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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MALDIÇÃO DE SHAY / Alexandra Ivy
A MALDIÇÃO DE SHAY / Alexandra Ivy

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Será ele o inimigo... ou o homem que salvará sua vida?

Shay é a última de sua espécie. Seu sangue é um afrodisíaco para os vampiros, que o consideram mais precioso que ouro. Mas uma maldição a leva a ser vendida num leilão de escravos, e seu destino se torna incerto...

Viper, o carismático chefe de um perigoso clã de vampiros, não consegue explicar o desejo irrefreável de possuir a bela mulher que um dia salvou sua vida. Agora ele está livre para fazer com ela o que quiser, mas, por mais que deseje Shay, ele quer que ela se entregue por livre e espontânea vontade...

Um mal oculto parece perseguir Shay desde que ela deixou o mercado de escravos ao lado de Viper, um mal que põe em perigo a existência de toda a espécie dos vampiros, e não faz sentido ele correr tamanho risco apenas para ficar com ela. Mas o amor que sente por Shay é suficiente para fazer Viper ir até o inferno e voltar, se isso significar tê-la em seus braços por toda a eternidade...

 

 

 

 

                         Capítulo I

A casa de leilões nos arredores de Chicago não era ne­nhum pardieiro. Atrás das grades de ferro, a elegante construção de tijolos se apresentava em toda a sua arrogân­cia. Os aposentos eram enormes, com tetos abobadados, lin­dos murais e elegantes candelabros. Seguindo a orientação de um profissional, eles tinham sido decorados com carpete e almofadas da mais fina qualidade, além de mobília enta­lhada à mão.

Era uma atmosfera típica daquelas que somente o di­nheiro podia comprar. Montanhas de dinheiro. Devia con­ter pinturas famosas, jóias caríssimas e objetos de museus.

Em vez disso, era mais como um mercado. Um lugar onde demônios eram vendidos como carne em açougue.

Não havia nada de agradável quanto ao mercado de es­cravos. Tratava-se de um negócio sórdido, que atraía cada ser vivo decadente do país.

Eles vinham por todo tipo de razão. Havia aqueles que compravam demônios para lhes servirem de mercenários ou seguranças. Outros eram viciados em sexo exótico. Havia, ainda, os que acreditavam que o sangue dos demônios podia lhes trazer vida eterna. Também existiam os compradores que queriam soltar esses demônios em suas terras e caçá-los como animais selvagens.

Os leiloeiros eram homens e mulheres sem consciência ou moral. Seu único interesse era ganhar o máximo de di­nheiro para saciar seus prazeres bizarros.

E, no topo dessa sujeira toda, estava o dono da casa, Evor. Ele era um troll, uma daquelas criaturas gigantescas e nômades, que fazia fortuna com a desgraça dos outros, enquanto exibia um sorriso nos lábios.

Algum dia, Shay pretendia matar Evor. Quem sabe na­quela mesma noite.

Vestida com ridículas calças de escrava de harém, e um top burlesco que mais revelava do que escondia alguma coi­sa, ela esperava o leilão começar, andando de um lado para o outro, à beira do descontrole. Seus longos cabelos negros tinham sido presos para trás em uma trança que chegava quase à cintura. Assim estavam mais expostos os seus olhos de um tom dourado, a delicadeza de suas feições e sua pele bronzeada, que a distinguia como algo não humano.

Menos de dois meses antes, havia sido feito prisioneira por bruxas que pretendiam acabar com todos os demônios. E o pior viera a seguir, quando fora entregue a Evor. Melhor se tivesse morrido, claro.

Sem pensar, Shay chutou com incrível força uma mesinha, que saiu voando e terminou se espatifando contra as barras de ferro da cela.

Ouviu um suspiro pesado, vindo de um pequeno gárgula escondido atrás de uma cadeira, em um dos cantos da cela.

Levet não era um gárgula muito expressivo. Possuía as feições grotescas tradicionais: pele grossa e acinzentada, olhos de réptil, chifres e unhas bem afiadas. Possuía até um rabo longo, que ele polia e exibia com grande orgulho. Infelizmente, apesar de sua aparência assustadora, tinha pouco mais de um metro de altura. E pior: possuía um par de asas delicadas, mais condizente com uma fada do que com uma letal criatura das trevas. Não bastasse isso, seus poderes eram imprevisíveis, na melhor das circunstâncias, e sua coragem sempre faltava na hora "H".

Não era de surpreender, pois, que houvesse sido excluído do seu reino, e forçado a se virar por conta própria. Haviam-no declarado uma vergonha para sua comunidade, e ninguém tinha levantado um dedo para ajudá-lo quando Evor o havia capturado e feito dele seu escravo.

Shay colocara essa criatura patética sob sua proteção. Não somente porque tinha uma lamentável tendência a de­fender os mais fracos, mas porque sabia que Evor se irrita­va ao ver seu brinquedinho favorito ligado a mais alguém.

O troll podia mantê-la submissa a ele, mas se a provo­casse demais correria o risco de Shay perder a paciência e matá-lo, mesmo que isso fosse fatal para ela.

— Queridinha, por acaso a mesinha fez algo contra você que eu não vi? - Levet perguntou, forçando um sotaque afrancesado. Nada, aliás, que pudesse melhorar o seu status entre o seu povo.

Shay acabou rindo.

— Eu imaginei que a mesa era Evor.

— Estranho, não vejo semelhança alguma entre os dois.

— É que tenho uma excelente imaginação. Levet ficou pensativo.

— Neste caso, eu poderia esperar que me imaginasse como um Brad Pitt?

— Sou boa nisso, mas não tanto assim, gárgula.

— Pena.

O riso de Shay acabou.

— Pena que aquilo ali era uma mesa e não Evor, isso sim.

— Seria ótimo, mas não passa de um sonho. - Levet semicerrou os olhos.

— A não ser que esteja pretendendo fazer algo ainda mais estúpido.

— Quem, eu?

— Mon Dieu - o demônio resmungou.

— Você pretende lutar contra Evor!

— Não posso lutar contra ele. Não enquanto estiver de­baixo da maldição.

— Como se isso alguma vez a tivesse impedido de fazer alguma doidice. - O rabo de Levet batia de um lado para o outro, sinal claro de aborrecimento.

— Não pode matar Evor, mas isso nunca a impediu de tentar chutar o traseiro dele.

— Isso passa com o tempo.

—E a deixa gritando em agonia por horas. - Subitamente ele deu de ombros.

— Cherie, não aguento vê-la desse jeito. Não de novo. É insano lutar contra o destino.

Shay torceu os lábios. Como parte da praga, ela era pu­nida por qualquer tentativa de ferir o seu senhor. A dor que tomava conta de seu corpo era aterradora e a deixava inconsciente por horas.

Puxou a trança com força, sinal de que estava frustrada além da conta.

— Acha que eu deveria desistir? Aceitar a derrota?

— Que outra chance tem? Que escolha tem qualquer um de nós?

Shay rangeu os dentes enquanto olhava de volta para as grades de ferro que a mantinham cativa.

— Droga. Odeio isso. Odeio Evor. Odeio esta cela. Odeio aqueles demônios patéticos, que estão lá me esperando para fazerem seus lances. Talvez tivesse sido melhor morrer nas mãos das bruxas.

— Não vou argumentar contra isso, minha doce Shay - Levet concordou com um suspiro.

— Ser escravo é de fato uma droga.

Shay fechou os olhos. Estava cansada e frustrada de­mais, mas não era covarde. Só o fato de ter conseguido so­breviver pelo século anterior já provava isso.

— Não - ela resmungou.

— Não! Levet mexeu as asas.

— E por que não? Estamos aqui presos como ratos em um labirinto, até que sejamos vendidos a quem der o maior lance. O que poderia ser pior do que isto?

Shay sorriu sem animação.

— Dar a chance ao destino de vencer?

— O quê?

— Seja destino ou sorte, não vou simplesmente permitir que mexam com minha vida. Um dia desses vai me apare­cer uma oportunidade de cuspir na cara do destino. E isso que me mantém lutando.

Seguiu-se um longo silêncio, antes que o gárgula se apro­ximasse de Shay e esfregasse a cabeça na perna dela. Era um gesto inconsciente. Uma busca por reafirmação, que ele preferiria morrer a admitir.

— Tenho certeza de que nunca antes ouvi um discurso tão pouco elegante, mas acredito em você. Se alguém pode chegar até Evor, esta pessoa é você.

Distraída, Shay devolveu a carícia.

— Voltarei para buscá-lo, Levet, prometo.

— Hora, hora, que cena tocante... - Evor estava parado diante das grades da cela. Sorriu, revelando seus dentes pontudos.

— A Bela e a Fera.

Com um movimento rápido, Shay colocou-se à frente de Levet e virou-se para seu captor.

Sentiu repugnância quando Evor abriu a porta da cela e entrou. O troll passaria facilmente por um humano. Um hu­mano incrivelmente feio. Era baixo, barrigudo, com o rosto empapado. O cabelo era pouco mais que um tufo, o qual ele cuidadosamente mantinha grudado sobre a cabeça. E seus estreitos olhos pretos tinham uma tendência a ficar verme­lhos quando ele se aborrecia. Olhos que ele escondia atrás de óculos de aros pretos.

O corpo gorducho estava coberto por um traje caríssi­mo, contudo.

Somente os dentes marcavam-no como um troll, o caça­dor impiedoso da floresta.

Isso e a falta de moral.

— Vá para o diabo, Evor - Shay resmungou. O sorriso dele apenas aumentou.

— Só se você vier junto, querida.

Shay observou a criatura repugnante. Não era de hoje que Evor vinha tentando entrar debaixo dos lençóis dela. O que o impedia de fazer isso era a certeza de que ela mataria os dois para impedir que tal coisa acontecesse.

— Prefiro caminhar sobre o fogo do inferno antes de dei­xar que você me toque.

À fúria substituiu por instantes o sorriso de Evor.

— Algum dia, minha bela, ficará feliz por estar debaixo de mim. Todos nós temos um ponto fraco. Eventualmente você alcançará o seu.

— Não nesta vida. Evor fez um gesto obsceno com a língua.

— Tão orgulhosa. Tão poderosa. Vou desfrutar depositando a minha semente dentro de você. Mas não ainda. Posso fa­zer um bom dinheiro à sua custa. E dinheiro sempre vem em primeiro lugar. - Exibiu um par de algemas de ferro.

— Vai colocá-las ou preciso chamar os rapazes?

Shay cruzou os braços. Podia ser metade shalott, mas pos­suía toda a força e agilidade de seus ancestrais. Eles não eram os assassinos favoritos do mundo dos demônios sem razão.

— Depois desses anos todos, você ainda acredita que aqueles idiotas possam me dominar?

— Oh, não tenho intenção de que a machuquem. Odeio danificar a mercadoria antes do leilão. - Deliberadamente o olhar dele se dirigiu para onde Levet estava.

— Quero apenas que eles a encorajem a se comportar direito.

— Shay! - O gárgula gemeu baixinho.

Droga. Ela não podia deixar Levet à mercê dos brutamontes que Evor usava para protegê-lo. Eles adorariam torturar o pobre gárgula.

— Está bem- — Descruzou os braços.

— Uma escolha sábia. - Mantendo o olhar atento a qualquer movimento de Shay, Evor a algemou.

— Sabia que você entenderia a situação uma vez que esta lhe fosse bem explicada.

Shay sibilou quando o ferro entrou em contato com sua pele. Podia sentir todo o seu poder sendo drenado. Era cer­tamente o seu ponto fraco.

— Tudo o que sei é que um dia vou matá-lo, Evor.

— Comporte-se, vadia, ou seu pequeno amigo vai sofrer as consequências.

Shay procurou engolir a raiva. Mais uma vez subiria em um palco, e seria vendida pelo maior lance. Estaria à mercê de um estranho, que poderia fazer com ela o que quisesse.

E não havia nada que ela pudesse fazer para impedir que isso acontecesse.

— Vamos logo com isso - resmungou, transtornada. Evor abriu a boca, como se fosse argumentar, mas foi então que percebeu a expressão de Shay e resolveu não abusar da sorte. Obviamente podia sentir que ela estava chegando aos seus limites.

Em silêncio eles deixaram a cela e subiram as escadas estreitas que levavam aos fundos do palco. Evor parou so­mente o tempo suficiente para prender as algemas em um ferro chumbado no chão. Passou pelas cortinas ainda fecha­das, e se apresentou ao público.

Sozinha, no escuro, Shay respirou profundamente e ten­tou ignorar os gritos da multidão lá fora.

Mesmo sem poder ver os compradores em potencial, po­dia sentir a presença de demônios e humanos. Podia cheirar o fedor de seu suor. Sentir a impaciência deles. Captar o desejo animal que havia no ar.

Abruptamente, sentiu-se gelar. Havia alguma coisa a mais. Alguma coisa sutil, que ela não estava identificando muito bem. Algo decadente que lhe mandava arrepios de horror pela espinha.

Era vago. Como se o ser não estivesse presente em sua forma inteira e mais como uma presença intangível.

Sentiu uma ponta de medo.

Engolindo o grito que parecia querer escapar de sua gar­ganta, fechou os olhos e se forçou a inspirar profundamen­te. Ouviu Evor gritar, chamando a atenção de todos.

— E agora, senhoras e senhores, demônios e fadas, mor­tos e vivos... Hora da atração principal. Um item tão raro, tão extraordinário, que somente aqueles que possuem um bilhete dourado é que podem ficar - ele anunciou dramati­camente.

— O resto de vocês pode se retirar para as salas de recepção, onde lhes serão oferecidas bebidas ao seu gosto.

Evor estava se superando naquele dia, ela pensou enojada.

— Venham para mais perto, amigos - comandou, en­quanto muitos dos presentes se retiravam da sala. Para possuir um bilhete dourado, a pessoa ou demônio tinha de estar carregando no bolso pelo menos cinquenta mil dólares em dinheiro vivo. O mercado de escravos raramente aceita­va cheques ou cartões de crédito.

— Não vão querer perder a primeira visão de meu precioso tesouro. Não tema. Eu lhes asseguro que ela está devidamente algemada. Não oferece qualquer perigo. Nenhum perigo além de seu charme, na­turalmente. Ela não vai lhes arrancar os corações do peito, mas não posso prometer que não o roubem com sua beleza.

— Cale a boca e abra a cortina - alguém grunhiu.

— Está impaciente? - Havia raiva na voz de Evor. Não gostava de ser interrompido.

— Não, tenho a noite inteira. Vamos logo com isso.

— Ah, um apressadinho. Que pena. Esperemos que não seja igualmente assim, apressado, em outras áreas. - Evor riu, depois esperou até as risadas pararem.

— Mas o que eu estava falando? Ah, sim. Meu prêmio. Minha mais querida escrava. Demônios e ghouls permitam-me apresentar lady Shay: a última shalott a andar por este mundo!

Com um movimento dramático a cortina se abriu, dei­xando Shay exposta diante de cerca de duas dúzias de ho­mens e demônios.

Deliberadamente, ela abaixou o olhar quando ouviu as exclamações pela sala. Já era suficientemente humilhante sentir a fome daqueles compradores. Não precisava vê-la no rosto deles.

E, pelo que sabia, ela era realmente a última shalott que restava no mundo.

— Isso é um truque? - uma voz perguntou, não acredi­tando que o que via era real.

— Nenhum truque nem ilusão.

— Como se pudesse dar algum crédito a você, troll. Quero uma prova.

— Prova? Muito bem. - Evor procurou com os olhos em meio aos presentes.

— Você aí, venha cá.

Shay ficou tensa ao ver um vampiro se aproximar. O sangue dela era mais precioso que ouro para os mortos vi­vos. Um afrodisíaco pelo qual eles matariam.

Atenta ao vampiro, ela mal notou quando Evor pegou seu braço e usou a faca para tirar sangue. O vampiro se inclinou e o lambeu. No mesmo instante, seu corpo inteiro pareceu se transformar.

— Há sangue humano, mas ela é uma shalott genuína - ele afirmou.

Evor colocou seu corpo balofo entre Shay e o vampiro. Relutante, a criatura deixou o palco, sem dúvida sabendo o que poderia lhe acontecer se não resistisse ao impulso de enterrar seus dentes em Shay e drenar seu sangue todo.

Evor esperou que todos estivessem novamente atentos.

— Satisfeitos? Ótimo. Começaremos os lances com cin­quenta mil dólares. Lembrem-se, cavalheiros, dinheiro vivo.

— Cinquenta e cinco mil!

— Sessenta mil!

— Sessenta e um mil!

Shay abaixou a cabeça. Logo seria forçada a confrontar seu novo senhor. Não queria nem mesmo olhar enquanto eles agiam como um bando de cães querendo arrancar um pedaço seu.

— Cem mil dólares! - Uma voz gritou ao fundo da sala. Um sorriso surgiu nos lábios finos de Evor.

— Um lance generoso, meu bom senhor. Mais alguém? Não? Dou-lhe uma... Dou-lhe duas...

— Quinhentos mil.

Um silêncio impressionante encheu o aposento. Sem perce­ber o que fazia, Shay levantou a cabeça e procurou quem fize­ra a oferta. Havia algo naquela voz. Alguma coisa familiar.

— Dê um passo à frente. - Os olhos de Evor brilhavam.

— E dê-me o seu nome.

Os presentes foram abrindo caminho para a passagem de um ser que foi surgindo das sombras.

Um burburinho se ouviu quando viram o belo rosto e os cabelos longos que lhe caíam pelas costas. Bastou-lhes ape­nas um olhar para perceberem que era um vampiro.

Nenhum humano poderia se parecer com um anjo caído do Céu. Ou que se movesse com aquela graça. Ou que levasse os demônios a darem um passo para trás, tomados pelo medo.

O ar faltou a Shay. Não por causa da beleza impressio­nante diante de si, pela presença poderosa ou mesmo pela graça do andar...

O fato é que ela conhecia o vampiro. Ele tinha lutado ao lado dela na batalha contra as bruxas, semanas antes. E, mais importante, estivera a seu lado quando ela lhe salvara a vida.

E agora ele dava um lance, como se ela nada mais fosse do que um objeto de sua propriedade.

Que a alma dele queimasse no inferno!

 

Viper estava no mundo havia séculos. Tinha assisti­do à ascensão e queda de todos os impérios. Seduzira as mais belas mulheres do mundo. Tirara sangue de reis, czares e faraós. Mudara, inclusive, o curso da história em algumas vezes.

Agora estava saciado, tranquilo demais, entediado, até.

Não sentia mais vontade de provar o seu poder. Não se envolvia mais em batalhas com demônios ou humanos. Não fazia alianças, nem interferia em política.

Sua atual preocupação era apenas assegurar a segurança de seu clã, e manter o seu negócio rendendo o suficiente para lhe permitir a vida luxuosa com a qual se acostumara.

Mas, de algum modo, aquela shalott tinha conseguido o impossível. Povoara os pensamentos dele desde que tinha desaparecido, após a luta contra as bruxas.

E isso não o deixava nada satisfeito.

Olhando para sua mais recente aquisição, não precisava se esforçar muito para saber se Shay estava satisfeita ou aborrecida. Mesmo sob a luz fraca, a fúria nos olhos doura­dos da shalott eram evidente.

Viper deu um leve sorriso ao se voltar para Evor com desdém.

Evor arregalou os olhos. Aquele era um vampiro que ins­pirava muito medo em Chicago.

— Perdoe-me por não tê-lo reconhecido, senhor. - Ele engoliu em seco.

— Tem o dinheiro consigo?

Viper enfiou a mão dentro do casaco e extraiu dele um grande pacote.

— Tenho.

Com um floreio, Evor deu o leilão por terminado.

— Vendida.

Shay soltou um som estranho e, antes que Viper pudesse lhe dar a devida atenção, alguém praguejou bem alto.

— Esperem! O leilão ainda não encerrou...

Viper bufou. Poderia ter rido do absurdo da declaração, mas não deixou de perceber o desespero que havia na voz da criatura que protestava, assim como a negritude de sua alma. Era um ser tocado pela maldade.

Evor voltou-se para o homem e o mirou da cabeça aos pés.

— Quer continuar?

— Quero.

— Tem dinheiro vivo para bancar a última oferta?

— Não comigo, mas posso arranjar facilmente se você...

— Só aceito dinheiro vivo e na hora - Evor grunhiu.

— Mas posso conseguir o dinheiro.

— O leilão está encerrado.

— Você tem de esperar, eu...

— Caia fora, antes que eu encarregue meus homens de escorraçá-lo daqui.

— Não! - Sem aviso, o homem subiu as escadas com a faca nas mãos.

— A mulher demônio é minha.

Tão rápido como o sujeito, Viper já se movera e se coloca­ra entre o estranho e sua shalott.

— Hora, hora, seja razoável. - Evor fez um gesto em dire­ção aos seus guarda-costas, que estavam ao fundo do palco.

— Conhecia as regras quando veio aqui.

Os seguranças começaram a se mover na direção do es­tranho e Viper cruzou os braços. Sua atenção continuava presa no humano demente, mas não conseguia deixar de perceber o doce cheiro do sangue de sua shalott, o calor de sua pele e a energia que ela irradiava.

O corpo dele reagia à sua proximidade e ao calor que ele esquecera havia tempos.

Infelizmente, sua atenção era forçada a permanecer cen­trada no louco que, no momento, empunhava uma faca na mão. Havia algo decididamente estranho em sua determi­nação. Um pânico totalmente descabido. Ele seria um idiota se subestimasse o perigo que corria,

— Não se aproximem - o homem gritou para os segu­ranças de Evor.

Os trolls continuaram, até que Viper fez um gesto com a mão.

— Eu não me aproximaria da faca. Está enfeitiçada. O rosto de Evor ficou endurecido pela raiva.

— Artefatos mágicos são proibidos aqui, e a punição é a morte.

— Pensa que um patético troll e seus guarda-costas po­dem me assustar? - O intruso apontou a faca em direção ao rosto de Evor.

— Vim aqui pela shalott, e não vou sair sem ela. Matarei se for preciso.

— Pode tentar - Viper observou. O homem se voltou para ele.

— Não quero lutar contra você, vampiro.

— Mas está tentando roubar a minha mulher demônio.

— Mas eu vou pagá-lo. O que quiser.

— Está sendo generoso.

— Qual o seu preço?

Viper fingiu considerar um valor.

— Nada que possa me oferecer - concluiu, por fim. O homem gritou em desespero.

— Como sabe que não vou poder pagar? Meu patrão é muito rico, muito poderoso.

Ah. Agora estavam começando a chegar a algum lugar.

— Patrão. Então você é apenas um intermediário?

— Sim - o estranho concordou.

— E seu patrão, certamente, vai ficar muito desaponta­do quando souber que você fracassou na tarefa de comprar a shalott.

O estranho empalideceu. O patrão devia ser alguém aterrador para provocar pavor no criado.

— Ele me matará.

— Seu problema é grande, amigo, porque não tenho inten­ção alguma de permitir que saia daqui com o meu prêmio.

— Por que se importa assim? O sorriso de Viper era frio.

— Com certeza deve saber que o sangue de uma shalott é afrodisíaco para os vampiros. É um líquido raro que nos tem sido negado há muito tempo.

— Pretende tirar todo o sangue dela?

— Isso é assunto meu. Ela é minha. Comprada e paga. Viper ouviu Shay praguejar atrás dele, além do barulho de algemas. A sua bela estava claramente infeliz com a res­posta dele, e ansiosa em lhe mostrar o seu desprazer.

Sentiu-se excitado.

Pelo sangue dos justos. Ele gostava de mulheres perigosas.

Shay amaldiçoou as algemas que a prendiam ao marco de ferro. Amaldiçoou Evor, o ganancioso canalha. Amaldiçoou o estranho humano que trazia consigo o cheiro indisfarçável da maldade, o qual ela sentira antes de o leilão começar.

E mais do que tudo, ela amaldiçoava Viper por estar se referindo a ela como um objeto que acabara de adquirir pelo lance mais alto.

Infelizmente, de nada adiantava ficar ali amaldiçoando todo mundo. O estranho era maluco e estava de posse de uma faca enfeitiçada.

— Ela é minha. Preciso ficar com ela!

O vampiro nem piscou. Na verdade, ficou tão imóvel, que parecia mais morto do que vivo. Somente a energia que to­mara conta de todo o aposento é que alertava: ali estava alguém que era mais do que um rosto bonito.

— Pretende me enfrentar usando apenas uma faca enfeitiçada? - Viper perguntou curioso.

O homem engoliu em seco.

— Sei que não posso derrotar um vampiro.

— Não é tão estúpido quanto parece.

O estranho olhou em volta e Shay sentiu que todos fica­vam tensos. O maluco estava desesperado a ponto de querer enfrentar um vampiro. Quando se moveu, porém, não foi na direção de Viper, mas na de Evor. Com incrível habilidade, agarrou o troll e pressionou a faca contra a sua garganta.

— Vou matá-lo. Enquanto ele estiver controlando a shalott, ela morre também. - O olhar do estranho estava concentrado em Viper, sem dúvida sabendo que este era muito mais perigoso do que qualquer outro demônio que estivesse na sala.

— Ela não vai lhe servir de nada se morrer antes que lhe drene o sangue.

Shay suspendeu a respiração. Não tinha medo de mor­rer. Mas, por Deus, se ia para o túmulo, não queria que fosse enquanto estivesse presa por algemas de ferro.

Viper não se moveu, mas seu poder fez com que a sala ficasse assustadoramente gelada.

— Você não vai matá-la - disse em um tom de voz capaz de provocar arrepios nos mais corajosos.

— Não acredito que seu patrão fique satisfeito se você lhe levar um cadáver.

O estranho riu com selvageria.

— Se ela acabar nas mãos de outro, meu destino será pior que a morte.

— O seu patrão a deseja ou a teme? Quem é ele? Um demônio? Um feiticeiro?

— Pare ou vou matá-la!

— Não. - Viper continuou calmo.

— Vai largar a faca e ir embora.

— Não pense que pode me dominar com o seu olhar. Sou imune a essa droga.

— Ótimo, então terei de matá-lo.

— Não pode... - As palavras ainda não tinham deixado os lábios do estranho, quando Viper o segurou pelo pescoço e o jogou contra uma parede.

O homem era pequeno, mas fez um estrago e tanto. Surpreendendo a todos, colocou-se de pé imediatamente. Com certeza era mais do que um mero humano. Sem dúvida um má­gico, com poder suficiente para lhe garantir alguma proteção.

Levantando a mão, exibiu o que pareceu ser uma pequena pedra. Shay gelou. Tinha vivido tempo suficiente com as bru­xas para saber que o cristal era capaz de um poderoso feitiço.

— Viper!

Não sabia bem por que alertava o vampiro. O que lhe importava quem ganhava a batalha? Ser drenada por um bando de vampiros todas as noites era preferível ao que o desconhecido monstro planejava para ela?

No fim, isso não importava muito.

Antes mesmo que o nome dele saísse dos lábios de Shay, Viper saltava, escapando do feitiço do cristal. Chamas sur­giram pelo aposento e atingiram o palco.

— Peguem os extintores, seus idiotas - Evor gritou para os seguranças.

— Vou perder tudo aqui!

Os brutamontes obedeceram às ordens do patrão sem gran­de entusiasmo, mais interessados em presenciarem a luta.

Viper estava de pé, o casaco negro flutuando em torno de seu ágil corpo.

— O feitiço que o protege não o livrará do que farei em seu pescoço - disse em voz suave.

— Está assim tão ansio­so por morrer?

— Melhor ter a garganta furada do que ter de suportar aquilo que meu patrão pode fazer comigo - declarou o sujei­to, lançando o poder do cristal sobre o palco mais uma vez.

Evor gritava, horrorizado. Shay se jogou ao chão, seus reflexos impedindo que o fogo a atingisse.

Viper lançou-se contra o estranho. Ela sentiu os cabelos da nuca se arrepiar quando o rosto dele se transformou e seus caninos se fecharam sobre o pescoço do homem. O grito dele se transformou em uma espécie de grunhido quando o sangue começou a escorrer por sua boca e se espalhou pelo carpete. Estava a um segundo da morte. Mesmo assim em desespero, enfiou a faca nas costas de Viper repetidas vezes.

Shay estremeceu. Mesmo que a faca não pudesse matar um vampiro, poderia lhe causar muita dor.

Houve um último gemido e Shay virou o rosto. Em par­te, estava satisfeita por não estar sendo entregue a um ser que carregava consigo a maldade, mas preferia não olhar o vampiro desfrutar de sua refeição noturna...

Especialmente quando ela poderia ser o seu café da manhã.

Ouviu-se um baque surdo quando o homem caiu no chão.

— Sugiro que verifique melhor quem você convida para os seus leilões, Evor - o vampiro observou.

— Magia negra nunca é bom para os negócios.

— Sim, sim, certamente. - Evor olhou em torno, pesa­roso. O aposento estava semidestruído.

— Eu lhe peço as minhas mais sinceras desculpas. Não posso imaginar como essa criatura conseguiu driblar a minha segurança.

— A questão não é como. Obviamente, ele teve a ajuda de um poderoso senhor. A pergunta é quem é esse senhor, e por que estava tão determinado em colocar as mãos na shalott.

— Bem, suponho que isso não importe agora.

— A não ser que ele venha até aqui pegar de volta o seu criado...

Os olhos de Evor se tornaram vermelhos.

— Pensa que ele fará isso?

— Meus talentos não incluem ler o futuro.

— Vou mandar tirarem o corpo daqui. - O troll olhou nervosamente para o cadáver.

— Talvez devesse queimá-lo?

— Não é problema meu. Vou levar a minha propriedade agora.

— Claro, claro. Que confusão. - Evor procurou nos bol­sos, e de lá tirou um pequeno amuleto, que entregou ao im­paciente vampiro.

— Aqui está.

Segurando o amuleto em seus dedos longos, Viper lan­çou um olhar indagador ao troll.

— Explique.

— Enquanto possuir o amuleto, a shalott virá ao seu en­contro sempre que a chamar.

Viper lançou um olhar para Shay. Ela estremeceu quan­do viu a satisfação em seus olhos magnéticos.

— Então ela não poderá escapar de mim?

— Não.

— E isso faz mais o quê?

— Nada. Temo que tenha de controlá-la por si mesmo. - Evor enfiou novamente a mão no bolso e de lá extraiu uma chave pesada, que estendeu a Viper.

— Sugiro que a mantenha com as algemas até que a tenha trancado em uma cela bem segura.

O olhar de Viper mantinha-se preso no de Shay.

— Não me preocupo com isso - falou suavemente.

— Agora nos deixe.

— Como queira. - Evor deu de ombros, pegou seu dinhei­ro com cuidado, e saiu do palco seguido de seus seguranças.

Assim que estavam sozinhos, Viper se ajoelhou ao lado de Shay.

— Bem, encontramo-nos de novo.

Ela sentiu a respiração lhe faltar e isso era ridículo. Meu Deus, ele era bonito demais. Os olhos eram negros como uma noite escura. As feições perfeitas, como se tivessem sido modeladas por um artista. Os cabelos, acetinados.

Era como se tivesse sido criado com o único propósito de dar prazer a cada mulher afortunada que cruzasse o seu caminho.

O desejo de tocar suas feições e comprovar se eram mes­mo reais tornou-se tão intenso que a confundiu. Shay viu sua mão se estendendo, mas a retraiu de pronto.

Droga. O que estava acontecendo com ela?

Aquele canalha tinha acabado de comprá-la. Gostaria de enterrar uma estaca no coração dele, não descobrir se podia mesmo levar uma mulher ao delírio do prazer, como parecia prometer.

— Gostaria de dizer que se trata de uma agradável sur­presa, mas não é - ela conseguiu murmurar.

— Não é agradável ou não é uma surpresa?

As palavras, ditas com voz suave, fizeram com que a pele dela se arrepiasse. Mesmo a voz era capaz de levar uma mulher ao clímax em questão de instantes.

— Adivinhe.

Ele franziu levemente a testa.

— Poderia estar um pouco mais agradecida. Afinal aca­bo de salvá-la de um futuro nada promissor.

— Você não tem nada a ver com meu futuro.

— Oh, mas ainda não sabe dos meus planos.

— Você é um vampiro. Isso é tudo o que preciso saber. Ele estendeu a mão e tocou de leve nos cachos de cabelo que lhe caía em torno do rosto: um toque que irradiou ener­gia por todo o corpo dela, dando-lhe um inesperado prazer. Maldito vampiro.

— Acredita que nós vampiros somos todos iguais?

— Vampiros estiveram por séculos atrás de meu sangue. Por que você seria diferente?

Os lábios dele exibiram um sorriso.

— É verdade, por que não?

Shay tentou se afastar, mas gemeu pela dor que as alge­mas lhe causaram nos punhos.

— Você sabia que eu estaria aqui quando veio? - ela perguntou.

Houve um momento de silêncio antes que ele respondesse:

— Sim.

— Foi essa a razão que o trouxe aqui?

— Sim.

— Por quê?

— Obviamente porque queria você.

A decepção voltou a ferir o coração de Shay como uma punhalada. Ela era uma estúpida.

— Mesmo depois de eu ter lhe salvado a vida?

Ele a olhou com curiosidade.

— Salvou a minha vida? Talvez. Shay arregalou os olhos, chocada.

— O que quer dizer com esse "talvez"? Ele deu de ombros.

— Certamente você evitou que eu tivesse um ferimento sério, mas é impossível determinar se eu teria morrido dele.

— Miserável. - Ela respirou fundo.

— Salvei a sua vida e, mesmo assim você veio aqui para me comprar.

— Havia entre os compradores alguém que preferisse?

— Preferia matar todos vocês. O riso dele encheu o aposento.

— Tão sedenta de sangue...

— Não. Apenas estou cansada de ficar à mercê de todo demônio, monstro, bruxo ou maluco que tenha dinheiro su­ficiente para me comprar.

Ele balançou a cabeça, concordando.

— Compreensível, suponho.

— Você não compreende nada.

O leve sorriso não deixou os lábios dele, mas, pela pri­meira vez, Shay notou as linhas de irritação em torno de seus olhos.

— Talvez não, mas sei muito bem que não desejo brigar com você esta noite. Fui ferido e preciso de sangue para recuperar minha energia.

Shay se esquecera dos ferimentos dele. Não que estives­se particularmente preocupada com isso.

E ela não gostara de ouvi-lo mencionar a palavra "sangue".

— E daí?

Ele pareceu se descontrair novamente.

— Eu preferia levá-la para casa de maneira civilizada, mas posso mantê-la com as algemas enquanto estiver sendo arrastada. A escolha é sua.

Ela se recusou a revelar o seu alívio.

— Que escolha, não é?

— Por hora é a única que tem. O que vai ser?

Shay o encarou por um momento antes de lhe estender os braços. Não havia razão para lutar contra o inevitável. Além do mais, o ferro estava machucando seus punhos.

— Tire as algemas.

— Posso ter a sua palavra de que não vai tentar lutar contra mim?

Shay o olhou, surpresa.

— Confia em minha palavra?

— Claro.

— Por quê?

— Porque posso ler a sua alma. - Ele não desviou o olhar.

— E então, dá a sua palavra?

Droga. Shay não queria que Viper soubesse que, se ela lhe desse sua palavra, jamais poderia voltar atrás. Isso lhe daria um poder ainda maior sobre ela.

No momento, se recusava a tanto. Como poderia viver consigo se, pelo menos, não tentasse enfiar uma estaca no coração de seu novo senhor? Tinha o seu orgulho, afinal das contas.

Mas ele continuava a olhá-la, imóvel como somente um vampiro podia fazer.

Shay suspirou. Ele estava preparado para ficar naquela precisa posição por uma eternidade, se necessário.

— Nesta noite não tentarei lutar contra você - concedeu por entre os dentes.

Viper acabou rindo.

— É o melhor que posso conseguir neste momento, não é?

— Está absolutamente certo.

Viper escoltou Shay para fora da casa de leilão até o car­ro, Não sabia bem por que estava tão satisfeito. Viera ao leilão porque não conseguira tirar a imagem da linda shalett de sua mente. Não tinha idéia do que pretendia fazer com ela. Apenas sabia que não deixaria que ninguém mais a possuísse.

Seus planos não incluíam uma batalha contra um bruxo, ou adquirir um inimigo poderoso que, sem dúvida, o procu­raria em busca de vingança, tampouco ser tratado como um monstro pela sua própria escrava. Por que estava rindo?

Seu olhar se deteve nos quadris de Shay enquanto ela caminhava à sua frente. Agora ele se lembrava.

Sentiu a excitação tomar conta dele. O aroma do sangue potente que ela possuía nas veias fazia com que qualquer vampiro se excitasse. E tinha um aroma carnal.

Mas não era somente isso o que o atraía naquela shalott. Ela era belíssima, caminhava com uma graça incomum, sem contar a determinação em seus olhos dourados, e o pe­rigo que ela representava a qualquer um.

Nunca seria simplesmente uma companheira de sexo. Seu amante nunca saberia se quando a beijasse ela enros­caria suas pernas em torno dos quadris dele, ou lhe arran­caria o coração. E isso acrescentava um bocado à excitação que ele já sentia.

Viper procurou afastar o olhar dos quadris de Shay quando chegaram à limusine preta.

— Este carro é seu? - ela perguntou, admirada.

— Um dos meus pecados.

Ela forçou um sorriso, mas Viper não conseguiu avaliá-lo bem. Parecia mais perturbada do que impressionada com os sinais da sua riqueza.

— Ótimo.

— Gosto de viver bem. - Viper abriu a porta da limusi­ne e fez um gesto para que ela entrasse.

Já dentro, Shay não conseguiu esconder a admiração. O interior do carro era um trabalho de arte. Bancos brancos acetinados, gabinete com bebidas, TV de plasma...

O que mais um vampiro como ele poderia desejar?

Quando o carro começou a deslizar, Viper pegou dois co­pos de cristal e serviu neles uma generosa porção de seu vinho favorito.

— Vinho? - ofereceu.

— Este vem de uma excelente safra.

— Pode ser. - Shay aceitou o copo.

— Mas não sei dis­tinguir um vinho bom de água de banho.

Viper escondeu o sorriso tomando um gole.

— Vejo que precisarei apresentá-la às delícias de uma vida de luxos.

Shay o olhou, surpresa.

— Por que perderia tempo com isso? Ele deu de ombros.

— Prefiro que minhas companheiras sejam sofisticadas.

— Companheiras? - Shay riu com ironia.

— Eu?

— Paguei um bom dinheiro por você. Pensa que vou es­condê-la em alguma cela úmida?

— Por que não? Você pode drenar o meu sangue em qual­quer lugar.

Viper se acomodou melhor no assento elegante, procu­rando ficar de um jeito que os ferimentos das costas não doessem.

— É verdade que eu poderia fazer uma fortuna com o seu sangue - ele murmurou.

— Os vampiros pagariam qualquer preço por um gole de seu potente elixir. No entanto, não preciso de mais riqueza, e no momento prefiro mantê-la comigo.

— Como seu estoque particular?

— Talvez - ele murmurou meio distraído, enquanto pe­gava um pequeno pote de cerâmica.

— Estenda os braços.

Shay endureceu o corpo, temendo o que viria. Ela deixa­ra claro que considerava compartilhar o seu sangue com um vampiro um destino pior que a morte.

— Para quê?

— Pedi que estendesse os braços.

Shay o olhou com fúria e demorou um longo tempo para obedecer.

Viper enfiou os dedos no pote de cerâmica e depois pas­tou o creme nos punhos feridos de Shay.

— O que está fazendo?

— Não vejo razão para você sofrer. Não sou ligado às bruxas, mas suas poções funcionam.

Shay arqueou as sobrancelhas enquanto Viper fazia o curativo no outro pulso.

— Por que está fazendo isso?

— Está machucada.

— Sim, mas... por que se importa comigo? Seus olhares se cruzaram.

— Você agora me pertence. Cuido bem das minhas coisas. Shay não pareceu inteiramente satisfeita com a explicação, mas seus músculos relaxaram com o toque gentil dos dele, e não tentou se afastar. Não até que Viper levou o punho dela aos lábios.

— Não, por favor - ela murmurou.

— Eu...

De repente, Shay puxou a mão e ficou em alerta.

— O que foi? - ele perguntou, confuso.

— A escuridão que havia na casa de leilão está nos se­guindo.

— Abaixe-se - ele ordenou, enquanto abria um compartimento embaixo do banco. Em um instante estava com uma arma.

Houve o solavanco de um veículo batendo na limusine, mas sem causar estrago algum, desde que a blindagem que a cobria era capaz de aguentar uma bomba nuclear.

E, claro, o chofer era um vampiro. Os reflexos de Pierre eram os melhores que Viper já vira. Sem mencionar o fato dele ser imortal, ou seja, o chofer perfeito.

Mas Pierre parecia surpreso que houvesse alguém estú­pido o bastante para atacá-lo.

— Dê-me uma dessas. - Shay apontou para uma das pistolas.

Viper escutou a voz suave e se voltou para ela.

— Sabe usar uma arma?

— Sei.

Ele lhe entregou uma pistola e se surpreendeu em vê-la lidar com a arma com incrível eficiência.

Não que isso fosse muito tranquilizador. Mas, pelo me­nos ele sabia que ela não daria um tiro no pé acidentalmen­te ou, pior que isso, no pé dele.

— Mire os pneus - ordenou, abaixando a janela. Apertou o próprio gatilho, atingindo o alvo. Do outro lado, Shay con­seguiu atingir o motorista, apesar de não saber se havia sido um tiro mortal.

O carro saiu da estrada e Viper enviou seus pensamen­tos a Pierre, que diminuiu a velocidade da limusine. Ele queria aqueles homens. Queria lhes tirar toda a informação que possuíam.

E depois planejava lhes tirar todo o sangue.

Quem quer que fosse, estava querendo demais a shalott, e ele precisava saber com quem estava lutando.

Praguejou quando viu o carro inimigo explodindo em uma bola de fogo.

Droga. Isso não acontecia apenas nos filmes.

Viper observou Shay se acomodar no banco. Fechando as janelas, estendeu a mão para que ela lhe entregasse a arma. Houve apenas um instante de hesitação, mas ela aca­bou lhe estendendo a pistola. Ele guardou as duas armas no gabinete escondido, depois se acomodou melhor no banco e sorriu.

— Nada mal, não é?

— Fizemos um bom trabalho. Pensou que eu pudesse virar a pistola em sua direção?

— Sentiu-se tentada?

— Uma arma não é capaz de matar um vampiro.

— Mas as balas eram de prata e poderiam ter causado um bom estrago.

Shay ficou em silêncio um instante.

— Disse que confiava em mim.

— Não sobrevivi por tantos séculos sem compreender que às vezes me engano.

Shay não fez comentário algum, e se entreteve arruman­do a trança. Não parecia muito calma, e Viper achou mais sensato não provocá-la ainda mais.

Parte demônio ou não, ela ainda era uma mulher.

— Se eu quisesse feri-lo - ela disse por fim — não pre­cisaria de uma arma.

Shay não era boba. Sabia que provocar um vampiro de­baixo de certas circunstâncias era perigoso. Como jogar ro­leta russa com uma arma carregada com todas as balas. Especialmente quando ela estava à mercê de seu dono.

Mas, enquanto todos os sentidos a alertavam para que mantivesse a boca fechada, e desaparecesse naquele macio assento de couro, seu orgulho se recusava a escutar.

Além de ser um vampiro, Viper era tudo aquilo que ela mais odiava. Bonito demais, obscenamente rico, e pior de tudo, confiante demais em seu próprio valor.

Bem no fundo ela estava com inveja de sua arrogância. Mesmo que vivesse um milênio, jamais conseguiria valorizar a si mesma. Ela era uma aberração. Metade demônio e metade humana. Não pertencia a nenhum mundo. E nunca pertenceria.

Viper voltou-se com a testa franzida.

— Tem idéia de quem possa estar tão desesperado para colocar as mãos em você?

— Não.

— Nenhum antigo dono que a queira de volta?

— Além de Evor, que detém a minha maldição, Edra foi meu único dono. - Ela retorceu os lábios, aborrecida.

— Até vir você.                                        

— Pode ser algum amante ciumento?

— Isso não é de sua conta.

— Agora é, já que tentaram me matar. Shay puxou a trança com violência.

— Devolva-me a Evor.

— Nunca. - Sem aviso, o vampiro se aproximou e en­curralou Shay em um canto do banco.

— Você é minha.

O rosto dele estava tão próximo, que ela podia sentir os reflexos do brilho que havia em seus olhos negros.

Seu coração disparou. Em parte por medo. E em parte... Diabos, ela precisava ser honesta. Em parte por sentir dese­jo. Não precisava gostar dele para querer rasgar suas rou­pas e colocar aquele corpo magnífico sobre o dela. Viper era um convite ao sexo, dos cabelos aos dedos dos pés calçados naquelas botas de couro. Ela teria de estar morta para não querer fazer sexo com ele.

Percebendo que Shay o desejava, Viper inclinou-se mais, os caninos surgindo, poderosos, e ele mesmo excitado ao limite.

Shay arregalou os olhos.

— Não.

Bem devagar, ele começou a abaixar a cabeça.

— Tem medo que eu queira beber o seu sangue?

— Não gosto de servir de refeição para ninguém. Os frios lábios de Viper roçaram o rosto dela.

— Há muitas razões para um vampiro compartilhar o sangue. Confiança, amizade, amor, desejo...

O coração de Shay parecia querer saltar do corpo. Viper a estava tocando com nada mais do que seus lábios, mas isso já provocava efeitos nas partes íntimas dela e seus ma-milos haviam endurecido.

Deus, fazia tanto tempo...

Os cabelos macios e longos pareciam acariciar a curva de seu pescoço, Shay pensou. Ele tinha um cheiro de colônia cara misturado a algo bem mais primitivo. Alguma coisa gritantemente masculina.

No momento Viper lhe lambia a veia próxima ao pesco­ço, e o pânico fez com que ela levantasse as mãos, tentando empurrá-lo.

— Viper!

— Neste momento não quero o seu sangue. - Os lábios continuaram se movimentando, levando um arrepio a per­correr a espinha de Shay.

— O que você quer? - ela conseguiu perguntar.

— Tudo o mais.

Seus lábios se encontraram e, mais uma vez, ela sentiu corpo inteiro estremecer.

Um gemido escapou de seus lábios quando os dedos de Viper tocaram seu rosto. Com gentil insistência, a língua ávi­da entreabriu os lábios dela e se introduziu em sua boca.

Shay manteve os olhos fechados mas, inesperadamente, participou do beijo. Desde o momento em que tinha encon­trado aquele vampiro, semanas antes, ele lhe havia invadi­do os sonhos e despertado nela sensações adormecidas.

Suavemente, as mãos de Viper deslizaram pelo pescoço de Shay. Seu toque era tão leve quanto às asas de uma bor­boleta. Tão leves, que ela mal notou quando os dedos dei­xaram seu pescoço e chegaram aos seios. Não até que Viper massageasse os mamilos.

Uma exclamação escapou dos lábios dela.

— Viper!

Os caninos roçaram a pele macia de Shay, nunca tirando sangue.

— Shh... Não vou machucá-la.

— Vai me morder?

— Tenho outra coisa em mente.

Shay estremeceu, permitindo que o corpo de Viper pressionasse o dela, que seu joelho a forçasse a abrir as pernas.

Sentiu-se tonta ao sentir a enorme ereção a pressioná-la.

Pelo fogo do inferno, o que estava fazendo? Tornara-se escrava de Viper havia não mais de uma hora, e ali estava ela, lutando contra a vontade de arrancar as roupas dele para que a penetrasse.

Podia estar subjugada por seu poder, mas isso não signi­ficava que deveria lhe obedecer com entusiasmo. Afinal, ela não tinha orgulho algum?

Fazendo um esforço enorme, tentou se controlar.

— Não - conseguiu dizer.

Foi mais um gemido, porém, o suficiente para Viper pa­rar o que fazia.

— O que disse?

O corpo dela estremeceu todo com um misto de medo e decepção.

— Eu disse não.

Estava preparada para ouvi-lo rir diante de seu fraco protesto. Ou quem sabe ignorá-lo.

Era sua escrava e Viper podia fazer o que quisesse com o corpo dela.

Surpreendentemente, no entanto, ele se afastou, ajeitando-se no banco. Não havia o menor tremor em seus dedos quando pegou o cálice de vinho e o levou aos lábios, como se o que estivera acontecendo entre os dois não o afetasse em nada.

— Por que parou? - ela inquiriu, perplexa. Viper sorriu levemente.

— Você disse "não". Eu presumi que significasse mes­mo um "não".

— Mas...

— Sou um vampiro, não um monstro.

— Mas importa o que eu quero? Sou sua escrava. Viper colocou seu cálice de lado.

— Mas não é uma prostituta e nunca será. Shay observou-o com atenção. Parecia sincero.

Mas ele era um vampiro. Fingimento era uma das maio­res habilidades de um vampiro.

— Tudo o que tenho de dizer é "não"?

— Exatamente.

— Não acredito em você.

Os olhos negros brilharam de raiva diante da acusação, mas logo voltaram ao normal.

— Esta é sua escolha, naturalmente.

Shay voltou a mexer na trança. Era uma armadilha. Tinha de ser.

— Se não pretende me possuir, por que me comprou? Viper caiu na risada. Estendeu a mão para a maçaneta da porta e a abriu.

— Chegamos. Vamos entrar?

— Este é o seu lar? - Shay perguntou.

Viper tirou o casaco pesado, e ficou apenas com a camisa de linho e calças de couro.

Sorriu ao perceber que ela deslizava o olhar pelo corpo dele. O tempo que haviam passado na limusine revelara que ela não lhe era indiferente.

Logo Viper pretendia tê-la, quente e apaixonada, debai­xo de si.

Ou em cima, ao lado...

— É uma das minhas casas.

— Quantas você tem?

— Isso importa?

— Suponho que não. Viper aproximou-se de Shay.

— Esperava uma maior?

— Deus, não.

Ele seguiu para a cozinha e Shay o acompanhou.

— Tenho algumas que uso para entreter as pessoas, mas aqui é o meu retiro. Às vezes prefiro ficar sozinho.

— Estamos sozinhos?

Viper se voltou para Shay e observou a roupa que ela usava. Quando ele a vira vestida como uma escrava de harém, desejara arrancar fora o coração de Evor.

Na privacidade de sua casa, no entanto, não podia negar que aquele traje tinha certo atrativo.

— Há guardas no quintal, e tenho uma governanta hu­mana que vem durante o dia. Mas, na maior parte do tempo, teremos a casa somente para nós mesmos. - Voltou a aten­ção para a curva da boca de Shay.

— Delicioso, não é?

— Não é a palavra que eu usaria neste caso.

Ele se aproximou a ponto de seus corpos ficarem juntos.

— Preferia estar rodeada por vampiros famintos? Isso pode ser arranjado.

— Pare com isso.

Viper tocou de leve no rosto de Shay.

— Com licença.

— O quê?

— Está bloqueando a porta da geladeira... Preciso pegar o meu sangue.

— Ah. - Shay ruborizou.

Viper pegou uma garrafa de sangue e a esvaziou. Tornou a pegar mais algumas. Colocou-as sobre a pia, e começou a abri-las.

— Não sabia o que você gostava de comer, assim man­dei minha governanta pedir um pouco de tudo. Há comida chinesa, italiana, mexicana e até galinha frita. Pegue o que quiser.

— Você já sabia que eu viria? Como podia ter certeza de que daria o maior lance no leilão?

Viper olhou para o corpo tentador de Shay.

— Sempre consigo o que quero. Mais cedo ou mais tarde. Os olhos dela brilharam.

— Fala como um verdadeiro vampiro. Viper estreitou os olhos.

— Por que odeia os vampiros?

Shay tentou responder evasivamente:

— Além do fato de tentarem drenar o meu sangue desde o dia em que nasci?

— Os vampiros não são os únicos demônios que querem chupar o seu sangue. Mas você parece detestá-los de forma mais pessoal.

O silêncio reinou na cozinha por uns instantes. Viper simplesmente esperou que ela respondesse:

— Vampiros mataram o meu pai.

Isso explicava o fato de Shay odiar sua espécie.

— Sinto muito.

Ela deu de ombros.

— Foi há muito tempo.

— E você foi criada por sua mãe.

— Sim.

— Uma humana?

— Isso mesmo.

Ela estava deliberadamente escondendo suas emoções, mas Viper conhecia a linguagem do corpo. Aprendera isso por séculos, e era o que os predadores faziam de melhor.

— Ela a manteve escondida do mundo dos demônios?

— Tanto quanto pôde.

— E você se passava por humana?

Foi fácil para Viper ler a raiva nas lindas feições de Shay.

— Você me perguntou a razão de eu odiar os vampiros e eu lhe contei. Agora, podemos mudar de assunto?

Ele sorriu. Tinha uma eternidade para explorar os se­gredos de Shay. E essa seria apenas uma das muitas explorações que ele pretendia conduzir.

— Coma alguma coisa. - Passou a mão suavemente pelo rosto dela.

— Tenho uns telefonemas a fazer antes de amanhecer.

Saiu da cozinha, e seguiu para o pequeno escritório que tinha nos fundos da casa. Não se esquecera de que havia alguém interessado em roubar sua shalott.

E isso era inaceitável. Pretendia fazer o que fosse ne­cessário para descobrir quem era esse misterioso inimigo, e acabar com o perigo que rodeava Shay.

 

                           Capítulo II

A casa construída nas proximidades do rio Mississipi era bastante confortável.

Como a maioria das casas de fazenda do meio-oeste, era simples, pintada de branca, com uma estrutura de dois an­dares e com uma sugestiva varanda. Em torno, possuía um bom número de árvores centenárias.

À primeira vista, era um lugar acolhedor.

Mas só à primeira vista.

Qualquer estranho que, desafortunadamente, passasse por perto da fazenda, não encontraria ali sorrisos; e a única refeição quente seria ele mesmo.

Felizmente, o lugar era isolado o suficiente para impedir que aparecessem muitos curiosos, e o povo ao redor já apren­dera, havia tempos, que era melhor evitá-lo. Era raro que o pesado silêncio fosse quebrado, a não ser por pássaros.

A localização da casa não era acidental. Debaixo das co­linas estavam escondidas cavernas, que se estendiam por milhas. Havia uma centena de lendas locais relacionadas às grutas. Alguns afirmavam que tinham sido usadas como túneis subterrâneos. Outros, que Jesse James costumava se esconder ali. E outros, ainda, juravam que a área era usada por contrabandistas, os quais preferiam o rio para transportar seus produtos.

Nenhuma das histórias era verdadeira. As cavernas eram o lar de demônios desde antes que os primeiros exploradores tinham chegado.

Em uma das mais profundas da área, olhando para as águas de um poço mágico, estava um esguio duende, trajan­do um manto de cetim verde que combinava com seus olhos. Luvas douradas cobriam suas garras. Parecia fora de lugar, já que os duendes, um dos menores demônios que existiam, somente eram aceitos entre os poderosos seres que habi­tavam a área por causa de sua astúcia e controle sobre as forças mágicas.

Um duende não devia estar enfiado em buracos escuros da terra.

Ainda assim, por um momento, a escuridão lhe servia muito bem.

Balançou a mão sobre a água para dar um fim às visões que ela revelava. Acima dele, a sombra irada enchia a caverna.

— Seu bruxo falhou - a sombra concluiu.

— E o que parece, milorde. - Levantando-se, Damocles cuidadosamente tirou a poeira de seu manto.

— Eu o avisei que Joseph não era o elemento mais capacitado.

— É um idiota, mas a culpa não foi inteiramente dele. - A sombra pareceu aumentar de tamanho.

— Se eu fosse desconfiado, estranharia você tê-lo enviado com dinheiro insuficiente para dar o maior lance no leilão da shalott.

Um fraco sorriso surgiu nas belas feições do avejão. Não que ele estivesse indiferente ao perigo que havia no ar. Somente um tolo acreditaria que a sombra não seria capaz de matá-lo. Ou pior.

Entretanto, ele tinha passado cerca de um século sendo indispensável a esse seu atual senhor. No momento, sentia-se suficientemente em segurança.

— Fico ofendido, senhor - protestou.

— Foi uma surpresa para todos o vampiro fazer um lance tão alto. Além do mais, o senhor confiaria a um criado meio milhão de dó­lares? Por mais leal que Joseph possa ser, não acredito que resistisse à tentação de ter uma fortuna nas mãos. Com certeza teria se apossado do dinheiro e fugido.

Um silvo raivoso chegou aos ouvidos de Damocles.

Ele sabia muito bem que, se fugisse, eu o mataria.

— Claro, mas a ganância é raramente lógica.

— Então agora não temos a shalott, e o pior é que ela está nas mãos de um vampiro.

O duende fez a cara mais inocente do mundo.

— Mas isso não pode significar boas notícias? O senhor tem considerável poder junto aos clãs. Não pode simples­mente exigir que esse Viper lhe entregue a shalott?

— Idiota. - Uma mão invisível atingiu o rosto de Damocles.

— Não posso revelar o meu interesse por ela. Isso despertaria especulações e perguntas que venho ten­tando evitar. Não pode haver qualquer ligação minha com a shalott, até que eu esteja curado. Se meus inimigos soube­rem como me tornei fraco...

Damocles sentiu o sangue fugir do rosto, mas nem piscou.

— Isso nunca vai acontecer, milorde. Não enquanto eu estiver a seu lado.

— Oh, sim, meu doce duende, tanta lealdade... - A voz estava cheia de ironia.

— Ela é mais profunda e infinita do que o mar.

— Tão profunda e infinita como meus cofres. O duende fez uma pequena reverência.

— Todos nós temos as nossas fraquezas, não é mesmo?

— Eu quero aquela shalott. - A sombra se agitou com impaciência.

— Acorde o seu bicho de estimação.

Damocles enrijeceu o corpo, os pensamentos tomando um rumo inesperado. Ele se orgulhava por sempre estar preparado para qualquer eventualidade, e em ler o futuro com incrível habilidade. Nunca era pego desprevenido, des­preparado.

Naquele momento, porém, tinha de admitir: suas habili­dades especiais haviam falhado.

— Meu bicho de estimação? - Ele tocou de leve a corren­te de ouro.

— Certamente ainda não é hora, não é, milorde? Poderia chamar atenção demais. Tenho vários...                        

Sentiu-se subitamente sufocar sob o poder da pressão de uma força demoníaca.

— Por acaso esqueceu quem é o senhor aqui, duende? Pontos pretos dançaram diante dos olhos de Damocles, antes que a pressão em sua garganta finalmente diminuís­se e lhe fosse permitido respirar novamente.

A fúria correu por suas veias, mas sua longa experiência fez com que se ajoelhasse e abaixasse a cabeça: o gesto típi­co de um escravo.

Seus planos podiam ser alterados. Afinal, ele era tudo menos um ser sem recursos.

— Claro que não me esqueci, milorde. Será feito conforme o seu desejo. - Bem devagar, levantou a cabeça.

— Ainda assim, não dá garantia de que não aconteçam baixas.

— E por que devo me importar com baixas se a shalott não estiver entre elas?

— O vampiro...

— Um sacrifício necessário.

Democles ficou um momento em silêncio, antes de vol­tar a falar.

— Necessário, talvez, mas não acredito que a Guarda dos Vampiros aceite essa morte com tanta facilidade.

Um sibilar estridente soou na caverna.

— Razão pela qual eles não devem saber de meu plano. Isso está claro?

— Perfeitamente, milorde. Na verdade, eu irei junto para assegurar que não aconteçam erros desta vez.

— Uma decisão sábia. Damocles ergueu-se lentamente, pensando sem parar.

— Mas, primeiro, eu creio que devemos fazer uma visita ao troll.

Houve um silêncio inquietador.

— Por quê? Ele não nos serve para nada. O duende sorriu.

— Não é bem assim. É ele quem detém a praga que man­tém a shalott submissa.

— E daí?

— Se ele morre, ela morre. Penso que seria sábio se ele ficasse sob nosso controle, escapando assim das mãos de nossos inimigos.

— Sim, sim, claro! Eu devia ter pensado nisso. Não posso me arriscar que aquele troll fique por sua própria conta. Qualquer coisa pode acontecer a ele.

— Tratarei disso pessoalmente.

— Ótimo. - A sombra soltou um longo suspiro.

— Agora preciso descansar.

Damocles inclinou-se respeitosamente.

— Certamente, milorde. Mantenha a sua força. Logo terá recuperado toda a sua energia.

Houve um breve silêncio.

— Damocles?

— Sim, milorde.

— Você me mandará o que eu preciso esta noite? O duende escondeu um sorriso de satisfação.

— Tenho tudo preparado.

— Tem de tomar cuidado. Se a Guarda...

— Serei a alma da discrição.

— Bom. Agora vá, antes que sintam a sua falta.

Com uma última reverência, Damocles se afastou da es­curidão. Havia um caminho direto que dava para as caver­nas superiores, mas ele era sábio o suficiente para evitá-lo. Sabia muito bem que os malditos vampiros estavam aten­tos aos seus menores movimentos.

Havia chegado ao caminho estreito que levava à sua própria caverna, quando uma sombra lhe surgiu abrupta­mente à frente. Ele não precisou esperar muito para saber quem era.

Só um ser possuía a arrogância de perturbá-lo desse modo.

— Pare aí, Damocles, quero dar uma palavrinha com você. Damocles olhou para o alto e belo vampiro.

— Qual é o problema, Styx? Cansou-se de ficar assus­tando os ratos do porão e anda em busca de um jogo mais interessante?

As feições do vampiro não se alteraram. Nada parecia perturbar o líder da Guarda dos Vampiros. Insultos, amea­ças, nada! Fato que irritava Damocles profundamente.

— Onde é que esteve? - Styx perguntou. Democles arqueou uma das sobrancelhas.

— Eu estive ocupado fazendo um pequeno trabalho para o meu senhor.

O vampiro deu um passo à frente.

— Eu poderia lhe tirar a verdade a dentadas, caso eu quisesse.

— E eu, levantar asas e voar até Paris se assim dese­jasse - Damocles retrucou, caçoando do vampiro.

— Se você quiser saber a verdade, procure-a junto ao nosso mestre.

— Descubro-a de você. Agora me diga por que entrou por estes túneis como se fosse um ladrão.

Somente os fortes sobreviviam naquelas cavernas e Damocles sabia bem disso.

— Jurei segredo. Quer que eu quebre o meu juramento? O vampiro grunhiu.

— Como se um duende soubesse alguma coisa sobre ju­ramentos e honra.

Damocles poderia lhe dizer que tinha mais segredos do que qualquer outro ser que Styx pudesse vir a conhecer. Em vez disso, encostou-se à parede e inspecionou a barra dourada de seu manto com arrogante indiferença.

— Você me deteve aqui e me faz perder um tempo precio­so apenas para me insultar, ou tem algum outro propósito?

As feições do vampiro endureceram.

— Muito contra minha vontade, meu senhor mandou que você lhe trouxesse a shalott. Até agora você nada fez, a não ser lhe dar promessas vazias. Onde está ela?

Damocles deu de ombros.

— Houve um pequeno contratempo, mas nada que preo­cupe demais. Logo eu a trarei aqui.

Sem aviso, o vampiro agarrou Damocles e o atirou longe.

— Não confio em você, duende, e gosto menos ainda. A sua chegada à nossa porta é uma maldição que não trouxe nada, a não ser desgosto. Traga a shalott, ou eu lhe arran­carei a cabeça.

Sem um olhar para trás, Styx sumiu na escuridão, dei­xando Damocles secando o sangue de sua boca. O duende sorriu, porém.

Era sempre um bom dia quando ele conseguia fazer com que o Príncipe do Gelo perdesse a calma.

Pretendia arranjar outros, muitos outros dias assim.

 

Esperando até que Viper tivesse deixado a cozinha, Shay reuniu as vasilhas de comida e aspirou o aroma delicioso. Diabos, ela estava faminta. Nas últimas semanas, mal tinha comido o suficiente para manter vivo um passarinho. Evor adorava pequenas torturas e se divertira ao vê-la se arrastar pela cela tentando pegar as migalhas que ele lhe jogava.

E no momento, mesmo não querendo aceitar nada do vampiro, não conseguia resistir à tentação que tinha dian­te de si.

Esvaziou em tempo recorde as vasilhas com comida chi­nesa, e passava para a galinha frita quando Viper voltou à cozinha.

— Se quiser deixar uma lista para minha governanta, tenho certeza de que ela será capaz de manter a cozinha estocada com a comida que você preferir.

Shay olhou para os pratos.

— Ela fez um bom estoque. Somente ficou faltando torta de maçã.

— Tenho certeza de que isso pode ser providenciado. Shay não duvidou disso nem por um momento. A gover­nanta era daquelas que iam além de seus habituais deveres.

A questão era se a mulher fazia tudo isso levada pelo sentimento de lealdade ou por medo.

— Ela sabe que você é um vampiro? Viper sorriu levemente.

— Os pingos de sangue dentro do refrigerador geralmen­te denunciam a minha identidade.

— A maioria dos humanos se recusa a acreditar em de­mônios. Ou se acreditam, morrem de medo deles.

— A família de minha governanta está comigo há sécu­los - Viper explicou.

— Na verdade, ela tem quatro filhos que trabalham em meus variados negócios.

— Uma dinastia regular.

— Isso simplifica tudo.

— Aposto que sim.

A expressão nos olhos de Viper era de curiosidade, e ele a observou por algum tempo.

— Parece não aprovar que eu empregue humanos. Isso a perturba?

Na verdade não, Shay reconheceu.

— Por experiência posso dizer que humanos e demônios não se misturam.

Ele se aproximou perigosamente.

— Isso não é inteiramente verdade, querida. Você, por exemplo, é uma mistura de demônio e humano.

Shay tentou não se perturbar ao sentir os dedos de Viper em seu rosto.

— Isso foi... diferente.

— Como assim?

— Nenhum dos meus pais pretendia se apaixonar. Um sorriso irônico surgiu nos lábios de Viper.

— E quem é que pretende?

Shay procurou abrir uma distância entre os dois.

— Meu pai estava se preparando para partir, e se unir a outros shalott, quando viu minha mãe sendo atacada por um bando de lobisomens. - Ouvira essa história pela mãe uma centena de vezes.

— Ele salvou-lhe a vida, levou-a para o seu clã, e a ajudou a curar os ferimentos.

— E o destino fez o resto.

— Algo assim.

— E eles foram felizes juntos?

Enquanto falava, Viper continuava a tocar de leve no rosto de Shay.

— Sim, eles se amavam muito.

Viper deslizou o olhar pelo corpo mal coberto pela ridícu­la roupa de escrava de harém.

— E eles criaram você. Eu diria que a união entre huma­no e demônio foi certamente uma criação dos céus.

Ela umedeceu os lábios secos.

— Não foi nada bom ver meu pai ser hostilizado por seu povo, e minha mãe e eu sermos forçadas a nos esconder.

— Mas se eles foram felizes, o que isso importa?

Shay preferiu não argumentar. Ele era um vampiro. Nunca conhecera um dia de medo ou incerteza em sua vida imortal.

— Não quero falar sobre isso.

Ele a observou por alguns instantes, depois concordou.

— Muito bem. Se tiver acabado de comer, vou lhe mos­trar o seu quarto.

A comida começou a pesar no estômago de Shay, Ela es­tava acostumada com os quartos que eram oferecidos aos escravos. Algemas, barras de ferro. Era o que nunca muda­va, não importava quem fosse o seu senhor.

— Agora?

Viper a olhou com curiosidade.

— Há alguma outra coisa que queira fazer primeiro?

— Pensei em dar uma olhada na casa. Afinal, vou morar aqui. Pelo menos por hora.

— Poderá fazer isso amanhã. Você certamente deve es­tar muito exausta.

— Não preciso de muito sono.

Um pequeno sorriso surgiu nos lábios de Viper.

— Oh, que agradável coincidência, também eu não pre­ciso dormir muito.

Sem qualquer aviso, ele a tomou nos braços e começou a lhe mostrar os aposentos.

— O que está fazendo? - ela protestou.

— Não disse que queria conhecer a casa?

— Posso andar muito bem. Não precisa me carregar...

— Hora, fique quietinha e me deixe exercer minhas obri­gações de anfitrião.

Shay procurou evitar o olhar de Viper. Não era somente a sua fantástica beleza. Mas havia algo de especial nele: em seus olhos negros, nas sensações que estes provocavam.

— Você tem o hábito de carregar no colo todos os seus convidados?

— Você é a minha primeira e única convidada. Shay arregalou os olhos, surpresa.

— Está mentindo.

— Por que diz isso?

— Não posso acreditar que um homem como você não possua um harém.

— Um homem como eu?

— Um vampiro.

—Ah, lamento desapontá-la, mas não possuo harém algum.

Os olhos brilharam.

— A não ser, claro, que esteja se apre­sentando como voluntária.

Droga. Ela nunca estivera tão consciente da presença de alguém. E isso era extremamente perturbador.

— É verdade que nunca teve nenhuma outra mulher aqui antes?

— Venho aqui para ficar sozinho.

— Porque...

— Esta é a sala de visitas - ele foi dizendo.

— Vai gostar da vista para o lago. O assoalho de carvalho polido é nativo deste estado, assim como o das escadas. Há algo fascinante quanto à pedra da lareira, mas devo admitir que não pres­tei atenção quando o vendedor foi enumerando tudo o que havia de especial na propriedade.

Shay deu uma olhada na sala cheia de sombras. Era es­paçosa e, mesmo no escuro, dava a sensação de ser agradavelmente aquecida.

Não. A sensação de calor não estava no aposento, mas na casa inteira. Como se quem ali morasse tivesse tornado a casa um verdadeiro lar.

Perdida nesses ridículos pensamentos, ela levou um momento para perceber que Viper estava agora subindo as escadas.

Mesmo ele tendo garantido não ser seu costume forçar uma mulher a algo que ela não queria fazer, Shay ainda tinha suas dúvidas. Ele era um vampiro...

E isso dizia tudo.

— Certamente há outros aposentos, lá embaixo, que po­deria me mostrar - ela protestou.

— Há, mas nenhum chega a ser tão intrigante quanto o quarto, aqui em cima. - A voz dele soou como um veludo.

— Gostaria que me pusesse no chão. Sou perfeitamente capaz de andar.

E de correr. E de me esconder no quarto mais próximo, Shay pensou.

— Gosto de senti-la junto de mim. - Ele chegou ao alto da escada e parou diante da primeira porta à direita.

— Aqui estamos - disse, carregando-a para dentro de um aconchegante aposento.

Shay observou à sua volta. Não sabia bem o que espera­va encontrar. Possivelmente chicotes. Correntes. Aros pre­sos às paredes.

Em vez disso, encontrou um quarto que possuía o mesmo calor que ela sentira no andar de baixo.

— Este é o seu quarto? - perguntou, olhando a cama enorme e a mesinha onde havia um vaso de flores.

Ela não podia pensar em nada que combinasse menos com aquele elegante e sofisticado vampiro.

Estranhamente, o rosto dele parecia uma máscara. Mesmo os olhos não revelavam nada.

— Na verdade este é o seu quarto.

— O meu?

— Ele é de seu gosto?

— Eu... - Shay umedeceu os lábios secos. Subitamente, aquele quarto charmoso se tornava mais assustador do que se ali houvesse correntes e chicotes.

— Por quê?

— O que quer saber?

— Sou sua escrava. Pode fazer o que quiser comigo. Por que está me tratando como se eu fosse uma hóspede pri­vilegiada?

— É por ser minha escrava que eu a trato da maneira que penso que você merece.

Ela fechou os olhos diante do olhar de Viper.

— Por favor, apenas me diga o que quer de mim - mur­murou.

— Não saber é pior do que qualquer outra coisa.

Houve um momento de hesitação, antes que Viper final­mente falasse.

— Muito bem. - Ele deslizou os lábios pelo pescoço dela.

— Eu a quero debaixo de mim, gritando o meu nome ao al­cançar o clímax - sussurrou, a boca se movendo pela pele macia de Shay e lhe provocando mil arrepios.

— Quero be­ber o seu sangue e me banhar em seu calor. Quero me en­roscar em você até que pare de assombrar os meus sonhos. É isso o que queria saber?

Shay fechou os olhos, lutando contra o desejo de enros­car as pernas na cintura de Viper e implorar que ele a pos­suísse exatamente como lhe descrevera. Ele não era o único perturbado ali.

— Não era exatamente o que eu esperava ouvir.

— Não se preocupe. Não forço mulher alguma. Temos uma eternidade para saciarmos os nossos desejos.

Ela estremeceu mais uma vez.

— Você não sabe nada sobre os meus desejos.

— Pretendo descobrir.

Uma tristeza enorme a envolveu, ajudando-a a se afas­tar um pouco daquele clima louco em que se via presa ao lado do vampiro.

— O que eu desejo, você não pode me oferecer. Viper sorriu levemente.

— Nunca duvide de mim, Shay. Sou um vampiro de in­críveis habilidades. - Ele a beijou com chocante intimida­de, depois a colocou no chão e saiu do quarto.

Ele não a amarrara na cama. Tampouco a fechara den­tro do armário. Nem mesmo trancara a porta.

Sem acreditar no que estava acontecendo, Shay balan­çou a cabeça.

Que diabo era tudo aquilo?

Viper caminhou pela casa escura rumo ao escritório. Estava fechado ao amanhecer, mas ele ainda tinha alguns poucos detalhes a tratar antes de ir para a cama.

Pena que um desses detalhes não fosse a bela shalott so­zinha no quarto, pensou com um suspiro. O corpo doía com o esforço que tinha lhe custado deixá-la e se afastar.

Mas tinha certeza de que não demoraria muito tempo para Shay se oferecer sem hesitação. Bom seria se fosse cin­co minutos a partir daquele momento.

Entrou no escritório e se aproximou de uma estante cheia de livros, apertando um botão que lhe deu passagem para a sala de segurança. Lá, a série de monitores o encheu de orgulho. Diferentemente de muitos de sua espécie, ele nunca tinha deixado de valorizar a mais moderna tecnologia. Seria estúpido ignorar as mudanças que ocorriam no mundo.

Além do mais, se fosse perfeitamente honesto, admitiria não ser igual aos demais. Sempre quisera ter os mais caros e melhores brinquedos.

Um vampiro com cabelos vermelhos olhava os monitores, atento. Levantou-se de pronto ao perceber Viper entrando.

— Pode ficar à vontade.

— Mestre. - O vampiro inclinou-se respeitosamente.

— Algum problema?

— Nenhum. Tudo está bem quieto. - Os olhos verdes se estreitaram.

— Estava esperando algum problema?

— Há a possibilidade de eu ter sido seguido esta noite - Viper disse.

— Quero que a guarda seja dobrada e que todos fiquem alertas.

— Claro.

Viper sorriu com a demonstração de obediência. Nenhu­ma pergunta. Nenhum argumento. Nenhum olhar contraria­do. Seus empregados eram muito melhor treinados do que sua nova escrava.

— Quem estará em serviço depois de você?

O vampiro consultou uma lista colocada ao lado de um dos monitores.

— Santiago.

— Ótimo. - Santiago podia ser bastante jovem, mas era um vampiro muito bem treinado, e capaz de pensar por conta própria. Nada passaria por ele.

— Quero que o alerte para ficar bastante atento à área em volta da casa.

O vampiro de cabelos vermelhos o olhou com curiosidade.

— Devo manter a atenção em alguma coisa em particular?

— Tenho uma hóspede comigo - Viper confessou com um sorriso.

— Uma hóspede muito especial. Temo que deci­da dar suas voltas enquanto eu dormir.

— Ah. O senhor quer que a capturemos e a coloquemos no interior da casa.

Viper sacudiu a cabeça.

— Não. Se ela for vista tentando sair, devo ser acordado imediatamente.

O vampiro dirigiu ao seu senhor um olhar admirado.

— Não quer que ela seja detida?

— Não, a não ser que Santiago suspeite que ela possa estar correndo algum perigo. - Viper olhou os monitores.

— Penso que será interessante descobrir onde minha hós­pede pretende ir.

* * *

Não devia ser surpresa alguma o fato de Shay ter dormi­do além da conta.

Ela andara de um lado para o outro no quarto por uma hora, antes que finalmente aceitasse o fato de Viper não vir procurá-la.

Acabara dormindo e se chocara ao acordar, percebendo que já era mais do que cinco horas da tarde.

Bom Deus. Ela não havia apenas dormido, mas seu sono fora profundo e sem qualquer pesadelo. Uma novidade em sua vida. Devia ter sido o colchão macio. Ou o silêncio que reinava na casa, ela tentou se convencer, enquanto seguia para o banheiro. Certamente não podia se sentir em paz na casa de um vampiro. Isso seria ridículo.

Encontrou no armário uma escova de dentes nova, as­sim como uma pasta. Desfez a trança e escovou os cabelos. Trançou-o novamente e seguiu para a cozinha.

Sem ter uma troca de roupa, foi forçada a usar as mesmas calças de harém e o top brilhante. Mas notou o manto de veludo, que Viper tinha envergado na noite anterior, pendura­do em uma das cadeiras, e decidiu vesti-lo. Não era sensível demais ao ar frio, mas não sendo uma verdadeira shalott, não tinha a capacidade de ignorar os elementos do tempo.

Não era nem humana por inteiro nem shalott, pensou, desgostosa. Era uma aberração.

Vestiu o manto, procurando ignorar o cheiro tão peculiar de Viper. Tinha de cumprir a promessa que fizera, e não podia agora perder tempo com distrações. Muito menos com sua reação inusitada ao maldito vampiro.

Deixando a casa sem fazer ruído algum, passou pela área que Viper garantira ser vigiada. Uma vez diante das grades altas do portão, tirou o casaco, subiu com facilidade e chegou ao outro lado.

Era sua última barreira. Vestiu o manto e seguiu apres­sadamente em direção à cidade. Mais precisamente, à casa de leilão.

Localizou a linha do horizonte de Chicago, e manteve a vista presa na torre da Sears enquanto cruzava a área rural que havia nos arredores da cidade. Esperava que os trolls estivessem dormindo quando ela chegasse lá. Os trolls es­peravam anoitecer completamente para se recolherem. Assim, sem qualquer barulho, conseguiu chegar ao andar inferior e descobriu Levet ainda em sua forma de estátua.

— Levet, acorde - chamou, rezando para que ele a escu­tasse.

— Droga, acorde!

Por um longo momento, não houve qualquer sinal de que o amigo tivesse acordado.

— Levet!

Finalmente, o gárgula se agitou dentro da cela.

— Pelo amor de Deus, fique quieto - Shay sussurrou.

— Shay?

— Sim, sou eu.

Levet deixou as sombras e se aproximou das grades.

— O que está fazendo aqui? Mon Dieu, já foi devolvida? Shay sorriu levemente. Não podia culpar o gárgula por chegar à conclusão de que o novo dono dela já a havia dis­pensado após algumas horas. Ela não era uma escrava por natureza. Detestava receber ordens, tinha gênio ruim, or­gulho demais. Era hábil em artes mortais e inclinada a lu­tar contra o destino, em vez de aceitá-lo com complacência. Mas devia haver escravos piores do que ela.

— Eu lhe disse que voltaria para pegar você. Não faço promessas que não pretendo cumprir.

Levet ficou parado, imóvel, como se tivesse voltado à for­ma de estátua.

— Você voltou por mim?

— Claro.

Vagarosamente, ele caiu de joelhos, aliviado.

— Oh, graças a Deus. Obrigado!

— Silêncio. - Shay deu uma olhada para o lado das es­cadas.

— Temos de tirar você daqui antes que Evor acorde.

— Como? Não pode tocar as barras e não sou forte o su­ficiente para quebrá-las.

Shay tirou de dentro de uma sacola que trouxera um pe­queno pote de cerâmica. Com grande cuidado, abriu a tampa.

— Dê um passo para trás. Levet recuou bem devagar.

— O que pretende fazer?

A fumaça já começava a sair do pote. Nunca era um bom sinal. Com um bater de asas, ele alcançou o fundo da cela, en­quanto Shay virava o pote na direção das barras de ferro. Houve um chiado e o ferro começou a derreter.

— O que é isso? - Levet perguntou, chocado.

— Uma poção que roubei das bruxas. Levet balançou a cabeça.

— Shay?

— O que foi?

— Da próxima vez em que decidir me libertar, por que simplesmente não rouba a chave? Não sei se deveria usar essas poções.

— Vai ficar aí, criticando minhas técnicas, ou virá comigo?

— Estou indo, estou indo... Shay olhou em volta, apreensiva.

— Não sinto a presença de trolls aqui por perto, mas devemos nos apressar. Não demora e eles estarão se preparando para a noite.

— Espere. - Levet apontou para uma pequena abertura nos fundos da cela.

— Por aqui.

— Isso só vai nos levar aos calabouços mais abaixo - ela protestou. Não sabia o que Evor escondia naqueles cômodos.

— Há uma porta secreta.

— Como você sabe disso?

— Posso sentir a noite. Ela fala comigo. Shay não estava disposta a discutir com um gárgula que podia falar com a noite. Podia ser teimosa, mas não era estúpida.

— Muito bem, vamos pelo seu caminho.

Sem demora, o pequeno demônio passou pela estreita abertura. Shay evitou um suspiro e o seguiu.

Como ela esperara, havia muitas e muitas outras celas naquelas profundezas. Não tinha idéia de que tipo de demônios estava sob o controle de Evor. Mesmo assim, queria poder libertá-los.

Não. Não podia fazer isso no momento. Não sem colocar a vida de Levet em risco.

Ela se preocuparia com os demônios prisioneiros em ou­tra noite.

Seguiram em silêncio pelos túneis, e Shay precisou, vá­rias vezes, inclinar o corpo inteiro para passar, já que a al­tura era mínima.

Por fim, chegaram à rua.

Mesmo ela havia duvidado que conseguiria libertar Levet. Não com Evor e seu bando de trolls por perto.

Sua alegria cessou nesse exato momento e um tremor percorreu seu corpo.                                       O ar gelado só podia pertencer a uma única criatura...

— Levet, voe - ordenou. No instante seguinte, viu-se diante do vampiro.

— Que prazer vê-la de novo - Viper murmurou, o rosto bem junto do de Shay, as mãos fazendo dela sua prisioneira.

Shay começou a lhe socar o peito.

— Largue-me já! - ela exclamou, preparando um golpe que sempre dava certo com os homens.

Mas Viper não era um homem, e sim um vampiro.

O sorriso dele se alargou quando ela fez um novo movi­mento para deixá-lo sem equilíbrio. Ele a surpreendeu mais uma vez, colocando as mãos no chão e, com um movimento suave, voltou a ficar de pé. Desta vez, aprisionou as pernas dela e, em seguida, a tinha totalmente em seu poder.

Viper devia estar irritado com a tentativa de Shay es­capar, mas tudo o que sentia era a forte atração física por sua linda shalott. Fizera de tudo para que ela se sentisse confortável em sua presença: ordenara todos os tipos de co­mida, decorara o quarto em um estilo feminino, enchera os armários de roupas. Devotara semanas, sem mencionar a pequena fortuna que tudo isso lhe custara, para agora se ver diante da ingratidão dela.

E, além disso, comportara-se como um perfeito cavalhei­ro, não querendo fazer nada contra sua vontade.

Mantendo-a cativa nos braços, ele sorriu para os olhos dourados.

— Quer continuar, ou já se divertiu o suficiente? Shay ficou imóvel.

— O que eu quero é que me coloque no chão.

— Não antes que tenhamos uma pequena conversa. Shay tentou se libertar dele, mas isso só fez Viper gemer de prazer.

— Droga, Viper, coloque-me no chão!

— Não. Você já tentou escapar uma vez esta noite. - Os braços dele a seguravam com força.

— Uma vez é tudo o que você vai conseguir.

A expressão no rosto de Shay deixava bem clara a sua irritação.

— Não fugi.

— Esperou até que eu dormisse e escapou de minha casa. Como posso chamar isso?

Shay balançou a cabeça, irritada.

— Eu tinha algumas coisas a fazer. Certamente me será dada certa liberdade?

— Isso depende. O que estava fazendo aqui?

— Deixei uma coisa para trás.

— O quê?

Se ela não tivesse os braços presos, certamente teria lhe dado um soco no nariz.

— Um amigo - explicou, rangendo os dentes. Amigo? Viper virou a cabeça e deu com o pequeno gárgula, o qual tentava se esconder nos galhos da árvore mais próxima. Tinha visto o demônio saindo pela fresta, mas nem pensara mais nele depois que avistara Shay. Ela conseguia fazer com que ficasse totalmente distraído quando estava por perto.

— Está se referindo ao gárgula? - perguntou, surpreso.

— Sim.

— Ele pertence a Evor?

— Pertence.

Viper comprimiu os lábios.

— Se tivesse me pedido, eu o teria comprado na noite passada. Não havia necessidade de se expor ao perigo.

Shay arregalou os olhos, admirada com as palavras gen­tis. Seus músculos relaxaram, como se ela se esquecesse temporariamente de que ele era seu inimigo.

Viper saboreou silenciosamente a proximidade do corpo pressionado contra o dele.

— Evor jamais colocou Levet em leilão. Ele prefere ter um brinquedinho que seus criados possam torturar.

Viper afrouxou o abraço.

— Por um preço certo, Evor venderia até a própria mãe. Seus olhares se encontraram.

— Eu não esperava que você estivesse disposto a conce­der um favor à sua escrava - confessou Shay.

Ele deslizou os dedos por sua nuca.

— Por que está tão determinada a se considerar uma escrava, quando eu absolutamente não a vejo como tal?

Ela se surpreendeu mais uma vez.

— O que mais eu poderia ser? Comprou-me de um ven­dedor de escravos, e está de posse de um amuleto que me mantém presa a você.

— Preferiria que eu a devolvesse a Evor? Gostaria de possuir um dono diferente?

— Importa o que eu possa querer?

— Responda à minha pergunta.

Apesar da escuridão que os envolvia, Viper percebeu a emoção que tomou conta do rosto de Shay. Confusão. Embaraço. E, por fim, uma aceitação relutante.

— Não - ela murmurou tão suavemente, que se ele não fosse um vampiro, não a teria escutado.

Viper capturou os lábios carnudos, enquanto suas mãos buscavam-lhe os quadris. Testou o calor e a vida que ema­navam dela. Um doce sabor, capaz de seduzir um vampiro. Ele a desejava ali, naquele instante. E a intensidade de seu desejo era tanta, que chegava a assustá-lo.

Entreabriu gentilmente os lábios dela com a língua. Gemeu quando Shay retribuiu o beijo com a mesma neces­sidade frenética que o dominava.

O calor pareceu envolvê-los, até que Shay caiu em si e procurou se afastar.

Ele engoliu a decepção, mas ali não era o melhor lugar para possuí-la.

— Tem razão. Não temos tempo para distrações agora. Shay aspirou o ar e procurou recuperar a calma.

— Como me encontrou?

— Eu lhe disse que tenho guardas vigiando a casa.

Shay franziu a testa.

— Fui seguida?

— Claro que foi.

Viper, deliberadamente, se voltou para um vampiro alto e silencioso que estava por perto, nas sombras. Shay sentiu-se embaraçada. Santiago era uma figura impressionante com suas calças de couro e camiseta preta revelando os músculos. O rosto era estreito e os olhos, de um tom castanho profun­do, como seus ancestrais espanhóis. Bastou apenas um olhar para saber precisamente o que ele era: um guerreiro treina­do, que poderia matar para proteger seu clã.

Ela engoliu em seco.

— Ele é um vampiro, mas não podia estar patrulhando quando saí, senão eu teria percebido.

— Não estamos mais na Idade da Pedra, Shay - Viper observou.

— Minha casa é guardada por um sistema high-tech que inclui sensores, armas silenciosas, e uma série de câmeras que são constantemente monitoradas. Santiago estava no subsolo quando a viu saindo.

— Por que não tentaram me deter?

— Mandei que não fizessem isso.

O olhar de Shay era cheio de suspeitas.

— Por quê?

— Sabia que poderia segui-la sem problemas.

— Queria me espionar.

— Admito que estava curioso, mas, o que eu queria mes­mo era provar que é bobagem tentar escapar de mim.

A expressão do olhar de Shay endureceu.

— Sei que não vou conseguir escapar. Não precisa de um guarda. Pode simplesmente usar o amuleto e serei forçada a voltar.

— Não é esse o ponto.

— E qual é?

Mais uma vez, Viper acariciou-a no rosto.

— Há uma força poderosa que vem tentando captura­-la. Até que eu descubra o que é, não permitirei que fique andando por aí.

Ele estava preparado para uma reação de raiva. Escrava ou não, ela ainda era uma espécie de demônio que não aceitava qualquer tipo de restrição. Mesmo que se referisse à sua segurança.

Surpreendentemente, porém, Viper não pôde ler nada, a não ser preocupação, nos olhos de Shay.

— Acredita que eu esteja em perigo?

— Você não?

Ela mordeu o lábio antes de soltar um longo suspiro.

— Está bem, tem razão. Fui uma idiota em sair do jeito que fiz. Mas agora pode me colocar no chão.

Satisfeito por ela deixar que a lógica pesasse mais do que sua natureza independente, Viper sorriu.

— É uma pena. - Ele a tocou de leve no pescoço.

— Pensei em ter você nos meus braços por mais tempo... Claro que minhas fantasias não incluíam nenhum de nós dois com roupa, muito menos um gárgula nos rodeando.

— Eu já disse que...

Shay interrompeu-se ao sentir a aproximação de Santiago.

— Mestre - ele chamou.

— Sim, Santiago, eu também senti o cheiro.

— Cheiro do quê? - ela quis saber.

— De sangue fresco.

Shay sentiu um arrepio. Até poucos momentos, ela se esquecera de que algo ou alguém estivesse tentando, captu­rá-la. Nem chegara a pensar nisso quando decidira cumprir sua promessa de libertar Levet. Não se lembrara nem por um segundo de que tinha agora um novo inimigo.

Era uma estúpida.

— Você matou Evor e os trolls? - Viper perguntou em um tom de voz que denotava apenas curiosidade. Como se não desse a mínima se ela tivesse chacinado as criaturas.

— Não, nem mesmo os vi.

— Nenhum deles? Não ouviu nada?

— Não.

Ele balançou a cabeça.

— Não acha isso estranho?

Shay deu de ombros, procurando se lembrar do que acon­tecera ao chegar à casa de leilão.

— Eles raramente entram na casa antes de escurecer.

Além do mais, entrei pela passagem dos fundos e fui direto à masmorra. Acredita que eles foram atacados?

— Alguma coisa foi. - Olhou silenciosamente para o prédio.

— Espere aqui.

Shay observou Viper e seu vampiro se moverem em direção à escuridão. Em menos de um segundo, eles sumiram nas sombras, e não havia sinal algum de suas silhuetas.

Ela se enrolou mais no manto, sentindo um arrepio per­correr o corpo. Levet flutuava à sua volta.

— Talvez devêssemos ir embora - resmungou.

— Acha mesmo? - Levet levou as mãos aos quadris.

— Hora, por que iríamos embora, quando podemos ficar aqui, perto de nossos inimigos, e "batendo papo" com vampiros? Depois podemos encher nossos corpos com gasolina e brincar com fósforos. A diversão, como dizem, nunca acaba.

Shay sentiu o rosto ficar vermelho de raiva.

— Não abuse, Levet.

— Vai me agarrar e me dar o beijo da morte?

— Você bem pode voltar para sua cela - ela grunhiu.

— Só sobre o meu cadáver. Shay estreitou os olhos.

— Isso pode ser feito também... Levet percebeu que tinha exagerado.

— Não precisa ficar nervosa, amiga. Inconscientemente, ela olhou para o lado onde vira Viper desaparecer.

— Seu novo senhor é um vampiro odioso - Levet observou.

— E o que parece.

— O chefe de seu clã.

Shay voltou a atenção para o gárgula.

— Como sabe?

— Posso sentir a marca de Cuchulain nele.

Shay umedeceu os lábios. Nunca estivera em uma bata­lha de gladiadores. Poucos demônios tinham acesso à elite das competições. Tampouco se permitia que participassem dela. Aqueles que saíam vivos passavam a ser temidos e respeitados por todos. Havia guerreiros que recebiam o tí­tulo de mestres.

— Viper esteve na Batalha de Durotriges?

— E viveu para contar a história. Impressionante. - Levet observou a amiga.

— Um demônio esperto jamais ou­saria irritar tal campeão.

O simples fato de Levet estar certo aprofundou a raiva de Shay. Mesmo se fosse uma legítima shalott, não levaria a melhor sobre um chefe de clã.

De alguma forma isso a irritava demais.

— Lembre-me por que me dei ao trabalho de libertá-lo... O rosto miúdo do gárgula ganhou uma expressão de ex­trema seriedade.

— Porque não aguenta mais ver ninguém torturado... Mesmo que isso signifique sacrificar a si própria.

Shay desviou o olhar, embaraçada. Não era uma santa.

Longe disso.

O fato é que tinha poucos amigos, mas estes lhe eram pre­ciosos. Quando encontrava alguém que a aceitava como era, valorizava essa amizade. Assim, não se importara em se arris­car a enfrentar a fúria de Evor para tentar libertar Levet.

Viper surgiu das sombras de repente e ela segurou o ar. Era uma beleza de vampiro.

Procurou afastar as sensações que ele lhe provocava.

— Encontrou Evor?

— Não precisamente.

— Como assim?

— Penso que deva ver com seus próprios olhos. Talvez possa nos ajudar a descobrir o que aconteceu.

Shay hesitou apenas um momento antes de seguir o vampiro para dentro da casa de leilão. Não tinha dúvida de que veria alguma coisa horrível. Algo que provavelmente lhe daria pesadelos.

Mas, mesmo enquanto pensava nisso, não se livrara de todo da ridícula sensação de calor que sentia simplesmente por estar com Viper.

Droga. Era escrava daquele vampiro. Mas ele a fazia se sentir como se fosse alguma outra coisa. Alguma coisa de valor. Bem lá no fundo, sabia que essas sensações que ele lhe provocava eram mais perigosas que estar presa em uma cela e ser torturada diariamente.

Voltando a cabeça para se assegurar que Levet os seguia, ela deixou que Viper a levasse para dentro da casa escura, e subisse as escadas para os aposentos particulares de Evor. Quando ele abriu a porta, ela quase desmaiou diante da cena. Esperara ver algo ruim, mas aquilo ia além do que poderia ter imaginado.

Tampou a boca com a mão, enquanto lutava para não devolver toda a comida que ingerira antes. A sala antes ele­gante estava agora coberta por pedaços de trolls. Sangue, membros e partes do corpo que não deveriam nunca ser vis­tas, estavam misturadas de tal forma, que era impossível saber quantos haviam morrido no ataque.

Forçando-se a analisar cuidadosamente o pesadelo, de­teve o olhar na cabeça de um troll que tinha sido enfiada em um pilar de mármore, como se fosse um troféu. Os olhos vermelhos estavam abertos, assim como a boca, os dentes arreganhados como se estivesse, no momento de sua morte, amaldiçoando a alma de seu assassino.

Nada, porém, o tinha salvado. Nem aos outros seguranças. Eles haviam sido mortos e feitos em pedaços.

Uma onda de náusea voltou a atacá-la.

Pegando-a pelo braço, Viper a tirou do quarto e fechou a porta. Então, como se sentisse sua fraqueza, ele a fez se sentar em uma cadeira.

— Há poucas criaturas que podem matar trolls com tan­ta selvageria. - Ele a observou com atenção.

— Consegue captar alguma coisa que possa nos ajudar a identificar quem foi o responsável por isso?

Com um enorme esforço, ela se endireitou e tentou pen­sar com lógica.

— Não foi um humano. Eles não têm força para cortar um troll ao meio.

— Foi um feitiço?

— Não. - Ela respirou profundamente.

— Não há má­gica no ar.

Viper balançou a cabeça. Um vampiro não tinha habili­dade de sentir mágica. Uma das razões que o levara a que­rê-la por perto.

—Deve ter sido arte de um demônio que possui uma força incrível, além de habilidade para se mascarar na presença de vampiros - murmurou, preocupado.

— Isso encurta a lista, mas ainda restam suspeitos demais.

Shay sentiu um arrepio. O ataque selvagem a tinha aba­lado, mas agora ela começava a se recompor.

— Oh, Deus...

Viper tocou de leve em seu ombro.

— Eu não devia tê-la feito ver isso. Perdoe-me. Shay sacudiu a cabeça.

— Não é isso. É Evor.

— Evor? - Viper logo compreendeu:

Ele não estava entre os mortos.

— Obviamente não. - Ela soltou uma risada nervosa.

— Se Evor estivesse nesse quarto...

— Ele está vivo, assim como você.

— Sim, mas podia não estar.

Viper olhou em direção à porta do quarto.

— Precisamos descobrir quem fez isso, e para onde Evor foi levado.

Shay fez uma careta ao pensar no troll nojento.

— Sem dúvida estava escondido atrás de alguma coisa no momento em que a chacina começou. Ele sempre fica fe­liz em sacrificar os seus criados para salvar a própria pele.

— Ele estava aqui. - O olhar de Viper era sério.

— Seu sangue está misturado com o dos outros.

Shay arregalou os olhos e procurou se afastar de Viper. Ele pudera cheirar o sangue de Evor. Era um vampiro.

— Quer dizer que alguém, ou alguma coisa, veio aqui esta noite, matou os trolls e feriu Evor? Por quê?

— É coincidência demais que esse ataque tenha aconte­cido logo após você ter sido vendida. Quem quer que a esteja caçando, voltou à casa de leilão.

Shay sentiu a garganta seca.

— Para matar Evor?

— Se quisesse Evor morto, já teria feito isso. Ou ele esca­pou durante a batalha, ou eles vieram para pegá-lo vivo.

— Mas, por quê?

— Para usá-lo como isca. - A voz de Levet soou ines­peradamente, e tanto Shay como Viper se voltaram para o gárgula, surpresos.

— Se pegaram o troll, podem ameaçar de cortar a gar­ganta dele e, assim, matar vocês dois. Shay não teria esco­lha, a não ser fazer o que exigissem.

Ela sentiu um peso enorme no coração. Droga, já havia sido horrível estar sob o poder de Evor. Agora ainda tinha de se preocupar que seu misterioso inimigo não fizesse o troll em pedaços.

Voltou-se para Viper. Respeitava a sua linha de pensa­mento.

— Acha que é isso o que eles querem?

— Penso que seria tolice chegarmos a qualquer conclu­são antes de termos mais fatos. E, claro, precisamos sair logo daqui.

Shay procurou apagar da memória a imagem da chaci­na, uma tarefa quase impossível, enquanto Viper a levava em direção às árvores.

— Antes de deixarmos este lugar, há outras coisas que queira pegar de volta?

— Há demônios presos nas masmorras. Viper arqueou a sobrancelha.

— Também são seus amigos?

— Nem sei quem está por detrás das grades. Mas com os trolls mortos e Evor desaparecido, eles podem ficar trancados naquelas celas por uma eternidade. Isso é pior que tortura.

— Mas eles podem ser perigosos.

Shay não duvidara por um minuto que fossem extrema­mente perigosos.

— Não podemos deixá-los lá.

— Santiago.

O vampiro surgiu por detrás das árvores.

— Sim, mestre?

— Vá à masmorra e solte os prisioneiros.

— Sim, mestre.

Não houve um instante de hesitação, e o silencioso vam­piro sumiu na escuridão. Viper esperaria dela igual submis­são? Shay se perguntou.

— Acha seguro ele ir sozinho? Ele deu de ombros.

— Santiago é um vampiro.

Que arrogância! - ela pensou, cerrando os dentes.

— Muito bem, podemos ir?

Ouviram um bater de asas: sinal de que Levet estava nervoso.

— Shay, e quanto a mim?

— Viper? - Ela se voltou para o vampiro, sem saber como fazer o pedido.

— Não podemos deixar Levet aqui. Ele foi expulso de seu clã.

Ele franziu o cenho.

— Está me pedindo que eu o tome sob minha proteção? Ela ignorou a batida agitada de seu coração.

— Sim.

— E qual será a minha recompensa por tal generosidade?

— Shay, não! - Levet gritou.

Ela ignorou o alerta de seu amigo e enfrentou o olhar do vampiro.

— O que você iria querer de mim?

— Bem, esta não é uma pergunta que possa ser respon­dida de imediato. Há tanto que quero de você... - ele mur­murou, chegando mais perto.

— Talvez eu apenas possa lhe pedir um vale por enquanto.

Shay umedeceu os lábios.

— Quer que eu fique lhe devendo um favor?

— Estaria em débito comigo. Um débito que eu poderia cobrar no momento em que eu quisesse.

— Não faça isso, Shay! - Levet exclamou.

— Nunca bar­ganhe com um vampiro.

Shay sabia dos riscos que corria. Os demônios sabiam que os vampiros distorcem as palavras. Mas o que tinha a perder?

— Podemos negociar?

— Isso depende. O que me oferece?

— O débito não pode envolver sangue nem sexo. Viper caiu na risada enquanto baixava a cabeça para o pescoço de Shay. Seus lábios deslizaram sobre a pele quente e lhe provocaram arrepios na espinha.

— Acaba de eliminar dois de meus maiores desejos.

— Sou uma guerreira treinada.

— Já tenho muitos guerreiros.

— Que podem andar durante o dia?

— Alguns. O que mais tem a oferecer? Shay sentiu os joelhos amolecerem.

— Aprendi a fazer um bom número de poções enquanto estive com as bruxas.

Viper aumentou o sorriso.

— Intrigante, mas dificilmente cobre um débito. Talvez sentindo que ela hesitava, Levet soltou um alto grunhido.

— Não faça isso, Shay.

Viper sentiu a curiosidade aumentar.

— Eu... - Shay engoliu em seco.

— Meu pai era um Lumos. Curava pessoas de nossa tribo. Seu sangue pode curar tudo menos a morte.

Viper a olhou, curioso.

— E você?

— Herdei dele essa bênção. Algo surgiu nos olhos negros.

— Muito útil, claro - comentou Viper.

— Um presente raro, na verdade. Mas dificilmente um vampiro necessita­ria disso.

— Mesmo imortais podem ser feridos - lembrou Shay.

— Minha mãe me disse que foi por isso que meu pai foi mor­to. Seu sangue foi usado para salvar a vida de um vampiro.

— Um vampiro? Tem certeza?

— Tenho.

— Estranho que eu não tenha ouvido tais rumores. Bem, o que, precisamente, você está me oferecendo?

— Se você for ferido, eu lhe darei o sangue necessário para curá-lo sem lhe cobrar nada. Estamos de acordo?

As feições de Viper suavizaram.

— Uma barganha...

— Sem sangue e sem sexo.

— Não preciso barganhar por sangue ou sexo. Estará me dando ambos com entusiasmo daqui a muito pouco tempo.

Ele a beijou, impedindo que argumentasse. E foi o tipo de beijo que toda mulher sonha em receber: quente, exigente. Santiago apareceu nesse momento.

— Santiago cumpriu a minha ordem... Viper falou com um suspiro.

— Melhor irmos embora antes que os que ele tenha libertado resolvam vir aqui para nos matar.

Shay aquiesceu. Claro que ele tinha razão.

Os pensamentos de Viper foram desviados quando se aproximavam de sua casa, nos arredores de Chicago, embora ele preferisse continuar concentrado no aroma do corpo de Shay, sentada bem ao lado dele. A distração veio da cer­teza de que algo poderoso continuava caçando a sua shalott. Algo tão vicioso, que talvez não houvesse como protegê-la.

O pensamento encheu seu coração de um medo que ele não conseguia identificar.

Mas, mesmo perturbado, sentiu uma presença estranha em sua casa, no momento em pisou no chão da cozinha.

— Alguém está aqui. - Rapidamente, puxou Shay, protegendo-a com o corpo.

— Santiago, dê uma olhada nos jar­dins e verifique se não temos convidados inesperados.

Aguardou que o vampiro desaparecesse, antes de levantar a cabeça e testar o ar. Somente quando teve certeza de que não era um perigo imediato, foi que se voltou para Shay.

Não havia sinal de medo nas feições dela.

— Creio que seja melhor seguir direto para o seu quarto e trancar a porta.

Ela cerrou as sobrancelhas e a expressão de seu rosto de­nunciou teimosia: uma característica dela com a qual Viper começava a se familiarizar.

— Shalotts são guerreiras. Não nos escondemos atrás de portas trancadas.

Ele abriu um sorriso.

— Não duvido de suas habilidades em batalha, queri­da, mas nosso intruso é um vampiro. Não gostaria de ser forçado a matar alguém de meu clã porque ele a achou irresistível.

Shay abriu a boca e depois a fechou, terminando por concordar com um gesto de cabeça. Ela detestava parecer covarde, mas odiava mais ainda a chance de encontrar ou­tro vampiro.

Seguiu para o quarto, acompanhada de perto pelo gárgula, repetindo a si mesma que tinha todo o direito não confiar em vampiros. Era um preconceito de que não se livraria tão cedo.

Viper seguiu o cheiro de seu visitante até os fundos da casa. Não se surpreendeu quando, ao entrar no escritório, encontrou o vampiro sentado calmamente à sua escrivani­nha. De todos os membros de seu clã, Dante era com quem ele tinha mais afinidade. Recentemente haviam lutado lado a lado contra as bruxas, para libertar a Fênix, a Deusa da Luz, que protegia o mundo do príncipe da escuridão.

Fora então que ele conhecera Shay. Não sabia se deveria agradecer o amigo, ou acabar com ele por tê-lo envolvido na luta. Afinal, desde que conhecera Shay, não sabia mais o que era paz.

Seguiu direto para o bar e se serviu de uma garrafa de sangue. Era um pobre substituto para o poder mágico que conseguiria com o sangue de Shay, mas, por hora, restaura­ria suas energias.

Observando os movimentos do amigo, Dante sorriu le­vemente.

— Boa noite, Viper.

Apoiando as costas no bar, Viper cruzou os braços.

— Vejo que está se sentindo em casa, apesar de saber que nunca recebo ninguém aqui.

O sorriso aumentou.

— Tem sorte de ser eu a estar sentado aqui e não Abby. Ela se irritou ao saber que você comprou uma mulher. - Dante apertou os olhos.

— E não uma mulher qualquer, mas a que lhe salvou a vida.

Viper não duvidava de que Abby o torrasse vivo se pen­sasse que ele estivesse cometendo uma injustiça. Ninguém com bom senso desejaria tê-la como inimiga.

Mesmo assim, ele era chefe de seu clã. Um líder entre vam­piros. Não tinha de dar satisfação de seus atos a ninguém.

— Quando telefonei para dizer que tinha comprado a shalott, foi só para lhe pedir ajuda para descobrir quem a está perseguindo. Não pedi sua opinião sobre meus assun­tos pessoais.

Dante deu de ombros.

— Você vive dando palpites sobre a minha vida.

— Palpites podem ser ignorados. Exatamente o que pre­tendo fazer. Agora, se foi para isso que veio aqui...

Dante levantou-se da cadeira, os olhos brilhando.

— Viper, qual é o seu jogo?

Ele colocou de lado a garrafa vazia.

— Não há jogo algum.

— Mas você sempre condenou aqueles que pretendiam capturar ou vender um vampiro em seu território.

— Shay não é um vampiro.

— Abby não vai sossegar até que tenha certeza de que você não pretende fazer nenhum mal a shalott.

Viper caiu na risada.

— Pelo menos você é honesto. Mas me diga, Dante, sua linda esposa preferiria que eu tivesse deixado alguém com­prar Shay e a usasse como prostituta? Ou talvez como um troféu para ser pendurado em uma parede da casa de um caçador de demônios?

— Ela preferiria que você a libertasse.

E permitir que Shay lhe escapasse como havia feito de­pois da luta contra as bruxas? Apenas sobre seu cadáver.

— Impossível - resmungou Viper, decidido.

— Recebi um amuleto que a força a se apresentar a mim, mas a praga está ainda sob o controle de Evor, o troll mercador de escra­vos que, aliás, desapareceu.

Dante estreitou o olhar.

— O que está dizendo?

Resumindo, Viper revelou o que tinha descoberto na casa de leilões. Descreveu com detalhes a mutilação dos trolls. Talvez Dante reconhecesse alguma coisa sobre o ataque, o que ajudaria na identificação do responsável.

— Tem certeza de que se trata de um demônio? - Dante perguntou.

— O que mais podia ser?

— Um bruxo, talvez?

Viper escondeu um sorriso. Quem podia culpar o amigo por ter tanta suspeita de bruxos? Ter enfrentado mais do que um atentando contra sua vida acabava levando a isso.

— Shay não captou mágica alguma. Dante sacudiu a cabeça.

— Se fosse um demônio, saberia. Há poucos que podem esconder o seu cheiro de um vampiro.

— Um Hunding, um Irra, talvez um Napchut.

— Eles são poderosos o suficiente para destruir um ni­nho de trolls?

Essa era uma pergunta que vinha atormentando Viper desde que vira os trolls destroçados no quarto.

— Um guerreiro Lu seria - lembrou, sério.

Dante estremeceu e Viper não podia culpá-lo. Estavam falando do maior tormento do mundo dos demônios. Um pe­sadelo que se arrastava pela terra para devorar quem sur­gisse em seu caminho.

— Os Lu não têm sido vistos há muito séculos - Dante argumentou.

— Tampouco os shalotts.

— É verdade. - A expressão no rosto de Dante ficou pesada.

— Um vampiro, mesmo um chefe de clã, não seria forte o suficiente para derrotar um Lu. Os dentes dele são capazes de arrancar as cabeças até dos imortais.

— Não pretendo me ver sob ataque de qualquer demônio. - Viper sorriu.

— A não ser que esse atacante esteja sem roupas em minha cama. Dante estalou a língua.

— Deixe de brincadeiras. Sua escrava despertou a atenção de um inimigo muito perigoso. Você faria melhor se a passasse adiante.

— Lembro-me de lhe ter dito as mesmas palavras tempos atrás.

— Abby é minha companheira. Pertence a mim e eu daria a minha vida para protegê-la. Mas por que você se arris­caria pela shalott?

Viper não queria explicar a fascinação que sentia por Shay. Nem mesmo para Dante. Nem para si mesmo.

— E um assunto meu. Dante ficou pensativo por uns instantes.

— Como queira. Mas eu estou avisando: Abby não vai sossegar enquanto não tiver certeza de que Shay não está sendo torturada.

Viper cerrou os dentes. Ele era o chefe de seu clã. Um chefe que detinha o poder sobre milhares de vampiros e de­mônios.

Mas ele sabia que era bobagem argumentar com uma mulher. Ainda mais sendo a Fênix.

— E o que pode fazer Abby sossegar?

— Ela quer que Shay passe um dia com ela. Eu disse um dia, não uma noite, veja bem.                          

— Para que eu não possa interferir?

— Em parte. - Um sorriso surgiu nos lábios do outro vam­piro.

— Mas, na verdade, creio que Abby queira a companhia de outra mulher. Apesar de ser uma deusa, ainda é humana o suficiente para querer fazer coisas que somente as mulheres gostam: como compras e fofocas regadas a um café.

Viper fez uma expressão de horror.

— Pelo sangue dos justos, por quê?

— Isso, velho amigo, é uma pergunta que está além da lógica de um vampiro.

Viper mordeu o lábio. Ele não queria dividir Shay com ninguém.

Mas, infelizmente, não podia se esquecer da sombra de tristeza que havia nos olhos de sua shalott. Tampouco de sua determinação em salvar o gárgula.

Ela se sentia solitária. Profundamente solitária.

— Eu passarei a Shay o convite de Abby. Ela decidirá se quer ir ou não.

Dante pareceu levemente surpreso.

— Ela não é sua escrava?

— Digamos que seja minha hóspede.

— Você sabia que ela estaria à venda quando foi ao leilão? A paciência de Viper chegou ao fim.

— Penso que é hora de você voltar à sua amável mulher. Algo na expressão de Viper deixou claro a Dante que ele não deveria insistir.

— Viper, você é mais do que o chefe de meu clã, você é meu amigo. Se precisar de ajuda, quero que me prometa que vai me chamar.

— E ter a fúria da Fênix atrás de mim por ter colocado a shalott em perigo? - Viper balançou a cabeça.

— Não sou tão estúpido.

— Ninguém se sente tão em débito com você como Abby. Ela usará os seus próprios poderes para mantê-lo em se­gurança.

— E que poderes.

Dante olhou firme para o amigo.

— Vai me chamar ou não?

Viper ficou um instante em silêncio, mas terminou con­cordando. Dante era tão teimoso quanto ele. Não sairia dali sem a promessa.

— Eu chamarei.

Dante deu um passo para trás e se curvou respeitosa­mente diante de Viper.

— A promessa foi feita, mestre. - Ele endireitou o corpo e seus olhos brilharam.

— Dê um beijo por mim e por Abby em sua shalott.

Viper balançou a cabeça.

— Quando estiver beijando Shay, eu lhe asseguro que não será por você nem por ninguém.

Com uma risada, Dante saiu do aposento pela janela.

Viper serviu-se de um conhaque e ficou andando de um lado a outro da sala. O amigo tinha dito a verdade. Shay es­tava sendo perseguida por um inimigo que poderia colocar a vida dele em risco. A sabedoria o mandava se livrar dela e jogar o maldito amuleto no rio mais próximo... O que valeria o risco de ser morto? E, pior que isso, poderia condenar à morte membros de seu clã?

Tomou um gole do conhaque sabendo que a resposta para as suas perguntas poderia ser mais assustadora do que seu oculto inimigo.

Cerca de duas horas mais tarde, Viper subiu as escadas para o segundo andar. Tentara, com ênfase, afastar seus pensamentos da linda mulher que enchia a casa inteira com um doce perfume. Pesquisara em sua biblioteca tudo sobre demônios, para ver se chegava a alguma explicação quanto à chacina dos trolls. Entrara em contato com seus vários negócios, querendo se assegurar se houvera ou não ines­perados problemas. Fizera pessoalmente uma inspeção nos jardins para falar com seus guardas e se certificar de que tudo estava sob controle.

Mas, por fim, não tinha conseguido impedir que o desejo falasse mais alto. Queria ver Shay, escutar sua voz, tocar sua pele macia.

Ou, pelo menos, estar perto dela. E isso era patético.

Aproximando-se do quarto, deu com o pequeno gárgula dormindo no chão, junto à porta. Obviamente estava ali como guardião. Um pensamento que poderia irritá-lo, mas não. Ele valorizava a lealdade aos amigos. Era mais fácil lutar contra um guerreiro perigoso do que contra um ami­go protegendo um companheiro. Alguém disposto a morrer pelo outro o transformava em um perigoso inimigo.

Aproximou-se do gárgula, que se levantou e endireitou o corpo. Podia não ter o tamanho de um gárgula normal, mas continuava com seu orgulho.                                                              

— Há um bom número de quartos nesta casa - Viper disse.

— Tenho certeza de que estaria bem mais confortável em algum deles.

— Procurarei um quarto quando amanhecer. Até lá per­manecerei aqui.

— Ah, está no posto de sentinela.

O tom era suave, mas o gárgula pareceu se ofender.

— Acredita que eu não consiga proteger Shay?

— Ao contrário, acredito que provaria ser um adversário muito perigoso. Felizmente, não há necessidade de se preocupar com isso, esta noite. Meu visitante já foi embora e a casa está em segurança.

— Mas você permanece aqui.

Viper arqueou a sobrancelha. Havia poucos demônios que teriam coragem de confrontá-lo assim, tão diretamente.

— Não sou ameaça alguma, meu pequeno guerreiro.

— Sugere que Shay está em segurança em suas mãos?

— Paguei uma grande soma por ela. Sou um negocian­te esperto o suficiente para não jogar fora uma fortuna em algo que pretendesse destruir.

Os olhos cinzentos se estreitaram.

— Perguntei se ela estaria segura.

Viper sorriu lentamente. Levet sabia da fome que fluía em suas veias.

— Ela está sob minha proteção. Não represento um perigo para ela, e não permitirei que alguém a machuque enquanto eu tiver poder suficiente para mantê-la em segurança.

O gárgula ficou pensativo por um longo momento.

— Você prometeria isso?

A exigência pegou Viper desprevenido.

— Aceitaria a promessa de um vampiro?

— Aceitaria a promessa de um chefe de clã. Inconscientemente, Viper tocou no dragão tatuado em seu peito. Havia se esquecido que gárgulas eram tão sensí­veis aos símbolos.

— Tem a minha promessa.

— Ótimo. - Levet balançou a cauda.

— Vou deixar Shay aos seus cuidados e encontrar alguma coisa para comer.

— Há bastante comida na cozinha.

— Estou cansado dessa comida de humanos.

— Pretende caçar? - Viper ergueu as sobrancelhas bem desenhadas.

— Claro. Faz tempo que não faço isso.

— Pois eu lhe sugiro que fique por perto da casa, até que possamos identificar quem está atrás de Shay.

O gárgula deu de ombros.

— Já está muito próximo do amanhecer para eu ir mui­to longe.

— E nem humanos nem vampiros devem estar no seu cardápio - Viper observou com voz séria.

— Saerebleu. Tenho cara de quem come humanos ou vampiros?

Viper escondeu um sorriso.

— Prefiro que as regras estejam claras.

Levet balançou as asas e seguiu direto para as escadas, praguejando em francês, mas ficou claro para Viper que os xingamentos eram contra ele.

Oh, o que isso importava? Eleja fora chamado antes por nomes piores. E provavelmente seria de novo.

Colocou a mão na maçaneta da porta. Sem dúvida a mu­lher o esperava.

Shay andou de um lado para o outro antes de ter a certe­za de que não seria atacada. Obviamente o vampiro apare­cera para uma visita, não para um pequeno lanche.

Ainda bem. Ela já vira sangue demais por um dia.

Confiante de que Viper devia estar entretido com sua visita, ela havia tomado um banho. Despira-se e entrara debaixo do chuveiro, como se pudesse varrer da mente as imagens horríveis dos trolls chacinados.

Tinha suspirado profundamente ao sentir a água morna. E mais uma vez ao descobrir a variedade enorme de sabo­netes e óleos que se alinhavam em uma prateleira de vidro, junto ao chuveiro.

Nunca havia desfrutado tais luxos, pensou, enquanto la­vava seus longos cabelos com xampu de flores. Terminado o banho, tinha se enrolado em uma toalha, certa de que encontraria Levet deitado na cama dela.

Encontrou alguém... mas não era o gárgula.

O belo vampiro levantou-se imediatamente quando a viu.

— O que veio fazer aqui?

Viper deslizou os olhos pelo corpo de Shay, sorrindo le­vemente.

— Eu pensei que gostaria de saber que meu visitante já foi embora.

— Se isso for tudo...

— Minha governanta deixou jantar para você na cozinha.

— Oh, obrigada. - Shay comprimiu os lábios.

— Descerei mais tarde.

O olhar de Viper voltou ao corpo de Shay e se deteve nos seios sob a toalha úmida. O sorriso dele aumentou quando percebeu os mamilos reagindo ao seu olhar.

— Certamente você está com fome. Eu sei que tem um bom apetite.

Shay procurou se afastar de Viper o mais rápido possível.

— Dificilmente poderia ir como estou agora. Ele riu.

— Por que não? Eu não me importo, garanto...

— Mas eu sim.

— Muito bem. - Ele caminhou até o armário e de lá tirou um roupão, que estendeu a ela.

— Você disse que nunca recebia ninguém nesta casa.

— Não recebo. - Viper abriu um armário repleto de pe­ças femininas.

— As roupas são suas.

Shay olhou a coleção de vestidos, admirada.

— Minhas?

— Pensou que eu a manteria nua em uma cela?

— Eu... - Ela balançou a cabeça e caminhou até o ar­mário. Havia jeans, camisetas, calças compridas, suéteres e trajes sofisticados que a deixaram com água na boca. Nunca em sua vida possuíra tanta roupa. E, certamente, não tão caras.

— Não esperava que tivesse me comprado um guar­da-roupa completo.

— Comprei apenas o trivial. Depois pode comprar o que quiser. - Ele parou e suspirou profundamente.

— Falando nisso, Abby quer fazer compras na sua companhia.

— Abby?

— Você a conheceu quando lutávamos contra as bruxas. Shay ficou confusa.

— Está se referindo à Fênix?

— Acredito que ela prefira ser chamada de Abby. Shay se apoiou no guarda-roupa com as pernas fracas. Não fazia sentido o que Viper estava dizendo.

— Mas... por quê? Por que ela se lembraria de mim? Ele deu de ombros.

— Você a ajudou a derrotar as feiticeiras.

— Não fiz nada disso.

— Resistiu às ordens das bruxas que a mandaram cap­turar a Fênix. Foi espancada quase até a morte, mas se recusou a ajudá-las. Também lutou ao lado da Fênix contra Edra. - A expressão no olhar de Viper era de seriedade.

— Ela nunca se esquece de coisas assim. Nem Dante.

Bem, tinha sido verdade que ela desobedecera às bruxas que queriam usar a Fênix como instrumento para matar demônios.

— Isso dificilmente nos torna amigas - ela resmungou. Viper sorriu.

— Diga isso a Abby. Ela parece pensar que as expe­riências que vocês duas tiveram lhe dão não só o direito de chamá-la de amiga, como de querer ter certeza de que não está sendo maltratada sob o meu teto.

Abby sentiu algo estranho dentro dela. Algo que parecia um pouco com medo.

— Ela sabe quem eu sou?

— O quê?

— Ela sabe que sou um demônio?

Viper hesitou, escolhendo as palavras com cuidado.

— Ela sabe que você tem dentro de si o sangue de uma shalott.

— E mesmo assim quer ir comigo às compras?

— Somente se você quiser. Tenho certeza de que poderá mudar os planos para algo que você prefira. Ele agora estava bem ao lado de Shay, mas não a tocava.

— O que foi, Shay? Eu disse alguma coisa que a tenha aborrecido?

— Não sei o que ela quer de mim. Sou um demônio. Ele soltou uma risada.

— Abby tampouco é humana.

— Não, ela é uma deusa.

— Uma deusa, talvez, mas também uma mulher que batalhou contra as bruxas para salvar todos os demônios, e que agora está casada com um vampiro. Ela não tem pre­conceitos contra ninguém, se for isso o que teme.

Seria isso o que ela temia?

A verdade é que não confiava em Abby. Não quando ela oferecia algo tão raro como amizade. A experiência lhe ensinara que tais oferecimentos nunca vinham de graça. Usualmente o preço era um que ela não queria pagar.

Sentindo-se sobre o intenso olhar de Viper, Shay suspi­rou profundamente.

— Nunca antes alguém me convidou a fazer compras. Ele continuou sem tocá-la, no entanto pegou a escova e começou a lhe pentear os cabelos.

— Você disse que sua mãe a criou como uma humana. A voz dele era suave e gentil e isso a deixou mais inquieta.

— Infelizmente, isso foi há muito tempo.

— E você se passava por humana?

Shay franziu o cenho. Ela tentara muito parecer uma humana e pertencer à sua comunidade.

— Não.

Ele deteve a escova.

— Mas você parece humana.

Shay nunca falara antes sobre seu passado. Com nin­guém. Mas naquele silêncio cheio de paz que os rodeava, e diante da ternura com que ele escovava seus cabelos, ela começou a falar:

— Posso parecer humana, mas não envelheço como uma mortal. Minha mãe e eu estávamos sempre nos mudando para que ninguém notasse que eu não ia me desenvolvendo como devia.

— Lembrar-se da mãe fez com que Shay sentis­se uma dor profunda no coração.

— Certamente um problema, mas não insuperável.

— Talvez não. Mas havia também a minha força e a mi­nha agilidade. Não havia nada de humano nelas.

Viper deteve a escova mais uma vez.

— As outras crianças tinham medo de você?

— Muito.

— Crianças podem ser muito cruéis. Shay colocou as mãos no colo.

— Não tão cruéis quanto seus pais. No decorrer do tem­po tivemos nossas casas incendiadas, pedras atiradas con­tra nós, e padres tentando exorcizar o demônio que havia dentro de mim. Cheguei a ser enforcada uma noite.

— Enforcada?

— Um grupo me tirou da cama e me pendurou pelo pescoço em uma árvore de nosso quintal. Você pode imaginar a sur­presa deles quando eu fui procurá-los na manhã seguinte.

Seguiu-se um longo silêncio, como se Viper estivesse pensando naquilo que acabara de ouvir. O modo como es­covava os cabelos de Shay era extremamente gentil. E ela sentiu que ele parecia frustrado.

Estranho.

— E por que sua mãe não pediu ajuda aos demônios? - ele quis saber por fim.

Ela voltou a cabeça e o olhou de frente.

— Meu pai tinha sido morto por um vampiro. Ela estava tentando me esconder dos demônios.

O olhar dele escureceu.

— Há demônios que teriam lhe oferecido um santuário, Shay. Nem todos são animais.

— Minha mãe era humana. Não sabia em quem confiar. - Subitamente, os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Também não sei.

— Shay... - Ele largou a escova e tomou o rosto dela nas mãos.

Ela se esqueceu de como respirar enquanto observava Viper inclinar a cabeça. Ele se movia bem devagar. O sufi­ciente para que ela soubesse que lhe estava sendo dada a oportunidade de dizer "não".

Estremeceu e Viper se deteve, como se esperasse ser incentivado. Mas enquanto a mente dela tentava desesperadamente se lembrar que era um vampiro que a tocava - um vampiro que a comprara e a possuía como se fosse um objeto - seu corpo permanecia indiferente ao bom senso.

Precisava sentir o toque de Viper. Não, ela ansiava por seu toque... Pelo gosto de seus lábios, pelo roçar de suas pe­les, pela carícia que ele faria em seus seios. Nunca entendera antes como uma mulher podia permitir que a seduzissem.

Naquele momento, porém, compreendeu o poder do de­sejo; a necessidade de tocar e ser tocada, não importando se isso era ou não certo.

— Tem de me dizer "sim" - ele murmurou suavemente.

— Não quero ser acusado de ter quebrado minha promessa. Oh, a voz dele era simplesmente intoxicante.

— Sim.

Viper desceu os lábios, aprisionando a boca de Shay em um beijo que mandou ondas de calor por seus corpos. Shay estava preparada para o prazer, mas a intensidade deste a surpreendeu.

Oh, sim, era disso que ela precisava. O que seu corpo pedia desde que o vira pela primeira vez, semanas antes.

Saboreou o conhaque que havia ainda nos lábios dele. Instintivamente, levou as mãos ao peito largo, desejando poder tocar-lhe a carne e não apenas a seda da camisa.

Ele grunhiu e procurou abrir a camisa, alguns botões se soltando na pressa.

— Toque-me - murmurou.

— Deixe-me sentir suas mãos em mim.

Shay deu um passo para trás. Não por rejeição, mas sim­plesmente porque queria ver o que estava tocando. Sempre tinha imaginado o que estaria escondido debaixo daqueles casacos de veludo e camisas de seda. Agora queria apreciar o que tinha à vista.

Seus olhos brilharam e seus lábios se entreabriram em um suspiro silencioso.

À luz fraca, o peito de Viper era largo e musculoso como ela o imaginara. Mas seus sonhos não incluíam o exótico dragão tatuado sobre a pele.

Deslumbrada, ela deslizou os dedos sobre a figura da criatura mítica antes de chegar às asas e ao corpo em tom jade-escuro.

— O que é isto? - ela quis saber num sussurro. Ele estremeceu com o gesto gentil de seus dedos.

— A marca de Cuchulain.

Shay não conseguia pensar muito bem enquanto Viper beijava a curva de sua orelha.

— Doeu? - perguntou por fim.

— A tatuagem?

— Sim.

As mãos dele acariciavam agora seus braços e ela mal podia respirar.

— Não. Nem mesmo a senti. - Viper mordeu de leve a ponta da orelha.

— Simplesmente apareceu após minha última batalha na arena.

— Ela o marca como chefe de clã?

— Sim.

— Eu...

As palavras se perderam em uma onda de prazer, quan­do a língua dele deslizou sobre seu pescoço.

— O que quer saber?

— Não me lembro.

Viper riu enquanto suas mãos continuavam se movendo sem parar.

— Preciso ver você - ele murmurou.

— Diga que sim. Ela sentiu o prazer aumentando de intensidade. Isso lhe dava uma sensação de poder que raramente tinha experi­mentado na vida. Agora era ela quem detinha o controle, e isso terminava sendo um fantástico afrodisíaco.

— Sim.

Os dedos dele a pressionaram por um instante, como se Viper se surpreendesse com sua rápida capitulação. Logo, porém, ele soltava as pontas da toalha e a olhava, deslumbrado.

— Pelo sangue dos puros - murmurou, envolvendo um dos seios com a mão.

— Você é perfeita.

Não, ela não era perfeita, Shay pensou, excitada. Longe disso. Era magra demais. Tinha a pele bronzeada demais. Os seios pequenos demais.

Mas, naquele momento, sob o olhar predatório do belo vampiro, sentia-se linda. Desejada.

Agora os lábios de Viper deslizavam, ávidos, por seu pes­coço. Não sentiu, porém, seus caninos, e não fez gesto algum de se afastar.

Confiava em Viper. Confiava que ele não exigiria mais do que ela estaria disposta a oferecer.

Passou a mão pela pele acetinada do peito forte. Era fas­cinante a firmeza dos músculos logo abaixo: como se um veludo envolvesse o aço.

O desejo de explorar o corpo inteiro de Viper era enor­me. Ela nem mesmo percebeu quando ele gentilmente a colocou sobre a cama e capturou um dos mamilos com os lábios.

Soltou uma exclamação de prazer quando a língua dele roçou a ponta do mamilo, provocando-a e levando-a ao delí­rio. Era tão bom... Tão terrivelmente bom!

— Oh, Deus - gemeu, estremecendo quando Viper des­lizou a língua pela curva dos seios antes de voltar a ator­mentá-los nas pontas. Enfiou as mãos nos cabelos dele, puxando-o para mais perto, permitindo que estes caíssem como uma cortina de seda sobre ela. Sentia tanto prazer que temia parar de respirar.

Viper continuou mordiscando o mamilo enquanto entreabria suas pernas e a tocava intimamente.

Shay o agarrou pelos ombros.

— Viper...

— Não vou machucá-la. Confie em mim, Shay.

Ela tentou protestar, mas estremeceu. As sensações não a deixavam pensar direito.

Seus olhares se encontraram. Por um longo momento, ela simplesmente ficou olhando, entontecida, para o rosto lindo à sua frente.

Não se deixe envolver, Shay, uma voz murmurou dentro dela. Não confie em um vampiro!

Entreabriu os lábios, mas nada disse. Em vez disso, tor­nou a enlaçá-lo pelo pescoço e o trouxe mais para junto de si. Ele voltou a beijá-la com ânsia, os dedos movendo-se so­bre ela com enlouquecedora delicadeza. Involuntariamente, Shay ergueu os quadris do colchão. Viper não era seu pri­meiro amante, mas nada a preparara para aquilo. Sentia-se arder como um vulcão e queria se consumir nesse fogo.

Ele continuou a atormentá-la com a língua e os dedos, e Shay quase o sufocou com seu abraço ao se ver já próxima a um orgasmo.

— Viper! - ela gritou.

— Eu sei, querida... - ele sussurrou, ofegante, ao mesmo tempo em que a pressionava com sua ereção.

— Não lute contra o prazer.

A respiração de Shay começou a sair em curtos espasmos quando os dedos de Viper ousaram explorar seus mais re­cônditos recantos. Seu corpo inteiro estremeceu com a doce invasão, e ela foi sacudida pela explosão do êxtase.

O corpo excitado de Viper ainda pressionava o dela, quando Shay se deixou ficar deitada, em silêncio, por um longo momento. Ela se sentia como se estivesse flutuando. Como se tivesse sido lançada em um mar de águas quentes e revoltas, e depois fosse levada gentilmente pelas ondas para a praia.

Viper a tocou no rosto, como se ela fosse um tesouro frágil que ele temia quebrar, os lábios apenas roçando sua pele.

Incapaz de se mover, Shay por fim conseguiu respirar profundamente enquanto reunia os pensamentos.

— Droga... - murmurou, atordoada.

Sentado à mesa da cozinha, Viper sorriu ao observar Shay esvaziando prato após prato.

Nenhuma criatura com a cabeça no lugar estaria sorrin­do quando seu corpo ainda doía de excitação. E isso, tinha certeza, levaria horas para melhorar.

Ainda assim, continuou sorrindo. Não pressionaria Shay de forma alguma.

— Não fique me olhando desse jeito - ela murmurou.

— Olhando como?

— Como se estivesse observando o seu jantar.

Viper se ajeitou na cadeira, o olhar deslizando pelo rou­pão entreaberto.

— Não acharia ruim uma mordida ou duas.

Ela enrijeceu, sem dúvida pressentindo a fome que pul­sava no corpo daquele vampiro sexy. Uma fome que ele não conseguia esconder.

— Fizemos um acordo. Nada de sangue.

— Não estava pensando em sangue.

O sorriso de Viper aumentou e Shay enrubesceu. Não po­dia fingir que não havia chegado ao clímax nos braços dele.

— Está quase amanhecendo... Não devia estar em seu caixão? - perguntou, incomodada.

Viper riu de novo.

— Faz séculos que me acostumei com a noite. Eu não suporto a luz do sol, mas eu sou capaz de ficar acordado quando quero.

— Quantos anos você tem?

— Os vampiros raramente revelam suas idades. Assim como seu abrigo.

Shay deu de ombros e colocou de lado o prato vazio.

— Nunca entendi por quê. Se for imortal não importa qual seja sua idade.

— O poder de um vampiro aumenta a cada ano que pas­sa. Saber sua idade é conhecer o seu poder.

— Quanto mais velho mais poderoso?

Viper sorriu de lado. Não deveria se surpreender com a falta de conhecimento dela no que se referia a vampiros. A mãe de Shay a criara distante do mundo dos demônios.

— Em teoria isso acontece, apesar de sermos como qual­quer outra raça. Há sempre aqueles que possuem mais for­ça que outros, ou mais inteligência, não importa a idade.

Shay umedeceu os lábios, distraída, e ele estremeceu. Havia tantos lugares íntimos que ele gostaria que aquela língua explorasse...

Lutou para recuperar o controle.

— Por isso que você se tornou o chefe de seu clã? - ela indagou, curiosa.

Viper mediu as palavras. Não se vangloriaria de seus poderes para impressioná-la.

— Em parte.

— Qual é a outra parte?

Ele sorriu.

— Meu charme pessoal? Shay revirou os olhos.

— Não pode ter sido isso.

Viper ficou em silêncio por uns instantes.

— Shalotts são como vampiros... Não escolhem o líder por seu desempenho em combate?

— Não tenho a menor idéia. - A voz dela soou casual, mas a expressão de seu rosto mudara, fato que não passou despercebido por Viper.

— Certamente seus pais lhe contaram alguma coisa so­bre a sua origem.

— Fui criada como humana. Minha mãe achava que quanto menos eu fosse exposta ao mundo dos demônios me­lhor seria. Depois da morte de meu pai, não me foi permitido nem mencionar o mundo shalott.

Não era de surpreender que Shay se considerasse uma aberração, Viper pensou. A mãe dela havia sido a respon­sável por isso.

— Um ponto de vista lamentável.

Shay reagiu à crítica.

— Minha mãe queria apenas me proteger.

— Compreendo, mas lhe negar a história de seu povo foi como negar parte de você mesma. Certamente deveria sentir-se curiosa quanto a isso, não é?

— Por que deveria? Ter sangue de demônio só me causou desgostos.

— Os shalotts são uma raça orgulhosa e muito respeita­da - ele insistiu.

— Antes de partirem deste mundo com o príncipe negro, eles eram conhecidos como os mais temidos assassinos entre os demônios. Mesmo os vampiros temiam suas habilidades.

— Isso dificilmente será algo de que me dê satisfação. Viper tentou controlar a impaciência.

— Pensa que os humanos são superiores? Eles têm gosto por todo tipo de violência e guerras, sem mencionar o geno­cídio. Pelo menos os shalotts nunca matam alguém de sua raça. Essa é a lei mais sagrada deles.

Uma ponta de curiosidade brilhou nos olhos de Shay.

— Nunca?

— Nunca. - Viper sustentou o olhar dela.

— Acreditam que tirar sangue de outro shalott os condenará, e toda sua família, à fúria dos deuses. É um pecado que não pode ser perdoado. Eu desejaria que os vampiros possuíssem a mes­ma crença.

O olhar de Shay era vago.

— Conheceu muitos shalotts, então.

— Alguns. E antes que me pergunte, não tomei o sangue deles, nem os fiz meus escravos. E nenhuma shalott foi mi­nha amante.

— Não me diga que alguns deles eram seus amigos! - ela exclamou.

Ele sorriu, exibindo os caninos.

— Tenho muitos amigos entre os demônios, mas os sha­lotts eram mais como meus parceiros. Um chefe de clã tem muitos inimigos.

Ela arregalou os olhos.

— Você os contratou como assassinos?

— Na verdade, eu os contratei para que me treinassem -Viper esclareceu.

— Treiná-lo para quê?

— Os shalotts são mestres na arte do combate, e pos­suem um conhecimento profundo sobre armas... Seu pai também devia ter.

Viper percebeu o orgulho nos olhos de Shay.

— Claro que sim.

Ele escondeu o sorriso. Não era tolo.

— E você?

— Tenho alguma experiência com espadas e adagas, mas meu pai morreu antes de meu treinamento terminar - ela confessou.

— Bem, não posso contar com o talento de seu pai, mas se você estiver disposta, poderíamos treinar juntos.

Silêncio. Do tipo que lhe assegurava que Shay estava tentando se decidir se o que ele planejava era um terrível complô, ou simplesmente era maluco.

— Treinarmos juntos? - ela repetiu.

— Está brincando?

— Por que não? Não tenho um sparring decente há anos.

— Amos não costumam ficar ansiosos por ensinar aos seus escravos como matá-los - Shay observou, seca.

— Pretende me matar?

— Ainda não é uma conclusão a qual eu tenha chegado. Viper caiu na risada.

— Avise-me, então.

Antes que Shay pudesse responder, a atenção dos dois foi desviada por um ruído estranho, que quebrou o silêncio da noite.

Ambos ficaram imóveis. Podia ter sido um coiote, ou mesmo um cão uivando, mas eles sabiam que não era.

— Cães do inferno - ela reconheceu.

Viper se levantou e entrou em comunicação mental com seus empregados.

— Os guardas estão sob ataque.

— Por que cães do inferno atacariam os seus guardas? Eles não eram páreo para os vampiros.

Viper sacudiu a cabeça, sentindo que a batalha estava ocorrendo junto aos portões de sua propriedade. Naquele momento, Santiago e sua equipe lutavam, mas havia mui­tos cães atacando. Os vampiros estavam feridos e precisa­vam buscar a cura no fundo da terra.

— Eu não sei. - Estendeu a mão para Shay, por fim.

— Venha.

Ela simplesmente não podia seguir as ordens dele sem argumentar.

— Aonde estamos indo?

— Há alguns túneis no andar de baixo. Eles nos levarão à garagem.

— Certamente estaremos mais seguros aqui do que na garagem.

— Há carros na garagem. Ela arregalou os olhos.

— Não.

Viper suspirou, exasperado.

— Por que não?

— Pelo amor de Deus, Viper. Já está clareando. Não pode ir lá fora.

— Eu não posso, mas você sim.

— Quer que eu parta sozinha?

— Ficarei aqui e me certificarei de que não foi seguida.

— Não. Ambos ficaremos e lutaremos.

Não era frequente que Viper se surpreendesse, mas agora ele estava surpreso.

— Shay, não é hora de brigar. Os cães podem não ser uma grande ameaça, mas duvido que estejam sozinhos. Alguma coisa quer você. E tanto, que se arrisca a um ataque direto. Tem de fugir agora.

Sem aviso, ela se moveu diante dele, as mãos nos quadris.

— E se for isso o que eles querem? Viper franziu a testa.

— Como assim?

— E se os cães do inferno forem apenas uma tática para me fazer fugir daqui sem você me protegendo? E se esperam que nós nos separemos?

Ele engoliu em seco. Shay estava certa. Os demônios bem podiam estar tentando afastar um do outro.

— Droga. Isso explicaria o ataque ser perto do amanhecer.

— E por que mandaram os cães do inferno à frente.

— É verdade.

Viper passou as mãos nervosamente pelos cabelos. Não temia a luta. Fazia um bom tempo que não se deleitava com uma boa batalha. Mas, pela primeira vez em sua longa vida, possuía alguém além dele com que se preocupar. E essa era uma sensação enervante. Uma com a qual ele não sabia como lidar.

Olhando em volta da sala, Shay levou a mão ao peito.

— Onde está Levet?

— Caçando. - Viper deu de ombros.

— Mas, se viu os cães do inferno, agora deve estar a meio caminho para Chicago.

— Ou fazendo alguma coisa completamente estúpida - ela resmungou, caminhando, decidida, em direção à porta.

Levou um instante para Viper compreender que ela pre­tendia procurar o gárgula. Com incrível velocidade, ele lhe bloqueou a passagem. Sua paciência terminara.

— Não vai sair.

Um lampejo perigoso tomou vida nos olhos dourados de Shay.

— Viper...

— Não. Os demônios não estão interessados em Levet. Ele está em maior segurança que você neste momento.

— Não podemos ter certeza disso - ela teimou.

— Levet é meu amigo, e não vou deixá-lo lá fora para morrer.

Viper saboreou por um instante a imagem da mulher que o enfrentava. Oh, ela era meio shalott e lutaria com fúria. Mas ele confiava que chegaria a hora em que a dominaria. Infelizmente, aquela não era uma boa hora para tentar isso.

— Vá para o andar de baixo. Eu vou atrás do gárgula.

— Não há necessidade de dar uma de herói, vampiro. Estou aqui.

Viper se voltou ao ver a porta se abrir e o gárgula entrar.

— Como passou pelos cães do inferno?!

— Eles se dispersaram por hora, mas sem dúvida voltarão. Houve uma movimentação atrás da criatura, e Viper viu os vampiros que formavam a sua guarda. Estavam feridos.

Sentiu a ira brotar dentro dele. Ele era chefe de clã. Quem quer que tivesse enviado os cães do inferno, logo es­taria lamentando tal decisão.

— Santiago, reúna os guardas e os leve ao abrigo.

— Não o deixaremos, senhor!

Viper sacudiu a cabeça. Seus guardas eram ainda muito jovens, e não resistiriam à claridade. Logo que o sol surgis­se, seriam incapazes de se protegerem.

— Estão feridos e logo amanhecerá. Não há nada que possam fazer.                                                           A frustração ficou nítida no rosto das sentinelas.

— Os seus empregados humanos estão para chegar - Santiago disse.

— Mas não são páreo para o demônio que nos caça. Precisamos fazer com que eles não entrem aqui. Agora, meu amigo, vá e cuide dos seus companheiros.

Santiago não teve escolha.

— Como queira, senhor.

Viper esperou que eles sumissem na escuridão, rumo ao esconderijo que Santiago tinha construído. Todos estariam seguros lá embaixo. Ao menos por enquanto.

Voltou-se para encontrar o olhar preocupado de Shay.

— Os cães do inferno voltaram. Precisamos ir.

Shay não protestou quando Viper agarrou sua mão e a levou da cozinha para o porão.

Um pequeno milagre, mas naquele momento ela estava mais preocupada com a criatura horripilante que se aproxi­mava da casa do que insistir em sua independência.

Com Levet agarrado em seu roupão, eles se moveram em silêncio.

Ao se aproximar de uma parede, Viper apertou um bo­tão, e esta se abriu, dando passagem para uma escada que levava para mais abaixo.

— Por aqui - murmurou, esperando que Shay e Levet chegassem mais perto.

O cheiro de terra os rodeava, e ela desceu os degraus cautelosamente, entrando no abrigo de Viper: seu esconde­rijo mais seguro. Foi forçada a parar, pois tudo estava na mais profunda escuridão. Não tinha a capacidade de enxer­gar no escuro como os vampiros.

Percebendo sua dificuldade, Viper acendeu um cande­labro. Os olhos dela foram se ajustando, e sua respiração pareceu parar na garganta.

— Diabos! - ela exclamou, deslizando os olhos pela ca­verna que os rodeava. Nunca havia visto tantas armas em um só lugar. Espadas compridas, curtas, adagas, armas de ninja, arcos e flechas, pistolas, armaduras medievais cuida­dosamente guardadas em caixas de vidro. Uma das armas, reconheceu, tinha o poder da magia.

— De onde vem tudo isso?

Com uma chave, Viper destrancou uma das estantes e de lá retirou uma elegante espada. Estendeu uma adaga ao silencioso Levet, e uma para Shay, que a segurou com a confiança de uma mulher acostumada a manejar armas.

— Esta é parte de minha coleção - respondeu por fim, chegando até outra estante e escolhendo uma pequena pis­tola, que armou de pronto.

Shay lançou um olhar admirado para ele.

— Parte? Está planejando atacar o Canadá?

— Isso não está na agenda. Ao menos não da de hoje. O olhar dele revelava uma ponta de bom humor.

Mais uma vez, Shay se deixou deslumbrar pela beleza de suas feições. Era quase indecente que um vampiro tivesse o rosto de um anjo.

Os olhos escuros se tornaram mais intensos quando ele sentiu um tremor correndo pelo corpo dela. Seus olhares se encontraram e, por instantes, ficaram em silêncio, saborean­do a presença um do outro. Foram interrompidos por um grunhido de impaciência.

— Odeio interromper, mas aqueles cães do inferno não vão esperar que vocês dois terminem com esse interlúdio... Assim, sugiro que nos preparemos para a batalha.

O olhar que Viper lançou para o pequeno gárgula devia ter feito Levet se transformar em pedra, porém este tratou de ficar bem atrás de Shay.

— Eles não deveriam ser capazes de passar pelas mi­nhas barreiras - disse.

— Há alguma coisa com eles.

Levet balançou as asas.

— Alguma coisa ruim.

Shay sentia isso também. Algo escuro e assustador in­vadia o ar, e se tornara difícil respirar. Não estava ain­da à porta, mas bem perto, a ponto de provocar arrepios. Segurando a espada, ela endireitou o corpo e o roupão entreabriu, revelando suas curvas.

O rosnar dos cães do inferno ecoou no ar, e os três se voltaram para a porta. Ouviram o barulho das criaturas devorando alguém de sua própria espécie. Provavelmente um que estivesse ferido.

O som da respiração de Levet chegou até Shay, mas Viper continuou imóvel, totalmente silencioso. Shay não ti­nha certeza se vê-lo assim era animador ou aterrorizante.

E, na verdade, isso não importava, já que a porta come­çou a ruir diante da pressão dos invasores.

Houve um momento de preparação, em que as bestas tentaram se agrupar, e ficaram encalhadas diante da es­treita entrada. Ouviu-se, então, um horripilante uivo, e um deles ultrapassou a abertura, entrando para matar.

Shay observou o primeiro demônio vindo em sua dire­ção. Era uma criatura aterrorizante, larga como um pônei, e com olhos vermelhos e caninos enormes. Felizmente, eles eram estúpidos, e não lutavam seguindo qualquer estraté­gia ou plano de batalha.

Segurando a espada com as duas mãos, ela esperou que o primeiro se empalasse nesta. Os dentes e o sangue es­correram por seus braços enquanto ela se esforçava para retirar a lâmina do corpo do monstro.

Em segundos, os invasores seguintes fizeram em peda­ços o corpo do morto.

Shay procurou não enjoar diante da cena grotesca. Lançou-se à frente e matou o inimigo mais próximo. O san­gue e o cheiro dos cães do inferno agonizantes encheram o ar, enquanto ela dançava com determinação mortal no meio do grupo de bestas. Havia anos não enfrentava uma bata­lha daquele tipo, mas sempre praticava suas habilidades, cumprindo a promessa que fizera ao pai, e viu-se usando a espada com maestria.

A distância, percebia os movimentos de Levet, que lu­tava ao mesmo tempo em que praguejava, e a eficiência de Viper deixando para trás uma trilha de corpos. Sua concen­tração continuava nos demônios que tinha à sua frente, e a fazia enfrentá-los sem medo nem hesitação.

Por fim, um enorme silêncio invadiu a área.

Com um suspiro, Shay se recostou a uma parede. Tinha levado uma mordida, e havia um ferimento em seu braço, mas havia sobrevivido. Nada mal.

Olhou em volta para se assegurar que Levet e Viper es­tavam bem. O gárgula estava de pé, e o vampiro limpava sua espada calmamente.

Pelo chão, os demônios mortos e agonizantes começavam a se decompor. Mesmo o sangue nos braços dela estava se desfazendo.

Viper se aproximou, apreensivo.

— Está ferida?

Shay engoliu uma risada. Ela parecia ter passado por um tufão, enquanto ele estava ali, igualzinho a antes, sem nenhum fio de cabelo fora do lugar.

— Nada que não dê para curar - resmungou, enquanto o via se abaixar para examinar o ferimento na perna dela. Cerrou os dentes quando sentiu os dedos frios de Viper to­cando em sua pele.

— Estou bem, não se preocupe.

O olhar dele não suavizou.

— Cura como uma humana ou uma shalott?

— Não sei como acontece com os shalotts, mas eu me curo mais depressa que os humanos.

— É imune contra infecções?

— Sou.

Viper voltou sua atenção ao ferimento, que já parara de sangrar e começava a se fechar. Aliviado, ele se levantou. Mas ficou imóvel, subitamente atento.

— Sente a aproximação de um demônio? - indagou em voz baixa.

Shay sentiu um arrepio percorrer todo o corpo.

— Sinto.

— É o mesmo que tentou pegá-la na noite do leilão? Ela se esforçou para se concentrar. Era uma tarefa nada fácil com Viper ali, ao lado dela. O poder que emanava de seu corpo a distraía.

Respirando fundo, fechou os olhos e procurou captar o espírito maligno que se aproximava. Levara anos para aprender a colocar de lado a lógica humana e confiar em seus sentidos, herdados do pai. Podia não entender como conseguia captar a essência de outro ser, mas deixara, ha­via muito tempo, de questionar isso.

Levou um longo momento, mas por fim sacudiu a cabeça.

— Não é o mesmo.

— Não sei se me sinto aliviado ou desapontado. - Viper estendeu-lhe a mão.

— Venha, precisamos sair daqui.

Shay arregalou os olhos.

— Não seria mais seguro ficar?

— Estaríamos cercados.

— Pelo menos temos armas.

Viper balançou a cabeça em uma negativa.

— Precisamos de um lugar onde possamos fugir se as coisas piorarem.

— Se piorarem? - ela perguntou, chocada.

Um leve sorriso surgiu nos lábios do vampiro, antes que ele inclinasse a cabeça e lhe desse um beijo rápido, porém intenso.

— A diversão apenas começou, meu bem - ele murmurou. Pegando um par de adagas, que ele enfiou nas botas, e um pequeno amuleto pendurado em um cordão de couro, Viper conduziu Shay e o gárgula para fora da sala de armas.

Os cães do inferno estavam mortos, mas o demônio que se aproximava era uma ameaça que não podia ser ignorada. Viper não queria se ver encurralado, sem chance de escapar, quando a besta finalmente atacasse. Não quando ele não se sentia inteiramente confiante que seria capaz de acabar com a criatura.

Escolhendo um túnel estreito que levava para fora da casa, ele se moveu com silenciosa urgência, o que deixou tanto Shay como o gárgula ofegantes. Ele ignorou suas queixas, chegando por fim a uma escadaria.

— Por aqui - comandou, parando e deixando que Shay e o gárgula passassem à frente.

Ambos o olharam, cheios de suspeitas. Viper suspirou. Ele deveria saber que não o obedeceriam sem qualquer discussão.

— Onde isso leva? - Shay perguntou.

— Ao aposento debaixo da garagem. Tentaremos enfren­tar o demônio ali, mas, se falharmos, isso nos dará a opor­tunidade de escapar.

A expressão de Shay endureceu.

— Está pensando que eu vou deixá-lo aqui? Quero dizer, deixar Levet para lutar contra o demônio que obviamente está contra mim?

— Não temos outra escolha. - Viper segurou o braço dela.

— Nem o gárgula nem eu podemos deixar estes tú­neis. Não até que escureça. Somente podemos lhe dar tem­po para escapar.

Levet soltou um suspiro.

— Ele tem razão, Shay. Você tem de ir.

— Esqueçam isso. Eu... - As palavras de Shay foram interrompidas pelo som de um grunhido bem atrás deles.

— Droga!

— O tempo de argumentar acabou.

Segurando o braço dela com força, Viper a fez subir os degraus que davam no pequeno aposento. Pegou do bolso o pequeno amuleto, e o colocou em volta do pescoço de Shay.

Ela o olhou, confusa.

— O que é isso?

— O amuleto contém um feitiço que irá mascarar sua presença.

— Mágica?

— Foi o que me asseguraram. - Ele a agarrou pelos cabelos e puxou alguns fios.

— Ai! O que é isso?

— Perdoe-me, mas o seu cheiro tem de ficar, para que o demônio pense que continua aqui. Agora vá.

Esperando mais protestos, ele se surpreendeu quando ela simplesmente concordou com um gesto de cabeça.

— Espere até que Levet e eu deixemos este lugar, e en­tão suba as escadas e abra a porta da garagem. As chaves do carro estão penduradas na parede. Pegue-as e vá o mais longe que puder.

— Está bem.

Viper não confiava muito naquela repentina submissão de Shay. Ela era do tipo que não abandonava o navio. Segurou o rosto dela delicadamente.

— Quero que prometa que irá embora, Shay.

— Irei embora.

— Tenho sua palavra?

— Tem.

Ele soltou um grunhido. Não duvidava que ela cumpris­se a promessa, mas não conseguia afastar o pensamento de que estivesse planejando algo extremamente perigoso.

Infelizmente, não havia tempo para discussão no mo­mento, pois um som de madeira quebrada ecoou bem audí­vel atrás deles. A criatura tinha perdido a paciência e esta­va forçando sua passagem pelos túneis.

Droga.

Sem hesitação, ele a beijou.

— Agora vá - murmurou, empurrando-a delicadamente para a porta.

Mais uma vez, ela obedeceu sem protestar. Viper se apressou a deixar o aposento e fechou a porta atrás de si. Podia sentir a pesada pressão do amanhecer já enchendo o céu. Não tinha o menor desejo de saudar o nascer do dia.

De volta ao túnel, ele se colocou ao lado do nervoso Levet.

— Ela foi embora? - o gárgula perguntou.

— Sim. - Viper puxou a espada e se preparou para a chegada do demônio, que vinha arrebentando tudo pelo ca­minho.

— Pareceu-me disposta a ir.

— Sacrebleu. Isso só pode significar que ela está plane­jando alguma coisa estúpida!

— Sem dúvida. - Viper concordou com uma careta.

— Mas, por hora, está fora de perigo. Só espero que vençamos a criatura antes que ela decida voltar.

— É mais provável que terminemos como seu lanche da manhã - Levet resmungou, segurando a adaga.

Viper sorriu.

— Não sem uma boa luta, amigo. O demônio vai desco­brir que carne de vampiro não é fácil de conseguir.

O gárgula abanou o rabo, mas não fez comentário.

Viper rangeu os dentes quando viu surgir a cabeça da criatura. Muitos confundiriam o demônio com um dragão, mas ele sabia a diferença. Era um Lu, a criatura mais te­mida do mundo. E uma que era quase impossível derrotar sem mágica.

O problema era que ele, como vampiro, não usava mágica.

— Droga!

— E agora? - Levet se desesperou.

— Sabe lançar feitiços?

— Se eu soubesse algum feitiço, acha que ainda estaria aqui? Não sou tão ligado a você para ficar feliz em morrer a seu lado!

— Pensei que todos os gárgulas usassem um pouco de mágica - Viper retrucou, preparando-se para o ataque.

— Oh, está bem, pode caçoar de mim.

— Você não vai morrer, Levet. Ambos somos imortais.

— Que bobagem. Sabemos bem que, mesmo os imortais podem morrer. E, normalmente, de formas horríveis.

Viper não podia argumentar contra isso.

— Se preferir, posso simplesmente lançá-lo para o demô­nio, e esperar que ele se contente com a sua morte - obser­vou, maldoso.

Nenhum dos palavrões em francês que saíram da boca de Levet foi ouvido, já que o rugir da criatura abafava to­dos os outros sons. Apesar do corpo do demônio ser largo demais para deslizar pelo túnel sem esforço, o pescoço em serpentina permitia que a negra cabeça se aproximasse pe­rigosamente.

— Sinto cheiro de shalott. - Uma longa língua vibrou no ar.

— Onde a escondeu?

A expressão de Viper permaneceu impassível enquanto ele escondia o alívio pelo fato de a criatura não ter percebi­do que Shay escapara.

— Ela está aqui, bem perto, mas temo que não esteja ansiosa por ver você - ele gritou.

— Parece que o charme dos Lu está fora de moda.

A fera rugiu, enfurecida. Não sabia o que era bom humor.

Viper se aproximou mais da parede. Queria estar em uma posição onde pudesse observar a boca do demônio se a situação piorasse.

— Entregue-me a shalott. Não há necessidade de você morrer, vampiro.

Viper sorriu com desdém.

— Não tenho intenção de morrer. Não pelas suas mãos. Ou melhor... por seus dentes.

Um sibilo furioso invadiu todo o túnel.

— Palavras corajosas. A menos que tenha mais do que esse gárgula para lhe dar assistência, você não é páreo para mim.

Levet agitou as asas, não aceitando bem o insulto.

— Qual seu interesse em minha escrava? - Viper forçou a criatura a desviar a atenção do gárgula. Shay nunca o perdoaria se permitisse que aquele peste acabasse na bar­riga do demônio.

A enorme cabeça se voltou novamente para Viper.

— Isto é assunto entre meu senhor e a shalott.

— Seu senhor? Desde quando um terrível Lu chama al­guém de senhor?

— Ficaria surpreso, vampiro... Muito surpreso.

A caçoada do demônio gelou o sangue de Viper. Ele não gostava da idéia de que o Lu estivesse escondendo algo dele. E algo que dava muito prazer aquele monstro.

— O seu mestre é assim tão covarde que se esconde nas sombras?

— Se deseja respostas, deve primeiro me derrotar. Viper levantou a espada.

— Isso pode ser feito.

Os olhos da fera se estreitaram perigosamente.

— Idiota. Eu pegarei a shalott de qualquer jeito. Nenhum pedaço de aço vai me deter.

Para provar que isso era verdade, a cabeça se lançou à frente, os dentes se fechando no braço de Viper antes que ele pudesse afastá-lo.

Mordendo os lábios de dor, Viper enfiou a espada na garganta do demônio. Ouviu-se um gemido de dor vindo do monstro, que recuou a cabeça o suficiente para que Viper se colocasse em uma nova posição.

— Talvez o aço não possa detê-lo, mas há algumas forças que nem mesmo um Lu pode vencer.

Apontando a espada em direção ao chão, Viper ignorou o sangue que escorria de seu braço e concentrou toda sua força na rica terra que tinha debaixo dos pés. Não sabia mágica nem feitiço algum. Mas sabia como tirar poder dos elementos naturais.

A força de seu pensamento fez a terra começar a se mo­vimentar. O túnel tremeu, e parte de suas paredes começou a ruir.

— Pare com isso. Não adianta lançar mão desses tru­ques de vampiro - o demônio gritou, a língua serpenteando para fora de sua boca horrível.

— Diferentemente de você, sou meu próprio senhor, e não recebo ordens de nenhum demônio - Viper retrucou.

— Imbecil!

A criatura lançou a cabeça à frente. Tentou pegar nova­mente parte do corpo de Viper, porém, desta vez, ele estava prevenido.

A terra se movia, mas não suficientemente rápido, Viper pensou. Estava usando o poder que os vampiros tinham de enterrar suas vítimas depois que já haviam se alimentado. Os corpos nunca eram deixados expostos.

Infelizmente, nos tempos atuais, a maioria dos vampiros preferia sangue sintético a caçarem suas presas e, assim, suas habilidades não tinham tanta força como nos tempos antigos. Sem mencionar que ele nunca tentara enterrar uma criatura tão grande quanto um Lu.

A fera continuava lançando a cabeça à frente, e Viper escapou seguidamente, enquanto a terra se movimentava sob seus pés.

— Vai morrer - o demônio rugiu, tentando caçá-lo.

— Nenhum de nós precisa morrer - ele falou, manten­do o demônio concentrado nele, enquanto via o silencioso gárgula recostado à parede. Se conseguisse encurralar a criatura, poderiam sobreviver.

— Diga-me o que quer com a shalott, e poderemos entrar em um acordo.

— Eu já lhe disse que vai precisar me derrotar se quiser respostas, e não corro o risco de ser vencido. - A cabeça do dragão investiu mais uma vez, mesmo estando com a espa­da enterrada no olho. Quando descobriu que o chão o engo­lia, ele urrou, frustrado.

— Vai morrer por causa disso!

— Diga-me o que quer com a shalott - Viper ordenou, levantando a espada e se preparando para destruir o outro olho da fera.

Foi quando o Lu projetou a cabeça para o alto e se chocou com o teto, que começou a vir abaixo. O demônio abaixou a cabeça e tornou a batê-la contra a pedra.

Ao ver surgir um sinal do amanhecer, Levet gritou, alar­mado. O monstro queria que o teto terminasse de ruir para que a claridade fizesse o serviço por ele.

— Levet! - Viper alertou o gárgula. Este não seria aniquilado pela luz do sol, mas voltaria à sua forma de estátua. Poderia ficar indefeso se o Lu decidisse levá-lo embora, contudo.

Estranhamente, porém, o pequeno demônio não lhe prestou atenção. Estava murmurando alguma coisa.

Viper abriu a boca para alertá-lo de novo, mas Levet le­vantou os braços e gritou:

— Que venha a noite!

As palavras mal foram ouvidas, já que o som do teto ruindo sobre o monstro era mais alto.

Mas não houve erro. Uma nuvem escura pareceu envol­ver o lugar.

Viper ficou boquiaberto, as mãos segurando firme a es­pada, ainda sem saber se a nuvem negra era uma bênção ou uma maldição.

Não distante, ouviu Levet soltar um grito de triunfo.

— Funcionou. - Suas asas se agitaram, excitadas.

— Pelas graças dos demônios, funcionou!

 

                         Capítulo III

Shay se surpreendeu ao ver que conseguira chegar viva à casa de leilão. Foi direto aonde escondera uma sacola com poções mágicas, e voltou ao Porsche de Viper para a maldita viagem de volta à casa dele.

Ela cortou caminho pelos campos e, por fim, entrou na garagem.

Um tremor quase a impossibilitou de andar quando viu os estragos na área. Aquilo só podia ter sido feito por uma força desconhecida, mas não foi só o estrago geral que fez com que seu san­gue gelasse. Mesmo à distância, podia ver que o túnel viera abaixo, e a luz da manhã chegava lá dentro.

Um vampiro não resistia à luz!

Recusando-se a entrar em pânico, abriu a bolsa e entrou pela estreita passagem.

Não sabia bem o que esperava encontrar, mas não era a nuvem escura cobrindo a área.

— Levet? - chamou baixinho. — Viper?

Algo soou na escuridão. Aparentemente, alguém conse­guira acender uma luz, talvez uma vela.

Não, não era nem remotamente uma vela acesa.

Horrorizada, Shay identificou um enorme demônio com olhos escarlate. Nunca vira algo assim antes. E não queria ver isso de novo se tivesse escolha.

O sorriso do monstro era de triunfo.

— A shalott - falou a besta.

Paralisada diante do olhar da criatura, Shay levou um longo tempo para ouvir a voz furiosa e fria que veio de um canto da escuridão.

— Droga, Shay, eu disse que fosse embora! Saia daqui! Ela riu sem vontade. Será que todos os vampiros eram ingratos, ou Viper seria uma exceção?

O demônio parado diante dela deu uma risada que ecoou pelo túnel.

— Não há lugar algum onde possa se esconder, shalott. Mas venha para mim e eu pouparei a vida desses dois - a criatura prometeu com voz sibilante.

Shay engoliu em seco, enquanto seus dedos procuravam pelos potes de cerâmica dentro da bolsa.

— Estou indo.

— Shay! - Havia uma ponta de pânico na voz macia de Viper.

— O Lu está preso, mas não posso segurá-lo por muito tempo. Caia fora daqui!

— Faça o que ele está lhe mandando - Levet reforçou.

— Não pode vencer a besta.

A criatura sibilou na direção do gárgula.

— Não sou seu inimigo, shalott. Preciso apenas levá-la ao meu senhor. - A voz do Lu ganhou alguma emoção.

— Um senhor que não gosta de ser desapontado...

Shay deu um passo à frente. Não que quisesse ser mordi­da por aqueles dentes afiados, mas tinha de estar suficien­temente perto para usar as armas que trouxera.

— Quem é esse seu misterioso senhor? - perguntou, mais para manter o Lu distraído do que para descobrir a verdade.

Tinha prioridades. Como sair dali viva, e se preocupar com quem a queria assim, tão desesperadamente.

— Um poderoso amigo, ou um inimigo mortal - respon­deu o monstro.

— A escolha é sua.

— Você ainda não me deu um nome.

— É proibido pronunciar o nome dele, mas lhe asseguro que eu não lhe farei mal algum.

Shay revirou os olhos.

— De alguma forma, acho isso muito difícil de acreditar.

— Tem minha promessa de que a levarei intacta ao meu senhor. Isso a satisfaz?

— Depende do que vai me acontecer depois que chegar­mos a esse seu senhor. - Shay se aproximou mais um pou­co.

— O que ele quer de mim?

— Essa é uma pergunta que só ele deverá responder.

— Não está me inspirando confiança.

Os olhos vermelhos brilharam como fogo. Ou pelo menos um deles fez isso. O outro sangrava com uma adaga que, na certa, Viper enterrara nele.

— Não preciso que confie em mim. Vai acabar indo comi­go querendo ou não... Não tem alternativa.

Shay sentiu que Viper estava por detrás do demônio, mas não ousou desviar os olhos da poderosa boca, agora perto demais. Não tinha idéia se seu plano daria certo, e parecia sábio estar preparada para recuar.

Afinal, gostava de sua cabeça exatamente onde ela estava.

— Na verdade... - murmurou, tirando o pote de cerâmi­ca da bolsa.

— Eu tenho outra opção.

— Shay, não!

As palavras de Viper chegaram com atraso. Shay já lan­çara o pote, que caíra na boca do demônio.

O Lu agora rugia de dor.

Por um momento, Shay ficou sem enxergar devido ao brilho inesperado da poção mágica explodindo dentro da fera, que acabou sendo jogada longe e bateu a cabeça contra a parede.

Mas não foi nada fatal.

Horrorizada, ela viu Viper saltando e se colocando entre ela e os dentes afiados do monstro. O Lu atacou instanta­neamente, e Viper enfiou a espada em sua garganta.

Shay buscou dentro da bolsa o segundo pote. Tinha de fazer alguma coisa antes que o demônio exterminasse o vampiro.

O Lu uivou de dor quando ela usou as espadas para atin­gir as ondulações de sua cauda.

— O que está acontecendo? - ela gritou.

Viper usava todos os músculos para forçar a entrada da espada no corpo da besta.

— A poção que você jogou nele o enfraqueceu.

O Lu rugiu, enfurecido, e buscou alcançar o braço de Shay. O segundo pote, porém, foi arremessado, e caiu em cima das feridas sangrentas.

Desta vez Shay estava preparada para o brilho da explo­são e cobriu os olhos.

Tentou ignorar os gritos de dor da fera. Podia ser uma shalott, mas era humana o suficiente para sentir pena do demônio agonizante.

Pegou a última de suas poções e se preparou para lançá-la.

— Espere, Shay! - Viper gritou, enquanto enfiava a es­pada no cérebro do demônio. Com um gemido, o Lu despen­cou no chão.

— Não pode deixá-lo desse jeito! - ela exclamou, en­quanto observava a besta contorcer-se em meio a um lago de sangue.

— Ele fez uma barganha comigo.

O olho do mostro se abriu levemente.

— Não faço barganhas com vampiros.

Viper revirou a ponta da espada enterrada na cabeça do Lu, de onde começou a brotar um líquido escuro.

— Você disse que, se eu pudesse derrotá-lo, responderia às minhas perguntas. - Viper continuou a tortura.

— Você foi derrotado. Não honra a sua promessa?

Por um momento, o ar se encheu dos grunhidos da fera. Por fim, o Lu suspirou profundamente.

— Pergunte.

— O que seu senhor quer da shalott?

— O sangue dela.

Shay estremeceu. Todo demônio do mundo queria testar seu sangue por uma razão ou outra.

— Quem é ele?

— Eu já lhe disse, estou proibido de dizer o nome dele.

— Onde eu o encontrarei?

— Ele estava em Chicago, mas sinto que tenha viajado para mais longe. Não sei onde está agora.

Viper soltou um grunhido, as mãos segurando a espada com firmeza.

— Você não me deu respostas.

O Lu soltou uma risada perturbadora.

— Isso porque não faz as perguntas certas, vampiro.

— E quais são as perguntas certas?

— Não espera mesmo que eu torne as coisas tão fáceis para você...

— Você disse que seu senhor me quer pelo meu sangue — Shay confrontou o demônio.

— Ele pretende vendê-lo ou usá-lo em si mesmo?

O monstro voltou o olhar na direção de Shay.

— Você é um meio para chegar a um fim.

Era por isso que o Lu havia concordado em responder as perguntas. Não estava revelando nada.

— Ele está com Evor?

Um sorriso surgiu na expressão da fera agonizante.

— O troll está vivo e bem. Por hora. Shay arregalou os olhos.

— O que quer dizer com isso?

— Se deseja uma resposta às suas perguntas, volte a atenção ao feitiço que a prende ao troll. - Um som horrível veio da garganta do demônio.

— Cumpri minha promessa, maldito vampiro, agora acabe de vez comigo.

Viper voltou-se para Shay deixando para ela a decisão.

Não havia dúvida de que ela ainda tinha muitas pergun­tas a fazer. Algumas o demônio poderia responder... Mas não queria continuar com aquilo. Não era de seu feitio se regozijar com o sofrimento de criatura alguma.

Engolindo em seco, ela fez um sinal com a cabeça.

Levantando a espada, Viper desferiu um golpe tão forte, que cortou fora a cabeça do Lu. Também ele parecia querer o fim do sofrimento do demônio.

Não se ouviu som algum para indicar que o Lu estives­se morto, mas, repentinamente, o corpo da fera começou a se desfazer.

Um pesado silêncio desceu quando a escuridão se tornou completa. O demônio estava morto, mas Shay não se sentia aliviada.

Havia ainda alguma coisa lá fora que queria seu sangue.

A única pergunta era: como essa coisa pretendia caçá-la em seguida?

Perdida em pensamentos, ela se surpreendeu quando al­guém lhe puxou o roupão.

— Levet?

— Ah, se lembrou do pobre gárgula forçado a lutar con­tra cães do inferno e demônios, e que ainda conseguiu ser bem-sucedido com esse magnífico feitiço da escuridão?

Uma parte da tensão que ela sentia, sumiu.

— Foi um magnífico realmente, Levet. Mas, caso não te­nha notado, estive bastante ocupada.

— Oui, oui... Mas o demônio está morto. Agora, será que podemos comentar nosso delicioso trabalho em algum outro lugar onde o teto não ruiu e onde seu maravilhoso vampiro não acabe se dando mal?

Usando nada mais do que cuecas de seda preta, Viper procurou uma posição mais confortável na cama que ocu­pava um grande espaço em seu esconderijo. Ao lado dele, Shay descansava, os lindos cabelos espalhados no traves­seiro de cetim.

Incapaz de resistir à tentação, ele permitiu que seus de­dos tocassem aquela preciosidade.

Sabia que deveria estar descansando. Depois da morte do Lu, havia levado horas para conseguir reunir os criados humanos e colocá-los atentos ao que acontecia nos arredo­res da casa. Entrara em contato com seu clã para avisá-los de que também deveriam ficar em alerta máximo. Não acreditava que o misterioso senhor pudesse lançar um ataque tão de imediato, mas estava determinado a não ser pego de surpresa.

Somente quando se dera por satisfeito, é que levara Shay ao seu abrigo e se permitira o luxo de dormir. Um sono que, entretanto, foi bem perturbado por ter a seu lado um corpo tentador e um perfume inebriante impregnando o ar.

Tomou consciência de que aquela era a primeira vez que acordava tendo uma mulher em seus braços.

Um vampiro raramente ligava sexo a um relacionamen­to e, apesar de viverem em clãs, não constituíam família enquanto não encontrasse sua alma gêmea.

Saboreando a sensação do roçar dos cabelos acetinados em seus dedos, Viper escondeu um sorriso.

Deus, ela era incrivelmente magnífica. Uma criatura di­fícil, mas magnífica.

Shay abriu os olhos.

— Alguma coisa errada?

— Não. Estou apenas olhando você.

Ela se moveu sem jeito nos lençóis de cetim. Ele havia descoberto o quanto ela era tímida no que se referia à inti­midade. Como se tivesse pouca experiência com o desejo.

— Que horas são?

— Nem quatro. - Puxou os lençóis, descobrindo o corpo de Shay.

— Seus ferimentos doem?

— Não. - Ela estremeceu quando Viper começou a aca­riciar as marcas vermelhas em sua pele.

— O que está fazendo?

— Assegurando-me de que estão curadas.

— Não precisa tocar em minha perna para ver que ela está bem.

Viper riu, os dedos continuando a brincar na parte de trás do joelho dela.

— Sei disso, mas é mais divertido do que apenas olhar. As feições de Shay deixaram claro que ela desaprovava seu comportamento, mas Viper não deixou de perceber que ela estremecera com as carícias.

— Onde está Levet? Ele torceu o nariz.

— Ainda em sua forma de estátua, graças a Deus. Shay sentou-se na cama e o fitou, aborrecida.

— Você é mesmo um ingrato. Levet lhe salvou a vida. Viper deu de ombros, mais interessado na pele acetinada que tinha sob os dedos do que no gárgula adormecido.

— Isso não significa que ele não faça até um santo per­der a paciência. Já encontrei piratas bêbados que tinham línguas menos ferinas.

Shay acabou rindo.

— Ele é terrível às vezes.

— Como arsênico?

— Eu devia ter deixado que você virasse uma torrada - ela resmungou.

Viper estreitou o olhar.

— Por que voltou, Shay? Ela abaixou os olhos.

— Não pude abandonar Levet.

— O Lu não teria ferido o gárgula.

— Não tinha certeza disso.

Viper aproximou mais o corpo, a ponto de sentir na pele o pulsar do coração de sua shalott.

Sentiu uma vontade alucinante de beber o seu sangue. Felizmente, tivera séculos para aprender a controlar a sua fome. E para aprender a apreciar a lição de que quanto mais difícil a presa a ser capturada, mais satisfação alcan­çava seu caçador.

— Tente de novo - ele murmurou. Shay umedeceu os lábios.

— Não gosto da idéia de nenhum demônio me perseguin­do. Pereceu-me mais sensato enfrentá-lo do que ficar me esquivando.

Ele pressionou com o seu o corpo de Shay.

— Muito lógico. - Seus dedos continuaram acariciando a pele macia.

— Penso que já se assegurou que minha perna está cura­da. - O protesto não soou convincente.

— Prefiro um exame mais minucioso.

— Viper...

— Você voltou para me salvar? - ele insistiu, sério.

— Não, eu...

— Por que é tão difícil admitir que não queria que eu morresse?

Ela gemeu quando as mãos de Viper abriram o cinto do roupão, revelando sua beleza escondida.

— Pare com isso.

Viper acariciou quase com reverência a suave curva do estômago de Shay.

— É tão macia... tão quente. Eu tinha me esquecido da beleza das shalotts.

A expressão do rosto de Shay mostrou uma amargura.

— Sou uma aberração, lembra-se?

— Não me esqueço de nada sobre você, e posso jurar que seu sangue humano não a torna menos adorável. - Ele des­lizou os olhos por seu corpo deliberadamente.

— Na verda­de, acrescenta o charme de um toque de fragilidade.

— Não sou adorável.

Viper sentiu o coração ser invadido por um sentimento de ternura. Algo que não lhe era familiar. Pelo sangue dos jus­tos, aquela mulher podia fazer os anjos chorarem de inveja.

— Olhe para mim - ordenou, esperando que ela abrisse os olhos.

— Pensa que é somente o sangue das shalotts que alucina os vampiros? É sua extraordinária beleza que os cativa em primeiro lugar.

Shay sacudiu a cabeça. Ela não acreditava nas palavras de Viper.

— O que quer de mim?

— Quero sentir suas mãos em mim. Ela estremeceu.

— Viper, nós deveríamos...

— Por favor, Shay, quero apenas sentir o seu toque. É tudo o que lhe peço.

Por um longo e tenso momento, Viper teve quase certeza de que ela negaria o seu pedido. Então, lentamente, Shay começou a deslizar os dedos por seu peito nu.

— Não pare - ele pediu suavemente, fechando os olhos com um misto de prazer e preocupação. Ele, Viper, um vam­piro chefe de clã e um temido predador, implorando pelo toque de uma mulher. Inacreditável.

Shay continuou as carícias, e seus dedos finalmente to­caram-lhe o mamilo. Viper sentiu-se estremecer.

— Não sabia que os vampiros gostavam dessas coisas - ela murmurou.

— Não sei sobre os outros, mas eu gosto.

— Gosta disso?

Ela começou a lamber o mamilo e Viper gemeu. O prazer atingiu seu corpo por inteiro, aumentando sua ereção e o deixando preocupado pela primeira vez em séculos de que poderia chegar ao clímax antes de possuí-la. Acariciou os sedosos cabelos de sua shalott. Queria que ela continuasse a tocá-lo e ela o fez. Mesmo com os olhos fechados, Viper percebeu que ela decidira ir mais longe, ou­sar mais. Soltou um grunhido quando ela enfiou os dedos dentro da cueca.

— O quê? - ela sussurrou, claramente desfrutando o momento em que o levava quase à loucura.

— Está tentando me torturar? - ele exigiu, ofegante, cobrindo a mão de Shay com a sua e apertando-a contra sua ereção.

— Ou simplesmente quer que eu implore?

— Gosto de ambas as idéias - ela retrucou, maliciosa. O riso de Viper terminou em novo suspiro.

O que ela fazia não era produto de sua experiência. Shay estava descobrindo por si mesma como lhe arrancar gemidos da garganta. E ele nunca precisara lutar tanto para não ejacular.

Enterrou o rosto nos cabelos dela, tomando o cuidado de não tocá-la com os caninos. Não queria que ela se lembrasse de que estava ao lado de um temido vampiro. Não agora. Nada podia estragar aquele momento...

A não ser uma batida insistente na porta de carvalho.

— Shay! - A voz irritante de Levet flutuou no ar.

— Pretende ficar na cama o dia inteiro? Estou morto de fome.

Viper ficou imóvel, mas ela saiu da cama. Pegou o rou­pão e o vestiu, apressada. O clima estava definitivamente quebrado.

Praguejando, Viper esmurrou o colchão.

— Eu ainda vou exterminar esse... essa coisa!

Shay estava sentada à mesa da cozinha com Levet, sabo­reando o último pedaço de torta de maçã. Não que estivesse com fome. Graças à governanta de Viper, ela havia desco­berto a cozinha repleta de comida. Tinha experimentado um pouco de tudo.

Porém tinha o hábito de comer sempre que alguma coisa a perturbava. Especialmente se essa coisa era um vampiro de olhos negros, que agitava todos os seus hormônios com um mero olhar.

Meu Deus, ele a atraía demais. Queria senti-lo estremecer sob as carícias dela, ouvi-lo gemer de prazer, guiá-lo para que, juntos, pudessem chegar ao paraíso.

E pior: ela não podia se convencer que isso não acontece­ria novamente. Ou que não quisesse que isso se repetisse.

Mastigou mais um pedaço de torta. Felizmente, as shalotts não precisavam se preocupar com o peso.

Em contraste, Viper não comia nada. Havia tomado sua garrafa de sangue, e começara a ir de um lado para o outro, agitando a casa inteira, assegurando-se de que os guardas continuavam em seus postos, e chamando pessoal especia­lizado para começarem a refazer os túneis. Circulava pela casa usando calças justas de veludo preto, o que o deixava ainda mais másculo.

— Não sei por que esse vampiro não sossega - Levet re­clamou, comendo o seu quarto pedaço de bife.

— Graças a mim não virou uma pilha de pó. E foi sua mágica que derrotou o Lu, Shay. Ele deveria estar nos agradecendo de joelhos.

Shay suspirou levemente enquanto empurrava para o lado o prato vazio.

— Não o pressione, Levet.

Alguma coisa no tom da voz de Shay alertou o gárgula.

— Cherie, exatamente o que eu interrompi há pouco?

— Levet, pare de falar francês. Está nos Estados Unidos desde a revolução. Fala inglês melhor do que eu.

— Inglês... Bah! Uma língua tão boba. Não há romance, nenhuma beleza. Apenas sons horríveis que ferem os meus delicados ouvidos.

Shay riu consigo. Interessante como aquele ridículo gárgula tinha se tornado parte importante de sua vida. Não conseguia nem pensar que ele poderia ser ferido por sua causa.

— Se não gosta dos Estados Unidos, por que continua aqui? Por que não volta à França?

Um tremor agitou o pequeno corpo.

— Quer dizer que devo voltar aos amorosos braços de minha família? Sacrebleu, eu não sobreviveria a isso. O que ouvi, foi que meus irmãos estavam determinados a enfiar minha cabeça em um pilar.

— E eu, que a maior parte dos meus ancestrais foi de assassinos sanguinários, os quais, frequentemente, guarda­vam as peles de suas vítimas como troféus.

— Que charme.

Ela ajeitou a trança ainda úmida da água do banho.

— Há lugares além da França que você poderia visitar. Ouvi dizer que a Itália é um país lindo.

O gárgula a olhou com curiosidade.

— Está tentando se livrar de mim?

Shay hesitou, procurando encontrar alguma forma de não magoar o amigo. Droga, nunca conseguia mentir.

— Levet, nós dois sabemos que não é seguro ficar à mi­nha volta.

Ele pareceu ofendido.

— Julga-me um covarde capaz de fugir do perigo?

— Nunca o achei um covarde, mas considero estupidez se colocar em perigo quando não há necessidade disso.

Levet abaixou a cabeça para terminar de comer o seu bife. E, claro, para esconder a própria decepção.

— Não tenho nada melhor para fazer no momento. Posso ficar e protegê-la enquanto espero por algo mais interessante.

Shay sentiu-se ridiculamente emocionada. O gárgula se importava com ela.

Ao perceber uma presença sombria na cozinha, Levet revirou os olhos.

— Lá vou eu de novamente! - exclamou, afastando-se rapidamente.

Viper era bonito, mas, às vezes, extremamente aborrecido. Shay endireitou o corpo.

— O quer de mim?

— O que quero de você? - Por um momento, ele conti­nuou a fitá-la e um sorriso surgiu em seus lábios, enquanto ele se aproximava perigosamente.

Shay entrou em alerta. Precisava manter aquele vampi­ro à distância.

— Não ouse chegar mais perto. Ele caiu na risada.

— Sabe que é melhor não me desafiar... - É claro que ele deu um passo à frente. E outro mais.

Shay permitiu que o instinto falasse mais alto. Quando ele começou a tocar em seu rosto, agarrou-o pelo braço e o jogou no chão, colocando-se sobre ele.

Tudo acontecera com tanta facilidade, que ela mesma começou a desconfiar de sua destreza. Viper não reagira.

Sua suspeita se confirmou quando ela o encarou.

— E agora? O que pretende fazer comigo? - ele mur­murou suavemente, as mãos pousando, lascivas, em seus quadris.

Nada que ela deveria querer, pensou, agoniada.

Felizmente, o tecido do jeans era grosso. Não tinha cer­teza do que aconteceria se Viper tocasse novamente sua pele nua.

— Não me tente.

— Mas é isso, precisamente, o que quero fazer. Não se sente tentada, também?

— A enfiar uma estaca em seu coração.

— Antes ou depois de gritar de prazer?

— Não temos tempo para essa bobagem - resmungou, mas não reagiu quando Viper a puxou para si e a beijou apaixonadamente.

Um beijo que fez a cabeça dela girar antes que ele a lar­gasse, suspirando profundamente.

— Infelizmente você está certa. Nós temos de armar nos­sos planos.

— Nós?

— Gostando ou não, você ainda pertence a mim.

Shay pensou em argumentar, mas percebeu que Viper queria apenas distraí-la. A questão era uma só: por quê?

— Não pode estar pensando seriamente em me manter por perto. Quase foi morto. Por que iria querer ficar com alguém que coloca sua vida em perigo?

Ele deu de ombros.

— Quebra a monotonia de meus dias. Faz um bom tem­po que ninguém tenta me matar.

Shay comprimiu os lábios. Parecia a desculpa de Levet.

— Não acredito em você. Por que não quebra o amuleto e se livra de mim?

— Costumo tomar conta daquilo que me pertence. Bem, não adiantava muito discutir.

— Que planos tem em mente?

— E óbvio que não podemos simplesmente nos esconder - ele murmurou.

— Precisamos decidir como conseguire­mos mantê-la em segurança.

— O Lu falou algo sobre minha praga. - Shay franziu a testa.

— O que quis dizer com isso?

— Eu não tenho a menor idéia. O que você sabe sobre a sua maldição?

— Nada.

— Deve saber alguma coisa. Shay balançou a cabeça, negando.

— Eu era muito criança. Tenho uma vaga lembrança de es­tar em uma caverna escura e sentir uma dor forte no ombro.

— No ombro?

Shay suspirou profundamente, e abaixou o ombro da camiseta que usava. Apontou a marca que tinha gravada na pele, preparada para sentir os dedos dele circulando os estranhos símbolos. Havia tentado descobrir o que signifi­cavam, mas não chegara à resposta alguma.

Viper parecia fascinado.

— Estava sozinha na caverna?

Shay estremeceu. Não se lembrava bem do episódio. Apenas de alguns flashes que surgiam em seus sonhos e a faziam acordar, gritando de medo.

— Não, mas estava muito escuro para ver quem estava lá.

— Esses símbolos me são familiares.

Shay arregalou os olhos, chocada.

— Você os reconhece?

— Não consigo interpretá-los, mas sei que são runas de bruxas.

— Eu já vi runas de bruxas. Quando estive na caverna de Edra.

— Edra não é uma bruxa convencional. Usa sacrifícios à base de sangue para aumentar o seu próprio poder.

Shay sacudiu a cabeça. As palavras de Viper não faziam sentido.

— Por que uma bruxa colocaria um feitiço em mim?

— Essa é a pergunta. Penso que devemos encontrar alguém que nos diga precisamente o que está envolvido nes­te feitiço em particular. Podem nos dar alguma pista.

— Bruxas. - Shay cruzou os braços.

— Droga! Viper sorriu.

— Também não gosto de bruxas, mas sei que nem todas são como Edra.

Shay tinha passado tempo demais no meio daquelas cria­turas. Mais do que o suficiente para desejar não ter nunca mais de cruzar com uma.

— Devemos ir procurá-las?

— Em primeiro lugar, quero falar com alguém que co­nheço. Ela pode nos dar a informação de que precisamos.

— Vai falar com uma bruxa? - Shay franziu o cenho.

— Enquanto eu estiver escondida em algum buraco, tremendo de medo? Já lhe disse que não quero ser tratada como uma idiota indefesa.

Viper abriu um enorme sorriso.

— Sei muito bem o quanto é guerreira.

— Não ouse me engabelar - ela reclamou.

Percebendo que pisava em solo perigoso, Viper ficou sério.

— Shay, não sabemos quem está atrás de você, ou quem foi encarregado de ajudar essa criatura. Não vou levá-la a caverna alguma onde podemos acabar enfeitiçados. Não se trata de uma batalha em que não quero que participe, ape­nas vou tentar obter informações.

Soava extremamente sensato.

Mas Shay não queria ser sensata. Queria enfrentar desafios e descobrir a verdade. De preferência pela força. Certamente não era do tipo que se escondia e esperava que alguém mais resolvesse seus problemas.

— E se o aprisionarem?

— Você aparece e me salva - ele prometeu, sorrindo.

— Tem certeza de que eu faria isso?

— Se eu for morto, você será forçada a voltar para Evor e quem quer que esteja com ele.

Shay escondeu o arrepio que lhe percorreu a espinha.

— O Lu disse que Evor estava vivo e bem.

— Vivo e bem, mas por quanto tempo? Dessa vez, ela não conseguiu disfarçar o medo.

— Nem me fale sobre isso.

Os braços dele a envolveram, e Shay encostou o rosto em seu peito. Devia ter protestado, mas aquilo era tão bom, tão reconfortante.

— Eu a protegerei, Shay. Prometo.

A casa situada em um bairro elegante, ao norte de Chicago, era um monumento ao consumismo. Havia de tudo ali, especialmente artigos raros e caríssimos.

Ainda assim, Shay descobriu que, com toda aquela gran­deza, a mansão mantinha um ar acolhedor.

Talvez porque ali morasse uma pessoa como Abby.

Naquele momento, esta usava jeans e camiseta, e sorria, feliz, mostrando a Shay a enorme biblioteca do marido.

— Meu Deus, que maravilha! Havia estantes forrando as paredes.

— Acredite em mim, se pudesse, Dante entupiria a casa inteira com livros.

Shay aproximou-se de uma das prateleiras, sentindo o cheiro de couro antigo. Aquilo era um pedacinho do paraíso.

— Ele deve estar colecionando livros há muito tempo - murmurou, perplexa.

— Há séculos. Literalmente.

Shay não se sentia completamente à vontade. Tinha passado anos sendo uma escrava e não sabia se comportar como uma visita.

— Está com medo de mim porque sou a Fênix? - Abby perguntou de repente.

Shay torceu as mãos, embaraçada por seu comporta­mento ser tão óbvio.

— Eu... Viper não devia tê-la obrigado a me receber.

— Obrigado a receber você? - Abby segurou as mãos de Shay.

— Certamente Viper lhe contou que mandei Dante con­vidá-la para vir aqui. Estava ansiosa por conhecê-la melhor.

Shay estreitou os olhos, confusa.

— Por quê?

— Por mais que eu adore Dante, sinto falta da compa­nhia de outra mulher.

— Mas você deve ter amigas. Abby suspirou profundamente.

— Na verdade, não. Pensou que, por eu ser uma deusa, as pessoas iriam querer estar comigo? Para ser honesta, nunca tive uma amiga de verdade.

A ansiedade que Shay sentia desapareceu. Abby deu um passo para trás e a fitou atentamente.

— Bom Deus, agora eu entendo por que Viper parece iluminado desde que a conheceu.

— O quê?

— Você é linda... Mas claro que sabe disso. Shay bufou, incrédula.

— Já se olhou no espelho? - insistiu a Fênix. Ela torceu as mãos nervosamente.

— Sou metade demônio.

— E Viper e Dante inteiramente demônios. Vai me dizer que não os acha lindos?

Bem, quanto à beleza dos dois vampiros não havia o que discutir.

— Dante é muito bonito - ela admitiu por fim. Abby arqueou a sobrancelha.

— E quanto a Viper?

— Ele me deixa quase louca.

— Sabia que eu fiquei furiosa quando descobri que Viper a havia comprado em um leilão de escravos? Não podia acre­ditar que tivesse feito isso. Justamente ele, que foi sempre contra a escravidão. Mas agora penso que ele a comprou para lhe salvar a vida.

— Bem, certamente há bondade no coração dele. - Shay sentiu-se obrigada a reconhecer.

— Mas continua sendo um vampiro. - Abby riu.

— Aposto que ele ficou interessado em você quando a viu pela primeira vez, e se pôs a procurá-la.

Shay estremeceu.

— Sou a última das shalotts. Os vampiros vêm me ca­çando desde o começo dos tempos.

— Isso pode ser verdade, mas não me parece que tenha sofrido muitos abusos por parte de Viper.

Shay poderia ter mentido, e afirmado que, sendo metade demônio, tinha a capacidade de se recuperar rapidamente. Mas isso seria injusto. Viper a tratara com uma ternura inesperada. E mesmo que não confiasse nele inteiramente, poderia apostar que não a submeteria a algo que ela não quisesse.

— Ele fez... certas promessas - admitiu a contragosto.

— Verdade?

Antes que pudesse contar alguma coisa, a porta da bi­blioteca se abriu e Dante entrou.

— Lamento interromper, mas Viper acaba de voltar. Shay sentiu uma dor no peito. Ter voltado tão depressa significava que não conseguira informação alguma.

— Já voltou?

Dante fitou as duas, enigmático.

— E trouxe consigo uma bruxa. Desta vez foi Abby quem estremeceu.

— Ele trouxe uma bruxa para esta casa? Dante deu de ombros.

— Ele jura que ela está aqui para ajudar Shay a desco­brir a verdade sobre sua praga.

Abby levou um momento para recuperar a calma. Voltou-se então para Shay.

— Quer conversar com a bruxa?

Shay umedeceu os lábios secos. Entendia a razão da aversão de Abby. Nada como uma experiência de quase-morte para unir as pessoas.

Ainda assim, Viper fizera o que era preciso.

— Suponho que eu deva conversar com ela.

Como se sentisse o esforço de Shay em dizer as palavras, Abby apertou-lhe as mãos.

— Não se preocupe. Estaremos com você.

Styx estava esperando na caverna mais funda, quando Damocles surgiu na escuridão e se dirigiu ao poço de magia. Sentiu a raiva habitual ao ver o duende. Mesmo ali, no meio das rochas e do chão cheio de limbo, o idiota estava vestido com um rico traje de veludo bordado com fios de ouro. Os cabelos estavam enfeitados com folhas ridículas. Porém, era mais do que essa frivolidade do avejão que irritava Styx. O demônio tinha trazido somente desgraça e pesar à comunidade.

Se tivesse sido sábio o suficiente no primeiro momento em que o duende aparecera! Infelizmente, ele subestimara a influência que aquela criatura teria sobre seu senhor.

Esperou até que Damocles se aproximasse, então saiu das sombras e lhe bloqueou a passagem.

— Falhou novamente, duende - disse em uma voz fria como gelo.

— Não temos a shalott, e até o patético troll con­seguiu escapar.

O abantesma não se perturbou, e inclinou-se com falso respeito diante do vampiro.

— Falhei? Que palavra cruel. Especialmente para quem acaba de perder alguém a quem amava. - As mãos desliza­ram pelo tecido do manto.

— Não vê que estou de luto?

Styx arreganhou os dentes, exibindo os caninos. Tinha ficado furioso ao saber que Damocles acordara o Lu e o mandara para Chicago. Uma total loucura.

— Tudo o que vejo é um duende traidor, que finge dedi­cação enquanto envenena o nosso mestre às escondidas.

Damocles colocou a mão sobre o peito com uma expres­são de total inocência no rosto.

— Mas o que está dizendo?

— Pensa que não sei do líquido que faz o mestre tomar todas as noites?

— É verdade que eu misturo poções para ajudar a ame­nizar a dor do mestre. - Ele deu de ombros.

— Deveria pre­ferir observá-lo sofrer, ou talvez nem aparecer para vê-lo?

— Foram suas poções que o deixaram assim, tão fraco.

Os olhos verdes do duende brilharam. Instintivamente, Styx levou a mão debaixo do manto para pegar a adaga.

— Acusa-me de enfraquecê-lo? Tem provas disso?

— Sei que ele melhorou bastante depois... - Apesar de ser quem era, Styx relutou em continuar.

— Depois que você capturou o pai da shalott e o ofereceu em sacrifício? - Damocles terminou com um sorriso que fez Styx quase perder a calma.

Mesmo depois de tantos anos, aquela morte ainda lhe pesava na consciência.

— Sim, depois disso - ele concedeu.

— Ouvi dizer que ele matou três de seus vampiros antes que conseguissem deixá-lo desacordado e o trouxessem a esta caverna.

O desejo de enterrar os dentes no pescoço do duende e deixá-lo seco foi alucinante. Somente as ordens que recebe­ra de seu mestre o impediam de atacar aquele verme.

— Fiz somente o que meu mestre mandou. Questiona as decisões dele? Eu devia ter feito você em pedaços quando me surgiu à frente pela primeira vez.  

— Ah, culpa um mero criado dos pecados de seu mestre? É essa a sua noção de justiça?

Styx rangeu os dentes.

— Se houvesse justiça, de fato, você já teria morrido ao lado de seu mestre anterior.

— Mas agora chega. - Styx encerrou aquela discussão inú­til. O passado ficara para trás e somente o futuro interes­sava.

— Não vim ao mestre com as mãos vazias como você. E agora o convenci a me permitir que pegue pessoalmente a shalott. Logo que você me revelar onde ela está, os seus serviços não serão mais necessários.

Damocles pareceu indiferente à ameaça. Com movimentos lânguidos, passou por Styx e foi direto ao poço das magias.

— Devo confessar que estou surpreso que tenha assumi­do essa tarefa pessoalmente.

— Por quê?

— Certamente o mestre lhe contou quem está com a sha­lott?

— Se tem algo a dizer, duende, diga logo.

— Simplesmente me parece estranho que, após sua luta para preservar o sangue dos vampiros, agora esteja ansioso por derramá-lo. - Damocles moveu a mão sobre as águas e fez um gesto para Styx se aproximar.

— Veja.

O vampiro se aproximou com cautela.

Ao primeiro olhar, tudo o que pôde ver foi o rosto bron­zeado da shalott. Um rosto que se parecia muito com o do pai dela.

Não podia se deixar levar pelo remorso. O sangue dela era necessário agora.

O tremor na água chamou sua atenção e ele viu surgir um rosto familiar,

— Viper - murmurou, chocado.

— Amigo seu?

— Onde eles estão?

Com um sorriso, Damocles movimentou a mão e fez sur­gir a imagem de uma elegante mansão, que Styx reconhe­ceu de imediato.

Qualquer vampiro conhecia o endereço de Dante e Abby. Mas nenhum demônio queria cruzar o caminho da deusa.

— Eu diria que a shalott sabe quem escolher como ami­go. - O duende balançou a cabeça.

— Dois vampiros, um gárgula e a Fênix.

Styx ficou alerta.

— E quanto ao troll Evor?

— Temo que as tentativas de meus criados em descobrir seu paradeiro tenham dado em nada. Talvez ele tenha de­saparecido simplesmente.

— Acha isso divertido?

— Irônico talvez?

Styx apertou os olhos, raivoso.

— Cuidado para não engasgar com tanta ironia.

— Farei o possível.

Styx não precisava mais aguentar a presença do duende. Já sabia o paradeiro da shalott.

— Prepare suas malas enquanto eu estiver fora, Damocles. Quando eu voltar, pretendo ver você escoltado para fora daqui.

— Como queira.

Styx ignorou a tranquilidade do avejão e deixou o apo­sento. Logo Damocles seria jogado para fora do estado, ou morto por suas próprias mãos. De alguma forma, o duende não poderia mais espalhar o seu veneno. Por hora, importava apenas confrontar Viper, e convencê-lo, de alguma forma, a lhe entregar sua escrava.

Damocles esperou até ter a certeza de que o vampiro tinha deixado a caverna, soltou uma risada e abriu uma passagem secreta. Desceu cuidadosamente as escadas, sen­tindo o cheiro forte de suor e excremento. Manter um prisio­neiro era sempre um negócio desagradável, embora tivesse suas vantagens.

Chegou ao último degrau e olhou para um canto, dando com o prisioneiro de olhos vermelhos e cheios de ódio. O maldito troll continuava bem preso à parede.

— Vejo que não perdeu o apetite, Evor - Damocles mur­murou, olhando os ossos espalhados pelo chão.

— O que mais há para se fazer neste chiqueiro?

Damocles riu.

— É assim que fala destes adoráveis aposentos?

— O que quer de mim? Dinheiro? Escravos?

— Nada tão valioso... Apenas a sua vida.

Viper não se importou em esconder sua impaciência. Andando de um lado para o outro no enorme saguão, ele manteve os olhos presos na elegante escadaria de mármore.

Não que estivesse preocupado com a segurança de Shay. Havia poucos lugares onde ela ficaria mais segura do que ao lado da Fênix. Quem se atreveria a provocar a ira da deusa?

Não, sua impaciência era algo mais pessoal. Menos de uma hora se passara, e ele já sentia sua falta.

E isso era um mau sinal. Muito ruim para um vampiro que nunca tinha pensado duas vezes em uma mulher, a não ser que ela estivesse sob a proteção de seu clã.

Ouviu os passos antes que Dante, Abby e, por fim, Shay surgissem no topo da escada. Quando ela chegou ao último degrau, Viper se aproximou e a beijou nos lábios.

Shay arregalou os olhos, surpresa e embaraçada.

— Viper, por favor.

— O que foi?

— Não estamos sozinhos - ela murmurou.

Viper inclinou a cabeça e sentiu o calor de seu corpo.

— Posso dar um jeito nisso, se estiver interessada.

— Não estou - ela resmungou, mas Viper não deixou de perceber os mamilos enrijecidos.

Bom, muito bom.

— Tem certeza? - Ele a abraçou.

— Posso lhe mostrar quanta falta senti de você.

— Mas apenas se passou uma hora.

— O que posso dizer? Você me enfeitiçou. Ela olhou por cima do ombro.

— Falando em feitiço, sua amiga está se sentindo ne­gligenciada...

Com relutância, Viper a soltou.

— Trouxe Natasha para que ela examine a sua marca. Natasha podia ser bonita, mas não tanto quanto Shay. Viper levou a relutante Shay em direção à bruxa, escondendo um sorriso ao sentir o olhar que as duas trocavam.

— Deixe-me ver - Natasha falou sem rodeios.

— Aqui. - Virando-se de costas, Shay abaixou o ombro da blusa.

A bruxa se concentrou na marca, tocando-a por bastante tempo.

— Um feitiço poderoso, mas não é uma maldição. É mais um elo.

— Pode ser quebrado? - indagou Viper.

— Não sem termos junto aquele que mantém o poder sobre ela.

Ele suspirou, desanimado.

— Mas é possível pelo menos nos ajudar a descobrir quem foi o responsável pelo feitiço?

Natasha pensou um instante, depois deu de ombros.

— Posso lançar um feitiço para que rastreiem a bruxa responsável pela marca. Isso se ela não usar outra mandinga contra isso.

Shay pareceu interessada.

— De que tipo de rastreamento está falando?

— Já brincou de quente e frio?

— Não.

— Uma vez que eu tenha feito o contrafeitiço, a marca irá esquentando à medida que você se aproximar de onde está a bruxa, e esfriando quando se afastar dela. Shay mordeu os lábios.

— E quanto tempo dura esse contrafeitiço?

— Um dia, talvez dois.

Viper deu um passo à frente, e colocou o braço no ombro de Shay.

— Quer tentar?

Seus olhares se encontraram.

— Não tenho outra escolha, não é?

Ele gostaria de mentir e assegurar a ela que não preci­saria mais se preocupar. Mas ambos sabiam que, enquanto o feitiço a ligasse a Evor, ela nunca estaria em segurança. Não importava o quanto fugissem.

Balançou a cabeça com um suspiro.

— Realmente não tem.

Shay também suspirou profundamente.

— Vamos logo com isso. Viper se voltou para Natasha.

— Do que precisamos?

— Eu trouxe o necessário.

Claro que não era um processo fácil. Natasha exigiu "sentir" a casa, antes de se decidir que a cozinha possuía a melhor aura para o trabalho. Somente depois mandou que Shay se sentasse em uma cadeira, e tirou uma vela preta da bolsa.

O ritual do contrafeitiço começou.

Viper não conseguiu ficar parado, e ficou andando de um lado para o outro. Odiava a idéia de não poder fazer nada, por isso colocara Shay nas mãos daquela mulher.

Mas nenhum vampiro se sentia à vontade diante da magia. Como lutar contra algo que não se vê nem se toca?

Natasha pegou uma fita branca e a levou à chama da vela. Espalhou-se um cheiro estranho, que encheu a cozi­nha inteira enquanto a bruxa falava algumas palavras an­tes de encerrar o trabalho.

Subitamente, Shay pulou na cadeira. Viper deu um pas­so à frente, apreensivo.

— Shay, você está bem?

— Apenas um pouco tonta - ela disse, estendendo a vela para Natasha.

Viper voltou-se para a bruxa com um olhar nada amigável.

— O que você fez a ela?

— Não se preocupe, vai passar. - Natasha voltou-se para Shay.

— Consegue sentir a marca?

— Ela arde.

Natasha levantou-se com um sorriso triunfante.

— O contrafeitiço funcionou. Você pode usá-lo como uma bússola.

Viper suspirou, aliviado.

— Fez um belo trabalho. Obrigado.

A bruxa retribuiu o elogio com um sorriso convidativo.

— Estou sempre pronta para ajudá-lo...

Shay se recuperara o suficiente para enviar a Viper um olhar zangado.

Ele simplesmente escondeu o sorriso.

— Vou levá-la para casa - murmurou para Natasha. Shay levantou-se imediatamente.

— Eu vou junto. Podemos começar a tentar localizar a caverna da bruxa.

— Está bem - Viper concordou.

— Eu levarei Natasha para casa, Viper. - Dante se adiantou.

— Você e Shay podem começar sua busca.

Viper lançou um olhar de agradecimento ao amigo.

Mesmo se divertindo em ver Shay claramente com ciúmes da bruxa, estava muito mais interessado em descobrir o responsável pelo feitiço. Uma vez que Shay estivesse livre da ameaça, ele poderia desfrutar de certos prazeres.

— Vão voltar antes do amanhecer? - Abby perguntou a Viper.

— Não queremos colocá-la em perigo. A deusa sorriu com a confiança que conquistara nas últimas semanas.

— Há poucos demônios que ousariam invadir a minha casa. Não é qualquer um que deseja enfrentar a Fênix. Viper sorriu. Ele não poderia argumentar contra isso.

Shay passou a mão pelo ombro quando o carro atingiu o lado sul de Chicago. Estavam em uma área bem diferente aquela em que ficava a mansão de Abby e Dante.

Você pode usar a marca como uma bússola, Natasha ha­via dito.

Fácil falar. Não era o ombro dela que ardia.

— Pare aqui!

Viper diminuiu a velocidade de seu Jaguar preto.

— Aqui? Tem certeza?

— Sim.

— Sente alguma coisa?

— Meu ombro dói. - Olhando pela janela, Shay obser­vou as lojas por onde passavam. Era uma combinação de­pressiva de prédios abandonados, bares e lojas de artigos pornográficos. Ela saltou do carro antes mesmo de ele pa­rar.

— Conheço este lugar. Eu morava perto da esquina.

Viper estacionou e a seguiu pela rua escura.

— Parece uma velha loja.

— Sim, uma livraria. Meu pai costumava me trazer aqui. - Ela fez uma careta.

— Diabos, meu ombro está queimando.

Shay lutou para trazer de volta as lembranças. Estivera ali havia muitos anos e a vizinhança mudara muito. Ainda assim, tinha certeza de não estar enganada.

— Suponho que devemos dar uma olhada - murmurou Viper.

— Shay...

— O que foi?

— Não corra riscos. Sabe-se lá o que vamos encontrar pela frente.

— Está sentindo alguma coisa? Ele olhou em direção à loja.

— Não, e é isso que está me aborrecendo.

Ela suspirou. Aquele que a caçava poderia estar nas pro­ximidades.

Viper a tomou nos braços e a beijou nos cabelos.

Do fundo da rua chegavam sons, provavelmente de gen­te vendendo droga. E devia haver gangues por ali. Até estupradores, mas isso não era problema. Estava nos braços de um vampiro, Shay pensou.

— Podemos voltar para a casa de Dante, se quiser. Não precisamos entrar - ele murmurou ao ouvido dela.

Por um momento, ela se permitiu apoiar na força de Viper. Oh, como seria bom se pudesse se esconder, fingir que estava em segurança. Havia tanto tempo em que conta­va apenas consigo.

Então se afastou dele com determinação. Não iria se apoiar em ninguém.

— Vamos entrar. Já que nós temos de fazer isto, que seja agora.

Adentraram a loja escura. Shay olhou em volta, franzin­do o nariz com o cheiro da poeira de velhos livros. O interior era estreito, com prateleiras lotadas e outros objetos estra­nhos, difíceis de serem identificados.

Junto a uma parede, mais ao fundo, havia um balcão e outra estante com potes de cerâmica. Esta parecia sinistra debaixo das sombras.

— Parece abandonada - ela murmurou.

— De fato.

— Por que a marca me trouxe aqui?

— Não tenho certeza. Mas devemos examinar tudo. Pode haver algo que nos dê alguma dica.

Shay engoliu em seco. Não tinha vontade de ficar vascu­lhando uma loja tão suja.

Mais do que isso. Havia ali algo inquietante. Infelizmente, Viper tinha razão. A dor no ombro os tinha trazido até ali. Deveria haver alguma coisa.

Se pelo menos ela tivesse uma idéia do que fosse...

Movendo-se entre as estantes, Shay tocou nos livros: clássicos infantis e alguns de filosofia. Nenhum livro de fei­tiços.

Viper encostou-se a uma das estantes e cruzou os braços.

— Por que não me diz do que se lembra deste lugar? Ela hesitou, o olhar se dirigindo ao balcão. Era como se os fantasmas indicassem alguma coisa.

— Não me lembro de muita coisa, apenas de ficar senta­da no balcão, lendo os livros, enquanto meu pai conversava com a dona da loja. - A expressão dela suavizou. Podia sentir a mão amiga do pai quando ele a levantava para pe­gar algum livro na parte mais alta da estante.

— Os livros naquele tempo eram raros, e cada um deles representava um tesouro para mim.

— Você chegou a falar com a mulher?

Shay tentou se lembrar.

— As vezes ela me dava um doce, mas não me lembro de nenhuma conversa em particular.

— Poderia ser uma bruxa?

— É possível. Estranho ela nunca nos ter perguntado por que éramos diferentes... E havia sempre fregueses em busca dos potes. Na ocasião, pensei que fossem ape­nas enfeites.

— Poções - Viper resmungou, indo direto ao balcão.

— Provavelmente.

Surpresa, Shay viu o vampiro examinar vários potes e, por fim, começar a vasculhar a parede atrás deles.

— O que está fazendo?

Ele continuou a bater na madeira.

— Se ela era uma bruxa, devia possuir um quarto seguro onde fazia suas feitiçarias. Um lugar onde pudesse não ser interrompida. - Parou e bateu várias vezes em um mesmo lugar. Então voltou-se, sorrindo.

— Aqui está.

A estante foi se abrindo e revelando uma estreita escada à frente.

— Oh, meu Deus...

— Vamos dar uma olhada?

Shay engoliu em seco antes de concordar. Devia haver algo lá embaixo. Não tinha vontade de pisar no que estava soltando aquele cheiro.

Viper moveu-se em silêncio. Shay não era abençoada com a mesma visão dos vampiros, e acabou tropeçando al­gumas vezes antes de chegar ao fim da escada.

Felizmente, Viper conseguiu acender uma luz. Shay pis­cou e foi ajustando a vista. Em seguida, ficou horrorizada.

— Viper!

Ele a segurou pela mão, o toque frio oferecendo seguran­ça. Só então ela conseguiu voltar a respirar normalmente.

—A caverna - Viper murmurou, apontando para as pa­redes sujas e o círculo desenhado no chão.

— Aqui foi feito o seu feitiço.

— Sim, eu me lembro! Este é o lugar.

— E onde está a bruxa?

Largando a mão dele, Shay caminhou até o círculo. As lembranças ainda não eram nítidas, mas tinha certeza de que aquele era o lugar onde adquirira a marca.

Estendeu a mão e tocou na invisível parede de poder que rodeava o círculo. Gemeu baixinho. A magia que o rodeava havia sido quebrada.

Subitamente, ela avistou uma pilha de ossos a um canto.

— Acho que encontramos a bruxa... Viper se aproximou do esqueleto, cauteloso.

— Se esta for a bruxa, está morta há um bom tempo. Shay tentou olhar melhor a pilha. Sua respiração ficou presa na garganta quando notou a faca enterrada em um dos ossos.

— Foi assassinada! E por Evor. Viper voltou-se, surpreso.

— Tem certeza?

— Evor tem uma faca exatamente igual a esta. Eu a re­conheceria em qualquer lugar.

Ele se abaixou e puxou a faca.

— Isso explicaria por que Evor conseguiu o controle so­bre você.

Mas havia tantas outras perguntas sem respostas.

— Não faz sentido - murmurou Shay.

— Quando eu era jovem, a marca em minhas costas era apenas uma mancha. Eu não sabia que era uma praga até Evor passar a me domi­nar. Se foi a bruxa quem colocou o feitiço em mim, por que nunca me fez perceber que tínhamos um elo? - Ela apontou para os ossos.

— E por que não morri quando ela morreu?

Viper observou atentamente a faca que tinha nas mãos.

— A única explicação é que Evor provavelmente a forçou a lhe passar o poder que ela possuía sobre você. E o fato de nunca ter percebido o significado da marca... eu não sei.

— Droga! - Ela respirou fundo.

— E agora? Viper se levantou e mirou o teto.

— O amanhecer se aproxima. A não ser que queira passar o dia aqui, devemos voltar à casa de Dante. Retornaremos aqui amanhã, se quiser.

Ela cerrou as sobrancelhas e parou um momento, olhan­do uma pequena caixa escondida perto do esqueleto.

— O que é isso?

— Shay... Pode haver armadilhas aqui. Ela lhe dirigiu um olhar exasperado.

— Não podemos ignorar a caixa! Pode ter algo dentro que nos ajude.

— Muito bem. Mas se tentar abri-la antes que tenhamos certeza de que é seguro, eu...

— Você o quê? - Shay o enfrentou.

Um leve sorriso surgiu nos lábios de Viper.

— Quando eu pensar em algo realmente abominável, eu lhe direi o que vou fazer...

Viper ouviu os passos de Shay no corredor. Sorriu en­quanto vestia o roupão e prendia o cabelo comprido para trás com uma tira de ouro. Haviam voltado para a casa de Dante poucas horas antes, mas não acreditava que Shay viesse vo­luntariamente até seu quarto. Seria esperar demais.

Decidido a dar um tempo para alcançar seu objetivo, dei­xou o aposento em silêncio e seguiu para a biblioteca. Não receava encontrar ninguém. Dante e Abby deviam estar se distraindo na cama, enquanto Levet, que fora trazido para ali mais cedo, tinha voltado à sua forma de pedra ao ama­nhecer. Ele e Shay estavam praticamente sozinhos no casa­rão, e ter certeza disso o deixava excitado.

Entrando na biblioteca, observou-a olhando atentamen­te para a caixa da bruxa. Estremeceu quando viu que ela vestia nada mais do que uma fina camisola, a qual lhe reve­lava cada contorno do corpo. Era uma pena que os cabelos estivessem trançados. Mas isso deixava com que ficasse ex­posta a vulnerável curva de seu pescoço.

Sentiu os caninos crescerem e o corpo se excitar.

Droga. Em parte sabia que deveria voltar ao quarto. Mais não sairia dali de jeito algum. Ele e Shay tinham algo a terminar e não gostava de coisas inacabadas.

Caminhou silenciosamente e a tocou no pescoço.

— Bisbilhotando? - Sua voz soou macia como seda. Ela deu um pulo e ruborizou.

— Quer me matar de susto?

Viper permitiu que seu olhar deslizasse pelo pescoço.

— Como devo aparecer?

— Podia amarrar um sino no pescoço, não sei. Ele riu.

— Não combina com minha elegância... O que está fa­zendo aqui?

— Vim buscar um copo de água.

— Na biblioteca?

— Sempre leio antes de dormir. E isso não é de sua conta.

— Mentirosa. - Viper se aproximou ainda mais, os de­dos agora acariciando os braços macios.

— Estava tentando abrir a caixa.

Sentiu que ela estremecia sob seu toque. Mesmo assim, Shay estreitou o olhar.

— Não devia estar no seu caixão?

— Excelente observação, minha querida. Assim como você deveria estar em sua cama.

Com um movimento rápido, ele a tomou nos braços e co­meçou a levá-la para fora da biblioteca.

— Maldito! Coloque-me já no chão!

— Meu Deus, que linguagem inadequada para uma dama.

— Não sou uma dama. Sou um demônio.

— Um lindo demônio, aliás... - ele murmurou, entrando em um dos numerosos quartos de vampiro que Dante man­dara construir na mansão.

Atravessou o aposento e a largou em cima de uma enor­me cama.

— Pronto. Está satisfeita?

Esparramada em cima de lençóis de seda preta, Shay lutou para se sentar.

— Não.

— Ah... - Viper cobriu o corpo dela com o seu.

— Isto a satisfaz?

Viper suspirou, deslumbrado. A pele de Shay era tão macia, e seus olhos dourados brilhavam como ouro. Nunca vira nada tão lindo em toda a sua existência.

Ela era perfeita. Uma visão que parecia vir de seus sonhos e não da realidade.

Mantendo-a presa sob o corpo, começou a desmanchar a trança, deixando soltos os cabelos sedosos. Queria vê-los espalhados sobre os travesseiros.

— O que está fazendo?

Viper continuou a soltar os cabelos longos.

— Eu avisei que a puniria se a pegasse querendo abrir a caixa.

— Estava apenas olhando para ela!

Ele lhe lançou um daqueles olhares irresistíveis.

— Pois tenho algo mais interessante para você olhar. Como era de se esperar, Shay enrubesceu.

— Você é quem diz.

— Mas você parecia bastante interessada em mim há poucas horas...

— Estava em choque depois da luta com o Lu. Não esta­va pensando com clareza.

Viper riu e a beijou levemente nos lábios.

— E agora? Continua em choque?

Os olhos dourados escureceram com indisfarçável desejo.

— Devo estar.

— Porque me deseja?

— Sim - admitiu Shay com voz rouca.

Qualquer esperança de controle desapareceu quando ele envolveu seu rosto nas mãos e mordeu-lhe levemente o lábio.

— Tão linda... Não é de admirar que eu tenha sido enfeitiçado.

— Pensei que não gostasse de mágica.

Ele continuou a contornar com a língua a boca de Shay.

— Gosto desta mágica.

— Viper...

Não havia dúvida alguma de que ela o desejava. Os mi­lhares de anos de experiência o faziam perceber quando uma mulher queria fazer amor com ele. Podia sentir a força de seu desejo no ar. Por que ela resistia tanto?

As mãos hesitantes de Shay entreabriram o roupão que ele usava, e começaram a acariciar os músculos de seu pei­to. O toque era leve, hesitante. Mas o suficiente para que a paixão que ele já sentia chegasse às alturas.

Capturou os lábios macios em um beijo provocador.

Procurou não usar os caninos, mas estava consumido pelo desejo. Não tinha certeza se resistiria a usar as presas.

Impaciente, ele arrancou o roupão. Queria sentir o con­tato direto com a pele de Shay.

Mordeu a ponta da orelha delicada, murmurando pala­vras suaves enquanto a despia.

— Preciso sentir você junto a mim.

A respiração dela se alterou quando os dedos de Viper en­volveram seu seio e começaram a lhe massagear o mamilo.

— Isto é loucura...

— Não posso pensar em uma loucura mais agradável. - Os lábios dele mordiscaram o mamilo, e suas mãos a seguraram pelos quadris para pressioná-la contra a potente ereção.                            

Shay gemeu e arqueou o corpo em um silencioso convite.                  

Viper usou os dentes e a língua para aumentar ainda mais o prazer que já a tomava por inteiro. Deslizou a língua pelo contorno dos seios, movendo-se para o mamilo ainda inexplorado.

— Viper...

— Gosta disto? - perguntou, lambendo o seio.

— Oh, sim!

— E disto?

Afastou as pernas dela, levando a mão às suas partes mais íntimas. Ficou imóvel por um momento, apreciando os sedutores contornos.

As feições de Shay agora estavam tomadas pela paixão que não mais podia esconder.

— Viper...

— Você é tão linda - ele disse, beijando-a nos dedos dos pés, ao longo das pernas, no interior das coxas... Queria explorar cada centímetro dela.

— Viper, não... - Shay já não conseguia respirar direito.

— Quero senti-la por inteiro.

— Não sei se vou aguentar - ela confessou, jogando para trás o pescoço.

Ele estreitou os olhos ao avistar a veia pulsante. Mas na­quela noite não usaria os caninos, decidiu, apesar do forte desejo que o consumia. Não até Shay estar preparada para se entregar totalmente.

— Viper... por favor...

— É isso o que você quer? - ele perguntou, antes de cobrir sua parte mais íntima com a boca.

Ela soltou uma exclamação e o agarrou pelos cabelos. Viper gemeu, extasiado. O perfume de Shay embriagava seus sentidos e ele mal podia esperar para penetrá-la. Mas antes queria que ela atingisse o auge do prazer.

E este estava próximo. Podia sentir o corpo dela chegan­do ao clímax.

Quando um tremor violento a sacudiu, ele tomou os lábios dela possessivamente e, libertando o próprio membro, pene­trou-a de pronto. Shay gemeu alto e o recebeu por completo, arqueando o corpo. Viper passou a se mover alucinadamente, sentindo as unhas dela cravadas em suas costas.

— De novo, querida... Junto comigo... - pediu, e ela gri­tou de prazer pela segunda vez.

Ainda banhada de suor, e fraca demais para se mover, Shay descansou a cabeça sobre o peito de Viper. Não era a primeira vez que tinha encontrado prazer nos braços de alguém. Mas jamais sentira tanto desejo antes.

Por que o melhor sexo que desfrutara na vida tivera de ser nos braços de um vampiro?

— Está quieta demais... Ela piscou, confusa.

— Eu pensei que vampiros sempre quisessem sangue quando...

— Fazem amor? - Viper completou a frase por ela.

— Sim.

Ele a observou por um longo momento.

— Não necessariamente, mas é verdade que isso aumenta o prazer no ato. Além disso, prometi não sugar seu sangue.

Shay ajeitou melhor o corpo, pensativa. Ele estava tão lindo deitado sobre aqueles lençóis negros, com os cabelos soltos... Engoliu em seco, forçando-se a encontrar seu olhar.

— Está bravo comigo?

— Não. Só estou pensando no que tenho de fazer para ganhar a sua confiança.

Ela sentiu o coração bater mais depressa.

— O que isso importa? Sou sua escrava. Sou forçada a obedecê-lo, sejam quais forem os meus sentimentos. Por que faz questão que eu confie em você?

Com sua habitual rapidez de movimentos, Viper deixou a cama, indiferente ao fato de estar nu.

— Por isso está em minha cama?

— Não, claro que não. Por que está assim, tão bravo?

— Eu não sei. Talvez porque você tenha sugerido que eu a estuprei.

Shay arregalou os olhos, chocada.

— Eu não disse isso!

— Mas fala que é minha escrava e tenta não me desejar. Vai ver, preferiria que eu a forçasse sexualmente a ter de admitir suas próprias paixões.

Shay suspirou. Ele estava certo. Ela o desejava com uma intensidade que a assustava, mas, em sua mente, não con­seguia se esquecer de que havia sido um vampiro quem ma­tara seu pai. Um vampiro que caçava shalotts como se eles fossem animais.

— O que quer que eu faça, Viper? - perguntou com um suspiro.

— Que diga a verdade.

— Que verdade?

— Admita que me quer. Ela apertou os lábios.

— Você é maravilhoso, mas...

Viper soltou um resmungo enquanto pegava o roupão e o vestia.

— Para mim, chega.

Shay o viu caminhar para a porta, perplexa.

— Aonde vai?

— Se me acha um monstro, mesmo depois do que acaba­mos de compartilhar, então não há esperanças para nós.

Por mais que ela odiasse admitir, Viper estava certo. Ela estava sendo injusta. Desejava-o tanto quanto ele a desejava.

E, sabia que, se ele saísse por aquela porta, seu orgulho o manteria afastado.

— Viper, espere!

Ele estacou, mas não se voltou para ela.

— O que foi agora? Já feriu meu orgulho, minha masculinidade... Há algo mais que deseja destruir?

Shay ficou em silêncio por um instante.

— Duvido que alguém consiga ferir seu orgulho, vam­piro. - Ela deixou a cama e se aproximou dele, puxando-o pelo roupão.

— E quanto à minha masculinidade?

— Parece em boas condições...

— Boas?

Shay sentiu o quanto ele estava excitado novamente e sorriu.

— Mais do que boas.

Viper suspirou e a envolveu nos braços.

— Está tentando me enlouquecer? E esta a punição por eu ter sido tão tolo a ponto de comprá-la de Evor?

Shay se aninhou junto ao peito forte, deprimida. Não po­dia mentir a si mesma. Viper era um vampiro e ela era sua escrava. E ainda havia alguém, ou alguma coisa, que faria de tudo para sugar seu sangue... Não podia levar a vida como se nada disso estivesse acontecendo.

— Não sou boa nessas coisas - confessou baixinho.

— Boa em quê?

— Em relacionamentos.

— E o que temos aqui? Um relacionamento? - ele inda­gou, enquanto a levava de volta para a cama.

Shay estendeu a mão e o acariciou no peito. Adorava fa­zer isso.

— Você é quem tem de dizer se é ou não.

— Se continuar com o que está fazendo, não vou conse­guir dizer nada - ele reclamou com voz rouca.

Ela estremeceu. Não tinha idéia de que tipo de relacio­namento poderia ter com Viper. Na verdade, ela preferiria ignorar inteiramente a palavra "relacionamento"... Mas es­tava começando a aceitar que ter um amante não era exa­tamente uma coisa ruim.

— Sempre preferi ação à conversa - ela murmurou.

 

                             Capítulo IV

Shay acordou sozinha. Uma bandeja com o café da ma­nhã, deixada na mesinha-de-cabeceira, aguardava por ela com uma omelete, bacon, torradas, uma jarra com suco de laranja e uma torta de maçã inteira. Não bastasse isso, havia pétalas de rosas espalhadas pelos lençóis.

Ela sorriu consigo. E, mesmo perturbada pela noite de paixão que passara nos braços de Viper, conseguiu consu­mir um pouco de tudo que havia na bandeja.

Depois tomou seu banho, vestiu jeans confortáveis e uma camiseta, antes de sair para dar uma volta pela mansão.

Não lamentava o tempo que passara com Viper. Nenhuma mulher faria isso.

Mas não se sentia preparada para se encontrar com ele. Era difícil raciocinar quando Viper estava por perto.

Em meio ao pequeno passeio, encontrou um jardim de inverno encantador e aspirou fundo o perfume da terra e das plantas. Não havia ninguém por perto e ela entrou. Não demorou, e sentiu a presença de um vampiro.

— Vejo que encontrou o jardim de inverno. - Dante se aproximou do banco onde ela se sentara.

— É lindo aqui.

— Direi a Abby que você gostou. Ela teima que o único modo de se apreciar a natureza é tê-la civilizada e cercada de vidros... Ela também decidiu me domar, mas com menos sucesso. Diz que sou guerreiro e não poeta o suficiente. Shay sacudiu a cabeça, sorrindo

— Estive em sua biblioteca. É óbvio que é um intelectual.

— Pelo amor de Deus, não deixe que Abby a ouça... Prefiro a imagem de guerreiro.

Ela caiu na risada.

— Nunca lhe agradeci por ter ajudado a salvar Abby - Dante disse de súbito.

— Ora, ninguém mais do que eu queria ver Edra morta.

— Há alguma razão para estar sozinha aqui?

— Estava colocando os pensamentos em ordem.

— Perfeitamente compreensível. Os shalotts sempre preferem caçar a ser caçados. Não é agradável ter de fugir de tantos inimigos perigosos.

— Não, não é. - Shay apertou as mãos, tensa. A expressão dele suavizou.

— Pelo menos não está sozinha. Viper vai protegê-la.

— Se não se importa, prefiro não falar sobre ele. Dante lançou-lhe um olhar curioso.

— Viper a está perturbando?

Com uma risada sem humor, ela se levantou e se afastou do atraente vampiro.

— Sempre.

— Quer que eu fale com ele?

— Não! - Shay exclamou depressa demais. Dante não insistiu.

—Nunca antes vi Viper tão envolvido com uma mulher. Ele costuma manter certa distância em seus relacionamentos.

— Distância? Nunca vi alguém tão intrometido!

— Como eu já disse, ele não vem se comportando como sempre - reforçou Dante com um sorriso.

— Não sei se devo lhe dar meus parabéns ou minhas condolências.

Ela também não sabia.

—Não consigo entendê-lo - falou com um suspiro.

— Veja, mesmo pertencendo a nossos clãs, somos cria­turas solitárias. Há muitos vampiros que se excluem total­mente do convívio social, até que alguém os faça sair de suas conchas.

Shay franziu a testa. Não fizera nada para provocar a saída de Viper de sua concha.

— Viper me contou que seu pai foi morto por um vampi­ro... Lamento muito.

Ela baixou o olhar.

— Isso foi há muito tempo.

— Mas você nunca esqueceu.

— Não.

Repentinamente, ela percebeu que Dante estava bem perto dela.,

— Shay, Viper não matou o seu pai.

— Sei disso.

— Sabe mesmo?

— A maior parte do tempo - ela concedeu.

— Shay...

— Para um vampiro tão inteligente, Dante, você sem dú­vida gosta de viver perigosamente, não é?

Os dois deram um pulo quando ouviram a voz de Viper. Virando-se, Shay o viu entrar no solário. Vestia-se de preto, como de costume.

— Eu sabia que ia aparecer mais cedo ou mais tarde. - Dante sorriu, algo sem graça.

— Obviamente eu devia ter vindo mais cedo.

— Não acho. Shay e eu estávamos nos distraindo bas­tante sem você... - Dante provocou, sabendo que ia deixá-lo louco.

— Tem sorte de estar casado com a Fênix, velho amigo. O outro vampiro caiu na risada.

— Guarde os caninos, Viper, estávamos falando de você.

— Era o que eu mais temia.

— Abby já voltou? - Dante mudou de assunto.

— Sim, está na biblioteca com uma bruxa. Talvez você deva se reunir a ela.

— Excelente idéia. - O vampiro lançou um olhar diver­tido para Shay e deixou o solário.

— Por que há uma bruxa na biblioteca? - ela perguntou de pronto.

— Veio verificar se a caixa não é enfeitiçada.

Shay levou as mãos ao peito de repente, sentindo um zumbido no ouvido.

— Eu devia estar lá também. Não quero perder nada.

— Shay... - Viper a tomou nos braços por um momento, como se não quisesse que ela fosse embora. Então ele a li­bertou com um suspiro.

Shay deu um passo para trás com um misto de alívio e decepção.

— Vamos à biblioteca? - pediu em voz baixa. E, incapaz de se conter, ela o beijou no rosto.

— Preciso saber o que há naquela caixa.

— Sacrebleu! - Levet entrou na biblioteca.

— O que é essa maluquice?

— Cale a boca ou vou grudar sua língua no céu da boca! - a bruxa exclamou sem levantar a cabeça, enquanto con­tinuava a acender velas em um círculo.

— Quem a convidou? - Levet perguntou a Viper, o qual adoraria ver a bruxa transformar o gárgula em algo que não falasse.

— Sugiro que feche a matraca ou vá se distrair em outro lugar - ele o alertou, o olhar ainda atento ao delicado perfil de Shay.

— Terminei. - Com um gesto dramático, a bruxa apa­gou as velas.

— A caixa pode ser aberta.

Viper endireitou o corpo quando Shay se aproximou do pe­queno baú de madeira com mãos trêmulas. Instintivamente, ele deu um passo à frente, querendo abraçá-la, mas sabia que ela detestava revelar suas fraquezas.

Havia uma carta dentro da caixa.

— Está endereçada a mim - ela murmurou, quebrando o silêncio. Levantou a cabeça e olhou para os presentes.

— Se me derem licença, gostaria de ler a mensagem sozinha - disse, virando-se para sair.

Viper não queria que ela ficasse só. Não quando ninguém sabia o que estava escrito na carta.

Mas a mão de Dante em seu braço o impediu de segui-la.

— Respeite a vontade dela - o amigo murmurou.

— Ela está segura aqui. A casa é bem guardada contra demônios, e há alarmes que denunciarão a entrada de intrusos. Viper não pareceu satisfeito.

— Não gosto de me sentir inútil. Dante deu uma risada.

— Pois vá se acostumando, velho amigo. As mulheres tendem a fazer os homens se sentirem assim.

Ele torceu os lábios.

— Não está me animando em nada.

— Apenas dê a Shay alguns minutos. Nada vai aconte­cer a ela enquanto estiver aqui.

Viper reconheceu que o que Dante dizia tinha lógica. Era verdade que não estava dando a Shay a privacidade de que ela precisava.

Ficou andando de um lado para o outro na biblioteca. Tinha de ser honesto. Não gostava de tê-la fora de suas vistas.

O tempo se arrastou indefinidamente. Dante saíra para levar a bruxa para casa, e Abby lhe trouxera uma bandeja com uma garrafa de sangue quente.

Onde Shay se metera? Por que não voltava?

Havia algo muito errado. Sentia isso nas profundezas de sua alma.

Após uma hora, ele não aguentou mais. Saiu da biblio­teca e a procurou pela casa, indo direto aos quartos, depois ao jardim de inverno.

Levou pouco tempo para descobrir que ela não estava em lugar nenhum.

Droga!

Por fim, deixou-se levar pela impaciência e voltou ao próprio quarto. Pegou o amuleto e o colocou no bolso.

Sem dúvida, Shay não iria gostar de ser chamada como um cachorro. Ele mesmo ficaria furioso se estivesse no lu­gar dela. Mas, por hora, preferia enfrentar sua ira.

Fechou os dedos no amuleto. Minutos depois, ela entrou no quarto com fúria, a expressão desafiante, os olhos ver­melhos de tanto chorar.

— Droga, Viper. Por que fez isso?!

— É perigoso demais para você ficar andando por aí. Shay cruzou os braços diante do peito.

 

— Não sou nenhuma estúpida. Não tenho a menor in­tenção de sair daqui, quando há alguém lá fora querendo me caçar. Só queria ficar um pouco sozinha.

— Converse comigo - ele pediu.

— Diga-me o que há na carta.

Passou-se um longo momento, e Viper temeu que ela se recusasse a responder. Estivera sozinha por tempo demais. Ainda não confiava em ninguém.

— A carta é de meu pai.

— De seu pai? E não ficou feliz com isso?

Shay engoliu em seco, como se estivesse engolindo junto parte do próprio passado.

— Foi ele quem mandou colocar o feitiço em mim. Viper acariciou de leve o rosto dela, seu toque frio ame­nizando um pouco da dor que pesava em seu coração.

— Não pode ter certeza disso, querida. Isso pode ser uma armadilha.

— Não, não é. A carta diz que ele fez isso querendo me proteger.

— O quê?

— Ele sabia que estava sendo caçado, mas desconhecia por quem e por que o queriam. Lançar-me o feitiço me es­conderia de seus inimigos.

— Como assim?

— O feitiço serviria como uma barreira, um campo de força que deteria os demônios.

Viper ficou pensativo por um bom momento.

— Suponho que isso seja possível. Ainda assim, seria um jogo desesperado e perigoso. Ele a deixou à mercê de Evor.

Shay se afastou de Viper. Estar próxima dele lhe tirava a concentração.

— Ele nunca pretendeu me deixar à mercê de ninguém - falou, defendendo o pai.

— Uma vez que o perigo passasse, a bruxa devia quebrar o encanto e me revelar a verdade.

— Mas a bruxa foi morta antes disso.

— Exatamente.

Um minuto se passou, sem que ele fizesse comentário al­gum. Shay não conseguia ler suas feições e ficou sem saber o que lhe passava na mente. Os vampiros eram mestres em esconder as emoções.

— Seu pai só queria o seu bem, Shay. - ele falou por fim. Estúpidas lágrimas surgiram nos olhos dela. Não estava conseguindo mais esconder o desgosto que sentia.

— Eu sei, mas...

Em um instante, Viper novamente a tinha nos braços.

— Em todos esses anos joguei a culpa de meu destino em cima de algum horrível monstro que teria colocado o feitiço em mim. Agora descubro que foi meu próprio pai.

— Ele obviamente o fez com as melhores das intenções.

— O que não muda o fato de eu ter passado cerca de oitenta anos como escrava. - Shay rangeu os dentes quan­do as lembranças lhe voltaram à mente. Lembranças que havia tentado eliminar de sua memória.

— Fui espancada, presa em correntes e vendida como um animal.

— Sei que tem sido difícil, mas...

— Difícil? - Ela soltou uma risada amarga.

— Não hou­ve um momento em que não estivesse sozinha. Nenhum momento em que não tenha sentido medo do que a próxima hora poderia me trazer. Nenhum momento em que não te­nha lutado para simplesmente sobreviver!

— Shay.

No rosto de Viper estava transparente o pesar que ele sentia pelo que ela tivera de suportar.

— Desculpe-me - ela murmurou.

— Nem sempre fico me lastimando como agora.

— Não se desculpe. Estive pouco com as bruxas, mas não duvido de que elas tenham tornado a sua vida um inferno.

— Inferno, esta é a palavra. Quando Edra se aborrecia co­migo, colocava-me em uma cela. Mais de uma vez ela me dei­xou lá por anos. Não havia luz, nem comida, apenas insetos e ratos que rastejavam à minha volta. Houve tempos em que pensei que nunca escaparia dali. Pensei...

— A voz de Shay tremeu, e ela foi forçada a parar de falar por um momento. - Pensei que ficaria no escuro por uma eternidade.

A expressão de Viper era agora de neutralidade total, como se ele soubesse que ela não queria piedade.

 

 

— Foi por isso que pediu que libertássemos os demônios que estavam presos nas prisões de Evor?

— Foi. Ninguém merece tal tortura. - Por um instante, ela ficou apenas olhando para Viper.

— Mas você sabe que Edra não era o pior de tudo.

— O que era?

— Saber que eu sempre estaria sob o poder de alguém. Que nunca seria forte, rápida e inteligente o suficiente para escapar, pois não havia como escapar.

Viper balançou a cabeça como se a compreendesse muito bem.

— Na verdade, sei precisamente como você se sente.

— Você? - Ela riu.

— Como é possível? Ele ficou silencioso por uns instantes.

— Nem sempre fui um chefe de clã - contou, o tom de voz baixo e estranhamente seco.

— Houve um tempo em que eu me via constantemente sob o jugo de qualquer vampiro que quisesse me dominar.

Shay o encarou, chocada. Era impossível imaginar aquela criatura arrogante sob o jugo de alguém. E, certamente, não nas mãos de outro vampiro. Viper parecia invulnerável.

— Foi escravo de alguém?

— Escravo e coisa ainda pior.

— O que pode ser pior do que ser um escravo?

— Não creio que queira saber.

Ela mordeu o lábio. Viper estava certo. Por mais que as bruxas fossem más, havia criaturas capazes de maldades ainda maiores.

Sacudiu a cabeça, ainda confusa.

— Pensei que os clãs protegiam o seu povo. Viper soltou um suspiro.

— Os tempos felizmente mudaram, e agora temos uma sociedade mais civilizada.

— Civilizada? Acha que os vampiros são civilizados?

— Comparados ao passado, sim. Houve tempo em que os clãs eram meramente legiões de guerreiros andarilhos. Para se tornar parte de um clã, o vampiro tinha de ser sub­metido a provas abomináveis.

Shay estremeceu.

— Por que desejou fazer parte de um clã?

— Estar sozinho era uma sentença de morte.

— Eles o teriam matado?

— Apenas os fortes sobreviviam.

— Mas você se tornou um chefe de clã.

— Tornei-me forte, mas minhas lembranças permane­cem vivas na memória, como as suas.

Shay observou Viper com novos olhos. Era surpreenden­te como ele mantivera o senso de honra e integridade.

— Você sobreviveu e agora está livre. Viper bufou, amargo.

— Não exatamente, minha querida. Há forças que mes­mo eu tenho de respeitar.

Shay o olhou, surpresa.

— Mas você é chefe de clã. Que forças são essas?

— Não me é permitido falar sobre elas.

Ela percebeu que poderia insistir por uma eternidade e Viper não lhe diria nada.

— Devo me sentir confortada por isso?

Um sorriso surgiu nos lábios dele. Aquele sorriso que fazia com que ela visse a escuridão menos sinistra.

— Vamos descobrir onde está Evor, Shay. - Ele a aca­riciou de leve nos lábios.

— Assim quebraremos o feitiço de uma vez por todas.

Ela sentiu a boca seca e os joelhos fracos. Era uma in­sanidade. Poucos momentos antes, estivera mergulhada no desespero... Agora, com a proximidade dele, sentia-se outra.

— Acredita mesmo nisso?

Os dedos perturbadores de Viper continuaram seu cami­nho pelas costas dela.

— Só falo aquilo em que acredito. Shay segurou a respiração.

— Você sabe, se o feitiço for quebrado, eu não serei mais sua escrava.

O sorriso dele aumentou. Em um instante, ele se virou e a levou para a cama.

— Não preciso de amuleto para fazer uma mulher de escrava - falou sem modéstia.

Shay revirou os olhos.

— Sua arrogância não tem tamanho, vampiro. Se for tão bom quanto pensa...

Nem bem começou a frase, viu-se em cima do colchão com Viper em cima dela.

— O que estava dizendo?

Shay estremeceu ao sentir a língua dele deslizando em seu pescoço e chegando ao ombro.

— Eu estava jogando sem trapacear - ela reclamou sob o efeito das carícias daqueles dedos experientes.

Viper riu e começou a tirar a camiseta,que ela usava.

— Sou um vampiro. Jogo somente para ganhar.

— E o que pretende ganhar? - A respiração dela saía com dificuldade.

— Eu já ganhei precisamente o que desejava - ele mur­murou.

— Agora a questão é quanto prazer você deve sentir para que jamais pense em sair do meu lado.

Ele soltou um gemido.

— Não tenho certeza se quero sentir mais prazer do que posso aguentar. Corro o risco de não sobreviver.

O olhar dele se concentrou nos seios alvos.

— Tenho fé em suas habilidades de sobrevivência. É algo que temos em comum. -Acariciou os mamilos torturantemente.

— Claro que não é a única coisa...

Shay não tinha certeza se algum dia conseguiria se can­sar daquele vampiro.

Tirando com impaciência a camisa de seda que ele usa­va, levantou os quadris para que Viper lhe ajudasse com os jeans. Com os lábios ainda unidos aos dele, começou a acari­ciar os músculos de seu peito. Era macio, tão perfeito.

Ela queria ainda mais.

Viper tinha explorado cada centímetro de seu corpo, to­cado em cada curva. Ele a havia beijado da cabeça aos pés. Não seria a vez dela agora?

Sem dar tempo a si mesma de se questionar mais, enla­çou-o com as pernas e, com um movimento rápido, levou-o para debaixo dela.

— Minha vez - murmurou, enquanto seus dedos traça­vam um caminho de fogo pelo peito largo.

Viper reagiu ao toque imediatamente.

— Sua vez de quê? - A respiração se tornou ofegante.

— Minha vez de fazer isto... - Ela inclinou-se e come­çou a lamber seus mamilos, até descer a mão pelo estômago reto e chegar ao cós das calças. Beijou-o também no umbigo, provocante.

Seus olhos se encontraram e os de Viper pareciam ainda mais negros. Os caninos estavam à mostra.

— Pelo amor de Deus, mulher, me tire desse sofrimento.

Um sorriso surgiu nos lábios de Shay. Devagar, ela des­ceu o zíper das calças e as empurrou para baixo. Viper grunhiu, os dedos se enterrando em seus braços quando ela passou a beijá-lo por cima da cueca. Depois afastou o tecido e usou a língua para acariciá-lo.

— Shay...

Ela voltou para o abdômen bem definido, depois para o peito, e, finalmente, procurou pelos lábios de Viper.

— Não consigo esperar mais... - Ele ofegou, a voz rouca.

— Faça comigo o que quiser - Shay sussurrou, o corpo já pronto para ser possuído.

Virando-a sobre o colchão, ele a penetrou rápida e pro­fundamente com uma exclamação de puro prazer.

Ficou parado um momento enquanto ambos absorviam o contato, a intimidade que desfrutavam. Certamente não havia nada que pudesse se comparar a tão intenso prazer. Nada que pudesse ligar tanto duas pessoas.

Shay abriu os olhos de leve e Viper começou a se movi­mentar gentilmente dentro dela.

Havia alguma coisa em seu negro olhar. Alguma coisa maravilhosa, fantástica, terrível...

Algo que poderia levá-la a querer fugir daquele quar­to, se os movimentos ritmados e profundos não estivessem se tornando mais exigentes, mais apaixonados... e o clímax não estivesse chegando.

Nada mais importava a não ser aquele estado de graça.

Viper andava de um lado para o outro na biblioteca com uma frustração que ele não tentava evitar. Uma semana havia se passado desde que ele e Shay tinham vindo para a casa de Dante. Uma semana gloriosa, naturalmente. Como não poderia ser, se ele dedicara a maior parte de suas noites a dar e receber prazer de uma mulher que tinha se tornado parte essencial de sua vida?

E não era somente pelo sexo, naturalmente fabuloso. Mas ter Shay por perto, ouvir sua voz... Eram momentos para ser reverenciados.

Ainda assim, apesar de todas as delícias, não se esque­cia, nem por um segundo, que o perigo não tinha acabado. Havia algo ou alguém com o único intento de levar Shay para longe dele. Para usá-la em algum torpe propósito.

Pois ele iria ao inferno e voltaria antes que deixasse isso acontecer.

Agora queria saber se Santiago, seu parceiro de confian­ça, descobria alguma coisa. Se houvesse alguma informação a ser obtida, o jovem vampiro a descobriria.

— Lamento, mestre. - O rosto de Santiago não exibia emoção alguma, mas Viper percebeu que ele estava tenso.

— Não descobri mais nada sobre shalotts.

Viper resmungou, impaciente.

— Não deve ter procurado em toda parte. Deve haver alguém que sabe quem está caçando uma shalott.

O vampiro balançou a cabeça.

— Muitos se recusam a acreditar que ela seja algo mais do que um mito. Poucas shalotts têm aparecido no mundo.

— Shay não é um mito.

— Não, mas sua presença nunca foi sentida. Não entre os mais poderosos demônios.

— Claro que não. O feitiço mascara sua presença.

— Mesmo daqueles que poderiam nos ser de grande aju­da. - Santiago deu de ombros.

— Não há rumores, nada que se relacione a uma shalott. Nem mesmo aqueles que conheciam Evor sabiam que ele estivesse de posse de uma.

Viper torceu as mãos, tentando se controlar. Droga.

— Continue procurando.

— Naturalmente, mestre.

— E não se limite a Chicago. A verdade está em algum lugar e temos de achá-la.

— Como o senhor o desejar.

Com um gesto de cortesia, o vampiro se virou e deixou si­lenciosamente a biblioteca. Viper o viu sair e fechar a porta. Irritado, esmurrou a escrivaninha.

— Calma, Viper, vamos conseguir descobrir esse misté­rio. - Dante entrara silenciosamente no aposento.

Viper voltou-se para o amigo com um olhar cheio de de­sespero.

— Quem quer que esteja com Evor, está tentando captu­rar Shay. Não posso ficar esperando outro ataque. Nem sei se conseguiremos vencer da próxima vez.

— Compreendo sua frustração, mas estamos fazendo tudo o que é possível.

— Seus contatos não deram em nada, Dante?

— Infelizmente.

Com impaciência, Viper recomeçou a andar de um lado para o outro. Não queria ter de enfrentar aquela indefini­ção, não saber a quem deveria combater. O que queria era estar com Shay em seus braços, e fingir que nada poderia atingi-los.

Seus instintos o alertavam de que o tempo estava aca­bando. Se ele não conseguisse descobrir quem caçava Shay, o caçador poderia encontrá-los. E não se permitiria ficar en­curralado novamente.

— Sabe que está cortejando o perigo, não sabe? - Dante perguntou.

O olhar de Viper foi de poucos amigos.

— Espera que eu largue Shay por isso?

— Quero dizer que ela está em perigo.

— Dante...

— Agora me escute - o vampiro mais jovem insistiu. — Eu o conheço há séculos, e você nunca se mostrou inte­ressado antes por uma mulher.

— Devo discordar de você. Sempre estive interessado em mulheres. Inclusive por várias ao mesmo tempo.

— Teve amantes e não companheiras - Dante o corrigiu.

— Nunca permitiu que uma delas entrasse em sua vida, como fez agora com Shay.

Viper franziu o cenho. Não gostava do rumo que a con­versa tinha tomado. Talvez até a temesse.

— Aonde quer chegar? Dante sorriu.

— Não estou querendo chegar a lugar algum, Viper. Estou apenas comentando que está com todos os sintomas de quem encontrou sua alma gêmea.

Pronto. Ele sabia que não gostaria do rumo da conversa.

— Meu relacionamento com Shay não é da sua conta.

— Se quiser jogar alguma coisa na minha cabeça, pode escolher esse vaso horrível sobre a escrivaninha. Não jogue os livros, por favor. Eles são insubstituíveis.

Viper grunhiu, exasperado.

— Não me provoque, Dante!

Levet entrou na biblioteca, batendo as asas.

— Sacrebleu, aí estão vocês...

— Não estou com paciência para aguentá-lo, Levet - Viper alertou de pronto.

— Saia daqui.

— Non. - Desafiando, Levet continuou onde estava.

— Não sente algo no ar?

— Mas, o que... !?

— Espere Viper! - Dante deu um passo à frente, os ouvidos atentos.

— Ele tem razão.

A distância, ouviu-se o som de um alarme tocando. Viper sentiu o corpo gelar.

— Droga! Levet, vá buscar Shay e a traga para cá!

— Não. - Dante assumiu o comando.

— Leve-a para os túneis, no sótão.

Levet lançou um olhar para Viper, que fez um gesto, con­cordando.

O gárgula saiu às pressas da sala, e Dante encarou o amigo.

— Você também vai.

— Não posso deixá-lo aqui.

— Precisa proteger Shay. Além do mais, por mais que eu admire sua força e coragem, sei me defender muito bem.

Viper sentiu um calor começando a invadir o aposento. Abby sentira o perigo, e já colocara em ação o seu poder pela casa toda.

— A Fênix!

— Exatamente. Estaremos bem. Agora vá.

Antes de sair, Viper parou ao lado de Dante.

— Obrigado. Você está fazendo algo que nunca terei como pagar.

Dante sorriu.

— Não se esqueça de que ainda estou em dívida com você. Quem sabe, assim, possamos dizer que estamos qui­tes. Mas, tome cuidado, Viper. Se precisar...

— Se eu precisar de ajuda, você será o primeiro a saber - Viper prometeu antes de sair da sala e seguir para os seus aposentos. Pretendia pegar algumas armas, antes de se reunir à Shay no porão.

O banheiro conectado aos aposentos de Viper era um convite à fantasia. Em preto e dourado, a área do banho daria para acomodar um exército, e o armário todo em vidro continha toalhas e uma linha inteira de produtos de pouca utilidade para vampiros.

Era a banheira, no entanto, que mais encantava Shay. Nela, dera-se o luxo de se banhar em águas perfumadas por horas. Um raro prazer para uma escrava que, usualmente, era forçada a se lavar apenas com o pouco de água que lhe passavam pelas barras das celas.

Um delicioso banho era o modo perfeito de começar a noite.

Ou talvez não.

Ruborizou diante do pensamento, enquanto vestia jeans e a camiseta que tomara emprestado de Abby. Escovando os longos cabelos, ela os puxou para trás, em sua habitual trança, e voltou ao quarto. Sabia que Abby devia estar es­perando por ela no jardim de inverno para uma refeição. Poderiam conversar e enumerariam um a um os defeitos dos vampiros. Uma rotina de que ela aprendera a gostar.

Calçando tênis de corrida, caminhou para a porta. Quando a abriu, quase foi derrubada por Levet, que vinha em velocidade.

— Shay! - ele disse sem fôlego.

— Deus, Levet, nunca o ensinaram a bater na porta?

— Viper mandou que eu viesse buscá-la.

— Por que ele não veio pessoalmente? - Ela estranhou.

— Está esperando por nós. Temos que ir já!

Shay sentiu um arrepio de medo. Alguma coisa estava errada. Muito errada.

— O que aconteceu, Levet?

— Há demônios se aproximando. - Levet balançou a cauda, agitado.

— Temos de dar o fora daqui.

Ela perdeu a vontade de argumentar, e deixou que Levet a conduzisse.

— Para onde estamos indo?

— Dante mandou construir túneis embaixo da mansão. Shay lembrou-se dos túneis que Viper também construíra embaixo de sua própria casa. Parecia ser um costume entre os vampiros.

Usando as asas, que lhe davam maior velocidade, Levet seguiu sem nem sequer olhar para trás. Shay hesitou quan­do o gárgula começou a descer uma escada estreita. Podia sentir algo estranho no ar.

— Mon Dieu. Não por aqui! - ele exclamou, alarmado.

— Os demônios?

— Pior que isso... A Fênix!

Ela estacou, depois o seguiu por outro caminho. Lembrava-se bem de estar encurralada em uma cela com Abby se transformando, e preferia não repetir a experiên­cia. Especialmente porque os poderes da deusa acabavam por atingir outros, que ela não pretendia fritar.

Shay e Levet já esperavam por Viper quando ele che­gou ao porão, e o vampiro sentiu-se mais do que aliviado. Pensara ter de arrastar Shay para o porão, chutando e es­perneando. Para uma mulher tão inteligente, ela era, por vezes, teimosa ao extremo. Não queria fugir nunca do peri­go, por pior que este fosse.

Ajeitou a espada na bainha e colocou de lado a sacola pe­sada com as armas que pegara antes de seguir para o túnel.

— Por aqui - murmurou, indicando que Levet deve­ria ir à frente. Seguiu atrás do gárgula, e estendeu a mão em direção a Shay, que hesitava diante da fresta por onde passariam.

Odiava entrar em lugares escuros.

Por fim, compreendeu que aquela não era hora de ficar se lembrando do que passara nas mãos das bruxas. Sem mencionar Evor e sua masmorra. Quem poderia culpá-la de não querer estar em um túnel?

— Estou aqui, Shay, e não vou a lugar algum sem você. - Viper a segurou pelo braço.

— Nunca mais vai estar so­zinha na escuridão. Confie em mim.

Mantendo-a bem junto dele, ele a forçou a segui-lo. Aspirou bem fundo, procurando determinar quem era o ini­migo que se aproximava. Não tinha, como Dante, a habili­dade de distinguir cada uma das diferentes espécies de cria­turas que havia no mundo. Ainda assim, tinha certeza de que não importava quem os estivesse perseguindo. O perigo não estava descartado e ele precisava, de alguma forma, se assegurar de que Shay estaria em segurança.

A presença dela o distraía e isso era ruim. Precisava se concentrar apenas em matar. Quando ele não tinha nada a lhe desviar a atenção, era muito bom nisso.

O túnel os levou para fora da casa. Quando sentiu a bri­sa fria, identificou os inimigos: eram cães do inferno.

Eles eram mais um aborrecimento do que um perigo, pensou. Não podiam matar um vampiro, tampouco uma shalott, mas, de qualquer forma, teriam de lutar e perderiam um bom tempo. Era necessário saírem logo dali, antes que o inimigo principal chegasse.

— Levet, venha aqui.

— O que foi?

Viper colocou a mão em seu ombro.

— Os cães do inferno estão se aproximando e precisamos confundi-los.

— Com que tipo de distração, por exemplo?

— Você.

O gárgula balançou a cauda, irritado.

— Não pense que eu vou lutar contra essas bestas horríveis. Eles cheiram pior que o inferno.

— É o único que pode voar. Viper colocou dois amuletos dentro de uma bolsa, e a pendurou no pescoço do gárgula. Os amuletos continham o cheiro tanto dele como de Shay. Com sorte, os odores dis­trairiam os cães do inferno por tempo suficiente para que os dois fugissem.

— Escute-me aqui, vampiro, não sou...

—Desculpe, mas não temos tempo para discutir. —- deu um empurrão, e o gárgula foi lançado ao ar.

— Vai pagar por isso, vampiro! - Levet ainda gritou, antes de mergulhar na noite.

Sem responder, Viper pegou sua sacola de armas e co­locou Shay sobre o ombro. Tinham apenas alguns minutos antes que os cães do inferno percebessem que Levet não somente lhes era inacessível, como também estava sozinho. Logo eles estariam nos seus calcanhares.

— Diabos, coloque-me no chão! - Ela o esmurrou.

— Não posso lutar nesta posição.

— Não vamos lutar, vamos fugir.

— Mas Levet...

— Os cães do inferno não podem alcançá-lo. Além do mais, ele é imortal, o que não temos certeza se é o seu caso.

As palavras diretas conseguiram amainar um pouco da raiva que ela sentia. Uma coisa rara, da qual Viper procu­rou tirar vantagem enquanto corriam pelas ruas escuras.

Já havia conseguido colocar uma boa distância entre eles e os cães, quando ouviu o suspiro frustrado de Shay.

— Posso saber para onde estamos indo?

— Tenho várias empresas no lado sul da cidade. Se al­cançarmos uma delas, meu clã nos protegerá.

— Seu clã? Está brincando comigo?

— Não.

— Pretende me levar para junto de um bando de vampi­ros famintos? Por que não me deixa com os cães do inferno e foge sozinho? Pelo menos eu teria chance de vencê-los!

— Ninguém vai lhe fazer mal algum.

— Como pode ter tanta certeza?

— Porque você é minha. Eles obedecerão às minhas ordens.

— Ah, certo. Como se um vampiro obedecesse a alguém - ela resmungou.

Viper não se deixou levar pelos argumentos.

— Concordo que os vampiros sejam independentes, mas sou chefe de clã - ele repetiu.

— Desafiar minha autoridade é me desafiar. Quem não me obedecer, terá de me enfrentar em combate ou deixar o clã. Poucos ousariam fazer isso.

— Têm tanto medo assim de você?

Viper parou em uma esquina e observou atentamente os arredores. Era tão tarde, que a maioria dos humanos devia estar em suas camas. Assegurando-se de que não havia nenhuma criatura por perto, seguiu em direção à rua mais próxima.

Sentiu Shay socando suas costas novamente.

— Ponha-me no chão!

Viper rangeu os dentes e fez o que ela pedia. Tinha cap­tado o cheiro no mesmo momento que ela: trolls.

Tirou a espada da bainha e a entregou a Shay. Em se­guida, retirou duas longas adagas da sacola de couro. Trolls possuíam uma pele dura demais para ser transpassada por uma bala. Somente uma lâmina enfeitiçada tinha chance de fazer isso.

— Mire a parte inferior do estômago - comandou.

— É o único lugar em que a espada pode entrar, além de ter uma artéria que pode ser cortada.

Shay se colocou de costas para ele instintivamente. O melhor modo de lutarem seria formando uma dupla.

— Não precisa me ensinar como matar um troll - mur­murou em um tom amargo.

— Foi a primeira coisa que aprendi depois que Evor me forçou a ficar ao lado dele.

— Não duvido de você, mas esses trolls estão desespe­rados, e não há inimigo mais perigoso do que aquele que prefere morrer a ser derrotado.

Shay soltou uma risada amarga.

— Eles não podem estar mais desesperados do que eu. Viper não podia argumentar contra a lógica. Na ver­dade, não havia tempo para isso, pois os trolls surgiram à frente deles.

Um erro e tudo acabaria mal. Aquelas criaturas podiam não ser inteligentes, mas tinham uma sede de sangue. É impressionante, o que os tornava perigosos em batalhas. Somente um idiota os subestimaria. Um idiota morto.

Mantendo as adagas escondidas, Viper observou-os se aproximarem. Não atacaram imediatamente. Cada grupo tinha sua hierarquia, e os líderes mandariam primeiro os mais fracos, para avaliar a habilidade do oponente. Uma perda de soldados, mas um bom meio de descobrir como me­lhor ganhar a luta.

Procurou concentrar sua atenção nos menores. Quando estes atacaram, ignorou a cabeça e focou na parte mais bai­xa do corpo.

Ouviu-se um grunhido quando Viper enterrou a adaga. Não hesitou em revirar a lâmina, até que um cheiro horrível en­chesse o ar. Ele puxou a adaga, e chutou a carcaça para o lado, pronto para o seguinte.

Lançou um breve olhar por cima do ombro. Shay ainda estava de pé e lutava bravamente. Vendo que um dos ini­migos pretendia pegá-la pelas costas, ele se moveu para o lado, atraindo a besta. Em seguida, mirou o chão e recitou as palavras especiais.

Houve um barulho, e o pavimento começou a se abrir. No segundo seguinte, vários trolls desabavam para dentro de uma enorme fenda. Um deles tentou se segurar, e foi apunhalado em sua parte mais vulnerável.

Um sorriso surgiu nos lábios de Shay enquanto ela lu­tava. Até agora conseguira vencer todos os inimigos, e não tinha nenhum arranhão. Os trolls continuavam atacando, cheios de fúria e frustração, e acabavam vítimas de sua es­pada ou das adagas de Viper.

Por fim, Shay se viu diante apenas de corpos. Voltou-se, e viu Viper ainda lutando.

— Vai continuar brincando com esse troll a noite intei­ra? - perguntou com malícia.

Apesar disso, ficou aliviada quando Viper despachou o monstrengo com um poderoso golpe, e depois a conduziu pela rua escura, sem comentário algum. Era demais espe­rar que ele não tivesse notado o corte que tinha no queixo. Um dos monstrengos conseguira atingi-la, mas o ferimento fora pequeno demais.

Ela havia notado, porém, o olhar de alerta que Viper lhe lançara quando isso tinha ocorrido. E depois, quando passara a ficar mais atento ao que ela fazia do que à sua própria luta.

Com um esforço, conseguiu alcançá-lo e caminhar ao lado dele, em vez de atrás.

Ela não era de se esconder de ninguém. Nunca fizera isso.

Ignorando o olhar que ele lhe lançou, atentou para as sombras, querendo ver se havia alguém escondido à espe­ra deles.

E aquela era uma área perigosa. Tinham deixado para trás as mansões e a área de negócios. Agora as ruas eram esburacadas e malcheirosas.

Quando sentiu um arrepio, pensou ser meramente uma reação à decadência do lugar.

Somente quando se voltou para Viper, é que compreendeu.

— Vampiros - ele murmurou.

— Droga. - Instintivamente, ela deu um puxão nervoso na trança.

— E suponho que não sejam os seus vampiros...

— Não.

Claro que não eram.

A noite parecia cheia de surpresas. O que poderia ser mais desagradável do que encontrar vampiros em uma rua escura?

— Talvez eles estejam apenas passando.

Viper sacudiu a cabeça, as feições endurecidas fazendo com que ela se lembrasse precisamente o que e quem ele era.

— Ninguém ousaria entrar em Chicago sem minha per­missão. A não ser que estejam declarando guerra.

Shay engoliu em seco.

— Quantos são?

— Seis. - Ele levantou a cabeça, cheirando o ar.

— E um deles é o chefe.

— Isso quer dizer que estamos perdidos?

Viper praguejou enquanto procurava nas sombras por vampiros escondidos.

Não era um bom sinal, pensou Shay. Não queria vê-lo preocupado. Queria que ele continuasse arrogante, superior e confiante.

— Maldição - ele resmungou. — Fui um idiota!

— Por quê?

— Os cães e os trolls foram apenas uma estratégia para que deixássemos a mansão de Dante - ele grunhiu.

— Caímos direto na armadilha deles.

Shay sentiu um arrepio.

— E o que vamos fazer agora? Fugir ou lutar?

— Conheço esse vampiro... Nós vamos fugir - Viper a surpreendeu com a resposta.

Pareceu uma excelente idéia a Shay. O melhor dos guer­reiros sempre sabia quando fazer uma retirada estratégi­ca. Segurando a espada de lado para não se machucar, ela permitiu que Viper a puxasse pela rua escura. Não sabia aonde iam, mas qualquer lugar seria melhor do que o que estavam. Pelo menos ela contava com isso.

Podia correr muito e saltar mais alto que os humanos, mas, droga... Estava praticamente voando!

Entrando em um armazém, Viper diminuiu o passo, a cabeça voltada como se estivesse cheirando o ar.

— O que você...

— Shh! - Ele pressionou um dedo sobre os lábios, antes de puxá-la para os fundos do prédio.

— Por aqui.

Deram a volta em uma pilha de barris enferrujados, Viper se abaixou e a puxou para junto dele.

— Por que paramos aqui?

— Não conseguimos despistá-los. Eles já nos cercaram - ele murmurou.

— Tem um plano?

Ele fez que sim com um gesto de cabeça. Shay o observou atentamente, e viu a determinação em seu olhar.

— Por que sinto que não vou gostar desse seu plano?

Um leve sorriso surgiu nos lábios de Viper.

— Porque você é teimosa e cabeça dura.

— Diga logo qual é - ela ralhou, nervosa. Ele demorou um momento para responder.

— Há um túnel logo a seu lado. Quero que o use para escapar enquanto eu distraio os vampiros.

— Não vou fazer isso.

— Shay, escute...

As palavras dele foram interrompidas pelo som de pas­sos se aproximando.

 

 

— Pode aparecer Viper! O armazém está cercado. Você não tem saída.

Shay deu um pulo ao ouvir a voz ressoar na penumbra. Notou um vampiro vindo na direção deles. Era alto. Tão alto como Viper, e com ombros mais largos. Seu tamanho era en­fatizado pelo longo manto negro, que ia do pescoço ao pé.

Mas não era apenas o porte que fez com que ela arre­galasse os olhos. Era o tom bronzeado de sua pele. Era o primeiro vampiro que via sem a palidez habitual que os ca­racterizava. Os cabelos eram negros e longos, presos para trás em uma trança. Parecia mais um príncipe asteca.

— Quem é ele? - perguntou baixinho. Havia alguma coisa inquietadora naquele vampiro.

— Styx. Ele passou a ser chamado assim por deixar um rio de mortos em seu rastro - Viper explicou, sem afastar os olhos da criatura que se aproximava.

— É um dos mais famosos guerreiros de minha espécie.

— Amigo seu? - Ela tentou engolir sem grande sucesso.

— Em certa época, sim.

— Mas por que ele está nos perseguindo? É ele que quer o meu sangue?

— É o que pretendo descobrir. - Viper se voltou e lhe di­rigiu um olhar firme.

— Mas não antes que você saia daqui.

— Mas...

Ele envolveu o rosto de Shay nas mãos.

— Styx é leal aos vampiros. Não me atacará se não for preciso fazer isso. Você, no entanto, corre um grande risco. Deve fugir se quer que ambos sobrevivamos a isto.

Shay cerrou os dentes. Era insultante que ele lhe pedisse para ser covarde, enquanto ficava ali no papel de herói.

Infelizmente, seu orgulho não podia competir com o bom senso. Se ela ficasse, Viper lutaria até a morte para pro­tegê-la. E, chefe de clã ou não, ele não seria páreo contra seis vampiros determinados a se apoderar do sangue dela. Mesmo que fugissem juntos, acabariam em alguma situa­ção idêntica. O melhor era se pudesse escapar e arranjar ajuda antes que ele fizesse algo estúpido.

— Se você se deixar matar eu... O beijo a fez parar de falar.

— Nunca vai se livrar de mim. Agora vá.

Shay sentiu uma forte dor no peito quando tocou de leve no rosto de Viper. Jogou a espada no túnel e se preparou para descer.

Ele tornou a segurá-la pelo braço.

— Deixe a sua camiseta.

— O quê?

— Precisa deixar o seu cheiro para trás, ou Styx saberá que não está mais aqui no armazém. A conversa que tere­mos não levará muito tempo, mas espero que seja o sufi­ciente para você fugir.

Não bastava ter entrado em um túnel fedido. Agora ela teria de seguir por ele, nua e gelada!

Mesmo assim, quanto antes fosse, mais cedo poderia en­contrar Dante e voltar para salvarem Viper.

Tirou a camiseta e a jogou de lado, depois colocou a mão no nariz, tampando-o para suportar o cheiro forte. Pulou e se viu no meio da lama.

Perfeito. Se saísse ilesa daquele buraco imundo, ela pró­pria iria enfiar uma estaca naquele maldito vampiro!

— Não estou com humor para brincar de esconde-esconde, Viper! - rosnou Styx.

Viper surgiu por detrás dos barris silenciosamente. Podia sentir Shay se movendo para mais longe, porém seu cheiro ainda impregnava o ar. Com sorte iludiria os vampiros que cercavam a área.

— Também eu não estou com humor para ser tratado com um mero criado, meu amigo. Parece que se esqueceu de que sou chefe de um clã.

Styx lhe dirigiu um olhar mais sério do que arrogante.

— Eu não me esqueci de seus poderes, Viper, nem de sua posição.

— Então apenas se esqueceu dos bons modos? O vampiro balançou a cabeça.

— Tem razão em me censurar. Este não é o modo como eu gostaria de tratá-lo. Infelizmente, minhas necessidades superam qualquer outra consideração.

Viper sentiu a raiva aumentar. Não entendia como um ex-amigo e companheiro estava envolvido em uma caçada à sua shalott. Porém, a súbita presença de Styx era mais do que mera coincidência.

— O que você quer, Styx?

— Todas as suas respostas serão respondidas em tempo. Por hora, quero apenas que chame a sua companheira e a mande vir até mim.

Viper cruzou os braços.

— Receio que esteja sendo vago demais. Terá de me per­doar se eu quiser saber mais antes de prosseguirmos.

Styx observou Viper por algum tempo, sua expressão não se alterando nunca.

— O que mais você quer saber?

— A razão de estar neste horrível armazém em uma noi­te fria como esta.

— Naturalmente estou aqui atrás de você.

— Por quê?

— Não é lugar para tal conversa, Viper. Se você e sua companheira vierem até mim...

— E se eu me recusar a fazer isso?

— Isto seria muito ruim.

Viper apertou os olhos, os caninos em alerta.

— Você me pegaria contra a minha vontade? Contra as leis que nos governam? Diga-me, Styx, o vampiro a quem eu admirava acima de todos agora se tornou alguém não melhor do que aqueles contra quem lutamos uma vez?

— Chega. - A voz não se alterou, porém Viper percebeu que Styx não recebera bem a observação.

— Não sabe nada dos problemas que enfrentamos.

— Sei que não entramos no território de clãs sem pedir passagem ao chefe - ele prosseguiu.

— Tampouco convoca­mos demônios ou bruxos para fazer o nosso trabalho, ou comandamos o assassinato de outro vampiro. Agora me diga. Por que está aqui, Styx?

Pela primeira vez as feições douradas apresentaram uma expressão genuína: exasperação.

— Não discutiremos isto em público, como trolls briguentos. Espero mais de você, meu velho companheiro de lutas.

Viper deu um passo ameaçador.                                        

— Está quebrando nosso tratado, Styx, e se proclaman­do um inimigo de meu clã.

Houve uma movimentação nas sombras, e cinco enormes vampiros apareceram em espetacular velocidade. Como Styx, eles vestiam mantos negros e eram altos.

Muito altos.

Viper se preparou para lutar. Podia morrer, mas preten­dia levar alguns deles junto.

Os vampiros pararam diante de um gesto de Styx.

— Estou aqui a mando de meu mestre, que me colocou acima dos tratados, como você já percebeu. Ainda assim, não há razão para que não possamos agir de forma razoável.

— Razoável? - Viper ironizou.

— Se deseja conversar, voltaremos à casa de Dante, e poderemos pôr um fim nisso. Um sorriso surgiu nos lábios de Styx.

— Por mais encantadora que seja a nova companheira de Dante, não desejo tomar chá com a Fênix. Lamento, ve­lho amigo, mas o tempo é curto. Chame sua companheira, e eu a colocarei nas mãos de minha guarda.

Styx voltou-se para um dos vampiros.

— DeAngelo, traga-me a shalott. O vampiro obedeceu prontamente.

— A shalott escapou pelo túnel! - DeAngelo exclamou pouco depois.

— Devemos segui-la?

Styx olhou para Viper com raiva.

— Não, isso não será preciso. Viper tem o amuleto que a chama de volta.

— Nunca vou chamá-la, Styx.

— Oh, vai sim. Ou morrerá. A escolha é sua.

Levet era esperto o suficiente para voar bem acima das ruas estreitas. Havia toda sorte de comida podre, roupas puídas, lixo, e outras coisas que ele nem queria ver, menos ainda tocar. Não era o primeiro lugar horroroso que via. Já vivera uma parte de sua vida em esconderijos medonhos, apenas para sobreviver.

Ainda assim, tinha vindo para os Estados Unidos na es­perança de encontrar algo melhor. Ali havia menos demônios para atormentá-lo, e espaço suficiente para ter seu pedaço de terra e viver em paz. Ou pelo menos esta havia sido a sua intenção.

Claro que suas boas intenções tinham-no levado de um desastre a outro, reconheceu com um suspiro.

Seguindo Dante, Levet apontou para o lixo.

— Que cheiro... Como os humanos aguentam isso?

O vampiro lhe dirigiu um olhar impaciente. Tinha pen­sado em não levar o gárgula com ele, mas sabia-se lá a ra­zão, terminara achando que a criatura poderia ser de algu­ma ajuda.

Uma bobagem.

— O desespero sempre possui um cheiro desagradável, seja de um humano ou de um demônio.

Levet o fitou, surpreso.

— Pensei que Viper fosse o filósofo e você o guerreiro.

Voando mais baixo, Dante cheirou o ar das ruas estrei­tas e sujas como um cão de caça. O medo que Levet sentia de que algo podia estar acontecendo a Shay aumentava a cada minuto. Viper não raciocinava? Não bastara lutar con­tra trolls e cães do inferno? Tinha de levar Shay para onde estavam seus piores inimigos?

— Espere! - Dante exclamou.

— Sacrebleu, por que temos de esperar? Precisamos en­contrá-los!

O irritante vampiro arqueou a sobrancelha.

— Parece ansioso demais, gárgula. Não pensei que se importasse.

— Aquele vampiro me atirou aos lobos, ou mais pre­cisamente, aos cães do inferno. - resmungou Levet.

— Ninguém a não ser eu tem permissão para matá-lo. Por que paramos?

— Os trolls estiveram por aqui. Levet pareceu surpreso.

— Não me diga que teme os trolls?

— Não esses... Estão mortos.

— Foi Shay - Levet concluiu com uma ponta de orgulho.

— Não sozinha, gárgula. Viper lutou ao lado dela.

— Se as bestas estão mortas, nesse caso podemos ir.

Dante sacudiu a cabeça.

— Os trolls não foram os únicos que passaram por aqui. Também passaram vampiros.

Levet soltou um gemido.

— Quantos?

— Seis. E nenhum de nosso clã.

— Nenhum de seu clã?! - Levet sentiu uma pontada no coração.

— Isso significa que...

O rosto pálido de Dante revelou sua apreensão.

— Estão aqui para matar Viper.

Qualquer que fosse a intenção deles, Shay estava em pe­rigo, e era isso o que mais importava, Levet pensou.

— Não podemos esperar. Temos de ajudá-los!

— E cairmos na armadilha? - Dante balançou a cabeça.

— Não seria de ajuda alguma.

— E como espera ajudá-los se escondendo nas sombras enquanto eles são chacinados?

Os olhos de Dante brilharam de raiva.

— Fique quieto e me deixe pensar, ou cortarei essas suas asinhas ridículas!

Levet alçou vôo.

— Muito bem. Você se esconde nas sombras e eu descu­bro o que está acontecendo!

— Droga, Levet!

Tarde demais. O gárgula voara para longe, sem dar aten­ção aos xingamentos de Dante. Levet percebeu os movimentos na escuridão, lá embaixo, e parou em um telhado, em absoluto silêncio. Não mais se importava com o fedor. Nem mesmo com a quietude na vizinhança. Via apenas Viper sendo forçado a entrar em uma limusine preta, seguido de um enorme vampi­ro. Mesmo à distância, podia sentir a tensão no ar.

Estava prestes a chamar Dante, quando percebeu a limusine partindo, seguida por outra.

Shay estaria dentro de algum dos veículos? Certamente.

Bateu as asas, nervoso. Podia não morrer de amores por Viper, mas sabia que o vampiro lutaria até a morte para mantê-la em segurança. Se estava voluntariamente se dei­xando levar como refém, isso só podia significar que os vam­piros já haviam capturado Shay.

Voou de volta até Dante, que agora parecia muito irritado.

— Na próxima vez, lhe arrancarei o coração e o comerei no jantar, gárgula! - vociferou ele, agarrando-o pelo pescoço.

— Não tempos tempo para nossas briguinhas. - Levet o fitou de olhos arregalados.

— Um enorme vampiro forçou Viper a entrar em um carro e partiram!

— E quanto a Shay?

— Presumo que estejam com ela também. Dante concordou.

— Viper deve ter compreendido que era impossível lutar - Dante resmungou.

— Ou ameaçaram fazer alguma coisa contra Shay. Em qualquer dos casos, se atacarmos os carros agora, as coisas podem piorar ainda mais.

— Infelizmente, devo concordar com você. As limusines seguiram para o Sul. Eram enormes e pretas. - Levet uniu as sobrancelhas.

— Por que esse apego dos vampiros a tudo que é preto?

Dante lhe dirigiu um olhar frio.

— Tem algum plano?

— Vou segui-los e, quando chegarem ao seu destino, vol­to e lhe passo a localização.

Surpreendentemente, Dante fez um gesto de cabeça, concordando.

— Os vampiros estarão atentos. Um erro e estará morto! Levet soltou uma risada.

— Olhe para mim. Mal tenho um metro de altura... Estou sempre atento, seu tolo.

Dante respirou fundo.

— Vou reunir o resto do clã. Estaremos preparados para quando você voltar.

Levet alçou vôo e seguiu o caminho das limusines.

— Bom chance, mon mi - Dante falou lá de baixo. Levet se permitiu um sorriso. Um vampiro que falava francês... Não podia ser assim tão ruim.

Shay saiu do túnel e, aliviada, respirou ar puro. Ou quase isso, pensou, franzindo o nariz. Estava gelada, cheirando mal e quase nua. Exatamente como tinha previsto.

Mas, surpreendentemente, ninguém a seguira.

Pensando bem, não era assim, tão surpreendente. O vampiro alto e bronzeado, conhecido por Styx, não lhe pare­cera nenhum estúpido. Frio, cruel e inflexível, talvez.

Olhando atentamente para a rua, para ver se não havia algum vampiro nas sombras, começou o caminho de volta para a casa de Dante. Precisava de ajuda e depressa.

O pensamento mal lhe passou pela cabeça e ela captou um cheiro familiar. Olhou para o alto de um prédio e lá estava ele: Levet!

Graças a Deus...

Com novo ânimo, correu pela rua estreita, subiu a esca­da de serviço do prédio velho e aparentemente silencioso, chegando ao terraço superior.

O pequeno gárgula se encontrava na beirada de uma marquise, mas o som dos passos dela o alertou. Abruptamente, balançou as mãos como se estivesse enviando um feitiço.

— Não, Levet! Sou eu!

— Shay?

— Sim.

— Oh, mãe de Deus... Quase me faz ter um enfarte. - O gárgula procurou retomar a respiração normal.

— Cruzes, que cheiro é esse? Onde está sua camiseta? Você...

Shay levantou a mão com impaciência.

— Onde está Dante?

— Foi reunir a cavalaria. - Levet colocou as mãos nos quadris.

— Como conseguiu escapar? Pensei que estivesse com aqueles vampiros.

Ela estremeceu, e não apenas de frio.

— Usei um túnel para escapar de um armazém, mas Viper ficou lá para enfrentá-los.

— Não está mais lá.

— Como não?

— Eles o obrigaram a entrar na limusine e foram embora. Shay sentiu uma dor profunda no coração.

— Droga! - praguejou, tentando afastar o medo.

— Temos de ir atrás dele.

— Era o que eu ia fazer quando você chegou.

— Muito bem, então vamos.

O gárgula bloqueou o caminho de Shay, preocupado.

— Acha mesmo uma boa idéia vir comigo? Eles estão atrás de você. Se chegar muito perto, eles...

Shay procurou cobrir o corpo com as mãos. Estava gela­da. Precisava arranjar uma roupa... E uma cruz. E muitas, muitas estacas.

— Vou junto, Levet.

O gárgula revirou os olhos.

— Se pretende nos colocar em perigo, então que seja.

— Já estou em perigo. - Shay deu de ombros.

— Não se voltar para a Fênix. Não há demônio que ou­saria desafiá-la.

— Nem mesmo Abby pode me proteger agora.

— Claro que pode. Ela é uma deusa.

— Pense, Levet. Eles estão com Viper e eu sou escrava dele... Viper está com o meu amuleto.

— Oh! - O gárgula empalideceu.

— Mas, Shay, Viper jamais vai chamar você e colocá-la nas mãos de seus inimi­gos. Posso achar esse vampiro um arrogante, mas ele nunca permitiria que algo lhe acontecesse.

Agora o arrepio que ela sentia não era de frio.

— Não intencionalmente. Ambos estivemos em poder de inimigos, Levet. Sabemos o que é ser torturado. Lealdade e honra só existem nos contos de fadas. Sob tortura, uma pessoa pode ser forçada a fazer qualquer coisa.

Levet tocou nas cicatrizes de seu peito. Os trolls acha­vam divertido torturar um gárgula em miniatura...

— Não Viper. - Sacudiu a cabeça com veemência.

— Ele nunca fará isso.

Era o que ela mais temia. Não que ele pudesse ceder sob tortura, mas que ele não cedesse. Viper seria capaz de se deixar matar antes de chamá-la com o amuleto.

Era um sacrifício que acabaria com ela mais do que tudo.

— Eles o matarão e eu ainda estarei em poder deles. Levet levou as mãos às têmporas.

— Está me deixando com dor de cabeça. O que quer dizer com isso?

— Se eles estão com Evor, mesmo matando Viper ainda poderão me forçar a ir até lá. Não posso escapar da maldição.

Levet praguejou em francês sem parar.

— Temos de salvá-lo, Levet. E temos de fazer isso agora.

Viper decidiu que a limusine de Styx não se comparava à dele. Apesar do espaço e dos bancos confortáveis, não havia qualquer outro luxo. Nem música suave, nem TV de plas­ma, nem champanhe no gelo.

Claro, ele tinha de conceder, sua própria limusine não contava com algemas penduradas no teto, que podiam man­ter quieto o mais furioso dos prisioneiros. Logo que saísse daquela encrenca, providenciaria um par.

Ignorando as que prendiam seus pulsos, voltou-se para o traidor sentado no banco à frente, vendo Styx tirar a capa.

— Vai sair machucado graças a essa sua teimosia, Viper. Viper estreitou o olhar para o companheiro que, um dia, lutara a seu lado. Mesmo que tivessem sido amigos no passa­do, jamais perdoaria Styx pelo que estava passando agora. E jamais era um tempo muito longo para os imortais.

— Pensa que vou para a morte sem lutar? As feições frias não se alteraram.

— Estou tentando evitar que você tenha de enfrentá-la.

— A troco de quê? - Viper caiu na risada, furioso con­sigo e com a criatura que o dominava agora.

— Tenho sido perseguido por toda Chicago por bruxos, cães do in­ferno, trolls...

— Mera diversão.

— E o Lu? - Viper retrucou.

— Eu lhe asseguro que foi mais do que distração. Ele quase me arrancou a cabeça.

Alguma coisa se alterou na expressão de Styx. Pouca coi­sa, mas Viper começou a sentir uma leve esperança de que o vampiro pudesse se arrepender.

— Aquilo não foi a meu mando.

— De quem então? De seu senhor? - perguntou cuida­dosamente.

— Sabe que é melhor não perguntar. - Styx cruzou as mãos diante do peito.

— Fale-me sobre a shalott.

Viper cerrou os dentes.

— Ela mede mais de um metro e oitenta de altura e pesa pouco mais de cinquenta quilos, o que é surpreendente, já que come como um cavalo. Styx sibilou, irritado.

— Não é hora para brincadeiras, Viper. Se quiser que eu o salve, tem de cooperar.

Viper sentiu vontade de mandar Styx para o diabo, mas pensou melhor. Não tinha como escapar no momento. Quem sabe, se o encorajasse a falar, poderia prever o que vinha pela frente.

— E o que essa cooperação envolve?

— Quero saber qual o seu envolvimento com o demônio. Seus olhares se encontraram.

— Ela é minha escrava.

— Mais do que isso, eu creio. Está arriscando sua vida para salvá-la. Por quê?

— Você sabe a razão.

Os olhos de Styx escureceram.

— Nutre sentimentos por ela?

Viper deu de ombros. Não adiantava negar o que sentia por Shay. Isto estava claro demais.

— Jogo perigoso para um vampiro. E mais perigoso ain­da para um chefe de clã.

Viper sacudiu inconscientemente as algemas.

— Qual o seu interesse em meu relacionamento com Shay?

Styx ficou em silêncio. Por tanto tempo, que Viper pen­sou que o vampiro não lhe responderia.

Então, bem devagar, ele enfrentou o seu olhar.

— Seria melhor se cortasse o seu elo com o demônio e fosse embora. Dê-me o poder sobre o amuleto que a une a você, e eu mandarei parar o carro e o deixarei descer.

Viper era inteligente demais para rir dessa ridícula su­gestão.

— E se eu não fizer isso?

— Eventualmente, serei convencido a fazer o que você bem sabe. Temo que não vá se divertir muito no processo.

Viper estreitou os olhos.

— A tortura tem sido proibida, mesmo pelo anasso - fa­lou, referindo-se ao líder de todos os vampiros.

— A necessidade, às vezes, exige sacrifícios.

— Sou o sacrifício? - Viper quis saber.

— Espero que não. Ele balançou a cabeça.

— Isto não combina com você, Styx. Em todas as suas batalhas você sempre manteve a honra.

Styx se recostou ao banco, mas Viper não deixou de per­ceber que ele tremera levemente diante da acusação.

— Eu sempre prezei mais o meu dever - ele respondeu, a voz sem emoção. Como se temesse revelar mais do que desejava.

Viper observou as feições que um dia lhe haviam sido tão familiares. Styx não tinha envelhecido, naturalmente. Na verdade, era o mesmo de muitos séculos.

Mas havia uma inegável tensão em todo o seu corpo. Uma angústia que lhe tirava o brilho dos olhos. Como se os anos tivessem lhe roubado alguma coisa de muito precioso.

— Dever ao anasso?

— Dever a todos os vampiros. Nossa existência depende disso.

Viper franziu a testa.

— Está sendo melodramático para um vampiro que es­colheu a existência de um monge. O que pode ser assim tão terrível?

— Não pode simplesmente confiar em mim?

— Não.

Styx levou a mão a um pequeno medalhão que tinha pendurado no pescoço. Era um antigo símbolo asteca do qual ele nunca se separava.

— Está tornando esta situação mais difícil.

— Não estou fazendo nada disso, Styx. Eu estava em paz em minha casa com Shay, sem perturbar uma alma. Você é quem me meteu nesta desgraça.

A frieza pareceu envolver ainda mais o outro vampiro.

— Ordens do anasso. E é isso o que importa. O diabo que importava.

— Foi você quem capturou o troll que detém a praga de Shay?

— Não, ele conseguiu escapar.

Viper estremeceu. Styx podia ser evasivo, ou simples­mente se negar a responder uma pergunta, mas nunca mentiria. Assim, onde estaria Evor?

Tentou fazer com que os fatos ocorridos nos últimos dias fizessem algum sentido. Tudo o que ele sabia agora é que tinha sido o anasso quem determinara a captura de Shay desde o começo. Mas por quê?

— O que quer de Shay? Seu sangue?

Styx voltou o olhar para a paisagem da janela do carro.

— O sangue dela é vida. Viper sentiu um arrepio.

— Vida para quem?

— Chega, Viper. - Styx afastou o olhar da janela.

— Eu já lhe disse tudo o que pretendia revelar.

Viper engoliu a frustração. No momento, não estava em posição de fazer exigências.

Mas tinha confiança de que tudo mudaria. E quando isso acontecesse...

Forçado a mudar de tática, tentou voltar ao assunto que perturbara Styx.

— Nunca entendi por que você se ligou tanto ao anasso. Sempre foi tão independente.

Styx deu de ombros.

— Descobri, enquanto os séculos foram passando, que precisava de algo mais do que apenas existir.

— Mas a sua vida não era uma mera existência - Viper retrucou.

— Não somente era um temido guerreiro, mas o chefe de um dos maiores clãs que existiu neste mundo. Um feito invejado por muitos.

Os olhos negros brilharam de raiva.

Por mais ridículo que fosse, Viper descobriu que estava satisfeito em ver essa rara exposição de emoção por parte de Styx. Isso provava que ainda havia algo no ex-amigo que ele admirava.

— Oh, sim, invejado por todo tolo que sonhava com a glória de chegar à minha porta e me desafiar - o vampiro falou com amargura.

— Raro era o ano em que não me via obrigado a lutar.

                                        

— É o custo da liderança - Viper retrucou. — Nunca foi fácil.

— Não me importo em trilhar um caminho difícil. Até dou boas-vindas a ele. Mas não quero mais um caminho sangrento. Cansei de matar.

Viper compreendia bem essas emoções. Ele, melhor do que ninguém, entendia o arrependimento de ter sangue nas mãos.

Assim como ele, Styx tivera sua experiência de excluído. Um vampiro sem clã era presa fácil, até que se tornasse forte o suficiente para se defender.

Como, agora, ele se colocava na dependência de alguém novamente?

— Também cansei - falou finalmente.

— Mas isso não explica por que você se ligou ao anasso.

— Todos nós o servimos. Ele é o senhor de todos nós. Viper sacudiu a cabeça.

— Não como um soldado de sua guarda pessoal. Você vendeu a sua alma.

—Não. -A palavra foi menos que um sussurro. — Estou tentando recuperá-la.

— A sua alma? - Viper estremeceu.

— Chame-a de vontade. - Styx fez um gesto de impa­ciência com a mão.

— Um sentido para a vida.

Viper estava surpreso. A última coisa que esperava, era debater filosofia enquanto era mantido prisioneiro em uma limusine. Naturalmente, isso tinha de acontecer. Aquele era Styx, afinal de contas.

— Está me soando como um humano - Viper observou.

— Não são os humanos que sempre lutam para descobrir um destino além de si mesmos?

— E estão errados? Não devemos lutar para deixar um legado que enriquecerá nossos irmãos?

Viper apontou para as algemas de prata que faziam ar­der sua pele.

— Acredita que é isso o que está fazendo? Enriquecendo os irmãos?

O vampiro teve a decência de franzir o cenho, embora sua voz permanecesse macia.                            

— Você parece se esquecer de que foi o anasso quem lide­rou a batalha para civilizar nossos clãs. Foi sua força que nos permitiu derrotar aqueles que nos mantinham presos à igno­rância. É sua presença que evita que a anarquia volte. Penso que você, Viper, mais do que todos, deveria entender isso.

Viper não havia se esquecido do passado. Ou das ba­talhas sangrentas e brutais em que lutara. Muito menos que tinha sido o anasso a liderar a mudança. Sem dúvida, sem seus esforços eles teriam continuado a viver como sel­vagens.

— E assim o fim justifica todos os meios, não é, Styx?

— Está caçoando de mim, Viper?

Um leve sorriso surgiu nos lábios dele.

— Não, na verdade eu entendo. Encontrei satisfação como chefe, mas como você diz, há mais na vida do que o poder. Somente agora achei um propósito para a minha.

Styx o olhou com curiosidade.

— E que propósito é esse?

— Shay - ele disse simplesmente.

— Não importa o que venha a acontecer, farei tudo para mantê-la em segurança. Amaldiçoarei a raça inteira dos vampiros se for preciso.

Styx colocou a mão em seu medalhão.

— Você deveria era usar o bom senso e chamar a shalott, meu amigo.

As cavernas se pareciam mais com quartos de um cas­telo medieval do que com buracos. As paredes, e até mes­mo os tetos, estavam forrados por ricas tapeçarias; o chão, coberto com carpetes grossos e macios; e a escuridão fora afastada com o uso de candelabros de bronze, cada um com uma dúzia de velas. A mobília era de madeira ricamente entalhada.

Definitivamente, o lugar não se assemelhava a um abri­go de vampiros.

Ainda assim, o anasso nunca tinha perguntado a opinião dele quando decorara os quartos.

Styx soltou um suspiro. Era inteligente demais para expor sua opinião naquele caso. Durante o século anterior, seu senhor havia se tornado uma pessoa de reações tão imprevisíveis.

Aproximou-se bem devagar da enorme cama. Como o anasso tinha mudado naqueles últimos cem anos...

A doença atacara seu mestre. Damocles empesteava as cavernas com a sua indigna presença.

— Styx?

A voz rouca encheu o ar.

— Sim, milorde.

— Ouvi dizer que me trouxe Viper, e que logo ele poderá chamar a minha shalott.

— Sim, mestre.

— Eu preferiria que tivesse trazido o demônio, mas fez um bom trabalho. Naturalmente é o que sempre faz. Mas noto algo em sua voz... - Os olhos negros do anasso o fi­taram por um longo momento.

— Certamente não é arre­pendimento?

— Não gosto de ferir um amigo.

— Presumo que esteja se referindo a Viper.

Styx apertou as mãos. Quando tinha recebido a ordem de capturar Viper junto com a shalott, havia discutido e argumentado contra isso. Não aprovava esse tipo de traição entre vampiros.

— Ele é um vampiro honrado. Não merecia ser tratado dessa maneira.

O anasso suspirou profundamente.

— Meu velho amigo, sabe que eu alegremente o recebe­ria como irmão se ele usasse o amuleto para trazer a sua escrava. Ele fez isso?

— Não. - Styx cerrou o maxilar.

— Ele nutre senti­mentos por sua shalott.

— Uma pena. - O velho vampiro alisou o veludo do rou­pão, como se estivesse entretido em profundos pensamen­tos, mas Styx não deixou de notar que seu olhar escurecera.

— Como você, eu também não gosto de torturar ninguém da minha espécie. Infelizmente, não podemos evitar que isso aconteça agora. A shalott está quase em nossas mãos. Ele tem de usar o amuleto.

— E se ele não o fizer?

— Tenho fé de que será convencido pela sua guarda.

— Deu ordens para que o torturassem?

— Essa foi sua decisão, não minha, Styx - o anasso lem­brou gentilmente.

— Eu preferiria uma solução um pouco mais simples.

Styx sentiu um frio na espinha, o rosto endurecendo com desprazer.

— Queria assassinar Viper e pegar a shalott à força? Alguma coisa brilhou nos olhos escuros, antes que o vampiro retomasse a expressão de paciência infinita.

— Uma acusação dura, meu filho.

— Como o senhor a chamaria?

O anasso assumiu um ar indefeso.

— Um infeliz sacrifício por uma causa maior. Styx sacudiu a cabeça.

— Belas palavras não fazem a solução ser menos des­prezível.

— Pensa que não tenho arrependimentos? Que eu não alteraria o passado se isso fosse possível? Culpo-me pelas circunstâncias em que nos encontramos agora.

E o que deveria fazer, Styx pensou. Tinha sido a fraque­za dele que os havia levado àquele momento: o apego ao proibido, que poderia bem matar o nobre vampiro.

— Estou ciente disso, milorde.

O anasso cerrou as sobrancelhas.

— Talvez acredite que deveríamos deixar Viper e a sha­lott seguirem seu caminho. Mas, sem ela, certamente eu morrerei.

— Deve haver outros meios de evitar isso.

— Busquei todos os meios possíveis, até mesmo as dro­gas que aquele duende me impingiu. - O vampiro sacudiu a cabeça.

— Não há nada que cure a doença, a não ser o sangue da shalott.

— Shay - Styx falou suavemente.

— Como?

— O nome da shalott é Shay.

— Sim, claro. - O silêncio reinou no quarto por alguns momentos.

— Styx?

— Sim, milorde?

— Se mudou de idéia, eu entendo. Eu o coloquei em uma posição difícil, pela qual me arrependo muito. - Estendeu a mão e o tocou no braço.

— Deve saber que a fé e a lealdade significam mais para mim que a própria vida.

Styx sentiu um aperto no peito.

— O senhor é muito bondoso, milorde.

— Não bondoso. - Um leve sorriso surgiu nos lábios deformados.

— Lembra-se de quando nos conhecemos?

— Eu lutava contra os lobisomens, se me lembro bem. O anasso riu.

— Você me disse que eu teria de esperar pela minha vez para ser morto.

Styx soltou o ar, desgostoso.

— Eu era ainda jovem e impetuoso.

— Lembra-se do que eu disse?

O vampiro se voltou para a lareira onde as brasas ar­diam. Não era nenhum estúpido. O anasso queria que ele se lembrasse de que, nessa ocasião, ele lhe fizera uma pro­messa. E talvez também quisesse lembrá-lo de que a causa os mantinha unidos.

Uma causa que fora além deles próprios.

— Disse que pretendia parar com o rio de sangue - fa­lou em voz vazia.

— Escrever o destino da raça vampira nas estrelas. Unir a nós todos e nos tirar do caos. Depois me pediu para caminhar a seu lado.

— Ao meu lado, Styx. Nunca atrás. - Houve uma pausa estratégica.

— Quero que esta seja sua decisão, meu filho. Se acredita que é melhor soltar Viper, e permitir que a shalott continue livre, pois que isso seja feito.

— Não, milorde. - Voltou-se para o doente, protestan­do. —

Não posso...

O vampiro fez um gesto, interrompendo-o.

— Pense nisso, Styx, mas pense depressa. Não temos muito tempo.

Levet observou com curiosidade a charmosa área de campo, nas proximidades do rio Mississipi. Não se pare­cia em nada com um lugar onde se instalasse um bando de vampiros que pretendia voltar a agir como nos velhos e sangrentos tempos.

Claro, podia ser um pouco difícil se esconder em um cas­telo gótico, cheio de morcegos e criaturas estranhas. Era o tipo de coisa que as pessoas tendiam a notar.

Escondida no meio de alguns arbustos e rochas caídas, Shay massageava os músculos das pernas. Tinha corrido por cerca de seis horas, seguindo o rastro da limusine nas estra­das de Illinois. Isso não seria possível se estivessem dentro de um automóvel... Mas a pé, o cheiro de tantos vampiros fora o suficiente para que ela e Levet os seguissem até lá.

A adrenalina a levara a tal façanha, até chegarem ao Monte Rushmore, quando aproveitara para arranjar uma camiseta em um varal de uma fazenda próxima.

— O tempo está passando Levet.

— Eu sei - ele resmungou. Depois ficou atento.

— É aqui. Sinto o cheiro. Vamos ou não vamos?

Shay respirou fundo. Fitou os buracos negros diante dela e suas mãos começaram a suar. Havia jurado que nunca mais entraria em uma caverna escura depois de sua expe­riência com as bruxas.

Mas se lembrou da promessa que Viper lhe fizera: Nunca mais vai ficar sozinha no escuro.

Não que estivesse sozinha agora. Levet estava a seu lado, e Viper devia contar que ela o salvasse.

— Estou indo. - Sua voz saiu firme, apesar de tudo. Entraram em um dos túneis. Shay inspirou e não sentiu por perto sinal de humanos nem de demônios.

— Ninguém passa por este túnel há anos.

Levet olhou uma enorme rachadura em uma parede.

— Porque é instável.

— Quanto?

— Parece suficientemente seguro por hora, mas eu não me arriscaria a usar algo como dinamite aqui dentro.

— Vou me lembrar disso...

Levet estendeu a mão e pegou a de Shay.

— O sol vai surgir, e quero sua promessa antes que eu seja obrigado a virar pedra.

Ela lhe sorriu com carinho.

— Que promessa?

— Não posso evitar que procure por Viper, mas quero sua palavra de que não vai tentar nada estúpido.

Shay revirou os olhos, irritada.

— Por que as pessoas vivem me dizendo isso?

— Porque você é impulsiva e se deixa levar demais pelo coração. Seja cuidadosa.

— Eu serei, prometo.

Ela se inclinou e beijou o rosto do gárgula, exatamen­te quando a primeira luz do amanhecer invadiu a caverna. Levet virou pedra no mesmo momento.

Com um último gesto de carinho na cabeça do amigo, Shay se voltou e entrou no túnel.

Embora a imortalidade tivesse muitas vantagens, havia alguns problemas em se viver para sempre: o interminável tédio da Idade Média. O aborrecimento por ter de se apren­der novas tecnologias.

E, pior de tudo, sobreviver às mais brutais torturas.

Viper perdera a noção do tempo desde que entrara na caverna. De alguma forma, estar preso por correntes ao teto e ter a carne chicoteada ininterruptamente estava sendo uma distração e tanto.

Só não sabia por quanto tempo mais resistiria àquela perda de sangue. E estava se tornando difícil demais man­ter a cabeça no lugar com o brutal ritmo dos chicotes res­soando pelo ar: nunca parando, nunca se apressando, nun­ca se alterando. Um ritmo lento e contínuo, que dilacerava suas costas e pernas.

O fim veio sem aviso. Em um momento o chicote se en­terrando em sua carne, no outro, os silenciosos vampiros deixavam a caverna sombria.

Teria grunhido de alívio se não tivesse sentido que Styx entrava na sala e ficava bem diante dele. Não ia permitir, de jeito algum, que seu captor percebesse nele qualquer si­nal de fraqueza.

Capaz de ler facilmente os pensamentos, o vampiro alto resmungou:

— Por que tem de ser tão teimoso, Viper? Isso não lhe serve de nada. Tudo o que precisa fazer é chamar a shalott e será libertado.

Ignorando a agonia que sentia ao menor dos movimen­tos, Viper levantou a cabeça e encarou aquele que, em um tempo distante, fora seu amigo.

— No momento em que me libertar, eu o matarei. A expressão no rosto de Styx não se alterou.

— Não sou seu inimigo.

— É assim que trata os amigos? - Viper cuspiu sangue nos pés de seu captor.

— Posso lhe dizer que sua hospitali­dade é uma droga.

— Eu nunca quis que fosse torturado. Nunca desejei mal a nenhum de meus irmãos. Quero salvar a todos do caos e da ruína.

— Não - Viper sibilou.

— Você quer sacrificar uma mu­lher jovem e inocente para salvar um vampiro que só lhe arruinou a vida. Ou nega a fraqueza do anasso?

Styx apertou as mãos. Nem mesmo ele podia esconder inteiramente o seu desprazer diante da doença que havia atacado o mais poderoso dos vampiros. Era quase um segre­do que os vampiros podiam ser afetados quando tomavam o sangue de viciados em drogas. E mais segredo ainda que os vampiros podiam se viciar também.

O sangue contaminado poderia, vagarosa e impiedosamente, destruir qualquer um de sua espécie. Mesmo o anasso.

— Isso já ficou no passado - Styx retrucou por fim, com uma voz fria.

— Você se refere a quando ele foi curado pelo sangue do pai de Shay?

— Sim.

Viper cerrou os dentes quando uma nova onda de dor nos braços o atingiu. Os vampiros não deviam ficar pendu­rados em tetos, presos a algemas de prata. Assim como não deviam ser raptados por antigos companheiros, nem chicoteados como cães selvagens.

— Se isso ficou no passado, por que ele está doente de novo? - Viper exigiu uma resposta.

Para sua surpresa, Styx começou a andar de um lado para o outro, tenso.

— Isso importa?

A horrível dor que Viper sentia foi esquecida quando a fúria falou mais alto.

— Considerando a sua intenção de matar a mulher que eu amo, importa bastante!

Styx estremeceu visivelmente, como se Viper tivesse, por fim, conseguido atingi-lo.

— Eu lamento a necessidade. Não sabe quanto, Viper, mas deve pensar no que vai acontecer se o anasso morrer.

— Lentamente, ele dirigiu a Viper um olhar atormentado.

— Um vampiro se levantará contra outro. Alguns irão que­rer dominar os demais, e outros simplesmente voltarão aos tempos que tínhamos antes do anasso. O sangue dos clãs será derramado sobre nós, enquanto os chacais voltarão para o seu lugar na glória.

— Chacais? - Viper estremeceu.

— Está se referindo aos lobisomens?

— Eles se reuniram sob o comando de um novo rei. Um jovem e destemido lobisomem, que sonha com o dia em que eles governarão a noite. - A voz de Styx soou cheia de preocupação.

— É apenas o medo que eles têm do anasso que ainda os impede de nos atacarem.

Viper sacudiu a cabeça lentamente. Pelo sangue dos jus­tos. Styx estaria assim tão cego? Ficara enfiado tempo de­mais dentro das cavernas escuras para não ter idéia do que estava acontecendo no mundo?

— Você é um tolo, Styx.

— Não duvido que muitos concordem com você, mas nunca ousam fazê-lo na minha cara!

Como se um monte de insultos fizesse diferença. Viper acabou sorrindo com amargura. Ele já estava sendo tortu­rado. O mais poderia acontecer?

— Abra os olhos, velho companheiro. Não é o anasso que impede que os vampiros se dilacerem uns aos outros. Nem mesmo o que detém os lobisomens de nos atacarem.

Styx olhou para Viper como se escutasse uma blasfêmia. E talvez fosse mesmo uma heresia para ele. Havia dedicado toda a sua existência ao anasso. Não podia, pois, ver nada além disso.

— Claro que é - insistiu. — Ele é quem nos levou ao triunfo.

— Talvez ele nos tenha liderado, mas ninguém tem visto nem conversado com o anasso há séculos. Ele é pouco mais que uma vaga sombra lembrada por seus feitos no passado.

— Eles o temem. Temem o poder que ele detém.

— Não. Eles temem você, Styx. Você e sua guarda. Você é quem tem governado os vampiros, queira isso ou não.

Styx endireitou o corpo, as feições tensas.

— Isso é traição.

— É a verdade nua e crua. - Viper franziu o cenho, mal aguentando manter a cabeça erguida. Sua força estava se esvaindo com a perda de sangue.

— Deixe este lugar e visite os clãs se quer saber a verdade, Styx. Sua lealdade o cegou.

Styx soltou um grunhido.

— Vim aqui na esperança de fazer você cair em si. Obviamente, a sua loucura é maior do que eu temia. - Estendeu a mão e tocou no medalhão em seu peito.

— Quando estiver preparado para chamar a shalott eu volta­rei aqui.

Dando as costas, o vampiro deixou Viper entregue à dor e à escuridão.

Não que Viper realmente se importasse com isso. Enquanto as correntes de prata dilaceravam sua pele, e seus músculos se contraiam em agonia, ele podia jurar que sentia o doce perfume de Shay.

Os túneis terminaram por se revelar um verdadeiro la­birinto que levava a nada, ou pior: levavam ao mesmo ponto de partida. Meia hora de busca infrutífera, e Shay percebeu estar perdida.

Começou a praguejar em francês. Não sabia o que significavam as imprecações, mas pareciam perfeitas na­quele momento.

Praguejou de novo ao bater a cabeça no teto. O lugar obviamente não tinha saída. Era escuro, cheio de limbo e muitas aranhas.

Sem falar agora no cheiro inconfundível de vampiros.

Oh, benditos fossem os céus! Preferia um bando de vam­piros raivosos a ficar mais um minuto presa naquele lugar!

Identificar o cheiro de vampiros, no entanto, e se ver cara a cara com eles, eram duas coisas bem diferentes.

Shay franziu o cenho. Olhando bem, não parecia ser um túnel. Após outras tantas voltas sem sucesso, finalmente deu com tochas acesas, presas às paredes. Um ou outro ta­pete revelava que devia estar perto da gruta dos vampiros.

Em uma encruzilhada, parou para tomar fôlego. Os vam­piros deveriam estar à direita. Pelo menos sete deles. Mas, à esquerda, havia cheiro de humanos. Em bom número, e todos cheirando a medo e doença.

Havia algo mais. O cheiro de um duende e de um troll!

Seu coração disparou. Seria Evor? Ele estaria perto o sufi­ciente para que ela o capturasse logo depois de salvar Viper?

Shay se virou na direção dos vampiros e afastou os pen­samentos da criatura. Tudo o que importava no momento era encontrar Viper.

O túnel se tornou mais largo e, obviamente, mais transitável, porém curiosamente deserto. Com sua habitual falta de sorte, ela esperava encontrar um vampiro a cada curva.

Para sua surpresa, não viu nenhum.

Foi assim que sentiu o cheiro de Viper.

— Viper! - ela chamou em voz baixa.

Não recebeu resposta alguma. Droga, ele devia tê-la es­cutado. A não ser que...

Não, não e não, Não queria nem pensar nisso!

Engolindo em seco, pegou uma das tochas e forçou os pés a seguirem adiante.

Bem à sua frente havia uma entrada estreita. Viper es­tava lá. Podia sentir com cada batida de seu coração.

Cuidadosamente, ela se esgueirou pela estreita abertura.

Uma vez dentro de uma pequena caverna, levantou a tocha, tentando ver à frente.

O que encontrou quase lhe dilacerou o coração. Viper es­tava mesmo ali: pendurado pelos pulsos ao teto. Havia sido chicoteado até que suas costas e pernas ficassem com os os­sos à mostra. Havia sangue em toda parte: em seus cabelos, em seu rosto perfeito.

— Viper! Droga, o que fizeram com você?! - exclamou, horrorizada.

A tocha caiu ao chão antes que ela conseguisse se con­trolar.

Céus, a última coisa de que Viper precisava naquele mo­mento era ver uma crise de histeria.

Shay tentou se controlar. Sempre afirmara ser uma guerreira. Era hora de começar a se comportar como uma.

Engoliu em seco. Os vampiros haviam prendido Viper com correntes e o tinham espancado como se ele fosse um animal.

Cerrou os dentes, irada. Pretendia vê-los no inferno as­sim que conseguisse colocar Viper em segurança.

Uma tarefa que provou ser mais difícil do que imaginava.

Em vão, tentou mover a pesada corrente que mantinha Viper preso ao teto. Pelo menos era de prata e não de ferro, embora Viper não pudesse se alegrar com o fato.

Soltou um gemido. Podia sentir o cheiro do metal quei­mando a pele dele. Devia ser extremamente doloroso estar exposto, assim, a uma substância terrível para os vam­piros.

Pressionando, puxando, revirando, finalmente ela con­seguiu tirar a corrente do teto da caverna. O sucesso, natu­ralmente, teve um custo. Viper caiu pesadamente no chão.

Correu para o lado dele, e conseguiu livrá-lo das correntes.

Por anos ela amaldiçoara a força de demônio que a di­ferenciava dos humanos. Achara-se uma aberração. Uma criatura de que todas as crianças caçoavam e que os adultos temiam. Agora, pela primeira vez, apreciava os dons que herdara do pai.

Colocando a cabeça de Viper sobre o colo, ela limpou o sangue do belo rosto agora marcado pela dor.

— Viper! Viper, pode me ouvir?

Não teve resposta alguma no primeiro momento. Por fim, o corpo dele estremeceu.

— Shay?...

Ela inclinou a cabeça para que ele conseguisse escutá-la.

— Não se mexa, estou aqui.

— É um sonho?

Ela soltou uma risada histérica.

— Deve ter tido sonhos melhores do que este...

— Venho sonhando com você há meses. Não. Venho so­nhando com você por uma eternidade. - Viper abriu os olhos com incrível dificuldade.

— Pensei que nunca a en­contraria, mas encontrei. Não podia deixá-la ir embora. Não quando preciso desesperadamente de você. Nunca vou deixá-la partir.

Os olhos de Shay se encheram de ridículas lágrimas. Ele, sem dúvida, delirava e estava totalmente fora de si com a dor. Mas ninguém jamais dissera palavras que a emocio­nassem tanto como aquelas.

— Como se pudesse se livrar de mim agora. Viper, você precisa acordar.

Com esforço, ele procurou voltar à consciência.

— Não devia estar aqui. É perigoso.

Perigoso? Uma caverna cheia de vampiros desesperados para drenar o sangue dela? Bobagem.

— Não se preocupe, já estamos indo embora.

— Vá você... Agora!

— Ambos iremos. - Ela estendeu o braço e colocou o pu­nho contra os lábios dele, decidida.

— Mas, primeiro, você tem de beber.

Sentiu que ele estremeceu ao ouvir as palavras.

— Não Shay. Não vai querer que eu tome o seu sangue.

— Meu sangue vai curá-lo, Viper. Por que acha que as shalotts são tão procuradas?

Ele sacudiu a cabeça.

— Vá, Shay! Ou eles irão matá-la!

Ela balançou a cabeça em uma negativa.

— Primeiro vão ter de me pegar.

— Não é tão forte como pensa.

— Vou lhe mostrar o quanto sou forte, se não beber - ela ameaçou, pressionando o punho contra os lábios dele.

— Tem de fazer isso agora, Viper, ou ambos morreremos.

Seus olhares se encontraram por um longo e silencioso momento.

Então ele a mordeu.

Shay arregalou os olhos, e seu corpo inteiro entrou em choque quando dois caninos ultrapassaram a pele de seu pulso. Não sentiu dor, mas quase desejou que o fosse. Isso era comum em batalhas...

O que sentiu, foi uma poderosa onda de prazer percorrer seu corpo. Um prazer torturante, agonizante...

Era possível? - perguntou-se, atordoada.

Em meio à deliciosa sensação, percebeu que Viper recu­perava as forças. O sangue dela funcionara como mágica. A doce pressão dos dentes dele em seu punho alcançou um ponto máximo, e ela gritou de prazer.

Tombou para a frente e enterrou a cabeça nos cabelos de Viper, ofegante. Estava tonta e fraca agora.

E muito embaraçada. Não era hora para desfrutar os prazeres da carne.

— Shay? Shay, fale comigo!

— Droga! - ela exclamou, forçando-se a encontrar o olhar de Viper.

— Eu a machuquei?

— Não exatamente.

Ele a observou por um longo momento, até compreender o que tinha acontecido.

— Está ruborizando?

— Eu... - Ela parou de falar e o fitou com preocupação.

— Melhorou o suficiente para cairmos fora daqui?

Um grande sorriso surgiu nos lábios dele.

— Estou curado. Completamente curado! - exclamou, surpreso.

— Não é de surpreender que o anasso esteja tão ansioso para colocar as mãos em você.

Shay franziu o cenho de leve enquanto ainda detinha o olhar nos caninos pontiagudos.

— Não são as mãos dele que quero em meu corpo... Viper sorriu e a beijou na boca.

— Você me deu um grande presente, Shay. Um presente do qual nunca me esquecerei.

— Promessa é promessa. Eu tinha uma dívida de sangue com você.

— Agora fique quieta, mulher. Logo pretendo lhe dizer como foi maluca em me seguir e colocar sua vida em ris­co. Por hora, simplesmente quero que saiba que honrou seus ancestrais. Nunca conheci ninguém, vampiro, demônio ou humano, que possuísse sua coragem e sua lealdade... Você é uma guerreira da qual seu pai se orgulharia. Um forte rubor tomou conta do rosto de Shay.

— Acho que devemos pensar agora era como sair daqui - ela disse apenas.

Viper estreitou os olhos escuros.

— Há momentos em que me desespero por sua causa... Realmente me desespero. - Ele a beijou com paixão.

— Mas está certa. Vamos sair daqui. O quanto antes melhor.

 

                         Capítulo V

Viper estava irritado, pois tinha falhado em descobrir quem caçava Shay. Falhado em capturar o maldito Evor e pôr um fim na maldição. Falhado em evitar que Shay se colocasse em perigo.

Tinha sido um fracasso.

Não demorou muito e Shay tropeçou em uma pedra mais uma vez.

— Você está bem? - ele perguntou, preocupado.

— Não muito. - Ela massageou o dedo do pé.

— Não enxergo nada nessa escuridão.

— Como conseguiu me achar? Ela deu de ombros.

— Quando escapei do armazém, dei de cara com Levet. Ele já estava seguindo a limusine.

— O gárgula? Pensei que ele não se importasse comigo.

— Ele pensou que eu também estivesse no carro.

— Ah, claro... E Dante?

— Está reunindo o seu clã. Logo que o sol se puser, Levet voltará a Chicago e os trará até aqui.

Viper a puxou para mais perto.

— E não lhe ocorreu que devia esperar por Dante? Shay comprimiu os lábios.

— Você poderia morrer.

— Mas você estaria em segurança - ele grunhiu.

— Droga, Shay, não quero que se arrisque.

— Prometeu que eu não seria sua escrava.

Viper suspirou, exasperado.

— E não é.

— Nesse caso sou livre para tomar as minhas próprias decisões. Alguém precisava vir aqui e salvá-lo. Foi exata­mente o que fiz.

Era, sem dúvida, o argumento mais ridículo que ele ti­nha ouvido na vida.

— Mesmo que isso significasse ser apanhada e ter seu sangue drenado? É exatamente o que vai lhe acontecer se for capturada. Deveria voltar já para o lado de Abby. Estaria em segurança lá.

— Não, eu não estaria.

Ele franziu o cenho.

— Shay, nem mesmo Styx ou sua guarda ousariam ata­car a Fênix. Por isso nos induziram a deixar a casa.

— Ele poderia não atacar a Fênix, mas não importaria por quantas deusas eu estivesse rodeada se os vampiros de­cidissem matar Evor.

Os músculos de Viper se retesaram.

— Evor? Sabe onde ele está?

— Penso que esteja aqui.

— Não. Styx me disse que não conseguiram colocar as mãos no troll.

Shay soltou uma risada amarga.

— E acreditou em Styx, mesmo depois que ele o captu­rou e torturou?

Viper franziu a testa de leve. Pretendia resolver suas diferenças com seu velho amigo, mas não agora.

— Ele poderia me torturar, poderia inclusive me matar, mas nunca mentiria. Não intencionalmente.

— Que graça.

Percebendo que seria impossível explicar a complexa moral de Styx, Viper voltou sua atenção ao que ela afirmara.

— Por que acredita que ele está com Evor?

— Porque senti o cheiro de Evor enquanto atravessava a caverna.

Um frio passou pela espinha de Viper.

— Tem certeza?

— O cheiro dele é inconfundível.

Viper cerrou os dentes. Como Evor podia estar por perto sem que Styx soubesse disso?

— Droga.

— O que foi? - ela perguntou.

— Onde Levet está? Shay o olhou, curiosa.

— Ele está brincando de estátua perto da saída da ca­verna. Por quê?

— Ele iria comigo procurar o troll?

— Não.

— Shay...

— Não, não e não! Não sou uma idiota indefesa, que tem de fugir cada vez que acontece alguma coisa um pouco mais perigosa.

— Um pouco mais perigosa? Estas cavernas estão cheias dos mais perigosos vampiros que existem na Terra!

— E que, por hora, estão todos enfiados em seus caixões.

— Quer arriscar a sua vida nisso?

— É a minha vida, não a sua.

Viper fechou os olhos e procurou não se deixar abater pela frustração. Aquela mulher certamente o levaria ao túmulo.

— Os vampiros deveriam tomar aulas com você, Shay. São amadores no que se refere a torturar uma criatura.

— Vai ficar aí reclamando ou vamos procurar Evor? - Ela perguntou, enquanto seguia pelo túnel.

De repente ela parou e caiu de joelhos.

— O que foi? - Ele se apressou em auxiliá-la.

— Não sei... Fiquei tonta.

Viper notou a palidez em seu rosto. Parecia doente. Levou um momento para saber o que era.

— Diabos, sou um idiota. Você precisa descansar um pouco. Passou o dia lutando com trolls, demônios e, de­pois, ainda tentou me localizar. Além do mais, ainda doou uma grande quantidade de sangue a um vampiro ferido. Chega a surpreender que ainda esteja de pé. - Ele a beijou levemente nos cabelos.

— Mesmo o mais poderoso dos guer­reiros precisa ocasionalmente recuperar a sua força.

— Mas temos de cair fora daqui. Ele a fez entrar em um dos túneis.

— Temos tempo. Como você bem disse, os vampiros es­tão em seus caixões, e não podem sair das cavernas até que o sol se ponha.

Houve uma pausa antes que ela finalmente suspirasse.

— Talvez possamos encontrar um lugar para descansar­mos por alguns minutos.

— Uma excelente idéia. - Viper olhou em volta da pe­quena caverna onde haviam chegado. Era rochosa e descon­fortável. Mas tinha a vantagem de ser bem distante das ou­tras cavernas, e com apenas uma entrada. Ninguém seria capaz de encontrá-los ali.

Viper a ajudou a sentar-se no chão, depois também se sentou e a tomou em seus braços.

— Feche os olhos e descanse, Shay. Vou ficar de guarda. Verdadeiramente fraca, Shay nem mesmo tentou argu­mentar. Apoiou a cabeça no ombro de Viper, e caiu no sono.

Levet podia não ser nem grande nem abençoado com poderes assustadores herdados de seus ancestrais, mas era bastante inteligente. Não se surpreendeu quando acordou e descobriu que Shay não estava mais por perto.

De nada adiantara lhe pedir que tivesse cuidado. Ela faria qualquer coisa, enfrentaria qualquer perigo para sal­var Viper.

Droga. Tinha de entrar em contato com Dante e pedir ajuda. E bem depressa. Não haviam esperado que levas­sem Viper para tão distante da cidade. Mesmo que Dante e sua tropa de choque deixassem Chicago naquele momento, levaria horas para o clã chegar àquela fazenda isolada. Assim, nem podia pensar em voltar a Chicago para lhes passar a localização da chácara. Era preciso outra forma de comunicação.

Deixou a caverna e procurou se mover bem devagar. Os vampiros eram predadores perfeitos. Podiam usar todos os seus sentidos para localizar uma presa. Qualquer pedrinha deslocada, qualquer cheiro levado pela brisa, e a cabeça dele estaria decorando uma parede da fazenda.

Voou alguns quilômetros antes de seguir o caminho até o rio. Pousou e ajoelhou-se junto a água. Tudo à sua volta parecia vivo: insetos, peixes, guaxinins curiosos. Mas ele os ignorou e se concentrou, olhando para a água.

Começou, então, a falar as palavras mágicas em voz bai­xa. Uma luz fraca apareceu antes que seu reflexo desapare­cesse, e um vazio escuro tomasse o lugar.

Um longo tempo se passou, até que ele conseguiu captar uma presença familiar.

— Dante, é Levet!

— Levet? - O vampiro olhou em volta, admirado.

— Onde, diabos, você está?

— Se clarear a sua mente, eu lhe mostrarei.

— O quê?

Levet praguejou um bocado. Bem baixo, para que o vam­piro não o escutasse. Não era completamente suicida, mas praguejar fazia com que se sentisse melhor.

— Apenas clareie a sua mente, eu farei o resto. Dante não pareceu muito feliz, mas fechou os olhos e, obviamente, fez uma tentativa de esvaziar a mente. Levet não perdeu tempo, e lhe passou as imagens do caminho até a fazenda.

Finalmente, Dante abriu os olhos e sacudiu a cabeça.

— É bem mais distante do que pensei. Mesmo indo de carro, levaremos horas para chegar.

Levet concordou com um suspiro de frustração.

— De qualquer modo, esperarei na entrada da caverna.

Com um movimento de mão, ele fechou o portal. A ima­gem de Dante sumiu, mas a escuridão permaneceu. Levet estranhou, e se surpreendeu quando um lindo rosto de mu­lher surgiu diante dele. Olhou, horrorizado, quando a mu­lher passou pelo portal e se materializou diante dele.

— Você é uma criatura das águas! - exclamou, perplexo.

— E você, um gárgula, apesar de eu nunca ter visto um tão pequeno. Ficou desse jeito por causa de algum feitiço?

Levet revirou os olhos e começou a deixar a margem do rio. As criaturas das águas eram adoráveis, mas raramente inteligentes.

— Não fui enfeitiçado. Sempre fui deste tamanho.

— Surpreendente. - Ela o seguiu.

— Por que não volta ao lugar de onde veio?

— Não posso fazer isso.

— Claro que pode.

— Foi você quem me trouxe aqui, pequeno gárgula - ela retrucou.

— Não fiz isso.

— Fez sim!

Levet balançou a cabeça, exasperado.

— Está livre. Pode ir embora. A criatura sorriu levemente.

— Parece que não sabe muito sobre magia.

Levet agitou as asas, irritado. Bonita ou não, a mulher estava sendo inconveniente.

— Muito bem... diga-me o que tenho de fazer para você desaparecer.

A criatura surpreendeu-se.

— Não me acha bonita?

— Acho girafas bonitas, mas nem por isso quero uma me seguindo. Especialmente uma que não mantém a boca fechada.

— Você não é um gárgula bonzinho. - A pele dela co­meçou a brilhar sob a luz fraca do luar. Era um brilho que tinha atraído marinheiros aos seus domínios por séculos.

— Deve me dizer que sou bonita, e que quer estar comigo.

— O que eu quero é ficar em paz - Levet grunhiu.

— Fique quieta.

Ela arregalou seus enormes olhos azuis, mas ficou calada. Levet estremeceu. Ela realmente o obedecia? Não tinha sido uma ordem, apenas um desejo. Um sorriso surgiu em seus lábios.

— Entendi. Você atenderá a três pedidos meus, e voltará para águas.

A criatura pareceu frustrada. Esperava que o gárgula quisesse passar bastante tempo com ela. Mas, enquanto não lhe atendesse os dois desejos que faltavam, estaria livre da prisão das águas.

Levet ficou pensativo. Já tinha usado um desejo, pedin­do que ela ficasse quieta.

Um desejo bem usado, afinal.

Agora lhe restavam apenas dois, e ele precisava decidir precisamente quando deveria usá-los.

Shay lutou contra o desejo de continuar dormindo. Percebeu estar com a cabeça descansando no ombro de Viper, envolta em seus fortes braços.

— Que horas são?

— Passou do anoitecer.

— Por que não me acordou?

— Tentei várias vezes, mas você não me obedeceu... Me chamou de nomes bastante desagradáveis, e ameaçou me enfiar uma estaca no peito.

— Não acredito em você.

— Muito bem, se quer mesmo a verdade eu a direi: gosto de observá-la enquanto dorme. Tê-la em meus braços, sen­tir o seu calor, é precioso para mim. Sabe que eu sacrificaria tudo por você?

Shay sentiu o ar faltar.

— Estou assustando você com minhas palavras? - ele quis saber.

Ela sentiu a boca seca e um nó na garganta.

— Se não notou ainda, não me assusto facilmente.

— Notei que enfrenta sem medo qualquer risco à sua vida, mas é cautelosa demais no que se refere aos seus sentimentos.

Shay perdeu um instante observando as belas feições do vampiro.

— As feridas do coração demoram mais para curar do que as do corpo.

Ele a abraçou com força.

— Jamais a magoarei, Shay.

Ela sentiu uma vontade enorme de beijá-lo e de lhe revelar tudo o que sentia. Suavemente, deslizou as mãos pelo corpo forte e musculoso. Um oferecimento sem reservas.

— O que quer de mim? - indagou baixinho.

— A sua confiança, o seu amor, a sua alma... Quero você inteira.

Um leve sorriso surgiu nos lábios bem desenhados.

— Não pede muito.

— É o que os vampiros pedem às suas companheiras. Ela afastou o corpo, perplexa, e Viper observou atenta­mente a expressão de sua shalott.

— Você é minha companheira, Shay. É a mulher desti­nada a ficar ao meu lado por toda a eternidade,

— Mas... Nem mesmo sabemos se tenho uma eternidade pela frente.

— Nenhum de nós pode dizer precisamente quanto tem­po tem de vida. O destino, por vezes, traz surpresas mesmo para os imortais - ele murmurou.

— Mas, quantos forem os dias e noites que o destino me reservou, eu quero passá-los com você.

Shay abaixou os olhos, tomada pela emoção.

— Este não é o lugar para tal conversa.

— Talvez não, mas preciso que diga o que sente por mim. Ela pareceu sem jeito. Era uma bobagem, uma enorme bobagem. Por que tinha tanta dificuldade em expor seus sentimentos?

— As palavras, Shay - ele pediu.

— Não pode dizê-las?

— É difícil para mim. Eu...

Ela moveu o corpo e o pressionou contra o dele, vencendo finalmente as barreiras.

— Eu te amo, Viper. Ele fechou os olhos, absorvendo as palavras.

— Eu também te amo - disse, e abaixando a cabeça, ele a beijou, possessivo.

— Pensei que se eu a comprasse de Evor, e a levasse para a minha casa, eu me livraria de minha obsessão por você. Não fui esperto como pensei. Mas é claro que há compensações.

— Nem ouso perguntar quais sejam elas...

— Vou cobri-la de luxo - ele acrescentou.

O olhar de Shay escureceu. Que mulher não gostaria de ser rica e desfrutar todos os luxos possíveis?

— Isso me assusta - confessou, por fim.

— Você é uma criatura estranha. Estranha? Ela?

— Ainda não estamos casados, vampiro!

A expressão nos olhos de Viper a encheu de ternura.

— Ainda não, meu bem, mas logo. - Ele a beijou leve­mente.

— Agora, porém, temos de sair daqui.

Shay preferia ficar nos braços de Viper, mas, certamen­te, aquele não era o momento apropriado.

Permitiu que ele fosse à frente, lembrando-se de ter sido praticamente arrastada por ele naquela estreita caverna. Uma prova do quanto estivera fraca. Moveram-se em silên­cio, cientes de que, sendo noite fechada, os vampiros agora deviam estar fora de seus abrigos e, sem dúvida, perseguin­do o prisioneiro que fugira. Não importava o quanto fossem enormes aquelas catacumbas. Na certa, logo sentiriam o cheiro de Viper e o dela.

Quando chegaram a uma encruzilhada, Viper moveu-se pela passagem mais larga. Shay o deteve, olhando para o túnel estreito de onde vinha o cheiro de humanos.

— Espere, Viper! Precisamos ir por aqui.

— Não... Estaríamos muito próximos das cavernas ha­bitadas.

— Mas é de onde vem o cheiro de troll.

— Ainda sente o cheiro de Evor?

— Fraco, mas sim, ele está aqui.

— Não consigo detectá-lo.

Percebendo a frustração de Viper, ela começou a descer o túnel. O cheiro de troll ficava definitivamente mais forte.

— Deve haver alguma mágica para disfarçar a presença dele - murmurou.

— Por isso você não sente.

— Styx jamais permitiria a presença de bruxas nestas cavernas. Elas seriam um perigo para o anasso.

— Existem demônios capazes de desempenhar feitiços rudimentares.

— É verdade. Mas, por que eles estariam nestas caver­nas, e por que esconderiam o cheiro de um troll?

Shay não tinha respostas.

 

Styx se levantou ao ouvir a batida na porta. Por um mo­mento, desejou ignorar o vampiro que ele sentia estar do outro lado.

Estava atormentado, mas colocara o passado de violên­cia para trás. Não se deixava mais governar pela ânsia de conquistar e destruir quem aparecesse em seu caminho. Se os vampiros deveriam prosperar naquele mundo perigoso, então teriam de estar em paz. Não sobreviveriam às contí­nuas chacinas.

Mas, a paz valeria qualquer sacrifício?

Era a pergunta que o angustiava agora. E uma para a qual não tinha resposta.

A batida soou outra vez, mais insistente.

Com us suspiro, Styx tocou no medalhão pendurado em seu pescoço antes de atravessar o quarto e abrir a porta.

— Sim, DeAngelo, o que foi?

— O prisioneiro.

Ele sentiu um frio no corpo.

— Viper? Ele ainda vive?

— Sim, mestre.

Styx não disfarçou seu enorme alívio.

— O que aconteceu?

— Ele escapou.

Era o que ele menos esperava.

— Impossível! - exclamou, passando pelo vampiro, e descendo o túnel escuro que havia à frente.

Viper estava ferido gravemente. Não havia possibilidade de estar curado a ponto de ter escapado. Mesmo se alguém o ajudasse, seria difícil demais carregá-lo pelo caminho.

A não ser...

O caminho escureceu à sua frente, levando às celas mais abaixo, onde Viper deveria estar. Entrou na caverna e a descobriu vazia, as algemas de prata rompidas.

Aspirou o ar e soltou um grunhido.

— A shalott!

DeAngelo parou a seu lado.

— Sim.

Tinha de ser ela, naturalmente. Somente seu precioso sangue seria capaz de curar Viper.

— Mandou alguém ir atrás deles?

— Não, mestre. Eu pensei que seria melhor esperar as suas ordens.

O simples fato de DeAngelo não ter perseguido Viper no momento em que descobrira que o prisioneiro havia fugido, revelava que ele também estava tomado por sérias dúvidas.

Styx disfarçou um suspiro.

— Bloqueie as saídas para que eles não deixem as caver­nas. Mas não se aproximem deles. Não quero sangue derra­mado, a não ser que vocês sejam atacados.

— Certamente, senhor.

O alívio estava estampado no rosto de DeAngelo quando ele se virou e saiu da caverna.

Uma vez sozinho, Styx se inclinou e tocou no sangue que havia no chão.

A shalott estivera ali. Logo os vampiros encontrariam o seu rastro.

Poucos poderiam acusar Levet de ser paciente. A maio­ria dos conhecidos diria que ele era, acima de tudo, temperamental.

Olhou a mulher que continuava a seu lado. Pensara que não poderia haver nada pior do que o falatório de antes, mas se enganara.

— Oh, pode falar, mulher. Mas não se esqueça que me deve desejos. Qual é o seu nome?

— Bella. Não vamos entrar aí, vamos?

— Tem medo de vampiros?

— Não, mas não gosto de duendes. - Ela franziu o na­riz.

— São criaturas desagradáveis, perfumadas demais.

— Duendes, perfumados?

— Sim. Há um que vive aqui. Levet sacudiu a cabeça.

— O que os vampiros estariam fazendo com um duende?

— Ele rouba humanos.

Bem, isso não esclarecia absolutamente nada.

— Um vampiro não precisa da ajuda de um duende, se quiser beber sangue humano.

— Somente um dos vampiros daí bebe o sangue dos hu­manos. E apenas de humanos especiais.

— Como, assim, "especiais"?

Impaciente, Bella apontou para o chão repleto de serin­gas descartadas.

— Humanos que usam essas agulhas em si mesmos. Levet deu um passo para trás. Não era especialista em humanos, mas sabia o suficiente para reconhecer as agu­lhas espalhadas pelo chão. Sabia que eram usadas para al­gum tipo de droga.

— Maldição! - Shay devia estar em perigo, e ele pre­cisava fazer alguma coisa urgentemente.

— Quero que me diga quais são os seus poderes, Bella. Que tipo de desejo consegue atender?

— Qualquer coisa que deseje: riqueza, beleza, amor. Uma idéia surgiu na mente de Levet.

— Eu estava pensando em alguma coisa mais exótica. Bella o olhou, desconfiada. Talvez fosse mais inteligente do que parecia.

— Não posso ficar aqui, sentado, esperando por ajuda. Tenho de fazer alguma coisa já, e você vai ter de me ajudar.

De alguma forma, as cavernas mais escondidas eram ainda mais miseráveis do que Viper temera. Água escorria das paredes, e havia um cheiro de morte e podridão no ar.

Seu instinto o alertava a não seguir adiante.

Fora um tolo em permitir que Shay continuasse naquele lugar. A qualquer momento, Styx os descobriria, e o anasso drenaria todo o sangue de Shay sem o menor remorso.

Infelizmente, não podiam fugir antes de descobrirem se os vampiros estavam com Evor.

Se eles o mantivessem ali, não haveria modo de prote­ger Shay.

Seguindo o cheiro do troll, Viper parou perto de uma enorme caverna. Podia sentir que, ali dentro, mortais ras­tejavam na escuridão. Sentia cheiro de seu desespero.

Por um momento hesitou, não querendo forçar Shay a ser testemunha daquela miséria. Sua hesitação, porém, deu à teimosa shalott a oportunidade de passar à frente dele, atraída pelo cheiro que levava direto à horrível caverna.

— Humanos - murmurou, o corpo recuando ao ver as sombras caídas sobre o chão imundo.

— Cristo, por que eles não fogem?

Viper apontou para as agulhas caídas no chão.

— Olhe mais de perto.

— Drogados! - Shay o fitou, admirada.

— São viciados?

— Sim.

— Mas... O que estão fazendo aqui?

Viper comprimiu os lábios. Mesmo quando suspeitara da razão do anasso precisar tanto do sangue de Shay, não quisera acreditar que fosse isso. Parte dele ainda se apegava à espe­rança de que o antigo líder não pudesse ter ido tão longe.

Agora, olhando para os drogados, e sentindo o cheiro da morte, não havia mais por que fazer isso. O anasso estava além de qualquer redenção.

— Eles estão destruindo um dos maiores vampiros que já existiu - admitiu, por fim, o tom de voz soturno. A traição pesava em seu coração.

— Por isso que os vampiros preci­sam do seu sangue, Shay. Nosso líder se tornou um viciado, exatamente como os humanos se viciam. O sangue desses drogados o está matando.

A surpresa estava estampada no rosto de Shay.

— Nunca pensei que isso fosse possível de acontecer a um vampiro.

— É um dos nossos segredos. Uma fraqueza que não re­velamos a ninguém.

— Se você beber o sangue de um drogado se torna um viciado também?

— É uma possibilidade - ele concedeu.

— Uma que ra­ramente acontece, pois beber sangue de um viciado tornou-se um crime punido com a morte.

— Mas, se o vampiro vai morrer de qualquer jeito, por que executá-lo?

— Porque eles enlouquecem antes de morrer. No século passado, um vampiro ficou louco, e matou os habitantes de uma vila inteira na China. Só morreu após matar três dos vampiros que haviam sido enviados para capturá-lo. Agora, quando descobrem que o vampiro se viciou, ele é executado sumariamente.

Shay ficou um momento observando Viper, então balan­çou a cabeça.

— Obviamente, nem todos são executados - concluiu, estremecendo.

— E você possui o dom da cura. Seu sangue pode sanar qualquer doença, menos a morte. E, exatamente como seu pai, você está para ser sacrificada.

Shay empalideceu. Ela, sozinha, podia salvar a existên­cia do legendário líder. Que vampiro não faria tudo o que fosse possível para oferecê-la em sacrifício?

— Viper tem razão, naturalmente - Styx murmurou, surgindo do nada.

— O seu sangue não tem preço.

— Bem senti o seu cheiro - Viper grunhiu.

— Não há necessidade de ser ofensivo, Viper.

Sem hesitar, Shay colocou-se à frente de Viper, o rosto vermelho de raiva.

— Não há necessidade?... ora, seu traidor miserável!

— Shay, não! - Viper gritou. Puxando-a pela cintura, ele a afastou do ataque do perigoso vampiro.

O que ela pensava estar fazendo? Não era páreo para um chefe de clã. Muito menos para aquele, em particular.

Foi quando ele percebeu que estava com uma adaga na mão. Shay tinha, deliberadamente, distraído Styx para lhe passar a arma.

Qualquer dia daqueles, ele iria parar de subestimar sua perigosa shalott.

Pelo menos, teve o bom senso de esconder a adaga junto à perna quando Styx deu um passo à frente e sorriu leve­mente para Shay.

— Espirituosa e bela - ele disse.

— Não me admira que você tenha se interessado por ela, Viper.

— O que sinto é bem mais do que um interesse, Styx. Mas, onde estão os seus guardas?

— Postados nas saídas das cavernas. Viper arqueou a sobrancelha.

— Veio pessoalmente pegar Shay?

Styx puxou lentamente a espada da bainha.

— Não quero lutar, Viper.

— Não posso dizer que esteja ansioso para uma batalha também, Styx, mas não estou sob suas ordens. Não obedeço incondicionalmente.

Movendo-se para o meio do túnel, a fim de ter bastante espaço para a espada, Styx encarou Viper sem denunciar suas emoções.  

— Como encontrou este túnel?

— O disfarce do cheiro funciona somente com os vam­piros. Devia ter pensado nisso quando escondeu aqui esses humanos.

Com velocidade, Viper tentou atingir o braço de Styx com a adaga. O vampiro recuou a tempo, e contra-atacou, bloqueando a adaga com a espada. Viper saltou no ar e atin­giu o estômago do oponente.

Styx grunhiu, mas conseguiu ficar de pé, a espada zunindo para forçar Viper a recuar.

— O disfarce enganou-me também, velho amigo - disse, enquanto observava atentamente os movimentos de Viper.

— Ousa afirmar que não sabia deste ninho de drogados?

— Não, não sabia. - Os olhos escuros brilharam, cheios de frustração.

— Apenas suspeitava disso, e temia que esti­vesse acontecendo algo parecido.

Viper deu novo salto, mais para manter Styx à distância.

— E ainda se deixa enganar, acreditando que o anasso possa ser curado - Viper apontou para os drogados.

— Ele está além da salvação, Styx. Mesmo se for curado, não há como salvá-lo de si mesmo. Pode negar isso?

Styx balançou a cabeça.

— Não nego mais nada.

Viper arregalou os olhos, sem saber se ele tinha ouvido corretamente.

— Admite que sua causa é inútil?

Styx olhou rapidamente para os humanos.

— Admito que tenho sido enganado e manipulado. E que não posso mais continuar a confiar naquilo que vinha me sustentando.

— Fale claramente, Styx. Não quero que haja mal-entendidos entre nós dois.

Styx abaixou a espada.

— Não vou mais impedi-lo de levar sua shalott e deixar as cavernas.

— E quanto aos seus guardas? - Viper quis saber.

— Eu... - Styx parou de falar, como se sentisse algo no ar.

— O que foi? - Viper voltou-se, confuso.

— É o anasso. Ele sentiu a shalott!

— Droga. Precisamos sair daqui!

Viper voltou-se para Shay, vendo que uma escuridão se fechava em torno dela.

Ela arregalou os olhos e estendeu a mão para ele, que já corria em sua direção.

— Viper! - Shay murmurou, e sua cabeça tombou para o lado.

— Não! - Viper a alcançou, mas a viu desmaiar em seus braços. Podia sentir que seu coração batia, porém a pele estava pálida e ela se recusava a acordar.

— Shay, fale comigo!

Styx atravessou o espaço estreito para tocar nos ombros de Viper.

— Ela está sob o poder do anasso.

Um frio invadiu o coração de Viper. Ele sabia que o velho vampiro possuía poderes mais fortes do que todos os outros, mas nunca pensara que ele poderia alcançar e tocar fisica­mente os outros à distância.

Trouxe Shay para junto do peito.

— Como podemos salvá-la?

— Precisamos levá-la até ele.

Viper lançou um olhar de revolta para o companheiro.

— Nunca farei isso.

— Somente o anasso pode libertar Shay de seu poder. Ele deu um passo para trás.

— Você me enganou.

— Não, Viper, não o enganei - Styx protestou, pesa­roso, os olhos tomados por uma estranha emoção.

— Não sabia que ele ainda tinha tanto poder.

— E como posso vencê-lo?

— Não pode. - Styx deslizou os olhos sobre o corpo delicado da mulher nos braços de Viper, e uma ponta de arrependimento surgiu em seu rosto.

— Precisa levá-la ao anasso.

— Já disse que não farei isso!

— Você não tem escolha. Ou a leva até o anasso, ou ele a matará.

Viper balançou a cabeça.

— Ele não pode fazer isso. Precisa do sangue dela para sobreviver.  

— O anasso não está inteiramente estável em seu pen­samento.

Viper sentiu-se regelar.

— Ele está enlouquecendo?

— Já está louco.

Viper enterrou o rosto nos cabelos sedosos de Shay, e amaldiçoou o destino que o trouxera àquele tempo e lugar.

— Maldito seja você, Styx! Que termine ardendo no fogo inferno!

Observando os dois vampiros carregarem a mulher in­consciente pelo túnel, Damocles saiu das sombras com um sorriso nos lábios.

— Ora, ora... Parece que temos uma shalott por perto. Ouviu o barulho de correntes e se voltou para o repug­nante troll preso em um dos cantos da sala.

— Shay? - Evor perguntou, os olhos vermelhos brilhan­do.

— Ela está aqui?

Damocles soltou um riso macio.

— Pensa que ela veio salvá-lo, Evor? Pois temo que ela não esteja consciente o bastante para lhe dar atenção... Ainda assim, a chegada da shalott altera os meus planos. - Movendo-se pela caverna, olhou o próprio manto.

— Oh, gostaria de estar usando o dourado. O verde não é festivo o suficiente.

Evor cerrou os dentes. Era esperto o suficiente para sa­ber que o que estava para acontecer não era nada bom. Pelo menos para ele.

— O que vai fazer?

O sorriso de Damocles aumentou. Logo ele teria seu ini­migo destruído. E, melhor ainda, porque seu plano faria a raça inteira dos vampiros uivar de dor.

As coisas não estavam ocorrendo exatamente como ele planejara, mas o fim seria o mesmo. O anasso estaria mor­to, e ele teria a paz que esperava por séculos.

Soltou a corrente que prendia o troll à parede.

— Você, meu amigo, está para testemunhar o meu maior triunfo. A culminação de um brilhante plano e sua execução perfeita.

Evor lutou para se livrar das correntes, mas não con­seguiria jamais derrotar o duende. Por um momento, seu rosto se encheu de fúria. Como o covarde que era, caiu de joelhos, e abaixou a cabeça pedindo misericórdia.

— Bom mestre, penso que seja melhor eu ficar aqui. Damocles abanou a cabeça.

— Oh, mas você é parte vital de minha celebração. Não pode ficar para trás.

— Mas eu preferiria...

As palavras morreram em um gemido, quando Damocles apertou os dedos em torno da garganta gorda.

— Não me aborreça, troll, ou cortarei sua língua! Desejo sa­borear esta vitória sem ter de escutar uma palavra dessa sua boca nojenta. Entendeu? - Sacudiu o troll violentamente.

Após várias tentativas, Evor conseguiu que um som saísse de sua garganta.

— Entendi.

Só então Damocles permitiu que a criatura respirasse, e voltou a sorrir.

— Sabia que você veria as coisas ao meu modo. Muito bem... Hora da festa.

Ao longo do túnel escuro havia tapeçarias e candelabros elegantes, que ofereciam alguma claridade. Porém Viper nunca iria querer se lembrar da agonizante caminhada em direção aos aposentos do anasso.

Sua atenção estava voltada para a mulher em seus braços. Não permitiria que ela fosse morta. Nem mesmo que isso significasse matar cada vampiro, troll e humano das cavernas.

Por fim, seguindo Styx para dentro da gruta onde ha­via uma enorme cama e um fogo aceso na lareira, parou, observando o frágil vampiro que tinha a cabeça recostada em travesseiros de cetim. Apesar de estar preparado para a mudança física naquele que fora um líder poderoso, Viper se viu chocado. O anasso parecia mais morto do que vivo. Uma visão enervante, mesmo para um vampiro.

Mesmo às margens da extinção, a criatura lutaria até o amargo fim, percebeu, quando o anasso lançou-lhe um sor­riso de gelar qualquer coração.

— Eu sabia que viria, Viper - disse com voz fraca, mas não menos assustadora.

Viper encarou a horrível figura, apertando Shay contra o peito.

— Você se assegurou que eu não tivesse escolha.

— Oh, tão bravo. - Ele suspirou.

— Não tem simpatia alguma por seu velho senhor? Não sente lealdade por aque­le que se sacrificou pela raça dos vampiros?

— Vejo uma sombra daquele que uma vez foi grandioso, e que se perdeu em sua própria fraqueza.

A expressão do anasso endureceu, porém sua voz con­tinuou suave e persuasiva: a mesma que já tinha iludido centenas de vampiros, e os havia levado a batalharem em seu nome.

— Fui tolo, é verdade. Mas, uma vez que eu me curar, posso prometer a você que nunca novamente cairei preso de tais males. Restaurarei a mim mesmo, e a todos os meus seguidores, levando-nos à glória que merecemos.

Viper balançou a cabeça. Styx e seus vampiros podiam acreditar na promessa. Não ele.

— Já fez tais promessas antes, mestre.

Desta vez, o anasso não tentou esconder sua raiva.

— Não ouse me julgar, Viper! Não pode saber o que ve­nho sofrendo para manter a paz entre nós - disse, a voz emitindo uma onda de dor sobre a pele de Viper.

Viper rangeu os dentes para suportar a dor. E o anasso conseguira tal coisa com nada mais do que um mero pen­samento.

— Todos sabemos o que tem feito por nós - ele ironizou. A dor voltou a atingi-lo novamente.

— Como pode saber? Como pode entender meu sacrifí­cio? - O anasso apontou um dedo na direção dele.

— Não há uma noite em que não sou assombrado pelo rosto dos amigos e entes queridos que fui forçado a matar. Nem uma noite em que eu deixe de ouvir os gritos dos meus irmãos, enquanto eles morriam por minhas mãos. Pode me culpar por tentar escapar dos fantasmas que me perseguem?

Viper tinha de reconhecer que, em se tratando de estra­tégias, o velho anasso era um mestre.

— E quanto ao fantasma do pai de Shay? - ele pergun­tou.

— Ele o assombra, também?

— Ele foi uma baixa necessária.

— Assim como Shay.

Não houve sinal de remorso.

— Sim.

Os braços de Viper procuraram instintivamente protegê-la.

— E o que vai acontecer quando o sangue da shalott aca­bar? - exigiu com sarcasmo.

— Quem irá sacrificar?

O vampiro se levantou dos travesseiros, o rosto uma máscara de raiva.

— Chega disso. Venha até mim... Agora!

Com uma sensação de arrependimento, Viper colocou Shay no chão. Por mais que desejasse mantê-la nos braços, não poderia arriscar que o anasso atacasse sem aviso.

— Não vou lhe entregar a mulher que amo - gritou, tirando a adaga do bolso.

— Ousa desafiar o seu senhor?!

— Deixou de ser meu senhor quando escolheu envene­nar o próprio corpo com sangue contaminado. A penalidade por tal pecado é a morte.

O anasso lutou para se livrar das cobertas.

— Styx! - chamou.

— Mestre...

— Traga-me a shalott.

Styx endireitou o corpo, o rosto sem qualquer emoção.

— A mulher é a companheira de Viper. É contra nossa lei atentar contra a vida dela.

Viper mal conseguiu esconder sua surpresa.

Uma surpresa que ficou estampada no rosto do anasso.

— Vejo que estou sendo traído por todos os lados. - Ele procurou descer da cama. Segurando nas colunas da cama, estendeu uma mão em direção a Viper.

— Eu quero a mu­lher. Traga-a aqui, Viper, ou a verá morrer.

Viper se colocou entre Shay e o demônio enfurecido.

— Ela morreria de qualquer maneira quando você dre­nasse o seu sangue.

Uma nova onda de poder maligno foi lançada contra Viper, fazendo até as velas do aposento voarem longe.

— Pensa que não tenho mais poder algum? Pensa que pode me vencer, menino?

Viper não sentiu medo. Daria a vida para proteger Shay.

Por outro lado, se ele morresse não sobraria ninguém para salvar Shay do anasso. E isso ele não poderia su­portar.

Preparou-se para a batalha.

— Estou ansioso por avaliar minha força contra a sua - gritou, decidido.

— Mesmo que isso signifique a sua morte?

— Sim!

— Seu idiota! - O velho lançou um raio sobre Viper, que se preparou para o impacto. Foi então que Styx se lançou à sua frente e, recebendo o raio, caiu aos seus pés.

Nem Viper nem o velho anasso haviam esperado que o leal guerreiro se colocasse na linha de fogo. Não depois de séculos de devoção inquestionável.

No rosto do anasso, surgiu algo que poderia até ser arrependimento. Obviamente, ele não estava totalmente louco.

Mesmo assim, deixou de lado sua momentânea hesita­ção, e voltou mais uma vez a atenção para Viper.

Para não desperdiçar o sacrifício de Styx, Viper lançou a adaga direto ao coração do anasso. Em seguida abaixou-se, alcançando a espada do amigo.

Já a tinha em punho quando a adaga atingiu seu alvo e o sangue escorreu pelo manto do anasso.

Preparou-se para usar também a espada.

— Vai implorar pela morte antes que eu tenha termi­nado com você - o anasso gritou, levantando a mão para chamar seu poder uma vez mais.

Viper segurou o ar. Nada poderia prepará-lo para a dor que o atingiu e o fez cair de joelhos. Segurando firme a espa­da, lutou para que a escuridão não se abatesse sobre ele.

Podia sentir o anasso chegando mais perto. Se ele tives­se a chance de desferir apenas um golpe, talvez conseguisse exterminar aquele demônio.

Shay quase chorou de alívio quando a dor agonizante parou abruptamente.

Ela já passara por torturas antes. Tinha sido espancada, queimada, presa por correntes, e sofrido mesmo sob o efeito da magia encomendada pelo pai.

Mas nada se comparava ao que sentira havia pouco: uma dor que parecera lhe cortar o peito ao meio.

Não sabia como conseguira sobreviver. Parecia o tipo de coisa que mandava um demônio para o túmulo.

No entanto, ela estava viva.

Forçou os olhos a se abrirem, e tomou consciência de que não estava mais nos túneis. Na verdade, encontrava-se dei­tada sobre um tapete persa, que combinava perfeitamente com o resto da decoração do aposento.

O que viu a seguir foi Viper caído no chão, ao lado dela, contorcendo-se, vítima do que parecia ser o mais horrível dos ataques.

A respiração se deteve em sua garganta e ela lutou para mover o corpo. Não tinha a menor idéia de como poderia ajudá-lo, mas precisava pelo menos tocar nele.

Levantou a cabeça, e uma sombra caiu sobre ela. Sentiu a proximidade do mal: a mesma sensação que tivera na casa de leilão, e depois, quando Styx e seus vampiros os perse­guiam pelas ruas de Chicago.

O anasso. Só podia ser ele.

Bem devagar, voltou-se e deu com um rosto fino e en­furecido acima dela. Parecia mais uma aberração do que o mais poderoso vampiro que caminhava pela Terra.

As aparências enganam, ela bem sabia disso. Não pode­ria subestimar aquele demônio, que quase a matara de dor momentos antes.

Ficou em guarda ao ver a figura horripilante inclinar-se e tocar seu rosto.

— Minha shalott. - A voz era baixa e grave.

— Sabia que viria a mim.

Shay lutou para não se deixar envolver pela voz.

— O que fez a Viper?

Uma expressão de profunda tristeza tocou o rosto esque­lético. Uma expressão que não combinava em nada com o brilho de triunfo que vira havia pouco em seus olhos.

— Não tive escolha. Ele se recusou a entender.

— Entender o quê?

— Que preciso sobreviver. Que sem mim os vampiros voltarão a ser nada mais do que selvagens. - Os caninos brilharam sob a claridade das velas.

— Eu sou o anasso. Devo ser eterno.

— Não importa quantos tenha de matar?

Os dedos dele pressionaram a face de Shay, fazendo-a se torcer de dor.

— Estou acima de qualquer um.

A fúria tomou conta de Shay. Aquele monstro já tinha matado seu pai, e agora estava para acabar com aquele que ela amava. E tudo por causa de uma ilusão de que era uma lenda gloriosa?

— Você delira, seu louco.

Ele aproximou tanto o rosto, que Shay sentiu sua respi­ração pútrida.

— Tão teimosa... Igualzinha ao pai.

— Seu bastardo! - Mesmo sabendo que era inútil, ela lutou para se livrar do contato.

— Matou o meu pai!

— Ele cumpriu o seu propósito em vida, minha querida. O sangue dele foi um presente. Um presente de cura para mim. E agora você vai me permitir também fazê-la cumprir o seu destino.

Shay agarrou o pulso dele com toda força que podia.

— Meu destino será observá-lo morrer. O anasso riu.

— Temo que isso não acontecerá.

— Na verdade, a adorável dama está certa. - Uma voz soou atrás dele.

Shay foi libertada abruptamente e quase bateu o rosto no chão. Observou o anasso se levantar e se virar para a porta. Na entrada, havia um demônio alto e loiro.

Um duende?!

Que diabo fazia um duende na caverna dos vampiros? E que criatura era aquela, que ele trazia acorrentada?

— Damocles! - O anasso soou muito irritado.

— Não o chamei aqui.

— Eu sei, e devo lhe dizer que estou profundamente ofendido. - O duende tocou nos cachos dourados do próprio cabelo.

— Como oferece uma festa e não convida o seu mais querido servo?

— Querido? - O anasso sibilou, cínico. O duende sorriu.

— Ora, ora, depois de tudo o que fiz pelo senhor, milorde. O anasso pareceu se esquecer dela por um momento.

Imediatamente, Shay rastejou até Viper e o sentiu colocar o braço em sua cintura.

— E o que fez por mim, Damocles, além de me levar a uma fraqueza maior? - O anasso parecia enfurecido.

— Houve um tempo que me deixei iludir por suas mentiras, mas isso acabou. Não tem me trazido nada a não ser ruína e traição.

O duende riu ainda mais.

— E fiz tudo com perfeição.

O anasso se surpreendeu com a crua confissão.

— Admite seus pecados?

— Mas claro. Quero apenas que saiba como é fácil fazê-lo ajoelhar-se. - O sorriso do duende desapareceu de seus lábios. A expressão, agora, era de puro ódio.

— Pode se cha­mar de anasso. Pode se aclamar o deus de seu povo. Mas, na verdade, é um idiota, patético e covarde, que condenaria sua raça inteira à morte somente para salvar a própria pele.

O anasso deu um passo à frente.

— Veio aqui para me destruir?

— Sim.

— Por quê?

O duende tocou em um pequeno medalhão que tinha pendurado no pescoço.

— Eu lhe disse que você não era o primeiro demônio a quem eu servia. Já estive ao lado de um vampiro verdadei­ramente grandioso.

— Qual?

— Não merece pronunciar o nome dele. Não depois de ter mentido para ele, de tê-lo enganado e o feito cair em uma armadilha.

Um pesado silêncio desceu sobre as duas criaturas que se enfrentavam. Shay sentiu o braço de Viper apertar sua cintu­ra. A questão não era se haveria violência ali, mas quando.

O anasso empertigou o corpo, assumindo uma pose ar­rogante.

— Eu uni os clãs. Eu terminei com a maré de sangue. Eu trouxe a paz aos que nunca tinham tido paz. Eu consegui o que ninguém mais seria capaz!

Damocles soltou uma risada de deboche.

— Não, você apenas atraiu os vampiros à sua causa, para que, assim, pudesse assumir o controle máximo, matando todos os mais velhos e mais dignos que você. Um complô esperto, eu admito. Mas nunca ouse dizer que fez o que fez com intenções nobres.

Viper segurou a respiração ao ouvir a acusação, mas Shay não tirou os olhos do anasso. Ele parecia ter recebido tão mal a ofensa, que poderia vir a matar a todos ali.

—Não tem o direito de me julgar, duende! - ele excla­mou.

— Ah, mas não sou eu quem o estou julgando, sou? - O duende fez um gesto dramático em direção ao inconsciente Styx.

— São seus próprios vampiros, que finalmente o vi­ram como é. Tomaram consciência de que foram enganados, e agora o vêem como a criatura que verdadeiramente é.

Com um terrível grunhido, o anasso levantou as mãos e apontou-as em direção ao duende. Viper praguejou antes de se colocar à frente de Shay, protegendo-a com seu corpo. A violência estava prestes a explodir.

— Bravas palavras para um demônio insignificante. Eu lhe darei uma lição por tentar se elevar acima da posição que merece! - o anasso disse em voz cavernosa.

Surpreendentemente, o duende apenas sorriu.

— Um "demônio insignificante" não levaria o glorioso anasso a se ajoelhar.

— Mentiras e truques. Está ousando confrontar sua for­ça com a minha!

— Não penso que isso seja necessário. Será muito mais divertido simplesmente matá-lo.

Os olhos verdes do duende brilharam quando puxou a corrente que segurava. Ainda atrás de Viper, Shay reconhe­ceu o cheiro no ar. Um que ela conhecia muito bem.

— Evor - murmurou, enquanto o troll entrava no quar­to e caía de joelhos.

— Droga! - Viper praguejou.

Shay engoliu em seco. Mesmo suspeitando que o troll estivesse nas cavernas, vê-lo agora fazia seu coração gelar de medo.

E ele estava horrível. Tinha uns poucos fios de cabelo grudados à cabeça, o rosto pálido e sujo, e seu terno carís­simo parecia ter sido retirado de um lixão. Não era mais o elegante Evor que ela conhecia e odiava.

— Pensa que esse patético troll pode me causar algum mal? - O anasso perguntou, admirado.

Puxando Evor para perto dos joelhos como um cachorro, o duende passou a mão sobre sua cabeça.

— Este é um troll muito especial. Ele carrega consigo uma praga... Uma maldição que diz respeito à morte de sua preciosa shalott.

O anasso arregalou os olhos. Dependia do sangue de Shay para sobreviver, mas não poderia tomar o sangue de um cadáver. Shay tinha de estar viva para lhe oferecer a cura.

Esperando que o furioso anasso se lançasse sobre o duende, Shay soltou um grito quando ele se virou e veio na direção dela, claramente com a intenção de beber seu san­gue antes de Evor ser morto.

Não era uma má idéia, exceto o fato de ele subestimar o vampiro ajoelhado a seu lado.

Viper levantou-se, a espada zunindo na tentativa de atingir o corpo do demônio sem hesitação. O anasso foi for­çado a recuar ou seria decapitado.

— Shay... pegue o troll! - Viper ordenou, enquanto dava um passo à frente, apenas com a espada de prata como sua vantagem.

Shay viu o velho anasso levantar as mãos e se preparar para lançar um ataque fatal sobre Viper. A dor desta vez seria tanta, que Viper estaria nas mãos do demônio.

Como se percebesse sua hesitação, Viper deu novo golpe com a espada, para que o demônio fosse forçado a desviar.

— Shay, vá ou ambos morreremos! - gritou, sem tirar os olhos da figura terrível diante dele.

Shay voltou-se para onde o duende já levantava uma faca a fim de enterrá-la no coração de Evor. Instintivamente, lan­çou-se à frente. Se não o fizesse a tempo, Evor iria morrer.

E ela morreria junto.

Viper percebeu a movimentação de Shay, porém não ou­sou desviar o olhar do anasso. Ele podia estar fraco, mas seu poder era ainda muito maior do que o dele. Sua única espe­rança era mantê-lo na defensiva por tempo suficiente para conseguir um golpe de sorte. Não era o melhor plano de bata­lha, mas o único disponível no momento.

Mantendo a espada em constante movimento, continuou caminhando para a frente. O demônio, frustrado, tentava desviar o corpo dos golpes. Mais uma vez, levantou a mão para poder lançar seu raio de dor. Viper alterou o curso da espada e a levou em direção ao punho magro.

Um urro de dor ressoou no ar quando a mão caiu no chão. O anasso tombou de joelhos, e levou ao peito o que lhe restara do braço.

— Sou seu mestre! - gritou, enfurecido.

— Não pode me deixar morrer!

Viper ignorou a ordem.

O anasso rastejou pelo chão, e chamou as forças que vinha detendo por um milênio. Uma escuridão começou a se formar em volta dele.

Viper não hesitou. Com um grito de batalha, pulou à sua frente.

Ele não sobreviveria a outro ataque. Sua única esperan­ça era matar o velho demônio.

Sentindo a morte se aproximando, o anasso dirigiu a Viper um olhar desesperado.

— Eu sou o anasso! Os vampiros não podem sobreviver sem mim! Você os condenou à morte!

Viper não deteve a espada. Não sentia nada ao termi­nar a vida daquele que tinha sido seu nobre comandante. Não importava o que o anasso tivesse sido. Ele, agora, nada mais era do que um animal raivoso.

— Eu condeno somente a você.

O anasso levantou a mão que ainda lhe restava para ten­tar deter o golpe, mas era tarde demais.

Os anos de decadência física o haviam tornado vulnerá­vel e mortal demais.

Com facilidade, a lâmina da espada cortou fora seu pes­coço e, com um grunhido, o velho guerreiro tombou, morto.

Os nervos de Levet estavam por um fio. Pendurada em suas asas, vinha a mulher que ele acidentalmente fizera passar pelo portal.

— Por que não paramos? - ela perguntou.

— Shay está lá.

— E quem é essa Shay? Sua amante?

— Já lhe disse que é minha amiga.

— Amiga? Pois eu seria uma amiga bem melhor, se você desejasse ter a minha companhia para sempre.

Ao lado dele para sempre? Levet estremeceu com o mero pensamento. Admirava uma bela mulher, mas preferia que lhe arrancassem a cabeça a ser condenado a uma eternida­de ao lado de uma.

— O que sabe sobre amizade? - perguntou, enquanto voltava a atenção para a passagem.

Sentiu os dedos de Bella em suas asas.

— Posso realizar suas mais fantásticas fantasias... Levet balançou as asas, deslocando a mão de Bella.

— Não preciso de uma amiga para me fazer isso.

— E o que é uma amiga?

Levet se voltou, impaciente.

— Alguém que se importa com você, mesmo que você não mereça.

— Isso não faz sentido algum.

Levet pensou em Shay lutando ao lado dele contra trolls. Shay praguejando e ameaçando de castrá-lo, ou pior que isso. Shay voltando à casa de leilão para libertá-lo.

— De fato não faz... Mas é onde está a beleza toda. Bella abriu a boca para argumentar, porém ele lhe fez um gesto para que silenciasse.

Shay estava definitivamente perto. Mas, com ela, havia ainda três vampiros, o duende que Bella dissera morar nas cavernas, e Evor!

— De quanto tempo você precisa para lançar uma mágica?

— Basta você desejar, que acontece - Bella respondeu.

— Ótimo.

Levet conteve a respiração quando ela pressionou os de­dos nos lábios dele.

— Espere. Deseje que eu esteja sempre com você e eu salvarei essa sua estúpida amiga.

— Quero ser o rei dos gárgulas! - ele grunhiu, em vez disso.

Imediatamente, houve uma explosão que o tornou mais largo do que o túnel.

O desejo tinha funcionado. Era forte o bastante para sal­var Shay de quem quer que fosse.

Um grito horrível cortou o ar.

— Sacrebleu! Shay!

Era como um dos mais horríveis pesadelos que costu­mavam atormentá-la, pensou Shay. Aquele em que tentava fugir das bruxas, mas seus pés ficavam enterrados na lama. Não importava a força que fizesse para se soltar, continua­va afundando mais e mais.

Podia ver Damocles com a adaga brilhando e apontada para o peito de Evor. Podia ver o pavor que o troll sentia, vendo a morte se aproximar. Podia tentar evitar o crime, mas não chegaria a tempo.

Um grito de fúria e medo soltou-se de sua garganta. Evor não era o único que via a vida passar diante dos olhos, e isso era brutalmente injusto. Por tantos anos, ela apenas seguira com a vida, sem acreditar que algo de bom poderia lhe acontecer.

Mas agora tinha Viper, e a idéia de morrer a encheu de pavor.

Lançava-se à frente numa última tentativa desespera­da, quando viu uma das paredes da caverna ruindo e tudo pareceu vir abaixo à sua volta.

Aos poucos, conseguiu ver uma figura enorme em meio à poeira. Um enorme e aterrorizante gárgula, que agarrou o duende e o lançou longe.

Com um estrondo, Damocles se chocou contra a parede e caiu ao chão. Mesmo à distância, foi fácil perceber o estra­nho ângulo de seu pescoço, e os olhos abertos para a morte.

Muito surpresa para se sentir aliviada por Damocles ter sido milagrosamente morto, Shay recuou quando a criatura pegou Evor do chão e o segurou entre as patas.

Ela estava viva no momento, mas o gárgula, agora, se­gurava o troll, e parecia não estar ligando para os gritos dela. Na verdade, parecia grande e capaz o suficiente para engolir todos ali dentro.

O monstro deu um passo à frente e ela estremeceu.

— Shay, sou eu - falou com uma voz aterrorizante.

— Levet.

— Levet?! - Shay se levantou. — Mas...

Ele sorriu, revelando dentes que podiam fazê-la em dois pedaços.

— Parece que eu a salvei mais uma vez de suas tolices. O alívio a invadiu. Não inteiramente. Primeiro precisa­va ver se Viper estava bem.

Mas ele estava vivo!

Deu um passo na direção do vampiro. Queria jogar-se em seus braços e gritar de alegria. Queria passar as mãos em seus cabelos e beijá-lo até que ambos pudessem se es­quecer do horror das últimas horas.

Deteve-se ao vê-lo cair de joelhos, uma expressão de pro­fundo pesar no rosto.

Ele tinha sido forçado a matar um líder que, obviamen­te, respeitara por séculos. Merecia alguns momentos para se reconciliar consigo.

Shay voltou-se para o gárgula. Não se parecia em nada com o seu querido Levet, exceto pelos olhos. Estes jamais mudariam.

Um sorriso surgiu nos lábios dela.

— Não sabia que podia alterar sua forma. Levet deu de ombros.

— Todos temos nossos pequenos segredos...

— Não foi ele quem fez isso. Fui eu. - Uma voz feminina interveio.

Shay arregalou os olhos diante da mulher curvilínea agora ao lado de Levet.

— Uma criatura das águas... Bom Deus, Levet. Você tem estado ocupado.

— Ainda não acabamos a faxina por aqui. Aquele lá conti­nua vivo. - Levet apontou para Styx, que começava a desper­tar de sua inconsciência.

— Quer que eu dê um jeito nele?

Antes que Shay pudesse responder, Viper tocou em seu ombro.

— Styx apenas estava fazendo o que achava ser certo - murmurou.

— Arriscou sua vida para nos salvar.

— É verdade. Você poderia ter morrido se não fosse por ele - Shay concordou, o olhar se voltando para Levet.

— Nada de matança, meu amigo.

— E quanto a este animal? - Levet sacudiu Evor.

— Posso matá-lo?

— Ainda não. Ele ainda detém a minha praga. Levet soltou um suspiro.

— Diabos. Não posso matar o vampiro. Não posso matar o troll. Talvez eu devesse atacar a vila mais próxima... As mocinhas do lugar, sem dúvida apreciariam o meu novo e másculo físico.

Viper sorriu.

— Depois de todos esses séculos, Levet, você já devia saber que o tamanho não impressiona tanto assim as mulheres.

— Fácil de dizer para um vampiro de quase dois metros de altura - Levet resmungou.

Shay saiu do lado de Viper e, gentilmente, pegou a mão enorme de Levet e a levou ao rosto.

— Não é o tamanho do demônio que importa, mas o ta­manho de seu coração. E não há gárgula no mundo inteiro que possua um coração tão grande quanto o seu. - Os lábios dela beijaram a pele rude.

— Você salvou a minha vida.

— Oui, oui. Não precisa ficar me adulando. - Levet ten­tou esconder a emoção e sacudiu o troll.

— Bem, o que faço com essa criatura?

— Ponha-o aqui. - Viper apontou para um lugar a seu lado.

Levet largou Evor sem cuidado, direto para as mãos de Viper.

— Não pode me matar - gritou Evor.

— Não sem matar a shalott!

Viper não se abalou e o esbofeteou com força.

— A shalott tem um nome. - Viper o agarrou pelo pes­coço, como se ele fosse um inseto.

— O que quer fazer com ele, querida? Podemos levá-lo para casa e pendurá-lo na pa­rede como um troféu...

Shay fez uma careta de horror.

— E ter de olhar para essa cara desagradável todos os dias?

— Bem pensado. Mas tenho algumas celas muito criati­vas, onde aposto que ele gostaria de ficar: com tortura tradi­cional, tortura antiga, tortura de alta tecnologia...

— Não, não, por favor. - Evor voltou para Shay uma expressão desesperada.

— Eu farei o que vocês quiserem.

Shay deu um passo à frente, o olhar duro.

— Quero respostas.

— Naturalmente... Que respostas?

— Como conseguiu o controle sobre o meu feitiço?

— Eu...

Os dedos de Viper apertaram o pescoço de Evor.

— Nem pense em mentir para a dama! Posso fazer você implorar pela morte.

— F-Fui até a bruxa Morgana em busca de uma poção. Quando cheguei, a loja estava fechada. Entrei, pensando que o lugar estivesse vazio, mas havia uma porta secreta que tinham deixado aberta, e escutei vozes. Uma delas era de Morgana falando com uma jovem bruxa.

Shay estremeceu, lembrando-se da porta que levava ao porão embaixo da loja.

— O que isso tem a ver com o feitiço?

— Ela instruía a outra bruxa a como proteger uma jo­vem shalott que se encontrava em grande perigo. Disse que, uma vez que o feitiço fosse passado, ela deveria ficar atenta para proteger a criatura, a qual era meio humana meio de­mônio.

— Ela ia passar o controle do feitiço para outra bruxa?

— Shay perguntou.

— Ia. Morgana achava que estava ficando velha demais para ser sua guardiã.

— Sendo assim, tudo o que Morgana queria era me proteger.

Evor concordou.

Viper percebeu que Shay se emocionara. Decidiu assu­mir o interrogatório.

— E você ouviu a palavra "shalott", e imediatamente concluiu o quanto esta lhe seria valiosa.

— Eu... - Evor olhava de Shay para Viper, em pânico.

— Eu desci as escadas e matei a jovem bruxa. Assim me tornei o seu guardião.

— E matou Morgana também.

— Matei. Pretendia queimar o corpo, mas ela desapare­ceu no ar.

Shay lembrou-se de terem encontrado apenas um es­queleto.

— Seu miserável! - exclamou, controlando-se para não estrangular o maldito troll.

A criatura tinha feito da vida dela um inferno. Chegara a vendê-la como um animal.

Se pudesse simplesmente acabar com ele...

Então um pensamento cruzou sua mente.

Se não fosse por Evor, ela nunca teria encontrado Viper.

Aos poucos a fúria foi se esvaindo. Exausta, ela caiu de joelhos e chorou sem saber bem por quê. Talvez pela perda do pai, por sua infância roubada, pelos anos de escravidão.

Viper se ajoelhou a seu lado e a abraçou com enorme carinho.

Ela procurou se acalmar:

— Tudo terminou?

— Sim. Tudo realmente já terminou. Podemos voltar para casa.

— E quanto a Evor?

— Ele irá conosco. Tenho meus contatos, e encontrare­mos uma bruxa poderosa o suficiente para quebrar o feitiço. Depois disso... Bem, o resto caberá a você.

Shay sorriu levemente para Viper.

— Quando quebrarmos o feitiço, eu não serei mais sua escrava.

O arrogante vampiro pareceu não se abalar.

— Talvez não minha escrava, mas logo será minha es­posa. O que significa que vai ter de me aguentar por toda a eternidade.

— Eu ainda não disse "sim", vampiro...

— Muito bem. - Viper inclinou-se e a beijou.

— Quero ter o prazer de convencê-la.

Shay sentiu um arrepio. Não duvidava que o prazer se­ria enorme.

Para ambos.

O som de Levet raspando a garganta ecoou pela caverna inteira, e Shay se voltou para o amigo. O gárgula estava perdendo a paciência.

— Não que eu queira ser um estraga-prazeres, mas não seria melhor irmos embora daqui? Não vai demorar, e Dante estará invadindo tudo com seu exército.

Viper concordou de pronto.

— Odeio ter de concordar com um gárgula, mas, se Dante não nos encontrar são e salvos, a matança vai recomeçar. - Lançou um olhar para Styx, que olhava pateticamente para o que restara de seu mestre.

— Já se derramou sangue demais por aqui.

Shay acariciou o rosto de Viper antes de voltar toda sua atenção para o gárgula.

— Não que eu queira estragar a sua alegria, Levet, mas como pensa em sair destas cavernas?

Levet se surpreendeu e olhou para seu enorme corpo.

— Não posso ir forçando a minha passagem? Viper balançou a cabeça em uma negativa.

— A não ser que queira nos soterrar pelo caminho. Levet testou o teto da caverna, depois desistiu.

— Quando finalmente consigo ficar de um tamanho de­cente, não posso nem me divertir um pouco!

Bella puxou-o pelo braço.

— Ainda tem seu último desejo, querido. Nós podemos sair daqui.

— Vale a pena perder meu último desejo se, com ele, eu também me livrar de você. - Levet respirou fundo.

— Quero voltar ao meu tamanho normal!

Em um piscar de olhos, Levet encolheu, voltando à sua estatura anterior. Melhor do que isso: a jovem das águas desaparecera.

Com um sorriso, Shay abraçou o amigo.

— Eu te amo, Levet!

Ele fez de conta que a declaração não importava muito, mas não tentou escapar do abraço.

— Oui, oui. Agora podemos voltar para casa?

Casa. Shay saboreou a palavra: estava indo para casa! E com sua família a seu lado.

Viper cumpriu sua palavra. Fez os necessários contatos, até descobrir uma bruxa capaz de quebrar a maldição que submetia Shay ao troll.

Claro, ele não ficara nada satisfeito com a decisão dela de permitir que Evor saísse da cela e fosse embora. Mas, para Shay, bastava estar livre daquele monstrengo. Enquanto ele fosse vigiado de perto pelos vampiros para que nunca mais viesse a abusar de algum demônio, ela estava satisfeita.

Com a praga desfeita, ela pôde planejar seu futuro pela primeira vez em quase um século. E, com enorme felicida­de, trocou sua vida de serva pela de esposa.

Houve uma linda cerimônia na casa de campo de Viper, cercada por centenas de velas e rosas, e o perfume de torta de maçã assada flutuando no ar.

Quando os dentes de Viper entraram em sua pele e ele chamara o poder de seus ancestrais para que os unissem para sempre, Shay pensou que nunca poderia haver momento mais perfeito em sua vida.                    

Enganara-se.

À medida que o tempo foi passando, tomou consciência de que seus dias eram agora cheios de momentos perfeitos: observar Viper ensinando Levet como usar uma espada com eficiência mortal; jantares deliciosos, bem tarde da noite; fazer compras ou simplesmente almoçar com Abby; as reuniões festivas com o clã dele, onde os vampiros revela­vam seu profundo respeito e lealdade para com seu líder. Momentos aos quais muitos não dariam valor algum...

Mas ela dava.

Após uma maratona de compras com Abby, ela entrou no quarto que compartilhava com Viper e jogou para o lado suas numerosas sacolas. Até se apaixonar, jamais dera im­portância à moda.

Agora, entretanto, tinha o desejo de parecer mais bonita.

Ao descobrir que Viper estava ocupado debaixo do chu­veiro, ela despiu as roupas e tirou de uma das sacolas uma camisola branca e linda: acetinada, com um decote que mais revelava do que escondia.

Mal acabara de vesti-la, viu a porta do banheiro se abrir e Viper entrar no quarto.

Por um momento, lutou para se lembrar como respirar. Ele estava estonteante.

Viper ficou parado por um longo tempo, deliciando-se com o que via. Finalmente Shay suspirou, cheia de impa­ciência.

— E?...

— E o quê?

Ela, deliberadamente, passou as mãos pela camisola.

— Pensei que você me diria que minha nova camisola é bonita.

Um par de caninos surgiu no rosto pálido e bonito en­quanto ele lutava contra o instinto de não agarrá-la e levá-la para a cama.

— Qualquer coisa que você use fica bem em você.

— Pensei que gostaria de me ver nesta camisola.

O coração dela disparou quando Viper a tomou nos bra­ços. Sentir o contato de sua pele, aspirar ao seu cheiro, já era suficiente para fazer o sangue dela correr mais depressa.

— Gostei muito, mas não tenho certeza de que valeu o que custou.

— Não me diga que se transformou em um avarento? Viper mordiscou a orelha dela.

— Não me importo com o custo. Importo-me com o tem­po que você leva para comprar a camisola. É disso que eu não gosto.

Shay estremeceu enquanto levava os braços em torno do pescoço de Viper. Sabia muito bem que ele estava feliz por ela ter feito amizade com Abby.

— Foram apenas cinco horas!

Viper deslizou a língua pelo queixo dela.

— Tempo demais.

Shay lutou para se lembrar que possuía um cérebro. Mas este não vinha funcionando muito bem ultimamente. Não era uma tarefa fácil pô-lo para trabalhar com Viper desatando o laço que cobria seus seios.

—Você, obviamente, não sabe nada sobre os intricados ri­tuais que envolvem as compras - protestou com voz rouca.

Os dedos dele lhe haviam alcançado os mamilos e os massageavam de leve.

— Que rituais?

Ela arqueou o corpo, oferecendo-se aos seus talentosos lábios, e gemeu alto quando Viper sugou um dos mamilos.

— Abby está me instruindo nessa arte. É tudo muito complicado e secreto...

A língua de Viper fez seus joelhos amolecerem.

— Parece tedioso demais perder tempo com isso. Você tem coisas mais importantes a fazer.

Ela se agarrou aos ombros largos.

— E quais assuntos seriam esses?

— Deixe-me ver...

Antes que ela pudesse perceber a intenção dele, Viper a tinha levantado nos braços e a levado para a cama. Mal piscou, e se viu sob o corpo forte.

Não que se importasse. Era onde queria estar.

— Primeiro você cumprimenta o seu marido com um bei­jo - ele instruiu com voz rouca.

Ela segurou o rosto de Viper nas mãos e o beijou. De leve, a princípio, depois usando a língua.          

Viper gemeu, porém ela se recusou a continuar a carícia. Sentiu que ele se excitava, e que sua ereção lhe pressionava os quadris. Somente então entreabriu os lábios dele com a língua, e se permitiu saboreá-lo como desejava.

Um som profundo saiu da garganta de Viper enquanto suas mãos, impacientemente, levantavam a camisola dela.

— Era assim que eu devia beijá-lo?

— Oh, sim. Precisamente.

— Mais alguma coisa?

— Precisa tirar o meu roupão.

Ela riu e começou a despi-lo. Correu as mãos pelos mús­culos das costas.

Os olhos dele estavam negros como a noite.

Apaixonada, Shay usou os lábios para acariciar o pesco­ço dele. Depois foi descendo para o mamilo e fez exatamente o que Viper fizera no dela.

— Como estou me saindo?

— Muito bem - ele murmurou, os dedos procurando os cabelos longos.

Com um movimento rápido, ele fez com que seus lábios se encontrassem, ao mesmo tempo em que corria as mãos, ávi­das, por seu corpo.

Shay sorriu consigo. Não havia nada mais delicioso do que um vampiro excitado.

Partilhando de seu desejo, Viper depositou pequenos bei­jos por todo o rosto da amada antes de passar para a linha do pescoço. Shay segurou a respiração, esperando sentir os caninos dele.

Viper não a mordeu, porém seus caninos continuaram a se mover, partindo para um beijo nos seios, no ventre.

Shay fechou os olhos quando ele lhe abriu as pernas e se colocou entre elas. Oh, ela gostava dessa parte!

Com a paciência que somente um imortal poderia invo­car, Viper deslizou os lábios pela curva das coxas, lambendo-a até a ponta dos dedos dos pés.

Shay arqueou os quadris em um silencioso pedido.

A língua de Viper continuou a explorá-la, incansável, os caninos roçando de leve sua pele.

Parou novamente no pescoço, como se esperasse por sua aprovação.

— Se você me morder, não vou resistir!

Os olhos escuros brilharam com pura satisfação e Shay não pôde deixar de rir. Ele podia ser um vampiro, mas ha­via muita testosterona correndo em seu corpo.

Lentamente, Viper enfiou os caninos em sua pele.

O grito que ela soltou não foi de dor, mas de puro prazer.

Agarrando-se à cama, Shay deliciou-se enquanto ele se alimentava livremente de seu sangue. Com cada sugada, o prazer que ela sentia aumentava, varrendo-a dos pés à cabeça torturantemente.

Sabia que o clímax estava muito próximo.

— Viper - chamou, contorcendo-se sob ele. Mesmo que vivesse uma eternidade, nunca se acostumaria com o poder daquela paixão.

Deixou-se cair na cama enquanto Viper se erguia um pouco e a penetrava. Agarrou-se aos ombros dele e o enla­çou com as pernas, enquanto ele a cavalgava.

Outro orgasmo se avizinhou e ela arqueou o corpo, en­levada.

— Eu te amo - ele murmurou, extasiado.

Ela ainda sorriu quando as suaves palavras acariciaram seu rosto. Quem haveria de pensar que um dia teria um vampiro nos braços? Ou que daria a ele o coração que pen­sara ter enterrado para sempre?

Plenamente saciado, Viper esperou até que Shay dor­misse profundamente. Deixou a cama e vestiu o roupão.

Um sorriso surgiu em seu rosto ao olhar a mulher que se tornara para ele a coisa mais importante no mundo. Adorava despertar ao lado dela. Nunca estivera antes tão em paz.

Mas algo ainda o perturbava.

Caminhou até a janela e ficou olhando a escuridão. Entre as árvores, podia sentir a presença de Santiago e de outros jovens vampiros que, diligentemente, patrulhavam a área. A ameaça contra Shay acabara, mas sua posição como chefe de clã exigia que nunca se descuidasse da segurança dela. Não aconteceriam mais surpresas se ele pudesse evitar.

Perdido em pensamentos, ele surpreendeu-se ao ouvir uma voz suave quebrar o silêncio.

— Deveria ir até ele. Sabe disso, não é? Virando-se, viu Shay ainda deitada na cama.

— Pensei que estivesse dormindo.

Ela sorriu, maravilhosa em sua nudez, e com os cabelos espalhados como uma cortina de cetim à sua volta.

— Viper, vá até ele.

— Até quem? - ele perguntou, começando a voltar para a cama. Seu corpo já se excitara com a visão dela. Uma mu­lher nua em sua cama era uma oportunidade que ele não podia perder.

— Styx.

Ele parou, surpreso.

— Como você sabe?

— Não sou apenas um rosto bonito.

Ele deslizou os olhos pelas curvas expostas.

— Oh, certamente não é só um rosto bonito... Ainda as­sim, eu não sabia que você podia ler as mentes.

Um rubor surgiu no rosto de Shay e ela puxou as cober­tas. Viper suspirou. Era quase um pecado cobrir tal beleza.

— Não é preciso grande talento para perceber que você tem estado preocupado desde que deixamos as cavernas. E que deve ter arrependimentos pelo que aconteceu por lá.

Viper franziu a testa. Shay começava a conhecê-lo bem demais.

— Foi por minha mão que o líder dos vampiros foi morto.

Styx deve assumir o comando se não quisermos terminar em um caos.

Ela estremeceu.

— E pensa que ele aceitaria ser o novo líder?

Viper sacudiu a cabeça. Como todos os vampiros, Styx podia ser teimoso, arrogante, e inclinado a se recolher em si mesmo quando tinha problemas. Se ele concluísse que fora o culpado pela morte do anasso, ou pensasse não ser compe­tente para assumir o governo dos vampiros, desapareceria e nunca mais o encontrariam.

E isso não podia acontecer. Styx era agora o novo líder.

Viper tinha dirigido a noite inteira e estacionado o carro perto da estrada da fazenda. Preferia vencer a pé o estreito caminho que levava a casa. Ainda não sabia bem o que diria a Styx, ou se o orgulhoso vampiro falaria com ele.

Estava a certa distância, quando notou uma sombra debaixo de uma árvore e se viu cara a cara com o enorme vampiro.

Viper levantou as mãos em um gesto de paz. Estava in­vadindo a terra de outro chefe de clã. Styx poderia se valer de seus direitos e mandar executá-lo.

— É uma recepção ou pretende me matar? - perguntou, o tom de voz leve, embora estivesse pronto a reagir a qual­quer ataque.

Styx deu de ombros, tocando o medalhão em seu pescoço.

— Eu poderia lhe perguntar a mesma coisa. Deve ha­ver uma razão poderosa para um vampiro recém-casado se afastar de sua casa.

— O poder de uma simples amizade e preocupação por você, velho companheiro.

— Preocupação? Teme que eu siga os passos de meu mestre e termine viciado naqueles humanos patéticos?

Viper deu um passo à frente. Uma brisa gelada parecia sussurrar entre as árvores.

— Meu único medo é que continue se culpando pela tra­gédia com o anasso. - Estendeu a mão e a colocou sobre o ombro de Styx.

— Você é como um irmão para mim, mas tem uma infeliz tendência a acreditar que deveria ser in­falível.

Os olhos negros tornaram a se encher de culpa.

— Quase permiti que sua mulher fosse destruída.

— Shay está bem - Viper insistiu. Não queria ver Styx torturado pela sensação de fracasso. Precisavam dele forte e preparado para assumir o comando.

— O passado se foi, Styx. É hora de olhar para o futuro. O futuro de todos nós.

— Por isso está aqui?

— Você é nosso novo líder. Quero que saiba que tem mi­nha lealdade e a lealdade de meu clã.

Styx balançou a cabeça.

— Nunca desejei essa posição. Viper não conseguiu deixar de sorrir.

— O destino nem sempre atende aos nossos desejos. Ele se impõe como uma vontade.

Styx pareceu aborrecido.

— Sempre detestei os filósofos.

— Então me deixe falar de forma bem simples. - Viper apertou o ombro do amigo, a expressão séria.

— Precisamos de você. É o respeito por você e sua guarda que nos têm man­tido longe de guerras. E o mais importante, o medo de você tem mantido os demônios afastados de nós. Se não assumir o comando, tudo aquilo pelo que lutamos estará perdido.

Styx apertou as mãos, nervosamente.

— Por que eu? Você é perfeitamente capaz de assumir o comando.

Viper sacudiu a cabeça.

— Você é o sucessor natural, e somente você pode man­ter os tratados intactos.

— Inferno! - Styx praguejou.

— Estou apenas dizendo o que você já sabe muito bem.

— Isso não quer dizer que eu tenha de gostar disso. Viper riu.

— Não, não tem de gostar. Styx olhou para o amigo.

—Volte para sua mulher, Viper. Eu farei o meu trabalho.

— E chamará se precisar de mim?

— Chamarei.

Viper deu um passo para trás e parou.

— Sabe que haverá algumas mudanças em sua vida com sua nova posição.

Styx estranhou.

— Mudanças?

— Não haverá vampira nos arredores que não queira compartilhar da cama do nosso novo anasso.

Styx arqueou a sobrancelha.

— Não preciso ser o anasso para ter uma mulher em minha cama.

Viper caiu na risada enquanto abaixava o manto e exibia uma marca no braço. Era a marca de sua união com Shay.

— Não se esqueça de que as mulheres oferecem mais riscos do que todos os demônios juntos.

Styx lançou um olhar para Viper, como se temesse que o amigo tivesse perdido a razão.

— É um risco que não preciso temer, velho companheiro. Alguns de nós somos sábios o suficiente para não cairmos nessas armadilhas - disse com absoluta convicção.

Viper meramente riu, lembrando-se de suas próprias convicções de que nunca seria tolo o suficiente para arran­jar uma esposa.

— Sabe o que dizem, meu amigo. Os melhores planos dos ratos e vampiros...

— Sempre dão errado? - Styx balançou a cabeça.

— Não comigo, velho amigo, não comigo.

Viper voltou a sorrir. Um dia Styx também se renderia ao amor.

 

                                                                Alexandra Ivy 

 

 

 

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