um criado do taberneiro colocava, indevidamente, meio porquinho em seu prato.

?Tive que construir um pequeno lago na estufa para elas, ? disse em um tom tão estranho que suas irmãs observaram com espanto. ? Como bem sabe, o Nymphaea caerulea é uma espécie totalmente aquática e estão acostumadas com a água do Nilo.

?Pensei que o nome era outro, ? Logan comentou com graça. ? O vendedor me contou algo sobre...

?Sim, é comumente chamada de lótus azul, ? ela disse com certa angústia, como se estivesse horrorizada com o fato de uma flor tão bela ter sido nomeada de uma maneira tão comum. ? Mas na realidade não deveriam chamá-las assim. Degrada-as.

?Degrada-as? ? O visconde insistiu ousadamente.

?Nos tempos antigos, eram flores sagradas, Logan, ? disse com firmeza, como se estivesse defendendo a honra das plantas. ? São tão especiais que os egípcios as adoravam como se fossem deusas.

?Porque motivo? ? Insistiu antes de cortar um pedaço de carne e trazê-lo à boca.

?Porque são... maravilhosas ? salientou com um suspiro. — Brotam do seu interior quando o sol aparece e voltam a se esconder quando a noite chega.

?Por esse ato simples são consideradas especiais? ? Perguntou Bennett, levantando a sobrancelha esquerda. ?Poderia nomear uma lista interminável de mulheres que estendem os braços ao chegar dia e os fecham, para segurar seus amantes, à noite.

Com aquele comentário inoportuno, Anne largou o garfo que segurava na mão direita e deixou cair no prato, causando um som horrível. Logan olhou para ela, sorriu e continuou dando atenção para a jovem Moore.

?Tenho certeza de que a lista não teria fim, ? continuou Eli, ignorando o gesto inadequado de sua irmã mais velha e o bufo escandaloso que fez para desaprovar a absurda comparação. ? Mas... aquelas mulheres poderiam alterar a percepção visual de seus amantes? ? Ela argumentou com arrogância e malícia.

?Não me diga que te dei algo com o qual poderá perturbar a mente do mundo, certo? ? Ele estalou zombeteiramente.

?Não, ? ela disse, divertida e flertando. ? Eu não sonharia em fazer uma coisa tão atroz. No entanto, é verdade que hieróglifos foram encontrados explicando como elas foram usadas para realizar rituais sagrados no antigo Egito.

?Com que finalidade? ? Ele perguntou. Limpou a gordura de seus lábios com o guardanapo, bebeu novamente e continuou a olhar para a jovem.

?Tranquilizante.... Elas fornecem um conforto pacífico e lúcido para quem os toma na quantidade certa.

?Como a tisana? ? Interpôs a criada encarregada de ajudá-la durante a viagem e que não conseguia tirar os olhos do visconde.

Elizabeth virou-se para a criada, com mais fúria do que surpresa por ter se intrometido na conversa, mas não devia censurá-la por uma atitude tão inculta. Se o visconde ordenou que o serviço se sentasse com eles, ela tinha que obedecer às regras de seu autoproclamado tutor.

?Não. A tisana é uma mistura de várias ervas. Em vez disso, um pequeno pedaço das folhas dessa flor azulada é suficiente para que atinja um efeito maior do que essa combinação, ? respondeu. Se virou para Logan, deu um enorme sorriso, como se não tivesse sido incomodada por esta intrusão e continuou: ? Esta flor foi usada como um sacramento espiritual, portanto, foi associada com o deus Ra, o provedor de luz. Pelo que li, qualquer um que ingerisse uma infusão de suas folhas poderia alcançar um estado de paz tão sublime que se acreditava que alcançaria o Nirvana.

?A senhorita me surpreende, ? disse Logan, cruzando os braços.

?Por quê? ? Eli perguntou, arregalando os olhos.

?Porque tem um dom incrível com as plantas, pequenina. Muito poucos poderiam adaptar uma flor que emerge do Nilo em uma pequena estufa e também condicioná-la ao clima de Londres. Meus sinceros parabéns.

?Não exagere! ? Exclamou Eli, envergonhada pelo elogio. ? Qualquer um que ama a natureza tentaria cultivar lindas flores.

?Sim, possivelmente tem razão. Certamente qualquer jardineiro seria capaz de fazê-lo. Mas, diferentemente desse trabalhador, quis conhecê-la, entendê-la e descobrir do que ela precisa. Isso significa apenas que é uma jovem especial, inteligente e perigosa.

?Perigosa? ? Ela retrucou espantada.

?Sim, Eli. Muito perigosa... ? ele disse se levantando e empurrando a cadeira para longe com um leve movimento de suas panturrilhas. ? Mulheres como a senhorita, que além de possuírem um físico invejável tem um intelecto de tal índole, são muito perigosas para qualquer cavalheiro que se preze.

?Por quê? ? A jovem insistiu sem poder sair do lugar.

?Porque faz com que seja mais irresistível... ? ele sussurrou em seu ouvido.

Eli levou as mãos à boca para que a risada que queria libertar não viesse. Seu rubor, que todos podiam contemplar, até mesmo Anne, que estava do outro lado da mesa, a fazia tão bonita quanto uma criança carinhosa. Seus olhos brilhavam com a emoção e a rigidez que exibia, para mostrar a todos que suas maneiras se assemelhavam às da própria rainha, desapareceram.

?É um sem vergonha, ? ela disse baixinho. ? Nathalie sempre me avisou que era um bajulador e que podia deslumbrar a mulher mais fria do mundo.

?E consegui meu propósito? ? Perguntou travesso.

?Sim, conseguiu ? ela disse, aceitando a mão que ele oferecia para ajudá-la.

?Bem, peço para não sele seus belos lábios e conte tudo o que eu disse quando estiver com minha querida irmã em Harving ? confessou enquanto eles elegantemente saiam da sala.

?Ela virá? ? Perguntou animadamente.

?Assim que souber que a senhorita está lá, não vai demorar um dia para aparecer ? assegurou antes de beijá-la carinhosamente na bochecha.

Bem quando sairiam, Logan olhou de soslaio para Anne. Queria confirmar se seu comportamento a deixara feliz. No entanto, errou novamente com ela. Em vez de mostrar um rosto relaxado e gratificante, ela voltava a franzir a testa, olhava para ele com ódio e, enquanto movia os dedos das mãos, parecia que o pescoço dele estava entre eles. Não era capaz de entender seu propósito? Era tão obtusa? Bem, se não o entendia, deixaria claro para ela assim que tivesse a oportunidade. Vamos ver se, dessa maneira, parava de olhá-lo como se quisesse matá-lo.


***


Duas horas e meia depois, as irmãs descansaram em seu quarto. Anne se levantou devagar e observou-as. Permaneciam quietas e calmas. Algo incomum nelas.

Durante o resto da noite, Elizabeth participara de um absurdo jogo de cartas e, tendo vencido todos os jogos, o visconde continuou a elogiar seu grande intelecto. Quando entrou no quarto, e depois que os criados saíram, se sentou no colchão, olhou para ela e pediu desculpas por tudo o que havia acontecido durante a viagem. Ela ficou sem fala. Nunca ouviu Elizabeth falar dessa maneira, já que nunca deu o braço a torcer. Ela sempre alegou que o resto do mundo estava errado e que a única que estava certa era ela. Depois de lhe dar um beijo, para assinar aquela trégua entre as irmãs, foi para debaixo das cobertas e, sem conseguir apagar aquela felicidade do seu rosto, adormeceu. Josephine também agiu de forma diferente. Ela não se juntou àqueles jogos entre Elizabeth e o visconde. Sentou no peitoril da janela da sala o tempo todo olhando a escuridão da noite. Parecia que sua cabeça continuava pensando em algo muito importante para ela. Mas... o que seria? No entanto, essa atitude estranha aumentou quando chegaram ao quarto. Até hoje, ela jamais tinha se metido na cama coberta com um camisolão, ela costumava cobrir seu corpo com uma camisa bem larga que liberava suas pernas. Mas, diante de seu olhar atento, ela se despiu ajudada pela criada e deixou que a vestisse. Uma vez que aceitou o toque da roupa, sentou-se no colchão, colocou a adaga no chão e, depois de um breve boa noite, se cobriu, evitando dar uma explicação para seus atos estranhos. O que aconteceu com elas? Por que mudaram suas atitudes e de forma tão rápida?

Colocou os pés no chão, acariciou seu rosto desesperadamente e suspirou. A única coisa que tinham em comum era que haviam estado com o visconde por algum tempo e pareciam viver sob sua influência. O que ele teria dito a elas? A que tipo de encantamento as havia submetido para que se esquecessem de tais características? Desde quando Josephine não dormia com o punhal embaixo do travesseiro? E Eli? Quando aprendeu a palavra perdão?

Oprimida por tudo o que estava acontecendo, ela se levantou e vagou pelo quarto. Precisava falar com o visconde sobre seu comportamento inadequado. Mesmo que no jantar e na frente de todos tenha se proclamado seu tutor, que a deixou sem palavras e incapaz de engolir um pedaço daquele leitão delicioso, precisava lembrá-lo de que a única razão pela qual as três estavam ali era para cumprir o contrato que assinara. Todo o resto sobrava. Ela não queria que ele se aproximasse delas, sussurrasse para elas, as envergonhasse ou as seduzisse como se fossem o próximo entretenimento sexual dele.

Desesperada e admitindo que não dormiria até ter certeza de como deveria agir com suas irmãs, foi até a cadeira, vestiu o robe de seda preta e, mal fazendo barulho, saiu do quarto.

Felizmente para ela, aquele corredor não era muito longo, então começou a colocar a orelha em cada porta para adivinhar quem estava dentro. O primeiro, sem dúvida, era o quarto da Sra. Donner. Ainda estava resmungando porque o cozinheiro da estalagem não acrescentara legumes ao prato de carne. Continuou com o seguinte, o das donzelas. Elas pareciam galinhas gargalhando sobre algo que a fizeram rir em voz alta. Se moveu suavemente para o próximo. Silêncio. Muito silêncio até...

?Não! Como pode pensar em tal absurdo?

A voz de Kilby era bastante peculiar, assim como a do jovem Howlett, o criado do visconde. Certamente eles estavam discutindo o traje elegante que o vilão usaria na manhã seguinte. Não tinha dúvida de que Kilby estava procurando algum que desse ao seu senhor uma imagem firme e solene enquanto o jovem tentava explicar que a elegância era primordial para um homem de sua classe e porte.

Incapaz de apagar um leve sorriso do seu rosto, Anne continuou com a próxima porta. De repente, se abriu, como se alguém estivesse esperando por sua chegada. Ela se agarrou à parede, colocou as mãos no peito, por causa do susto, e ficou paralisada quando viu uma criada, de camisola, sair do interior.

?Mil perdões... me desculpe, vossa excelência. Pensei que... ? a mulher gaguejou entre soluços. ? Juro que não vou mais fazer isso. Cometi um erro que...

?Fora! ?Logan gritou. ? Saia agora! ? Acrescentou com aquele tom cruel e rude.

A criada abaixou a cabeça quando a encontrou no corredor, cobriu o decote com as mãos e correu para o quarto onde as outras criadas estavam hospedadas.

Anne, incapaz de desviar o olhar da porta, incapaz de sequer se mover para fugir para seu quarto e ficar em segurança, viu uma sombra enorme caminhar em sua direção decisivamente. Uma vez que a luz iluminou essa figura, ela engasgou. O visconde não usava a camisa, o cabelo estava solto e o cinto da calça estava aberto. Sem apagar o semblante feroz do rosto, ele a olhou como se ela fosse o maior inimigo de Londres.

?O que está fazendo aí? ? Esbravejou. Descansou o braço esquerdo no batente da porta, mostrando descaradamente a visão oferecida por seus músculos tensos, e acrescentou: ? Estava me espionando? Queria saber qual reação teria ao mandar uma empregada para meu quarto? Achou que me rebaixaria assim?

?Eu... não... ? ela gaguejou. ? Só queria...

?O que? O que quer, Anne? ? Ele disse furiosamente. ? Quer verificar se sou o libertino que todo mundo fala? Quer ter certeza de que suas irmãs estarão seguras comigo? ? Ele acrescentou àquelas perguntas duras, um olhar sombrio cheio de ódio.

?Essa não foi a minha intenção... ? ela terminou dizendo. Colocou as mãos nas lapelas de seu manto, apertou as solas dos pés no chão, virou e tentou se afastar de lá. No entanto, não conseguiu. O visconde agarrou seu braço esquerdo e puxou-a para ele.

?É esperta, querida, ? disse ele, aproximando o rosto do dela. ? Demais..., mas não conseguirá o que quer.

?Não quero nada, milorde, ? respondeu, erguendo o queixo, desafiando-o com o olhar.

?Não? ? Perguntou com certa zombaria enquanto cravava os olhos no pequeno decote que o manto deixava à mostra. ? Bem, acho que sim, ? declarou antes de unir sua boca à dela.

Nunca a beijaram tão cruelmente. Seus lábios, ao impacto, foram danificados, feridos por aquela pressão selvagem. Rapidamente, tirou as mãos das lapelas do seu manto e colocou-as naquele peito forte e duro para empurrá-lo para trás. Mas ele não se mexeu. O visconde era tão hercúleo que não percebeu que suas palmas haviam sido colocadas naquela parte de seu corpo. Tentou desviar a cabeça de uma só vez, para evitar aquele contato brusco. No entanto, não conseguiu o que pretendia. Ele colocou uma de suas grandes mãos atrás de sua nuca e certificou-se de que ela não se movesse.

?Não gosta de ser beijada? ? Ele perguntou depois de separar um pouco os lábios dos dela. ? Ou seus pretendentes não a ensinaram a beijar com paixão? ? Ele argumentou sarcasticamente.

Em seguida, sua mão direita, que sentia o calor daquele corpo, cujos dedos tocaram o pelo espesso do torso masculino, se afastou de ambos os corpos e, depois de subir, atingiu a face esquerda do visconde.

?Me beijaram muito melhor que o senhor. Então não acredite no direito de me julgar. Até agora, seus lábios tocaram vadias sonhadoras e não se deliciaram com o gosto de uma verdadeira mulher ? disse com orgulho.

?É essa mulher, Anne Moore? ? Ele perguntou, não percebendo a dor que causara a tremenda e merecida bofetada.

?Isso jamais saberá, ? disse antes de se virar e voltar para o seu quarto.

Uma vez que fechou a porta, a trancou, caminhou para sua cama, sentou-se e tocou sua boca. Um líquido quente se derramava do lábio inferior. Ele a machucou. O bastardo a mordeu quando ela não abriu a boca para responder esse beijo. Mas... alguma vez pensou que teria uma chance com ela? Achava que durante a viagem a deslumbraria a ponto de torná-la sua próxima amante? Irritada, limpou com as costas da mão as pequenas gotas de sangue, olhou para elas e jurou que preferia morrer a se entregar a um homem como ele.

Pela primeira vez na história de sua linhagem, uma moça cigana não sonhava com o homem com quem se casaria, mas com o homem que mataria prontamente.


XX


Irritado não era a palavra exata para descrever o estado em que ele estava.

Logan não tinha sido capaz de descansar durante a noite, andou pelo quarto até as primeiras horas da manhã, e quando finalmente recostou no colchão, não foi capaz de fechar os olhos para se permitir um leve descanso. Por que diabos ela elaborou esse plano tão terrível. Estava tão desconfiada que enviou uma empregada para seduzi-lo? Ela achava que era tão perverso quanto seu pai? Não, ele não podia se comparar ao homem que o gerou. Jamais usou o poder que sua posição lhe dava para abusar delas, pelo contrário, as respeitava tanto que às vezes nem sequer falava com elas. Por essa razão, em suas duas residências, as salas de serviço foram estabelecidas no primeiro andar. Ele não queria que nenhuma delas pensasse que, durante a noite, ele aparecia dentro de seus quartos alegando algo que não estava previamente acordado no contrato. Ele era um homem muito atencioso com seus criados. Nunca olhou para uma criada de qualquer outra maneira além de agradecer-lhe pelo seu bom trabalho. Lembrando, além disso, que suas amantes eram viúvas ou solteironas aristocratas. Mulheres libertinas e desavergonhadas como ele.

Ele não era seu pai, maldito seja!

Incapaz de pensar em outra coisa senão na maldade de Anne, observava chegar o novo dia. Levantou-se, foi até a bacia e molhou o rosto, para eliminar quaisquer sinais de fadiga. Então bateu na pequena peça de mobília com força, fazendo-a tremer. A maldita bruxa deduziu, de certo modo, que ele nunca fecharia a porta com um trinco, talvez tenha adivinhado pela imagem arrogante que mostrara, e pressentisse que a criada ignorante entraria sem dificuldade. Foi por isso que ela entrou sem fazer barulho e só a descobriu quando se aproximou da cama. A princípio, achou que era outra visão, pois o que seus olhos observaram não podia ser real. No entanto, quando notou que ela desabotoou os botões de sua camisola e mostrou seus seios, ele se afastou dela e ordenou que fosse embora imediatamente. Apesar de ouvi-la soluçar e se desculpar, sua raiva não diminuiu. Se a mulher não tivesse saído de seu quarto tão rápido quanto exigiu, ele a teria jogado abruptamente no corredor, onde Anne permanecia... Como ela poderia ser tão depravada para ficar do lado de fora ouvindo o que estaria acontecendo lá dentro? Não tinha vergonha? Queria estar presente se aceitasse a oferta? Bem, ela ficou muito desapontada. Não só rejeitou a criada, mas ela recebeu uma punição bem merecida por seu plano diabólico. Beijou-a com violência, com uma fúria excessiva e, para que nunca se esquecesse do que havia acontecido, mordeu seu lábio até machucá-lo. Ele provou o gosto do seu sangue. Um que logo o mataria, porque seu gosto não era doce, mas azedo, como o de um veneno.

?Milorde? ? Howlett perguntou quando abriu a porta. ? Está acordado? Tenho em minhas mãos o traje que escolhi. Acho que, apesar de o Sr. Kilby não concordar, é a melhor opção para aparecer em Harving House.

Com o cabelo molhado, ele emergiu das sombras oferecidas por aquela parte escura da sala. Caminhou lentamente até o valete e, quando olhou para ele, gritou assustado.

?Por todos os demônios que conheço!

?Onde está Kilby? Por que não bateu na porta? Todos acham que têm permissão para entrar meus aposentos quando quiserem?

?Não fique com raiva. Seu leal mordomo ordenou que eu o acordasse porque ele está lá embaixo fazendo outro trabalho importante, ? ele explicou, ao depositar as roupas na cama desfeita, colocar as mãos na cintura e observar sem piscar. ?Entendo que depois do que aconteceu, está de mau humor, mas isso não lhe dá o direito de mostrar uma imagem tão inapropriada. Lembre-se de que, durante suas viagens, lhe dou permissão para negligenciar sua aparência, mas no continente não é agradável que alguém o observe de um jeito impróprio a um visconde.

?Me permite? ? Logan rosnou olhando para ele como se quisesse jogar mil facas. ? Eu pensei que trabalhava para mim, não o contrário.

?Bobagens! — Exclamou o criado sem deixar que intimidasse seu caráter relaxado. ? É um aristocrata, um cavalheiro honesto e, como declarou durante o jantar, o tutor dessas três senhoritas. Então precisa...

?Se pegar essa navalha, juro que vou usá-la para cortar sua língua, ? disse Logan enquanto o observava ir até a bacia para pegar os utensílios de barbear.

?Jesus bendito! — Gritou assombrado o rapaz, enquanto recuava seus passos. ? Onde está o generoso visconde que tenho servido por cinco anos? Alguém o viu desde ontem depois do jantar? ? Perguntou olhando para a sala da direita para a esquerda.

?Vai me vestir de uma vez ou também quer voltar para Londres? ? Grunhiu novamente Logan.

?Ah! É isso! ? Howlett disse fazendo um leve movimento da mão direita, como se estivesse espantando um inseto voador. ? Aquela harpia já está a caminho de seu lar pérfido. Que insulto à sua pessoa! ? Ele acrescentou, pegando as calças primeiro. Mostrou ao visconde e depois de um aceno, começou a vesti-lo. ? Existem mulheres horríveis no mundo. Na verdade, elas são todas harpias. Garanto que já sabia o que aquela donzela era quando a vi pela primeira vez. Receio que ela tenha aceitado o emprego porque presumiu que cuidaria de si mesma, no entanto, quando recebeu o cuidado da jovem Eli, se pôs a gritar ao céu. Não acha que as premissas do servo são absurdas?

?O que quer dizer? ? Logan perguntou enquanto amarrava o cinto.

?Não tem olhos no seu rosto, milorde? ? Ele respondeu colocando as mãos de volta na cintura. ? Não a notou no jantar? Ela nunca tirou seu olhar maligno do senhor! E aquela intrusão? Por Deus! ? Exclamou revirando os olhos. ? Como pode interferir em uma conversa entre o senhor e a jovem?

?Todos nós tínhamos o direito de conversar durante o jantar. Foi por isso que pedi a Kilby que todos nos acompanhassem ? esclareceu.

?Que gentil é! ? Ele respondeu pegando a camisa, sacudiu e estendeu esperando que ele se virasse para ajudá-lo a colocá-la. ? É o homem mais benevolente que já conheci. Mas também o mais tolo.

?Por que me define dessa maneira? ? Ele estalou, afastando as mãos para apertar os botões de sua camisa.

?Aquela harpia, porque não posso nomeá-la de outra maneira, estava esfregando as mãos desde que Kilby a contratou. Como os outros servos disseram esta manhã, seu principal objetivo neste trabalho não era atender a jovem Moore, mas descobrir se a reputação de um bom amante que se espalhava por Londres era verdadeira.

?E? ? Logan levantou as sobrancelhas.

?E ela recebeu o que era devido, ? disse Howlett, depois de ajudá-lo a colocar o colete. ? Que horror! Como pode pensar que o senhor permitiria que ela dormisse em sua cama? ? Ele argumentou horrorizado.

?Talvez alguém possa tê-la incitado a isso... ? manifestou-se com suspeita.

?Garanto que não, ? ele disse, se virando para sua jaqueta. ? Kilby é um grande especialista em descobrir verdades, embora seu gosto para se vestir seja terrível.

? E? ? Repetiu enquanto colocava os braços nas mangas do paletó.

?E a própria ousada confessou que fez isso sozinha e que ela pensou ter visto em seus olhos, durante a noite, um certo convite apaixonado. ? Ele afastou as partículas de pó que haviam caído na roupa enquanto estava no colchão, se afastou do visconde e mostrou-lhe a gravata vermelha. ? Este tom dará um toque muito viril.

?Está me dizendo que essa criada apareceu no meu quarto por vontade própria? ? Perguntou enquanto se recusava a usar aquela roupa de cor horrível.

?Exatamente, ? ele assegurou com firmeza. ? Aquela criatura ruim acreditava que lhe daria o prazer que deu a outras mulheres. Pequena descarada!

?Sim, pequena sem vergonha... ? Logan repetiu quase sem voz.

?Milorde requer algo mais deste humilde servo? ? Howlett perguntou depois de confirmar que o visconde mostrava a imagem que ele queria, mesmo que não tivesse colocado a gravata e não tivesse feito a barba.

?Mais uma coisa, Howlett.

?O que desejar, milorde.

?Sabe se as Moore já acordaram?

?Acordaram, tomaram café da manhã e estão prontas para sair, ? o informou. ? São jovens muito especiais. Qualquer mulher em seu lugar teria esperado por sua criada para acordá-la e vesti-la. No entanto, quando as criadas apareceram no dormitório, estavam prontas.

?Então, não as deixe esperar. Diga a Kilby que não tomarei café da manhã hoje.

?Não está com fome, milorde? ? O jovem exigiu surpreso.

?Perdi meu apetite, ? assegurou antes de se virar, andando até a janela e observando a agitação da rua.


***


?Por mais que procure uma palavra adequada não encontro outra para definir o que aconteceu, exceto a de horrível, ? comentou Elizabeth quando a carruagem partiu. ? Logan deve se sentir muito mal para não nos acompanhar no café da manhã ou ter entrado em sua carruagem sem nos cumprimentar. Talvez ele se sinta envergonhado pela situação pela qual passou com aquela bruxa.

?Sim, deve ter sido terrível e humilhante para ele... ? apoiou Josephine que, mais uma vez, agia de forma diferente.

Depois que Kilby a ajudou a entrar na carruagem, ela levantou o assento e colocou a adaga dentro, então recostou no banco e fixou o olhar em Elizabeth, que se sentou em frente a ela.

?Se estivesse em seu lugar, teria lhe dado umas chicotadas na frente de todos ? Eli resmungou indignada. ?Ela as merecia por acreditar que Logan seria capaz de se rebaixar a uma mulher de sua posição. Ele nunca toca nas criadas!

?Será o primeiro aristocrata a nascer com alguns escrúpulos, ? resmungou Anne, que continuava escondendo a ferida no lábio.

?Seu pai, o ex-marquês de Riderland, deixou grávida quase todas as criadas domésticas que trabalhavam com ele. Logicamente, tanto Roger quanto ele não continuaram com essa atrocidade, ? disse Eli rudemente ao comentário doloroso de sua irmã. ? Já lhe disse muitas vezes que eles são uma família muito especial e que, apesar de terem sangue azul, são muito diferentes de outros aristocratas. Sem ir mais longe, o marquês atual expressa seu amor por sua esposa sempre que o agrada, sem se importar com quem os rodeia.

?E isso parece apropriado? ? Soltou Anne. ? Porque para mim seria desrespeitoso se eles se mostrassem tão afetiva na minha frente.

?Bem, acho maravilhoso, ? respondeu Eli. ? Não há nada mais bonito do que amar a pessoa com quem se casou e que seja correspondido. Caso tenha esquecido, nossos pais agem da mesma forma quando estamos presentes e nunca ouvi de seus lábios uma reprovação a essa atitude afetuosa, ? ela lembrou.

?Como bem disse, na nossa frente, de suas filhas. Mas eles mantêm distância quando há convidados ou vão a uma festa, ? assegurou sem diminuir seu ódio em relação a tudo que se referia ao visconde e ao seu bom comportamento.

Doía. Seu lábio ainda latejava da dor que sentia. Toda vez que se virava e o travesseiro o tocava, ela abria os olhos, amaldiçoava o visconde, virava para o outro lado e avaliava a maneira mais apropriada e sutil para arrancar seu coração. Como lhe ocorreu que ela fizera um plano tão absurdo? Por que ele a beijou de maneira tão prejudicial? Se queria machucá-la fisicamente, tinha conseguido, pois seu lábio estava partido, mas sua dignidade ainda permanecia intacta.

?O que te aconteceu? ?- Josephine perguntou.

?Quando? ? Anne respondeu quando deduziu que a pergunta foi dirigida a ela pela forma como a olhou. Josh tocou um dedo no próprio lábio para repetir aquela exigência com um gesto. ? Eu caí da cama.

?Caiu? ? Eli interveio espantada. ? Como pode fazê-lo se os colchões em que dormimos eram maiores que os nossos?

?O meu era muito desconfortável e, embora tenha procurado uma posição adequada, na qual meus ossos não doessem, não a encontrei. Eu rolei e rolei até meu rosto bater no chão imundo.

?Por que não me acordou? ? Josh comentou. ?Teria pedido ao estalajadeiro algum gelo para reduzir o inchaço e hoje não teria um lábio tão volumoso. Parece que se envolveu em uma briga e que seu oponente lhe deu um bom soco de direita, ? ela disse com algum divertimento.

?Talvez Kilby tenha alguma pomada que possa diminuir sua inflamação. Aquele homem guarda tudo em seu baú. Ontem, a senhora Donner queixou-se de um desconforto na panturrilha esquerda e ele ofereceu um bálsamo para acalmar a dor, ? Eli explicou, enquanto movimentava as pernas.

Ela também estava sofrendo, mas não quis informar o mordomo sobre isso, pois sabia que sua queixa chegaria a Logan e que ele, em um ato de caridade, atrasaria a viagem um dia para que a dor desaparecesse. Como ela insistia em esclarecer, o irmão da Natalie era muito especial.

Olhou para Anne, que continuava tocando o lábio dela. Devia doer muito porque toda vez que tocavam lábio, um ponto de sofrimento e amargura aparecia em seu rosto. Talvez ela tivesse que falar com Kilby e ajudá-la. Essa atitude protetora, sem dúvida, consolidaria a paz entre elas.

?Quando diz que vamos parar? ? Josephine perguntou movendo-se inquieta no banco.

?Acabamos de sair! ? Eli reprovou-a.

?Bem, minha bunda dói, ? a jovem resmungou. ? Nunca pensei que uma viagem fosse tão angustiante. Estou ansiosa para sair daqui!

?Não disse que o seu maior desejo na vida era viajar? ? Anne comentou com mordacidade. ? Bem, acostume-se a isso. Nem tudo é tão maravilhoso quanto pensa.

?Tem uma atitude muito negativa desde que deixou a nossa casa ? Josh disse com raiva. ? Pensei que relaxaria esse seu mau humor mudando de ares.

?Ah pensou é? ? Anne respondeu entortando os olhos.

?Por favor... relaxe ? concordou Eli. ? Como Howlett explicou para mim, o visconde não fará uma parada na estrada durante esta segunda viagem. Ele quer chegar a Harving o mais rápido possível e isso significa que ficaremos aqui por cerca de cinco horas.

?Cinco horas? ? Josh esbravejou.

?Vá se adaptando, irmãzinha. Isso será o que conseguirá se quiser ver o mundo, ? Anne murmurou.

No momento em que Josh responderia, Eli colocou as duas mãos sobre seus joelhos, negou com a cabeça e sorriu para ela.

?Estarei longe desta gaiola de abutres assim que chegarmos lá, ? ela disse, cruzando os braços, se recostando e fechando os olhos.

?Uma decisão muito sábia ? Eli respondeu depois de respirar fundo.

Uma vez que Josh se afastou mentalmente delas, olhou novamente para Anne e notou que não só mostrava dor, mas seu rosto expressava um enorme ódio que a perturbou. Onde projetava esse ódio? Ela estava com raiva do colchão ou do golpe? Teria ferido a cabeça também? Mary sempre disse que um golpe na cabeça poderia transformar uma pessoa. Até contou, em detalhes, o que aconteceu com um jovem ladrão que pulou pela janela e, incapaz de segurar qualquer coisa, bateu no chão. Pelo que entendeu, além de não poder andar novamente, sua antiga personalidade desapareceu: ele deixou de ser um ladrão para ajudar outras crianças que estavam começando a cometer crimes. Será que algo semelhante aconteceu à sua irmã? Esse golpe a transformou em uma mulher rude? Se for assim, que Deus a ajude, porque o que aconteceria nos próximos dias nunca seria esquecido...


***


A viagem era muito curta...

Desde que descobriu que a serva não agiu de acordo com as ordens de Anne, Logan foi incapaz de olhá-la nos olhos. Ele cometera um erro, o maior erro de sua vida e não sabia como enfrentar a terrível situação.

Enquanto a carruagem continuava na estrada sem fazer um misero descanso, não parava de procurar uma solução para o problema. Ele finalmente chegou à conclusão de que o melhor curso de ação era se desculpar e prometer que nunca mais duvidaria de sua palavra. No entanto, quanto mais se agarrava a essa ideia, menos sensato parecia. Já estava começando a conhecer o caráter das Moore e sabia que não seria fácil para ele conseguir seu perdão. Não havia apenas ferido seu lábio, um ato que reprovava a cada segundo que passava desde que Howlett explicara a verdade, mas também a culpava por ser uma mulher perversa, uma que não admitia que, sob aquela aparência, havia um homem sensato e capaz de garantir a segurança de suas irmãs. Talvez ele não fosse tão sensato quanto imaginava. Se em vez de ser levado pela raiva, tivesse perguntado a ela a razão pela qual se aproximou de sua porta, talvez nada disso tivesse acontecido...

Lembrando que Anne tinha aparecido na frente de seu quarto com um roupão, seu corpo estremeceu. O que ela queria? Por que esperou que todos dormissem para sair de seu quarto e se dirigir a ele? Logan cerrou os punhos, escondido dentro de seus bolsos, e respirou agitado. O que ela queria? Teria um problema e queria sua ajuda para resolvê-lo? Como ele tinha sido tão miserável para julgá-la sem perguntar a causa pela qual ela se apresentava?

?Milorde... ? Kilby falou enquanto observava seu lorde enrugar a testa, como se sentisse uma dor terrível.

?Diga... ? ele respondeu com uma voz cansada.

?Estamos chegando. Já posso ver os gigantescos telhados de Harving House ? anunciou, esperando que o arrependimento que ele demonstrava desaparecesse quando descobrisse que a cansativa viagem terminaria em breve.

Logan, com um movimento repentino, colocou as solas dos sapatos no chão da carruagem, se sentou à frente e olhou pela janela. Por que o tempo passou tão rápido? Por que não durou até que encontrasse o caminho certo para lidar com esse problema? Agora ele tinha que sair da carruagem, mostrar um sorriso, como se nada tivesse acontecido, e mostrar a elas aquele paraíso. Não estava preparado para fingir uma atitude agradável quando seu coração não parava de bater na pressão da angústia que sofria. Por que não podia se manter firme com Anne? Por que olhava para ela de forma diferente? Estaria, afinal, assustado com os rumores da maldição e seu subconsciente agia para se defender contra esse terrível fim? Mas ele não havia se apaixonado por ela. A única coisa que poderia garantir era uma ligeira atração, só isso. Além disso, ele nunca estaria em perigo porque possuía o sangue cigano correndo em suas veias e, se Josh não estivesse errada, essa fonte o salvaria da morte.

?Atenda as Moore, ? ele pediu, recostando-se no banco.

?Milorde? ? Ele perguntou virando rapidamente para o visconde, surpreso com a decisão que havia tomado para suas convidadas. ? Não é apropriado que as ajude. É o senhor quem deve fazer isso, bem...

?Desde quando discute minhas ordens? ? Respondeu acidamente.

?Eu... me desculpe... não queria... ? Kilby abaixou a cabeça, em sinal de submissão e esperou, sem dizer mais uma palavra, que o cocheiro estacionasse na entrada da imensa residência.

Uma vez que pararam, ele abriu a porta, saiu, virou dentro da carruagem e curvou-se ligeiramente para Logan, que manteve os olhos fixos na parede oposta. Kilby se virou para as senhoras, que continuavam sorrindo e as ajudara a descer, como ele havia ordenado.

Enquanto isso, Bennett parou de olhar para aquela superfície acolchoada e observou-as. A primeira a aparecer foi Josephine. Ela abriu os olhos para a magnitude da propriedade. Em seu rosto, se podia ver claramente o entusiasmo que a jovem sentia. A ele aconteceu a mesma coisa quando aquele tratante a mostrou. A segunda foi Elizabeth que, depois de ajustar o chapéu, colocou a mão esquerda na testa, porque os raios fracos do sol a cegaram e ela sorriu. Logan estava prestes a desviar o olhar quando Anne começou a descer. Ele não queria descobrir a decepção que ela mostraria em seu rosto. Ele tinha certeza de que nada que visse seria agradável depois do que acontecera entre eles na noite anterior. No entanto, quando ela se curvou para a frente, aceitando a mão de Kilby, e levantou um pouco o queixo, para ver o que estava à sua frente e não tropeçar, observou a atrocidade que tinha causado em seu lábio inferior. Estava inchado, como se em vez de um beijo brusco tivesse lhe dado um soco. Como pôde ter sido tão selvagem com ela? Onde estavam as maneiras que aprendeu desde que se tornou um jovem sedutor? As tinha perdido. E, por mais difícil que fosse, sempre desapareciam quando ela estava perto. Agindo por instinto, porque a parte racional de sua cabeça desaparecia junto com seu bom comportamento; abandonou a carruagem e com um passo firme foi em direção à pessoa que havia machucado.

?Senhorita Moore ? disse uma vez que ficou ao lado dela, invadindo o espaço que todo mundo quer ter para que não se sinta incomodado. Mas Anne avançou, como se ele não existisse.

?Oh Logan! ? Elizabeth exclamou quando se virou e descobriu que tinha saído para atendê-las. ?É linda!

?E grande! ? Josh acrescentou com o mesmo entusiasmo de sua irmã.

?Anne, por favor, preciso falar com a senhorita sobre... ? Logan insistiu quando viu que ela permanecia fria, distante e em um agonizante silêncio.

?Me permitirá percorrê-la? ? Josh perguntou novamente, refazendo os passos que ele tinha dado até que se colocou ao lado do visconde.

?É claro, ? disse Logan, se rendendo ao desapego e indiferença da Moore mais velha. ? Pode percorrer meus domínios o quanto quiser.

?Tem estábulos e cavalos? ? Insistiu a jovem entusiasticamente.

?Sim, ? respondeu Logan, aceitando o braço de Eli e a companhia de Josh. Anne, por outro lado, afastou-se dele, evitando-o. ? Mas vamos falar sobre tudo o que pode fazer neste lugar magnífico durante o jantar. Agora, senhoritas, devem se instalar nos quartos que lhes serão designados.

?Vamos ter um quarto para cada uma? ? Josh perguntou atônita, porque era a primeira vez em dezessete anos que o teria. Ela sempre dividiu um quarto com Madeleine e durante a viagem com Anne e Elizabeth. Como seria ter alguma privacidade? Ela seria capaz de dormir ao se sentir tão sozinha?

?Isso mesmo, ? disse o visconde, depois de ficar em frente à entrada principal. Longe. Anne ficou longe deles e não tinha intenção de se aproximar. ? Kilby, peça que a Sra. Donner entre na cozinha e prepare um jantar saudável para nós. Depois desta longa viagem, temos que compensar nossos hóspedes com as delícias que nossa cozinheira faz.

?Sim, milorde, ? respondeu o mordomo, pisando com firmeza no limiar. Ele esperava que o visconde não tivesse notado a perplexidade que sentia. Esperava que seus anos de doutrinação não o tivessem traído. Mas se isso tivesse acontecido, não se importava. O que realmente lhe interessava era descobrir por que seu senhor estava sofrendo com essas mudanças bruscas de comportamento.

?Senhoritas... ? Deu um passo para o lado e as convidou para entrar em sua casa. ? Sintam-se em sua casa.

Elizabeth entrou primeiro, depois Josephine e Anne ficou parada no último degrau, olhando para as varandas dos quartos no segundo andar, como se contasse os metros de distância que teria que saltar para fugir da casa. Determinando que ela não aceitaria uma única palavra amável de sua parte e que o distanciamento entre eles seria inevitável, Logan se moveu em direção ao salão, mas não antes de fechar a porta atrás de sua entrada, a deixando do lado de fora.


XXI


Não deveria ter pensado que, depois de tudo, desceria como se nada tivesse acontecido. O ato de fechar a porta para aplacar aquele orgulho, mais típico de uma mulher da classe alta do que de uma burguesa, aumentou a raiva que suportara desde a noite anterior. Mas ele havia dado o primeiro passo em direção à reconciliação, em direção àquela trégua que teriam que manter enquanto permanecessem em Harving e ela se negou, desprezando-o com tanta desfaçatez que o machucou.

Sem dúvida, Anne não guardou sua vaidade em algum baú que trouxe, ao contrário, exibiu-a com uma elegância e educação muito típicas da aristocracia. Cinco minutos antes de Kilby anunciar que a sala estava pronta para o jantar, a criada que a atendia pediu permissão para falar e, concedendo-a, explicou que a Srta. Moore não os acompanharia, que sentia muito por estar ausente, mas sua exaustão impedia que saísse do dormitório até o dia seguinte. Como um bom anfitrião e responsável, ordenou que ela levasse o jantar ao seu quarto e a visitasse regularmente. A segunda ordem era para comprovar se ela não havia pulado pela janela e voltado a pé para Londres, mas isso ele guardaria para si.

?Imagino que amanhã, depois do descanso, ela estará recuperada, ? assegurou Eli, aceitando a mão oferecida pelo visconde para levá-las à sala de jantar. ? Anne não está acostumada a viajar e se cansa muito rapidamente.

?Bem, se bem me lembro, seu pai me pediu para levá-la no meu barco por semanas... ? ele disse desconfiado.

?Que incongruência, não é? ?A jovem disse rapidamente. Permaneceu calada, para não comentar sobre algo do qual poderia se arrepender em um futuro muito próximo, afastou os cachos loiros que tocaram seu ombro esquerdo e olhou para a sala.

?Não culpe meu pai, Logan. Juro que ele apenas tentou cumprir o seu desejo, ? disse Josh, não parando de observar tudo o que estava ao seu redor.

Boquiaberta. Era assim que ela estava desde que entrou naquele lugar. Não era uma residência ostensiva, nem o visconde se gabava da riqueza que possuía com móveis absurdos, luminárias ou mil ornamentos que vira em algumas residências de Londres. A decoração era um pouco rude, mas muito masculina. Adagas, espadas, escudos, grandes esculturas de guerreiros, telas imensas retratando cenas de guerras importantes ou belas paisagens costeiras, mesas de cerejeiras incríveis e ásperas, tapetes que não tinham fim, cortinas que não escondiam o que estava atrás, mas que lhes dava um tom suave.... Um castelo medieval estava em frente aos seus olhos! Só faltava encontrar uma armadura do seu tamanho e poderia se sentir a dona e senhora daquelas terras.

?Por que Paris? Durante a sua juventude, alguém a levou para aquela cidade? ? Ele perguntou. Ajudou Eli a se sentar à sua esquerda e depois fez o mesmo com Josh, que se sentou à sua direita.

?Nós nunca tínhamos saído de Londres até agora ? disse Eli. Sabe que meu pai não pode se ausentar. O que seus pacientes fariam sem seu amado Dr. Randall? ? Ela disse.

?Então, por que escolheu essa cidade? ? Logan insistiu.

?Escutei meus pais falando sobre isso ? Josh compartilhou novamente, endireitando as costas quando notou um servo se aproximando para servi-la. ? Acredito que essa loucura para ir a Paris vem das conversas que ela teve com o Sr. Hendall. Aparentemente, ele só falava sobre esse assunto em seus encontros românticos.

?Josephine! ? Eli exclamou, escandalizado pelas palavras inoportunas de sua irmã.

?O que? ? Respondeu, olhando para ela sem piscar. ? Nós todos sabemos que Anne e Hendall tiveram um romance apaixonado e essa foi a razão pela qual nossos pais foram forçados a..... Oh! Por que me chutou?

?Desculpe minha irmã, Logan, a coitadinha é um pouco confusa. Na verdade, ela não sabe o que aconteceu ? murmurou as últimas quatro palavras. ? Naquela época mal tinha dez anos e era uma menininha que corria pela casa levantando uma espada de madeira e gritando sem parar.

?Não importa, Eli. Certamente Josh entendeu mal por causa de sua pouca idade.

?Sim, muito mal, ? ela respirou, aliviada.

?Embora... ? ele disse pensativo ? isso explicaria por que seus pais concordaram com esse compromisso não lucrativo, já que todos conheciam a reputação de Dick Hendall. Sua empresa não só estava em falência, mas sua obsessão em visitar as cortesãs dos bordéis era um grande problema para qualquer esposa que demonstrasse certa dignidade.

E Elizabeth queria morrer naquele momento. Como Josh tinha sido tão descuidada? Ela ainda não entendia o que significava o conceito de segredo familiar? Se chegasse aos ouvidos de Anne que sua irmã havia declarado que tinha se comprometido com Hendall por ser descuidada, a Casa Harving seria destruída por um incêndio devastador.

?Existem muitas razões pelas quais os casais se comprometem. Mas imagino que não saiba nada sobre os sentimentos porque, como declarou em mais de uma ocasião, nunca procurou uma esposa. ? Depois de sua explicação, ela se sentiu orgulhosa de si mesma. Talvez, como o próprio visconde disse, ela fosse uma mulher muito perigosa por causa da inteligência que supunha não possuir.

?Casamento? ? Logan perguntou como se o tivesse ofendido. ? Nunca! Sou uma alma livre e jovem demais para ser aprisionada por tamanha loucura... ? Ele se virou para Josh e notou que ela não parava de olhar para a taça, como se tivesse uma sede insaciável. Ele sorriu maliciosamente, agarrou a dele e levantou-a. ? Um brinde?

?Claro! ? Ambas responderam.

?Pela nossa vida, a nossa unicidade e para alcançar sonhos impossíveis.

?Por isso! ? As irmãs responderam antes de beber.

Não podia reclamar, o jantar fora bastante proveitoso para ele. Talvez devesse até ficar feliz com a ausência de Anne, pois descobriu muitas coisas sobre ela. No entanto, ainda estava chateado por saber que ela manteve um idílio apaixonado com Hendall. Como tinha sido tão iludida a ponto de se entregar a um homem tão inadequado para ela? O que Dick fez para que ela se apaixonasse? Declarou seu amor com palavras ou com presentes absurdos? Isso o fez sorrir? Anne desfrutou das carícias daquele canalha?

Essa última pergunta provocou um leve rosnado. Não devia importar para ele, nem o deixar tão perturbado, descobrir se ela gostara daqueles encontros românticos que Josephine comentou, mas acontecia. Estava completamente furioso, tanto que queria bater em tudo que encontrava em seu caminho. E o que sentia em seu peito? O que a pressão no peito significava? Raiva? Ciúme de um homem morto? Tinha que agradecer a Deus que Hendall estava fora de seu alcance, porque se o infeliz ainda vivesse, o teria aniquilado. Como poderia ser tão cretino para fazer uma jovem de apenas vinte anos se apaixonar? Tão obcecado em conseguir a honra de casar com a filha do médico que não notara o sofrimento ou a humilhação que sofreria? Planejara isso? Claro que sim! Nenhum pai se oporia a um casamento ruim se sua filha perdesse a virtude. Foi o que aconteceu: os Randall foram forçados a aprovar o casamento porque Anne fora levada por um falso amor.

?Demônios! ? Exclamou, apagando o charuto com fúria. Pegou o copo de whisky que tinha na mesa e bebeu em um só gole.

Não havia escrúpulos na sociedade. Não havia respeito real. Onde as aparências mostravam pessoas dignas, apenas almas podres estavam sob as vestes elegantes. Conhecia pouquíssimos casamentos que se afastavam daquela miséria: o de seu irmão, de seus dois amigos e o de Trevor Reform, cunhado de Philip. Será que ninguém colocava a felicidade acima da obsessão de conseguir uma imagem considerável? Não, claro que não. Só se importavam em como poderiam fazer para alcançar respeito social e admiração. Mas ele era diferente. Nunca humilhou as mulheres, nunca tentou usar o título que teria no futuro para agir em seu prazer. Era honrado...

Aquela reflexão o perturbou tanto que afundou na poltrona. Como podia julgar os outros tão facilmente? Por acaso não se comportara com Anne da forma que agora criticava? Teve de assumir que usou seu poder para fazê-la assinar um contrato, assegurando que ao seu lado ela alcançaria uma fama adequada e não a havia humilhado? Duas vezes em menos de um dia: na noite anterior e depois fechando a porta na cara dela. Tinha que corrigir, tinha que voltar a ser o homem que realmente era e se afastar da pessoa que havia se tornado. Era verdade que Anne o perturbava, que isso trazia o pior dele à tona, mas ele precisava relaxar e encontrar a sanidade que ela fez desaparecer. Assumiria que ela era sua contratada, que lhe devia um pedido de desculpas e, naturalmente, afastaria de sua mente que ambos compartilhavam o sangue cigano e a estranha visão que teve ao beijá-la.

?Por todos os mundos miseráveis deste universo maldito! ? Ele exclamou quando se levantou. ? Isso acaba aqui e agora! ? Disse para si mesmo enquanto caminhava em direção à porta.

No entanto, a caminho da galeria, lembrou-se das palavras de Josephine sobre o relacionamento com Hendall. Por que seu peito ainda estava doendo? Por que não foi capaz de acalmar a raiva que vinha de dentro? Teria enlouquecido? «Ela é minha e será até que eu morra». As palavras de seu irmão voltaram a atormentá-lo ainda mais. Anne não era sua, nem ele pretendia que fosse. Até que apareceu em sua vida, usando aquele vestido laranja horroroso, ele desfrutava de uma vida de solteiro que adorava, que desejava manter. Então... o que estava errado? Por que ainda sentia ciúme de um homem morto? Por que queria voltar no tempo para evitar que aquele desgraçado a tocasse? Depois daqueles pensamentos inadequados, o otimismo, a calma, a paciência e tudo o que Evelyn lhe pedia ao tratar uma mulher, desapareceram e fortaleceram o caráter despótico que teve desde que a conhecera. Ela havia viajado para lá para cumprir um contrato, estar sob sua proteção, seu comando e.... para acatar todas as ordens que viessem à sua mente! Desde quando uma mulher recusava sua presença? O que Hendall tinha que ele não era capaz de superar? Todas as mulheres o descreveram como um homem sedutor, charmoso e o mais apaixonado que apareceu em suas camas. Então... o que diabos estava errado com Anne para vê-lo como um ogro?

?Maldita seja! ? Exclamou, parado no meio da escada que o levaria ao segundo andar, onde estavam os quartos de suas convidadas. ? O que está fazendo comigo? ? Se perguntou depois de acariciar, com desespero, o cabelo já solto. ? O que pretende fazer? Me matar? Foi assim que assassinou seus pretendentes? Não precisou de uma arma, tinha mais do que o suficiente com esse comportamento teimoso e a confusão que provoca nos homens...

Diante de uma consideração tão inadequada, voltou a se sentir como um vilão, o filho do diabo, de que tantas vezes o chamaram quando era apenas uma criança. Se virou e desceu os degraus que havia subido. Precisava encontrar algum controle antes de confrontá-la. Não estava em posição de se desculpar como ela merecia. Naquele momento se tornou aquele ogro que Anne via quando olhava para ele. Talvez no dia seguinte, quando ambos tivessem ponderado e descansado...

No entanto, assim que chegou ao final, quando só devia continuar pelo piso branco até o escritório, onde estivera desde que as duas irmãs Moore haviam se retirado, respirou fundo e olhou para cima. Precisava esclarecer o que tinha feito antes de se trancar em seu quarto, antes que todos falassem sobre a atitude esquiva de Anne em relação a ele. Tinha que esclarecer o erro trágico e que a paz retornasse ao seu mundo de obscuridade, se afastando finalmente daquele ciúme miserável que havia nascido dentro dele.

Lentamente, abatido por ter que assumir uma derrota, um sentimento que nunca pensou ter por uma mulher, subiu a escada novamente e desta vez não se virou.


***


Anne olhou para a bandeja de comida, que a criada trouxera momentos depois de dar a desculpa perfeita para não comparecer ao jantar, e fez um bico de aborrecimento. Não tinha apetite. Sentia-se tão triste e zangada que não conseguia nem pegar o garfo para levar um mísero pedaço daquela deliciosa ave à boca. Tudo o que queria era jogá-la pela janela, esperando que isso atingisse a cabeça do homem mais odioso do mundo. Oh, sim, isso eliminaria todo o ódio que sentia e faria dela uma mulher feliz! Teve que apagar rapidamente o sorriso que seus lábios desenharam ao imaginar a situação, já que não queria que a ferida reabrisse e que derramasse mais alguma gota de sangue por causa dele. O odiava. Sim, ela odiava o visconde e a única coisa em que conseguia pensar era dar a ele uma boa lição. Agarrou a camisola com força e puxou-a como se quisesse rasgá-la. Não deveria ter assinado o acordo. Tinha que agir com mais sensatez para não errar novamente. Quando ele insistiu em que faria dela uma pintora famosa, devia ter feito com que soubesse que já era e que a sua presença só lhe traria problemas, como tinha acontecido desde que o conheceu.

Irritada ainda mais ao admitir que tudo o que acontecia com ela era resultado de sua imaturidade e impetuosidade, se virou para a janela e caminhou em sua direção até que suas pernas tocaram a parede fria. Abriu lentamente a cortina, pois não tinham o peso nem o toque das que tinha visto antes e olhou para fora. O brilho de um relâmpago iluminou a entrada da mansão, os topos das árvores eram movidos pelo vento e suas folhas voavam de um lugar para outro. Descansou o ombro direito sobre a moldura da janela e suspirou enquanto olhava para o caminho que haviam percorrido até chegar à porta. Se aproximou. O visconde se aproximou dela no exato momento em que as irmãs se afastaram e tentou conversar sobre o que acontecera na noite anterior. Sabia que ela não teve nada a ver com a aparição da criada. Na verdade, estava tão surpresa quanto ele e, portanto, não soube como reagir. Por que a rechaçou? Não a queria ou o motivo tinha algo a ver com o que Elizabeth declarou? Preferia se deitar com as mulheres de sua classe?

Enquanto se fazia essas perguntas, ouviu um pequeno ruído no quarto, mas o vento era tão forte que não prestou atenção, porque deduziu que era ele quem o provocava. Se virou para o quarto escuro, porque não havia deixado nenhuma luz acesa e suspirou novamente. O visconde não tinha sido terno com ela, pelo contrário, sua grosseria a deixara tão irritada que não se lembrava de já ter passado tantos momentos com raiva em sua vida. Triste sim, vários. Mas nunca ficou em um ir e vir de cólera. No entanto, ele agia de forma diferente com suas irmãs. Tratava ambas como ternas e doces princesas. As fazia sorrir e as elogiava tanto que se sentiam envergonhadas com suas atenções. E o que fazia com ela? Exceto pela noite em que o encontrou na festa e, por sorte, ele não se lembrava dela, adotou um comportamento severo, autoritário e despótico. O que acontecia entre eles? Por que o destino insistia em uni-los quando não eram capazes de falar duas palavras sem discutir ou se ofender? Virou-se para a janela, levou dois dedos aos lábios e os acariciou devagar. Como seria um beijo apaixonado do visconde? Machucaria? Todos as suas amantes sangravam depois que ele as beijava? Ou era terno, como se mostrava com suas irmãs?

Um calafrio apareceu no momento em que outro relâmpago iluminou os campos. Anne esfregou os braços para aliviar a sensação de frio. Mas não desapareceu. Há muitas horas que rondava pelo quarto em uma camisola fina e seu corpo estava entorpecido. A melhor coisa para se aquecer era ir para a cama e se enrolar nos dois cobertores grossos fornecidos pela criada. No entanto, antes de se virar para a cama, olhou para fora até as primeiras gotas de chuva baterem no vidro. Amava os dias chuvosos. Adorava porque era o momento em que se trancava na sala de pintura e, enquanto dava forma a uma imagem, o som da água batendo no chão ou nos vitrôs se tornavam uma melodia. Suspirou profundamente, como se aquela respiração profunda lhe desse a força que precisava para continuar vivendo. Tinha que ficar firme, calma e fazer um bom trabalho. Quando tudo terminasse, ela e suas irmãs poderiam voltar para casa e continuar a vida que desfrutavam até a chegada do visconde. Só esperava que fosse em breve...

?Se eu estivesse no seu lugar, eu reconsideraria o que está pensando, ? Logan comentou, acreditando que Anne estava pensando em pular pela janela.

A voz do visconde fez com que ela se virasse tão rapidamente que sentiu uma ligeira vertigem. Apertou os olhos, procurando nas sombras a figura do autor das palavras. Mas não o encontrou porque estava escondido na escuridão proporcionada por algum canto do seu quarto.

?O que faz nos meus aposentos? ?Esbravejou. ? Saia agora! ? Ordenou irada.

?Se continuar a gritar assim, despertará todo mundo e quando nos descobrirem, pensarão que nós temos um caso. Quer me tornar seu próximo noivo? Isso parece uma ideia atraente, Anne? ? Ele disse, dando vários passos para frente, finalmente se mostrando diante dela.

?Fora daqui! ? Insistiu com um grito tão enérgico que sua garganta doeu. ? Como se atreve...

Uma das mãos do visconde, que se aproximou dela com uma rapidez felina, cobriu a boca, silenciando-a imediatamente.

?Disse para ficar quieta. Não quero que nos descubram ? ele sussurrou.

Mas Anne não se submeteria a essa ordem e lutou contra aquele corpo imenso. Primeiro o chutou na canela, o que lhe causou uma dor terrível no próprio pé. Então levantou as mãos, para puxar o cabelo, no entanto, o visconde, com um movimento ousado, recuou tanto, que seus dedos só conseguiram sentir a maciez daquele cabelo liberado de seu habitual recolhimento.

?Não ouve? É surda? ? Logan murmurou, esquecendo novamente o tratamento educado que havia decidido mostrar a ela.

Anne continuou acenando com as mãos, tentando alcançar um mísero fio de cabelo. No final, cansada, as abaixou, olhou para ele desafiadora e observou a diversão que seu rosto expressava. Como ele conseguia que as mulheres se rendessem? Todas as suas amantes foram agredidas no meio da noite? Pois ela não desistiria e lutaria até que não houvesse uma única gota de sangue em seu corpo. Deu um passo para trás, para se distanciar daquele torso vestido apenas com uma camisa branca meio abotoada. Não teve sucesso, ele a agarrou com a outra mão e a deixou imóvel.

?Vim me desculpar pelo que fiz ontem ? ele disse baixinho. Seu tom, quente e calmo, alterou Anne ainda mais. ? Eu sinto muito, não queria assustá-la ou machucá-la. Juro que me sinto miserável e....

Logan ficou em silêncio quando notou algo quente em sua mão. Não era a respiração dele, porque ele prendeu a respiração. Anne sangrava novamente. Sua ferida se abriu ao pressionar os dedos contra seus lábios. Ele rapidamente tirou a mão da boca e contemplou a evidência. Queria bater em si mesmo por prejudicá-la novamente, por não ser capaz de agir com consideração quando estava na frente dela. Com muito cuidado, o polegar da mão manchada foi colocado no lábio ferido e, como uma carícia, gentilmente afastou a gota de sangue que queria molhar o queixo levantado. Quando a tirou, olhou para ela e rosnou.

?Pretendia me ferir novamente? ? Anne perguntou com raiva, sem admitir a tristeza que o visconde refletia em seus olhos ou como seu rosto mostrava um sincero arrependimento.

?Juro que nunca machuquei uma mulher ? ele disse, acariciando sua bochecha esquerda com os nós dos dedos. ? Preferia cortar meus braços antes de...

?Corte-os! ? Ela disse, se recusando a reconhecer a agradável sensação que sentia na suave carícia e na calma que lhe causava.

?Anne... ? Logan murmurou, dando um passo para trás, removendo bruscamente essa proximidade e tentando fazer as emoções que corriam por suas veias desaparecerem.

Era como se a parte que odiava, a que repudiou desde o nascimento, ganhasse vida quando a tocava e ansiava por tudo que pudessem oferecer um ao outro. Era por isso que não poderia se comportar com Anne como fazia com as outras? Ela acordava a metade que tanto tinha escondido e a odiava por isso? E por que fazia isso? Seria verdade que os sangues ciganos se chamavam?

?Imploro que saia ? disse ela, com a mesma calma e firmeza. ? Quero que me deixe em paz, e não volte a aparecer dessa forma. Entendo que a casa é sua e que trouxe centenas de mulheres para serem atacadas no meio da noite, mas não sou como elas. Tenho honra e orgulho, milorde. Bem como sensatez e sanidade ? acrescentou altivamente.

?Não sairei daqui até conseguir o vim buscar ? disse ele cruzando os braços.

Era melhor manter aquela postura defensiva com ela do que beijá-la com o desejo e o ardor que sentia dentro dele. Por que era tão difícil para ele desviar o olhar? Por que não parava de olhar para aquele cabelo comprido, a silhueta que se escondia sob a camisola e aquela boca sedutora? Hipnotizado. Não havia dúvida de que estava hipnotizado.

?-E.... o que é que veio buscar? ? Resmungou.

?Um perdão ? ele respondeu, aliviado ao concentrar a conversa no objetivo que havia estabelecido para si mesmo, em vez das idas e vindas de reprovações.

?Quer que o perdoe por me culpar injustamente? Por ter me machucado? Por invadir minha privacidade? Por fechar a porta? Por...

Ela não conseguiu terminar, o visconde deu um passo em sua direção e se mostrou como ela o enxergava: um monstro. Um monstro enorme e feroz que, com um simples dedo, poderia esmagá-la.

?Se não quer visitas inapropriadas, da próxima vez coloque a trava ? ele disse cruelmente. — Ou talvez não saiba como fazer isso? Foi assim que Hendall a cortejou? Permitiu que ele entrasse? O recebeu com calor?

?O que?! ? Ela perguntou, atordoada. ? O que sabe sobre meu relacionamento com Dick? Quem acredita que é para falar comigo desse jeito?

?Seu tutor ? ele declarou em um tom sério e imutável.

?Meu o que? ? Perguntou fora de si. ? Saia daqui! Saia! ? Continuou gritando enquanto golpeava seu peito nu com os punhos. ? Perverso! Maldito! Como ousa falar comigo dessa maneira? Como se atreve a falar de Dick? Ele era um cavalheiro! Você...! Não sabe o que isso significa! ? Continuou sem parar de bater nele.

?Tem razão... ? Logan finalmente disse. Agarrou seus pulsos e os puxou para longe de seu peito. ?Sou um desgraçado miserável que te acusou de algo injustamente, que machucou seu lábio e que... ? ele respirou ? e que invadiu sua privacidade para fazer um pedido de desculpas.

?Não... não tem o direito de me tratar assim. Não sou uma prostituta... ? ela soluçou.

?Não tenho direito a nada ? disse solenemente. ? E não a considero assim tão inapropriada. Quero respeitá-la, preciso fazer isso, ? ele assegurou. ? Mas antes de termos um tratamento cordial, preciso aplacar minha consciência. Tenho que confessar que não fiquei nem um segundo em paz desde que soube a verdade sobre o que aconteceu ontem. Tenho que acabar este calvário o mais rápido possível.

?Não sabe o que essa palavra significa... ? Anne murmurou, afrouxando a força de suas mãos até que o visconde as soltou. Esfregou-as devagar, virou-se para a janela e caminhou em direção a ela sem desviar o olhar de fora. A chuva se intensificara. Aquelas primeiras gotas, que apenas acariciavam o vidro, foram transformadas em minúsculas pedras que o açoitavam como se quisessem quebrá-lo. ?Vá embora, eu imploro. Não quero que me incomode novamente. Não tem o direito de me humilhar dessa maneira. ? Suspirou. ? Se pudesse controlar o tempo, o faria retroceder para que meu pai não pedisse sua ajuda... ? Esfregou os braços novamente.

?Mas veio a mim ? declarou Logan, dando um passo na direção dela, mas parou quando viu Anne levantar a mão para impedir seu avanço. ? E eu quero ajudá-la.

?Não pode me ajudar. Não percebe que não somos capazes de permanecer calmos nem mesmo um mísero momento? Tudo isso se converteu em uma loucura e só vai nos trazer sérios problemas ? pensou em voz baixa.

?Me dê uma chance, Anne. Me deixe mostrar que está errada. Nós temos um acordo e vamos realizá-lo.

?Não... ? ela murmurou, também balançando a cabeça.

?Sim! ? Ele disse, agarrando-a pelos ombros e virando-a para ele. ?Farei o que prometi. Será capaz de ser a mulher que quer, mas primeiro deve me perdoar. Minha raiva me cegou, achei que me colocou a prova.

?A prova? ? Perguntou, olhando em seus olhos.

?Sim, assumi que queria deixar claro para suas irmãs que não sou um homem em quem elas possam confiar. Pensei que estava procurando uma desculpa para quebrar o acordo que assinou e isso me irritou. Apesar de tudo o que ouviu sobre mim, sou um homem de palavra e sempre cumpro minhas promessas ? disse em um tom suave, mas firme.

?Só queria pedir para deixá-las em paz. Não quero que as trate com carinho, com ternura e encha a cabeça delas com falsas esperanças. Nós não somos como os outros ? declarou, incapaz de tirar os olhos dos dele. Por que começou a acalmar sua raiva? Por que parecia andar em uma nuvem? Que motivo tinha sua cabeça para afirmar que suas palavras eram verdadeiras? Por que a olhava daquele jeito apaixonado? Gostava de estar na frente de uma mulher que o odiava tanto?

?Confia em mim ? ele pediu. Tirou a mão direita do ombro e colocou-a no queixo sedoso, como se estivesse falando carinhosamente com Nathalie. Mas aquele contato, o que sentiu quando a tocou novamente, não causou a mesma reação calorosa que sua irmã causava. O queimou com paixão. Criara uma necessidade inaudita até então, até o fizera desprezar a vida libertina que teve antes de conhecê-la. Lentamente, bem devagar, o polegar voltou a acariciar aquele lábio ferido, como se o leve toque pudesse curá-lo. Inclinou-se para a frente, com fome de lamber aquela gota seca que vagara sem rumo pelo queixo precioso e que não vira antes. Por que sentia o desejo de abraçá-la, consolá-la, fazê-la entender que em seus braços encontraria proteção genuína? Por que a boca dela o incitava a beijá-la? Confuso, se afastou rapidamente. Não podia pedir a ela para confiar nele e perdoá-lo e depois beijá-la. Que tipo de demente era se agisse assim? A melhor coisa para ambos era manter uma distância adequada e fazer o que prometera, mesmo que não conseguisse naquele momento o perdão que procurara. Talvez, com o tempo, desse a ele. —Amanhã vamos começar o trabalho. Quanto mais cedo terminar, mais cedo poderá ir, ? declarou, virando as costas para ela e adotando um tratamento distante novamente. ? Até amanhã, senhorita Moore. Vamos nos encontrar depois do café da manhã e não se esqueça de passar o trinco se quiser evitar outra visita inesperada durante a noite ? acrescentou antes de sair e fechar a porta.


XXII


Foi a última das três a descer, embora não tivesse dúvidas de que se levantara da cama primeiro. Mas permaneceu por várias horas dentro de seu quarto pensando na aparição do visconde e na conversa que tiveram. Ela não chegara a nenhuma conclusão exata, exceto que invadira sua privacidade para fazer um pedido de desculpas ao qual ela negara. No entanto, suspeitava que suas palavras de arrependimento fossem verdadeiras. Em nenhum momento demonstrou arrogância, mas simplicidade e humildade. Bem, alguma fúria também, mas só quando fez referência a Dick. Quem contou sobre ele? Como soube que teve encontros românticos e clandestinos? Os seus encontros com Dick foram a fofoca de Londres? Uma enorme tristeza apareceu quando se lembrou disso. Embora tenha descoberto que ele a estava traindo, embora estivesse certa de que suas palavras de amor não eram reais, ansiava por aqueles momentos em que seu corpo parecia flutuar e corar ao ver como um homem a observava furtivamente. Queria sentir borboletas no estômago novamente, queria se sentir como...

Sentou de repente no colchão, fazendo a saia de seu vestido marrom, o que usava quando ia pintar, se mover como uma onda corajosa do mar. Por que o visconde se recusou a levá-la em seu navio? Apesar de todos os perigos que enfrentaria em alto mar, não havia mais qualquer dúvida de que, se ele ordenasse que não a tocassem, ninguém desobedeceria ao seu comando. O visconde era um homem severo e autoritário, também poderia acrescentar imprudente, porque se alguém os tivesse descoberto no quarto com a luz apagada, ela de camisola e ele com a camisa desabotoada... o que teriam pensado? «Quer me tornar seu próximo noivo? Isso parece uma ideia atraente, Anne? », se lembrou das perguntas que fez quando apareceu das sombras. Estava prestes a cair no chão ao vê-lo daquela forma tão fantasmagórica. Seu cabelo estava solto, tocando seus ombros, se movendo ao contrário dos passos, o olhar intenso, pois seus olhos em vez de azul pareciam negros, seu queixo firme, escondido sob uma barba negra negligenciada..., mas o que deixou Anne atordoada foi observar o conforto que mostrou quando se apresentou com o torso descoberto. Não sentia vergonha? Era tão vaidoso que tinha certeza de que qualquer mulher cairia aos seus pés, se revelasse uma certa parte de seu peito forte? Anne colocou as mãos no rosto e esfregou-o abruptamente. Não era vaidoso, sabia perfeitamente bem o efeito que causava quando se aproximava de uma mulher e teria conseguido isso nela se não tivesse sofrido um colapso nervoso. Quantas damas rezariam para ele aparecer em seu quarto no meio da noite? Quantas orações foram ouvidas e respondidas? O desespero que percorreu seu corpo tornou-se raiva, cólera, um estranho senso de propriedade. O que acontecia com ela? Por que sua pele queimava? Por que pensava nesse absurdo? Estaria doente?

?Oh, meu Deus! ? Exclamou, exasperada.

Não, não estava doente. O que realmente acontecia com ela era algo muito comum entre as mulheres de sua raça. O sangue de seu pai não podia lutar contra o da cigana e esse lhe pedia, quase todos os meses, pelo apego ao calor masculino. Mary não disse que era comum entre as mulheres da sua idade? Que seu corpo reclamava aquilo que ainda não havia chegado? Pois estava reclamando novamente. O visconde havia despertado essa necessidade que mantinha guardada porquê da última vez em que não a controlou, cometeu um grave erro.

Exalou todo o ar em seus pulmões, levantou do colchão, foi até a penteadeira e fechou os olhos antes de se ver refletida no espelho. Devia estar ciente do que aconteceria nos próximos dias e esquecer de todas as alterações que sofreria. Assim que tomasse o café da manhã, começaria o trabalho combinado e, se tudo corresse bem, terminaria o mais cedo possível. Deixaria esse estágio de sua vida em algum lugar de seu cérebro, onde as lembranças seriam removidas com o tempo. Assim, voltaria a ser a Anne de sempre e lutaria sozinha contra esses impulsos ciganos.

No final, abriu os olhos e observou a si mesma no espelho. Congelou quando percebeu que seu rosto tinha um brilho estranho. Por que os círculos usuais sob seus olhos não apareciam? Ficara acordada a maior parte da noite, mal conseguira descansar e, apesar de tudo, estava esplêndida. Depois de se recusar a pensar sobre a razão pela qual sua aparência não coincidia com a dor que sentia em sua alma, saiu do quarto, mas não antes de confirmar que o visconde não estava esperando por ela no corredor, para se certificar de que não enviaria a criada com outra desculpa absurda. Respirou calmamente, descobrindo que ninguém a estava esperando e que a casa permanecia em absoluto silêncio. Desceu calmamente as escadas, admirando finalmente tudo o que encontrava diante dela. Não estava com pressa. Quanto mais cedo terminasse o café da manhã, mais cedo o encontraria novamente e não queria enfrentá-lo tão cedo, não é?

?Bom dia! ? Josephine cumprimentou-a enquanto mastigava um pedaço de torrada. ? Descansou? Está se sentindo melhor?

Anne, depois de repreendê-la por falar com a boca cheia, caminhou em direção a Elizabeth, que decidiu usar um de seus belos vestidos de seda azul e tinha seus cabelos dourados em um coque alto, beijou-a na cabeça e depois fez o mesmo com Josh, que a surpreendeu por não estar com os cabelos presos por um laço como sempre, mas, ao contrário, deixara que sua criada os recolhesse, deixando-o parecido com uma espiga de trigo, ela se acomodou em uma das cadeiras que ficava perto.

?A tempestade me acordou no meio da noite ? disse por fim, enquanto um dos criados servia o chá. ? Então não consegui dormir. Talvez sinta falta da minha cama mais do que deveria.

?Dormi maravilhosamente! ? Josh exclamou. ? Fiquei encantada com o toque dos lençóis de cetim, o colchão é muito macio, os cobertores tinham um cheiro delicioso de flores silvestres e....

?E os cinco copos de vinho que ingeriu no jantar também lhe pareceram adequados? ? Elizabeth disse com raiva.

Embora sua irmã tentasse não exagerar, o visconde a encorajou tanto que ela perdeu a pouca sensatez que poderia ter. Por essa razão, não apenas sua mente foi liberada, mas também sua língua. Só esperava que Logan adotasse um comportamento apropriado e não usasse tudo que descobriu sobre Anne contra ela. Que homem, sedutor e apaixonado, não a olharia de maneira diferente quando soubesse que havia mantido relações e que estava livre para fazer o que queria?

?Josephine! ? Anne esbravejou com raiva. ? Por que fez isso?

?Estava com muita sede ? a jovem comentou asperamente ? e estava tão delicioso... soube que me excedi quando deitei naquele colchão macio e notei que o teto estava descendo e subindo sobre mim e não pude pará-lo com minhas mãos.

?Eu a proíbo de beber qualquer coisa novamente, exceto água ou chá! ? Me ouviu? ? Disse Anne. ? Se seguir com esse comportamento tão pouco feminino, eu juro por Deus que...

?O que? —Perguntou a aludida erguendo as sobrancelhas. Cruzou os braços e as pernas, exibindo precisamente o comportamento masculino que sua irmã recriminava. ? Vai me colocar em uma carruagem, como Logan fez com aquela prostituta, e me forçar a voltar sozinha para Londres? O que nossos pais pensarão quando me virem aparecer? Nada de bom... ? Estalou a língua e balançou a cabeça lentamente. ? Tenho certeza que vão determinar que planejou isso, porque sem a minha presença, sem a proteção que ofereço com minhas armas, Elizabeth pode flertar com qualquer aristocrata que puser os pés nesta residência e você conseguirá...

?Não continuará falando assim ou irei colocá-la no seu quarto, prendê-la e jogá-la no primeiro rio que encontrar! ? Anne disse, adotando um comportamento mais parecido com o de uma mãe do que de uma irmã.

?Pularia pela janela... ? respondeu divertida, ao se levantar da cadeira. ? Com sua permissão, damas bonitas, estou indo embora ? disse ela, descartando-as de maneira teatral. ?Vou permitir que tagarele a seu bel prazer enquanto galopo vários quilômetros pela redondeza.

?Vai cavalgar? ? Anne perguntou surpresa.

?Mas é claro! ? Disse Josh efusivamente. ? O visconde me deu permissão para escolher o cavalo que mais me agradar e passear por seus domínios para informá-lo se perceber algo estranho. Também me pediu para ir para as fronteiras do Norte para verificar se não há caçadores ilegais. Segundo me explicou, esse é a zona silvestre com o pasto mais rico e ali se reúnem centenas de animais de espécies diferentes. Só espero poder caçar algum. Possivelmente a Sra. Donner saberá como prepará-lo em um ensopado saboroso.

?É uma loucura! ? Eli gritou, levantando-se depois de jogar o guardanapo na mesa. ? Não pode fazer tal barbaridade! Caçadores? Armas? Cavalo? Se lembra que o nosso propósito nesta viagem é acompanhar Anne sempre que ela precisar? Como pode pensar em deixá-la tão desamparada? Não tem coração! ? Adicionou um tom exagerado de drama na última interjeição.

?Desculpa? Fala a sério? Quer me censurar por algumas míseras horas de liberdade? Que absurdo! ? Ela gritou ofendida. Retrocedeu os poucos passos que tinha dado em direção à porta, colocou-se na frente de Elizabeth, levantou o dedo inquisidor, franziu a testa e continuou: ? Acha que não sei o que vai fazer esta manhã? Eu a ouvi falar com o cocheiro de Logan sobre seu magnífico plano.

?O que planejou? ? Anne perguntou com expectativa. Acabou se levantando e se aproximando de suas irmãs. Se continuassem discutindo dessa maneira, Elizabeth sofreria um tornado em sua cabeça, porque Josh iria irritá-la antes que ela pudesse piscar uma vez.

?Nada de estranho ? disse levantando os ombros. ? Logan e eu fizemos uma caminhada antes que ele se retirasse para o prédio ao lado. Durante aquela pequena excursão, me disse que sente muito, porque há uma parte do jardim, aquela que se esconde atrás de uma fonte gigantesca, que nasce selvagem. Quando me levou para aquela área, não pude deixar de soltar um pequeno grito de entusiasmo.

?Porque motivo? ? Anne perguntou com uma voz cansada.

?Porque é o lugar perfeito para as magnólias nascerem ? ela disse entusiasmada.

?E? ? Disse Anne sem mudar o tom de voz.

?E Logan me deu permissão para plantá-las. Além do mais, me pediu para ir à aldeia esta manhã, acompanhada por Howlett e Kilby, para que pudesse comprar todas as sementes que quisesse daquela planta. Embora agora esteja pensando sobre isso... ? Colocou o dedo indicador da mão direita em direção à boca e bateu lentamente. ? Também poderia plantar camélias. Sim! Eu poderia plantar uma parte de magnólias e outra parte de camélias! ? Ela exclamou animadamente.

Anne observou suas duas irmãs. Elas nunca tinham estado tão animadas com algo em particular e o visconde era o culpado por essa felicidade. Ele as entendia? Ele realmente sabia como dar a elas o que desejavam? Qual posição devia adotar? Seria apropriado negar-lhes tal prazer? Não. Se ordenasse que se esquecessem do que as fazia tão felizes, a odiariam pelo resto de suas vidas. Um pouco de liberdade as manteria em silêncio e eliminaria, por algum tempo, seus distúrbios comuns.

?Vão! ? Disse depois de ponderar. ? Podem ir.

?De verdade? ? Eli perguntou estranhando. ? Não vai se sentir mal ficando sozinha com o visconde?

?Deu aquele passeio esta manhã acompanhada por uma criada? ? Repreendeu suavemente.

?Não ? ela respondeu com alguma angústia.

?Algo aconteceu que deveria me contar? ? Disse.

?Como sempre disse, Logan é um cavalheiro. Seus casos de amor têm...

?Vão e se divirtam ? a interrompeu, apertando sua mão direita com força.

?Obrigada! ? Eli exclamou, jogando-se sobre sua irmã para abraçá-la e dar um beijo sonoro na bochecha. ? Não vou me atrasar, prometo.

?Só colocarei uma condição ? disse olhando para Josephine. ? Pode andar por aquela área que o visconde lhe disse, mas quero que deixe sua arma no quarto.

?Que arma? ? Josh perguntou evasivamente.

?Todas! ? Disse Anne.

?Está bem... admitiu com tristeza. ? Mas se tiver que enfrentar uma ameaça e não tiver algo para salvar minha vi...

?Disse todas! ? Reiterou com energia.

?Vamos, Josh. Não insista ? disse Elizabeth, pegando a irmã pelo braço. ? Já alcançamos mais do que esperávamos. Talvez, em outro momento, possa ser acompanhada por algo menos... perigoso.

Josh fez um leve aceno de cabeça, como se consentindo com essa decisão, no entanto, não iria cumpri-la. Desta vez manteria a pistola, mas esconderia sob a sela a adaga com a qual o visconde a ensinara a atirar. Ninguém poderia prometer que ela ficaria segura em um lugar tão inóspito...

Quando as irmãs saíram, Anne se sentou novamente e esfregou o rosto desesperada novamente. Não era justo que ela tivesse que enfrentar o visconde sozinha e menos depois que ele apareceu em seu quarto. Como agiria? Seria capaz de esquecer qualquer sentimento e se concentrar em pintá-lo? Insistiria em pedir perdão? Esqueceria o assunto?

?Senhorita Moore... ? A voz da criada que a atendia apareceu às suas costas.

?Sim? ? Perguntou, se virando para ela.

?Sua Excelência indicou que deve aparecer no edifício anexo o mais rapidamente possível ? informou.

?Diga a ele que demorarei um pouco, porque tenho que preparar tudo o que preciso ? disse quase sem voz, quando um caroço se formou em sua garganta, pressionando com tanta força a traqueia que mal conseguia respirar.

?Não tem nada para preparar, só tem que se apresentar ? ela disse sem se mexer no piso branco em que se encontrava.

?Como assim? ? Ela exigiu, surpresa.

?Ele mesmo transferiu tudo o que comprou para esse local da residência esta manhã ? declarou destemida.

?Certo, diga que assim que terminar meu chá, irei para essa instalação, ? ela disse desanimada.

?Se não se importa, irei esperá-la na porta. O visconde me mandou escoltá-la até...

?Está bem! ? Disse, levantando-se. ? Não façamos a Sua Majestade esperar! ? Disse mordaz.

***

Logan se esquivou do impacto, mas sentiu as juntas acariciarem sua bochecha esquerda, sorriu para seu oponente e devolveu o golpe. Enquanto este se queixava da força de seus punhos, olhou para a entrada e fez um beicinho de desagrado. Fazia algum tempo desde que a criada tinha ido procurá-la e era estranho que ela ainda não tivesse aparecido. Se desculparia novamente para não aparecer? Era assim tão medrosa e covarde?

?A próxima vez que me pedir para vir antes das dez da manhã, vou pensar sobre isso. Pensei que me agradeceria pelo bom trabalho com um delicioso café da manhã da Sra. Donner e acabei seminu e recebendo golpes que não mereço. ? Marco Ortiz, seu advogado, o encarregado de administrar Harving House enquanto estava ausente, acariciou seu cabelo castanho curto, sorriu de lado e insistiu em atingir o rosto orgulhoso do visconde.

?Eu o teria demitido imediatamente ? disse Logan, evitando o golpe.

Não teria cumprido a ameaça. Esse garoto era o melhor advogado que conhecera depois de Arthur Lawford, mas ele devia estar lá como o ponto culminante de seu plano.

Durante a noite, muito longa para uma pessoa que não conseguia dormir, ponderou sobre como agir para que Anne o perdoasse e esquecesse o caráter grosseiro que dirigia a ela. E, logicamente, depois de tantas horas, encontrou. Em primeiro lugar, eles precisavam de um pouco de privacidade, por isso, quando vira as irmãs, pedira-lhes como favor aquilo que poderiam fazer e que as agradaria. Josephine montaria em um de seus melhores cavalos e verificaria a terra mais distante de sua propriedade. Não estaria em perigo, já que ninguém passava naquela área. As únicas pessoas que podiam aparecer eram a família do barão de Sheiton, porque Federith Cooper, após o nascimento de sua segunda filha, decidiu adquirir uma pequena propriedade naquele lugar. Pelo que ouvira, a garotinha tinha problemas respiratórios e o Dr. Flatman avisou-o de que o local litorâneo era ideal para a menina. Mas eles nunca apareceram na estação do ano em que estavam. Assim, Josephine se divertiria sem sentir nenhum perigo. Então pediu a ajuda de Elizabeth. Não mentiu para ela quando a levou para o lado direito do jardim e explicou que precisava de sua habilidade com as plantas para embelezar aquele pedaço de deserto. Animada, ela respondeu que estava mais do que disposta a transformar aquele lugar de selva em um Éden cheio de uma flor que não conseguia mais lembrar o nome. Claro, não iria sozinha. Ela sairia escoltada pelos fiéis Howlett e Kilby, além de pedir ao cocheiro que levasse as armas necessárias para sua proteção. Em terceiro lugar, ele precisava que Marco aparecesse. Segundo as mulheres, sua beleza era inigualável, assim como sua boa educação. Todos ansiavam pelo jovem advogado, embora nenhuma delas o tivesse em seus braços porque tinha um gosto um tanto peculiar. No entanto, o rapaz responderia a uma pergunta que havia surgido no meio daquela noite. Quantos homens Anne amara? Queria se mudar para Paris porque ouviu que era uma cidade bem luxuriosa? A verdadeira razão pela qual ela queria sair de Londres era viver cercada de amantes? Logo obteria o que desejava. Se Anne não corasse quando visse dois corpos masculinos suados e seminus, que pareciam tão varonis, diria que Dick não fora o único a tocá-la. Se corasse, talvez, apenas talvez, aquele ciúme que não o deixava em paz desapareceria.

?Bata mais forte! ? Logan repreendeu Marco quando notou uma leveza imprópria do rapaz quando os nós dos dedos bateram novamente em seu rosto.

?Não quero que tenha a desculpa perfeita para me tirar o trabalho ? o jovem comentou sarcasticamente.

?Vou expulsá-lo se não usar a força! ? Bennett gritou, soltando outro soco de direita.

?Vejo que saiu de Londres com muita vitalidade ? ele zombou quando se esquivava do soco de direita. ? Não relaxou com a senhorita Rose?

Ao ouvir o nome de sua última amante, Logan ficou tão enfurecido que se jogou no rapaz e o atingiu no estômago.

?Não a nomeie novamente em minha presença ? ele rosnou. ? Essa mulher desapareceu da minha vida.

?Já tem outra que o atraia? ? Ele perguntou acariciando-se com cuidado na área onde uma dor terrível aparecia.

?Não ? ele disse, voltando a ficar em guarda.

?Agora entendo o seu excesso de energia ? disse ele divertido, levantando os punhos novamente. ? Esse estado de abstinência sexual não vai lhe fazer bem ? acrescentou, recuando, escapando de outro impacto rápido. ? Um homem acostumado a ter uma amante que o acalma e aplaca a masculinidade que possui...

?Se considera diferente? ? Ele perguntou, cortando a distância entre eles.

?Claro! ? Marco comentou, aproveitando o descuido do visconde para dar um soco nele. ? Nós temos mais fácil, milorde. Embora ainda estejamos nos escondendo de patifes como o senhor.

?Patifes? Me inclui nesse grupo de imbecis? ? Gritou com raiva. ? Quem, de todos aqueles a quem ofereceu seus serviços, o considerou um homem, apesar do que é? ? Ele censurou.

?O que eu sou? Acha que não sou humano? ? Marcus levantou a mão direita para terminar a luta odiosa, limpou o suor do rosto com o antebraço esquerdo e sorriu. ? Tenho sangue vermelho e quente correndo pelo meu corpo, milorde. A única diferença que tenho em relação a homens como o senhor é que não temos os mesmos gostos.

?Se tivesse essa atração pelo sexo masculino, teria me matado ? declarou Logan ao recuperar o fôlego.

?Não sabe o que está perdendo ? Marco comentou, caminhando para o banco onde estavam as toalhas que usavam para enxugar o suor causado pelo esforço.

?Não quero saber ? Logan assegurou, estendendo a mão para pegar o pano que ele jogou.

?Sim, mas se tentasse, garanto que mudaria...

Marco ficou em silêncio. Seu rosto marrom empalideceu e seu corpo endureceu como uma folha de madeira. Alguém havia entrado no ginásio e ele sabia quem era.

?Senhorita Moore... ? Ele a cumprimentou quando se virou para ela e a encontrou parada na porta. Seus olhos castanhos expressaram constrangimento e surpresa. Incrivelmente satisfeito, deduziu que Anne não estava acostumada a ver os homens com despudor. Sem dúvida, o único que havia tocado aquele corpo que se escondia sob um vestido marrom áspero era Dick. Se Rose estivesse em seu lugar, ela teria caminhado decididamente para um banco, teria se sentado e assistido com ardor e desejo, imaginando os dois em sua cama. No entanto, Anne ficou paralisada e seu rosto expressou horror, como se na frente dela houvesse dois ladrões que queriam agredi-la. —Conseguiu descansar?

?Milorde... ? respondeu com uma leve reverência ? obrigada por perguntar. Sim, dormi pacificamente.

Logan estreitou os olhos claros e virou a cabeça para descobrir onde as pupilas marrons fitavam na sala. Não gostou de confirmar que elas estavam se dirigindo a Marco, apesar de não ser um futuro adversário. Por que o olhou dessa maneira? Se perguntaria quem era? Ou... o acharia atraente? E, a propósito, onde estava a Anne que cuspia fogo pela boca? Havia desaparecido na presença de Marco?

?Sr. Ortiz, apresento a senhorita Moore, uma famosa retratista que veio de Londres para capturar meu lindo rosto em uma tela ? disse aborrecido.

?Prazer em conhecê-la, senhorita Moore ? Marco comentou. Ele cobriu o torso nu com a toalha, caminhou em direção a Anne e estendeu a mão.

?Igualmente ? respondeu, aceitando aquela saudação.

?Não acha isso incongruente? ? Logan disse, cruzando os braços.

?O que? ? Perguntou a Marco, que, depois de um leve sorriso, foi até o banco onde tinha suas roupas.

?Que seja uma mulher que retrata o homem mais sedutor de Londres, ? disse ele sem apagar o sorriso no rosto.

E nesse momento, depois de ouvirem ambas as palavras, ficaram boquiabertos. O que o visconde pretendia ao falar de maneira tão inadequada?

?Tenho certeza que a senhorita Moore estará acostumada a despachar homens de sua classe. E, receio, que sua incrível sedução não será eficaz. Ela é a primeira mulher que não sorriu coquete para vê-lo meio nu e suado. Pelo contrário, acho que ficou desapontada, estou certo? ? Ele perguntou, olhando para ela com alguma cumplicidade.

?Não está errado. Não corei ao ver o visconde de maneira tão inapropriada para receber uma mulher honrada. Além disso, nunca me interessei por um homem que transpira desnecessariamente ? respondeu sem conseguir apagar o sorriso que causou o apoio do jovem.

?Também fujo de homens que cheiram a esterco de vaca ? disse ele, aproximando-se dela.

A risada de Anne foi ouvida em todo o ginásio. Logan a observou sem piscar e foi cativado por aquele rosto que expressava diversão e felicidade, embora ria às custas dele, o deixou aturdido ao ouvir a suave melodia de sua risada, contemplar a beleza daquelas bochechas coradas e notar o brilho tão magnífico dos seus olhos castanhos. Sem dúvida, Anne não estava ciente de como era bonita quando sorria. Tinha que fazer isso com mais regularidade, contanto que estivesse ao seu lado e cuidasse para que outro homem não encontrasse o que acabara de descobrir.

?O visconde ofereceu tanto que não podia recusar sua oferta? ? Ele perguntou. Marco, uma vez vestido, a convidou para se sentar e ela aceitou de bom grado.

?Pode-se dizer que me senti obrigada a não recusar ? expressou sem conseguir parar de rir.

Ele era o homem mais bonito que já tinha visto em sua vida. Seu cabelo castanho, seus olhos tão negros como a noite, aquele queixo alongado e a suavidade de um rosto, comparável ao de uma figura grega, a deixaram perplexa. Claro, tinha ficado sem palavras quando entrou. Como poderia dizer alguma coisa quando tinha dois homens com corpos perfeitos na frente dela? Embora houvesse muitas diferenças entre os dois: ali onde o visconde usava o cabelo desgrenhado e sedoso, o jovem apresentava um cabelo bem cuidado e um corte meticuloso. O visconde era mais alto que o senhor Ortiz e este não tinha pelos no torso. O homem que a contratou, mostrava uma mata de pelos negros. Mas tinha que admitir que essas desigualdades aumentavam a masculinidade do arrogante e orgulhoso visconde.

?Entendo. A muitos dos que estão aqui, aconteceu algo semelhante ? explicou sentando-se ao lado dela.

?Não ouvi nenhuma reclamação de sua parte desde que entrou no meu escritório ? disse Logan, caminhando para o canto oposto do ginásio, onde guardava as espadas com as quais praticava esgrima.

?Acha que posso recusar um bom salário e um emprego que não exige muito esforço? Seria tolice recusá-lo ? disse observando atentamente a inquietação do visconde. Ele respondeu que não havia uma mulher depois do término com Rose? Então... o que ela estava fazendo em um lugar tão sagrado para ele? Pintá-lo? Foi essa a desculpa que ele deu para afastá-la do mundo e vê-la? Bem, se ele quisesse ter algo com ela, suspeitava que a atitude que mantinha até então não era adequada. Se sua primeira impressão não o enganara, a senhorita Moore não sentia nada pelo visconde, pois ela o olhava muito mais. ? Gostou da viagem, senhorita Moore?

?Anne, pode me chamar de Anne, se quiser, e não foi agradável, mas sim terrível. Não estou acostumada a viajar mais de uma hora em uma carruagem e devo confessar que a experiência me desagradou o suficiente ? respondeu em uma voz quente e terna.

?Por que não me contou? ? Logan disse, movendo o florete da direita para a esquerda.

?Porque não achei conveniente, milorde ? respondeu asperamente. ? Não seria educado censurá-lo por algo que não podia controlar.

?O que não podia controlar? — O florete já estava se movendo incontrolavelmente. Se ele tivesse tido a maçã com a qual ele ensinou Josh a lançar a adaga, a teria transformado em mil pedaços.

?Minha segunda grande viagem foi monótona e pode me chamar de Marco, por favor ? interveio o advogado rapidamente antes que entre os dois, começasse uma guerra que não teria fim.

?Por quê? ? Perguntou Anne, se virando para ele e tentando não prestar atenção às maldições que o visconde expelia pela boca ao ouvir que não era um ser superior e que não podia controlar tudo o que encontrava ao seu redor.

?Porque foi uma provação viajar de barco da Espanha para Londres ? disse, ainda olhando para a atitude de raiva da mulher e do visconde. «Bem, finalmente ele encontrou uma dama com orgulho», pensou satisfeito.

?É espanhol? ? Perguntou, arregalando os olhos. Agora entendia por que sua cor de pele era mais bronzeada do que a do visconde. Talvez, quem sabe, finalmente tenha encontrado o cigano que...

?Sim, Anne, sou espanhol. Nasci em Sevilha, mas passei toda minha infância em Madri. Meus pais pensaram que, se eles me mandassem embora e me afastassem do satanismo, recuperaria a razão.

?Satanismo? ? Ela exclamou, surpresa.

?Marco não gosta de mulheres ? Logan disse novamente, depois de suas palavras, as dimensões de seu peito triplicaram por se sentir o homem mais satisfeito do mundo.

?Como? ? Anne perguntou, levando a mão à boca.

?Nem todos devem ter o mesmo gosto, certo? Se assim fosse, este mundo seria muito simples.

E tudo o que pensara sobre aquele possível cigano espanhol desapareceu como a névoa antes da chegada do sol.

?Claro... ? respondeu sem voz.

E então a risada veio de Logan.


XXIII


Uma vez que Marco explicou sua intensa vida, que culminou com o dia em que ele apareceu em Harving House para pedir um emprego decente, decidiu encerrar sua visita. No entanto, não saiu sozinho, o próprio visconde o acompanhou, mas não antes de se dirigir a ela e explicar que estaria ausente pelo tempo necessário para se arrumar e se perfumar, evitando assim estragar seu valioso olfato.

Enquanto estava sozinha e a raiva que aquele comentário doloroso produziu foi eliminada, observou o lugar onde ele praticava seus exercícios bárbaros. Era tão simples quanto a casa, embora felizmente as espadas temíveis e afiadas não estivessem penduradas nas paredes. Nunca imaginou que um homem como ele, com um famoso gosto pela beleza e pelas mulheres, decoraria o interior de sua casa com artigos tão impróprios para um amante de coisas atraentes. Parecia mais um cavaleiro medieval do que uma pessoa que vivia quase no final do século XIX. Mas essa decoração o descrevia perfeitamente. Ele proclamava aos quatro ventos que era um homem retrógrado e que tudo em que pensava era na guerra, em sentir o calor de uma mulher e continuar aumentando sua riqueza. Embora tivesse de admitir que, como Marco disse, nem todo mundo seria capaz de contratar um funcionário com gostos tão diferentes. Poderia essa aceitação do jovem neutralizar todas as coisas horríveis? Quem conhecia que não repudiaria a inclinação sexual do rapaz? Até seus próprios pais acreditaram que Satanás havia entrado no corpo de seu filho! Como puderam pensar tal atrocidade? Não foram capazes de ver as qualidades dele? Como o visconde explicou, com uma voz calma e firme, ele era, segundo Arthur Lawford, o melhor advogado e administrador que conhecera e que, graças à sua capacidade decisiva, mantivera sua propriedade a salvo de maus investimentos. Então... o que acontecia com o mundo? Por que eles o afastaram como se fosse uma praga? «O que aconteceria conosco se alguém descobrisse que nosso sangue tem uma herança cigana? » Se perguntou, deixando para trás as espadas com as quais o visconde praticava a esgrima. «Algo parecido», sucumbiu.

Com as mãos nas costas e sem parar para pensar na tragédia que sua família sofreria se o segredo viesse à tona, caminhou para o lado direito daquela instalação sem fim, onde descobriu uma porta de madeira escura. Esquecendo todo o pesar que suas conclusões a fizeram sentir, se concentrou no que estava por trás da porta. O que o visconde esconderia? Uma sala cheia de armas? Um enorme canhão? Incapaz de apagar o sorriso em seu rosto, imaginando tal insensatez, colocou a mão direita na fechadura e abriu-a lentamente, causando um eco no interior devido ao barulho que fez ao virar. Ela olhou por cima do ombro esquerdo, para ver que ainda estava sozinha e, depois de confirmar, abriu a porta, ficando parada ao descobrir o que realmente estava ali. Quando o teriam construído? Quem estaria cuidando dele? Por que não mostrara a Elizabeth aquele paraíso colorido? Anne deu um passo à frente, deixando as pontas dos sapatos no final do grande degrau. Inspirou com força, fazendo com que a diversidade de cheiros daquelas flores enchesse seus pulmões. Sentiu uma brisa leve acariciar seu rosto e ficou tão embriagada com a calma daquele lugar que fechou os olhos para se deixar levar por aquela sensação de bem-estar. Parecia que estava no meio de um prado, correndo alegremente enquanto seu cabelo, liberado do coque que sempre usava exceto quando se retirava para dormir, dançava ao ritmo do vento. Estendeu as mãos, de modo que as pontas de seus dedos tocassem suavemente aquela brisa que se elevava como uma acolhida, respirou de novo e sentiu como seu corpo se libertava da pressão a qual não parava de se sujeitar. Sem dúvida, aquele sangue cigano dominara o Moore e gostava desse contato com o ambiente em que viveu e viveria durante séculos, porque se sentia como um cavalo selvagem galopando por um campo sem fim.

?Lindo, não é?

A voz do visconde a trouxe de volta à realidade, se virou para ele e, naquele momento, notou como suas mãos grandes agarraram sua cintura para que não caísse pelas escadas que ainda não havia pisado.

Por alguns segundos, ele a segurou perto de seu corpo, olhando para ela de um jeito estranho. Ela tentou tirar os olhos daquele rosto que, depois de lavado, emanava um cheiro intenso de loção de barba, mas perdeu a capacidade de decidir ficar hipnotizada naquele semblante que expressava diversão e elegância. Evocando as poucas forças que tinha, porque se sentia muito fraca diante daquele contato afetuoso e da embriaguez que lhe causara o perfume tão masculino, colocou as solas dos pés no chão e se afastou lentamente. No instante em que não precisou mais da ajuda daqueles braços fortes, o visconde recuperou uma séria e altiva compostura.

?Estava perguntando, antes de me forçar a segurá-la, se gostou do lugar que escolhi para me retratar. ? Ele colocou as mãos atrás das costas e desceu os cinco degraus de pedra que o levariam àquele lugar paradisíaco.

?A variedade de cores é perfeita ? comentou sem se mexer nem um centímetro. —Pode se colocar entre as flores azuis e brancas. Isso vai...

?Não estou perguntando se é o espaço certo para pintar. A questão, senhorita Moore, é se a senhorita gosta deste lugar ? disse se virando para ela.

A brisa que a recebera agora lhe dava as boas-vindas. Seu terno, preto como a noite, movia-se lentamente com o ar e o cabelo, que voltou a prender com uma tira, lutava contra esse isolamento. Não estava ciente de que o ambiente em torno dele queria que se livrasse daquela postura ereta e arrogante? Por que não se deixava levar como ela?

?Sim ? finalmente respondeu.

?Onde devo me posicionar? ? Quis saber se virando para o jardim.

Anne não desviou o olhar das costas largas que mostravam uma sobriedade e elegância que a deixavam sem fôlego. Como ele podia mudar sua atitude tão rapidamente? Como podia deixar de ser o capitão do navio, aquele que não se importava com a aparência que mostrava aos outros, para se tornar um aristocrata orgulhoso e petulante? A qual dos dois odiava mais?

?Preciso das minhas ferramentas ? disse virando e tentando fugir dali o mais rápido possível. Não era apropriado ficar naquele lugar com ele nem um segundo mais. Tinha que adiar o trabalho até que sua alma cigana fosse aplacada porque, se não conseguisse, isso lhe causaria um problema sério. Não podia esquecer quem ele era, por que abandonara sua casa e se deixara seduzir por aquela imagem tão típica dela e tão imprópria para ele.

?Não tem que ir. Caso não tenha notado, os coloquei lá. ? Ele apontou para o tronco de uma árvore grossa, a única que havia sido plantada naquela linda área. ? Se não tiver tudo o que pediu, posso chamar a criada que a atende para lhe trazer o que esqueci ? disse num tom tão severo que não admitia uma resposta.

Sim, não havia dúvida de que odiava o aristocrata mais do que o ousado corsário que aparecia quando o outro se afastava. Mas qual dos dois era mais perigoso?

Sem dizer uma única palavra, Anne desceu os degraus, desviando do corpo do visconde, que havia parado no meio da entrada e procurou o cavalete, a lona e o carvão que usaria em primeiro lugar.

?Onde quer ficar? ? Perguntou, uma vez que arrumou tudo como desejava.

?A senhorita é quem deveria dizer onde devo me posicionar. Não quero que, quando não gostar do trabalho que fez, me culpe por tê-la forçado a....

?Lá! ? Ela exclamou desesperada, apontando o dedo para o centro do jardim.

?Tem certeza? ? Ele perguntou, levantando a sobrancelha direita depois de ver sua escolha.

?Completamente ? disse sem olhar para ele.

Ela ficou na frente do cavalete, esperou que ele alcançasse a área designada, o mais longe dela, pegou o carvão, colocou-o na orelha direita e silenciosamente estudou a luz que aparecia na parede, o tom das flores e, quando voltou a revisar a figura do visconde, ofegou. Enquanto ela estava centrada no entorno dele, ele desabotoou os botões da jaqueta, exibindo um colete laranja de seda, colocou as mãos nos bolsos e olhou para ela sem piscar.

E sem ter consciência disso, Anne colocou a mão esquerda no ouvido e acariciou o brinco laranja.

?Não gosta? ? Ele insistiu ao observar uma careta estranha no rosto dela. Não passou despercebido que ela havia tocado o brinco. Bom! Aquilo que se propôs ao colocar o colete, conseguiu. Agora esperava que ela respondesse ao seu pedido de desculpas e deixassem o jardim escondido com um acordo de paz entre eles.

?Por favor, não fale. Preciso do mais absoluto silêncio para me concentrar no trabalho ? ordenou com a pouca voz que saiu de sua garganta. ? Olhe para cima, como se estivesse contemplando uma nuvem.

?Esse lado do meu perfil não vai ampliar meu nariz hediondo, não é?

?Não pensei que sua Excelência fosse capaz de admitir que nasceu com certos defeitos em seu corpo ? disse divertida.

Embora quisesse sorrir, embora seus lábios tentassem esboçar um sorriso ante o comentário, se forçou a não sorrir. Não queria que ele descobrisse que, ao fazê-la rir, toda a raiva que podia sentir desaparecia tanto que faria dela uma criança terna e inocente. Foi assim que Dick a conquistou. Ele sabia que seu ponto fraco era o sorriso e, toda vez que a olhava em uma festa, ele fazia uma careta que a fazia rir. Não, o visconde não deveria descobrir nada sobre isso. A melhor coisa para ambos era manter uma conduta séria e profissional.

?Sou perfeito ? Logan garantiu ? embora tenha que me olhar pelo melhor lado para confirmar.

?Se diz... ?respondeu antes de apertar os lábios.

Ato que a fez franzir o cenho porque doeu. Exatamente quando desviou o olhar do visconde para fixá-lo naquela lona branca e se esconder para tocar o lábio e confirmar que havia sangrado de novo, notou a presença masculina tão próxima que o calor que ele emitia poderia evitar que congelasse durante um longo e duro inverno.

?Aqui ? ele ofereceu o lenço que guardava no bolso do colete laranja.

?Obrigada ? ela respondeu, aceitando sua oferta.

Ele finalmente se comportaria corretamente? Mostraria a ela a mesma atenção que a suas irmãs? Por que queria que ele fizesse isso? O que diabos estava errado com seu sangue que fervia sob sua pele? Poderia o visconde perceber sua instabilidade, sua loucura?

?Não me devolva ? disse ele antes de virar as costas e voltar para o centro do jardim.

Anne confirmou que infelizmente o manchara. Por isso ele não o queria de volta. Não gostaria de ter algo sujo em seu terno escuro intocado. Ou talvez se recusasse a guardar no bolso sangue envenenado. Pensaria isso dela? Que poderia matá-lo com uma gota de sangue? Bem, foi ele quem fez aquela ferida! Jamais poderia esquecer aquela forma de agredi-la, beijá-la e.... Anne forçou sua mente a parar. Não queria se lembrar daquele momento, queria tirá-lo de sua vida porque, embora não quisesse admitir, aquela brusquidão, aquele jeito agressivo de pegá-la e beijá-la, a deixara zangada mais pelo impacto sensual que a fez ver como seu sangue correspondia àquele contato.

?Por favor, se acalme ? pediu quando o viu franzir a testa e mostrar um rosto zangado.

?Tentarei ? assegurou. Mas sabia que levaria uma vida inteira para fazer desaparecer a raiva que sentia. Estava sangrando novamente e aquela prova, aquelas pequenas gotas de sangue a distanciavam ainda mais dele. Só esperava que, quando o lábio curasse, o mesmo acontecesse com seu relacionamento perturbador.

Infelizmente, muito a contragosto, depois de descobrir quem era a verdadeira Anne, observando como ouvia com atenção e se identificava com Marco, lhe dando seu apoio com abraços inesperados, além de responder com sorrisos aos seus comentários irônicos, entendeu que não queria nem desejava que eles continuassem daquela maneira áspera. Precisava ser ele a fazê-la rir, a pessoa a qual ela olharia com ternura e compreensão e, é claro, o único homem que poderia tocá-la porque, se Marco não tivesse confessado que só se sentia atraído por homens, teria perfurado seu abdômen com a espada inquieta que segurava em sua mão no primeiro abraço deles. «Sou possessivo, egoísta, ciumento e dominador, mas Evelyn sabia disso desde o momento em que a descobri naquele vestido vermelho. Ela é minha, só minha, até eu parar de respirar», lembrou novamente as palavras de seu irmão e admitiu que elas não pareciam mais tão loucas, embora no caso dele o vestido não fosse vermelho, mas laranja...

Anne permaneceu com o carvão entre os dedos mais tempo do que esperava, porque não era capaz de fazê-lo obedecer. Uma vez que as rugas em sua testa desapareceram e seus olhos olharam para o céu, começou a traçar as linhas daquele rosto... masculino. Realmente achava que o nariz o desfavorecia naquela posição? Bem, estava errado. O perfil que mostrava era perfeito, tão perfeito que mal conseguia assimilar. Tentou se concentrar em desenhar algumas linhas, mas era difícil desviar o olhar dele. Todo ele mostrava tanta elegância e solenidade que a menosprezava. Sim, ela se sentia assim. Tão minúscula quanto a pétala de uma flor. Finalmente, fixou os olhos na tela, tão branca quanto no começo, e tentou capturar nela o que seu olhar havia captado. O queixo, a barba espessa, as bochechas duras, o nariz... A forma das sobrancelhas, o perfil dos olhos, aqueles que brilhavam quando a olhava, quando a pegava, aqueles que permaneciam presos aos seus como se quisessem descobrir o que estava escondendo... O que estava escondendo? O que é que realmente queria manter para si mesma? Uma loucura. Uma demência própria do sangue que aquecia sua pele e que a fazia sentir uma forte palpitação na parte mais proibida de seu corpo. Ansiava por borboletas em seu estômago, pois agora não sentia borboletas, mas corvos, tão grandes quanto seu sonho. Queria que seu corpo pudesse voar, porque teve que olhar para o chão para confirmar que não estava flutuando, que havia deixado de tocar a terra e que, se abrisse os braços, eles se tornariam asas. Até a ideia de ir a Paris, as conversas que teve com Dick, seus desejos e experiências passadas começaram a sumir de sua mente e.... por quê?

Ficaram em silêncio por dez minutos, quando uma leve tosse veio da garganta do visconde.

?Não se mova. Estou tentando...

?Como conseguiu manter essas meninas imóveis por tanto tempo? ? Perguntou para quebrar o silêncio angustiante, que ele não queria manter por mais tempo. Queria ouvir aquela voz que ela havia dedicado a Marco.

A pergunta estranha a fez suspirar, ela colocou as duas mãos na tela, olhou para ele e evitou rir novamente quando percebeu que ele estava tão inquieto que continuava movendo as pontas de seus sapatos brilhantes.

?Garantia a elas que, se não conseguissem, seriam incapazes de refletir a beleza que possuíam ? disse com algum divertimento.

?Promete isso para mim também? ? Perguntou levantando, de um jeito safado, a escura sobrancelha direita.

?Isso! ? Anne exclamou com entusiasmo. ? Fique assim!

?Assim? Como?

?Não se mova, eu imploro ? pediu.

Ele obedeceu imediatamente. No entanto, deixar a sobrancelha levantada por tanto tempo e congelar o movimento de seus lábios, foi doloroso. Nem mesmo dois minutos se passaram e sua testa e boca já estavam doendo.

?Sinto muito, não posso...

Mas ela não respondeu, fixou os olhos na tela e permaneceu em silêncio enquanto pintava. Tanto havia se afastado do lugar onde estava, que não percebeu que havia se aproximado, que se colocara às suas costas e que estava fascinado por seu trabalho.

O desenho era perfeito, apesar de usar um carvão miserável. Ela capturou a imagem que queria. O queixo, a barba negra, o contorno dos olhos, a sobrancelha... Era magnífico! Sem dúvida, o dom de Anne era a pintura e, pelo entusiasmo que ela expressava, também sua vida. Quis se afastar dela, parar de cheirar o perfume de seu cabelo, de sentir os movimentos leves que fazia ao traçar essas linhas, de ser afetado por sua presença, por sua paixão pela pintura. Mas assim que se forçou a dar um passo para trás, Anne olhou para cima, para ter certeza de que ele ainda estava onde deveria estar, e a parte de trás de sua cabeça tocou seu peito. Ao notá-lo, assustou-se e ele teve que agarrá-la novamente pela cintura para que não caísse para frente e danificasse a beleza que acabara de fazer.

?Não se mova ?disse ele. —Estou aqui há muito tempo, mas não percebeu a minha presença ? ele sussurrou em seu ouvido. ? Isso me deixou atordoado, senhorita Moore, nunca vi ninguém trabalhar com tanta paixão. Deixara este mundo para viajar naquele de extraordinário esplendor.

?Não deve ter admirado as pessoas certas ? ela disse sem se mover, sentindo a pressão daquelas mãos em seu abdômen, como se tocasse um ventre cheio de vida.

?Deve ser isso ?disse em voz baixa, aproximando os lábios da pequena orelha esquerda, exatamente a que ela havia tocado quando viu o colete laranja.

?Milorde... ? murmurou Anne, respirando fundo.

?Senhorita Moore... ? ele respondeu depois de imitar sua respiração profunda.

?Deve...

?Devo...

?Volte para a posição que indiquei antes, porque...

?Por quê? ? Ele perguntou, virando-a para ele. Pela dor que Jesus sofreu! Como poderia ser tão irresistível para ele? Por que o excitava mais do que todas as mulheres com quem esteve? Por que não podia pensar em nada além de beijá-la como deveria ter feito naquela maldita noite?

?Porque não terminaria o que me propus... ? respondeu Anne, notando como seu coração batia com tanta força que o sentia na garganta.

Seus olhos retornaram aos dele, que brilhavam sem se saber se a razão era a luz que adentrava ao jardim ou a excitação que percebia. Por que não podia se afastar? Por que não podia adotar a atitude que havia mantido até agora? O que mudara? O que havia acontecido para abandonar toda a sua raiva, todo o seu bom senso e desejar pelo toque de seus lábios? Será que esse desejo feminino, tão típico dos ciganos, emergia de dentro, buscando o que ele poderia oferecer? Dick despertara tão fortemente esse instinto cigano? Não. Dick despertou sua curiosidade. No entanto, o visconde causara algo estranho nela, algo inédito até agora. Era como se ele evocasse seu sangue com força, como se ele fosse o autor de um relâmpago e ela o trovão. Seu sangue, o dele, diferente, mas...

?Concederei o que me pede ? comentou o visconde, afastando as mãos dela e recuando, muito lentamente, vários passos. Não quero ser a causa de...

Ele não conseguiu terminar o que pretendia dizer a ela. Vendo a decepção que Anne refletia em seus olhos, como havia estendido os braços ao chão, deixando cair o carvão de entre seus dedos, o desejo que expressava seu corpo, o mesmo que ele sentia por ela, avançou aqueles passos, olhou para ela do alto da a sua estatura, agarrou-a novamente pela cintura, puxou-a para ele e a beijou.


XXIV


Não conseguia parar de sorrir. Sentia tanto prazer e felicidade percorrendo seu corpo que não podia apagar o sorriso de sua boca, mesmo que tentasse fazê-lo. O vento batia em seu rosto, causando intermináveis lágrimas, mas não as afastou, gostava de saber que seus olhos sabiam chorar, apesar de fazê-lo de maneira não convencional. Olhou para os dois lados do caminho, confirmando que não havia ninguém por perto. Logan devia ficar tranquilo porque, depois de três horas percorrendo seus territórios, não encontrou nada que indicasse que caçadores furtivos estivessem vagando pela área. Olhou para cima e observou o sol. Estava em cima dela, avisando-a de que o meio-dia estaria próximo. Não deveria demorar para voltar. Não queria chatear Anne. Caso se atrasasse e não aparecesse para o almoço, ela teria a desculpa perfeita para trancá-la no quarto e puni-la até que o trabalho estivesse terminado. No entanto, o cavalo já mostrava sinais de fadiga. Bufava toda vez que o incitava e sua pelagem estava molhada de suor. Uma pequena parada ao longo do caminho seria boa para os dois.

Determinada a dar a ele o descanso que precisava, dirigiu-o, com um ligeiro puxão das rédeas, em direção a um pequeno bosque que se encontrava à sua direita. Quando o animal entendeu que poderia descansar em breve, relinchou alegremente e galopou ainda mais rápido em direção àquela área verde e selvagem.

?Bom menino... ? Josh disse ao cavalo quando pararam. ? É um campeão.

Bateu com força no pescoço robusto e desceu dele como um mensageiro militar que tem em sua posse a carta que informa sobre o fim de uma guerra.

Sem soltar as rédeas, caminhou na frente do animal, ouvindo as respirações agitadas dele. O servo não a enganou oferecendo-o, porque para ela era perfeito. Além de correr tão rápido, que mais de uma vez pensou que sairia disparada por sua traseira, era fiel às ordens dadas a ele. O único inconveniente, que o servo alegou, era que ele não possuía uma linhagem tão virtuosa quanto os outros cavalos no estábulo. Pelo que disse, a mãe escapou do estábulo quando entrou no cio, e ela permitiu se emprenhar por um dos Percheron que o barão de Sheiton mantinha na propriedade adjacente. «Sua Excelência aceitou a chegada deste mestiço, mas eu o teria matado assim que ele saísse das entranhas daquela sem vergonha», foram as palavras usadas por aquele empregado cruel e tolo. Talvez, essa afirmação repugnante a tenha feito simpatizar com o animal. Era tão mestiça quanto ele e por isso ela não deveria viver?

?Calma ? disse para acalmá-lo, algo que o tinha perturbado ? não há ninguém aqui além de nós. Ficaremos pouco tempo, o suficiente para que possa pastar um pouco e eu eliminar a dormência das minhas pernas.

O relincho do animal deu-lhe a entender que ele não conseguia se acalmar e que, apesar de suas palavras, algo o mantinha bastante inquieto. Finalmente, Josh decidiu amarrar as rédeas a um ramo e verificar o que assustara tanto o animal.

?Não te acontecerá nada ? continuou falando com uma voz calma enquanto tirava a arma afiada e brilhante do esconderijo. ? Vou protegê-lo com isso.

Colocar aquela faca perto do seu olho esquerdo não causou o efeito que ela esperava. O cavalo, assustado, ergueu as patas dianteiras e acenou-as como se quisesse pisar nela. Rapidamente, Josephine se afastou e enfiou a perigosa arma na parte de trás do cinto. Esse ato relaxou o animal aterrorizado.

?Por todas as almas miseráveis deste mundo absurdo! Eles tentaram mata-lo? É por isso que ficou alterado? ? Perguntou em pé na frente da cabeça dele, acariciando-a lentamente.

Movida pela atitude submissa do animal, colocou as duas mãos em direção àquele pescoço castanho-chocolate grosso e estava sentindo-o lentamente, entrando debaixo deste com calma, como se tivesse esquecido que, segundos antes, ele apresentava um comportamento selvagem. Então, quando enfiou o rosto no peito molhado e peludo, encontrou o que procurava: uma aspereza. Quando a tocou, parecia com um começo de sujeira acumulada na estrada. Sim, não havia dúvida de que o imbecil tentara matá-lo, mas não conseguiu, porque o que o homem sem cérebro não entendia, era que os seres nascidos do sangue mestiço se tornavam guerreiros imortais e corajosos. E ela se considerava da mesma forma: tão imortal e corajosa quanto o cavalo que foi gerado de um acasalamento entre cavalos livres.

Com o punhal guardado e incapaz de pensar em outra coisa senão encontrar uma maneira de dar a esse servo uma lição bem merecida, beijou a testa do cavalo, virou-se para a floresta e avançou sobre os troncos das árvores. A tempestade da noite anterior foi devastadora para esse terreno. As raízes saíram, atravessando a terra transformada em lama, como se procurassem desesperadamente por aquela luz do sol que mal tocava o chão, porque a folhagem das árvores desacelerava os raios no topo de suas copas. Se estivesse andado pela selva amazônica, poderia compará-la com aquele lugar oculto e inóspito. A vegetação em torno dela havia crescido pelo clima na área ou por estar perto o mar? Se continuasse nessa estrada, poderia se encontrar no topo de um penhasco? Poderia finalmente saber como era a imensa massa de água salgada, como cheirava e o que o toque de salitre produziria em sua pele? Haveria navios navegando? E se encontrasse um navio pirata? E se a tripulação deixara o barco e fora para a costa levantando suas espadas procurando o início de uma guerra contra Londres? E se encontrasse contrabandistas franceses?

A imaginação de Josh transbordou. Começou imaginando como seria a areia e acabou lutando com seu facão na proa de um navio francês. Sua mão esquerda foi colocada nas costas enquanto a mão direita segurava a arma e acenava, produzindo ziguezagues leves que pareciam cortar o ar.

?Eu? Quem sou eu? ? Gritou ao vento enquanto intensificava a força daquela luta imaginada. ? Sou seu pior inimigo!

Sua abstração era tão incrível e tão real para ela, que os fios de cabelo loiro que se soltaram em vários desses movimentos abruptos, grudaram em seu rosto pelo suor. Sua camisa branca mostrava sulcos úmidos de formas irregulares, como se fosse usada por um camponês que passara a manhã inteira trabalhando no campo. Agarrou com força a alça da adaga, dirigiu-a para o céu, dedicou a Deus a morte de seu oponente, ajoelhou-se e, como se tivesse se tornado um cavaleiro medieval, inclinou a cabeça.

De repente, um barulho foi ouvido atrás dela, ela se virou de joelhos e jogou a faca para baixo. Quando descobriu onde a faca estava presa, não conseguiu reagir. Um homem vestido com um traje de montaria inclinou-se para a frente para ver que seus olhos não estavam enganados quando viu que tinha uma faca presa na bota direita.

?Merda! ? Exclamou o jovem quando a dor que produziu a ponta da arma cruzou de leve a pele e mostrou-lhe que não era uma visão. O que fez infeliz? Por que jogou isso em mim?

?Quem diabos é? Por que está me perseguindo? ? Perguntou enquanto se levantava.

O garoto não prestou atenção nas perguntas de Josh ou na raiva que ela tinha quando falava. A única coisa que fez foi sentar na lama, tirar a arma pontuda da perna, tirar a bota e confirmar que uma superfície vermelha circular se estendia por suas calças brancas.

Josephine olhou para ele com raiva. O rosto dela não expressava remorso, aflição ou compaixão pela dor que o estranho que explodiu sobre ela em um ato tão privado deve ter sofrido. Ela estava serena, como se tivesse construído um castelo de pedra com as próprias mãos, e ela colocou as mãos na faixa marrom, exibindo uma pose dura, severa e orgulhosa, assim como sua mãe era quando ela fez outro buraco em sua amada janela da sala de costura.

Com a adaga na mão, Eric cortou as calças para descobrir a extensão da ferida. Apesar do sangue, não era muito profundo. Felizmente, o material da bota de equitação tinha barrado o lançamento efêmero. Mas ele não podia sorrir para aquela mulher louca que, antes do ramo ter estalado ao pisá-lo, a observara fazendo movimentos muito estranhos, como se estivesse invocando o próprio diabo. Sem olhar para ela, inclinou-se para a direita, tirou o lenço do bolso, que colocou ali antes de subir no cavalo, estendeu-o e amarrou-o ao redor da ferida. Ele não queria que o sangue se espalhasse por suas calças e aparecesse em Herast Pond como se fosse um soldado que voltava para casa depois de vinte anos de guerra.

?É surdo? Porque não fala? ? Ela o repreendeu. ? Perguntei-lhe o que diabos faz nos territórios do Visconde de Devon.

?As propriedades do visconde terminam ali. ? Ele apontou com a mão direita em direção ao fim da floresta. Estas são minhas ? ele assegurou rudemente. Então é a única surda e desorientada ? disse ele, levantando o queixo gentilmente para enfrentar a criminosa insolente.

Uma vez que seus olhos se encontraram, os dois permaneceram em silêncio e por causa de como seus corpos estavam paralisados, eles também se esqueceram de respirar...

?Mente! ? Josh gritou, despertando do transe estranho que a fez ver o lindo rosto do rapaz. ? É um caçador ilegal! ? Soltou. ? O visconde me avisou sobre vocês! ? Continuou com raiva.

?Não ? o jovem respondeu. Ele apoiou as palmas das mãos nos troncos que tinha em ambos os lados e, com a ajuda deles, levantou-se. Ele não podia ser intimidado por tal rata, embora tivesse um rosto tão bonito que perdera sua razão por um momento. A solenidade que lhe fora incutida desde o berço, seu orgulho, sua integridade e tudo o que lhe dava o melhor instrutor que poderia encontrar, seu pai, brotou de algum lugar de seu corpo, protegendo-o como se fosse um escudo. ? Agora mesmo irá me acompanhar, imunda e suja, até minha casa e, uma vez que o xerife saiba o que fez com uma pessoa como eu, estará trancada atrás das grades até dar as explicações relevantes para esse ato criminoso. Mas tenho medo que seja julgada e....

?Ato criminoso? Julgada? ? Josh respondeu com os olhos arregalados. ? Queria me atacar pelas costas! ? Fiz apenas o que qualquer mulher decente faria a quem pôs em perigo sua vida!

?Mulher? Decente? ? Eric Cooper virou-se para ela sem piscar. ? Não é mulher! ? É uma abominação da natureza!

?Como ousa me insultar assim? ? Gritou caminhando em direção a ele com atitude desafiadora.

?Como ousa me machucar e declarar que eu merecia esse esfaqueamento? ? Ele respondeu, mostrando uma imagem um pouco ridícula, porque parecia que ele estava brincando com uma perna só, em vez de discutir verbalmente contra alguém que se dizia mulher, mas vestida como um homem.

?Se estivesse em Londres agora o desafiaria para um duelo ? Josh murmurou.

?Um duelo? ? Acha que perderia tempo e arriscaria minha honra por alguém como você? Antes iria jogá-la no Tamisa! ? Exclamou fora de si.

?Você ? disse apontando com um dedo inquisidor e em pé na frente o suficiente para levantar o queixo e para os olhos se encontrarem novamente.

?Você? ? Eric colocou ambas as plantas dos pés no chão, suportando a dor com dignidade. Endireitou seu corpo e sorriu quando viu que ela mal chegava ao seu ombro. ? Você ? ele começou a falar sarcasticamente ? é um monstro, uma fera selvagem que...

Ele não terminou a frase, uma mão de Josh bateu em sua bochecha esquerda com tanta força que ele virou o rosto para a direita. Uma vez que pode encará-la de frente e eliminar num ápice toda a nobreza e dignidade que evocava em voz alta, estendeu as mãos para ela, colocou-as em seus ombros e a sacudiu.

? Está louca? Por que me deu um tapa? Quem pensa que é?

?Josephine Moore ? disse com arrogância, enquanto pegava as mãos dele pelos pulsos e as virava para o lado oposto ? e é um homem arrogante se pensa que será fácil me dobrar.

Eric, pego pelas mãos, sentindo a pontada de dor que irradiava da ferida até a testa, observava sem piscar o rosto da guerreira. Seus olhos, apesar de serem marrons, haviam se tornado duas imensas bolas de fogo. Seu nariz, pequeno e arrebitado, enrugou-se para mostrar uma repulsa sincera. Mas seus lábios, embora tentassem ser rudes e cruéis, pareciam delicados e suaves, como os exibidos pelas jovens mulheres sinceras, embora nenhuma das que ele conhecesse pudesse superá-la em volúpia. Atraído como uma mosca para o mel, obcecado por descobrir que sabor a boca de uma mulher tão estranhamente peculiar teria, separou os braços, contrabalançando a força que ela exercia sobre seus pulsos e diminuindo a distância entre os dois. Com os olhos abertos, para não perder de vista o impacto do que se propusera, inclinou a cabeça para a jovem e a beijou.

Josh permaneceu imóvel quando os lábios daquele homem desarmado tocaram os dela. Suas mãos ainda estavam ocupadas com as dele, então não pode lhe dar outro tapa. Mas ela poderia jogar a cabeça para trás e recuar. No entanto, não fez. Ela permaneceu imóvel até o jovem, que tinha um cabelo da mesma cor que o de Madeleine, embora na testa ele tivesse uma mecha dourada, se afastou.

?Interessante... ? Eric disse, com uma voz muito diferente da que ele havia usado antes ? uma virgem sozinha em minhas terras. Paradoxal... ? ele sussurrou divertido. ? Não esperava que, quando esta manhã pedi a Deus um sinal para enfrentar o destino da minha vida, decidisse colocar no meu caminho uma jovem como você, Josephine Moore.

Ao ouvir seu nome com aquele tom sensual, Josh acordou do transe induzido depois de sentir, pela primeira vez, o calor de uma boca masculina na sua. Indignada, zangada, por ter permitido que algo tão absurdo a fizesse perder algo tão importante quanto a prudência, torceu os pulsos com mais força, até que a dor foi tão insuportável que apagou a satisfação que ele mostrava em seu rosto, e o lançou para trás. Quando ele caiu na lama, Josh pegou a adaga, cuspiu nele e foi desesperadamente pela floresta. Não parou de correr até encontrar o cavalo, que relinchou alegremente ao vê-la. Desatou o melhor que pôde, porque suas mãos tremiam, montou como se fosse uma amazona habilidosa e cavalgou sem diminuir a intensidade do trote até ver os telhados de Harving House.


XXV


Suas mãos, até agora relaxadas e voltadas para o chão, levantaram lentamente para se colocarem ao redor de seu pescoço. O beijo foi se transformando a cada segundo que durava. Passara de uma colisão suave a um tornado repleto de paixão e desejo. Abriu a boca lentamente, permitindo acesso àquela língua voraz, faminta e ansiosa para saborear seu interior. O grunhido do visconde, satisfeito com a decisão que tomara, lhe causou mais prazer do que angústia. Estendeu os dedos e espalhou-os sobre o pescoço tenso devido à inclinação. Não os manteve quietos, mas permitiu que descobrissem o toque da pele masculina. Estava no paraíso. Não por causa do ambiente em que isso acontecia, mas porque tudo se tornou um lugar bonito, cheio de calma, tranquilidade e bem-estar. Era como se depois de anos de trabalho arqueológico em uma área atormentada, finalmente encontrasse os restos pré-históricos.

Sentiu uma forte pressão nas costas, ele a ajustava ainda mais ao seu corpo, transformando-os em um só. Com os olhos fechados, sentindo como se libertava e se transformava em uma nova mulher, se acomodou nele, se entregando ao delírio no qual haviam submergido. Sua língua tocou a do visconde com certa timidez e aquele contato, aquele mísero roçar, causou-lhe um impacto semelhante ao que uma estrela poderia causar ao atingir a terra. Luzes coloridas figuravam sob suas pálpebras e seu corpo reagia com tanta sensualidade que, sem perceber, seus quadris se esfregavam no membro masculino inchado, fazendo com que aumentasse ainda mais seu tamanho, sua excitação. Ele respirou fundo pelo nariz quando virou a cabeça para o outro lado. Não afastou a boca da dela, pelo contrário, apertou-a com tanta força que, no segundo impulso daquela língua selvagem, saboreou o gosto do próprio sangue. Franziu o cenho levemente, acreditando que o gosto o levaria para longe dela, mas o efeito foi o oposto. A língua do visconde lambeu as gotas que sua ferida emanava e as introduziu dentro de sua boca, como se tivessem lhe dado para beber o melhor elixir que pudessem encontrar. Suas mãos, até agora agarradas a sua cintura, baixaram lentamente até que foram colocadas em suas nádegas e então ele a ergueu como se seu peso fosse parecido ao de uma pluma. Rapidamente, entrelaçou seus braços naquele pescoço forte e continuou aceitando o beijo que não tinha fim.

Caminharam. O visconde começou uma marcha pelo jardim para algum lugar no qual continuariam a manter a intimidade que necessitam dois amantes apaixonados e sucumbidos por um desejo tão intenso, e que só poderia terminar com uma entrega absoluta e sincera. Seus pés, entrelaçados na cintura do visconde, deslizaram suavemente quando sentiu uma forte pressão nas costas e percebeu que haviam parado de andar. Abriu os olhos e contemplou para os dele. Sua íris azul brilhava como duas imensas bolas de fogo, suas maçãs do rosto, aquelas áreas que a barba espessa não escondia, mostravam o rubor da paixão que ambos sentiam. Ela se acomodou no chão, seus braços emaranhados ao redor do pescoço dele, sentindo o hálito quente do homem e que a olhava com tal desejo que o pulsar que começou entre suas pernas se tornou angustiante, aterrorizante. Sua boca se retirou devagar, como se o fio que os juntara tivesse sido cortado, e justamente quando pensou que aquela loucura havia chegado ao fim, ele começou a beijar seu pescoço, o lóbulo que ela havia tocado quando viu seu colete laranja, e levou-a de volta para o paraíso ao que tinha ido depois de beijá-lo...

—Anne... —sussurrou sem ser capaz de tirar a boca da pele, cheirando com intensidade o traço que percebia em cada beijo que dava nela. — É...

Ficou em silêncio porque não encontrava as palavras certas para definir o que ela o fazia sentir. Sem deixar de ouvir os gemidos de prazer que Anne emitia quando pressionava os lábios contra o corpo dela, tirou as mãos da cintura dela, onde as havia colocado para abaixá-la cuidadosamente, e procurou as dela. Quando as encontrou, entrelaçou os dedos com os seus, as ergueu bruscamente e colocando-as sobre a cabeça de Anne, imobilizando-a instantaneamente.

Deus! Como podia se sentir tão atraído? Que tipo de feitiço havia jogado nele para não ser capaz de se recordar de algum momento parecido?

Vendo a confusão no rosto de Anne, depois de fazer um movimento tão violento, Logan colocou sua perna esquerda entre as dela e a beijou novamente, afastando qualquer pensamento arrependido de sua mente. Isso só seria o começo do que ansiavam...

Enlouquecido pelo gosto daquela boca, agarrou-lhe os pulsos com uma mão, deixando-os onde desejava que ficassem e começou a tocá-la lentamente. Estava tremendo. Para sua alegria, ela estremeceu de desejo ao sentir a mão dele percorrer seu corpo, ainda coberto por um miserável vestido marrom que ele logo arrancaria para tocar o que precisava: sua pele.

A marcaria. Sim, apagaria qualquer resquício que tivesse de Hendall e a preencheria com o seu, fazendo desaparecer o vestígio que nunca devia ter tido.

Quando as pontas dos dedos se acostumaram com o calor de Anne, sua língua empurrou de volta com força dentro da boca dela, fazendo-a soluçar novamente. Quando ouviu que ainda o aceitava e que seu desejo aumentara, ele se aventurou a continuar. Seus dedos pararam de tocar o vestido para serem colocados no decote e muito lentamente, dando alguns míseros segundos para que se adaptasse ao seu toque, estendeu a mão e prendeu seu seio esquerdo.

Maçãs. Aquele seio era mais suave que a pele de uma maçã e o mamilo, duro de excitação, era o cantinho...

Afastou sua boca da dela, embora tenha ouvido um lamento de desconsolo, e foi beijando seu queixo, pescoço, decote...

—Vou... — Tentou dizer, mas ficou em silêncio quando notou que Anne estava apoiando o torso na direção dele, consentindo com o que decidisse fazer.

Com os olhos bem abertos, contemplando como ela continuava exigindo suas carícias, tirou a mão do seio, colocou-a no vestido e desabotoou os quatro botões. Uma vez que o tecido do chemise ficou diante dele, tornou a inserir aquela mão, que tremia porque ansiava por tocar o seio que segurara, e puxou-o para fora.

Inebriado, entorpecido por tal visão, inclinou o rosto para o seio e o mordeu, como se na verdade fosse uma maçã a qual acabava de dar uma grande mordida.

Anne jogou a cabeça para trás e gemeu com o contato atroz. Ela não se queixou da dor que os dentes lhe causaram na superfície do seio, mas porque, estranhamente, ela queria mais.

—Lo... Logan... —murmurou, fechando os olhos, sentindo uma forte pressão naquela parte do corpo e aproveitando o prazer que a percorria. Tentou mover as pernas, fraca pela perda de forças antes da chegada da paixão, mas tudo o que conseguiu foi tocar com um joelho o sexo ereto dele.

—Ardo, Anne. Sinto como meu corpo queima como se estivesse dentro de uma fogueira —confessou depois de deixar aquele seio e beijar novamente o decote nu. — Sinto minha pele ardendo, queimando...

—Logan... —sussurrou Anne ao cruzarem novamente os olhares.

— Sim —ele respondeu antes de devorar sua boca outra vez.

O fato dela timidamente ter aberto as pernas, lhe deu a oportunidade de ficar entre elas. Sua cintura se colou ao corpo de Anne e, sem pudor, fez com que ela entendesse o quanto estava excitado, até que ponto ele enlouquecera e a que nível se estendia sua paixão. Porque era assim. Ele se transformou em um louco que queria viver somente com ela, beijá-la sempre que quisesse, tocá-la quando seu corpo precisasse senti-la perto e.... fazê-la dele até a morte chegar.

«Ela é tudo que preciso para viver», a frase de seu irmão, se referindo a sua esposa, apareceu em sua mente para confirmar que, por mais improvável que parecesse, estava sentindo o mesmo. Anne deveria ser dele, exclusivamente dele. Seu passado e o dela haviam desaparecido. Agora eles deviam se concentrar no futuro que deveriam construir... juntos.

No momento em que a mão esquerda levantou o vestido, procurando tocar aquela intimidade, que emitia um cheiro muito hipnótico e que queria provar para confirmar que a essência de Anne era perfeita, ouviu um relincho. Rapidamente afastou a mão, parou de beijá-la e olhou para o céu. O cavalo, que reconheceu imediatamente, voltou a emitir um som escandaloso.

—Josh! — Exclamou se afastando abruptamente dela.

—Josh? —Perguntou Anne sem abrir os olhos, confusa e sentindo um arrepio terrível quando perdeu o calor de seu grande corpo.

—Josephine acaba de chegar —informou. — Sairei para recebê-la enquanto se arruma. Não seria apropriado que nos encontrassem dessa maneira não profissional. Então recomendo que, depois de se arrumar, fique na frente do cavalete e continue com aquele maldito retrato —afirmou em uma voz áspera, se transformando novamente no aristocrata que realmente era.

De repente, o rubor gerado pela paixão foi transformado em sufocamento produzido pela vergonha e pela insensatez, a qual ela sucumbiu, em desespero. Com as mãos trêmulas, Anne enfiou o peito nu sob a camisa e abotoou o vestido. Sua cabeça estava levemente inclinada para frente, de modo que o visconde não notasse sua mudança de emoções. Então, quando pensou que estava sozinha, que ele havia partido, ele voltou, colocou-se na frente dela, levantou seu queixo com ternura e, a olhando como apenas um amante poderia, deu-lhe um beijo carinhoso.

— Se não se arrepende do que acabamos de fazer, do que nós dois sentimos ao estarmos juntos, esta noite, não tranque sua porta —declarou antes de beijá-la novamente e sair dali dando um grande passo.

***

Logan amaldiçoou de novo e de novo a chegada inoportuna de Josh. Ele estava prestes a tocá-la, notar a excitação que ela exalava entre as pernas e ver se o necessitava tanto como ele a ela, mas não teve tempo...ao ouvir o relincho de Galeón, rapidamente percebeu que o animal tinha cavalgado sem parar por bastante tempo. Algo havia acontecido com a jovem e não podia esperar para descobrir o que era. Se não controlasse a atitude das irmãs de Anne, ela se concentraria nelas e o deixaria em segundo plano e, por enquanto, queria ser o único projeto na vida da primogênita Moore.

Uma vez que atravessou a academia e pisou na galeria, seus passos não eram lentos, estudados e firmes, empreendeu uma ligeira corrida até chegar à porta da frente. Lá ele encontrou a Sra. Donner, que, como especialista em criação de animais, veio ao chamado desesperado do cavalo.

—Eu sei —Logan disse quando observou o questionamento no seu rosto —verei o que aconteceu.

—Milorde! Que não seja nada mau! —A cozinheira rogou, apertando as mãos e tocando os lábios de leve, como se começasse a rezar.

Logan abriu a porta e focou seu olhar no caminho em que Josh deveria aparecer. O aspecto do galope de Galeón era desesperado, quase frenético. Calmamente, ele não queria se mostrar inquieto, desceu os degraus e caminhou em direção à entrada do portão, onde a receberia e perguntaria o que havia acontecido. Mas Josh não parou quando o viu parado ali, puxou as rédeas para a direita e continuou em direção ao estábulo. Então ele correu atrás dela, chamando-a pelo seu nome, tentando aplacar o demônio que tinha visto em seus olhos, mas ela estava tão focada no que queria fazer que não o escutava. Desceu do cavalo, como ele fazia, levantando a perna direita sobre a cabeça do animal e, quando ambas as plantas dos pés tocaram o chão, tirou algo que estava escondido sob a sela e caminhou até o servo que a estava esperando. Por causa da luz do sol brilhando sobre o objeto que ela segurava na mão e os olhos que o servo arregalou ao vê-la, não teve dúvida de que ela estava carregando uma adaga. Logan continuou correndo e quando chegou ao seu lado, pegou seu cotovelo para parar o avanço.

—O que diabos aconteceu, Josh?

Mas ela não respondeu, ainda apontando para o criado, virou a cabeça ligeiramente para ele e mostrou-lhe, com mais clareza, um rosto que o deixou petrificado. Tinha chorado. Josh tinha em suas bochechas os sulcos esbranquiçados que deixavam as lágrimas ao vagar por elas, mas em uma tentativa absurda de livrá-las, esfregou a lama que suas mãos possuíam. Parecia um limpador de chaminés, apesar que Pit, o menino que ele pagava para limpar o interior de suas chaminés, não tinha fogo em seus olhos, e sim partículas de carvão.

—Eu vou matá-lo! — Josh gritou com a adaga apontando para o lacaio que lhe oferecera o cavalo. ?Vou cortar sua garganta, assim como queria fazer com ele! —Gritou, apontando com os olhos para o animal que, paradoxalmente, era o ser mais calmo dos que estavam em frente ao estábulo.

—Josh, por favor. Diga-me o que aconteceu? — Insistiu enquanto deixava de agarrar o braço dela e se colocava entre o criado e ela. Se continuasse a manter essa raiva, logo saltaria sobre o servo atordoado e o esfaquearia. Sem dúvida, o sangue das irmãs era mais cigano do que Moore. Quantas vezes testemunhou disputas entre os membros de seu povo? Quantas vezes observou como os corpos eram jogados, nos arredores do assentamento, para que os animais devorassem os cadáveres? Muitas. Até o dele poderia ter sido mais um, se a mulher que chamava de mãe não o tivesse salvado.

—Diga a ele! —A jovem uivou tão alto que sua garganta se esticou e afinou como o pescoço de um ganso.

Logan olhou por cima do ombro esquerdo para o criado e descobriu que estava tão confuso que seu rosto perdeu a cor da vida. Então olhou de volta para Josh e notou que toda a raiva contida se transformara em lágrimas. Mas, como bom soldado, ela queria eliminar a única coisa que a deixava vulnerável e as tirou com as mangas da camisa, uma que estava bastante suja. Ela teria caído do cavalo?

—O que está tentando dizer, Pascual? ?Perguntou, virando-se para ele. —Tem algo para me explicar? —Seu tom suave, mas firme como uma rocha no meio de um rio, fez o servo se encolher.

—Ele queria matá-lo! —Josephine respondeu ao seu lado.

—Matá-lo? —Logan perguntou com aquela voz diabólica. Franziu a testa e não desviou o olhar de Pascual. —Deve haver um engano, certo? Porque ordenei que ninguém tocasse nesse animal e, até onde sei, o que ordeno em minhas propriedades deve ser cumprido sem uma réplica.

—Pensa assim? —Josh arregalou os olhos e deu um passo à frente, mas Logan a parou colocando novamente uma mão no ombro direito dela.

—Quero que me explique o que aconteceu e por que chegou desse jeito —pediu a Josh sem olhar para ela, mantendo os olhos fixos no homem que, pelo movimento que seu corpo fazia, pretendia fugir a qualquer momento.

—Encontrei a marca da tentativa de assassinato em seu pescoço — declarou Josh, respirando fundo.

—Em Galeón? Tem a certeza? —Insistiu.

—Sim —Josh respondeu, enxugando as últimas lágrimas com a frente de sua camisa. —Quando parei na parte norte que indicou para mim, o cavalo ficou inquieto e quando lhe mostrei a adaga, para que se sentisse seguro ao meu lado, ele levantou as pernas como se quisesse se defender contra a agressão. Quando consegui acalmá-lo, comecei a procurar o que eu temia e.... —ela soluçou — eu o encontrei.

—Bem. Vou... Nem pense em fazer isso! —Disse ao criado que estava andando para trás para fugir.

—Milorde... Excelência... não tive outro... não queria matá-lo... apenas tentei me defender quando...

—Cale a boca! Não quero ouvir nenhuma palavra! —Gritou.

Lentamente, ele se afastou de Josh, foi até o cavalo, que estava muito quieto e se colocou na frente dele. Este, percebendo e vendo a presença de seu mestre, levantou a cabeça, moveu as orelhas e relinchou alegremente.

—Olá Galeón. Se divertiu com o Josh? — Falou baixinho enquanto colocava as mãos no pescoço molhado. — Ela diz que você tem uma marca e quero comprovar que é verdade —continuou dizendo enquanto arrastava as palmas das mãos pela sua pele.

Depois de ficar entre os quartos da frente do animal, que não se movia nem para respirar, ele percebeu o início da marca. Era tão grande quanto as dimensões de uma das palmas de suas mãos e mais áspera que a textura da casca de uma árvore. Se afastou do corcel, sentindo a raiva de seu sangue cigano tomar conta de sua pessoa, caminhou com determinação para o criado, que olhou para ele com os olhos cheios de medo, colocou-se em frente ao mencionado e ergueu a mão direita com a intenção de dar um tapa nele.

—Não! —Ele ouviu.

***

Depois de ficar em frente à tela por muito tempo, decidiu deixar o jardim e descobrir por que Logan estava preocupado quando ouviu o relincho de um cavalo. Enquanto caminhava pela interminável galeria, e confirmou que teria se perdido se a criada não tivesse explicado o caminho, pensou no momento especial em que viveram juntos. Não entendia muito bem como tinha ido do ódio à paixão, do desejo de matá-lo a querer que ele ficasse preso ao seu corpo todo o tempo e, sem contar, com a loucura que ambos obtiveram entrelaçando línguas cheias de seu próprio sangue. Eles se tornaram tão insanos que pareciam duas pessoas com sede de beber água de uma pequena poça de chuva. Mas, mesmo que esse ato não fosse sensato, tinha que compreender algo estranho que surgiu de dentro dela no momento em que o provou. Sentiu calor, então congelou. Viu luzes e depois apareceu a escuridão. Ouviu o som de pássaros cantando, mas quando virou a cabeça para o lado oposto, descobriu que o silêncio reinava e que apenas as respirações forçadas deles para poderem respirar. O que acontecia com sua mente? Por que lhe mostrava coisas que não eram verdadeiras? Por que se entregou a ele com tanto ardor? A causa desta entrega foi a paixão que surgiu de dentro dela para pintá-lo? Se abstraia facilmente quando se colocava na frente de uma nova tela, mas isso não era motivo para ansiar tudo o que ele pudesse oferecer a ela. Havia deixado esse mundo quando observou seu olhar penetrante, ouvindo-o falar com aquele tom tão sedutor e inebriante. Seu corpo reagiu rapidamente, como se tivesse esperado toda a sua vida, como se seu passado tivesse sido apagado diante daqueles olhos e daquela voz. No entanto, precisava assimilar calmamente as emoções que haviam despertado dentro dela. Não poderia cair em outro erro e, assim como estava, não apenas tropeçaria, mas desta vez o buraco seria tão profundo que levaria anos para ver a luz de um novo dia novamente.

«Se não se arrepende do que acabamos de fazer, do que nós dois sentimos ao estarmos juntos, esta noite não tranque a sua porta». A voz do visconde apareceu novamente em sua cabeça para lembrá-la das últimas frases que ele disse antes de sair. Estava disposta a deixá-lo entrar? Seria capaz de fazer isso? Pela primeira vez em sua vida, a alma que mantinha sob seu peito e sua mente coincidiram, só esperava não errar e terminar como naquele dia.

Depois de um longo tempo andando chegou ao final do angustiante corredor, saiu e arregalou os olhos ao ver a cena que estava diante dela. Josh segurava uma adaga na mão direita e apontava ferozmente para o lugar de onde Logan vinha. Ele, mostrando uma solenidade sem precedentes, ficou na frente do criado, levantou a mão e, deduzindo Anne o que aconteceria, correu para eles gritando que não o fizesse.

—Não! —Gritou horrorizada. —Por favor, não faça isso na nossa frente — ela implorou.

Quando as orelhas de Logan captaram o grito de súplica de Anne, estranhamente relaxou. Ele estava tão calmo que parecia ter tomado dez xícaras de erva-cidreira. Imediatamente, baixou a mão e juntou-a na perna direita, para não voltar a sucumbir ao desejo de lhe dar um tapa.

—Vá! —Rosnou em uma voz tão áspera e cruel que se assemelhava ao diabo. —Saia das minhas terras agora mesmo! E espero que a vida o leve tão longe que nunca mais nos encontremos, porque se isso acontecer... pagará com juros por sua desobediência!

E o criado correu como um galgo.

Josh, ouvindo o tom que o visconde usava, permaneceu como um soldado e só pôde relaxar quando sentiu o corpo de sua irmã por perto, abraçando-a. Mas ela não desviou o olhar daquele bastardo até que estava fora de alcance.

—O que aconteceu? —Anne perguntou baixinho.

—Galeón é um mestiço —respondeu Logan, que tinha ouvido claramente. —Sua mãe escapou do estábulo ao entrar no cio e acasalou com um dos Percheron que o barão de Sheiton mantém em suas terras. É por isso que tem essa pelagem nos cascos e é muito diferente dos que mantenho no estábulo. Desde que nasceu, não foi bem recebido entre os outros cavalos e, como descobri, não foi aceito pelo tratador —ele continuou explicando enquanto se virava para elas.

—Aquele bastardo queria matá-lo porque diz que os mestiços devem morrer —disse Josh oferecendo um olhar para sua irmã que ela entendeu rapidamente.

—Teve o que mereceu — consolou-a Anne depois de beijar sua testa. — O visconde cuidará para que ele não deprecie as misturas de sangue novamente.

—Claro —Logan resmungou. —E agora, se me derem licença, levarei Galeón aos estábulos para que possa descansar. Enquanto isso, senhorita Moore —disse ele a Anne — poderá cuidar de sua irmã. Tudo o que precisarem será fornecido pela donzela ou pela Sra. Donner.

—Sim, milorde —disse Anne, um pouco mais calma. Abraçou Josh com mais força, virou-a e tentou levá-la para a residência, mas antes que tivessem dado alguns passos, a jovem afastou-se da irmã e correu em direção ao visconde, que já estava ao lado do cavalo, chorando amargamente.

—O que? —Logan perguntou confuso quando a viu em pé na frente dele. —Quer me dizer algo diferente de...?

Não terminou a pergunta por que Josh se jogou nele, abraçou-o e, com o rosto no peito, continuou com um grito agonizante.

—Sinto muito pelo que sofreu —disse ele, sem saber muito bem como agir em tal situação. Nathalie mal chorava e quando fazia ele era o culpado desse choro e seus outros irmãos, com quem ele viveu em Salved Children, costumavam se esconder nos braços de suas mães.

—Obrigada, Logan —Josh soluçou. —Obrigada pelo que acabou de fazer —continuou a jovem. Ela se afastou devagar do visconde, secou as lágrimas com os punhos da camisa e ergueu o queixo gentilmente. —É uma pessoa tão boa que, mesmo antes de nos conhecermos, respeitava as origens dos outros. —Essa declaração deixou Logan imóvel. —Sabia o que significa ser um mestiço e é por isso que sempre nos tratou com essa consideração —disse ela, se referindo ao nascimento do cavalo e à bondade de mantê-lo vivo.

—Josh.... acho que... —o visconde tentou dizer, um pouco desnorteado pelas palavras da jovem.

—Nos entende! —Ela exclamou antes de abraçá-lo novamente e se deixar levar por outro choro desconsolado.

—Sim, Josh, eu as entendo perfeitamente —respondeu, acariciando os cabelos loiros e fixando os olhos em Anne.

No momento em que Anne ia sussurrar um agradecimento, a carruagem na qual Elizabeth viajara apareceu. Assim que estacionou na entrada, a porta se abriu e Howlett saiu primeiro.

—Que dia mais espetacular! —Eli exclamou, descendo com a ajuda do jovem. —Acho que nunca me diverti tanto. É incrível Howlett e me ajudou muito. Juro que não sei o que teria feito sem você.

—Pode pedir ao visconde para que eu a acompanhe sempre que quiser, senhorita Moore —respondeu Howlett, incapaz de apagar o sorriso em seu rosto. —Sempre estarei disposto e orgulhoso em servir uma dama tão sofisticada.

Corando com o comentário, Eli caminhou até a porta, mas quando percebeu que suas irmãs e o visconde estavam à sua esquerda, se virou e....

— Santo Céu! Onde esteve, Josephine? Tem um aspecto horrível —disse espantada.


XXVI


Durante o almoço, Elizabeth não parou de falar sobre a viagem e tudo o que encontrou nas várias lojas que visitou. Depois daquele monólogo sem fim, no qual os outros não prestaram atenção porque tinham outras coisas para pensar, ela concluiu que o jardim ficaria muito grosseiro com apenas dois tipos de flores e foi por isso que acabou comprando cinco sementes diferentes. Também propôs ao visconde plantá-las naquela mesma tarde. Como esperado, Logan não se opôs ao seu desejo, pelo contrário, encorajou-a a não perder tempo. Uma vez que Eli ouviu aquelas palavras de apoio, não conseguiu esconder sua felicidade e manteve um sorriso de orelha a orelha pelo resto da refeição.

Na frente dela estava Josephine em absoluto silêncio e com um olhar perdido. Como os outros, seus pensamentos estavam longe do salão. Embora ela tenha tentado eliminá-lo completamente de sua mente, esta se recusava a fazê-lo e a imagem do descarado, que a beijara sem o seu consentimento, apareceu em sua cabeça repetidas vezes, do mesmo jeito que surgia continuamente o arrepio que sentira quando percebeu seus lábios. Lembrar-se daquele momento só fez com que sua raiva aumentasse tanto que desejou voltar no tempo para, além de jogar a adaga com mais força, dar-lhe um tapa no exato momento em que sua boca bateu na dela. Por que a beijou? Por acaso interpretou, em algum de seus movimentos na luta imaginária, que poderia fazê-lo? Apesar de não desejar, mostrou a imagem de uma mulher tão descarada quanto Eli? Claro que não! Ela era uma guerreira e exibia uma atitude severa, forte e cruel. Mesmo assim, o ingrato ousou beijá-la apesar de sua aparência horrível. Seria um louco? Estaria tão transtornado que não era capaz de diferenciar entre uma dama elegante e um soldado manchado de suor e lama? Haveria homens que não procurassem por moças elegantes, mas jovens desastrosas? Essas e outras mil perguntas aumentaram a irritabilidade que a acompanhou durante o retorno, por isso chegou daquela maneira na residência. Não pretendia projetar sobre criado, que feriu Galeón, toda aquela raiva. Mas queria tanto matá-lo que o imaginou naquela figura assustada e desorientada. Por essa razão, se ela tivesse que encontrar uma parte culpada em sua atitude desesperada, tinha que apontar para ele. Poderia odiar tanto alguém? Ela deveria declará-lo como seu inimigo mais perigoso? Sim. O odiava tanto que, se o reencontrasse, daria todos os golpes que não lhe deu quando ele afastou os lábios dos dela. Quando se lembrou daquele momento e do frio que sua boca sentiu quando se afastou, Josh se mexeu desconfortavelmente na cadeira.

—Está bem? —O visconde perguntou, observando-a tão inquieta. —Ainda está com raiva?

—Estarei toda a minha vida —assegurou sem pensar. Embora não tenha mentido. Nunca apagaria de sua cabeça a raiva que lhe causava aquele jovem miserável de cabelos acobreados com um peculiar tufo loiro.

—Se quiser, quando terminarmos o nosso almoço, podemos ir ao estábulo e verificar se o Galeón está em perfeitas condições —Logan comentou para tranquilizá-la, imaginando que a preocupação dela fosse devido à situação que haviam experimentado com o criado.

—Não gostaria de tomar mais do seu tempo —disse envergonhada por não ser capaz de relaxar ou esquecer o ruivo. —Como indicou, essa tarde acompanhará Elizabeth ao jardim.

—Posso fazer as duas coisas —disse, depositando o guardanapo branco na mesa. —Juro que fui treinado para isso — ele disse ironicamente.

—Howlett pode tomar o seu lugar, se não se opuser —disse Elizabeth, que, pelo brilho em seus olhos, achou essa alternativa mais agradável do que ouvir mil reclamações do visconde, sabendo que ele não gostava de tais tarefas.

— Isso significa que me considera inútil para fazer um buraco miserável na terra e colocar uma dessas sementes dentro? —Ele perguntou ironicamente.

—Não... sabe o que... —Eli tentou dizer, meio envergonhada pela proposta.

—Calma, não se preocupe, estava brincando. Certamente Howlett é melhor companhia que eu. Kilby irá informá-lo de sua proposta e tenho certeza que ele ficará mais feliz em passar a tarde ao seu lado do que encarando os ternos que terei que usar nos próximos dias — disse recostando-se na cadeira e sem tirar o sorriso do rosto.

Olhou furtivamente para Anne e não gostou de descobrir que ela estava com uma pose rígida. Ela não falara e mal comera. Ficou distante, tanto quanto Josh ou ele. Estaria pensando sobre o que aconteceu no jardim? Se arrependia ou estaria considerando a possibilidade de deixá-lo entrar em seu quarto quando a noite chegasse? A segunda opção era tão agradável e prazerosa que seu corpo tremeu de ansiedade. No entanto, fez algo que não tinha feito até agora para se reprimir. Algo dentro dele gritava que não deveria tratá-la como as outras, que ela era especial e que precisava provar isso para ela. Mas... o que significava para ele o termo especial? Que poderia deitar com uma mulher que, debaixo de sua pele, tinha sangue tão cigano quanto o dele? Por isso estava tão feliz? Olhou para Eli, pois ela ainda estava falando sobre as flores, depois Josh, que continuava com uma carranca e finalmente voltou para Anne. O que ela tinha que a tornava tão irresistível? Por que sua boca ainda sentia o sabor da sua pele? Era capaz de encantar um homem com um miserável beijo? Hendall sentiu a mesma paixão que ele havia sentido no jardim? Teria se entregado tão facilmente a ele? Agora, era ele quem franzia a testa era ela. Odiava o passado de Anne, odiava tanto que queria fazê-lo desaparecer e, claro, naquela noite, na manhã seguinte ou em todos os momentos que pudesse, conseguiria. Ele apagaria todas as impressões de Dick e plantaria as suas, como Elizabeth semearia as sementes que comprou para aquela terra inútil. E Anne floresceria única e exclusivamente para ele. A única coisa a calcular era a maneira de fazê-lo sem sobrecarregá-la e sem que pensasse que ela seria outra amante que visitava.

—Então, conseguiu começar o retrato? —Elizabeth abandonou o tema das flores para que Anne reagisse imediatamente. Durante todo o almoço, ela permanecera em silêncio e expressava, descaradamente, que a presença do visconde ainda a incomodava. Não estava ciente de que Logan era um bom homem e que até agora só tinha feito coisas boas para elas? Se não mudasse de atitude, naquela mesma noite falaria em particular com ela e a colocaria em seu lugar.

—Sim —Anne respondeu sem levantar os olhos do prato.

Ela mal comeu aquela refeição deliciosa e tinha certeza de que a Sra. Donner lhe perguntaria o motivo e a repreenderia. Mas seu estômago estava fechado. A visão oferecida pelo visconde quando levantou a mão para bater no criado, apesar do fato de merecê-lo por desobedecer a uma ordem, deixou-a confusa e assustada. Nunca imaginou que ele pudesse adotar uma conduta tão severa, embora não deveria esquecer que era um aristocrata e que muitos deles se faziam respeitar pela força. Em milésimos de segundo, o homem adorável, apaixonado e sedutor, que estava por perto, tornou-se o vilão mais terrível do mundo.

—Tenho que dizer que fiquei surpreso com a facilidade com que sua irmã pinta —declarou Logan, olhando para Eli. —Depois de me obrigar a posar de mil maneiras horrendas, ela permaneceu em silêncio, fixou os olhos na tela e se abstraiu do mundo que a rodeava. Imaginei essa atitude se devia por não ter encontrado o perfil bonito do meu rosto, mas estava errado. Quando me aproximei dela, sem que sequer notasse minha presença, observei a beleza dos traços que fazia. Confesso que o talento dela me surpreendeu. Por mais que tenha ouvido sobre o dom que tem, me recusei a acreditar até que vi com meus próprios olhos. —Esperava que esse comentário, mesmo que fosse um pouco doloroso, a afastasse de seus pensamentos e a fizesse participar da conversa. Não queria contemplar, por mais tempo, seu rosto aflito, como se lamentasse o que havia acontecido entre os dois. Ansiava rever aquela mulher apaixonada que o abraçou e se rendeu à luxúria.

—Nenhum dos clientes que teve até agora se queixou de seu trabalho. Anne conseguiu mostrar a beleza em todas as mulheres que retratou, embora algumas delas fossem tremendamente horrendas — disse Eli, divertida.

—Elizabeth! —Anne exclamou, finalmente erguendo o queixo.

—Estou mentindo? —Replicou. —Esqueceu a filha dos Sharun? Existe no mundo uma jovem mais desagradável aos olhos? No entanto, soube como a embelezar todos os traços que a enfeavam. Mas tenho que declarar que, embora aqueles pais atormentados estivessem muito satisfeitos, deveriam ter recriminado seu trabalho porque o que fez não era real.

—Aquela jovem tem um bom coração... —Anne murmurou olhando para Eli. —E é isso que eu coloco na tela. A beleza exterior não é eterna, como bem sabe. O que realmente fica com a passagem do tempo é o que está armazenado sob o peito.

—Bobagens! —Eli respondeu acrescentando um gesto de desdém com a mão direita. —Essa jovem pode ser muito bonita no coração, mas até agora... que bravo cavalheiro se atreveu a pedir-lhe uma dança? E isso que, segundo entendi, seus pais fornecerão um dote suculento para o marido ousado. Mas toda vez que comparece a uma festa, ela permanece escondida no canto mais distante da sala e é incapaz de responder quando solicitado.

—A timidez não é uma desgraça —Josh murmurou, lembrando de sua irmã gêmea.

—Eu sei. Mas se quer conquistar alguma coisa na vida, é preciso ter coragem e lutar —disse Elizabeth com orgulho.

—Nem todo mundo tem coragem —censurou Josh. —Muitas de nós nascemos com certo...

—Se pretende que me sinta culpada porque nossa irmãzinha está incluída no grupo de meninas tímidas e sem coragem, pode manter essa língua viperina dentro da sua boca. Madeleine é tímida porque ainda não é capaz de aceitar a beleza com a qual nasceu. Quando isso acontecer, sua personalidade irá mudar.

—Beleza? Agora diz que Madeleine é linda? Por favor! —Josh bufou, levantando-se. —Como ode ser tão cruel para falar assim? Faz isso porque ele está presente e quer fingir uma imagem que não lhe corresponde? —Ela apontou para Logan com o dedo. —Bem, não continue, a hipocrisia não lhe cai bem. Devo dizer-lhe, visconde, que desde que posso ouvir claramente, minha amada irmã Elizabeth ria de nós porque ela diz que a cor do cabelo de Madeleine é semelhante à das cenouras e a minha à da mulher mais velha do mundo.

— Eu —Eli exclamou, arregalando os olhos enquanto observava suas bochechas queimarem de vergonha.

—Sim. Não se faça de desentendida, irmã, porque isso não está dentro da personalidade descarada que tem —disse Josh cruzando os braços em frente à mesa e olhando como se quisesse rasgar aquele lindo penteado com flores rosa.

—O que há de errado com cor do seu cabelo? —Logan disse que, perante a nova discussão familiar, também cruzou os braços e manteve a atitude de espectador.

—Ela diz que eu nasci com a lua na minha cabeça —Josh explicou com raiva. — E que pareço mais uma bruxa do que uma menina católica.

—Por que diz isso a ela? —Perguntou a Eli, erguendo as sobrancelhas.

—Eu... eu... não digo...

—Porque meu cabelo não é loiro, mas sim branco! —Respondeu Josh. —Segundo minha querida irmã, isso —disse ela, pegando o rabo de cavalo e mostrando-o ao visconde —indica que sou velha, embora não tenha completado dezoito anos, e por essa razão apenas os homens octogenários vão me notar.

—Bem, me encanta seu cabelo quando o usa limpo —Logan disse calmamente —e tenho certeza que Madeleine é tão bonita quanto qualquer uma das senhoritas.

—Obrigado —disse Josh, fazendo com que toda aquela raiva, que sentia antes da disputa, fosse eliminada tão rapidamente que perdeu a força. —É a primeira vez que alguém diz algo bonito sobre mim —acrescentou, sentando-se novamente.

—Todas são especiais —continuou Logan. —Cada uma tem algo que a torna única. Não acha que o mundo seria ridículo se todas as mulheres fossem iguais? Para mim, particularmente, deixam em êxtase aquelas que têm cabelos escuros e olhos castanhos —ele confessou, olhando de relance para Anne para ver se ela ousava repreendê-lo por não cuidar de suas palavras na frente das irmãs. Mas nada, ainda seguia sem a menor reação. —E espero que muitos homens não tenham os mesmos gostos que o meu ou serei forçado a enfrentá-los quando encontrar minha esposa —acrescentou desconfiado. —Tenho certeza de que seus futuros cônjuges as amarão tal como são e elogiarão suas diferenças.

—Eu não quero um marido —Josh murmurou.

—Realmente acredita que se manterá solteira para sempre? —Perguntou o visconde, se levantando, um ato que as irmãs imitaram no momento. Bem, está errada. Não será capaz de se afastar do homem que, toda vez que a olhar, mostrará a necessidade de segurá-la em seus braços, protegê-la e amá-la até que a morte apareça.

—Isso é o mesmo que eu disse a ela —garantiu Elizabeth, estendendo a mão para descansar no braço de Logan. Mas ela não me escuta. Se propôs a se tornar um soldado e....

—E a senhorita não deve humilhar suas irmãs para se sentir superior a elas —Logan interrompeu, repreendendo-a. —Lembre-se que cada um tem objetivos diferentes e não deve criticá-las para alcançar isso.

?Não me sinto inferior a elas —resmungou Eli.

?Ah, claro que não! Se sente tão extraordinariamente superior que se propôs a casar com um aristocrata —disse Josh com mordacidade.

—Podem parar de uma vez? —Disse Anne finalmente, caminhando ao lado de Josh. —Estão oferecendo um espetáculo embaraçoso.

—Eu já parei —disse Eli sem olhar para eles. —Mas não sou aquela que persiste, talvez devesse ordenar que Josh ficasse de boca fechada porque, como um bom soldado, jamais desobedeceria uma ordem.

—Vou arrancar esse seu coque! —Josh gritou, jogando-se em sua irmã.

Mas não chegou até ela, Logan se virou para a jovem, parou aquele salto que dera em Eli, empurrou-a para trás e se colocou no meio das duas. Com os olhos bem abertos, pois não podia acreditar no que havia se formado em um piscar de olhos, olhou para Anne e ela mostrou o mesmo assombro que ele. Como podiam passar de uma conversa absurda sobre flores para uma luta de puxar cabelo? Em que momento a conversa inocente passou para a guerra? Com as mãos abertas, para que Josh não procurasse a área mais adequada para tirar de Eli aquele penteado floral, respirou fundo e fez brotar a atitude do tutor ao qual se autoproclamou.

—Têm um segundo para reconsiderarem esse comportamento inadequado antes de decidir puni-las —garantiu, adotando o tom de um pai. — Se não demonstrarem arrependimento sincero, não sairão dos seus quartos até que eu esqueça o que acabou de acontecer. É isso que querem, passar o resto da semana em seus quartos? —Olhou primeiro para Eli e depois para Josh.

—Não — responderam em uníssono.

—Nesse caso, peçam perdão —insistiu o visconde com uma voz rouca.

—Sinto muito, Eli —disse, estendendo a mão para ela.

—Perdoe-me, Josh —respondeu, aceitando aquele gesto cordial e pacificador.

—Isso é muito melhor —disse Logan, afastando-se das irmãs —e agora, se precisam descansar, retirem-se para seus aposentos.

—Não posso ir aos estábulos? —Josh perguntou com tristeza. — Quero ver como está Galeón e se o bom tempo continuar durante a tarde, gostaria de montá-lo novamente.

—Pode fazer o que quiser enquanto não se envolver em outra confusão —ele concordou.

—Obrigada! — Exclamou alegremente. Se aproximou do visconde e, antes que ele pudesse reagir, o beijou na bochecha. —Não espere por mim para tomar o chá! —Gritou entusiasmada, correndo para a porta.

—Eli? —Ele direcionou a pergunta, levantando a sobrancelha direita.

—Se Howlett ainda puder me acompanhar, gostaria de aproveitar as horas do dia para iniciar os arranjos do jardim.

—Não há problema. Diga a Kilby para informar seu sobrinho sobre o novo plano e não saia de casa sem a presença dele. Espere, não vá, quero te pedir mais uma coisa — disse, apontando com o dedo.

— Sim? —Perguntou com uma atitude tão submissa que Anne pensou, por um momento, se o que estava observando era real ou outra de suas alucinações.

—Durante a sua estadia em minha casa, não quero que volte a dizer a Josh que ela é feia porque não é, entendeu? —Disse com firmeza.

—Não farei mais isso, prometo —respondeu, abaixando os olhos.

—Bem, nesse caso, também pode se retirar —concordou Logan.

—Obrigada — disse. Fez uma leve reverência e, murmurando palavras que só ela ouviu, saiu do salão.

Silêncio... não sabia que amava tanto o silêncio até conhecer as irmãs. Como podiam ser tão voláteis? Eram mais perigosas do que cem homens confinado em seu barco! Como o pobre médico enfrentava situações como a que ocorreu? Deus o teria abençoado com o dom da paciência ou com a surdez? Caminhou lentamente para o lado esquerdo, separando-se de uma Anne imóvel, acariciou o rosto com angústia, virou-se para ela e olhou-a suplicante.

—Elas sempre se comportam assim? —Perguntou depois de suspirar e colocar as mãos em ambos os lados da sua cintura.

Anne olhou para ele sem piscar. Seu rosto refletia não apenas agonia, mas também desespero. Onde estava o homem que levantou a mão para o criado? E sua grosseria? Nada disso observava nele, parecia tão humano quanto o resto do mundo. Levou a mão à boca, para aplacar a risada que queria brotar diante daquela visão tão angustiante, mas não conseguiu silenciar o estrondo de sua gargalhada.

—Sim, sempre se comportam assim —disse entre respirações longas. — Achou que seria fácil conviver conosco? Que seríamos tão dóceis quanto às mulheres que encontra em sua vida? —Acrescentou divertida. Havia desaparecido. Os sentimentos tristes que suportou durante o almoço desapareceram imediatamente ao contemplá-lo na intimidade. Era tão vulnerável quanto ela e tão volátil quanto suas irmãs. Talvez, apenas talvez, sua atitude em relação ao servo tivesse uma razão diferente do que exaltar seu poder.

—Como seu pai controla nessas situações? —Exclamou, mostrando em seus gestos e em seu tom de voz uma angústia exagerada. Se tivesse finalmente quebrado o muro que Anne havia construído durante o almoço, estava disposto a que não levantasse novamente. Como concluiu, ele precisava encontrar a mulher escondida sob aquele olhar indescritível.

—Devido ao seu trabalho, é a minha mãe quem as chama a ordem —respondeu, descobrindo que ele retornava para seu lado.

—Como consegue? —Retrucou, parado na frente dela. Suas mãos voltaram para o rosto e ele esfregou em desespero.

—Mantendo-as quietas ou firmes? —Queria saber. Sim, aquilo era tão improvável quanto engraçado. O grande sedutor parecia abatido pela atitude de duas pequenas jovens. E isso que Mary tinha ficado em casa! Ele não sabia nada do que poderia se formar em sua casa quando as cinco permaneciam juntas.

—Ambas as coisas —confessou, estendendo as mãos para o chão, como se estivesse resignado diante de uma situação difícil de controlar. Mas se quisesse executar o plano que tinha elaborado em milésimos de segundo, precisava continuar mostrando perplexidade, desespero e rejeição. Não era a irmã mais velha? Não ajudaria Sophia nos momentos mais difíceis? Bem, isso era o que devia lhe dar a entender, que estava vivendo o dia mais difícil de sua vida e que pedia sua ajuda. Uma vez que ela estivesse ao seu lado, lutaria com todas as armas de sedução para que a mulher que estava em seus braços e suspirava por suas carícias retornasse.

—Não sei, talvez minha mãe tenha o caráter certo para doutrinar suas cinco filhas, mas só ela sabe a verdade.

—Anne... —ele disse olhando-a com olhos suplicantes.

— Sim, milorde? —Respondeu rapidamente adotando o tratamento cortês.

—Tem que me ajudar —disse, suportando a fúria que sentiu ao ouvir como ela colocava distância entre eles novamente.

—Para ajudá-lo em quê? —Estalou, arregalando os olhos.

—Nós não podemos deixá-las sozinhas. Estou com muito medo de que, embora tenham me prometido, procurem um momento para se envolver em outra discussão e não tenho a menor dúvida de que o penteado de Eli será jogado fora de sua cabeça —explicou com aparente aflição.

— Se deram a sua palavra, certamente irão obedecer —defendeu-as como qualquer irmã mais velha faria.

—Minha irmã Natalie também fez muitas promessas a Roger e, entre elas, jurou que nunca se casaria com o sobrinho de Arthur Lawford. E o que aconteceu?

—Se casou com ele... —murmurou Anne, confusa ao ouvi-lo falar sobre um assunto tão particular.

—Exatamente! —Exclamou caminhando para a saída. —Preciso de você Anne, muito mais do que pode imaginar.

Essas palavras foram mais sinceras do que esperava. No entanto, no contexto em que as usou, não eram diretas nem estranhas. Se sua experiência não falhasse, Anne era uma das pessoas que não eram capazes de se recusar a ajudar os outros e ele seria o homem mais necessitado do mundo.

—Pretendia passar o resto da tarde matizando o esboço... —alegou olhando para o chão e esfregando as mãos.

—Perfeito! —Direi a um dos servos para mover o cavalete e tudo que precisa do lado de fora. Enquanto continua com a tela, ficarei de olho nessas duas pequenas criaturas ferozes. —Ficou parado na porta, esperando que ela avançasse, mas não o fez. O que acontecia? Não sentia vontade de acompanhá-lo? Ou talvez...

Pensando sobre esse possível, talvez, que não tinha notado porque sua cabeça estava concentrada em como aplacar a discussão das irmãs, Logan voltou para o seu lado, colocou um dedo sob o queixo de Anne e levantou-o gentilmente. Vendo que seu rosto mostrava tanta confusão quanto antes, se aproximou devagar e lhe deu um beijo carinhoso nos lábios.

—O que há de errado? —Ele murmurou, mal tirando a boca da dela. —O que a preocupa? Se arrepende do que fizemos no jardim? Não quer que esteja ao seu lado? Por que não me chama de Logan quando estamos sozinhos?

—Não acha que nos deixamos levar por uma emoção absurda? —Perguntou olhando em seus olhos.

—Emoção absurda? —Repetiu, permitindo captar em seu tom de voz que essa descrição o machucou. —Não. Não acho que me deixei levar por algo assim. Acho que mostrei a atração que sinto por você e que, embora devesse ficar longe, pois está sob minha proteção, não posso e não quero —declarou severamente.

—Mas... —sussurrou, abaixando o rosto, um que instantaneamente levantou com a ajuda da mão direita de Logan.

—Não há mas, Anne. Sinto-me tão atraído por você que até ponderei a ideia irracional de que me enfeitiçou. Tenho que ser honesto em lhe dizer que, desde que apareceu em minha vida, faz com que eu seja uma pessoa diferente, uma que esquece... —Vendo que ela tinha a intenção de perguntar a que se referia, continuou olhando-a nos olhos: Sabe porque no final eu não bati naquele maldito criado?

—Não... —murmurou.

—Porque ouvi sua voz. Se não tivesse aparecido, teria lhe dado uma boa lição. No entanto, tê-la, ouvi-la e senti-la, faz com que recupere a sanidade e que apareça em mim o homem que verdadeiramente sou.

—E? Quem é? — Insistia em descobrir enquanto seu coração batia em um ritmo desenfreado.

—Fique comigo e te mostrarei. Temos vinte e oito dias para que descubra —disse separando-a apenas o suficiente para ela segurar o seu braço.

—Não deve provar nada. Não pretendo...

—O que não pretende, Anne? Me enfeitiçar? Bem, já o fez — disse antes de tomar uma de suas mãos e, entrelaçando os dedos com os dela, levou-os à boca e os beijou carinhosamente. —Prometo que deixarei minha alma descoberta, que será capaz de ver o homem que realmente sou e, se não sentir aquilo nasceu em mim, a deixarei partir.

—Como pode me dizer essas coisas? Como te ocorre me perturbar? Como...?

Anne não terminou sua última pergunta, Logan a silenciou com outro beijo, embora esse não fosse suave ou doce, mas apaixonado, louco, descontrolado, lascivo. Seu corpo reagiu rapidamente ao calor de sua boca, ao movimento de sua língua dentro dela, às carícias que fazia em seu rosto com a mão que não entrelaçava a dele. Se sentia tão fraca, tão frágil, que duvidava que pudesse ficar em pé por muito tempo.

—Digo essas coisas porque vejo que corresponde com a mesma intensidade —sussurrou entre suspiros. ?E agora, minha querida Anne, se não quer que levante a saia desse vestido marrom e me deixe levar pela necessidade de torná-la minha, vamos sair daqui.

Muda e com a respiração agitada, Anne aceitou o braço do visconde. Caminhou ao lado dele até que saíram, como se fossem dois recém-casados, que mal conseguem se separar. Abriu a porta e convidou-a a passar na frente. Uma vez que se colocou na varanda do lado de fora, uma brisa suave acalmou a abrasão que notou em suas bochechas e a luz suave dos raios de sol a fez fechar os olhos ligeiramente. Colocou a mão direita na testa, usando-a como um escudo, olhou em volta e sentiu-se estranhamente feliz. Por que sua confissão lhe trouxe tanto conforto? Será que não entendia que a única coisa que conseguiria seria se tornar outra amante do visconde? Era isso que queria? No momento em que uma dor estranha apareceu em seu ventre, como se estivesse lutando contra aquela ideia nefasta, um pássaro grasnou no céu. Com a mão apoiada na testa, como se fosse um soldado, levantou o rosto e ofegou ao descobrir que um imenso corvo estava voando sobre ela.

—Me acompanha? —Logan perguntou, novamente estendendo o braço para que ambos pudessem descer os degraus que os levariam à imensa esplanada verde.

—Sim —respondeu Anne depois de aceitá-lo sem hesitação.

Quando desceram juntos, enquanto ele começava a conversar sobre como encontrara aquele lugar e a razão pela qual o adquiriu, o corvo continuou voando sobre eles e não desapareceu até que, três horas depois, Anne e Logan voltaram para a residência.


XXVII


O silêncio reinava novamente no corredor...

Anne se encostou à porta do quarto e suspirou. Fazia três dias desde que o visconde lhe pedira para não trancar a porta para deixá-lo entrar, mas ele não aparecera. Na primeira noite, enquanto esperava por ele, sentada em sua cama, bateram na porta. Com o coração pulsando na garganta, porque achava que era ele, caminhou em direção à saída e, descobrindo quem era, teve uma estranha sensação de alívio e tristeza. Elizabeth, depois de passar a tarde trabalhando no jardim, pareceu agradecer-lhe pela mudança de atitude que demonstrou ao visconde durante o jantar. «Sabia que no final se renderia ao seu encanto», disse no meio da conversa. E não tinha ideia de quanta verdade suas palavras possuíam. No decorrer daquela tarde, falou com ele como se se conhecessem desde a infância. A conversa entre eles passou de contar a história de como e por que comprou Harving House, ao momento em que viajou pela primeira vez no navio, a tensão que sofreu por ser responsável por tantos homens sob suas ordens e a satisfação que sentiu ao retornar. Então continuou falando sobre seus irmãos, até narrou milhares de aventuras que viveu com Nathalie e ele crianças. A chegada de Evelyn à vida de Roger e como sua casa se encheu de felicidade diante do inesperado nascimento de Evah, a filha do marquês. Mas essa conversa amigável mudou quando ele tentou descobrir coisas sobre ela.

—Por que deseja partir para aquela cidade? — A pergunta a surpreendeu tanto que não sabia o que responder. —Alguém te falou sobre ela? — Ele persistiu, movendo lentamente o caule de uma margarida que havia cortado do jardim.

Anne olhou para ele timidamente. Devido ao calor, tirou o paletó e mostrou uma atitude muito íntima e relaxada, quando se recostou no banco de pedra e esticou as longas pernas.

—Sim —disse finalmente.

—O que ele lhe disse para que quisesse experimentar a agonia de fazer uma viagem tão longa? —Insistiu.

—Que encontraria a paz que procuro. ?Fixou os olhos na tela novamente e, apesar do fato de que sua mão estava tremendo, continuou a moldar o contorno de suas sobrancelhas. Como podia ser tão diferente? No jardim, enquanto foram mantidos longe de qualquer observador, se mostrou como o conquistador de mulheres que era. No entanto, naquele momento, não havia sedução em seus gestos ou palavras, mas sim cumplicidade, familiaridade e simplicidade.

—Por causa da maldição? —Perguntou antes de colocar o caule pequeno em seus lábios, como se fosse um cigarro. Cruzou os braços sobre a cabeça e fechou os olhos. ?Pensa que ali desapareceria?

—Não —respondeu sem olhar para ele.

—Então? Por que insiste em partir? —Insistiu sem mover nada além do peito enquanto respirava.

—Uma mulher deve construir bom futuro se ela se recusar a procurar um marido que a mantenha —declarou com sinceridade.

—Entendo... —murmurou antes de permanecer em silêncio.

Quando pensou que o assunto tinha acabado, que ele já havia deduzido que seu propósito era se tornar a famosa retratista que sua mãe lhe disse, se incorporou no banco para se sentar, olhou para ela, como se tivesse testemunhado um milagre e disse:

—É uma cidade muito libertina. Sabia?

—Não —respondeu secamente.

—Nesse caso, fico feliz que esta viagem tenha sido cancelada. Certamente não gostaria de ver homens e mulheres se renderem a uma paixão passageira em qualquer canto das ruas.

Esse comentário ousado deixou-a tão surpresa que o carvão atingiu o chão. Quando se abaixou para pegá-lo, ele já estava ao seu lado, para ajudá-la. Os dedos de sua mão direita sentiam as carícias dele e não pode deixar de se sentir oprimida por aquele toque suave e delicado.

—Teria morrido de tristeza se descobrisse o que é capaz de me fazer sentir e me encontrar na horrível obrigação de abandoná-la em um lugar tão distante —sussurrou enquanto ambos se levantavam ao mesmo tempo. —O que eu faria sem esses olhos castanhos, incapaz de sentir o perfume do seu cabelo ou poder olhá-la quando quisesse?

Um golpe. Anne sentiu um golpe terrível no estômago. O que pretendia? Enlouquecê-la com palavras doces? Era assim que tratava todas as mulheres que passavam por sua vida? E depois? O que aconteceria depois? E ela? Como suportaria uma experiência semelhante com o visconde? Tinha que se recusar a sentir, desejar, ansiar por ele, mas lá estava ela, com um estupor semelhante ao que teria uma jovem inocente quando um de seus pretendentes desejasse deixá-la apaixonada por doces e frases estudadas.

—Não se lembra de que matei os dois homens que decidiram se apaixonar por mim? —Fez a pergunta para se defender de suas próprias emoções. Não podia contemplá-lo com desejo, nem o observar como se fosse o único homem no mundo. Precisava lembrá-lo que estava amaldiçoada e que ele poderia terminar da mesma maneira...

—Não eram apropriados —respondeu com um sorriso tão lindo e atraente que Anne não conseguia tirar os olhos daquela boca que, momentos antes, havia provado.

Não havia lhe dito que estava enfeitiçado? Bem, amargamente, ela também estava. Uma voz estranha retumbou em sua cabeça com tanta intensidade que pensou que explodiria. Não, não podia se deixar levar pela atração que sentia, nem por essa selvageria que despertava toda vez que olhava para ela. Ou adotava a postura correta ou acabaria nua em sua cama ou na dela. Essa visão, que sua mente rapidamente projetou, agradou-a tanto que um calafrio correu da ponta dos pés até a cabeça.

—Está com frio? —Perguntou e, sem ouvir a resposta, pegou sua jaqueta, se colocou atrás dela e a pôs sobre seus ombros lentamente. E, depois de dar uma rápida olhada ao redor para confirmar que estavam todos ocupados, esfregou seus braços e, pouco antes de se afastar, deu-lhe um beijo no pescoço. —Conheço muitas maneiras de aquecê-la, mas este não é o momento certo para demonstrá-las.

Outro golpe no estômago. No entanto, esse foi acompanhado por uma dor angustiante entre as pernas. Sim, claro, aquele ladino tentava seduzi-la até que gritasse para que oferecesse tudo o que propunha, mas... O que deveria fazer? Resistir? Lutar com todas as suas forças? Por que? Não era mais uma mocinha virtuosa, há muito que perdera a inocência e, segundo sua mãe, logo poderia fazer o que quisesse sem ter que dar explicações. Além disso, qual era uma das razões pelas quais queria ir a Paris? Sentir-se viva, querida e imersa em um turbilhão de paixões que apaziguaria essa necessidade que renascia nela com mais força. Seu sangue cigano havia despertado e ansiava pelo que ele queria lhe dar.

Observou-o sentar novamente e adotar essa postura casual e familiar. O que pretendia?

—Foi na segunda viagem que fiz àquela cidade —continuou Logan — quando fiquei hospedado no bordel da senhora Gautier.

—Como disse? —Perguntou, segurando o carvão com tanta força que se partiu em dois.

—Que me hospedei no bordel da senhora...

—Como é capaz de comentar uma coisa tão íntima? —Censurou.

—Disse na sala de estar, que mostrarei minha alma e que parte da minha vida está dentro dela. A escandaliza? Não achei que faria pois, como descobri, manteve um relacionamento apaixonado com Hendall.

—Não vejo isso como apropriado —murmurou, fixando os olhos na tela novamente e escondendo atrás desta o embaraço de suas bochechas.

—Bem, se ficar escandalizada ao descobrir por que me chamam de Logan, o conquistador, pode me fazer às perguntas que achar melhor —comentou divertido. ?Embora, garanto que iria gostar da história.

—Realmente acha que me faria feliz saber o que fez com essas mulheres? — Falou indignada quando colocou as mãos na tela e olhou por cima.

— O que observo é ciúme? ?Alegou ainda mais divertido e um pouco orgulhoso. Se virou para ela, colocou as solas dos sapatos no chão e sorriu. ?Não imaginei que abrigasse esse tipo de emoção sobre mim.

—Não estou com ciúme —resmungou, se escondendo atrás da pintura novamente. ?Mas sinceramente, sei que não gostarei desse assunto.

—Bem, vamos mudar a conversa... —disse, descansando os cotovelos nos joelhos. —Como foi sua infância? Sempre quis ser retratista? Qual imagem achou mais difícil? Por que se apaixonou por Hendall? Ninguém a informou que era um mulherengo, que suas empresas estavam falidas e que só voltariam à tona se conseguisse casar com a filha de um bom homem?

Tremor. O corpo tremia. Podia sentir o movimento selvagem até de seus cílios. Esse era o objetivo do visconde? Descobrir por que se comprometeu com Dick? Com qual razão? Ridicularizá-la? Bem, não conseguiria!

—Conhecia a reputação de Dick — assegurou em uma voz firme e forte — mas me jurou que, uma vez que estivéssemos noivos, seu passado seria deixado para trás. Não fez essa promessa a nenhuma de suas amantes? —O atacou.

—Não, porque isso seria uma mentira e não gosto de enganar as pessoas. Elas sempre souberam da posição que lhes dei e não haveriam outras possibilidades —respondeu com extrema contundência.

—E ainda assim continuaram? —Perguntou perplexa.

—Não acha que mereço o esforço? —Contestou, esboçando um grande sorriso.

—Não. Conheci muitos homens mais bonitos. — Ela mentiu porque queria acertar seu ego da mesma maneira que fazia com seu estômago sempre que falava sobre algo que não deveria e a fazia sentir aquilo que era proibido.

— Não? Uau! Isso partiu meu coração, senhorita Moore. Como poderei recompô-lo? —Comentou com aparente aflição.

—Tenho certeza que superará—murmurou, escondendo o rosto sorridente atrás do retrato.

—Não tem a sensação de que nos conhecemos a vida toda? —Perguntou ao ar quando se deitou no banco de pedra. —Porque eu sim. —Permaneceu em silêncio, pensativo, depois virou a cabeça para ela e procurou o seu olhar. Não encontrou, escondia atrás daquele grande cavalete: —Sabe? Nunca falei, tão calmamente com uma mulher, enquanto tentava aplacar a ereção que guardo sob as minhas calças.

Três. Aquelas palavras produziram o terceiro golpe em seu estômago e uma sensação tão agradável que sentiu seu corpo reagir instintivamente. Como poderia ser tão canalha? Teria descoberto que ela enlouquecia com palavras e situações descaradas, essas que se assemelhavam tanto com seu sangue dominante? Porque, para qualquer cigana que se preze, bajulações como essas faziam seu corpo ferver.

E quando planejou repreendê-lo novamente, ouviu como o cavalo, no qual Josh cavalgara a tarde toda, estava se aproximando.

—É lindo! Maravilhoso! Incrível! —Exclamou Josephine, recompensando as façanhas do animal com fortes carícias no pescoço.

—Bem, a amazona também fez um ótimo trabalho —Logan comentou, levantando de um salto. De repente, o homem canalha que havia estado ali, mudou para se tornar o tutor responsável. —Da próxima vez deve lembrar que Galeón salta melhor quando a distância é curta. Avança muito rápido e solta no meio do caminho — explicou enquanto acariciava o pescoço do cavalo.

—Poderia me ensinar, se isso não o fizer perder muito tempo —disse Josh, com os olhos brilhantes de emoção.

—Boa ideia. Se desejar, amanhã, depois do café da manhã, poderíamos dar um longo passeio. Lá em cima —apontou para o lado esquerdo, exatamente onde uma pequena colina estava —há troncos caídos pela última tempestade. Eles servirão para que eu possa ensinar como fazê-lo pular.

—Sim! Sim! —Gritou a jovem cheia de alegria. —Estou encantada! O que acha, Galeón? Sim, de verdade? —Disse, inclinando-se para a pele do cavalo como se estivessem conversando. —Acho que ele também gosta da ideia.

—Nesse caso, faça-o retornar ao estábulo e dê-lhe comida e bebida. Tem que recuperar forças para amanhã.

—Às suas ordens! —Respondeu Josh, levantando a mão direita na testa antes de chicotear Galeón.

—É impressionante... —Logan refletiu voltando ao banco. Juro que ela é a mulher mais corajosa que já conheci. Tenho certeza de que se ela tivesse nascido homem, a Grã-Bretanha estaria a salvo de qualquer inimigo —disse sentando-se.

—Mas não é —disse Anne, sem se afastar da pintura —e ela tem que assumir isso mais cedo ou mais tarde.

—Verdade —disse sem poder desviar o olhar da jovem. —Não entendo porque quer manter um comportamento tão masculino, odeia a realidade?

—A de ser mulher? —Perguntou e o visconde afirmou com um leve aceno de cabeça.

Colocou o carvão em uma sacola que pendia do cavalete e, observando que a jaqueta deslizava entre seus braços, acabou colocando as mãos nas mangas. O calor que proporcionou a roupa do visconde e o perfume que emanava dele a relaxaram. Mas ele não podia descobrir que ela também estava confortável, ele usaria aquele momento para fazer outra pergunta inapropriada. Por essa razão, conteve todos os músculos de seu rosto, limpou o carvão das mãos em um dos panos que comprou e avançou para o lado esquerdo, na direção oposta à do visconde.

—Deve entender que o comportamento que mostra não corresponde à sua natureza, embora isso, de certa forma, a torne mais especial. No entanto, deve estar ciente de que não pode alcançar tudo o que pretende alcançar. Sem ir mais longe, a noite que passamos bebendo na pousada...

—Ato que estava fora de lugar porque Josh não deveria ter bebido como se fosse um velho bucaneiro —o interrompeu em reprimenda.

—Mas tenho que confessar que veio muito bem para nós dois —se defendeu, incapaz de eliminar o sorriso. Por fim, a irmã protetora veio à tona, assim como já estava começando a ouvir como seu tom de voz não era tão esquivo. Havia declarado que mostraria sua alma, apenas esperava que Anne fizesse o mesmo. —Ela me contou sobre seus sonhos e tive que explicar que eles não seriam reais.

—O que disse? —Perguntou, virando-se para ele bruscamente e mostrando clara evidência de terror em seu rosto.

—Que os soldados não a veriam como iguais e que acabariam violando-a — declarou sem se importar.

—Por que foi tão cruel?

—Não fui cruel, Anne, mas sincero. Ela precisa que falem com clareza e não ser enganada. Já disse que não gosto de mentir, muito menos a uma jovem como ela. — Sua voz não vibrou nenhuma vez. Expressando em cada palavra uma franqueza convicta.

Anne olhou na direção que Josh havia tomado, esfregou os braços e, embora fosse ilógica, sentiu o toque da jaqueta do visconde e se acalmou novamente. Talvez não fosse certo que ele falasse com ela dessa maneira tão direta, mas não podia culpá-lo. Era a primeira vez que alguém falava com Josh com tanta sinceridade. Só esperava que ela não esquecesse a parte mais difícil desse sonho que estava determinada a alcançar.

—O que acontece com Madeleine? —Perguntou, levantando-se e caminhando em direção a ela. Só parou de andar quando se colocou nas suas costas.

—Nada. Ela é perfeita. A única coisa que acontece é que sua timidez a impede de conversar com outras pessoas que não sejam nós.

—Bem, ouvi a voz dela e admito que era angelical —disse sem se mover do seu lado.

Logan respirou fundo, pegando todas as partículas invisíveis que Anne emitia de seu perfume. Se perdia.... Sim, estar tão perto dela fez com que ele se perdesse em um mundo que, até o momento, desconhecia. Desejava abraçá-la, consolá-la, sussurrar que ele sempre a ajudaria e que não deveria temer o que poderia acontecer entre eles, porque nem mesmo a maldição poderia separá-los. Mas não era o momento, precisava de mais tempo. Um em que ela descobriria quem ele realmente era e o aceitaria. Que não gostava de enganar? Bem, mentiu sobre sua origem por trinta e três anos! O que ela pensaria se descobrisse? Seria capaz de amar o cigano e o Visconde? Ou só aceitaria o homem que ostentasse um título nobre?

—Talvez, com o tempo, encontre uma pessoa que a faça sair da caixa de cristal em que ela decidiu viver —disse Anne como reflexão sobre Madeleine.

—E você? Deixará a gaiola em que se trancou?

O hálito quente do visconde roçou a pele de seu pescoço, causando outro arrepio. No entanto, desta vez, não esfregou os braços, mas estendeu as mãos para o chão. Como poderia derreter tão facilmente a frieza que ela criou por tantos anos? Desejava o contato de um homem ou apenas dele? Por que abandonou a integridade da qual se orgulhava? O que tinha ele de especial para seu corpo admitir que o havia esperado toda vida?

—Não estou enjaulada, milorde —disse, virando-se para ele.

Seus olhos. Aquelas írises azuladas olhavam para ela com tal desejo que permaneceu imóvel. Esse coração que se manteve letárgico por muitos anos batia desenfreado e sua mente, irracional toda vez que estava na frente dele, apenas gritava havia chegado o momento de se render ao óbvio. E, de acordo com isso, essa evidência consistia em que se entregasse ao homem esperado. Sua mãe teria razão? Os sonhos seriam verdadeiros? Não, não poderia ser. A pessoa que esperava tinha sangue cigano e o visconde, exceto pela cor de seu cabelo, em tudo o mais, mostrava sua origem aristocrática. Então... o que teria ao seu lado? Um romance que terminaria no mesmo dia do seu contrato? É isso que desejava?

—Está —garantiu, trazendo sua boca perto da dela — mas não demorará muito para começar a voar, porque serei o homem que abrirá a porta dessa maldita gaiola.

—Pelo amor de Deus!

O grito de Elizabeth fez Logan saltar rapidamente para trás e Anne ficar rígida como uma tábua. Ambos pensaram que os descobrira, mas não era assim. A jovem olhava para as saias de seu vestido enquanto sacudia as manchas de lama com fúria.

—O que acontece? — Anne perguntou, saindo para encontrá-la.

—A terra é terrivelmente má! —Ela exclamou horrorizada. —Howlett e eu devemos arejá-la muito se quisermos semear algo naquele terreno inerte.

—Arejá-la? Não acha que a brisa que temos durante a manhã é suficiente? — Brincou Logan, que chegará à tela e olhava como se a estivesse estudando.

—Não me refiro a esse tipo de ar! —Respondeu divertida, Elizabeth.

—Não? —Logan respondeu, levantando ambas as sobrancelhas, expressando sua incerteza desta maneira.

—Temos que fazer pequenos furos na superfície para que o oxigênio atravesse a terra. Dessa forma, as futuras raízes permanecerão saudáveis e não apodrecerão.

—Achava que as folhas eram as que precisavam de oxigênio, não a raiz — prosseguiu Logan, acentuando o tom de perplexidade.

—E é verdade —disse Eli, tirando o chapéu. No entanto, se alimentam pela raiz e, se não estiver saudável, morrerão.

—Explicou isso ao jardineiro a quem pago uma grande fortuna para cuidar deste lugar? Seria conveniente informá-lo que precisa fazer pequenos furos em toda a propriedade —explicou sarcasticamente.

—Está brincando, certo? —Eli perguntou, mostrando um grande sorriso.

— O que acha? —Respondeu antes de estender o braço para ela e voltarem para dentro da residência.

Durante aquela noite, Josh não parou de falar sobre a magnífica tarde que passara com o cavalo e Elizabeth do bom relacionamento com Howlett. Ambas estavam entusiasmadas e ansiosas pelo novo dia que viria. Quando se retiraram para seus quartos, Anne as acompanhou e ficou no quarto o esperando que Logan aparecesse, mas as horas passaram e, exceto pela breve visita de Eli, para falar sobre sua mudança de atitude, permaneceu sozinha até adormecer. No dia seguinte, quando desceu para o café da manhã, Josh e o visconde saíram para o passeio que ele prometera. Elizabeth continuou com seu trabalho de cultivo e ela se abrigou em uma sala, que Kilby havia preparado, para avançar na pintura. Passou a manhã inteira suspirando, se lembrando das sensações que sentiu por tê-lo tão próximo e ansiando por ele. Essa última a deixou bastante inquieta, porque não podia decidir se essa ânsia se devia ao fato de ter passado a noite sozinha ou que, na verdade, começava a gostar da companhia dele, apesar de se comportar com tanta ousadia quando estavam sozinhos.

Realmente queria contar para ela sobre suas amantes? Como era possível falar sobre esse assunto particular sem se importar com a imagem que isso lhe daria? «Não tem a sensação de que nos conhecemos a vida toda? » Sim, ela tinha, mas não devia confessar esse pensamento tão facilmente. Primeiro tinha que assumir a razão pela qual se sentia tão diferente quando estava ao seu lado. Uma vez resolvida essa questão, se concentraria nas outras.

À tarde, desse mesmo dia, foi muito semelhante à anterior. Enquanto Eli continuava com o plantio das sementes, Josh cuidava do cavalo com cuidado. O visconde acompanhou-a até os estábulos, para continuar dando conselhos sobre uma boa equitação. Ela, pelo contrário, olhava para o esboço sem saber como continuar. Era a primeira vez que lhe faltava inspiração. Não conseguia avançar, ou talvez não quisesse fazê-lo sem que ele estivesse ao seu lado. Era hora de voltar e não havia dado nenhum mísero traço novo. Tudo permanecia o mesmo até que ouviu um tremendo grito. Levantando os olhos e os direcionando para o lugar de onde veio aquele uivo de felicidade, observou Josh abraçar o visconde com tanta força que o teria dividido em dois, se não possuísse um porte tão forte.

—Ele o deu para mim! O Galeón é meu! —Ela gritava eufórica sem parar.

Por essa razão, durante a noite, a única pessoa que a visitou foi Josh. Estava tão animada com o presente do visconde que não conseguia dormir.

E a manhã daquele dia chegou. Esperava, desejava e precisava que ele ficasse ao seu lado, que aquele homem descarado e atrevido que costumava falar com ousadia ou roubar um beijo retornasse. No entanto, ele não ficou em Harving. De acordo com Kilby, o senhor teve que sair para resolver certos assuntos administrativos. Anne não tinha certeza se a raiva que a abalara naquele momento era pelo tom que o criado usara para falar com elas ou o fato de que ele estava se distanciando dela novamente. Seja o que for, até que ele apareceu para almoçar, tinha um humor de cachorro e esteve prestes a quebrar a tela mil vezes.

Por que agia dessa maneira? Não lhe disse que despiria sua alma? Então... por que prestava mais atenção às irmãs do que a ela? Exceto por alguns olhares furtivos, que poderiam ser oferecidos durante o almoço e o jantar, não havia mais nada. Nem beijos, nem palavras, nem toques intencionais. Frio. Parecia que tinha se transformado em um bloco de gelo. Teria perdido o interesse nela? Teria percebido que não era uma mulher adequada para ele?

Depois de suspirar profundamente e se resignar ao óbvio, voltou para a cama. Era a terceira noite e, como nas anteriores, nada aconteceria entre eles. Talvez ele tenha pensado melhor em sua maldição e concluiu que seria melhor evitá-la. Se fosse assim, agora ela não só ficaria confusa com as emoções que surgiam cada vez que o olhava, com suas roupas elegantes ou com aquele sorriso que dedicava às suas irmãs, mas também por causa daquele desejo que aumentava com as horas.

Lentamente, sentou-se no pé da cama, atirou-se para trás e, com as mãos estendidas nos travesseiros, olhou para o teto. Tinha que se concentrar em fazer o seu trabalho. Não podia ocupar sua cabeça com bobagens. Não era tão jovem para encher a cabeça de pássaros. Seu passado, esse que alguém revelou para o visconde, era um muro que não podiam pular, embora naquela tarde ambos foram levados por uma paixão repentina. De olhos fechados, enfiou os dedos sob os travesseiros. Como Josh disse, o cetim tinha um toque suave que a convidava a nunca sair da cama. Então, as pontas da mão direita tocaram alguma coisa. Surpresa, ela se virou e colocou os joelhos no colchão, rapidamente levantou o travesseiro e olhou para o papel, no qual ele colocou seu nome, há algum tempo.

Ele. Ele tinha escrito. Essa e forma de ligar as letras, unir a letra A com o primeiro N era dele. Com o coração a mil e as mãos trêmulas, acabou pegando a nota.

Minha querida Anne:

Perdoe-me por não ter vindo ao seu quarto durante estas noites. Acredito que, embora quisesse com todas as minhas forças, não devia fazê-lo. Como disse na primeira tarde que passamos juntos, é especial e quero provar isso para você. Senti sua falta porque gosto muito de estar e conversar com você. Te disse que me sinto tão calmo ao seu lado que parece que a conheço toda a minha vida? Sim, eu disse, mas faz tanto tempo que quero repeti-lo toda vez que tenho a chance.

Tenha um sonho feliz. Claro, tenho que estar nele para que seja.

Se não conseguir dormir, me encontrará no nosso jardim. Foi onde passei essas duas noites, ansiando pela sua presença e lembrando o melhor momento da minha vida.

Seu, Logan.


XXVIII


O que queria fazer? Essa era a pergunta perfeita. Não tinha que pensar se seria correto ou não ir ao jardim, o mais apropriado era confirmar se queria ir ao seu encontro e aceitar tudo o que acontecesse entre eles.

O que seu coração mandava? Este não podia lhe dar uma resposta sensata, pois estava batendo com tanta força que logo seria disparado de seu peito. E a parte lógica do seu cérebro, essa que Mary usava desde que abriu os olhos? Não falava, estava tão silenciosa que podia ouvir os grilos cantando lá fora. Portanto, só teria que atender ao seu instinto cigano que ordenava, com mais ímpeto do que nunca, a parar de colocar tantos obstáculos e correr para ele, para se entregar de corpo e alma.

Com a emoção de uma criança que está prestes a descobrir o que é seu único presente de aniversário, Anne guardou o bilhete de Logan debaixo do travesseiro onde o encontrou, pulou da cama, vestiu o robe de seda negra e, sem fazer nenhum barulho, saiu do quarto. Não o tinha desejado? Não queria estar ao seu lado? Bem, teria a oportunidade de recuperar o tempo perdido, aproveitar aqueles beijos que não roubou e sentir novamente o calor que suas carícias ofereciam.

Como se fosse um fantasma, desceu as escadas e atravessou a extensa galeria. Seus pés sentiram o chão frio, mas recuperaram rapidamente a temperatura que mantinha seu corpo. Tudo ao seu redor gritava que estava fazendo a coisa certa ou eram suas percepções? Como nem um único criado era encontrado, as luzes permaneciam apagadas e até mesmo as irmãs decidiram não deixar o quarto naquela noite para conversar com ela sobre o assunto que as preocupara. Olhou através das janelas que encontrou e, com exceção do luar, que passava pelas cortinas finas, ninguém era testemunha do que pretendia fazer. Sim, talvez o destino tenha aprovado sua decisão.

Ao chegar ao local onde o visconde fazia seus exercícios físicos habituais, respirou fundo, enchendo seus pulmões com aquele ar masculino que a atraía tanto. Era como um urso atordoado pelo cheiro de mel de uma colmeia e, apesar de saber que as abelhas o atacariam quando descobrisse suas intenções, não abandonaria seu propósito de saborear aquele suculento manjar.

Percebendo a suavidade do piso, deu pequenos passos até chegar à porta que dava lugar àquele jardim. Sentindo a batida do coração na garganta, colocou a mão direita na maçaneta, girou, abriu devagar e.... o viu. Tal como havia dito, o visconde esperava-a no mesmo lugar em que ficara ao pintá-lo. Seu cabelo solto ondulava como a bandeira de um navio. Sua camisa clara se movia lentamente sobre o peito largo e forte, e suas calças, muito parecidas com aquelas usadas por Josh, transformaram suas longas pernas em pernas titânicas. Anne levou as mãos ao estômago, pois sentia as asas daqueles corvos furiosos novamente, incontroláveis, e olhou para ele, sem fôlego. Encantada, a enlouquecia vê-lo daquela forma tão relaxada, tão selvagem. Se não conhecesse sua verdadeira identidade, não poderia pensar em outra definição a não ser cigano. Sua pose, sua tranquilidade e aquele equilíbrio que emanava do ambiente que o rodeava eram mais típicos das pessoas selvagens do que dos esnobes e controlados aristocratas. Mas não deveria esquecer que ele era um visconde e que, em um futuro distante, se tornaria um marquês. Essa realidade construía uma enorme muralha que nunca poderia ser demolida. Só conseguiria o remanso da paixão por um breve período de tempo e depois... apagariam de suas mentes os beijos, as carícias, os suspiros que teriam durante seus encontros românticos. Não estava procurando por isso? Se sentir viva, renascer? Bem, estava disposta a se dar isso...

Afastando da cabeça a tristeza que aqueles pensamentos lhe causavam, desceu devagar os cinco degraus que a levavam à pequena esplanada. Foi então que ele percebeu sua presença. Se virou para ela e olhou-a com tanta admiração que Anne se sentiu minúscula. Estava realmente emocionado em vê-la? Haveria algo mais nesse olhar do que lascívia? Seu coração também batia forte quando ficavam juntos?

—Olá... —sussurrou estendendo a mão para ela, assim não teria medo e fugiria quando descobrisse a felicidade e ansiedade que sentia por tê-la em seus braços, beijá-la, tocá-la. ?Venha, aproxime-se. Quero mostrar o segredo mais bonito que desse jardim.

Incapaz de recusar esse pedido, Anne ficou ao seu lado, pegou sua mão e, com um leve movimento, colocou-a na sua frente, pressionando as costas dela contra seu peito, descansou o queixo sobre seus cabelos, que o fez sentir novamente cheiro de flores silvestres, e a manteve alguns segundos assim, capturando o calor que havia desejado durante os dias anteriores.

Duas noites. Apareceu na porta de seu quarto nas duas noites anteriores, mas não ousou bater. Na primeira ocasião, ouviu a voz de Elizabeth e, na segunda, a voz de Josephine. No começo, pensou que Anne as chamara para fazê-lo ficar longe, no entanto, depois de ouvir as conversas que tiveram, e apaziguar sua raiva, concluiu que elas haviam aparecido para conversar sem aviso prévio. É por isso que acabou escrevendo a nota. Se ela ansiasse por ele tanto quanto ele sentia falta dela, viria ao seu chamado e, para seu prazer, ela respondeu afirmativamente.

—Feche os olhos —disse em uma voz suave e melosa —inspire o ar ao nosso redor e ouça o silêncio da noite.

Fez isso mesmo. Fechou os olhos, embora apoiasse ainda mais a cabeça no peito do visconde, apertou suas mãos nos braços fortes e nus, percebendo o toque do pelo masculino e inspirando o perfume a que se referia.

—Em Londres não podemos respirar essa fragrância requintada —sussurrou em seu ouvido —ou ver tão claramente as estrelas no céu.

—Sinto muito —disse Anne, desenhando um grande sorriso —mas não posso vê-las porque me disse para fechar os olhos.

—Não precisa abri-los, posso descrevê-las para você —ele murmurou tão perto de seu lóbulo direito que seus lábios o tocaram enquanto falava. —São brilhantes, como pequenas bolas de fogo. Se espalham pelo imenso céu que temos sobre nós. Quando a luz do sol nos ilumina, não podemos vê-las, mas quando a lua chega, são mostradas em todo o seu esplendor. Algumas se agrupam para formar bonitas figuras. As chamamos de constelações, embora ainda não goste da palavra que usaram para descrevê-las dessa maneira —continuou naquela voz aveludada. —Quando criança, meu irmão Roger me ensinou alguns nomes, mas não posso nomear as oitenta e oito que existem. —Seus dedos se estenderam para os dois lados de seu seio, como se quisesse descobrir que as costelas permaneciam no lugar, e começaram a acariciá-la. Percebendo como estremecia, a abraçou com mais força e lhe deu um leve beijo no pescoço. Anne respondeu com um suspiro que descreveu como a música mais linda que já ouviu. —Quando viajo no navio e não consigo dormir, porque tenho que resolver algum problema importante, subo no convés, deito no chão e as fico contando.

—Quantas chegou a contar? —Perguntou, inclinando-se mais perto de seu corpo. Aquele beijo, tão procurado nos últimos dias, chegara com tanta gentileza que a fez suspirar de alívio.

Perfeição. Essa era palavra que definia exatamente o ajuste de ambos os corpos. Ele era tão alto que ela parecia minúscula ao seu lado. Seus grandes e musculosos braços envolviam facilmente seu corpo e acoplaram-no extraordinariamente ao seu torso e cintura. Sentia as vibrações silenciosas nas costas fruto das respirações e, embora fosse estranho, estava tranquila, calma e tão sossegada, que era isso que transmitia. Por essa razão, em questão de segundos, se encontrou em um estado de relaxamento e inacreditável êxtase. Seu passado, a maldição e toda a agonia que sofria antes de passar por aquela porta, desapareceram tão rapidamente que a sofredora e confusa Anne Moore morreu ao dar o primeiro passo em direção a ele, dando origem a uma nova mulher cheia de luz.

—Mil oitocentas e quarenta e nove —Respondeu.

Ouvindo aquele número exato, abriu os olhos, se virou para ele e procurou em seu rosto por algum sinal de escárnio, mas não encontrou. A seriedade era evidente, assim como sua veracidade.

—Por que chegou a esse número? — Ela perguntou. Abriu as mãos sobre o peito robusto e depois descansou o rosto, sentindo a ligeira mudança que sua respiração havia feito. Não era mais lenta, mas nervosa.

—É o ano em que nasci —Logan respondeu, descansando as mãos grandes nas costas, sentindo o toque suave do robe de Anne.

—Trinta e Dois... —murmurou enquanto fazia as contas de seus anos, descobrindo que tinham apenas cinco anos de diferença. Muito pouco para aqueles que viveram um século, mas muitos para aqueles que não superaram a adolescência.

—Sim —disse, acariciando-a de cima a baixo.

Como poderia se sentir tão vivo quando ela permanecia assim? Por que queria confessar tantas coisas que manteve por mais de três décadas? Estaria com medo? O homem que havia lutado bravamente com a fúria do mar, que usara sua espada para acabar com as vidas daqueles selvagens que queriam roubar seu navio, as escapadas pelas varandas das amantes antes da chegada inesperada do marido, temia que ela o rejeitasse? Não, não era a rejeição de Anne que o fazia temer, mas o que seu corpo lhe mostrava quando ela estava ao seu lado. Se acreditou que alcançou o êxtase em algum momento, estava errado. Anne, apenas com sua presença, com aquele jeito de apoiar seu rosto em seu peito e cair sob sua proteção, fez com que ele entendesse que nada do que chamara de felicidade era verdade. Novamente Roger estava certo. Tal como o avisou, quando se encontra a mulher que te faz ser você mesmo, as demais deixam de existir. E assim a havia recebido, tal como era: um cigano. Um homem que só podia estar completo ao ter contato com a mãe terra.

—Se arrepende?

A pergunta de Anne tirou-o de seus devaneios. Lentamente abaixou o rosto, até que seus olhos se encontrassem, e observou alguma confusão neles.

—De viver trinta e dois anos? —Respondeu brincando. —Espero respirar muito mais. — Não era a resposta que ela esperava, por isso abaixou a cabeça, como se estivesse envergonhada. Então suas mãos deixaram o tecido macio e as colocaram em ambos os lados de seu rosto, o levantou, até que seus olhos se encontraram novamente e falou, tão perto de sua boca que sentiu o calor de sua respiração roçar seus lábios. —Não posso, nem poderei, me arrepender de tê-la comigo, Anne. Quero deixar claro que é a única pessoa de que preciso agora e possivelmente... —Permaneceu calado para não prometer algo que ele próprio não podia garantir. No entanto, antes dessa batalha mental que travava, apenas seu coração queria gritar as palavras que estavam faltando. — Sempre — assegurou antes de beijá-la.

Anne sentiu, através daquele beijo tão apaixonado, desesperado e ganancioso, o anseio que o visconde tivera, o mesmo que dela. Era inconcebível que tivessem vivido tantos anos sem se conhecerem, que se odiassem e que, num piscar de olhos, declarassem que eram incapazes de se separar. Era tudo trabalho do destino, de Morgana ou desse poder cigano que estava fervendo nela enquanto estava ao seu lado? Independente do motivo, se deixou levar. Estendeu as mãos para o pescoço que havia sentido falta e acariciou com as pontas dos dedos. Esse pequeno toque causou um gemido rouco no visconde e, instintivamente, seus quadris se aproximaram, para responder que seu prazer era muito parecido com o dele.

—Que Deus tenha piedade de você, Anne, porque hoje não permitirei que alguém nos interrompa —disse antes de agarrá-la pela cintura, como antes, e, em seus braços, a levou para a área do jardim com o gramado aparado.

Sem parar para beijá-la, sem poder conter as mãos, a caminhada parou no lugar em que, desde que ela entrou dois dias atrás, queria fazer amor com ela. Jurou que era especial e aquilo confirmava. Nenhuma mulher tinha ido a Harving House e, claro, ninguém havia pisado naquela parte da casa, exceto ela. Era seu santuário e, depois que a tornar dele, seria um lugar sagrado e íntimo para os dois. Com toda a delicadeza que pôde encontrar naquele momento, baixou-a até que seus pés descalços tocaram a grama macia.

?Anne... ? sussurrou em seu pescoço enquanto suas mãos, tremendo pelo o desejo que corria através de cada partícula de seu corpo, desatavam o laço.

?Logan... ? ela respondeu, estendendo os braços para o chão, de modo que o robe de seda preta se soltasse rapidamente de seu corpo ardente.

?Repita o meu nome, querida ?pediu, deslizando lentamente a peça por seus ombros.

?Logan... ? pôde dizer apenas através de um sussurro.

?É tão perfeita, tão maravilhosa... ?continuou sussurrando.

Logan a acariciava lentamente, como se ela fosse uma figura de porcelana que pudesse quebrar a qualquer momento. Primeiro os dedos tocaram seus braços, fazendo os pelos eriçarem em seu rastro. Continuou com o pescoço, com o pequeno decote que mostrava a camisola e, sem conseguir desviar o olhar daquele rosto angelical, continuou com os seios. Percebendo que os mamilos tinham endurecido por ele, rosnou novamente com satisfação e desejo, crescendo em cada respiração, nublando sua visão. Era sua. Por fim, Anne seria sua... com dolorosa lentidão, fez seus polegares cercarem aqueles montículos pequenos e duros, excitados pela paixão. Aqueles pequenos toques causaram uma grande agitação em Anne e, para não cair, as mãos dela se agarraram a seus ombros maciços. Ouvindo-a ofegar, testemunhando o intenso calafrio, Logan a beijou novamente com tanto ardor que a devorou. Sua língua dançou ao ritmo da dela, dentro e fora daquela boca sensual, como se estivesse fazendo amor com ela. As mãos grandes se agarravam ainda mais àqueles montículos que cobriam sua palma. Apertou-os, espremeu-os como se fossem duas laranjas das quais extraia o suco. Aquele ato perverso a fez se arquear para ele, fazendo seus quadris, cobertos com a fina camisola, roçarem os dele, descobrindo assim que estava tão excitado quanto ela. Duro, como uma barra de aço, seu sexo reivindicava aquilo que já indicava com próprio.

Sem deixar de beijá-la, sem deixar de saboreá-la e invadi-la com sua língua, Logan afastou as mãos de seus seios e as baixou para colocá-las em seus quadris. Uma vez que sentiu em seus dedos a textura daquela carne sensual que ainda estava escondida pela roupa, apertou-a com a mesma força com que oprimira seus seios. Rude. Pela primeira vez em sua vida, ele não era suave, mas áspero, brusco.

?Logan... ?murmurou seu nome em uma voz tão suave que era pouco compreensível.

?Sim, Anne. Eu sei. Vou acalmar sua necessidade e assim também saciarei a minha ?ronronou em seu ouvido.

Sua língua traçou o pescoço longo e liso, seguido pelo pequeno decote e, enquanto suas mãos levantavam lentamente a camisola, sua boca pegou o mamilo direito sobre tecido. A pressão de seus dentes no botão ereto fez com que ela gemesse e jogasse a cabeça para trás. Aquele ato, aquele comportamento submisso, causou uma enorme explosão em Logan e sua parte selvagem adquiriu força. Com a voracidade de um homem que encontrou a mulher com quem viveria eternamente, se afastou um pouco e acabou de remover aquela roupa que o impedia de descobrir seu verdadeiro toque. O cabelo escuro de Anne se agitou quando passou a camisola sobre a cabeça.

?Deixe-me olhá-la ?pediu, observando como ela estendia as mãos para esconder certas partes de sua nudez. ?Não roube esse momento de mim, querida, porque o estou esperando desde que a conheci.

Sem desviar o olhar daqueles olhos azuis, atendeu seu pedido. Anne retirou a mão dos seios e do triângulo entre as pernas. Devia se sentir como uma prostituta, uma mulher sem moral. No entanto, ao contemplar o olhar faminto do visconde, todos os seus preconceitos desapareceram. Linda. Isso era o que os olhos de Logan expressavam. Que ela era a mulher mais bonita. Seu coração, louco, descontrolado, acabou deixando seu peito para se atirar nele e suas entranhas gritavam que precisavam desse homem dentro dela. Sem hesitar por um momento, estendeu as mãos para a camisa, soltou-a da calça e tirou-a com urgência. Como havia feito com ela, o cabelo do visconde dançou ao se separar daquela roupa.

?Logan... ?murmurou quando descobriu uma enorme cicatriz branca que ia do umbigo até o lado esquerdo do peito. Levou a mão direita em direção àquela ferida curada e a acariciou.

?Deus, Anne! ?Exclamou, jogando a cabeça para trás, sentindo o prazer daquele toque percorrer cada célula de seu corpo. ?Eu gosto disso...

?Gosta que te toque? ?Se atreveu a dizer, tornando-se uma mulher descarada e segura de seu poder de sedução.

?Sim ?Logan engasgou quando sentiu novamente aqueles dedos suaves traçando a marca que lembrou a ele quem realmente era e o que a mãe de sua mãe tentou fazer quando ela estava sangrando até a morte no seu nascimento. Graças à mulher que ele chamava de mãe, apenas a lembrança de uma morte rápida permaneceu em sua pele.

?Bem, quero fazê-lo ?disse se aproximando.

Descansou as duas mãos em seu peito nu e foi apalpando até que pudesse descrever a sensação daquela pele rude e a aspereza dos pelos que a cobriam. Ouvindo os suspiros de Logan, colocou os polegares nos dois mamilos, tão eretos quanto seu sexo, e os roçou.

?Jesus! ?Exclamou com um uivo desesperado. ?Continue Anne. Avance pelo meu corpo...

E foi o que fez. Acariciou cada centímetro de pele em seu peito e sorriu quando percebeu como a respiração do visconde se tornava mais angustiante. Ninguém o havia acariciado? Nenhuma mulher havia traçado seu corpo magnífico com as mãos? Sentindo-se afortunada, aproximou a boca e passou os dedos pelos lábios. Então notou que as palmas das mãos dele estavam sobre seus cabelos, amassando-os, tocando-os como se tentasse liberá-la de um penteado inexistente.

?Anne... ?murmurou seu nome, embora sua voz estivesse num tom tão fraco que a deixara perplexa.

Não. Ninguém o havia tocado daquela maneira e ela estava ardendo de vontade de continuar. Sua boca, ainda no esterno, moveu-se lentamente para o umbigo. Colocou os dedos no cós da calça e apoiando-se nele, continuou a beijá-lo até que os lábios se abriram para sua língua tomar o seu lugar. O gosto masculino de Logan a hipnotizou, a deixou louca a ponto de seus joelhos nus tocarem o chão. O queixo que sempre levantava quando queria mostrar orgulho tocava a excitação que ainda estava escondida sob suas calças. Queria, desejava, necessitava continuar e seguir sentindo aquele gosto masculino em sua boca. Vagarosamente, com uma lentidão enlouquecedora, suas mãos deixaram o cós para se colocarem no botão. Quando desabotoou, aquela ereção a recebeu.

?Quer me matar, certo? ?Logan se inclinou para ter uma visão perfeita de Anne. Ela era uma deusa? Porque era assim que a definia naquele momento. A deusa mais maravilhosa, mais ardente e ... sua.

?Minha proposta, querido visconde, é satisfazer o que tanto ansiamos... ?tentou dizer enquanto colocava as mãos sob as calças, sentindo o membro sedoso e duro.

?Bem... vá em frente... eu sou todo seu... ?murmurou, gaguejando. Fechou os olhos e deixou-se levar pelas suaves carícias de Anne.

Não queria comparar. Não precisava, mas sua mente não conseguia pensar em outra coisa senão encontrar as diferenças entre o sexo do visconde e o de Dick. Lá onde algumas vezes encontrara um membro flácido, em Logan era tão duro que sua vagina se contraía, como se quisesse evitar a invasão futura.

?Anne... ?murmurou ao notar os dedos acariciarem a glande. Molhada pela excitação, pelo desejo, pela chegada de um sonho.

Anne abaixou lentamente as calças e as ceroulas até ficarem nos joelhos. Como havia imaginado, não apenas seu sexo era robusto, mas suas pernas eram duas barras de ferro forjado no fogo do deus Hefesto[8]. Suas mãos deixaram o falo duro e se fixaram nos quadris masculinos. Selvagem e sem fôlego por tudo que a fazia sentir, a parte cigana de Anne brotou de suas entranhas e, sem hesitação, lambeu e provou aquela glande molhada pela excitação. A resposta de Logan apareceu imediatamente. Ele segurou o cabelo de Anne entre os dedos e insistiu para ela continuar. Foi o que fez. Ela continuou beijando e saboreando aquele membro masculino que, quando o colocava dentro de sua boca, tremia como o resto de seu corpo.

?Sim... ?Logan sussurrou, trazendo seus quadris para o rosto de Anne. Com os olhos ainda fechados, ouvindo a própria respiração e a intensidade do coração, suspirou profundamente, aceitando o prazer que ela oferecia com a boca e as mãos. Mas percebendo que esse estado de paixão o faria explodir antes que pudesse tomá-la, puxou o cabelo de Anne para trás, abriu os olhos e disse: ?Minha querida cigana, acaba de marcar seu destino e não é outro senão o de estar comigo.

Aturdida por esse comentário, ela se levantou, olhou para ele sem piscar, e quando ia perguntar por que ele havia dito tamanha loucura, Logan tirou a calça e a tombou abruptamente naquele manto de grama.

?Minha vez, querida ?disse antes de beijá-la com tanto fervor que sua alma saiu disparada pela boca até que ele se alimentou com ela.

Com as mãos percorrendo seu corpo nu, Logan concluiu a jornada no triângulo que ela tentara esconder. Com os dedos abriu as dobras esponjosas, molhadas de excitação, e procurou pelo clitóris. Quando o achou tão inchado, não demorou muito para atacá-lo. O corpo de Anne se contorceu, ela se mexeu tanto que parecia evitar os roces violentos, duros e dominantes.

?Deliciosamente minha... ?Logan sussurrou uma vez que puxou aquela boca voraz para longe dela. Colocou um dedo dentro da vagina de Anne e quando a encontrou tão escorregadia e apertada, a beijou novamente com ardor.

Aquela invasão, que era tremendamente prazerosa, fez com que ela arqueasse seus quadris em direção àquela mão, para que nunca parasse. E não parou. Enquanto o polegar brincava com o clitóris, um dedo ia e vinha até que a abria tanto que acabava introduzindo dois.

?Logan... ?soluçou, notando como seu corpo queimava e doía, pois, sua necessidade de ser acalmada, aumentava para limites indefiníveis.

?Quero beijá-la, lambê-la, provar cada canto do seu corpo ?assegurou enquanto beijava seu seio, sua barriga, seu umbigo e, quando ele abriu as pernas para ter uma visão perfeita do sexo feminino, lambeu os lábios. ?Isso é tudo meu ?disse antes de sua língua traçar as esponjosas saliências.

Anne estendeu as mãos para a grama e arrancou todo aquele emaranhado entre os dedos quando notou a boca do visconde ali embaixo. Fechou os olhos, levantou ainda mais os quadris e se arrastou pelo prazer que a boca masculina lhe oferecia. Ele a mordeu, absorveu toda a sua essência, penetrou-a com a língua tantas vezes que perdeu a pouca razão que ainda tinha. Como podia se converter em uma louca, viciada naquelas mordidas grosseiras, naquelas carícias tão dominantes e possessivas?

?Logan... por favor... ?implorou quando notou como sua barriga queimava, como a dor que sentia em seu sexo era tão horrível que não podia se acalmar, exceto por sua invasão.

Envolto em uma névoa de desejo, Logan abandonou a parte que ele tinha devorado até que se colocar em cima. Enquanto com uma mão acoplava seu sexo na frente dela, olhava-a atordoado. Seus olhos brilhavam como as estrelas daquele céu e sua respiração atingiu seu rosto aumentando sua temperatura.

?Anne... diga que você me quer, que anseia pelo que vou lhe dar ?pediu enquanto apoiava as palmas das mãos nos dois lados do rosto luxurioso e investia nela pela primeira vez.

? Eu quero você... e anseio pelo que vai me oferecer... ?ofegou quando sentiu a penetração.

?Repita meu nome. Quero ouvi-la toda vez que entro em seu corpo, toda vez que te fizer tremer, toda vez que lhe mostrar que você é ... minha ?exigiu com um tom cheio de desejo e algo que nunca sentira antes: ansiedade.

?Logan... Logan... ?disse, sentindo aquelas duras investidas, aquelas invasões dominantes e possessivas.

?Oh, sim, Anne! ?Gritou antes de beijá-la, antes de fazer seus quadris cavarem os dela, unindo-os, transformando-os em um único ser.

Aquele cigano que se forçara a permanecer distante parecia tão selvagem e desesperado que afastou o visconde, o homem que mostrara ao mundo para transformá-lo no cigano que negava ser. Sem parar de penetrá-la, de entrar e sair, sem conseguir separar a boca dos lábios que o recebiam com avidez, Logan sentiu como o corpo de Anne se abalava ao compasso dele. Tudo. Tudo ao seu redor desapareceu. Apenas uma pessoa permanecia, uma alma, uma mulher: ela.

?Te desejo tanto! ?Exclamou com um grito quando o clímax começou a subir.

?E eu ?respondeu, cravando as unhas nas costas dele com tanta força que elas perfuraram a pele áspera.

Então chegou. O corpo de Logan tremeu no final, derramando sua semente dentro de Anne, enchendo-a com ele, sua essência, sua masculinidade, sua vida. Com ar ofegante e sem deixá-la, ele se afastou um pouco para observá-la. Disse que ela era uma deusa? Bem, era. Anne era sua deusa, a única que poderia estar ao seu lado... sempre.

Uma vez que sua respiração relaxou, uma vez que seu sexo começou a recuperar seu estado de tranquilidade, se deitou ao lado dela e a segurou com tanta força que se tornaram um novamente.

?Você... eu... desejo... ?o visconde tentou explicar.

?Sou e serei apenas mais uma ?disse sem olhar para ele. ?O que aconteceu aqui é ... não quero que ...

?Não diga nada. Não quero que estraguemos este momento com definições absurdas ?sussurrou.

Logan lentamente beijou seu cabelo. Não precisava explicar nada. Ele já adivinhara o que ia dizer, por isso a única coisa que fez foi abraçá-la e confortá-la. Não deveria temer pela maldição, nem ficar longe dele pensando que morreria como seus dois pretendentes. Precisavam de tempo e estava disposto a dá-lo. Uma vez que ela admitisse que poderia haver mais do que encontros apaixonados entre eles, pediria que ela fosse sua para sempre. Só esperava que para consegui-lo não tivesse que confessar seu segredo...


XXIX


Durante a semana seguinte, eles agiram com grande discrição. Enquanto estavam acompanhados por Elizabeth ou Josephine, permaneceram distantes e suas condutas eram frias e um tanto elusivas. Mal falavam e, quando o faziam, suas conversas eram tão ínfimas que até suas irmãs bufavam do tédio que causava ouvir assuntos absurdos.

Nas manhãs, Anne avançava no retrato, enquanto Logan não parava de reclamar do terrível arrependimento que sofria por permanecer imóvel por tanto tempo. Enquanto não fosse salvo por uma das jovens Moore, continuava reclamando como uma criança pequena. Mas quando saia do lado dela, para ir socorrer a oportuna irmã, Logan lhe dava um olhar tão ardente que a fazia tremer e excitar ao mesmo tempo. Não havia dúvida de que o magnetismo que havia sido forjado entre eles era tão inquebrável quanto a lâmina afiada de Excalibur e administravam essa relação quando todos os habitantes da casa se retiravam para seus quartos. Se em algum momento pensaram que o fogo diminuiria com o passar do tempo, erraram. Cada vez que se encontravam, cada vez que estavam sozinhos, o vínculo entre eles se tornava mais forte, mais sólido. Esse relacionamento inesperado assustava muito Anne, visto que não havia noite em que não lutasse contra seus novos sentimentos e desejos. Por que tudo era tão difícil? Por que seu peito doía quando pensava que o fim viria em breve? Será que seria capaz de esquecer seus beijos, suas carícias, suas palavras e o tom tão solene que costumava dizer que pertencia a ele? Se não tivessem concordado que manteriam apenas um romance fugaz, admitiria, sem dúvida, que seus gestos, suas ações e aquelas frases que sussurrava quando faziam amor eram verdadeiras. Porque, mesmo que não devesse imaginar que eram reais, pareciam ser. Além disso, tinha que ser honesta consigo mesma e assumir que ao seu lado encontrava um bem-estar que não atingira com Dick. Agora entendia muitas coisas sobre paixão e desejo. Não havia comparação possível entre eles. Enquanto Dick usava isso para seu próprio prazer, o visconde oferecia-lhe tudo o que desejava e essa era a razão pela qual o medo aumentara... O que aconteceria no dia em que partisse para Londres com suas irmãs? Por que diabos ele não se comportava tão frivolamente quanto Dick?

?Não entendo porque as pessoas gostam tanto de contemplar o mar. ?O comentário de Elizabeth a afastou dessas conclusões tão terríveis quanto belas. Olhou de esguelha para ela e sorriu enquanto a observava enredar-se em uma luta incansável para manter o pequeno chapéu imóvel em sua cabeça.

Naquela manhã, como o visconde prometera na tarde anterior, fizeram uma excursão para a praia. Mas Eli não parava de reclamar desde que saíram. Josh, por outro lado, parecia feliz e animada. Caminhava ao longo da costa, a calça marrom enrolada até os joelhos e os pés mergulhados na água. O visconde permanecia ao seu lado. Anne desviou o olhar para eles e os observou em silêncio. Nunca imaginou que poderia se comportar de maneira tão familiar e simples com elas. Ele havia tirado o paletó, a gravata e o colete, deixando-os dentro da carruagem. Sua camisa branca estava tentando esconder o corpo esculpido por seus exercícios e trabalho no barco. Suas longas pernas vestidas com calças pretas de caxemira mostravam a força de um homem do seu tamanho. Como Josh, ele também enrolou as calças até os joelhos e a mão direita segurava os sapatos e meias para não os danificar com a água do mar. Anne suspirou ao ver como a brisa suave o atingia e como seu cabelo, puxado para trás em um rabo de cavalo, estava começando a se soltar daquela tira de borracha para apresentar uma imagem tão selvagem quanto erótica. Desejava, com todas as suas forças, ser aquela que passeava ao seu lado, mas como haviam feito até agora, se quisessem continuar com o relacionamento que haviam acordado, deveriam continuar com o plano, que consistia principalmente em não mostrar a afeição que sentiam e continuar se vendo em segredo.

?Segundo ouvi dizer, o sal é bom para a pele ? comentou Howlett.

O valete, depois de criar um elo emocional com Elizabeth, foi autorizado a acompanhá-la a todos os lugares que visitava e, é claro, a praia também estava dentro de suas novas tarefas.

?Está seguro disso? ?Eli o recriminou mordaz. ?Porque nunca me senti tão suja. Comi um sanduíche cheio de terra imunda, tenho o vestido, as meias e os sapatos manchados de areia, as roupas grudam no meu corpo como se eu fosse um agricultor que trabalhou no campo durante um dia intenso de verão, o vento está estragando meu penteado e não suporto esse cheiro horrível ... ?acrescentou com uma careta de desagrado.

?Garanto que é muito melhor do que parece ?Howlett assegurou se sentando ao seu lado para evitar que a brisa marinha açoitasse sua nova amiga até arrancar o belo chapéu. ?Se tivesse navegado, como fiz, cercado por homens fedorentos, mal-humorados e indelicados, certamente teria uma percepção mais favorável dessa excursão.

?Que atrocidade! ?Eli exclamou, horrorizada ao se imaginar em um navio cercado por marinheiros malcheirosos, cuja única finalidade era fazer suas necessidades fisiológicas no convés do navio.

?O que não é tão horrível? ?Perguntou o jovem divertido.

?Como pôde suportar isso? ?Eli estalou enquanto lutava para manter a saia do vestido verde-esmeralda limpa.

?Bem, o visconde concordou que ficasse em sua cabine o tempo que estipulasse necessário. Então pode deduzir que passei semanas admirando trajes que não costumava usar ? explicou serenamente.

?Por que diz que não costumava usar? ?Elizabeth estava interessada, cansada de lutar contra o vento, decidiu tirar o chapéu de uma vez por todas.

?Porque os marinheiros não andam vestidos. Por mais que me pareça terrível confessar, esses tipos de homens geralmente andam seminus ?comentou Howlett divertido.

?Seminus? ? Eli soltou chocada. ?O visconde também se tornou um deles?

Não era capaz de imaginar Logan adotando uma atitude tão inapropriada para um cavalheiro de sua linhagem. Que os outros agissem de maneira selvagem, poderia aguentar, mas... um aristocrata, um futuro marquês? Jamais! A classe alta tinha que mostrar sua condição e seu poder onde quer que fossem.

?Claro! ?Respondeu Howlett com um sorriso travesso. ?E tenho que declarar que quando chegávamos a um novo porto, todas as mulheres que o contemplavam rezavam para que essa figura bárbara e aristocrática as escolhesse como amantes.

?Howlett! ?Elizabeth o repreendeu. ?Como pode ter uma linguagem tão ousada? Não sabe que deve manter em segredo o que acontece no quarto do seu mestre?

?Não insinuei quantas passaram pelos quartos, minha querida senhorita Moore ? continuou sarcasticamente ?a única coisa que admito é que o visconde teve uma vida muito intensa...

Entre risadas, os dois terminaram a conversa e decidiram dar um passeio longe do mar e do arenito. A única que não riu do comentário sagaz foi Anne, que cerrou os punhos e enterrou-os na areia para que nenhum deles pudesse vê-los. Mulheres? Quantas mulheres visitaram a cabine de Logan durante suas viagens? Por que andava seminu? Não sabia a definição do termo pudor? Mostrava seu corpo lindo como se fosse um galo cercado por galinhas? Suas bochechas começaram a ficar vermelhas e seu pulso acelerou. Ciúme. Pela primeira vez em sua vida, um ataque de ciúmes tomou conta dela. Odiava essas mulheres e o odiava por ser um conquistador de corações. «É isso o que é, Anne Moore, outra mulher que se rendeu ao seu poder de sedução. No entanto, foi você quem se impôs essa condição» lembrou a si mesma. Sim. Era isso com o que haviam concordado: dois amantes que vivem e desfrutam de um tempo de liberdade e paixão até que chegasse o fim.

Sem tirar os olhos do visconde, suspirou profundamente. No fundo as entendia. Apesar de odiá-las com todas as suas forças, também as entendia. Quem não sonharia em deitar com um homem que emanava poder e selvageria? Quem não gostaria de ser beijada por aquela boca ou acariciada por aquelas mãos fortes? E ... quem não esperaria gemer de prazer quando estivesse possuída daquela maneira abrupta e feroz? Nenhuma mulher deveria se privar de tal prazer. Logan nasceu para amar e se dedicava a isso.

Quando estava prestes a desviar o olhar deles, ele a olhou e, ao observá-la tão rígida e irritada, levantou a sobrancelha esquerda em questionamento. Mas Anne, em vez de desviar o olhar, como sempre fazia, o manteve fixo, transmitindo através dos olhos a raiva que sentia e não podia diminuir facilmente.

?Acho que é hora de irmos ? Logan comentou com Josephine quando sentiu as emoções díspares de Anne. Sentou-se na areia e, depois de limpar os pés, calçou as meias e os sapatos. Se levantou, desenrolou as calças e olhou para ela novamente.

Não gostou da praia? Não gostou da vista daquele lugar lindo? Talvez tenha errado ao concluir que poderia apreciar a beleza daquela área e, em vez de ter um dia maravilhoso, estava em uma terrível aflição.

?Tão cedo? ?Josh choramingou, tentando fazer com que o soluço infantil a ajudasse a fazê-lo mudar de ideia. Mas, observando a atitude do visconde, sentou-se, calçou as meias e as botas curtas. ?Ainda não me explicou como derrotou aqueles terríveis assaltantes ?insistiu quando se levantou e ficou ao seu lado novamente.

?É uma história bastante inapropriada para uma jovem da sua idade ? disse a ela como desculpa enquanto caminhava em direção a Anne. Ela, vendo que eles estavam se aproximando, se levantou rápido, deu uma batidinha na saia de seu vestido marrom e se virou, lhes dando as costas. O que diabos estava errado? O que aconteceu durante sua breve ausência para fazê-la sentir-se tão desconfortável? ?Além disso, o verdadeiro protagonista daquele momento foi Giesler. Se ele tivesse vindo teria contado sobre esse episódio atroz...

Naquele exato momento, ficou consciente de que haviam se passado mais de dez dias e que não ouvira notícias de seu amigo. O que teria acontecido com ele para não responder? Continuaria atormentando a vida daqueles homens que haviam humilhado Mary? Ou ficara em Londres porque não queria sofrer outro ataque como o que sofreu na casa dos Moore? Não, não poderia ser isso. Na carta que enviara, deixou muito claro quais as irmãs que viajariam com Anne e explicara que a mulher que jogou os tubos nele, como se fossem dardos venenosos, ficaria em Londres. Então... por que não aceitou o seu convite?

?O Sr. Giesler é o homem a quem eu apontei a minha arma, certo? ?Josh, envergonhada de lembrar o que fez naquele dia, colocou as mãos atrás das costas e passou pelo visconde com os olhos fixos no chão.

?Por que fez isso? ?Logan perguntou, incapaz de tirar os olhos de Anne, que estava andando em direção à carruagem.

Ofendida, irritada e bastante soberba. Isso declarava sua atitude estranha e súbita. Agora, mais do que nunca, queria encontrar um espaço para conversar com ela e descobrir o motivo desse comportamento arrogante.

?Porque ele entrou em nossa casa e não desviou o olhar de Mary por um único segundo ? disse com um longo bufo.

?Teria atirado nele? ?Perguntou, esboçando um enorme sorriso.

?Sabe que ele não foi capaz de tirar os olhos do corpo da minha irmã? ?Ela bufou indignada. ?A mamãe sempre a avisa para não sair do quarto de camisola, mas ela não presta atenção a ninguém e naquela manhã apareceu no topo da escada com uma aparência inadequada.

?Quer dizer...? ?Parou, olhou para ela e riu.

Grande patife! Essa parte da história ele não contou, guardou para si mesmo. Disse que ela jogou tudo o que estava ao alcance, mas esqueceu de contar sobre o momento em que descobriu a silhueta da irmã na camisola. Seria seda transparente como as que Anne usava? Se assim fosse, já adivinhava por que Philip não respondeu ou apareceu. Estaria babando como um cachorro atrás da erudita Moore.

?Sim ? Josh respondeu, visivelmente irritada. —Por mais que pedisse para parar de olhar para ela, aquele cavalheiro não me dava ouvidos.

?Deveria ter atirado nele! ?Logan exclamou antes de bagunçar aquele cabelo loiro tão claro.

?Acredita nisso? ?Josh perguntou indecisa.

?Sim, acredito nisso. Porque temo que ele continue a vê-la de maneira tão desrespeitosa pelo resto de sua vida. Um homem é incapaz de tirar da mente a imagem de uma bela mulher de camisola ?assegurou enquanto continuava a caminho da carruagem.

?Bem, da próxima vez prometo que irei deixá-lo cego ?disse a jovem. Comentário que causou outra risada alta do visconde.


***


Não estava enganado, Anne estava com raiva e não tinha ideia do motivo. Quando os cinco se acomodaram na carruagem, ela não desviou o olhar da janela. Três horas com o pescoço tão esticado lhe causariam uma dor terrível. Mas não respondeu ou contestou as míseras perguntas que fez. Foram suas irmãs e Howlett quem, ante seu silêncio, responderam às suas questões. O que diabos estava acontecendo? O que havia perdido enquanto caminhava com Josh na praia? Não lhe pareceu certo ter essa pequena liberdade? Ela, melhor do que qualquer outra pessoa, deveria entender que entre a jovem e ele se criara uma relação afetiva muito semelhante à de irmandade. Além disso, seu principal objetivo com Josh era que reconsiderasse sobre os planos futuros que havia feito. Era por isso que contava a ela sobre as batalhas e dificuldades que sofrera durante suas viagens. No entanto, Anne não parecia satisfeita, pelo contrário. Se mostrava tão irascível que estava prestes a se levantar, agarrá-la pelos ombros e gritar o que diabos lhe acontecia.

?Finalmente! ?Exclamou Elizabeth alegremente quando avistou os telhados de Harving House. ?Lembre-me de não pisar em uma área costeira novamente. Foi horrível ...

?Não gostou? ?Logan perguntou, tentando encontrar algum sinal para explicar se era por isso que Anne estava tão distante.

?Não! ?Eli respondeu rapidamente. ?Prefiro mil vezes mais a pesada neblina de Londres do que a brisa úmida e pegajosa daquele lugar.

?Pois eu estou encantada! ?Josh disse cruzando os braços sobre o peito. ?Admito que, no início, esse ar marinho me impediu de respirar. Mas com o passar do tempo meu corpo se adaptou facilmente.

?Cheira a peixe! ?Eli a repreendeu, cobrindo o nariz com dois dedos. —Realmente gosta de cheirar assim?

?Salitre ?Logan o corrigiu. ?É chamado salitre e garanto que é muito bom para a pele. Em minhas incontáveis viagens de barco, expus meu corpo àquelas quentes brisas do mar e endureci tanto que, para enfiar uma faca em mim, teriam que exercer uma grande pressão.

O riso de Josh, Eli e Howlett encheram o interior da carruagem, só que Anne não achou aquela explicação engraçada. Enquanto os outros mostravam uma atitude relaxada, ela se aproximou ainda mais da janela, franziu a testa e bufou como um cavalo depois de uma longa caminhada. Isso acentuou as suspeitas de Logan sobre sua raiva. O que havia dito para deixá-la tão zangada?

?Permita-me ajudá-la, senhorita ?disse o visconde a Elizabeth quando a carruagem parou na entrada da residência. Estendeu a mão e ela aceitou encantada.

?Howlett, vem comigo? ?Perguntou ao valete quando ele desceu atrás dela. ?Necessito de um bom banho para remover toda a areia que ficou sob este vestido feliz.

?Será uma grande honra ?disse o rapaz. ?Mas milorde irá precisar...

?Pode ajudá-la. Embora não entenda por que estou pagando uma criada se é você quem faz todo o trabalho ?Logan resmungou em aparente raiva.

?Ela não tem ideia de como encher uma banheira! ?Disse Howlett com horror. ?E se não fosse pelo bom gosto da senhorita Moore, teria uma aparência decrépita. Acredita que tinha decidido fazer uma trança em vez de um coque baixo? Isso é inconcebível se tiver que usar um chapéu!

Depois dessa exposição, que deixou a tendência afeminada de Howlett ainda mais clara, Logan sorriu e acenou com a cabeça, permitindo que o criado se tornasse a dama de companhia de Elizabeth. Quem teria medo de um homem que sonha com roupas de seda e penteados ideais?

?Josh? ?Chamou à jovem quando ele apareceu ao lado dela.

?Também tomarei um longo banho. Depois, se não se importar, visitarei o prédio anexo. Quero continuar praticando com a espada.

?Não é melhor que pratique primeiro e tome seu banho depois? Não acho que Elizabeth suporte outro cheiro além do que emana o sabão ?disse ironicamente.

?Vendo desse modo... e como não quero ouvi-la reclamar de novo... ?Josh disse com os olhos apertados. ?Sim, será melhor fazer assim. Vai me acompanhar? ?Acrescentou com entusiasmo.

?Hoje não posso, tenho que esclarecer uma questão muito importante. Mas se tiver algum problema, Kilby o resolverá ?disse olhando para Anne, que ainda não havia saído do interior da carruagem e permanecia olhando pela janela, como se a viagem não tivesse chegado ao fim.

?Então... ?olhou para a irmã, depois para o visconde, e sem pensar em nada além da diversão que teria ao empunhar as gloriosas espadas espanholas que Logan mantinha em um canto da instalação, correu para a entrada principal.

?Ficará o resto do dia aí dentro? ?Perguntou uma vez que ficaram sozinhos.

?Existe outra alternativa melhor? ?Murmurou sem olhá-lo.

Não. A raiva não havia minado. Talvez tenha diminuído algo por um breve período de tempo, até que ele falou sobre expor seu corpo à brisa do mar. Como ele podia ser tão fanfarrão?

?Existem várias... ? Logan comentou colocando as mãos nos dois lados da porta e inclinando-se para ela, para que o cocheiro não o ouvisse. ?Tem a opção de sair ou... Posso entrar, fechar essa abençoada porta e ordenar ao meu cocheiro que viaje pela minha terra enquanto fazemos amor aí dentro. Qual prefere, querida?

?Oh, tenho certeza que deve estar acostumado a fazer esse tipo de coisa em um lugar tão inapropriado! ?Murmurou com raiva. Cruzou os braços e manteve o corpo tão rígido que nem uma flecha passaria.

Logan estreitou os olhos até que eles se transformaram em pequenas linhas. Qual foi o comentário? Parecia que era... não poderia ser! Ela não poderia estar sentindo ciúme! Por causa do quê? Nunca falou de nenhuma mulher enquanto estava presente. Era mais, todas haviam desaparecido de sua memória uma vez que Anne se rendeu a ele. Então... quem poderia ter dito a ela sobre isso? Sua mente, em questão de segundos, pesou todas as opções possíveis e, exceto pelo tempo que Howlett permaneceu com elas, não havia outra possibilidade... teria sido tão desdenhoso que revelou em alguma conversa certos segredos que nem ele mesmo fez público?

?Jeffry! ?Gritou para o cocheiro.

?Milorde? ?Perguntou, virando a cabeça para ele.

?Deixe a carruagem nesta área da entrada, a colocará no estábulo mais tarde ?disse sem tirar os olhos de Anne, que encolheu os ombros ao ouvir o tom de voz que usava.

?Como quiser ?respondeu o criado apressadamente. Desceu o mais rápido que pôde e caminhou até a porta de serviço sem olhar para trás.

?Bem, querida. Estamos completamente sozinhos. Quer que mostre a diversão que posso lhe oferecer aí dentro? Como bem disse, tenho muita experiência em dar prazer numa cabine tão inapropriada ? retrucou, colocando a sola do sapato de seu pé direito na escada de metal.

?Não se atreva! ?Anne gritou antes de abrir a porta do lado dela e sair fugindo.

?Oh sim! Sim, posso pensar em milhões de coisas que quero lhe fazer! ?Ele clamou antes de atravessar a carruagem por dentro e correr atrás dela até alcançá-la.


XXX

?Solte-me! ?Anne gritou quando os braços de Logan envolveram sua cintura.

?Nem pensar! ?Respondeu levantando-a do chão, fazendo com que seus pés e a saia de seu vestido se agitassem no ar. ?Quero descobrir por que está tão furiosa ?disse levando-a para os estábulos.

?Furiosa? Eu? Não é verdade! ?Mas seu tom de voz denotava exatamente o contrário.

Espremida entre os braços fortes e resistentes, lutava para se afastar daquele corpo que a queimava, embora suas peles ainda não tivessem sido tocadas. No entanto, quanto mais esforço fazia para se separar, mais ele a agarrava contra si mesmo.

?Não lute, querida... ? sussurrou em seu ouvido depois de cruzar a entrada dos estábulos. ?Essa batalha não poderá ganhar... ?acrescentou reticente.

Batalha? Pensava que havia começado uma guerra contra ele? Bem, estava enganado! A única batalha que travava tinha apenas dois adversários e estes eram a mesma pessoa: ela. Na realidade, sua mente e seu coração lutavam um contra o outro para superar um sentimento que ela não podia suportar, assim como não devia admitir o súbito ciúme que sentiu quando ouviu sobre a vida libertina que teve antes que ela aparecesse. E, para ser franca, não podia imaginar que manteria esse estilo de vida assim que ela fosse embora. E havia a questão desse terrível conflito! Querer, mas não poder. Porque não tinha dúvidas sobre o que queria, embora também estivesse ciente do que não podia. Como superaria outra morte? E não seria qualquer morte senão a dele! O homem que amava! Essa afirmação oprimiu seu peito até que ficou sem fôlego. Como podia ter pulado sua primeira norma? Não teve o suficiente com Dick? Em que parte de suas memórias estavam aquelas lágrimas, episódios de tristeza e culpa?

?Anne... ?Logan disse quando sua respiração mudou drasticamente. Ela não estava mais agitada, mas quebrada, como se estivesse chorando. Será que a machucara ao pegá-la com tanta força? Tinha sido tão bruto? Muito lentamente, enquanto se arrependia dessa atitude bárbara, colocou-a no chão até que ficasse de pé sem perder o equilíbrio. ?O que há de errado contigo? ?Acrescentou. Anne virou-lhe as costas e ele, para apaziguar a repentina tristeza, colocou as mãos gentilmente em seus ombros. ?O que eu fiz?

?Nada. Não fez nada ?comentou sentindo a pressão das grandes palmas em suas omoplatas.

?Bem, se não fiz nada, olhe para mim! ?Pediu. Pressionou os dedos no vestido de Anne, virou-a para ele e quando viu as lágrimas escorrerem pelo rosto, se sentiu o homem mais perverso do mundo. ?Anne... me diga por que chora.

Tirou as mãos dos ombros e colocou-as com muita ternura sobre suas bochechas, molhadas com aquelas lágrimas. Com uma lentidão surpreendente, as removeu com os polegares. Aquela demonstração de afeto fez Anne olhá-lo e, percebendo sua preocupação por ela, admitiu com amargura que a guerra acabara de ser vencida pelo seu coração.

?Se Howlett comentou algo que a feriu, juro que irei procurá-lo e cortar sua língua ?disse com a voz de um homem que navegava pelos mares e comandava um navio com mais de cinquenta marinheiros.

?Howlett não é culpado por.... ?Tentou explicar, mas naquele momento ouviu um barulho sobre eles. Anne encolheu os ombros, como se esperasse que algo batesse em sua cabeça, mas nada aconteceu exceto que ele a puxou para perto e a abraçou. ?O que foi isso? Perguntou sem tirar o rosto do peito de Logan.

?Astennu ?respondeu sem deixá-la. ?Acho que ele e sua família não receberam bem a nossa visita repentina.

?Astennu? ?Perguntou, virando o rosto devagar.

Logan virou-a, fazendo com que a bainha de seu vestido marrom arrastasse no feno espalhado pelo chão, reclinando-a sobre o peito, e enquanto o braço esquerdo circundava sua cintura, levantou a mão direita para apontar para o teto estável, bem onde algumas aves se alinhavam em uma das vigas de madeira. Por um momento, os olhos daqueles animais olharam para ela com desconfiança, mas no segundo seguinte moveram os pescoços e grasnaram como se aceitassem sua presença.

?Apresento meu fiel amigo Astennu e sua amada família ?disse com orgulho. —Como deve ter adivinhado, Astennu é o maior e ele tem aquela mancha branca no peito ? esclareceu. ?O próximo a ele é Honda, sua parceira e os outros três são seus filhos: Fhas, Shadow e Kus.

?Corvos... ?sussurrou tão atônita que não sabia ao certo se havia dito a palavra corretamente.

?Sim, de fato, são cinco corvos ?confirmou. ?Há pessoas que são felizes criando falcões, águias ou pombos..., contudo, não tive a oportunidade de pensar que aves iria querer abrigar em Harving porque Astennu já estava aqui quando apareci e, sem pedir permissão, decidiu ficar para sempre. ?Esperou por uma pergunta, um comentário sobre o quão estranho era para ele se apegar àqueles tipos de animais que representavam tantas coisas sinistras, mesmo que Anne não dissesse nada. Permaneceu em silêncio, olhando para os pássaros e respirando tão rápido que qualquer um concluiria, ao vê-la daquele jeito, que havia atravessado suas terras correndo. ?Não vão machucá-la. ?Garanto que são muito dóceis e afetuosos ?acrescentou envolvendo o outro braço em volta de sua cintura. A puxou para mais perto e deu-lhe um beijo gentil no pescoço.

?Afetuosos... ?repetiu automaticamente.

?Nunca machucaram ninguém apesar daquele olhar feroz ?persistiu, notando que ela movia seu corpo inquietamente. ?A única coisa que deve temer é de ouvi-los cantar. Já gritei milhares de vezes que eles não são rouxinóis, mas são tão orgulhosos que não conseguem admitir isso ? disse ironicamente para que ela acabasse relaxando. Por que os corvos a assustavam tanto? Sofreu algum ataque em sua infância?

?Como... como...? Porque...? Onde o encontrou? ? Enfim perguntou.

?Quando comprei Harving House estava praticamente destruída pela passagem do tempo. Seu ex-dono não queria reconstruí-la porque, no fundo, não sentia nenhum apreço por esse belo lugar. Talvez doesse lembrar a época em que morava aqui com sua falecida esposa. Então ele saiu e a deixou completamente negligenciada.... Imagino que os pais de Astennu pensaram que seria o melhor lugar para se aninhar, porque não encontraram nenhum ser humano por muitos anos. No entanto, no dia em que a adquiri, e embora pudesse desmoronar a qualquer momento, decidi passar uma noite inteira calculando a deterioração da estrutura e ponderando o quanto meu investimento aumentaria. Minha presença indesejada deve ter assustado aqueles pais quietos e deixando-o no ninho. Não sabia que existia até que, cansado de investigar, procurei um quarto na casa onde o telhado não tinha sido destruído. Espalhei um cobertor sobre o chão imundo, coloquei meus braços sob a cabeça e olhei para cima. Foi quando descobri um enorme ninho. Essa casa tinha sido desabitada durante anos e era normal que os pássaros procriassem nas áreas onde os seus futuros descendentes estariam protegidos das adversidades climáticas. Com os olhos fixos naquele ninho, pensei em todos os problemas que deveria enfrentar. Várias horas se passaram até que o sono se apoderou de mim e fechei meus olhos. Quando estava prestes a dormir, ouvi um barulho. Levantei rapidamente e procurei a causa daquele som. Inspecionei a casa inteira com determinação, amaldiçoando a possibilidade de que alguns roedores tivessem procriado nas poucas paredes firmes que sustentavam a velha casa. Posso suportar as penas de milhões de aves, mas não consigo tolerar esses transmissores de epidemias ?revelou com certa repulsa. —Depois de confirmar que não havia nada e que talvez eu tivesse notado o rangido de alguma madeira velha que ainda sustentava a casa, voltei para o quarto, deitei e o barulho reapareceu. Voltei a olhar para o ninho e naquele momento um galho caiu no chão. ?Logan sorriu e suspirou profundamente. ?Escalei a parede, que estava esburacada, como se estivesse subindo no mastro do meu barco. Quando meus dedos o alcançaram, o peguei com cuidado e.... ali estava aquele patife! Ele quase não tinha penas e estava cercado por mais três ovos. Me senti muito culpado por tê-lo separado de seus pais com tão pouco tempo de vida... ?permaneceu em silêncio. Não era sensato confessar a empatia que sentiu quando o contemplara tão só, tão abandonado e o terrível desespero que percebeu no pequenino quando não teve mais a proteção de seus pais. ?Uma vez que o deixei no chão, ele olhou para mim e abriu o enorme bico esperando que o alimentasse. Naquele momento, algo estranho surgiu em mim e, sem demora, por um miserável segundo, saí para o jardim e procurei algo que pudesse servir de alimento. Garanto que a primeira vez que tem entre seus dedos um verme repulsivo cortado em vários pedaços, não é capaz de levar nada à boca em vários dias ?apontou divertido.

?E ele sobreviveu... ?concluiu Anne com um suspiro. Como podia ser verdade? Tinha que ser uma alucinação! Estaria louca? Porque só assim poderia afirmar que esse animal sortudo era o que aparecera em seus sonhos. A mancha em seu peito, o tamanho de suas asas, o brilho de sua plumagem e ... aqueles olhos. Mas sua mãe lhe dissera que as ciganas sempre viam corvos em suas mentes para direcioná-las ao homem que esperavam. No entanto, não falou sobre a precisão entre o corvo de seus sonhos e o real.

?Isso mesmo ?disse virando-a novamente para ele. ?E formou sua própria família. Astennu se tornou protetor de Harving enquanto estou ausente. Graças a ele e sua família não tenho nenhum verme repulsivo vivendo nos arredores e devido às lendas que existem sobre eles, muito poucas pessoas querem invadir uma propriedade onde vive uma família de pássaros tão sombrios.

?Os ciganos geralmente vivem em harmonia com eles e.... ?tentou dizer.

?Anne, não só os ciganos os respeitam. Há culturas que os reverenciam e explicam milhares de significados quando descobrem sua presença. No caso de Astennu, ele decidiu ficar ao meu lado, porque aqui tem tudo o que deseja para ser feliz. ?Se desculpou rapidamente.

Estava certa. Os de sua etnia adoravam os corvos porque, de acordo com a história, a mãe dos ciganos ordenou que esses pássaros protegessem as crianças que nascessem de seu ventre. E era assim que se sentia quando estava em Harving House. Astennu voava sobre ele toda vez que saia para montar por sua terra. Observava o que seus olhos não podiam ver e à noite, quando todos descansavam, seu amigo descansava no parapeito da janela, olhava para a imensidão das terras e guardava seus sonhos.

?Mas vamos parar de falar sobre esse sujeito descarado ?comentou antes de agitar os braços para que os pássaros voassem pelo estábulo até que fossem embora. Quando não haviam mais testemunhas para observá-los, acariciou a face esquerda dela com a frente da palma da mão direita. ?Quero saber o motivo pelo qual ficou com raiva hoje. Não gostou do passeio? Sentiu a mesma repulsa que Elizabeth pela praia? Pensei que acharia agradável, é por isso que prometi a....

Anne não permitiu que ele terminasse aquela exposição absurda, pôs as pontas dos sapatos no chão e silenciou-o com um beijo. No início, Logan mostrou alguma confusão sobre aquela explosão apaixonada, mas quando sentiu os dedos de suas mãos segurando as abas de sua camisa, puxando-o para seu corpo, abraçou-a e respondeu a esse beijo com uma avidez feroz.

Aquele contato sensual se tornou mais intenso quando Anne abriu os lábios, permitindo que sua língua voraz a invadisse, devorando-a. Sua mente ficou em branco. Apagou a história de Astennu e o desejo de descobrir qual tinha sido o motivo de sua raiva. Ele a queria. Sim, ele a queria tanto que tudo ao seu redor desaparecera, exceto ela. Lentamente, Logan levou suas mãos para os botões do vestido de Anne e quando seu beijo ficou mais intenso, mais possessivo, desabotoou-os com urgência. Tinha que tê-la, tinha que acalmar sua necessidade, tinha que fazê-la sua tantas vezes quanto pudesse, porque estava determinado a marcá-la, selá-la com tal força que ela aceitaria, de uma vez por todas, que eles foram feitos um para o outro.

?Se eu soubesse que a história daquele bendito corvo a transformaria em uma deusa apaixonada, teria lhe contado antes ?disse enquanto deslizava o vestido sobre seus ombros e beijava as áreas de sua pele que ficavam nuas.

?Não foi exatamente a história dele... ?Anne murmurou, colocando os dedos na camisa para desabotoá-la com ousadia.

O desejo que Anne mostrava ao despi-lo o deixou louco, então rasgou os botões do vestido sem desabotoar. Caiu no chão, fazendo com que alguns ramos de feno levitassem.

?Ah não? Então, o que foi? ?Ronronou antes de apertar os dentes em seu ombro esquerdo e mordê-lo para fazer uma grande marca.

?Você! ?Exclamou, sentindo a mordida em sua pele.

Anne jogou a cabeça para trás, deleitando-se naquele ato selvagem. Qualquer mulher recatada teria se afastado e o repreendido por deixar uma marca do que havia acontecido entre eles, mas ela não era uma mulher recatada, era uma cigana que mergulhava no abismo de uma paixão sem precedentes. Seu destino estava marcado. Todos os sinais apontavam para ele como a pessoa que esperava. No entanto, apesar de suas convicções, ainda havia um ponto a ser lembrado: sua origem. Algum dos ancestrais de Logan teria sido cigano? Seria possível que ele tivesse uma mísera gota de sangue cigano?

?Anne... ?sussurrou quando notou uma certa tensão nela, ?te quero tanto... eu preciso de você... ?Suas mãos caíram, assim como seu corpo. Ele se ajoelhou e, ajudando-a, fez com que ela levantasse uma perna primeiro e depois a outra, deixando-a em uma camisola branca tão transparente que podia admirar aquela figura feminina que adorava. ?Você é linda, meu amor ?acrescentou, colocando as grandes palmas das mãos nos quadris e aproximando o rosto daquele cabelo escuro com uma forma triangular em sua virilha, que exalava o perfume mais hipnótico do mundo. Levou o nariz para aquele lugar desejado e respirou fundo, preenchendo-se dela, do seu ardor, do seu aroma sexual. ?Morrerei se não a possuir, se não a beber, se não puder... saboreá-la de novo.

Encantada por aquelas palavras ousadas, Anne colocou as mãos no cabelo preto de Logan, emaranhou os dedos nele e o puxou para mais perto da parte que adorava. Sua respiração se agitou quando sentiu as mãos de Logan na roupa e como a fez subir muito suavemente por seu corpo.

?Tudo isso é meu, só meu ?assegurou uma vez que a camisa estava fora de vista. Com uma ternura muito controlada, acariciava seus quadris, coxas e pernas de cima a baixo, enquanto seu nariz continuava a inspirar aquela área feminina que devoraria em breve. Lentamente, levantou a perna esquerda de Anne e colocou-a em seu ombro, se permitindo observar aquele sexo delicioso que já brilhava de desejo. ?Coloque as mãos na parede, querida, vou saciar a minha sede ?disse antes de poder acariciar as dobras voluptuosas e úmidas com a palma da mão direita.

Anne, depois de obedecer a sua ordem, o olhou extasiada e soltou um gemido quando descobriu como ele estava lambendo a mão que tinha passado por seu sexo. Sua essência... Ele decidiu saborear todo o suco que emanava de seu desejo por ele e não desperdiçaria uma única gota.

Quando a língua substituiu a mão, fechou os olhos, abriu a boca ligeiramente para poder respirar e pregou as unhas na parede de madeira. Louca! Sim, essa era a palavra que melhor a definia. Mas... quem permaneceria sã, enquanto sentiria como a língua de seu amado produzia tanto prazer que era incapaz de suportar?

?Está tão molhada, tão preparada para mim ?Logan apontou quando substituiu sua boca pelos dedos. ?Te quero assim, Anne, aceitando minhas carícias e respondendo com aquele fervor que me transforma em um louco ?acrescentou antes de voltar para as suas pernas.

Cravou os dentes nos lábios esponjosos, ouviu como ela gritava e sentiu o tremor daquele corpo submetido a um frenesi contínuo. Beijou-a com paixão, apreciando o perfume que emanava, em êxtase ao ouvir os murmúrios que Anne fazia enquanto lambia com ansiedade a entrada daquela vagina que se contraía e dilatava com seus ataques.

?Logan... ?disse de um jeito tão erótico, que seu sexo reagiu com tamanha intensidade que estava prestes a gozar.

Como era possível? O que ela tinha que não encontrara em outras mulheres? Nenhuma o deixara tão duro, tão excitado que, com o simples roce em suas calças, pudesse alcançar o clímax mais arrebatador.

Desesperado, abriu mais a boca e procurou o clitóris com a língua. Quando o notou, sentindo aquela pequena proeminência roçar na ponta de sua língua, brincou com ele até perceber como o néctar de Anne banhava seus lábios, sua barba...

?Oh Logan! Sim! ?Gritou com a chegada de um orgasmo tão intenso quanto abrupto. ?Sim! ?Gritou de novo, jogando a cabeça para trás para capturar todo o ar que poderia encher seus pulmões. ?Eu te amo! Maldito seja, eu te amo... preciso de você! ?Confessou e corrigiu presa pela alienação que o frenesi causava.

Aturdido por essa afirmação, agarrou as pernas, nas quais as pontas dos dedos ficariam marcadas para sempre, e mordeu com tanta voracidade aqueles lábios esponjosos e saborosos. «Finalmente! » Ouviu em sua mente. Sim, finalmente ouvia o que queria escutar desde a primeira noite em que esteve com ela. Só esperava que não fossem palavras provocadas pelo delírio do desejo. Precisava que ela sentisse o que ele já sentia.

Lentamente, depois de dar sua última lambida e coletar todo aquele delicioso néctar, levantou, se colocou na frente dela e a beijou. A mistura que saboreou, aquela poção mágica, levou-os a um nirvana incapaz de descrever. Anne colocou os braços ao redor de seu pescoço e se aproximou dele. Quando ela tentou se levantar, para que a levasse a algum lugar naquele estábulo, Logan virou-a bruscamente e encostou seu rosto na parede onde ela havia pregado as unhas.

?Coloque as mãos de volta... ?ordenou enquanto levantava a camisola novamente.

?Logan... ?disse tentando ver o que ele estava fazendo atrás dela.

?Shii, relaxe meu amor ?respondeu, sua mão direita retornando ao seu sexo. Abriu suas pernas um pouco mais e, observando que ela estava encostada na parede de madeira como ele havia indicado, retirou a mão e a fez retornar, mas desta vez não foi para dar-lhe uma carícia suave, mas uma bofetada.

?Logan! ?Anne gritou quando sentiu uma estranha satisfação naquele ato áspero.

?Mais? ?Perguntou, colocando a palma da mão esquerda nas costas arqueadas.

?Sim! Por favor... por....

E ele fez isso de novo. Desta vez, quando a palma da mão tocou o sexo de Anne, não só sentiu como queimava, mas seu fluxo aumentou. Com um leve sorriso, ele a esfregou com a mão aberta e se deliciou ao ouvi-la gemer. Perfeita. Anne era seu par perfeito. Sua cigana, sua esposa, sua vida ...

Depois de vários outros tapas, as pernas de Anne tremeram tanto que ela estava prestes a se ajoelhar, mas ele não deixou. Agarrou-a pelos quadris e segurou-a com uma mão, enquanto com a outra desabotoou rapidamente o botão de suas calças.

?Vou penetra-la ... vou fazê-la minha ... pode me ouvir? ?Apontou, colocando seu pênis duro e rígido naquela abertura quente e úmida.

?Sim! ?Gritou desesperadamente.

Logan a penetrou com força, sem cerimônia, rudemente. Estendeu as mãos para ela até que elas se acomodaram em seus ombros e a envolveram de novo e de novo. Não foi sutil ou delicado, não queria ser. Anne tinha que entender que seus sentimentos eram recíprocos e que ela não poderia pertencer a outro homem. Esse pensamento o deixou louco, enfureceu-o ao ponto de pressionar os dedos contra a pele macia. Não. Ela não se afastaria dele. Ela viveria ao seu lado e não olharia para ninguém porque só deveria olhar para ele.

Concentrando-se naquele ato possessivo, naquela marca que a levaria para dentro da vida, Logan voltou a penetrá-la com desespero, com ânsia. O corpo de Anne agitou com essas estocadas ásperas, suas pernas tremiam e seus joelhos ansiavam por tocar o chão. Ambos sentiam como as poucas peças de roupa que cobriam seus corpos estavam presas a eles pelo suor causado pelo delírio, pelo esforço, pela lascívia.

?Minha, Anne Moore! ?Você é minha! ?Sentenciou em sua última investida, em seu último ataque. Então, derramou sua semente dentro dela, espalhando sua essência masculina nela. Fechou os olhos e não viu escuridão, a não ser milhares de estrelas brilhantes que iluminavam tudo que um dia esteve escuro. ?Querida... ?sussurrou quando sua respiração começara a relaxar. ? Também te amo... ? Saiu dela, virou-a para ver aquele rosto apaixonado e, antes que Anne pudesse falar sobre a idiotice que ambos haviam confessado enquanto se deixavam levar pelo desejo, a beijou.


XXXI


Procurava por uma palavra que definisse seu estado de felicidade, mas não a encontrou. Nada tão simples poderia descrever o que sentia por dentro. Sua alma parou de sofrer, de se punir, de se amaldiçoar por levar o sangue cigano. Era a primeira vez que se sentia calmo e seguro de si mesmo. Todos os pensamentos obscuros e sombrios desapareceram, causando um bem-estar sem precedentes. Olhou para Anne, que estava sentada do outro lado da mesa, e sentiu seu peito crescer com a emoção de tê-la ao seu lado. Disse que o amava, embora tentasse corrigir rapidamente essas palavras. No entanto, sabia que elas eram verdadeiras, que não tinha sido uma consequência do ato apaixonado porque, separando seus lábios dos dela, notou em seus olhos o conflito entre o amor que professava e a agonia de não conseguir. Tinha medo. Claro que tinha! Quem apagaria de sua mente a crença de que a pessoa que amasse poderia morrer a qualquer momento por causa da maldição que sofria desde o nascimento? Mas ele não acabaria como seus dois pretendentes. Ele permaneceria ao seu lado porque era a pessoa que havia esperado: seu cigano, seu futuro marido, o homem que a amaria até que desse seu último suspiro de vida. Agora só teria que enfrentar a pior parte: não declarar quem realmente era e o aceitasse com a imagem que havia oferecido por tantos anos, porque não podia confessar a verdade. Esse estado de bem-estar começou a se desvanecer ao pensar nisso e seu corpo ficou tenso como a corda de um violino. Deveria continuar a proteger seu segredo, não era certo revelá-lo. A tenacidade que teve por muitos anos e a luta que enfrentou com o conde de Burkes viriam à luz e as pessoas voltariam a murmurar sobre as escapadas amorosas do velho marquês de Riderland e como um de seus descendentes pagou a chantagem de um velho lorde. O que aconteceria com seus meios-irmãos? Não, não poderia falhar. Tudo devia permanecer igual. Conseguiria o amor de Anne sendo o visconde de Devon e não o filho de uma jovem cigana que morreu durante o parto.

Sem tirar os olhos dela, levou a taça de vinho até a boca e tomou um pequeno gole. Como conseguiria que ela aceitasse sua proposta de casamento? Porque perguntaria a ela. Sim, antes de partirem para Londres, Anne usaria uma linda aliança para que todos soubessem que ela era intocável, inacessível, e quem ousasse falar com ela receberia uma punição terrível.

?Não sei como Galeón se adaptará à sua nova casa ?comentou Josh, quebrando o silêncio constrangedor que os quatro mantinham durante o jantar.

?Planeja levá-lo para nossa casa? ?Perguntou Elizabeth aturdida. ?Não está ciente de que o nosso jardim é muito pequeno para ele?

?O papai poderia contratar vários trabalhadores para realizar reformas no lado de fora... ?sugeriu sem desviar o olhar do visconde e de Anne. O que aconteceu entre eles? Por que os olhos de Logan brilharam estranhamente enquanto a observava? Por que as bochechas de sua irmã mostravam uma cor escarlate tão intensa? Eles teriam discutido novamente?

?Reformas? Que tipo de reformas? ?Eli perguntou, estreitando os olhos.

? Seria bom se começasse reduzindo a estufa. Na minha opinião, ocupa muito espaço para plantar quatro flores absurdas ?disse Josh, se concentrando na conversa com Eli.

? Nem pensar! ?Exclamou horrorizada ?Essa proposta é inviável! E elas não são espécies absurdas, mas únicas! ?Sentenciou antes de levar um pedaço de carne à boca e mastigá-lo com força.

?Pode deixar em Whespert ?Logan sugeri. ?Há espaço suficiente para ele e tem permissão para visitá-lo sempre que quiser.

?Mas como cuidarei dele em sua propriedade? ?Perguntou, arregalando os olhos. ?Não seria correto que permanecesse por tanto tempo em sua residência, nem que aparecesse regularmente. As pessoas pensariam que...

?As pessoas não pensarão nada, garanto ?disse solenemente. ?É claro que ninguém diria nada de mal se a futura viscondessa de Devon fosse sua irmã mais velha.

Essa declaração fez Anne prender a respiração e olhar fixamente para ele. Por que estava propondo esse absurdo para Josh? O que estaria tramando para não ser ciente dos rumores que isso significaria? Acrescentaria outro suculento escândalo à sua família e eles ainda não haviam se recuperado do anterior!

?Deveria deixar aqui até encontrar um lugar em Londres ?Anne interveio depois de limpar os lábios com o guardanapo. ?Certamente o papai pode alugar um estábulo onde poderá atendê-lo como quiser. Dessa forma não perturbará o visconde.

?Não será inconveniente ?Logan cortou, depositando o copo de vinho na mesa. ?Ficarei feliz que nos visite.

Nos visite. Ele tinha dito tal atrocidade na frente de suas irmãs? Ele não entendia que suas palavras poderiam ser mal interpretadas? E, pela expressão que elas colocaram, fizeram isso.

?Mesmo que sua irmã mais nova esteja presente várias vezes por semana, essa proposta não é correta. Como Josh disse, todos falariam sobre as numerosas aparições em sua residência em Londres ?comentou com falsa tranquilidade, rezando para que desaparecesse da cabeça de suas irmãs, qualquer pergunta inoportuna.

?Não estava pensando em Nathalie, senhorita Moore ? afirmou resistente. Recostou-se na cadeira, cruzou os braços e esticou os lábios ligeiramente para mostrar um sorriso.

?Da mesma forma, não acho apropriado que, quando os marqueses de Riderland estiverem presentes, Josh esteja livre para ir à sua residência ?disse Anne depois de engolir o nó que se formou em sua garganta.

Era estúpido? Por acaso estava dando como certo que estariam juntos como amantes? Ah, claro! Já havia concluído que iriam morar em sua casa por ter declarado palavras tão absurdas para ele. «Absurdas, mas são verdadeiras», disse a si mesma. Mas não. Não assumiria um papel tão degradante por amor. Quando retornasse a Londres, continuaria com sua ideia de ir a Paris. Lá, longe dele, poderia restabelecer sua tranquilidade e não se deixar levar por sentimentos irracionais.

?Também não fiz qualquer referência ao meu irmão e sua querida esposa ? continuou com a voz firme sem afastar seu olhar dela.

Ante uma atitude tão segura e tão endeusada, Anne queria pegar seu copo de vinho e jogá-lo nele, para ver se dessa forma deixaria de se comportar com tanta afronta. No entanto, quando estava prestes a dar outra desculpa, a porta da sala de jantar se abriu e Kilby apareceu, que, por causa da palidez de seu rosto e do modo como sua mandíbula estava cerrada, não era portador de boas notícias.

?Milorde, sinto a interrupção. Mas tem um visitante e, apesar de ter indicado que está ocupado, insiste em falar com o senhor ?explicou o surpreso mordomo.

?Quem é? ? Logan perguntou, se levantando rapidamente.

?Lorde...

?Pelo amor de Deus! Desde quando fui formalmente apresentado ao meu amigo! ?A voz de um homem trovejou atrás das costas de Kilby. ?Saia! ?Ordenou ao criado. Quando ele permaneceu imóvel, o cavalheiro lhe deu um empurrão repentino e entrou na sala. Assim que o visitante súbito descobriu que Bennett estava hospedado com três mulheres, que se levantaram ao vê-lo, George deu um largo sorriso. ?Boa noite senhoras, me perdoem...

?Laxton! ?Logan gritou, caminhando decididamente em direção a ele. ?Como se atreve a entrar em minha casa dessa maneira e assustar minhas convidadas?

?Me desculpe querido amigo. ?Falou a palavra amigo de forma mordaz. Seu fiel mordomo não me explicou que três belas damas eram a causa pela qual não podia me atender. ?Estendeu a mão para Logan e, quando aceitou, sentiu que apertava com força. George sorriu com aquela sutil advertência, mas não se deu por vencido. Agitou a mão para se livrar dessa pressão e se dirigiu para a mesa. ?Quem são essas daminhas lindas?

?George, vamos falar sobre a questão que o trouxe aqui em meu escritório ?disse Logan apertando a mandíbula.

?Não somos damas, milorde ?respondeu Josh, se posicionando como um soldado. ?Somos as irmãs Moore, pupilas do visconde.

?Pupilas? ? Laxton perguntou, olhando de soslaio para o amigo. ?Entendo... ?E um sorriso depravado apareceu em seu rosto, acentuando aquele rosto canalha e perverso.

?Por favor, me siga. Como disse, vamos conversar tranquilamente em meu escritório ?ordenou no mesmo tom com o qual continha uma séria briga entre seus marinheiros.

?É claro ?cedeu no final. Antes de se virar, para sair da sala, George passou os olhos pelo corpo de Anne com ousadia, um gesto que causou um rugido estranho em Logan. Então continuou para Elizabeth, que olhou para ele descarada, ousadamente e acabou contemplando a jovem que se dirigiu a ele. Uma careta de desagrado apareceu em seu rosto enquanto observava suas roupas. Era realmente uma jovem? Porque duvidava que fosse... Só precisava de um bigode grosso para lembrá-lo de seu antigo professor de latim. —Espero vê-las novamente, senhoritas Moore. Ficarei feliz em termos uma longa conversa... ?Prolongou cada palavra como se estivesse sibilando. Disse adeus com um leve aceno de cabeça e foi acompanhado por Logan. Uma vez que este fechou a porta, disse: ?Três para você? Desde quando se tornou tão egoísta?

?Não é o que pensa ?resmungou o visconde, dando longos passos em direção ao seu escritório.

Precisava sair de lá o mais rápido possível, porque não tinha dúvida de que Eli e Josh colocariam seus ouvidos atrás da porta para escutá-los e não era apropriado que descobrissem a amizade peculiar que ele e Laxton tiveram no passado.

?Não é o que penso? - Perguntou sarcástico. ?Não duvido que sejam suas pupilas, mas... as instruirá na arte do amor, como fez comigo? Tenho que confessar que foi o melhor professor que já tive. Nenhuma das minhas amantes se queixou ...

?Feche essa maldita boca! ?Ordenou irado. ?Está falando das filhas do Dr. Moore, não de prostitutas!

?Entendo ... ?Respondeu quando fechou a porta do escritório.

Observou o visconde seguir à escrivaninha, se colocar atrás dela, como se fosse um homem de negócios honrado, abaixar as mãos e olhá-lo como se quisesse estrangulá-lo.

? A que veio?

?Acalme-se, Logan ? indicou enquanto se sentava. Desabotoou os botões de sua jaqueta cinza e cruzou as pernas no joelho. Não vai me convidar para uma bebida? O que venho lhe contar é tão importante que deveria me recompensar com um bom conhaque.

?Sirva-se ?respondeu sem reduzir os sinais de descontentamento expressos em seu rosto.

?Está bem... ? deu de ombros. Se levantou, caminhou lentamente até o decantador de conhaque e se serviu de uma generosa dose de bebida. Então, sem tirar um sorriso de seus lábios, voltou ao lugar.

?A que veio? ?Logan repetiu, sentindo a frustração fazê-lo perder o controle.

?Relaxe ? George ordenou, olhando-o sem piscar. Lembre-se que não sou o inimigo...

?Faz muito tempo desde que nos vimos pela última vez, então não posso confirmar ou negar suas palavras ?disse apertando sua mandíbula com tanta força que poderia desencaixá-la a qualquer momento.

?Estou aqui, certo? Bem, isso tem que responder à questão.

?Vá direto ao ponto ... ?pediu, afastando as mãos da mesa.

Como Laxton havia feito, Logan foi até a garrafa de bebida, pegou o copo maior que havia na bandeja e encheu-o até transbordar. Então levou à boca e bebeu de um só gole. Repetiu a ação antes de retornar ao seu lugar.

?Visitei meu tio hoje de manhã e tivemos uma conversa muito vigorosa ?disse em uma voz misteriosa, fixando seus olhos cor de mel no líquido âmbar. ?Dado que apareceu de uma maneira súbita e secreta, acredita que retornou para ... desfazer o que fez durante a sua ausência.

?Voltei porque tive de fazê-lo ?Logan murmurou, sentando-se abruptamente. As irmãs Moore precisavam da minha ajuda e ofereci a elas.

?Qual delas, especialmente? ?Perguntou depois de estalar a língua enquanto saboreava o bom conhaque do amigo.

?A mais velha ... - confessou antes de terminar a bebida de um só gole. Olhou para o copo vazio e sentiu um leve tremor em sua mão. Medo. Pela primeira vez desde aquele dia, o medo do velho Burkes aparecia novamente.

?Então Rose se tornou passado, certo? Pena! Foi a mais bela de todas ?disse tocando o queixo, observando enquanto seu camarada de noites de farra franzia a testa.

?Rose nunca me interessou como esposa ? revelou involuntariamente.

?Esposa? ?George perguntou, arregalando os olhos. ?Se apaixonou a esse ponto? ?Disse incrédulo.

?Por acaso não tenho coração? ?Contra-atacou.

?Oh sim! Claro que tem! ?Respondeu divertido. ?A única coisa que aconteceu é o submeteu a uma fria letargia durante os anos que ambos desfrutamos.

?Me listará quantas noites e quantas mulheres nós estivemos? ?Resmungou.

?Não! ?Respondeu como se estivesse horrorizado. ?Meu tio teria um derrame se quebrasse nossa promessa! ?Acrescentou nitidamente.

?Pode me dizer, de uma vez por todas, a que devo sua visita? ?Tentou especificar. Embora já estivesse com medo do que iria dizer, precisava que fosse direto ao assunto. O quanto antes ficasse ciente do problema que estava por vir, quanto antes poderia encontrar uma solução.

?Meu tio insiste em lembrá-lo do acordo.

?Não o quebrei. Fiquei longe de você desde que nos descobriu.

Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém trairia sua presença em Harving, embora não pudesse apontar para ninguém com certeza. Exceto pelo dia em que foi ao administrador assinar o contrato para a transferência do Galeão, não havia deixado seus limites... estreitou os olhos e prendeu a respiração. Claro! Como não pensou naquele dia? Como não se antecipou? Porque estava tão obcecado por Anne que não percebeu esse pequeno detalhe. Elizabeth saiu em uma de suas carruagens e com Howlett. Todo mundo conhecia seu falante e estranho ajudante! E ele tão pouco tentava passar despercebido com suas roupas tão extravagantes. Tinha que obrigá-lo a colocar um saco, áspero e sujo.

?Acredite, ainda me sinto culpado por isso. Se tivesse adivinhado o propósito daquela porcaria... ?Pela primeira vez, desde que apareceu, George fez a expressão zombeteira desaparecer de seu rosto para transformá-la em ferocidade. Ele apertou a mandíbula e franziu a testa. Seus olhos castanhos escureceram e sua respiração ficou lenta, profunda, como se a maldade lhe causasse um perigoso estado de tranquilidade.

?Nenhum dos dois notou a inquietação da criada ou sua insistência em olhar para a porta ?tentou diminuir a relevância, no entanto, tinha mais consideração do que desejava aparentar. Naquele dia, se tornara um mísero fantoche do velho conde. Apenas sua tenacidade em negar a história àqueles que viam com repulsa a insistência em divulgá-la, o salvou.

?Se não quisesse me salvar...

?Não levante fantasmas do passado ?Logan o interrompeu. ?Me diga pelo qual apareceu, porque tenho certeza de que seu tio não o teria feito vir aqui para me lembrar do acordo. Teria enviado um de seus servos com o selo de seu honroso título no verso. Então me diga, o que propõe desta vez?

?Quis que eu entregasse isso pessoalmente ?disse tirando um envelope do bolso de sua jaqueta cinza pérola.

?O que é? ?O visconde perguntou de maneira arisca.

?É um convite. Neste sábado havia preparado uma festa íntima e, ao saber que estava em Harving, decidiu incluí-lo em sua lista de convidados honrados e respeitáveis. ?Enfatizou essa palavra sarcasticamente para deixar claro que era uma obrigação e que não poderia rejeitá-la.

?O que quer agora?

?O que acha? ?Perguntou jogando o envelope sobre a mesa de Logan como se isso o queimasse.

?Não está à venda ?disse, se erguendo rapidamente, como se de repente se lembrasse de que deixara uma panela de água fervendo no fogo.

?Eu sei, mas aquele velho teimoso não quer morrer sem assinar esse miserável contrato de compra ?comentou com pesar.

Logan deu-lhe um olhar preocupado e incrédulo. George ainda não sabia o que realmente aconteceu quando Burkes o trancou, junto com o juiz e o padre, na biblioteca? O velho não lhe contou sobre aquela reunião miserável? Não, claro que não. George não acreditaria nele e divulgaria esse falso rumor em todos os eventos sociais que assistiria e.... o que aconteceria no final? Alguém resolveria essa fofoca de maneira fulminante: o próprio Marquês de Riderland. Mesmo assim, o que aconteceria com seus meios-irmãos? Que feridas esses malditos rumores causariam à sua querida Nathalie? Não podia pôr em risco a vida de toda a sua família por não ter reprimido certas fantasias sexuais.

?E, se ele não morrer em paz, não irá adquirir a sua ansiada herança ?falou mordaz sobre a afirmação anterior.

Logan olhou para quem fora um bom amigo da farra e concluiu que ele ainda estava obcecado em agradar aquele conde bastardo. No entanto, as marcas que apareciam ao redor dos olhos mostravam dor, agonia e desespero. Estava esperando o momento para se livrar dele? Rezaria para que seu tio morresse antes de que completasse vinte e cinco anos? Era difícil desejar que alguém morresse, mas o conde teria merecido por praticar um ato de bondade, como receber o filho de sua irmã que, depois da morte do marido em um trágico acidente, precisara de ajuda da família. Embora o verdadeiro propósito de Burkes fosse transformar o jovem sensível, afetuoso e carinhoso num ser cruel e impiedoso. Logan pensou, inutilmente, que iria libertá-lo através do prazer, mas errou. Só esperava que um dia uma mulher devolvesse a criança que ele foi e que o fizesse esquecer todos os ensinamentos do velho ogro.

?Veja. No fundo continua lendo meus pensamentos ?disse antes de se levantar e terminar a reunião. Seu tio permitiu que viesse Harving para lhe dar o convite e foi isso o que fez. Agora teria que voltar se não quisesse sentir a fúria nas suas costas.

?Harving não está à venda nem antes, nem agora, nem no futuro ?disse solenemente. ?Pretendo transformá-la em minha segunda moradia.

?De verdade? ?A resposta o surpreendeu tanto que ele refez seus passos.

?Sim ? disse Logan com confiança.

?Bem, assim sendo, não terá escolha senão se apresentar com ela ...

?De jeito nenhum! Seu tio não se aproximará de Anne! ?Berrou, apertando as mãos com tanta força que sentiu as unhas cravarem na palma da mão.

?Porque não? Não quer se livrar dele de uma vez por todas? Além disso, sabe que, à medida que as descubra, fará todo o possível para destruí-las. O que acontecerá com as respeitáveis e honradas filhas do Dr. Moore quando todos falarem sobre o que possivelmente fez nessa residência? Haverá um tal escândalo que terá que vender Harving por muito menos do que custa.

?Exige que eu participe, mesmo que não queira? ?Retrucou dando um passo em direção a ele.

?Exijo que se comporte de maneira sensata. Se realmente sonhou em alcançar um futuro decente, deve se concentrar no que é mais importante ?disse apontando com um dedo inquisidor.

?Que é ... ? murmurou.

?Se aparecer na festa com elas e espalhar a notícia de que Harving House se tornará sua segunda casa, meu tio não terá escolha senão assumir sua derrota ? disse sem hesitar.

?Por que envolveria as irmãs Moore nisso? É algo que devo resolver de uma vez por todas com aquele bastardo. Então posso me apresentar amanhã em sua residência e ...

?Não se casará com uma delas? Bem, a coisa certa seria acompanhá-lo para testemunhar suas palavras.

?Não quero que Anne descubra o que fizemos e sei que seu tio ficará feliz em explicar o que aconteceu naquele dia ?resmungou.

?Não sabe nada? ?George não acreditou.

?Não! ?Disse desesperado. E não quero que descubra!

?Não ouviu nada sobre sua vida de libertinagem? ?Perguntou.

?Ela não é surda... ?bufou. ?E sua irmã é muito próxima da minha. Assim que...

?Então não ficará surpresa. Que libertino que se preze não teria uma orgia com seu melhor amigo?

?Não sei se ela gostaria de ouvir sobre esse tipo de ato sexual. ?Refletiu voltando para a mesa. Pegou o copo e, depois de observá-lo por alguns segundos, deixou-o sobre a mesa novamente. Foi até o aparador, virou a chave e abriu as portas de madeira que escondiam várias garrafas de conhaque. Tirou duas, colocou-as na mobília e, depois de desarrolhar a primeira, voltou ao seu lugar.

?Sabe? Desde o começo soube que seu romance com Rose não terminaria em um casamento ?George apontou antes de pegar a outra garrafa e imitar Logan.

?De verdade? ?Logan perguntou estreitando os olhos. Entornou a garrafa de licor e tomou um longo gole. ?E quando concluiu algo tão solene?

?Imaginei quando a compartilhamos pela primeira vez ?comentou com calma, com o tom de camaradagem que sempre tiveram até aquele maldito dia. ?Se tivesse um mísero sentimento de posse em relação a ela, não teria permanecido sentado naquela cadeira enquanto Rose gritava meu nome ao possuí-la. Certamente agora não poderia compartilhar sua futura esposa com ninguém, estou errado?

Essa pergunta nublou sua mente. Compartilhar Anne? Morreria antes de ver como outro homem a tocaria! Mas... e se ela fugisse quando descobrisse as perversões que fez com suas amantes? Poderia deixar claro que sempre foram mimadas e que não estava mais disposto a fazer isso. No entanto, para chegar a esse ponto teria que contar a ela sobre suas origens, seu sangue cigano, o que aconteceu com o conde, a vida de seus meios-irmãos, a chantagem, o pagamento que fez ao bastardo Burkes para manter seus lábios selados... O que Anne faria depois de ouvi-lo?

?Diga-me, Logan, compartilharia sua esposa? ?George repetiu depois de beber seu conhaque.

?Não. ? Disse antes de esvaziar mais de um terço da garrafa em um gole.


XXXII


Não saiu do escritório pelo resto da noite, apesar do fato do cavalheiro ter abandonado Harving House uma hora depois de sua entrada apressada. Quando a porta da sala de jantar se abriu, as três se viraram para ela, esperando pela presença de Logan, mas Kilby apareceu em seu lugar. Ele desculpou a ausência do visconde alegando que tinha alguns assuntos muito importantes para resolver. Mas Anne sabia que estava mentindo. Aquele homem o alterara, era necessário apenas recordar do rosto zangado que exibiu ao vê-lo para confirmar essa suposição. Quem era esse indivíduo? Por que Logan mostrou uma tensão amarga quando invadiu a sala de jantar? Anne andava de um lado para o outro em seu quarto, esfregando as mãos. Seus pelos arrepiaram novamente, avisando-a de que algo ruim estava prestes a acontecer. Mas... o que seria? Como poderia lutar contra o que não conhecia ou não entendia?

Caminhou até o pé da cama e se sentou pela décima quinta vez. Era correto confiar no que seu coração ditava? Devia descer e conversar com ele? Sua presença o ajudaria a superar o que o incomodava? Uma amante poderia exercer esse papel? Não. Esse seria o trabalho de uma esposa... essa reflexão fez com que levasse as mãos ao rosto e o esfregasse de angústia. Odiava essa ideia. Irritou-a pensar que um dia Logan teria que se casar e que tudo que viveram desapareceria como fumaça. Seria correto ser levada pelos sinais enviados a ela por sua mãe criadora? Os sonhos, que cessaram quando chegou a Harving House, Astennu, que era o mesmo corvo que aparecia em todas as suas visões. Só precisava ouvir a música que aparecia enquanto caminhava por aquela floresta e que Logan confirmasse que um antepassado dele era cigano. Mas... qual era a possibilidade de que tudo o que precisava acontecesse para que não duvidasse que era o seu homem?

Um barulho atrás da porta a fez levantar rapidamente. Seu coração batia desesperado e seu pulso acelerou quando imaginou que era Logan. Ouvindo apenas a respiração agitada, permaneceu de pé e olhando em direção à entrada, até que, após algum tempo, deduziu com tristeza que não a visitaria. Não pretendia se apresentar? Havia decidido afastá-la do seu lado? Teria reconsiderado seu relacionamento após a aparição daquele homem? Por que? Quem era ele?

Uma enorme tristeza tomou conta dela e seu coração ficou oprimido. Por que a confusão lhe causava tanta dor? Não havia deixado claro a ele que tudo acabaria quando ela fosse embora? Não ficou com raiva de ouvi-lo dizer nos visitar? Sim, ficou furiosa ao ouvi-lo expressar essas duas palavras na frente de suas irmãs, mas também estava cheia de alegria. O fato de que Logan achava que o relacionamento continuaria assim que ela deixasse Harving a entusiasmou, no entanto, deveria ser consciente que seus pais não aceitariam que se tornasse a amante do visconde. Eles a matariam! Sim, apesar de terem declarado que em breve estaria livre para fazer o que quisesse, nunca admitiriam tal humilhação para a família. Eles a obrigariam a se casar com ele e, por mais agradável que fosse a ideia, não poderia aceitá-lo, porque essa decisão o mataria.

Ela colocou as mãos no peito e agarrou a camisola com amargura, enquanto as lágrimas molhavam seu rosto. Estava apaixonada e esse estado de amor a fez querer algo que nunca alcançaria. Sua posição não poderia mudar. Se realmente queria estar ao seu lado, teria que se contentar em tomar um lugar de uma concubina e rezar para que ele não a substituísse por outra antes do final do ano.

Olhou de soslaio para a cama, na qual eles tinham feito amor durante as noites passadas, e suspirou. Seria capaz de dormir sem ele? Poderia fechar os olhos sem descobrir o que estava acontecendo com ele? Não. Claro que não! Apesar de estar ciente de que, entre eles, não haveria possibilidade de nada, a não ser um idílio temporário, ela não podia deitar naquele colchão confortável sem se importar com o motivo pelo qual ele havia se escondido. Se o visconde tinha um problema, tentaria ajudá-lo, mesmo que fosse apenas uma mísera amante.

Confiante no que ia fazer, levou a mão até parte de trás da cadeira, onde estava seu robe de seda preta, vestiu-o e caminhou com determinação para a saída.

Tudo estava em silêncio e a escuridão a ajudou a permanecer protegida. Se agarrou ao corrimão da escada e desceu os degraus com tal cautela que nem um único degrau de madeira rangeu. Assim que chegou ao hall, olhou para as grandes janelas e, através das finas cortinas, observou o movimento das copas das árvores. Elas se mexiam como em seus sonhos.... Perplexa, ela olhou para longe das janelas, virou para o lado direito e continuou sua caminhada até que parou em frente à porta do escritório. Ainda estava fechado, como se tentasse obstruir a passagem de outra visita indesejada. Mas ela não era qualquer pessoa... muito lentamente, notando a batida de seu coração na garganta, alcançou a maçaneta e a girou. Se tivesse rangido a porta, ele a teria descoberto, mas os criados do visconde eram tão eficientes que engraxavam as dobradiças com assiduidade. Por essa razão, pôde entrar sem ser ouvida.

A única luz dentro era produzida pelas chamas do fogo na lareira. Mal notou a decoração daquele escritório. A única coisa que viu claramente foi o grande tapete que estava ao lado do fogo e ele... Logan estava sentado em uma cadeira, com os cotovelos apoiados sobre a mesa e olhando para o que estava sobre ela. Havia tirado o paletó daquele terno azul avermelhado que ele usara tão imponente durante o jantar. As pontas da camisa preta, levantadas para ambos os lados, indicavam que ele não estava usando a gravata e seu cabelo oferecia uma imagem descuidada. Fios negros e despenteados escondiam aquele rosto másculo que tanto adorava. Virou-se lentamente em direção à porta e fechou-a sem emitir nenhum som. Embora tenha originado o suficiente para ele levantar o rosto e descobri-la.

—O que faz aqui?

O tom duro que usou para falar com ela a fez pensar que havia cometido um erro. No entanto, seus olhos expressaram o contrário: declaravam tanta satisfação e bem-estar que reforçou sua decisão.

—Não consegui dormir — ela disse enquanto caminhava até ele.

Ficou parada em frente à mesa e observou tudo o que havia nela. Desordem. Só encontrou um grande caos. Uma multidão de folhas espalhadas na superfície e também vislumbrou que mais de uma estava manchada de licor. Olhou de relance para a garrafa ao lado dele e franziu a testa ao vê-la praticamente vazia. Ele tinha ficado bêbado? Foi por isso que não apareceu em seu quarto? E por que abusava do álcool se durante os dias em que estiveram em Harving House ele mal tinha tomado dois drinques fora das refeições?

—Poderia ter pedido a Sra. Donner para fazer uma daquelas infusões calmantes que ela mantém na cozinha. Certamente isso a teria mantido deitada no colchão até o amanhecer — disse ele, arrastando as palavras.

—Está bêbado! — Ela disse cruzando os braços. — Por quê?

—Por que bebi mais do que posso suportar? —Ele estalou mordaz. —Caso não saiba, meu amor, quando se ingere tanto licor, o....

Logan de repente ficou em silêncio quando ela descruzou os braços e, sem tirar os olhos dele, estendeu a mão direita para a garrafa. Colocou a boca da garrafa sobre seu lábio inferior e deu um pequeno trago.

—Eu também posso participar desse jogo — ela argumentou antes de sua garganta queimar pela ingestão daquela bebida a qual não estava acostumada a beber. Segurando as lágrimas que causaram aquele ardor e a repentina tosse, o observou sem piscar enquanto permitia que várias gotas de bebida deslizassem por sua boca, pelo queixo, até baterem em seu peito. — Tem que me dizer onde guarda mais, porque vou precisar de outra assim para poder alcançá-lo. Bebeu até que não havia mais nada dentro e depois colocou de volta em seu lugar.

O queixo de Logan caiu enquanto ele observava o licor escorrer por sua pele até que, maravilhosamente, terminou no decote do roupão de Anne. Ele queria se levantar, lançar-se sobre ela e percorrer com a língua o longo caminho por onde passavam essas abençoadas gotas de conhaque. Mas, apesar de sua embriaguez, ainda estava ciente de que seu estado lastimável só lhe causaria problemas. Uma vez que ele a beijasse, iria querer mais e isso provocaria uma explosão de emoções que o transformariam em um ser malvado. Então, antes de fazerem amor, teria que ter certeza de sua decisão de ser honesto com ela. Precisava contar sobre seu passado, o que planejava fazer em um futuro próximo, e se o destino fosse gentil com ele, Anne não iria embora.

—Vai me dizer de uma vez por todas onde posso encontrar uma maldita garrafa? — Ela retrucou, apreciando sua passividade.

O que diabos aconteceu com ele? Seu visconde, aquele que conhecera até a chegada daquele homem, teria se levantado, a tomado em seus braços e, depois de derrubar tudo sobre a mesa, teria feito amor com ela com tanta paixão que seus corpos teriam fundido. Esse pensamento, e as imagens que apareceram em sua mente, endureceram seus mamilos e a excitaram tanto que ela abriu a boca, inconscientemente, para ofegar.

—Lá! –Ele respondeu com a voz embargada, apontando para o decantador que havia sobre o móvel.

Estava preocupado. Não tinha dúvida sobre isso. Essa visita inesperada o perturbou. O que aconteceu durante a hora em que eles conversaram? Ela olhou para Logan e considerou se seria conveniente perguntar sobre o assunto que o incomodava. Talvez estivesse se precipitando, talvez só precisasse de um pouco de solidão para enfrentar o que aconteceu. No entanto, assim que começou a duvidar de sua performance, centenas de imagens dele passaram por sua cabeça: o dia da festa, quando ele levantou seu copo e ergueu a sobrancelha esquerda silenciosamente perguntando por que estava olhando para ele, o dia que apareceu com Lorde Giesler em sua casa, seu desmaio, a conversa que tiveram enquanto Mary se distanciava deles graças ao presente. No momento em que ele conversou com Madeleine através da cortina, seu comportamento paternal com Josh, o beijo que ele lhe deu quando a descobriu em frente à porta daquele quarto imundo na pousada, no momento em que apareceu em seu quarto e disse para que trancasse se não quisesse que a visitasse novamente. A reunião no jardim, as noites abraçados em seu quarto, ouvindo como respirava em sua cabeça, notando a paz e tranquilidade que sentia ao seu lado.... É claro que tinha que descobrir o que na terra havia acontecido com ele! Como ela poderia abandonar o homem por quem estava loucamente apaixonada? Nunca! Ela lutaria com unhas e dentes para trazer de volta aquele homem intrépido que ousava beijá-la, tocá-la e amá-la onde quisesse.

Que Deus tenha pena dela e de toda a sua família! Porque lutaria por ele...

Com os olhos do visconde fixos nela, levou as mãos até o laço do roupão, desamarrou-o e, enquanto seguia para aquela área do escritório, balançou levemente os ombros até que o roupão deslizou pelos braços tão suavemente que sentiu seus pelos arrepiarem em resposta àquela delicada carícia. Se essa atitude sensual não fizesse Logan pular da poltrona, nada conseguiria.

—Então... sua embriaguez causou... — começou a dizer em uma voz tão extremamente erótica, que suas mãos tremeram.

Teve que respirar fundo para poder se concentrar em encher um dos copos na bandeja de prata e não derramar pelo tremor. Antes de se virar e encará-lo, bebeu aquela quantidade generosa de licor e serviu-se de outra. Acabaria mais bêbada que Logan, mas não se importava como terminaria aquela noite. A única coisa que importava era como ele terminaria.

—Está me provocando? — Logan perguntou à suas costas.

Nem mil barris de brandy o teriam derrubado depois de observar a silhueta do corpo de Anne através daquela camisola transparente!

Quando ela deixou cair o roupão no chão, mexeu os quadris com o ritmo sensual de seus passos, as pontas dos cabelos escuros roçando os quadris eroticamente e a luz das chamas perfurando a camisola, mostrando-lhe uma figura sedutora e erótica. Naquele momento, seu sexo reagiu rapidamente e seu coração ficou paralisado. Ela era puro magnetismo, desejo, luxúria e.... amor. A parte racional de seu cérebro, aquela que constantemente o lembrava do problema que ele tinha que enfrentar, desapareceu e todo o álcool que atravessou suas veias evaporou quando sua temperatura aumentou. Anne o queimava, transformava-o em um imenso fogo. Poderia um homem morrer querendo tanto uma mulher? Porque ele estava disposto a morrer se ela não matasse sua sede.

Anne sorriu ao ouvi-lo atrás dela. Sua respiração já indicava que ele estava excitado. Mas confirmou quando ele bateu o quadril em suas nádegas. Esse era o seu homem... sempre disposto a lhe dar prazer e ficar totalmente ereto por ela. Pelo menos já havia eliminado de seus pensamentos a angústia terrível de que não a queria. Agora tinha que descobrir por que a presença do homem o perturbara tanto.

—Eu gostaria de saber... - disse ela depois de colocar o copo no aparador, estendeu as mãos até encontrar as de Logan. Ele entrelaçou os dedos com os dela e os ergueu até os seios. Uma vez que as fortes palmas masculinas os rodearam, as pressionou como de costume. Naquele momento, seu quadril ganhou vida própria e chegou perigosamente perto dele e sua boca ofegou de prazer.

—Não é uma história agradável... — Logan murmurou trazendo os lábios para o ombro direito de Anne. Abriu a boca, esticou a língua e lambeu a área da pele como se estivesse saboreando um sorvete, embora dessa vez não sentisse frio, mas calor, muito calor.

—Se fosse agradável... Não teria se trancado neste lugar... certo? — Ela sibilou quando colocou as mãos nas pernas hercúleas e acariciou-as até que tremessem.

—Anne... — ele disse em um tom abafado, como se um nó na garganta o impedisse de falar.

—Logan... — ela respondeu, colocando a mão direita no grosso volume que se escondia debaixo das calças. ?Está tão excitado por mim...

Se essas palavras a deixavam louca quando as escutava, esperava que tivessem o mesmo efeito em Logan.

—Sim... — ele respondeu trazendo a pélvis para mais perto daquela mão impertinente para que não parasse de tocá-lo. — Sabe que não posso resistir a você... — ele confessou antes de colocar os lábios no pescoço dela e beijá-la sem parar.

—Pedi para que fizesse isso? — Ela perguntou, virando-se. Quando viu a tristeza naqueles belos olhos azuis, ficou sem fôlego. O que aconteceu para fazer Logan se sentir tão vulnerável?

—Mesmo se me pedisse... não poderia fazer isso — ele respondeu antes de agredir sua boca.

Como se estivessem prestes a morrer de fome e a única coisa que poderia salvá-los da morte era se devorar, Logan invadiu, subjugou e se apoderou da boca de Anne enquanto ela respondia com a mesma necessidade e paixão. As mãos do visconde descansaram em suas nádegas e a puxaram para mais perto, deixando-a presa das coxas ao peito. Ambos os corpos se misturavam como se fossem duas essências perfeitas dentro de uma sala sem saídas.

As mãos de Anne, colocadas primeiro no pescoço de Logan, lentamente traçaram as costas largas, continuaram abaixo do peito, desabotoaram os botões daquela camisa, acariciaram-no com as palmas das mãos abertas e, quando ela ficou satisfeita em tocá-lo, desceu lentamente até a cintura das calças.

—Quero libertar você de tudo o que prejudica seu coração — disse antes de beijar a área do peito dele que o protegia. — Quero arrebatá-lo para que nada possa feri-lo, jamais...

—É seu... — Logan engasgou quando sentiu os lábios em seu mamilo esquerdo.

—Tem certeza? — Ela retrucou. Percebendo como ele afirmava com um leve aceno de cabeça, se afastou o suficiente para ver se estava mentindo. Quando confirmou a veracidade de suas palavras, enfiou a mão na calça e acariciou seu sexo duro e úmido com as pontas dos dedos.

—Sim... — ele sussurrou, fechando os olhos para se deixar levar pela sensação de prazer causada pelo toque daqueles delicados dedos. —Te pertence...

Então, apenas quando o teve em um estado de frenesi, se afastou dele, como se estivesse possuída por um espírito diabólico. Ela se esquivou de sua figura corpulenta e se afastou por tempo suficiente para observar sua reação. Claro, o rosto de Logan mostrava uma mistura de perplexidade e medo.

—Se esse coração realmente me pertence, preciso que seja honesto e me diga por que diabos se trancou neste lugar por mais de quatro horas. Tempo que, a julgar pelo cheiro que tem e pela quantidade de bebida que descobri na garrafa, passou bebendo — ela disse como se fosse uma esposa furiosa por ter esperado a chegada de seu amado marido em frente à entrada da sua casa, enquanto um dilúvio caia.

—Prometo que contarei tudo depois de fazermos amor. Agora sou incapaz de pensar em outra coisa senão possuí-la... — ele disse enquanto empurrava sua camisa para longe com um único puxão. Então fez o mesmo com o botão da calça, baixou-os até os pés. Com um solavanco rápido, tirou os sapatos, tirou todas as roupas e ficou completamente nu para ela. — Não sente pena do seu amante insano? Olha como me colocou...

—Acalmarei a sua necessidade quando aplacar a minha — disse ela solenemente, para que ele não tivesse dúvidas de que não estava blefando. Estava disposta a descobrir o que estava errado e não pararia até conseguir.

—O que quer saber? — Ele perguntou, desistindo.

—Quem era esse homem?

—Lorde Laxton.

—O que ele queria de você?

—Veio me informar que seu tio, o conde de Burkes, continua com a ideia de comprar Harving House. — Ele estava prestes a abaixar a cabeça quando percebeu que Anne estava se movendo. Rapidamente, fixou os olhos nela e eles arregalaram quando viu o que estava fazendo depois de sua resposta. —Vamos brincar disso, querida?

—Sim — ela disse, acariciando seus seios por cima da camisola. Não gosta da ideia de ser recompensado cada vez que responder minhas perguntas? — Acrescentou naquele tom erótico que adotara desde que entrara.

—Acho isso... agradável — ele respondeu com um longo suspiro. —Pergunte o que deseja — acrescentou colocando sua mão direita em seu sexo.

—Por que quer comprá-la? —Perguntou Anne, ainda se tocando. Devia levá-lo a um estado de agitação tão intenso que não pudesse mentir para ela. Precisava descobrir a verdade e encarar isso juntos, como se fossem casados.

—Porque quer ampliar seu patrimônio — ele respondeu. Mas vendo que essa declaração não pareceu correta, porque Anne parou de se tocar, ele acrescentou: — Ele quer que a venda em troca de manter um segredo.

—Um segredo? — Ela exclamou surpresa.

—Sim — ele disse com um halo de tristeza.

—Que segredo? —Ela perguntou. Quando viu que a mão de Logan se afastou de seu sexo e agora se esticava em direção ao chão, continuou com seu jogo. Andou para trás até que suas nádegas tocaram a mesa, se inclinou sobre ela, levantou a camisola até que revelasse sua virilha e abriu as pernas ligeiramente. — Que mais?

—Laxton e eu nos conhecemos há cinco anos. Depois de ser apresentado e falar sobre sua vida, fiquei com pena dele — continuou ele, incapaz de tirar os olhos daquela flor sexual que, a julgar pela forma como brilhava, estava molhada.

—Aham — E o recompensou novamente. Sua mão direita foi colocada em seu sexo e acariciou até que surgiram sons sedutores que expressavam com audácia a excitação que ela sentia quando se tocava.

—George e eu temos uma amizade... especial. — Ele falou hesitante, sufocado pela imagem de Anne. Aquela figura erótica só reafirmava que ela era a mulher mais maravilhosa que ele já tinha visto em sua vida. No entanto... ela poderia suportar a verdade? O que pensaria dele quando revelasse aquele passado sombrio?

—O que quer dizer com amizade especial? — Anne perguntou, introduzindo um de seus dedos. Percebendo essa pressão, ela suspirou, olhou para ele descaradamente e acariciou seus lábios com a língua. Deveria se sentir como uma rameira, mas não era assim. O que sentia era um imenso poder sobre Logan. Um que libertaria o homem que amava daquela prisão em que ele se forçou a ficar.

—Laxton se tornou meu parceiro em... perversões. — Ele suspirou profundamente. Estava tão hipnotizado por seus suspiros que era capaz de gozar apenas olhando para ela. —Já conhece a fama de libertino que carrego nas costas...

—Real ou inventada?

—Real — ele disse, olhando para ela com tanto pesar que o coração de Anne se partiu em mil pedaços.

Por que se lamentava do que fez no passado? Acaso agia assim para se proteger de alguma ferida? Um coração partido, talvez?

—E? — Ela insistiu, tirando aquele dedo invasor para espalhar sobre os lábios voluptuosos o fluxo que emanava ao se excitar.

—O que quer que eu explique? — Ele gritou enquanto acariciava seu cabelo desesperadamente.

—A verdade! Quero a verdade! — Anne respondeu, afastando as mãos de seu corpo. — Cruzou os braços e olhou para ele sem piscar. Teria que insistir. Estava prestes a alcançar seu objetivo e, apesar de deduzir que não gostaria do que ouviria, suportaria isso por ele.

—A verdade? — Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas. Um sorriso sombrio apareceu em seus lábios e seus olhos escureceram.

—Sim— ela garantiu com firmeza.

Anne não estava mais na frente de um amante terno e amoroso, mas na presença de um fantasma. O que teria acontecido no passado para que o transformasse em um ser sem alma?

—Bem, a verdade não é outra a não ser que compartilhamos mulheres — ele revelou, estreitando os olhos e seu riso mudou de sombrio para trêmulo.

— Suas amantes? — Perguntou, soltando a camisola aos seus pés dela.

—Sim — ele disse categoricamente.

—Obrigou-as a fazê-lo? — Perguntou Anne, segurando as mãos na boca. — Mandou que elas fizessem isso?

—Nunca! —Afirmou Logan rapidamente. —Elas estavam mais do que dispostas a serem compartilhadas com outros homens. Garanto que elas sonhavam em deitar com vários amantes de uma só vez.

—Então? Se nenhuma delas reclamou quando as compartilhou, o que o angustia? O conde quer revelar seu segredo? É por isso que diz que ele o chantageia? — Ela insistiu com angústia. Conhecia essa dupla moralidade aristocrática. Todo mundo falava sobre isso, e embora esse tipo de relacionamento fosse um rumor suculento, não tinha dúvida de que Logan não seria o primeiro aristocrata a praticar esse tipo de imoralidade.

—George e eu cometemos um erro grave — explicou Logan.

Ele se virou e caminhou até à lareira. A luz daquelas chamas iluminava seu corpo. Seu pelo áspero encaracolado, que desenhava uma linda e sedutora linha do peito até a pélvis, a largura dos ombros, as pernas grandes e fortes, os músculos ásperos dos braços e do sexo, ainda rígido de excitação, se apresentavam diante dela com vontade absoluta. Logan despiu seu corpo, agora estava faltando que também despisse sua alma.

—Qual? —Ela quis saber. Embora seu jogo estabelecesse certa distância, Anne não podia ficar longe dele. Com um passo muito lento, ela se aproximou de Logan até que seu nariz pudesse inspirar aquela fragrância masculina que a surpreendia. Muito lentamente, colocou as mãos em suas costas e acariciou com as pontas dos dedos. — Qual foi o seu erro, Logan?

—Incluir uma serva do conde nas nossas perversões. — Ele inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e prendeu a respiração quando sentiu o toque suave das pontas do dedo em sua pele.

—O que aconteceu? —Ela acrescentou a boca àquelas carícias suaves.

Seus lábios beijavam lentamente diferentes lugares das costas fortes, criando sons sugestivos que, por um momento, fizeram Logan permanecer em silêncio para apreciá-los.

—O conde sempre foi um homem muito rigoroso. Desde que sua esposa morreu, nenhuma mulher tomou o seu lugar. Ele adotou uma moralidade religiosa tão severa e rigorosa que não era capaz de consentir em certas liberdades. Logicamente, desde que ele acolheu George sob sua proteção, tentou educá-lo sob essa ética severa. Então rapidamente descobriu que seu sobrinho e a criada tinham um idílio. Furioso, irritado por não ter doutrinado bem o sobrinho, o conde concebeu um plano para submetê-lo, à força, aos seus desejos. Mas seu propósito magnífico se mostrou mais frutífero do que ele esperava... — Logan apertou os lábios com tanta força que eles empalideceram. Ergueu seu corpo, totalmente tenso, como um homem que espera com honra a chegada da morte. No entanto, o fato de que Anne continuou a beijá-lo com tanta devoção o fez relaxar a ponto de se tornar uma poça de gelo derretido. Ele engoliu em seco, fixou os olhos no fogo e continuou:—Até aquele dia, ele me inundou com um número infinito de propostas de compra suculentas, mas as rejeitei porque nunca quis me livrar dessa casa. Já lhe disse no celeiro que a reconstruí com minhas próprias mãos e tudo o que encontrou dentro consegui através de um grande esforço. — As palmas de Anne se subiam e desciam sem descanso e sentiu que aqueles movimentos leves continuavam a aplacar sua inquietação. Como ela poderia estar ao seu lado ouvindo tal atrocidade? Por que não o deixava sozinho com seu sofrimento? Talvez houvesse uma pequena possibilidade de estarem juntos... —No mesmo dia em que concluí a restauração, George apareceu enfurecido. Seu tio o castigara novamente por ter quebrado uma de suas muitas regras. Nada poderia tranquilizá-lo, nem mesmo as duas garrafas de conhaque que ele engoliu enquanto me contava a humilhação e a dor que sentiu quando o chicoteava na frente dos criados. Então ele confessou que Burkes havia deixado sua casa para compartilhar mais uma noite de moralidade com o juiz Clarke e o pároco Madden. Então tive a brilhante ideia de perguntar se a donzela estaria disposta a nos oferecer uma noite divertida. A emoção que George mostrou em seu rosto corroborou minha decisão. Laxton costumava fugir de todos os seus problemas e preocupações depois de uma sessão de sexo tórrido e juro que ele precisava daquela noite...

—E...? Fez isso?

O tom de voz de Anne não expressava ódio, nem nojo, nem mesmo um ligeiro sentimento de ódio. O que transmitiu em sua pergunta foi tristeza. O mesmo que uma mãe mostraria por descobrir que seus filhos fizeram um mal que causaria um problema sério. Essa atitude fez Logan mais forte e ele abandonou toda a tristeza que sua revelação sombria lhe causava. Talvez houvesse uma possibilidade de que ela perdoasse tudo o que fez no passado, mas... poderia suportar toda a verdade?

—Sim, nós fizemos, e nós dois caímos na armadilha que o conde planejou — ele disse asperamente. — No meio da orgia, no momento em que ambos estávamos possuindo a mulher, a porta da sala se abriu e três pares de olhos nos observaram: o conde, o juiz e o pastor.

—Meu Deus! —Exclamou Anne horrorizada.

—Sim, foi o que o pároco gritou quando descobriu o que estávamos fazendo ali dentro — ele disse sarcasticamente.

—O que aconteceu depois? — Ela estava interessada, agarrada a sua cintura forte com mais ímpeto. Tentando mostrar naquele ato de afeto que, apesar de tudo, continuaria a apoiá-lo.

—Burkes ordenou ao sobrinho que se retirasse para seu quarto e me obrigou a ter uma reunião com as outras testemunhas. Quando me vesti e entrei na biblioteca, custodiado por seu mordomo, ele começou a me insultar e me culpar pela imoralidade de George. Colocou o juiz e o pároco contra mim, embora não tivesse que fazer muito para isso também. Eles já haviam me condenado à morte desde que viram nós três na sala. Então, depois de ouvir todas as acusações, tentei me defender... — Ele suspirou novamente e fixou os olhos no fogo. — Não pude expor nada do que pensava no caminho para aquela maldita sala. O pároco Madden trouxe a vida libertina de meu pai e os rumores sobre a descendência que ele gerou. O juiz Clarke se juntou a essas acusações. Apontou o dedo para mim e me avisou que perguntaria sobre minha verdadeira origem, porque, como havia ouvido de um juiz de Londres, o falecido marquês de Riderland e a falecida marquesa assinaram minha certidão de nascimento quinze anos depois de eu nascer. O pároco também acrescentou sua versão daquela estranha negligência, segundo a qual a marquesa nunca pronunciou meu nome quando aparecia em sua paróquia para confessar seus pecados. Parece que o único nome que saia de sua boca era o de Charles, o filho que morreu bravamente para salvar algumas crianças pobres de uma casa queimada pelo fogo.

—Me lembro dessa notícia... — Anne sussurrou, descansando uma bochecha em suas costas largas. — Minha mãe não parou de falar sobre o que aconteceu e exaltou o heroísmo de seu irmão.

—Meu irmão? — Retrucou Logan se afastando dela. —Esse não era meu irmão!

—Logan... — ela sussurrou, olhando para ele com tanta tristeza e pena que seu coração afundou.

—Não, não era! — Ele assegurou sem rodeios —Sabe quem realmente era esse filho do demônio? Um louco! Um perturbado! Foi ele quem causou o fogo! Ele queria ver todos os filhos ilegítimos de seu pai queimados no fogo! E entre aqueles bastardos estava eu... — ele confessou antes de abaixar os olhos e fixá-lo no chão.

—O que?! — Ela perguntou, arregalando os olhos. Levou as mãos trêmulas ao peito para aplacar a batida rápida de seu coração. Suas pernas começaram a perder força e tudo ao seu redor começou a se mover. Estava tonta e sufocada, porque também não podia respirar. Logan era um filho ilegítimo do Marquês? Impossível!

—Que eu sou uma desova, Anne. Sou uma criança indesejada... — ele disse com firmeza. — Nunca ouviu as histórias descaradas do meu pai? — Ela negou com a cabeça enquanto andava para trás. Quando sentiu nas solas dos pés a maciez do carpete colocado em frente à lareira, flexionou os joelhos até que sentar no carpete. —Pois o muito condenado sujeitava todas as mulheres que ele desejava a seu prazer. No meu caso, teve a terrível audácia de aceitar a proposta que os pais da minha mãe de verdade ofereceram para que pudessem ficar em uma de suas terras, ricas para cultivo e para caçar. Sabe quem mantém uma vida nômade? Pode ter uma ideia de quem minha mãe poderia ser?

Ao ouvir essas perguntas, Anne abaixou a cabeça e se abraçou com força. O que ouvia não podia ser verdade. Logan estava mentindo! Mas... com que propósito? Para tê-la? Por quê? Ele não perdia mais do que ela, revelando esse fato? Muito lentamente, ela ergueu o queixo e quando viu o rosto de Logan, ficou sem fôlego. Não encontrou nada que indicasse que estava mentindo. A expressão daquele olhar triste e agonizante declarava que ele estava dizendo a verdade. Ele não queria despir sua alma? Bem, aí estava. O homem que ela amava confessava seu passado. Um que ela nunca teria imaginado, mas com o qual sonhou mais de uma vez. Agora a última peça daquele quebra-cabeça incompleto estava em sua mão, faltava apenas que ela pudesse encaixá-la com as outras.

—Vejo que não quer me responder... sente tanta repulsa por confessar que sou filho de uma cigana? Só ama o visconde? — Ele disse com um grunhido áspero.

—Realmente acha que posso sentir repugnância conhecendo sua verdadeira origem? Eu? — Gritou fora de si. — Esqueceu o sangue que corre nas minhas veias? — Se aventurou a atacá-lo, levantando-se com tamanha bravura que seus tendões doíam.

—Sinto muito, não estou falando corretamente — murmurou inclinando a cabeça para o chão, mostrando tanta submissão que Anne queria tirá-lo desse estado de desânimo com uma grande bofetada.

—Não sou aquele que negou suas origens! Não sou aquele que mentiu!

—Eu... eu não queria fazê-lo — ele disse finalmente levantando o rosto até que seus olhares se encontraram. — Juro pela minha vida que, desde o primeiro momento, quis tornar público quem era minha mãe, mas Roger me impediu.

—Por quê? É ele quem rejeita suas origens ciganas? Te obrigou a permanecer em silêncio? É por isso que o falecido marquês assinou sua certidão de nascimento? Seu grandioso irmão não queria manchasse o honrado seu título?

—Não! — Ele gritou andando em direção a ela até que estavam tão perto que o calor do corpo de Anne, provocada pela raiva, aqueceu o seu, gelado por esse ataque de bravura.

—Não o entendo, Logan! — Ela exclamou, levando as mãos ao rosto para esfregá-lo com desespero. — Realmente não entendo a atitude dos aristocratas! O que queria? Por que não deixou revelar quem era? Que impacto teria outro filho ilegítimo? Existem centenas!

—Isso destruiria tudo aquilo que fez... — ele apontou suavemente.

—Quer dizer sua vida social bem-sucedida? — Ela disse em voz alta.

—Não! Roger sempre lutou contra todos os benefícios que lhe davam o título de Marquês! — Se esforçou para esclarecer.

—Então... o que foi? O que ainda está escondendo, Logan? — Ela disse com firmeza.

Lentamente, Logan olhou para as mãos de Anne, que tremiam com o estado de raiva, entrelaçou os dedos dela com os seus, levou-os até os lábios e beijou-os um a um.

—Quando Roger era criança, descobriu algo tão macabro que o forçou a se afastar de seus pais. Tanto o marquês como a marquesa o deram como morto e educaram Charles, seu irmão gêmeo, para que um dia ostentasse o título — começou a narrar enquanto colocava as mãos de Anne sobre o peito para que sua respiração e os batimentos cardíacos confirmassem a veracidade da história. — Ao retornar, muitos anos depois, os marqueses uniram forças para aniquilá-lo, mas graças à piedade de seu mordomo, conseguiu sobreviver. A partir daquele dia, jurou destruir seus pais e havia apenas uma maneira de fazê-lo.

—Qual? — Era a primeira vez que os olhos de Logan brilhavam com lágrimas. Aquele homem vulnerável que encontrou ao entrar no escritório havia retornado. No entanto, não o deixaria sozinho. Desta vez, ela estava ao seu lado para ajudá-lo a lutar contra os demônios que o atormentavam.

—Com o dinheiro que recebeu por suas viagens, reuniu uma fortuna suficiente para construir aquela residência que foi destruída pelo fogo. Ali permaneceram mais de trinta filhos bastardos por um longo tempo. Ele nos mantinha protegidos da marquesa.

—A marquesa sabia das infidelidades do marido? — Ela retrucou espantada.

— Sim, porque muitas das mulheres que mantinham relações com ele apareceram meses depois, carregando em seus braços o fruto daquelas escapadas românticas.

—O que ela fez? — A expressão de Logan endureceu e seus olhos escureceram para se tornarem as próprias asas de Astennu. — Não me diga que os matou? — Ela disse sem pensar.

—Sim. Até que Roger conseguiu nos salvar, ela ceifou a vida dessas crianças para manter o casamento seguro.

—Então... aconteceu... Charles descobriu... e queria matar todos vocês para que... — ela tentou dizer. Mas as conclusões a que seu cérebro chegou foi mais rápida do que sua capacidade de falar e foi incapaz de realizar uma frase completa. — Oh, meu Deus! — Ela exclamou antes de romper o pranto que havia segurado.

—Calma Anne — ele tentou acalmá-la abraçando-a com força. — Muitos de nós foram salvos graças a Roger e ele conseguiu, com a ajuda do Duque de Rutland e do Barão de Sheiton, construir outra residência onde pudéssemos viver.

—Qual é a sua história, Logan? — Ela perguntou se afastando de seu amado para olhar seu rosto e embalá-lo em suas mãos. — O que aconteceu com sua mãe? Foi ela quem o levou até Roger?

—Não. Ela não pôde me levar porque morreu no parto — ele declarou em uma voz estrangulada. —Era uma menina quando ficou grávida, mal tinha completado 14 anos e não suportou o parto. Sua mãe...

—Sua avó — O corrigiu.

—Não posso chamá-la assim, Anne. Vê a cicatriz no meu peito? —Ela direcionou o olhar para aquela marca e, depois de tirar a mão daquele rosto aflito, acariciou-a devagar. —Tentou me matar. Talvez tivesse conseguido se a mulher que me criou não a tivesse seguido até a floresta onde, depois de me rasgar com uma adaga e confirmar que meu sangue chamaria as feras para me dar um fim, me abandonou. Shara sabia que, quando voltasse para a colônia comigo em seus braços, sofreria a ira daquela mulher perigosa, mas não se importou. Teve que passar por uma dura punição por se atrever a desafiar a feiticeira, a essa avó que deseja que nomeie. Mesmo assim me assumiu com integridade por seis anos. A partir daquele momento, quando observou que todos os membros do clã também eram cruéis comigo, nos afastamos da colônia e vagamos até que um visconde nos acolheu. Ela se tornou uma serva e eu era o bastardo triste de um homem que ninguém conhecia. Só soube que o marquês de Riderland era meu verdadeiro pai quando Shara adoeceu. Antes de morrer, continuou a lutar por minha vida e não deu seu último suspiro até que Roger lhe jurou que eu estaria a salvo ao seu lado.

—E manteve sua palavra — murmurou Anne, abraçando-o com força.

—Sim — disse Logan, se deixando abraçar, se permitindo finalmente sentir alguma calma em sua alma inquieta. Tenho que continuar protegendo o segredo, Anne. Não posso destruir tudo o que Roger fez por nós. Devo assumir a condenação que eu mesmo ganhei com o conde. Se continuar pagando por tudo que me pede, se de uma vez por todas vender Harving House... meus irmãos não sofrerão mais humilhações e o trabalho de Roger continuaria a ser protegido.

—Maldito filho da puta! — Gritou Anne, se lembrando da chantagem do conde. Afastou-se de Logan e começou a andar pelo escritório. — Quero matá-lo! Quero estrangulá-lo com minhas próprias mãos! — Declarou erguendo os braços e entrelaçando os dedos como se de fato o pescoço do velho Burke permanecesse entre eles. —Não vai desistir, certo? Quer vê-lo humilhado e destruído! — Ela berrou. — Bem, ele não vai conseguir! Aquele porco não sabe quem são as Moore! Escreverei uma carta para minha mãe e pedirei que ela se apresente o quanto antes. Certamente, entre todos podemos traçar um plano que possa destruí-lo. Por nossas veias corre sangue maldito, muito perverso — disse ela estreitando os olhos. — Sabe quem foi minha avó? Jovenka! Uma cigana que esterilizava a terra que tocava seus pés!

—Anne... Por favor... pense um pouco, querida. Nós não podemos enfrentá-lo. Não só a reputação de meus irmãos estará em perigo, mas sua família estará envolvida nessa atrocidade. Não vou arrastá-la também! Tenho que aceitar minha culpa!

—Sua culpa! Como declara esse absurdo, Logan Bennett, visconde de Devon, irmão do idolatrado marquês de Riderland? — Acha que seu irmão lhe daria uma tapinha nas costas e apoiaria essa decisão? Onde está esse sangue cigano que banha suas veias? Renunciou tanto a ele que não existe mais em você?

—Não! Claro que não! — Ele berrou. — Mas... o que eu posso fazer?

—Lutar! — Ela gritou, erguendo o punho direito. — Como todos os nossos ancestrais lutaram.

—E como quer que façamos isso, querida? Na festa? — Disse mordaz.

—Que festa? — Ela fez a pergunta com uma voz calma, como se de repente toda aquela fúria se libertasse de seu corpo.

—George me trouxe um convite que não posso recusar—ele murmurou. — Também me disse que se alguém descobrir sua presença em Harving, os rumores sobre minhas perversões aparecerão novamente e vocês...

—Nós estaremos desonradas — Anne terminou a frase cerrando os punhos. — O que planejou fazer? O que quer que façamos?

—Disse à Laxton que minha noiva...

—Noiva? — Ela interrompeu. — Que noiva?

—Você. Quem mais poderia ser? — Ele disse, dando passos largos até ela. —Sabe que te amo, Anne, que quero me casar com você porque, como descobriu, a maldição da qual tanto teme romperá comigo.

—Nos casarmos... —Ela murmurou abaixando o rosto. Surpreendida pela magnitude que originava essa simples palavra.

—Não quer fazer isso? Não me ama como eu te amo? — Ele perguntou, notando como outro nó apareceu em sua garganta.

—Sim, amo você, Logan. E posso assegurar-lhe que, depois de saber quem realmente é, o desejo de me tornar sua esposa aumentou.

—Então? O que a impede de fazê-lo? — Ele disse, erguendo seu queixo com dois dedos.

—Não sei se posso te dar o que precisa... — ela declarou olhando-o nos olhos.

—E o que, de acordo com você, eu preciso? — Ele retrucou, arqueando as sobrancelhas escuras.

—Não posso... nunca conseguiria... não seria capaz de...

—Anne — ele sussurrou, roçando com a boca esses lábios trêmulos. — O que não poderia, meu amor?

—Não poderia colocar outro homem na minha cama — declarou ela aterrorizada.

—Não vou consentir com isso! Você é minha, Anne Moore! Só minha! — Ele esbravejou antes de submetê-la a um beijo tão possessivo que não deixava dúvida de que seu futuro marido não a compartilharia com ninguém.


XXXIII


No dia seguinte, depois do café da manhã, Logan chamou todo o serviço na sala de jantar. Por causa da inquietude em seus rostos, Anne supôs que eles estavam desconfortáveis com a aparição do sobrinho do conde. No entanto, a incerteza foi transformada em júbilo ao ouvir a notícia de seu compromisso. Eles não pareciam surpresos, mas aliviados, algo que intrigou Anne. Eles não conseguiram manter o relacionamento em segredo? Temia que não, porque as expressões de alegria da Sra. Donner a fizeram entender que eram, em mais de uma ocasião, testemunhas silenciosas de seu romance. Josh abraçou Logan e depois a beijou inúmeras vezes. A única pessoa que não parecia gostar da notícia era Elizabeth. Quando ela se levantou da cadeira e saiu da sala, Logan a seguiu com um passo firme.

—Não faça nada — disse Josh enquanto tentava se levantar. Deve deixá-los sozinhos. Eli precisa assimilar que você alcançou seu sonho idílico.

Esse comentário a entristeceu. Nunca imaginou que se tornaria esposa de um aristocrata e que um dia seria uma marquesa. No seu caso, só queria se afastar de sua família para não a machucar mais. Por que o destino era tão caprichoso? Como diabos ele os juntou? Alguma vez pensou que amaria um cigano com uma mistura de sangue azul? Essa pergunta a fez sorrir. Não, é claro que nunca sonhou em se casar com um homem que escondia a selvageria dos ciganos e não imaginava que ele era tão apaixonado...

Depois de muito tempo, Logan voltou para a sala sustentando o braço de Elizabeth. O olhar dela havia mudado e sua atitude também. Uma vez que se sentou na cadeira, colocaram o plano em movimento.

—Nós não podemos aparecer sem um acompanhante — disse Elizabeth depois de ouvir a história estudada do visconde. — Isso os faria pensar que está mentindo para eles.

—Está certa —Logan bufou. —Não seria apropriado que aparecessem sem uma presença respeitável —acrescentou ele mordaz.

—O que acha, milorde, se transformarmos a Sra. Donner numa tia distante da senhorita Moore? Eu poderia me tornar seu filho e ela poderia ser uma viúva —esclareceu.

Quando Howlett, que não parou de produzir palminhas desde que soube que o visconde se casaria com Anne, ofereceu essa alternativa, todos os olhos se voltaram para ele.

—É uma ideia fantástica —admitiu Logan. —O que acha, Sra. Donner? Gostaria de se tornar a tia dessas meninas adoráveis?

—Milorde, me sentiria muito honrada em desempenhar esse papel, mas não sei se posso convencê-los como desejam. Minhas mãos estão... — Ela tentou dizer, estendendo as palmas para o seu senhor.

—Isso não será um problema —disse Elizabeth. — As senhoras sempre cobrem as mãos com luvas de seda.

—Mas eu também não sei dançar, se alguém tentar ter uma conversa culta comigo... — ela murmurou desconfortável.

—Sobre o tema da dança, não se preocupe, poderá fingir que se sente fatigada pela idade —respondeu Elizabeth novamente. —E sobre as conversas, devo confessar que nenhum cavalheiro ousará pedir sua opinião sobre uma questão importante. Estou certa de que falarão sobre o clima, sobre a esplêndida festa que o anfitrião ofereceu, sobre as deliciosas iguarias que oferecerá a seus convidados e a magnífica repercussão social que o conde obterá quando a noite acabar.

—Somos tão previsíveis? —Logan exclamou zombeteiro. Cruzou os braços e se inclinou descuidadamente em um canto da lareira de pedra ambarina.

—A aristocracia é simples demais, qualquer um poderia se apresentar como um deles se adotasse esse comportamento tolo —disse Eli, levantando o queixo e olhando para ele sem piscar.

Naquela rude declaração, Anne olhou para Elizabeth como se fosse aniquilá-la, mas a risada de Logan fez com que apagasse esse desejo maquiavélico.

—Está certo, Eli! Somos tão simples que qualquer um pode se passar por um de nós! — O visconde acrescentou sem parar de rir, descruzou os braços e caminhou em direção à jovem para lhe dar um terno beijo no lindo penteado que usava naquela manhã.

Quando a atmosfera ficou mais fluida e relaxada, Logan e Anne informaram a todos sobre suas novas tarefas e começaram a trabalhar. Howlett e Elizabeth foram encarregados de instruir a cozinheira. Embora em mais de uma ocasião, ouviram os gritos desesperados que a pobre mulher produzia ao se submeter aos mandatos do valete. Josh, para seu pesar, teve que visitar, junto com Anne, uma costureira para fazer um vestido para ela. A primeira vez que ela viu a intrépida Moore vestindo uma roupa tão feminina, não soube se expressava mais horror o rosto da vendedora ou de sua irmã.

—Onde posso esconder o punhal? — Ela comentou enquanto observava o tecido, os babados e as rendas.

—Não terá que levar nada. Lembre-se de que estamos indo a uma festa e que nosso trabalho é mostrar um caráter gentil e educado — Anne disse em um tom firme.

—A liga é ideal para um punhal curto — sussurrou a assistente da loja em seu ouvido ao fixar o babado no ombro direito. Tenho clientes que me pedem certas restrições nas meias...

Essa revelação e a cumplicidade que a costureira lhe ofereceu fizeram com que Josh relaxasse e acabasse pedindo-lhe duas boas restrições para suas pernas.

Marco, o administrador, também se juntou ao plano. O propósito dele era proteger as irmãs enquanto o visconde se encontrava com o conde. Embora permanecessem protegidas pela Sra. Donner e Howlett, Logan não queria que o juiz ou o pastor tentassem se aproximar delas para realizar algum truque sutil. Precisava controlar tudo...

O mais engraçado daqueles dias foi o momento em que ele o apresentou a Elizabeth e ao seu fiel companheiro. Os olhos de ambos se arregalaram tanto que poderiam escapar de suas órbitas. Marco mostrou uma figura solene com seu terno sob medida e a última moda, e este exaltou suas tão exóticas características espanholas. Presumivelmente, Eli adotou o comportamento sedutor até descobrir que ele era um simples administrador. No entanto, o interesse do valete nele aumentou, deixando bem claro que queria seduzi-lo. Embora Logan tentasse mantê-lo longe dele, Howlett procurou desculpas absurdas para chamar sua atenção e o visconde, notando que Marco não o evitava, e sim desejava acalmar todas as preocupações de seu criado, desistiu de seu propósito. Quem era ele para lutar contra o amor de dois amantes?

Durante as noites, e embora a Sra. Donner tivesse decidido não dançar na festa, Kilby insistiu em mostrar-lhe a beleza da dança. Nesses momentos, todos descobriram que o mordomo sentia alguma atração pela cozinheira e que escondeu até que a mão esquerda do fiel empregado se instalou na cintura da mulher com determinação.

Tudo estava preparado. Nem um único detalhe foi deixado sem revisar. Só esperava que a festa saísse tal como haviam planejado.

—Nervosa? —Logan perguntou a Anne uma vez que eles se acomodaram na carruagem. Ele a observou como se fosse seu maior tesouro, sua deusa, e sorriu quando decidiu colocar todos os acessórios que tinha em laranja. Parecia que os brincos, o colar e a pulseira que brilhava toda vez que ela movia o pulso os transformavam em amuletos da sorte.

—Você não está? — Ela respondeu, olhando para ele surpresa.

—Vou dar por encerrado a extorsão que sofro há vários anos, vou à luta para salvaguardar a honra da minha família, vou apresentar minha futura esposa a sociedade e tenho que tirá-la de lá sã e salva, isso deveria me perturbar? — Disse matreiro.

—Não, claro que não — disse Anne, sorrindo amplamente. — Um cigano nunca se curvaria a problemas menores.

—Disse bem, querida, disse bem... — Logan declarou antes de perceber como a mão esquerda de Anne pressionou a dele e como a pulseira laranja os unia ainda mais.

***

—Isso é chamado de lar? —Elizabeth gritou quando saiu da carruagem com a ajuda de Howlett, que logo retornou com Marco. A jovem olhou para a residência do conde e abriu bem os olhos. Austero, mesquinho, ridículo e vulgar foram às palavras que apareceram em sua cabeça quando contemplou aquele terreno. — Agora entendo o motivo dele querer comprar Harving House — disse ela à Logan. — Este lugar é sombrio e apertado. Não é capaz de investir parte de sua fortuna suculenta para consertar o jardim? As flores estão murchas! — Ela acrescentou furiosa.

—É a primeira vez que vou dizer isso, Eli, então ouça bem — falou Josh, lutando com a saia de seu vestido de seda verde-esmeralda. — Tem razão. Isso é abominável mesmo para mim. Nunca vi um lugar tão repulsivo. O conde quer fazer o mesmo com a Harving House? Porque tenho certeza que ele vai abandoná-la ao seu destino...

—O que ele quer é comprá-la por menos do que custa — resmungou Logan — e depois vendê-la pelo triplo.

—Não vai deixar, certo — Perguntou Howlett, horrorizado. — Levei muito tempo para encontrar aquelas cortinas de ovelhas irlandesas suaves e elegantes para essa crápula as transformar em trapos de cozinha.

—Não — Bennett disse com firmeza. — O conde não alcançará seu propósito. É por isso que estamos aqui, para consolidar minha recusa.

—Realmente acha que explicar que se casará com Anne e que quer usá-la como uma segunda casa fará mudá-lo de ideia? —Josh perguntou, sem tirar os olhos do visconde, colocou as mãos furtivamente em ambos os lados de suas coxas para se certificar de que as adagas estavam no lugar.

—Tenho certeza de que o conde desistirá quando explicar que uma futura marquesa, que dará à luz uns seis filhos fortes e robustos, precisará dessa residência para educá-los sob a moralidade adequada. Lembre-se de que esse homem acha que Londres é uma cidade dedicada a uma catástrofe social por causa da perversão de seus habitantes — assinalou Anne, estendendo a mão a Logan para acalmar a inquietude que dizia não ter. — Deve recusar qualquer conversa sobre virtude, economia, origens ciganas, a popularidade do nosso pai e se alguém lhe perguntar a razão pela qual ele não veio, tem que indicar que...

—Que foi a um congresso muito importante para sua carreira profissional e que nossa mãe chamou tia Gerthudies e nosso querido primo para nos acompanhar nesta viagem — recitou Josh aborrecida.

—Preparados? —Logan perguntou, pouco antes de pisar no primeiro degrau daquela escada de pedra rachada que os levaria à entrada principal.

—Sim! — Todos responderam em uníssono.

O mordomo do conde, aquele que custodiou Logan na noite da trama, os recebeu minutos depois de bater na porta. Dois servos estavam encarregados de recolher seus casacos. Então, eles caminharam rapidamente pela galeria à esquerda. Logan olhou para Marco e acenou para ele. O administrador entendeu rapidamente e ficou do lado direito, vigiando a entrada das mulheres. Respirou fundo para acalmar o estado de agonia que não queria mostrar a Anne, pôs a mão no antebraço e ficaram na entrada da sala até que outro criado os anunciou.

Definir esse grupo de quatro músicos como uma orquestra era dar-lhes uma categoria muito alta. Os quatro homens colocados no canto não conseguiam pegar o compasso. Mas os participantes não deveriam se importar com esse ritmo desequilibrado porque estavam ocupados demais olhando a decoração desastrosa que os rodeava. O conde já havia dado a entender, pelo lado de fora da casa, o que encontrariam dentro, mas nenhuma das irmãs imaginou esse horror. Uma coisa era certa, o chão brilhava e o candelabro de cristal pendurado no teto a luz das velas, que emitiam um cheiro pútrido de um bezerro morto, iluminavam o salão. Logan olhou para Anne e ela sorriu para ele. Não havia dúvida de que o conde preparara essa cerimônia rapidamente. Talvez inclusive no mesmo dia que o sobrinho lhe entregou o bilhete. Possivelmente pensou que o visconde não se atreveria a aceitá-lo e, em resposta à sua resposta afirmativa, ordenou que seus poucos serventes a preparassem com urgência. Certamente esses quatro não fossem realmente músicos e sim empregados que, durante três dias, aprenderam a soprar um instrumento de sopro e a quebrar as cordas de um triste violino. Sim, provavelmente seria isso...

Josephine fixou os olhos nas quatro paredes do salão e prendeu a respiração ao descobrir que as sete pinturas gigantescas tinham o mesmo rosto. Mudaram os fundos, as formas de seus vestidos pretos, mas aquele semblante sério, rígido e implacável aparecia em todos eles. Não entendia como os convidados podiam conversar com facilidade, enquanto sete pares de olhos ferozes os observavam como se quisesse lançar um raio fulminante contra eles. Inconscientemente, levou as mãos aos punhais e acariciou-os. Não hesitaria em usá-los se suas vidas estivessem em perigo...

Elizabeth notou como a Sra. Donner pressionava os dedos no seu braço e puxou-a para lhe dizer alguma coisa. Uma vez que confirmou que ninguém estava olhando para elas, inclinou a cabeça para a mulher.

—Como vou falar sobre os assuntos que me sugeriram? — Ela murmurou apavorada. —Não é uma grande cerimônia, a sala é sombria e receio que a comida nos deixará doentes. Eu nunca conheci um conde com tanta ruindade e miséria. Os ternos dos servos foram remendados várias vezes, a madeira não é devidamente tratada, por isso estaremos cercados de verme da madeira, castiçais, bandejas e receio que os talheres não sejam de prata, os copos em que bebem os escassos trinta convidados não brilham e esse cheiro... — Ela franziu o nariz ligeiramente. O jantar foi queimado?

—Pode falar sobre o tempo —sugeriu Eli, concentrando-se em não rir. Estendeu o leque e tentou se acalmar com o frescor que proporcionava.

Era verdade o que a Sra. Donner argumentava. Nada naquele lugar era digno de um conde, a menos que estivesse arruinado, e esse não era o caso, porque ele queria comprar a Harving House. Engoliu em seco quando olhou para as cortinas. De que século eram? A sujeira que mostravam e as tirinhas de baixos indicavam que não só tinham permanecido naquele lugar durante muitos anos, mas também tinham sido testemunhas de uma dura guerra.

—Do tempo? —A senhora Donner insistiu.

—Lembre-se que em breve mais chuva virá e aquelas pobres flores finalmente conseguirão um pouco de água.

—Água? — Ela perguntou, puxando-a ainda mais. — Não teremos a infelicidade de que chova enquanto permanecermos nesta sala, certo? Porque não tenho a menor dúvida de que este conde avarento não tenha reformado os telhados desta pocilga e nós teremos que beber um vinho rançoso enquanto evitamos a água das goteiras.

A risada de Elizabeth soou acima da música estridente. Esse ato sorridente e súbito chamou a atenção dos convidados e todos as encararam. Logan e Marco ergueram suas figuras grandes e fortes. Josh levou as mãos de volta ao lugar onde os punhais estavam escondidos e Anne, depois de olhar para Elizabeth intrigada, suspirou profundamente e desceu as escadas ao lado de seu noivo.

—Sinto muito... — ela se desculpou.

Era a primeira vez que não controlava seu comportamento em uma reunião social, mas o comentário da cozinheira foi tão espirituoso que não pôde segurar o riso. Ainda sentindo os olhares sobre ela, tentou se esconder entre Howlett e Josh.

—Lorde Devon, quanto me alegro em vê-lo! — Exclamou o conde, desenhando um sorriso pérfido. Ele caminhou em direção a eles, levantou a mão direita e esperou que ela fosse aceita.

—Lorde Burkes... —Logan respondeu, separando-se de Anne para aceitar aquela saudação hostil. — A honra é nossa por nos convidar para sua casa.

—Como poderia me privar da sua presença e da sua... noiva? —Ele retrucou, olhando para Anne com os olhos apertados.

—Senhorita Moore, apresento o conde de Burkes. —Logan colocou a mão esquerda na parte inferior das costas de Anne com a mesma determinação que Kilby colocou sobre a Sra. Donner. Esse ato de posse deve ter deixado claro que não estava mentindo e que a conversa que teve com George era verdadeira. Mas sabia que o conde não desistiria tão facilmente, em que momento da cerimônia ele mostraria sua verdadeira personalidade?

—Prazer em conhecê-lo, milorde —Anne o saudou, fazendo uma suave reverência.

—Igualmente senhorita Moore. Imagino que elas sejam suas amáveis irmãs, certo? Já ouvi falar das filhas Moore. — Depois de suas palavras, seus olhos negros olharam para a Sra. Donner e um sorriso maligno foi desenhado.

— Sim, elas são minhas irmãs, minha tia, viúva, a Sra. Yenkis e meu primo, o Sr. Yenkis. Espero que a informação que teve sobre nós o tenha agradado — respondeu Anne, que sutilmente moveu seu corpo com elegância para se separar da Sra. Donner.

—Sim, tanto quanto o que ouvi de seu pai — assegurou o conde, sem apagar aquele sorriso pernicioso. — Segundo minhas fontes, não demorará muito para se tornar um dos dez médicos mais importantes de Londres.

—Ainda não é? — Anne perguntou rapidamente quando ouviu Josh rosnar. Agradeceu a sua mãe criadora por não carregar nenhuma arma escondida, porque tinha certeza de que ela o teria matado naquele momento.

—Receio que não, senhorita Moore —respondeu o conde grosseiramente.

—Bem então, rezemos para que nossas súplicas sejam ouvidas por nosso Deus e que um dia consiga —alegou com aparente desalento enquanto fazia o sinal da cruz.

—São religiosas? — Burkes perguntou, arregalando os olhos.

—Dedicadas, milorde. Nossos queridos pais foram capazes de nos educar sob a magnificência que nossa religião supõe e devo confessar que nos sentimos muito desoladas aqui. Desde que chegamos a Harving House, meu noivo tem estado tão ocupado com seus deveres administrativos que não pudemos assistir a nenhuma missa. Felizmente, minha querida tia, cuidou da nossa paz espiritual. Embora tenha que confessar que não é o mesmo...

—Entendo perfeitamente — disse o conde, estendendo o braço para que pudesse acompanhá-lo. —E seus pais... aceitaram com prazer seu compromisso com o visconde? —Ele perguntou quando deram alguns passos.

—Claro! — Ela exclamou com aparente constrangimento. ?Não acha, milorde, que este casamento será bastante proveitoso para nós? — Ela acrescentou em voz baixa, como se estivesse revelando um segredo.

—Entendo... —Burkes respondeu com um largo sorriso. —Seus pais são muito inteligentes, senhorita Moore.

—Vamos confiar a Deus para que permaneçam assim com minhas outras quatro irmãs — disse com aflição fingida.

—Seu pai tem que casar as cinco filhas? —O velho exclamou, arregalando os olhos. Agora ele entendia o desespero do médico por unir a mais velha de suas filhas com um visconde. Graças ao título que ela teria no futuro, o resto poderia rapidamente encontrar um bom marido.

—Exatamente, milorde. Não gosta de crianças? —Ela perguntou, agitando seus cílios.

—Minha querida esposa, que Deus a tenha em sua glória, tentou me dar vários, mas infelizmente todos morreram logo após o nascimento — disse ele com tristeza.

—Sinto muito —respondeu Anne, dando-lhe leves palmadinhas no braço.

—Eu também —disse ele antes de levá-la ao lugar onde o pároco e o juiz estavam sentados.

Se queria realizar seu plano, tinha que se concentrar na noiva. Nenhum homem deixaria sua futura esposa nas garras de seu inimigo. O visconde ficaria tão obcecado em vigiá-la que deixaria as duas irmãs desprotegidas. Então Lorde Norfolk escolheria a mais vulnerável...

—Acho que deveria tê-la apresentado quando chegou em Harving House —Marco comentou com Logan, que, observando o comportamento gentil entre o conde e Anne, começou a relaxar.

—Se não o conhecesse como conheço, pensaria que Anne o deslumbrou, mas temo que seja uma miragem. Esse verme irá sujeitá-la a todos os tipos de interrogatórios até que atinja seu objetivo —disse ele, apertando a mandíbula.

—Que será...? —Marco acrescentou.

—Humilhá-la — ele garantiu antes de caminhar até deles.

Era hora de apagar os medos do passado e encarar de uma vez por todas o presente e o futuro que ele queria viver com Anne.


XXXIV


?Que devemos fazer? —Josephine perguntou à irmã quando estavam sozinhas.

—O normal, neste tipo de celebração, é que a anfitriã nos apresenta aos outros convidados para interagir e conversar. Mas desde que ela está morta...

—Juro que se ela aparecer na nossa frente, eu desmaio —Josh interrompeu, olhando de volta para as pinturas escuras. Teria pensado que aqueles olhos a estavam observando? Pois continuava confirmando essa suposição.

—Seria melhor se nos dirigíssemos para o fundo da sala, onde colocaram a mesa com as bebidas e os deliciosos aperitivos.

—Deliciosos? A cozinheira retrucou, apertando os olhos. Para que os outros convidados não descobrissem o desgosto que seu rosto expressava, estendeu o leque e começou a sacudi-lo, mas Elizabeth a repreendeu com o olhar quando viu que estava agitando-o com tanta força.

—Não temos a obrigação de comer, embora seja aconselhável que mexa a boca de vez em quando, como se mastigasse. O anfitrião pode se sentir ofendido se não aceitarmos sua oferta.

—Realmente acha que estou preocupada com o que aquele homem mal-humorado pensa de mim? — Disse Howlett sarcástico. — Não quero ficar doente amanhã de manhã e ter que viajar de volta para Londres implorando ao cocheiro para parar mil vezes ao longo do caminho.

—Devemos insistir para que ele espere mais alguns dias —disse Eli, referindo-se à decisão do visconde de sair de madrugada. —Amanhã não conseguiremos acordar cedo. As cerimônias geralmente duram muito...

—Isso seria em uma festa que é nomeada como tal, mas... não vê o que eu vejo? —Howlett insistiu enquanto tentava fazer com que Josh andasse sem tropeçar nas saias do vestido e manter as costas retas.

—Bem, não me importo de acordar cedo para voltar... —Josh murmurou melancólica. —Juro que tenho sido muito feliz andando com Galeón nessas terras, mas anseio por Madeleine. Nunca imaginei que o vínculo entre nós fosse tão forte.

—Não se preocupe, tenho certeza que o Sr. Kilby e o resto do serviço terão tudo pronto para sair de madrugada. Nunca conheci um mordomo tão eficiente —disse a Sra. Donner, abanando-se novamente.

—Meu tio é um homem muito especial —disse Howlett em voz baixa, e sorriu para o constrangimento que esse comentário causou na cozinheira.

—Podemos acelerar um pouco? —Elizabeth perguntou a eles. Olhou para o fundo da sala e sorriu timidamente quando descobriu que os olhos de um belo cavalheiro a observavam em silêncio. Quem seria? Por que a contemplava daquele jeito descarado? Intrigada para descobrir, agarrou o braço da Sra. Donner com mais força e arrastou-a.

—Sinto muito, mas não vou provar uma única mordida —disse a mulher com desgosto.

—Portanto, o mais sensato é sair daqui. Se olhar para a direita, encontrará cadeiras que foram colocadas para que as mulheres solteiras e as idosas possam se sentar durante a noite —informou ela.

?Isso é o que eles chamam de cadeiras? —Retrucou a cozinheira, arregalando os olhos. —Os cavalos do nosso celeiro se deitam em fardos de feno mais confortáveis do que isso.

—Talvez essa seja a razão pela qual ninguém se sentou até agora... — apontou Elizabeth mordaz enquanto continuava olhando para o homem estranho.

—Mas devemos fazê-lo —disse Josh. ?Como nenhuma de nós quer dançar, é melhor sairmos daqui para que não comecem a murmurar sobre nossa estranha atitude, não é, Eli?

—Sim, Josh.

—Mas não quero deixá-la sozinha... —exclamou a cozinheira com algum nervosismo. — O Senhor tem...

—Não estarei sozinha, Sra. Donner. Howlett me acompanhará em todos os momentos.

—Tudo bem —hesitou a falsa tia, enquanto Josh agarrava o seu braço para se dirigir até as cadeiras.

—Sei o que pretende —Howlett sussurrou em seu ouvido —e não me parece certo.

—Só quero saber quem é e porque me olha tanto... talvez fôssemos conhecidos no passado...

?E não se lembraria? —Howlett retrucou arqueando uma das sobrancelhas loiras. —Ficaria muito surpreso se um homem assim desaparecesse de sua mente.

—Às vezes acho que lhe permiti muitas liberdades para minha pessoa... — declarou Eli tomando uma das bebidas que estavam na mesa.

—Também permitirá a esse cavalheiro certas liberdades? — Ele perguntou depois de se virar para observar Marco conversando com o grupo de homens que cercavam o visconde e sua noiva.

—Que me roube alguns beijos seria muito interessante —disse Elizabeth, olhando novamente para o estranho, que levantou o copo para oferecer-lhe um brinde silencioso.

Josh estava muito inquieta. Embora tivesse se sentado com a Sra. Donner e falado sobre o que fariam quando voltassem a Londres, nada poderia acalmá-la. Queria que terminasse a noite e a madrugada chegasse rapidamente. Suspirou profundamente, cruzou as mãos sobre a saia e fixou os olhos na maior janela, a que levaria ao jardim. Não poderia se levantar e caminhar furtivamente para aquela área do salão sem ninguém a observasse? Porque queria fugir, escapar de todos e sentir a liberdade que a natureza lhe proporcionava. Sem dúvida alguma, seu sangue cigano insistia para que não respeitasse os protocolos sociais e reivindicasse a essência de sua origem. Olhou para a Sra. Donner com o canto do olho e seu rosto expressava a mesma angústia que ela.

—Gostaria de sair na varanda? —Ela perguntou esperançosa.

— Será correto? Não sei se deveríamos sair do salão sem a permissão do visconde — disse ela em dúvida.

—Não ficaremos longe por muito tempo, garanto-lhe, apenas o suficiente para respirar um ar que não exale odor de umidade — acrescentou, levantando-se.

—Se diz —a cozinheira terminou aceitando.

Mas, assim que as duas estavam indo para aquela janela que as libertaria da pressão que estavam suportando, duas mulheres ficaram no caminho. A mais alta, vestida de luto rigoroso, sorria; a outra, que usava um vestido marrom agressivo, mostrava um semblante áspero como o que Josh havia observado no retrato. Teriam algum parentesco?

—Boa noite, somos a Sra. Clarke e a Sra. Madden. Desculpem-nos por não nos apresentarem, mas nossos maridos —disse, olhando para o grupo de homens conversando com o visconde e Anne —estão tão ocupados que não tiveram a decência de nos apresentar formalmente.

—Isso acontece em eventos tão importantes quanto este —observou a cozinheira, rezando para que seu comentário fosse preciso. —Sou Gerthudies Yenkis, a irmã do Dr. Moore e ela é minha sobrinha, Josephine Moore.

Deveria estender a mão para cumprimentá-las? Teria feito bem em adicionar o nome da menina? Sem saber muito bem o que fazer ou se havia falado incorretamente, esperou que elas dessem o primeiro passo e quando percebeu que suas mãos ainda estavam no mesmo lugar, agarrou o leque com força.

—Ouvi dizer que seu irmão está se esforçando para se tornar um bom médico —apontou afiada a mulher de vestido marrom, que deduziram ser a Sra. Madden.

—Não têm bons médicos aqui? ?A suposta tia disse, ao ouvir a respiração de Josephine se acelerar.

—Claro! —Exclamou a Sra. Clarke rapidamente. —O Dr. Phoeby é um bom profissional.

—Então, ele mesmo será capaz de lhe explicar se a fama que meu irmão ostenta em Londres é merecida ou não — ressaltou destemida.

—Não queríamos ofendê-la, Sra. Yenkis. Só queríamos confirmar que, se um dia viajássemos para Londres e, infelizmente, ficássemos doentes, estaríamos a salvo com os cuidados de seu irmão — interveio a Sra. Madden.

— Garanto-lhe que não terá nenhuma reclamação. Ele pode curá-las de qualquer doença — ela apontou severamente.

—Tia, me prometeu que...

Justo quando Josh ia lembrá-la que momentos antes tinham a intenção de deixar o salão, ficou sem palavras quando viu como uma figura masculina, andando com a ajuda de uma bengala, estava indo em direção a elas. Aquele cabelo de cobre, a mecha loira na testa, os olhos de safira e a boca gloriosa não haviam desaparecido de sua mente... seu corpo se endireitou como se fosse um soldado posando diante de um superior. Seu coração começou a bater com tanta força que ela sentiu o latejar em sua garganta e seu pulso acelerou tanto que ela não conseguiu ficar quieta. Segurou o braço da Sra. Donner com mais força e começou a fazer algo que não fazia desde que era criança: rezar para sua mãe criadora.

?Boa noite, senhoras. ? Eric Cooper cumprimentou-as com tal cavalheirismo que a Sra. Clarke e a Sra. Madden coraram como se fossem duas moças inocentes. Beijou-as nas mãos e depois esperou em silêncio que uma delas apresentasse as convidadas.

?Boa noite, novamente, lorde Cooper ? respondeu, por fim, a esposa do juiz. — Apresento-lhe a Sra. Yenkis e sua sobrinha, Senhorita Moore.

?Encantado... ? Ao perceber que a Sra. Yenkis tremia tanto que não conseguia estender a mão para que ele pudesse beijá-la, como fizera com as outras, juntou os saltos dos sapatos e cumprimentou-a com um aceno solene. ? É uma verdadeira honra conhecê-la pessoalmente, Sra. Yenkis. Garanto-lhe que ainda estou consternado depois de ouvir o episódio tão dramático que sofreu dias antes de viajar para cá ? disse reverentemente. ? Nunca imaginei que uma mulher tivesse tanta coragem.

?O que aconteceu? ? A esposa do padre perguntou com uma mistura de curiosidade e surpresa.

?Muito obrigado pelo seu louvor, milorde. Mas entenderá que não quero reviver essa situação novamente. Como meu querido irmão diz, é melhor esquecer todos os problemas para que nosso cérebro não adoeça ? ela disse com aparente calma, embora o tom de sua voz denotasse o contrário. ? Além disso, não é apropriado falar sobre aquele momento horrível na frente da minha inocente sobrinha. Josephine, querida, apresento Lorde Cooper, filho do...

?Barão de Sheiton ? Eric terminou a frase, sabendo que ela não o conhecia, mas estava atenta na forma como a esposa do juiz se dirigiu a ele. ? Senhorita Moore... ? Ele se referiu a Josh, esperando pela saudação que desejava desde que a viu entrar.

?Milorde ? disse ela, colocando as mãos em ambos os lados do vestido. Se curvou como uma dama educada, e quando seus olhares se encontraram novamente, ambos despendiam fogo pelos olhos. Os de Josh emanavam raiva, no entanto, os de Eric exalavam desejo.

?Poderia nos contar sua história, Sra. Yenkis? ? A Sra. Clarke insistiu.

?Não deveria ? a cozinheira hesitou. ? Realmente não seria bom para minha sobrinha. Meu irmão cuida muito de tudo o que suas filhas escutam e não ficará feliz em descobrir que eu quebrei uma de suas rígidas regras educacionais ? argumentou a Sra. Donner, adotando, finalmente, o papel que fingia ser.

?Posso ajudá-la com isso, se quiser ? Eric anuiu, olhando para a cozinheira severamente. ? Estou mais do que disposto a convidar sua sobrinha para um refresco enquanto explica a essas senhoras encantadoras como se livrou do homem que tentou agredi-la quando voltava de uma reunião culinária oferecida pela associação de mulheres.

Sabia! Ele sabia! Josh olhou para o rosto amedrontado da Sra. Donner e apertou os lábios para não gritar. Aquele homem sem coração sabia quem ela era. Como? Onde a conheceu? Por que diabos estava lá? Queria humilhá-la por tê-lo esbofeteado e machucado?

?Mas... não seria apropriado que... ? a cozinheira gaguejou, esperando por um milagre para salvá-la dessa situação muito difícil.

?Não tenha medo pela integridade da sua sobrinha ? declarou Madden. ? Lorde Cooper, apesar de sua juventude, é um verdadeiro cavalheiro. Sua benevolência, honestidade e educação moral tão firme e severa, que teve de seu amado pai, fortalece um cavalheirismo que muito poucos homens podem alcançar. É uma pena que ninguém nos informou da sua assistência, milorde, com certeza Ginger, minha filha, poderia tê-lo entretido. O coitado andou pelo salão até que Hester e eu finalmente nos aproximamos ? disse à cozinheira e a Josephine como se fosse um horror que tivesse passado mais de vinte minutos sozinho.

?Obrigado, mas garanto que os rumores sobre mim se tornaram idealizados ? Eric respondeu humildemente, fazendo as duas senhoras suspirarem.

Outra mãe com uma filha casadoira? Falando, além disso, de uma possível relação na frente de Josh? Isso não lhe agradou. Embora não parecesse lamentável que elas evocassem seu bom comportamento e seu cavalheirismo. Assim, a pequena guerreira, a quem não reconheceu vestida como uma mulher, admitiria que seus beijos não tinham sido previsíveis e estudados como um libertino faria.

?Por nada! —Exclamou a Sra. Clarke. ? Milorde, a história do caçador também é uma invenção? Porque posso ver como ainda precisa da bengala para poder andar.

?Caçador furtivo? ? Josh finalmente explodiu, forçando-se a franzir os lábios e não pegar os punhais para fazer belos desenhos no impecável terno meio cinza.

?Foi apenas uma pequena disputa ? disse Cooper, visivelmente desconfortável.

?Mas como é humilde! ?Insistiu a esposa do juiz. ?Devo esclarecer que, há alguns dias, lorde Cooper estava andando em seu terreno quando descobriu um caçador. Então, mesmo que sua vida estivesse em perigo, lutou contra ele. Por essa razão, tem que carregar a bengala. Aquele homem perverso jogou uma adaga nele antes de fugir ? explicou a esposa do padre da paróquia.

?Que tragédia! ? Josh exclamou, com os olhos bem abertos. ?Ele deve ter sofrido um medo muito semelhante ao sofrido pela minha tia ? acrescentou com aborrecimento.

?Posso assegurar que não senti medo em momento algum ? disse Eric asperamente. — Sabia que venceria a batalha.

?Batalha? Pensei que tinha dito uma mísera disputa entre um caçador e o senhor ? disse ela intencionalmente.

?Estava desarmado ? Eric murmurou. ? Meu oponente poderia ter me matado com aquele punhal.

?Que horror e que coragem! Certamente não cavalgará mais sozinho por suas terras. Tenho medo que tenha que ser sempre vigiado por um servo se quiser evitar ser atacado novamente por aquele caçador ? ela continuou naquele tom pungente.

?Bem, a verdade é que, senhorita Moore, ainda cavalgo sozinho por minhas terras ? salientou. —Na verdade ? disse ele, dando um passo em direção a ela, apesar da surpresa que as três mulheres exibiram com tanta audácia ? visitei o local onde tive o embate nos dias seguintes no mesmo horário.

?Quer encontrá-lo novamente, milorde? Não está com medo de que na próxima vez que o encontrar queira terminar o que começou? ? Ela retrucou, erguendo o queixo com orgulho.

?Mesmo que aquele caçador queira me assustar, não conseguirá. Continuarei indo para aquela área enquanto nós dois estivermos em Brighton. Garanto-lhe, senhorita Moore, que ninguém pode arrebatar o que é meu ? declarou solenemente.

?Ainda estamos falando de terra ou honra? ? Josh reagiu sem diminuir sua força, apesar de entender o significado de suas palavras.

?Deveriam a honra e a posse ser separadas? Pode lutar com honra e coragem pelo que decide que lhe pertence. Podemos usar uma espada, um punhal, um canhão... ou a capacidade de falar para mostrar que nossos pensamentos ou desejos são inquebráveis ? ele declarou como se fosse um soldado mais graduado que Josh.

?Como ocorreu com o caçador ? disse a Sra. Clarke.

?De fato ? disse Eric, recuando daquele passo indevido. ? Mas como disse antes, deixei minhas intenções bem claras. Só espero que aquele caçador ouça que não vou parar de lutar até que ele assuma o destino que selamos naquele dia.

Josh engoliu em seco e prendeu a respiração. Estava entendendo bem o duplo significado? Ele estava declarando uma guerra em que ele seria o vencedor? Queria dobrá-la? Ela não era uma donzela tímida! Se não fosse comprometer sua irmã e o visconde, pegaria os punhais e enfiaria as pontas na garganta dele antes que as fofoqueiras, que exaltavam seu comportamento respeitoso e queriam emparelhá-lo com alguma jovem casadoira, piscassem uma vez. Pretendia perguntar a ele o que selaram naquele dia, quando Marco caminhou na direção deles. O suspiro de alívio que a Sra. Donner ofereceu surpreendeu as fiéis esposas, no entanto, lorde Cooper não piscou. Seus olhos de safira ainda estavam fixos nela, como se quisesse ler seus pensamentos.

?Senhoras... milorde ? o administrador as cumprimentou corretamente. — Lamento pela interrupção, mas devo informar à senhora Yenkis e à senhorita Moore que a carruagem está esperando por elas na entrada.

?Estão saindo tão cedo? ? A Sra. Clarke exclamou, fingindo aflição, embora estivesse ansiosa para terminar a conversa e se dirigir ao marido para lhe contar sobre a estranha performance de lorde Cooper com a jovem de cabelos claros.

?Vamos voltar a Londres amanhã, e não seria conveniente levantarmos tarde ? disse a Sra. Donner, visivelmente aliviada.

?Josephine, devem sair agora. Elizabeth está na carruagem com Howlett. Sua irmã sofre de uma dor de cabeça terrível e quer voltar o mais rápido possível ? sussurrou Marco em seu ouvido.

?Sim, claro ? assegurou, olhando para o administrador. Olhou para Lorde Cooper, sorriu e disse: ? Foi um prazer conhecê-lo, milorde. Recomendo fortemente que desista de tentar confrontar o caçador novamente. Com certeza, na próxima vez que se encontrarem, ele estará mais armado e poderá atirar dois punhais em vez de um. ? Se curvou para ele, olhou para as duas mulheres, sorriu largamente para elas e acrescentou: ? Boa noite, senhoras. Agradeço a companhia. Desfrutei muitíssimo da conversa.

?Sim, isso mesmo ? disse a Sra. Donner. —A comida estava deliciosa, o lugar é maravilhoso e certamente todos falarão sobre a festa magnífica que o conde ofereceu.

Eric permaneceu em silêncio, com os olhos fixos em Josh e percebeu que havia parado de respirar quando os primeiros sinais de sufocamento apareceram. Mas ele prendeu a respiração enquanto observava o administrador do visconde sussurrando no ouvido de Josh. Naquele momento, e apesar da reputação de moço racional que se desdobrou, desejou erguer a bengala e acertá-lo na cabeça, mas parou. Ele havia realizado muito mais do que pretendia quando soube que as irmãs Moore compareceriam ao pequeno encontro do conde Burkes. Embora não o tivessem convidado, ele apareceu sem ser anunciado. Logicamente lhe abriram as portas sem qualquer objeção quando disse quem era. Algum anfitrião se atreveria a negar passagem ao filho do Barão de Sheiton? Claro que não! Então, quando entrou e não a viu, perdeu a esperança de encontrá-la, lembrando que Josh seria tão jovem que ainda não teria se apresentado a sociedade. Apenas quando tinha deixado o cálice amargo e decidiu voltar para casa, seu coração disparou ao ouvir o título do irmão do Marquês. Permaneceu distante. Não podia levantar suspeitas sobre suas verdadeiras intenções. Mas quando soube que a noiva do visconde apresentava o criado como seu primo, ele ficou paralisado e a inquietação aumentou ao descobrir que algo estava acontecendo. Alguém realmente duvidara dessa versão? Nenhum dos presentes conhecia o servo do visconde? Porque em Londres eles falavam incessantemente de suas roupas extravagantes e seu comportamento não masculino. Concluindo que o visconde mentiu para o anfitrião e aos convidados por uma razão importante, decidiu vigiá-la e permaneceu oculto até que as duas harpias se aproximaram dela.

?Milorde? ? Eric piscou várias vezes, sorriu e olhou para a mulher que lhe fizera a pergunta. ? Está cansado? Quer se sentar?

?Sim, me sinto muito exausto. Acho que estive de pé por muito tempo e minha perna está doendo novamente. ? Esperou que as mulheres se despedissem corretamente e saiu da sala sem sequer perguntar pelo anfitrião.

Apoiando-se na bengala, caminhou até chegar ao grande salão. Josh, o administrador e a suposta tia ainda estavam do lado de fora da porta da frente, esperando que os criados devolvessem seus casacos. Sem hesitar um segundo, foi na direção deles. Quando o criado do visconde o observou, se endireitou como se o próprio rei estivesse chegando.

?Lorde Cooper, o que deseja? ? Marco perguntou inquieto.

?Quero falar com a senhorita Moore por um minuto ? disse com firmeza.

?Milorde, minha sobrinha e eu...

A Sra. Donner fechou a boca quando ele levantou um dedo para ela. Como poderia um jovem de menos de duas décadas ser tão solene?

?Nós lhe concedemos um minuto, milorde. Nossa carruagem nos espera e não devemos nos atrasar ? Marco concordou, pegando a cozinheira pelo braço para deixá-los sozinhos.

Eric permaneceu em silêncio até que os dois criados, sem parar de sussurrar, os deixaram sozinhos. Então olhou para Josh e sorriu ao vê-la tão inquieta e brava.

?O que pretende? Pensa que pode fazer tudo o que quiser? ? Ela o repreendeu.

Por que Marco não o dispensou? Por que não foi capaz de rejeitar o desejo desse impertinente? Tal respeito mostrava e exigia um menino que, possivelmente, não tinha alcançado vinte anos?

?Não sei que espetáculo queriam oferecer ao conde, mas não me enganaram ? disse ele, olhando para a porta, certificando-se de que estavam sozinhos e que ninguém os escutaria.

«E inteligente» Josh pensou enquanto levantava o queixo e ouvia com essa determinação.

?Não é da sua conta ? respondeu.

?Estão em perigo? O conde quer prejudicá-los? ? Perguntou estreitando os olhos até que fossem duas linhas finas. ? Se sim, pode confiar em mim.

? Como é que aquelas pobres pessoas confiaram quando o ouviram falar sobre o caçador? ? Censurou.

?Fiz isso para protegê-la ? disse indignado. ? Se dissesse a verdade...

?Todo mundo teria rido de você, certo? Quem não faria isso quando soubesse que o honrado, honesto e intrépido Lorde Cooper fora, de fato, ferido pela adaga de uma mulher? ? Repreendeu satisfeita.

?Quer que corrija minha história? Realmente acha que fiz isso para evitar o possível ridículo em relação à minha pessoa? ? Ele caminhou em direção a ela, até que seu torso podia tocá-la quando ele respirava. Inspirou aquele cheiro de flores silvestres que exalava e observou o brilho daquele cabelo albino.

?Que outro motivo existe, milorde? ? Ela protestou orgulhosamente.

?O que a protege. Se tivesse dito o que realmente aconteceu, sua reputação só teria sido salva por um casamento e.... estaria disposta a casar comigo sem me permitir a diversão que conseguirei a cortejando? — Colocou os dedos de sua mão direita na bochecha de Josh e acariciou-a lentamente, capturando a suavidade da pele bonita.

?Não... ? Josh gaguejou, chocada com a sensação maravilhosa que sentiu naquele toque. Ela precisava se separar do homem que a transformou em geleia, em uma mulher diferente, mas era muito difícil se distanciar. Colocou as mãos nos punhais quando se virou para encarar o odioso arrogante, mas enquanto sentia a suave carícia, tudo o que queria era colocá-las em volta do seu pescoço, atraí-lo para ela e beijá-lo. ? Fez a coisa certa, milorde! ? Comentou quando notou um calor estranho em um lugar proibido para ela. ? Muito obrigada. ? Rapidamente se virou para a saída, cobriu os ombros com o casaco e abriu a porta.

? Isso não acaba aqui, Josephine Moore. Nós veremos em breve ? disse antes dela começar a correr.


XXXV


Anne ainda estava falando sobre os planos que seu noivo e ela tinham programado para depois do casamento quando notou que Marco estava se juntando ao grupo novamente. Suas irmãs já estavam a salvo, só faltava que o conde, que se ausentara sem oferecer nenhuma desculpa, retornasse de onde estava e resolvesse, de uma vez por todas, o maldito assunto com Logan. Quando poderiam deixar aquele lugar horrendo?

?É uma decisão muito sábia ? assegurou o pároco. ? Aqui terão a educação adequada para se tornarem homens e mulheres respeitáveis. Somente boa-fé pode canalizá-los no caminho certo.

?De fato ? disse o juiz. ? Seus filhos viverão tranquilamente em Brighton, fora do alcance da imoralidade de Londres que apodrece as ruas da cidade ? acrescentou ele com repulsa.

?Fico feliz que nossas opiniões sejam tão similares ? Anne concordou depois de tomar um gole da bebida azeda que tinha em seu copo. ?Não gostaria de desagradar meu pai. Ele sempre nos educou com muito cuidado e atenção.

?Milorde? ? O mordomo foi diretamente para Logan, mas essa intervenção fez com que todos se calassem e olhassem para ele com expectativa. ? Lorde Burkes deseja reunir-se com o senhor em seu escritório ? esclareceu ele.

?Agora? ? Anne perguntou com aparente aflição, como se ela não tivesse entendido que o conde exigia apenas a presença de seu noivo. ? Não quero deixar uma conversa tão eloquente tão cedo. É a primeira vez que falo com pessoas tão racionais...

?Calma, querida, concederei seu desejo. Senhores, protegerão minha noiva enquanto descobrirei o que nosso conde deseja? ? Perguntou Logan àqueles que sentenciaram sua morte, enquanto acalmava o desconforto fingido de Anne com um toque suave em seu braço. ? Vivo só para agradá-la e mimá-la...

?Não se preocupe, milorde, a senhorita Moore estará a salvo conosco ? assegurou o juiz solenemente. ? Além disso, ainda não falamos sobre o célebre Dr. Moore. Precisamos saber como ele conseguiu se tornar um médico tão famoso.

?Garanto ao senhor! ?Anne exclamou, separando-se de Logan, para que partisse imediatamente. ? Antes de sairmos de Londres, a assembleia dos médicos pediu a ele uma investigação exaustiva sobre o Julgamento da Febre, publicado por John Huxham em 1775. E tenho certeza que conseguirá terminá-la em breve. Meu pai é um homem muito consciencioso e fizeram muito bem confiando a ele este importante estudo.

Ao ouvir como Anne se referia ao livro que ele dera a Mary, quase riu alto, mas não era o momento de expressar aos outros o quanto estava orgulhoso dela. Era melhor que continuasse a persuadi-los com sua lábia casta e sutil, para que os dois miseráveis acabassem beijando seus belos pés.

Quando os presentes se concentraram na conversa que Anne começou, se afastou lentamente dela e pediu a Marco que não saísse do seu lado. Depois de confirmar que não havia por ali nenhum candelabro, virou-se e caminhou, vigiado pelo mordomo, até a porta do escritório de Burkes. Tentou entrar sem bater, mas o criado parou na sua frente e sugeriu que ele esperasse para ser anunciado. Estava prestes a afastá-lo, mas reteve essa raiva rapidamente. Não deveria provocar outro escândalo, já que desta vez não era apenas ele que seria prejudicado. Depois de aceitar o sutil pedido do criado com um leve aceno, recuou vários passos, colocou as mãos nas costas e esperou. Por um momento, só por um momento, pensou ter ouvido uma voz masculina que não combinava com a do conde ou do mordomo, mas afastou essa ideia da cabeça rapidamente, já que os amigos fiéis do velho Burkes estavam no salão com Anne, e George, que pensou que encontraria na festa, teve que ir precipitadamente para a residência de uma tia por afinidade. Logan sabia que era mentira. Seu amigo devia estar trancado em algum cômodo da residência. Talvez o maldito Burkes tenha voltado aos seus antigos castigos de purgatório: o de acorrentá-lo no porão até quase morrer de fome e sede. O pensamento de que seu amigo poderia precisar de sua ajuda e que ele não podia fazer nada para salvá-lo, gerou tanta raiva que queria quebrar o pouco que o conde tinha naquela casa horrível. Ainda não entendia por que George não se libertava daquela vida cruel da qual padecia. Se importava tanto com o título que estava disposto a morrer?

?Milorde já pode atendê-lo ? disse o mordomo, uma vez que abriu a porta.

Logan respirou fundo, caminhou em direção à entrada...

?Vamos, Devon! Entre de uma maldita vez! Não posso passar a noite toda aqui, tenho convidados para atender! ? Esbravejou a conde.

Depois de lhe dar um olhar feroz, Burkes se sentou, pegou um copo e encheu até a borda. Enquanto isso, Logan entrou no escritório sem deixar de olhar ao redor. Não entendeu muito bem por que demorara tanto a recebê-lo e por que agora tinha urgência de despachá-lo. Teria bebido mais do que devia?

Apenas quando estava na sua frente, esperando que indicasse para que se sentasse, ouviu um leve ruído atrás dele. Como se sentisse que iam esfaqueá-lo, se virou rapidamente, mas não encontrou ninguém. Apenas a cortina da janela que levava ao jardim se movia suavemente. Confuso, quando seu sangue cigano o avisou sobre a presença de outra pessoa, se virou para o conde e notou que seu velho rosto mostrava mais raiva e mais frustração do que segundos antes.

?Deve estar muito satisfeito, certo? ? O velho Burkes o repreendeu. Apareceu em minha casa mostrando uma honorabilidade que não possui e aprovado por uma mulher com a qual nunca sonhou.

?A senhorita Moore... ? ele tentou dizer

?Não procure desculpas, nem evoque a boa-fé daquela mulher incrível! Eu sei quem realmente é!

?Não respondi ao seu convite para que me insulte. Peço respeito. Vim aqui por minha própria vontade, para deixar claro que não vou vender Harving House ? disse ele, soltando o cigano e afastando o visconde.

?Maldito seja! ? Exclamou, pulando para fora da cadeira. — Como pode vir a minha casa pedindo respeito? É um bastardo! O filho de um demônio!

?Se está tão certo de suas palavras, me denuncie de uma vez ? disse ele, colocando as palmas das mãos grandes sobre a mesa.

?O farei! Porque apenas um homem que esconde um passado obscuro aceita uma chantagem! ? Ele contra-atacou.

?Não aceitei o seu suborno para que parasse de investigar o meu passado, Burkes. Fiz isso porque me senti culpado por ter induzido seu sobrinho ao caminho inadequado. Nós dois éramos muito jovens quando esse infeliz incidente ocorreu e imagino que nós dois pagamos nosso castigo mais do que o suficiente ? disse ele solenemente.

?Castigo? Vai apodrecer no inferno, Devon! Como seu pai fez! ? Ele berrou.

—Tenho certeza que será o próximo lugar em que nos encontraremos. E se não tem mais nada a me dizer, me retiro. Preciso tirar minha noiva desse lugar repulsivo. Não quero que sua decência seja corrompida por nenhum de seus convidados insolentes ? declarou se virando.

?Cuidado com suas costas, Devon. Ainda tenho muitos anos para viver e pretendo usar todos os dias, todas as horas e todos os minutos para encontrar uma maneira de destruí-lo ? ameaçou fora de si.

?Boa sorte, Burkes ? disse antes de sair.

Depois de fechar a porta, Logan suspirou profundamente. Não tinha dúvida de que o conde não desistiria e manteria sua palavra. Mas não queria pensar nisso. A única coisa em que devia se concentrar era concluir a noite e levar Anne o mais rápido possível dali. Felizmente, ao amanhecer eles partiriam para Londres, em direção à liberdade, em direção à vida que ele queria ter ao seu lado e, se o velho Burke persistisse em investigar suas origens, agiria corretamente. Possivelmente era hora de contar a verdade a Roger e corajosamente enfrentar a fúria titânica de seu irmão. Talvez, quando contasse a agonia que sofreu durante todos esses anos, admitisse que ele sofrera o suficiente e não lhe daria uma surra enorme. Embora não tivesse certeza de que fosse tão benevolente com ele depois de tudo...

?Querida, devemos ir ? comentou Logan, uma vez que se juntou àquele grupo de idosos reprimidos.

?Tão cedo? ? O padre perguntou. ? Ela ainda não terminou de explicar por que acredita que os partos são tão perigosos se a higiene adequada não for mantida.

Logan olhou para Anne, desnorteado. Esses temas não eram próprios de Mary? Ela também estava interessada em medicina e esse interesse era mantido em segredo? Talvez Anne não só tivesse a habilidade de pintar, mas escondesse uma infinidade de qualidades que, é claro, descobririam quando se casassem.

?Concluirei aconselhando-os que olhem bem nas mãos do médico que atende suas esposas. Ele deve cobri-las com luvas ou lavá-las com bastante sabão ? disse Anne antes de aceitar a mão de Logan.

?Boa noite, senhores. Foi um prazer vê-los novamente e agradeço-lhes por terem cuidado de minha futura esposa. Certamente ela não esquecerá uma noite como a de hoje ? disse o visconde com o respeito e solenidade que de seu título futuro.

?Estamos ansiosos por sua próxima visita, senhorita Moore. Foi um prazer conversar com uma mulher que entende homens como nós ? admitiu o padre pouco antes de beijar sua mão.

Apesar da polida despedida de Logan, o juiz e o pároco deram-lhe um breve aceno de cabeça e despediram-se dela. Anne sorriu para eles, como se não tivesse notado o desprezo, pensando que tinha sido uma péssima ideia mandar Josh de volta para Harving. Se sua irmã tivesse contemplado aquele desprezo em direção a Logan, ela teria procurado algo com o que cortar suas línguas de víbora.

Uma vez finalizados os intermináveis elogios a ela, ambos, acompanhados por Marco, abandonaram com urgência a residência do conde.

?Tudo bem? ? O administrador perguntou, referindo-se à reunião com o conde.

?Por enquanto ? Logan respondeu, ajudando Anne. ? Mas não parará com seus esforços. Mantenha-me informado de tudo o que achar que é suspeito. Não quero que ofusque qualquer detalhe, mesmo se qualificar como insignificante. Apresente-se regularmente em Harving, contrate vários criados para que observem movimento no interior e tirem os cavalos dos estábulos todos os dias. Quero que todos saibam que a residência não foi abandonada e que pensem que voltaremos em breve.

?O farei ? Marcus disse antes de apertar sua mão. ? Posso pedir um favor? ? Ele acrescentou duvidosamente.

?Claro, sabe que pode me perguntar o que quiser. ? No entanto, o rosto afável de Logan mudou quando ele se aproximou para sussurrar algo em seu ouvido.

?Diga a Howlett que esperarei ansiosamente por notícias e que não descansarei em paz até que tenha sua carta em minha escrivaninha em meu escritório ? declarou ele.

?Direi a ele ? confirmou antes de entrar na carruagem.

Ele se acomodou no banco e esperou que o cocheiro fechasse a porta. Marco permaneceu imóvel e seu rosto, sempre sorridente, mostrou muita preocupação. Logan o observou até que a carruagem partiu, ainda se perguntando o que o incomodava tanto e porque parecia que estava escondendo algo importante. Talvez fosse o tom de voz que Marco costumava usar com ele ou o gesto que fez para que Anne não o escutasse. Seja o que for, algo lhe dizia que algum detalhe importante lhe escapara, mas... o que seria? As irmãs foram vigiadas o tempo todo e ele protegeu Anne durante a noite. Então, por que suspeitava que as notícias que esperava de Howlett não tinham nada a ver com o romance que haviam começado?

?Gostou do meu desempenho? ? Anne perguntou depois de girar sua pulseira várias vezes sobre o pulso.

?Foi esplêndida! ? Ele respondeu, concentrando-se finalmente nela. ?Causou uma grande impressão no conde e naqueles ineptos. Até eu mesmo acabei acreditando que é uma mulher virtuosa.

?O conde... também? ? Perguntou duvidosa.

?Sim, querida, o conde também ? disse estendendo as mãos para pegar a dela.

?Deixará de chantageá-lo? ? Perguntou.

?Por agora, acho que sim. Mas ele jurou que usará os anos que restam de sua vida para me destruir.

?Bem, se quer que seu fim chegue logo, a melhor opção será rompermos nosso compromisso e que eu o seduza até que me proponha suplantá-lo como um pretendente. Desta forma, a maldição cuidará dele...

?Quer romper o nosso compromisso para me trocar por esse velhote? ? Disse, puxando-a para perto. ? Não querida, não faremos essa tolice. Demorei muito tempo para encontrá-la e fazer com que me amasse, para que todo esse esforço não leve ao que eu quero.

?E o que quer? ? Ela perguntou, ajustando seus quadris sobre os de seu futuro marido.

? Converte-la, de uma vez por todas, em minha esposa ? disse antes de colocar as mãos nos dois lados do rosto dela e puxá-la para sua boca lhe dando um beijo apaixonado e feroz.


XXXVI


Seis dias depois ...


Roger ainda mantinha um comportamento impenetrável. Não havia dúvida na mente de Logan de que ainda estava zangado por não ter lhe contado sobre sua amizade com George, o que acontecera naquela noite e a chantagem do conde. Ele supôs que na mesma tarde lhe daria uma surra que não esqueceria em anos, mas seu irmão agiu de forma estranha: saiu do escritório, o deixando sozinho com Evelyn, e não voltou para casa até a hora do jantar. Era muito triste e desconfortável ficar ao seu lado durante a noite sem falar com ele. Comeu e bebeu em silêncio, como se nem ele nem sua esposa existissem. Depois que o jantar acabou, ele se levantou, beijou Evelyn e sussurrou em voz alta que era hora de a visita sair.

?Deve dar tempo a ele ? comentou a cunhada quando o acompanhou até a saída.

?Diga a ele que fiz para protegê-los, que a minha intenção não era magoar e que...

?Fique tranquilo ? Evelyn acalmou-o com um beijo suave na bochecha ? Roger entenderá sua decisão.

?Por favor, lembre-o também que eu gostaria que me acompanhassem até a casa dos Moore depois de amanhã. Gostaria que ambos...

?Nós vamos, eu prometo ? Evelyn argumentou antes de voltar para casa.

Não esperava que, apesar das palavras de sua cunhada, Roger aceitasse seu pedido. Por essa razão, quando o viu descendo as escadas de Lonely Field, acompanhado de sua esposa, surgiu um pequeno halo de esperança. Mas toda essa ilusão desapareceu quando não o cumprimentou. Ajudou Evelyn a subir na carruagem, entrou e fechou a porta com força. Logan, incapaz de respirar por causa da tristeza que o envolveu, andou para a carruagem e entrou pela outra porta.

E assim eles foram juntos em direção à casa dos Moore e separados pelo corpo de Evelyn. Quanto tempo eles continuariam assim? Deveria desistir? Como poderia imaginar um futuro sem a presença de seu irmão?

?Roger, por favor, me escute. Nós não podemos continuar assim. Juro que agi dessa maneira porque pensei que estava fazendo a coisa certa ? Logan começou enquanto observava com pesar que seu irmão continuava olhando pela janela, ignorando-o.

?Diga a esse imbecil para não me tratar com tanta familiaridade, ele não merece isso ? disse ele com um grunhido.

?Logan, seu irmão diz...

?É incapaz de se dirigir diretamente a mim? Está tão desapontado? Ou é repulsa?

?Repulsa? ? Esbravejou Roger virando-se para Logan com tanta brusquidão que Evelyn deu um pequeno salto no banco. ? Não, não é repulsa, mas decepção ? ele gritou. — Sinto-me desapontado porque não teve a coragem de me confessar o que lhe aconteceu naquela noite e me deixa desconfortável descobrir que aceitou uma chantagem que durou, quanto? Dois anos?

?Juro que fiz isso para salvá-lo ? Logan respondeu, levantando a voz, perdendo a paciência que tinha. ? Como poderia colocar em risco o esforço que tem feito por nós em todo esse tempo?

?Va te faire foutre![9] ? O marquês resmungou.

?Por favor... deveria nos tranquilizar um pouco ? disse Evelyn, ouvindo a expressão do marido em francês. ? Lembre-se de que estamos indo para a casa dos Moore e não seria apropriado que estivesse tão zangado. Eles pensarão que não estamos satisfeitos com a proposta de casamento.

?E não estou satisfeito! ? Roger assegurou. ? Essa mulher precisa de um bom homem e isso ? ele apontou o dedo para o irmão ? não é!

?Roger, querido, tenho certeza de que Logan achou que estava fazendo a coisa certa. Sabe que ele te ama tanto que faria qualquer coisa para salvaguardar...

?A coisa certa? Evelyn, está realmente defendendo esse idiota? ? Esbravejou o marquês, dando ao seu irmão com um olhar assassino.

?Me sentia... envergonhado ? Logan comentou com um longo suspiro. Ele esfregou o rosto, desesperadamente, e olhou para o chão. — Não queria revelar meu segredo porque não posso suportar que a pessoa que amo e respeito me diga que sou igual ao meu pai.

?Roger jamais teria feito tamanha tolice. ? A marquesa tentou consolá-lo com suas palavras ternas. ? Caso não se lembre, antes de Colin forçá-lo a se casar comigo, seu irmão era o maior libertino em Londres e tenho certeza de que, durante as suas noites de solteiro, participava de bacanais semelhantes.

?Não estamos falando de mim ? resmungou o marquês, recostando-se no banco.

?Eu sei, mas quero esclarecer que não está em condições de reprovar ou julgar nada, porque era igual ou pior do que ele ? acrescentou Evelyn olhando para Logan com cumplicidade.

?Não estou zangado com o que ele fez, mas por causa de sua falta de confiança ? disse Roger. Se não tivesse escondido de mim o que aconteceu, poderia tê-lo ajudado naquele dia.

?Como poderia me libertar dessa situação, Roger? ? Disse o visconde, levantando a voz novamente. ? Esse homem é intocável!

?Quem te disse esse absurdo? ? Ele murmurou. Ante ao silêncio que Evelyn e Logan ofereceram, ele continuou: ? Caso não saiba, a esposa de Burkes deu à luz sete crianças que morreram logo após o nascimento. De acordo com meus informantes, em seu último parto, e depois que esse descendente também morreu, ele a trancou no porão para lhe dar um castigo. Mas o muito desgraçado não percebeu que ela estava sangrando e necessitava urgentemente da atenção de um médico. Quando Burkes pensou que a punição havia chegado ao fim, ordenou a um criado que a retirasse, mas já era tarde demais, a condessa já estava morta.

?Meu Deus! ? Exclamou Evelyn apavorada, levando as mãos à boca.

?Naquele momento, Burkes ordenou que ela fosse transferida para seus aposentos e uma criada para verificar seu corpo em busca de sinais de que ela havia sido enclausurada. Mas não encontraram uma única marca ? continuou o marquês.

?Nada? Aquela pobre mulher não lutou para permanecer viva naquele porão? ? Evelyn retrucou.

?Não ? disse Roger, balançando a cabeça ligeiramente de um lado para o outro. ? Acredito que ela tenha chegado à conclusão de que só a morte a libertaria do marido e se rendeu a ela ? acrescentou tristemente.

?Por que ninguém denunciou isso? Por que saiu impune desse assassinato se era um suspeito? Por que conhece essa versão da história? ? Logan perguntou sem acreditar no que estava ouvindo. Não era o mesmo que George estava sofrendo? Ele também queria encontrar a morte para terminar sua provação?

?Porque seus grandes e honrados amigos, o juiz Clarke e o pároco Madden, aqueles que testemunharam sua depravação, asseguraram que o visitaram durante os três dias seguintes ao parto e exaltaram a atitude compreensiva, afetuosa e piedosa do conde em relação a sua esposa. Além disso, quem daria crédito à versão de um criado que foi demitido?

?Maldito seja! ? Logan clamou, socando a parede da carruagem. ? Maldito seja!

?Se tivesse tido coragem suficiente para explicar o que aconteceu com você, não teria sofrido extorsão. Essa atitude submissa apenas acentuou suas suspeitas e fortaleceu sua decisão de arruiná-lo ? disse Roger, observando as costas de seu irmão se apertarem. ? Mas a situação está resolvida. Aquele bastardo vai ficar longe de qualquer membro da minha família se não quiser terminar seus anos atrás das grades.

?Por que diz que está resolvido? ? Evelyn interrompeu.

—Ontem recebi uma carta do próprio Burkes, na qual pede desculpas por seu comportamento inadequado e cumprirá meu mandato em breve. Espero que não demore muito para dar ao seu administrador tudo o que roubou de você.

?Está dizendo que...? Quando...? ? Logan perguntou, arregalando os olhos.

?Na mesma tarde em que me contou. É por isso que saí do meu escritório com tanta urgência, não queria que a última carruagem fosse para Brighton sem um mensageiro para levar a esse malnascido a minha carta ? explicou calmamente. ? Espero que saiba que a fortuna será nosso único presente de casamento. Não merece nem um miserável xelim ? acrescentou sarcasticamente.

?Deveria me tirar tudo! Deveria me repudiar e me jogar na rua como um cachorro! ? Ele exclamou entre soluços.

?Agiu errado, mas isso vai torná-lo mais forte no futuro ? disse Evelyn, tocando seu ombro para oferecer seu apoio.

?Mas foi um tolo ? insistiu o marquês. ? A maturidade não é apenas demonstrada pela atitude que se tem de enfrentar problemas. Um homem maduro pensa, raciocina, vai à família e confia nela.

?No entanto, tudo foi resolvido e devemos nos concentrar no futuro ? disse Evelyn novamente. ? E lembre-se que na idade dele, também não pensava ou raciocinava. Só procurava, entre as mulheres ao seu redor, aquelas que rapidamente levantariam a saia de seu vestido.

?Evelyn, pare essas comparações de uma vez! Tem que admitir que a sua atitude me machucou e que nunca esquecerei a traição ? disse Roger com raiva.

?Sim, esquecerá, querido. Como eu esqueci que depois que nos casamos, me deixou sozinha por sete longos meses ? ela disse desconfiada.

?Evelyn! ? O marquês esbravejou novamente. ? De que lado está? Não se lembra dos nossos votos de casamento?

? Ah, sim, claro que me lembro deles! ? Expressou sorrindo. ? E cumpro todos. Mas não posso permitir que esse absurdo estrague seu relacionamento. Logan agiu assim porque achou que era a coisa certa a fazer e você partiu porquê ...

?Enfer, ma femme![10] ? Disse Roger desesperado.

?Sinto muito... ? Logan murmurou. ? Sinto muito.

Os dois olharam para ele sem piscar por causa da surpresa que tiveram ao ouvi-lo dizer aquelas palavras. Não ouviram essas palavras na boca de Logan desde o dia do incêndio, quando estava chorando, inconsolável e se desculpando com Roger por não ter protegido Nathalie e sua mãe. Evelyn olhou para o marido, franziu a testa e balançou a cabeça para Logan. Não iria consolá-lo? Não iria perdoá-lo?

?A próxima vez que tiver um problema, fale comigo. Sabe que pode confiar em mim ? disse o marquês depois de suspirar profundamente. ? Como Evelyn disse, nada do que fez pode me escandalizar, porque antes de me casar, garanto que fiz pior.

?Isso não é o que eu queria ouvir! ? Evelyn berrou.

?Ah não? Pensei que as rugas na sua testa indicavam que confessei como eu era perverso ...

?O que vou dizer a Anne? ? Ele os interrompeu, esfregando o rosto novamente. ? Como ela se casará com um homem que, em vez de proteger sua família, a colocou em perigo?

?Errando que se aprende, Logan, e isso nos torna mais fortes ? assegurou Roger antes de estender a mão direita para firmar a paz. ? Lembre-se de que não está sozinho, que não conta apenas com a minha ajuda, mas também com a de todos os nossos irmãos.

?Juro por minha vida que o farei ? assegurou Logan, aceitando a oferta de paz.

?Bem, agora que tudo está esclarecido, preciso que resolva a dúvida que tenho desde que o vi aparecer ? disse olhando para o cunhado.

?Qual? ? Ele retrucou com expectativa.

?Por que diabos colocou um colete tão horroroso? Como Howlett permitiu essa decisão horrível?

?Não gosta da cor laranja? Porque eu amo... ?Logan respondeu antes de dar uma gargalhada.


***


?Como pode pensar em vestir aquele vestido assustador em um dia tão importante? ? Sophia esbravejou quando Anne desceu as escadas e se juntou a ela no corredor. ? Não lhe disse para jogar fora? Tire logo, Anne Moore! O visconde pode pensar que não temos a solvência para lhe comprar um.

?Não se preocupe com isso, mãe ? disse Anne, pegando-a pelo braço para levá-la de uma vez por todas para a sala onde o resto da família estava esperando por eles. ? O visconde terá prazer em me ver neste vestido e garanto que ele não vai pensar se é a segunda ou a terceira vez que o uso, mas quanto tempo levará para tirá-lo.

?Anne Moore! ? Exclamou com aparente rubor. ? Parou e olhou para ela. ? Não se lembra com quem está falando? Realmente acha que eu deveria saber essas coisas?

? Não se torne de repente numa mãe pudica. Outro dia, quando lhe contei tudo o que fiz durante a minha estadia em Harving House e a razão pela qual não tenho medo de me casar com Logan, não ruborizou ? Anne assinalou com ironia.

?A única coisa que queria era descobrir por que havia retornado sem ter terminado o retrato e decidido se casar com ele ? disse ela embaraçada. ? O que se explica na sua narração, não é problema meu.

?Então, não acha que foi certo eu informar que o visconde é o cigano que vai quebrar a maldição? ? Disse novamente, afastando-se de sua mãe.

?Sim, essa parte admito que gostei. Quem teria pensado que o falecido marquês misturava seu sangue azul com o cigano?

?Não pode imaginar o que aconteceu... ? Anne disse quando entraram na sala.

?O que? O que aconteceu? ? Randall perguntou ansiosamente, tendo apenas ouvido as últimas duas palavras. Ele caminhou na direção delas, esfregou o rosto, arrastou os óculos até a testa e acrescentou: ? Não me diga que não quer mais se casar com o visconde? Por que? Não acha que ele será um bom marido? Tem medo? É normal depois de tudo o que aconteceu, mas acredito que ele não morrerá antes de chegar ao altar, tenho um palpite que me diz...

?Calma, papai ? interrompeu Anne, separando-se da mãe para que Randall pudesse tomar seu lugar. Deu-lhe um beijo suave na bochecha e acrescentou: ? Ainda quero casar com o visconde. Juro que ele é o homem que esperei toda a minha vida e não vou deixá-lo escapar.

?Obrigado Deus... ? o doutor suspirou aliviado ? não sabe como estou feliz em ouvir que está finalmente pronta para se tornar uma esposa. Juro que tudo que quero é vê-las felizes e protegidas por bons homens.

?Então... todo o entusiasmo que mostrou desde que dei a notícia, não tem nada a ver com o fato de que vou me tornar uma viscondessa e que isso vai ajudar minhas irmãs? ? Ela retrucou sarcasticamente.

?De jeito nenhum ? ele disse categoricamente. ? Sempre soube que, mais cedo ou mais tarde, encontraria um bom marido. Tudo o que quero é que seja tão feliz quanto eu com sua mãe ? disse, esperando que seu tom de voz não revelasse que ela estava certa.

Uma vez que ela se casasse com o visconde, suas filhas seriam aceitas na sociedade e eventualmente encontrariam seus futuros maridos. Embora ainda pensasse que para Josh e Madeleine não seria tão fácil. Que homem aceitaria uma guerreira como esposa? E quem poderia fazer desaparecer a timidez da pequena ruiva?

?Chegou! Logan está aqui! ? Josh gritou exultante, pulando na frente da janela. ? E ele está acompanhado pelos marqueses de Riderland!

?Meu Deus! ? Sophia exclamou nervosa. ? Sabia que eles também participariam? ? Olhou para Anne como se tivesse acabado de passar uma estrela cadente diante de seus olhos.

?Sim ? respondeu, sacudindo as saias do vestido.

Estava nervosa. Queria causar uma boa impressão nas pessoas mais importantes para seu futuro marido. Eles seriam afáveis com sua família? Logan insistiu que eram pessoas gentis, carinhosas e bastante humildes, mas... não se arrependeriam do compromisso quando descobrissem os comportamentos imprevisíveis de suas irmãs?

?E, por que não nos contou nada? Nós teríamos nos preparados... Eu teria comprado... ? Sophia balbuciou muito preocupada, amaldiçoando novamente por não ter previsto que Anne mostraria a sua verdadeira personalidade através de seu vestido laranja.

?Foi por isso que não mencionei, mãe. Quero que conheçam a minha família tal como são. Sem enganos ou falsas aparências ? enfatizou. Olhou para as irmãs e apertou os olhos quando não encontrou Elizabeth. ? Onde está Eli? Ainda não terminou de se aprontar?

?Não vai descer ? respondeu a mãe. Continua com dor de cabeça e não seria apropriado que permanecesse aqui com aquela aparência abatida.

?Continua desculpando-a! ? Anne exclamou com raiva, ao lado de Mary, Josh e Madeleine. ? Maddy lutará contra sua timidez para ficar ao meu lado em um dia tão importante e ela não é capaz de suportar uma dor de cabeça miserável? Chega, mãe! Pare de dar desculpas! Acha que não sei o que está errado? ? Ela berrou. ? Bem, deverá aceitar de uma vez por todas!

?Não é isso ? interveio Randall. ? Eli está muito feliz pelo seu próximo compromisso. Mas sabe que...

?O que faço, Sr. Moore? ? Shira perguntou, abruptamente quebrando a discussão que havia sido criada em momentos tão inapropriados. ? Estão se aproximando da entrada e tenho que recebê-los.

?Não os faça esperar ? Anne falou a Shira rudemente. ? Meu futuro prometido está tão impaciente quanto eu para me tirar daqui.

?Anne! ? Sua mãe a repreendeu: ? Não quero que pense isso de sua irmã!

?Não me lembre de tudo que fez antes de sairmos... ? murmurou antes de respirar fundo, se acalmar e esperar a entrada do seu homem.

Que a mãe criadora tivesse pena de Elizabeth em algum momento de sua vida, porque ela nunca iria perdoá-la pela dor que causara num dia tão importante.

?Os Marqueses de Riderland ? anunciou Shira com voz trêmula. ? Desculpe, e há também o Visconde de Devon ? acrescentou, corando logo após sua apresentação nefasta.

Seus pais foram recebê-los e depois das saudações apropriadas, caminharam em direção a elas. Anne tentou respirar com facilidade, mas era impossível fazê-lo. Não se viam há quatro dias, só havia tido notícias dele através das cartas entregues por Howlett, que visitava Elizabeth assiduamente. A última coisa que Logan havia escrito era que a amava e que estava desesperado, esperando que aquele dia chegasse.

?Milady, ela é Anne, minha filha mais velha. A próxima é Mary e as duas menores são Josephine e Madeleine. ? Quando foram nomeadas, saudaram a marquesa com uma reverência cuidadosa.

?Prazer em conhecê-las, senhoritas ? disse Evelyn, observando a cor do vestido da futura noiva de seu cunhado. Agora entendia a decisão de usar um colete daquela cor! Os dois, através de um detalhe tão pequeno, aceitavam quem realmente eram.

?Igualmente ? responderam em uníssono.

?Só se ela continuar a me aceitar ? Logan comentou, o que fez todos os olhos focarem nele.

?Acho que sim ? respondeu Randall, erguendo os óculos sobre a ponte do nariz com um dedo. ? Pelo menos há cinco minutos atrás, essa era a sua resposta. Mas já conheceu minhas filhas, milorde, e sabe que elas são muito voláteis.

?Então, com sua permissão, vou perguntar a ela pessoalmente ? disse antes de se dirigir a ela.

Suas pernas tremiam, seu coração batia tão rápido que perfurava seu peito e a porta fechada da sala. Ele estava lá: seu homem, seu Cigano. Aproximando-se dela com seu terno elegante, o colete laranja e o cabelo puxado para trás, para formalmente pedir pela união que haviam selado noites antes em um pequeno ritual cigano. Devia fazer o correto, o que correspondia ao seu dever como um aristocrata. Mas essa aparência desapareceria quando ambos vivessem em Whespert. Ela não permitiria que naquele lugar, ele continuasse mostrando uma aparência que não correspondia a ele. Queria o Logan cigano, selvagem e apaixonado, mesmo que quando estivesse fora, tivesse que se comportar como o Visconde de Devon, irmão do Marquês de Riderland.

?Senhorita Moore ? disse, ajoelhando-se na frente dela. ? Me daria a grande honra de me aceitar como marido?

?Sim! ? Exclamou Josephine. ?Ela aceita!

?Josephine Moore! ? Esbravejou Sophia, envergonhada pela intervenção inadequada de sua quarta filha.

?Ela é a jovem que pratica a arte de atirar facas, certo? ? A marquesa perguntou a Sophia.

?Sim, milady, é ela... ? concordou com alguma angústia.

?Nesse caso, se lhe parecer correto, Josephine poderia conhecer minha filha Evah. Ela também é bastante adepta das armas. No outro dia, John, um bom amigo do meu marido, ensinou-a a usar o arco e a verdade é que...

?Anne? ? Logan perguntou, mostrando a ela um anel.

Como era de se esperar, o visconde procurou, entre os joalheiros londrinos, uma aliança que refletisse a essência cigana de Anne e, com o olhar que ela estava exibindo, soube que o esforço valera a pena.

?Sim! ? Anne gritou antes de se jogar em seus braços e ouvir como um ato tão inadequado produziu uma tosse repentina em seu pai.

?Eu te amo, Anne Moore ? disse ele, deslizando o anel em seu dedo. ? Olhou em seus olhos e continuou em voz baixa. ? E juro, minha querida, que não a salvarei somente da maldição, mas de todos os perigos que tivermos que enfrentar.

E quando Madeleine ouviu as mesmas palavras que ouvira em sua visão, colocou as mãos no peito e suspirou. Logo, muito em breve o resto de suas irmãs encontrariam seus futuros maridos e ela.... Ela finalmente deixaria de ser a tímida Madeleine...


Epílogo.


Oito meses depois ...


Logan caminhava de um lado para o outro em seu escritório, com as mãos atrás das costas. Olhava de vez em quando para o relógio na parede e bufava quando percebia que o tempo não estava indo tão rápido quanto desejava. Quanto tempo duraria um parto? Anne suportaria isso? Randall e Mary poderiam ajudá-la caso se complicasse?

?Relaxe de uma vez ? disse Roger, depois de expelir a fumaça do charuto de sua boca. Felizmente para ele, Evelyn permitiu-lhe fumar em ocasiões especiais e a chegada do seu primeiro sobrinho era uma delas. ? Lembre-se do nascimento de Evah. Foram intermináveis horas. Mas quando tiver seu filho em seus braços...

?Filho? ? Disse Philip, que continuava batendo os dedos da mão esquerda na mesa do escritório. ? Como sabe que será um menino? Não se lembra de que existem duas alternativas? ? Perguntou mordaz.

?Será um menino ? disse Logan com confiança. Havia tido uma visão, assim como tinha visto Evah quando mal tinha dezessete anos. Pensou que, com os anos e a recusa de ser cigano, essas visões ciganas desapareceriam, mas não foi esse o caso. Já na noite de núpcias sonhou que um diabinho de cabelo preto gritava papai e ele o abraçava com força. ? E se chamará Roger Bennett Moore. ? Olhou para o irmão, esperando por sua reação.

?Belo nome ? ele respondeu em uma voz estrangulada pela emoção e com olhos brilhantes. ? Só espero que não continue com a maldição dos Bennett.

?A de libertino? ? Giesler falou novamente. ? Quer transformar a próxima geração Bennett em homens honrados e castos? Não se lembra dos movimentos sedutores de cílios ou como suspiravam quando andava por um grupo de mulheres? O que essas futuras viúvas farão sem um Bennett em sua cama? ? Comentou com exagero enquanto movia o copo de conhaque.

?Tenho certeza de que haverá outros libertinos para agradá-las ? assinalou Logan com um grande sorriso.

Só esperava que seu amigo não falasse sobre a educação que ofereceria a seus filhos, porque ele não os teria. Em suas visões, seu bom amigo tinha quatro lindas meninas como sua mãe. Philip não ficou horrorizado quando soube que o Sr. Moore deveria casar as cinco? Não zombou da angústia do médico? Quantas vezes zombou da tarefa desesperada de encontrar um marido para elas? Por tudo isso, a vida o puniria com uma comitiva de meninas.

?Se os Bennett se aposentarem, os Giesler tomarão o seu lugar. ? Se aproximou do amigo para dar uma tapinha em seu ombro. ? Mas não diga que não avisei.

?O que? ? Logan perguntou, erguendo as sobrancelhas negras.

?Que seus meninos não saberão o que as mulheres escondem sob suas saias e os meus serão capazes de despir uma mulher em menos de dez minutos ? acrescentou Philip, sorrindo imensamente.

?Não tenho dúvidas de que seus filhos terão essa capacidade altamente desenvolvida ? declarou o visconde, olhando para o irmão que sabia a quem a esposa de Philip daria à luz.

?Brindemos aos futuros Bennett e Giesler! ? Roger gritou, levantando o copo. Logan e Philip apoiaram o brinde. ? Isso só acaba de...

?Nasceu! ? Josh gritou abrindo a porta, interrompendo as palavras do marquês. — É um menino! Um lindo menino! Vou contar aos outros! — Continuou gritando quando se virou e se afastou do escritório.

Logan olhou para o irmão e depois para Philip. Ele estava feliz, animado e se sentia o homem mais feliz do mundo. Por fim, seu filho nasceu e sua esposa... sem esperar pelos abraços típicos, ele saiu da sala e subiu os degraus de três em três.

***


Quando Logan entrou no quarto, uma súbita sensação de prazer e bem-estar o dominou. Evelyn levava a criança em seus braços para a janela. Mary afastava a roupa que o cobria para confirmar que tinha todos os dedos das mãos e dos pés, que ele respirava normalmente... Randall estava chorando e Sophia estava abraçada a ele para consolá-lo. Madeleine permanecia sentada no peitoril da janela, sorrindo toda vez que sua irmã e a marquesa elogiavam a beleza do bebê. Até mesmo Elizabeth acompanhava sua irmã em um momento importante para ela, embora continuasse longe de todos e usando um daqueles vestidos típicos de governantas. Logan não entendia por que adotara um comportamento tão estrito, mas parecia que, graças a isso, estava superando certos medos.

Apoiou-se no batente da porta e observou a bela imagem familiar. Nunca imaginou que as palavras de seu irmão fossem tão precisas. Não só seu amor por sua esposa havia aumentado, mas os laços com toda a família também foram fortalecidos e aquele momento era uma mostra disso. Como Roger lhe disse em mais de uma ocasião, o instinto de proteção transformava um homem em uma fera que não hesitava em oferecer sua vida para salvar sua família. Ele a daria, por cada um dos membros que estavam no quarto, na sala, na cozinha, no escritório e no jardim.

Estavam todos ali. Nem um único irmão queria perder o nascimento do próximo Bennett, que seria nomeado herdeiro do Marquês de Riderland e orgulhosamente ostentaria seu sobrenome, pois os vestígios deixados por seu bisavô desapareceriam. Roger e ele se encarregariam de terminar...

?Entre, não fique na porta ? disse Anne quando o descobriu em pé na entrada. ? Seu filho o espera.

?Meu filho pode esperar um pouco mais. ? Logan segurou as lágrimas causadas pela emoção e caminhou até a esposa. ? Está bem? ? Perguntou depois de colocar um beijo suave em seus lábios.

?Sim, muito bem ? respondeu, estendendo a mão esquerda para que ele não tivesse medo de sentar-se ao seu lado. ? Mas mudei de ideia sobre ter seis filhos. Acho que vamos ter o suficiente com dois ? acrescentou ela, descansando a cabeça no peito do marido.

?Roger, Samuel e Philip ? disse Logan.

?Três homens? De verdade? Não pode mudar essas visões? ? Insistiu nervosa.

?Não ? Logan negou. ? Dará à luz a três filhos preciosos, iguaizinhos a mim ? acrescentou orgulhoso.

E nesse momento Anne se benzeu e se confiou à mãe criadora.


Um pouco do próximo romance


Mary sentou no banco e olhou de lado para sua acompanhante. Parecia tão preocupada que desejou lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa em um horário tão inapropriado, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que está acontecendo, insistiu que a senhorita é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi um problema, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ? Mary respondeu, acrescentando um leve movimento ao comentário com a mão direita enluvada. ? Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e dizer-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ? Valeria estalou, arregalando os olhos. ? Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Sinto muito, devo ter entendido mal a minha mãe ? disse Mary, corando instantaneamente. ?Às vezes, quando fico emocionada, não escuto com atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Naquele comentário, Mary deu uma risada alta. Quando se recuperou, voltou seu olhar para a Sra. Reform e esperou que o nome de seu irmão fosse revelado, mas ela permaneceu em silêncio.

?E a quem devo assistir? ? Perguntou finalmente.

?Talvez o conheça, senhorita Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?-Obrigada, então o que disse, Mary, é que pode ter ouvido falar dele porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Ele trabalhou na Scotland Yard por alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ? disse com pesar enquanto observava Mary continuar sacudindo a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Quase não saio de casa e, quando o faço, não tenho entre meus objetivos o de me relacionar com as pessoas que encontro, exceto se tiver que curá-las ? disse bruscamente.

?Entendo... Valeria ficou mais intrigada ainda. Se a jovem não o conhecia, por que seu irmão não parava de chama-la quando a febre aumentava? Esticou a saia do vestido para não enrugar, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ? Mas creio que conhece meu irmão ? insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ? disse Mary, cansada.

Por que tanto mistério? O irmão daquela mulher era um ex-presidiário? Havia cometido crimes? Seria o próprio Frankenstein?

?Meu irmão é Philip Giesler ? Valeria finalmente declarou.

E naquele exato momento, Mary notou como seu queixo caía.

 

 

                                                    Dama Beltrán         

 

 

 

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