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A Mão do Finado - 1º Volume / Alexandre Dumas
A Mão do Finado - 1º Volume / Alexandre Dumas

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Mão do Finado

1º Volume

 

CAPíTULO 1

Quem havia jogado na alta e baixa dos fundos

QUANDO a fatalidade e a desgraça nos oprimem, não falta quem venha parano-los fazer compartilhar, se a miséria não quebrou positivamente o prestígio dos nossos antigos haveres.

Embora houvesse sofrido esse peso formidável, a baronesa Danglars reunia ainda em sua casa os principais cavalheiros do Gand e tinha o prazer de ouvir nomear as suas salas em Paris, como as que melhor sabiam receber e acomodar, durante algumas horas, todos esses ímpios elegantes do pano verde.

O espírito de orgulho e ambição da baronesa Danglars, a sua figura esbelta e o seu rosto um pouco pálido, onde brilhavam dois belos olhos negros, não era o que menos atraía a numerosa concorrência às suas salas.

Aos que vivem de comoções fortes, nunca desagrada uma mulher como a baronesa Danglars. As suas risadas de orgulho, o seu gesto determinado e arrogante, mas submisso e meigo quando se deixava vencer, o seu olhar eloquente e sagaz, a sua extrema verbosidade, tudo concorria para que os homens da sociedade a inscrevessem no rol das leoas, apesar de ter passado já a Primavera da vida.

Tal era a consideração em que tinham a baronesa Danglars no ano de 1837.

Numa das noites de Setembro desse ano, as salas do seu palácio estavam iluminadas, e, pouco a pouco, iam-se enchendo de pessoas que frequentavam as reuniões da baronesa, a qual ia de grupo em grupo, falando animadamente e recebendo a corte de muitos cavalheiros.

- Que aspecto tão melancólico tem, senhor Beauchamp! -  disse ela a um cavalheiro de fisionomia severa e expressiva. - Dir-se-ia que vem disposto a ralhar conosco, porque, segundo me disseram, perdeu a semana passada...

- Não, senhora baronesa, eu não costumo tomar nota do que perco ao jogo, não jogo por especulação, e será muito má, minha senhora, se pensar o contrário.

- Oh, não, mas a sua fisionomia causou-me desassossego! -  tornou a baronesa com um sorriso irónico e dando-lhe o braço. -  Vamos, conte-me as notícias que tiver, as mais frescas, para me restabelecer a tranquilidade.

- A quem o pede, formosa baronesa! Mas está ali o senhor Luciano Debray, que lhas dará melhores.

- Deixe o ministro, que parece absorvido nas suas grandes ideias ministeriais! Eu temo em o despertar, não venha ele pretender expor-me algum projecto de lei.

- Pobre Debray!... -  murmurou Beauchamp. -  Ele não merece as suas palavras irónicas, porque lhe reconheço mais merecimento no ministério do que a muitos que o têm ocupado.

- Assim deve falar o senhor, para que lhe paguem na mesma moeda a respeito do seu novo cargo de procurador-régio! Mas não acabe como o seu antecessor.

E uma ligeira vermelhidão coloriu as faces pálidas da baronesa, cujo braço estremeceu no de Beauchamp. A senhora Danglars ficou como que arrependida das palavras que dissera.

- Não, senhora baronesa -  acudiu logo Beauchamp, que parecia ter aproveitado aquelas palavras para se estabelecer no campo que desejava. -  Eu tenho a certeza de que não me sucederá o mesmo, pelo menos por motivo idêntico! Porém, uma vez que falou em procurador-régio, posição que eu desejaria esquecer quando entro nas suas salas durante noites iguais a esta...

- Senhor...

- Perdão, senhora baronesa, ninguém nos ouve nem suspeita do que estamos a dizer.

- Basta, senhor Beauchamp! Eu sei quanto me quereria dizer, mas isso enfada-me, aborrece-me. Pedi-lhe notícias para me distrair do susto que me causou a sua fisionomia severa e triste; dê-mas como quando era simples redactor dum jornal, isto é, rizonho, prazenteiro...

A estas palavras, o magistrado parou e fitou a sua interlocutora, como se quisesse ler-lhe no rosto.

- Ora aí está! -  exclamou ela rindo com a melhor vontade. - O antigo jornalista já não sabe ser senão magistrado!

- Não, minha senhora. Com a senhora baronesa serei sempre o mesmo, porém as notícias que tenho a dar-lhe é que não podem sair dos lábios dum jornalista.

E Beauchamp acentuou bem as últimas palavras, de modo que a senhora Danglars tornou a estremecer.

- E porquê? -  perguntou ela, fazendo um esforço para vencer um receio vago. -  Jurou porventura que havia de fazer-me morrer de medo esta noite?

- Não podem sair dos lábios dum simples jornalista, porque se referem a uma senhora a quemo magistrado muito preza e respeita -  respondeu o senhor Beauchamp.

Do modo com que o magistrado disse isto e pela expressão do olhar, a senhora Danglars conheceu que não devia insistir; porém, querendo absolutamente saber se a tal notícia se referia a ela, largou-lhe o braço e disse:

- Bem, senhor, pelo mesmo motivo respeito eu essa senhora. Guarde a sua notícia.

A senhora Danglars perdeu no jogo, porque o magistrado ficou impassível.

“O teu semblante é de bronze!” murmurou ele, vendo-a afastar-se e apoiando a face no índex da mão direita. “Todavia, só eu me não iludo, como todos os que te cercam! No teu passado existe alguma coisa de terrível que sabes muito bem ocultar aos olhos do mundo, porém não aos meus! Na tua vida presente há alguma coisa de infame, que disfarças com esmero no fundo desse coração de mármore! Já estou senhor de um segredo importante do passado. Havemos de descobrir o resto até ao presente.”

Momentos depois, o magistrado sentiu que alguém caminhava atrás dele, e sem voltar o rosto nem dar mostras de saber que era seguido, deixou-se alcançar.

- Poderei ter a honra de lhe falar, senhor Beauchamp?

- Ah, o senhor ministro! Estou às suas ordens.

- O senhor deve saber que me interessa altamente tudo quanto diz respeito ao sossego e tranquilidade de todos nós -  disse-lhe Luciano Debray, afastando-se com ele para uma sala deserta. -  Pois bem, creio que, no meu lugar, se inquietaria ao notar a fisionomia perturbada e triste de um procurador-régio.

- Desculpe, senhor ministro, pois talvez por ser ainda novato, não sei ter o rosto de pedra e o coração diamantino que convém a um magistrado.

- Não desejava argüi-lo, senhor Beauchamp, porque sei que um magistrado é um homem que tem sentimentos como todos os outros. Mas estando eu ao facto, pela minha pequena polícia, de um caso ao qual bem pouca valia dei, sucede vê-lo de tal modo contristado, que me faz acreditar em quanto me disseram ontem; e, neste caso, está em causa a honra de uma senhora que prezo. É por este motivo que ouso interrogá-lo.

- Sabe, então, senhor Debray? Asseguro-lhe que, se com efeito o caso for verdadeiro...

- Espero que seja magistrado! -  interrompeu Debray, como se dissesse: (Espero que seja amigo”. -  Resta-me agora conferir o nome da senhora, para me certificar. Terá a bondade?

A esta pergunta directa, que o procurador-régio já esperava, não podia ele deixar de responder sem que passasse por grosseiro para com um ministro, dando-lhe a conhecer que desconfiava da sua discrição; portanto, aproximou-se de Debray e murmurou-lhe uma palavra ao ouvido. Debray empalideceu, mas, imediatamente, dissimulando a sua perturbação, despediu-se do procurador-régio e voltou para a sala, onde a baronesa parecia esperá-lo, inquieta.

O procurador-régio, com um sorriso irónico, saiu de casa da senhora Danglars.

Quando os restantes convidados se retiraram, a baronesa fez um sinal a Debray e dirigiu-se para os seus aposentos. Em seguida abriu uma porta de vidraça que dava para a sala de música e, olhando com tristeza para um piano, não pôde conter estas palavras:

- Ah, Eugénia, minha filha! Porque me abandonaste?

E uma lágrima deslizou pelas faces pálidas e orgulhosas da baronesa Danglars que, atravessando o pequeno recinto, foi espreitar para o pátio pela janela entreaberta. Ali esteve até a última carruagem se afastar; depois, vendo um vulto que tornava a entrar e se dirigia para o edifício, foi apressadamente abrir a porta de uma escada secreta e voltou para o seu quarto, sentando-se num divã.

Luciano Debray fechou a porta da escada e foi imediatamente ao encontro da baronesa.

- Então, Debray? perguntou ela com ansiedade.

O ministro descalçou as luvas, atirou com a capa

E o chapéu para uma cadeira e sentou-se ao lado da baronesa.

- Fala, Debray, a tua tranquilidade assusta-me. Soubeste alguma má nova por Beauchamp?

- Tudo quanto pude saber foi uma simples palavra.

- Ah! — exclamou a baronesa com aborrecimento.

- E essa palavra é o nome de uma mulher?

o teu.

- Então crês que eu esteja em perigo?

- Como sempre o julguei! -  respondeu Luciano Debray. -  Se até hoje a tua presença em Paris não tem sido ridícula, nunca me persuadi que pudesses sustentar por muito tempo a tua máscara, e agora mais do que nunca!

A baronesa soltou uma pequena gargalhada de orgulho ofendido e respondeu:

- É porque nunca tive segredos para contigo, assim como os tenho para os outros! Se tu julgasses como eles, que o barão Danglars anda a viajar com a filha, nunca te persuadirias de que eu tivesse sido abandonada pelo barão e por Eugénia!

- Ora vamos -  replicou Debray -  há um ano que o barão seguiu o exemplo de Eugénia e que o mundo parisiense os supõe entregues ao prazer das viagens. Na verdade, isto é bem simples, porém

o tempo irá correndo e pode haver alguém que tenha o mau gosto de perguntar quando regressam o barão e a filha. Depois haverá mais alguém que

se atreve a rir aa demora aos viajantes, e dentro em breve, Paris inteiro se rirá também. Já vês, minha querida baronesa, que por este lado não vamos bem!

- Diz-me então o que devo fazer! - volveu a senhora Danglars, agarrando o braço de Luciano.

- Repito o que te disse há um ano, quando me mostraste a carta de teu marido, na qual te dirigia estas palavras: “Deixo-a como a tomei, isto é, rica e pouco honrada.”

Esta expressão, que teria esmagado outra qualquer mulher, não fez mais do que desprender dos lábios da baronesa um segundo sorriso de orgulho ferido. Luciano continuou:

- Repito que vás viajar. O ano passado tinhas de teu um milhão e duzentos mil francos, isto é, sessenta mil libras de renda, hoje possuis dois milhões e quatrocentos mil francos, o que quer dizer cento e vinte mil libras de rendimento. Que te importa Paris? Dize às tuas amigas que o teu marido está em Roma, em Civita Vechia ou em Nápoles, e que te pediu em nome de Eugénia, a tua companhia. Elas encarregar-se-ão de espalhar a notícia por toda a parte e tu podes então dirigir-te para Londres.

- E queres que nos separemos, Debray? -  perguntou a baronesa, procurando uma lágrima rebelde. -  Isso custa-me tanto!

Luciano não respondeu e, levantando-se, olhou para ela com um olhar oblíquo.

- Há ano e meio que somos sócios e os nossos interesses têm prosperado. Agora teriam muito melhor face sendo tu ministro da fazenda.

- Chegámos justamente ao ponto essencial da questão! -  exclamou Luciano, batendo com o punho nas costas duma cadeira.

- Como? — perguntou a senhora Danglars, abrindo muito os olhos e endireitando o corpo sobre o divã em que até ali estivera recostada com toda a indolência duma amante apaixonada.

- O gostinho particular dos jornalistas da oposição, consiste em apresentarem em pratos limpos e descobertos a vida privada dos ministros. Ora, aqui para nós, que ninguém nos ouve, o motivo principal das tuas reuniões é o jogo, e eu não quero que ninguém se lembre que tiro daqui algum interesse!

- Todavia, algum dinheiro tens tirado! observou a baronesa.

- Mas não quero continuar! - retorquiu Luciano cheio de firmeza. - Desligo-me dos teus interesses; resta-nos o ágio simples da amizade,

- Pois bem — bradou a baronesa fula de raiva e ferida no seu amor próprio, compreendendo quanto aquelas palavras eram significativas — nem sequer lhe consinto esse sacrifício! Façamos contas e depois...

- E depois? - perguntou ele com um sorriso de quem desprezava a raiva impotente da baronesa. -  Quererá que nunca mais nos vejamos? Luciano meteu as mãos nos bolsos e permaneceu imóvel como se respondesse: “Como queira”. - Porém, advirto-o de que ficarei ainda até este Inverno em Paris.

- Sim? Dizem-me que os espectáculos serão dos melhores, o repertório é quase todo de Donizzetti e de Bellini.

- E também do senhor Luciano Debray -  acrescentou a baronesa, rindo com intenção.

- Não compreendo.

- Quero ver a sua estreia no ministério.

- Vamos, baronesa — disse Luciano com certa seriedade, que contrastava singularmente com o modo da senhora Danglars.

- Quem tem jogado na alta e baixa dos fundos, não pode abandonar Paris e reduzir-se às proporções de simples estrangeira, sem certa repugnância!

- Todavia, assim é necessário, quando por realidade um procurador-régio está ao facto de certas coisas, baronesa; seja prudente.

Dizendo isto, Luciano Debray puxou pela carteira, espalhou sobre a linda mesa de mármore as notas de Banco que continha, e sentou-se ao lado da baronesa, que ficou de pé muito pálida e agitada.

- Pela segunda vez, baronesa, os sócios fazem as suas contas, e espero que aproveite o meu conselho.

 

CAPíTULO 2

Benedetto

Logo que Beauchamp saiu do palácio da senhora Danglars, dirigiu-se para sua casa, que ficava ao princípio da rua Coq-Heron. Este pequeno edifício tinha um pequeno pátio central em volta do qual corriam as suas paredes denegridas e impostoras.

Era para este pátio que davam as janelas do gabinete de trabalho do senhor Beauchamp. Um candeeiro de cobre, com a sua bandeira de seda verde, derramava no recinto a claridade suficiente a quem precisa escrever e meditar durante a noite, de modo a não ferir a vista.

Beauchamp levantou-se da secretária e surgiu no centro das enormes pilhas de papel que estavam ao lado da sua cadeira, como o espectro fantástico de algum poeta lúgubre surge do centro dos túmulos de um pequeno cemitério ao pálido reflexo da lua. Foi direito à janela, afastou a cortina e aventurou um olhar inquieto para o pátio, que àquela hora recebia o reflexo vermelho da luz de um único candeeiro suspenso na abóbada do vestíbulo.

Depois, notando que alguém se dirigia para o seu gabinete, deixou cair a cortina e foi sentar-se de novo à secretária, sobre a qual apoiou o cotovelo, encostando a face na mão.

Momentos depois, a porta do gabinete abriu-se

e entraram dois homens, um dos quais, pela sua fisionomia sinistra e pelo seu trajar, maneiras decididas e compleição hercúlea, parecia um agente de polícia; o outro era o contraste vivo deste homem: novo ainda, magro, lívido e com o fato roto, parecia ser o réu.

A um sinal do procurador-régio, o agente de polícia saiu.

Beauchamp conservou-se imóvel; depois, quando lhe pareceu que o agente já tivera tempo de atravessar o pátio fez um movimento, indicando ao réu

o lado oposto da secretária e voltando a bandeira do candeeiro de modo que pudesse ver bem o rosto do acusado.

- O seu nome? -  perguntou Beauchamp.

- Benedetto.

- Está disposto a repetir tudo quanto já me confessou?

- E para que servirá isso, senhor? -  perguntou

o moço com frieza. -  Para que servirá recordar coisas de tal natureza? Fui preso, sentenceie-me, e acabe-se com isto.

- É imprudente, Benedetto. A lei fere-o de morte.

- Se o sabe com certeza, melhor é.

- Todavia, quero ouvi-lo segunda vez, pode ser que lhe haja esquecido alguma circunstância pela qual possa minorar o rigor da lei, pelas competentes provas. Fale.

E o magistrado encostou-se no fundo da sua enorme cadeira.

- Pois bem, senhor magistrado, ouça-me, porque será esta a última vez que eu falo.

Nas palavras do acusado havia certo azedume, certo desprezo pela vida, que pequena ou nenhuma sensação teriam produzido no espírito cansado de um velho juiz, mas que abalavam o de um homem ainda novo que não estava bem calejado naquele mister de procurador-régio, como Beauchamp.

- Eu estava preso na Force, e creio que protegido por algum amigo que me era desconhecido, porque me aparecia ali um homem chamado Bertuccio com quem tive relações e me dava algum dinheiro, em nome desse tal protector desconhecido, para eu comprar melhores alimentos dos que competem aos habitantes da Cova dos Leões. Já havia comparecido no tribunal, onde declarara ser filho do senhor de Villefort, seu antecessor, e esperava resignado a minha sentença. Desertor das galés, réu convicto do assassínio de Caderousse, o que haveria para mim senão o patíbulo?...

- Espere -  interrompeu o magistrado. -  Como soube que era filho do senhor de Villefort?

- Aí está uma pergunta que o senhor juiz nunca me tinha feito -  respondeu Benedetto com um sorriso de quem compreende mais do que se supõe. -  Eu respondo. Falei-lhe daquele protector desconhecido e de Bertuccio, que era o portador da sua esmola. Esse Bertuccio um dia na minha cela na cadeia da Force, disse -me o seguinte: “Benedetto, estás gravemente comprometido, mas há alguém que deseja salvar-te, porque fez voto de salvar um homem todos os anos. Esse protector conhece um meio para te livrar, por enquanto, do cadafalso. O procurador-régio, que promove a tua sentença, teve relações muito íntimas com uma senhora, e essa senhora deu à luz um menino, filho de Villefort! Como semelhante escândalo não devia transpirar, apenas o filho nasceu, o senhor de Villefort tomou-o nos braços, enrolou-lhe no pescoço os seus ligamentos naturais, para lhe impedir o choro, depois meteu-o num cofre, cobrindo-o com um lenço bordado da infeliz mãe, para lhe servir de mortalha, e, descendo uma escada secreta, pela qual se chega ao exterior de uma casa, foi enterrar o inocente junto de uma antiga árvore do jardim. Neste momento, mão desconhecida feriu o peito do infanticida com dois golpes de punhal

e roubou o cofre, julgando que encerrava algum tesouro.

“O assassino fugiu, mas quando ao abrir o cofre deparou com o menino que ainda dava sinais de vida, desembaraçou-lhe o pescoço, soprou-lhe ar nos pulmões e, envolvendo-o no lenço bordado do qual cortou um pedaço, foi entregar o recém-nascido no hospício da Caridade.

“É esta a história do teu nascimento -  continuou Bertuccio — e quando compareceres na presença do teu juiz, lança-lhe em rosto o seu crime, que ele se convencerá, passando do orgulho à submissão, da tribuna de juiz ao banco de réu, e depois,

o escândalo público que causarás com a tua voz, fará que se ponha uma pedra sobre os autos da tua acusação, e o teu protector poderá aproveitar-se dessa circunstância para te livrar.

“Eu assim fiz -  prosseguiu Benedetto -  como sem dúvida o presenciou nas proximidades do dia 27 de Setembro, data do meu nascimento em 1817, e dali a um mês, o meu protector cumpria a palavra

e eu estava livre.

“Livre, senhor, porém com a condição de acompanhar meu pai que havia enlouquecido e me procurava cavando com uma enxada em toda a parte onde houvesse terra. Entrou-me na alma o dó por ver aquele desgraçado! Depois de ter sido procurador-régio e de haver gozado a reputação de homem probo e honrado, caído do alto do seu edifício gigantesco e orgulhoso sobre o banco dos réus! Felizmente, a sua loucura impediu o processo, e tanto ele como eu estávamos em plena liberdade. Confiscaram-lhe os bens e apenas lhe deixaram um pequeno rendimento para a sua triste subsistência.

“A pouco e pouco, meu pai foi voltando à razão. Ao fim de seis meses de convivência comigo, estava curado. Reconheceu-me e fez-se meu amigo, porém estava chegada a sua hora, porque Deus parecia tê-lo deixado viver só para me pedir perdão. Perdoei-lhe e recebi a sua bênção.

“— Meu filho -  disse-me ele no seu último dia -  sinto que vou morrer e só me pesa deixar este mundo sem pagar uma dívida que tenho. É uma dívida de sangue e desespero, que eu quisera retribuir com uma usura infernal! Meu filho, eu fui criminoso e usei a máscara da hipocrisia, assim como todos os homens. Mas a vingança que sofri excedeu quanto me deviam e este excesso foi horrível! Esposa, filha, filho, reputação, tudo... A mão de um homem me arrancou sem piedade, sem consciência, para vingar-se de mim! Benedetto, fere esse homem, abate-o, fá-lo sofrer e chorar... Depois, quando o seu desespero for extremo, dize-lhe: Eu sou o filho de Villefort, castigo-te em seu nome, pela usura da tua terrível vingança!

“— Diga-me, meu pai -  bradei eu. -  Onde está esse homem?

“— Onde está... - murmurou meu pai, abanando tristemente a fronte cansada de sofrer. Depois, agarrando-me no braço e unindo-se comigo, disse-me em voz trémula de medo e o olhar pasmado como pela aparição de um fantasma: -  Interroga o espaço infinito, o mar e a terra... ele estará em toda a parte como um Deus poderoso ou um génio infernal da fatalidade! Livra-te de que o seu olhar fixo e ardente poise em ti um instante... Ficarias perdido e amaldiçoado para sempre!

“— Mas o nome? -  gritei eu com raiva, porque me parecia ouvir o eco desse nome grande e terrível!

“— o seu nome? -  repetiu o senhor de Villefort

com um riso amargo e convulso. -  Tem ele acaso

um nome determinado e certo? Oh, ele muda de

nome e de essência a toda a hora e todos os dias, pelo poder da sua vontade formidável: o abade Busoni, lorde Wilmore, o conde de Monte Cristo...

“— Ah! -  exclamei eu. - O conde de Monte Cristo...

“— Ou o abade Busoni, ou lorde Wilmore -  tornou meu pai. -  Quem sabe qual será agora o seu nome? O nome verdadeiro é Edmundo Dantes! Meu filho, vinga-me e morre ou sê maldito no mundo!”

Depois de uma prolongada pausa, Benedetto continuou:

- O senhor de Villefort expirou nessa mesma noite, entregando-me o papel lacrado que os soldados me tiraram e que o senhor tem sem dúvida em seu poder.

- Porque não quis ler esse papel? -  inquiriu o procurador-régio.

- Fiz a promessa a meu pai, por ele assim ter exigido, de não o abrir senão quando estivesse longe de França. Infelizmente, fui preso antes de o ler... Porém, não hei-de morrer sem conhecer o seu conteúdo, porque quando for chamado ao tribunal de justiça, pedirei que me mostrem esse papel.

Beauchamp estremeceu e ter-se-lhe-ia reconhecido a palidez se não tivesse o rosto oculto na sombra.

- Aonde se dirigia quando foi preso?

- Para fora de França, a fim de cumprir a minha missão.

- Qual?

- O legado de meu pai: a vingança!

Beauchamp levantou-se e passeou, agitado, pelo gabinete, - envolvendo o rosto na capa. Momentos depois, parou, fazendo um gesto como de pessoa que tinha tomado uma resolução.

- Benedetto, parece-me mais desgraçado do que criminoso.

- Ah, sim! -  exclamou Benedetto. -  Sobre mim recai o peso de uma terrível fatalidade, a fatalidade do meu nascimento! A água do meu baptismo foi o pranto de minha mãe e a minha palavra de unção foi a maldição de meu pai! Votado ao inferno se morresse e à miséria se escapasse, eis-me sempre errante, sempre fugitivo, sempre miserável! Senhor, hoje é a noite de 27 de Setembro, não é assim? Oiça...

E Benedetto contou pausadamente as badaladas dos sinos de uma igreja que anunciava meia-noite.

- Foi a hora em que eu nasci! Sucede-me sempre uma fatalidade neste dia. Hoje estou em seu poder!

Dizendo isto, baixou a fronte e cruzou os braços.

O procurador-régio limpou o suor que lhe escorria do rosto e deixou-se cair sobre uma cadeira, como se reconhecesse ali a vontade de Deus.

 

CAPíTULO 3

A senhora Danglars

ERAM oito horas da manhã, quando uma carruagem sem libré, entrando na rua Coq-Heron, foi parar em frente da casa do procurador-régio, a cuja porta apareceu logo um velho porteiro.

- Abra, porque uma senhora não pode apear-se aqui na rua - disse o cocheiro.

O porteiro fez uma pequena objecção, pois ninguém costumava incomodar o procurador-régio àquela hora da manhã. Porém, a palavra senhora proferida pelo cocheiro, venceu os escrúpulos do velho e as suas mãos descarnadas abriram os batentes da grande e pesada porta.

A carruagem aproximou-se do vestíbulo e dela apeou-se uma senhora envolta num enorme xaile de pêlo de camelo.

Depois de se fazer anunciar, foi introduzida no gabinete de trabalho do procurador-régio.

Decorridos vinte minutos, a porta abriu-se finalmente e apareceu Beauchamp.

- A senhora baronesa Danglars! - exclamou ele.

- É verdade, senhor procurador-régio. Desculpe-me o incómodo que lhe dou, mas um caso imprevisto...

- Mas sente-se, senhora baronesa -  disse Beauchamp, oferecendo-lhe uma cadeira e fingindo não notar a sua agitação.

Houve um momento de silêncio, durante o qual a baronesa passou duas ou três vezes o lenço pelo rosto. Parecia reunir as forças necessárias para proferir o que tanto lhe custava.

- Senhor — disse ela enfim - a minha presença aqui não lhe deve ser estranha. Pelo amor de Deus, poupe-me a vergonha de uma confissão...

“Para lhe quebrar o orgulho, bastam aquelas palavras!” disse consigo Beauchamp. Depois em voz alta, acrescentou:

- Sim, minha senhora, sem me importar saber o meio pelo qual está ao facto de um segredo apenas conhecido do senhor ministro da fazenda...

A baronesa fez um movimento e o magistrado sorriu.

- Estou pronto a adivinhar o motivo da sua visita — continuou ele. - Que quer que eu faça?

- O senhor pode tudo! exclamou a baronesa com veemência. -  Tudo pode, como magistrado e como amigo!

- Duas circunstâncias bem difíceis de ligar perante a lei! -  retorquiu Beauchamp.

- A minha tranquilidade e a minha honra, dependem do senhor neste momento-continuou a senhora Danglars. -  Hoje venho pedir-lhe que me salve. Conte-me tudo!

Beauchamp levantou-se, dirigiu-se para a sua secretária e, abrindo uma gaveta, retirou uma carta com sinete, mas já aberta; em seguida voltou para o seu lugar e dispôs-se a lê-la.

A baronesa ocultou o rosto com o lenço.

O magistrado começou:

Benedetto

Um juramento que eu de modo algum deveria violar, vai agora ser-te revelado. Não quero deixar-te no mundo sem que possas um dia beijar tua mãe, agradecendo-lhe as lágrimas que ela verteu sobre tti e o sofrimento que lhe causei com a minha imprudência! Se um dia a sorte a desligar do marido, vai então procurá-la e serve-lhe de amparo se ela viver na miséria e carecer de um peito amigo para encostar a fronte cansada pelo sofrimento. Lembra-te das minhas palavras e sabe que deves o ser à baronesa Danglars. Recebe a bênção de teu pai.

Villefort.

 

A baronesa soltou um grito e o magistrado ficou imóvel.

- O meu filho não conhece esse horrível segredo? -  perguntou ela com voz trémula.

- Não, minha senhora.

-  Meu Deus, meu Deus, valei-me!

-  Basta minha senhora — disse Beauchamp -  podem ouvir os seus gritos e julgarem que é a criminosa perante o juiz! - Que deverei fazer para evitar o escândalo, ou antes, que tenciona fazer? -  perguntou ela, assustada. -  Para que havia de reviver o segredo daquele erro passado! -  acrescentou com amargura.

- quereria talvez que o inocente nunca houvesse surgido da cova, onde o enterraram vivo? Minha senhora, a terra não tem em si força para ocultar um crime dessa natureza! -  retorquiu o magistrado, sem despregar a vista do rosto inflamado da senhora Danglars.

- Meu filho -  murmurou ela -  eu bem sabia que respiravas, mas as minhas lágrimas, os meus gritos, não puderam deter aquele homem! O crime não foi meu, perdoai-me! E o senhor — continuou a baronesa, voltando-se para Beauchamp -  salve-o agora, ainda que não seja por mim, que nada lhe mereço, seja pela memória do seu infeliz antecessor. Em nome do senhor de Villefort, salve-lhe o filho!

- Minha senhora, respondo-lhe da mesma maneira que ele o teria feito: cumprirei o dever que a lei me impõe.

- Mas isso será terrível, porque esse papel aparecerá em juízo! -  exclamou a baronesa.

- Evite o escândalo, saindo de França.

- E para onde irei, só, abandonada de todos? -  exclamou impensadamente a senhora Danglars.

- Abandonada de todos! - repetiu Beauchamp admirado. - E o seu esposo e filha?

- É necessário contar-lhe tudo! -  gritou a baronesa com um indizível gesto de raiva. -  O senhor é como todos os magistrados: frio, impassível, desapiedado! Pois bem, senhor, meu marido abandonou-me e minha filha fugiu! Estou só no mundo! Deixarei a França, partirei, mas, pelo amor de Deus, se para o senhor existe um Deus, sem ser a lei dos homens que lhe prescreve as palavras e as acções, salve o meu filho!

Dizendo estas palavras, a senhora Danglars saiu precipitadamente do gabinete do procurador-régio e, saltando com ligeireza para a carruagem, dirigiu-se para sua casa, onde começou a arrumar jóias e dinheiro numa mala de viagem  com mãos trémulas, e o seu corpo estremecia com um movimento convulso, proveniente talvez de um forte abalo de nervos. Via enfim desmoronar-se, pedra a pedra, todo o edifício que julgara poder resistir ao choque do raio. E o edifício sumia-se no pó, sem que ela o pudesse reedificar.

- Villefort! Villefort! -  exclamou ela, levando as mãos aos cabelos e batendo o pé. -  Aquele segredo nunca deveria ter saído dos teus lábios!

Depois, enxugando as lágrimas que lhe caíam em fio, abriu as gavetas, escolheu pela sua mão a roupa necessária para uma viagem de poucos dias, com o firme propósito de sair repentinamente de Paris, onde parecia ter sido jurada a sua perda por algum inimigo desconhecido e poderoso, contra cujos golpes não era possível resistir. Para uma mulher como a senhora Danglars, adorada, vaidosa e rica, não era coisa insignificante o sair daquele centro, onde exercia o seu império, para se reduzir num país estranho às simples proporções de uma viajante desconhecida.

Tendo sido grosseiramente abandonada pelo marido, capitalista soberbo, que antes quisera evadir-se com os últimos fundos que já não lhe pertenciam do que declarar-se falido; ela, que possuía o mais elevado grau de orgulho, quis sustentar-se aos olhos do mundo com o esplendor que até ali a havia cercado, disfarçando o comportamento do barão: este projecto, que seria difícil de executar, porque os credores viriam então com a lei nas mãos penhorar as propriedades do senhor Danglars, foi auxiliado por um caso estranho. Dias depois da imprevista partida do barão, foram os seus compromissos satisfeitos em Paris, e a casa da senhora Danglars viu-se assim livre de um ónus terrível de cinco milhões de francos!

Em Paris, toda a gente acreditou que o senhor Danglars havia partido para acompanhar Eugénia numa viagem de instrução. Porém, a demora dos viajantes já causava um certo rumor entre os que conheciam o carácter grosseiro de Danglars e a imaginação artisticamente exaltada da filha. Depois a repentina aparição de Benedetto, a carta escrita pelo antigo amante da senhora Danglars, a história daquele premeditado infanticídio, tudo concorria agora para obrigar a pobre baronesa ao mesmo passo do barão e da interessante filha.

Eugénia fugiu de Paris, porque não queria casar.

E a senhora Danglars ia também fugir, porque havia em Paris uma nuvem negra que lhe anunciava tempestade. O seu passado estava próximo a ser revelado e patente aos olhos ávidos do público, sempre curioso.

A baronesa já não chorava: com as faces pálidas, como era habitual, e o gesto seguro de quem havia deliberado seguir um pensamento, sentou-se à sua secretária marchetada de marfim, e dobrando ràpidamente duas folhas de assetinado papel, dispôs-se a escrever duas cartas.

Com mão firme e letra rasgada começou a primeira, dirigida ao senhor Luciano Debray, seu antigo sócio do tempo em que jogava na alta e baixa de fundos, à custa do pobre barão Danglars, seu marido; mas, repentinamente, como se outro pensamento a detivesse, levantou a mão e encetou uma segunda carta dirigida a Benedetto.

É que a baronesa era mãe, antes de tudo o mais, e o sentimento da mãe transpira sempre sublime através de quantas paixões se tenham arreigado no peito da mulher.

Momentos depois estava esta carta completa, e a baronesa passou-a pelos olhos, que pela segunda vez se lhe humedeceram,

Está abandonado ao poder da justiça, pobre e miserável, sem outro recurso mais do que a sua própria eloquência para alcançar a liberdade, se o seu juiz puder comover-se com a exposição franca da fatalidade que parece oprimi-lo desde o seu nascimento. Não sei qual será o seu destino: todavia, tudo espero de Deus e tenho fé na sua infinita bondade. Agora permita que seja posta à sua disposição uma pequena quantia, que poderá servir para minorar-lhe o rigor dos carcereiros, e acredite que, longe de ser uma esmola humilhante que se lhe oferece, é uma dádiva a que o dever obriga uma pessoa a quem é caro.

Acabando de ler, a baronesa abriu a sua carteira e escolheu três notas do Banco no valor de sessenta mil francos, as quais fechou dentro da carta; depois lacrou-a, escrevendo-lhe o nome “Benedetto” e envolveu-a noutro sobrescrito, onde escreveu: “Ao senhor procurador-régio.”

A senhora Danglars descansou um momento, e quando sentiu que as lágrimas tornavam a secar e que o seu espírito retomava o sossego próprio para a deixar proceder naquele projecto de fuga, pegou na pena e recomeçou a carta para Luciano Debray.

Era a este homem que a senhora Danglars declarava a sua partida, rogando-lhe que se encarregasse de fazer vigiar a sua casa em Paris, até que ela tornasse a escrever-lhe.

Quando acabou, aproximou-se da janela que dava para o pátio e ali se demorou um instante, até que, vendo alguém, lhe fez sinal com a mão para que subisse pela mesma escada que Luciano Debray utilizava para se introduzir ali.

VEstido com uma blusa de riscado, calção vermelho e botas de cocheiro, parecia indeciso no limiar da porta.

- Assim, senhora baronesa? -  murmurou ele.

- Entre, pois preciso falar-lhe.

O cocheiro entrou, notando com espanto que a baronesa fechava cautelosamente a porta da escada.

- Quando entrou para o meu serviço tomei-o por ser um homem inteligente e discreto.

- Sem isso nunca seria eu bom cocheiro.

- Pois bem, trata-se de um extenso passeio semelhante a uma viagem: estrada sempre corrida, países diferentes.

- Compreendo, senhora baronesa — atalhou o cocheiro, abanando a cabeça com ar de quem percebe tudo quanto se lhe está expondo em meias palavras.

- Muito bem.

- Fui eu que recomendei o cocheiro que teve a honra de conduzir o senhor barão; era um colega meu, rapaz de tino.

- Pode recomendar outro?

- Irei eu, senhora baronesa, pois tanto se me dá estar aqui como ali.

Estará pronto amanhã?

- Hoje mesmo.

- Então prepare uma carruagem com bons cavalos e deixe-a num lugar afastado, porque sairemos daqui no meu trem habitual. A minha bagagem está ali.

O cocheiro olhou para uma pequena mala de couro e fez um gesto de compreensão.

- Depois, estrada de Bruxelas, Liége, Aix-la-Chapelle...

- Muito bem, estará tudo pronto, senhora baronesa. Quanto aos cavalos, irão os russos, que são valentes e possantes.

- Aqui tem dinheiro. Agora seja discreto.

O cocheiro recebeu uma coisa das mãos da baronesa e retirou-se muito satisfeito. No dia seguinte, a senhora Danglars subia para o seu trem, que a esperava no pátio; e, por um acaso singular, descera a mesma escada pela qual um ano antes tinham descido a menina Eugénia e a sua amiga Luísa de Armilly.

 

CAPÍTULO 4

Os sessenta mil francos de Benedetto

LucIANO DEBRAY leu com satisfação a carta da senhora Danglars, na qual ela lhe anunciava a sua pronta saída de França.

As estreitas relações que prendiam Luciano Debray à baronesa e que noutro tempo muito úteis tinham sido ao secretário particular de um ministro de Estado com vinte mil libras de renda, não convinham agora ao ministro de Estado com os seus enormes vencimentos e com toda a representação deste eminente cargo. Visto que a senhora Danglars estava numa posição difícil e posto que o mundo a ignorasse, Luciano Debray conhecia-a muito bem para que julgasse coisa possível a conservação da máscara, portanto, respirou profundamente ao finalizar a leitura da carta, como se despertasse de um sonho enfadonho.

“Estas famílias que vêm não se sabe donde, com as suas improvisadas riquezas, parecem-se com os actores que representam no teatro pelo espaço de algumas horas o papel de grandes personagens. Por fim, cai o pano, e voltam ao que são... ao nada. Ninguém mais os vê! O senhor barão Danglars era desses.”

Enquanto Luciano Debray fazia estas reflexões, mandava trazer à sua presença o pobre réu Benedetto. O magistrado estava no seu gabinete do tribunal de justiça, onde foi introduzido o filho de Villefort, o qual viu a porta fechar-se apenas entrou, e encontrando-se em frente do procurador-régio.

- Aproxime-se, Benedetto. Tenho em meu poder uma carta que lhe deve ser entregue. Suspeita de quem seja?

- Não, senhor. Quem há neste mundo que me conheça e me escreva?

- Veja bem! Se tem conhecimento com alguém que tivesse sido seu cúmplice em qualquer momento da sua vida, não o oculte! A carta está aqui, conhece ao menos a letra do sobrescrito?

- Nunca a vi senão agora, mas a carta está aberta e deve saber o que ela contém.

- Palavras e sessenta mil francos.

- Por piedade, senhor! -  suplicou Benedetto, batendo com as mãos e empalidecendo.

- Não me disse que quando estava na Force, um protector desconhecido lhe mandava algum dinheiro?

- Oh, sem dúvida! Mas desde então nunca mais me procurou, e Bertuccio, que era o portador do seu dinheiro e dos seus conselhos, saiu de França há muito tempo.

- Sabe que é proibido a qualquer preso ter em seu poder uma soma tão avultada?

- Sei, sim, senhor — respondeu Benedetto, sus-pirando.

- Se a tivesse, em que a empregava?

- Comprava um fato e não teria privações na cadeia, reservando uma parte para a minha viagem, visto ter-me dito que seria degredado.

O magistrado ficou um momento pensativo, depois tornou:

- E dizia aos seus companheiros que possuía esse dinheiro?

- Nem pensar nisso! Cosia-o no forro da minha blusa e quem poderia vê-lo então? Dizer que tinha dinheiro seria o mesmo que reparti-lo pelos meus esfaimados amigos da Cova dos Leões, os quais não têm as virtudes de Rafael.

Os olhos de Benedetto brilhavam como dois carbúnculos expostos aos raios de sol e o suor corria-lhe em bagas pela fronte.

o magistrado pegou então na carta e entregou-a a Benedetto, dizendo-lhe:

- Leia.

o rapaz de boa vontade dispensava a leitura, para empregar a vista no exame dos papéis que valiam sessenta mil francos e que lhe asseguravam um raio de esperança no centro da sua extrema miséria; todavia, conformou-se com a vontade de Beauchamp e leu a carta.

- Oh! -  exclamou ele. - Reconheço aqui um desses génios benignos que se ocupavam em destruir as obras daquelas más fadas, de que fala Perrault! Mas... os sessenta mil francos, senhor?

Benedetto, sessenta mil francos podem ser considerados uma riqueza para um homem que está na sua posição.

- Decerto, senhor.

- Pois bem — continuou o magistrado — não se deixe possuir de exaltação, e agradecendo com humildade o auxílio que o céu parece mandar-lhe, comporte-se de modo que lhe mereça a protecção até ao fim da sua existência.

- Sim, senhor! -  murmurou Benedetto, suspirando e lançando um olhar oblíquo para as notas do Banco que o procurador tinha na mão.

- Sabe que eu estava no direito de privá-lo da posse dessa grande quantia?

Sim, senhor.

- Reconheço que procedo contra um artigo do regime das cadeias, entregando-lhe este dinheiro.

Imagine quanto me arrependeria de fazer o que faço, se o visse cometer uma imprudência.

- Serei prudente como Ulisses.

- Benedetto, deseja agradecer-me de algum modo o benefício que lhe faço?

- De todos os modos, meu senhor.

- Pois bem, seja prudente, que ficarei assim muito satisfeito. Aliás, se pela sua indiscrição, eu tiver de arrepender-me, acredite que em vez de um simples degredo, promover-lhe-ei o castigo da grilheta e será remetido para Toulon.

- Por piedade, senhor, isso nunca!

- Bem, aqui está o seu dinheiro, e tenha muito juízo.

Dizendo isto, o procurador-régio entregou o dinheiro a Benedetto, o qual imediatamente o guardou na algibeira; depois fez soar a campainha, a cujo sinal apareceu o agente da polícia.

- Leve o réu! -  ordenou o magistrado.

Beauchamp suspirou profundamente, apenas Benedetto saiu, e levantou-se muito convencido de haver praticado uma boa acção, entregando-lhe o socorro que a mãe lhe enviava.

“Sim, mas aquele miserável irá perder-se ainda mais!” pensou o procurador. “Começará por subornar alguns guardas, depois assassinará o primeiro em que houver depositado confiança. Finalmente, chegará até ao conde de Monte Cristo e cairá com ele para sempre! Sim, abalado o colosso, deve esmagar na sua queda o pigmeu que lhe arruinou os alicerces. Vamos, a justiça de Deus é mais perfeita do que a dos homens e os seus decretos menos incompreensíveis! A minha consciência ficou tranquila.”

Benedetto caminhando no centro da sua escolta, com os braços cruzados sobre o peito como para defender o seu tesouro, que levava ali escondido, chegou à cadeia da Force, onde ficou entregue aos seus pensamentos de liberdade e de vingança.

Havia já um mês que o infeliz ali estava e ainda conservava intactas as notas do Banco, temendo até em lhes tocar, com receio de que aqueles frágeis pedaços de papel se desfizessem ao contacto dos seus dedos. Todos os dias formava um novo plano de fuga, e todas as noites esse plano se desfazia com o encontro de uma dificuldade material. Todavia, era-lhe necessário obter a liberdade! A voz do pai moribundo, pedindo-lhe que castigasse o excesso de uma vingança atroz, desapiedada, monstruosa, ecoava-lhe ainda nos ouvidos, despertando nas paredes do sombrio cárcere um som lúgubre, pavoroso! Muitas vezes, Benedetto erguia-se enraivecido como a fera quando vê diante de si a figura do homem que a martiriza: recuava cheio de assombro, e logo tornava a avançar com os punhos cerrados, o olhar chamejante, e a voz rouquenha, bradando:

- Edmundo Dantes! Onde estás tu, homem ou demónio, que destruíste uma família inteira, até ao último dos seus filhos, que era uma criança de oito anos apenas! Maldito, que me elevaste das sombras e das trevas para me fazeres conhecer como brilhava o sol e que logo me arremessaste no abismo, rindo da minha queda e zombando do meu espanto! Traidor e hipócrita, que usaste da palavra de Deus para aniquilar os que eram felizes, envolvendo na tua vingança o justo com o criminoso! Para te vingares de um homem carecias da vida de uma virgem, de um inocente, de dois pobres velhos?... Por grande e poderoso que sejas, o filho de Villefort há-de alcançar-te, e sentirás com assombro o seu passo atrevido e tremerás então no apogeu da tua felicidade! Escuta este juramento, proferido aqui entre as paredes de um cárcere, no silêncio e nas trevas da noite, por um malvado que subiu todos os degraus do crime, desde o de falsário até ao de ladrão e assassino! Tu reconhecerás quanto foi impotente o poder que te arrogaste! quando viu que se completavam três meses de prisão sem que o enviassem a cumprir sentença, resolveu começar a pôr em prática o seu plano de fuga. Certificou-se de que os seus sessenta mil francos estavam ainda como os havia recebido e, sem se importar conhecer donde lhe tinham vindo, embrulhou-os num lenço que amarrou em volta da cintura.

“Bem, o meu processo é simples”, disse ele falando consigo e como se já estivesse fora dos muros da prisão. “Com este dinheiro vencem-se pequenas dificuldades, e conseguirei sair de França. Agora, vejamos se sou tão pouco jeitoso que não saiba desfazer-me de um homem! Talvez já esteja esquecido de como isso se faz; entretanto, experimentemos com unhas e dentes esta pequena tarefa.”

O assassino estendeu os braços, abriu e fechou muitas vezes as mãos como a exercitar os músculos, depois deu três ou quatro pulos sobre as lajes e, convencido da sua agilidade, apesar do frio e da fome que passara durante esses três meses, foi sentar-se a um canto do cárcere. Em seguida, descalçando um sapato, tirou-lhe de dentro uma lâmina de aço, sem cabo, que fora cuidadosamente afiada. Quando Benedetto sentiu passos aproximarem-se do cárcere, não pôde deixar de estremecer, pensando que o mais pequeno ruído atrairia os guardas ali, ficando ele impossibilitado deste modo de aproveitar os seus sessenta mil francos no plano que premeditava. Fazendo um grande esforço para dissimular a agitação, esperou a sua vítima.

Era noite, e o carcereiro vinha, como de costume, fazer a sua ronda nocturna e acender um pequeno lampeão.

- Boas-noites, Benedetto -  disse-lhe o guarda, pois já o conhecia de outra vez que ele estivera ali encarcerado.

Sabes que está para sair navio e desta feita lá vais tu viajar! Toma conta, meu rapaz, não sejas altivo com os teus guardas, pois acredita que ainda poderás vir a ser feliz.

- Com que então parece-te que vou viajar, meu amigo? -  perguntou Benedetto, pondo-lhe a mão no ombro. - Nesse caso, quero deixar-te alguma coisa para que te lembres de mim.

- Sim, deixa-me os teus chinelos - disse o guarda, sorrindo. -  Mas vê lá não te façam falta, pois podes ter frio nos pés.

- Parece-me que posso deixar-te mais que os chinelos — retorquiu Benedetto com ar de repreensão. -  Por exemplo, alguma coisa que faça a tua felicidade, meu velho!

- Ah! Ah! Aí estás tu com ela ferrada! Certamente não voltas à mania de te intitulares príncipe de Cavalcanti!

A estas palavras, Benedetto deu um salto como sentindo a picada de uma víbora, fulo de raiva.

- Que é isso? - perguntou o carcereiro, voltando-se rapidamente para ele e franzindo os sobrolhos.

Benedetto acalmou imediatamente e sorriu para tranquilizar o guarda.

- É uma dor que me costuma dar — disse ele -  mas, voltando ao assunto. Dize-me cá, o que darias tu ao diabo para que ele te fizesse senhor de vinte mil francos?

- Vinte mil francos! exclamou o carcereiro, deixando cair o braço com que se dispunha a acender o lampeão. - O modo como falas em vinte mil francos, dá-me vontade de rir!

- Vinte e cinco mil, desgraçado! Toma bem sentido, não digo vinte, mas vinte e cinco mil francos.

- Agora acrescentas mais cinco. Vamos, deixa-te de piadas, isso seria a fortuna de qualquer de nós!

- De qualquer de nós - exclamou Benedetto, fazendo um gesto de tédio. - Eu possuo muito mais

e não me considero feliz.

- Possuis muito mais? Então estás doido, rapaz!

- Se queres ver, anda cá. Mas certifica-te de que

não nos espreitem do corredor e fecha a porta.

O carcereiro picado de curiosidade pelas palavras

de Benedetto, fechou a porta, avançou para ele e soltou um pequeno grito de espanto ao ver o dinheiro nas mãos do preso.

- Sessenta mil francos! -  exclamou ele. Benedetto guardou o dinheiro com toda a calma

e perguntou:

- Queres metade?

- Eu... que queres tu que eu faça?

- Que me ponhas fora daqui.

- Isso é impossível! -  Dou-te mais dez mil francos e ficarás com os

teus quarenta mil.

- Oh!

- Vamos, cinquenta mil...

- Rapaz, estás a tentar-me! Como arranjaste

este dinheiro? Roubado, hem?

Pouco te deve importar se foi roubado ou

não! Cinquenta mil francos valem um pequeno

sacrifício.

- Mas como será isso arranjado? No fim deste

corredor fica a porta que dá para o pátio, é verdade, mas as sentinelas tanto daqui como do pátio, não deixam sair ninguém sem que lhes mostre o passe!

- Vende-mo.

- E eu... ficaria no teu lugar?

- Dize que o perdeste.

- Isso não é admitido aqui! -  respondeu o carcereiro.

- Então há outro meio — disse Benedetto.

Amarro-te, deito-te no chão e fujo com o teu passe, ficando tu com os cinquenta mil francos. Verão que lutaste e que perdeste a partida.

Esta proposta pareceu satisfazer o carcereiro, que estava disposto a aceitar.

- Vamos, meu velho, avia-te, pois não tenho tempo a perder.

- Diabo! -  murmurou o guarda. -  Venha o dinheiro, rapaz, mas será a conta redonda, os sessenta mil francos! - continuou ele com o olhar inflamado de cobiça.

- Está bem -  respondeu Benedetto. -  Era para isso mesmo que eu os destinava.

- Ah, ladrão! Querias ficar com o resto, hem? - disse o carcereiro, recebendo o dinheiro e dando em troca uma chapazinha de metal com uma letra aberta.

Aproximaram-se da luz, com as costas voltadas um para o outro, examinando escrupulosamente os seus tesouros; e de repente, por um movimento uniforme, ambos se acharam cara a cara, talvez movidos pelo mesmo pensamento.

- E se as notas forem falsas?

- Isso pensava eu agora mesmo a respeito da chapinha, que tu dizes ser o passe.

- Fico por ela.

- Acredita que não te engano, imbecil. Vamos à obra!

'Com escrúpulo, o carcereiro guardou o dinheiro, olhando sempre para os movimentos de Benedetto, o qual se preparava para rodear-lhe o corpo com a corda do lampeão: porém, no momento em que ia passar-lhe a primeira volta, o guarda fez um movimento como se fosse coçar as costas, e de repente tirou um punhal cuja lâmina brilhou aos olhos de Benedetto.

- Para trás! -  bradou ele.

- Eu já esperava isso, meu velhaco, e verás que vais pagá-lo!

No mesmo instante, dando um salto de tigre, lançou-se sobre o carcereiro, o qual, no momento em que ia gritar por socorro, sentiu a voz cortada na garganta pela ponta de uma lâmina. O guarda caiu imediatamente nos paroxismos da morte.

Benedetto apanhou o dinheiro, embrulhou-o na capa do carcereiro, pôs o chapéu bem enterrado na cabeça e, abrindo a porta, saiu para o corredor. Quando se aproximou da sentinela, mostrou o passe e passou adiante, sucedendo o mesmo à saída do edifício.

E ei-lo em liberdade!

 

CAPíTULO 5

A sepultura

ASSIM que se viu na rua, faltou-lhe o sangue-frio e a firmeza com que desempenhara o seu projecto de fuga. Foi então que o sangue se lhe agitou nas veias, parecendo-lhe ouvir os gritos agonizantes do carcereiro. A sua própria sombra o assustou, e, não podendo vencer o medo, desatou a correr como se no seu encalço fossem quantos soldados compunham a guarda da Force. Meia hora depois, estando já longe da cadeia, parou para respirar e olhou em volta de si, como se procurasse orientar-se, dizendo:

- Agora estou livre. O mundo é grande, e se o conde de Monte Cristo não morreu, hei-de encontrá-lo! Porém, sessenta mil francos não me chegam para o que preciso. Enfim, tenho de pensar como poderei aumentar o meu capital, mas por agora vamos arranjar pousada.

Lembrando-se então de uma daquelas baiúcas que abundam em Paris, onde nunca falta um taberneiro pouco escrupuloso que recebe a qualquer hora da noite a pessoa que lhe bata à porta, Benedetto um pouco mais sossegado da agitação do medo, dirigiu-se para um dos mais imundos bairros e, ajudado pelo espesso nevoeiro que pairava sobre Paris, chegou, sem qualquer encontro com a ronda, à porta da pousada, na qual bateu, dando em seguida um pequeno grito semelhante ao piar da coruja.

O dono da pousada, ouvindo aquele sinal, abriu a porta sem receio.

- Olá, meu rapaz! Podes entrar.

- Boa-noite.

- Queres cama, não é verdade? Estão todas ocupadas — disse o dono da pousada designando com o braço o comprido e húmido dormitório, no qual se espalhavam os raios avermelhados e frouxos de uma lanterna, colocada num buraco do muro, cuja fumarada infecta tornava a atmosfera mortífera.

- Não importa -  respondeu Benedetto -  dormirei aí para um canto e amanhã, ou antes, agora mesmo, temos de falar.

O assassino disse estas palavras com tanta confiança e num tom de tal mistério, que despertou a curiosidade do seu interlocutor.

- Então o que é? -  perguntou ele com um amável mas horrendo sorriso, endireitando o corpo.

- Subamos para o teu ninho — tornou Benedetto, olhando para o sítio onde estava a cama do proprietário.

- O quê!? Ali só eu, meu rapaz, é contra os estatutos da casa!

- Porém, quando se trata de um negócio que rende...

- Ah! O caso então muda de figura. Podes subir. Dizendo isto, começou a subir a escada seguido de Benedetto.

- Então de que se trata? -  perguntou o velho, sentando-se na borda da cama e apalpando o cinto para se convencer de que tinha ali uma razão positiva com que desfizesse qualquer acto de violência.

Benedetto também apalpou os rins e pareceu tão satisfeito como o dono da pousada.

- Amanhã, quando sair daqui, preciso de um fato mais próprio de uma pessoa de distinção, entendes? Terei de cortar o cabelo e fazer a barba.

- Compreendo. Precisas sair daqui de modo que não te reconheçam. Quanto ao cabelo e à barba, isso arranjo-te eu, mas a respeito de fato, tens de te contentar com o que tiver ali a minha vizinha, a qual possui um belo estabelecimento. É mulher de confiança e respondo por ela. Mas a respeito de dinheiro?

- Amanhã aparecerá, meu bicho velho! - respondeu Benedetto. -  Espero o meu banqueiro.

- Desde já te previno de que levo a minha comissão.

- Serei generoso.

- Bem, bem! Se queres bebe um gole de aguardente, pois o frio aperta e só agora vejo que estás malhado!

- Venha de lá esse escalda ratos! -  disse Benedetto, estendendo a mão a fim de pegar numa xícara quebrada cheia de aguardente ordinária, que o velho lhe apresentava.

- Agora desce e acomoda-te como puderes. Já se sabe que não me responsabilizo por perdas e danos. Cada qual guarda o que pode, porque é essa a lei da casa.

- Estás doido?! -  exclamou Benedetto. -  Importa que eu não seja visto lá em baixo!

- Então pagarás a dobrar!

- Já te disse que serei generoso.

- Bem, bebe mais uma pinga e dorme.

O velho atirou-se para cima da enxerga e cobriu-se com o seu cobertor, ao passo que Benedetto se deitava sobre as tábuas, com os braços cruzados sobre o peito. Porém nenhum deles dormiu naquela noite.

Benedetto, porque temia alguma especulação do velho, e este porque receava o mesmo ao seu improvisado companheiro de quarto.

Logo que amanheceu, os fregueses da miserável pousada foram saindo, e o seu proprietário correu a casa da sua vizinha adela a fim de escolher o fato para Benedetto.

- Aqui tens o fato, meu rapaz, e agora vamos a contas! -  disse-lhe o velho hospedeiro, dispondo-se a mencionar-lhe a importância.

O ajuste fez-se depois de pequena discussão. Em seguida, Benedetto, decentemente vestido, com o cabelo cortado e a barba feita, esperou ocasião oportuna de sair de casa, na firme convicção de que não seria possível reconhecerem-no pelo assassino do velho carcereiro da Force. O dono da reles baiúca era o primeiro a fazer-lhe crer que, se ele o não tivesse visto metamorfosear-se ali mesmo, por certo que não poderia reconhecê-lo então!

Benedetto parecia um honrado burguês, em cuja fisionomia não era possível notar-se a menor sombra de uma má acção. Durante o dia andou a tratar do seu passaporte, inculcando-se como estudante de arqueologia universal, que desejava ir estudar o passado naquelas grandes páginas que se acham dispersas em diferentes pontos da terra, e que se chamam ruínas; porém, chegada a noite, a sua fisionomia, retomando o aspecto que lhe era tão comum,

o ar incompreensível de raiva melancólica e atrevimento, tornava às suas proporções de facínora.

Atravessando com placidez toda a cidade, chegou ao cemitério do Père-Lachaise; depois, rodeando

o muro com precaução, procurou um ponto acessível de transpor. Porém, o seu trabalho foi inútil, pois reconheceu que lhe não restava outro meio para se introduzir ali, senão comprar a troco de alguns francos a consciência do guarda. Revestindo-se de toda a sua firmeza, chegou à grade de ferro

e bateu.

- Quem está aí? -  perguntou a voz trémula que saía de uma pequena casa edificada ao lado da grade.

- Amigo, abra sem receio - disse Benedetto.

Por um acaso singular e contra todas as esperanças, o guarda, saindo de casa, caminhou para a grade de um modo que parecia ir obedecer prontamente à determinação intimada.

Desculpe, senhor, se me demorei mais do que devia, mas pensava que não voltasse mais aqui.

Benedetto ficou estupefacto e, reconhecendo imediatamente que havia ali um equívoco, tratou de esconder o rosto na dobra da capa.

- Vem naturalmente ressuscitar mais alguém -  continuou o guarda — visto que, se não é um anjo, possui sem dúvida o segredo que deu vida a Lázaro! Estou às suas ordens, meu senhor.

“Ah!” pensou Benedetto. “Isto é singular, e se eu não tivesse a certeza de hoje só ter bebido meia garrafa...”

- Quer que o acompanhe? - perguntou o guarda.

-  Não -  respondeu Benedetto.

- Então, vou buscar-lhe a minha lanterna.

Dizendo isto, o guarda dispunha-se a voltar, mas deteve-se para acrescentar com modo obsequioso:

Ainda me lembro da sua última visita e, para lhe provar o que digo, farei tudo como então determinou. Tenciona descer ao túmulo das famílias de Saint-Méran e Villefort?

A estas palavras, Benedetto estremeceu. Porém, reconhecendo que era necessário responder alguma coisa, disse-lhe:

- Sim.

- Pois bem, senhor Wilmore -  tornou o guarda -  eu vou lá colocar a minha lanterna e pode descer quando quiser.

Em seguida saiu e encaminhou-se na direcção aos túmulos.

- Wilmore -  murmurou Benedetto, como se sentisse a picada de uma víbora. -  Será isto um sonho? O inglês que me salvou da grilheta de Toulon! Edmundo Dantes, agora me recordo de que este nome designava a mesma pessoa. Edmundo Dantes, o assassino de meu pai e de meus inocentes irmãos. Maldito! E quando eu aqui vinha com o pensamento de fortalecer a ideia de vingança que jurei a meu pai moribundo, vem o teu nome soar aos meus ouvidos como repetido pelo eco da sepultura, onde repousam as tuas vítimas! São os finados erguendo a voz contra os seus algozes. É aquele inocente de nove anos envenenado por tua causa, que repete o nome do seu desapiedado e sanguinolento verdugo. Edmundo Dantes!

Depois deste momento de exaltação, Benedetto voltou ao seu estado habitual de firmeza e sossego.

“Já aqui veio um homem que desceu ao jazigo de Saint-Méran e de Villefort”, pensou ele, “e esse homem era Edmundo Dantes. Vieste acaso ressuscitar as tuas vítimas, como disse o guarda quando te supôs um anjo? Compreendo, vieste cravar a vista maldita nos corpos inanimados das tuas vítimas”.

Depois destas reflexões, Benedetto seguiu pelo cemitério e, posto que desconhecesse a situação do túmulo de seu pai, fàcilmente o distinguiu guiado pelo reflexo da lanterna do guarda colocada sobre um dos degraus. A luz, projectando-se pelo chão húmido e barrento, formava uma figura oblonga e movediça, semelhante a um fantasma de fogo, no meio dos túmulos de mármore.

A pequena distância distinguia-se o vulto do guarda, o qual parecia esperar as últimas ordens de Wilmore. Benedetto tirou uma bolsa da algibeira e caminhou para ele, fazendo tinir o dinheiro.

- Perdão, excelentíssimo! - murmurou o guarda, recusando. -  Eu antes quisera que o senhor me brindasse do mesmo modo que da primeira vez, isto é, deixando a bolsa ao lado da minha lanterna, quando saísse do túmulo. Eu tremo, apesar de ver o que pode me acontecer se descobrirem um guarda como eu deixá-lo entrar e ajudá-lo, mas há qualquer coisa de solene e terrível no senhor que me faz gelar! Desculpe a minha fraqueza! Acostumado a viver aqui entre os mortos, tremo do senhor e não deles, porque nem eles nem nenhum ser vivente, faz o que o senhor tem feito.

Benedetto fez então um sinal para que ele se retirasse; depois, ao vê-lo afastar-se, dirigiu-se para a porta de ferro do jazigo. Ali encontrou uma enxada e viu a terra já revolvida, pensando ser obra do guarda, o qual parecia conhecer muito bem a vontade do misterioso Wilmore. Tirando do bolso uma gazua, introduziu a extremidade na fechadura da porta, fez saltar a tranqueta, recuando logo um passo e levando a mão ao nariz para evitar o vapor infecto que saía.

A porta girou sem dificuldade, em consequência da terra ter sido cavada naquele sítio. Benedetto pegou na lanterna e avançou para a escada que conduzia ao interior do jazigo.

Ladrão atrevido, assassino audaz como era, tremeu então de terror pelo silêncio sinistro que lhe infundia aquela sombra solene do asilo de morte. Por momentos vacilou e sentiu os joelhos dobrarem-se-lhe, mas, fazendo um esforço para vencer aquele terror, soltou uma risada ímpia e disse como para se animar com o eco da sua voz:

- Que é isto? Edmundo Dantes será mais forte do que eu? Quando ele, que foi quem arrojou a este sepulcro os cadáveres que ali repousam não tremeu de penetrar no centro deles, não terei eu o ânimo necessário para descer? Vamos, a esta hora, quem sabe se ele não veio aqui e, afastando a sombra com o seu braço rutilante, desceu ousadamente esta escada de mármore.

Dizendo isto, Benedetto desceu os degraus e achou-se no interior do jazigo, cujo pavimento não tinha mais de trinta palmos quadrados: dos lados

havia banquetas de mármore, das quais oito estavam ocupadas com caixões de chumbo. Benedetto pousou a lanterna, e tirando do bolso outro ferro mais comprido do que a gazua e com duas unhas semelhantes às de uma cabra, dirigiu-se para os caixões.

- Marquês de Saint-Méran -  disse ele, lendo o nome escrito com tinta branca sobre o caixão. Era o sogro de meu pai pelo seu primeiro casamento. Velho fidalgo, cheio de preconceitos da sua nobre raça, deve ter o cadáver adornado com todos os arrebiques da sua jerarquia.

Em seguida aplicou a alavanca ao caixão e fez-lhe saltar a tampa. Com efeito, o mirrado esqueleto revestido com um riquíssimo uniforme, tinha sobre o peito diferentes insígnias e cruzes de valor. Benedetto apoderou-se delas e fechou o caixão, depois aproximou-se de outro onde se lia senhora de Saint-Méran e abriu-o do mesmo modo, murmurando:

Aqui a temos também ataviada com riqueza para este sono obscuro e eterno. Última prova de loucura que a criatura apresenta no mundo e pela qual se conhece todo o seu orgulho e vaidade!

As jóias que adornavam os dedos e o peito do cadáver estavam já em poder de Benedetto, o qual se dirigiu em seguida para o terceiro caixão a fim de o roubar também. Este era o da senhora de Villefort.

Depois de um momento de hesitação, parou em frente do quarto caixão e murmurou:

- Valentina de Villefort, virgem singela como a flor dos campos, tu não tens o teu cadáver revestido de outras jóias que não seja o prestígio santo da pureza e inocência que a tua alma lhe deixou.

Aproximando-se do seguinte, continuou em voz rouca:

- Também tu, Eduardo, criança de nove primaveras, aniquilada como sua mãe, pelo excesso de uma vingança implacável! Mas serás vingado, meu irmão!

Avançando mais uns passos, o miserável fez saltar a tampa de outro caixão de madeira mais pobre e singelo do que os outros, onde se encontrava um cadáver amortalhado num lençol branco, prosseguindo:

- E tu, meu pai, ainda se vê na tua fronte o cunho de sofrimento espantoso de quem viu cair em volta de si, uma a uma, todas as suas mais caras afeições. Esposa, filho e filha, como as flores arrancadas pelo tufão! Os teus lábios ainda me parecem murmurar o último desejo, depois da longa narração da tua vida, na mesma noite em que recebi o teu derradeiro suspiro. A tua vontade será executada! -  E Benedetto, tirando do bolso o seu fino punhal, decepou com um golpe a mirrada mão do cadáver de seu pai e guardou-a juntamente com o punhal, exclamando: -  Já que em vida a tua dextra não pôde castigar o autor desta vingança horrorosa, irá a mão do finado bater na face de Edmundo Dantes!

Em seguida, fechando o caixão, murmurou:

- Adeus pela última vez! Filho deserdado e obscuro, herdeiro desconhecido de uma família poderosa, desci ao jazigo para obter a minha única herança fora do alcance das leis humanas. precária e triste, todavia dar-me-á a possibilidade de caminhar aonde me guia a mão do finado!

Dizendo isto, pegou na lanterna e subiu rapidamente a pequena escada. Quem então o observasse, surgindo pálido e agitado do centro de um túmulo, julgá-lo-ia o finado impelido por uma paixão poderosa, que não tinha podido morrer com ela, voltando à superfície da terra e deixando após si o mistério do sepulcro.

Benedetto estacou e, respirando profundamente, limpou o suor frio que lhe banhava a fronte. Colocou a lanterna nos degraus exteriores e riu-se com o seu riso diabólico de assassino.

- Lorde Wilmore! - exclamou ele. - Dentro em breve há-de vir aqui quem te acuse desta profanação!

'Com efeito, quando o guarda voltou para recolher a sua lanterna e guardar a bolsa do dinheiro, de-balde a procurou, murmurando:

- Bem mal fiz eu em não a ter aceitado. Wilmore aproveitou bem o meu receio, enganando-me!

No dia seguinte, vendo que o túmulo ficara aberto e os caixões arrombados, jurou que Wilmore não passava de um ladrão e que o faria prender na primeira oportunidade.

 

CAPíTULO 6

A caixa do teatro Argentino em Roma

No princípio de Janeiro de 1833, duas jovens amigas, tendo acabado os seus estudos de música principiados em Paris e coroados por um exame público na Academia Italiana, preparavam-se em Roma para encetar a carreira artística de Talma, fazendo a sua estreia na cidade de Roma, no belo Teatro Argentino.

Luísa e Eugénia de Armilly, desde a mais tenra idade, tinham seguido o único pensamento de um futuro de independência como o que sonha o génio, além do círculo estreito das nossas paixões e preconceitos.

Havia muito tempo que Eugénia, juntando a sua voz sonora e expressiva aos sons do piano de Luísa, passava dias inteiros num gabinete de estudo, cujas portas, cuidadosamente fechadas, impediam que alguém fosse profanar aquele pequeno santuário, onde o génio ensaiava as suas asas para o voo gigantesco que premeditava.

A sociedade da família de Eugénia em Paris, apesar de ser uma das mais abastadas e escolhidas, não tinha podido apresentar objecto algum que prendesse o espírito da exaltada cantora. Luísa, depois de ter sido a sua mestra, era agora a sua única amiga, companheira e irmã de glória, de trabalho e de fortuna. Foi Luísa quem recebeu o voto da profissão de Eugénia no novo culto, depois de a haver iniciado em todos os seus sublimes mistérios; e Eugénia, professando com aquela abnegação profunda e verdadeira de todo o sentimento, próprias das grandes almas, abandonou e desprezou quanto, para uma rapariga da sua idade, pode haver de belo e de agradável, isto é, pai, mãe, honras, riquezas e adulação, para entrar com ardor e respeito nessa grande família, cujo chefe foi elevado pelos homens ao lugar de semi-deus e se chama Apolo.

Depois duma pequena viagem artística, em que admiraram Milão, Génova e Veneza, a música era

o único passatempo das duas amigas, que davam pequenos concertos, o que elas faziam simplesmente para aumentar o seu pequeno capital, muito diminuto por causa das despesas da viagem.

Satisfeita esta prova, viram elas abertas diante de si, as douradas portas do sonhado paraíso e, quando no dia seguinte, acordaram daquele sonho inexplicável de prazer e sentimento, reconheceram que a realidade começava a corresponder à subida ideologia, pois logo receberam bilhetes de visita de vários empresários entre os quais havia o do teatro Argentino, cuja prima-dona tinha acabado

o seu contrato.

- Então, Luísa, que dizes tu? -  perguntou Eugénia saltando da cama e olhando para o relógio,

o qual marcava meio-dia. -  Devemos aceitar o convite do empresário do teatro Argentino?

- Por mim creio que nos será conveniente, se ele anuir a nossa escolha de peças para o repertório.

- Está claro que será essa a condição principal - respondeu Luísa, vestindo-se e tremendo de frio. -  Semirâmis, Átila.

- A Nina, a Parisina - acrescentou Luísa. -  Vamos almoçar e entretanto combinaremos isso. É preciso notar que os senhores empresários aparecerão logo.

- Que venham - tornou Eugénia. -  Nós cá estaremos.

- Não agora, que estás afivelando as ligas. O pobre homem havia de morrer de medo - disse Luísa sorrindo e volvendo os seus lindos olhos azuis, que se encontraram com o olhar enérgico e soberano de Eugénia.

- Por certo! -  respondeu esta com arrogância. - Eu sou meio homem e ligas de homem não agradam a outro homem!

- Efectivamente és pouco feminil.

- Lembras-te como desempenhei o papel de rapaz quando fugimos de Paris? Chamava-me Leão Armilly e tive a coragem de falar em pistolas quando julguei que corrias perigo.

- Que tempo aquele! -  murmurou Luísa.

- Sim, quando me viste vestida de homem agarrada a ti aos beijos logo que transpusemos o perigo das barreiras, não tremias como me parece que tremes agora!

- É que se vai aproximando a nossa estreia. E se formos mal recebidas?

- Ora essa! E em Milão, em Génova, principalmente em Veneza, o nosso canto desagradou? De-mais, o resultado do exame parece-me que não te deve desanimar!

- Todavia, o caso agora muda de figura! Teremos de aparecer em cena, e se eu por exemplo sei cantar a ária da Parisina, não quer isto dizer que tenha a certeza de ser a Parisina!

- E eu tenho a certeza de possuir o caracter de Semirâmis e de poder sentir quanto ela sentiu, de modo que o público julgue ver a nobre rainha dos Assírios diante de si? -  perguntou também Eugénia. -  Todavia, vê se eu tremo com a aproximação da nossa estreia. Confio muito no que me ensinaste e no mais que temos estudado para que me esmoreça o ânimo com o trabalho.

- Vamos, minha amiga, o nosso grande futuro por nós sonhado vai-se realizando, e dentro em breve os nossos nomes ecoarão em Paris no centro das nossas famílias, depois de terem sido inscritos no livro dourado da nobreza artística. E quanto esta nobreza me agrada!

Quando as duas amigas acabavam de almoçar, receberam a visita do empresário do teatro Argentino.

O contrato foi assinado com todas as condições que elas exigiram.

Um mês depois, ensaiava-se a ópera Semirâmis no grande teatro Argentino, e todas as manhãs os impacientes diletantes afluíam ao salão do teatro para aplaudirem com entusiasmo antecipado as duas novas cantoras e felicitarem o empresário pela boa aquisição que fizera, pois as duas artistas prometiam muito, apesar de ser a primeira vez que pisavam o palco.

Chegou finalmente o dia do espectáculo. Assim que as luzes brilharam no edifício do teatro Argentino, logo os salões se encheram de gente que falava, discutia e aprovava em altas vozes o merecimento das duas artistas.

Enquanto isto se passava nos salões do teatro, um mancebo de vinte a vinte e três anos, alto, bem proporcionado e vestido decentemente, rompendo a custo pela multidão que se agrupava em volta do edifício, chegou à bilheteira, graças a um esperto cicerone, o qual o puxava pela aba da sobrecasaca.

- um bilhete! Um bilhete, amigo! - bradou o cicerone, dirigindo-se ao bilheteiro.

- Impossível, pois estão todos os lugares vendidos!

- Não há bilhetes - disse o cicerone, voltando-se para o mancebo.

- Sim? Mas é forçoso que eu entre na sala! - bradou este.

- Não vejo como será isso possível! -  retorquiu

o cicerone.

- Introduz-me pela porta de serviço. É preciso que eu veja!... Entendes, pateta?, que eu veja tudo!

- Que quer que eu faça? Se se tivesse lembrado mais cedo, tê-lo-ia servido, senhor; assim é totalmente impossível. Mas vou mostrar-lhe o edifício

e explicar-lhe a sua arquitectura.

- Leve o diabo a tua mania de mostrar e explicar! Estou a dizer-te que preciso de observar o espectáculo e ver tudo quanto há nele, e tu falas em fazer-me admirar as paredes.

- Senhor, o Argentino é magnífico! -  tornou

o homem. - E como não há bilhetes, é necessário entreter o tempo em ver o que há de bom! Venha e conhecerá um dos melhores edifícios do género, talvez o primeiro entre eles!

- Vamos à porta de serviço! -  exclamou o mancebo.

- Não o deixam entrar.

- Dize que sou estrangeiro e quero ver. Não me afirmaste que um estrangeiro quando vem a Roma é para ver tudo o que há de bom nesta grande cidade?

- Porém, o Argentino mostra-se de dia e não em noites de espectáculo!

- Conduz-me à porta de serviço, que eu falarei ao guarda.

Dizendo isto, agarrou-se ao braço do cicerone,

o qual dando cotoveladas para a direita e para a esquerda, começou a abrir caminho naquele mar de gente.

Momentos depois, chegavam ao seu destino.

- Que é lá isso? -  bradou o porteiro, agarrando o cicerone.

O estrangeiro ao ver o rosto redondo e corado do porteiro iluminado pelo candeeiro próximo, fez-se muito pálido.

Entretanto, o cicerone disse qualquer coisa ao ouvido do guarda.

- É impossível, meu caro - respondeu este. -  Tenho as mais severas instruções para impedir a entrada. E então hoje que é uma ópera de grande espectáculo, com novas cantoras! Só o poderei deixar entrar com a autorização do empresário. -  E olhando fixamente para o mancebo, que também não despregava os olhos do rosto dele, exclamou: - Oh, oh! Será possível?

- Sinto-me tão admirado como o senhor! - retorquiu o estrangeiro. - E estou disposto a acreditar que os ares de Roma produzem factos extraordinários!

- E eu a esta hora estava convencido de que lhe poderia dar o nome de Ibus, porque o supunha morto com um murro de qualquer Ulisses!

- É verdade que fiz como o pobre mendigo, pretendendo a mão da sua Penélope - respondeu o estrangeiro. Mas que quer? Uma Diana misteriosa e um Esculápio condescendente, lembraram-se de mim.

O cicerone olhava com espanto para os dois interlocutores, sem compreender o sentido das suas palavras.

- Vamos, senhor - continuou o estrangeiro -  aqui não é o lugar próprio para ventilarmos a nossa questão.

- Tem razão, para lhe mostrar que sei esquecer-me de coisas passadas, entre para aqui.

O mancebo despediu o cicerone e entrou no cubículo do porteiro. Com efeito, senhor barão, isto é singular!

- Por Deus! o senhor Andréa Cavalcanti quer comprometer-me? Não vê que meti o título na algibeira?

- Julgava que a sua presença aqui era um capricho.

- Valha-me Deus, seria um capricho bem extravagante!

- Conte-me então o que lhe sucedeu, senhor Danglars.

- Não me chame Danglars, aqui! o porteiro do teatro Argentino não poderá nunca chamar-se Danglars! E como escapou o senhor aos agentes da polícia, que o reconheceram como fugido das galés, no momento em que se faziam as escrituras do seu casamento com Eugénia?

- Ora, escapei sem graça nenhuma! A minha vida até hoje tem sido um composto esquisito de escapadas sem saber como! Mas a sua, senhor barão...

- Maldito costume! -  exclamou Danglars, fazendo-se muito vermelho.

- Quero dizer, senhor Danglars,

- Pior ainda!

- Então como quer que o trate?

- Sei lá! Chame-me qualquer coisa, que isso já não tem importância! A gente quando é pobre, não tem nome.

- Visto isso, está arruinado?

- Até ao último cêntimo — murmurou Danglars com tristeza -  e se não fosse este emprego, teria morrido de fome!

- Realmente seria bem desastroso um ilustre barão morrer assim. E quem o reduziu a tão miserável extremo?

- Quem? -  respondeu Danglars, fazendo-se pálido. - Foi um homem que parece ter surgido da terra ou do mar pelo poder de uma vontade forte, para destruir o meu sonho de felicidade!

Benedetto, pois era ele o estrangeiro, estremeceu ao ouvir as palavras de Danglars.

- Como se chama esse homem? -  perguntou.

- Oh! -  exclamou o barão, relanceando o olhar, assustado. -  Há muito tempo que não pronuncio esse nome terrível, com receio de que a sua imagem ameaçadora surja da sombra para me atormentar!

- Como! Será possível que chegue a esse ponto o medo que lhe inspira? Ah, como os homens são fracos e pusilânimes!

- Insensato! -  retorquiu Danglars. -  Se o conhecesse, recuaria com assombro na sua presença misteriosa. Sabe acaso quem é e de onde veio o conde de Monte Cristo?

Benedetto soltou uma risada estridente e escarnecedora, que petrificou o pobre porteiro do teatro Argentino.

- Tenho para com ele uma dívida de sangue! E a mão do finado está aberta para receber o preço dessa dívida.

Danglars, estupefacto, olhou para ele, sem compreender o sentido daquelas palavras, que todavia lhe pareciam terríveis.

- Não o entendo - murmurou.

- É simples. Porque motivo estremece quando pronuncia o nome adoptado pelo marinheiro Edmundo Dantes?

- Como sabe o senhor?...

- É esse o meu segredo. Agora responda-me.

- A narração não me convém neste lugar - disse o porteiro. -  Se quiser ouvir-me, eu o procurarei e então falaremos. Onde mora?

- Na estalagem de mestre Pastrini.

- Sei aonde fica.

- Muito bem. Entretanto, se tiver necessidade de algum dinheiro, permita que lho ofereça.

- Como assim? Continua então com a artimanha de se chamar príncipe de Cavalcanti, ou será ainda protegido pelo conde de Monte Cristo? Nesse caso, fiz mal em lhe falar daquele modo.

- Não, senhor. Eu já lhe disse que tenho para com Edmundo Dantes uma dívida de sangue! Não sou príncipe de Cavalcanti, sou simplesmente um ladrão, um falsário, um assassino sem nome, sem pátria, sem Deus!

- Safa! -  exclamou Danglars aterrado, defendendo maquinalmente as algibeiras com as mãos. - E até onde espera chegar com o seu progresso?

- Guiado pela mão de um finado que estremece de raiva no fundo do seu túmulo, hei-de chegar até Edmundo Dantes!

- Sabe que mais, senhor Andréa? Parece-me perturbado de juízo!

- Isso é lisonja, meu caro. Vamos, agora deixe-me subir, e acredite que posso ser-lhe muito útil para readquirir a sua fortuna.

- Oh!

- Vamos, deixe-me subir, porque preciso certificar-me se as duas cantoras são as mesmas que eu imagino.

- As d'Armilly?

- Creio que era este o nome da mestra de sua filha Eugénia?

- É verdade, mas o que quer dizer com isso?

- A sua filha era apaixonadíssima pelo teatro e pela música: creio pois firmemente que a esta hora, a menina Eugénia está lá em cima a tremer defronte da sombra de Nino.

- Oh, é muito cedo! O espectáculo apenas começou agora.

- Basta, acaba de certificar-me o que eu pensava a respeito das duas d'Armilly, e felicito-o, senhor, pelo interesse com que a sua filha parece trabalhar para readquirir a fortuna que lhe roubaram.

Danglars suspirou.

- Então, até amanhã, senhor Danglars. Espero que não se esqueça da minha morada. Estalagem de mestre Pastrini.

Dizendo isto, Benedetto retirou-se, deixando o porteiro estupefacto, na firme convicção de que por seu intermédio viria a saber várias coisas importantes a respeito de Edmundo Dantes.

 

CAPÍTULO 7

Os olhais do pano

ENQUANTO isto se passava no pequeno cubículo do porteiro, as duas amigas d'Armilly preparavam-se para a sua estreia.

- Parece que está uma enchente extraordinária! -  murmurou Luísa. -  E logo, quando aquele pano se levantar, ficaremos expostas em frente de toda aquela gente.

- Tens razão, Luísa, também eu vou sentindo calafrios! Este momento custa sempre alguma coisa, mas estou persuadida de que ganharás ânimo, porque faço firme propósito de me deixar possuir pelo sentimento da personagem que vou representar. Principalmente, quando Arsace é nada menos que a minha Luísa... Porém, agora que estamos aqui, recordo-me de um caso singular que se tem repetido por diversas vezes. Na primeira noite que viemos aqui ao ensaio, não reparaste no homem que nos abriu o camarim e deu um grito apenas olhou para nós?

- Sim, tenho uma ideia.

- Esse homem era o porteiro. Na segunda noite, estava eu no camarim, ouve um diálogo que me pareceu interessantíssimo.

"Quando passar por aqui a senhora Eugénia, não se esqueça de pedir a chave, no caso de ela não se lembrar de lha entregar.

“— Eu não faço isso.

“— Porquê?

“— Cá por coisas!

“— Mas você é o encarregado das chaves e não pode faltar às suas obrigações.

“— Pedirei todas as chaves, menos aquela.

“— Vejo que tem receio em falar à senhora Eugénia d'Armilly.

“— Desculpe-me, mas a senhora Eugénia conheceu-me em Paris, numa posição muito melhor do que esta que tenho em Roma, e eu não desejava que ela o soubesse.

“O diálogo terminou aqui - continuou Eugénia -  e desde então nunca mais me esqueci de entregar a chave ao porteiro. Porém, quando passo e a deponho no chaveiro sinto grande rumor e vejo que é causado pela precipitação com que o homem se esconde no seu pequeno cubículo.”

- Como se chama ele? -  perguntou Luísa. - José.

- Mas esse é o nome que ele dá, e pode muito bem ter outro.

- Será aquele desgraçado príncipe Cavalcanti, que esteve prestes a ser teu marido, se o não desmascarassem?

- Que ideia! Com certeza já foi guilhotinado por assassínio, e o homem que se esconde de mim, pareceu-me muito mais velho quando o vi de relance pela primeira vez, e é muito mais baixo e mais gordo.

- Devemos acautelar-nos. Será talvez alguma espia enviada pela tua família?

- Não creio. Olha, Luísa, eu estou a conhecer aquela senhora que entrou agora no camarote nº 4 da ordem nobre - disse Eugénia, que tinha lançado um olhar para a sala, pelo olhai do pano.

- Que é? -  perguntou Eugénia.

- Aquela senhora -  continuou Luísa, fazendo-se pálida. -  Sim, é... Meu Deus! Talvez seja engano meu. Dá-me o teu óculo, Eugénia!

Esta tirou da algibeira o pequeno estojo onde estava um bonito óculo como os de campanha, porém mais curto, desses com que algumas actrizes costumam examinar a plateia e os camarotes pelos olhais do pano, antes de começar o espectáculo. Luísa pegou-lhe com precipitação.

- Eugénia -  disse ela -  se realmente possuis um espírito forte e determinado, poderás agora prová-lo de um modo bem compreensível. Vê!

Eugénia espreitou por um dos olhais e recuou logo como assombrada, murmurando:

- Minha mãe!

Com efeito, quando Eugénia olhara para o camarote pela primeira vez, não vira o rosto da senhora Danglars, a qual parecia estar a falar com alguém que a escutava oculto pela cortina. Mas quando essa pessoa saiu, a senhora Danglars voltou-se para a sala no momento em que Luísa a observava com

óculo.

O apito do contra-regra soou, dando o sinal para os cantores se prepararem.

- Ouves, Luísa? -  perguntou Eugénia. -  Vamos para o camarim, pois quando o trajo da rainha dos Assírios pesar sobre mim, responder-te-ei que não terei lá fora, nem nos camarotes nem nas plateias, ninguém que prenda o meu pensamento.

Se naquele instante o pano houvesse subido, o público aplaudiria com entusiasmo o gesto sublime e o olhar inspirado de Eugénia Danglars. Porém não era ainda tempo, e esse público, pressentindo talvez a presença do génio, espalhava no ar o murmúrio confuso e solene que sem determinar a palavra de um pensamento compreensível,

revela a existência de mil pensamentos diversos despertados pela mesma causa.

Eugénia, pegando na mão trémula de Luísa, conduziu-a precipitadamente para o camarim, cuja porta fechou sobre si.

- Vamos, Luísa - disse-lhe ela desabotoando-lhe o vestido -  aqui não há que temer, e lembra-te que desta noite depende a felicidade e o interesse da nossa carreira.

Eugénia dava o exemplo da coragem com um modo tão natural, que muito influiu no espírito de Luísa. Além disto, os costumes de Itália que não condenam a nobre carreira de Talma, nem lançam o odioso sobre o trabalho do teatro, como sucede no resto da Europa, também contribuíam para a animar. Conhecendo o espírito orgulhoso da senhora Danglars, nobre de nascimento e de aliança, e calculando quanto lhe seria desagradável a aparição de Eugénia sob a figura de Semirâmis, no teatro Argentino, a pobre rapariga não pôde deixar de empalidecer pensando em quantas maldições a baronesa lhe havia de lançar, por ter sido ela quem alimentara no peito de Eugénia aquela chama enérgica que a conduziu ao palco.

Enfim, o dado estava lançado.

Eugénia e Luísa estreitaram-se num abraço, como se já ali quisessem mostrar como se haviam de abraçar e beijar em cena, e neste momento o apito repetiu segundo sinal.

Momentos depois o pano subiu. Eugénia apresentou-se em cena com toda a arrogância e majestade próprias da real bacante que representava; a sua voz clara, sonora e veemente, prendeu logo a atenção do público e assim que terminou a primeira ária começou o seu triunfo.

No camarote nº 4 havia desassossego; o óculo não deixava de se dirigir para o rosto de Eugénia e, de instante a instante, a mão que o sustinha na altura dos olhos mais parecia tremer.

A ocupante do camarote ora enxugava o rosto pálido com o seu finíssimo lenço, e ora se retirava para o interior do camarote, ora assomava no parapeito, olhando sempre para a figura nobre, majestosa e elegante da nova Semirâmis: depois, quando o templo de Belo ficou deserto e em seguida apareceu o valente e interessado Seytha, o braço da senhora Danglars ainda mais estremeceu, pois notou sem a menor dúvida que a fisionomia apaixonada e terna de Arsace era a da mestra de sua filha, Eugénia.

Não havia já que duvidar. A baronesa viu-se obrigada a reconhecer a filha na pessoa de Semirâmis e o seu martírio durou enquanto durou o espectáculo. Com as faces vermelhas da indignação que experimentava, não tardou em sofrer um forte abalo de nervos, por se lembrar que para cúmulo de aviltamento talvez naquela mesma noite tivesse de ver a figura do marido executando um passo difícil na dança. Teve por muitas vezes o pensamento de se retirar, mas o desejo cruel de presenciar o resultado daquela noite deteve-a, constrangida e arquejante de susto, enquanto não acabou a ópera.

Finalmente, o punhal de Arsace rasgou o seio da desenvolta Semirâmis, a qual caiu agonizante aos pés do filho. Foi então que a baronesa soltou um pequeno grito; era o que lhe faltava para completar o seu martírio, ver a filha com a face encostada no soalho de um teatro, na presença de milhares de pessoas. Mas os aplausos dos espectadores abafaram o grito da baronesa, que saiu imediatamente do camarote.

- Oh! -  murmurou ela, entrando para a carruagem. -  Um demónio jurou aviltar-me, humilhar-me em toda a parte. Em Paris, mãe dum desgraçado bandido, a quem a lei persegue; em Roma, vejo minha filha, em cujas veias corre o sangue dos Servières, comprada por um vil punhado de oiro, para servir de alvo e entretenimento de espectadores de teatro... E em qualquer outra cidade, quem sabe se terei de ver meu marido a conduzir a carruagem de algum rico lavrador!

E as lágrimas humedeceram as faces aristocráticas daquela senhora tão nobre, tão altiva e orgulhosa.

Quanto às duas amigas, despertaram um entusiasmo louco.

 

CAPíTULO 8

Dois homens sem nome

O porteiro do teatro Argentino, tendo reflectido sobre as conveniências que poderiam resultar do seu encontro com um homem como Benedetto, dispôs-se a procurá-lo na estalagem de mestre Pastrini, no intuito de aproveitar-se para os seus fins ocultos de adquirir fortuna daquele carácter destemido, aventureiro e audaz, que parecia nada temer dos homens, visto que, com desprezo e atrevimento, lhe declarara ser ladrão, falsário e assassino.

Benedetto, depois de almoçar com toda a tranquilidade e com grande apetite, mandou chamar o manhoso estalajadeiro.

- Pronto excelentíssimo! -  disse este, tirando o gorro de lã e fazendo profunda reverência.

Benedetto demorou-se um instante antes de lhe dirigir a palavra; depois, pondo de lado um jornal em que fingia ler, encarou o italiano com olhar sombrio.

- Mestre Pastrini, não estou satisfeito com este quarto.

Então porquê?

- Quer saber porquê, mestre Pastrini? Porque não posso dormir sossegado aqui. Quem ocupa o quarto por cima deste?

- É um mancebo muito doente que, segundo me disse o seu criado, viaja para se distrair duma apatia mortal de que sofre. Asseguro-lhe que é boa pessoa, posto que ainda não lhe ouviram a voz; todavia, há um mês que está em Roma, e só saiu duas ou três vezes.

- Pois eu digo-lhe que mente, mestre Pastrini!

- Eu, excelentíssimo? -  exclamou o estalajadeiro, esforçando-se por assumir o ar de verdadeira inocência.

- O seu mancebo que viaja para se distrair duma apatia mortal, recolheu-se ontem à uma hora da manhã. E isto ainda não é tudo, porque chorou e blasfemou, sem dó dos vizinhos, até às duas; depois tornou a sair e quando voltou eram quatro horas.

- Não o contradigo, excelentíssimo -  respondeu mestre Pastrini um pouco mais animado. -  Eu notei tudo isso, mas que quer? 'Creio que de tempos a tempos lhe dão uns ataques de nervos, para os quais os médicos lhe receitaram sair imediatamente de casa a qualquer hora do dia ou da noite. Descanse excelentíssimo, pois o criado tem-me dito que é só de ano a ano que lhe dão os tais ataques.

Benedetto sorriu, lançando a Pastrini um olhar oblíquo.

- Desconfio muito dos tais ataques. Tome cuidado, mestre Pastrini, porque se evadiu há pouco de França um homem temível que fez coisas de mil diabos; seduzindo, assassinando, roubando velhos, donzelas, crianças e profanando igrejas e túmulos.

- Esse malvado deve ser então muito rico! - exclamou o estalajadeiro com os olhos esgaseados.

- Diz-se que possui milhões e que os esconde num lugar desconhecido, onde não chegam os raios do sol.

- Mas, excelentíssimo, o seu vizinho parece não ter mais de vinte anos e é tão baixo e frágil, que se

o visse não o recearia.

- Baixo, frágil e amarelo?

- Positivamente amarelo, não, mas sim muito pálido.

Benedetto levantou-se, agitado, dando grandes passadas pelo quarto, metendo as mãos pelo cabelo

e soprando como se estivesse a suportar um calor excessivo.

- É necessário que me retire já da sua estalagem.

- Então porquê, excelentíssimo? o que é que lhe falta? Acaso não sirvo eu com asseio e delicadeza?

- Pateta! Estou a dizer-lhe que o seu hóspede do primeiro andar me faz mal e não compreende

o que digo! Tem ouvidos e não ouve, tem olhos

e não vê.

- Mas o quê, excelentíssimo? -  perguntou mestre Pastrini, começando a prestar atenção ao que Benedetto dizia.

- Vou explicar-lhe tudo. Há no mundo um ente que ninguém sabe donde veio nem de quem é filho, mas que conseguiu descobrir o segredo de mudar de pele como as serpentes, para melhor conseguir os seus fins. Umas vezes é abade, velho e curvado sob a foice do tempo, quando murmura palavras santas ao ouvido de quem pretende tentar. Outras é um lorde excêntrico e fleugmático, aferrado às suas ideias e cabeçudo como um carneiro. Outras, finalmente, intitula-se conde e apresenta-se como

o mais perfeito e rico cavalheiro do mundo. Este homem é geralmente conhecido pelo conde de Monte Cristo.

- Ah! -  exclamou o estalajadeiro, mudando de cor.

- Já o viu? -  perguntou Benedetto, notando-lhe a lividez.

- Continue, excelentíssimo, continue!...

- Muito bem. Disse-lhe que o ladrão, o falsário,

o ímpio, o assassino, se chama conde de Monte Cristo -  continuou Benedetto, sem despregar os olhos de mestre Pastrini, em cuja fisionomia se conhecia a combinação mental de certos casos passados com a presente narração. -  Este homem, que se julga pelo poder da sua riqueza, superior aos outros homens, tem abusado de tudo e de todos,

e é perseguido pelas leis da justiça terrestre. Ültimamente tomou em Paris o nome de Benedetto, intitulou-se depois o príncipe Andréa Cavalcanti,

e evadiu-se de uma prisão assassinando o seu carcereiro. Em seguida, dirigiu-se ao cemitério do Père Lachaise e enganando o guarda, profanou o túmulo de uma família nobre, roubando as jóias dos cadáveres. Finalmente, mudando de forma, isto é, adoptando outra figura, fugiu de França, dirigindo-se, segundo todas as probabilidades, à Itália, onde muita gente afirma que tem relações secretas e abomináveis.

Mestre Pastrini estava aterrado, pois já noutro tempo tinha hospedado o conde de Monte Cristo. Todavia, atreveu-se a fazer algumas perguntas:

- Nesse caso, excelentíssimo, o tal mágico deve ser perseguido em toda a parte?

- Espero que não lhe valerá de nada toda a sua magia negra para evitar que o reconheçam. Há homens espalhados em diferentes pontos da Europa, assalariados pelo governo francês, bem capazes de

o fazer cair do alto do seu pedestal.

Dizendo isto, Benedetto fez um gesto significativo como quem acrescentava: “E um desses homens sou eu”.

Portanto, mestre Pastrini, indague o melhor que puder quem é o seu hóspede do primeiro andar e seja vigilante com ele. Agora pode retirar-se.

O italiano saiu, jurando a si mesmo que, naquele mesmo dia, saberia tudo quanto dizia respeito ao mancebo doente que lhe alugara o primeiro andar. Ao mesmo tempo ia reflectindo:

“Sempre me pareceu que o conde de Monte Cristo, com a sua concubina grega e o seu escravo preto, tinha algo de extraordinário! O sangue-frio com que via matar os sentenciados, a maneira como falava quando eles soltavam gritos agonizantes e, sobretudo, a intrepidez com que, segundo afirmam, descia ao covil daquele valente ladrão que era Luigi Vampa! Ah, é bem certo que a justiça de Deus é infinitamente perfeita e que o homem lhe não pode escapar, por mais poderoso que seja!”

Enquanto mestre Pastrini fazia estas reflexões, Benedetto passeava muito satisfeito, dizendo para si próprio:

“Vamos bem, meu rapaz. Perdendo aquele homem no conceito de mestre Pastrini, tenho a certeza de que em pouco tempo, Roma inteira saberá quanto acabo de dizer. Além disso, conseguirei saber quem é o misterioso vizinho do primeiro andar e afastarei de mim os olhos da justiça, se por acaso me perseguirem aqui. Arrancarei os dentes do dragão que devorou velhos, crianças e virgens, para satisfazer o seu ódio monstruoso. Edmundo Dantes, quando me libertaste das grilhetas de Toulon sob a tua falsa identidade de lorde Wilmore, poderias ter feito de mim um homem honrado, mas envolveste-me na tua teia infernal e arrancaste-me a máscara quando eu, confiando em ti, me julgava feliz! Precisaste de um príncipe de Cavalcanti para levares a cabo um projecto misterioso que só tu compreendias e por isso lançaste mão do pobre forçado de Toulon, o qual estava resignado cumprindo a sua sentença. Maldito! Mil vezes maldito! na vingança implacável te perseguira por toda parte! Sim, no meu peito não há sentimentos de humanidade que possam deter-me o passo! Ainda me recordo das palavras de meu pai, pedindo vingança contra o verdugo cruel e desapiedado que ao fim de uma hora de tortura maldita, foi contemplar a sua vítima e paralisar-lhe a razão com o eco das suas gargalhadas diabólicas! Uma família inteira destruída para te vingares de um só homem! ONde estava então a tua religião, o teu Deus? No mesmo lugar em que os meus, em parte nenhuma do céu ou da terra! A minha alma é o desejo veemente de uma vingança completa, assim como outrora foi simplesmente ambição! Dantes, deste-me exemplo, e encontrarás um dia a obra das tuas loucuras”.

Momentos depois, mestre Pastrini voltou para anunciar a visita de um homem que não quis dizer o nome. Benedetto mandou introduzir no seu quarto o misterioso visitante.

“Bom!” disse consigo mestre Pastrini. “Recebe homens sem nome e isto quer dizer alguma coisa. Penso que o meu hóspede é um agente do governo francês que anda em perseguição do famoso feiticeiro”.

Depois, fazendo um sinal ao porteiro do teatro argentino, introduziu-o no quarto de Benedetto. -  Porque motivo oculta o seu nome, meu caro barão Danglars? -  perguntou-lhe ele de modo que pudesse ser ouvido pelo italiano, o qual se conservava ainda na parte de fora da porta com o ouvido atento.

“Barão! Ah, isto agora quer dizer muito! -  murmurou mestre Pastrini. -  Um barão disfarçado, mais um caso para os comentários desta noite. Retiremo-nos, não quero que suspeitem que estou à escuta!”

Entretanto, o porteiro do teatro Argentino ficara estupefacto, com os olhos cravados em Benedetto, como se temesse que ele repetisse o nome de Danglars e o título de barão.

- Parece-me que ficou aturdido por lhe ter falado no nome e no título.

- Não lhe tenho eu dito que já não sou barão? Ora diga-me, gostaria que o tratasse por príncipe Cavalcanti?

- Esse nunca foi o meu nome.

- Nunca?

- Figurei com ele numa comédia de Monte Cristo.

- Monte Cristo! -  repetiu Danglars com raiva e medo. Também por causa dele é que eu não tenho nome.

- Está como eu.

- Como assim? Não tem nome? Não é Andréa?

- Não, senhor.

- Não posso compreender isso. Como veio então a Roma, como arranjou passaporte?

- De um modo muito simples, meu amigo. Tenho em meu poder uma relíquia roubada ao conde de Monte Cristo, com a qual alcanço quanto quero. Era o segredo com que ele se tornava superior aos outros homens e os destruía, para vingar-se deles.

- Que história é essa? Espero que não me fará acreditar na existência da varinha de condão.

- Não, por certo! A minha relíquia é outra,

e não tem nem a fantasia da que mencionou, nem a beleza das que poderia, se quisesse, ainda mencionar. Veja-a!

Dizendo isto, Benedetto abriu um pequeno cofre

e Danglars recuou imediatamente, empalidecendo

e murmurando ao mesmo tempo, cheio de terror:

- A mão dum finado!

- Silêncio, imbecil! -  exclamou Benedetto fechando o cofre e escondendo-o. - É aquela mão que me guia neste mundo a um porto determinado, onde chegarei um dia. Vamos, já conhece a minha relíquia, peça-me agora o que quiser.

- Que é issO? Fala sério? – perguntou o barão.

- Eu já disse! - respondeu Benedetto sentando-se com insolência e acendendo um cigarro.

- Nesse caso preciso contar-lhe quanto me sucedeu, para chegar ao meu fim.

- Perde o seu tempo! - tornou Benedetto. -  Vejo-o pobre e, segundo me parece, não está de acordo com a sua família; por consequência, faço uma ideia do que lhe sucedeu.

- Quem é o senhor?

- Então? Em Paris, o senhor era um homem dotado de belas qualidades sociais. Teve, sem dúvida, uma pequena dificuldade de contas, e apurando os últimos fundos do seu comércio, disse um adeus saudoso à sua encantadora mulher, assim como sua filha, a varonil Eugénia, tinha dito o seu à casa paterna alguns dias antes.

- Muito bem - disse Danglars -  o que eu fiz, tê-lo-ia feito qualquer outro homem da minha esfera em idênticas circunstâncias. Agora, o que não sabe é o resto. Nas cercanias de Roma, fui roubado pelos facínoras, cujo chefe me pareceu ser o tal conde de Monte Cristo, ficando pobre como Job.

- Ora! Histórias! Edmundo Dantes não se servia do roubo. É riquíssimo, e estou inclinado a acreditar que o senhor lhe devia alguma continha atrasada de dinheiro ou de acções -  disse Benedetto com o olhar pregado no rosto de Danglars, como para observar o seu menor gesto.

- Vejo que é um homem singular, pois me parece que possui o dom de adivinhar as coisas que se lhe não revelam - tornou Danglars. -  É como diz: entre mim e o tal Edmundo Dantes havia um pequeno saldo; isso, porém, já é coisa passada e não tem remédio. Tratemos do presente, se é do seu gosto.

- Seja.

- Saberá de algum segredo capaz de me restituir a minha mulher e a minha filha?

Uma possui milhão e meio, a outra dá esperanças de enriquecer na carreira artística. Já pode calcular que um homem como eu, sem nome e sem fortuna, não deve desprezar uma família destas.

- É um marau de boa laia, pela minha alma! -  exclamou Benedetto, soltando uma estridente gargalhada.

- E o senhor? -  atreveu-se ele a perguntar.

- Tem razão, eu também não o sou menos, e assim viverei o resto da minha vida - respondeu Benedetto, acendendo um cigarro e baloiçando-se sobre os pés da cadeira.

- É o único meio de se viver bem neste mundo, onde a virtude não tem lugar certo e caminha errante e envergonhada por não a compreenderem.

- Nesse caso, concordo com o senhor; porém, deixemos as reflexões e vamos ao que interessa. Quer juntar-se a sua filha, senhor Danglars?

- Juntar, não, porque no fim de contas, ela tem excentricidades que me desagradam muito. Seria melhor procurar um meio para voltar aos braços de minha mulher. Oh, pobre senhora! Quando a deixei, possuía ela milhão e meio. Ora, com o seu génio especulador, deverá ter dobrado o seu pequeno capital, e hoje, sem dúvida, possui três milhões! Juro-lhe que os três milhões haviam de produzir o dobro se estivessem nas minhas mãos. Meu caro senhor, asseguro-lhe que nos poderíamos arranjar.

- Que é isso? -  interrompeu Benedetto, com um modo imperioso. -  Eu ainda não lhe pedi nada.

- Então? -  perguntou Danglars, sem compreender.

- Senhor barão...

- Eu não sou barão sem dinheiro.

- Há-de tê-lo dentro em pouco. Tenho cá o meu projecto e aonde não puder chegar a mão de um vivo...

- Chegará a de Deus?

Benedetto soltou uma gargalhada estridente e zombeteira, retorquindo:

- Meu amigo, tenho visto zombar de Deus de tal modo, que me inclino muito a duvidar da sua existência. Eu queria dizer que aonde não chegar a mão de um vivo, chegará a de um finado.

Danglars estremeceu, murmurando:

- É mau gracejar com os mortos.

- o  senhor é pusilânime e supersticioso. Então nada faremos.

- Pelo contrário, asseguro-lhe que nos entenderemos perfeitamente,

- Pois bem, jure-me que em qualquer lugar onde estiver, quando receber uma ordem minha, a executará sem hesitar.

- Obedecerei. E quanto tempo devo esperar?

- Quinze dias. Agora preste o seu juramento de fidelidade sobre a mão do finado - disse Benedetto; abrindo o cofre onde se encontrava a mão de Villefort.

Danglars estendeu a dextra sobre ela, murmurando:

- Juro!

 

CAPíTULO 9

Os espiões franceses

MESTRE Pastrini, como todos os do seu ofício, era previdente e curioso ao mais alto grau. Assim que viu o visitante sair do quarto do viajante francês, chamou um dos moços da casa e, indicando-lhe o misterioso barão, recomendou-lhe que o seguisse até ver onde ele residia. o moço, ladino e sagaz como todos os vadios italianos, cumpriu à risca a determinação do estalajadeiro, resultando disto o barão arruinado não dar um passo sem que mestre Pastrini não o viesse a saber nessa mesma noite.

Depois de haver tomado esta providência, fez sinal a um homem que passeava constantemente na rua em frente da estalagem, desde as três até às quatro ou cinco horas da tarde, para que subisse. Este homem, conhecendo já o sinal, embrulhou-se na capa, carregou o chapéu sobre os olhos e subiu a escada, introduzindo-se em seguida num pequeno quarto, onde mestre Pastrini havia estabelecido o seu escritório.

O recém-chegado tirou a capa e o chapéu e sentou-se, dispondo-se a esperar. Entretanto, por um antigo costume do povo italiano, tirou do bolso um rosário e começou a passar as contas pelos dedos como se estivesse a rezar.

- Olá, amigo Peppino! -  exclamou mestre Pastrini, entrando no escritório e fechando a porta cautelosamente.

- Por Jesus Cristo! -  exclamou o outro guardando o rosário. - O meu nome já vai sendo muito conhecido por aqui à luz do sol, e será bom que o não digas em contralto.

- Que queres tu, se o meu regozijo assim mo pediu? - tornou mestre Pastrini.

- Então qual é ou de que é o teu regozijo?

- Eu to digo -  respondeu o estalajadeiro tomando ares de importância, que logo prendeu a atenção de Peppino. -  Lembras-te de uma questão que tivemos quando aqui esteve aquele refinadíssimo velhaco, feiticeiro e antropófago, chamado conde de Monte Cristo?

- Olá, mestre Pastrini, isso assim vai torto! - retorquiu Peppino, encrespando os sobrolhos. -  Quando falares do nosso patrono, do nosso salvador, hás-de dizer o signor conde de Monte Cristo, se não queres que fiquemos de mal, entendes? O signor conde salvou-me a vida, obtendo a meu favor o perdão do Papa, quando eu avançava já pela escada em vez de o entregar com os seus melhores caudilhos à justiça, quando por um acaso eles lhes caíram nas mãos. Ora deves compreender que nem eu, nem Luigi Vampa, nem nenhum dos nossos homens, consentirá que um indivíduo como tu fale sem cortesia a respeito do signor conde.

- É uma pena o Capitólio estar fora de uso, porque de contrário obterias ali uma coroa de orador. Que importa falar assim do teu conde, se eu trabalho em seu favor!?

- Em seu favor? -  repetiu Peppino.

- É verdade! -  tornou Pastrini. -  Sabe pois que na França o teu conde está de tal modo mal visto, que é perseguido pelos agentes do governo francês!

- Ora essa! -  respondeu Peppino com escárnio. -  Ele, que tem dinheiro suficiente para comprar a tolerância de quantos governos há no mundo, desde os Dardanelos até ao Magalhães!

- Sim, porém as suas boas obras é que o perdem! Há coisas que nenhum governo pode tolerar. - Como é isso, mestre Pastrini?

- Por exemplo, divertir-se a matar gente, separar cônjuges, com as suas intrigas e manhas. Então isto é bom, Peppino? Eu sei que estou a falar com um bandido romano, porém, ainda não tiveste a petulância de descer a um túmulo para insultar os mortos e zombar do seu eterno repouso! Vives com o teu chefe nas catacumbas de S. Sebastião, é verdade, mas respeitam as ossadas dos bem-aventurados que ainda por lá repousam!

- Sim, porque com os mortos não se brinca.

- Está visto — acrescentou Pastrini. -  Podem fazer-se coisas do arco da velha a um vivo, que Deus perdoa depois de uma pequena penitência de oração; porém, rir dos mortos e escarnecê-los, quando sabemos que eles não podem vingar-se, quando sabemos que a sua alma já está a pagar o que deve, isso é muito mau, Peppino.

- Os vivos nada têm com os mortos, senão• dever de os entregar! Mas dizes-me que o signor conde de Monte Cristo é perseguido pelo governo francês?

- Tão certo, que se viu obrigado a mudar de forma e de nome para escapar à perseguição.

- Como é possível que um homem mude de forma? -  inquiriu Peppino, estupefacto.

- A ciência é inesgotável - respondeu Pastrini. -  Parece que foi criada pelo diabo para tentar os homens e perdê-los no momento em que tivessem a vaidade de acreditar que a sua ciência os havia feito poderosos e omnipotentes como Deus! O teu conde de Monte Cristo é dos tais que têm esta vaidade, porque quer pôr e dispor a seu bel-prazer, como se possuísse a existência de homem e a essência de Deus!

- Deixa-te de histórias, porque a Monte Cristo não se prende!

Acreditas que o nosso governo deixará de perseguir um homem desses? Não! A estas horas, os agentes franceses terão conferenciado com o nosso ministério, e o famoso semi-deus será perseguido não só em Roma, mas em toda a Itália.

- Não me disseste que ele tinha mudado de forma e de nome? -  perguntou Peppino, começando a acreditar no que ouvia. -  Então como é que, tendo ele mudado de forma e de nome, será reconhecido pelos agentes franceses?

Mestre Pastrini sorriu como pessoa que desculpa a ignorância de outrem em qualquer assunto.

- Amigo Peppino -  respondeu ele — aqui na minha casa está um dos tais agentes franceses, o qual desconfia muito de um personagem misterioso que também cá está.

- Que dizes!? O signor conde em Roma? -  exclamou Peppino precipitadamente.

- Qual conde, meu amigo? Já te disse que não é um conde. É um feiticeiro misterioso, a quem a justiça persegue.

- E tu acreditas nisso? -  murmurou Peppino, abanando a cabeça em ar de dúvida, pois a palavra feiticeiro lhe repugnou.

- Acredito! -  exclamou Pastrini. -  Se visses o meu hóspede, pálido, baixo, magro, trémulo, sempre embuçado num comprido capote, evitando encontrar-se com quem quer que seja e, para mais, habitando os mesmos quartos que o conde ocupava.

- E pagando como ele?

- Nem um cêntimo a menos! Por isso o sirvo e respeito, executando à risca todos os seus caprichos.

Peppino ficou por momentos pensativo, em seguida, como se tivesse concertado um rápido plano, disse:

- Poderás levar a tua manha ao ponto de me fazeres ver o teu misterioso habitante dos aposentos do signor conde?

- Para quê? -  inquiriu o estalajadeiro. -  Eu era capaz de reconhecê-lo.

- Amigo, toma o conselho de uma ruim cabeça. Como o teu chefe, Luigi Vampa, está muito bem relacionado com o Monte Cristo, vai anunciar-lhe sem demora a sua queda no conceito da Europa. Isso ser-lhe-á vantajoso, para evitar qualquer surpresa da justiça, porque sabes muito bem e eu também, que o bando de Luigi Vampa deve a tolerância das autoridades romanas à influência do conde. Ora, quebrada essa influência, não dou meio rosário pela cabeça do famoso Luigi Vampa!

- Pastrini! -  exclamou Peppino. -  Já te disse que quero ver o teu misterioso hóspede para lhe prestar o apoio de Luigi Vampa! Se o signor conde carecer dos nossos punhais e carabinas, ou da nossa inteligência, ainda lhe poderemos mostrar que somos os mesmos.

- Creio que não será possível – disse Pastrini, levantando-se para acender a luz. -  O meu hóspede não recebe ninguém! Se ele é com efeito o Monte Cristo, deves respeitar as suas determinações, e vai trabalhando por outro lado. Convido-te para jantar; entretanto, meditarás num novo plano.

Neste momento ouviu-se um pequeno ruído na porta e Pastrini fez um gesto de inteligência a Peppino, o qual se foi sentar logo no canto mais escuro do quarto, a passar as contas do seu rosário. Pastrini foi abrir, dando entrada ao homem que havia sido encarregado de seguir o suposto agente francês. Este homem que deu perfeita conta da sua missão, recebeu como recompensa a permissão para jantar na cozinha de mestre Pastrini, aonde se reuniam todas as noites alguns malandrins que ele em-pregava como seus informadores.

- Sangue de Cristo! -  exclamou Peppino, levantando-se e pegando na sua capa, assim que o espião saiu.

- Que é isso? -  perguntou Pastrini, notando que Peppino se dispunha a sair. - E o jantar?

- Quando me acabas de contar tão estranha história a respeito do meu salvador, crês que o teu jantar me detém, imbecil? Até amanhã, agora vou surpreender o agente francês!

Dizendo isto, fez o gesto de profunda resolução tão próprio dos bandidos romanos em face das mais difíceis empresas, saindo imediatamente do pequeno escritório do estalajadeiro para se dirigir a casa do barão arruinado, porteiro do teatro Argentino.

- Ah! -  murmurou Pastrini, vendo-o sair. -  Eu sempre disse que um homem tão rico e rodeado de tantas fantasias como o tal conde de Monte Cristo, não podia ser bom cristão, apesar do seu título! Relacionado com bandidos, servido por um núbio que era mudo... Para que havia de ser mudo o seu criado particular? Quando não se fazem coisas que o mundo repudia, não há necessidade de se ter como concubina uma grega que não entendia nem italiano nem francês, nem inglês! Estou convencido que o homem é um refinadíssimo traficante! Agora vamos ao quarto do outro agente francês.

 

CAPíTULO 10

Surpresa

ENQUANTO o precedente diálogo se travava entre Pastrini e Peppino, Benedetto meditava profundamente sobre o mistério em que parecia envolvido o seu vizinho do primeiro andar. De repente, como se tomasse uma resolução, sentou-se e preparou-se para escrever.

“Vou finalmente saber quem é o meu vizinho!” disse ele para si. “O meu plano é óptimo desde que lhe assegure bom resultado.”

Em seguida escreveu a seguinte carta:

 

Uma pessoa que muito preza e respeita V. Ex. ª, acaba de saber que o segredo de V. Ex. ª está descoberto em Roma. Permita-me que o avise, pois de maneira alguma desejo que passe pelo menor vexame.

Seu muito afeiçoado

Conde de Monte Cristo

 

“Esta ideia é maravilhosa!” pensou Benedetto, ao assinar aquele título na carta. “Este homem é conhecido em toda a parte e por toda a gente, e o meu misterioso vizinho dará mais crédito ao aviso que lhe envio. Se for alguém que deseje ocultar o seu verdadeiro nome, 'há-de tremer e agitar-se;  de contrário, porá de lado este papel, alcunhando de intrigante aquele nobre senhor.”

Neste momento apareceu mestre Pastrini que, com toda a cortesia, pedia licença para entrar.

- Entre -  respondeu Benedetto.

- Aqui está o bilhete que V. Ex.a me encomendou para o teatro Argentino. A ópera é a Semirámos, em que as jovens d'Armilly aparecem pela segunda vez.

- Muito bem.

- Quer dar-me as suas ordens, excelentíssimo?

- Esta carta é para ser entregue sem demora ao seu hóspede do primeiro andar.

- Como, se ele não recebe cartas?

- Ora vamos, mestre Pastrini, nada de gracejos. Quando eu lhe digo que é para ser entregue é porque o há-de ser.

- Sim, excelentíssimo - tornou Pastrini com toda a finura, depois de olhar para a carta. -  Porém não vejo aqui nenhum nome e um papel sem nome é uma coisa muito rara. Como quer que eu lhe faça entender que V. Ex.a lhe dirige esta carta?

- É cabeçudo, mestre Pastrini! Não tem por aí qualquer coisa em que embrulhe a carta, metendo-a entre a massa dum pudim?

O estalajadeiro coçou a cabeça, murmurando embaraçado:

- Isso é nada menos que um abuso vergonhoso, que poria mancha no crédito da minha cozinha.

- Descanse que o seu hóspede não falará deste caso, e o crédito da sua cozinha ficará por este lado sem a menor mancha. Vamos, mestre Pastrini, com o seu escrúpulo faz-me acreditar na existência de negócios misteriosos entre o senhor e o seu hóspede. Eu que sou, como sabe, um estudante natural da Picardia, que viajo para me instruir em belas artes, examinando minuciosamente os monumentos de arquitectura antiga e moderna, estou habituado a conhecer as pessoas e desconfio muito do seu hóspede. Julgo-o eminente em química e física, além de ser um dos melhores arquitectos da Europa, e necessito absolutamente falar-lhe. Portanto, vá, mestre Pastrini, porque talvez ganhe assim uma ocasião única de falar àquela espécie de nigromância infalível.

O estalajadeiro que ansiava por falar ao hóspede do primeiro andar, incumbiu-se da remessa da carta.

 

Peppino, seguindo a indicação da casa onde habitava o barão arruinado, actual porteiro do teatro Argentino, chegou ali sem o menor incidente, depois de ter ido procurar o seu banqueiro para lhe pedir uma certa quantia de florins. Como pessoa hábil no seu mister de salteador, observou a casa, a porta e as janelas, e reconhecendo que não lhe seria possível introduzir-se ali por meios violentos, recorreu então à astúcia e bateu à porta.

Momentos depois, ouviu-se a voz de Danglars perguntar:

- Quem é?

- Uma pessoa que tem uma carta para lhe entregar.

- Uma carta? De quem?

- Não sei, excelentíssimo, mas vem de França.

- De França? -  repetiu Danglars em voz baixa, sentindo a fronte banhar-se em suor. -  Deve haver engano.

Peppino ficou um pouco embaraçado com a resposta; porém, concebendo logo um pensamento, disse:

- É um senhor que está a residir na estalagem de mestre Pastrini, na via del Corso.

“Ah, é o tal Cavalcanti!” pensou Danglars, abrindo a porta.

Peppino entrou no quarto do porteiro do teatro Argentino, depois de haver fechado ràpidamente a porta da rua. Depois avançou para ele, colocando-lhe na garganta a ponta dum punhal.

- Se dá o mais pequeno grito que seja, senhor barão, corto-lhe as goelas.

A surpresa do barão foi tal, que por momentos lhe roubou a fala. Fez-se extremamente pálido. e entrou num tremor nervoso que fazia dó vê-lo.

- Sossegue, senhor barão - disse-lhe Peppino com toda a suavidade. -  Isto não quer dizer que terei a honra de cortar-lhe as goelas. É uma simples advertência que ficará em esquecimento, no caso de V. Ex.a haver por bem não gritar.

- Então que me quer?

- É simples, senhor. Eu sei tudo e conheço melhor do que ninguém o motivo da sua presença em Roma. Todavia, existe em tudo isto um pequeno segredo que lhe quero comprar em nome do senhor Luigi Vampa, em cujas mãos já V. Ex.a teve a bondade de entregar seis milhões de francos.

- É boa - murmurou Danglars, voltando pouco a pouco a si da surpresa. -  o amigo comete o erro imperdoável de confundir o verbo roubar com o de entregar.

- Então que quer, excelentíssimo? A nossa literatura é assim, e já agora segui-la-ei sem lhe fazer alteração nenhuma. Voltemos ao caso: V. Ex.a sofreu aquele revés que lhe preparou o senhor conde de Monte Cristo, ou por outra, Simbad-o-Marítimo, ficando sem dúvida muito indignado contra ele, o que eu não levo a mal, porque o sentimento é livre, senhor barão. Eu, pelo contrário, estou inclinado a favor dele, e por esta circunstância pode conhecer que caminhamos em sentido diverso. O senhor julgou, sem dúvida, abalar o rochedo, e eu jurei ampará-lo. Em conclusão, senhor barão, Luigi Vampa tem a honra de propor a V. Ex.a o seguinte contrato: V. Ex.a dar-me-á os nomes dos seus sócios, convocá-los-á para uma sessão muito misteriosa no Coliseu, durante a noite, recebendo mil florins,  dos quais eu tenho a honra de deixar aqui alguns por conta.

O discurso do bandido era mais extravagante e estranho do que o barão Danglars podia ter esperado. Abriu muito os olhos e procurou convencer-se de que não estava a ser vítima de um sonho. Peppino compreendeu isto e elevou a mão, fazendo brilhar a lâmina do punhal, com a outra mexeu nos florins que tinha no bolso e cujo som agradável produziu no coração de Danglars uma sensação de deleite.

- Onde tenho eu esses sócios? -  disse ele. -  Ignora que actualmente sou porteiro do teatro Argentino? Eu não negoceio.

- Histórias, senhor barão! Isso é disfarce que não tem valor algum neste momento. Sabemos que é agente do governo francês que trabalha para a ruína do senhor conde de Monte Cristo.

- Eu? Tudo o que sei a respeito desse homem, é que sofrera um rombo considerável que o deixou muito mal.

Peppino sorriu, abanando a cabeça.

- Então, quanto lhe roubaram?

- Não foi dinheiro, mas sim uma coisa pela qual alcançava quanto desejava, satisfazendo as suas vinganças terríveis!

- Que espécie de talismã era esse? -  inquiriu Peppino.

- A mão dum finado! -  respondeu Danglars.

Peppino estremeceu, fazendo-se muito pálido.

- Diz-se -  continuou o barão -  que o conde de Monte Cristo, que por muito tempo gozou pela sua magnificência e extravagantes caprichos a admiração da Europa, caiu num ridículo extremo depois que lhe roubaram o seu talismã. É o que eu sei.

Peppino possuía o grau de superstição, próprio dos italianos das classes baixas.

Bandido audaz e atrevido, que no seu perfeito estado Intelectual e completa lucidez de espírito faria saltar os miolos de um homem em cujo bolso houvesse pressentido a existência de oiro, não teria ânimo de picar com um alfinete o braço de um cadáver; e com todo o respeito vê-lo-iam ajoelhar ao lado desse cadáver para murmurar uma oração pela alma que dali tinha saído. Portanto, a narração que acabava de ouvir, combinada com o que lhe disse mestre Pastrini, produziu-lhe viva impressão muito em desabono do conde de Monte Cristo, a quem ele devia a vida.

Todos os sentimentos de simpatia que esse homem lhe inspirara pelo seu poder sem limites, acabaram para logo no coração do bandido no momento em que se deixou convencer de que esse poder que parecia o melhor atributo daquele homem extraordinário se baseava num facto horroroso, como o de possuir a mão de um finado que ele sem dúvida teria cortado sem pejo e sem religião, profanando assim o segredo dos mortos e perturbando o sossego da campa! Todavia, restou-lhe o dever da gratidão, e Peppino jurou salvar a vida do conde, assim como ele lhe havia salvo a sua.

- Senhor barão, posto que me pareça estranho o que acaba de dizer, não destrói o que eu lhe disse a respeito dos seus sócios.

- É boa! Então quem são esses sócios?

- Não percamos tempo -  tornou Peppino. -  Matá-lo-ei se se recusar ao que lhe proponho.

- Juro-lhe que está enganado, informaram-no mal, porque eu não persigo o conde de Monte Cristo.

- Então diga-me quem lhe roubou a tal relíquia, que lhe darei mil florins.

Esta proposta não desagradou a Danglars.

- E poderei fiar-me na sua discrição? -  perguntou ele.

- Pode, sim, excelentíssimo.

- Muito bem, queira contar o dinheiro.

- É para já -  tornou Peppino, colocando o dinheiro nas mãos de Danglars. -  Porém, senhor barão, se V. Ex.a não disser a verdade, pagará o engano com a vida! Aqui está o dinheiro.

- Na estalagem de mestre Pastrini -  disse Danglars -  num quarto do primeiro andar, está hospedado um homem natural de França, o qual possui a relíquia roubada, segundo ele diz, ao conde de Monte Cristo. Eu vi com os meus próprios olhos dentro de um cofre de ébano, com braçadeiras de aço polido, a mão do finado envolta num pequeno véu cor de fumo, e notei num dos dedos dessa mão já mirrada um anel de oiro, no qual me pareceu distinguir um nome gravado.

E o barão guardou o dinheiro, admirado de que tão pequeno número de palavras lhe rendessem aquela soma de belos florins.

- Agora, senhor barão - disse-lhe Peppino - se V. Ex.a quiser dar-se ao incómodo de continuar a esclarecer-me acerca do homem que possui a mão do finado, eu, Peppino, imediato de Luigi Vampa, asseguro-lhe que triplicarei a quantia que recebeu agora, mas previno-o de que no momento em que eu souber que faltou à verdade, pagará impreterivelmente com a vida!

- Mas eu nada sei desse homem.

- Poderá sabê-lo amanhã, ou depois...

- Se souber alguma coisa, onde o encontrarei?

- Não é necessário dar-lhe um ponto de reunião, excelentíssimo, porque no momento em que souber alguma coisa, poderá revelá-la sem escrúpulo ao homem que lhe der esta senha: “Dedicação de Vampa e de Peppino”.

- E o dinheiro?

Recebê-lo-á das mãos dele.

Dizendo isto, o salteador despediu-se e retirou-se muito satisfeito da sua diligência, contando que a ambição de Danglars seria um belo motor da sua espionagem.

 

Capítulo 11

A mãe e a filha

Quando a senhora Danglars saiu de Paris foi com o firme propósito de deixar a França, pois acostumada desde a sua infância aos prazeres, ao luxo e às etiquetas de uma capital, a província não podia oferecer-lhe comodidade alguma. Portanto, depois de ter caminhado até Lyon, aí se demorou enquanto Debray lhe mandava vender o seu palácio em Paris e lhe enviava uma ordem para receber o dinheiro. Em seguida, destinando esse dinheiro para as despesas da viagem, saiu de França e entrou nesse pequeno braço que a terra parece ter lançado com indolência nas tranquilas águas do Mediterrâneo, no qual os homens marcaram os estados pontifícios e o reino de Nápoles.

Finalmente, o zimbório soberbo do edifício de S. Pedro, desenhando-se com majestade no azulado céu de Itália, patenteou-se aos olhos da senhora Danglars, cujo peito se dilatou de prazer como se ali tivesse entrado uma nova existência.

No dia seguinte, a senhora Danglars encontrava-se instalada na estalagem de mestre Pastrini de um modo muito particular, que lhe custava o dobro, mas que muito lhe convinha por alguns dias, enquanto não sabia com certeza se sua filha e seu marido estavam naquela mesma cidade e com que carácter ali viviam. O seu passaporte era o de um mancebo da família Servières que estava doente, que viajava para se distrair, tomando unicamente a sua forma de mulher para de noite se dirigir aos teatros.

Logo na segunda noite em que esteve no Argentino, foi pelo acaso constrangida a presenciar a estreia de sua filha, e desde então não tornou a aparecer no teatro, não saindo do seu quarto da estalagem, onde, movida ainda por um resto de orgulho, começou a traçar um plano para dissuadir Eugénia da sua carreira de artista.

Deliberou apresentar-se-lhe e, com efeito, logo no dia seguinte à representação da Semirâmis, a senhora Danglars dirigiu-se a casa de uma velha onde tinha um quarto alugado mediante uma pequena mesada, fez aí a sua metamorfose de mancebo doente para mulher sadia e bela e entrou para uma carruagem, dando ao cocheiro a morada das jovens d'Armilly.

As duas amigas tinham acabado de receber o presente do empresário e abraçavam-se com entusiasmo, quando ouviram parar uma carruagem e logo em seguida o som da campainha.

- Isto começa a ser enfadonho, minha amiga, não te parece? -  exclamou Eugénia. -  Vinte e cinco carruagens num dia à mesma porta! Com efeito, dir-se-ia que mora aqui um ministro de Estado, um oficial superior da polícia ou um conde de Monte Cristo. Porém, nem todos sabem que és tu, minha boa amiga - continuou Eugénia, abraçando-a e beijando-a. - A noite de ontem não será esquecida tão cedo pelos romanos, porque eles conhecem melhor que ninguém o valor da música que executaste, a bela e inspirada expressão do teu gesto.

- Eugénia, acaso crês que produzi mais efeito do que tu?

- Não, mas creio que sem ti eu não teria representado a contento aquele difícil papel.

- Fazes a meu respeito uma ideia superior, levando a tua generosidade ao ponto de te esqueceres do teu próprio merecimento, Eugénia, estão ali as tuas coroas, as quais não são inferiores às minhas nem em qualidade nem em quantidade, e não quererá isso dizer que o teu merecimento é igual ao meu?

Eugénia não respondeu, mas abraçou com respeito e amor a sua mestra, amiga e companheira.

Neste momento abriu-se a porta da sala, aparecendo a governanta,

- Que é, Aspásia? -  perguntou-lhe Eugénia. -  Parece-me ter-lhe recomendado que não queríamos ser interrompidas no momento em que nos preparamos para estudar!

- Desculpem-me, minhas senhoras, se venho interrompê-las, mas não é por culpa minha, pois bem conheço que a estas horas não querem que as perturbem; porém, chegou uma senhora francesa, que apesar de eu lhe ter exposto a impossibilidade de ser recebida, insiste absolutamente em falar-lhes.

- Insiste em falar-nos? -  repetiu Eugénia muito admirada.

- Disse que é uma senhora francesa? -  interrompeu Luísa.

- Sim, minha senhora.

- Ela não terá ao menos um bilhete na sua carteira para no-lo mandar? Vá, senhora Aspásia, e não volte. Se lhe der um bilhete, junte-o aos que lhe têm entregado hoje e ponha-os no meu toucador. Vá!

Eugénia pronunciou esta última palavra juntando-lhe um gesto tão imperioso, que a senhora Aspásia se viu obrigada a retirar-se imediatamente. As duas amigas aproximaram-se do piano para iniciarem o seu ensaio, e um momento depois, encetavam um dueto da Semirâmis quando, indignadas, viram a porta abrir-se e a governanta aparecer de novo.

- Oh! -  exclamou Eugénia com aborrecimento. - Deste modo, hoje não poderemos estudar!

- Mil perdões, minhas senhoras - respondeu Aspásia. - A senhora de quem lhes falei quis por força que lhe trouxesse este bilhete.

E Aspásia avançou, entregando um inflexível e bonito cartão, onde estava gravado em letras de oiro, o nome aristocrático de uma mulher.

- Será possível? -  murmurou Luísa, passando-o a Eugénia.

- A baronesa Danglars - disse ela, lendo o bilhete e soltando uma pequena risada. - Oh, minha amiga, empalideces!? Crês acaso que esta senhora venha visitar-me? Pela minha parte, conheço-a bem, e estou inclinada a crer que virá apenas cumprimentar as duas d'Armilly. Mande entrar a senhora baronesa -  acrescentou com indiferença, fazendo sinal à governanta que saiu imediatamente.

Por momentos as duas amigas ficaram pensativas, com o olhar cravado no bilhete que lhes vinha perturbar a paz íntima. Eugénia de quando em quando corria os dedos pelo teclado do piano, e os sons espontâneos, rápidos e consecutivos de escala em escala, disfarçavam um suspiro, que lhe fugia do peito, e o qual a artista não queria que fosse ouvido pela amiga.

A baronesa não tardou a apresentar-se. Vinha esmeradamente vestida de veludo preto, com romeira guarnecida de preciosas rendas. Eugénia caminhou vagarosamente para ela, inclinou-se com respeito como para lhe beijar a mão; porém a senhora Danglars permaneceu estática e Eugénia fez-se vermelha como um pimentão.

- Vamos, Eugénia - disse por fim a senhora Danglars. -  Para conseguir descobrir-te em Roma, foi necessário dar o nome de Eugénia d'Armilly, e não há dever algum que obrigue uma Eugénia d'Armilly ao testemunho de respeito que querias prestar-me.

Dizendo isto, a senhora Danglars lançou um olhar oblíquo para a amiga da filha, a qual parecia ter aproveitado a parte que lhe dizia respeito daquelas palavras: depois, como para começar a cena, dando uma lição a sua filha, olhou em volta de si como se procurasse uma cadeira.

- Mas sente-se - disse-lhe Eugénia vivamente, no momento em que a baronesa lhe ia também dizer:

- Não sei se em casa de actrizes há os mesmos costumes de toda a outra gente. Todavia, advirto-a de que não estou habituada a falar de pé.

A estas palavras, pronunciadas de um modo que pareciam filhas de um profundo desprezo, Eugénia fez-se lívida como um cadáver.

- Minha senhora, - disse a artista fazendo um grande esforço para dar firmeza às palavras. -  Em casa de actrizes há os mesmos costumes de toda a outra gente e muito principalmente na Itália, onde, como deve saber, a aristocracia da arte quase se iguala à do nascimento.

- Persuado-me de que não só quase a iguala, como diz, como também a excede - tornou a senhora Danglars com um sorriso irónico — de contrário, creio que não teria merecido tão grande simpatia. Porém, Deus sabe como isso foi! Muitas vezes os ruins conselhos imperam de um modo tal sobre as pessoas inexperientes que as obrigam às mais extravagantes loucuras.

A baronesa tornou a lançar o seu olhar oblíquo para Luísa, como para observar o efeito das suas palavras. Eugénia estremeceu de raiva e orgulho ofendido e ia falar, mas a voz de sua mãe cortou-lhe a palavra.

- Vamos, Eugénia, tencionava talvez perguntar-me o motivo da minha visita? Asseguro-lhe que não será difícil de ser compreendido. Quando se pertence pelo nascimento a uma das classes da sociedade distinta, não podemos seguir todos os nossos caprichos com a mesma facilidade e sem cerimónia dos filhos de famílias plebeias que nada têm a perder, mas tudo a ganhar no mundo. Sim, Eugénia, posto que adoptando a carreira de artista, ocultaste o teu nome de família sob outro de menos consideração, não foste bastante forte para mudar toda a tua essência e ficaste sendo aos olhos de quem já te conhecia a mesma Eugénia de Servières e Danglars. Ora, estes nomes não podem de modo algum pertencer a uma actriz, por muito nobre que seja o seu estado, principalmente quando eu, que sou tua mãe, me considero ainda no direito de reclamar.

- Reclamar? - retorquiu Eugénia, com voz sumida e o olhar fixo no chão. -  Não a compreendo, minha mãe.

- É na verdade bem simples! Quando eu empreguei a palavra reclamar, quis dizer: curar, pelos meus conselhos, o louco desvario da minha filha. É este o meu dever, Eugénia, e se tu esqueceste quanto me devias, não me sucede o mesmo a teu respeito.

- Minha mãe - murmurou Eugénia, em cujas pálpebras tremulavam lágrimas. - É boa e generosa, por isso esperei sempre o seu perdão; porém não julgue que eu abandone a minha carreira de artista pelas etiquetas enfadonhas e pela monotonia insípida da mocidade vulgar. Sim, quando concebi o meu plano de fuga, quando o realizei com determinação e coragem, arrostando com muitas contrariedades e alguns perigos, não foi com a ideia de entrar no dia seguinte na casa materna como criança arrependida de haver cometido uma maldade. Respeito-a e estimo-a muito, mas esta vida livre e gloriosa é toda a minha ambição!

- Basta, Eugénia! -  exclamou a baronesa levantando-se. -  Eu sei a quem devo a tua loucura. A quem devo o desgosto que experimentei naquela noite maldita! Oh, se eu o tivesse suspeitado então! Não teria agora de ser mãe de uma cómica. Mas não o serei por muito tempo, porque não quererás matar-me com esse desgosto, não é verdade, minha filha?

- Minha mãe, por piedade! Não compreende o que seja dizer-se a uma cantora de natural vocação artística que ela leva vida de mulher vulgar.

- Fazes uma alta ideia de ti mesma, Eugénia! -  interrompeu a baronesa Danglars com um sorriso de escárnio. -  Saberás tu o que é para uma senhora de bom nascimento e de escolhida sociedade, ter uma filha sobre o imundo palco de um teatro? Uma filha a quem ela amava, educava com desvelo e orgulho. Eugénia, isto é muito pior! Uma de nós há-de consumar o sacrifício, entendes? Eu não venho aqui fazer uma cena de sentimentalismo, não, isto não é um enfeite com que as actrizes se adornam para brilhar. Elas, à força de representar, à força de adoptar o que os seus papéis lhes exigem, já não podem avaliar a verdadeira dor ou o verdadeiro prazer que nos afecta.

- Minha mãe! -  gritou Eugénia estremecendo e rasgando com os dentes o seu lindo lenço bordado.

- Não me disseste que eras uma actriz? Falo-te como falaria a qualquer outra.

Voltando-se em seguida para Luísa, dirigiu-lhe a palavra directamente.

- Senhora Luísa d'Armilly, permita que lhe agradeça o desvelo com que ensinou música a minha filha. Com efeito, a discípula honra a mestra e será difícil distinguir qual é hoje a discípula e qual a mestra.

Luísa lançou um olhar suplicante para a amiga, a qual imediatamente avançou um passo, colocando-se entre ela e a baronesa, como para responder.

- Hoje somos amigas íntimas, companheiras de trabalho, de estudo, de glória e de fortuna -  disse Eugénia. -  A minha mãe, que pelo seu nascimento nunca terá ocasião de trabalhar, de estudar, para comprar um nome e alcançar os meios de subsistência, não compreende o que é esta grande amizade que nos une! Pois bem, respeite-a ao menos. Nos salões da sua sociedade, não há destas amizades, nos faustos da nobreza não existe esta singeleza sublime... É por ela que eu desprezo o nome da ilustre família de que descendo, é por ela que desprezo a fortuna que me pertencia.

A baronesa estremeceu ao ouvir estas palavras.

- É por ela, finalmente - continuou Eugénia, abraçando-se a Luísa -  que lhe digo, minha mãe, que serei sempre sua filha; mas sendo sua filha, não deixarei de ser artista.

A baronesa vendo que não tinha mais que fazer naquela primeira visita, murmurou algumas palavras e saiu precipitadamente de casa das duas amigas. Para uma pessoa como a senhora Danglars, que não podia conformar-se com a ideia de se retirar da sociedade em que sempre tinha vivido, para uma senhora tão cheia dos preconceitos de raça, que por simples instinto de mal fundado orgulho desprezava a mediania social e as classes proletárias, nada havia pior do que a horrível vocação de Eugénia.

A baronesa teria de sair de Roma, pois dentro em breve algum jornalista ávido de um artigo sensacional, publicaria sem rebuço a vida da nova cantora e esta seria então reconhecida em todas as cidades como Eugénia Danglars, a qual por uma vocação sublime abandonara a mãe, a família, honras e riqueza, para seguir a brilhantíssima mas difícil carreira de Talma, que era toda a sua dedicação.

A senhora Danglars durante um momento meditou numa fatalidade que parecia persegui-la desde certo tempo. A fuga do marido, a aparição do infeliz mancebo a quem ela havia dado o ser, a carta fatal escrita pelo seu antigo amante à hora da morte, a extravagância de sua filha Eugénia, tudo parecia combinado para a oprimir; porém a baronesa não era pessoa que se deixasse vencer pela fatalidade, o seu orgulho e amor-próprio revoltavam-se com esta ideia e prescreviam-lhe o caminho que devia seguir. Ela jurou impedir a carreira de Eugénia e dispôs-se a começar o trabalho misterioso, no qual empregava toda a sua inteligência e fina perspicácia de mulher.

 

CAPíTULO 12

A carta de Benedetto

A visita da baronesa Danglars a casa da filha, verificou-se antes de Benedetto lhe ter escrito a carta em nome do conde de Monte Cristo, por isso os acontecimentos que vamos narrar consecutivos à mencionada visita, também tiveram lugar antes da referida carta, cujo resultado se verá mais tarde.

Como dissemos já, a baronesa tinha alugado um quarto em casa de uma pobre velha, onde fazia as suas metamorfoses de mancebo doente para mulher sadia e bela. A senhora Danglars, que a troco de uma pequena quantia comprara o silêncio da velha, aumentou essa quantia para ter o direito de exigir dela o mais absoluto segredo, o que muito agradou à mulher.

- Não haverá em Roma um homem determinado que seja capaz de uma empresa difícil, mas lucrativa?

- Há vários.

- Muito bem. Esse homem terá de frequentar o teatro como pessoa habituada àquele género de espectáculo e também de consumar uma espécie de rapto.

- Um ou dois, quantos quiser.

- E quem garantirá a sua obediência?

- O seu próprio interesse.

- Qual o motivo por que  devo confiar em sua sinceridade?

- O mesmo que me garante da sua. A senhora, quando veio aqui eu julguei que fosse um homem, mas quando a vi vestida de mulher não lhe fiz pergunta alguma. Não sei quem é nem o indago. Se for criminosa e a capturarem, espero que não falará em mim.

 

Ao anoitecer, o mancebo doente da família Servières, muito bem embuçado no seu capote, saiu furtivamente da estalagem e dirigiu-se a casa da velha sibila, a qual ficou bastante surpreendida ao ver que a senhora Danglars não mudara de vestuário, o que acontecia pela primeira vez.

- Arranjou o homem?

- Sim, está à espera.

- Quem é?

- Não interessa saber quem é. Pague-lhe a senhora e deixe o resto por conta dele.

- Muito bem. Amorteça a luz do candeeiro e mande-o entrar, mas não lhe diga que sou mulher.

A velha obedeceu imediatamente e o suposto Servières envolvendo-se bem na capa, afastou-se para a extremidade do quarto e sentou-se numa cadeira estofada muito maltratada.

Ainda não eram decorridos cinco minutos, quando à entrada da porta apareceu um homem alto em cuja fisionomia se lia a astúcia da raposa e a coragem do leão, o qual lançando um rápido olhar a Servières, adivinhou com quem tinha a tratar, antes que este pudesse suspeitar o mesmo a seu respeito.

Depois de alguns momentos de silêncio, que o recém-chegado aproveitou para tirar o chapéu e passar a mão pelo cabelo, Servières perguntou em voz contrafeita:

- Está disposto a desempenhar um trabalho difícil?

- Sim, excelentíssimo! -  respondeu o homem.

- Ainda que se trate de um rapto?

Ele sorriu e fez um gesto de tédio, como se esperasse coisa mais difícil.

- Muito bem! - continuou Servières depois de pensar um instante. - Alguém nos ouve?

- Eu só - respondeu o bandido.

- Costuma frequentar teatros?

- Todos quantos há em Itália.

- Então conhece bem a Itália?

- Conheço este braço da terra desde Régio até Aosta, tanto para o lado do mar da Córsega como para o Adriático.

- Conhece as duas novas cantoras do teatro Argentino?

- Em Roma quem não conhece já as duas d'Armilly!?

- Refiro-me à mais nova.

- Eugénia? Conheço.

- Imagine um homem que a ama apaixonadamente. Um desses sentimentos que fazem remover tudo para lograr o objecto desejado, que fortalece com o frio desprezo desse objecto e que, semelhante ao raio atravessando regiões de gelo, é forçoso que atinja o seu ponto determinado.

- Pois bem...

- Trata-se do rapto de Eugénia d'Armilly. -  É fácil. Marque o dia e a hora.

- Como?

- Marque o dia e a hora para o rapto.

- Todavia, antes disso quero recomendar-lhe uma coisa - disse Servières hesitando por um momento, como se receasse suprimir a liberdade de Eugénia.

- O que é?

O maior respeito e a menor violência possível...

- Fique descansado.

- Como saberei que cumpre a sua palavra?

- Pagar-me-á depois do trabalho feito, excelentíssimo, depois de se certificar que tudo foi feito consoante as suas ordens.

- Aonde o encontrarei?

- Conhece as catacumbas de S. Sebastião?

- Não -  respondeu Servières, acrescentando logo em seguida: -  Mas a missão é um pouco mais extensa. Depois do rapto, conduzirá Eugénia para Nápoles.

- Disso não me encarrego.

- Conduzi-la-á então ao convento que eu lhe indicar?

- Isso sim, contanto que abram as portas.

- Hão-de abrir!

- Indique-me o dia do rapto.

- No primeiro em que se representar a Semirâmis, antes de começar o espectáculo.

- E o convento?

- Amanhã, ao meio-dia, dir-lhe-ei o nome. -  Então até amanhã -  disse ele, preparando-se para sair.

Assim que se viu sozinha, a baronesa murmurou:

“Muito bem, Eugénia, no convento acabará o teu delírio de uma liberdade que me compromete. Hás-de arrepender-te de haver abandonado tua mãe!”

 

No dia seguinte, o estalajadeiro entregou à senhora Danglars a carta que Benedetto lhe dirigira. A baronesa abriu-a e começou a ler.

 

Uma pessoa que muito preza e respeita V. Ex.ª, acaba de saber que o segredo de V. Ex.ª está descoberto em Roma. Permita-me que o avise, pois de maneira alguma desejo que passe pelo menor vexame.

Seu muito afeiçoado

Conde de Monte Cristo

 

Se a cabeça da medusa, com as suas serpentes em lugar de cabelos e com toda a hediondez que lhe deu a vingativa Minerva, houvesse aparecido suspensa no ar aos olhos da pobre baronesa, não a tornaria por certo mais estática do que ela ficou quando finalizou a leitura da carta, assinada com

o nome de conde de Monte Cristo.

Seria aquilo um sonho mau? Leu segunda vez.

Não havia ali mais do que a realidade. Uma carta na qual se lhe dizia estar descoberto o seu segredo. A que podia ela atribuir aquelas palavras senão ao seu recente projecto de raptar Eugénia? Sim, era forçosamente a isto que o conde de Monte Cristo se referia. Mas onde estava ele? De onde lhe escrevia? Como pôde saber que ela se encontrava em Roma?

“Ah!” dizia ela para consigo com um sorriso amargo. “Esquecia-me que esse homem extraordinário tem o segredo de ver nas trevas, de prever

o futuro e de adivinhar o presente, ainda que este se julgue encoberto com um espesso véu de mistério! Para aquele homem não há segredos, não há mistérios no mundo! Porém onde está ele? Preciso vê-lo e ouvi-lo. Ele é grande, é poderoso, há-de valer-me!”

Dizendo isto, sentou-se à secretária e escreveu ràpidamente, depois dobrou o papel, pôs-lhe o sinete

e acrescentou no sobrescrito:

Ao Il.mº e Ex.mº Sr. Conde de Monte Cristo. Com muita urgência

 

Quando mestre Pastrini recebeu esta carta para a entregar ao vizinho do segundo andar, foi grande o seu espanto ao ler o sobrescrito. Esteve para rodar sobre os calcanhares ao observar que semelhante pessoa não esttava ali, nem se encontrava em Roma; porém, lembrando-se das palavras de Benedetto e reflectindo que este lhe explicaria o enigma, subiu ràpidamente ao segundo andar e entrou no quarto do seu hóspede.

- Excelentíssimo, venho muito fatigado. -  Porquê, andou muito?

- Não, excelentíssimo.

- Subiu a escada a correr?

- Venho fatigado com o peso de uma carta. - Ora essa!

- Se lhe parece! Quando a carta tem escrito o nome do conde de Monte Cristo...

- Dê-ma - disse vivamente Benedetto. E antes que o estalajadeiro tivesse tempo de dizer uma palavra, estava a carta na mão agitada do assassino.

- Mas, excelentíssimo, o senhor não é o conde.

- É o mesmo, pois sou o seu secretário.

- O senhor? -  perguntou mestre Pastrini, espantado. -  Não tinha dito que...

- Ah, mestre Pastrini, declaro-lhe que não fico nem mais uma hora em sua casa, porque o senhor é um curioso insuportável.

O estalajadeiro não compreendendo nada do que se passava ali desde há uns tempos a esta parte, viu-se obrigado a retirar-se para o seu pequeno escritório, onde esperou ocasião de falar a Peppino, a fim de lhe contar que o secretário do famoso conde de Monte Cristo estava em Roma.

Benedetto saiu da estalagem levando o seu misterioso cofrezinho e uma pequena mala de coiro que formava toda a sua bagagem, no firme propósito de se aproveitar hàbilmente da feliz descoberta que tinha feito. Dirigiu-se a casa do porteiro do teatro Argentino e bateu na aldraba com tal violência, que o pobre barão deu um pulo na cadeira.

- Olá, barão! -  gritou Benedetto.

- Ainda a mesma teima? Quer comprometer-me, não é isso?

- Meu amigo, quando eu lhe chamo barão é porque estou convencido de que readquirirá a sua fortuna - respondeu Benedetto subindo e colocando a um canto a pequena mala, mas conservando sempre o cofre debaixo do braço.

- Que é isso? Vai viajar?

- Não. Simplesmente, quando a gente se muda, não costuma deixar os trastes na antiga casa.

- Ah! Vai mudar-se?

- É verdade. Diga-me, não tem aqui um quarto devoluto?

- Pela minha vida lhe juro que não tenho! - exclamou o barão.

- Histórias, senhor barão! Ah, agora me recordo que tenho de trabalhar! Dê-me papel, pena e tinta.

- Repito-lhe que não tenho um quarto vago nesta casa! Veja: sala, casa de jantar e cozinha.

- Meu caro amigo, eu não pretendo levantar o plano da sua casa, quero simplesmente papel, pena e tinta.

- Vai escrever?

- Vou escrever a seu respeito.

- Isso é mais sério. E a quem?

- À senhora baronesa Danglars -  respondeu Benedetto.

O barão estremeceu violentamente.

- Escrever à baronesa?

- Porque se admira, senhor barão? Não lhe prometi eu entregar-lha com os seus três milhões, uma vez que tem remorsos de lhos ter deixado? Pois bem, ela está em Roma, escreveu-me e vou responder-lhe.

- Escreveu-lhe?

- Conhece a letra dela?

- Perfeitamente.

- Será esta?

Mostrou-lhe a carta que a baronesa havia dirigido ao suposto conde de Monte Cristo. - Ah! - exclamou o barão, lendo este nome no sobrescrito. -  A letra é dela, mas acaba de dizer-me que ela lhe escreveu e eu vejo aqui um nome que não é o seu.

- Não é o meu! -  retorquiu Benedetto sorrindo, acrescentando logo: -  Caro barão, vejo que esquece a minha relíquia milagrosa. Com licença, deixe-me arrumar o meu cofre. Não lhe toque! Contém a mão do finado!

Danglars estremeceu, mau grado seu, e Benedetto continuou:

- Meu amigo, ordenei à baronesa que vendesse o seu palácio e a sua baixela em Paris e que viesse para Roma. Ela obedeceu, espera as minhas ordens, e eu venho consultá-lo a esse respeito.

O modo persuasivo com que Benedetto pronunciou estas palavras, deixou o pobre barão estupefacto.

- Creio que estou a sonhar - murmurou ele.

- Vamos senhor barão, saia desse estado de torpor que não serve agora para nada. Vou escrever à baronesa a anunciar-lhe a sua visita.

- Isso nunca!

- Compreendo. Teme que a baronesa lhe lance em rosto o seu procedimento, mas asseguro-lhe que não será assim; pelo contrário, será a primeira a lançar-se-lhe nos braços.

- Ora, isso foi coisa que ela nunca fez de bom humor.

- Fá-lo-á agora, deixe-me escrever-lhe -  tornou Benedetto com modo imperioso.

Em seguida sentou-se e começou a escrever o seguinte:

 

Minha senhora:

Não estou em posição para dar-lhe conselhos, todavia o meu parecer é que não se assuste com coisas que não valem nada. Hoje almocei com o senhor barão Danglars na sua lindíssima casa de campo, onde me fez observar objectos de muito preço e muito gosto, entre os quais notei um retrato da senhora baronesa. Ao vê-lo, disse para comigo: “Bela senhora, é má, mas a sua maldade agrada a quantos a conhecem”.

Dei ao senhor barão a feliz notícia da sua presença em Roma e estou convencido que ele tenciona fazer-lhe uma surpresa amanhã à noite.

Quanto ao rapto, já não se realizará, porque foi atraiçoada. Porém o homem nada dirá que a comprometa.

Assinou com o nome de conde de Monte Cristo e fechou a carta, sobrescritando-a em seguida.

 

- Agora preciso dum portador.

- Isso é que não há - respondeu o barão, que não tinha deixado de passear pela casa enquanto Benedetto escrevia.

- A pobre senhora está ansiosa por se reconciliar consigo e o senhor até quando se trata de arranjar um simples portador para esta carta se mostra indolente. Escute, bateram à porta. Seja quem for, há-de servi-lo.

O barão franziu o sobrolho e perguntou quem era.

- Dedicação de... Ah, diabo, senhor barão! Abra, porque há coisas que não se dizem assim da janela para a rua - disse fora uma voz de homem.

- Que maravilha é esta, meu caro? -  perguntou Benedetto. -  Não sou só eu que lhe chamo barão.

- Por amor de Deus, tire daqui a sua bagagem e passe para aquele quarto, ou antes para a cozinha! Talvez seja melhor que se retire.

- Está perturbado, senhor barão!

- Ora isto! -  exclamou este.

Repetiram-se as pancadas e o barão parecia estar sobre brasas.

Benedetto correu à porta e abriu-a, enquanto Danglars, não podendo evitar este movimento, fez um gesto de profundo embaraço e adoptou de momento uma fisionomia que explicasse bem a situação ao seu interlocutor.

 

CAPíTULO 13

O suposto secretário do conde de Monte Cristo

A inesperada visita que se apresentava era Peppino, o qual tendo ouvido dizer a mestre Pastrini que o secretário do conde de Monte Cristo estava em Roma, correu ao encontro do barão para saber por seu intermédio mais alguma coisa, pois, como dissemos, os elementos que compunham a quadrilha de Vampa professavam profundo respeito pelo conde.

Danglars estava agora numa posição dificílima e tremia com receio de se sair mal dela. Peppino ficou um tanto embaraçado ao encontrar-se na presença de um estranho.

O barão lançou-lhe um olhar significativo e patético, como se quisesse dizer-lhe: “Seja prudente, não me comprometa”. Por sua vez, Benedetto, notando pelo trajo de Peppino que este seria um homem a aproveitar, ficou satisfeito, calculando que tinha ali um portador para a sua carta. Avançando um passo, disse:

- Será capaz de se incumbir de uma missão? - Que missão? -  perguntou Peppino, olhando fixamente para ele.

- Levar uma carta para ser entregue hoje mesmo na estalagem do Globo -  respondeu Benedetto, sustentando com estóica indiferença o olhar investigador do outro.

- A quem, signor?

Danglars fez um gesto suplicante, mas Benedetto respondeu sem o menor escrúpulo:

- A senhora baronesa Danglars. Deve entregá-la a um hóspede que ocupa os quartos nº 3 e 4 do primeiro andar, o qual a receberá.

- Não tenho dúvida alguma em ir, mas se me perguntarem quem me envia, que devo responder?

- Dirá simplesmente: o secretário do conde de Monte Cristo.

Tentar descrever as diversas emoções que se revelaram na fisionomia de Peppino ao ouvir estas palavras, seria impossível. Estremeceu involuntàriamente, fazendo-se muito pálido, como se o nome que ouvira lhe despertasse uma lúgubre recordação: depois olhou para Danglars com o olhar perspicaz que o caracterizava, e segunda vez olhou para Benedetto, que se conservava impassível.

- Perdão, signor, conhece a pessoa de quem fala?

- O secretário ou o conde? -  perguntou Benedetto.

- Um e outro.

- Conheço, porque um deles sou eu.

- É então o secretário do senhor conde?

- Já lhe disse, meu amigo, e a insistência da sua pergunta faz-me acreditar que conhece o meu amo.

Peppino baixou a cabeça.

- Serviu-o em algum tempo?

- Oh! Foi S. Ex." quem teve a bondade de nos servir.

- De nos servir? Esse nos quer dizer muito e faz-me sentir desejos de lhe falar em ocasião mais oportuna.

Estou às suas ordens, signor, todavia parece-me que deverá ter um sinal.

- Tenho.

- Então?

- Meu caro barão - disse Benedetto -  faça-me o favor de me deixar só com este homem.

Danglars passou para outro compartimento.

- Muito bem -  continuou Benedetto. -  Sabe que qualidade de homem é o conde?

- Extraordinário.

- Como se pode conhecer por este sinal que lhe marca o destino no mundo, onde ele caminha radiante como um raio de sol. Veja.

Abriu o pequeno cofre e Peppino recuou estupefacto, levando a mão aos olhos.

- A mão de um defunto! -  murmurou.

Benedetto ocultou em seguida a macabra relíquia, notando com prazer o efeito que ela produzira em Peppino.

- Será de hoje em diante a palavra de ordem.

- Qual ordem, signor? Não há entre nós palavras desta natureza, nem nunca existiu outra que não fosse o nome de Sua Excelência! Eu pedia-lhe um sinal, uma palavra qualquer, pela qual me certificasse. Porém, acredito agora, porque isto é próprio de um homem que parece superior à vida e à morte, como o signor conde.

- Quem é você?

- Sou um homem a quem Sua Excelência salvou a vida e que jurou obedecer-lhe em tudo e por tudo!

- Todavia parece-me que pertence a uma associação, pois empregou o termo nós, quando falou a primeira vez do conde de Monte Cristo.

Peppino olhou em volta de si e, aproximando-se mais de Benedetto, murmurou:

- Sou amigo de Luigi Vampa.

- Aí está um nome que conheço muito bem, por ouvi-lo repetir ao conde de Monte Cristo e a Bertuccio.

- Bertuccio? Sei quem é.

O conde me encarrega de levar algumas instruções para Luigi Vampa.

- Então dirija-se ao Coliseu, que ele aí estará para as receber.

- Seja assim, mas você acompanhar-me-á, porque não o conheço nem ele a mim. O nosso ponto de reunião será aqui depois de amanhã. Agora vá entregar esta carta à baronesa. Não tem resposta.

Peppino inclinou-se e saiu sem a menor réplica.

- Barão! Barão! -  gritou Benedetto.

- ó homem, você é o diabo!

- Serei. Mas diga-me quem é o homem que acaba de sair.

- É Peppino, o segundo chefe da quadrilha de Luigi Vampa.

Benedetto soltou um grito.

- Que aconteceu?

- Nada, barão, não é nada. Quero dizer que a mão do finado não chegará muito tarde ao ponto que demanda, pois não devo esquecer que o finado a quem ela pertence, tinha uma missão a cumprir na terra. Sim -  continuou ele com exaltação — lá do fundo do teu silencioso túmulo de mármore, ergue a vingança do teu braço justiceiro à face da terra!

E, dizendo isto, arrancou do cofre a mirrada dextra e beijou-a com entusiasmo e respeito, derramando algumas lágrimas.

Danglars contemplava-o com espanto e terror, não compreendendo nada do que dizia Benedetto.

- Barão, que género de homem é Luigi Vampa? -  inquiriu ele depois de haver fechado no cofre a macabra relíquia que tanto horrorizara Danglars.

- Eu tenho razão para o conhecer bem, porque foi ele quem me despojou de seis milhões.

- Sim, os tais seis milhões que Monte Cristo teve o mau gosto de dizer que não eram positivamente seus.

- havia engano na verdade. Não me recordo como isso foi.

- Voltemos a Luigi Vampa.

- É homem capaz de cumprir a sua palavra e, segundo me pareceu, muito determinado ao comando dos seus satélites.

- alto?

- De estatura mediana.

- Robusto?

- Regularmente, creio que possuirá a força natural de outro qualquer homem.

Benedetto parecia muito satisfeito com as respostas de Danglars. A sua imaginação planeava sem dúvida algum grande projecto, pois por vezes a testa enrugava-se-lhe e o olhar assumia a expressão sombria e sinistra, como no tempo em que planeara a morte do seu carcereiro, na cadeia da Force.

- Agora, meu caro senhor - disse Danglars, levando a sua liberalidade ao ponto quase fabuloso de tirar do pó de um armário uma garrafa de lácrima-cristi, que constitui um dos ramos preciosos de contrabando em toda a Itália -  aqui temos com que molhar a palavra e posso também oferecer-lhe para entreter a debilidade alguns bons biscoitos da Jamaica.

- É um belo anfitrião e faz-me crescer o desejo de prolongar a minha estadia. Felizmente não o incomodarei com isso, porque não tarda o momento em reunir-se a sua esposa e então...

- Que diz? Oh, é encantador! O seu desinteresse em tudo isto é sublime!

- Obrigado, barão. Gosto destas comoções, e desde já me parece que muito deverá deleitar-me a cena do seu encontro com a interessante baronesa; depois não me procure, porque desaparecerei em seguida à maneira das lindas aves que cegavam com o brilho da plumagem e deslumbravam com a melodia da voz as aves de Juvenal, as fénix.

- Para onde vai?

- Pergunte ao raio das procelas o ponto que deve atingir quando rasga o seio da nuvem, fende os ares e se projecta a nossos olhos, rápido e potente. Eu irei aonde a mão descarnada me conduzir.

- Pela minha alma! -  replicou Danglars. -  A sua história aborrece-me muito. Eu não tenho a menor queda para o maravilhoso e será difícil fazer-me acreditar que o seu caminho seja designado pela mão ressequida de um cadáver!

- É porque não sabe que sensações produz em mim aquela relíquia! Que ideias desperta neste cérebro requeimado pelo ardor do sofrimento e pela febre da raiva! Desculpe, barão - continuou Benedetto mudando de tom e sorrindo com ironia.

Estas coisas de nada valem, conversemos de outras.

- De acordo.

- Segundo me parece, tem relações com os bandidos de Vampa, meu caro Danglars! Mas sossegue, homem, o hábito não faz o monge. Que importa que existam negócios entre eles e o senhor? Por isso não deixará de ser barão e de possuir os três milhões de sua esposa.

- Não tenho quaisquer relações com eles. Foi desde aquela célebre ocasião que fiquei a conhecer Peppino e ele às vezes passa por aqui para beber um copo de vinho.

Benedetto convenceu-se que o bandido em lugar de ir ali para esse fim, desempenhava as funções de fornecedor de vinhos em casa do barão.

- Que tal o acha?

- óptimo.

- Muito bem. Agora faça favor de me falar acerca da visita que devo fazer à baronesa, porque bem sabe que estou com os olhos fechados em todo este negócio.

- Eu abrir-lhos-ei -  respondeu Benedetto depois de meditar um instante, durante o qual, com muita mágoa do barão, despejou quatro cálices de vinho e consumiu quase todos os biscoitos que estavam na bandeja. -  Amanhã, às seis horas da tarde, apresentar-se-á no primeiro andar da estalagem do Globo, com o seu título de barão Danglars.

- Minha mulher mora aí? -  perguntou Danglars num tom que não escapou a Benedetto.

- Não lhe disse que habitava aí, mas sim que tem um quarto alugado na estalagem de mestre Pastrini.

O barão suspirou, como se aquelas palavras lhe contraíssem uma ideia despertada pelas primeiras.

- Bem, vamos por partes - disse ele pausadamente. -  Anuncio-me com o meu título, e depois?

- Boa pergunta. Depois é recebido.

- E...

- Quer que lhe ensine tudo o mais que um homem de tino será capaz de fazer em face da esposa, de quem estava apenas separado e que possui três milhões de francos? -  atalhou Benedetto com uma gargalhada. -  Nesse caso, ver-me-ei obrigado a declará-lo um verdadeiro parvo!

O barão não insistiu e despejou o resto da garrafa. Benedetto, por seu turno, tratou de arranjar uma cama, depois meteu o cofre debaixo do travesseiro e pôs-se a combinar bem as suas ideias para os trabalhos do dia seguinte.

 

CAPÍTULO 14

Roubo

AJUDADO pelo acaso, o filho do antigo procurador-régio parecia prosseguir sem dificuldade no seu caminho de crimes. Assim como a felicidade tem por vezes o capricho de fazer um homem seu favorecido.

A desgraça lança suas poderosas garras sobre sua vítima e marca-lhe com um ferrete de ignomínia toda a vida desde a nascença até ao derradeiro suspiro. Para este homem não há nem Deus, nem amor, nem pátria; filho do crime, o seu legado no mundo é o crime, a maldição! Benedetto parecia não ser mais do que um desses filhos da fatalidade, para quem os outros homens não são irmãos, pois lhe haviam atirado ao rosto com uma gargalhada de escárnio, os laços civis e religiosos que os deviam ligar na mesma família.

E quantas vezes acreditamos que estes homens, filhos da Providência como todos os outros, são pelos misteriosos decretos do Eterno excluídos da comunhão da virtude, para com eles castigar aqueles que, julgando-se eles próprios missionários de Deus, abusam da força e do poder que esse Deus lhes havia concedido, deixando-se arrastar pelo poder de uma paixão que os domina?

Benedetto perseguia um desses homens que tinha abusado do seu poder e da sua força, desmentindo por isso na terra um dos mais belos atributos do Eterno, a misericórdia! Ah, criaturas mesquinhas, que vós julgais tão iluminadas como Deus e acreditais ser tão poderosas como Ele!

E no fim, o fogo que sentis em vós e que tomais pela chama sagrada da inspiração, não é mais do que o delírio excessivo de uma paixão terrestre que vos domina e arrasta! Então, com o vosso procedimento, prostituís a justiça infinita e a bondade inefável do Criador! Então, lançais a discórdia, a morte e o martírio em redor de vós, como a semente da maldição, dizendo que é essa a justiça infinda e sublime, dum Deus Omnipotente que vos inspira! Eis, como o homem, que mais justo se crê sobre a terra, possui um dos maiores defeitos da humanidade, a vaidade!

A baronesa Danglars, tendo recebido a carta que lhe enviara o suposto conde de Monte Cristo pela mão do seu secretário, acreditava firmemente que

o conde estava em Roma e que, por um dos muitos caprichos familiares daquele homem, ele queria obter daquele modo o seu bom agrado, antes de se lhe apresentar. Depois de haver estremecido quando na primeira carta ele lhe declarava estar descoberto

o seu segredo em Roma, restabeleceu completamente o seu sossego habitual quando, na segunda, lhe afirmava que podia estar descansada, porque

o seu nome não ficaria comprometido no louco projecto do rapto de Eugénia. Deste modo, pensou maduramente na conveniência de se reconciliar com o marido, cuja fortuna parecia favorável, pois

o astucioso Benedetto havia escrito na sua segunda carta estas palavras: “Almocei ontem na linda casa de campo do barão, onde ele me fez admirar objectos de grande valor.”

Estas palavras foram estudadas, analisadas e comentadas pela senhora Danglars durante quatro horas.

É claro que para possuir uma linda casa de campo e objectos-de grande valor que mereceram a atenção de um homem como o conde de Monte Cristo, o barão devia estar rico e, neste caso, a linda baronesa que tinha o seu fraco, não achava desvantajoso esquecer-se do passado, depois de um pequeno monólogo de recriminações, para se reconciliar com aquele que afinal de contas era o seu marido.

Assente este primeiro juízo, eis que o futuro começava a patentear-se-lhe vagarosamente, à maneira dos panos dos teatros que a pouco e pouco se vão erguendo a fim de nos mostrar um paraíso inteiramente novo para nós. A baronesa viu a cidade de Londres, mas não a viu sombria e triste como ela é, viu-a pelo contrário alegre de prazer, de luxo e de representação, como ela se torna para aqueles que a fortuna colocou no grau de respirarem ali o ar da sociedade distinta.

Diferentemente do que acontece em França no que diz respeito a normas de etiqueta, aqueLas que regem esta sociedade são um pouco mais severas do que em outros países: a crítica e a censura perseguem muito de perto qualquer senhora estrangeira que não possa apresentar-se ali numa posição completamente definida. Era esta a razão pela qual a senhora Danglars não se dirigira a Londres quando saiu de Paris.

Ela temia três perguntas a seu respeito, e ainda mais do que as perguntas, três respostas, que os críticos e os censores forçosamente haviam de procurar noite e dia.

- Era casada? Era viúva? Era solteira?

Ora, as respostas e as perguntas não eram tais que pudessem dar-se em plena sociedade.

A senhora Danglars conhecia bem o mundo e a sociedade dos diferentes países; por isso preferiu dirigir-se a Roma, onde, como vimos, se preparava para unir-se ao barão Danglars, depois de uma espécie de divórcio que durava havia quase dois anos.

O misterioso mancebo Servières que habitava no primeiro andar da estalagem Globo na via del Corso, tinha acabado de jantar e de desaparecer para ceder o seu lugar a uma senhora de magnífica presença, vestida com elegância, a qual não era outra senão a interessante baronesa Danglars.

Mestre Pastrini não sabia desta metamorfose, pois quando fazia servir o jantar encontrava a sala deserta, acontecendo o mesmo quando ia levantar o serviço. Portanto, habituado já a esse género de vida, nunca perguntava pelo seu hóspede; além disso, ele pagava bem e sem a menor dificuldade, por consequência, mestre Pastrini, apesar dos estranhos bóatos que circulavam a respeito de Servières, limitava-se a dizer que o tempo havia de esclarecer todo aquele mistério.

A senhora Danglars estava pois à espera da visita de seu marido, a qual lhe fora anunciada pelo conde de Monte cristo, quando ouviu a voz de Pastrini dizendo da parte de fora da sala:

- Signor, signor...

- Che cosa? -  perguntou a senhora Danglars, engrossando a voz e dando-lhe a inflexão própria da pronúncia italiana.

- Perme sso?

- Entra.

Mestre Pastrini que fazia sempre aquela pergunta e obtinha em resposta uma negativa formal, ficou deveras surpreendido por ver que a barreira até àquele momento interdita à sua curiosidade se tinha quebrado finalmente e, abrindo a porta rapidamente, apresentou-se, mergulhando em toda a sala o seu olhar inquieto e perspicaz.

“Sangue de Cristo!” disse ele para consigo, notando a presença da senhora Danglars. “O tal Servières tem lindas jóias no seu quarto. Aquilo talvez seja alguma irritante para os seus momentos de mortal apatia!”

- Que é isso, mestre Pastrini, que deseja?

- Signora, eu procurava... -  disse ele, olhando espantado em volta de si.

Mas a senhora Danglars interrompeu-o:

- O senhor de Servières saiu, mas se quer anunciar alguma visita, pode fazê-lo.

“Será isto obra de feitiço?” pensou Pastrini. “A voz desta dama é muito parecida com a de Servières.”

- Então?

- Queira ver este bilhete...

E Pastrini estendeu o braço para evitar aproximar-se da senhora Danglars.

A baronesa pegou no bilhete e leu: “O secretário do senhor conde de Monte Cristo.”

Fez um pequeno movimento de surpresa, e logo depois um sinal com a mão a mestre Pastrini, o qual saiu imediatamente.

Enquanto isto se passava no andar superior, na sala de entrada da estalagem estava um homem que parecia esperar alguém. Peppino, que andava sempre ali a farejar notícias, viu-o e, tirando imediatamente o chapéu, foi colocar-se na sua passagem com a cabeça inclinada para o peito.

- Signor! -  disse ele, quando Benedetto passava.

- Ah, é você, Peppino? Que deseja?

- Receber as suas ordens.

Benedetto deu uns passos na sala sem lhe responder, depois parou em frente dele e disse-lhe:

- Para serviço do senhor conde, preciso de uma carruagem com bons cavalos, dentro de meia hora. Ficará estacionada a pequena distância da estalagem e será escusado recomendar-lhe que o cocheiro deve ser discreto.

- Como um mudo e um surdo! -  disse Peppino. -  Eu sei como Sua Excelência gosta de ser servido!

- Espere! -  ordenou Benedetto. -  Conhece algum capitão de navios?

Peppino sorriu.

- Bem sei que conhece muitos -  atalhou Benedetto imediatamente. -  Sua Excelência tem-me dito que você é homem quase universal. Pois bem, preciso de um pequeno lugre ou iate, que possa navegar para...

- Para a ilha de Monte Cristo, aposto! -  exclamou Peppino em ar de triunfo.

Benedetto franziu o sobrolho, respondendo depois como se compreendesse bem o assunto de que lhe falavam por acaso.

- Acertou, Peppino.

- Descanse, signor. Conheço alguns homens que não terão dúvida em servir Sua Excelência, antes se mostrarão muito satisfeitos pela honra que recebem.

- Portanto, bastaria acrescentar que o navio deve estar pronto a fazer-se de vela ao primeiro sinal, de amanhã em diante.

- Compreendo, signor. Corro ao porto e esta noite lhe levarei o nome do capitão...

- Aonde? -  perguntou Benedetto com um sorriso, como se quisesse dizer-lhe “não sabe aonde”, ao que Peppino de novo se inclinou em sinal de esperar a indicação do lugar.

Benedetto aproximou-se dele, disse-lhe umas palavras ao ouvido e ele partiu.

Neste momento apareceu mestre Pastrini.

- Per la madona! -  exclamou o italiano, amachucando nas mãos o seu barrete de peles. -  Declaro-lhe que vi com os meus olhos o senhor Servières, a quem o senhor procura, transformado em mulher.

- ÉS um visionário, mestre Pastrini! -  respondeu-lhe Benedetto em tom de escárnio.

- Signor, juro-lhe que se admirará tanto como eu próprio...

- Ora adeus, o meu caro amigo é teimoso! - retorquiu Benedetto, passando pela frente dele a fim de se dirigir aos aposentos da senhora Danglars, a qual, sentada com toda a graça num divã, esperava o secretário de Sua Excelência, tendo com-posto, para recebê-lo, um dos seus mais adoráveis sorrisos.

Benedetto entrou com desembaraço, depois inclinando-se diante da baronesa em sinal de profundo respeito, disse-lhe:

- Tenho a honra de cumprimentar a senhora baronesa Danglars.

- Jesus! -  bradou ela no momento em que nos seus lindos lábios se desenhava um sorriso motejador.

Por momentos a baronesa permaneceu extática, ainda mais pálida do que habitualmente, e com o olhar cravado naquele homem que a fatalidade parecia trazer ali para a fazer sofrer.

- Senhora baronesa - disse Benedetto, fingindo não prestar atenção à surpresa da sua interlocutora -  há bastante tempo que não tinha o prazer de cumprimentá-la. Como tem passado?

- Perdão, senhor! -  balbuciou a baronesa. -  Tinham-me anunciado outra pessoa e por isso me causa certa surpresa.

- Não, minha senhora, a pessoa que lhe anunciaram sou eu mesmo.

- O senhor é o secretário do conde de Monte Cristo?

- Talvez.

- Todavia, é o senhor Andréa Cavalcanti - continuou a baronesa, fazendo-se lívida como um cadáver.

- Também sou Andréa Cavalcanti, como diz -  respondeu Benedetto com audácia, notando sem assombro que a baronesa cobria o rosto com as mãos. -  Sou Andréa Cavalcanti, que esteve prestes a casar com a sua varonil filha Eugénia Danglars, a qual fugiu de casa na noite em que deveria assinar-se o contrato, interrompido pela chegada do comissário da polícia que ia prender Andréa Cavalcanti, fugido das galés de Toulon.

- Então, senhor - disse a baronesa depois de breve silêncio -  espero que tenha feito conhecer o engano do comissário?

- Não era possível, minha senhora, porque eu tinha com efeito fugido da calceta -  respondeu ele com incrível descaramento. - Além disso, tinha assassinado um homem às portas do palácio que o conde de Monte Cristo ocupava nos Campos Elíseos, em Paris. Como tudo isto pesava sobre mim, eu devia ser guilhotinado.

- Com efeito, senhor, não o compreendo! -  Não duvido, senhora baronesa...

- Mas o que pretende de mim? -  inquiriu ela visivelmente contrariada.

Quero repetir-lhe o que tive o gosto de dizer‑lhe por escrito, isto é, que o barão Danglars virá hoje aqui.

- Oh, meu Deus! -  exclamou a baronesa, levantando-se como impelida por um pensamento oculto. -  Confesse-me francamente, o senhor não é secretário do conde de Monte Cristo!

- Porquê?

- Porque o conde não tomaria para seu secretário um homem fugido das galés e acusado de um assassínio, desmascarado por ele mesmo em frente de numerosa assembleia, naquela noite terrível. Meu Deus, meu Deus! Que fatalidade pesa também sobre o senhor, Benedetto?

- Como sabe que me chamo Benedetto? - bradou ele.

- Nem eu própria o sei, não me recordo de como foi que o soube; porém, o senhor chama-se Benedetto e tem sofrido muito, não é verdade?

- Senhora baronesa, o estado de perturbação em que a vejo é muito singular! Que lhe importa o que tenho padecido? Falei-lhe acaso desses sofrimentos?

- Não, porém creio que quando por acaso encontramos uma pessoa que parece condoer-se de nós, em vez de nos recriminar, não lhe respondemos com a frieza que o senhor mostra.

- E quando foi que lhe pedi que tomasse parte na minha dor? Para que falamos deste modo, quando o assunto que me conduz aqui é bem diferente?

- O assunto que o conduz aqui! -  repetiu a baronesa com amargura. -  Julga acaso que o ignoro, acreditando por mais tempo num embuste astucioso de que lançou mão para descobrir o que lhe convinha a meu respeito? Não, não acredito que seja secretário do conde, mas sim que é o que sempre foi...

- Então o que fui eu sempre? -  perguntou Benedetto estupefacto, notando que ela usava de uma reticência.

- Desgraçado ao último ponto! -  murmurou a baronesa, fazendo esforços para conter as lágrimas.

- E qual é o assunto que me conduz aqui? Disse que também o conhecia.

- É triste -  tornou a baronesa.

- Senhora...

- Veja como eu adivinho tudo. ultimamente alcançou a liberdade em Paris, mas... o senhor tem alguma coisa horrível a dizer-me, não é assim? perguntou a baronesa com a voz enfraquecida e sofrendo um abalo de nervos.

- Não compreendo o sentido da sua pergunta, senhora baronesa, e acho muito estranho tudo quanto me tem dito durante o último quarto de hora. Não tenho coisa alguma a revelar-lhe, e peço-lhe que me diga qual é o assunto da minha presença aqui, uma vez que disse conhecê-lo.

Dizendo isto, Benedetto introduziu a mão direita na algibeira interior do casaco. A baronesa estremeceu.

- Senhor Benedetto, a sua estrela é muito sombria! Se encontrasse uma pessoa que pudesse fazê-lo feliz, isto é, assegurar-lhe o futuro, abandonaria a vida errante que tem vivido até hoje?

- Oh, não existem dessas pessoas! A caridade é uma mentira irrisória ou uma impostura.

-  Não blasfeme.

- Tenho tido exemplos.

- Mas se o que lhe disse tivesse lugar, não por simples caridade, mas por um dever, suponhamos... Benedetto soltou uma gargalhada.

- Dever -  repetiu ele -  quem há no mundo que entenda o dever, que o entenda por inspiração? Senhora baronesa, não falemos disso. Sabe que a minha estrela é má, sê-lo-á assim até ao meu derradeiro momento. Filho da desgraça, votado à morte e ao inferno apenas aspirei a vida, o que poderei eu ser de bom na terra? O crime e o desespero foram os únicos padrinhos ao meu baptismo, e eu fui baptizado com sangue e lágrimas.

- Basta, basta! Por piedade, está a matar-me! - murmurou a baronesa, comprimindo o peito com as mãos e deixando-se cair sobre o sofá.

- As minhas palavras assustam-na? Isso é muito singular, porque me parecia mais animosa quando soube que tentava expor a sua filha Eugénia ao perigo de um rapto. Vamos, senhora, chegámos a um ponto que eu não tinha previsto quando pensei em vir aqui; entretanto, conversemos mais alguns momentos, porque também serei breve. Benedetto tirou do bolso um manuscrito e apresentou-o à baronesa.

- Poderá fazer-me a honra de assinar este papel?

- O que significa ele? -  perguntou a baronesa

com a voz bastante agitada.

- Uma coisa muito simples. É uma ordem pagável à vista sobre o seu banqueiro, quem quer que ele seja, na quantia de três milhões de francos.

- Com que direito o exige?

- Nenhum.

- Então posso recusar.

- Matá-la-ei -  respondeu Benedetto com frieza,

apontando um punhal ao peito da baronesa e sentando-se com rapidez ao lado dela. -  Este ferro está envenenado, e a mais pequena ferida que ele lhe

faça bastará para matá-la no curto espaço de cinco

minutos.

- Mas não terá a minha assinatura - disse a senhora Danglars, fazendo um esforço sobre si mesma e mostrando na imobilidade do gesto os

sinais da mais completa resignação.

- É o mesmo, roubarei tudo quanto encontrar na secretária.

Houve um momento de silêncio.

- Senhor Benedetto, eu não tenho banqueiro nem possuo o crédito de três milhões de francos.

Estou pobre e creia que de modo algum poderei assinar esse papel sem iludi-lo.

- Histórias, baronesa. Quando o seu marido a abandonou, deixou-lhe milhão e meio, o seu génio empreendedor soube dobrar o capital, e hoje deve possuir três milhões de francos. Bem vê que sei tudo e advirto-a de que tenho pressa. Assine e reconcilie-se depois com o barão, porque está riquíssimo.

- Não posso assinar -  murmurou ela.

- Quer então morrer? A senhora bem sabe que mais um crime não me pesará na consciência!

- Esse seria um crime que ofuscaria todos os outros! -  murmurou a baronesa, dando livre curso às lágrimas que lhe corriam pelo rosto. -  Benedetto, se tal fizesse seria preso, justiçado...

- Está enganada, senhora! O barão não tardará aí, e enquanto espera que o mande entrar, eu retiro-me e partirei imediatamente numa carruagem que estará à minha espera. Entretanto, impaciente pela demora, ele virá até aqui e deparará com o seu cadáver ensanguentado, o qual o deixará horrorizado. Nesse instante entrará nesta sala um funcionário da polícia para o prender, acusando-o de ser o seu assassino. Como vê sou previdente, baronesa. Agora assine, senhora, pois já perdi muito tempo.

- Oh, meu Deus! Meu Deus! Perdão...

- É inútil, assine.

- Benedetto, este roubo é outro crime que vai praticar, mas oxalá que depois dele consumado, entre no caminho da razão! Vou dar-lhe tudo quanto possuo, ficarei pobre e terei de pedir esmola a meu marido ou a minha filha. Calcule quanto isto me custará. Para que tal não suceda, deixe-me ao menos os sessenta mil francos que o procurador-régio lhe entregou em Paris.

Benedetto estremeceu, mas incapaz de um sentimento de gratidão, respondeu:

Como a caridade moveu quem me entregou este dinheiro e levou a semelhante dádiva anónima, acreditando que o fez mais por capricho do que por caridade, estou disposto a retribuir-lhe esse dinheiro como se pagasse uma dívida.

- Pois bem, aqui tem as chaves da minha secretária. Roube-me, talvez um dia se arrependa!

- Eu? Quem é a senhora para assim falar? -  exclamou Benedetto com um sorriso de escárnio. -  Quando até hoje não entrou em mim a menor sombra de arrependimento, espera a senhora despertar-mo? A senhora, uma mulher tão vulgar, que talvez não seja estranha a trapaças nem a crimes? Se tem paixões criminosas, como por exemplo o orgulho, a indigência que em breve a alcançará, será um castigo; e se na sua vida passada cometeu um crime, o que eu hoje cometo, é uma retribuição razoável em nome daqueles que foram suas vítimas. Vamos, baronesa, venha a senhora mesma abrir a secretária, porque algumas há que dependem de segredo, não desfeche ela quatro tiros sobre quem a abrir.

A baronesa, trémula, arquejante e lívida, caminhou para a secretária, abriu-a e patenteou aos olhos de Benedetto grande quantidade de dinheiro em papel e oiro. Momentos depois todo esse dinheiro se encontrava nas algibeiras do assassino e a baronesa apenas possuía os sessenta mil francos que em Paris havia enviado ao senhor Beauchamp, para entregar a Benedetto quando este estava preso.

- Agora, mate-me! -  disse ela. -  Porque adivinho que é isso que acontecerá.

- Longe de mim semelhante ideia neste momento; porém, já que é tão amiga de fazer vontades, dê-me o braço e acompanhe-me à sala imediata, onde a estas horas deve estar o seu marido, o senhor barão Danglars.

Soaram seis horas.

- Com efeito, não me enganei. Vamos, senhora baronesa, se se lembrar de me acusar quando sair daqui, reflicta que além de fazer triste figura, ninguém a acreditará, porque não é o jovem Servières, doente, que viaja para se distrair e que reside nestes aposentos. Ora esse moço é uma pura ficção, e esse género de ficções são em extremo ridículas para uma senhora.

A baronesa caiu de joelhos e exclamou:

- Deixe-me ficar aqui, não me constranja por mais tempo! Fuja, desgraçado! Retire-se, porque eu juro-lhe por Deus que não soltarei o menor grito contra o senhor. Vá, e o céu permita que esse dinheiro possa fazer de si um homem de bem!

Neste momento ouviu-se a voz de mestre Pastrini, do lado de fora, anunciar o senhor barão Danglars.

A baronesa soltou um suspiro e Benedetto saiu ràpidamente da sala. No caminho encontrou-se com o barão que pretendeu detê-lo para lhe falar; porém ele disse-lhe que não tinha um minuto a perder, pois ia arrendar em nome da baronesa um dos palácios da via del Popolo, onde ela pretendia dar um baile.

- Recomendo-lhe silêncio, senhor barão, e felicito-o desde já pela felicidade que o espera. A baronesa está riquíssima. Que belos negócios fará o barão com tal capitalista!

- Com os diabos! Que papel representa o senhor junto dela? -  perguntou o barão um pouco inquieto.

Benedetto não respondeu; apertou-lhe a mão e afastou-se ràpidamente, enquanto o barão se encaminhava para o interior da estalagem. Depois vendo uma carruagem parada a certa distância, fez sinal ao cocheiro, saltou para dentro e partiu.

 

Capítulo 15

Mulher e marido

O barão Danglars voltou ainda uma vez a cabeça achatada como a da raposa, a fim de dizer qualquer coisa a Benedetto mas o miserável descendo os degraus da escada a quatro e quatro, acabou por se deixar escorregar pelo corrimão e desapareceu com rapidez, sem lhe dar tempo de completar o sentido de qualquer frase. Vendo-se só, Danglars começou a caminhar para o quarto da baronesa, a cuja porta encontrou mestre Pastrini, a quem perguntou:

- Já anunciou a minha visita?

- Vossa excelência quer sem dúvida dizer se já anunciei o seu nome? - respondeu o italiano.

- Não façamos questão de palavras, mestre estalajadeiro -  observou Danglars, com um gesto de aristocrata ofendido.

- Perdão, excelentíssimo, porém a causa não é tão insignificante como parece. Para eu ter a honra de anunciar a sua visita, devia ser expressamente a alguém...

- E então?

- Esse alguém é quem falta!

- Como?

- Creio que Vossa excelência procura o meu hóspede, não é assim?

O barão fez um movimento.

- O senhor de Servières?

- Está doido, mestre estalajadeiro? O nome de Servières deve pertencer a uma senhora, pois eu conheço bem essa família e sei que não existe nenhum descendente varão. É essa senhora que procuro.

Mestre Pastrini abanou a cabeça e retorquiu: - Porém essa senhora não reside na minha casa.

Estes aposentos são ocupados por um cavalheiro da família Servières, e creio que a senhora é visita dele, pois apenas aqui está desde esta manhã.

- Repito-lhe que está doido e doido varrido! O nome de Servières não pode pertencer actualmente a nenhum homem, e a senhora que eu procuro é sua hóspeda. É uma senhora muito agradável - continuou o barão compondo um sorriso de satisfação, a fim de se apresentar à baronesa. -  Vamos, mestre Pastrini, deixe-me entrar.

- Sangue de Cristo! - bradou Pastrini, ousando deter o barão. - Mais uma palavra, excelentíssimo.

O barão lançou-lhe um olhar colérico que parecia querer dizer: “COM que direito embarga o passo dum marido à porta dos aposentos de sua mulher?” Porém conteve o seu despeito e exclamou:

- Fale, mas seja breve!

- Senhor barão, V. Ex.a tem a certeza de que a senhora em questão é positivamente uma mulher?

- Pois não hei-de saber isso?— exclamou o barão.

- Senhor - murmurou Pastrini empalidecendo. - Atrevo-me a dar-lhe um conselho: não entre!

- Porquê?

- Porque o meu hóspede não pode ser boa pessoa.

- Que diabo diz você?

- Tem relações com um homem que conserva dentro dum cofre a mão de um finado.

O barão sobressaltou-se, mau grado seu, inquirindo:

- Quem é esse homem?

- Dizem ser bruxo e a senhora sua cúmplice! - Ora, mestre estalajadeiro, parece que chegou há pouco da aldeia para acreditar nisso.

- Que quer, excelentíssimo? Nós vemos coisas tão estranhas, que não nos podemos esquivar a certas crendices antigas. Juro-lhe que este quarto estará devoluto amanhã por estas horas, ou eu não me chamo Pastrini.

O barão encolheu os ombros, transpôs a porta e, atravessando a primeira sala, encontrou-se nos aposentos da baronesa.

A senhora Danglars ocupava-se em compor uma das suas lindas madeixas de cabelo em frente dum grande espelho, e na sua fisionomia ninguém teria podido notar o menor indício da comoção que lhe agitara o peito meia hora antes. Os olhos, negros e cintilantes, fechados debaixo de uma só ruga em que se lhe desenhavam as sobrancelhas, expressavam a firmeza de carácter mais própria das mulheres romanas do que das francesas. Os lábios, cerrados com altivez, não deixavam fugir daquele peito agitado pela dor o menor gemido de angústia; finalmente, os braços firmes, as mãos ágeis e flexíveis, acabavam de constituir a senhora de Servières, baronesa Danglars, como ela sempre tinha sido aos olhos do mundo, isto é, firme de carácter, altiva e nobre.

Antes que o barão pudesse ver-lhe o rosto, já ela o tinha visto a ele, pois a sua figura reproduzia-se no espelho, e a senhora Danglars notou o modo acanhado com que o marido se apresentava, apesar dele fazer um grande esforço para o vencer.

Acabando de compor o cabelo, a baronesa dirigiu-se para a secretária, a fim de pôr em ordem algumas coisas, e finalmente voltou-se.

- Ah, estava aí, senhor!? -  exclamou ela, como se não tivesse visto o marido apenas desde o dia antecedente. -  Dir-se-á que se dispõe a sair de novo, pois, segundo me parece, nem sequer olhou ainda para uma cadeira.

Estas palavras produziram o efeito desejado. O barão, animando-se, avançou alguns passos e foi sentar-se em frente do sofá.

- Hoje faz bastante frio! -  murmurou ele, apertando a sobrecasaca sobre o peito.

- Não tive ainda tempo de reparar em semelhante coisa! Creio que a acção de escrever e de pensar aquece-nos sobremaneira!

- Tem então escrito muito?

- Acabei há pouco não sei se oito ou nove cartas para diferentes praças, exigindo numas a remessa dos meus capitais e noutras o andamento de certos negócios.

Um copioso suor inundou imediatamente a fronte do barão.

- Não sei como pode passar sem uma dessas máquinas de escrever a que chamam secretários, senhora baronesa.

- Desde que vivo só, não gosto de coisas de que possa desconfiar um só momento, senhor barão.

Seguiu-se um profundo silêncio. Foi a baronesa que o quebrou, perguntando:

- Teve a gentileza de vir cumprimentar-me. Poderei acaso ser-lhe útil em alguma coisa?

- Minha senhora, julga-me de tal modo interesseiro?

- Não admira isso -  tornou ela, rindo. -  Um banqueiro, perdão, não sei se continua em Roma o seu ofício de Paris; todavia, creio que os seus seis milhões não terão existido guardados num mealheiro. Ah, a propósito de Paris! Nunca mais lá voltou? Gostava tanto daquela cidade!

- Negócios importantes têm-me retido em Roma

- respondeu o barão, mastigando muito as palavras.

- Creio que o clima da Itália lhe é favorável -  continuou ela.

- Passava melhor em França, porém agora tenho a certeza de me sentir bem em Roma, se a baronesa tenciona demorar-se.

- Oh, não! Vou para Civita Vecchia -  respondeu

logo a baronesa, fingindo não ter percebido o sentido das palavras do barão, que suspirou tristemente.

- Tem hábitos novos, senhor barão! Em Paris nunca o ouvi suspirar.

- Então, minha senhora, eu em Paris não sofria.

- E sofre em Roma? Não há cá bons médicos? Creio que a Itália é mais fecunda em cantores.

- Minha senhora, o meu mal é superior à inteligência de quantos médicos existem não só em Roma, como em todas as cidades da Europa -  disse o barão Danglars carregando muito nas palavras, como para chamar sobre elas a atenção da baronesa.

Esta perguntou:

- Então qual é o seu mal? Nervoso, talvez? É a doença dos nossos dias.

- Nervoso, sim, minha senhora - respondeu ele. - O excesso das sensações produz essa doença que denominam de um modo demasiado vago.

- Oh! Isso agora é mais sério, barão. Tem sensações excessivas... É mau.

- Faça ideia, a saudade - disse Danglars, acompanhando as palavras com um dos seus mais profundos suspiros.

A baronesa franziu o sobrolho, como se lhe tivessem dito uma coisa fora do alcance da sua inteligência.

- A saudade? -  repetiu ela. -  Saudade de quê?

- Oh, senhora baronesa, saudade de quê!? - Perdeu acaso alguns fundos?

- Perdi mais do que isso.

- Parece-me que não compreendo. Foi alguma jóia de grande valor e estimação?

- Ainda mais.

- Então não sei.

- Perdi, quero dizer que tive um tempo em que perdi...

- Acabe.

- Perdi-a, minha senhora - disse por fim o barão, fazendo um gesto tão desastrado, que fez rir a baronesa.

- Sim? -  retorquiu ela. - E não soube mandar pôr editais? Creio que sempre esperou tudo do tempo e da paciência.

- Oh, sim, esperei tudo! É um anjo! Descendo um pouco mais à terra, é uma mulher como há poucas, e a sua inteligência toca as raias do maravilhoso.

- O barão é um homem muito amável - disse ela. -  Sabe que estou a gostar de conversar com o senhor?

- Muito bem. Disse-me que tencionava partir para Civita-Vecchia?

- Talvez o dissesse, porém já não tenho ânimo. Viajar só é tão triste!

- É verdade, baronesa, é muito triste. Eu aborreço tudo quanto é isolamento, e uma vez que por este modo ajustamos o nosso gosto, levo a ousadia ao ponto de lhe oferecer uma companhia.

- Isso é tão vago!

- Ofereço-lhe a minha.

- Deveras? É encantador! Aceito-a, barão, aceito-a com prazer.

- Oh, baronesa! -  exclamou ele levantando-se e abrindo os braços, como se pretendesse abraçá-la.

Ela fez o mesmo: porém, detendo-se imediatamente, recuou um passo e tornou a sentar-se com todo o sossego.

Este esfriamento foi como que uma punhalada para o barão, que se julgava já a abraçar nada menos de três milhões de francos.

- Espere, senhor - disse a baronesa com imperturbável sangue-frio. -  Se o sentimento da saudade

lhe produzia tão forte sensação como a que me

confessou, eu sofro neste momento outra não menos

poderosa que a sua. É produzida pela recordação

de um facto passado, o simples facto de uma carta.

Estas palavras eram uma espécie de estocada seca e imprevista, que o barão não pôde evitar, empalidecendo de súbito.

- Logo que saiu de Paris, recebi uma carta com a sua assinatura, a qual continha palavras muito estranhas de que talvez se recorde.

- Não tenho ideia nenhuma.

- Ainda conservo essa carta.

Dizendo isto, tirou da algibeira uma carteirinha de marfim e dela uma carta, dispondo-se para a ler em voz alta.

- Esta carta faz-me duvidar de muitas coisas, e entre elas, da sua existência, barão. Ora oiça:

Minha senhora e muito fiel esposa:

Quando receber esta carta já não terá marido. Oh, não se admire! Não terá marido como também já não tem filha, quero dizer, nessa altura seguirei por uma das trinta ou quarenta estradas que conduzem para fora da França. Devo-lhe explicações, e como é wma mulher que as saberá compreender perfeitamente, dar-lhas-ei. Esta manhã apareceu-me um saque de cinco milhões: paguei. Em seguida veio outro da mesma importância e então pedi espera para amanhã. Hoje parto para evitar o dia de amanhã, que me será muito desagradável. Compreende isto, não é verdade, minha senhora e muito preciosa esposa? Eu digo: A senhora compreende, porque conhece os meus negócios melhor do que eu próprio, atendendo a que, se me perguntassem onde se tem sumido uma boa parte da minha fortuna, não saberia dizê-lo, ao passo que, pelo contrário, a senhora, estou certo, sabê-lo-ia perfeitamente, pois as mulheres têm instintos duma segurança infalível e explicam a si próprias até os mais maravilhosos projectos por meio de uma álgebra de que são inventoras. Eu, que não conhecia senão os meus algarismos, confesso-lhe, minha querida amiga, que fiquei sem saber nada desde o dia em que esses algarismos me enganaram.

Tem por acaso pensado na rapidez da minha queda? Não a acha admirável, minha senhora? Não foi um pouco ofuscada pela incessante fusão do meu numerário? Eu, confesso, não vi mais que o fogo; espero, no entanto, que a senhora tenha encontrado algum oiro nas cinzas. É com esta consoladora esperança que me afasto, 'minha senhora e muito prudente esposa, sem que a minha consciência me reprove esse passo. Ficam-lhe por amigas as cinzas em questão, e, para cúmulo da ventura, a liberdade, que me apresso em restituir-lhe. Enquanto supus que trabalhava pelo bem-estar da nossa casa, pelo futuro de nossa filha, fechei filosoficamente os olhos; mas como fez da casa uma vasta ruína, não quero servir de alicerce à riqueza alheia. Aceitei-a rica, mas pouco honrada. Perdoe-me falar-lhe com esta franqueza, mas como provavelmente estas palavras serão somente do nosso conhecimento, não vejo razão para dar às minhas palavras outro colorido.

Aumentei os nossos bens, que durante quinze anos prosperaram consideràvelmente, até ao momento em que catástrofes desconhecidas ainda para mim os derrubaram, sem que eu possa acusar-me de ter contribuído para isso. Ao mesmo tempo, a senhora trabalhava, tão somente para aumentar a sua fortuna, coisa que sem dúvida conseguiu, estou moralmente convencido disso. Deixo-a pois como a encontrei: rica, mas pouco honrada. Adeus. Também eu quero, de hoje em diante, trabalhar por minha conta. Creia no meu reconhecimento pelo exemplo que me deu e que vou seguir.

Seu marido dedicado

Barão Danglars

 

Durante a leitura desta carta, o barão mudou de cor repetidas vezes e, por instinto, olhou duas ou três para a carta.

A baronesa não despregava o olhar fino e penetrante do rosto do marido, o qual começava a compreender quão ridícula era a figura que fazia ali. Com a confusão e o embaraço do antigo capitalista, a baronesa saboreava lentamente a sua vingança.

- Senhor barão - inquiriu ela. -  Como, sendo eu pouco honrada, segundo a sua confissão, se oferece para me acompanhar?

- Baronesa -  replicou ele procurando um sorriso rebelde na extremidade dos lábios roliços e denegridos - acredite que essa carta foi simplesmente filha de um terrível momento de alucinação. Eu via-me perdido, e a baronesa que é, como já tive o gosto de dizer, muito superior em inteligência ao vulgar das mulheres, deveria ter compreendido isso.

- Desejaria então que eu lhe perdoasse a loucura desta carta? -  perguntou ela.

- Minha senhora, confesso-lhe que é esse o meu mais ardente desejo! -  exclamou o barão, sentindo entrar-lhe no peito um novo raio de esperança.

- Poderei acreditá-lo?

- Pode, baronesa. Ofendi-a, peço-lhe perdão -  tornou Danglars, pondo um joelho na alcatifa e curvando a fronte calva quase aos pés de sua mulher.

A senhora Danglars, que parecia ter gozado o seu maior triunfo, soltou uma gargalhada estridente, cujo eco vibrou por muito tempo nos ouvi-dos do barão.

- Homem vil e desprezível! — bradou a baronesa. -  Eis-te finalmente rastejando a meus pés, solicitando-me com os teus lábios imundos o perdão das tuas grosseiras palavras! Mas eu não te perdoo, porque também sou culpada. Levanta-te, miserável! A tua riqueza está acabada e aniquilada para sempre na terra. Vejo que não tens um real, porque solicitas unires-te comigo supondo que eu possuo ainda os fundos que me deixaste em Paris. Estou pobre, e de hoje em diante só poderei antever um futuro de mediocridade, ou antes, de completa miséria! Vai-te, barão Danglars, pois ainda que assim não fosse nunca te conviria a mulher que te desonrou e a quem abandonaste. Não te recrimino por esse abandono, porém escarneço-te pelo procedimento de hoje, o qual me revela que não existe em ti o menor sentimento de pondunor e probidade!

E a baronesa soltou uma nova gargalhada convulsa e delirante. o barão estava aniquilado.

- Um Deus ou um homem jurou a total ruína da tua casa, desmoronou-a pedra por pedra - continuou ela, em cujo olhar ardente mas variado, parecia transluzir o fogo de um súbito e terrível delírio. -  Um Deus ou um homem jurou a minha vergonha, a minha miséria, e eu vejo a miséria! Retira-te, Danglars, porque os nossos hálitos envenenam-nos mutuamente, como se se combinassem para produzir no ar um veneno horrível... Ah, miséria, miséria! Com todos os teus horrores e aviltamentos, tu descobres um fantasma pálido e ameaçador, que a opulência oculta a meus olhos! o remorso... é o remorso!

A baronesa ocultou o rosto nas mãos e assim permaneceu por muito tempo, de pé, com o corpo inclinado para trás e a cabeça descaída sobre as espáduas. Quando voltou a si, tinha as forças animadas pelo triste vermelho febril dos alienados. Lançando um olhar pelo aposento, demorando a vista em cada objecto como para se orientar,  caminhou para a sua secretária, onde se sentou solenemente, juntando o dinheiro que Benedetto ali deixara.

O barão, aproveitando o estado de torpor em que sua mulher parecia ter caído, pegou no chapéu e saiu sem fazer o menor ruído.

 

CAPíTULO 16

O salteador romano e o ladrão parisiense

DEPOIS do roubo cometido por Benedetto, não restava à senhora Danglars senão uma vida de miséria.

Ela tinha apurado os seus fundos e guardava-os no firme propósito de os colocar em qualquer negócio, a fim de viver dos seus rendimentos; este objectivo estava pois destruído mesmo antes de se realizar, e agora via-se sem recurso algum, logo que lhe acabasse aquele que podiam oferecer-lhe os sessenta mil francos. A baronesa não era mulher para recorrer a sua filha, principalmente depois da visita que lhe fizera e, portanto, tomou o único partido que naquele momento se lhe podia oferecer, isto é, ofereceu uma pequena quantia a um convento pobre e pediu que a admitissem sobre as sacras abóbadas do claustro, na qualidade de recolhida provisória.

Ali, no silêncio e na solidão, viu ela todo o seu passado ruidoso e irregular; conhecendo os erros em que caíra, reconhecia no presente um dulcíssimo castigo desses erros. Tinha sido altiva e orgulhosa, e toda a sua altivez, todo o seu orgulho, estavam sepultados na humildade e na singeleza do claustro. Ali, vertia muitas lágrimas sobre o filho do seu adúltero amor de outrora, e das suas escandalosas relações com o senhor de Villefort, filho do crime e da corrupção, a quem o céu parecia ter recusado a bênção no mundo, como os pais lha haviam recusado. O futuro desse rapaz fazia-a estremecer, e ela, pressentindo talvez o fim daquela existência criminosa e agitada, perguntava a si própria, ao claustro, a Deus, se teria de se arrastar de miséria em miséria, de ir recolher aos pés de um cadafalso, a cabeça decepada de um infeliz a quem dera o ser e a desgraça!

O barão Danglars não tornou a encontrar Benedetto, apesar de ter feito todas as diligências.

O ladrão, ajudado pelo poder que dá quase três milhões de francos, soube de tal modo subtrair-se às pesquisas do barão, que este teve de conformar-se com a ideia de solicitar novamente o seu emprego de porteiro do Teatro Argentino, com o pensamento na única tábua de salvação que se lhe oferecia, isto é, a generosidade de Eugénia d'Armilly.

Agora senhor dos três milhões de francos roubados à baronesa Danglars, Benedetto não parou no seu caminho de crimes, antes concebeu novo atentado, para o qual começou a trabalhar. Tendo conhecimento de elevado prémio que o governo oferecia pela cabeça do célebre salteador Luigi Vampa, cujo esconderijo era ignorado, e que assolava com incrível audácia os arrabaldes de Roma, dispôs-se a fazer uma misteriosa visita ao comissário da polícia. Porém, reflectindo melhor no caso e vendo que a baronesa Danglars o não fazia perseguir, talvez por lhe haver perdido o rasto, ordenou a Peppino que fizesse esperar o navio mais alguns dias, esperando ele também uma ocasião oportuna para trabalhar sem perigo.

A entrevista ajustada no Coliseu tinha-se realizado e Luigi Vampa acreditou, como Peppino, que Benedetto era secretário do conde de Monte Cristo.

Todavia, o modo como Benedetto falava desse homem, ao qual um destino fatal o havia ligado, influiu tanto no salteador que, a pouco e pouco, foi quebrando o prestígio do conde entre aquela gente extremamente supersticiosa, apesar do seu terrível modo de vida.

Benedetto atreveu-se a dar a conhecer ao salteador, o ardente desejo que tinha de se livrar do poder do conde de Monte Cristo, apoderando-se de alguns importantes segredos que ele possuía nas artes nigromânticas. De tal modo o fez, que Luigi Vampa começou a pensar muito seriamente nas conveniências que lhe resultariam ser ele a submeter o conde à sua vontade, em vez de ser ele submetido à vontade do conde.

Vampa era ambicioso como todos os ladrões da sua espécie e as cinzas de Monte Cristo começavam a fazer-lhe inveja. Deste modo a conspiração não tardou a desenvolver-se, dirigida pela embusteira imaginação de Benedetto.

- O poder do conde está na minha mão -  dizia ele a Luigi Vampa e a Peppino. -  A mão do finado é que lhe indicou o segredo do caminho que o conduziu às suas minas de inesgotáveis tesouros. Eu deveria partir de Roma para ir entregar ao conde, meu senhor, o precioso cofre que lhe tinha sido roubado; porém, se me ajudarem, ficarei em Roma e trabalharei para o interesse geral.

Vampa e Peppino aprovaram a proposta de Benedetto, o qual, pelo que eles disseram, soube que o conde de Monte Cristo estava no Oriente.

Entretanto, o filho de Villefort trabalhava para entregar à justiça o temível salteador romano, esperando a ocasião propícia de negociar esta pequena transacção com a justiça de Roma.

Benedetto observava com profunda admiração que o salteador, longe de se ocultar, aparecia com frequência nos espectáculos públicos, principalmente no teatro; concluindo disto que, ou Luigi vampa tinha grande confiança em si ou nos agentes da polícia. Logo, dando-se este segundo caso, que era o mais provável, seria preciso grande subtileza no trabalho da premeditada traição, a fim de que Luigi Vampa não fosse avisado por algum desses agentes, a quem ele sem dúvida fazia pagar com generosidade as diligências favoráveis à sua conservação.

Durante algumas noites em que acompanhou o salteador ao Teatro Argentino, Benedetto que lhe espiava todos os movimentos e gestos, notou que Vampa não era insensível aos encantos de Eugénia d'Armilly.

Com efeito, Luigi Vampa sentia-se fortemente impressionado com o aspecto varonil e arrogante da jovem d'Armilly; esta impressão transformou-se com rapidez num sentimento de tal natureza, que agitava de noite e de dia o coração do bandido, o qual devorado pelo fogo enérgico do seu carácter audaz, empreendeu possuir ainda que por momentos, essa mulher que o fascinava.

Um sorriso de triunfo errou nos lábios de Benedetto, quando reconheceu no olhar incendiado de Luigi Vampa, a paixão que o dominava.

Foi então que o espiou nos seus menores movimentos, seguindo-o por toda a parte, passo a passo, até que ao fim de alguns dias o viu entrar numa casa de aparência modesta, onde habitava a velha que favorecia as antigas metamorfoses do suposto Servières. Depois de indagar quem era essa mulher, Benedetto compreendeu sem a menor dificuldade, o objecto das visitas de Luigi Vampa. Combinando em seguida todas as suas ideias, adoptou um plano que passou de pronto a pôr em prática.

No dia seguinte, quando Benedetto se encontrou com Luigi Vampa, dirigiram-se para um café pouco frequentado e sentaram-se num recanto escuro, como dois homens que tinham de tratar de negócios e não queriam ser incomodados. Benedetto permaneceu um momento pensativo, depois disse:

- Sabe que acabo de encontrar em Roma uma francesa que fugiu com o pai de Paris, depois de roubarem um tal príncipe de Cavalcanti com quem estava para casar?

- E que tem isso? - perguntou Luigi Vampa.

- É porque não sabe de dois casos de suma importância em todo este negócio. o príncipe Cavalcanti era riquíssimo e o conde de Monte Cristo era muito amigo do príncipe, o qual está hoje desgraçado.

- Quer dizer, roubado?

- Está visto! -  tornou Benedetto.

- Pois bem, que me importa que o príncipe fosse riquíssimo e o conde amigo dele?

- Eu lhe explico, mestre - disse Benedetto com importância. -  Primeiro, sendo o príncipe de Cavalcanti riquíssimo, deve compreender que o roubo foi considerável! Segundo, sendo o conde muito amigo do príncipe, tinham-me dado o nome da mulher que a roubou, recomendando-me que a fizesse prender em qualquer lugar que a encontrasse, pois jurara reabilitar o pobre Cavalcanti. Agora, declaro-lhe que essa mulher está em Roma com o pai: e eu, em vez de recorrer à justiça dos tribunais para a acusar, venho propor-lhe este bico de obra.

- Como se chama a mulher? -  perguntou Luigi Vampa, em cuja fisionomia se notava um princípio de interesse.

- Oh! O nome - respondeu Benedetto tranquilamente — não é um nome plebeu e obscuro. Ela pertence à família de Servières por parte da mãe e à de Danglars por parte do pai, aquele célebre barão a quem roubou seis milhões de francos, por instrução do conde de Monte Cristo; finalmente, chama-se Eugénia Danglars, e é conhecida em Roma por Eugénia d'Armilly.

A estas palavras, Luigi Vampa fez um involuntário movimento de surpresa, que tentou disfarçar depois com imobilidade do gesto e do corpo.

Benedetto fingiu não ter prestado a menor atenção ao movimento de Vampa e continuou:

- É nada menos do que a formosa cantora do Argentino que se apresenta ali com os seus modos de pomba, enganando bem o povo de Roma, não lhe parece?

_Engana-o em quê, vamos a saber? - disse Luigi Vampa.

- Oh! Em nada, mestre! -  tornou Benedetto. -  Eu queria simplesmente dizer que, ao vê-la, ninguém dirá ter ela sido capaz de conceber a ideia que concebeu e de a realizar com delicadeza e coragem,

Luigi Vampa permaneceu um momento em silêncio, depois perguntou:

- O que faz o pai? Disse-me que também estava em Roma.

- O pai é um refinadíssimo patife, capaz de tudo! Encontrei-o há dias durante um pequeno passeio que dei à cidadela do Aquapendente, perto da qual possui uma casa com um pequeno jardim.

- Vive em boas relações com a filha?

- Que lhe importa isso, mestre? - respondeu Benedetto.

- Essa é boa! -  respondeu o salteador, forçando um sorriso. - Você propôs-me um bico de obra e estranha que lhe peça esclarecimentos?

- Aceita a empresa?

- Explique-ma e veremos.

- Precisa de explicações? Pois bem, já que assim o quer, eu explico bem o negócio. Parece-me que devemos confiar um no outro. Você pode perder-me e desgraçar-me no momento em que se lembrasse de fazer contar ao conde, meu amo, o modo pouco fiel como o sirvo aqui em Roma, e eu poderia também agarrar-me a você e gritar bem alto: ecoe-homo! Todavia, nem você fará uma coisa nem eu a outra, pois nos entenderemos às mil maravilhas. Pois bem, o meu plano é de comum interesse para ambos.

- Diga.

- Está claro que, tendo Eugénia d'Armilly roubado o príncipe de Cavalcanti, com quem estava para casar, deve possuir hoje esse capital que não é pequeno; nesse caso, faz-se uma pequena violência sobre a liberdade dela e propõe-se-lhe o resgate equivalente ao que ela vale e depois faremos contas.

- Eugénia d'Armilly! -  exclamou Luigi Vampa inconsideradamente, batendo com o punho fechado sobre a mesa.

- Então? -  perguntou Benedetto.

- Quer trabalhar de acordo comigo? -  perguntou também Luigi Vampa.

- Quero.

- Muito bem - tornou ele, estendendo-lhe a mão. -  Amanhã, à mesma hora de hoje, no Coliseu.

- No Coliseu! -  repetiu Benedetto, apertando a mão de Vampa.

- Junto à quarta coluna do pórtico interior. -  Lá estarei.

- Vá só!

- Até amanhã, mestre!

Benedetto e Vampa que a este tempo já tinham saído do café, afastaram-se com rapidez, cada um por caminho oposto.

- Oh! -  murmurou Vampa, vendo-o afastar-se. -  Traíste a quem servias e trair-me-ás quando assim te convier. Terás pois o fim de traidor depois de me teres servido de degrau.

Esta terrível ameaça do salteador romano teria feito estremecer Benedetto, se ele houvesse notado o gesto determinado que a acompanhara.

 

CAPíTULO 17

A coroa

Os preconceitos das classes aristocráticas não convêm à imaginação livre de um artista qualquer, no qual existe um princípio de subida inspiração; portanto, um abismo existia entre Eugénia Danglars e sua mãe.

Eugénia nunca havia conhecido esse desvelo, esse carinho maternal, durante a sua educação, pelo qual a filha contrai para com sua mãe uma dívida ainda mais sagrada do que a do seu nascimento; desde muito criança que a palavra mãe lhe exprimia o ente que lhe havia dado o ser e nada mais. Logo, qual seria a força poderosa de simpatia que pudesse arrojá-la aos braços dessa mulher que a escarnecia no mais intenso dos votos da sua alma?

Eugénia desviou os olhos do passado, em cujas sombras se perdiam os dois entes que lhe haviam dado o ser, por uma simples lei de reprodução, e agora, ao lado da mulher a quem devia instrução e amizade, encarava risonha o futuro imenso que tinha diante de si e no qual lhe parecia distinguir ao longe, em letras de fogo, estas palavras: “Arte e Glória”.

Oito dias depois da conversa travada entre Luigi Vampa e Benedetto num café pouco frequentado, parecia haver em Eugénia d'Armilly um pensamento que lançava na sua fronte uma pequena nuvem de tristeza. Luísa, já por diversas vezes tinha notado que Eugénia, contra todos os seus costumes, procurava a solidão e o isolamento; nesses momentos, uma lágrima corria nas faces da cantora, como sinal evidente de um grande acontecimento misterioso na sua vida íntima, e Luísa em vão procurava extinguir essa lágrima com um beijo;  mas havia indiferença na outra, como para advertir a desinteressada amiga de Eugénia, que a causa  que a promovia não podia ser destruída pelos afagos e desvelos de uma mulher.

Numa das tardes em que Eugénia fugindo da companhia de Luísa se fora sentar triste e pensativa em frente da janela do seu quarto, olhando com desassossego os últimos raios de sol que pouco a pouco iam subindo no zimbório do majestoso edifício de S. Pedro, deixando em sombras a metrópole do mundo cristão, um pequeno gemido se lhe escapou do peito e duas lágrimas tremulavam-lhe nas espessas pestanas negras dos seus lindos olhos, como duas pérolas matutinas nas folhas de uma flor.

Luísa tinha entrado sem que Eugénia a sentisse e havia já alguns minutos que a contemplava com interesse, adivinhando-lhe nos gestos lânguidos o que já suspeitava desde alguns dias; aproximando-se dela, apoiou-se-lhe ligeiramente no ombro e deu-lhe um beijo na face, murmurando:

- Minha amiga...

- Luísa -  respondeu Eugénia sem sobressalto, mas corando.

- Eis-te finalmente respirando no ar da Itália o doce veneno de Corinna ou de Tasso, não é verdade, minha querida amiga? -  disse Luísa.

- Devo eu ter segredos contigo, Luísa? Quando chego a convencer-me de que não é simples ideologia quanto sinto!

- E faz-te mal esse sentimento que não é simples ideologia, porque ele é superior à tua vontade e lança uma nuvem triste sobre o teu rosto outrora animado e enérgico.

- Dizes a verdade, Luísa! Ele é superior à minha vontade, como eu fui superior a todos os outros sentimentos que poderiam dominar-me. Lembras-te quando eu zombava desses protestos loucos de um amor súbito e poderoso, cujas confissões se levantavam em volta de mim e de ti? Quando eu respondia com um sorriso incrédulo a quantos suspiros acompanhavam os olhares apaixonados que nos admiravam! Lembras-te desse tempo tão livre de pesares, em que a minha alma se julgava isenta do tributo a que todas são condenadas! Afinal de contas, sou como todas as mulheres; começo a sofrer, porque começo a amar.

- Respeito o teu sofrimento, minha querida, e ofereço-te um peito amigo onde podes desabafar.

- Aceito, Luísa, aceito! -  respondeu Eugénia tomando-lhe as mãos e beijando-a. -  Eu não tinha forças para te confessar o sentimento que me domina, mas tu adivinhaste-o. Agora escuta-me.

Ficou um momento em silêncio, como se coordenasse bem as ideias para fazer a sua narração.

- Disseste-me muitas vezes que nunca fitasse um homem só quando estivesse no palco, mas que corresse sempre a vista pela plateia sem procurar distinguir nem conhecer ninguém, como se toda aquela gente estivesse a uma grande distância do proscénio. Pois assim o fiz sempre: na minha frente estava um grande auditório e eu não o via senão como se vê confusamente uma nuvem negra que passa a nossos pés quando nos achamos no cume de elevado rochedo. Porém, uma noite, encontrava-se lá um homem que se elevava acima daquela massa viva e indeterminada; no rosto desse homem havia expressão e beleza, havia dois olhos que me devoravam, me queimavam, me enlouqueciam! Quando romperam os aplausos, esse homem conservou-se imóvel e só com o olhar parecia dizer-me mais do que os mil lábios delirantes que me chamavam ao proscénio. Desde essa noite, aquela figura aparecia sempre a meus olhos, no mesmo lugar, com a expressão e o mesmo olhar de fogo que arrebatava!

- Quem é ele?

- Que importa? É um homem a quem amo, que me inspira um sentimento profundo e verdadeiro, que não posso nem quero suplantar!

Houve outro momento de silêncio, durante o qual Eugénia escondeu o rosto nas mãos, desatando a soluçar.

Luísa lançou um olhar inquieto para a amiga

e os seus lábios agitaram-se brandamente, como se murmurassem a palavra “infeliz”.

- E não sabes quem é esse homem, Eugénia?

- Não! Sei apenas que é senhor do meu pensamento desde a primeira vez que o vi. Quem sabe se ele me segue há muito tempo sem que eu o tenha visto? Ah! Luísa, minha boa Luísa, eu que escarnecia desta palavra inventada pelos homens para baptizarem com ela as suas loucuras, desta palavra “amor”, ornato perpétuo dos lábios, de todos estes homens e mulheres da moda; eis-me, tendo não só nos lábios mas no coração, o sentimento que esta palavra exprime, eis-me vulgar como outra qualquer rapariga da minha idade!

- Enganas-te, Eugénia, uma rapariga vulgar da tua idade não saberia sentir como tu sentes agora. Essa paixão profunda que se desenvolve no teu peito sob o olhar ardente de um homem, dar-te-á mais poesia, novos atractivos, porque te elevará acima de ti própria, se esta frase é admissível. Todavia, devemos encarar as coisas como elas são,

e lembra-te de que o simples facto de deixar conhecer a um homem o império que ele exerce sobre

o espírito de uma mulher, antes dessa mulher lhe conhecer a fundo o carácter, pode originar grandes desgraças.

- Oh, ele nunca há-de conhecer o poder do sentimento que me inspira! -  exclamou Eugénia com orgulho.

- Talvez -  murmurou Luísa.

Neste momento, Aspásia veio preveni-las da chegada da carruagem do teatro para as conduzir ao espectáculo.

Eugénia enxugou os olhos que estavam humedecidos pelo pranto dulcíssimo que o amor derrama, por um dos seus caprichos loucos, sobre as rosas de um rosto virgem; depois lançou o xaile sobre os ombros e, acompanhada de Luísa, desceram a escada e entraram na carruagem, a qual partiu velozmente.

Assim que entraram no palco, Eugénia deteve-se um momento na frente do pano que por enquanto a ocultava aos olhos da plateia, parecendo querer vencer o desejo que a impelia de examinar a sala pelos olhais do pano; porém não pôde vencer esse desejo e avançou. Luísa seguiu-a e colocou-se a seu lado, sempre muda e imóvel.

Um ligeiro estremecimento agitou o corpo de Eugénia, o seio dilatou-se-lhe e os lábios entreabriram-se-lhe para deixarem sair um pequeno gemido:

- Lá está ele! -  murmurou Eugénia. -  Oh! Sempre superior à plateia, pronto a lançar sobre mim o seu olhar expressivo e apaixonado! Então não é isto uma loucura, minha amiga? - continuou ela. -  Deixar-me vencer pelo olhar de um homem que não conheço, sem sequer lhe ouvir o som da voz? Mas ele é realmente belo! No rosto moreno, na sua barba negra como ébano, vê-se o tipo da força! Nos olhos rasgados e cheios de brilho, estão expressas a nobreza e a altivez do carácter! Vê-o, Luísa. Como ele é nobre e belo e como parece olhar com desdém e frieza para essa plateia que o cerca, mas que parece existir longe dele!

Luísa ia a responder, mas o apito do contra-regra dando o sinal de fora da cena, evitou que ela tivesse tempo de examinar o homem que Eugénia designava com entusiasmo. Entrando vagarosamente nos bastidores, as duas amigas ouviram com certo abalo os primeiros sons da orquestra, que começava a sinfonia de abertura.

Naquela noite era a última representação da Semirâmis, por isso o teatro apresentava uma enchente extraordinária.

Os apreciadores não queriam perder a última dessas noites delirantes de Arsace e de Semirâmis, em que a voz e o gesto das duas jovens d'Armilly pareciam levantar do pó dos séculos aquelas duas personagens, com os sentimentos verdadeiros que as agitavam no amor e no crime.

Eugénia cantou naquela noite melhor do que nas antecedentes; porém, o seu olhar, que dantes corria altivo pela plateia sem todavia corresponder aos que procuravam surpreendê-la, parecia fixar-se em alguém e dizer que esse alguém era o eleito da sua alma apaixonada.

Ao terminar o espectáculo, uma magnífica coroa de flores, arrojada repentinamente por mão invisível, fende o ar e vai cair aos pés de Eugénia, que a apanha e beija como é do estilo.

O pano desce ao som de repetidas palmas e bravos que a pouco e pouco se vão extinguindo, à proporção que o entusiasmo cede o lugar aos frios comentários dos críticos.

A coroa que Eugénia recebera e na qual parecia ter sido esquecido o nome de Luísa, era a mais opulenta e maravilhosa de todas as que lhe haviam já sido oferecidas.

- Com efeito, só um príncipe poderia ter a lembrança de oferecer-te esta coroa tão rica! -  disse Luísa examinando a coroa sem o menor gesto de inveja, antes possuída de vivo prazer.

- Talvez seja o brinde de uma nova sociedade, das que por costume se organizam para estes fins -  murmurou Eugénia, imaginando porém coisa muito diferente do que dizia.

Assim que se viu só, beijou com entusiasmo as fitas e as flores, entre as quais procurou com mão trémula qualquer coisa cuja existência ela pressentia ali.

Com efeito, um pequeno papel cuidadosamente dobrado e colocado entre as flores, patenteou-se aos olhos de Eugénia, que imediatamente se apoderou dele dispondo-se a abrir e ler. Um ligeiro rubor lhe tingiu as faces e os braços caíram-lhe sem ousarem elevar à altura dos olhos a amorosa epístola, mas o desejo da alma venceu o seu temor.

Eis o conteúdo do papel:

Minha senhora:

Na primeira vez em que a vi, senti-me preso e fascinado como todo o auditório que me cercava e perante o qual aparecia, pela expressão enérgica do seu olhar e do seu génio. Julgando que essa sensação que senti fosse simplesmente como a sensação geral que tem produzido até hoje, busquei disfarçá-la e até esquecê-la; porém a sua imagem seguia-me sempre, e reconheci que no meu peito havia alguma coisa de real e positivo, despertada por essa imagem bela. Hoje, não tenho um pensamento que não lhe respeite, e levo a minha loucura ao ponto de fazer-lhe uma declaração como terá recebido muitas, mas não é como todas elas ditada simplesmente pelos lábios.

Minha senhora, nas trevas e no silêncio existe um homem poderoso que a ama do íntimo da alma e que daria uma eternidade de tormentos, por uma só palavra dos seus lábios.

 

CAPíTULO 18

O banqueiro retirado

No dia seguinte, quando as duas jovens d'Armilly acabavam o seu estudo, Aspásia entrou na sala e anunciou um nome que fez empalidecer Luísa e teria feito soltar uma risada dos lábios de Eugénia se ela não estivesse então dominada por um sentimento profundo que lhe causava uma forte sensação.

O nome era o do barão Danglars. Eugénia tinha já visto o modo com que a mãe a cumprimentara na sua nova carreira artística, e logo imaginou que o pai formaria o antídoto daquele orgulho de raça que havia na baronesa Danglars; assim, voltando-se para Luísa, disse-lhe com o sorriso nos lábios:

- Sossega, minha boa amiga, conheço muito bem o meu pai para assegurar-te que a sua visita será mais agradável do que a de minha mãe. Vais ver.

Fez um sinal a Aspásia, a qual se retirou logo, para momentos depois introduzir o barão Danglars. O barão vinha vestido com certo apuro, que muito bem evidenciava encontrar-se em boas circunstâncias. Na sua fisionomia grosseira estava estampado o prazer e expressa com toda a clareza a ambição da sua alma avara.

- Minha filha - disse ele em voz de falsete e gesto repassado de estudada importância. - Inútil seria perguntar-lhe como passa, porque a saúde e a felicidade brilham-lhe no rosto.

Eugénia, a estas palavras, trocou rapidamente com a amiga um olhar de inteligência.

- Ainda que eu sofresse - disse ela beijando-lhe a mão — meu pai não o poderia notar, porque no meu rosto só brilharia o gosto de o ver. Além disso, o prazer que sempre me causou a companhia da minha querida Luísa d'Armilly e o estudo da arte que professamos, tudo concorre para animar-me.

- Permita que a cumprimente, senhora d'Armilly, e que a felicite pelos desvelos com que forma a alma da sua discípula - disse vivamente o barão Danglars, inclinando-se em frente de Luísa.

- Sente-se, meu pai — volveu Eugénia, indicando-lhe uma cadeira e sentando-se ao lado de Luísa.

Houve um momento de silêncio durante o qual o barão Danglars passou as mãos pelos cabelos e olhou inquieto em volta de si, como para distinguir o recanto onde se refugiara a sua presa, pois lhe sentia a falta.

- Então meu pai está há muito tempo em Roma? - perguntou Eugénia com um excessivo gesto de curiosidade.

- Há algum tempo que estou aqui, porém um pouco retirado, quero dizer, retirado de Roma e mesmo do comércio. Felizmente, vi ontem com grande prazer a bela Semirâmis, que tem enchido de pasmo esta cidade.

- Perdão, meu pai, mas viu também a minha amiga Luísa!

- Decerto que vi. Mas eu sou pai, Eugénia, e no meu coração não havia outro sentimento que não fosse para ti, posto que logo à primeira vista reconhecesse o talento da senhora d'Armilly.

Luísa inclinou lentamente a cabeça e o barão prosseguiu:

- Ora como os olhos de um pai extremoso são dotados de vista dupla quando se trata de seus filhos, fácil me foi conhecer, sob o diadema soberano da nobre rainha dos Assírios, a filha que sempre amei do íntimo da alma! Forma agora uma ideia do que eu senti, Eugénia, quando vi a melhor sociedade de Roma aplaudir com entusiástico delírio o génio elevado de minha filha. Ah, que grande orgulho eu senti!

- Como está minha mãe? - perguntou Eugénia de repente, sem deixar de observar o sobressalto que o barão experimentou ao ouvir tal pergunta.

Eugénia havia notado que a mãe não lhe falara do barão nem este da baronesa, e supondo que eles estivessem em desinteligência, quis certificar-se.

- A baronesa... - respondeu o barão Danglars com um pequeno ataque de tosse que o afectava desde há algum tempo em certas ocasiões -  a baronesa anda a viajar.

- É um belo passatempo — retorquiu Luísa d'Armilly.

- Não quis acompanhá-la? -  perguntou Eugénia.

- Não, minha filha. Sinto-me cansado e não dou valor aos pequenos prazeres que se desfrutam nas viagens a troco de grandes incómodos! Na verdade -  acrescentou ele, tossindo muito — não me dou bem com as viagens.

- Não me tinha dito que vivia fora da cidade?

- Resido próximo da cidade de Aquapendente, onde tenho uma pequena vivenda que desde já ponho à vossa disposição, minhas senhoras.

- Agradecida, meu pai, infelizmente não podemos aceitar o seu oferecimento, porque no-lo impedem os consecutivos trabalhos a que nos obrigamos pelo nosso contrato.

- Oh! Todavia espero que me darão o prazer de uma visita!

- Tem grande empenho nessa visita?

- Boa pergunta! -  exclamou o barão. -  Fico a esperá-la com todo o interesse, e desde já acredito que não tardarás a ir com a tua amiga dar uma vista de olhos à pequena propriedade, a qual te pertencerá de ora em diante.

- É muito amável, meu pai!

- Asseguro-te que não encontrarás ali os enormes livros, os volumosos maços de papéis, os intermináveis algarismos que tanto te incomodavam a vista no meu gabinete de Paris. Agora estou retirado do comércio.

- Felicito-o, pois nos algarismos não existe a menor poesia.

- Tornam-se aborrecidos — acrescentou Luísa. -  Todavia creio que não deixarão de lhes sacrificar alguns momentos, por exemplo, quando receberem a importância respeitante aos vossos contratos, o que não deve ser tão pouco como isso.

- Pelo amor de Deus, meu pai! - exclamou Eugénia. — Não creio na boa fé dos empresários. Além disso, que valem dez ou doze piastras a menos?

O barão franziu o sobrolho e disse:

- Porém, essa falta repetida dez vezes, faz a conta de cem piastras; depois mais outras dez, perfaz duzentas, e finalmente multiplicando isto em períodos sucessivos...

- Pouco importa -  respondeu Eugénia com toda a frieza, para fazer entender ao barão que a sua posição pecuniária era boa e que por isso ela não teria necessidade de aceitar dele coisa alguma, nem ele havia mister de oferecer-lhe nada.

- Muito bem, minha filha, eu respeito os diferentes modos de pensar. Agora o que me resta depois de te abraçar, é dar-te a direcção da minha casa, pois estou certo da tua delicadeza para que me atreva a duvidar um só instante de que recuses o prazer que me darás de ali te abraçar novamente muito em breve.

Dizendo isto, tirou da carteira um bilhete e entregou-o a Eugénia.

- Espero, senhora Luísa d'Armilly - continuou ele, com um sorriso que parecia ser amável — que não se recusará a acompanhar a sua discípula.

- Nunca nos separamos, senhor barão - respondeu Luísa.

O barão despediu-se delas e retirou-se muito satisfeito do modo com que havia ganho as simpatias de Eugénia.

- Então, minha amiga -  perguntou esta a Luísa logo que o barão se retirou — não achas que o meu pai está muito amável?

- Não compreendo bem esta diferença - respondeu Luísa. -  Em Paris era muito económico de palavras, e dos seus lábios nunca saiam expressões de ternura.

- Ora, em Paris ele era banqueiro!

- E então?

- Um banqueiro não tem filha, nem mulher, nem amigos. Tem apenas os algarismos.

 

Agora devemos explicar a maneira pela qual o barão Danglars passou ràpidamente da extrema penúria ao ponto de possuir uma pequena vivenda próximo de Aquapendente.

Logo que saiu de casa da filha, dirigiu-se apressadamente em direcção da Praça de Espanha, a qual atravessou. Metendo-se pela via Fattina, passou por entre os palácios Fiel e Rospoli e, continuando sempre com o mesmo passo apressado, viu enfim diante de si a grande praça del Populo, pela qual espraiou o olhar inquieto como se procurasse distinguir alguém conhecido.

Instantes depois, viu encaminhar-se na sua direcção um indivíduo que sorria com desdém para o lugar em que se costumava colocar o tablado para os actos de justiça.

Era Benedetto.

- Olá, senhor barão! A sua visita a casa da menina Eugénia foi muito rápida! Parece-me que deveria demorar-se mais tempo em abraçar uma filha que não via há alguns anos. Todavia, espero que não faltasse aos deveres de bom pai.

-           Vi-a, abracei-a e falei-lhe. Era tudo o que tinha a fazer.

Nem ao menos lhe ofereceu a sua nova casa?

- Sem dúvida.

- Espero que não aceitasse.

- Pelo contrário.

- Oh! Então felicito-o, senhor barão, pois seria muito triste que entre um pai e uma filha, tão dignos um do outro, não reinasse perfeita harmonia. Vamos, senhor barão, a carruagem espera-nos, e eu quero instalá-lo na sua nova posição, porque tenho pressa de desempenhar as ordens da senhora baronesa, sua esposa.

- É muito amável! -  retorquiu o barão caminhando ao lado dele. -  Eu sei fazer a devida justiça aos seus merecimentos; todavia possui um pequeníssimo defeito, o ser pouco determinado nas suas palavras, isto é, fala quase sempre num sentido vago, de maneira que não compreendo ainda muito bem o verdadeiro papel que desempenha para comigo. Creio que é um pouco reservado, meu caro senhor Andréa de Cavalcanti.

- E o senhor é uma coisa muito semelhante à tina das Danaides, junto da qual a fortuna parece desempenhar o voto a que elas se haviam sujeitado para o seu castigo.

- Não o compreendo - disse o barão abrindo muito os olhos.

- Quero dizer que quanto mais a fortuna o enche dos seus favores, tanto menos satisfeito se mostra! -  replicou Benedetto. -  Em Roma vivia quase miseràvelmente com o seu pequeno salário de porteiro dum teatro: alcancei-lhe uma entrevista com a sua esposa e foi tão infeliz ou desastrado que não soube advogar a sua causa.

- Asseguro-lhe que me portei o melhor possível! -  exclamou o barão. -  Porém a baronesa estava como a pólvora quando lhe chegam o lume e eu evitei a terrível explosão sem compreender como aquilo fosse e sem poder evitar o desastre.

- Pois bem, suponhamos isso, meu caro - continuou Benedetto, caminhando sempre. -  Quando há oito dias o fui procurar e lhe expliquei pormenorizadamente as intenções da senhora Danglars, o senhor concordou com a sua nova independência. Agora atreve-se a dizer que não compreende o papel que eu represento para consigo. É muito casmurro, barão!

Entretanto, chegaram junto de uma pequena carruagem que estava estacionada a esquina de uma rua próximo das portas da cidade.

Benedetto fez sinal ao cocheiro e, abrindo a portinhola, entrou, seguido do barão.

A carruagem partiu imediatamente, e dentro em breve rodava numa estrada que a afastava de Roma.

Enquanto durou o trajecto, o barão embebido na meditação dos seus projectos, não dirigiu palavra a Benedetto, o qual, calculando bem o fio do enredo que tinha premeditado, também não interrompeu o seu companheiro de jornada. Ao fim de algumas horas, a carruagem em vez de seguir a estrada que levava à pequena cidade de Aquapendente, voltou para a esquerda e entrou numa espécie de azinhaga, na qual se elevavam as ruínas de um desses famosos aquedutos que abundavam nas vizinhanças de Roma.

As pedras deslocadas pelo tempo daquelas enormes massas de cantaria, haviam rolado pela campina, e os seus fragmentos, dispersos ou amontoa-dos aqui e ali, obstruíam o caminho.

A carruagem diminuiu a velocidade e o barão, olhando pelas janelas das portinholas, distinguia perfeitamente tudo que o rodeava: a pequena distância, alvejavam as paredes dum prédio meio arruinado que parecia fechado dentro dum jardim inculto, onde as ervas e o musgo tinham crescido por toda a parte.

Dentro de poucos instantes, a carruagem parou junto da porta de grades desse jardim e os viajantes apearam-se.

- Entre, barão -  disse Benedetto -  e não repare no aspecto desleixado, pois esta propriedade está desabitada há muito tempo.

Em seguida, atravessaram a inculta ruela do jardim e subiram uma pequena escada de pedra, cujos degraus estavam alcatifados de musgo. Chegados ao cimo, o barão deteve-se um instante, lançando em redor um olhar que abrangeu todo o jardim que cercava a casa; por entre os arbustos crescidos das ruas e as ervas espigadas que abundavam nos canteiros, elevavam-se figuras de mármore de diferentes dimensões e muito deterioradas; havia também um lago, em cuja água limosa se ouviam os saltos e o coaxar de muitas rãs que se escondiam rapidamente, despertadas pelo som da voz e pelo ruído dos passos do barão e de Benedetto. Tudo ali eram ruínas e solidão.

Benedetto abriu uma das portas e patenteou aos olhos de Danglars uma sala, cujas paredes eram forradas de panos de raz, onde se viam tecidas algumas passagens da fábula.

Os móveis desta sala eram antiquíssimos e não apresentavam o aspecto de ruína que se notava no jardim, se bem que estivessem cobertos de espessa camada de poeira. Das janelas pendiam cortinas de veludo, desbotadas pela acção do sol; o fogão parecia não servir há muito tempo, e as tenazes, cobertas de ferrugem, estavam lançadas para ali, sem a menor ordem, atestando o movimento brusco da última pessoa que lhes havia tocado.

O barão, depois de olhar minuciosamente para o aspecto que lhe oferecia este recinto, aproximou-se de Benedetto e ousou interromper a profunda meditação a que ele parecia entregar-se em frente de um dos quadros que se viam pendentes das paredes.

- Aqui está representado o tribunal incorruptível, que nunca julgava as acções pelos homens, mas sim os homens pelas acções! - disse Benedetto, sem atender ao barão. -  Ali, não havia amigos nem dinheiro, havia unicamente a lei que rege o universo, perante a qual descia a coroa ou o cutelo sobre a cabeça do criminoso, embora esse criminoso fosse omnipotente como Deus!

Soltou uma gargalhada e continuou:

- Um tribunal assim não podia existir senão na fábula e os homens deram-lhe o seu devido lugar, depois de reconhecerem quanto eles mesmos são incompletos nos seus actos de justiça!

- Olá, senhor Andréa! -  exclamou o barão Danglars, muito admirado de escutar a linguagem de Benedetto. -  Parece-me que se entrega profundamente ao estudo da moral dos homens!

- Estudo um pouco de tudo, senhor barão, porque o meu caminho neste mundo é muito difícil e eu preciso chegar ao termo da minha espécie de romaria! Deixemos, entretanto, as reflexões e vamos ao que interessa. Esta casa pertence-lhe de hoje em diante, aqui tem os seus títulos de posse.

E apresentou-lhe um papel que o senhor Danglars examinou com avidez, fazendo em seguida um gesto de amabilidade.

 

CAPíTULO 19

A via Apia

BENEDETTO, por uma das suas engenhosas invenções, explicou ao barão Danglars o comportamento da baronesa, de tal modo que o barão acreditou cegamente quanto ele lhe dizia.

Referiu-lhe que a baronesa, ferida de um desgosto oculto, determinara desaparecer da sociedade. Entretanto, vendo que o marido estava pobre, quis assegurar-lhe certa independência; portanto havia encarregado Benedetto de lhe transmitir os títulos de posse da vivenda, aos quais a boa senhora juntava um pecúlio razoável que nas mãos especuladoras do barão, poderia transformar-se em rendimento razoável e suficiente para as despesas diárias dum banqueiro retirado.

Restava agora conhecer a causa das supostas relações entre Benedetto e a baronesa: porém o barão conhecia bem os caprichos da interessante esposa, e pouco lhe importava essa circunstância, uma vez que ela tinha servido de veículo à sua medíocre fortuna. Portanto, não interrogou Benedetto a esse respeito e só fez perguntas relativas ao seu novo estado.

Benedetto satisfez-lhas o melhor possível, e o senhor Danglars estava encantado de tudo quanto lhe sucedia e só achava uma coisa extraordinária: a escolha daquela casa tão distante de Roma. Todavia, entregando-se aos seus novos projectos de banqueiro retirado, em breve se esqueceu do que o inquietava nos primeiros dias.

Ao fim de uma semana, já a pequena propriedade tinha uma aparência confortável: o jardim estava limpo, a poeira dos móveis sacudida, os fogões tinham lume, e dois criados serviam o novo proprietário com todo o respeito.

Benedetto fez algumas visitas ao barão, sendo recebido sempre com a maior solicitude. Numa dessas visitas ele achou o senhor Danglars muito ocupado com os arranjos da casa, e o ex-banqueiro anunciou-lhe que no dia seguinte esperava a visita de sua filha.

- Senhor Andréa, não sei se devo rogar-lhe o obséquio da sua companhia, pois desde aquele caso de Paris, talvez não queira encontrar-se com ela!

- Não posso de maneira alguma dispor do dia de amanhã, senhor barão -  respondeu Benedetto -  mas posso dar-lhe um conselho que valerá mais que a minha presença.

- E é?

- Mandar preparar um quarto capaz de receber por uma ou duas noites uma senhora.

- Uma senhora?! -  exclamou o barão, estupefacto. -  Bom hóspede, não haja dúvida! Mas quem é essa senhora?

- É sua filha.

- Que diz?

- O que disse, barão.

- É então adivinho?

- Talvez.

- Será efeito da mão do finado?

- Senhor barão! -  exclamou Benedetto com um modo imperioso, que fez gelar nos lábios de Danglars o riso escarnecedor que ali assomara. - Se alguma vez compreendesse o que faz a mão do finado erguida ainda sobre a terra que o cobre, estremeceria com a ideia da missão horrível e misteriosa que ela tem de cumprir! A justiça não deve ser uma figura vã, exposta à irrisão dos homens! A lei não deve ser uma palavra de sentido vago como os homens a repetem, quer se refiram à lei do céu ou da terra! E para evidenciar essas verdades, houve um poder absoluto, uma vontade superior e omnipotente, que levantou do sepulcro a dextra do finado sobre o vivo soberbo e vaidoso!

Dizendo isto, Benedetto saiu arrebatadamente da sala, deixando o barão fortemente impressionado com a rápida mudança que parecia ter-se operado no espírito daquele homem.

Saindo de casa do barão, Benedetto montou a cavalo e dirigiu-se a toda a pressa para a cidade; porém, em vez de franquear a barreira, continuou o seu caminho extra-muros e entrou na famosa via Ápia, indo parar em frente do circo de Caracalla.

Era noite. A lua acabava de se desenvolver, lançando os raios da sua luz pálida e incerta naquela imensa escavação circular que ficava aos pés de Benedetto e na qual uma alma timorata julgaria ver grande quantidade de fantasmas brancos, repetindo nos bafejos da brisa os horrores que nos recorda o nome do famoso tirano.

Benedetto, porém, não prestava a menor atenção a essas visões, apenas procurava distinguir ali a figura do homem que procurava.

Poucos minutos depois, apareceu um homem embuçado numa capa escura, seguido de outros dois. Fazendo um misterioso sinal aos dois homens, estes afastaram-se rapidamente e ele caminhou na direcção da via Ápia.

Benedetto, vendo-o, avançou e perguntou-lhe: -  Peppino?

- Sim, excelentíssimo! -  respondeu, parando e olhando em redor de si.

- A respeito das instruções que te dei? -  Estão cumpridas, senhor!

- Vejamos. Que faz Luigi Vampa?

- Arrebatado por uma paixão misteriosa, pela qual parece dominado, há oito dias que não aparece nas catacumbas de S. Sebastião, onde habitualmente fazemos o nosso quartel-general. Os homens murmuram deste abandono e muitos deles, receosos de que o chefe os atraiçoasse, fugiram. Eu, que na ausência de Vampa estou à testa do bando, apenas tenho oito homens, e estes mesmos estão dispostos a retirar-se, se Luigi Vampa não aparecer em breve.

- Acaso te esqueceste de alimentar as suspeitas contra Luigi Vampa? -  murmurou Benedetto.

- Pelo contrário! Tenho empregado todos os meios; até já lhes falei de partilhas, mas o cofre está vazio, pois Luigi Vampa teve a lembrança de o despejar!

- Pouco te deve importar isso, Peppino.

- Sim, excelentíssimo, uma vez que me assegurou a independência! -  respondeu Peppino. - E o navio?

- Está fretado e pronto ao primeiro sinal. - A tripulação?

- É segura e determinada.

- O capitão?

- Ah, excelentíssimo! -  exclamou Peppino, sus-pirando. -  Tinha-me dito que o navio não deveria ter mais do que o piloto para governar a manobra.

- É verdade -  tornou Benedetto. -  Agora escuta com atenção o que vou dizer-te.

Peppino fez um leve movimento com a cabeça, e Benedetto continuou:

- Depois de amanhã, às cinco horas da manhã, embarcarás. O navio, pronto a partir, esperará por mim até às seis. Portanto, abandona as catacumbas, e os teus subordinados que procurem vida.

- Se os conhecesse, excelentíssimo, talvez os aproveitasse, porque todos eles são homens capazes -  atalhou Peppino ràpidamente. -  Declaro-lhe que o momento de lhe ganhar as simpatias é dos mais favoráveis.

- Que queres dizer? -  perguntou Benedetto em ar solene.

- Quero dizer que se digne descer comigo às catacumbas, onde eles o esperam, pois atrevi-me a prometer-lhes a sua protecção.

- Isso foi uma grande asneira, porque podemos ser surpreendidos.

- Veja, senhor -  tornou Peppino, designando em direcções opostas dois vultos que apareciam ao longe por entre os monumentos da via Apia. -  Estão ali dois homens que não deixarão aproximar ninguém, nem o próprio Vampa se ele tentasse voltar.

- Para que me servirão os teus homens?

- Olhe que são oito e todos escolhidos por mim para tripularem o navio. Entre eles há quatro que já foram marítimos e que conhecem todos os portos do Mediterrâneo como eu conheço as estradas de Itália. Irão com o senhor para toda a parte, e quando já não precisar deles nem de mim, arvoramos carta de corso pelo Mar Negro, Mármara e Arquipélago, onde se fazem bons negócios.

- Vejo que és homem de inteligência, Peppino -  respondeu Benedetto depois de um momento de silêncio.

- Ainda agora o sabe?

- Caminha adiante que eu acompanho-te. A estas palavras, o salteador romano começou a caminhar à frente de Benedetto, dirigindo-se para um caminho em declive que conduzia a uma abertura praticada no terreno e a cuja entrada estava postado um homem de sentinela.

Benedetto seguindo sempre o bandido, desceu uma escada já deteriorada, a qual se entranhava numa abóbada escuríssima.

No topo de um corredor brilhava um archote, cuja chama vermelha, agitada pelo vento, espalhava os seus trémulos raios pelos muros do subterrâneo. Benedetto notou que havia nesses muros muitas escavações que pareciam feitas para acomodar um féretro em cada uma delas.

No fim do corredor havia uma sala espaçosa e sobre um altar de granito estava colocado um archote: em frente do altar via-se uma comprida mesa de mármore negro que parecia ter sido destinada, noutro tempo, para servir de mesa aos caixões dos bem-aventurados que ali eram depositados, mas que naquele momento servia de tabernáculo ao festim de alguns homens em cujas fisionomias avermelhadas pelo reflexo da chama e do vinho estava marcado o sinal evidente da sua vida criminosa.

Estes homens entoavam em coro uma canção grosseira, cujas últimas palavras eram: la vendetta, la vendetta, la vendetta, repetidas com ênfase e entusiasmo.

Peppino parou e, sorrindo, disse em voz baixa ao seu companheiro:

- Deixemo-los acabar, porque eles juram vingar-se de Vampa.

Depois avançou para o centro do espaçoso subterrâneo e, tirando do cinto uma pistola e um punhal bradou:

Amigos, levantem-se que está ali o nosso chefe! Preparemos-lhe a abóbada forte, para lhe mostrarmos que entre nós pode ter a sua segurança.

A estas palavras os bandidos calaram-se,  levantaram-se com rapidez e, colocando-se uns em frente dos outros, elevaram os braços armados de pistolas e punhais, formando entre si um caminho pelo qual Peppino conduziu Benedetto.

Este passou com firmeza pelo terrível arco formado com os punhais e as pistolas dos salteadores. Cerimónia bem conhecida, ali reproduzida por um simples instinto daqueles homens que queriam assim dar a entender ao seu chefe o apoio dos seus braços e das suas armas para lhe defenderem a vida.

- Amigos - disse Benedetto, voltando-se para os bandidos — uma vez que confiam em mim, confiarei também em vocês.

- Sim, sim, ordene que nós obedeceremos! -  clamaram eles.

- Luigi Vampa atraiçoou-os e dentro em breve serão aqui perseguidos pela justiça; portanto, é absolutamente necessário abandonar para sempre este retiro. Peppino já tem as minhas instruções sobre este ponto, podem segui-lo.

- E a nossa vingança? -  replicou um dos bandidos. -  Não sairemos sem nos vingarmos de Vampa.

- Fiquem descansados -  tornou Benedetto. -  Vampa receberá o seu castigo. A sentença que proferi contra ele será executada pela polícia de Roma, que a esta hora já está prevenida e se prepara para o surpreender.

Os salteadores aplaudiram.

- De hoje em diante, serão a minha única família, e eu me encarrego de os conduzir aonde o pedirem os nossos interesses. Peppino - continuou Benedetto -  dá-me um copo de vinho, pois quero beber com estes valentes, em cujos corações existem sentimentos mais nobres do que no de muitos homens que por aí oferecem sem receio o seu rosto à luz do sol.

Peppino apresentou-lhe um copo cheio de vinho, e os salteadores prepararam-se com entusiasmo para esta saúde de uma aliança pavorosa.

O filho de Villefort soltou um grito e elevou o copo, despejando-o em seguida de um só trago; todos o imitaram. Acabada a saúde, Benedetto atirou o copo de encontro à parede do subterrâneo, exclamando:

- Meus amigos, seja esta a vossa despedida às catacumbas de S. Sebastião, a Roma, à Itália, pois que um porvir de delícias os espera longe daqui. Querem oiro? Tê-lo-ão com abundância! Querem sangue? Vê-lo-ão derramado sem misericórdia! Um Deus vingador me chama às praias do Oriente, onde prepara os altares para os sacrifícios de uma vingança justa e desapiedada!

Os salteadores aplaudiram com feroz alegria as palavras de Benedetto, e, momentos depois, as catacumbas de S. Sebastião estavam desertas. O facho esquecido sobre o altar ardeu até ao fim e, com um último clarão, rápido, momentâneo, pareceu repetir o triste adeus dos bandidos ao recinto que por muito tempo haviam profanado.

Benedetto aproximou-se do seu cavalo que deixara preso a um dos monumentos da via Apia e, saltando para a sela, dirigiu-se a galope em direcção a Roma.

- Corre, corre! -  murmurava ele, desaparecendo por entre os tristes monumentos como uma sombra sinistra. -  Um demónio guia os meus passos e me inspira, me favorece com a sua inteligência maldita! Amanhã terei nas minhas mãos o oiro de Luigi Vampa, o preço de muitas lágrimas e angústias das suas vítimas; terei mais o prémio da cabeça daquele salteador. e tudo isto será empregado numa obra feita também de lágrimas e de angústias! Edmundo Dantes, o triste ludíbrio da tua paixão abominável, da tua vingança horrível, aparecerá a teus olhos depois de te haver feito sentir o desespero que espalhaste com a tua mão maldita no coração de meu pobre pai!

Não soubeste perdoar, pois em vão solicitarás que te perdoe. Tiveste o orgulho de te julgares poderoso como um Deus, pois verás o teu orgulho quebrado nas minhas mãos como um brinquedo de vidro nas mãos de uma criança. Edmundo Dantes, o raio que dispara a nuvem e desce no espaço, não respeita o alcantil elevado, antes o fere com maior fúria!

Momentos depois, Benedetto chegava às proximidades do magnífico edifício de Flávio Vespasiano.

Apeou-se e não tinha ainda dado meia dúzia de passos, quando se viu rodeado por seis ou oito desses industriosos sem indústria que abundam em Roma, junto das igrejas, dos teatros, dos monumentos e das ruínas, cujo modo de vida consiste em repetir aos ouvidos dos estrangeiros a origem, fundação e destino desses famosos restos da antiguidade, que são por assim dizer o livro dos séculos. Um dos cicerones tomou as rédeas do cavalo, por ser talvez aprendiz no ofício de montar, ao passo que os seus companheiros cercaram Benedetto, dizendo-lhe com toda a cortesia:

- Excelentíssimo, a noite está bela. Pode seguir-me.

- Para quê?

- Para ver -  respondeu ele.

- Ver o quê?

- Per la madonma, o monumento de Flávio, o monumento mais célebre de Itália e da Europa inteira, onde podiam acomodar-se à vontade 80.000 espectadores. Mostrar-lhe-ei o circo das feras e explicar-lhe-ei com acerto a providência que então se tomava para impedir que elas se lançassem sobre os espectadores.

Benedetto respondeu com um gesto de profundo desprezo à solicitude do cicerone e passou por ele, dirigindo-se para as famosas ruínas.

 

CAPÍTULO 20

O Coliseu

ESTE célebre anfiteatro, onde outrora o suplício dos cristãos servia de recreio aos romanos, parecia tomar a denominação que desde alguns séculos se lhe dá, de uma estátua colossal de Nero que lhe ficava ao pé. Logo depois de concluída a sua construção, aquele vasto edifício onde está bem expresso o orgulho selvagem dos romanos antigos, teve sucessivamente três diferentes denominações: Praça de Flávio, Circo romano e Circo das feras.

Benedetto subiu a escadaria que conduzia aos restos da tribuna imperial, e daí olhou para o vasto anfiteatro, como se o seu olhar pudesse vencer as sombras que a noite espalhava.

Nos lugares menos favorecidos do luar brilhavam alguns archotes no centro de pequenos grupos de analisadores, aos quais um cicerone explicava a fábrica do faustoso edifício decadente.

O filho de Villefort desceu a escada que o havia conduzido à tribuna imperial e, evitando o encontro com os grupos de curiosos, caminhou pelo centro das ruínas em direcção ao chamado círculo das feras, que então parecia deserto; porém o rumor de passos fê-lo parar, e ocultou-se com a sombra de uma das colunas gigantescas que sustentam o famoso entablamento dos pórticos.

Em breve, um homem embuçado numa capa escura apareceu aos olhos de Benedetto, iluminado por um dos raios tristes e melancólicos da lua. Este homem olhava para a chama vermelha e trémula de um dos archotes dos cicerones que brilhava a pouca distância.

- É ela -  murmurou o desconhecido sempre com o olhar inquieto, examinando os movimentos da chama -  é ela, a mulher a quem eu não posso esquecer nem um momento. Infeliz de mim! Arrastado por este delírio louco, aonde irei? Oh, Eugénia d'Armilly, hás-de ser minha!

- É Vampa”, disse consigo Benedetto no momento em que o salteador, olhando inquieto em volta de si, expôs o rosto aos raios da luz, na direcção em que ele estava oculto.

A luz do archote que brilhava nesta parte das ruínas, começou a aproximar-se do circo das feras e Luigi Vampa estremeceu involuntàriamente, dirigindo-se para a coluna em que Benedetto se tinha ocultado. Neste momento, apareceram à entrada do circo duas senhoras precedidas pelo incansável cicerone que estendeu o braço com o archote, cuja luz agitada lançou os seus raios incertos para as profundidades do circo, onde as duas mulheres deixavam descer o seu olhar curioso.

- Vejam - disse o cicerone -  ali era o circo das feras, onde lançavam os seus urros de raiva e de fome antes de serem conduzidas à praça e onde depois se recolhiam fartas de carnagem, com as fauces ensanguentadas e olhar medonho. Além -  continuou, designando um lugar iluminado pelo luar -  era a porta pela qual entravam os condenados para nunca mais saírem. Ali era a tribuna dos imperadores, onde eles vinham examinar a raiva das feras e escutar com desprezo as súplicas dos cristãos e dos escravos destinados aos jogos bélicos.

O cicerone calou-se, conservando o braço elevado com a luz, enquanto as duas senhoras, apoia-das no braço uma da outra, se entregavam às sensações que lhe produziram o lugar e a explicação dada pelo homem.

- Luísa -  disse a mais nova -  tenho desejo de ir lá abaixo, ao lugar onde tantas vítimas tremeram na última agonia sob as garras dessas feras temíveis da Asia e da África; quero meditar sobre aquele chão regado pelo sangue e pelas lágrimas

das mulheres que se abraçavam pela derradeira vez com uma filha, uma amiga, tentando defendê-las da sanha dos monstros. Vem comigo, Luísa, minha amiga.

O cicerone lançou um olhar investigador e inteligente sobre as duas mulheres e conservou-se imóvel, esperando que lhe fizessem sinal para descer também, mas as duas amigas não lhe fizeram sinal algum e ele, habituado já aos caprichos dos visitantes, contentou-se em iluminar com o archote os degraus da escada: em seguida sentou-se, encostou o archote às pedras e esperou com toda a paciência que elas regressassem, aproveitando o tempo em passar pelos dedos da mão direita as contas de um rosário e a fumar um cigarro com a esquerda.

Eugénia Danglars e Luísa d'Armilly chegaram ao circo, em cuja extensão a primeira alongou o seu olhar enérgico, e a segunda o rápido golpe de vista trémulo que a caracterizava fora da cena.

- Minha amiga -  disse-lhe Eugénia -  porque estás a tremer? Não vês que estamos completamente sós? Fazem-te mal as tristes recordações que o lugar nos desperta? Reconheço que fiz mal em te propor inopinadamente esta visita ao Coliseu. Julgava-te menos tímida! Pois quem havia de supor que a sombra da noite e um montão de cantaria tivessem o poder de te abalar a alma! Eu, pelo contrário, amo tanto esta noite e estas ruínas, este silêncio majestoso e solene, estas sombras produzidas pelas gigantescas colunas de todo este edifício que os séculos têm olhado sempre com admiração! As recordações que cada uma destas pedras desperta, este solo, teatro verdadeiro em que o despotismo e o sofrimento representavam os seus horríveis papéis, tudo isto se casa Intimamente com a minha alma! Oh, Luísa, se tu alguma vez houvesses amado como eu amo, se tivesses alguma vez consagrado o teu pensamento a um ser que o destino encadeou por um capricho ao nosso ser e que faz, por assim dizer, uma parte essencial de nós mesmas! Então amarias a sombra, o silêncio, o isolamento!

Vampa escutava as palavras de Eugénia e Benedetto ouvia distintamente o arfar violento do salteador romano, porque a coluna em que Benedetto se havia ocultado era a mesma a que o famoso salteador estava encostado.

- Eugénia -  respondeu Luísa -  compreendo bem o que te inspira este silêncio, esta sombra e este isolamento, onde a tua alma, livre de outra imagem, se entrega livremente à contemplação daquela que a interessa hoje: mas eu, que não estou aqui sofrendo a impressão desse sentimento excessivo que domina e prende todos os teus pensamentos; eu, que não tenho a energia e a força do teu carácter, vacilo e tremo ao ouvir a menor viração; cada pedra me assusta, em cada uma me parece ver elevar-se uma figura triste que nos lança o seu olhar sinistro e feroz como o das feras. Que queres? Sou medrosa, sou como todas as mulheres, e só me diferenço delas em não amar.

Eugénia, sem escutar a amiga, avançava triste e pensativa pelo circo, pelo que Luísa se viu obrigada a segui-la.

- Eugénia! Eugénia! -  exclamou repentinamente Luísa, agarrando com mão trémula o braço da amiga.

- O que é? -  perguntou Eugénia, detendo-se. Aflige-te alguma visão?

- Não é apenas visão - respondeu Luísa depois de breve pausa e fazendo esforço para falar.

- A tua mão está fria como o gelo -  murmurou Eugénia. -  Tens medo?

- Quisera não o ter, mas não posso vencê-lo -  tornou Luísa.

- Vamos, o que te assusta tanto?

- Olha naquela direcção - disse Luísa surdamente, designando-lhe com um gesto uma das colunas. - Está ali um homem!

— Aonde?

- Ali, na quarta coluna, contando da esquerda do pórtico.

- Não o vejo - respondeu Eugénia seguindo com os olhos a indicação que Luísa lhe dava.

- Talvez se ocultasse. Oh, não, não se ocultou!

Vejo alia figura de um homem.

- Não será ilusão? O que tu viste foi a sombra de uma coluna. Aposto que era um gigante! -  Eugénia! Eugénia! Retiremo-nos!

Luísa dando o braço a Eugénia, voltou-se na direcção da escada para se retirar, mas recuou ràpidamente soltando um pequeno grito de susto.

- Meu Deus! -  murmurou Eugénia.

Luigi Vampa estava diante das duas cantoras.

Imóvel como se fora uma estátua, o salteador cravou o olhar fino e penetrante no rosto de Eugénia, e esse olhar parecia dizer mais do que os lábios seriam capazes de expressar. Entretanto a situação carecia de algumas palavras, pois que Luigi Vampa parecia disputar o passo às duas amigas. Ele tirou o chapéu, deixou cair a capa e falou:

- Minha senhora, bem lhe disse eu que nas sombras e no silêncio da noite existia um homem que dava uma eternidade de tormentos por uma simples palavra dos seus lábios. Procurou a sombra e o silêncio da noite, encontrou-me. Agora deverei eu esperar essa palavra ou antever um futuro de tormentos para a minha alma?

O susto sofrido por Luísa d'Armilly produzira-lhe uma ligeira síncope como sucede às pessoas nervosas, e a pobre senhora apoiada a um pedaço de cantaria com o rosto oculto pelas mãos, não via nem ouvia o salteador.

Eugénia, pelo contrário, via-o e ouvia-o, não com tremor mas com um misto inexplicável de susto e de prazer, porque acabava de reconhecer no homem do Coliseu o misterioso espectador do teatro Argentino.

- Senhor -  murmurou -  aproveito simplesmente esta ocasião inesperada para agradecer-lhe a dádiva com que nos brindou na última récita da Semirâmis. Quem quer que seja, acredite no meu profundo reconhecimento.

- Nada mais? -  perguntou Vampa em voz alterada.

- É quanto devo dizer-lhe.

Eugénia recuou um passo a fim de despertar Luísa, mas o salteador avançou rapidamente e, ajoelhando, pegou-lhe na mão, exclamando:

- Minha senhora, paga muito mal o profundo sentimento que me inspira.

- Esqueça-o -  murmurou Eugénia, esforçando-se por tirar a mão dos lábios ardentes de Vampa, mas faltando-lhe as forças para o sacrifício.

- E será isso possível? -  continuou Vampa. -  Sabe que terrível palavra pronunciou agora? Que a esquecesse! Oh, não, não é possível!

- Levante-se e retire-se - disse Eugénia. -  O impulso momentâneo do sentimento que me confessa pode ser classificado como loucura, se quiser prolongá-lo.

- Ao menos uma palavra de esperança. - Julga-se com direito a exigi-la? - perguntou Eugénia.

- Suplico-a!

- Senhor, isto não passará de uma dessas entrevistas inacreditáveis de alguns romances. Espero que a rapidez do pensamento a deixe esquecida nas sombras e nas ruínas que nos cercam, onde sem dúvida já têm ressoado palavras semelhantes às suas e que não foram repetidas fora deste recinto. Amanhã rir-se-á de si próprio, mas não de mim.

- Compreendo-a -  disse Vampa, com um sorriso repassado de amargura. -  Só poderá acreditar nas minhas palavras quando se convencer que o tempo não as desmente!

- Bem vê, nem sequer o conheço! - tornou Eugénia.

A estas palavras, o salteador levantou-se e o rosto cobriu-se-lhe duma espessa nuvem de tristeza. O seu olhar ardente e apaixonado caiu sobre o rosto de Eugénia.

- Tem razão. Todavia, segui-la-ei por toda a parte!

Dizendo isto, envolveu-se na capa e afastou-se,

embrenhando-se na escuridão das ruínas. Benedetto que presenciara toda a cena, saiu

também do seu esconderijo e seguiu as pisadas

de Vampa, murmurando:

“Estou a fazer progressos no meu estudo arqueológico. Reconheço que o Coliseu é lugar certo de encontros amorosos, tão certo que os interessados não precisam designá-lo.”

- Minha querida amiga, como te sentes? - perguntou Eugénia.

- Ah, o susto gelou-me! - murmurou Luísa. - Asseguro-te que foste vítima de pânico insensato.

- E o homem?

- Qual homem? Bem vês que aqui não há homens, há - Cinicamente - noite, sombras, isolamento. Vamo-nos embora.

As duas amigas dirigiram-se para a escada, no cimo da qual estava o paciente cicerone que se levantou com um sorriso encantador para as receber, o que lhe granjeou da parte de Eugénia o dobro da espórtula convencionada para a explicação sobre Flávio Vespasiano.

Entretanto Benedetto apressando o passo, em breve alcançou Luigi Vampa.

- Ah, já desesperava de tanto esperar! - disse-lhe com estudado enfado. - Julguei que tivesse ido primeiro a uma entrevista amorosa, mestre!

- Desculpe -  murmurou Vampa. -  Embrenhei-me nas ruínas e desencontrámo-nos.

- Começava a pensar que não estava interessado neste encontro.

- Pelo contrário, pois creio que me prometera dar-me os devidos esclarecimentos.

- Sem dúvida, e vou dar-lhos. Recebi da sua mão oito mil piastras para comprar com elas o bom-humor daquele velhaquete do barão Danglars; o homem aceitou o dinheiro e recebê-lo-á com toda a delicadeza, ocultando o seu nome verdadeiro. Agora pode apresentar-se em casa do seu antigo hóspede das catacumbas. Eugénia, a filha dele, deve visitá-lo amanhã.

O salteador estremeceu de prazer ao ouvir estas palavras. Benedetto continuou:

- Estamos pois de acordo. Efectuará o rapto de Eugénia e propor-lhe-á o resgate proporcional aos haveres que lhe atribuímos. Depois faremos contas, mestre.

- Muito bem -  disse o salteador, reflectindo um momento.

- Agora vou a casa do barão. Entretanto, é necessário passar algumas ordens a Peppino, o que

só poderá ser feito por pessoa de confiança.

- Quer desempenhar essa missão?

- Estou pronto. Onde encontrarei Peppino?

- Nas catacumbas de S. Sebastião - tornou o salteador. -  Já não devo ter segredos para si. Seguindo ao longo da via Apia, encontrará à sua esquerda a excavação profunda do circo de Cara-cala, e aí encontrará um atalho tortuoso que desce por entre a rocha; no topo do atalho, à sua direita, é a entrada secreta das catacumbas.

- E se encontrar alguma sentinela que me vede o passo?

- Dar-lhe-á a senha e passará.

- Dê-ma, então.

- Al su comado! -  respondeu Vampa.

- E as instruções para Peppino?

Estão aqui.

Deu-lhe um papel manuscrito.

- Conte com o meu zelo.

Benedetto afastou-se rapidamente e saiu do Coliseu, ao passo que Vampa o seguia com um olhar sinistro, murmurando:

“Vai, porque não voltarás. o meu segredo ficará sepultado contigo!”

 

CAPíTULO 21

Comédia

BENEDETTO não se dirigiu às catacumbas de S. Sebastião, conforme Luigi Vampa lhe havia recomendado. Todavia, o famoso salteador que desde há muitos anos assolava os arrabaldes de Roma, que era misteriosamente protegido pelas autoridades civis, o homem que possuía uma inteligência tão vasta quanto fatal, acreditou cegamente que os seus planos iam de tal maneira combinados, que lograria impunemente os seus desejos, ao passo que Benedetto acabaria às mãos dos salteadores à entrada das catacumbas, logo que os seus lábios pronunciassem a falsa senha que lhe dissera.

Luigi Vampa andava positivamente alucinado pelo delírio do sentimento que o dominava; o sangue, elevado a uma temperatura febril, ofuscava-lhe a razão; o olhar, inflamado, não via nem conhecia os homens e as coisas com a perspicácia superior que outrora o caracterizava.

O delírio do salteador assemelhava-se ao delírio fatal que precede a morte, que a pouco e pouco se extingue e deixa o homem num entorpecimento brutal, sem dor, sem sofrimento, e durante o qual se efectua a separação eterna entre a alma e o cadáver.

Benedetto, pelo contrário, sem o menor sentimento que o alucinasse, combinava com placidez as suas ideias e calculava com firmeza até que ponto devia caminhar, sem o perigo de cair em Scylla ou em Caríbydes, isto é, sem acabar às mãos de Vampa e sem se descobrir aos olhos da justiça.

De um destes perigos estava ele salvo. Vampa, contando que o assassinassem no momento em que se apresentasse à entrada das catacumbas, não pensou mais em Benedetto, o qual já havia visitado o intendente da polícia e nada receava por este lado.

Vampa saiu pois do Coliseu meia hora depois das duas cantoras e envolvendo-se bem na sua capa, dirigiu-se à estalagem de Londres, na via del Corso.

Procurou mestre Pastrini e este recebeu-o ime-diatamente no pequeno gabinete que lhe servia de escritório.

- Ah, signor Luigi! - exclamou ele. - Há muito tempo que não tenho a honra de o receber. Que deseja?

- Uma carruagem com os requisitos necessários para me servir bem - respondeu Vampa.

Creio que a última que o serviu preencheu em tudo esses requisitos, signor Luigi. Foi há bas-tante tempo, mas recordo-me bem. A carruagem saiu daqui conduzindo um francês que levava na sua carteira uma quantia elevada recebida na casa bancária Thompson & French havia meia hora. A carruagem rodou com velocidade até às proximidades de Aquapendente, onde fez as suas mudas, voltou depois por outras estradas na direcção de Roma e foi parar à estrada de...

- À estrada de?... - interrompeu ràpidamente Vampa, que escutava o estalajadeiro com inquietação.

- Lá isso é segredo, segredo que o postilhão não revela sob perigo de morrer - respondeu mestre Pastrini.

- Muito bem, nem você leva a curiosidade ao ponto de pretender conhecer coisas que não lhe interessam!

- Sangue de Cristo! - exclamou Pastrini. Diz a pura verdade, signor Luigi.

- Apronte-me pois uma carruagem como a que mencionou e um postilhão tão inteligente como o que conduziu o francês ao seu palácio.

- Carruagem e postilhão podem ser os mesmos.

- Tanto melhor.

- Quando precisa deles?

- Imediatamente.

- Anda muito depressa, signor Luigi.

Assim é preciso! - disse Vampa com modo imperioso.

- Todavia há-de dar-me tempo para lhe dizer duas palavras sobre vários assuntos que julgo urgentíssimos.

- Fale.

- Em primeiro lugar - disse mestre Pastrini - saiba que o seu imediato não tem aparecido aqui.

Teria desobedecido às minhas ordens, se abandonasse por um momento que fosse o nosso quartel-general - respondeu Vampa com enfado.

- Ora, como o Peppino não tem aparecido, recebi uma importante confidência de um agente particular da casa Thompson & French que, como sabe, se interessa muito pela sua segurança.

- Pudera! - exclamou Vampa. - Muitas vezes tenho feito reverter nos cofres, com um pequeno lucro, os capitais que os seus depositantes aqui vêm extrair deles! A casa Thompson & French não pode comigo.

- E o caso é que está sempre alerta com a sua segurança - tornou Pastrini. - O agente particular de quem lhe falei veio aqui ontem à procura de Peppino a fim de lhe comunicar que um desconhecido, natural de França, se havia apresentado ao intendente da polícia para receber o prémio oferecido pela sua cabeça.

- Então esse homem já conseguiu a minha cabeça? -  perguntou Vampa sem o menor abalo.

- Todavia espera consegui-la, porque pediu o auxílio da polícia, prometendo guiá-la ele próprio ao seu encontro.

- Em que ponto? -  perguntou Vampa.

- Isso é o segredo do traidor.

- Como se chama?

_É também segredo entre ele e a polícia. - E quando terá lugar essa surpresa?

- Com a maior brevidade, signor Luigi. Deve estar alerta, pois a cabeça não é coisa que se possa perder como um punhado de piastras!

Vampa soltou uma estridente gargalhada, cujo sentido mestre Pastrini não entendeu.

- A esta hora o traidor já recebeu o prémio! -  exclamou Vampa. -  Vamos, mestre Pastrini, eu disse-lhe que queria uma carruagem e um postilhão inteligente.

Mas... e o que eu lhe contei? -  perguntou o estalajadeiro estupefacto.

- De nada vale.

- Como?

- Pastrini — retorquiu Vampa — é muito curioso e isso é mau, porque me desagrada.

O estalajadeiro murmurou uma desculpa e rodou sobre os calcanhares, saindo imediatamente do seu pequeno escritório, onde o salteador ficou esperando a chegada da carruagem.

Meia hora depois, Vampa saía da estalagem de Londres e lançava-se para o interior de uma carruagem puxada por excelentes cavalos, enquanto Pastrini aproximando-se do postilhão, lhe dizia em voz baixa:

- Para fora das barreiras em andamento moderado. Sua Excelência lhe dirá o resto.

O postilhão picou os cavalos e a carruagem começou a rodar ao longo da via del Corso. Eram nove horas da noite.

Meia hora depois, já longe das portas da cidade, chegaram a um ponto em que a estrada se desdobrava por três caminhos diferentes. O postilhão susteve os cavalos e esperou as ordens do viajante.

Vampa deitou a cabeça pela portinhola e disse:

- Estrada de Aquapendente.

A carruagem pôs-se em movimento, porém com o dobro da velocidade que até ali tinha trazido.

O barão Danglars, seguido por um criado que levava nas mãos um castiçal com uma vela acesa, acabava de passar revista à sua nova propriedade, desde a loja até quase ao telhado. O barão mandara fazer limpeza geral ao pequeno edifício, com a ideia de no dia seguinte receber a visita de Eugénia e da sua amiga d'Armilly; portanto examinava escrupulosamente o trabalho dos dois criados, mostrando-se todavia pouco satisfeito.

- Devo dizer-lhes que não me agrada o que vi - disse ele entrando na sala e aproximando-se duma enorme cadeira de madeira dourada em relevo e forrada de veludo roxo que, pelo seu gosto e estado de velhice, anunciava pertencer a uma época afastada. -  As minhas ordens foram cumpridas, porém mal executadas.

- Fizemos quanto era possível, excelentíssimo -  respondeu o criado—mas por muito asseadas que estas salas estejam, sempre lhes hão-de parecer empoeiradas, com a aparência triste destes móveis caducos e das paredes cheias de mofos! Se tudo isto tivesse sido modificado como o foram as cortinas das janelas, V. Ex.a veria como estas salas brilhavam.

- É um homem sem conhecimentos! -  bradou o barão. -  De contrário, daria mais apreço a estes antiquíssimos móveis, restos únicos duma ilustre família de Roma. Quanto às paredes, imbecil, dir-lhe-ei que apresentam um quadro magnífico de toda a fábula.

- V. Ex.a tem profundos conhecimentos - tornou o criado - por isso não me admiro que preste tanta atenção a estes restos de antiguidade.

- Sim, que não lhes seria necessário muito para remontarem talvez à época de Alexandre VI. Ora, já vê que estes móveis, estas cadeiras onde poderia ter-se sentado algumas vezes um Spada, por exemplo, um descendente dessa famosa família de príncipes, cuja riqueza se tornou proverbial por muito tempo em Roma, estas cadeiras não são para desprezar. O dourado está denegrido? O veludo safado? Pois tudo isto lhe aumenta o valor. Vamos, resta-me perguntar-lhe se cumpriu o que determinei a respeito duma mulher de meia idade, capaz de exercer as funções de criada de quarto de minha filha durante os dias que ela se demorar aqui.

- Já veio, excelentíssimo. É uma boa mulher da cidadela próxima e respondo por ela como por mim próprio.

- Muito bem, ao menos você não tem o defeito de ser esquecido. É o que vale.

- Faço a diligência para lhe agradar.

- Então alumie o caminho, porque a ceia deve estar na mesa.

- Estava para preveni-lo disso mesmo, senhor. - Vamos.

O barão, seguindo o criado que alumiava o caminho saiu da sala, e atravessando um pequeno corredor, entrou na casa de jantar, onde outro criado o esperava junto do aparador.

A ceia estava na mesa. O barão tomou o seu lugar em frente do único talher, lançando em redor de si um olhar satisfeito, acompanhado de um pro-fundo suspiro.

«Vamos, Danglars», disse ele consigo mesmo. «Estás só, mas estás bem, e poderás melhorar de posição em pouco tempo. Decididamente, há alguma coisa boa neste mundo, a cuja influência eu devo grandes benefícios. Acreditei por um momento que essa coisa boa fosse minha mulher, que me dava a desforra do tempo em que foi má; porém, já passou o prestígio, e agora creio que...”

O som agudo da sineta do portão do jardim interrompeu bruscamente o raciocínio do barão Danglars. Os criados fizeram um movimento mas detiveram-se, olhando indecisos para o ilustre banqueiro retirado.

Antes que houvesse tempo para pronunciar uma palavra que fosse, o sinal repetiu-se segunda vez com tal violência, que todos julgaram que a sineta tivesse caído de encontro às grades de ferro da porta.

- Que vem a ser isto? - inquiriu o barão, levantando-se e tornando a sentar-se com um só movimento.

- Batem à porta - disseram os criados.

- Batem à porta - repetiu o barão - e batem de modo que fariam fugir as sombras de Lethes. Batem terceira vez sem a menor cerimónia. Ah! Corram imediatamente, imbecis! - continuou ele inspirado por nova ideia. - Amanhã ponho-os na rua! Estão a bater e ficam aqui pasmados? É sem dúvida a menina Danglars, a minha filha, que aproveitou a beleza da noite para acordar amanhã em minha casa. Isto é por certo uma surpresa agradável! Vamos, mais dois talheres nesta mesa, acendam todas as velas daquela serpentina, aproximem cadeiras. Ah! Mostrar-lhe-ei que o coração de um pai está sempre prevenido para receber a filha única!

O barão passeava agitado pela casa, observando como os criados executavam as suas ordens. Pelo cérebro passavam-lhe mil pensamentos. Entretanto ouviu ranger a porta do jardim e viu que uma carruagem parava junto da escada que conduzia à sala.

Encaminhava-se para ali quando se encontrou com o criado que voltava.

- Então? -  perguntou com ansiedade.

- Excelentíssimo, é um cavalheiro que me assegurou ser da intimidade de V. Ex.a e que mandou entrar imediatamente a carruagem no pátio, apenas eu abri a porta.

- Um cavalheiro!? -  exclamou o barão. -  Espero ao menos que tenha dito o nome?

- Não, excelentíssimo, não disse.

- Miserável! Nunca passará de um criado de aldeia! Isto é imperdoável! Ah! Um cavalheiro que diz ser da minha intimidade! Tragam-me um roupão mais decente do que este. Depressa! Mandem subir, iluminem a sala! Corja de tratantes, hei-de ensiná-los!

Dizendo isto, Danglars tinha já despido uma das mangas do roupão e estava a ponto de despir a outra, quando o mencionado cavalheiro que o procurava, apareceu de súbito à porta da sala de jantar, dizendo com ironia:

- Devagar, devagar, senhor barão, o hábito não faz o monge.

- Ah! -  exclamou Danglars, recuando um passo e mudando subitamente de cor, esquecendo-se ao mesmo tempo de vestir o novo roupão ou despir totalmente o que já tinha.

o recém-chegado sorriu, e caminhando com toda a confiança, foi sentar-se à mesa, em frente de um dos talheres.

o barão, que mal podia ter-se nas pernas, recuou um passo para buscar apoio contra a parede.

- Senhor barão Danglars -  disse o cavalheiro -  vista o seu roupão, do qual parece ter-se esquecido. Precisa de dar algumas ordens aos seus criados, e espero que o amigo os não demore, porque teremos o desgosto de comer a ceia totalmente fria.

- É verdade, teremos esse desgosto — repetiu o barão, com a voz presa na garganta.

- Senhor barão, dê as competentes ordens. Parece-me tanto!

- Sim, senhor. Então eu devo dar algumas ordens? Não compreendo.

- Ora, mande recolher a minha carruagem na cocheira que está ao lado do jardim, pois não quero que os cavalos se constipem!

- O senhor conhece bem esta casa não é verdade? -  perguntou o barão com o olhar pasmado fixo no rosto do recém-chegado.

- Parece que sim, senhor barão, porém está a

perder tempo sem necessidade. Se não quer dar

as suas ordens, irei eu próprio fazer esse serviço.

- Recolham a carruagem e os cavalos de... - Ah, é quanto basta!

Em seguida, dirigindo-se ao criado que se dispunha a sair, continuou:

-O  postilhão que volte para cear com vocês. Depois dê-lhe uma lanterna e uma manta para se cobrir enquanto dorme.

Voltou-se para o outro criado.

- Pode retirar-se, o senhor barão dispensa-o.

O criado notando que o barão não o contradizia, inclinou-se e saiu. Ficaram ambos sós.

- Estou persuadido - disse Danglars com esforço -  que não nos entendemos bem. O senhor sem dúvida está enganado.

- Em quê?

- Parece-me que em tudo.

- Eu é que não o entendo, meu caro. Mas ceemos, entretanto, porque lhe declaro que ainda não comi esta noite.

O barão ter-se-ià dispensado de cear sem o menor desgosto, porém era necessário mostrar ânimo; assim, começou a caminhar encostado à parede e sentou-se à mesa, deixando entre si e o imprevisto companheiro um lugar e um talher.

- Pelo que vejo, não contava estar eu só. julgaria que eu viesse acompanhado?

- Para falar a verdade, eu não esperava uma coisa nem contava com a outra; isto é, julgava que cearia esta noite sem companhia.

- Eu, porém, resolvi o contrário: gosto mais de viajar durante a noite.

- E esta está realmente bela! Faz um pouco de calor, não acha? -  perguntou o barão, limpando o rosto com o lenço.

- Ai, senhor barão, olhe que pôs o lenço no prato em lugar de o meter na algibeira.

O barão corou e desfez logo o engano.

- Não nos víamos há bastante tempo, senhor Danglars, desde aquela noite em que tive o gosto de o hospedar no meu palácio.

- Bom palácio, pela minha alma! - murmurou o barão. - Estes malditos salteadores romanos têm a mania de chamar palácios às covas em que se escondem!

- Sofreu ali aquela pequena, peça que lhe pregou o conde de Monte Cristo, mas no fim de tudo há-de confessar que lhe apresentei uma boa ceia, senhor barão! Porém, que vale o passado que já não tem remédio, e o futuro que não nos pertence. Tratemos do presente, que é nosso. Eu desejo que a minha cama, esta noite seja no seu quarto.

Desta vez, o barão sentiu os cabelos levantarem-se-lhe no crânio e um frio excessivo correr-lhe ao longo da espinha dorsal.

- A sua cama? - exclamou ele.

- Então que é isso, meu caro? Será costume não se dormir em sua casa?

- Sim, senhor. Porém o que não é costume, é... É?...

- Tudo aquilo que for extraordinário! -  respondeu por fim o barão, largando o garfo e a faca sobre o prato com um gesto de enfado.

- Concordo! tornou Vampa. - Todavia, deveria esperar que eu pernoitasse em sua casa.

-  Eu, nunca. -  respondeu ele.

- É verdade - continuou o salteador. - Compreendo-o e hei-de saber desvanecer-lhe o escrúpulo. Agora não seria má ideia que nos recolhêssemos. Tenho necessidade de descansar.

- Ah! Mate-me de uma vez! -  exclamou Danglars, levantando-se todo trémulo. -  Porém, acredite que não encontrará em minha casa uma quantia igual à que já me roubou no seu covil.

- Que é isso, senhor barão? está alucinado! - retorquiu Vampa, levantando-se também. - Já esqueceu o que se lhe disse?

- Então que foi? Que nova ideia terá em mente?

- A sua memória é fraca, senhor barão, mas eu vou avivar-lha. Veio aqui um homem, seu compatriota, chamado Benedetto, o qual, depois de conversar algum tempo com o senhor, teve a honra de lhe passar para as mãos alguma coisa de grande valor. Não sei se foi papel, se metal, talvez uma e outra coisa.

- E depois? -  perguntou o infeliz barão, mudando alternadamente de cor.

- Depois? Com os diabos! É muito esquecido, senhor Danglars. O homem de quem lhe falo, aquele amável Benedetto, falou-lhe de mim. Pois aqui me tem.

- Mas o que há de comum entre o senhor e Benedetto? -  inquiriu o barão.

- Agora, não há nada - respondeu Vampa com frieza.

- Que quer de mim?

- O cumprimento do que ajustou.

- Pois eu ajustei cumprir alguma coisa?

- Acabemos com isto, senhor barão - disse Vampa, começando a impacientar-se. - Acha pouco o dinheiro que recebeu e meditou sem dúvida que a minha visita poderia render-lhe mais. Eu não faço questão de uma ridicularia assim, porque já fui banqueiro como o senhor. Aí tem a minha bolsa, senhor Danglars, porém seja discreto.

Dizendo isto, Luigi Vampa atirou com uma bolsa para a mesa em frente do barão, o qual estava cada

vez mais embaraçado.

- Oh! -  continuou o salteador, vendo que o

barão hesitava. -  Asseguro-lhe que contém talvez

o dobro do que recebeu. É a bolsa de um romano -  acrescentou ele com orgulho selvagem, despejando a bolsa com rapidez e espalhando o oiro em frente dos olhos esbugalhados de Danglars. -  Estaremos agora de acordo?

- O  que pretende então, senhor Vampa?

- Uma coisa muito simples: hospedagem por hoje e amanhã.

O barão estremeceu; porém, mal as suas mãos entraram em contacto com o oiro, a influência daquele metal apaziguou-lhe totalmente o espírito agitado.

“OS diabos me levem, se entendo alguma coisa de todo este negócio”, pensou o barão guardando o dinheiro. “Deixa-lo. Imaginarei que esta noite fui à Comédia de Paris e não vi senão o segundo acto, ficando por consequência sem compreender o princípio da história”.

- Estou às suas ordens, senhor Vampa -  acrescentou ele em voz alta, acompanhando as palavras com um sorriso amável.

- Eu espero as suas, senhor barão -  disse Luigi Vampa.

- Terei muito gosto em lhe ceder o meu leito.

Eu acomodar-me-ei num canapé que tenho no meu quarto e onde costumo deitar-me durante o dia.

- Ficaria incomodado.

- Pelo contrário, senhor. Deitar-me-ei mais tarde, pois ainda tenho de escrever algumas cartas

para França.

- Como quiser.

Vampa chamou os criados, ordenando-lhes que iluminassem o quarto e preparassem a cama.

Decorridos alguns minutos, sem pronunciarem uma só palavra, ambos saíram da casa de jantar para se recolherem.

Vampa, sem se despir, cobriu-se com a roupa da cama e conservou-se de vigília, espiando os movimentos do barão, o qual depois de arranjar uma folha de papel se sentou, começando a escrever.

Quando acabou de escrever, recostou-se na cadeira e reflectiu:

“Esta visita de Vampa transtorna-me o prazer que eu esperava gozar amanhã. Enfim, quatro mil piastras valem o sacrifício, e Eugénia, prevenida por esta carta de que um pequeno negócio me chama longe daqui, reservará a sua visita para qualquer outro dia”.

Interrompeu-se e olhou disfarçadamente para Vampa, dizendo para consigo:

“Creio que conheço agora o primeiro acto da comédia. As autoridades romanas, cansadas de tolerar as habilidades do senhor Vampa, andam-lhe na pista e o famoso salteador obrigado a refugiar-se, procura asilo em minha casa. Vamos, não levei muito caro pela hospedagem de um bandido temível, cuja cabeça tem um preço considerável! Decididamente, Danglars, a fortuna protege-te!”

 

CAPíTULO 22

A comédia complica-se

Ao amanhecer do dia seguinte, um dos criados do barão depois de haver recebido dele uma ordem particular, saía de casa e dispunha-se a atravessar o jardim, quando a voz de Luigi Vampa o deteve.

- Queira servir-me numa coisa!

- Em tudo, excelentíssimo.

- Segundo vejo, vai passar pela porta da cocheira: bata com força para despertar o patife do postilhão que ainda dorme, e entregue-lhe este dinheiro para que vá consertar o estômago a uma venda qualquer.

- Sim, excelentíssimo.

O criado recebeu uma pequena moeda de prata e partiu, enquanto Vampa subia a escada e entrava na sala onde encontrou o barão, que o procurava.

- Não posso dormir a manhã na cama - disse-lhe Vampa - o ar da manhã faz-me bem.

- A mim sucede-me o mesmo, senhor Vampa. Apenas vejo raiar o dia, levanto-me.

- É um costume bem impróprio de um milionário.

Entretanto, o criado batia desapiedadamente à porta da cocheira, e cinco minutos depois, o postilhão, acordando sobressaltado, correu a abrir.

- Que temos? -  perguntou ele.

- O seu patrão manda-lhe este dinheiro, meu amigo. Creio que é para lhe evitar o frio da manhã.

O postilhão recebeu o dinheiro e sorriu com ironia, lançando ao criado um olhar irrequieto e medindo-o dos pés à cabeça.

- Espere, amigo - disse, abotoando a capa e pondo o chapéu. -  Uma vez que é o portador, gostaria de oferecer-lhe do meu almoço.

- Obrigado, mas estou com pressa.

- Ora, histórias! Isso recomendam sempre os patrões, mas nós devemos calcular bem o tempo, de modo que fique um pedaço livre para beber uma pinga. Venha daí.

- Já lhe disse que é impossível.

- Aonde vai? Aposto que leva uma carta para entregar.

- Diz a verdade, vou à cidade. É um bom pedaço de caminho.

- Vai a pé?

- Vou. Tenho quatro horas para fazer o caminho e talvez que não seja preciso chegar positivamente” a Roma.

- Então porquê?

- Se tiver a felicidade de encontrar a pessoa para quem levo a carta do senhor barão.

- Meu amigo, fez bem em falar, porque posso ser-lhe mais útil do que julga.

- Como?

- Eu vou partir para a cidade, e neste caso, como os meus cavalos andam mais depressa do que as pernas de qualquer de nós, temos tempo de beber primeiro uma pinga; depois, salta para a almofada da carruagem e faz o seu caminho sem se cansar.

- Isso parece-me um bom arranjo e desde já lho agradeço.

- Então, vida alegre! - bradou o postilhão, agarrando-lhe no braço e correndo ambos para a estrada, na direcção de uma pequena venda que ficava a certa distância.

Entretanto, as horas foram correndo. As sete, o barão Danglars estava a almoçar com a melhor vontade em companhia de Luigi Vampa, quando ambos viram, pela janela que lhes ficava em frente da mesa, entrar no jardim uma carruagem que foi parar, como a de Vampa na noite antecedente, junto da pequena escada que conduzia à sala.

O barão sobressaltou-se e Vampa, conservando a sua fisionomia impassível, limitou-se unicamente a perguntar:

- Esperava alguma visita, barão?

- Eu? Ah! Asseguro-lhe que... Mas quem será? Não posso imaginar.

- Ouço os passos do criado, ele dirá quem é. -  Com efeito! Mas seria incrível, eu não esperava...

- As senhoras Eugénia Danglars e Luísa d'Armilly - anunciou o criado, abrindo a porta.

- Como! -  exclamou o barão, como fulminado por um raio.

- Creio que será sua filha, a senhora Eugénia Danglars?

- É, é, não há dúvida!

“Oh! Esta cena é difícil!” dizia o barão consigo mesmo.

Depois em voz alta, acrescentou:

- O senhor talvez não queira aparecer, nesse caso permita que...

- Pelo contrário, terei muito gosto em cumprimentar a senhora Eugénia Danglars.

- Mas o seu nome - disse-lhe o barão em voz baixa e tremendo de susto. -  O seu nome é tão conhecido! Ocorreu-me uma ideia, adopte de momento um nome suposto.

Vampa sorriu e respondeu:

- Aprovo, senhor barão. Imagine o senhor qual deve ser.

- o  de uma família ilustre, por exemplo, um Spada!

- Seja - respondeu Vampa, cuja fisionomia se obscureceu subitamente.

- Assim tudo irá bem -  continuou o barão, preparando-se para sair e fazendo sinal a Vampa, que se deixou ficar sentado.

As duas amigas estavam na sala e olhavam com curiosidade para os antiquíssimos móveis que decoravam o sombrio recinto.

- Minha amiga -  disse Eugénia -  profetizo que teremos um dia agradável. Meu pai é um bon vivant e há-de fazer-nos rir com as suas novas ideias. Conheço que este dia me fará muito bem e foi por esse motivo que o apressei.

Tinha ela acabado de dizer estas palavras, quando o barão apareceu na sala. A fisionomia do senhor Danglars se bem que apresentasse a expressão do mais completo regozijo, tinha um não sei quê de sobressalto e inquietação que não escapou aos olhos de Luísa d'Armilly. Eugénia correu a beijar-lhe a mão e Luísa saudou-o com modo afável.

- Veja, meu pai - disse-lhe Eugénia — veja como lhe pago a sua visita sem a mínima demora. Não julgue que é pelo receio de lhe ficar em dívida.

O barão ia responder, mas fazendo um gesto como se mudasse completamente de ideias, perguntou:

- Não recebeste uma carta minha?

Não, meu pai.

“Todavia, escrevi-a e enviei-a”, disse o barão para consigo. “Felizmente o portador desencontrou-se com a carruagem”.

- Qual era o assunto da carta? -  perguntou Eugénia.

- Não vale a pena, não falemos mais disso. Dava simplesmente um conselho.

- Os seus conselhos serão sempre bem recebidos.

- Querida filha! -  exclamou o senhor Danglars, abraçando-a. -  Senhora d'Armilly, que tal lhe parece a minha pequena propriedade? Comprei tudo isto em muito mau estado, como vê. Porém esta antiguidade inspira-me tão profundo respeito, que determinei não as sujeitar ao género da nossa época.

- Eu prezo estas relíquias dos séculos - respondeu Luísa -  e creio que Eugénia é do meu parecer.

- Estimo isso — volveu o barão muito inquieto e olhando furtivamente ao longo do corredor que dava para a sala de jantar, onde viu a sinistra figura de Vampa sentado à mesa, sobre a qual apoiava os braços, escondendo o rosto nas mãos.

Fazendo um esforço sobre si mesmo, Danglars tomou a mão da filha e disse:

- Minha filha, a visita não é de cerimónia e por isso não está aqui na sala. O almoço está na mesa. Vamos, que eu terei o gosto de o apresentar.

- Não entendo bem, meu pai! -  retorquiu Eugénia, notando a maneira com que o barão confundia as palavras, almoço e visita, de maneira tal que não era possível entender a qual delas se referia quando empregara o verbo apresentar.

- Fala da nossa visita, que não é de cerimónia -  acrescentou Luísa. -  Senhor barão, muito estimamos que assim seja.

- Não, Luísa -  disse Eugénia -  meu pai não se referia à nossa visita! Todavia, se fizer cerimónias conosco, eu por mim escandalizo-me! De quem falava, meu pai?

- Pois eu ainda lhes não disse que tinha um hóspede?

- Não, senhor.

- Quem é ele?

- É um desconhecido de família principesca -  respondeu o senhor Danglars, limpando o suor que lhe escorria do rosto. -  É um Romanelli Spada.

o barão ficou prostrado quando acabou este improviso.

- Não conheço -  disse Luísa.

o barão, cabisbaixo, aproximou-se das duas amigas, e pouco depois dirigiram-se para a sala de jantar.

Logo que chegaram à extremidade do corredor, Luigi Vampa levantou-se, parecendo esperar o momento de ser apresentado a Eugénia.

- Minha filha, senhora Luísa d'Armilly, tenho o prazer de lhes apresentar o senhor Romanelli Spada.

Eugénia olhou para Vampa e estremeceu violentamente, apoiando-se ao braço do barão, o qual notou com desassossego a comoção da filha.

“Isto complica-se!” disse ele para consigo. “Eles conhecem-se!”

Eugénia, notando a situação difícil em que se encontrava, revestiu-se de toda a presença de espírito e saudou o suposto Spada com um sorriso cheio de doçura.

Nunca a filha de Danglars passara uma manhã tão agradável. Estava ao lado de seu pai, o qual parecia ter-se despedido do antigo rigorismo adquirido no árido terreno dos algarismos em que constantemente trabalhava. Estava também na companhia da sua amiga sincera, por quem professava a maior amizade, e na frente dos seus olhos tinha o homem que lhe inspirava um amor profundo, como o que se sente uma só vez na vida, para sempre!

As horas, essas irmãs inseparáveis que voam constantemente sobre a terra, tão vagarosas quando trazem consigo a dor e o sofrimento e tão velozes quando conduzem o prazer e a alegria, passaram rápidas como o pensamento do homem e Eugénia via com desassossego fugir aquela manhã, aquele dia, que era o mais belo de toda a sua vida.

 

CAPíTULO 23

O rapto

SEM que Eugénia dissesse uma palavra à amiga acerca do hóspede do barão, Luísa conheceu bem que era aquele o homem que inspirava a Eugénia o sentimento que ela já lhe havia confessado. Luísa sorriu com doçura para a amiga e companheira, quando esta, no decurso do dia, lhe descansava no seio a fronte abrasada, ou a apertava contra o peito agitado. Naquele sorriso doce de mulher, naqueles olhares amigos que elas trocavam entre si, ia mais expressão, mais verdade do que nas palavras que pronunciassem.

Luigi Vampa conservou-se sempre sombrio e triste, e na sua fronte criminosa estava estampado o sinal dos sentimentos brutais que o dominavam. O seu olhar impuro, mergulhava com avidez no seio palpitante de Eugénia e ateava ali um fogo poderoso que o agitava. Eugénia sentia em si própria esse domínio fatal! Resistir-lhe era impossível. Disfarçar a perturbação que ele lhe causava, já não cabia nas suas forças. Vampa conheceu com alegria todo o poder do sentimento que inspirava a Eugénia.

- Oh! Ama-me! Ama-me! -  exclamou ele com delírio, vendo-se completamente só no jardim. -  Já não pode ocultá-lo. A sua vaidade de mulher, o seu orgulho de cantora soberana, tudo cede e verga ao peso do meu olhar, que a fascina!

Vampa cruzou os braços sobre o peito arquejante e por muito tempo permaneceu isolado. A sua fronte enrugada e sombria parecia meditar o crime; o seu olhar turvo e incerto, revelava ali a fera toda entregue ao desejo brutal que a devora.

Entretanto, o barão Danglars passeava com as duas amigas pela sala, cujas portas estavam abertas e deixavam ver o jardim com as suas figuras de pedra e os seus últimos raios frouxos, quase em linha horizontal, esses raios que atravessando a Ásia e o Mediterrâneo pareciam vir ali dizer a Roma um adeus até ao dia seguinte.

Eugénia acabava de dizer ao pai que teria muito gosto de pernoitar em sua casa e que se retiraria no dia seguinte às três horas da tarde.

Danglars, vendo que se cumpria a profecia de Benedetto, começou a reflectir maduramente acerca daquela comédia, cujo mistério ele sabia não ter decifrado como o supusera na noite antecedente. Desde o jantar que não via o salteador. Esta ausência começou a inquietá-lo, a ponto de o fazer correr as casas e o jardim à procura dele. O barão pediu que o dispensassem um momento, sob pretexto de ir dar as competentes ordens para se preparar o quarto em que Eugénia e Luísa deviam ficar. Em

seguida saiu da sala, e guiado por um vago receio, quase um instinto natural, subiu apressadamente ao seu quarto para examinar as gavetas da secretária.

Eugénia vendo-se só com Luísa, deu-lhe o braço,

e ambas desceram ao jardim, em cujas estreitas veredas se embrenharam.

Um pensamento tão vago como o receio do barão, guiou Eugénia por entre aqueles caminhos sombrios

e solitários. As folhas secas que cobriam a terra rangiam-lhe sob os pés; outras, que a viração da tarde desprendia sem vida dos ramos onde ia acabando a seiva, caíam-lhe sobre a fronte, como se quisessem fazer-lhe uma misteriosa advertência.

Lágrimas involuntárias borbulhavam nas pálpebras de Eugénia e extinguiam-se-lhe depois no fogo das faces. Luísa não ousava despertar a amiga daquele sonho lânguido que ela gozava, caminhando silenciosa a seu lado; apenas lhe respondia com um meigo sorriso quando Eugénia lhe lançava um suplicante e terno olhar.

De repente, ao virar uma das ruas, Luísa estremeceu, vendo a certa distância a figura de Vampa;

o seu olhar, cheio de fogo, brilhava na sombra que começava a entrar naquela parte do jardim.

Eugénia também o tinha visto.

Houve um momento de silêncio e de indecisão.

Recuar seria uma desfeita declarada a um homem cujas maneiras e nome indicavam ser um perfeito cavalheiro; portanto, Luísa continuou o seu caminho ao lado de Eugénia, enquanto Vampa avançava para lhes falar.

- Um ar puríssimo se respira neste jardim -  disse ele - e creio que não tive mau gosto em vir respirá-lo, porque me parece que também o procura, minha senhora.

- É verdade senhor -  respondeu Luísa -  porém a tarde vai' arrefecendo e a noite de Outono convida antes para a atmosfera temperada da sala do que para o ar livre do jardim.

Eugénia lançou-lhe um olhar suplicante.

- Terei muito gosto em acompanhá-la -  disse Vampa.

Eugénia teria preferido o ar fresco e vivificante do jardim à atmosfera temperada da sala; porém, não teve forças para proferir uma palavra, e deixou-se conduzir pela amiga.

Vampa caminhou ao lado delas.

guando chegaram próximo da escada, ele deixou subir primeiro Luísa, mas quando Eugénia se preparava para segui-la, falou-lhe:

- Minha senhora, permita que lhe diga adeus - disse com voz trémula, mas profunda. eugénia parou e voltou-se, perguntando:

- Deixa-nos?

- Talvez para sempre.

- Que diz?

-A Itália mata-me!

- Que procura então fora de Itália?

- Esquecer, se for possível, um sentimento forte que me domina. Em Itália será impossível esquecê-lo!

- E que motivo tem para procurar esquecer esse sentimento?

- Ah! - disse Vampa com um sorriso amargo. quando se ama e sofre como eu, minha senhora, não há senão dois extremos marcados em toda a enxurrada das nossas sensações: recompensando essa dor, , esse sofrimento, ou o esquecimento total da felicidade perdida.

- Então acha que não deve procurar senão o esquecimento total?

- Ainda o pergunta, minha senhora?

- Haveria por acaso alguém que o fizesse mudar de ideia, de semelhante resolução?

- Havia, sim, minha senhora, e com uma simples palavra.

- seria muito feliz essa pessoa! -  murmurou Eugénia.

- O que posso assegurar-lhe é que ninguém, excepto eu e a Providência, será capaz de calcular a ventura que experimentaria no momento em que ouvisse uma só palavra tão forte e positiva que tivesse força para mudar a minha resolução desesperada! Ah! Imagine o homem que voltava da morte tormentosa, se a morte não é um aniquilamento total de corpo e alma à vida enriquecida com um prazer inexplicável! Qual seria a sua sensação?... Poderá por acaso alguém concebê-la?

- Senhor, tome cuidado, pois excede os limites do verosímil! Um amor profundo como os homens o sentem, acredita-se sem dificuldade por uma simples palavra; porém, o amor expresso nos idílios de uma imaginação engenhosa ou exaltada... quem há aí para lhe dar crédito?

- Tem razão, minha senhora -  tornou Vampa - ninguém o acredita, é uma loucura expô-lo ao riso indiscreto de toda a gente. Faz como todos, ri também do sentimento que honestamente lhe confessei.

- Como quer que o acredite? Que provas me dá?

- Quer talvez um ano dessas provas compassadas para as quais concorre quase sempre o cálculo e o estudo? Ah, não farei tal! Vou partir.

Vampa deu um passo e Eugénia seguiu-o.

- Espere - disse ela involuntàriamente.

- Que deseja de mim, senhora? -  inquiriu Vampa com um gesto sombrio.

- Ah, perdoe! A falar a verdade, o que haverá que o possa deter ao lado de quem lhe é indiferente?

- Senhora -  disse Vampa— não duvide por esse modo do sentimento que lhe confessei, pois será melhor zombar da mais perfeita obra da natureza! Amo-a! Limito a minha ambição nesta linda mão, porque dela depende toda a minha felicidade ou a desgraça que deve ferir-me.

Dizendo isto, Vampa apoderara-se-lhe da mão alvíssima, depondo nela um beijo ardente, sem que Eugénia fizesse o mais pequeno movimento para a arrancar.

- Insensato! - continuou ele. - No seu génio o nobre soberano não cede à confissão de um amor sincero, o qual não deixará de ser a seus olhos um simples capricho. Adeus para sempre, Eugénia, é para sempre! Ainda a vi uma vez, respirei o mesmo ar que respirou, foi um dia feliz. Agora vem a desgraça!

Vampa largou-lhe a mão e ràpidamente deu uns passos na direcção da cancela do jardim. eugénia seguiu-o e, dominada por um impulso irresistível, exclamou:

- Não, não partirá sem que eu saiba o dia do regresso!

 Que delícias de ilusões me embriagaram hoje! -  continuou Vampa, detendo-se um instante e pegando-novamente na mão de Eugénia. - Que delícias de ilusões me cervem hoje! Que valem elas agora quando a desgraça me fere! Eugénia, pense no homem que a amou como se ama uma única vez na vida! depois, abrindo ràpidamente a cancela, saiu do jardim. Eugénia que não lhe largara a mão, continuava a seu lado, trémula, arquejante e dominada por um sentimento poderoso que aumentava grandemente, queimando-lhe o sangue e produzindo-febre e delírio.

Vampa olhou em volta de si e viu a sua carruagem estacionada a pequena distância.

- Senhora, esta porta separar-nos-á para sempre. - Amanhã talvez já não se lembre de mim! Agora volte para dentro.

- Amo-o, amo-o. Não me abandone!

- Não! -  exclamou Vampa cingindo-a fortemente a si.

Depois desatou a correr na direcção da carruagem.

Eugénia soltou um grito, onde havia a expressão mista e incompreensível do prazer e da surpresa.

O barão Danglars, tendo acabado de passar revista às gavetas da sua secretária e de se certificar que as fechaduras estavam em perfeito estado, dirigiu-se para a sala. Deparando com Luísa d'Armilly, perguntou-lhe por Eugénia.

- Eugénia passeava agora mesmo no jardim. Todavia, a noite avizinha-se e eu vou pedir-lhe que se recolha.

- Acompanho-a, senhora d'Armilly -  disse o barão.

Luísa inquieta com a presença do barão, caminhou com rapidez e desceu a pequena escada onde supunha encontrar Eugénia a escutar as palavras amorosas do suposto príncipe Spada; porém ficou surpreendida não vendo nem um nem outro.

- Então onde está Eugénia? -  perguntou o barão, descendo também a escada.

- Talvez ande a passear no caminho que conduz ao lago.

- Eugénia! - gritou o barão. - Ninguém responde. Continuemos a procurar.

Danglars e Luísa avançaram pelo caminho que havia em frente da escada. Haviam chegado quase à porta do jardim, quando o grito de Eugénia lhes feriu os ouvidos.

- Meu Deus! Meu Deus! Senhor Danglars, houve aqui uma desgraça, pois acabo de reconhecer perfeitamente a voz da minha amiga!

O barão, movido pelos rogos de Luísa, abriu a cancela e avançou um passo, mas deteve-se e recuou bruscamente para não ser esmagado pelas patas de dois possantes cavalos que avançavam velozmente puxando uma carruagem.

- Ah, senhor barão! -  exclamou Luísa assustadíssima, aproximando-se dele. –  Eugénia não aparece, e aquela carruagem... Ah, meu Deus, valei-nos!

Senhora d'Armilly, diga-me sinceramente o que sucedeu.

- Eu?

- Sim, a senhora. Eugénia estava no jardim e não era só pelo prazer de gozar a frescura da noite: Que diz!?

- Pergunto-lhe se Eugénia estava só!

- Meu Deus! Deixei-a com o príncipe Spada.

- Infame! Celerado! - gritou o barão.

- Jesus! - disse Luísa aterrada, apoiando-se no braço de Danglars.

- Senhora d'Armilly - continuou ele - há dias que começou em minha casa uma comédia terrível! O desfecho é este, acabo de o reconhecer!

- Qual?

- Um rapto! Um rapto!

- Minha querida Eugénia! - exclamou Luísa caindo de joelhos.

O barão cruzou os braços sobre o peito, olhou com desassossego na direcção da estrada, pela qual a carruagem do salteador romano rodava velozmente e murmurou consigo mesmo:

«Se eu tivesse adivinhado isto!”

 

CAPíTULO 24

Campi Lugentes

ERA ainda noite quando a carruagem de Vampa, entrando na via Apia, foi parar em frente do círculo de Caracalla, lugar medonho pelas fábulas que dali tiravam origem e pelo nome temível do salteador que no silêncio da noite e na hora do crime ressoava naquelas sombrias abóbadas calcáreas.

Vampa, completamente entregue ao sentimento que o dominava, não reparara que nem um só vigia lhe havia pedido a senha desde que a sua carruagem rodava por entre os tristes monumentos da via Apia. Tomou nos braços possantes o frágil corpo de Eugénia e, qual novo Plutão, desceu com o seu precioso fardo por entre as sombras da noite até à entrada do seu antro medonho.

Chegando aí, deteve-se um momento como para descansar. Nenhuma voz lhe chegava aos ouvidos: em redor dele esvoaçavam espavoridas as aves nocturnas, cujas asas rijas e ásperas lhe batiam nas faces ardentes pela febre. Nenhuma luz o guiava ao longo daquela abóbada subterrânea; todavia, ele caminhou com firmeza até ao lugar espaçoso onde se encontravam os restos do antigo altar e a mesa que servira outrora de tabernáculo aos festins bacanais dos bandidos. Vampa caminhou na direcção da mesa e ali depôs o corpo de Eugénia, em cuja face de gelo ele colocou os seus lábios ardentes de voluptuosidade.

Todo o horror daquela hora tenebrosa do crime se apresentou à imaginação do salteador, apenas saciou com o pranto amargo da mulher violada a sede abrasadora que o devorava.

Um gemido profundo, cavernoso, rouco e lúgubre como o rugir da fera se lhe escapou do peito. Lançou o olhar incendiado em redor de si, notando com receio, a sombra e o silêncio que os rodeavam.

Nem um dos seus sicários se aproximara para iluminar aquele quadro de violência, nem pedir-lhe em nome dos seus companheiros o quinhão que lhe pertencia daquele crime.

- Não! - bradou Vampa. -  Esta mulher será só minha! Desgraçado do que ousar disputar-ma!

Com uma das mãos trémulas, apertou as de Eugénia, enquanto a outra descansava ameaçadora sobre o punho de uma pistola que tinha no cinto.

- Peppino! -  bradou ele, ouvindo apenas em resposta o eco nocturno das abóbadas.

Depois de uns momentos de expectativa, repetiu, elevando mais a voz:

- Peppino, será que sintam tanto sono que a voz do vosso chefe não os desperte? Malditos, que se deixaram adormecer, esquecendo a vigilância do seu único asilo!

Vampa tirou a pistola do cinto e disparou os dois tiros que restavam, cujo clarão momentâneo se reflectiu sobre o rosto de Eugénia. O salteador, com o ouvido atento, recolheu até o último som que sucede ao eco das rochas, quando repercute o som repentino e forte de um tiro.

De súbito, ao reconhecer que estava só, estremeceu. A sua mão, agitada e fria, apertava ainda a coronha da pistola descarregada.

Ao ver-se desarmado, o sentimento de um vago receio se apoderou dele. Um suor frio lhe inundou a fronte. Era a primeira vez que Luigi Vampa sentia medo, todavia o seu corpo estremecia e resfriava.

“Ter-me-á Peppino atraiçoado?” perguntava a si próprio. “Serei eu vítima de uma cilada imprevista? Não! Não! Isto é incrível! Peppino talvez saísse com os homens para fazer uma boa presa, contando que eu não viesse tão cedo. Mas as catacumbas parecem desertas. Peppino não devia ter saído sem me deixar aqui duas sentinelas; a minha cabeça está desde há longo tempo a prémio, e ainda que eu tenha pessoas interessadas na minha segurança, tenho também muitos inimigos! Todavia, a polícia ignora a entrada secreta das catacumbas, nem tem interesse em descobri-la, porque já algumas vezes os seus miseráveis agentes têm ficado estendidos nas profundidades do circo de Caracalla ou na via Apia, em cujos monumentos eu mando emboscar muita gente. Esperemos, pois, porque Peppino há-de voltar”.

Vampa sentou-se ao lado de Eugénia, iludido ainda pelo último raio de esperança que a sua imaginação concebia, como sucede a todos os homens fracos e pusilânimes que não podem convencer-se da força dessas palavras “tudo está acabado”.

O salteador esperava tudo menos a sua ruína.

As horas decorreram lentamente e Vampa em vão esperava a volta de Peppino. O seu pensamento repelido pelo tempo e pela verdade, de ilusão em ilusão, chegou à derradeira.

Essa foi gradualmente acabando como as outras. Vampa soltou um grito feroz.

Notou pela primeira vez o sono profundo que parecia ter-se apoderado de Eugénia. O corpo que jazia estirado sobre a mesa em que outrora eram colocados os mortos, sobre o mármore que ele e os seus salteadores haviam profanado com as suas bacanais, horrorizou-o. Levantou o braço em direcção da mesa, como para despertar Eugénia, mas o braço não tocou no corpo da vítima, e um riso amargo contraiu os lábios do verdugo.

“De que servirá acordá-la?” disse para consigo. “Os seus gritos, os seus lamentos ecoariam logo nestas abóbadas desertas e tenebrosas como para lhes aumentar o horror que elas me causam agora! E se o sono que lhe cerra as pálpebras for a morte?! Se estou na companhia de um cadáver? Não, não, o seu coração palpita. Ela vive, está apenas cansada de susto e de prazer. Que durma, amanhã acordará”.

Momentos depois, continuou:

“Esta noite não terá fim? Estarei eu condenado para sempre às trevas e ao horror? Será um capricho de uma potência infernal, dar-me por companheira eterna esta mulher que dorme como se estivesse morta, cujos braços me não apertam, cujos lábios permanecem imóveis quando eu os beijo?

Esta mulher que não goza comigo que não sente quanto eu sinto? Que me importa o seu corpo! Eu só o quisera animado em meus braços, palpitante contra o meu peito! Oh, Eugénia!... És a mesma que eu ainda ontem amava com todo o delírio? A que me fascinava, me enlouquecia com o seu gesto determinado e arrogante de actriz? Eugénia, onde está a flexibilidade e elegância do teu corpo? Ei-lo inerte e pesado como o de um cadáver! Onde está o fogo sublime que se revelava na expressão lânguida do teu olhar apaixonado, ou no gesto enérgico da tua fisionomia? Aquele fogo que te dilatava o peito e parecia fazer-te superior a ti mesma? Oh! Nada, nada existe aqui! Será talvez que te sufoque e            aniquile o ar coado destas abóbadas subterrâneas

E húmidas? Será possível que vivas aqui ao meu lado, como eu te vi lá fora? A terra também guarda tesouros e tu serás de hoje em diante o mais pre-cioso que ela esconde aos olhos dos homens! Mas que me importa a tua beleza, se esta noite for eterna! Como poderei eu ver-te e embriagar-me com o teu pranto de prazer? Venha muito embora a morte, mas venha a luz, ainda que seja por um instante! As trevas deprimem-me! Esta atmosfera húmida como a do sepulcro gela-me o sangue nas veias! Agora,  estas abóbadas não são mais do que sempre foram, um sepulcro! Aí por essas paredes jazem os esqueletos no seu sono eterno! Oh! Quantas vezes eu com as minhas orgias e os meus crimes, perturbei este augusto repouso dos finados! E eis-me ainda a perturbá-lo com o último dos meus crimes! O último- repetiu ràpidamente como notando o que tinha dito. - E porque há-de ser o último? Ah, sim, desde há muito tempo que eu penso abandonar o ferro homicida que até hoje tenho empunhado!”

Arrojou para longe a pistola descarregada que ainda conservava na mão e prosseguiu:

“Para longe, arma mortífera e fatal! Agora, Eugénia, vais acordar para me conduzir à felicidade verdadeira. Insensato! Poderá alguém repetir sem horror, sem raiva, o nome do salteador que por muito tempo roubou, assassinou e desflorou sem piedade, que não poupou velhos, nem crianças, nem mulheres, para satisfazer a sua ambição e os seus desejos brutais? Não! Serei condenado! Infeliz! Espero que esta mulher acorde, espero que os seus lábios falem e os seus olhos vejam, sem pensar que o seu primeiro grito, o seu primeiro olhar, será de surpresa e de maldição! Eugénia, perdoa-me!”

Vampa caiu de joelhos ao lado da mesa, escondendo o rosto entre as mãos. Instantes depois, um raio de luz vermelha, brilhando na galeria subterrânea, surpreendeu-o.

Ergueu-se com firmeza, e respirando como se lhe houvera entrado no peito uma nova existência, bradou:

- Peppino!

Ninguém lhe respondeu.

A luz avançava.

- Peppino! - repetiu.

O mesmo silêncio.

Estremeceu. Estava desarmado, sozinho, não podendo fazer frente a qualquer surpresa. A ideia de se ocultar passou-lhe ràpidamente pela cabeça. Conhecia bem a construção do subterrâneo, e ia esconder-se num dos seus profundos recantos, quando de súbito um homem apareceu na entrada do subterrâneo e o deteve com estas palavras:

- Acabo de te reconhecer, é escusado!

A luz do archote que esse homem trazia iluminou o triste recinto. Vampa ficou imóvel.

O desconhecido avançava ràpidamente: na mão direita brilhava-lhe o cano de uma pistola, na esquerda empunhava o archote.

Benedeto! - exclamou Vampa, recuando cheio de assombro e de horror.

- Silêncio, Vampa, ou morrerás! - disse ele, apontando a pistola e elevando o archote acima da cabeça para melhor distinguir o salteador.

“Dar-se-á o caso que os mortos se levantem para me atormentarem?” pensou Vampa.

- Saciaste a tua danada paixão - continuou Benedetto -  e eu venho receber a parte que me pertence.

“Peppino atraiçoou-me”, pensou Vampa.

Depois acrescentou em voz alta:

- Ah! Vens para esse fim? É cedo, Benedetto! Acabo de consumar o rapto e o resgate recebê-lo-ei mais tarde.

- Todavia, preciso hoje mesmo do dinheiro.

- É impossível!

- Não tanto quanto dizes.

- Como assim?

- Exijo-o imediatamente!

Que me importa?

- Importará a tua vida, meu caro Vampa! Eu sou rápido em todas as minhas acções e palavras. Bem vês que estou armado.

- E eu?

- Bem sabes que não!

- Tens-me espiado - murmurou Vampa com raiva, afectando todavia a maior tranquilidade, posto que naquele momento se recordasse do terrível aviso que mestre Pastrini lhe havia dado em nome da casa Thompson & French. -  Se estou desarmado -  prosseguiu -  careço acaso de algumas armas contra ti, quando ao menor dos gritos que soltasse, correriam aqui vinte homens prontos para executar as minhas ordens?

Benedetto abanou a cabeça e com um riso de desprezo, respondeu-lhe:

- Experimenta.

Vampa estremeceu mau grado seu, mas recobrando logo a sua energia, bradou com audácia: -  Miserável!

Benedetto soltou uma gargalhada como se zombasse da raiva impotente de uma criança, e retorquiu:

- Miserável és tu! Tu que te deixaste arrastar por uma paixão brutal, olhando sem ver e ouvindo sem escutar. Vampa, ignoras que eu sei tudo? Estás desarmado e só nestes subterrâneos, tendo por única companhia a vítima da tua paixão violenta! Desde que para aqui entraste, entravas no sepulcro, e esperei a ocasião de me apresentar como coveiro para te despojar da tua mortalha; ouvi os tiros que disparaste e então desci, porque o dragão já não tinha dentes; restar-te-á talvez um punhal... porém eu tenho nesta pistola boas balas para te estender! Vamos, amigo Vampa, ao menos poupa-me o trabalho de te despir pelas minhas mãos, o que equivale a poupares um resto da vida que tenhas ainda no peito. Sei que apuraste quanto dinheiro havia no cofre da quadrilha e é isso que eu quero. Vampa, larga o teu cinto ou morrerás!

- Traidor! -  bradou Vampa.

- Tu sabes melhor do que eu o que isso quer dizer. Não faço mais do que tu tens feito. Roubar. Mas não te demores, Vampa. A vida ou o dinheiro!

- Não o tenho!

- Vampa! Vampa!

- Espera - disse o salteador, olhando com desespero em redor de si. -  Tu és o francês que prometeu a minha cabeça à polícia romana? Bem vês que também sei isto.

- Não fiz tanto.

- Benedetto, queres vender-me? Onde está então a tua fé? Qual é a tua nova escola de crime? De onde vieste, demónio traiçoeiro, tão empreendedor e resoluto? Lembra-te que eu roubei sempre os viajantes, assassinei mesmo alguns, cometi muitos crimes: porém nunca vendi a cabeça de ninguém!

- Aborreço a tua história e a tua arenga, porque não sei quem te fez acreditar que eu me lembrei de vender a tua cabeça!

Eu não sou vendilhão de cabeças! Vamos, resigna-te com a tua sorte, porque tu próprio preparaste a situação em que te encontras. Arrastado pelo teu delírio, pela tua paixão, chegaste a este lugar chamado Campi lugentis, que a fábula nos descreve: agora, deixa as tuas lágrimas correr neste chão fatal; sofre, porque che-gou a tua vez, assim como eu já tive a minha. Ficarás pobre? Tanto melhor para a tua alma. Irás, se puderes, de porta em porta, de estrada em estrada, de pessoa em pessoa, pedir uma esmola cheio de humildade. Vampa, tudo isto é uma boa obra, eu roubo a ladrão e terei mais anos de perdão do que aqueles que poderei viver; tu vais fazer penitência dos teus crimes e alcançarás também um perdão, porém não nos demoremos. Vampa, o teu dinheiro ou a tua vida! Tu conheces bem a força desta expressão, porque eras grande mestre do ofício.

- E quem me assegura que depois de te dar o meu dinheiro, não me assassinarás?

- Já o devia ter feito, mas se te demorares um só minuto que seja, desta vez não escaparás. - Pois bem, aproxima-te.

- Põe-no sobre aquele mármore, ao lado da tua vítima, e afasta-te imediatamente.

Seguindo com olhar sombrio os movimentos de Vampa, murmurou:

- E tu, Eugénia, também recebeste o castigo por abandonares a protecção de tua mãe, para te lançares só no mundo. Enquanto outros desejariam essa protecção sincera, os carinhos que tu desprezaste! Eugénia, se o teu sono não foro da morte, sofre porque o mereceste!

Entretanto, Vampa, tendo colocado o cinto sobre o mármore, recuou alguns passos.

Benedetto retirou o dinheiro do cinto, examinou-o e guardou-o.

Se bem que o salteador romano observasse com toda a atenção os movimentos de Benedetto, esperando o momento propício para o surpreender, este portou-se de tal modo que não deixou de ter um só instante a cabeça de Vampa sob a mira da sua pistola.

Acabando de guardar o dinheiro, Benedetto recuou até à entrada da galeria, levando consigo o archote e deixando o salteador novamente entregue à escuridão e ao martírio.

Vampa caiu ao lado da mesa, arrancando ao mesmo tempo dois punhados de cabelos.

O filho de Villefort chegando ao extremo da galeria e passando pela abertura praticada na rocha, encontrou-se com um grupo formado por dez ou doze homens, entre os quais se ouvia o tinir de armas. Um pouco mais longe, notava-se um piquete de cavalaria.

- Senhor - disse Benedetto, dirigindo-se a um desses homens. - Ele está só.

- Viu-o?

- Sim, senhor.

Afastando-se silenciosamente para um dos ângulos do caminho, continuaram a conversa.

- Eu presto sem dúvida um importante serviço à cidade de Roma - continuou Benedetto. - Toda-via reconheço que não me deixará retirar sem a companhia de alguns dos seus soldados, posto que a polícia nada tenha a desconfiar de mim. Entretanto, já recebi o prémio oferecido pela cabeça do salteador, e basta isso.

- Que quer dizer?

- Aceite a quarta parte e diga que me evadi por alguma das passagens secretas das catacumbas.

- O seu receio não será talvez infundado; enfim, o senhor que não deseja pôr-se em contacto com a polícia, lá sabe o que tem na consciência. Dê-me a quarta parte do prémio que recebeu, não pelo facto de eu deixar de cumprir as ordens que me deram, mas por o deixar retirar depois do que me disse.

- Eu tinha recebido ordem de o deixar em Jade logo que nos apoderássemos de Vampa.

Benedetto fez um movimento de surpresa e passou um pequeno rolo de papel para as mãos do chefe da polícia.

- É oiro?

- Examine.

- Estamos perfeitamente de acordo; agora, espere ainda um momento até que os meus homens se apoderem de Vampa, depois poderá retirar-se. O chefe dirigiu-se para o grupo, bradando:

- Acendam os archotes e desçam!

As luzes brilharam logo e o piquete de cavalaria aproximou-se ràpidamente da entrada das catacumbas. As espadas saíram das bainhas e os agentes desceram em procura de Vampa. Um grito desesperado, grito rouco, frenético e cheio de raiva, ecoou, momentos depois, no interior da abóbada subterrânea.

- Ouviu?

- Sim.

- É o grito do leão que cai para não mais se levantar! É o famigerado Luigi Vampa que está finalmente em poder da justiça romana!

- Então vá em paz!

O filho de Villefort não se fez rogado e desapareceu imediatamente nas trevas da noite.

 

CAPíTULO 25

Perfeição da justiça de Deus

Luigi VamPA, o salteador que por muito tempo havia andado pelos arrabaldes de Roma, estava finalmente em poder da justiça, e dentro em breve receberia o prémio devido aos seus crimes.

Não havia em Roma nenhuma voz que se elevasse em seu favor, e o homem que fora sempre mudo às súplicas das suas vítimas, indiferente à agonia desses infelizes, via com terror erguer-se em frente dos seus olhos o terrível tablado para o seu suplício, sem notar entre os curiosos espectadores, nem um só em cuja fisionomia houvesse um sinal de compaixão! A mudez, a indiferença que ele usara sempre em presença das suas vítimas, notava-as ele significadas ali em cada sinal, em cada palavra que ouvia, como se a Providência quisesse fazer-lhe compreender quanto custa o derradeiro momento desta existência humana, quando não é consolada pelas palavras sublimes de uma amizade verdadeira, ou pelo bálsamo consolador duma religião pura.

Logo que os agentes da polícia penetraram na abóbada subterrânea das catacumbas de S. Sebastião, Vampa, soltando um grito feroz, ao qual Benedetto respondeu com uma gargalhada, tentou ainda uma defesa desesperada; porém, reconhecendo a impossibilidade de lutar contra oito homens armados e decididos, submeteu-se à prisão que estes lhe impunham.

O salteador compreendeu qual seria a sua sorte. O cadafalso e o algoz, com a sua comprida maça de ferro, apareciam-lhe no centro da praça del Populo e, por mais que fechasse os olhos, parecia-lhe ver sempre aquele triste aparato do próximo suplício.

Nada o podia salvar!

Amigos? Não os tinha.

Dinheiro? Fora-lhe todo roubado.

O seu rosto sinistro voltou-se ainda uma vez para o lado onde estava o corpo de Eugénia; um sorriso amargo lhe errou nos lábios, e o seu olhar espantado como o de quem sai de um sonho inexplicável e opressor, parecia amaldiçoar a hora em que aquela mulher lhe havia aparecido.

Enquanto o salteador era conduzido para a prisão  entre a escolta de cavalaria, o filho de Villefort, envolto na sua comprida capa, acabava de se apear dum cavalo à porta da pequena propriedade do barão Danglars.

procurou o cordão da campainha e puxou com Tanta violência, que um criado veio indagar a causa de tal procedimento.

Mal despontava o dia.

- Diga ao senhor barão Danglars que venho comunicar-lhe uma coisa de grande importância. todavia, espero que não me fará esperar aqui fora!

- Tenho ordens severas de não abrir senão a pessoas conhecidas. Creio até que S. Ex.a não receberá um estranho a esta hora, portanto não faria mal se me dissesse o seu nome.

- Ainda que dê o meu nome, estou certo que não deixarei de passar por um estranho; todavia, diga ao senhor barão que sou um agente da polícia que pretende obter alguns esclarecimentos acerca de uma catástrofe sucedida esta noite a alguém que por certo muito lhe deve interessar.

O criado retirou-se e Benedetto ficou à espera. Luísa d'Armilly, que durante aquela noite fatal não tinha podido conciliar o sono, estremecendo ao menor ruído e julgando ouvir os gritos da sua pobre amiga trazidos ali pela viração da noite, sentou-se imediatamente no sofá em que estava encostada, no momento em que ouviu a sineta da grade, que tinham tocado com violência. Mil ideias extravagantes se apresentaram confusamente; o seu coração Palpitava com esforço, como sucede a quem sofre um ataque violento em todo o sistema nervoso, e a voz se lhe faltava na garganta como se nos pulmões não houvesse a menor coluna de ar.

O barão Danglars, se bem que em extremo preocupado pelo rapto da filha, não pôde esquivar-se do peso que a noite parece colocar-nos sobre as pálpebras e que as obriga a fechar, mau grado nosso. Deitara-se vestido sobre a cama e adormecera imediatamente. Portanto, Luísa d'Armilly soube primeiro do que ele quem era o desconhecido que se apresentava ali tão cedo.

Às palavras “agente da polícia” proferidas pelo criado, Luísa teve um bom pressentimento e calculou que os gritos da sua amiga tinham chamado a atenção dos estranhos e que a carruagem do suposto Spada teria sido detida pela polícia, sempre vigilante em rondar os lugares onde eram frequentes estes casos de violência.

Ela própria correu ao quarto do barão e despertou-o precipitadamente, depois de ter dado ordem ao criado para introduzir na sala o agente da polícia.

O barão acordou em sobressalto, e tendo conhecimento da tão inesperada quanto feliz visita, preparou-se para descer.

Saindo do quarto de Danglars, Luísa ocultou-se no vão de uma porta, disposta a não perder uma só palavra que saísse dos lábios do agente; mas quando o procurou com a vista, viu, admirada, que a sala estava deserta. Dirigindo-se então ao encontro do criado, perguntou-lhe se o desconhecido havia sido introduzido na sala.

- Foi, sim, minha senhora.

Julgando ter-se enganado, ela voltou à sala, abriu a porta, entrou e falou, mas ninguém lhe respondeu.

Entretanto, o barão Danglars preparava-se para descer quando uma voz conhecida o deteve.

- Com efeito, senhor barão, sempre é muito vagaroso nos seus movimentos.

Danglars voltou-se ràpidamente, como se tentasse desmentir aquela acusação e soltou um pequeno grito de espanto.

- O senhor aqui? Por onde entrou? -  perguntou ele. -  O quarto só tem esta porta.

- Esquece que a mão do finado sabe procurar sombras à porta que outra não saberia abrir?

-  Está a gracejar! Explique-me que razão o leva a violar assim o meu domicílio. Fale ou gritarei.

- Não gritará, porque ninguém lhe fará mal. SE aqui não viesse por bem, poderia ter sido por mal.

- Mas que deseja de mim? Por onde entrou? perguntou o barão inquieto.

- Responderei só à primeira pergunta e espero nos arranjaremos convenientemente. Feche bem a porta, senhor barão, porque podem vir incomodar-nos!

- Mas sou esperado lá em baixo, não o deve ignorar.

- Nada ignoro, senhor. O seu amigo Vampa ou a sua filha Eugénia.

- Meu amigo?

- Deu-lhe dinheiro e o senhor aceitou-o.

- Eu?!

- Sim, o senhor. Então que esperava recebendo dinheiro das mãos de um bandido e tendo em casa uma filha? Parece-me que sabe trabalhar melhor com os algarismos do que com os homens!

- O que eu não sei entender são os homens que não explicam, como, por exemplo, o senhor.

-  Vou satisfazê-lo, mas feche primeiro essa porta.

- Desça antes comigo, e espere enquanto eu falo a um agente da polícia que veio procurar-me para  me dizer sem dúvida que o raptor está preso, que espera pelo meu testemunho para se saber quem ele é. Ah, a vida do senhor Vampa está agora em minhas mãos!

- Histórias, senhor Danglars. Se é homem de inteligência, evite o encontro com o agente da polícia.

-  Então porquê?

- Ao menos por instinto.

- Que quer dizer?

o barão fez-se pálido e a sua mão agitada deu rapidamente uma volta à chave na porta.

- Muito bem, senhor barão, agora aproxime-se e escute.

Neste momento bateram à porta e ouviu-se a voz da senhora d'Armilly.

- Senhor Danglars?

o barão ia responder, mas Benedetto impôs-lhe silêncio com um gesto.

- Senhor Danglars? Oh! Que mistérios há aqui? Meu Deus, tudo isto me assusta!

Luísa d'Armilly tornou a descer e, momentos depois, ouviu-se-lhe ainda a voz chamando um criado.

- Senhor barão, eu sei tudo - disse Benedetto. -  Vampa acaba de ser preso. Declarou que esteve aqui, mencionou o seu nome e agora poderá compreender que a justiça não deixará em sossego um homem em cuja casa pernoitou o salteador Luigi Vampa.

o suor gotejava na espaçosa fronte de Danglars.

- Então? -  perguntou ele assustado e olhando inquieto para o lado da porta.

- Ora, o caso é dos mais simples - respondeu Benedetto com todo o sossego. -  Logo que eu soube esta novidade, corri a preveni-lo.

- Mas que devo fazer? -  perguntou de novo Danglars, na maior agitação.

- É um pateta, senhor barão!

- Não duvido, meu amigo; porém, há certas coisas tão imprevistas, que me produzem um efeito singular. Todavia reconheço que não há tempo a perder.

- Que fez em Paris, quando compreendeu a dificuldade da sua situação e a enormidade do déficit dos seus livros de caixa?

- Ora! Enquanto o procurador dos órfãos e das viúvas esperava a sua esmola de cinco milhões, evadi-me.

- Que mais quer? Enquanto o agente da polícia espera na sala o momento de lhe deitar a mão, diga a tudo isto um adeus extremo e faça-se de vela!

- Isso mesmo estava eu agora a pensar, meu amigo, mas o caminho?

- Eu o guiarei.

- Promete isso? -  perguntou o barão com modo suplicante.

- Juro-o! Vamos, despache-se pois em breve Abrirão aquela porta, e não poderá fugir!

- Ah, maldito Vampa! -  exclamou o barão, indo-se para a sua secretária e examinando à luz da lâmpada o lugar onde tinha o dinheiro.

- Deixe essa ninharia -  disse-lhe Benedetto. -  Tenho aqui dinheiro e empresto-lho.

- O quê? Deixar o que tenho, para a justiça se haver com ele? Isso nunca! -  respondeu o barão, pondo na algibeira todo o dinheiro e valores que encontrou na secretária. -  Nós podemos fazer a evasão com toda a limpeza e não temos necessidade de deixar de aproveitar dois ou três minutos a troco de uma ou duas moedas de má qualidade de piastras. Eis-me pronto, vamo-nos!

Dizendo estas palavras, Benedetto accionou a mola do painel que decorava uma das paredes do quarto, a qual girou imediatamente sobre uma das arestas uma moldura, patenteando uma escada que descia, até perder-se na sombra, pelo interior da parede.

- Por aqui, senhor barão! -  disse Benedetto. -  mas cuidado, porque a escada é em espiral e os degraus estão escorregadios pela humidade.

- Ah, o senhor é precioso! -  respondeu o barão deixando-se conduzir e vendo com prazer o painel Ir ocupar o seu lugar na parede. -  Eu nem por diabo teria dado com esse segredo. É maravilhoso!

Entretanto, Luísa d'Armilly acompanhada pelos

dois criados da casa, chamara novamente o barão Danglars, mas a porta conservou-se fechada e nenhuma voz respondeu ao chamamento de Luísa.

Então começou a imaginar mil casos extravagantes e entre eles só um quadrou aos dois criados: era o de o barão Danglars ter sofrido algum ataque imprevisto que lhe não tivesse dado tempo de abrir a porta; porém Luísa já tinha estado no quarto do barão e não compreendia o fim que o tinha obrigado a fechar a porta. Os criados decidiram arrombá-la. Luísa deteve-os ainda um momento, chamando em altas vozes pelo barão Danglars; depois, vendo que os seus gritos não obtinham resposta, fez um sinal, e os criados começaram a sua tarefa.

Ao fim de alguns esforços dos dois homens, a velha madeira da porta começou a ceder, a fechadura saltou e o batente rodou com violência.

Luísa d'Armilly penetrou no quarto ainda aclarado pela fraca luz da lâmpada que estava sobre a secretária e olhou em redor de si.

O quarto estava deserto.

Ficou paralisada de medo, pálida como um cadáver e o peito arfava-lhe com violência.

Um homem, inculcando-se agente de polícia, entrara naquela casa e desaparecera como por encanto. O barão não estava no seu quarto, mas este encontrava-se fechado, porque se via a chave na parte de dentro da porta. Como poderia explicar estes dois casos extraordinários, principalmente o último?

- Ah! -  exclamou ela, fazendo um esforço para não dar a conhecer aos criados o medo que a agitava. - O senhor barão terá sem dúvida saído, portanto é escusado procurá-lo mais.

- Mas como havia ele de sair, minha senhora? -  disse um dos criados. -  Só pela janela e essa mesma está trancada!

- Não sei! -  respondeu Luísa. -  Entretanto, assim devo supor. Vá dizer ao postilhão que prepare a carruagem,

 porque vou voltar à cidade; e quando o senhor barão voltar,

apresente-lhe as minhas desculpas por me ter retirado sem o esperar, atendendo à necessidade que tenho de não me demorar mais tempo longe do teatro.

Os criados obedeceram e, momentos depois, Luísa d'Armilly, gelada de susto, tremia no fundo da carruagem que a conduzia para Roma.

Quando entrou em casa, a senhora Aspásia correu logo a preveni-la de que a sua amiga tinha chegado de madrugada, mas que se sentia um tanto incomodada e por isso não a esperava fora do leito.

Luísa, apesar do aviso, com as lágrimas nos olhos, correu ao quarto de Eugénia e, lançando-se sobre o leito, abraçou-a com expressão da mais sincera amizade. As duas amigas trocaram os seus beijos com entusiasmo e confundiram as suas lágrimas. Eugénia escondeu o rosto no peito amigo que Luísa lhe oferecia, sem outro sentido alheio àquele que as ligava havia muito tempo.

Quando as amigas se abraçavam, quando Eugénia, mil vezes arrependida do sentimento de que se deixara possuir, bania da alma qualquer imagem que não fosse a de Luísa, já o barão Danglars conhecia a sua verdadeira posição, tremendo de raiva e de desespero em frente de Benedetto.

Estavam ambos no fim da escada tortuosa, pela qual o barão julgou salvar-se, guiado pelo filho de Villefort.

Em frente deles havia uma pequena porta que dava comunicação para uma casa ao nível da terra.

A luz da manhã entrava pelas fendas de uma pequena fresta praticada em grande altura na parede.

Ao chegarem ali, Benedetto voltou-se ràpidamente para o companheiro, apontando-lhe uma pistola e ordenando-lhe em tom breve que lhe entregasse todo o dinheiro e valores que tinha consigo.

O barão estacou de súbito, ficando sem fala; mas, fazendo um grande esforço, conseguiu dizer: Deixe-se de caçoar comigo, meu caro. Conheço muito bem o seu feitio.

- Então deve saber que o matarei sem o menor escrúpulo e sem a menor dificuldade, se não me entrega todo o dinheiro que trouxe da sua linda secretária. Vamos, senhor barão, essa estupefacção em que o lança a surpresa seria muito conveniente, se fosse capaz de me horrorizar a ideia de matar um homem para o roubar.

- Senhor - balbuciou o barão - decerto quer divertir-se à minha custa. Todavia, o momento não é muito propício!

- Diz a verdade, porque podem cercar a casa, descobrir esta passagem secreta e prenderem-no.

- E prenderem também o senhor! - retorquiu vivamente o barão, encostando-se ao umbral da porta mais morto que vivo.

As suas palavras são as de um bom profeta, senhor Danglars. Por isso vou abreviar este assunto - respondeu Benedetto em tom calmo, engatilhando ao mesmo tempo a pistola:

- Oh, quer então roubar-me!? - murmurou o barão com desespero. - É um traidor!

- Ora essa! - tornou Benedetto. - E você o que é? O que foi? O que será sempre?          Eu? Já lhe fiz algum mal?

- Ainda lhe não perguntei isso, nem o farei. Barão Danglars, o seu dinheiro ou a sua vida! - Então é um ladrão!?

- Você já o sabia, meu amigo.

- Sim, já o sabia, mas esquecia-me de que o sabia - respondeu Danglars. - Não sei que cegueira foi a minha. Ah! Fatalidade! Fatalidade!

- Não, senhor, eu lhe explico a sua cegueira. Quando lhe fui útil para alguma coisa, quando o tempo redobrou os meus serviços e reconheceu não ser de todo má a posição que lhe fez experimentar de viver sem trabalhar, você teve a fraqueza natural de desculpar as minhas pequenas faltas e de chamar amigo a um homem que não veio a este mundo para ser amigo de ninguém. Teve aquela fraqueza porque a sua consciência nunca esteve pura! Ah! Não era possível estar pura a consciência de um homem que premeditou roubar o dinheiro das tristes viúvas e dos órfãos! A consciência de um homem que, depois de insultar a sua mulher, teve o arrojo de se lhe apresentar para se valer de alguns bens que lhe atribuiu, duplicados desde algum tempo, não se sabe como! A consciência de um homem que recebe em sua casa o maior salteador romano, aceitando-lhe dinheiro da mão criminosa sem procurar conhecer bem o fim de tão estranha generosidade. Compreende agora qual foi a venda que lhe cobria os olhos, senhor barão?

- Ah! E você que diz de tudo isso, quem é, donde veio, o que pretende?

- Muito bem: três perguntas, três respostas. Sou um homem sem nome, sem família, sem Deus, sem religião, sem pátria e sem amigos! Surgi uma noite de um túmulo, trazendo no peito a chama maldita do desespero, nos lábios a maldição e na mão uma relíquia singular, a mão que pretendeu sufocar-me quando absorvi o primeiro sopro de vida, a mão que depois me abençoou, a mão que eu beijei e reguei com as minhas lágrimas! Agora, senhor, falta dizer-lhe que pretendo uma vingança justa e implacável!

- E quando o ofendi eu? - perguntou Danglars sentindo os joelhos dobrarem-se-lhe.

- Nunca.

- Todavia, rouba-me!

- Roubo porque o caminho que tenho a seguir é difícil e dispendioso. O homem a quem me dirijo é poderoso, e para o combater preciso de oiro. Roubo por absoluta necessidade mas não sacrifico a esta necessidade as pessoas que julgo alheias ao crime, ao latrocínio! Senhor, a sua situação é irremediável: portanto escolha, o oiro ou a vida!

Dizendo isto, Benedetto estendeu a mão esquerda e foi recebendo os valores que o barão Danglars lhe entregava, acompanhados por gemidos.

O barão Danglars voltou a chamar-se apenas Danglars, porque estava-mais pobre do que nunca.

Houve um momento de silêncio, durante o qual Benedetto guardou a pistola e foi examinar o exterior por uma fenda da porta.

- Não está ninguém - murmurou. Vamo-nos.

O barão, pálido e agitado, caminhou encostado à parede até junto de Benedetto e embargou-lhe o passo, suplicando:

- Por piedade! Os meus cabelos brancos devem merecer-lhe alguma compaixão. Que quer que eu faça? Aonde quer que eu vá ganhar o meu pão? Sabe bem que ao menor passo que der, serei preso!

- Terá a casa paga, o que já não é mau! - res-pondeu-lhe Benedetto, dispondo-se a abrir a porta.

- Valha-me Deus!

Benedetto parou e cravou em Danglars o seu olhar cintilante, exclamando:

- Está muito devoto, meu velho! A miséria é irmã bastarda da devoção, nunca a abandona.

- Ao menos, pela honra do ofício! - tornou Danglars.

- Aí está o que é mais inteligível! Que pretende mais de mim?

- Que me valha!

- Em quê?

- Em tudo. Salve-me, proteja-me!

- Quer também que lhe pegue ao colo, velho impertinente? Vou sair de Itália. O meu navio espera-me no porto.

- Um navio! - repetiu Danglars, respirando profundamente como possuído por nova existência.

Então que é isso? - perguntou Benedetto, notando o gesto de Danglars e metendo ràpidamente a mão no bolso a fim de retirar a pistola.

- Disse-me que um navio que lhe pertence o espera no porto?

- É verdade.

- Tem piloto?

- Decerto.

- Ah!

- Então?

- Pedia-lhe esse lugar para mim.

- Para você?

- Sim, para mim! Uma vez que se dispõe a viajar, vai sem dúvida negociar. Tomará talvez artigos de contrabando no Mediterrâneo e, nesse caso, ainda me ofereço para sobrecarga.

- Visto isso, percebe de mareação de um barco e também dos interesses mercantis da marinha?

- Se percebo!? Nasceram-me os dentes no mar, estando entre os fardos que carregavam o navio!

- Que diz? E o seu berço brasonado? E o nome dos seus antepassados?

- Começando por-marinheiro, elevei-me até ao ponto a que cheguei. Agora desço e vou acabar no ponto donde parti.

- Assegura-me pela sua vida que diz a verdade?

- Juro!

- Olhe que uma vez no mar, reconhecida que seja a sua incapacidade, terá um cemitério digno de você: o ventre de um tubarão.

- Respondo por mim.

- Então guarde os seus títulos e venha comigo. A sua história parece-me muito interessante e contar-ma-á quando estivermos no mar. Asseguro-lhe que ninguém seria capaz de reconhecer debaixo da sua sobrecasaca estofada, a casca ordinária e grosseira de um marinheiro.

 

                                                                                            Alexandre Dumas

 

 

                      

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