Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Mão do Finado
2º Volume
CAPÍTULO 26
Uma noite no Mediterrâneo
QUANDO o homem sem categoria social consegue elevar-se e criar um nome inteiramente seu, à força de um trabalho louvável e de um estudo conveniente à classe a que aspira chegar um dia, quem há que possa lançar-lhe em rosto para o vilipendiar, o estado obscuro em que nasceu? Quem desejará vê-lo recair nesse estado pela miséria ou pela intriga? Mas se o homem do nada social se eleva sobre o estado obscuro pela cabala e pelo crime, ninguém deixará de aplaudir o salto brusco desse homem, que desce do ponto culminante da sua fortuna até se confundir na poeira que o viu nascer.
Todavia, esta bela teoria não explica a prática deste mundo nem exprime o carácter da sociedade nos diferentes pontos. A intriga, a fraude, e muitas vezes o crime, valem tanto quanto a ciência, o estudo e a virtude. Aqueles alcançam com avidez o lugar que ambicionam e o defendem com pertinácia uma vez nele estabelecidos. Estes recebem a indicação desse lugar, antes como esmola do que como recompensa, e aí se conservam sem pretensão enquanto lho não invejam.
É que a justiça dos homens, contraditória e absurda em quase todos os seus actos, não preenche nem substitui nunca essa sublime crença que eles mesmos, por um caso singular concebem mas não explicam, de uma justiça Divina e perfeita a que chamam a justiça de Deus!
Quantas vezes este título sublime cobre um acto de violência, de carnagem, de latrocínio? Quantas vezes o homem na sua alucinação, deturpa, destrói e aniquila as provas evidentes dessa justiça divina que se nos revela por uma singular e inexplicável combinação de factos, tendentes ao fim único de ferir o impostor, o malvado, que se nos apresenta sob a máscara do hipócrita?
O barão Danglars recebia um destes golpes supremos que ferem para sempre e conduzem o homem à necessidade de meditar em todo o seu passado criminoso. Todavia nenhum outro homem teve poder de lhe descarregar esse golpe, ninguém se interessou em preparar as situações, em combinar os factos, para o fazer cair, de degrau em degrau, até sumir-se na poeira. Houve uma vontade superior à dos homens que o impeliu, uma inteligência divina que o condenou, julgando-lhe com placidez as acções da vida! Houve um braço omnipotente que o feriu...
Homem vil, saído do nada, começou pela traição, chegou ao latrocínio e achou-se grande e orgulhoso do que era, esquecendo-se do que havia sido! Então atraiçoaram-no. Mais tarde foi vítima do roubo e da intriga, isto é, desceu os mesmos degraus pelos quais subira, e estes conduziram-no novamente ao nada donde havia saído!
Esta era a justiça de Deus.
Danglars havia acompanhado Benedetto e, no dia seguinte, achava-se a bordo do barco que viajava em direcção da Córsega, tendo saído do Tibre. A tripulação não pareceu estranha aos olhos de Danglars; o imediato era Peppino, o qual conhecia o barão há algum tempo.
O barco, com as suas velas umedecidas pela brisa da tarde inclinava com elegância a amurada sobre a branca espuma das águas pacíficas em que navegava, afastando-se com ligeireza das costas de Itália. Depois de se executar a manobra, de estarem colhidos os cabos, tendo laborado nas competentes malaguetas os oito marinheiros que tripulavam o barco, passaram a barlavento e aí se lançaram com indolência sobre o convés, preparando os seus cachimbos para fumar.
Peppino, embuçado no seu gibão, estava de pé encostado ao mastro da popa, olhando com certa curiosidade para o homem do leme, o qual não despregava os olhos ora do catavento ora da pequena bússola.
Benedetto, que se encontrava junto desse homem, observava os movimentos que ele fazia.
A brisa foi refrescando pela aproximação da noite e o barco, oferecendo mais a borda, começou a deslizar com velocidade.
Notando isto, o homem do leme falou, dirigindo-se a Benedetto:
- Olhe que a noite refresca, nós vamos entrar na linha do vento e creio que poderíamos muito bem navegar só com os traquetes, ferrando as latinas.
- Tudo isso para mim é grego, mestre Danglars! - respondeu Benedetto. - Porém, vou chamar quem entenda. Olá, Peppino, manda chamar
o piloto da companha.
- Aqui estou! - exclamou um homem, levantando-se com presteza do círculo de marinheiros e dirigindo-se para a ré.
- Mestre Danglars fala em ferrar as latinas - disse Benedetto.
O piloto sorriu com desprezo, lançando um olhar oblíquo sobre Danglars e perguntando:
- Para quê?
- Vamos entrar na linha do vento e assim corremos bem com o traquete - respondeu Danglars.
- Ora essa! Não gosta de poupar os braços à companha! Para que entraremos na linha do vento?
- Não conhece a situação da ilha de Elba. Não vê que o sudoeste está a refrescar?
Entretanto, o barco aproximava-se cada vez mais da linha do vento, diminuindo por isso a velocidade, pois ia perdendo a bolina.
O piloto encolheu os ombros, murmurando algumas palavras, entre as quais Benedetto percebeu estas:
- Não entendo este governo e também não pretendo entendê-lo. Parece-me que este amigo tem medo de bolinar.
- Vamos - disse então Benedetto - a postos, rapazes, mestre Danglars vai dirigir a manobra!
Em seguida, aproximando-se de Danglars, continuou:
- Veja bem o que vai fazer! Lembre-se que no instante em que eu perceber a sua nulidade a bordo, envio-o de presente aos peixinhos! Já lhe disse que não tenho pressa de chegar à ilha de Monte Cristo.
- Descanse - respondeu Danglars com serenidade - eu conheço bem o Mediterrâneo, e ainda que ignore a posição da ilha, havemos de encontrá-la.
A tripulação estava a postos.
Uns pegavam nas carregadeiras, outros nas trilhas da retranca, escota das velas e adriças da carangueja da ré.
Danglars olhou para a bússola, carregou o leme e, quando o barco começou a entrar na linha do vento, ordenou em voz clara e forte:
- Ala a retranca a meio! Arreia a carangueja grande!
Depois de cumprida esta ordem, continuou: - Larga o traquete, amura!
O barco endireitou logo o costado sobre as águas, o pano inchou imediatamente, enquanto a bujarrona e alatina da proa começaram a bater.
- Carrega a latina da proa! Arreia a bujarrona! Volta a tudo! Deixar...
Dizendo isto, Danglars olhou para Benedetto, o qual parecia estar satisfeito.
O piloto começou a passear, olhando com gesto sombrio na direcção de Danglars.
O barco, deslizando com rapidez à flor das ondas, não mais ocupou a atenção de Benedetto, o qual soltando um profundo suspiro, aspirou com sofreguidão o ar livre do espaço.
Os marinheiros reunidos à proa, entoavam um coro compassado e monótono, respondendo às coplas que Peppino cantava no meio deles. O som daquelas vozes parecia perturbar a imaginação de Benedetto, pois sentia absoluta necessidade de estar só, de ouvir apenas em redor de si o sibilar do vento pelas obras do navio e o murmurar das águas cortadas pela quilha. Depois de uma vida tumultuosa, em frente de uma empresa difícil e arriscada, tendo na alma o desespero, talvez o remorso, e uma sede horrível de vingança, estando então sobre um abismo e tendo ante os olhos o espaço infinito, queria recolher-se em si e meditar na justiça e na razão da causa que lhe movia o ânimo a uma obra de martírios, de lágrimas e de sangue.
Chamou Peppino e ordenou-lhe que fizesse recolher imediatamente a tripulação sem a dividir em quartos, pois ele se encarregaria de vigiar o navio durante aquela primeira noite.
- Então já confia nos conhecimentos de mestre Danglars? - perguntou Peppino. - E daí, porque não? - continuou. - Não sou completamente leigo no ofício, e posso assegurar-lhe que se o vento não mudar, faremos as nossas boas seis milhas e meia por hora. Amanhã, quando o sol nascer, estaremos a ponto de dobrar a ilha de Elba!
Sai, Peppino! — ordenou Benedetto.
Peppino obedeceu e, daí a momentos, a companha estava recolhida.
Só duas pessoas ficaram no convés.
Benedetto e Danglars.
Ambos pareciam entregues a profunda meditação: o primeiro, de pé, com os braços cruzados sobre o peito e a fronte descoberta, tinha os olhos cravados na imensidade do mar, que se agitava e revolvia em redor dele sob o manto escuro da noite; o segundo, com o braço direito apoiado na roda do leme e a mão esquerda enfiada na algibeira, mos-trava na fisionomia a expressão viva de quem recorda todos os actos da sua vida. Um meditava no porvir, o outro no passado.
Benedetto caminhou vagarosamente em direcção de Danglars e, contemplando-o por momentos, bateu-lhe levemente no ombro.
— Não há novidade! — disse vivamente Danglars, estremecendo e olhando logo para a agulha. — O navio corre na linha de um vento favorável...
— Estávamos ambos agora muito longe do navio! — retorquiu Benedetto sem o deixar acabar.
— Asseguro-lhe...
— Basta, meu caro Danglars! — tornou Benedetto. — Que nos importa o navio e o mar, neste momento de solidão e de trevas? Eu meditava no que há-de vir... você sem dúvida, recordava a sua vida passada! Isto é justo! Um de nós tem de entregar-se de corpo e alma a perseguir um ente de quem jurou vingar-se a um pai moribundo! O outro tem de indagar em todos os actos da vida passada, qual foi o que lhe mereceu o peso terrível da fatalidade que desde algum tempo experimenta! Fale, senhor... fale... preciso de ouvir alguém que tenha cometido crimes! Quero estudar o crime em todas as suas diferentes aparências... quero compreender os diferentes modos, pelos quais um homem pode sofrer! Fale... Oh! Eu tenho de extinguir, sopro a sopro, todas as mais caras afeições de um homem, tenho de inventar martírios e suplícios para lhe arrancar do peito gemidos dolorosíssimos!... Ai de mim, se o golpe me falhar! Se o meu braço cair inerme, se a minha inteligência se extinguir!... Meu pai! Meu pai! Então não serás vingado!
Danglars olhava estupefacto para Benedetto. Nunca lhe ouvira uma linguagem semelhante, nunca lhe sentira a voz entrecortada pelos soluços de um amargo pranto.
Houve um momento de silêncio, durante o qual Benedetto deu livre curso às suas lágrimas, passeando agitado pelo navio, até que parou de novo junto de Danglars, perguntando:
— Quem é o conde de Monte Cristo, esse Edmundo Dantes, e de onde surgiu assim poderoso, vingativo, desapiedado?
Danglars estremeceu.
— Posso eu revelar-lhe um segredo que só existe entre ele e Deus?
— Porque não diz entre ele e o inferno? — exclamou Benedetto.
- Porque vou acreditando num princípio sublime, de onde dimana a verdadeira justiça!
- Então crê que Edmundo Dantes era inspirado por esse princípio sublime de que fala? — perguntou Benedetto com uma pequena risada de escárnio.
- Creio! — murmurou Danglars.
— Você?
— Sim, e faço-o acreditar também, se quiser ouvir-me.
- Fale.
CAPíTULO 27
Um naufrágio
CONCENTRANDO por momentos as suas ideias, Danglars prosseguiu:
— Decorria o ano de 1815. Em Marselha havia uma pequena galera pertencente à casa Morel & Filho, na qual eu tinha lugar de sobrecarga. Ora, em Fevereiro desse ano, sucedeu morrer o capitão da galera por alturas de Porto Ferrajo, e a 25 do mesmo mês, o navio entrava no porto de Marselha comandado por um jovem marinheiro, no qual o capitão depositava a sua confiança. Como deve calcular, o lugar deixado vago pela morte do capitão, despertou cobiças em muitos peitos e o meu foi um deles; por consequência, comecei a trabalhar para alcançar o posto de capitão. A minha antiguidade a bordo, a minha experiência marítima, tudo devia concorrer em meu abono; porém, quis o caso que o tal jovem marinheiro fosse o preferido. Então jurei perdê-lo! Esse jovem era Edmundo Dantes. Namorava uma rapariga catalã, e a preferência que ela lhe concedia, despertava sobre um seu patrício, violento ciúme. Conhecendo bem o carácter do catalão e calculando até onde poderia chegar a chama que lhe ardia no peito, procurei ateá-la de um modo que se tornasse fatal a Edmundo Dantes.
— E como o conseguiu? — perguntou Benedetto.
— Aproveitando-me de um caso particular da recente viagem, escrevi uma denúncia contra Edmundo Dantes, dizendo que ele, na volta para Marselha, havia tocado na ilha de Elba, onde desembarcara o capitão. Entreguei esta denúncia nas
mãos das autoridades competentes, e Edmundo Dantes foi preso como bonapartista no momento em que se sentava à mesa para celebrar os seus esponsais com a formosa catalã.
“Depois desse dia da face da terra desapareceu o homem que me fazia sombra. Mas note bem, apesar disso nunca consegui alcançar o lugar de capitão da galera!
“Passaram anos e a catalã, tendo casado com o rival de Edmundo, estava feita condessa de Morcerf, ao passo que eu, aliando-me com a viúva do senhor de Nargone, tinha o meu título de barão Danglars e uns bons milhões de francos.
“Eis que um dia surge, não se sabe donde, talvez do seio da terra, talvez do fundo do mar, um homem imensamente rico e poderoso! Esse homem era o conde de Monte Cristo. Desde então, a fatalidade começou a oprimir-nos. Eu, comprometido pelo crédito ilimitado que ele alcançou sobre a minha firma, tive de abandonar Paris para salvar
o resto da minha fortuna. A condessa de Morcerf, que outrora fora sua namorada, viu a poderosa mão da desgraça abalar o edifício da sua felicidade!
— Espere! — exclamou repentinamente Benedetto. — Porque motivo quis Edmundo Dantes reduzir à miséria e ao sofrimento a mulher a quem tinha amado? Qual era o crime dessa mulher para merecer o castigo terrível que o homem que se dizia inspirado por Deus lhe fez descer sobre a cabeça? Acaso pretenderia Edmundo Dantes que ela ficasse para sempre sujeita aos votos que a sua longa ausência tinha aniquilado? Pretenderia que uma perpétua viuvez fosse o estado de uma pobre mulher que nem tinha chegado a pertencer-lhe como a mulher pertence ao marido? Ah! Aí está a tua primeira falta, Edmundo Dantes! Aí se vê a tua alucinação bem expressa!
— Esquece que Edmundo Dantes queria vingar-se do conde de Morcerf? — respondeu Danglars.
— E aquele homem que se julgava superior a todos os outros, que se dizia justo como um Deus, não sabia que a misericórdia é o mais belo atributo da divindade cristã? — tornou Benedetto. — Aí está como ele era inteligente e justo, sacrificando a uma vingança terrível a pobre mulher que o tinha amado e que daria talvez a vida por ele! Insensato, no centro da tua suposta glória! Miserável, no apogeu da tua sonhada grandeza! Hipócrita, no cumprimento da palavra de Deus!...
— Não! Não! — exclamou Danglars, trémulo e agitado. — Deus fizera-o poderoso para castigar o crime. Eu creio neste mistério.
— Pois então renego os seus deuses, sejam eles quantos forem, se os seus actos de justiça são como os que nos revelou Edmundo Dantes! — bradou Benedetto, elevando os punhos fechados contra o céu.
Danglars, com o braço esquerdo, deteve-o com rapidez.
— Que diz? No momento em que nos encontramos sobre o abismo, entregues ao capricho dos ventos e das águas... assim repele a única esperança do marinheiro? um insensato! Calcule os factos e reconheça na sua perfeita ligação_ que há, na verdade, um Deus poderoso acima de nós! Eu, que fui milionário, e me julguei muitas vezes longe deste estado obscuro em que nasci, vi os meus milhões desaparecerem como as nuvens de poeira ao sopro do vento, e eis-me tal qual estava, quando meditei o meu primeiro passo na senda do crime! Há um Deus omnipotente... creio-o do íntimo da alma!
- Seja! disse Benedetto, depois de um momento de profundo silêncio. — Eu quero acreditar em Deus! Sim, há um Deus justo e omnipotente, porque é ele quem me envia a ferir o homem que zombou da sua infinita misericórdia, negando-a a todos sobre a terra!... Preciso de acreditar nesse Deus poderoso, porque não sinto em mim nem força nem poder! Sou um pequeno miserável no centro deste espaço infinito que nos cerca!... Preciso de acreditar em Deus, porque sinto em mim um princípio superior à matéria terrestre e que, por consequência, a terra não poderá extinguir!... Oh!... Deus!... Deus!... Se os meus sentimentos são criminosos neste instante, se a vingança que eu jurei não é inteiramente justa, sepultai-me para sempre no abismo que está debaixo dos meus pés!
E, pela primeira vez na sua vida, Benedetto caiu de joelhos, elevando os olhos ao céu.
Neste momento, começou a declarar-se extrema calmaria. A superfície das águas tornou-se como um vasto espelho e, antes que Benedetto tivesse tempo de chamar os homens para a manobra, antes que Danglars pudesse determinar essa manobra, uma fita vermelha lançada com rapidez no espaço, seguida de um estampido assustador, anunciou de súbito uma dessas trovoadas secas que não são estranhas no Mediterrâneo.
De quatro pontos opostos, o céu parecia rasgar-se para vomitar esses raios terríveis que vinham mergulhar nas águas em redor do pequeno barco parado no centro delas. Os trovões eminentes sucediam-se com pequenos intervalos, e dentro em breve o firmamento apresentava a aparência de um vasto incêndio!
Atónitos por este incidente inesperado, todos os que tripulavam o pequeno barco subiram apressadamente ao convés. Danglars, segurando nas mãos trémulas e frias a roda do leme, olhava com terror para Benedetto, o qual estava de pé, com os braços cruzados sobre o peito, e cuja figura se destacava no horizonte de fogo que parecia ameaçá-lo.
O piloto aproveitou a ocasião para perder Danglars no conceito do dono do navio. Homem acostumado a presencear aquelas raivas terríveis dos elementos, não estremecia de medo, nem perdia a esperança senão no último momento. Correndo com atrevimento para o leme e tirando bruscamente o governo das mãos de Danglars, bradou com toda a força dos seus pulmões:
— A postos, gente! Este velhaco treme de medo e quer perder-nos por isso!
— Misericórdia! — bradou Danglars inconsideradamente, pois notava com terror que, para seu completo castigo, até havia ali um homem que lhe disputava o posto como ele o havia disputado a Edmundo Dantes.
— Pedes misericórdia? — tornou o piloto puxando pela faca e largando o leme.
— Piedade! Piedade, meu Deus! — exclamou ainda Danglars, recuando espavorido na frente da figura ameaçadora do seu rival.
- A ele, gente! A ele, que está a amedrontar-vos com os seus gritos fora de tempo! — continuou o piloto. — A ele, que treme como um cão, por ver brincar o fogo com a água em redor de si!
A estas palavras do piloto, Peppino, lançando mão de uma machadinha, acometeu Danglars.
No centro do combate dos elementos, começou então outro combate parcial e medonho como o primeiro.
Ao clarão sucessivo dos relâmpagos distinguia-se um homem, levado ao último grau do desespero, subido à amurada do barco e seguro com o braço esquerdo às enxárcias, ao passo que com o direito, armado de um machado, se defendia contra os golpes que lhe dirigiam o piloto e Peppino.
A tripulação corria desordenadamente de um para outro lado, pedindo piedade em altos brados e abandonando-se sem reflexão ao medo que lhe havia inspirado o primeiro grito de Danglars.
O barco pairava sem governo sobre as águas, enquanto durou aquela cena de confusão.
Finalmente, um grito agudíssimo repassado de extrema angústia, ressoou acima de todos os mais.
Após este grito, todas as vozes se extinguiram, ouvindo-se logo em seguida a do piloto que dizia:
— As obras, gente! As obras, a fim de meter o traquete nos rizes, pois é provável que não tarde o tufão!
—Ânimo! Isto não é nada... e quem está ao leme é um homem do mar!
A tripulação obedeceu, e o navio dirigido por mão hábil, conservou-se de capa, durante a procela, à qual não podia fugir por falta de viração.
Benedetto estava ainda no mesmo lugar, como se uma vontade poderosa ali o houvesse detido. Em redor dele havia sucedido alguma coisa terrível que ele adivinhava, sem contudo a compreender bem, pois o seu espírito, harmonizando com a procela, prendia-lhe o pensamento num ponto único.
— Meu Deus! murmurou Benedetto. Reconheço o poder sem limites da Tua vontade que revolve os elementos desde o fundo do abismo até à altura dos céus! Nunca havia presenciado este espectáculo terrível e belo em que se mostra a força do Teu braço! Perdoa-me, pois, se eu neguei muitas vezes a existência do Teu ser espiritual! Se não condenas o homem a quem persigo, se ele merece a Tua protecção, apesar do sangue inocente em que manchou as mãos... despedaça e aniquila aqui para sempre este frágil barquito em que me elevo sobre o abismo do mar!... Porém, os raios de fogo que mergulham nas águas, em redor de mim, parecem respeitar-me. Sou portanto o eleito terrível da Tua vontade justa para castigar sem piedade o ímpio que Te ofendeu na pessoa de um menino, o qual era a criatura mais fraca da terra, como Tu és o mais poderoso nos céus! Eduardo! Eduardo! Meu irmão, nunca te conheci nem abracei, mas o teu sangue que era também o meu, pede vingança! E Deus não deixará impune o assassino!
Quando Benedetto desceu e reparou nos objectos que o cercavam de perto, outro incidente havia ocorrido.
Como o piloto previra, o vento, revolvendo e agitando as águas, havia aumentado o horror da procela.
O barco, com o seu pequeno traquete colhido nos últimos rizes, bailava sobre os cachões de água que se formavam sob a quilha, avançando e recuando alternadamente, como ludíbrio triste, que era, dos furores da tempestade.
O piloto, firme no seu lugar, havia algum tempo que escutava com desassossego certos gemidos e gritos que as rajadas de vento pareciam trazer de longe. Os gritos umas vezes fracos e quase ininteligíveis, assemelhavam-se aos gemidos de seres humanos na agonia: outras vezes eram fortes, agudos, penetrantes e revelavam então o desespero extremo de quem pede pela última vez um socorro de homens antes de solicitar o de Deus.
O ouvido apurado do piloto recolhia os menores sons que pudessem indicar-lhe a direcção positiva da catástrofe, pois ele já tinha compreendido que sucedera desastre a algum navio. Cravando o olhar na bússola, mandou bracear um pouco o traquete por sotavento e esperou com profunda atenção que o barco obedecesse ao leme.
De repente, os gritos que ele tinha escutado repetiram-se mais fortes e mais expressivos por barlavento, e reconheceu imediatamente pelo movimento do seu barco, a proximidade terrível de um grande navio.
Com efeito, ao rápido clarão de um relâmpago, todos notaram com terror um corpo negro que uma vaga elevava sobre o seu dorso ondulante, muito acima do barco, deixando de permeio um abismo em que este descia, jogado com violência da proa à popa. Então ouviram-se muitas vozes aflitivas pedindo socorro com insistência.
Benedetto, agarrado ao mastro do seu barco, escutou com profunda atenção um grito que sobressaía de todos os mais, e uma voz que dizia com o acento da mais profunda aflição:
— Minha mãe! Minha pobre mãe! Deus não permite que nos abracemos!
Estas palavras caíram no coração de Benedetto como um eco doloroso. A palavra mãe fê-lo estremecer. Era sem dúvida um filho, o qual depois de longa separação, voltava aos braços de uma extremosa mãe, e que, talvez no termo da viagem, via preparar-se sobre a sua cabeça o golpe terrível que deveria feri-lo.
Ah! O destino também não permitiu por enquanto que eu visse a mulher que me deu o ser! - murmurou ele. — E Deus permita que não acabe sem conhecê-la, ainda que seja só por um instante! Ai de mim! Quem poderá arrancar aquele infeliz à sorte que o ameaça?
Com a notável presença de espírito própria do homem do mar habituado a lutar constantemente com o perigo, o piloto, reconhecendo a impossibilidade de salvar as pessoas do naufrágio eminente, tratou de evitar o choque terrível das duas embarcações por meio de uma hábil manobra, a qual foi executada com presteza: essa manobra porém foi inútil, porque o navio que as ondas elevavam sobranceiro à pequena embarcação, desapareceu imediatamente no abismo formado pela separação daquelas montanhas movediças, que em seguida se despenharam com estrondo sobre o frágil lenho.
Após o derradeiro grito de toda aquela gente, nenhuma outra voz humana ressoou no espaço, pelo tempo de meia ampulheta.
Em silêncio, cada qual parecia entregar-se às tristes reflexões que lhe inspirava aquele quadro de horror, quando a voz de Benedetto, imperiosa e audaz, despertou os marinheiros do estado de torpor em que os havia lançado a presença da tragédia.
— Lancha ao mar! — exclamou ele, cortando rapidamente os cabos que prendiam a lancha.
Lancha ao mar! — repetiu o piloto com um riso de escárnio. Acaso não repara na vaga?
— Quem é que me fala? — inquiriu Benedetto com ar ameaçador, voltando a cabeça na direcção de onde partira a voz.
Como ninguém lhe respondesse, Benedetto continuou:
— Vamos, Peppino! Experimentemos agora o valor dos teus homens! Quem for valente que salte para a lancha e reme com vigor! Ah, gente de sangue fraco! Pois bem, descerei eu, porque o mar não me inspira medo, nem as trevas me horrorizam! Peppino, vem comigo! Desçamos... desçamos... ouço ainda a voz aflita de um homem que nos pede socorro!
Peppino, seguindo o seu chefe, saltou para dentro da lancha sem hesitar. Benedetto mandou-o arrear as tralhas, enquanto pegava nos remos, com que premeditava triunfar das águas revoltas.
Todos a bordo viram desaparecer a pequena lancha com os dois homens, os quais nem se lembraram de pensar no seu regresso, pois o mar estava fortíssimo e o piloto asseverava ser morte certa semelhante audácia.
Incansável e cheio de coragem, Benedetto ajudado_ por Peppino remou na direcção em que supôs escutar os gritos sufocados de um homem que pedia socorro.
Nem o fogo, que as nuvens lançavam com estrondo no mar encapelado, nem as torrentes de chuva atemorizavam Benedetto, o qual se via só com Peppino no centro da procela.
Peppino, notando com espanto a intrepidez daquele homem, sentia-se por ele inspirado e fortalecido para lutar corajosamente contra os elementos em fúria...
Erguidos no cume das ondas espumantes, sepultados no seio do abismo, ei-los remando sem cessar na direcção em que se ouviam os gritos, os quais eram agora mais inteligíveis.
Benedetto respondeu com um brado potente ao infeliz que pedia protecção:
— Coragem! Deus envia-lhe um socorro!
CAPíTULO 28
A mulher sem nome
Num dos pontos mais afastados das praias de Marselha, dessa pequena cidade não pouco interessante ao comércio, cujos veículos cruzam constantemente as águas do Mediterrâneo, desde Túnis a Veneza e de Málaga a Constantinopla; sobre um morro de granito pouco elevado onde as águas deixavam os seus limos pendentes, havia uma pequena barraca de alvenaria, cujas paredes, vistas do lado da cidade, se destacavam no horizonte.
Em redor dessa casinha, arejada pela brisa suave do Mediterrâneo, um observador poderia notar os restos, ou antes, os sinais de outras frágeis embarcações, tais como as cabanas de alguns desses pobres homens que nascem e morrem entre o céu e o mar, alheios a qualquer sentimento que não seja o de ganhar o pão quotidiano de seus filhos, e aos quais se dá o nome de pescadores.
É que em tempos distantes, por alturas dos cem dias do império, era ali o poiso de uma miserável tribo de pescadores que, semelhante a um bando de aves de arribação, um dia desembarcaram naquelas praias, vindos não se sabe de onde e falando um dialecto estranho, que não era nem francês, nem espanhol, nem biscainho de qualquer das duas nações.
Esta gente, obtendo das autoridades de Marselha licença para construir habitação naquelas paragens, ali vivia do seu pobre trabalho, sob a denominação de Catalães que lhe davam os marselheses; porém, quando Bonaparte, saindo da ilha de Elba, entrou novamente na península, chamando às armas os homens sem distinção de classes, os catalães, obrigados a seguir a bandeira do valente corso, abandonaram os seus tristes albergues.
Desde então, a pequena aldeia chamada dos Catalães, ficou deserta e daquela tribo errante e misteriosa, apenas existe hoje uma simples recordação que nos desperta o lugar em que ela poisou um momento em frente das águas.
Era naquele mesmo lugar que se elevava a casinha, habitada por uma pobre mulher.
Um leito ordinário, uma mesa, duas cadeiras e um grande crucifixo, em que se via a imagem do Redentor talhada em marfim, compunham a mobília do seu quarto. Em frente do leito havia uma grande janela, pela qual quem estivesse deitado, poderia distinguir as águas do Mediterrâneo e contar as velas que o cruzavam.
Ao lado deste quarto havia outro com o seu leito preparado, uma mesa e uma cadeira. Seguia-se a sala de jantar, depois uma pequena cozinha. e eis feito o simples plano daquela casa.
A respeito da mulher que ali residia, corriam entre os curiosos de Marselha diferentes versões, mais ou menos exactas. Afirmavam uns que aquela mulher era uma fidalga, cuja ruína total a obrigara a procurar a solidão, o silêncio, o esquecimento do seu antigo esplendor; outros juravam ter notado e reconhecido no rosto dela o sulco profundo e denegrido de um pranto amargo, afiançavam que era vítima de uma desgraça mais terrível do que a ruína total da sua casa: pois esta última desgraça nunca poderia ferir de um modo semelhante a alma de uma mulher, muito principalmente quando essa mulher tivesse ainda um nome ilustre e sem mancha.
Desta última cláusula, estabelecida pelos analisadores que mais se aproximavam da razão, tiraram o seguinte raciocínio:
Aquela mulher que chorava constantemente na solidão absoluta a que se entregara, não lamentava por certo uma dessas desgraças que o tempo nos traz e cuja recordação amarga o mesmo tempo leva consigo; logo, havia outra causa que promovia aquele pranto constante. E que causa poderia ser? O que há nesta vida que o tempo não gaste, não apague, não extinga em nós, antes aumente, fortifique engrandeça, senão o remorso?
Entretanto, aqueles que uma só vez lhe tinham ouvido o som mavioso e terno da voz ou sentido a impressão meiga do seu olhar franco e resignado, esses não podiam crer que o remorso devorasse o peito daquela criatura misteriosa.
A esta incredulidade respondiam os autores do citado raciocínio que o arrependimento é um bálsamo que destrói as feridas do remorso, restituindo à criatura a sua placidez e à alma a pureza que se revela no olhar e no falar; porém, isto era ainda contestado pelos que entendem alguma coisa da alma e da influência, que ela sofre dos diferentes sentimentos de que nos possuímos, pois o arrependimento consumado seca também as lágrimas dos nossos olhos e coloca-nos nos lábios o sorrir doce de uma esperança tão infinita, quão infinita é a bondade que atribuímos ao Criador.
Sobre controvérsias semelhantes se fundavam então os diferentes boatos relativos à dama da aldeia dos Catalães, e como não era possível colher de quanto se dizia um resultado preciso, todos lhe chamavam a mulher sem nome.
Como aquela criatura vivia todos o sabiam: umas vezes, sentada em frente de uma das janelas abertas, olhava com tristeza para o mar, deixando correr as lágrimas livremente; outras, debruçada sobre o rochedo, em cuja base as ondas vinham quebrar as suas orlas de espuma, parecia recolher com atenção o vago murmurar das águas, que a um ouvido estranho não tem significado algum, mas que os infelizes compreendem e traduzem como se ele correspondesse à voz misteriosa da sua alma. Sempre que o sol começava a tingir as nuvens de um roxo brilhante, aquela pobre mulher erguia ao céu os olhos turvos pelo espanto, e os lábios agitando-se-lhe brandamente, pareciam murmurar uma súplica. Depois quando os últimos raios do sol desapareciam da superfície das águas, quando a natureza parecia cobrir-se com o seu denso manto de trevas para repousar, um gemido doloroso fugia do peito da infeliz como expressão verdadeira de uma esperança malograda.
Era isto todos os dias. De noite iludia-se deixando para o dia seguinte o momento esperado da véspera: vinha esse dia e, silencioso e triste como todos os mais, passava monótono e vagaroso ainda como eles. Depois chegava a noite e com ela nova ilusão... e assim sucessivamente.
A pobre senhora em vão esperava. Parecia que a terrível mão da desgraça se empenhava em prolongar-lhe o martírio até que chegasse ao desespero.
Este não se fez esperar muito tempo.
Ela sentiu então a necessidade de ouvir a voz consoladora de alguém que lhe falasse de Deus e da sua bondade infinita! Escreveu algumas linhas numa folha de papel e enviou-a para Marselha.
Uma hora depois um sacerdote, homem velho, cuja fisionomia tinha o cunho perfeito da obrigação e da caridade, aproximou-se da pequena aldeia dos Catalães e dirigiu-se à única habitação ali existente.
Vendo a porta entreaberta entrou e, como não descortinasse vivalma, bateu as palmas.
Ninguém respondeu.
Esperou ainda um momento, depois, olhando por acaso para a janela, distinguiu no pequeno rochedo uma mulher de joelhos, com os braços estendidos para o mar e os olhos fitos no céu.
Um instante mais tarde, o sacerdote estava junto dela sem ousar interrompê-la e recolhendo com interesse as palavras que proferia, entrecortadas por amargo pranto.
- Nunca mais o verei! — dizia ela. — Quer a fatalidade que eu esgote ainda as últimas fezes desse cálice de amargura que desde há longos anos não se temm retirado dos meus lábios. Alberto! Alberto! Vivo ou morto recebe este abraço de tua mãe, pois sinto que a morte se aproxima! Oh, não, não hei-de morrer sem te apertar nos meus braços! Seria impossível duvidar, na minha hora extrema, da existência de um Deus consolador, o Deus dos aflitos!
— Isso nunca senhora! — bradou o sacerdote, elevando o braço para o céu e mostrando-se aos olhos da pobre mulher, a qual soltou um pequeno grito ao notar a figura solene daquele homem. — Existe um Deus justo e omnipotente que está no trono dos céus, invisível a nossos olhos, mas perceptível à nossa inteligência! Quer duvidar de Deus? Duvide antes de si mesma, se puder!
— Oh, reverendo! — exclamou ela. — Mas o meu sofrimento sem fim...
— Há bem pouco tempo me falou na morte; a morte é um termo poderoso para o sofrimento!
— Que diz!?... Ai, meu Deus, a morte sem ver uma última vez o meu filho! Não sabe o que é o amor de mãe!... Ignora que, separada dele, que é a minha única afeição na terra, há muito tempo que o espero dia a dia, de hora a hora, de minuto a minuto... e sempre em vão! Ignora todo o meu sofrimento, não pode calcular a minha dor!
— Vim para a ouvir e estou disposto a sustentar-lhe a fé depois de a ter escutado.
— Venha, reverendo... Eu preciso de o ouvir também! A minha fé vai fraquejando... ao peso de uma fatalidade horrível!
O sacerdote seguiu em silêncio a misteriosa mulher até à pequena casa em que habitava.
Ela subiu ao seu quarto e, sentando-se em frente da janela, olhou ainda para o Mediterrâneo, cujas águas se estendiam a perderem-se de vista, depois dirigiu o olhar resignado para o crucifixo pendente na parede e pareceu murmurar uma oração.
— Reverendo, permita que lhe oculte os sucessos dos primeiros anos da minha vida — disse ela um instante depois. — Existem neles segredos entre mim, Deus e um homem que certamente nunca mais verei!
Calou-se por um momento, em seguida murmurando o nome de Edmundo Dantes, continuou:
— Vítima de uma vingança poderosa, recebi o golpe terrível de uma repentina desgraça! Viúva e pobre, tendo por único amparo um filho, quis ainda a fatalidade que esse filho fosse constrangido a abandonar-me por alguns anos, como se eu devesse chorar em completa solidão um erro involuntário da minha vida passada! Hoje, que sou mãe... não choro, não devo chorar o erro de que lhe falei, porque ele consistiu em me haver esquecido de um homem a quem votara o meu primeiro amor; depois de ter esperado durante muitos anos a volta desse homem, sobre a sua suposta sepultura lancei a última lágrima de amante, no dia seguinte dei a mão de esposa ao seu antigo rival e então meu único apoio no mundo. Hoje choro, como vê, porém é a ausência do meu querido filho... choro, porque sinto que esta existência finda antes de meu filho voltar a meus braços. Oh, se ele voltasse, eu havia de viver!
— Espere, senhora, porque a bondade de Deus é infinita!
Esperar? O que tenho feito eu durante todo este tempo? — perguntou ela com um sorriso repassado de angústia. — Esperar! Não calcula o que é esta palavra repetida ainda, a quem sempre tem esperado em vão na bondade de Deus! Serei eu esquecida por esse Deus supremo e votada à fatalidade?
— Isso que diz é uma blasfémia! Deus não esquece as suas criaturas! — murmurou o sacerdote.
Porque motivo não me concede então o Eterno o prazer único de abraçar o meu filho? Ele que soube criar este sentimento perfeito, que um filho desperta em sua mãe, não vê que é um martírio este que eu sofro?
A estas palavras de aflição, um doce sorriso errou nos lábios do sacerdote.
— Calcule - disse ele — qual seria o mistério cruento da Virgem Maria, quando em seus braços estava o corpo exangue do Redentor, que era a sua única esperança e consolação! Encare, se tem ânimo que chegue a tanto, a noite perpétua de supremo sofrer que se desenrolou pavorosamente aos olhos da sacrossanta mãe!... E todavia, ela, em cujo peito estava a fé, senão a esperança, com resignação profunda era a primeira a enxugar o pranto nos olhos das piedosas mulheres que a rodeavam.
—Ai, reverendo! O exemplo é sublime, porém as forças abandonam-me!
— A Virgem lhas dará. Acredite e tenha esperança na sua infinita misericórdia... e quando chegar o momento derradeiro em que o Eterno a chamar a si antes de abraçar seu filho...
— Então, reverendo... quando chegar esse momento... — disse ela com exaltação febril — quando chegar esse momento fatal... deverei ainda ter fé... e conceber ainda a esperança além do túmulo?
— Deve, sim, senhora! Deve então resignar-se e fazer sacrifício da sua dor, para antever a glória Eterna!
— Ore por mim! — murmurou ela. Eu já vejo terra neste mar de aflição.
— Acredite na justiça de Deus...
— Que quer que lhe responda?
— Senhora! Ela é infinita e tão perfeita que nós não podemos compreendê-la!
— Ah, sim, também eu não a compreendo!
— Por piedade! — exclamou o padre, levantando-se e estendendo o braço na direcção do crucifixo. — Olhe para aquele sacrossanto lenho da nossa Redenção e duvide, se puder, da justiça e da bondade infinitas daquele mártir que se deixou sacrificar por nós! Ali tem a sua imagem! O sangue inocente que parece ainda gotejar de seu peito, é o preço da nossa remissão!... Aquela fronte soberana que está humildemente curvada sob a coroa do martírio, é a fronte que concedeu a obra generosa e sublime da regeneração dos povos!... De joelhos, senhora! De joelhos! Ele pode perdoar-lhe o que tem feito!
A estas palavras, a infeliz senhora caiu de joelhos em frente do crucifixo, o pranto sulcou-lhe as faces e entre soluços, exclamou:
— Ah! Deus de bondade! Qual foi a minha culpa? Porque vos mereço eu este castigo severo?
Seguiu-se um momento de silêncio, durante o qual apenas se ouvia o sacerdote murmurar uma prece.
A senhora levantou-se. Na sua fisionomia estava pintada a resignação, as lágrimas haviam cessado, e no olhar tranquilo via-se-lhe o verdadeiro sentimento dessa profunda resignação.
A fé estava no seu coração.
Durante muitos dias, o sacerdote repetiu as suas piedosas visitas à habitante da aldeia dos Catalães, e a pobre senhora parecia agora mais sossegada de espírito, esperando resignada a vontade do céu. Todavia, no meio dos seus males, houve um que se apresentou de súbito, e tal não admitia remédio.
O dinheiro acabara-se, e ela não tinha recurso algum senão a caridade pública.
Entretanto, tomara a firme resolução de não recorrer à caridade; morresse muito embora à míngua, mas não se faria o alvo da curiosidade de Marselha, pedindo de porta em porta o pão quotidiano.
Com um sorriso amargo, ela dispôs da sua última moeda de prata para comprar alimento: em vão foi diminuindo proporcionalmente as suas refeições diárias... os dias iam passando e já não lhe restava senão meio pão e alguma fruta seca.
Estes tristes mantimentos foram ainda divididos de modo que chegassem para oito dias, durante os quais esperava um socorro qualquer.
Os oito dias passaram como os primeiros e o socorro não chegou.
Ela teve o seu primeiro dia de fome. Dia terrível, que trouxe em cada uma das suas horas lentas, recordações amargas de um passado que queria esquecer! No segundo dia, sentiu-se fraca e abatida: o seu peito arquejava com violência e o calor duma febre morna produzia-lhe afrontamentos.
O delírio não tardava.
Levantou-se com rapidez e foi colher com os lábios as migalhas de pão que estavam ainda sobre a mesa. Não tardaria talvez o momento em que ela as procurasse no chão. Todavia estava ainda disposta a morrer à míngua!
Projecto louco! Ao fim do quarto dia de fome, entrou-lhe por assim dizer no peito um raio de esperança.
“Quem sabe se daqui a oito dias mais, chegará o meu filho?” dizia ela para consigo. “E daqui até lá terei morrido de fome! Não, não, esperemos ainda estes oito dias, esperemos enquanto houver alento no meu peito, esperemos, esperemos...”
E a pobre senhora, saindo da sua habitação guiada por um pensamento vago, encaminhou-se para o porto de Marselha. Muitas vezes se deteve para descansar e cobrar alento, estendendo a mão para o caminhante que por ela passava, mas os lábios ficavam-lhe hirtos e o olhar cravado na terra.
Assim foi até à cidade sem obter uma esmola. Sentia a fome no seu auge, bebia água, e a água redobrava-lhe essa fome terrível que a devorava. O seu olhar enfraquecido já não distinguia os objectos a distância; uma espécie de véu de poeira não tardou em cercá-la e os edifícios, as pessoas que a rodeavam, parecia que se moviam e giravam sobre esferas, de modo que a entonteciam.
Por um instinto natural, a pobre senhora dirigiu-se ao cais; caminhou até ao parapeito olhando sem distinguir e ouvindo sem entender.
Perguntou, por acaso, se já era noite e obteve em resposta uma gargalhada motejadora, pois o sol brilhava no seu zénite.
Já não via, já não conhecia nada; tinha fome, tinha o instinto poderoso de todo o animal levado ao último extremo de desespero com o sentido de satisfazer uma vontade única! Dando alguns passos precipitados, caiu de joelhos em frente de dois homens que desembarcavam, bradando em extrema agonia:
- Tenho fome! Pelo amor de Deus, valei-me! Era o seu primeiro grito, pedindo esmola.
CAPíTULO 29
Socorro do céu
Os dois homens que acabavam de desembarcar dum pequeno escaler, ouvindo o supremo grito da miséria, pararam em frente da mulher que lhes pedia esmola com os joelhos no chão.
Um deles, tirando do bolso uma pequena moeda dirigiu-se à infeliz, dizendo:
Levante-se, senhora! Tem aqui um pequeno auxílio.
O dinheiro caiu na mão da pobre mulher, que se conservou de joelhos, e os dois homens continuaram o seu caminho. Porém um deles, o que parecia mais novo, deteve-se.
- Perdão, senhor - disse ele olhando na direcção em que ficara a mulher. - Não quero deixar de cumprir o meu dever.
- Qual dever?
- Ao primeiro passo que dei em terra, depois da tempestade terrível de que me salvou como se fosse um anjo enviado por Deus, creio que não devo escutar com indiferença o grito da miséria.
- Que quer então fazer?
Repartir com aquela infeliz algum dinheiro que salvei do meu cinto.
- Não o contradigo, senhor, antes aprovo essa ideia, porque me produz sempre extrema sensação a voz da miséria.
Dizendo isto, os dois recém-chegados ao porto de Marselha voltaram atrás,
aproximando-se da infeliz que ainda se conservava de joelhos.
O mais novo inclinou-se para ela, perguntando-lhe:
- Que faz aqui, senhora?
- Espero o meu filho! - respondeu ela elevando o rosto.
- Meu Deus! É minha mãe! Minha mãe!... Oh! Isto é ilusão... estarei eu doido? - exclamou ele, tomando nos braços a infeliz senhora em cujos lábios se via agora um meigo sorriso, única res-posta às palavras do mancebo.
- Que diz, senhor de Morcerf?
- Oh! Venha, venha, conduzamos esta infeliz... meu amigo, o céu fere-me sem piedade! É minha mãe!
O mancebo não pôde continuar; abraçou a pobre senhora e beijou-a na fronte ardente pela febre, como se procurasse reanimá-la com um beijo.
Benedetto contemplou por momentos aquele quadro enternecedor.
Em seguida fez as necessárias diligências para transportar a infeliz senhora a uma casa próxima, impedindo que os curiosos a seguissem.
Depois de a deitarem e graças aos desvelos de uma caridosa mulher, passado algum tempo ela abriu os olhos, dando sinais de vida.
O mancebo queria falar-lhe, beijá-la, chamar-lhe muitas vezes mãe com aquele sublime sentimento que a saudade e a alegria despertam na nossa alma; porém Benedetto, explicando-lhe que a pobre senhora não estava em condições de poder resistir ao abalo de tão viva sensação devido ao seu estado de abatimento e de fraqueza, conseguiu que o companheiro esperasse o tempo necessário para o seu completo restabelecimento.
Alberto, assim se chamava o mancebo que aparecia acompanhado de Benedetto, não se retirava da porta do aposento onde se encontrava sua infeliz mãe. Um médico, que acabava de a observar, assegurou-lhe que não havia perigo e que garantia o seu completo restabelecimento dentro de poucos dias, desde que em sua volta houvesse o maior sossego.
Alberto pareceu animado pelas palavras do clínico, e lançando ainda um olhar inquieto para o interior do aposento, foi ao encontro de Benedetto, o qual dava algumas ordens a Rocca Priori, ime-diato do seu pequeno navio.
- Meu amigo - disse o mancebo, apertando-lhe a mão. - O médico acaba de me afirmar que não deverei recear o menor perigo quanto à saúde de minha mãe. Oh, meu Deus, eu vo-lo agradeço! - murmurou ele, elevando ao céu o olhar puro em que a alma exprime todo o seu reconhecimento ao Criador.
- Muito bem, senhor de Morcerf - respondeu Benedeto - estimo que assim seja. Agora mesmo acabo de dar ordem ao meu imediato para arranjar mantimentos e fazer aguada sem a menor demora.
- Porquê? Tenciona deixar-me? - perguntou Alberto interrompendo-o precipitadamente.
- A minha missão está cumprida no que lhe diz respeito - tornou Benedetto. - Está em terra, ao lado de sua mãe... feliz... posso partir.
- Já! - murmurou Alberto, pregando o olhar no chão e apertando efusivamente a mão de Benedetto. - Eu quisera que minha mãe o visse e lhe agradecesse também o desvelo com que me pro-curou no centro da procela para me salvar!
- Não fui eu que o salvei, senhor - respondeu Benedetto - foi a mão de Deus que o arrancou às ondas e o suspendeu sobre o abismo! Tenho-lhe dito esta verdade bastantes vezes e deve entendê-la para sempre! Que interesse me teria despertado o seu grito agonizante, a ponto de me fazer desprezar a própria vida para salvar a sua, que instinto me teria guiado pelo centro do fogo e da água até ao lugar em que os seus braços cansados em vão tentavam elevar-lhe o corpo à flor das ondas, se Deus não me houvesse determinado quanto eu executei? Nada tem que agradecer-me! A sua hora marcada no livro dos destinos não estava ainda na página fatal que se voltou!
- - Todavia, faça-me o obséquio de se demorar alguns dias mais. A delicadeza com que se tem esquivado a fazer-me perguntas acerca da minha vida, obriga-me a explicar-lha. Eu sei que não tenho-o menor direito à sua estima porque, enfim, sou um estranho para o senhor, mas peço-lhe que fique.
Um sorriso irónico assomou aos lábios de Benedetto, quando ouviu a última palavra.
- Ignora que tenho todos os minutos contados e que não posso desviar-me do caminho que sigo?
- Sempre assim me tem falado, isto é, de um modo que não o posso compreender, mas que me revela alguma coisa de terrível na sua existência... Se alguma vez me houvesse feito perguntas, eu não hesitaria também agora em perguntar-lhe com interesse qual é o desgosto que o atormenta. Olhe que sei avaliar com exactidão isso a que se chama um desgosto profundo - disse Alberto, suspirando.
Benedetto dirigiu-lhe um olhar investigador, como se procurasse ler-lhe na fisionomia, algum sentimento ali expresso, uma ruga qualquer.
- O caminho que eu sigo - disse ele, depois de breve pausa - não é segredo: Ando à procura de um homem que não sei onde se encontra!
Serei indiscreto perguntando-lhe quem é que pode então guiá-lo até junto dele?
- É simples: a mão do finado! - respondeu Benedetto com toda a frieza.
Alberto lançou-lhe um olhar receoso, pois julgou que tais palavras só poderiam ser filhas do delírio.
- As suas palavras terríveis fazem-me talvez curioso demais - disse-lhe. - Agora que recebi, como sabe, um golpe violentíssimo da fatalidade, elas produzem-me um efeito singular.
- Pois bem, meu amigo, acredite que não estou doido quando lhe afirmo que está erguida à face dos vivos a mão de um finado, que estremece ainda com raiva que não pôde morrer com ele!
- Deve forçosamente ser poderoso o homem a quem o guia tão estranho motor!
Benedetto olhou em volta de si, como para se certificar de que ninguém mais o escutava, depois agarrando no braço de Alberto, disse-lhe em voz baixa mas expressiva:
- Já ouviu falar no conde de Monte Cristo?
A este nome, proferido por Benedetto com expressão feroz, Alberto recuou um passo, fazendo-se pálido como um cadáver; depois juntando as mãos e elevando-as acima da cabeça, deixou cair logo os braços com violência, bradando ao mesmo tempo:
Maldito!
Benedetto recolheu com um gesto inexplicável aquela palavra proferida contra Edmundo Dantes:
- Conhece esse homem? perguntou ele com visível interesse, aproximando-se de Alberto.
- Pergunta ao condenado se conhece o algoz! - retorquiu ele. - Esse espectro poderoso surgiu da poeira e provocou a fatalidade sobre a minha família. Maldito! Mil vezes maldito! - Em seguida, enxugando uma lágrima, murmurou: - Oh, minha mãe, perdoa se não posso respeitar como tu o nome do homem cujo procedimento terrível é ainda para mim um mistério.
Benedetto limpou o suor frio que lhe deslizava em grossas bagas pela fronte e murmurou por sua vez:
- Oh, Deus! Aqui também há um brado que condena esse homem singular! A sua sentença está portanto escrita em toda a parte pela tua mão poderosa!
Seguiu-se um momento de silêncio.
Benedetto compreendeu pelo gesto de Alberto que este conhecia de perto o conde de Monte Cristo. Portanto dispôs-se a indagar com precisão a causa daquele brado de maldição que ouvira.
- Meu amigo - disse ele, dirigindo-se a Alberto que parecia sofrer ainda o efeito singular que lhe produzira o nome de Edmundo Dantes - desculpe a minha indiscrição, perguntando-lhe que género de relações existiram entre o senhor e o conde de Monte Cristo. Entre mim e ele existe uma dívida-de sangue e eu preciso de conhecer bem o homem contra quem me dirijo.
- Vou satisfazê-lo, senhor. Deixe-me primeiro ir saber de minha mãe, pois desejo retirá-la daqui quanto antes.
- Vá, mas aconselho-o que não premedite por enquanto causar-lhe o menor abalo. Poderá demorar-se nesta casa até ao seu completo restabelecimento.
Alberto, sem responder, dirigiu-se ao quarto da mãe, e pé ante pé aproximou-se do leito onde ela dormia; contemplou-a por momentos, deu-lhe um beijo na fronte e voltou depois à sala onde Benedetto o esperava.
- Eis-me, senhor, agora vou desabafar todo o ódio que me inspira esse homem chamado conde de Monte Cristo! Disse-me que existia entre o senhor e ele uma dívida de sangue, pois bem, a dívida que há entre mim e ele, posto que não seja como a sua, não é todavia menos terrível! Entretanto, eu prestei um juramento solene de não me vingar.
- E quem lhe exigiu esse juramento?
- Foi minha mãe.
- E depois?
Alberto cruzou os braços sobre o peito, encostou-se na cadeira e continuou:
CAPíTULO 30
A serpente
- EM 1838 havia em França uma pequena família, cujo chefe era o conde de Morcerf, meu pai. Esta família era composta simplesmente por minha mãe
e por mim. Nesse ano eu, que pertencia então, como minha família, à chamada sociedade escolhida de Paris, tentei ir passar o carnaval em Roma com um amigo meu, Franz d'Epinay, e parti para Florença, onde combinámos encontrar-nos. Foi em Roma que conheci o conde de Monte Cristo, estando eu e o meu amigo d'Epinay numa situação difícil, da qual o conde nos livrou, oferecendo-nos a sua carruagem para o primeiro dia de carnaval em 22 de Fevereiro. Aquele homem, a quem Franz conhecia já por ter estado com ele na famosa gruta de Monte Cristo...
A estas palavras, Benedetto franziu o sobrolho
e perguntou com certa desconfiança:
- Acreditou alguma vez na existência dessa gruta?
- Franz jurou-me que existia - respondeu Alberto. - Assim como jurou que fora hospedado nela pelo conde.
Muito bem, continue.
Alberto prosseguiu:
- Desde o dia 22 de Fevereiro de 1838, que começaram as minhas relações com o conde de Monte Cristo. Imagine uma amizade sincera, como ela o pode ser no completo sentido da frase, tal era o que eu parecia ter inspirado àquele homem fatal! Sabendo que quando saísse de Roma, tencionava dirigir-se a Paris, imediatamente lhe ofereci a casa de meu pai, dedicando-me a servir-lhe de cicerone não só na capital, mas também na sociedade escolhida de que eu fazia parte, como lhe disse.
“O conde aceitou a minha oferta.
“Dali a pouco tempo, no dia e na hora marcados por ele para se apresentar em minha casa, notei a maneira pela qual ele compreendia a exactidão. Pois quando o ponteiro marcava a hora designada, quando os amigos que estavam reunidos nos meus aposentos se impacientavam com a demora do almoço que eu tencionava oferecer ao conde, este homem entrou no meu gabinete.
“Acabado o almoço, apresentei-o a meus pais. E ele sempre a manifestar-me em tudo e por tudo a amizade que me parecia ter-lhe inspirado.
“Oh! Quantas vezes a minha pobre mãe, ao notar a cegueira em que eu permanecia, me perguntava com os olhos húmidos e um triste sorriso nos lábios, se aquele homem era realmente meu amigo. E outras tantas vezes eu... eu, pobre ignorante do mundo e dos homens, lhe afirmava ser o conde de Monte Cristo meu verdadeiro amigo! Pois o maldito possuía a astúcia da serpente e o poder magnético que se encontra no olhar fascinador deste réptil traiçoeiro, que se arrasta a nossos pés para mais tarde se levantar e nos ferir no coração!...
“Durante alguns meses, fui o companheiro inseparável do conde de Monte Cristo. Parecia-me que aquele homem não tinha segredos para mim e que nas suas horas de melancolia me patenteava todo o seu coração cheio de bondade e de justiça!
“Oh! O desengano... o termo da minha ilusão chegou em breve, terrível e fatal!
“No meu estado de desolamento, veio ainda em meu auxílio_ o homem que reputava meu amigo, posto que minha mãe me repetisse constantemente que o conde não podia ser comigo tão sincero quanto eu julgava!
“Ele instou e quase me obrigou a fazer na sua companhia uma pequena viagem de recreio. Abracei minha pobre mãe e parti com ele.
“Não houve nada que o conde não inventasse para me distrair: a caça, a pesca, os passeios a cavalo, a tudo ele me obrigou sempre com o sorriso traidor nos lábios hipócritas! Passados alguns dias recebo uma carta de um amigo meu, avisando-me de que estava descoberto o autor da acusação contra a honra de meu pai.
“Deixo o conde de Monte Cristo e corro a Paris.
“Com efeito tudo estava aclarado. Li os papéis que provavam um crime no passado de meu pai. Vi o esplendor do seu nome e do meu desfeito e aniquilado para sempre, ante o riso motejador dos nossos inimigos! Vi as portas das melhores salas de Paris fechadas para nós! Eu... eu... que julgava possuir um nome distinto e elevado pelo brio de um guerreiro... eu que julgava poder encarar de frente aqueles que se diziam filhos dos mais nobres e honrados fidalgos, tive de resumir-me às proporções de um homem que não tem o menor nome ou título para a consideração da sociedade!
“Louco! Esmagado sob o peso formidável da vergonha, ouvi o sentido soluçar de minha mãe e a voz quase extinta de meu pai, pedindo-me que o vingasse!
“E levantei-me, a fim de ferir o inimigo mortal que, sem dó nem piedade, levava ao conhecimento público um erro de meu pai, sem se lembrar que meu pai estava então ligado a uma senhora, da qual tinha um filho que era inocente no mencionado erro; o inimigo desapiedado que para ferir um homem feria também a mulher e o filho desse homem!
“Perguntei então quem era o autor da minha desgraça. E sabe o que me disseram? Que era o conde de Monte Cristo!
Dizendo isto, Alberto levantou-se, ameaçador, como se naquele momento visse diante de si o homem cujo nome acabava de pronunciar.
- Eu não quis acreditar - continuou ele um momento depois - porém aquele nome terrível estava assinado nos papéis que examinava!
“Eis como ele era traidor no sentimento que me manifestava desde há muito tempo! Eis, enfim, como ele correspondia à amizade sincera que lhe tributei sempre! Traidor! Mil vezes traidor! Se há no céu um Deus tão justo e bondoso como eu concebo, o crime que cometeste jamais te será perdoado! Desde o primeiro dia em que a tua mão tocou na minha, em que compartilhaste o meu pão, em que me convidaste a compartilhar o teu, em que me faltaste e me recebeste de um modo que triunfou sobre todos os meus escrúpulos, premeditavas a traição que fizeste!
Fez uma breve pausa, depois passando a mão trémula pela fronte, continuou:
- Eu já não podia reabilitar a honra do meu nome, porém podia vingar-me!
“Com este pensamento fui ao encontro do conde.
“Estava ele no seu camarote da ópera e eu apresentei-me para o insultar, pois só assim conseguiria que se batesse comigo.
“O maldito recebeu-me com o seu modo bondoso e cheio de ternura! Isto ainda mais ateou a chama que me queimava! Expus-lhe o objectivo da minha visita e recebi em resposta uma gargalhada, tornando-nos logo no alvo da sala inteira. Como o escândalo tinha sido público, eu quis que a desa-fronta, se possível, fosse igualmente pública!
“A minha luva quase bateu nas faces do conde de Monte Cristo.
“O duelo deveria ter lugar no dia seguinte.
- E o seu braço foi tão pouco firme que não soube sustentar a pontaria? - perguntou Benedetto com interesse.
- Não, senhor - respondeu Alberto cheio de
placidez. - Fui desarmado no lugar do encontro, e ali, em presença das testemunhas, dei satisfação ao conde de Monte Cristo e apertei-lhe a mão!
Miserável! - exclamou Benedetto, erguendo-se e olhando com expressão de tédio para Alberto, o qual se conservou imóvel. Depois, como arrependido da palavra que dissera, Benedetto tornou a sentar-se e perguntou com voz comovida:
- Tinha enlouquecido?
- Não - murmurou Alberto.
- O que se passou então?
- Na véspera do duelo, alguém entrou no meu quarto e pediu-me que jurasse que não atiraria sobre o conde de Monte Cristo.
- E quem foi que teve o poder de lhe arrancar um juramento desses?
- Uma mulher a quem eu amava de um modo que talvez ninguém compreendesse se eu tentasse explicá-lo! Uma mulher, cuja felicidade de uma hora, eu compraria por um ano tormentoso da minha vida! Uma mulher, cujas lágrimas me queimavam
o coração... Foi minha mãe!
CAPíTULO 31
Duas vítimas inocentes de uma vingança terrível
QUANDO acabou a primeira parte da sua narração, Alberto ficou de tal modo comovido que não pôde continuar.
Levantou-se e foi ver a mãe, notando com prazer inexplicável que a respiração estava mais livre e que o sono não era tão agitado como no princípio; depois voltou à sala e jantou na companhia de Benedetto, o qual parecia resolvido a demorar-se em Marselha o tempo necessário para o completo restabelecimento da mãe de Alberto, a senhora de Morcerf.
Sem procurar conhecer a causa primária do procedimento do homem a quem perseguia, o conde de Monte Cristo, o filho de Villefort concebia que não pode haver justo raciocínio algum, pelo qual o homem leve o seu procedimento ao ponto de chamar a desgraça sobre pessoas que nunca o ofenderam.
Teria o conde de Monte Cristo necessidade absoluta de se vingar de uma afronta, de um latrocínio, de uma crueldade qualquer cometida contra ele ou contra alguém do seu sangue?
A maior virtude do cristão puro consiste em saber perdoar as injúrias; e ainda que o conde de Monte Cristo não tivesse, assim como todos os homens, esta virtude sublime, exemplificada por Cristo sobre a cruz do seu martírio, restava-lhe a sã filosofia para lhe moderar o excesso de uma paixão violenta.
Vingar-se um homem de outro que lhe causou dano, é acção que pelo costume não estranha o mundo! Porém sacrificar a essa vingança os que não o ofenderam, isso nunca! Sacrificá-los sem dó, sem piedade, roubando-lhes o pai, o amigo, o pro-tector, esmagando-os sob o peso de uma vergonha perpétua, de uma fatalidade eterna, isto é um pro-cedimento sem nome, sem classificação no mundo culto. O que haveria pois neste mundo capaz de remir Edmundo Dantes da sua enorme, monstruosa culpa? Quantas acções boas seriam necessárias no prato da balança do juízo final, para equilibrarem com o seu peso o do seu procedimento fatal? Nem que Edmundo Dantes vivesse mil anos votado à prática das virtudes, é de crer que se purificasse de tão grandes erros cometidos no curto espaço de seis meses, que fazem um instante imperceptível da eternidade!
No dia seguinte, Benedetto que prestara grande atenção à narrativa de Alberto, pediu-lhe que a terminasse.
Depois de se informar da saúde da mãe, Alberto sentou-se como no dia antecedente, ao lado de Benedetto numa das salas da estalagem do Sino e da Garrafa.
Em seguida, parecendo coordenar as ideias sob o ponto que tinha a tratar, prosseguiu:
- Quando me retirei do lugar destinado ao duelo, voltei para casa, deixando atrás de mim assunto para os mais graves comentários dos meus amigos outrora.
“O meu plano estava traçado.
“Juntei todo o meu dinheiro, dispus dos móveis que me pertenciam na casa paterna, e quando tinha tudo pronto para a partida, fui aos aposentos de minha mãe. Tinha feito o mesmo que eu; todo o seu dinheiro estava dentro de uma carteira e ela pronta para partir comigo. Adivinhara toda a minha resolução, assim como eu previra a sua. Meia hora depois, apoiada no meu braço, descia a escada do palácio que tinha sido o teatro da sua felicidade e da sua desgraça, para nunca mais ali voltar!
- E seu pai? - perguntou-lhe Benedetto. - Seu pai assim abandonado pela esposa e pelo filho! Nem sequer um adeus extremo?
- Meu pai - continuou Alberto - não era homem que reputasse um bem o adeus doloroso de que fala! Foi ele quem no-lo disse, quando um tiro ressoou no vestíbulo da escada no momento em que eu e minha mãe entrávamos para uma carruagem de praça. O conde de Morcerf tinha feito justiça por suas próprias mãos.
Seguiu-se uma pequena pausa.
Benedetto cruzou os braços sobre o peito, encarando com interesse o moço que lhe contava uma história terrível.
- Era eu o único apoio de minha mãe - prosseguiu Alberto - eu, que não tinha nem fortuna nem nome! Eu, ainda tão cheio dos preconceitos da minha passada aristocracia, que nem tinha jeito para pedir uma esmola quando o tempo assim o quisesse! Todavia era necessário encarar o futuro, determinar um modo de vida, escolher uma posição, porque o tempo correria veloz e a miséria não tardaria!
“Tomei então uma resolução.
“Corri a alistar-me para o serviço militar, e aumentando com aquele pequeno produto do meu suor o nosso diminuto capital, dispus-me a partir para África com o vivo desejo de mostrar à cidade de Paris que o erro moral não é coisa hereditária da família de Morcerf. Oh, desculpe! - atalhou vivamente. - Deixei de usar este apelido e restringi-me a outro mais simples, mais obscuro, mais popular... chamo-me, desde que estou no exército, Alberto Mondego.
- Poderia adoptar um apelido da nobreza ma-terna - observou Benedetto.
Alberto sorriu com desdém e respondeu:
- Minha mãe era filha de modestos pescadores. Um mês depois de eu me ter alistado parti para África, onde me conservei até agora, nutrindo na alma esta saudade pelo único ente a quem amo... por minha mãe! E quando eu voltava risonho para a abraçar, esquecendo por este só prazer, todos os meus pesares e fadigas passadas, eis que o destino me feriu sem piedade, como se ainda não estivesse satisfeita a minha desgraça!
“Minha mãe passou fome! A minha querida e boa mãe, foi constrangida a estender a mão para solicitar um pedaço de pão! Sim... isto não pode ser da vontade de Deus! Um demónio nos bafeja com o seu hábito! A desgraça pesa sobre nós!
Alberto escondeu o rosto nas mãos para disfarçar duas lágrimas que lhe sulcavam as faces crestadas pelo sol de África.
Benedetto contemplou-o em silêncio, como se não tivesse ânimo de interromper aquele solene recolhimento de um filho que chorava as desgraças de sua mãe.
- Agora, senhor - disse Alberto - já sabe o género de relações que existiram entre mim e o conde de Monte Cristo. Sabe também quem eu sou: chamo-me Alberto Mondego e sou filho de Mercedes. Não possuo bens alguns, o pequeno capital que trouxe de África perdi-o quase todo naquele terrível naufrágio de que me salvou; não tenho amigos nem conhecidos em Marselha: porém no que lhe puder ser útil, conte comigo!
Dizendo isto, estendeu a mão a Benedetto, o qual a apertou com vivacidade.
- A sua narração comoveu-me - disse Benedetto. - O amor que consagra a sua mãe é uma afeição que pode concorrer muito para a felicidade íntima de um filho! Muitos há que nem ao menos podem verter uma lágrima de saudade sobre a campa de uma mãe!...
- Como assim? - perguntou Alberto.
- Quando, por exemplo, um homem não conhece quem lhe deu o ser!
- Ah!.
- Quando sabe que foi abandonado logo depois de ter nascido... Acredite-me que há homens mais infelizes do que o senhor! Há desgraças mais terríveis do que a sua!
- Talvez! - murmurou Alberto.
Benedetto soltou uma risada irónica, exclamando:
- Sabe o que é uma existência de proscrito sem família, sem pátria, sem ao menos uma esperança na alma? Sabe o que é a raiva, o desespero, a vingança? Viu o céu escuro naquela noite de tempestade, as águas revoltas, os raios de fogo fendendo sem cessar as grossas massas de nuvens? Lembra-se da aflição que sentiu quando era o joguete das vagas? Lembra-se de como então lhe pareceu terrível o ribombar dos trovões? Ah! Esteve ali uns instantes sem esperança de sobrevivere viu-se nos braços da morte, mas não era ela a virgem silenciosa e triste que a pouco e pouco estreitava contra o gelado seio, era a fúria desenvolta que o martirizava nos seus braços de ferro e lhe arrancava cada esperança da alma em cada fôlego do peito! Imagine, agora, que semelhante situação era pro-longada como o suplício de Prometeu, e diga-me então se um mártir assim não será mais desgraçado do que o senhor?
- E existe ele porventura fora das páginas da fábula?
- Está na sua presença! - bradou Benedetto. - Não tenho nem amigos, nem protectores, nem pais, porque estes sepultaram-me em vida logo depois do meu nascimento, e já não existem! A minha herança é a proscrição: o meu legado, a vingança. Ah! A vingança... que eu hei-de saborear lentamente, estudando suplícios novos, para arrancar do peito de um homem os gemidos dolorosos que os ecos ainda não repetiram!
- Como assim!? retorquiu Alberto. - Já o ouvi falar de Deus e não Compreendo como sendo o senhor um crente desse Deus poderoso e magnânimo, se deixe possuir do maldito sentimento da vingança!
- Porque talvez não lhe dissesse que quem mo inspirou foi um homem que nunca soube perdoar! Foi um homem que sacrificou a uma vingança particular os inocentes do crime que ele quis punir! Agora é necessário que eu sinta no peito a raiva que me domina e me torna feroz, porque tenho a convicção de que sou o eleito de Deus para castigar o orgulho com que esse homem quis propor e dispor sobre a terra, julgando-se iluminado e justo, quando não era mais do que o ludíbrio de uma paixão pre-dominante da sua existência, e quando o seu poder sobre os homens se baseava simplesmente na sua imensa riqueza! Maldição eterna... sim, peça comigo a maldição eterna sobre ele, porque esse homem é o conde de Monte Cristo!
Mal acabara de pronunciar estas palavras, quando um grito rouco e desesperado ressoou pela sala.
Alberto e Benedetto ficaram por um momento perplexos.
CAPíTULO 32
A estalagem da “Sino e da Garrafa”
MERCEDES estava no limiar da porta.
Na palidez das suas faces destacavam-se as rosas vermelhas da febre, o olhar inflamado e incerto revelava o delírio.
Despertada da sua languidez pelo acesso da febre, animada pela força inexplicável do estado de exaltação de sangue, guiada por um pensamento vago e confuso, arrojou-se para fora do leito, envolta nas roupas da cama. Uma saia curta e mal aconchegada na cintura uma camisa mal unida ao seio palpitante, o cabelo em desordem-solto sobre os ombros, tudo isto de acordo com a irregularidade do gesto, acabava de lhe dar uma terrível aparência de louca.
Tendo caminhado até à porta da sala, escutou por momentos as palavras de Benedetto, soltando um grito agudíssimo quando ele pronunciou o nome do conde de Monte Cristo.
Alberto, passado o primeiro momento de surpresa, correu para a mãe. Ela repeliu-o e avançou até ao centro do recinto, lançando em redor de si um olhar desvairado.
Edmundo! - murmurou ela com um doloroso sorriso. - Assassinaste o meu filho! Deste-me em seguida a viuvez, a miséria, o sofrimento, a fome! Como pagaste tão mal as muitas lágrimas que verti pelo homem a quem amei!... Onde está esse homem? Ah! Que não venha, porque me recriminaria o abraço, o beijo que reservo para o meu querido filho!
Seguiu-se um momento de silêncio.
Alberto estava de joelhos, com os olhos fitos na mãe, os lábios entreabertos, como se o excesso da surpresa e do pesar lhe houvesse cortado estas palavras:
- Minha mãe... eis-me aqui!
Benedetto, com os braços cruzados sobre o peito, escutava com profunda atenção as palavras que Mercedes continuava 'a proferir:
- Amei-te muito, Edmundo, amei-te quanto uma mulher pode amar, e tu não voltaste nunca para me desposar! Partiste na hora das nossas núpcias... e passaram-se quinze anos, quinze séculos, quinze vezes a eternidade... e tu sempre ausente! Quantas angústias sofri, quantas lágrimas derramei. interroga o rochedo dos Catalães e ele te falará de mim e do meu sofrimento! Interroga a coroa que me cingiu a fronte na hora do meu casamento e verás ali uma lágrima que eu te consagrava!... Escuta o meu leito matrimonial e ele repetirá ainda os gemidos que a esposa criminosa votava à memória de um homem que não era seu marido! Esse homem eras tu... E porque te mereci eu a desgraça?
que mal te fez o meu filho? A justiça de Deus não é tua... Escutem... Ah! Lá vem o meu filho! filho.. por quem esta alma anseia... Vem! Vem!
Mercedes pronunciou as últimas palavras com veemência, abrindo os braços como se esperasse naquele momento estreitar contra o peito o filho por quem chamava.
Com efeito Alberto, erguendo-se com rapidez, precipitou-se nos braços de Mercedes, exclamando: - Aqui estou, minha mãe!
Um beijo e um abraço frenético, foi a única res-posta de Mercedes.
Seguiu-se profundo silêncio, durante o qual mil carícias apenas concebíveis se trocavam sem cessar entre mãe e filho.
Mercedes parecia mais sossegada em conseqüência do acesso da febre ter diminuído; todavia, as suas ideias ainda imperfeitas, o seu pensamento pouco determinado, eram revelados no modo com que o olhar lhe corria desvairado por tudo quanto a cercava.
Ela apertava repetidas vezes a mão de Alberto, encostando ao mesmo tempo a fronte ao peito agitado do filho, em cujos olhos brilhava o pranto, arrancado pelos sentimentos simultâneos do prazer e do pesar.
- Alberto! - exclamou Mercedes. - És realmente o meu filho? Sim, eu sei que és o filho que se vendeu para me sustentar, o filho por quem eu dera sempre a minha existência! E agora não tornarás a deixar-me, não é verdade?
- Sossegue, minha mãe, pois ficarei para sempre consigo - respondeu Alberto.
- E se esse homem poderoso e vingativo vier outra vez separar-nos? Não sabes que te corre nas veias o sangue do rival de Edmundo, e que este não sente sem estremecer os beijos que te dou?
- Não! Não! - retorquiu Alberto. - Edmundo está longe e deixou de nos querer mal!
E falando para consigo próprio:
“Oh, meu Deus, tem piedade de minha mãe!” - Dize-me, Alberto, onde estamos? - perguntou Mercedes, olhando inquieta em redor.
- Em Marselha - respondeu ele. - Não se recorda de Marselha?
- Sim. E esta casa?
- Esta casa é a estalagem do Sino e da Garrafa.
- O quê? - bradou Mercedes, agarrando-lhe o braço com força e estremecendo.
Alberto repetiu o nome da estalagem.
- Ah! - fez Mercedes, como se sentisse no peito uma dor agudíssima. - Que terrível cena se passou aqui! Aqui... mesmo nesta sala... Sim... vejo ali a mesa onde se preparava o festim dos meus esponsais... vejo ali o rosto apaixonado de Edmundo! Acolá a fisionomia ciumenta e traidora de Fernando Mondego...
- Minha mãe! - bradou Alberto com aflição.
- Escuta - continuou ela franzindo o sobrolho e conduzindo Alberto a uma das janelas, pela qual se distinguia a praça. - Não ouves os sinos que repicam? É por um casamento. Não vês aquela mulher, vestida de branco, com a fronte adornada com uma coroa branca? É a noiva, que foi receber o seu anel de esponsais. Ela vem ao lado de Edmundo, cujo olhar luminoso exprime o sentimento puro que há no seu peito! Logo após os esposos... vê-se um mancebo caminhando de cabeça baixa e olhar sinistro, cravado no solo, e a fronte enrugada meditando a traição!
“Onde está toda essa gente alegre e folgazã que te mostrei atravessando a praça? Ei-los à mesa na estalagem do Sino e da Garrafa! O noivo ao lado da esposa e o traidor mirando-os cheio de ciúmes, com o seu olhar, traiçoeiro! Jesus! - gritou ela. - Arrebatam-me dos braços o meu esposo! Fernando Mondego denunciou-o como bonapartista! Ele é conduzido pelos soldados... fico viúva, mesmo antes de lhe ter pertencido!
Acabando de pronunciar estas palavras, Mercedes caiu nos braços de Alberto, o qual a conduziu para o leito, entregando-a aos cuidados de uma mulher, enquanto Benedetto corria a procurar um médico.
Felizmente, aquele estado de exaltação febril cedeu aos primeiros remédios aplicados, e em breve pôde Alberto fazer conduzir sua mãe para a pequena propriedade dos Catalães.
O seu restabelecimento começou então.
A presença do filho, o ar livre que respirava ali, os desvelos que a cercavam, tudo concorreu para lhe apaziguar o espírito, varrendo-lhe do pensamento as tristes imagens de um passado desditoso.
Recobrou inteiramente o estado normal das suas faculdades intelectuais e chegou a poder dirigir a Benedetto algumas palavras de agradecimento verdadeiro Pelo modo com que ele desprezara a vida para salvar o seu semelhante de uma morte horrível.
Entretanto, Alberto reconhecia que a partida de Benedetto se aproximava. Aquele homem tinha-lhe inspirado tão profundo interesse, que ele não teve dúvida em lhe conceder o título de amigo. Com efeito, o dia da separação não tardou. Alberto adivinhou-o e apertou a mão de Benedetto, como se lhe dissesse o último adeus.
- Senhor - perguntou-lhe Benedetto uma manhã, entrando no seu quarto - de que modo encara o seu futuro?
A esta pergunta inesperada, Alberto olhou por momentos para Benedetto, em cuja fisionomia impassível nada havia que traísse o menor dos seus sentimentos.
- Desculpe a minha indiscrição - continuou
ele - porém causa-nos sempre um vivo desejo
conhecer qual será o futuro de um homem que nos
interessa quando o deixamos talvez para sempre!
- Agradeço a sua delicadeza - respondeu Alberto - e vou satisfazê-lo. Regressava do Ultramar, como lhe disse, com uma bagatela, o suficiente para assegurar o descanso e o sossego de minha mãe. Mas Deus, ou simplesmente o acaso, não quis que isso assim fosse! Perdi quase tudo, e hoje só me resta o necessário para fazer face ao tempo enquanto não arranjo um emprego.
- E se o não arranja?
- Trabalharei em qualquer coisa - respondeu Alberto tristemente, acrescentando logo a seguir com orgulho: - Porém, asseguro-lhe que minha mãe não sofrerá a menor privação!
- Invejo o amor que tributa a sua mãe, invejo o sentimento e a resignação profunda com que recebe a vontade de Deus!
- Devo trabalhar para sustentar quem me deu o ser - replicou Alberto com toda a simplicidade - pois é esse o meu dever.
- Está portanto disposto a trabalhar?!
- Sim, senhor.
- Muito bem, Alberto, o senhor tem pouco mais ou menos a minha Idade; todavia, acredite nas palavras que vou dizer-lhe, porque são filhas da experiência. Por mais fatal que o destino pareça ao homem, este deve acreditar que existe um princípio superior e divino, qualquer que ele seja, que nunca se esquece de pesar as nossas acções na balança da justiça, premiando a inocência!
- O senhor recebeu prémio dessa inocência? - perguntou Alberto, sorrindo.
- Não, porque sou culpado e acredito firmemente no castigo das minhas culpas, logo que finalizo a minha missão; porém tenho reconhecido que os maus recebem o tremendo castigo dos seus erros e vícios, e por isso lhe afirmo que os inocentes também terão o prémio das suas virtudes! Fique em paz, Alberto, acima do senhor e de mim há sem dúvida um Deus que nos julgará!
Dizendo isto, Benedetto retirou-se do quarto de Alberto, o qual, vivamente impressionado pelo gesto solene e pelas palavras suaves de Benedetto, não teve a determinação rápida de o seguir nem de lhe responder, apesar de ter reconhecido que as suas
últimas palavras e o tom com que tinham sido pronunciadas, exprimiam o extremo adeus.
CAPíTULO 33
Partida
MEIA hora depois, Alberto ouviu a voz da mãe que o chamava.
Subindo ao seu quarto, achou-a sentada em frente da janela olhando fixamente para o mar.
- Dize-me, Alberto, que embarcação era aquela que há pouco levantou ferro e se faz agora de vela? Desde ontem que a vi fundeada aqui em frente dos nossos rochedos.
Alberto olhou na direcção que Mercedes indicava e distinguiu um pequeno barco, ligeiro e leve como o cisne quando oferece as asas ao sopro da brisa, e se deixa deslizar pela superfície das águas dum lago. -
- Ah! - murmurou ele, depois de contemplar por momentos o barco que principiava a mover-se. - É o navio de Benedetto! Eu adivinhava que ele ia deixar-nos. Homem singular que me pareceste possuir o segredo de triunfar da procela, correndo ousado pelo centro do fogo e da água, semelhante a um génio benigno que se empenhava em me salvar! Adeus para sempre!... Adeus!
- Oremos por ele - disse Mercedes, ajoelhando em frente dum belo crucifixo que pendia da parede.
- Sim, minha mãe, oremos... neste momento em que ele se lembra também de nós!
Alberto distinguira uma pequena nuvem branca na borda do barco e logo depois ouviu a detonação de um dos seus morteiros, no momento em que o navio, dobrando a ponta do rochedo, passava em frente da casa de Mercedes.
Era o último adeus de Benedetto.
Alberto conservou-se muito tempo em frente da janela, com os olhos cravados na pequena em-barcação que principiava a deslizar velozmente impelida pela brisa da costa.
Mercedes orava ainda ajoelhada junto do crucifixo e as suas palavras suaves imploravam a cle-mência do céu para o salvador de seu filho.
Terminando a oração, levantou-se e foi encostar a fronte no ombro do filho, dizendo-lhe:
- Meu filho, o nosso dever está cumprido para com aquele estrangeiro que tão generosamente salvou a tua vida. Devemos-lhe eterna gratidão. Ele que vá em bem na sua viagem, e nós que fiquemos também em paz!
- Sim, minha querida mãe! - respondeu Alberto, abraçando-a com extremo carinho. - Possamos nós gozar a paz e o sossego íntimo!...
- Mas porque motivo há lágrimas nos teus olhos, meu filho, quando dizes essas palavras? - perguntou Mercedes com inquietação.
- Porque não posso realizar os meus sonhos, porque não posso fazer-lhe esquecer o passado, conforme eu havia concebido!
- E julgas que as tristes recordações desse tempo de desgraça e de fatalidade não me oferecem um certo prazer amargo, que não podes compreender? Pois acredita-o, Alberto.
- Todavia, eu quisera evitar-lhe as lágrimas. Mercedes sorriu; era um desses sorrisos melancólicos do desgraçado, o que lhe descerrava os lábios, sorriso ao mesmo tempo meigo e irónico, despertado pelo sentimento profundo da desgraça.
- E como poderias tu evitar este pranto originado por muitos anos de fatalidade?
- Deus me ajudaria. Suponha que, a pouco e pouco, eu ia desenrolando a seus olhos uma cortina em que haviam de estar as mais ricas e soberbas paisagens, superiores ainda aos pincéis dos melhores artistas; o aspecto florescente das muitas cidades que há nas margens deste formoso lago, desde Gibraltar até aos Dardanelos: os costumes vários de muitos povos; os seus tipos diferentes desde o Caucásico ao Americano; as cenas magníficas, desde o cristianismo até à mais baixa ideologia!... Depois, essas famosas páginas dos séculos, a que chamamos ruínas, dispersas sobre a terra, com as soberbas inscrições; a meditação, o estudo de tudo isto, minha Mãe, talvez não deixasse lugar às imagens tristes que presentemente lhe arrancam o pranto, que lhe sulcam as faces! Ah! Mas o destino não quis que eu deixasse de ver essas lágrimas tão amargas e tão repetidas!... - exclamou Alberto deixando pender a fronte sobre o peito.
- Pois deixarei de chorar, Alberto - disse Mercedes com doçura - fazem-te mal as minhas lágrimas... meu querido filho... já não choro!... sim... eu não devo afligir-te... não devo constranger-te com este pranto que eu mesma recriminaria, se ele não fosse por ti!
- Por mim? Mereço eu lágrimas?... Eu, que estou a seu lado; eu que a abraço?... - perguntou Alberto, cuja voz se prendeu na garganta como se o sufocasse o excesso do sentimento, a comoção.
- Tu és muito generoso, meu filho; eu sei quanto te devo... eu que vi venderes o teu suor para me sustentares: que vi desprezares o mundo para me seguires na solidão... Alberto! E que não possa ver-te feliz! Que não me seja dado morrer ao menos com a ideia de que terás um futuro risonho! Tu, que tanto o merecias!
Alberto, todos os dias e todas as noites meditava no modo de alcançar uma posição qualquer, na qual pudesse fazer face ao porvir, evitando a miséria, essa companheira inseparável da desgraça; e todos os dias, todas as noites reconhecia a impossibilidade de adquirir essa posição.
Mercedes, que depois dessa extrema desesperança, tinha visto e compreendido até onde chegava a misericórdia de Deus, era então a primeira a repetir-lhe que tivesse esperança; palavra consoladora cujo sentido não compreende aquele que nunca viu transluzir no escuro da desgraça o raio da misericórdia divina.
Este raio brilhou aos olhos de Alberto; ele reconheceu pela segunda vez que Deus o não tinha desamparado!
O eclesiástico que alguns meses antes tinha sido chamado por Mercedes à aldeia dos Catalães, voltou ali, procurando Alberto.
- Eis-me, senhor - disse o rapaz apresentan-do-se-lhe.
- Chama-se Alberto Mondego?
- Chamo, sim.
- É filho de Mercedes, a catalã?
- Exacto!
- Todavia, dê-me mais alguns sinais de que na verdade é a pessoa a quem um dever me obriga a procurar!
Alberto meditou por um momento olhando por vezes para o rosto do eclesiástico, de modo que parecia querer adivinhar ali o sentido da pergunta.
- Voltando do Oriente - respondeu ele depois - sofri um temporal, de que escapei milagrosamente, salvo por um homem cujo nome é Benedetto. Vinha numa galera que, segundo me disseram, pertencia à casa sucessora de Morel, muito antiga em Marselha!
- Fazia parte da guarnição?...
- Não, senhor; vinha de simples passagem. Tendo estado em serviço militar no Oriente, voltava com a minha baixa de serviço.
- Muito bem: é o mesmo a quem procuro. Dizendo isto, o padre apresentou-lhe uma carta e esperou que Alberto a abrisse.
Alberto hesitava, posto que tivesse lido no sobrescrito o seu próprio nome.
- Leia - disse o eclesiástico.
- Meu Deus! - bradou Alberto, apenas finalizou a leitura. - Eu vo-lo agradeço!
Houve um momento de silêncio, durante o qual Alberto leu segunda vez a carta, como se lhe estudasse cada uma das palavras.
- Todavia, será esta a primeira esmola que recebo pela mão de um homem! Não... não devo aceitá-la. Benedetto... a tua generosidade não me ofende... mas no mundo há homens mais desgraçados do que eu... seja para eles esta esmola, visto que eu posso ainda trabalhar!
- Aí está até que ponto o cega o orgulho! - disse o padre.
- O orgulho? - repetiu Alberto. - O orgulho! Quando eu falo de homens mais desgraçados do que eu, com o sentido de reverter em seu favor uma esmola que se me oferece... a mim, que posso trabalhar?
- Ouça! - tornou o sacerdote, sorrindo. - repito que não é só o sentimento da caridade que o faz falar desse modo! Tem consigo um resto de orgulho! Esse orgulho, com que recusa a esmola, ofende a Deus; ofende o homem generoso que se interessou pelo senhor, e ofende-me também a mim, porque sou eu quem venho depositar a esmola nas suas mãos.
- Sabe então o conteúdo desta carta? - perguntou Alberto.
- Foi ditada por mim, pois assim o exigiu Benedetto.
- Conhecia acaso aquele homem?
- Nunca o tinha visto.
- Compreende ao menos os sentimentos que o dominam?
- Sem dúvida, um sentimento profundo agita a sua existência, sentimento que é um mistério entre ele e Deus e que não transpira fora do confessionário, meu filho! Todavia, posso assegurar-lhe que a mais pura convicção de ter preenchido a vontade de Deus, o animava no momento em que depositou nas minhas mãos a soma que lhe oferece. Aceite-a, portanto; Benedetto não é mais que o órgão, pelo qual se executa, neste momento a lei do céu! Ele está agora longe de nós, e eu posso assegurar-lhe que não leva consigo o menor sentimento de orgulho ou de vaidade pela boa acção que pratica, cedendo-lhe esta pequena fortuna.
Dizendo isto, o padre passou às mãos de Alberto um pequeno masso de papel lacrado.
- Agora - continuou ele - prometa-me como Benedetto requer, que um segredo inviolável guardará para sempre no seu peito o sentimento que o procedimento dele pudesse despertar-lhe.
- Homem generoso! - exclamou Alberto. - Se há um crime na tua vida, terás por certo o perdão de Deus!...
Momentos depois, Alberto estava no seu quarto, e tinha sobre a sua carteira a quantia de um milhão e quinhentos mil francos em moeda papel.
CAPíTULO 34
Veneza
QuANdo começava o ano de 1841, achava-se em Veneza um rapaz francês, que, sem pertencer inteiramente à classe distinta e elevada de Paris, era filho de uma boa família e possuía uma educação completa, que o tornava de finíssimo trato social.
Este rapaz chamava-se Maximiliano Morel. Era casado com a filha de um antigo magistrado francês, senhora descendente da ilustre família dos marqueses de S. Méran.
Maximiliano e Valentina, casados havia apenas dois anos e meio, não tinham sofrido ainda entre si a menor discordância; viviam em perfeita harmonia, vasando por assim dizer os seus pensamentos no mesmo molde.
Não havia prazeres para um quando os pesares oprimiam o outro; o prazer e o regozijo, a dor e o sofrimento, eram por ambos compartilhados, como se eles houvessem compreendido bem os deveres impostos pela ligação contraída em frente do altar de Deus abençoada e santificada em seu nome!
Valentina não tinha filho algum; no seu pouco tempo de casada, não havia ainda esse desejo íntimo de maternidade: desejo que depois vem como coisa que tem de ser. Ela nunca estava longe de Maximiliano: via-o a todos os momentos, e as carícias que este lhe prodigalizava, não lhe deixavam, tal-vez, sentir o desejo sublime das carícias de um filho, em cujo rosto infantil, uma mãe gosta de descobrir e imaginar pouco a pouco, o gesto e a imagem do marido, nas horas da sua ausência.
Maximiliano não contava mais de 28 a 29 anos, e Valentina 17 a 18 anos. O primeiro, era uma dessas constituições fortes e sadias: tipo completamente meridional, pálido, de olhos e cabelos negros como o ébano. A segunda, posto que de talhe ligeiro, corpo flexível e delicado, anunciava também uma organização robusta e temperada.
Tendo ambos vivido quase exclusivamente na França, desde a sua união, cediam agora ao vivo desejo de ver e examinar outras sociedades, outros costumes diferentes dos que se podem notar nas salas aristocráticas de Paris. Veneza foi o primeiro ponto a que se dirigiram as suas vistas curiosas. As tradições desta antiga rainha do Adriático e do Mediterrâneo; o prestígio do seu antigo esplendor,
e sobretudo a beleza dos edifícios, canais e pontes, tudo concorreu para merecer a preferência dos jovens cônjuges.
Com efeito, Veneza, que pela sua posição geográfica está em comunicação constante com a Ásia e a Europa, oferece um quadro sempre variado de tipos e de cenas das mais notáveis do cristianismo.
A sua praça, sempre concorrida pelos negociantes de todas as nações, mostra ainda o resto da grandeza do seu antigo comércio, embora o alado leão de S. Marcos haja perdido o prestígio que o cercava; embora as torres de S. Marcos não elevem já com arrogância os bizarros troféus da sua glória, nos quais o estrangeiro poderia ler as cenas sucessivas das conquistas da república; a velha catedral lá está ainda de pé, com o seu aspecto venerável, ocupando o fundo da grande praça, e ostentando a par da sua arquitectura bisantina, a incrível arrogância da arte grega!
Lá estão ainda todos os seus mais belos ornamentos; as famosas arcarias, os palácios elegantes dos antigos patrícios, a massa impostora do palácio ducal, as colunas de granito de Piazzeta, o campanário ligeiro e duma engraçada arquitectura com-posta de basílica cristã; depois os canais e as escadarias de mármore, onde a água mansamente murmura: finalmente, Veneza posto que tenha descaído do seu antigo esplendor, é ainda formosa princesa adormecida nas águas do Lido, como descansando risonha do seu lidar de outrora.
Era pois em Veneza que estavam Maximiliano e Valentina, gozando o ar sem igual e o céu transparente, que é também céu de Itália.
Na hora em que o sol despedia sobre a antiga catedral os seus últimos raios de um fogo brando, descendo rapidamente e ocultando-se com as montanhas de Tirol, Maximiliano e Valentina atravessavam a Piazza, e caminhando ao longo do antigo Broglio, dirigiam-se para o cais, em cujas argolas estavam presas centenas de gôndolas de todas as dimensões.
- Minha querida - disse Maximiliano a sua mulher, depois de ter passeado com ela algum tempo pelo cais - as noites de Veneza são noites calmosas e doces, que convidam a gozar da frescura dos canais onde a lua parece mirar-se com saudade e mistério.
- Embarquemos, Maximiliano - respondeu Valentina, apertando docemente o braço do marido e olhando ao mesmo tempo receosa para um homem embuçado numa capa e com o rosto oculto pela aba de um enorme chapéu.
Maximiliano não reparou no movimento de Va-lentina, que seguiu com a vista o homem de chapéu grande e da capa escura.
- Muitas gôndolas vão e vêm pelo canal - disse Maximiliano. -Os canais são as ruas de Veneza, e as suas carruagens as gôndolas. Antigamente poucas carruagens havia em Veneza... Vamos, creio que está ali uma gôndola capaz de nos servir bem,
e o gondoleiro, segundo me parece, já compreendeu o nosso desejo.
Valentina caminhou em silêncio ao lado de Maximiliano, na direcção das escadas, mas o seu olhar inquieto parecia examinar ainda o estranho que não estava longe.
Com efeito, a pequena distância de Valentina, via-se uma figura triste e pensativa, que seguia também os movimentos de Valentina e de Morel.
Entretanto, eles tinham parado na frente de um gondoleiro, que pelo esmero da sua camisola encarnada e pelo bom estado do seu gorro tricorne, parecia estar ao serviço de alguma casa de visconde ou ainda mais nobre.
- A tua gôndola está pronta, Giacomo? - perguntou-lhe Maximiliano sorrindo.
- Sim, excelentíssimo e eu terei grande honra em recebê-lo dentro dela.
- Eis a delicadeza e a doçura que caracteriza os venezianos e que não é fácil encontrar debaixo de outro céu que não seja o da Itália, principalmente entre as classes laboriosas! - tornou Maximiliano. - Ouviste, Valentina, este bom homem diz-nos que terá grande honra em nos receber na sua barca!
- Também o agradeço ao céu e ao antigo pa-trono de Veneza, o senhor S. Marcos! Eu por mim seria sempre grosseiro e ruim em comparação com vossa excelência e a senhora, que me fez a graça de olhar para mim!
- Ah!... Ah!... É porque sem dúvida está notando o bom estado e elegância da tua camisola, e a nitidez das tuas calças.
- verdade - acrescentou Valentina - admiro tão grande asseio num homem desta profissão.
O gondoleiro dispensou-se de responder, mas fez uma profunda cortesia
- Como se chama a tua gôndola? perguntou Morel.
- Valentina - respondeu o gondoleiro.
- Que diz ele? - perguntou também a senhora Morel, olhando espantada para o marido.
- Diz que se chama Valentina: isto é bem simples, minha querida, e faz-me redobrar o desejo de passear nos canais de Veneza! Vamos... Giacomo, a tua barca!
O gondoleiro correu para a escada, puxou por uma corrente de ferro, e atracou a sua gôndola de modo que Maximiliano e Valentina pudessem em-barcar.
Valentina, se bem que estivesse desde pouco tempo em Veneza conheceu ao primeiro olhar, que não era simples como todas as outras, a gôndola em que entrava. Esta pequena embarcação tinha a proa dourada com esmero; um lindo toldo de seda, os coxins bem estofados, o xadrez polido.
Todavia, Valentina, como se outra coisa lhe prendesse a atenção, não dirigiu a menor pergunta a tal respeito a seu marido.
Entrou na gôndola e sentou-se: depois, quando o gondoleiro, manejando o remo com destreza, impelia a barca que passava pela frente do cais, Valentina voltou a cabeça e dirigiu ainda para a Piazza um olhar inquieto.
Logo que a gôndola se afastou do cais, deslizando brandamente ao longo do grande canal, o homem, que observava os movimentos de Maximiliano e de Valentina, caminhou com precipitação para o cais, e dando um pequeno grito semelhante ao de uma ave nocturna, esperou com paciência alguém, que lhe respondeu pelo mesmo modo.
- Vecchio - disse ele em italiano a outro homem que se lhe aproximou - tens desempenhado as ordens que te dei?
- Sim, senhor! - respondeu o recém-chegado, falando em voz baixa e com certo ar de mistério. - Que apuraste?
- Estive muito tempo conversando com o gondoleiro da camisola escarlate, e soube que o homem está desde há alguns dias ao serviço de um francês rico, chegado há pouco a Veneza.
- E quem é esse francês?
- Ah! O espertalhão quis fingir que não lhe sabia o nome!...
- E então?
- Per la madre de Dio! Que é muito apressado
- tornou o interrogado no seu dialecto dúbio entre o romaico e o veneziano. gastei mais de uma hora só em chegar a brasa à minha sardinha... mas enfim, eu tenho algum tino, e por enquanto ainda me considero mais esperto que o tal gondoleiro veneziano.
- Acaba! - disse o primeiro em tom impaciente.
- Então fique sabendo que por mais que batalhasse... não pude saber o nome do francês!
- Disseste-me que te consideras a ti próprio na conta de mais esperto que o gondoleiro veneziano! Queres que eu te ria na cara pela tua basófia?
- Vá ouvindo, vá ouvindo, e depois faça o que quiser. Eu conhecendo que o gondoleiro ignorava o nome do seu patrão, dirigi as minhas indagações por outro lado, e, se não alcancei saber o nome do francês, consegui pelo menos saber-lhe o apelido.
- E é?
- Bem simples; Morel.
- Morel! - repetiu o primeiro, como se conhecesse já aquele nome de família. - Vamos, adiante... É rico esse Morel?
Afirmam que sim.
- Onde reside?
- Nas proximidades de Giudecca, num pequeno edifício que tem serventia para o canal e para a vila de S. Martinho.
- Muito bem: a lancha?
- Está pronta.
- Embarquemos, e manda remar na direcção de Giudecca.
Os dois homens desapareceram ràpidamente pelo centro da multidão que invadia a Piazza e o cais.
Entretanto, a gôndola de Maximiliano estava ao largo, levantando na sua passagem vagarosa, pela superfície das águas, pequenas orlas de prata azul.
Quem não viu ainda o quadro magnífico de uma noite de luar e de calma, em Veneza, não pode talvez calcular a beleza que nela se encerra.
Uma cidade de jaspe e de mármore elevada por encanto na superfície de um lago formoso, onde a luz esparge os seus raios de uma luz temperada e própria para os doces mistérios dos amantes. Essa cidade é Veneza! Os canais, que em todo o sentido a recortam, parecem nas noites de luar muitas fitas de prata com que a gentil princesa adorna o seio.
As torres de S. Marcos, a coluna da grande Piazza, e todos os outros pontos culminantes que embelezam a cidade, não parecem mais do que muitas linhas fantásticas traçadas no céu, aos olhos de quem cruzar as águas de Lido. Depois, a com-paração que há entre a cidade elegante e-formosa e a tristeza e simplicidade dessa, por assim dizer, outra cidade de pobres pescadores construída perto das lagoas; o ruído folgazão de uma e o sono tranqüilo da outra, infunde-nos na alma certa origem misteriosa duma tristeza tão grata e suave, quanto inexplicável!
Maximiliano e Valentina, tendo saído do grande canal da cidade, pareciam entregues ao sentimento vago que lhes despertava o formoso quadro nocturno. Valentina estava com a cabeça encostada ao ombro de Maximiliano, e o seu olhar doce mirava então com interesse o rosto do homem a quem ligara o seu destino.
A gôndola, como um leito de amores naquele famoso plaino, movia-se brandamente, contribuindo com o seu pequeno e compassado balanço, para a moleza daqueles dois corações apaixonados.
Não tardou que as lágrimas deslizassem pelas faces de Valentina: eram lágrimas de um indefinível prazer íntimo, prazer todo de alma e em_ que a alma se nos revela também.
Maximiliano apertou com ternura a mão de Valentina.
- Tu choras, minha querida? - perguntou ele. - O que é que te causa esse pranto?
- Crês que seja sofrimento? Não! Ë de felicidade, mas felicidade íntima, que só experimento desde que me uni a ti! Ai! Deus permita que sempre isto assim seja, meu Maximiliano...
- E porque motivo poderia deixar de o ser?
Valentina não respondeu, mas depois de breve pausa, exclamou com ansiedade:
- Toda aquela riqueza, todo aquele luxo bárbaro me assusta, meu querido Maximiliano! Sim, há muito tempo que queria dizer-te esta grande verdade... mas não tinha ânimo para arrostar com um sorriso teu de incredulidade! Acredita-me, Maximiliano; isto que te digo não é receio pueril de mulher e de criança, é um receio que tem um fundo grande de verdade!
- Vejamos, qual é então essa verdade, pela qual te assusta o esplendor e a riqueza da gruta de Monte Cristo?
- Maximiliano... - disse Valentina com expressão divina, acompanhando as suas palavras com um sorriso suave - há por toda a parte onde passamos milhares de famílias, para as quais seria uma felicidade completa aquela riqueza que se esconde no seio de um rochedo; famílias às quais falta o pão quotidiano, e que o teriam para um ano a fio, só com o valor de um dos capitéis das colunas magníficas que sustentam o portal da gruta de Monte Cristo. Ah!... Se desses crédito a um sonho que eu tive por três noites sucessivas... se tu me não cha-masses visionária... eu te contaria esse sonho terrível!
- Fala, Valentina - respondeu Maximiliano com gesto grave, dispondo-se a ouvir sua esposa. Valentina falou assim:
- Perdoa... eu sou talvez louca se te confessar que um susto vago... indeterminado, me oprime o peito!... Por vezes, lembro-me do nosso benfeitor
e estremeço ao mesmo tempo sem saber porquê! Quando eu chamo as bênçãos do céu sobre aquela fronte inteligente; quando invoco a graça de Deus para aquele coração generoso do qual dimana a nossa felicidade... não sei o que há de misterioso
e terrível no espaço que me cerca, no ar que respiro... e que me faz estremecer como se eu pressentisse a desgraça de Edmundo Dantes.
- Quanto mais estimamos aqueles a quem devemos uma grande felicidade, Valentina - disse Maximiliano - mais receamos a sua desgraça! Porém, esse temor, esse receio é vago; Edmundo Dantes possui a graça do céu e a bênção dos que conhecem a justiça e a bondade do seu pensamento inspirado. Descansa, minha amiga, e para te poupares ao receio infundado que te agita o seio, falemos de outro assunto.
- Não, meu amigo, prefiro este em que estamos. Eu quisera falar-te de Edmundo Dantes, ou antes do conde de Monte Cristo. Quisera também falar-te da ilha de Monte Cristo, que hoje nos pertence, e que foi o último legado que recebemos da mão dele.
- Fala, Valentina.
- Dize-me, Maximiliano, é certo que somos muito ricos?
- Sim, Valentina, e agradecemo-lo ao céu e ao nosso benfeitor.
- Tu caprichaste em conservar a gruta de Monte Cristo com o mesmo esplendor, a mesma riqueza bárbara, com que o conde no-la quis legar.
- A isso me obriga a gratidão, Valentina.
- Pois sim, mas a gratidão, meu amigo, pode exprimir-se de outra maneira...
- Que queres tu dizer, minha querida Valentina?
CAPíTULO 35
O sonho da gruta do conde de Monte Cristo
- SABES que no momento em que descemos à gruta da ilha de Monte Cristo, acaba, por assim dizer, o mundo para nós, e começa uma existência fabulosa: uma existência que se não pode realizar no mundo exterior. Pois bem, numa das tardes que ali estivemos, lembrar-te-ás de que saíste à caça dos cabritos monteses, que abundam naqueles rochedos escarpados, e que eu fiquei só.
“Não foi a primeira vez que fiquei só, mas foi a primeira que se apoderou de mim um tremor convulso e inexplicável... Cansada, adormeci... então tive um sonho espantoso!
“Vi as soberbas salas da gruta iluminadas como se ali penetrassem os raios de um sol brilhantíssimo!
“As belas colunas de mármore, com os seus capitéis de oiro fino; a abóbada cravejada de pedras preciosas, o pavimento coberto dos melhores tecidos da Turquia; as estátuas magníficas compradas por alto preço, por serem filhas de cinzéis clássicos, desde o de Rafael, até ao de Canova, tudo estava, como te disse, inundado de uma luz que me cegava!
“Os perfumes orientais, como de costume, elevando-se das cassoulas de prata que rodeiam o recinto, embalsamavam a atmosfera que eu respirava então, e eu, cedendo ao efeito mágico desses perfumes do Oriente, saía naquela moleza suave, que é a precursora de um sono profundo, tranquilo e cheio de meigas ilusões! Porém daquela vez não gozei eu dessas ilusões! Fora um sonho terrível... e o meu martírio durou, enquanto me durou o sono!
“Através das sedas que forram as paredes da gruta, através dos rochedos em que ela foi aberta, eu distinguia uma multidão de mendigos e de pro-letários reduzidos à última miséria, cercados dos filhos e mulheres, que pediam pão em altas vozes.
“Os seus gritos e choros de fome e de angústia faziam-me estremecer de medo! Via com terror que toda aquela turba, guiada por um homem desconhecido, se aproximava da gruta e andava ao redor dela, procurando a entrada. Quis levantar-me e fugir; mas parece que me fraquejava o ânimo, mesmo 'para evitar o perigo, e não pude erguer-me
dos coxins em que me tinha deitado. De momento a momento mais se aproximavam de mim os gritos da miséria e da fome, até que vi com terror aquela onda viva de miseráveis e famintos a precipitar-se pela escada e invadir o recinto!
“Ah! Ainda me recordo da aflição que senti, vendo aquele espectáculo; do eco doloroso que encontravam no meu peito, os gritos das crianças, as gargalhadas convulsas das mães, o murmurar raivoso dos homens, deslumbrados pelo esplendor e pela magnificência dos aposentos da nossa gruta!
“A um sinal do desconhecido, que parecia conduzir aquela turba, os gritos e as gargalhadas acabaram: o mais profundo silêncio reinou então em redor de mim.
“O desconhecido avançou, e colocando-se em lugar que pudesse ser visto de toda a gente, elevou o braço, em cuja mão brilhava uma chave de ouro.
“- Irmãos - bradou ele com voz sonora, clara e positiva - riquezas amontoadas desde muitos séculos nas entranhas de um rochedo, foram ali engrossando à proporção que os pobres feudatários de uma família avara derramavam as suas lágrimas de fome e passavam os seus dias entregues a um trabalho tão violento quanto infrutuoso para seus filhos!
“O castigo que Deus infligiu a essa família avara consistiu no seu próprio pecado, pois ela viveu sempre em miséria, só para alimentar aquela paixão desmedida, que o demónio lhe havia ateado de pais a filhos! De século a século foram crescendo os seus tesouros, e o rochedo escarpado de uma ilha deserta recebia-os no seu seio de granito, até que o segredo da existência desse tesouro ficou perdido numa geração em que findou aquela família maldita!
“Tempos depois, como se Deus quisesse reverter a favor da miséria, o que tinha sido alcançado pelos esforços dos miseráveis escravos do feudalismo, com o seu braço potente escolheu numa classe laboriosa um homem para ser o intérprete da sua vontade sublime!
“Esse homem, cuja paciência, cuja fé, e cuja crença, foram experimentadas em alguns anos de desgraça, recebeu a revelação da existência do tesouro oculto na ilha deserta.
“Mais tarde foi ainda o braço de Deus que o pôs sobre o rochedo que domina essa ilha deserta; e esse homem ouviu então uma voz íntima que lhe dizia: “Desce às entranhas da terra e depois volta ao mundo, onde poderás enxugar o pranto da miséria derramando a felicidade pelo teu caminho.”
“Assim o fez: isto é, desceu e viu o tesouro que ali existia desde muitos séculos! Porém, nesse momento, Satanás estava a seu lado e Satanás dizia, para o deslumbrar, estas palavras traiçoeiras:
“- Tu és de hoje em diante o homem mais poderoso do mundo! Manda e verás que até os reis te obedecem!...
“Estas palavras produziram o seu efeito.
“O homem, vaidoso de si, voltou à superfície da terra, e olhando com desdém para o mundo, viu-se grande e poderoso, sem descontar o pedestal sobre que estava erguido acima de todos os seus irmãos!
“Deixando-se arrastar por uma paixão que o dominava e tinha crescido com a sua inopinada riqueza, teve o orgulho de querer propor e dispor dos homens e das coisas, só pelos decretos da sua imaginação exaltada! Finalmente, em vez de repartir com os pobres o que tinha sido alcançado com o suor dos pobres, fez-se opulento e tomou um nome capaz de corresponder ao prestígio imenso dos seus haveres!
“Deus abandonou esse homem e procurou outro.
“Sou eu! A chave de ouro que recebi do céu está na minha mão! Eu abri com ela o segredo que esconde o vosso pão! Comei, bebei filhos da miséria, tudo isto vos pertence, porque Deus vo-lo dá!
“Após estas palavras continuou Valentina de-pois de breve pausa - ouvi um grito extremo de prazer e de contentamento! Uma chama precipitada aniquilou para sempre tudo quanto ali havia de riqueza; e da gruta de Monte Cristo, das colunas, da abóbada, das estátuas, jóias, alcatifas e aromas, nada mais restou do que as paredes sombrias da rocha e da terra onde elas têm a sua origem!
Valentina calou-se de súbito, ocultando o rosto nas mãos, como para evitar ainda a vista do espectáculo, que acabava de descrever.
Não sei o que havia ali de solene que infundiu por momentos no espírito de Maximiliano um terror vago. A hora, o silêncio, a calma daquela noite e do espaço imenso das águas sobre as quais as palavras tristes de Valentina se elevaram, qual harmonia lúgubre; a expressão ingénua e sentida do rosto de Valentina, no momento em que ela fazia a exposição daquele sonho pueril; tudo concorreu poderosamente para despertar em Maximiliano esse grande temor que bem se expressava na sua fronte inteligente por uma nuvem negra.
Todavia, posto que tudo então concorresse para lhe comover o espírito, Maximiliano um momento vencido pelo receio e pelo susto de Valentina, res-pondeu-lhe com firmeza e doçura:
- Convenho que um sonho desses, tal como o que tu sonhaste, Valentina, é na verdade para agitar o espírito mais forte e resoluto; porém não o que tiver verdadeira fé na justiça omnipotente de Deus!
- Crês isso? - perguntou ela, com um sorriso de dúvida, continuando logo em diferente tom de voz, solene e firme: - O que sonhamos, não uma vez só, mas repetidas vezes, sempre conforme o concebemos da primeira vez, é por assim dizer, um aviso que o céu nos envia para nos preparar-mos!
- Valentina! - exclamou imediatamente Maximiliano, segurando-lhe as mãos.
Valentina fitou os lindos olhos no rosto desassossegado de Maximiliano como se lhe quisesse perguntar estas simples palavras: “Que faremos então”?
Seguiu-se novo momento de silêncio.
A gôndola, até ali serena como o cisne que des-liza no lago, começou a agitar-se, sacudida pela viração da noite; e as águas, cuja superfície parecia a de vasto espelho onde se reproduziam as imagens da terra e do céu, principiaram a revolver-se sob a pressão da atmosfera.
O gondoleiro, notando isto, puxou para si o remo, e a gôndola fiel ao governo desse remo, voltou logo a proa na direcção do grande canal de Veneza.
Pouco tempo depois chegava ao cais, e Maximiliano, fazendo um sinal ao gondoleiro, indicou-lhe o pequeno canal que conduz a Giudecca.
CAPíTULO 36
Indagação
Logo que chegaram a casa, Valentina entrou no seu quarto e prostrou-se em frente da imagem da Virgem, painel soberbo de Rafael, colocado na parede principal do aposento.
Entretanto, Maximiliano tinha ido dar algumas ordens particulares aos seus criados.
Valentina, agitada pelo vago receio que lhe suscitou o sonho narrado, orou cheia daquela fé sublime que uma alma aflita e crente consagra à imagem da Virgem; os seus olhos estavam humedecidos pelas lágrimas suaves de quem espera tudo na misericórdia divina, conformando-se com os decretos inexplicáveis de Deus.
Maximiliano abriu a porta do quarto e não ousou interromper Valentina na sua fervorosa oração: esperou que ela se levantasse; foi depois ao seu encontro e abraçou-a com ternura, absorvendo em dois beijos as lágrimas que lhe borbulhavam ainda nos olhos aveludados.
- Minha querida - disse-lhe ele - é ainda a recordação do teu sonho que te causa este pranto? Afasta de ti essas imagens traiçoeiras, que de nada valem quando estás bem certa de mereceres pelas tuas virtudes a clemência constante do céu.
- Chamas imagens traiçoeiras às imagens do meu sonho? Dum sonho tantas vezes repetido? - respondeu-lhe Valentina acompanhando as palavras com um angélico sorriso. -E se te disser, além do que já escutaste, Maximiliano, que eu já vi aquele homem singular, que parecia guiar os famintos e os miseráveis à nossa gruta de Monte Cristo?
- Que dizes, Valentina, estás louca? - exclamou Maximiliano ao notar o gesto de terror que apresentava a fisionomia de sua mulher.
Ela soltou uma risada nervosa, continuando em seguida:
- Não estou louca, não. Disse-te que tinha visto o homem representado nos meus sonhos. O olhar de fogo com que ele parecia devorar as nossas riquezas supérfluas era ainda o mesmo que mergulhava neste seio, como se pretendesse ler os sentimentos do meu coração. Esse homem não era uma ficção minha, um mito originado pelo terror que ainda me inspirava o sonho! Não... esse homem há três noites que parece observar-me com atenção, quando eu passeio contigo pela Piazza; faz-me estremecer - continuou Valentina com a voz convulsa - sempre que ele com o seu olhar inspirado parece perguntar-me: “Valentina, não cumprirás tu a vontade de Deus? Queres porventura que muitas famílias de miseráveis proletários onde o património é a fome, amaldiçoem a mulher usurária que esconde nas entranhas de um rochedo isolado quanto para eles seria a suprema felicidade, se com eles repartisse metade dos teus haveres? Valentina, o maior esplendor de que podes cercar-te consiste nas bênçãos de todas essas famílias miseráveis, a quem poderias livrar dos horrores da fome.
Valentina calou-se; o seu olhar firme e resignado interrogou o rosto de Maximiliano, onde havia a expressão mista do receio e do terror.
Por vezes pretendeu ele duvidar do critério que existia nas falas de Valentina, mas a regularidade que havia nos movimentos e no modo de falar de sua mulher era tal que lhe não deixava a mínima suspeita de desordem no seu estado intelectual. Entretanto, homem de educação superior e um pouco temperada pela liberdade do pensamento nas descrenças do século, não podia compreender como era possível que Valentina, no seu perfeito estado normal, se deixasse possuir daquele sentimento exagerado que um simples sonho havia cimentado no seu.
Maximiliano reconheceu que alguma coisa de sublime e superior às coisas da terra se revelava 'na expressão pura de Valentina; e como lhe não era dado combater nem evitar a influência desse princípio inexplicável, abateu o seu raciocínio ante a força formidável que o esmagava.
Valentina venceu.
Desprezando todo o fausto que a opulência podia proporcionar-lhe, quis reduzir-se à mediocridade, repartindo com os pobres a sua fortuna: mas Maximiliano, posto que participasse dos sentimentos generosos de sua mulher, não podia destruir, como ela pretendia, a imensa riqueza; dádiva extraordinária do conde de Monte Cristo.
- Valentina - disse-lhe ele um dia - supõe que amanhã a nossa opulência de hoje terá desaparecido para sempre: qual será o património de um filho que Deus haja de nos conceder?
- E que melhor poderia ser esse património do que um nome abençoado sobre a terra por famílias inteiras, de pais a filhos? - perguntou também Valentina com indizível expressão de candura, continuando logo: - Acredita-me, meu querido, se eu tivesse a certeza de que a dádiva grandiosa que recebemos das mãos do conde tinha sido alcançada por ele ou pelos seus maiores, de um modo que não tivesse ofendido a desgraça do povo, eu não teria dúvida de conservá-la e engrandecê-la, para a legar aos nossos filhos... mas...
- Que é isso, Valentina, esqueces então o desinteresse e o desvelo com que o conde se empenhou em salvar-nos, não te merece o menor reconhecimento o seu carácter bondoso?
Todavia - replicou Valentina - o sentimento, pelo qual. lhe agradeço a protecção que nos deu, nada tem de comum com o desejo de afastar de mim o esplendor de que ele quis cercar-nos. Meu bom Maximiliano, esse esplendor assusta-me: não o mereço, não o quero. Repartamo-lo pois com a miséria, e assim preencheremos um dos mais santos votos da nossa religião, a caridade!
Maximiliano não insistiu e Valentina nutrindo a esperança de satisfazer a paixão sublime que a dominava, esperou com ansiedade o momento' em que as prodigiosas riquezas da gruta de Monte Cristo haviam de reverter a favor da miséria.
Entretanto, ocupemo-nos em revelar ao leitor quem era o homem que designamos no momento em que Valentina e Maximiliano embarcavam na gôndola.
Logo que Valentina e Maximiliano desembar-caram na Giudecca, logo que a pequena gôndola largou do portal do edifício, uma embarcação esguia e comprida como um escaler, impelida por dois remos, passando com rapidez por ela, lançou-lhe dentro dois homens.
O gondoleiro veneziano, surpreendido por aquela abordagem, soltou um pequeno grito de surpresa; porém, antes que tivesse tempo de tomar uma resolução, sentiu na garganta a lâmina fria de um punhal.
- Silêncio ou morres! - exclamou o agressor.
- Que pretendem de mim? - perguntou o gondoleiro cobrando o ânimo.
- A tua felicidade.
Singular maneira de ma oferecer! - replicou o gondoleiro olhando espantado para o homem que lhe oferecia a felicidade apresentando-lhe um punhal. - Se para ser feliz bastasse guardar silêncio, juro-lhe por S. Marcos que por oito dias bem contados, esta boca não diria nem um deus te sabre.
- És discreto? - perguntou-lhe o desconhecido.
- Como o canal Orfano, que segundo as velhas tradições nunca deixava boiar o segredo a par dos cadáveres! - respondeu o veneziano.
- Muito bem - continuou o estranho guardando o punhal e deixando cair algumas moedas de prata sobre a almofada da gôndola; depois voltando-se para o seu companheiro, qUe segurava a proa do escaler, disse-lhe o seguinte em dialecto romaico:
- Rocca, o homem é nosso; passa uma espia à gôndola e rema para o iate.
Esta ordem foi executada e dentro em breve a gôndola, rebocada pelo escaler, fendia as águas do canal dirigindo-se para o quadro em que fundeavam os navios mercantes. Meia hora depois, o pequeno comboio atracava à muralha de uma dessas embarcações ligeiras de dois mastros que abundavam nas águas do Mediterrâneo, às quais se chama iates.
O gondoleiro veneziano que não podia recuar naquela aventura nocturna, cuja expressão era assaz significativa para que ele a desprezasse, subiu com resolução a escada de corda que pendia ao longo do costado do iate e saltou no convés seguido pelos dois homens que o tinham surpreendido. A vigia, depois de saudar com profundo respeito um desses homens, voltou para o seu posto, e esperou as suas ordens sem sequer se dignar olhar para o gondo-leiro veneziano.
- Amigo - disse-lhe o que parecia capitão do iate-vou interrogar-te, mas já te previno de que pagarás mui cara a falta de verdade nas tuas res-postas. Quem és?
- Giacomo de Lido, por favor de S. Marcos, sou desde alguns dias o gondoleiro particular do signor Morel.
- Que qualidade de homem é esse? Como seu gondoleiro particular deves conhecê-lo.
- Sei que é francês - respondeu o gondoleiro - e segundo todos afirmam na Piazza, possui milhões!
T s então algum motivo para acreditar isso? - perguntou o capitão.
- Eu - continuou o gondoleiro - já ouvi falar das riquezas que ele possui... mas não ouvi a loca-lidade.
- Como-interrompeu o capitão-será possível acreditar isso que me dizes? As localidades mencionadas num discurso qualquer é o que mais detemos na memória.
- Suponha o senhor-tornou o gondoleiro - que não se disseram localidades nas palavras que eu ouvi.
- Muito bem, que palavras eram essas? Repe-te-as.
- Esta tarde-começou o gondoleiro-conduzi o signor Morel e sua esposa para fora do Lido, e foi então que ouvi o que vou contar-lhe sem temer a cólera de S. Marcos, porque não era um segredo.
Dizendo isto, o gondoleiro começou então a contar tudo quanto tinha ouvido dizer a Valentina relativo ao sonho da gruta de Monte Cristo. O capi-tão do iate não perdeu nem sequer uma das suas palavras.
- Basta - disse ele - sabes tu se com efeito existe no Mediterrâneo a chamada ilha de Monte Cristo?
- Poucas vezes tenho saído do Adriático; não conheço senão os principais postos do Mediterrâneo - respondeu o gondoleiro, acrescentando logo: -A ilha de Monte Cristo é desconhecida nas escalas do comércio.
O capitão do iate, depois de meditar por um momento, fez sinal para que acendessem luz na câmara e indicando a escada ao gondoleiro, seguiu-o vagarosamente. Quem tiver uma vez observado o que é um iate, fará uma pequena ideia do que pode ser a câmara dele, onde apenas há o espaço necessário para um homem se mexer e para dois homens conversarem. O capitão olhou escrupulosamente para o gondoleiro veneziano, como se tentasse ler naquele rosto queimado pela brisa das lagoas o fundo de verdade que havia na sua expressão; depois, sentou-se e apoiando a face nas mãos, disse estas palavras sem sequer olhar para o veneziano:
- É certo haver na ilha de Monte Cristo um tesouro imenso, ali escondido pelos bárbaros! Este tesouro, que não pertence hoje directamente a ninguém, é todavia do primeiro que lhe puser a mão. Eu conheço pouco o Mediterrâneo... mas se alguém me indicasse a direcção da ilha, juro pelo céu que faria a felicidade desse homem!
- Ah! E como será possível dispor das riquezas que lá existem - replicou o gondoleiro - se elas pertencem ao meu amo?
- E quem lhas deu? - perguntou o capitão do iate - já te disse que tanto pertencem a ele, como a ti, como a qualquer outro, que saiba o segredo para encontrá-las no seio da terra! Se algum possuidor existe daquelas riquezas... acredita que são os pobres, porque elas não são mais do que o suor dos pobres, convertido em oiro e jóias nas mãos de algum antigo senhor, tão bárbaro quanto avarento!
Se tu és homem, se tens um pensamento digno da alma que te anima, deves crer que o suor dos pobres deve reverter a favor deles, antes de cair no cofre dos ricos! Deixemos, porém, tudo isto, e vou mandar servir-te uma pinga de Lacrima-Cristi, para te indemnizar do incómodo que tiveste - acrescentou o capitão com indiferença, batendo uma palmada sobre a banca para chamar.
Momentos depois, o gondoleiro, tendo bebido com todos os modos de entendedor, um copo de precioso vinho, acendeu o tabaco do seu cachimbo, e apertando a barba entre os dedos lançou para o seu interlocutor um olhar inteligente, que ele fingiu não entender.
- Eu conheço alguns rapazes do bando! - disse ele.
- Que bando?
- Sim, do bando! - repetiu o gondoleiro sorrindo. - Pois não sabe o que é o bando? Nunca ou-viu falar no contrabando? - perguntou ele baixando muito a voz e estendendo o corpo.
- Ah!... Já percebo!
- Pois então isto é claro! Conheço algumas pessoas que são capazes de explicar a altura de qualquer das paragens secretas do Mediterrâneo, tão bem como eu explicaria os pontos mais encruzilhados dos canais de Veneza!
- E então?
- Esses rapazes sem dúvida conhecem a ilha de Monte Cristo!
- E depois?
- Eu poderia falar com eles!
- Bem.
- Esta noite mesmo! Porém... pode haver certos escrúpulos... e aquela gente é tão amiga de dinheiro, como um velho abade seria capaz de ser amigo deste belo vinho!
- Isso é o menos.
- Será, se o senhor responde desse modo -
tornou o gondoleiro - o que posso fazer é entender-me com eles e dar-lhe parte do que disserem:
- Muito bem, vai fazer a tua diligência, e se não és tolo, escuso de te recomendar silêncio!
O gondoleiro fez um gesto de compreensão e levantou-se para se retirar.
- O nome do seu barco? - perguntou ele.
-A Tormenta - respondeu o capitão.
- Por S. Marcos!... escolheu bem feio nome para o seu barco! - observou o gondoleiro cortejando e subindo a escada da meia laranja.
Logo que saltou para a sua gôndola e se fez ao largo, o capitão do iate chamou o imediato, e designando-lhe o veneziano que já ia longe, disse-lhe:
- Amanhã, que tudo esteja pronto a partir ao primeiro sinal. Aquele homem disse quanto eu queria saber!
CAPíTULO 37
Os contrabandistas
O gondoleiro Giacomo, logo que amarrou a sua gôndola às escadas da Giudecca, próximo do edifício em que habitava Maximiliano Morel, correu com muita ligeireza por uma viela estreita que conduzia ao longo do canal e foi bater na porta de um prédio pequeno que constava de um só andar.
- Madre di Dio! exclamou de dentro uma voz de mulher. - Se eu não esperasse o tratante do Giacomo, iria apostar que a visita da alfândega queria arrombar a nossa porta por denúncia de algum invejoso! És tu, Giacomo?
- Sou, sou! Abre...
- Espera; é preciso dizer isso com maior política! A porta não deixa de ter bem seguros ferrolhos, e as minhas mãos não têm casca de maresia, como as tuas!
- Estamos a perder um tempo precioso! - exclamou Giacomo, impacientando-se com a demora.
- Olhem lá!... Vens- talvez propor-me o dia do nosso casamento na velha catedral de S. Marcos! Não é assim, Giacomo?
- Talvez que tu não digas senão o que é verdade!...
- Ora até que chegou! - repetiu a mulher, com uma gargalhada sardónica que fez estremecer o coração já agitado do gondoleiro.
- Então, abres a porta ou não?
aí está, vejamos o que queres.
A porta abriu-se e Giacomo achou-se cara a cara com uma bonita rapariga de vinte a vinte e dois anos, cujos braços nus deixavam ver na sua construção muscular, o vigor da bela veneziana.
- Onde está o teu irmão Pietro?...
- Ah! Pois são essas as boas-noites que me dás?... Vai-te puxando, que eu vou deitar-me! Mal empregado tempo que me demorei a esperar por semelhante monstro!
- Minha boa Rosina, bem mal fazes em falar assim! Se soubesses o que vai cá por dentro, não estranhavas que eu me tivesse esquecido de dizer boa-noite!
- Sim, pensavas talvez em alguma taberneira ordinária que te dá o quartilho de graça! Tu sempre hás-de ser um grande maroto.
- Rosina - exclamou Giacomo vendo que ela levava a fímbria da saia aos olhos para enxugar as lágrimas - não sejas tão ciumenta, porque o teu Giacomo não to merece!
- Ciúme! - tornou ela, levantando-se. - Sempre é bem tolo! Para eu ter ciúmes de você, era preciso primeiro que o amasse, e eu não caio em semelhante esparrela!
- Ora tu, que és uma mulher de tino, estares com essas coisas... Vamos, sejamos amigos, e eu te conto o que me alvoroçou ao ponto de me esquecer de dar-te um abraço e um beijo logo que te vi.
- Um beijo! Ora essa, tinha muita graça - disse Rosina, soltando segunda gargalhada. - Por ora, cá os meus beijos não são para os da sua laia, senhor Giacomo.
- Isso agora é modéstia...
- Se és atrevido, eu chego-te o lume aos fogões! Vê lá como falas, pois tu bem conheces a Rosina.
Giacomo, conhecendo que não poderia tirar partido vantajoso daquele mau diálogo, limitou-se a responder-lhe com um sorriso de compaixão, e sentou-se, para encher de tabaco o seu cachimbo: depois, quando ele se dispunha a acender o tabaco, na luz de um velho candeeiro, Rosina como por demais levantou o candeeiro e começou a espevitar a luz, demorando-se tanto tempo quanto bastasse para impacientar o gondoleiro. Este, porém, atirou com o cachimbo para longe e levantou-se, como pessoa que tomou uma resolução.
- Ora, eu sempre esperava encontrar o Pietro em casa - disse ele - este negócio pede a menor demora e não é coisa que se despreze assim. Em todo o caso, espero por ele.
Dizendo isto, Giacomo dirigiu-se para a mesa
e pegou no copo, estendendo ao mesmo tempo a outra mão para a garrafa. Rosina, porém, fingin-do-se distraída, encostou-se com todo o peso do seu corpo à banca, de modo que voltou a garrafa, entornando-se o vinho. Giacomo largou imediatamente
o copo e deu um estalo com a língua no céu da boca, voltando logo as costas a Rosina. A paciência e a resignação com que o pobre gondoleiro sofria as interessantes maldades da linda tirana muito concorrreu para vencer-lhe o mau-humor. Foi ela a primeira a romper o silêncio que se havia estabelecido entre eles:
- Com que então - disse Rosina - o senhor Giacomo, gondoleiro do Rialto, está disposto a ficar hoje em minha casa?
- Como tu não tens por costume ir para a cama antes de teu irmão chegar, creio que te não incomodo.
- Faça de conta que ele não vem ficar a casa esta noite!
- Oh! Eu preciso falar com ele hoje mesmo! -E o que tenho eu com isso? Sempre desejava que o senhor Giacomo mo dissesse.
- Imagina tu que se descobriu um tesouro encantado numa ilha que só o teu irmão será capaz de conhecer!
Ah! Temos histórias? Vê lá se a pequena se deixa embalar! Tens de comer muito sal para me fazeres o ninho atrás da orelha!
- Rosina! - disse-lhe Giacomo depois de olhar para ela com seriedade. - Eu não sou dos que se deixam enganar com histórias! Sei o que digo, e também penso como seria capaz de o fazer o homem mais esperto!
- Sim, tu sempre foste muito avisado!
- Acredita-me, Rosina! - tornou Giacomo. Há um ano que te prometi casamento, e desde então até hoje não tenho deixado de pensar no modo de alcançar fortuna.
- Admira-me - interrompeu Rosina com ar ingénuo - como sendo tu tão esperto, não tens achado o modo de ganhar dinheiro!
- Se o nosso divino Patrono me não houvesse dotado desta paciência original, já eu teria feito uma loucura só para te fazer calar! Porém - continuou Giacomo exalando um suspiro - a fortuna, que por aí se representa na figura de uma mulher com os olhos vendados, tenho-a eu por um lindo pássaro de plumagem dourada que anda sempre a esvoaçar diante dos pobres sem que eles possam tocar-lhe com um dedo sequer! Ah, desta vez toquei-lhe eu, e tenho o pássaro na mão, tão certo como certo leão alado estar aos pés do nosso Patrono S. Marcos!
O ar de convicção com que o gondoleiro disse isto, sobressaltou o espírito extremamente curioso da bela Rosina, a qual, cravando na fisionomia expressiva de Giacomo os seus lindos olhos negros, perguntou-lhe, acompanhando as palavras com um amável sorriso:
- Não tens sede, Giacomo? Há mais tempo que eu te deveria servir um copo de vinho, uma vez que este frasco está vazio, mas é o mesmo, esta demora terá aumentado a tua sede, e tu sentirás maior prazer em saciá-la.
Dizendo isto, a interessante rapariga abriu um armário praticado na parede e tirou uma garrafa com vinho e um copo.
Ora lá vai à tua saúde, minha Rosina; e para a outra vez não tenhas esse mau génio, que me desgostas!
- Mau génio- repetiu ela com afectada ingenuidade - isso é cisma tua! Ora conversa comigo, e verás como é verdade o que te digo. Vamos, tinhas-me dito que a fortuna, qual pássaro de rica plumagem, anda sempre a fugir de ti?
- Disse-te que tenho o pássaro na mão! - redarguiu o gondoleiro, sentando-se ao lado de Rosina e passando o braço musculoso em redor da cintura delicada da interessante filha do Lido.
- Como é isso? - perguntou ela.
- Estou convidado para explorar um tesouro imenso que existe numa ilha do Mediterrâneo.
Rosina franziu os sobrolhos, fazendo ao mesmo tempo um gesto de dúvida, mas perguntou:
- Qual ilha?
- Guardarás inviolável segredo se eu te disser qual é?
- Ora, ainda o perguntas!
- Desculpa, minha Rosina, porém tenho ouvido dizer e é voz constante, que o segredo em boca de mulher é o mesmo que cortiça no mar.
Tens graça! - exclamou Rosina, deixando-se abraçar pelo gondoleiro. - Bebe mais uma pinga. Parece que não gostas do meu vinho?
- Assim como gosto de ti, Rosina! - retorquiu Giacomo despejando segundo copo.
- Então a ilha é muito longe?
- É a ilha de Monte Cristo! - disse o gondoleiro.
- Que dizes? - exclamou logo Rosina.
- Conheces a ilha? - perguntou Giacomo inquieto.
- Não, mas diz-me, a que nação pertence a ilha?
- Isso não sei, mas é certo que encerra um grande tesouro que pertence aos pobres, porque foi ali Colocado à força do suor dos pobres! Ora tu já vês que devemos ter alguma parte daquelas riquezas, e então, minha Rosina, lá está a velha catedral de S. Marcos para nos receber! Agora, só espero pelo teu irmão Pietro, para que me ensine a altura da ilha; pois ele conhece o Mediterrâneo como eu conheço o Lido.
- O Pietro não vem esta noite.
- Então porquê? Tem havido grande faina lá por fora?
- Trata-se de arranjar uma partida de bons vinhos de Chipre e Constança, para o conde Gradenigo, que dará esta semana um excelente baile, a fim de receber um amigo.
- O diabo leve o baile e o amigo do conde! - exclamou o gondoleiro batendo com o punho em cima da mesa.
Rosina lançou-lhe um olhar oblíquo, como se quisesse repreendê-lo, e afastou-se cantarolando uma canção popular.
Giacomo permaneceu em silêncio, com o braço apoiado na mesa e a fronte pendida sobre o peito; parecia entregar-se à cogitação de um meio qualquer de suprir a falta de Pietro.
- Giacomo - disse-lhe Rosina, levantando o ín-dex como para impor silêncio, e contando as badaladas profundas e vagarosas do sino da catedral que batia meia-noite - a tua visita não deve pro-longar-se hoje por mais tempo! É meia-noite, e eu preciso de me levantar com o Sol.
- Então sempre é certo que Pietro não vem esta noite?
- Santa Madre di Dio! Nem amanhã, talvez, quanto mais esta noite, como tu queres!...
- Bem - tornou o gondoleiro passando a mão pelo rosto. - Nesse caso, retiro-me. Boa noite, mi-nha Rosina, e lembra-te do que te diz o Giacomo: o dia dos nossos esponsais já está marcado.
Rosina respondeu com um gesto amável às palavras de Giacomo e fechou cuidadosamente a porta, depois dele ter saído, escutando com atenção se ele se afastava, e quando se convenceu de que Giacomo ia longe, correu apressadamente para um quarto interior, a cuja porta bateu chamando repetidas vezes:
- Pietro! Pietro!
- Quem é? - perguntou a voz rouca de um homem, que bocejava como se estivesse tonto de sono.
- Levanta-te, meu amigo, porque, segundo creio, chegou a altura de sermos úteis ao nosso protector!
Rosina repetiu estas palavras duas ou três vezes, até que o seu irmão, compreendendo bem o sentido delas, saltou para fora da cama, embrulhou-se numa manta e veio ao encontro de Rosina. Pietro era um rapaz de vinte e quatro a vinte e cinco anos, de meia estatura: rosto moreno e expressivo, maneiras decididas e gesto ora brando, ora enérgico, como todos os filhos da Itália.
- Então que queres tu dizer, Rosina? - perguntou ele esfregando ainda os olhos.
- Pietro - respondeu Rosina - quando o nosso pai estava prestes a expirar, exigiu de nós a promessa de respeitarmos sempre o homem que pro-tegia o nosso comércio de vinhos!
- Sim... e então?
- A ilha de Monte Cristo, onde ele fazia geralmente a sua descarga, tomando-a de outros barcos, era, como sabes, propriedade de Sindbad o-Marítimo, e todos os contrabandistas juraram eterna dedicação a este homem! Ora, também sabes que Sindbad-o-Marítimo tem ali um palácio subterrâneo, que nosso pai afirma ter visto; e que nesse palácio há grandes riquezas.
- Sim, muitas vezes tenho ouvido falar dessa maravilha aos meus companheiros, posto que me pareça não ser ela verdadeira, quando, sentado na praia, olho para aqueles penedos escarpados e áridos que ormam o cume da ilha.
- Isso fica lá contigo, Pietro - tornou Rosina
o caso é que há alguém que premedita saquear o palácio.
- Ora! Para lá entrar é necessário saber um certo segredo.
- Deixa-te disso! O Giacomo esteve aqui há pouco e falou-me de modo tal, que faz suspeitar ter-se organizado alguma quadrilha de salteadores para se dirigirem à ilha! Acredita-me, Pietro, será bom que fales com alguém para te dizer o que se deva fazer, uma vez que nós jurámos respeitar os interesses de Simbad-o-Marítimo, assim como ele respeitava os nossos! Giacomo perguntou por ti, e eu disse-lhe que andavas ainda tratando de arranjar a partida de vinhos para o conde Gradenigo.
- Isso, felizmente, já está arranjado! - respondeu Pietro. - Descansa, Rosina, amanhã veremos o que deve fazer-se para evitar o roubo que, segundo dizes, tentam cometer.
- Ah! Eu perco talvez a minha fortuna - murmurou Rosina momentos depois, lançando-se na cama - porém sou fiel à promessa, que todos nós fizemos, de respeitar os interesses de quem não só respeitou, mas protegeu os nossos.
No dia seguinte, Pietro, depois de fazer breve oração na catedral de S. Marcos, atravessou a Piazza e dirigiu-se para o cais, olhando para um lado e outro como pessoa que procura distinguir alguém entre a multidão que o rodeia. Um momento depois de ter interrogado com o seu olhar perspicaz aquela onda viva que afluía e refluía no cais e na Piazza, Pietro distinguiu o gondoleiro Giacomo, que parecia amarrar a sua gôndola ao argolão de ferro cravado na cantaria, e correu para ele.
- Olá, amigo Giacomo!...
- Ah! És tu, Pietro? Supunha-te ainda entretido com a partida de vinhos.
- Despachei isso mais depressa do que julgava...
- Ainda bem, Pietro, porque tenho negócio de grande vantagem para te propor.
- Assim mo disse a Rosina, e por isso corri ao teu encontro, bem certo de que estarias aqui no cais.
Pietro e Giacomo afastaram-se da multidão e foram-se aproximando da escada dos Gigantes, que naquele momento estava deserta por ser ainda muito cedo.
- Então qual é o teu negócio?
- Muito simples: estou apalavrado para conduzir um pequeno barco aí para fora para o Mediterrâneo, a uma ilhota chamada Monte Cristo. Eu não desconheço, como sabes, as águas do mediterrâneo, mas ignoro a posição da ilha, pois, segundo creio, ela é muito pouco concorrida...
- Não há muito tempo que eu lá fui receber alguns cascos de Málaga para importar aqui em Veneza - respondeu Pietro.
- Sim, sim - acudiu o gondoleiro - eu sei que os do bando conhecem a ilha como eu conheço os meus dedos! Quisera que tu me indicasses o rumo que deve seguir-se.
- Ah! Querias bem pouco! - retorquiu Pietro, sorrindo.
- Olha lá, Pietro! Isso não é negócio só de palavras...
- Então rende dinheiro?
- Isso tão certo, como é certo que S. Marcos nunca quis negócios com os turcos, no tempo em que Veneza era Veneza! Se tu quisesses acompanhar-me hoje cá a um sítio, verias a verdade das minhas palavras.
- Eu estou pronto.
- Bem; então, em sendo Ave-Marias, vou buscar-te na minha gôndola ao embarcadouro do canal Orfano.
- Sempre tenho ouvido tais contos a respeito do canal Orfano, que me fazem estremecer! -És visionário?
- Eu não! E para provar-te que não o sou, podes contar comigo. Lá estarei.
- Então boa noite.
- Deus fique na tua guarda, Giacomo.
Pietro e Giacomo separaram-se logo, envolven-do-se com a multidão, enquanto um homem, que a alguma distância deles os havia observado escrupulosamente, correu nos passos do gondoleiro e tocou-lhe no ombro.
- Oh! - exclamou o gondoleiro, voltando-se. - O senhor aqui?
- Não te admires, pois estou sempre onde quero estar! Ou por outra, estou em toda a parte, e vejo tudo!
- Dia! - fez o gondoleiro. - Isso não esperava eu de um simples capitão de iate...
- É porque não te lembras de que o iate é a Tormenta, e não sabes que o seu capitão é a vontade de Deus!
O gondoleiro encarou com surpresa aquele homem, cujas palavras lhe pareciam extraordinárias.
- Vamos, Giacomo, desde que saíste do meu _barco, o meu olhar não deixou de te seguir por toda a parte. Olhei para ti quando dormias, e vi-te exaltado com o sonho delicioso das riquezas que existem na ilha de Monte Cristo!
- É verdade, senhor, posto que eu nada tenha de invejoso, sempre desejaria ver de perto aquele magnífico tesouro!
- Vê-lo-ás.
- Eu já consegui o meio de saber a altura da ilha, e o rumo que deve seguir-se para lá chegar. - Muito bem.
- Esta tarde, depois de tocar o sino de S. Marcos, espere por mim a bordo da Tormenta.
CAPíTULO 38
Terror
A família Gradenigo era uma das mais antigas e mais nobres de Veneza, e o seu esplendor datava do tempo do Faliero desse doge tão sábio e inteligente quanto infeliz! Todos os antigos chefes desta família nobre, como então eram os nobres, isto é, só pelos brasões heráldicos, tinham sucessivamente ocupado um lugar distinto no senado; e alguns houve, que, se não obtiveram o barrete de doge, foram concorrentes a esse distintivo de um cargo, que simplesmente consistia em simbolizar num só homem a figura soberba e impostora da república.
A magnificência do seu palácio, o esplendor de que faziam cercar-se, e a par disto, a arrogância e o orgulho da sua vida pública, necessária capa da sua vida privada, tudo concorria para que Gra-denigo obtivesse o aparente acolhimento com que na boa sociedade se recebe, por deferência, um nome que apenas o berço tornou, senão distinto, ao menos usual.
Quando as belas colunas cinzeladas do palácio de Gradenigo reflectiam o brilho das muitas luzes das suas lâmpadas de alabastro; quando as flores entrelaçadas com arte enfeitavam as escadas e galerias; quando a orquestra escolhida fazia repetir as suas harmonias naquelas abóbadas alterosas; ninguém mais do que Gradenigo tinha o prazer de olhar para as suas salas cheias de quanto havia de bom e distinto em Veneza, cuja alta sociedade ali concorria com o sorriso benévolo de quem vai disfrutar para depois dormir. Tratava-se então de uma dessas noites agradáveis no palácio de Gradenigo. Com efeito, o signor Gradenigo ia dar
um baile. A causa desse baile variava conforme as diferentes opiniões, como sempre sucede; porém o que mais constante parecia, era que Gradenigo desejava obsequiar um amigo seu, cuja chegada lhe fora anunciada. Os convites estavam feitos, e o mundo veneziano dos bailes esperava ansioso a notícia prometida.
Quem era esse homem assaz rico para obrigar o senhor de Gradenigo a preparar-lhe uma recepção assim, uma recepção que ficaria registada nos anais do mundo elegante como um feito ingente de alta política social?
Maximiliano, tendo trazido de França algumas cartas de apresentação ao senhor Gradenigo, estava convidado para o sarau em preparação. Se bem que Valentina prescindisse do prazer que lhe prometia aquela noite, ela que não pensava como o geral das mulheres ricas em cujas frontes vaidosas não há a menor ideia do que seja pobreza e miséria, não podia contudo esquivar-se a comparecer nos salões do palácio Gradenigo; e Maximiliano satisfeito pela distracção que Valentina poderia encontrar naquele baile, esperou que se afrouxasse nela o pensamento de aniquilar a famosa gruta da ilha de Monte Cristo.
Na semana antecedente àquela em que devia ter lugar o baile no palácio de Gradenigo, umas simples palavras bastaram para agitar de novo o espírito de Valentina.
Uma manhã foi Valentina procurada por uma galante rapariga do povo. A esposa de Maximiliano, com o seu modo bondoso, foi ao encontro dessa rapariga, não querendo recebê-la no seu gabinete onde o luxo e o gosto dos ornamentos poderiam embaraçar o pensamento simples da pobre moça. Apenas Valentina apareceu, a rapariga, erguendo o véu que lhe ocultava o rosto ou, por melhor dizer, desembaraçando-se da mantilha em que tinha a cabeça e o corpo envoltos, correu a deitar-se-lhe aos pés.
- Por piedade, minha senhora! - exclamou ela. - Valha-me, que estou perdida!
- Que diz? Quem é? - perguntou Valentina, aflita pela expressão amarga do rosto da rapariga. - Levante-se, minha filha, é só diante da imagem da Virgem Santíssima que deve implorar protecção desse modo humilde!
- Ah! Como é boa, não me enganaram quando me afirmaram a bondade e a doçura do seu carácter - disse a rapariga, erguendo-se e beijando as mãos de Valentina.
- - Explique-se, pois aflige-me vê-la nesse estado de precipitação, e as suas lágrimas, o luto que a cobre, anunciam-me que sem dúvida acaba de perder seu pai ou sua mãe. órfã na flor da idade! - acrescentou Valentina, exalando um suspiro do fundo da alma.
, minha senhora; infelizmente sou órfã de pai e de mãe, vai em seis meses; porém não é
a desgraça que me obriga a implorar a sua caridade.
- Eu tinha um irmão - disse a rapariga - um irmão que era o meu único amparo neste mundo, e esse irmão, creio que foi vítima duma cilada horrível! Estou só, não tenho mais ninguém para quem me chegue!
- Jesus, minha filha, mas o que sucedeu a seu irmão? Que género de protecção quer que eu lhe dê? Fale e desde já lhe asseguro tudo quanto me pedir.
- Sim, minha senhora: eu falo, eu digo tudo, tudo, e o que quero da sua bondade. O meu nome é Rosa, conhecida geralmente na vizinhança de Giudeca, e no Rialto, pela Rosina - disse a irmã de Pietro continuando, depois de ter olhado ràpidamente em redor de si. - Meu pai era gondoleiro, e o m irmão Pietro herdou a gôndola e o mister do pai, como este os havia herdado do avô. Há quinze dias, foi a nossa casa o gondoleiro Giacomo, que era, ah!, a senhora não conhece o Giacomo!, é o gondoleiro que está ao serviço de seu marido! Ora, este Giacomo tinha, segundo eu acreditei relações misteriosas com alguma quadrilha de salteadores, pois assim mo fez julgar pelas suas palavras; e queria que meu irmão lhe ensinasse onde era certa ilha pouco conhecida e desabitada, onde Giacomo afirmava que existia um grande tesouro escondido! Era a ilha chamada de Monte Cristo
continuou Rosina sem reparar na perturbação que parecia crescer em Valentina à proporção que falava. - Ora, a ilha de Monte Cristo pertence a um senhor a quem a minha família deve eterna gratidão, e por isso não quis que o meu irmão Pietro falasse com o Giacomo; porém, que valeu isso? O Piétro falou-lhe, e posto que muito disposto a evitar as intenções do Giacomo, fez-lhe acreditar que lhe ensinaria a direcção da ilha. Oh! -continuou Rosina. - Até que antes de ontem, recebo uma carta do meu pobre Pietro, que eu mostro para a senhora ver o que ela contém.
Dizendo isto, Rosina tirou da algibeira um papel e entregou-o a Valentina que reuniu todas as suas forças para decifrar o que continha aquele papel. Era o seguinte:
Minha irmã:
Fui vítima de uma traição que me preparou Giacomo, o gondoleiro do Rialto. Estou preso no Tormenta, barco desconhecido, cujo capitão me obriga a conduzi-lo à ilha de Monte Cristo, onde sem dúvida se efectuará um grande roubo. Não posso dizer-te mais, corre a prevenir os patrões do Giacomo, e fá-lo prender pela justiça.
Teu infeliz irmão,
Pietro.
Valentina lançou um grito agudíssimo, quando finalizou a leitura da carta. Rosina, sem saber a que devesse atribuir aquele grito de aflição, correu para ela estendendo os braços como para a amparar de uma queda.
- Que tem, minha senhora? - exclamou ela, notando com desassossego a palidez que cobria as faces de Valentina.
- Oh! Não é nada! - disse esta com voz fraca.
- Valha-me, pelo amor de Deus! - disse Rosina juntando as mãos com gesto de suprema angústia.
- Minha filha... Mas o que quer que eu faça? Eu, pobre mulher, contra o destino que pesa sobre nós?
- Oh! Eu queria que se empenhasse com o seu marido para ele fazer prender o Giacomo, talvez este descobrisse tudo, e então seriam surpreendidos os agressores; meu irmão voltaria a meus braços, e Sindbad-o-Marítimo não sofreria aquele roubo na ilha de Monte Cristo!
- Conhece Sindbad-o-Marítimo? - perguntou Valentina.
- É verdade que nunca o vi, porém ele era, como lhe disse, o protector dos interesses do comércio arriscado de toda a minha tribo, deixando-a desembarcar impunemente na ilha de Monte Cristo.
- Mas que tribo é essa, cujo comércio diz ser tão arriscado?
- Ah, senhora, eu sou filha de contrabandista! - murmurou Rosina, caindo de novo aos pés de Valentina, que imediatamente a levantou nos braços.
- Descanse, descanse, que tudo se fará, minha filha! Volte seu irmão aos seus braços, e o mais, que vale o mais? A ilha já não pertence ao antigo protector da sua família. Roubem muito embora quanto existe, porque todas aquelas riquezas devem pertencer aos pobres, por serem o fruto do suor dos pobres!
- Que diz? - exclamou Rosina atónita com as palavras de Valentina, pois eram as mesmas que ouvira da boca de Giacomo.
- Volte para sua casa, eu falarei ao meu marido. Entretanto, não diga a menor palavra acerca do que sucede.
- E o gondoleiro Giacomo não será preso? - Não.
- Os malvados hão-de cometer o roubo? Sim.
- E o meu pobre irmão?...
- Há-de voltar.
- Pode assegurar-me que ele volta?
- Posso - murmurou Valentina estendendo a mão, que Rosina beijou em sinal de gratidão.
Valentina, depois de ouvir a estranha narração de Rosina, correu a encerrar-se no seu quarto, derramando copiosas lágrimas; mas em breve elas secaram, porque Valentina encontrou no amor de Deus o bálsamo que a purificava de outra qualquer paixão.
Com o firme propósito de não dizer a seu marido uma única palavra acerca do que se passava, de novo recomendou o maior silêncio à filha dos contrabandistas, prometendo-lhe ao mesmo tempo que faria todos os esforços para lhe restituir seu irmão Pietro. Com efeito, Valentina começou a trabalhar.
Quando o sol começava a esconder-se nas montanhas do Tirol, Maximiliano tinha por costume ir gozar a frescura da tarde no imenso paralelogramo da Piazza. Valentina, sob pretexto de um pequeno incómodo, deixou de o acompanhar, e algumas vezes ficava assim em plena liberdade para meditar e executar um plano qualquer, relativo ao que havia prometido a Rosina. Sentada em frente das janelas do seu quarto, via as águas do canal em que vagarosamente se moviam algumas barcas, assemelhando-se ao cisne indolente que desliza pela superfície de um lago.
Valentina observou-as com interesse, e parecendo-lhe reconhecer um dos gondoleiros, fez-lhe sinal com a mão para que se detivesse. O gondoleiro era Giacomo.
Momentos depois, Valentina, lançando um xaile grande sobre os ombros, envolveu-se nele e desceu ao vestíbulo do edifício, onde havia alguns degraus de mármore negro para o canal da Giudecca. Giacomo lá estava na sua gôndola, e assim que distinguiu Valentina, saltou para a escada, tirando o barrete.
- Aproxima-te - disse-lhe Valentina, olhando inquieta para um e outro lado, como examinando se alguém mais ali estava.
O gondoleiro aproximou-se, e Valentina abrindo uma pequena porta que lhe ficava à direita, entrou num quarto, como há em todos os edifícios de Veneza, que como aquele, tinham serventia para um dos canais e que servem para guardar os utensílios das gôndolas de serviço ordinário.
Giacomo, antigo gondoleiro em Veneza e acostumado desde criança aos caprichos das belas venezianas, não estranhou por isso o mistério com que Valentina parecia desejar envolver as suas acções e palavras. Conservou-se imóvel em frente de Valentina, esperando que ela falasse.
- Tu chamas-te Giacomo, o gondoleiro do Rialto?
- Signora - respondeu Giacomo. - Há trinta e seis anos que voltei do alto mar, onde navegava num navio mercante, e desde então até hoje; S. Marcos me tem visto e protegido nos canais de Veneza e do Lido, onde por assim dizer, me nasceram os dentes. Sou Giacomo pela graça do santo patrono e tenho a honra de estar ao serviço de Vossa Excelência e do seu excelentíssimo esposo.
Valentina meditou por momentos a maneira pela qual havia de começar o estranho diálogo com o gondoleiro.
- Depois do que me disseste, Giacomo, isto é, habitando nos canais de Veneza há trinta e seis anos, deves conhecer todos os navios que têm aqui aportado?
- Quase todos, signora!
- E não só os navios como também os seus capitães?
- Pelo menos a maior parte.
- Muito bem, eu desejava fazer-te algumas perguntas acerca de um navio... e já te previno de que não perderás o teu tempo, Giacomo!
- Ah! O que eu souber, tudo lhe direi, signora!
Não é preciso que estafes a tua memória para me responder, pois eu vou falar-te de um navio que esteve há quinze dias no Lido.
- Ah! Nesse caso, poder-lhe-ei responder de olhos fechados...
- É o Tormenta.
- O Tormenta!?
- Quem era o seu capitão? - perguntou Valentina.
Por Baco! - respondeu Giacomo, dissimulando.
- Fala-me justamente de um navio que mal conheço!
- Dar-te-ei alguns esclarecimentos para despertar a tua memória. O Tormenta veio aqui porque o seu capitão desejava tomar informações a respeito da ilha de Monte Cristo, onde supõe existir um-tesouro escondido...
- Mas que de facto não está lá? - interrompeu Giacomo de um modo que o traía.
- Isso é questão separada e pouco deve interessar-te, Giacomo. Responde simplesmente ao que eu te pergunto.
- Signora, pelos sinais que me dá, recordo-me bem do pequeno navio e do seu capitão, em cuja companhia bebi, não sei em que casa, um copo de magnífico Lacrima-Cristi. Pois eu bem receei do tal amigo! Era um homem trigueiro, de cabelo grisalho, olhos negros, expressão sinistra... e sobre-tudo, tinha um modo tal de falar, que faria morrer de medo a uma senhora como Vossa Excelência, que se dignasse fazer-lhe a honra de o escutar!
- Então o que dizia ele? - perguntou Valentina.
- Ah! Dizia tais coisas, que S. Marcos não as perdoaria na boca do mais indigno veneziano! E as obras do tal condenado bem se pareciam com as suas palavras, segundo cá a minha humilde opinião! Ele dizia possuir dentro de um cofre a mão de um finado! E o mais é que ma queria mostrar...
- Então explicou-te o fim de tão estranha relí-quia? - perguntou Valentina, com expressão mista de interesse e de terror.
- Explicou-me, lá em termos da ideia dele e que só o diabo seria capaz de repetir, que a mão do finado estava levantada contra um vivo! E que ele era a vontade desse finado, erguida ainda sobre a campa protegida por Deus!
Valentina sentiu um suor frio cobrir-lhe a fronte, ao escutar as palavras de Giacomo; todavia, o interesse que lhe despertavam essas palavras singulares era tal, que a obrigou a dirigir mais algumas perguntas relativas ao célebre capitão do Tormenta.
- E esse homem - disse ela - segundo me afirmaram, conseguiu comprar um certo marítimo cha-mado Pietro, para que lhe ensinasse a direcção da ilha de Monte Cristo!
- Isso! Isso mesmo! - acudiu logo Giacomo, adoptando a ideia de Valentina. -O Pietro vendeu-se a esse capitão e partiu com ele para Monte Cristo. O capitão, segundo o que me disseram, vai saquear a ilha e... Mas espero que não encontrará senão as grandes massas de granito que lá estão! Naturalmente, os rochedos é que hão-de ser os tais grandes tesouros de que ele falava, dizendo que pertenciam aos pobres, porque tinham sido alcançados pelo suor dos pobres!
Desta vez, Valentina estremeceu de terror, reconhecendo a coincidência notável que existia entre as palavras de Giacomo e o sonho que ela tinha sonhado na gruta de Monte Cristo. Firme ainda no propósito de não impedir aquele roubo e lembran-do-se do que tinha prometido a Rosina, mudou logo de assunto, perguntando:
Crês que o Pietro volte para Veneza?
- Ah! Isso creio eu! - respondeu Giacomo. –O capitão não lhe fará mal, e o pobre rapaz tão depressa se conclua a sua missão a bordo do tormenta, há-de voltar novamente aos braços de sua irmã Rosina.
- E quando acabará a missão dele a bordo do Tormenta?
- Em quinze dias, quando muito, estará ele aqui.
Tens a certeza?
- Cá a gente espera tudo da misericórdia do nosso patrono.
Houve um momento de silêncio, em que Valentina pareceu conceber uma nova ideia.
- Giacomo - disse ela - enfim-eu tenho ouvido por vezes gabar a discrição e a diligência dos gondoleiros de S. Marcos.
- Então tem ouvido dizer o que é a pura verdade, signora! Eu, se bem que me considere o mais indigno dos meus irmãos, tenho ainda um resto de orgulho em merecer a aprovação das pessoas que até hoje se têm dignado empregar-me.
- Podes também dispor de um barco capaz de sulcar as águas do Mediterrâneo?
- Ah! Um barco tão valente como era o antigo Rocentauro, segundo a crónica! - respondeu o gondoleiro.
- Muito bem, aqui tens oiro. Amanhã, à hora de hoje, voltarás aqui e eu te darei as necessárias instruções para o serviço que quero me prestes.
Dizendo isto, Valentina deu uma bolsa com dinheiro a Giacomo e fez-lhe sinal para que se retirasse. Depois subiu as escadas do vestíbulo que conduzia às salas, atravessou-as e entrou no seu quarto.
Apenas ali entrou, fez um movimento de surpresa, vendo Maximiliano sentado junto de uma mesa, lendo um livro. Este não fez o menor movimento quando viu Valentina ao pé de si, mas perguntou-lhe simplesmente com um modo seco e sem levantar os olhos das páginas do livro:
- Estás melhor, Valentina?
Valentina, posto que não pudesse deixar de notar o gesto indiferente com que Maximiliano lhe dirigiu a palavra, atribuiu isto, sem dúvida, à demasiada atenção que lhe despertava a leitura do livro que tinha diante de si, e respondeu-lhe com toda a expansão do seu modo afável:
- Sim, meu amigo, sinto-me melhor e creio que em pouco tempo te poderei acompanhar.
- Ah! Não quero que te exponhas por enquanto ao ar frio dos canais e da Piazza - replicou Maximiliano.
- Sim, convenho que o ar de Veneza me não faz muito bem - disse Valentina, sentando-se ao lado de Maximiliano e colocando a sua mão sobre a dele.
- Então queres sair de Veneza? - perguntou ele.
Valentina não respondeu; mas tocando com a extremidade dos seus delicados dedos na capa do livro em que Maximiliano parecia ler, fechou-o. Maximiliano encostou-se na cadeira e cruzou os braços, deixando pender a fronte sobre o peito.
- Que tens tu, meu amigo? - perguntou-lhe Valentina apoiando-se-lhe no braço e oferecendo-lhe ingenuamente a face.
- Oh! Perdoa-me, Valentina! Perdoa-me! - exclamou Maximiliano, levantando-se e passeando agitado pelo aposento:
- Que dizes? - perguntou Valentina, erguendo-se também, mas conservando-se imóvel, com o olhar cravado no esposo.
- É que não há felicidade perfeita neste mundo! Percebes isto, Valentina? Quando cremos que somos felizes, quando a nossa louca imaginação quase toca nas raias da felicidade suprema, eis que um demónio começa a rasgar a nossos olhos o véu das ilusões que nos sustentavam a alma! - disse Maximiliano, parando em frente da esposa e metendo a mão direita entre o colete e a camisa, como se quisesse comprimir o coração. - Eu, mais do que ninguém, acreditei na duração da felicidade que experimentava! - continuou sem dar tempo de falar a sua mulher. - Eu mais do que ninguém, me iludi neste mundo!... E agora...
- E agora? - perguntou enfim Valentina.
- Agora, Valentina, agora, que devo eu responder-te? - perguntou ele, acompanhando as palavras com um sorriso amargo.
- De forma alguma eu posso dar razão às tuas palavras, meu amigo! - disse ela estupefacta, continuando logo: - Só se achas ser uma quebra na tua, na minha felicidade, o desejo que tenho de abandonar aos pobres a riqueza de Monte Cristo; ou será a partida para fora de Veneza?
- O triplo ou o quádruplo do que possuímos em Monte Cristo dava eu de boa vontade para que me fosse possível aniquilar o dia de hoje ou mandá-lo de presente a Satanás!
- Blasfemas, Maximiliano?
Não, não, perdoame tu e perdoe-me Deus, mas pelo amor desse mesmo Deus, não me interrogues mais, Valentina!
Era aquela a primeira vez que Maximiliano falava assim a sua esposa e que tinha para com ela um pensamento reservado.
Valentina, convencendo-se da absoluta impossibilidade de conhecer esse pensamento misterioso, não mais insistiu em tentar decifrá-lo nas palavras de Maximiliano; porém chorou em silêncio aquela primeira noite, em que reinava a desarmonia entre eles.
CAPíTULO 39
A gruta de Monte Cristo
NA tarde do dia seguinte, Maximiliano saiu como de costume, para respirar na Piazza a brisa refrigerante da tarde.
Valentina, à hora em que o sol, como no dia antecedente, ia ocultar-se com os Alpes tirolianos, chegou à janela do seu quarto e esperou a chegada de Giacomo: não tardou muito que ele aparecesse remando na sua gôndola, em direcção ao edifício em que habitava Maximiliano; chegando às escadas, saltou para o vestíbulo, onde, instantes depois, lhe apareceu Valentina.
- Então, Giacomo? - disse ela.
- Perdão, signora! - murmurou o gondoleiro. - Oculte-se de maneira que não a veja aquele importuno que está na sua gôndola! Por S. Teodoro! Tinha desejo de o fazer procurar a verdade no fundo do canal!
- Quem é que me observa? E porque devo eu ocultar-me?
- Santa Madre de Dio! Não sabe o que sempre foi e é ainda esta cidade! É a hora dos derriços nocturnos; a senhora é nova, pela graça dos santos, eu estou aqui, está ali a minha gôndola, em frente de nós corre o canal que conduz a tantos lugares afastados.
- como!...
- Perdão, signora, ninguém mais do que este humilde servo respeita o decoro duma senhora; porém isto é dizer-lhe, que, tendo eu cá a minha Rosina, apesar de que é uma grosseira, não gostaria muito que me dissessem tê-la alguém visto a esta hora em frente de uma gôndola e falando com o gondoleiro! Só se o gondoleiro fosse eu próprio! Ah, signora, aqui em Veneza faz-se dinheiro com tudo, e há certos amigos da perdição de nós outros os gondoleiros, que observam tudo, e tudo vão contar aos maridos, pais, irmãos, apaixonados, mesmo sem estes o quererem saber!
- E tu conheces o homem que me observa?
- Ontem, quando embarquei, vi-o ali na márgem do canal, em frente do vestíbulo, e, quando eu embarcava, depois de ter recebido a honra de lhe falar, chamou-me para eu o conduzir na minha gôndola.
- Quem é então? - perguntou Valentina.
- É o filho do signor Gradenigo, isto é, chama-se Giovani Gradenigo! Há-de ter ouvido mencionar esta família tão falada, tanto pela riqueza, como pela devassidão, que parece herança antiga de pais a filhos!
- Eu não.
Pois poucas raparigas do povo há em Veneza que se atrevam a olhar de frente para o signor Giovani Gradenigo!
Valentina, ao escutar estas palavras, estremeceu com um pensamento vago, que nem ela poderia traduzir em palavras, se tal houvesse tentado. Ocultou-se com a sombra do vestíbulo enquanto o gondoleiro examinava os movimentos do nocturno passeante do canal; depois, como Giacomo voltasse, ela aproximou-se-lhe.
- Então, Giacomo?
- Pode falar. O signor Giovani afastou-se.
- Muito bem; recomendei-te ontem, que fizesses aprontar um barco para o Mediterrâneo.
- Está pronto, signora!
"- Poderá, portanto, fazer-se de vela no momento em que precisamente o quisermos?
- Claro! exclamou o gondoleiro. - A signora não conhece então a presteza da marinha de S. -Marcos!? Verdade é que já lá vão os tempos, que não vi, do esplendor e fortaleza dessa marinha; porém ainda nos resta um vestígio dela!
- Que nome tem o barco? - perguntou Valentina.
- Bonança - respondeu o gondoleiro. - É um barco ligeiro que costuma carregar vinhos e que chegou há pouco ao Lido, por conta do signor Gradenigo, segundo dizem no cais.
- Muito bem, escuta o que vou dizer-te, Giacomo. Se dentro de dois dias, vires uma toalha branca na janela que dá para este lado do canal e que fica sobre o embarcadouro, é sinal de que partiremos no dia seguinte, e por isso deverás estar com a tua gôndola, aqui, de madrugada; se, pelo contrário, no espaço de dois dias notares a mesma janela com as persianas sempre fechadas, é sinal de que não vamos.
- S. Teodoro nos ajude, - signora! - murmurou o gondoleiro.
Valentina deu-lhe algumas moedas de prata e despediu-o, subindo depois para os seus aposentos. Enquanto Giacomo saltou na sua gôndola e preparou o remo para a impelir, um vulto de homem que estava a certa distância e que parecia observar tudo quanto se passava no vestíbulo do palácio, correu para ele, saltando ligeiramente na gôndola.
- Madre di Dio!- fez Giacomo tirando o remo da água, como para se defender.
- Que é isso, Giacomo!? - perguntou com arrogância o homem que tinha entrado na gôndola.
- Signor Gradenigo!? - murmurou Giacomo descobrindo-se.
- tu sabes, meu velhaquete, que vou tratar-te pior do que se trataria um hereje do tempo da república, se soltares o menor grito que me comprometa?
- Pois o signor receia isso? - perguntou Giacomo.
- Não, porque estou certo que terás ouvido falar de como eu trato a um velhaco!
- Oh! Acredito que dentro das prisões de S. Marcos não está ninguém que seja digno de com-petir com o senhor, nesse ponto!
- Bem, Giacomo - tornou o signor Giovani Gra-denigo, batendo-lhe amigàvelmente no ombro - e não deixarás de conhecer também a fama da minha generosidade quando sou bem servido.
- Perdão, excelentíssimo! Posto que nunca tivesse nenhum parente estudante em Pádua, eu possuo certos princípios de lógica, que me ensinam a duvidar de algumas coisas que não vejo nem experimento.
Apenas acabou de falar, Giacomo sentiu cair-lhe aos pés uma pequena bolsa com dinheiro.
- Cala-te, cão! - disse ao mesmo tempo Giovani Gradenigo.
- Tenho a honra de conhecê-lo pela fala - replicou Giacomo curvando-se para levantar a bolsa.
- Ainda bem que assim é, pois a minha paciência tem limites.
- E que o digam as raparigas do Rialto, signor Giovani!
- Basta!
- Espero as suas ordens, signor!
- Rema depressa.
Após estas palavras, o braço vigoroso de Giacomo, armado com o remo, cortou a superfície da água, dando à gôndola um impulso forte que a afastou do palácio. Logo que Giovani se viu ao largo, indicou com o braço a direcção do grande canal da cidade, e envolvendo-se na sua capa, sentou-se no coxim, esperando o momento em que pudesse falar sem receio de que as suas palavras fossem encontrar eco em ouvidos curiosos. Quando a gôndola estava já afastada de todas as outras, Giovani falou então.
- Giacomo - disse ele - a mulher que acaba de ter uma entrevista contigo, não é tua, nem minha compatriota.
- É francesa.
- Bem sei: mulher de um francês, cujo nome obscuro não pode conservar-se na memória de quem se chama Gradenigo! - Há mil casos diferentes - continuou ele - que obrigassem aquela mulher a conferenciar contigo duas noites a fio; porém o mais provável é o de alguns amores clandestinos, para os quais se requer o serviço da tua gôndola e da tua inteligência. Ora, uma mulher que na ausência de seu marido, trata, para entreter-se, desses negócios, deve dar-se por muito feliz de que eu me ocupe em votar-lhe um pensamento.
- Percebo o que quer dizer - murmurou Giacomo.
- Logo - continuou Giovani Gradenigo - a quem mal cuida, mal sucede, e cumprindo-se este ditado, ela não terá de que se queixar senão de si própria! Há muito tempo que eu penso naquela mulher! - disse ele com gesto de enfado. Tenho falado nela algumas vezes, e preciso de mais assunto para falar, Conta-me pois tudo isso em que ela te envolveu.
Giacomo, depois de breve reflexão, disse a Gra-denigo qual era o género de serviço em que Valentina o havia empenhado, acrescentando diferentes comentários próprios para despertarem o gosto de Giovani Gradenigo, ao ponto dele fazer uma loucura digna do seu génio extravagante.
Giovani Gradenigo para logo determinou sacrificar ao prazer o repouso de Valentina! Rapaz de uma educação detestável, animado ainda pelos péssimos exemplos de um pai velho e devasso, Giovani não reconhecia na vida social princípio algum que pudesse embaraçar o ímpeto da acção em que ele meditasse empenhar o seu génio e a sua fortuna.
Depois de conferenciar por alguns momentos com o gondoleiro Giacomo, desembarcou na Piazza, e traçando com elegância a capa, dirigiu-se com todo o ar atrevido dos leões sociais para o encontro dos seus amigos que, por um costume muito antigo em Veneza, passeavam sob a arcaria do célebre palácio ducal. Ali se reuniam todos os estouvados de Veneza; e ali, por consequência, se falava na vida privada e pública de todas as mulheres do mundo elegante.
Giovani Gradenigo foi recebido com entusiasmo, obtendo imediatamente a palavra para recitar uma mais moderna aventura, pois ninguém ignorava que o herdeiro da antiga família Gradenigo havia também herdado no sangue o génio aventureiro
e dissoluto da maior parte dos seus avós. Gradenigo, tomando a palavra, falou vagamente sobre o assunto e de tal modo que fez rir todos os seus loucos ouvintes.
- És realmente prodigioso na rapidez com que executas os teus raciocínios!
- É defeito meu, senhor Morel! - respondeu Gradenigo.
- A felicidade no jogo ou nos amores é muitas vezes hereditária em certas famílias! - observou um veneziano, continuando logo: - Diz o mio caro Gradenigo, que, enfastiado das aventuras do nosso lindo país, se tinha passado ao estrangeiro?
- Disse a verdade, entendam a coisa como quiserem! - respondeu Gradenigo, rindo muito.
- Em que país deverá então realizar-se a sua nova aventura?
- Creio que no seu, senhor Morel. Que descan-sem algum tempo as lindas filhas de S. Marcos - continuou ele, com um riso motejador, dirigindo-se a Maximiliano Morel - enquanto as suas compatriotas, que não deixam de ser belíssimas, têm a bondade de me oferecer alguns momentos agradáveis.
Maximiliano mordeu os lábios e passou a mão pela barba.
- Pelo que tenho coligido dos meus estudos - continuou Gradenigo - as senhoras francesas que têm o prazer de ser casadas, tomam a diversidade por divisa! E a prova é que me dizem haver em Paris maior número de modistas, do que em outra qualquer cidade da Europa!
- Admira-me, signor Gradenigo - disse Maximiliano - que tendo até hoje cometido a imperdoável falta de não sair do seu país, se afigure tão hábil moralista dos costumes das damas francesas!
- Suponha, senhor Morel, que há aqui em Ve-neza, como tive o gosto de lhe explicar ontem, uma dama sua compatriota, que leva a sua bondade ao ponto extremo de me dar lições em pleno luar.
Um suor frio banhou a fronte de Maximiliano, em cujos lábios houve um sorriso forçado, como para responder ao coro infernal das gargalhadas satíricas dos nobres rapazes venezianos.
- Nada é impossível neste mundo! - continuou Gradenigo. -Se o senhor não fosse pouco mais ou menos da minha idade, eu nunca lhe diria que há em Veneza certa senhora estrangeira, que sabe aproveitar, com todo o delicado gosto que a caracteriza, os curtos momentos em que seu marido está ausente. Um velho não saberia tolerar semelhantes palavras, cuja expressão é assaz verdadeira para que possa levar um rapaz ao erro da contradição! Não é assim, meus senhores?
Geral aplauso cobriu as palavras de Giovani.
- Felicito-o, signor Gradenigo - disse Morel, afectando a maior placidez de espírito - todavia, permit que lhe faça uma pequena advertência. Se o marido da dama que lhe corresponde é um velho fidalgo, deve recear-lhe a afronta dos criados, por que ele mandará assassiná-lo! Se pelo contrário é rapaz como o senhor, ou como eu, nesse caso que não compreendo, assim como nenhum de nós com-preenderia o que é a vida além da desonra, terá de lhe responder à ponta do lenço, com uma só pistola carregada. Senhores, há ainda um caso - gritou Maximiliano, para restabelecer o silêncio - é a diferença de raças: um francês qualquer, filho da mediania social, odeia os plebeus e os
nobres, quando qualquer deles o afronta! Odeia-os de morte e não se desafronta deles por vias conhecidas, assassina-os quando pode.
- Dio! - fez o signor Gradenigo com um amável sorriso. - Isso não é nada, entre nós, os venezianos, porque os nossos costumes estão em tudo apartados dos costumes das outras sociedades, assim como a nossa linda cidade está apartada da terra que sustenta as outras! E ainda que o receio da morte fosse de algum peso, entre nós, eu sabê-lo-ia afrontar, por um simples capricho. Sabe, signor de Morel, que eu acharia um sabor delicadíssimo no facto de levar a querela pública este pequeno negócio de amores? O marido da dama em questão, posso afiançar-lhe que é pouco mais ou menos da sua idade; e assim já vejo que poderei dar aos meus amigos, e ao senhor mesmo, porque o considero nesse número, o espectáculo, para eles inteiramente novo, de um duelo à ponta do lenço com uma só pistola carregada!
Maximiliano aproveitando um momento em que o assunto ia divergindo do seu ponto principal, saiu do Broglio e caminhou para a Giudecca, onde Valentina o esperava.
- Hoje o teu passeio foi mais demorado - disse-lhe ela.
Estive escutando uma extensa narração de Giovani Gradenigo - respondeu ele secamente.
- De Giovani Gradenigo! - exclamou Valentina involuntàriamente.
verdade!
Houve um momento de silêncio.
- O assunto era interessante, e eu vi-me obrigado a explicar-lhe como um francês sabia desafrontar-se! - tornou Maximiliano com um gesto sombrio que despertou em Valentina um terror vago.
Novo momento de silêncio.
- Não gosto dos venezianos - disse Valentina com enfado.
- Fazes mal! Eles são amáveis.
- Quisera distrair-me do enfado que me causam! Dize-me, Maximiliano, quererás acompanhar-me até Monte Cristo? Parece-me que a solidão me faria bem agora!
- E o baile do Gradenigo?
- Que vale um baile? - perguntou ela.
- Todavia, parece-me que não há motivo algum que nos desculpe da falta que queres cometer, Valentina!
- Nem a minha saúde? Entretanto, julgas o contrário, é o mesmo; ficarei em Veneza e irei ao baile do signor Gradenigo.
- Não! Não! - exclamou Maximiliano levantan-do-se com arrebatamento. - Tu não irás ao baile do conde Gradenigo! Sairemos de Veneza! Também este ar que se respira aqui me causa um padecimento espantoso, inexplicável, e que eu jamais havia sofrido.
Dizendo isto, duas lágrimas grossas e turvas lhe rolaram pelas faces, molhando-lhe o cabelo do espesso e aveludado bigode. O seu olhar apaixonado cravou-se no rosto singelo e meigo de Valentina com a expressão indizível de quem deseja obter o perdão de um pensamento que tem concebido, mau grado seu! Valentina estendeu-lhe a mão familiarmente. Ele levou-a aos lábios com fervor.
No dia seguinte, Valentina conservou a janela do seu quarto aberta para dar ao gondoleiro o sinal ajustado. Giacomo pareceu haver compreendido bem esse sinal, porque logo na noite imediata, uma gôndola, navegando pelo canal, parou a pequena distância dos degraus do palácio. Dentro da gôndola estavam dois homens, trajados conforme o uso dos gondoleiros.
- Salta para terra e retira-te, Giacomo! - disse um deles.
- Não esqueça o ancoradouro do iate, nem o nome dele.
- É o Bonança?
- Sim, excelentíssimo!
- Aqui tens oiro.
- Boa noite! Santo António o ajude.
Giacomo saltou para terra, e o outro gondoleiro ficou dentro da gôndola, remando até chegar à porta do vestíbulo. Entretanto Valentina, pelo braço de Maximiliano, descia em silêncio a escada interior do palácio, caminhando depois, para o vestíbulo, em cujos degraus borbulhava a água do canal.
- Está ali a nossa gôndola, meu amigo, entremos nela - disse Valentina. - Supõe que vamos viajar, sair de Veneza.
Nem tudo é fácil como o pensamento, minha querida! - respondeu Maximiliano. - Contudo, pela sua mesma facilidade, poderemos adoptar esse neste momento.
- Para onde queres ir?
- Para Monte Cristo, por exemplo.
Dizendo isto, Maximiliano entrou na gôndola e deu a mão a Valentina para a amparar. Nesse momento o gondoleiro, notando a presença de Maximiliano, recuou um passo estremecendo.
- Podes remar! - disse Maximiliano.
- Ele parece não ter ouvido as tuas palavras!... - Então, Giacomo? - bradou Maximiliano. - Rema para o Lido.
O gondoleiro tomou o remo e começou então a trabalhar: porém de um modo tal, que dava a conhecer a sua perturbação.
- Que barco é aquele que está a tão pouca distância de nós, e para o qual parece navegar a nossa gôndola? - perguntou Maximiliano.
- Bom! Eu estou mais adiantada do que tu nestes assuntos marítimos! - respondeu Valentina, rindo alegremente. - É o Bonança.
- Porém a gôndola parece demandá-lo! A terra já nos fica longe!
- Se o gondoleiro continuar a enxugar o suor como tem feito até aqui, então é de supor que não chegaremos esta noite ao pequeno navio! - disse Valentina.
- Logo quererás realizar o pensamento que me fizeste adoptar!
- E que dirias tu, Maximiliano, se aquele barco nos conduzisse para fora do Adriático?
Vamos! Compreendo que estou teu prisioneiro! - murmurou Maximiliano, pegando-lhe na mão e elevando-se porque já a proa da gôndola tocava no costado do pequeno navio.
Neste momento o gondoleiro pareceu muito em-baraçado no seu mister náutico, e ainda mais, quando Maximiliano se lhe dirigiu, batendo-lhe no ombro, depois de Valentina ter subido para o barco.
A Lua, que até então estivera ofuscada por algumas nuvens, brilhou de súbito num céu azulado e transparente, iluminando com a sua luz melancólica todos os objectos da terra. Maximiliano soltou uma gargalhada, notando a fisionomia do gondoleiro.
- Que é isso, signor Giovani Gradenigo! - disse ele a meia voz. - Tem bem estranhos caprichos. Como lhe devo eu a honra de ser pelo senhor conduzido até aqui? Oh! Não quero que fique esquecido na sombra da noite este obséquio, e vou rogar a minha mulher que lhe dirija de viva voz os seus agradecimentos.
Dizendo isto, ele dispunha-se a chamar Valentina; porém, Giovani Gradenigo fez um gesto expressivo como para o deter.
- Senhor de Morel - disse Giovani, também a meia voz - eu acho prazer em tudo que é extravagância, e se o conduzi até este ponto, foi simplesmente para me exercitar no ofício de gondoleiro.
- Todavia, uma vez que tive a honra de lhe explicar a maneira pela qual um francês saberia castigar quem o afrontasse - replicou Maximiliano - devo agora evidenciar-lhe como o coração de um francês é generoso em face da miséria estrangeira. Aí tem a minha bolsa! - E arrojou a bolsa aos pés de Giovani, que estremeceu e corou, como se lhe houvessem dado uma bofetada.
Maximiliano repetiu então em voz alta estas palavras:
- Boa noite, mestre Gradenigo, Santo António o proteja!
Ao fim de dois dias de viagem, o Bonança, tendo dobrado a ilha de Elba, estava em frente de uns rochedos elevados, cujas cristas recortadas se desenhavam no céu sob um aspecto fantástico, aos primeiros raios da aurora. Era a ilha de Monte Cristo.
Valentina, apoiada no braço de Maximiliano, olhava tranquila para aqueles alcantis desertos da ilha, que a pouco e pouco iam tomando formas gigantescas, à proporção que o barco avançava. A escala de sensações que experimentava o peito de Valentina, era por certo bem diferente da que havia em Maximiliano; este parecia agitado em frente daqueles rochedos, guardas imóveis de um tesouro imenso. Valentina parecia comprazer-se com a ideia de que esses mesmos rochedos não ocultavam já com o seu corpo gigante mais do que um montão de cinzas!
Quando o barco lançou ferro no pequeno recife aberto de propósito para o abrigo de qualquer em-barcação que demandasse a ilha deserta, Maximiliano mostrou desejos de desembarcar no mesmo dia; porém Valentina expôs-lhe que seria melhor desembarcarem na manhã seguinte, em conseqüência de a noite estar muito próxima e ser mau o caminho que conduzia à entrada do palácio subterrâneo. Maximiliano anuiu, e ficaram aquela noite a bordo.
Entretanto, observemos atentamente o que se passava no interior da ilha.
Na base de um dos rochedos centrais, estava praticado um portal, cujo entablamento era sus-tentado por duas formosas colunas jónicas, de mármore. De um lado e outro, as enormes massas de granito, ainda virgens do cinzel, contrastavam singularmente com o primor e elegância do mencionado portal. Seguiu-se uma escada também de mármore, que conduzia a um salão subterrâneo em que havia algumas portas praticáveis.
Este salão recebia a luz do dia por quatro aberturas na rocha, pelas quais circulava também o ar. Observando com atenção aquele recinto, conhecer-se-ia que desde pouco tempo mão devastadora havia aniquilado ali tudo quanto a arte, ajudada pelo gosto e pela opulência, pode produzir de belo e surpreendente.
Uma bela alcatifa oriental estava enrolada num dos cantos do aposento; macias otomanas, colocadas indistintamente aqui e ali, acabavam de completar o célebre quadro de desordem e riqueza que apresentava o interior da gruta de Monte Cristo.
Benedetto era o único habitante daquele lugar. Ele passeava de um para outro lado da sala, quando um homem descendo ràpidamente a escada, foi interrompê-lo.
- Mestre - disse o recém-chegado - acaba de se descobrir um barco ancorado no pequeno recife do nascente!
- Nada mais, Peppino? - perguntou Benedetto.
- Pietro, o contrabandista que trouxemos do Lido, assegurou-me que conhecia o barco, cuja denominação é a Bonança. E eu posso afiançar-lhe que não é o barco de Sindbad o-Marítimo.
- Muito bem. Os fardos já estão todos embarcados?
- Todos! O nosso barco está, como sabe, no recife do poente, e deste modo a gente do que chegou não tem visto o movimento dos nossos: agora será prudente que embarque, uma vez que já não tem negócios que o prendam aqui. A gruta está despojada, as alfaias em nosso poder, que mais fazemos nós em Monte Cristo?
- Rocca-Priori - disse Benedetto depois de breve reflexão - tens-me dito que o caminho que conduz ao recife do poente é muito mais curto do que o outro, que conduz ao do nascente?
- Exactamente.
- Bem: prepara, com os objectos que ainda restam por aqui, uma fogueira naquela sala próxima.
Peppino, acostumado a obedecer, executou a ordem de Benedetto, enquanto este, pela sua mão, punha as estátuas que decoravam as paredes, no centro da fogueira. Em poucos momentos se completou o trabalho.
- Agora junta esta porção de pólvora, e aju-da-me a construir o rastilho - continuou Benedetto sem perder um só momento.
Este trabalho ainda se executou com a presteza do primeiro.
- Está pois preparado o festim para receber o proprietário deste célebre palácio! - bradou Benedetto, com ênfase. Que venham quando lhes aprouver, para soletrarem ao clarão da chama as palavras que eu vou escrever nestas paredes.
Dizendo isto, pegou num pedaço de madeira queimada e escreveu em grandes caracteres, na parede principal, umas palavras, que Peppino não pôde soletrar, em consequência das trevas que começavam a derramar-se no interior da gruta.
No dia seguinte, Valentina e Maximiliano desem-barcaram do Bonança, e pelo braço um do outro dirigiram-se para o interior da gruta. Enquanto eles avançavam, um homem, correndo com ligeireza de penedo em penedo, e ocultando-se com a vegetação selvagem dos rochedos, parecia observar escrupulosamente a direcção do caminho que eles seguiam. Esse homem, cujo olhar feroz brilhava como o olhar do tigre quando espreita os movimentos da sua presa, logo que se convenceu de que se dirigiam para a gruta, deixou-os avançar. Quando eles já iam a certa distância, tomou por um atalho em declive, e deixando-se escorregar pela rocha, meteu correndo por um caminho que flanqueava um dos terríveis despenhadeiros da ilha.
Quando chegou ao cume, mergulhou o olhar afogueado nas profundidades do abismo, e distinguiu um barco que se sustentava nas águas do recife do poente. Era o Tormenta.
Uma lancha guarnecida por dois homens estava próxima da praia, como se esperasse alguém naquele ponto. Benedetto respirou então. Voltando sobre a sua direita, dirigiu-se imediatamente para o portal da gruta que lhe ficava a pequena distância.
Uma aragem fresca agitava a vegetação selvagem da ilha, sibilando por entre as sendas dos rochedos.
Na base dos rochedos sentia-se quebrar o mar, e o murmúrio rancoroso das águas, repetido pelo eco das rochas, elevava-se como um singular coro de vozes humanas.
Valentina estremecia, mau grado seu, à pro-porção que se aproximava da gruta; mas buscando para falar um assunto diverso, tentava evitar que Maximiliano reconhecesse a perturbação do seu espírito inquieto. Finalmente, o magnífico portal da formosa gruta apareceu de súbito a seus olhos, ao voltarem a encosta de um dos rochedos. Valentina deteve-se ràpidamente.
- Sentes-te cansada, minha querida? - perguntou Maximiliano. - Já nos falta pouco para che-garmos ao nosso mágico palácio subterrâneo. Eis aí o portal.
- Sim, ei-lo ali! - repetiu Valentina. - Além está o santuário da nossa primeira felicidade, Maximiliano! Foi ali que se construiu todo este edificiozinho de ventura que até hoje temos gozado. Deixa-me respirar. Deixa-me pensar naquele dia que, para nós raiou brilhante e suave, depois de uma longa quadra tormentosa! Ah! Como eu me senti feliz naquele dia, como todo o espectáculo que nos cerca, me pareceu grandioso e belo!
“O meu pensamento povoava de flores a todos estes alcantis medonhos, e em cada uma dessas flores estampava eu ainda as tuas feições. Hoje, porém, não há flores nestes rochedos, e eu penso que um violento tufão de sonhada procela as arrancou dali para sempre! Estas rochas, esta solidão, este morno silêncio, quebrado apenas pelo rumorejar dás águas; faz-me medo, Maximiliano! Aquele portal da gruta de Monte Cristo parece-me hoje a entrada misteriosa de um sepulcro!
- Valentina! - exclamou Maximiliano. - Qual é a razão de tais palavras? Qual é a razão das tuas lágrimas? Que crime cometemos nós para merecer a infelicidade que tu sonhaste?
- Crime; nenhum! - respondeu Valentina. - Porém se o homem que nos deu a felicidade não estava autorizado para no-la conceder, crês tu, meu amigo que poderemos gozá-la por muito tempo?
- Valentina, as tuas palavras, que em Veneza escutava com frieza, produziram-me neste momento uma viva sensação! Estamos sós, entre o mar e o céu; entre o abismo e Deus!
Façamos pois a esse Deus um voto de humildade, abandonando para sempre o luxo bárbaro de que o conde de Monte Cristo nos quis fazer participar! Vivamos do nosso trabalho, sejamos felizes na mediocridade, e cedamos à miséria e à pobreza, que nos cerca no mundo, esses haveres que o conde nos legou talvez sem competência bastante para o fazer!
Quando Valentina acabou de falar, estava próxima do portal da gruta, onde entrou insensivelmente, conduzida por Maximiliano Morel. Eles des-ceram a escada e, no momento em que entravam no salão, um grito de surpresa se lhe escapou dos lábios. O estalido forte de uma explosão ressoou pela abóbada subterrânea, e logo após, o clarão activo das chamas invadiu rapidamente o recinto.
- Valentina! - exclamou Maximiliano querendo recuar com ela.
- Fiquemos! - disse Valentina, tendo-o em seus braços. - Fiquemos, o fogo arde por enquanto naquela sala. foi ali que o conde de Monte Cristo nos fez a doação desta gruta e das suas preciosas alfaias.
- Fujamos, fujamos, Valentina! - bradou Maximiliano aterrado. - Não vês ali, ali, aquela sentença terrível?
E apontou com o braço para a parede principal da gruta, onde estavam escritas estas palavras:
“Aos pobres o que é dos pobres! A mão do finado está aberta sobre Edmundo Dantes”.
- Porém, que mistério terrível há aqui? - bradou Maximiliano, recobrando ânimo. - Qual foi a mão traiçoeira que escreveu aquelas singulares palavras no recinto que, sem dúvida, saqueou como audaz ladrão! Valentina, não vês que tudo isto é obra dum homem que pretende tirar partido do teu espírito fraco de mulher? Que venha pois esse homem explicar, se é possível, o enigma traiçoeiro que ali está! Qual é o finado, cuja mão ele pretende que esteja aberta sobre Edmundo Dantes? -
- Eu digo, Maximiliano Morel! - disse uma voz, que soava do interior da gruta. - A mão que está aberta para receber o sangue, o repouso e as lágri-mas de Edmundo Dantes, é a mão de um homem a quem ele deve a usura de uma vingança excessiva! O finado, é o senhor de Villefort!
- Meu pai! - bradou Valentina aterrada, caindo sem sentidos nos braços de Maximiliano, que ficou extático no patim da escada, interrogando o ar, o fogo e os rochedos.
O incêndio progrediu com rapidez; e em pouco tempo, do fabuloso esplendor e riqueza do conde de Monte Cristo, apenas restava um montão de cinzas, entre as paredes requeimadas e negras da-queles rochedos. Dois pequenos barcos, tendo saído um do poente, outro do nascente da ilha de Monte Cristo, navegavam serenamente em direcções opostas.
O que parecia dirigir-se para dobrar o braço de terra a que se chama Itália, era o Tormenta, e o segundo, o que navegava para Porto Vecchio, era o Bonança.
Capítulo 40
O baile do Conde de Gradenigo
EM Veneza, uma grande novidade agitava os espíritos. Ninguém havia que deixasse de saber que em breve se realizaria um baile de máscaras, um dos melhores naquele género. Tinha chegado do Oriente um amigo opulentíssimo do conde de Gradenigo e este, abrindo e recheando de damas e cavalheiros os esplêndidos salões e deleitosos jardins do seu palácio, recebia-o assim no centro de um prazer geral.
O amigo do conde de Gradenigo era o conde de Monte Cristo, rico proprietário, natural de França, e que desde há muito tempo havia adoptado por pátria o Oriente, onde tinha desposado a filha única de um antigo pachá de Janina.
Antes de falarmos do baile de signor Gradenigo, vamos dizer-lhes duas palavras a respeito do homem que se chamava o conde de Monte Cristo, e que deu o título ao romance que precedeu este.
Quando vimos uma vez e conhecemos um homem qualquer; quando o acompanhámos em todas as acções da sua vida pública, quando esse homem chegou a despertar em nós um sentimento de sim-ples curiosidade que seja, sentimos sempre uma forte sensação no momento em que tornamos a vê-lo, depois de um longo período de separação. Apraz-nos mirá-lo, analisar, confrontar, e discutir todos os seus modos, palavras e acções, porque tudo isso nos oferece a cada passo uma alteração, uma diferença, um nada, entre o que ele foi e o que é.
A idade, as novas ligações que o homem contrai, o cuidado enfim ou o descuidado do seu pensamento, tudo concorre para criar os pontos da nossa natural curiosidade.
O conde de Monte Cristo era um desses grandes homens nos quais o tempo operou uma mudança, enquanto deixámos de o ver. Quando eu lhes des-crevi e apresentei o conde de Monte Cristo, ocupava ele, se bem me recordo, uma posição dessas que a natureza parece ter criado expressamente para um ente determinado, e que está escrita nesse livro famoso do destino em que Deus, o homem e Satanás escrevem, descrevem, e riscam simultâneamente. O conde de Monte Cristo tinha ainda diante dos olhos o passado inteiro do infeliz Edmundo Dantes, com o sudário terrível dos seus martírios, onde estavam escritos com o seu sangue e com as suas lágrimas, os nomes dos seus verdugos!
A voz do velho abade Faria, aquela voz que lhe havia ensinado a descobrir os mistérios da ciência humana, ressoava ainda nos seus ouvidos, patenteando-lhe os sentimentos perversos desses verdugos! O conde de Monte Cristo tinha sede de sangue. Como homem, não pôde elevar a sua filosofia ao ponto de esquecer aquela sede poderosa, que o requeimava; feriu sem piedade, sem dó! Riu, quando ouviu chorar! Blasfemou, quando ouviu pronunciar o nome de Deus, que o havia feito grande e potente! Nada tinha na vida que lhe adoçasse aquele cálice de amargor, em que constantemente banhava os lábios!
Porém, quando o tempo cobriu com o seu gelo todo aquele quadro do passado: quando, debaixo desse gelo frio, nem já fumegavam as lavas das mais fortes paixões, quando as carícias de uma esposa e de uma existência nova, em que espessas camadas de flores tornavam inofensivos os abrolhos deste caminho em que tropeçamos com o sepulcro mal saímos do berço, então o conde de Monte Cristo já não era o mesmo homem. A felicidade pacífica do lar, aquela felicidade suprema, tão desdenhada nas cidades pelos entes que jamais conheceram a desgraça verdadeira, era então o seu maior prazer, e se não se tivesse dado um caso particular na sua vida íntima, nunca teria vindo procurar o bulício das grandes cidades da Europa. Sua esposa Haydée atacada de um abatimento físico, começava a padecer acessos de uma dessas febres misteriosas e lentas, para cujo restabelecimento, dizem os médicos, nos é necessário respirar os ares de um país estranho... se padecemos no país natal: ou respirar-mos os ares pátrios, se começamos a padecer na terra estranha. O conde de Monte Cristo, seguindo este parecer em que todos os físicos concordam por simples convenção, saiu do Oriente para entrar no Ocidente, onde esperava encontrar o restabelecimento da saúde de sua esposa.
Foi Veneza a primeira cidade que, pela sua posição geográfica, devia ser visitada pela jovem Haydée, e o conde de Monte Cristo lembrando-se do seu amigo Gradenigo, escreveu-lhe com antecedência, prevenindo-o da sua visita.
Por maiores e mais sinceras que fossem então as diligências-que o senhor de Gradenigo realizou para hospedar no seu palácio o conde de Monte Cristo, este, por um costume antigo, tendo mandado um criado a Veneza com ordem de lhe alugar um domicílio, recusou com delicadeza o obséquio do conde de Gradenigo. O conde de Monte Cristo foi habitar para a Giudecca, no mesmo palácio em que tinham estado Maximiliano e Valentina.
Haydée era ainda bela e jovem; no seu rosto, posto que estivesse expresso o abatimento físico que a afligia, havia ainda aquela expressão meiga e suave, que tanto agradava a todos que a viram alguns anos antes em Roma e em Paris.
Tinha um filhinho que apenas contava três anos e meio, e que, reunindo no seu rosto infantil o gesto veemente e apaixonante do conde de Monte Cristo à expressão branda e suave de Haydée, apresentava um composto singular de beleza, que para
o futuro deveria realçar pela educação escolhida que lhe prodigalizavam. Nem um só instante, Hay-dée afastava de ao pé de si o seu inocente filhinho,
e por isso o conde de Monte Cristo encontrou certa dificuldade em conseguir que Haydée o acompanhasse ao baile do senhor de Gradenigo; porém, como essa falta pudesse ser tomada como uma ofensa directa ao nobre veneziano, Haydée confiou pela primeira vez o filhinho aos cuidados de uma aia, que trouxera do Oriente, e dispôs-se a penetrar nas salas do conde de Gradenigo.
Tanto o palácio como os jardins do ilustre conde veneziano estavam esplêndidos de luz e de galas,
e nelas se faziam ouvir as harmonias de primorosas orquestras, Desde a tarde que o grande canal de Veneza, para onde dava a frente do palácio, se via coberto de gôndolas, nas quais convidados e curiosos disputavam a passagem.
Milhares de luzes brilhavam por entre os arbustos do jardim, do mesmo modo que das janelas abertas saíam também jorros de luz, que se espalhavam por sobre a multidão.
Como dissemos, o baile era de máscaras. Portanto, havia mais para admirar a pitoresca mistura de trajos, que apresentavam os mais surpreendentes contrastes.
A formosa desordem que forma a apreciável ordem de um baile, estava em todo o seu auge, quando alguém se lembrou de anunciar, em segredo que imediatamente foi divulgado, a presença do conde de Monte Cristo e de sua esposa, a formosíssima Haydée. Damas e cavalheiros correram imediatamente ao encontro dos recém-chegados.
Haydée, magnificamente vestida conforme o uso do seu país dava o braço ao conde, que trazia um trajo de beduíno.
O seu aspecto e a naturalidade com que se apresentava, a graça e o gesto dedicado de Haydée, tudo concorria para que aquele nobre e formoso par atraísse a atenção da escolhida afluência de convidados.
O signor Gradenigo, advertido da presença do conde, foi graciosamente oferecer o braço a Haydée, e depois de apertar a mão ao ilustre beduíno, conduziu-a à sala onde se dançava.
O conde ficou só e para furtar-se aos insultuosos diálogos que principiavam a originar-se em volta dele, meteu-se por entre um grupo de senhoras mascaradas, procurando conhecer alguma delas. Não tardou, porém, em ver a inutilidade dos seus esforços para realizar o seu projecto, e dirigiu-se ao jardim, onde também se dançava. Chegado ali, parou junto dum maciço de flores e verdura, que formavam um caramanchão, de onde saíam duas vozes femininas, que, conquanto lhe fossem inteiramente desconhecidas, desde logo lhe prenderam a atenção.
Envolveu-se logo no alvíssimo albornoz, e, encostando-se ao tronco de uma árvore, prestou ouvidos atentos ao que se dizia.
- Sabes que as d'Armilly estão em Veneza?
- Sei mais ainda. Sei que estão aqui no baile.
- Que dizes? Pois o conde de Gradenigo, que por várias vezes teve questão com meu pai sobre a antiguidade dos pergaminhos das nossas famílias, convidaria para o baile duas mulheres de teatro?
- Tenho ouvido dizer que hoje é considerada como nobilíssima a carreira artística de teatro; e sendo assim, minha querida, que mal há nisso?
- Sim, mas há muita distância ao pensar e dizer essas coisas e pô-las em prática. Eu por mim não me considero ofendida... mas...
- Nota que ainda faltam duas razões em favor das d'Armilly; afirma-se que são de muito boas famílias, principalmente a mais nova, que se chama Eugénia, e descende de uma família francesa, a dos marqueses de Servières.
- Ah! Nesse caso já aqui não está quem falou.
- A nobreza do sangue nunca se extingue nos que a possuem, nem quando a pessoa esteja morta.
- Decerto.
- Como hei-de eu conhecê-la entre tantas máscaras?
- Aplicando um princípio mnemónico.
- Que princípio?
- O Giovani Gradenigo é um dos apaixonados das d'Armilly. Quando elas aqui estiveram antes de irem a Roma, muitíssimas vezes lhe ouvi apaixonados discursos relativos a uma delas, ou não sei se a ambas; portanto, é de supor que as siga esta noite por toda a parte. Ora muito bem, por mais que ele se disfarce, sempre o hás-de reconhecer.
- É de crer, ele é meu primo.
- Muito bem, pois a senhora a quem ele render mais finezas, o que será fácil conhecer pelas suas habituais singularidades, será sem nenhuma espécie de dúvida uma das d'Armilly.
- Ponhamos então as nosssas máscaras, Laura, e vamos ver se o encontramos. É verdade: ouviste falar do conde de Monte Cristo?
- Já chegou.
E que tal é a condessa?
- É uma grega de alta nobreza, segundo dizem. Eu ainda não a vi.
- E que é feito da francesa que estava há pouco em Veneza, a mulher de Maximiliano Morel, o proprietário da ilha de Monte Cristo?
- Segundo nos disse o gondoleiro Giacomo, que está agora ao nosso serviço, saiu de Veneza para a solidão da sua ilha deserta, onde possui um palácio sumptuoso.
- Asseguro-te, Laura, que se eu fosse proprietária da ilha, havia de fazê-la povoar pelos mais gentis cavalheiros, sobretudo havendo já lá um belo palácio. Ah! Confesso-te que acharia imensa graça a um baile dado entre rochedos selvagens, a cuja base viesse quebrar-se o mar enfurecido.
- Vamos, Laura, põe a máscara e vamos a ver se descobrimos as d'Armilly.
Quando as interessantes interlocutoras saíram do caramanchão já o conde de Monte Cristo tinha desaparecido daquele lugar e andava indagando qual das máscaras era o conde Giovani Gradenigo. Quando acabavam de indicar-lhe o herdeiro do ilustre veneziano, Monte Cristo perdeu-o de vista, ao ser interrompido por um dominó, que pertinazmente lhe estacou em frente contemplando-o com um olhar ardente através da impassível máscara negra.
- Que é que me quer? - perguntou com altivez o conde de Monte Cristo.
- Sou muito teu amigo - respondeu o dominó com certo metal de voz, que fez estremecer mau grado seu o conde de Monte Cristo.
- Muito obrigado, mas como não quero nada da amável máscara, previno-a de que perde o tempo fazendo-me desperdiçar o meu.
E deu um passo para se desviar dali, mas o dominó tornou a postar-se-lhe na frente.
- Não queres nada de mim, mas eu quero muitíssimas 'coisas de ti. És um homem de quem há muito que querer e tu bem o sabes.
- O amigo vai-se tornando importuno, se não trata, de mudar de assunto. Se me conhece, trate-me pelo meu nome.
Assim farei; mas que nome queres que te dê? Boa pergunta! O meu.
- Nesse caso chamar-te-ei Edmundo Dantes.
A estas palavras o conde de Monte Cristo recuou um passo, medindo com um olhar de assombro, da cabeça aos pés, o seu singular interlocutor.
Vês que sei bem quem tu és? - retorquiu-lhe o dominó.
Isso é diferente - respondeu o conde dissimulando esmeradamente a sua perturbação - se quiser dar-se ao incómodo de me dizer também o seu nome.
O dominó soltou uma gargalhada estrídula.
Ao menos dê-me um sinal - continuou Monte Cristo sem poder vencer a curiosidade que o des-conhecido lhe despertava.
- Pois sim - respondeu o dominó. - Lem-bras-te da Mercedes?
- Mercedes! - murmurou Monte Cristo como se traduzisse o eco profundo e doloroso que ainda lhe arrancava do peito aquele simples nome. - Oh! Quem é o senhor? - acrescentou. - Detenha-se um instante, fale-me, que eu já sei quem é.
- Então quem sou eu?
- É Alberto de Morcerf...
- Enganas-te! Devias ter em vista que o Alberto é mais baixo do que eu.
O conde achou exacta a observação, e ficou novamente pensativo diante daquele homem misterioso.
- Adeus, Edmundo; até um dia!
E sem dar tempo para uma palavra mais, o dominó desapareceu com rapidez por entre a turba buliçosa e alegre dos outros mascarados que andavam no salão.
Debalde o conde procurou segui-lo com a vista; a máscara desaparecera inteiramente. Então, como para distrair-se do inesperado diálogo, o conde de Monte Cristo continuou na interrompida tarefa de descobrir as d'Armilly.
Decorrida mais de meia hora de trabalho baldado, encontrou-se com o seu velho amigo, o conde de Gradenigo, com quem teve de sustentar uma troca de palavras amáveis, esperando sempre a ocasião de fazer recair a conversa sobre o assunto que lhe interessava.
- Soberba concorrência! - disse Monte Cristo. - E pelo que me parece, o seu filho esmera-se tanto como o seu digno pai em receber com o tacto da mais completa delicadeza que o caracteriza, as pessoas que corresponderam ao seu amável convite.
- Giovani faz o que pode - respondeu o venerando fidalgo. - Não se quer dar ao trabalho de saber mais e por isso... Ora! A idade lhe completará a educação, eu assim o espero. Já o conhece?
- Mostraram-mo, mas perdi-o de vista. Agora creio que tornarei a confundi-lo com outras máscaras.
- Olhe para a sua direita - disse vivamente o signor Gradenigo. - Dá o braço a uma gentil circassiana...
O conde estava a ponto de conhecer o filho de Gradenigo, porém naquele mesmo instante um mascarado, postando-se-lhe em frente, dirigiu-lhe estas palavras:
- Bem-vindo, conde de Monte Cristo! Fizeste mal em descobrir o rosto, porque há aqui alguém que te esperava!
- Que quer dizer?
- Por enquanto quero dizer pouco, mas um dia direi-muito!
- Não o conheço, nem tenho o menor desejo de o conhecer.
- Espere, conde: não é costume tratar assim uma pessoa que espera pelo senhor há muito tempo!
- Todavia, creio que não existem entre nós as menores relações.
- Não, mas já existiram; é o mesmo, e por isso é credor da minha gratidão.
Não falemos do passado, que vai longe. Cuidemos só do presente. Quem é o senhor? Diga-o francamente, bem vê que não faço o menor esforço para lhe adivinhar o nome.
- Ora, histórias, caro marinheiro do Faraó! Eu sou um correio, pelo qual te envia saudações o senhor de Villefort.
- Oh! - exclamou Monte Cristo, passando a mão pela fronte pálida. - Quem quer que seja teve um péssimo gosto na escolha do gracejo! Respeito os que dormem o sono eterno.
Quando o conde de Monte Cristo acabou de dizer estas palavras, a pessoa a quem ele se dirigia tinha desaparecido.
Monte Cristo sentiu-se vivamente impressionado pelo gracejo bárbaro que tinha escutado, sem saber de quem, mas tentando votar ao esquecimento essas palavras sem fundamento preciso, filhas apenas do mau gosto, dirigiu os passos para o lado onde supu-nha encontrar Giovani Gradenigo, que dava o braço a uma gentil circassiana; porém, ou por simples acaso, ou por meditada malícia, no momento em que ele, depois de meia hora de trabalho, estava a ponto de encontrar o filho do nobre veneziano, outra máscara tomando-lhe de súbito a frente, começou a entretê-lo de um modo tal, que prendeu a atenção do conde.
O mascarado tinha o trajo completo de um ma-gistrado em sessão de tribunal, e falava o francês com toda a correcção própria de uma pessoa distinta.
- Boa-noite, conde de Monte Cristo - disse ele - então vens segunda vez à Europa com a firme intenção de te vingares de algumas famílias? Ah! Dir-se-ia que és corso de nascimento, pois a palavra vendetta exprime em ti um sentimento incrível!
O conde de Monte Cristo olhou com curiosidade para aquela figura magistral que lhe dirigia a palavra em termos tão familiares.
- Como passa a tua bela esposa Haydée? - continuou o fingido magistrado em francês nítido. Correspondes tu às inspirações sublimes daquela alma inocente? Pobre Haydée! Creio que não poderá ser feliz por muito tempo!
- Oh! Oh! - exclamou o conde, forçando um sorriso de escárnio. - Cai no ridículo de profecta de mau agoiro, meu interessante magistrado: - será talvez para se distrair do enfado que lhe causa o ofício?
- Nunca me enfadou o ofício de procurador-régio! - respondeu o mascarado. - Ofício que desde muito tempo exerço em Paris, colhendo os louvores de quantos me conhecem! Agora espero eu uma interessante causa, que deve imortalizar o meu nome.
- É um pouco vaidoso! - interrompeu o conde. - Ignora então a causa de que se trata e o nome do homem a quem se vai condenar?
- Explique-se...
- Trata-se de julgar e condenar ao senhor, meu caro conde de Monte Cristo; agora compreenderá a razão da minha profecia relativa a Haydée, não é assim?
- Bem; de que sou eu acusado? - perguntou Monte Cristo procurando entrar em carácter, sus-tentando o papel que o desconhecido parecia oferecer-lhe.
- É acusado de ter esquecido, num drama horroroso que compôs, a palavra sublime de Deus! Sobre a campa gelada das famílias de Saint-Méran e Villefort, eleva-se um rumorejar terrível contra o senhor, e um dos finados ergue a sua mão descarnada para designá-lo ao mundo! Cuidado, senhor conde; voltou-se com o sopro da tempestade a página que o condena no livro dos destinos! Eu sou o encarregado de interpretar aquelas palavras tremendas da justiça de Deus, e serei inexorável contra o senhor!
- Se mo concede - tornou o conde friamente - tomarei o seu acalorado discurso pelo efeito singular de uma loucura repentina.
- Todavia - prosseguiu o mascarado - note o que há em mim, que lhe recorde uma das suas vítimas! É esquecido, senhor conde! Quando eu o fiz conduzir para o castelo d'If, como agente bona-partista, não deixava de pronunciar o meu nome lá no escuro cárcere em que o lançaram! Eu sou Villefort!
- Bem; pois então estimo encontrá-lo, e rogo-lhe a honra de um mais dilatado diálogo, longe do bulício destes salões.
- Estou às suas ordens, porém já o previno que muito em breve há-de ter esse diálogo: entretanto, siga-me, se quer.
Dizendo isto, o suposto Villefort caminhou pelo centro das salas, até ao jardim: depois dirigindo-se por uma alameda de copadas árvores, foi dar a uma clareira afastada, onde apenas chegavam os sons da orquestra e as risadas espirituosas dos convivas. Aí parou, colocando-se em frente do conde, pareceu medi-lo com o olhar incendiado.
- Agora - disse o conde - bem vê que não tenho máscara no rosto; estou portanto no direito de exigir que tire a sua.
- Por detrás desta máscara que vê, senhor conde, não há um rosto de homem como o seu - respondeu o mascarado com voz lúgubre.
- Basta de gracejos! Quem é o senhor? - perguntou o conde, fazendo um movimento.
- Já lho disse, Edmundo Dantes; já sabe quem sou.
- Repito-lhe que basta de gracejos! Chegámos a um ponto eminente, do qual não podemos recuar sem que falemos em termos precisos. Eu sou Edmundo Dantes, conde de Monte Cristo, e o senhor quem é?
- O seu juiz, senhor conde!
- Vejo que premedita prolongar esta comédia ridícula! - tornou Monte Cristo. - Faz mal, senhor incógnito. Isso é ignorar quem seja o conde de Monte Cristo!
- Não o ignoro! É um homem que deixando-se arrastar pelo desejo veemente de uma vingança bárbara, desviou loucamente o gládio da justiça, que Deus lhe tinha colocado na mão poderosa!
À mulher que o amou do íntimo da alma, à mulher que ainda derrama lágrimas de sangue quando pensa no senhor, deu em troca do seu amor pro-fundo, do seu martírio prolongado, um futuro de miséria e viuvez! Ao amigo que confiava no senhor, que não tinha segredos para o senhor, deu em prémio traição, desespero, vergonha! Não satisfeito com isto, alimentou a chama perversa no peito de uma Lacusta, e riu quando as suas vítimas caíam! O sangue de uma criança de nove anos mancha-lhe ainda essa fronte criminosa, e depois de todos estes cri-mes, julgando remi-lo com um simples acto de generosidade, vive agora muito tranquilo, dizendo que cumpria a palavra de Deus! Aí está em poucas palavras quem é, senhor conde de Monte Cristo; traidor e assassino desapiedado, que tentou cobrir todos os erros do seu procedimento e da sua alu-cinação com o título pomposo de justiça de Deus! Trema, pois, hipócrita... além está o martírio que o espera, e depois a campa em que há-de tropeçar e cair, amaldiçoado por Deus e pelos homens!- Quem quer que seja - disse pausadamente Monte Cristo, depois de alguns momentos de meditação - aceito por enquanto a sua acusação e espero que me concederá o direito de defesa. Abstraindo de todas as ideias lúgubres e engenhosos mitos de que se serviu para sustentar o seu discurso em analogia com o facto que adoptou, reconheço que depois de haver analisado todos os actos da minha vida, em Paris, condena o sentimento que então me dominava. Pois bem, a imaginação é livre, e eu não pretendo, nem nunca pretendi, que os homens por fé acreditassem na justiça das minhas acções! Acharei ainda hoje um prazer grande em provar-lhe a justiça dessas acções, que lhe parecem mais violentas, defendendo a minha consciência de qualquer sombra de remorsos que para o futuro pudesse tocar-lhe. Isto, porém, não é questão para o lugar em que estamos; e uma vez que se deu ao incómodo de me procurar, apenas entro de novo na Europa, não será muito pedir que me procure par-ticularmente na Giudecca, onde será recebido a qualquer hora com todo o possível interesse. Por enquanto permito-lhe que conserve o incógnito.
O mascarado sorriu tristemente, apenas Monte Cristo acabou de falar.
- Um dia conversaremos, senhor conde, mas por mais bem deduzidos que sejam os seus argumentos, não haverá filosofia no mundo cristão que os sancione!
- Vê-lo-emos! - disse Monte Cristo.
- Até esse dia - tornou o mascarado, estenden-do-lhe a mão.
Monte Cristo tocou maquinalmente naquela mão estranha que esperava a sua mas lançou um pe-queno grito de surpresa, recuando e fazendo-se lívido.
-A sua mão é de gelo!
- Tem o gelo do sepulcro! - murmurou o mas-carado expondo-a aos raios das luzes.
- A mão de um finado! - bradou Monte Cristo, estremecendo, mau grado seu.
CAPíTULO 41
Primeiro abalo do colosso
DEPOIS daquele primeiro momento de surpresa, o conde de Monte Cristo readquirindo a presença de espírito, em vão procurou com a vista o homem que lhe tinha falado: ele desapareceu de súbito, sem deixar um vestígio dos seus passos.
O conde parecia sentir ainda o contacto frio da mão ressequida, que tinha maquinalmente apertado na sua.
Por mais completa que seja a nossa filosofia, por maior desapego que tenhamos dos. preconceitos da Idade Média, ou para melhor dizer, do fanatismo, há momentos em que nos deixamos possuir de um inexplicável terror, sem que por isso mostremos fraqueza de espírito! Há momentos na vida, há ocasiões inconcebíveis, em que o estudo, a ciência, o pensamento, são nada, em presença de alguns factos, que o estudo não seria capaz de indagar, que a ciência não explicaria, e que o pensamento não poderia conceber!
Posto que a cena acima descrita não esteja pre-cisamente em nenhum destes casos que estabelecemos para nós, que temos seguido desde a sua origem a inteira acção desta pequena história, para o conde de Monte Cristo era uma das mais singulares, talvez a primeira assim em toda a sua vida.
Quem era aquele homem misterioso que conhecia de perto a história de Edmundo e vinha até ele para o acusar da maior parte das suas acções e sentimentos!? Que mão era aquela que se havia erguido do sepulcro para vir tocar na sua, procurando-o no momento em que ele menos pensava no passado?
Todas estas inquietações nasciam de súbito na imaginação do conde de Monte Cristo, embora em seus lábios firmes estivesse esteriotipado o sorriso do escárnio. Um motejo vulgar não seria expresso de tão singular maneira! Um inimigo obscuro não teria falado com a placidez do desconhecido mascarado! E quem podia ser esse inimigo? O barão Danglars era reconhecidamente incapaz de ter semelhante ideia!
Alberto de Morcerf tinha dado pública satisfação ao conde de Monte Cristo, no dia marcado para um duelo de morte. Villefort tinha enlouquecido, e era muito possível que nem existisse já! Quem era pois aquele homem?
Em vão o conde contou, uma a uma, todas as pessoas que por um mal fundado raciocínio, pudessem julgar-se com direito de o perseguir. Em vão, também, reproduziu na memória todas as situações da sua vida passada!
“Ninguém poderia hoje considerar-se meu inimigo, a ponto de recorrer à vingança! Nenhuma das situações da minha existência passada me deixou a mínima sombra de remorso!” dizia o conde. “Quem seria pois aquele homem!?”
Eis a pergunta que o conde não sabia ainda satisfazer, ao cabo de comprida e aturada meditação.
No dia seguinte ao baile de signor Gradenigo, o conde de Monte Cristo esperou a visita do homem que o acusara. Mas ele não apareceu.
Os dias correram com velocidade, e ao fim de uma semana ainda o conde ignorava quem ele pudesse ser. Cansado de si mesmo, tentou distrair-se; lembrou-se então de procurar as jovens d'Armilly, que conhecia de Paris e a quem votara sempre sincera amizade.
As duas jovens amigas, tendo interrompido os seus contratos do teatro Argentino por motivo de reconhecida doença, tinham saído de Roma. Estavam em Veneza, vivendo juntas numa estalagem francesa. Monte Cristo fez-se anunciar sob um nome suposto, sendo recebido depois de alguma instância. Luísa d'Armilly foi a primeira que lhe apareceu, e não pôde reprimir esta exclamação:
- Meu Deus! - disse ela encarando o conde. - Terei o gosto de falar ao senhor de Monte Cristo?! ...
- Sim, minha senhora, quis experimentar a sua memória; peço-lhe desculpa, porém quando nos não sentimos com o merecimento necessário para prender a atenção de outrem, não contamos ser reconhecidos depois de um longo período de ausência.
- Nunca deverá falar desse modo, senhor conde, eu e a minha amiga Eugénia sabemos avaliar os seus belos sentimentos, ainda que o mundo inteiro o condenasse.
- Não prossiga, senhora! Quando o mundo inteiro condena um homem, é forçoso que sigamos a opinião geral! - interrompeu Monte Cristo com um riso de benevolência, continuando: - Parece-me que poderei avaliar a saúde da sua interessante amiga Eugénia, pelas cores suaves que há no seu rosto.
- Oh, decerto! - respondeu Luísa. - A Eugénia está muito melhor, e eu, que muitas vezes estremeci pelo abatimento em que a via, folgo muito pelo seu restabelecimento.
- Ouvi dizer que vieram de Roma. A sua amiga não se deu bem naquela cidade?
- Sofreu um desgosto profundo! - disse Luísa, mostrando algum embaraço. - Foi vítima de uma traição horrível! Mas perdão, senhor conde, ela zangar-se-á se eu perder um momento em lhe anunciar a visita que se digna conceder-nos. Corro a preveni-la.
Momentos depois, Eugénia Danglars apareceu na sala onde estava Monte Cristo, que notou com assombro a mudança que se havia operado no seu rosto, onde se viam os sulcos profundos de muitas lágrimas.
As cores da mocidade e do prazer de uma existência suave tinham desaparecido daquelas faces maceradas pelo sofrimento, deixando nelas a palidez de uma agonia imortal. O seu olhar, outrora animado pela chama que o génio acendia, estava brando e turvo. O gesto veemente que a caracterizava, era então lânguido e triste como a expressão dessas imagens que se colocam à beira das campas. Tudo estava mudado em Eugénia, e o conde não a teria conhecido.
Eugénia escutou as palavras do conde, respondendo apenas a algumas perguntas directas que lhe dirigiu. Depois de meia hora de conversação, em que Monte Cristo procurou em vão notícias de algumas pessoas que tinha conhecido durante o tempo em que estivera em Paris, despediu-se das duas amigas, anunciando-lhes que tencionava dirigir-se a Roma.
- A Roma!? - perguntou Luísa olhando de um modo significativo para Eugénia.
- Espero distrair-me naquela cidade - disse o conde - o aborrecimento é o maior de todos os males que podemos experimentar.
- Entretanto, senhor conde, permita que o advirta de que talvez aumente em Roma o seu aborrecimento!
- Como assim?
- Há ali uma questão judicial em que muitas vezes figura o seu nome.
- Então como é isso? - perguntou o conde com um sorriso amável, como para evidenciar a placidez do seu espírito.
- Talvez não acredite no que vou dizer-lhe: contudo saiba que foi instaurado ali um processo terrível contra o famoso salteador Luigi Vampa, e este homem declarou perante os tribunais ter contraído algumas relações com o senhor conde.
- Realmente, acho galanteria do senhor Luigi Vampa - disse o conde com um modo frio, continuando logo: - e o caso é que existiam de facto essas relações, e eu sou amigo desse homem! Entretanto, em pouco tenho eu agora a segurança da sua cabeça!
Quando o conde pronunciou estas palavras, dois fios de lágrimas corriam pelas faces de Eugénia. O conde ia continuar, porém Luísa fez-lhe sinal, que ele compreendeu, para não prosseguir, e foi abraçar a sua pobre amiga, que se deixara cair num sofá.
O conde despediu-se delas e saiu comovido pelo estado de languidez em que tinha visto a pobre menina e no firme propósito de empregar todos os meios que estivessem ao seu alcance para lhe restituir o seu antigo frescor: porém, para conseguir o bom resultado desse trabalho a que generosamente se propunha, era necessário antes de tudo conhecer e estudar a causa originária daquela doença, contra a qual, segundo a inteligência de Monte Cristo, os médicos vulgares nada poderiam conseguir.
Esperando que com o tempo ele saberia quanto se disse a respeito de Luigi Vampa, e julgando este assunto de menor importância do que o segundo, começou a trabalhar. Em poucos dias conseguiu ele que Eugénia e Luísa visitassem Haydée. As senhoras estimaram-se mutuamente, e o conde teve o prazer de formar o pequeno círculo de convivência íntima que tanto apreciava.
Como se realmente o conde de Monte Cristo houvesse de sentir, pedra por pedra, o desmoronamento de todo o edifício da sua paz íntima e da sua felicidade, não tardou que uma nuvem negra e misteriosa passasse no horizonte límpido da sua vida sem que ele pudesse combatê-la.
Desde alguns dias que Haydée, sob pretexto de incómodo, se recusava a receber pessoalmente Eugénia e Luísa, e quanto mais solícito para com elas se mostrava o conde, mais aumentava em Haydée o seu suposto incómodo.
Haydée, se bem que educada conforme o uso da Europa, conservava o fogo violento que a paixão acende no peito da mulher oriental; em breve se manifestou esse fogo voraz, que o ciúme exalta ao último ponto! Muitas vezes tinha ela visto com o olhar ciumento, como o da leoa do seu país, o conde passear ao lado de Eugénia na grande varanda do palácio. O conde parecia entretido numa dessas conversas, como se encontrasse um prazer amargo em imaginar, sem dados suficientes, sentimentos que eram totalmente estranhos entre ele e Eugénia.
Não era só Haydée quem observava estes passeios na grande varanda do palácio; alguém havia no canal, na viela que ficava em frente do edifício, que não despregava o olhar da interessante e pálida figura de Eugénia que passeava ao lado do conde, respirando a brisa suave do Lido. Eugénia parecia mais abatida do que nunca e o conde mais empenhado em descobrir a causa misteriosa desse grande abatimento.
- Minha filha - dizia-lhe o conde - quando se tem a sua idade, não devemos desesperar neste mundo. Que doença pode haver no seu espírito, para a qual não encontre um bálsamo salutar em tudo quanto a cerca?... É bela, é nova, revela um génio que o mundo aprecia, porque o reconhece superior.. para que se rouba a esse mundo brilhante, que se lhe arroja aos pés, e a bem-diz com devoção?
- Senhor, as suas palavras são como sempre, filhas da mais sincera simpatia; bem o sei e agradeço-lhe, mas este mundo de que me fala, o que poderá ele oferecer-me para mitigar esta saudade, este amor, esta agonia que eu sinto! - exclamou Eugénia elevando os olhos ao céu dolorosamente.
- Vamos, falou agora em termos mais precisos, minha filha - tornou o conde - falou de saudade, de amor e de agonia, três palavras que exprimem um sentimento ascendente na escala das sensações humanas.
- Sim, sim, senhor! Avalie, se pode, o sentimento infinito que há neste peito! Deplore-me depois - disse ela deixando pender a fronte e enxugando uma lágrima.
- Pelo contrário, minha filha, hei-de profetizar-lhe um futuro cheio de extremo prazer.
- Oh, não! - disse Eugénia com um gemido. - Tudo vai acabar para mim!
- Escute; minha filha - disse o conde com o seu amável sorriso de benevolência. -Reconhece que eu me considero verdadeiramente feliz? Tenho uma esposa extremosa, cujas carícias constantemente recebo com indefinível prazer, tenho um filhinho, em cujos lábios inocentes escuto de contínuo o meu nome, como se escutasse um anjo a abençoar-me! Pois durante o espaço de quinze anos, quinze anos compridos, de desespero, de solidão, quinze anos, minha filha, eu dizia, como disse agora, tudo está acabado para mim! Nesse tempo contava eu a idade que tem hoje; e como a senhora arredava os olhos do futuro, para os dirigir à terra, onde me persuadia dormir brevemente o sono eterno! Mas eu tive também uma voz que me disse: crê e espera! Sim, crer e esperar é em que se encerra toda a sabedoria humana, como eu mais tarde o reconheci crendo e esperando!
- Todavia, as situações talvez sejam bem diferentes! - retorquiu Eugénia.
- Eu estava encerrado entre os muros de uma torre, que era rodeada pela água do Oceano! Uma abóbada sombria era o meu único horizonte! Pai, amigos e amada, onde estavam? A noite horrível do sofrimento havia-me separado deles para sempre! As minhas mais caras esperanças estavam cortadas, mas a minha crença, posto que um momento enfraquecida, fortaleceu nas trevas e na agonia; e eu encarei o mundo, a felicidade, através das paredes da abóbada do meu cárcere!
Eugénia pareceu meditar um momento, em seguida disse:
- O senhor conde é um homem e eu sou uma mulher; a escala das sensações é diferente em nossos peitos! O senhor pode ter imaginado a sua felicidade para sempre desfeita sobre a terra, porém erguido sobre essas preciosas ruínas podia ainda conceber uma esperança! Eu, pelo contrário, devo desaparecer do mundo, porque o mundo, de hoje em diante, não é para mim mais do que a imagem viva do inferno! O senhor nunca poderia ter imaginado que com a cabeça da sua amada, havia de cair a única esperança da sua alma!
- Eugénia! - exclamou o conde iluminado por aquelas terríveis palavras. - Fale, fale, que o tempo corre. Fale, Deus é misericordioso, Deus tem um poder imenso, fale, diga o que sente.
- Não posso! - murmurou Eugénia. - Não posso, o sentimento sufoca-me...
Dizendo isto, ela apoiou-se no parapeito da varanda, e o olhar pareceu extinguir-se-lhe como o brilho das estrelas no horizonte. A lua elevou-se no Lido.
Duas gôndolas passavam silenciosas pela frente do palácio onde estava Monte Cristo. Essas duas barcas detiveram-se um momento, porque os dois remadores deixaram de fender as águas do pequeno canal; então elevou-se uma voz suave e melancólica, acompanhada pelos sons indolentes de uma guitarra. A voz era de um homem, e repetia em mau italiano estas quatro estrofes:
Altos castelos caíram,
Baixos albergues se ergueram;
Pequenos nobres subiram
Altivos nobres desceram!
Todos tém a sua sina
De todos sei o condão.
Por bem pouco isto se ensina...
Venha, venha a vossa mão.
Dos meninos inocentes
E dos condes, que namoram;
Das esposas descontentes
Dos ciúmes, que as devoram:
De todos direi a sina,
De todos sei o condão.
Por bem pouco isto se ensina,
Venha, venha a vossa mão.
A voz extinguiu-se, deixando ouvir distintamente o prelúdio da guitarra que era hàbilmente tocada. Dali a um instante, a mesma voz repetiu as suas trovas, e um homem, de pé numa das gôndolas, agitava um lenço na direcção da varanda onde estava o conde e Eugénia.
Quando o conde se inclinava no parapeito de mármore para escutar o que diziam sentiu que lhe tocavam mansamente no ombro. Voltou-se e viu Haydée com o filhinho nos braços.
- Chame-os, senhor - disse ela com interesse. O conde fez um movimento e ia responder-lhe; porém ela interrompeu-o.
- Logo que os vi tomei o meu filho nos braços com o desejo de ouvir ler-lhe a sina. Chame-os, senhor, porque desejo imenso que eles falem.
- Tu queres isso, Haydée? Muitas vezes estes aventureiros não dizem a verdade! Para quem não possui um espírito temperado na repetida alternativa das desgraças, nunca é bom ouvir esta gente!
- Senhora d'Armilly - disse Haydée voltando-se para Eugénia - teria também algum interesse em ouvir aqueles homens?
O conde notou com assombro o gesto veemente com que a sua esposa tinha falado a Eugénia; e para evitar um diálogo intempestivo, tirou um lenço branco da algibeira e fez sinal aos dois homens da gôndola.
CAPíTULO 42
O cigano
Numa das salas do edifício, reuniu-se a pequena família do conde de Monte Cristo. Eugénia e Luísa d'Armilly estavam presentes.
A sala era espaçosa, ornada de móveis antigos e decorada com alguns quadros de grandes dimensões, que segundo o teria afirmado o proprietário daquele palácio, eram ainda restos das antigas pom-pas artísticas de Veneza, devidos aos pincéis de Ticiano, de Tintoreto ou de Paulo Veronezo; porém, para um olhar entendido, mesmo deixando de pertencer a Palma Belligni ou Montegn, caíam na sim-ples imitação destes três discípulos da escola veneziana por um desses pincéis obscuros, que com toda a insolência do pedantismo, deturpam e decompõem a pouco e pouco as obras dos grandes génios.
Estes quadros enormes, aqueles móveis sombrios testemunhas de muitos séculos, concorriam de um modo singular para a cena do mistério que se esperava.
Haydée tinha o filho nos braços; Eugénia e Luísa estavam sentadas ao lado dela; e o conde, em pé, apoiava o braço esquerdo sobre o mármore da papeleira. A luz de uma lâmpada estava velada por um transparente abat-jour verde; o silêncio era profundo.
Depois de um instante de espera, apareceu o cigano. Era um homem ainda moço: a estatura graciosa e ligeira era um modelo magníficode nobreza; o seu vestuário justo e esmerado tinha a elegância e a gentileza espanholas; finalmente o gesto animado da fisionomia e a expressão misteriosa do olhar, tudo concorria para inspirar inteira confiança às mulheres e vagos receios aos homens.
Monte Cristo conservou-se imóvel, lançando apenas um olhar para o recém-chegado. Haydée sorriu-se, batendo com o índex na extremidade dos lábios do filho, como para o despertar.
- Boas-noites, senhor - disse o cigano, pro-curando dar às suas palavras um acento espanhol. - Boa-noite.
- certo que sou aqui chamado para descobrir o segredo dos seus futuros, belas damas? O que poderá haver de mau neles?
- Comece - murmurou o conde.
- Pelo senhor, se quer.
O conde sorriu com modo desdenhoso.
- Gentil cavalheiro - disse o cigano - tem a firmeza do génio; ao vê-lo, digo já que é qual baixel audaz no mar da vida! Lá estão no rosto impassível os sinais de um passado tormentoso! Na pupila um pouco dilatada, nos lábios irregularmente fechados, eu leio o sentimento de uma paixão extrema! Foi uma flor que não vingou.
- Gasta o seu tempo em coisas de pouco interesse - observou o conde, que começava a impacientar-se. - Deixe o passado que vai longe, e cuide do futuro, já que tem a vã presunção de o compartilhar com Deus, a quem ele só pertence!
Dê-me a sua mão! disse o cigano vivamente. - Aqui está - respondeu o conde de Monte Cristo com um gesto de escárnio.
Seguiu-se então um momento de silêncio; o cigano abanou a cabeça, e voltando-se para Haydée, murmurou estas palavras com um acento lúgubre:
- Pobre Haydée!
O conde fez um movimento de surpresa, e Hay-dée imprimiu um beijo nas faces do filhinho.
- Eis aqui a linha da terra - continuava o cigano, olhando para a mão de Monte Cristo, em cuja fronte começavam a formar-se algumas bagas de suor frio.
- Sê breve! - murmurou ele.
- Basta! - disse o cigano olhando para o céu. - Fale...
- É impossível.
- É um belo adivinho, meu amigo - disse Monte Cristo com uma risada motejadora, pois atribuía à ignorância o embaraço do pobre cigano.
- Pois bem, senhor, para lhe provar que não sou tão mau como supõe, ouça-me em segredo. - Concedo. Porém, desde já o previno de que não consentirei que oculte na capa do mistério meia dúzia de palavras sem sentido.
- Senhor - disse então o cigano - viu alguma vez os extensos desertos de África, onde não há uma gota de água para mitigar a sede do viajante? Tem notado lá uma palmeira isolada, erguida no chão, em que tudo morre abrasado? Nunca perguntou a si mesmo porque razão vive ali aquela árvore, suportando o tufão, a calma e a secura, e contando nas suas folhas amareladas a história de muitos séculos?
- Que quer concluir daí? - perguntou o conde.
- Senhor, o deserto será a vida; a tempestade e a calma a desgraça; os séculos serão os anos; a palmeira é o senhor!
- Obrigado, meu bom profeta, qual é a garantia que me oferece para que eu acredite nas suas palavras, Aliás filhas de um simples improviso?
- Ë difícil de contentar, senhor! - tornou o cigano. - Eu não o conheço, e por isso não posso combinar factos alguns da sua existência passada, para deduzir precisamente o seu futuro! Entretanto, dir-lhe-ei que há no mundo a mão ressequida de um fantasma, que chama constantemente pelo senhor.
- Todos teremos o mesmo fim! - respondeu o conde.
- Com a diferença que o senhor há-de chegar a esse fim quando o seu peito já não tiver alento para soltar um gemido e quando nas suas pálpebras já não houver uma lágrima que não seja de sangue!
A estas palavras o conde estremeceu violentamente, e cravando o olhar no rosto moreno do cigano, procurou descobrir ali um enigma qualquer, cuja existência pressentia: mas o rosto do cigano estava imóvel como o de uma estátua.
- Aqui tem este menino - disse-lhe Haydée, logo que ele acabou de falar ao conde. - Diga-nos qual é a sua sina.
- Direi, senhora; porém se alguma das senhoras requer o meu mister, este inocente será o último. Senhora - continuou ele colocando-se em frente de Eugénia.
- a sua estrela deve ser boa; quer que eu a interrogue?
- É indiferente - murmurou Eugénia.
Oh! Fale - disse vivamente Haydée - fale. - Muito bem, dê-me a sua mão.
Eugénia estendeu a mão, e enquanto o cigano parecia observá-la, todos guardaram profundo silêncio, esperando o resultado daquele momentâneo estudo.
- Sentiu um amor tão violento - disse o cigano - um desses amores que sentimos uma só vez na vida, foi vítima dessa paixão veemente, pagando em vida, no famoso campi lugentes o tributo da sua malfadada existência! Longe, vejo sua mãe, que em vão chora muitas lágrimas pela senhora! Falta-lhe o pão, e quando a senhora se convencer de quanto uma filha deve a sua mãe, há-de oferecer-lho. Finalmente prepare os seus vestidos de luto, porque sob o cutelo da justiça cairá a cabeça do homem a quem ama!
Eugénia, que durante as palavras do cigano começara a agitar-se e a tremer, lançou um grito doloroso apenas ele acabou de falar.
- Miserável! - exclamou o conde de Monte Cristo avançando rápido para o cigano.
- Eu disse a verdade, senhor - respondeu o cigano com modo humilde, porque notou num movimento de Haydée a resolução que ela tomava de evitar os efeitos de indignação de Monte Cristo contra o cigano.
Entretanto, Eugénia, trémula e pálida, tinha-se levantado; Luísa segurou-lhe ràpidamente o braço, tentou ampará-la.
- Fujamos, Luísa, fujamos! - bradou Eugénia como desvairada. - Este homem está marcado com o selo da fatalidade!
E apontou horrorizada para o conde de Monte Cristo.
- Oh! Minha mãe, minha pobre mãe! Bem mal fiz em te abandonar! Fujamos!
Dizendo isto, Eugénia travou da mão da sua amiga e correu com ela pela sala, saindo do edifício. O conde ficou estupefacto, e Haydée, unindo o filhinho ao seio, contemplava com interesse aquele quadro singular.
Vamos, meu adivinho - disse o conde atirando com uma bolsa aos pés do cigano- está acabado o trabalho, podes retirar-te.
- Ainda não, senhor! Falta a sina de meu filho.
- Que dizes, Haydée? Não vês que este miserável é um embusteiro que a todo o transe pretende aterrar-nos com as suas ideias loucas e absurdas?
- Oh! Eu conheço que tem dito a verdade! - respondeu Haydée. - E o que poderá ele dizer de mau, relativo ao futuro deste inocentinho? Sente-se, senhor, tomemos ambos nos braços o nosso querido filho e escutemos a profecia.
O conde, posto que agitado por quanto havia sucedido, não pôde esquivar-se ao que Haydée lhe pedia. Sentou-se ao lado dela, e passando-lhe um braço em redor da cintura, amparou com o outro o corpo do filhinho que tinha estendido no colo. A criancinha parecia satisfeita, e batendo as mãozinhas, sorria-se para os autores dos seus dias, como se quisesse recompensar-lhes já o amor que eles lhe votavam.
O cigano aproximou-se daquele quadro magnífico. No seu rosto pálido, encaixilhado entre as espessas suíças pretas e lustrosas como o ébano, havia um riso diabólico, cuja expressão não escapava ao olhar inteligente do conde.
Haydée, pegando na mãozinha do menino, estendeu-lhe o braço na direcção do cigano.
- Aqui tem a mão do menino - disse ela.
O cigano observou-a em silêncio durante alguns segundos com a mesma atenção e o mesmo escrúpulo que até ali empregara em semelhantes observações.
- Muito bem!
- O que sabe?
- Por enquanto sei pouco.
- Diga.
- Este menino será feliz, muito feliz, depois de grandes trabalhos! Porém esses trabalhos podem evitar-se - continuou ele.
- Fale...
- Nasceu sob a influência de um mau signo! Todavia, segundo o que me diz esta linha curvada, que parte na última junção do índex e vai acabar na palma... vejo que o menino nasceu no Oriente.
Haydée olhou para o conde, muito satisfeita da verdade que tinha notado nas palavras do cigano.
- E por isso - continuou este - não será tão infeliz como podia ser: todavia é mister empregar alguns meios para evitar a desgraça.
- Fale, fale. Tudo quanto estiver ao nosso alcance, tudo faremos! - exclamou Haydée.
- Esta semana haverá em Veneza um jantar oferecido aos pobres - disse o cigano pausadamente - deve comparecer ali com este menino e fazer-lhe comer o pão da caridade; será bom que a senhora e o seu marido o compartilhem também, para que se purifiquem de qualquer vaidade que haja nos seus peitos. Depois, devem fazer com que este menino receba um beijo de três pobres, que hão-de para esse fim tomá-lo nos braços.
- Nada mais fácil - disse Haydée. - Faremos tudo quanto ele diz, sim, meu amigo? - perguntou ela ao conde com um modo ingénuo.
- Signora - continuou o cigano - fazendo o que lhe digo, acredite que terá afastado do horizonte deste inocente algumas nuvens que ali notei! Boa noite! A Virgem fique na sua guarda, e um génio benigno não cesse de velar junto do berço do seu filho!
Dizendo isto, o cigano dispôs-se para sair, e Haydée com o sorriso da esperança nos lábios e o olhar turvo pelo pranto de uma sensibilidade sublime, estendeu a mão para o cigano, oferecendo-lhe um anel magnífico que tinha no dedo. O cigano pegou no anel e beijou-o como prova de profundo respeito e completa satisfação.
- Então, meu amigo? - disse Haydée com orgulho ao marido, cujo olhar inquieto parecia seguir a figura do cigano ao longo da sala. - Bem lhe dizia eu que o nosso filho havia de ser feliz! Iremos ao jantar dos pobres?
- Iremos! - murmurou Monte Cristo.
Haydée passou-lhe o braço ao redor do pescoço, unindo os seus lábios ardentes às faces do conde.
CAPÍTULo 43
Indagação
A próxima piedosa função tornou-se logo o alvo de todos os pensamentos da jovem mãe; ela quis pela sua mão escolher e compor o vestido para o seu filhinho levar ao jantar dos pobres.
Entretanto, o conde de Monte Cristo ocupava-se em proteger, quanto lhe fosse possível, a pobre filha do barão Danglars. Ele correu ao seu encontro no dia seguinte, notando com assombro uma carruagem de posta estacionada à porta do hotel. perguntou por quem esperava aquela carruagem, e disseram-lhe que pelas duas cantoras francesas.
O conde subiu apressadamente as escadas e sem responder às objecções dos criados, entrou pelas salas, até encontrar Eugénia ou Luísa. Foi Eugénia a primeira que lhe apareceu.
Estava vestida de preto. O seu rosto estava pálido, e tinha o gesto firme de quem havia tomado uma resolução espontânea.
- Senhora - perguntou-lhe o conde - retira-se?
- Retiro-me, conde, conhecendo que a minha estrela começou a extinguir-se nas nuvens da desgraça, conformo-me com a sorte, e vou esgotar no cálice de um prazer amargo e cruel quanto uma mulher no meu caso pode sofrer!
- Eugénia - tornou o conde, pegando-lhe suavemente na mão - é dolorosa a expressão das suas palavras! Dar-se-á o caso de que o seu espírito fraqueje ao peso de embuste, como o que escutámos ontem de um pobre cigano, cujo simples interesse era comover-nos para que lhe pagássemos bem?
- Oh, senhor! - respondeu Eugénia com um sorriso lúgubre. - Não sei que mistério houve na noite de ontem, mas o cigano falou verdade em tudo quanto me disse respeito! A cabeça do homem a quem amei e amo ainda, sem ter força para sufocar este sentimento, vai cair sob o cutelo da justiça romana!
- Será possível evitar esse acto de justiça?
- O condenado é Luigi Vampa, e os romanos pedem a cabeça dele! Admira-se do amor que eu consagrei a um vil salteador? Oh! É que Vampa não era como os outros homens! Havia nele não sei o que de enérgico e majestoso que o fazia superior a todos eles!
- Eugénia - tornou o conde - acredito que não há nada impossível neste mundo quando a misericórdia de Deus nos protege. Esperar e crer, é toda a sabedoria humana: deve pois esperar e ter fé.
- Em quê? - perguntou Eugénia.
- Em Deus, Eugénia, em Deus!
- Poderá o senhor conde alcançar que Deus proteja aquele infeliz?
- Posso
Como?
- Já comprei ao Papa a vida de um homem; comprar-lhe-ei a vida de outro.
- Por que preço?...
- Na tiara de Sua Santidade há uma esmeralda magnífica: haverá ali lugar para outra de igual valor? Eu creio que sim, minha filha. O Papa, esse homem que tem a impudência de querer representar Deus sobre a terra, não é mais do que um juiz vulgar que vende por alto preço os actos da sua justiça. Deus, querendo provar ao mundo esta verdade, deu-me o poder de negociar, face a face, com aquele homem, como se negoceia com um senhor de muitos escravos. Tenho com que lhe pagar metade do reino, quanto mais -a vida de um pobre salteador.
- Oh, senhor! - murmurou Eugénia, apertan-do-lhe a mão.
- Desculpe, Eugénia - disse o conde retirando a mão- apenas lhe prometi salvar a cabeça de Vampa; mas prometa-me também que não abandonará depois a vida grandiosa, em que é um génio!
- Juro-lho!
- Cultivará sempre a arte de Talma, enquanto a poeira gelada do tempo não branquear esses lindos cabelos?
- Sim,
- Muito bem! Eu vou empenhar-me em salvar Vampa. Alcançando que seja o perdão do Papa, ele far-se-á um bom homem; conheço-o bem, e sei que tem sentimentos generosos no fundo da alma.
Quando o conde acabava de dizer estas palavras, apareceu Luísa d'Armilly, pronta para acompanhar Eugénia.
- Não, minha amiga, por enquanto ficamos em Veneza - disse-lhe Eugénia.
- Como assim?!...
- Houve um raio de felicidade inesperada, um relâmpago de esperança no céu tenebroso,
que eu te descrevi ontem!
- Não perco um momento, Eugénia - disse o conde - vou trabalhar para que esse relâmpago se transforme em luz constante.
O conde deu um passo para se retirar, porém deteve-se para escutar o que lhe dizia um criado que acabava de entrar.
- Vossa Excelência é o conde de Monte Cristo?
- Sou.
- Então é a Vossa Excelência que se dirige esta carta.
- De onde vem ela?
- Trouxe-a um homem que eu não conheço, porém, segundo ele afirmou, a carta vinha remetida de Roma, por especial favor.
Eugénia fez um movimento de interesse ao ouvir o que se dizia; o conde, pelo contrário, perturbou-se pelo que ele tinha dito a Eugénia Danglars, mas não podia deixar de ler imediatamente aquela carta, e por isso, em vez de guardá-la fechada na sua carteira, com aquele modo impassível que era tão dele, abriu-a, leu-a, afastando-se um pouco das duas amigas que se encostavam ao braço uma da outra.
Então o conde leu para si:
Signor:
Acabo de saber que está em Veneza; o que eu porém não sei é o que tenciona fazer a respeito de Luigi Vampa! Digo isto, porque o pobre Vampa está em poder da justiça; tem sobre a cabeça, suspensa em pequena altura, a mazza do carrasco! Jurou protegê-lo sempre e agora falta à sua palavra! Venha pois quanto antes, senão tudo estará perdido para o pobre Vampa.
A última hora! Acabo de saber que Vampa se enforcou no seu cárcere tendo primeiro revelado à justiça as suas relações com o senhor. Sei também que o encarregado dos negócios de França tem instruções do governo contra o senhor, por haver violado e profanado diversos mausoléus do cemitério do Fére-Lachaise entre os quais se nomeia o da família Villefort e Saint-Méran. Não volte a Roma e acredite que sou seu reverente criado,
Peppino Roca-Priori”.
Posto que a fisionomia do conde de Monte Cristo fosse de uma firmeza indizível, apresentando aos olhos mais sagazes um selo inviolável sobre os arcanos do seu peito, aquela voz transluzia nela a sensação que o conde experimentou ao ler a carta de Peppino. Eugénia compreendeu a expressão do rosto do conde.
- Alguma notícia desagradável? - perguntou ela.
- Oh! - exclamou o conde, como se não pudesse conter as palavras e amarrotando a carta nas mãos. - Bem o disse: Eugénia, a fatalidade pesa sobre mim e sobre quantos tratam comigo!
- Senhor!
O conde ficou extático.
- Fale, por piedade, pois far-me-á acreditar numa verdade horrível! - murmurou Eugénia.
- Eugénia - disse o conde aproximando-se dela vagarosamente e contemplando-a com um olhar compadecido.
- Compreendo! - murmurou ela enxugando uma lágrima.
Seguiu-se um momento de silêncio, apenas interrompido pelo soluçar de Eugénia. Nem Luísa nem o conde ousavam distraí-la daquela saudade, daquele amor veemente, cuja expressão amarga estava nas lágrimas que ele chorava. Depois, Eugénia ergueu a fronte pálida e serena, encarou o conde como se lhe dissesse adeus e, voltando-se para Luísa, dirigiu-lhe estas palavras:
- Luísa, todas as minhas ilusões caíram para sempre! Partamos, pois quem sabe se minha mãe solicita agora em Roma o pão da indigência? Partamos, tenho ali dois deveres a cumprir.
Dizendo isto, deu a mão a Luísa e caminhou com passo firme ao longo da sala. O conde ficou imóvel, reconhecendo com espanto a verdade da singular profecia do cigano.
Todos sabiam já em Veneza que um benfeitor desconhecido havia pedido licença para oferecer aos pobres da cidade um jantar que devia realizar-se com brevidade. As autoridades, concedendo logo aquela licença, conservaram o anonimato do benfeitor e por isso ninguém mais sabia quem ele era.
O conde de Monte Cristo ignorava também o nome desse homem e teve de permanecer nessa ignorância, bem como os mais curiosos. O dia des-tinado para o piedoso banquete estava próximo. Era uma quinta-feira de Abril.
Logo que o sol começou a aproximar-se do seu zénite, quando o ponteiro do grande relógio da catedral caminhava para o meio-dia, a grande praça começou a encher-se de povo, que vinha ali convergindo de todos os pontos da cidade. As mesas para o festim estavam preparadas em frente do antigo edifício de S. Marcos, contendo lugares para mais de quinhentas pessoas.
Quatro bandas de música, colocadas duas dos lados do portal da igreja e duas em coretos na praça, executavam, sem cessar, as melhores peças de música. As janelas do palácio viam-se cheias de senhoras, cujos enfeites multicores contribuíam para o realce daquele magnífico espectáculo.
As senhoras das melhores famílias de Veneza, tendo-se antecipadamente reunido em sessão, haviam deliberado que para engrandecimento daquele acto de verdadeira caridade cristã, ofereciam a Deus o de completa humildade, indo elas para esse fim rodear a mesa do banquete e servir os pobres, enquanto eles comessem. Esta ideia sublime das nobres senhoras venezianas teve geral aceitação.
Saindo nas suas mais elegantes toilettes, apeavam-se das arrendadas gôndolas para se dirigirem ao adro da igreja de S. Marcos, onde a miséria esperava com ansiedade á sua hora de satisfação.
Era realmente grandioso o desvelo com que as nobres senhoras tomavam nos braços as pobres criancinhas e lhes enxugavam as lágrimas com os seus ricos lenços perfumados, o interesse com que elas ajudavam os velhos a removerem-se até ao lugar que lhes competia na mesa, a crença com que repetiam às mães as palavras santas do Evangelho, para que tivessem fé e acreditassem na misericórdia infinda de Deus. Finalmente o ponteiro do relógio designou ter chegado a hora do festim.
O sino grande de S. Marcos, girando nos seus possantes braços de bronze, anunciava com estridor a hora da justiça, a hora do pão, a hora da caridade, como se pretendesse que o eco do Lido repetisse ao mundo aquele anúncio. Ao som da música, ao dobrar solene do grande sino, aos gritos entusiásticos do povo inteiro de Veneza, os pobres ocuparam os seus lugares e o festim começou. Entretanto, por mais acirrada que fosse a curiosidade, ninguém podia conhecer o autor daquele espectáculo, com-prazendo-se com o maravilhoso efeito dele.
O conde de Monte Cristo, ao lado da sua interessante e formosa esposa, que sustentava o filhinho nos braços, em vão lançava em redor de si aquele seu olhar tranquilo, fino, inteligente, para conhecer o misterioso e magnânimo benfeitor. Se, com efeito, ele ali estava, a sua fisionomia modulando por assim dizer a expressão pelas fisionomias que o cercavam, não traía em nada o sentimento.
Haydée só pensava em fazer compreender ao filhinho o espectáculo edificante em que a pobre criança havia de tomar parte, conforme o preceito estabelecido pelo cigano. A criança, vendo-se rodeada de toda aquela gente estranha, olhava de testa franzida para a mãe como se quisesse perguntar-lhe o que significava aquela cena sublime do cristianismo!
- Meu filho - dizia Haydée em voz baixa, e unindo-o a si - o Deus do mundo está aqui em toda a sua glória e majestade, dando aos pobres o que é dos pobres. Conde, não acha agradável este espectáculo, não acha ser verdade o que acabo de dizer ao nosso filho?
- Sim, Haydée - respondeu o conde. - Todavia, não sei o que me oprime! Quisera que não se prolongasse muito esta cerimónia, que me revela mais vaidade do que simples caridade cristã.
- Como assim? - perguntou Haydée.
- Diz o Evangelho de S. Mateus - tornou o conde - ensinando-nos a dar uma esmola, que quando a mão direita a entregar ao pobre, não saiba a nossa esquerda o que fizemos! E quando formos generosos não consintamos que a trombeta da fama apregoe ante nós o nosso nome e o nosso feito! Hás-de compreender tu agora, minha amiga, a razão das minhas palavras. Eu vejo em todo este aparato um segundo pensamento! Isto não é simples caridade cristã! Todos aqueles pobres que além estão, receberiam de melhor grado esta esmola no centro dos seus albergues, na companhia dos seus filhos e das suas mulheres. Esta pompa oprime-os! A presença daquelas nobres senhoras torna-os constrangidos. Nota como eles estão silenciosos, como as-suas fisionomias estão carregadas; como eles ficam imóveis logo que alguma das belas serventes se aproxima deles... Vaidade humana, até que ponto chegas! continuou o conde com expressão de escárnio, como se fosse superior aos outros homens. - Até no acto da esmola tu queres ostentar a tua pompa infernal! Eis como é imperfeita a crença do homem! Vê, minha Haydée, como é incom-pleto o acto de humildade que aquelas senhoras oferecem ao seu Deus! Brilham nelas as melhores jóias, no momento em que desejam humilhar-se, exaltam-se, marcam a diferença que vai delas aos filhos da miséria. Vamos: é chegado o momento de apresentar ao nosso filho o pão da indigência. Tira-lhe esses adornos que o cobrem, minha amiga! Rasga-lhe esse trajo de rico valor, e solta-lhe os cabelos à brisa do espaço.
Dizendo isto, o conde, pela sua mão, "ajudou Haydéa executar o seu pensamento; Haydée não ousava contrariá-lo, posto que lhe parecesse bem singular aquela desordem no vestuário do filho.
- Agora daremos uma lição a toda esta gente - continuava o conde falando a sua mulher. - Meu filho que tem uma herança capaz de comprar a cidade de Veneza, vai de cabelos soltos, descalço, e com o fato roto, compartilhar o prazer daqueles desgraçados mendigos, como seria capaz de compartilhar os seus desgostos e as suas dores, se as compreendesse já! Vamos, Haydée, é chegado o momento.
Haydée, elevando então o menino nos braços, caminhou com ele para a mesa do festim. Nesse momento, alguns pobres levantavam-se e vinham, como por acaso, na direcção em que estava Haydée e Monte Cristo.
- Meus amigos - disse-lhes então Haydée - pelo amor de Deus, façam com que o meu inocente filho participe do pão que estão comendo.
Os pobres cercaram logo a formosa e jovem mãe, apresentando à criança um pedaço de pão. Haydée separou com os dedos uma pequena parte, e introduzindo-a nos lábios do filho, disse-lhe:
- Come, meu filho: é o pão de Deus. Agora dá um abraço a esta boa gente que nos cerca. eles são muito teus amigos, e tu hás-de ser amigo deles.
Para logo aquele pequeno grupo se tornou o alvo de todas as vistas. Todos se chegaram para o local da famosa cena da comunhão, bastante surpreendidos pela contricção sublime que haviam encontrado em Haydée.
O conde de Monte Cristo ficou por momentos separado da esposa e do filho.
O povo corria para aquele ponto, ávido, curioso e incansável de ver e de pasmar como sempre! Foi então que Haydée, imprimindo um beijo no rosto do filhinho, o entregou aos braços de um dos mendigos. Este abraçou-o e passou a criança aos abraços de outro.
Haydée, que o seguia com a vista, lançou repentinamente um grito agudíssimo que sobressaiu com horrível expressão de angústia no silêncio geral e profundo que reinava então. Este grito de uma angústia extrema foi logo seguido pelo rumorejar cavernõso de mil vozes humanas, semelhante ao som longínquo do trovão.
O conde de Monte Cristo, avançando pelas massas compactas do povo tentou chegar até sua esposa; esta era arrastada diante dele, pela onda viva do povo! Em breve todo aquele mar de cabeças humanas começou a encapelar-se com aspecto assustador.
A desordem e a confusão tornou-se repentinamente em ordem de toda aquela cena. Todos gritavam e se moviam sem um pensamento determinado, e superior a todas as vozes, a todos os gritos de dor, desespero e raiva, distinguia-se uma voz que dizia estas palavras: "Meu filho! Meu querido filho!" Era a voz de Haydée.
Antes que a polícia pudesse apaziguar o tumulto da praça, muitas rixas de combatentes se haviam travado e muitos corpos tinham sido espezinhados sem dó, sem piedade.
O conde, silencioso, lutando sempre contra as massas que lhe embargavam o passo rompia na direcção em que supunha encontrar Haydée. Nem um grito se escapava daqueles lábios, nem uma lágrima orvalhava as faces pálidas do conde, cujas forças pareciam redobrar à proporção que a dificuldade crescia. Finalmente a polícia conseguiu dispersar o povo; a praça de S. Marcos tinha inteiramente mudado de aspecto. A mesa do festim estava inteiramente despedaçada. As portas da igreja, as janelas dos palácios estavam cautelosamente fechadas: os gemidos das vítimas eram a orquestra lúgubre daquele campo de sangue.
O conde, erguendo-se então sobre a base de uma das colunas do pórtico da igreja, dominou com olhar de fogo todo o quadro que se desenrolava diante dele. De repente, desceu e correu na direcção de uma mulher que estava de joelhos num dos ângulos da praça com a cabeça descaída sobre as espáduas e os olhos fechados.
- Haydée! Haydée!... - bradou ele, levantando-a nos braços como se ela fosse uma criança. - Oh! Maldição! Maldição eterna sobre mim, fui um insensato!
Depois, tirando da algibeira um pequeno frasco, lançou algumas gotas de licor verde nos lábios de Haydée. Ela abriu os olhos, estendeu os braços, e estremeceu como se o sangue tornasse a circular-lhe nas veias.
- Onde está o meu filho? Oh! Roubaram-nos o nosso filho! O nosso querido filho!
- Haydée - respondeu o conde de Monte Cristo com um sossego tal, que contrastava singularmente com a expressão amarga que havia em sua esposa. - Deus assim o quis!
Capítulo 44
A carta
Os jornais literários e políticos narraram com a redacção minuciosa que os caracteriza o drama singular do festim ou jantar dos pobres. A polícia, por melhor servida que se supusesse, não pôde descobrir o verdadeiro fim daquele tumulto, nem o raptor do filho de Monte Cristo.
Haydée contava que tinha entregado o menino nos braços dos quatro mendigos, vira ràpidamente um homem estranho apoderar-se dele e desaparecer em seguida pelo meio do povo. Então começaram as diligências e as pesquisas por outro lado. Tendo-se combinado os factos, deu-se por certo que o cigano estava de acordo com o raptor, ou era o próprio raptor. Imediatamente os esbirros se lançaram em todos os lupanares da cidade para ver se podiam descobrir o cigano.
Entretanto o conde recebia as visitas de sentimento de todas as famílias venezianas. O sossego e a resignação com que ele sofria aquele golpe,
alcançava-lhe a simpatia de Veneza inteira: porém Haydée que era mãe, Haydée, que não possuía o grau de resignação do conde, chorava sem cessar a perda do filhinho: e os médicos aconselharam ao conde que sem demora a afastasse de uma terra que lhe avivava em tudo e por tudo, aquele sentimento doloroso que a pungia.
Há fatalidades que fazem vergar as mais firmes convicções! O conde de Monte Cristo não podia esquivar-se àquele peso fatal de tão repentina quanto imprevista desgraça. Qual era o inimigo misterioso que o acometia? Qual seria o seu crime para merecer aquele castigo, aquele golpe, que só compreende quem é pai, quem haja visto e amado dia a dia, um filho que cresce e se desenvolve como para satisfazer as nossas mais caras ilusões.
O conde de Monte Cristo, assim como todos -os homens cuja pátria é o mundo inteiro, que têm experimentado a desgraça no seu auge de amargar
E a felicidade no seu último acesso, possuía a placidez, o sangue-frio, a presença de espírito necessário para calcular a sorte e combatê-la; porém por onde podia ele então conduzir o seu cálculo? Onde poderia ele alcançar os dados suficientes para formar o seu primeiro raciocínio, deduzir a causa pelos efeitos?
Há pesares tão vastos e profundos em que o homem mais inteligente se perde como o átomo no caos.
Era impossível conhecer o raptor da criança; era impossível prever a causa daquele procedimento, era tudo impossível excepto a ilusão. A ilusão alimentou pois a esperança de Monte Cristo.
A maneira do náufrago que depois de haver procurado por muito tempo distinguir a ponta de um rochedo em que se salve, repelindo ainda a ideia da morte, espera flutuar nas ondas até que o socorram, o conde de Monte Cristo procurou convencer-se de que algum bando de salteadores se havia apoderado da criança com o fim de exigir depois o resgate dela. Assente esta suposição, logo ele a comunicou a Haydée, fazendo-lhe compreender que não havia nada mais natural, pois ele conhecia bem o carácter dos salteadores italianos! Muito tempo se passou nesta esperança.
Haydée definhava progressivamente ao peso da sua infelicidade! É que o conde de Monte Cristo não possuía em todos os seus tesouros o preço necessário para a evitar!
Ele conheceu então que neste mundo tudo cede ao poder de uma riqueza infinda, mas que nunca o homem será suficientemente poderoso para fazer mudar um só ápice da vontade de um ser omnipotente, a que se chama Deus. Ele conheceu a facilidade com que o destino nivela os homens, apesar da diferença de haveres que entre eles existam!
"Oh!" meditava o conde. «Teria eu alguma vez empregado mal o poder que Deus me havia concedido sobre todos os homens? Não premiei sempre a virtude? Não fui eu sempre inexorável contra o crime? Surgindo das ondas pobre e só, entro de novo no
mundo, porém sábio e inteligente para o compreender! Deus fez-me grande e poderoso, como para me pôr superior às leis dos homens! Então caminhei sem o menor embaraço, zombando sempre de muitas leis absurdas, e cuspindo em muitas reputações falsas, empunhando sempre o gládio de uma justiça pura, meditada em muitos anos de estudo! Quando foi que o seu sangue inocente manchou aquele gládio famoso?"
De repente, o conde empalideceu, como se uma voz misteriosa lhe houvesse murmurado ao ouvido a resposta àquela simples pergunta.
"Meu Deus!» dizia ele. «No jazigo das famílias de Villefort e S. Méran está o cadáver de uma criança morta por mim! Será meu filho o preço terrível daquela vida que eu extingui? Oh, insensato! Julguei-me iluminado na terra, e errei como o homem de mais obscura inteligência! Julguei-me grande no mundo, e sou pequeno e fraco logo ao primeiro golpe da justiça do céu! Meu filho! Mas porque deverás pagar tu o erro de teu pai? Ah! É que os erros dos pais recaem nos filhos até à quarta e quinta gerações! Sim, foi essa a minha doutrina! Foi sacrificando a felicidade dos filhos, que eu me vinguei do crime dos pais. Meu Deus, Tu queres agora demonstrar-me o absurdo dessa lei evangélica inventada pelos homens? Eu o conheço! Eu o conheço!"
Era assim que o conde de Monte Cristo, como filósofo, curvava a fronte sob o golpe da justiça de Deus; porém como homem e como pai não deixava de imaginar um meio qualquer que o levasse a encontrar o filho.
Escreveu para Paris, a Maximiliano Morel, para a carta lhe ser remetida a qualquer ponto onde ele estivesse, contando-lhe a catástrofe do jantar dos pobres e pedindo-lhe que não descansasse um momento no trabalho de procurar um vestígio, um sinal, que pudesse indicar o lugar onde se encontrava o filho de Haydée.
Quinze dias depois de ter escrito, recebeu ele uma carta das mãos de Rosina, filha dos contrabandistas, que o procurou na Giudecca.
- Excelentíssimo, é o senhor o conde de Monte Cristo?
- Sou eu, sou, que me quer?
- Entregar-lhe uma carta, senhor.
- Donde vem ela?
- Isso é pergunta que só S. Marcos seria capaz de responder. Enviou-ma meu pobre irmão Pietro. O que posso fazer é contar-lhe a triste história de Pietro, e por ela talvez o senhor conde saiba donde ela vem.
- Conte-me primeiro a história - disse Monte Cristo, recusando-se a receber a carta.
- Veio a este porto um barco denominado Tormenta, cujo capitão era um homem muito singular, que segundo afirma Pietro, tem uma mão de finado, e com ela pode tudo!
A estas palavras a fisionomia do conde modificou-se, e encarou com olhar penetrante o rosto singelo da veneziana.
- Esse homem - continuou a rapariga - com o intento de se dirigir à ilha de Monte Cristo, apoderou-se de meu irmão Pietro, e com ele saiu do Lido, vai em dois meses e meio. Por mais que chorasse e trabalhasse para alcançar a liberdade de Pietro, nada pude conseguir até hoje, e só de tempos a tempos é que recebo notícias dele.
- Então que mister desempenha seu irmão a bordo do Tormenta?
- É, segundo creio, piloto. Pietro conhece bem o Mediterrâneo, e sabe atinar com a ilha de Monte Cristo; por isso o levaram para bordo do maldito barco.
- E depois?
- Escreveu-me ontem, dizendo-me que tinham saído da ilha, onde tudo ficava em paz; e enviou-me esta carta escrita pelo capitão para lhe ser entregue.
- Dê-ma - disse o conde estendendo a mão.
O conde abriu a carta e afastou-se para o vão de uma janela, colocando-se de modo que Rosina não lhe visse o rosto.
Eis o que a carta dizia:
- Edmundo Dantes:
O teu filho estará no último dia de Julho na gruta da ilha de Monte Cristo, onde comparecerás, só, para tratar do seu resgate.
O capitão do Tormenta
- Então, senhor conde? - perguntou Rosina.
O conde olhou para ela com atenção, sem lhe responder.
- Que esperas tu? - perguntou ele.
- Eu, senhor, espero as suas ordens.
- Queres enviar a resposta desta carta ao teu irmão, ou ao capitão do Tormenta?
- De modo nenhum, isso seria impossível porque não conheço meio de
corresponder-nos!
- Ignoras então quem te dá as cartas dele?
- Lá isso não; é o Giacomo.
- Quem é esse Giacomo?
-O gondoleiro do Rialto, que as vai buscar de quando em quando a uma das fendas da cantaria do canal Orfano.
- Logo, se responder a esta carta e se mandar ali a resposta, é certo que também hão-de ir
buscá-la?
- Não, senhor; eu já tentei o mesmo, e a carta lá ficou sem que ninguém lhe tocasse, até que eu mesmo a retirei.
- Está bem; retira-te em paz - respondeu o conde.
Depois dela ter saído, o conde leu segunda vez a carta. Em vão procurou conhecer o talhe da letra; era ela firme e rasgada, anunciando a resolução da pessoa que a escrevera.
Era mister que o conde fosse à ilha de Monte Cristo para fazer o resgate do seu filho, que estava sem dúvida nas mãos de alguns salteadores: ora o conde conhecia bem o carácter desses homens, e não hesitou em ir tratar com eles.
Depois de se despedir de todas as famílias que lhe haviam testemunhado interesse, e agradecendo com a urbanidade que o caracterizava a maneira porque o signor Gradenigo o tinha recebido, partiu com Haydée para a bela cidade de Medicis, onde ele, pela diligência do seu mordomo, contava ir já encontrar um magnífico alojamento próximo do delicioso paraíso denominado Chaschinas.
CAPíTULO 45
A estrada de Florença a Mântua
Assim como em Veneza, logo se ficou sabendo em Florença a próxima chegada do conde de Monte Cristo. Este homem, que um acaso havia tornado célebre nos anais da opulência europeia, estava relacionado em todas as cidades, e por isso o seu nome despertava sempre um eco de vivo interesse _em qualquer país em que fosse pronunciado.
O conde saindo de Veneza, deveria dirigir-se por mar até Mântua, donde se dirigiria a Florença, depois a Piza, e deste ponto embarcaria de novo para a ilha de Monte Cristo.
Enquanto ele e Haydée se demoravam um instante em Mântua para seguirem o seu caminho para Florença, dois homens, cavalgando na direcção desta cidade, acabavam de se deter junto de uma fonte arruinada, cuja água, depois de passar sobre uma enorme pedra, caía numa pequena cova aberta no terreno para a receber.
Os dois viajantes vinham cobertos de poeira, bem como os cavalos, cujas ventas dilatadas tremiam com o movimento de uma respiração profunda e agitada.
- Queres água, mestre? - perguntou um dos viajantes, olhando à sua volta. - Ali tens uma fonte.
- Não por mim, mas por este inocente - res-pondeu o segundo, abrindo a capa e olhando para dentro dela.
- Então? - perguntou o outro com interesse. - Vive - respondeu ele.
- Deus protege-o.
Seguiu-se um breve momento de silêncio, durante o qual o último que tinha falado - e que parecia italiano pela nitidez da pronúncia, pôs o pé em terra, e estendeu os braços como para receber um fardo que o companheiro lhe havia de entregar. Com efeito, o que tinha permanecido a cavalo desembaraçou-se da capa e depositou nos braços do que estava a pé, uma criança de três para quatro anos, envolta num véu negro: este homem apeou-se em seguida e dirigiu-se para a fonte, onde os cavalos já estavam também a beber.
Os dois viajantes olhavam com atenção para A criança, que parecia despertar pouco a pouco. O que a tinha nos braços elevou o pé direito apoiando-o na pedra da fonte, e descansou o corpo da criança sobre a perna, enquanto a mão esquerda a desembaraçava do véu negro em que estava cuidadosamente oculta.
Era singular aquele quadro! As fisionomias tur-vas dos dois viajantes, o seu olhar sombrio, contrastavam com a expressão suave e angélica do rosto da mísera criança. Ela abriu os olhos, e encarando aqueles dois homens estranhos que a acompanhavam, tornou a fechá-los, como se quisesse evitar ter medo deles.
Depois soltou um gemido brando, que parecia um desses sons que o roçar de uma flor desprende da corda de uma harpa. Aquele gemido tinha na doçura expressão de saudade; parecia querer dizer: ampara-me, Deus! Era a tradução ingénua que os lábios infantis davam ao sentimento daquele coração puro.
- Para que fim te conserva Deus a existência!? - murmurou um dos viajantes, chegando a água aos lábios da criança. - Que futuro te será reservado neste mundo de intrigas, de vícios e torpezas, onde em cada flor não há mais do que um embuste, um pobre ali disfarçado na fragrância dela. Melhor fora que só acordasses do teu sono, para te sentares entre os anjos no banquete do céu! Sim, melhor fora isso, do que viveres na terra exposto aos suplícios que os homens inventaram a si próprios, e aos quais chamam filhos do acaso! Como descansas sossegado sob o peso de um futuro inteiro de trabalho! Como respiras com prazer este ar em que talvez um dia julgues respirar veneno! Como te fora melhor deixares de existir!
Dizendo isto, descansou a mão direita sobre a coronha de uma pistola que tinha ao lado do cinto.
- Alto lá, Benedetto! - bradou o companheiro. - Creio que não desejas carregar-nos com o crime de infanticídio!
Crime! - repetiu Benedetto com uma gargalhada irónica. - A que chamas tu crime, Peppino?
“É acaso um crime poupar o inocente ao martírio de uma existência penosa? É acaso um crime enviar a Deus o que é de Deus, porque não lhe tocou ainda a podridão deste mundo? Julgas tu que a morte seja sempre um mal? Repete essa palavra ao ouvido desse inocente e talvez ele te responda com um sorriso meigo, como para agradecer-te a ideia. A morte, meu amigo, é um mal para o homem em cuja existência agitada há o remorso! É um mal para aqueles que não sofrem e que não sabem ver neste mundo mais do que um jardim de mimosas flores! Mas para quem não treme do que haja praticado, para quem não crê nos prazeres mundanos, para quem adormece tranquilo como esta inocente criança, a morte não tem horrores, a morte é um bem! Oh! O que assusta o homem que mais deseje a morte, é a transição da vigília para o sono eterno.
É esse pequeno período, que a voz humana não pode explicar-nos depois dele haver decorrido; mas que por isso mesmo o imaginemos mais terrível do que ele seja na realidade! Ora esta criança não treme nem pensa neste momento de transição, logo não sofre, e eu não serei criminoso, porque o não faço sofrer. Pelo contrário, vivendo ele, não serei eu então muito criminoso por o haver exposto ao sofrimento do trabalho e aos revezes da fortuna? Tu bem o sabes; esta criança vai entrar no mundo só, nenhuma voz amiga a chama, nenhuma mão protectora a espera para a conduzir... vai, sem nome e sem fortuna, cansar o seu corpo no trabalho e beber o cálice da amargura, longe dos seus carinhosos pais, sem que uma lágrima sequer vá adoçar esse cálice.
- Pois bem! - respondeu Peppino. - E que certeza tens tu de que farás passar essa criança da vida à morte, sem lhe causar o mínimo sofrimento?...
Benedetto sorriu-se.
- Experimentemos...
- Baccho! “Deves ter grande confiança em ti mesmo! Supõe que por um desses muitos acasos que fazem falhar o tiro de uma pistola, a bala se desviava e não se introduzia no lugar conveniente para fazer sair a vida? Havias de repetir o tiro, e entretanto, esse inocente gritaria nos paroxismos da morte: era então um estrangulamento, um assassínio sangrento. Vamos, mestre, deixemo-nos dessas piedosas ideias mortíferas e montemos a cavalo; porque a noite não é coisa boa para nós, nestas circunstâncias.
- Tu dizes conhecer bem todas as estradas da Itália?
- Perfeitamente! Florença ainda nos fica longe.
- É o lugar indicado para depósito deste fardo vivo?
- Deixe-me orientar! - respondeu Peppino, passando a mão pela fronte. - Adiante da primeira fonte arruinada há um atalho, à direita, que desce a um vale; entrando no atalho, a coisa de cinquenta passos, há uma cabana de guardador, havemos de bater a essa porta sete pancadas.
Um quarto de hora depois era noite completa, e eles achavam-se em frente de uma cabana, cuja porta permanecia fechada. Peppino, tendo-se apeado, bateu as sete pancadas nessa porta com o cabo do seu chicote. Um instante depois, abriu-se a porta, e os dois viajantes acharam-se cara a cara com um homem alto, magro, cujo rosto macilento, aclarado pelos reflexos trémulos de uma luz que ardia no interior da cabana, tinha uma expressão sinistra. Este homem, como se estivesse acostumado a ver nas trevas, lançou sobre os dois viajantes um olhar indagador e esperou em silêncio que eles se explicassem.
- Arnica - disse Peppino - bem pode acomodar os nossos cavalos e voltar para conversar connosco porque vimos depositar as nossas bolsas nas suas mãos.
- Que é isso? - perguntou o homem, abrindo grandes olhos ao ouvir a palavra bolsas.
- Vamos, faça o que lhe digo e volte sem demora.
A este tempo, já Benedetto havia posto pé em terra; o homem tomando então os cavalos pelas rédeas, indicou aos viajantes o interior da cabana, e fazendo um pequeno rodeio exterior, desapareceu costeando o frágil edifício. Benedetto e Peppino ficaram por momentos sós.
- Então é este o homem a quem devemos confiar o filho de Edmundo Dantes? - perguntou Benedetto.
- Este homem é casado e a mulher, segundo me asseguram, é excelente criatura.
- Não obstante participar de alguns vícios do marido?
- Todos nós cometemos erros neste mundo! - retorquiu Peppino. - Além disso, essa criança não está ainda em idade de compreender nem de imitar. Silêncio, ouço passos...
Mal Peppino acabava de dizer estas palavras, quando assomou na porta interior da cabana uma mulher de meia idade, sustentando nos braços uma criança.
- Boa mulher - disse-lhe Benedetto, fixan-do-a - deve ficar sabendo que a tenho em conta de excelente pessoa, não obstante o que por aí se diz de seu marido; isto é, apesar de muita gente asseverar que desde Mântua até Piza não há um caçador mais certeiro nas suas pontarias.
- Pelo amor de Deus, signor! Nem tudo o que se diz é verdade! Geralmente, todos olham de má cara para um triste caçador de contrato, mas eu posso assegurar-lhe que o meu pobre marido possui um belo coração!
- O fim que me conduz aqui é diferente: pouco me importa saber das boas qualidades do seu marido. Entrego-lhe uma criança para cuidar dela.
- Uma criança!
- Ei-la.
- Parece-me doentinha! - exclamou a mulher, levantando-se e mirando a criança à claridade frouxa da pequena luz.
- É robusta e sadia - disse Benedetto - este abatimento em que está, é devido à longa jornada que vem de fazer deitada neste braço mal jeitoso e adormecida contra este peito de pedra! Em poucos dias verá como ela sorri ao lado do seu filho, e como lhe dará o nome de irmão logo que comece a falar.
- Se eu fosse curiosa, perguntar-lhe-ia se é seu filho, signor.
- Boa pergunta! Mas se eu quisesse responder-lhe, diria que a maior desgraça que se pode experimentar é ser órfão de mãe!
- Pobre inocente!
- Deve por esta circunstância fatal ser credor do seu interesse, tome-o pois nos braços, e junte-o ao seu filho.
- É uma menina...
- Tanto melhor - tornou Benedetto - será irmã dele.
Dizendo isto, Benedetto entregou a criança nos braços da mulher do caçador, e sentou-se ao lado dela. Peppino estava à porta da cabana e parecia escutar com atenção um rumor longínquo que vinha morrer ali.
- Esta criança - disse Benedetto a meia voz para a mulher - tem, como lhe disse já, a desgraça de ser órfã de mãe. Eu não posso ligá-la por enquanto a mim, porque as nossas idades nada têm de comum, e além disso esta criança seria ao meu lado o padrão de um erro. É mister que ela viva longe de mim, que desconheça a quem deve o ser, que desconheça o mundo falsário em que nasceu! Sim, crie-a e eduque-a, como educa sua filha; deixe-as correr ambas, nesses prados, nessas campinas, livres como borboletas, ou como os pássaros. Ensine-a a conhecer Deus, em si próprio e em tudo quanto o cercar. E quando alguma vez ela lhe perguntar a quem deve o ser... responder-lhe-á que é esse um segredo perdido nas trevas da noite e que ninguém neste mundo seria capaz de lho explicar!.. Por enquanto dirá a qualquer estranho que esta criança é seu filho.
- Sim - respondeu a mulher - di-lo-ei; e po-derá passar por gémeo de minha filha.
- Como quiser. Tome este dinheiro, minha amiga: esta bolsa contém duzentas piastras e de hoje a três meses, terá essa quantia dobrada.
- Muito bem, senhor, fique descansado que eu tratarei o melhor que puder este pobre inocente; hei-de criá-lo para a minha filha - continuou ela sorrindo-se para as duas crianças que estavam nos seus braços. - Diga-me, senhor, como se chama este inocente?
- Eduardo - respondeu Benedetto.
A este tempo ouviu-se a distância um tiro de fuzil. A mulher empalideceu, e Benedetto murmurou:
- O seu marido anda à caça? Olá! - continuou ele dirigindo-se a Peppino. - Em que distância de nós calculaste o tiro?
- De cem a cento e vinte passos - respondeu Peppino com firmeza, como se esperasse aquela pergunta.
Em que direcção?
- Na mesma em que parámos haverá hora e meia. Posso afirmar que a cento e vinte passos de distância de nós se preparou alguma emboscada. Deve haver um quarto de hora que eu sentia rodar uma carruagem que se aproximava com rapidez. Ouvi o tiro de fuzil e logo um pequeno grito de mulher.
Peppino, que se dirigira para a porta, continuou: -A carruagem parou. - Benedetto olhou para o rosto da mulher e viu que estava pálida.
- Vamos, retira-te da porta, e fecha-a.
- Creio que alguém vem correndo com precipitação para este lado - murmurou Peppino.
e-Deve ser o marido desta boa mulher, que volta de recolher os nossos cavalos.
Com efeito, um instante depois, apareceu o caçador com as mãos nos bolsos e completamente desarmado. A sua fisionomia estava tranquila.
- Boa noite, amigo! - disse-lhe Benedetto, com todo o sangue-frio. - Rogo-lhe que nos dê alguma coisa de comer, porque partiremos antes da madrugada. Eu já falei a sua mulher, e agora recomen-do-lhe que reparta o seu amor paternal com o com-panheiro da sua inocente filhinha.
- Ah! - murmurou o caçador, lançando um olhar oblíquo para a mulher. - Pode ficar certo, meu cavalheiro, que se ele é rapaz, tão depressa possa firmar-se nas pernas, lhe emprestarei para brincar os feches velhos de uma espingarda, e lhe armarei ali num banco a sela de um cavalo.
- Assim o desejo. Esta criança deve ser educada de modo que não trema ao aspecto do perigo ou do trabalho; finalmente, que seja valente e corajoso.
- Vai acomodar os pequenos lá para dentro e depois trata de arranjares a ceia para estes senhores - disse o caçador - contentar-se-ão com a caça que por aqui há pelas vizinhanças, e com alguma hortaliça da minha terra.
- Vamos, senhor, quer despedir-se deste menino? - perguntou a mulher para Benedetto, apresentando-lhe a criança.
- Desejo-lhe força e coragem para entrar no mundo! - murmurou Benedetto, afastando mansamente com o braço o corpo da inocente criança.
A mulher não insistiu e desviou-se para o interior da cabana a fim de deitar os pequenos. O caçador correu os ferrolhos da porta e pendurou a sua candeia de ferro num prego que estava no umbral da janela, como se quisesse que o pequeno reflexo da chama fosse visto em distância: depois sentou-se silenciosamente ao lado da mesma janela e encostou a face na mão. Pelo espaço de um quarto de hora, incidente algum quebrou o silêncio que reinava na cabana.
Benedetto estava de pé, apoiado à parede e com a mão direita metida no peito; tinha o olhar pre-gado no chão e a fronte carregada; parecia meditar profundamente. Peppino, sempre com o ouvido atento, mostrava o interesse com que esperava um resultado qualquer do que havia observado. Finalmente, ouviram-se passos na azinhaga e logo após uma pancada na porta, ao mesmo tempo que uma voz de homem dizia em italiano:
Abram, abram, boa gente, que não ficarão mal.
A estas palavras o caçador levantou-se logo, dispondo-se a abrir a porta; porém Benedetto, avançando com rapidez, deteve-o.
- Não quero ser visto! - disse ele a meia voz.
- Não há perigo - murmurou o caçador.
- Então, venha daí.
Benedetto e Peppino seguiram o caçador para o interior.
- Ficarão aqui tão escondidos, como se estivessem a dez milhas de distância - disse-lhes o caçador - aquela porta que além vêem, dá para o quarto onde dormem as duas crianças; por cima, é outro quarto pequeno, que está devoluto. Fiquem em paz.
Dizendo isto, voltou sobre os seus passos e Benedetto sentiu correr os ferrolhos da porta da cabana.
- Bom pastor - disse um homem entrando apressado - poderá prestar algum socorro a meu amo, cuja carruagem não pode continuar a jornada, por lhe faltar um cavalo?
- Falta-lhe um cavalo?
- Falta. Foi atravessado por uma bala e com-tal certeza que dá honra ao maldito caçador! Eu iria jurar que não havia má gente por estas paragens.
- Ora, histórias! Naturalmente a bala não levava sobrescrito para o cavalo!
- Sim, talvez que o levasse para o cocheiro! O diabo leve a sua lembrança.
- Não digo isso! Digo que me parece ser essa catástrofe devida simplesmente ao acaso de se haver disparado a espingarda de algum guarda. Também posso afiançar-lhe que se tivessem querido varar o cocheiro, não varavam o cavalo! O mais somenos atirador destes sítios é capaz de furar uma laranja a cinquenta ou sessenta passos de distância.
- Baccho! Então o que fará o mais hábil?
- Faria saltar o fundo de uma garrafa, metendo-lhe a bala pelo gargalo, e na mesma distância - respondeu o caçador com certo orgulho selvagem.
- Admiro tanta certeza; mas não o contradigo, porque não posso entrar agora em grandes questões; entretanto, se meu amo vier aqui pernoitar enquanto manda vir novo animal, nós falaremos.
- Quem é o seu amo?
- O amigo é muito curioso antes de tempo! Ë um senhor natural de França, que esteve em Veneza e que vem de Mântua para Florença.
- Eu cá por mim ofereço-lhe quanto possuo: é o que se vê; se S. Ex.a quiser honrar-me, que venha para aí.
- Prepare pois o melhor que lhe for possível neste pequeno albergue, enquanto eu corro a pre-venir S. Ex.a.
O criado correu na direcção da estrada, e o caçador, sorrindo com certo ar de escárnio, murmurou:
- Apesar de ser pequeno o albergue, já muito grandes excelências o têm demandado com as lágrimas nos olhos! Vamos, mais vale dar cabo de um dos cavalos do trem do que partir um braço ao cocheiro. Não é costume enforcar gente na Itália por matar cavalos.
Entretanto, Benedetto e Peppino ardiam em curiosidade de saber o que sucedia, e enquanto Peppino foi pessoalmente informar-se, Benedetto começou a observar com escrupulosa atenção o lugar em que estava. Era um quarto pequeno, que teria oito ou nove palmos quadrados; a parede da esquerda, formada por um tabique muito débil, estava cheia de fendas, pelas quais se via o interior de outro quarto, onde ardia uma pequena luz, cujos raios avermelhados aclaravam um berço pequeno cheio de macia palha em que estavam deitadas duas crianças.
Havia uma porta neste tabique; porém estava fechada pela parte de fora. Benedetto ia chamar alguém para mandar abrir aquela porta, quando apareceu Peppino.
- Silêncio! - murmurou este. - Chegaram dois viajantes que, segundo me consta, vão pernoitar aqui, enquanto não chegam novos cavalos para a sua carruagem. Parece-me que o tal caçador mata os cavalos por especulação; vamos, é um modo de viver mais decente do que muitos outros que eu conheço.
- Quem são os viajantes?
- Pouco importa isso! - respondeu Peppino. - Eu não sei.
- Em todo o caso, preciso ficar para vigiar a criança; os viajantes são curiosos... e eu estou com alguns receios dos tais viajantes! Peppino, tu vais partir já para Florença...
- Que diabo dizes tu? Partir...
- Assim é preciso, tenho algumas instruções a dar-te.
- Nada, eu não te abandono neste momento, porque, enfim, os viajantes trazem criados; mais valem dois homens contra quatro ou cinco, do que um contra três!
Benedetto não respondeu; começou a passear de um para outro lado, e sentindo rumor, foi colar o ouvido na parede para escutar.
O som de diferentes vozes, coado pelas fendas do frágil edifício, chegava àquele ponto de um modo tal que não era possível compreender uma palavra; todavia, Benedetto conheceu que uma mulher estava na casa à entrada da cabana, porque um rumor confuso de ddiferentes vozes enfraquecia por vezes, e deixava distinguir simplesmente as últimas sílabas de algumas palavras ditas por uma só voz fraca. Entretanto nada mais era possível conhecer. Benedetto esperou.
Meia hora depois, sentiu ele alguns passos no pavimento superior àquele em que estava; pareceu-lhe que preparavam uma cama: sentiu fechar a porta exterior da cabana e tudo voltou ao silêncio. Foi então que Benedetto esperou ouvir algumas palavras que o elucidassem. Com efeito, distinguiu a voz da mulher do caçador que falava com alguém, cuja voz lhe pareceu estranha; porém não pôde conhecer de quem era.
- exactamente o que lhe digo, Excelentíssimo; não há mais ninguém em casa.
- Todavia, há um quarto por baixo daquele que nos ofereceu, e sei que não dorme nesse quarto: porque motivo não pode dispor dele?
- Está enganado! o quarto onde estão os meus gèmeozinhos; ao lado, há outro que serve para guardar os utensílios do campo, e que não está capaz!
- Espere, falou dos seus gémeos! O seu marido disse-me que não tinha senão uma filha!
- O meu marido sempre assim fala! O outro é tão doentinho, que poucas esperanças nos dá!
- Que idade têm eles?
- Vão fazer dois anos.
Pobres inocentes! Gostaria de vê-los.
Ao ouvir estas palavras, Benedetto estremeceu.
- Eles dormem, Excelentíssimo.
- É o mesmo, vê-los-ei sem os acordar.
- É pai, Excelentíssimo? perguntou a mulher.
- Eu? Sou! - respondeu o homem.
- E com que tristeza o diz!
- é que a palavra pai produz-nos muitas vezes o efeito de um ferro em brasa ao passar pelos nossos lábios.
- E porquê?
- Porque Deus assim o quer! - respondeu o homem, continuando logo, como para se poupar a desgosto cruel.
- Mostre-me os seus gémeos; parece-me que é muito feliz quando olha para eles, os beija, e diz: “São meus filhos!” Não é assim, boa mulher?
- É isso tão verdade, Excelentíssimo, como é verdade o mistério da Virgem!
- Então venha...
- E se eles acordarem? Olhe que quando acordam são muito impertinentes e vão dar-nos a todos uma má noite!
- É escrupulosa, boa mulher! Muitas vezes che-guei eu alta noite ao berço do meu inocente filho e ele não acordava! Vamos, pois quero dotar os seus gémeos.
A palavra “dotar” não resistiu mais a mulher:
dirigiu-se logo para o quarto onde dormiam as crianças, e abriu a porta. Foi então que Benedetto alimentou algumas esperanças de conhecer quem era o homem que falava com a mulher do caçador.
Peppino começou a inquietar-se; levantou-se sem fazer o menor ruído e colocou-se ao lado de Benedeto, cujo olhar incendiado espreitava pelas fendas do tabique, para o quarto.
Logo que o viajante penetrou nesse quarto, logo que os raios avermelhados da pequena luz aclararam o rosto desse homem, o corpo de Benedetto contraiu-se como a fera quando vê diante de si o inimigo. Passou ràpidamente a mão pela fronte e apertou os dentes como para evitar que eles batessem de encontro uns aos outros; depois comprimiu o peito para regularizar a respiração e insensivelmente foi procurar a coronha das suas pistolas.
- Ei-los ali, Excelentíssimo - disse a mulher do caçador, afastando uma toalha que encobria as crianças, porém de um modo tal que o conde mal pôde distingui-las.
O conde de Monte Cristo avançou um passo para o berço onde estavam as crianças. Benedetto puxou logo uma das pistolas, engatilhou-a calmamente e, aplicando o cano a uma das fendas do tabique, pro-curou fazer pontaria ao conde.
- Que é isso? - murmurou Peppino, querendo retirar o braço de Benedetto.
- Acabo de ver o conde de Monte Cristo! E juro-te que no momento em que ele reconhecer o filho não terá tempo de lhe pronunciar o nome - res-pondeu Benedetto.
Mas isso é um assassínio!
- Cala-te, Peppino, ou estaremos perdidos!
- Repara, a mulher deixou cair a toalha sobre as crianças.
- Bem vejo! E Monte Cristo deu um passo para o berço.
- Excelentíssimo - disse a mulher do caçador - quer ficar aqui toda a noite?
- Tem razão; eu já vi os seus filhos, quero dizer, pareceu-me vê-los...
- Como assim?
- O que está do lado da parede, é o menino ou a menina?
- É o menino.
- Tem o rosto escondido no peito da irmã, e não pude vê-lo! Mas a menina é linda!
- Pobres anjinhos! - exclamou a mulher. - Prouvera a Deus que sejam felizes!
- De que modo encara a felicidade deles? - Terem que passar sem medo da miséria - disse a mulher do caçador.
- O trabalho dá essa felicidade - respondeu o conde - rogue a Deus que os abençoe. Como se chamam eles?
- A menina é Eugénia; e o menino, Eduardo.
O conde estremeceu ao ouvir este nome; depois lançando um olhar sobre o berço, saiu do quarto acompanhado pela mulher do caçador. Momentos depois, Benedetto ouviu a voz desta que dizia:
- Ah, senhor, é muito generoso! Quando os meus filhinhos crescerem, lhes direi o seu nome. Como é ele?
- Não digo. Quero antes que eles peçam ao Omnipotente pela felicidade de Eduardo!
Dizendo isto, o conde subiu a escada e entrou no quarto que ficava superior àquele onde estavam Benedetto e Peppino.
CAPíTULO 46
Surpresa
ANTES de nascer o Sol, já a carruagem do conde de Monte Cristo estava pronta para seguir a viagem, pois tendo morrido um dos cavalos, ele mandou buscar uma das mudas à primeira posta.
O conde e Haydée despediram-se da pobre família e caminharam pela azinhaga em direcção à estrada onde estava a carruagem: porém mais de uma vez, o conde se deteve e olhou para aquele singelo tecto de colmo da cabana, sem poder explicar a si mesmo porque motivo o fazia.
À medida que se afastava da cabana, sentia uma opressão singular, e parecia-lhe que não havia ar em volta de si para respirar.
Haydée, que caminhava apoiada ao braço do conde, também sentia iguais efeitos, e as lágrimas caíam-lhe das pálpebras involuntàriamente. Tanto um como outro, pareciam hesitar em se interrogarem.
Por vezes, os olhos aveludados de Haydée se encontraram em silêncio com os do marido; e outras tantas eles olharam para a cabana rústica onde haviam pernoitado.
Cinco minutos depois estavam junto da carruagem, cuja portinhola um dos criados foi abrir.
Haydée foi a primeira a entrar e olhou ainda para a cabana, que ficava no fim da azinhaga; o conde seguiu sua mulher, e quando ia também a olhar para a cabana, o criado fechou a portinhola, bradando:
- Pode seguir.
A carruagem rodou com velocidade ao longo da estrada, porém quando ia a voltar para deixar o valado o conde bradou então com a sua voz varonil:
- Pára.
A carruagem parou.
- Para que nos detemos ainda? - perguntou Haydée ao conde, que parecia sufocado.
- Olha - disse ele - não é ali, no fundo daquele vale, que fica a humilde cabana em que pernoitámos, Haydée?
- Sim... é ali!
O Sol já brilhava no horizonte e os seus raios descendo no vale, iam dourar o tecto da cabana, cuja chaminé exalava então um vapor azulado e transparente que pouco a pouco desaparecia no ar.
Monte Cristo e Haydée olharam por alguns momentos para a cabana.
Um sentimento inexplicável os oprimia à pro-porção que se afastavam daquele singelo edifício.
- Haydée - disse o conde - creio que deve ser bem feliz aquela pobre gente...
Oh!... Sim, muito feliz - respondeu Haydée, ocultando uma lágrima.
O conde conservou-se imóvel, com o olhar cravado na cabana que se distinguia no fundo do vale. Ele notou com espanto algumas colunas de fumo denegrido que começavam a elevar-se no centro do pequeno edifício; essas colunas engrossavam pro-gressivamente, e o conde inquietou-se; porém antes que tivesse tempo de tomar uma resolução, viu desfazer-se o tecto de colmo da cabana, e ouviu um grito de terror que parecia partir daquela direcção.
A vegetação do terreno impedia que o conde pudesse distinguir as pessoas que gritavam.
- Fogo!... Há fogo lá em baixo na cabana - disseram os criados do conde.
- Socorramos os infelizes! - bradou Haydée.
- É inútil - tornou o conde - vejo desfazer-se a cabana e a gente está salva, ouço-lhe os gritos! Deus os proteja... Sigam!
- Oh! Não, não, meu senhor! - continuou Haydée. - É bom e generoso: corramos a socorrê-los! Aquela boa mulher é mãe... talvez ficasse reduzida à extrema miséria. partamos pois.
O conde, não sabendo resistir ao empenho com que Haydée implorava o socorro, estendeu o braço pela portinhola da carruagem e fez sinal para que voltassem pelo mesmo caminho até à azinhaga.
A carruagem voltou imediatamente e quando ia a dobrar o valado, dois homens a cavalo, correndo à rédea solta, passaram por eles envoltos numa nuvem de poeira.
- Jesus! - murmurou Haydée.
O conde estremeceu, mau grado seu, e tentou reconhecer os dois cavaleiros; mas a velocidade que levavam obstou à sua tentativa.
Poucos momentos depois, a carruagem parou em frente da azinhaga, o conde apeou-se, e Haydée quis segui-lo até ao lugar do incêndio, onde se ouvia distintamente uma mulher gritar. Um montão de cinzas fumegantes estava no lugar da cabana onde o conde havia pernoitado.
- Cale-se, cale-se, boa mulher! disse Haydée em italiano, apenas chegou ao fim da azinhaga. - Não desespere da misericórdia do céu! Nós vimos em seu socorro!
- Miserável! - bradou a mulher do caçador erguendo as mãos fechadas em frente de Haydée. - Tu lançaste fogo à nossa cabana!
- Meu Deus! Que diz? -
- Digo a verdade!... O homem fatal, o homem maldito que te acompanha, sabe que eu digo a verdade!
- Está louca! - murmurou Haydée cóm amargura, voltando-se para seu marido, cuja fisionomia imóvel fazia contraste com a expressão de raiva que havia na mulher do caçador.
O conde olhou à volta de si, como se procurasse a figura repugnante do caçador.
- Não estou louca - bradou a mulher - não estou louca... Vocês é que mo parecem, pois não sei em que se fiam, para vir presenciar a vossa obra! Eu sei tudo! Os vossos cúmplices falaram de modo que eu ouvi! Eu sei tudo! Eu sei tudo! - repetiu ela com desespero, batendo o pé e arrepelando os cabelos.
- Boa mulher - disse então o conde de Monte Cristo, com o seu imperturbável sangue-frio e doce majestade - o excesso do seu desespero é terrível! Tranquilize-se e explique-me o que sucedeu.
- Ponha os olhos naquele montão de cinzas e nesse inocente que ficou sem pão! - respondeu o caçador acompanhando as palavras com um olhar feroz. - Os seus cúmplices, senhor, não o serviram bem desta vez!
- Que diz! - continuou o conde com ar severo. - Que cúmplices são esses a quem se refere? Sabe a quem fala?
- Sei e vou dizer-lho - disse o caçador, avançando.
- Senhor, fujamos! - gritou Haydée lançando o braço em volta do corpo de seu marido.
- Silêncio, Haydée: ouçamos este homem. Fale...
- Essa tenção tenho eu, já que não fiz a minha vontade, que era correr-lhe no encalço e furar-lhe o crânio com uma bala, como lhe furei ontem à noite o cavalo. Já que o não mato agora, porque os seus criados haviam de vingá-lo, vou falar e dizer quem o senhor é! É um miserável, ainda mais do que eu; eu vou espreitar na estrada a carruagem do viajante, depois faço-lhe cair um cavalo, impossibilitando simplesmente a jornada pelo espaço de algumas horas, e venho esperar na minha cabana que os viajantes aí pernoitem e me paguem algumas piastras; porém, o senhor tem por costume coisa pior! Anda viajando numa carruagem, e adiante de si manda dois homens com uma criança de dois para três anos; esses homens procuram a casa e pedem para guardar em depósito a pobre criança; é um embuste como outro qualquer: depois aparece, vai para a mesma casa, finge ser generoso para que não se lhe fechem as portas; sai em poucos instantes, tendo ensinado aos cúmplices o lugar em que lhe pareceu que se guardava dinheiro; os seus cúmplices roubam tudo, tomam a criança, lançam o fogo e desaparecem para irem reproduzir o seu embuste noutro lugar!
O conde nem pestanejou ouvindo tão estranhas quanto extravagantes palavras! Esperou tranquilo que elas acabassem, e quando o caçador se calou, disse:
- Muito bem, só o tempo me poderá defender de tão louca acusação! Entretanto permita que eu lhe ofereça os meios necessários para reedificar a sua cabana e comprar o pão de seus filhos: mas explique-se e fale-me com sossego desses cúmplices que me atribui, e dessa criança que eles traziam.
Dizendo isto, o conde ofereceu uma bolsa com dinheiro ao caçador, em cujos lábios assomou logo um riso de escárnio.
- Agradeço a sua generosidade, pois também sei qual é o dinheiro que me oferece.
É dinheiro falso! - bradou a mulher. -
É dinheiro falso! Eu bem o ouvi dizer aos seus cúmplices, quando eles conversavam alta noite!
- Guarde-o, meu fidalgo! - tornou o caçador. -
E vá para outro lugar em que não seja tão conhecido como aqui!
- Bom homem - insistiu o conde - está sem dúvida alucinado... Eu sou o conde de Monte Cristo!
- Fora daqui, impostor! - bradou o caçador batendo uma violenta pancada com a coronha da sua espingarda sobre a terra. - Fora, não insulte ainda por cima a desgraça!
- Fujamos, fujamos, eles estão doidos! - bradou Haydée
- Não, minha amiga, é preciso que eu saiba quem foi o autor desta vil intriga! Fale, em nome de Deus! Fale, bom homem; eu perdoo-lhe todas as injúrias que me tem dirigido, mas em nome de Deus, diga-me quem eram os homens que estiveram em sua casa, com uma criança.
- Você quer perder-me! - bradou o caçador, furioso, engatilhando a espingarda. - Mas eu meto-lhe uma bala no corpo, se me não livra da sua presença.
- Piedade! - gritou Haydée, colocando-se entre o caçador e o conde.
- Oh! Deus! - murmurou Monte Cristo, com aflição. - Será impossível eu conhecer este horrível mistério?
Nada havia ali que provasse a inocência do conde aos olhos do caçador; prolongar aquela cena de desconfiança era uma imprudência, portanto o conde de Monte Cristo, resignando-se à vontade do céu, afastou-se lentamente daquele lugar onde o seu nome ficava amaldiçoado. A cada passo, Haydée voltava tremendo a cabeça, para observar os movimentos do temível caçador, em cujas mãos estava ainda a espingarda engatilhada.
Momentos depois chegaram à carruagem que ficara na estrada, e ambos continuaram o seu caminho.
O conde, tendo fixado o rosto angélico de Haydée, levantou os olhos ao céu como se lhe pedisse protecção para ela: Monte Cristo pressentia talvez o que estava para acontecer. Ao voltarem do valado, ouviu-se a detonação de um tiro, e o conde e Haydée sentiram o sibilar de uma bala que atravessava a carruagem de lado a lado, passando a distância de um palmo pela frente deles.
O único recurso para evitar uma catástrofe, era a velocidade; portanto, o conde fez sinal ao cocheiro, e os cavalos partiram a galope. A carruagem desapareceu na estrada, entre nuvens de poeira; instantes depois, ouviü-se ainda um segundo tiro, porém a bala passou a grande distância.
O conde de Monte Cristo tinha enviado de Veneza para Florença, com antecedência de dezasseis dias, o seu mordomo, com ordem de fazer preparar o seu domicílio. O conde conhecia bem a inteligência do mordomo Bertúccio, e por isso estava certo de encontrar em Florença um bom alojamento durante os dias que ali se demorasse. Logo que Bertúccio apareceu em Florença, tratando de cumprir as ordens do conde, notou ele com assombro a indiferença com que recebiam as suas propostas de contrato: nem o afamado Poniatowik, nem os astutos Corsini-Monfort se vangloriavam de receber em suas casas o famoso conde de Monte Cristo, cuja opulência fabulosa era conhecida em todas as cidades não só da Europa como do Oriente e Ocidente. Poniatowik chegou a dizer francamente ao senhor Bertúccio, que não tinha o menor interesse em receber o conde no seu hotel, porque corriam certos boatos desagradáveis a respeito de S. Ex.' que não seria possível admitir em parte alguma.
Os Corsini-Monfort eram os únicos com quem Bertúccio poderia fazer algum acordo, porém a soma por eles exigida era tal, que mais valia alugar antes um dos belos edifícios próximos às Cachinas! Bertúccio foi imediatamente tratar de realizar esta última ideia, porém, nenhum dos proprietários se prestava às propostas de Bertúccio logo que este pronunciava o nome do conde de Monte Cristo.
Bertúccio começou a inquietar-se com isto; os dias tinham corrido com velocidade, ele não havia cumprido as ordens do amo, e o conde não poderia demorar-se em Florença mais do que vinte e quatro horas, quando muito.
Finalmente, recorreu ao préstimo de Corsini-Monfort cujo hotel era em verdade magnífico: satisfez a soma que eles exigiam e tomou metade do edifício, sujeitando-se às condições que os donos do hotel julgaram convenientes.
Uma delas era que todas as luzes seriam pro-tegidas por grades de alarme em roda dos globos de vidro, e que S. Ex.a não poderia ter em seu poder nada que fosse inflamável.
- Essa é muito boa! Então porquê? - perguntou o mordomo, admirado.
- Corre em Florença o boato de que S. Ex.' o senhor conde de Monte Cristo endoideceu, começando por manifestar uma mania na acção de lançar o fogo a um palácio que possuía na ilha de Monte Cristo! A mania do senhor conde de Monte Cristo é lançar fogo aos edifícios em que entra.
Em vão Bertúccio esgotou os recursos da sua eloquência para provar ao florentino o perfeito estado intelectual do conde de Monte Cristo, mas o florentino permanecia firme no que tinha avançado.
No dia antecedente à chegada do conde, Bertúccio viu que um caso particular concorria para dar razão ao florentino. Alguém contara em Florença que o conde de Monte Cristo, tendo pernoitado num pobre albergue na estrada de Florença, lhe lançara fogo no momento de partir! Entretanto, o conde chegou a Florença. Algumas pessoas conhecidas foram- cumprimentá-lo, mas de um modo tal, que bem davam a conhecer o dó que lhes causava aquele homem. Haydée estava mais abatida do que nunca; no seu rosto singelo como a rosa do Oriente, estava desenhada a expressão do grande desgosto que a consumia.
Em consequência do seu mau estado de saúde, não pôde o conde partir, como desejava, para a ilha de Monte Cristo, demorando-se alguns dias em Florença, esperando que Haydée melhorasse; porém a infeliz senhora parecia cada vez mais abatida, e os médicos afirmavam que qualquer fadiga de jornada, por muito pequena que fosse, lhe poderia ser fatal.
Tanto ela como o conde estavam vivamente impressionados pelo que sucedera na sua jornada a Florença; mas Haydée, ferida pela cruel dor de ter perdido o filho, não prestava tão grande atenção ao que tinha sucedido como o conde, cujo espírito superior lhe dava a força necessária para encarar a sangue-frio o perigo ou a fatalidade, por mais eminente que fosse um, e decidida a outra.
Noites inteiras passou o conde em Florença, ao lado do leito em que Haydée descansava, meditando sobre as palavras que tinha ouvido ao caçador. Quem seriam aqueles homens misteriosos e a criança que eles conduziam? Quem era o inimigo desconhecido que o perseguia? Deveria ele dar ouvidos ao que lhe tinha dito o terrível mascarado no baile do conde de Gradenigo em Veneza? O conde perdia-se em conjecturas; Entretanto a desgraça começava a oprimi-lo.
Cravou o olhar inteligente e firme no rosto de Haydée, cujas pálpebras estavam fechadas pelo sono, e pela primeira vez em toda a sua vida estremeceu com um pensamento íntimo, cuja tradução em palavras vulgares, seria talvez impossível.
Muitas vezes nos sucede isto. Há por vezes um pensamento que nos sobressalta; todavia, quando vamos tentar exprimi-lo em termos vulgares, conhecemos que era vago, que se não referia a uma imagem precisa ou determinada, mas compreendemos bem esse pensamento, sabemos ao que ele se refere. O conde estremeceu com um desses pensamentos involuntários e esse pensamento era o do arrependimento.
Sentia que a desgraça o ameaçava de tal modo que não seria possível combatê-la. Sentindo-se grande e poderoso, colosso formidável colocado por Deus entre os homens, calculava quão terrível deveria ser a sua queda, e então arrependeu-se de haver ligado a si aquela mulher inocente, a formosa Haydée. Era isto quanto o conde sentia e quanto ele poderia ter expresso em palavras, se tentasse exprimir com elas o seu pensamento.
Era alta noite, o conde levantou-se, imprimindo um beijo no rosto de Haydée adormecida, e afastou-se do leito em que ela repousava. Haviam já decorrido oito dias que o conde estava em Florença; e em todo esse tempo não tinha ainda res-pirado o fumo do tabaco; lembrou-se de acender o seu magnífico cachimbo e de se entregar àquela modorra aprazível que nos causa o fumo do bom tabaco.
Preparando pela sua mão o cachimbo, olhou em redor de si como para indagar a direcção da luz, porém a luz ficava muito alta e além disso estava defendida por um globo de vidro, metido dentro de uma rede de arame de latão. Notando isto, abriu a porta do quarto e saiu para a sala imediata, julgando encontrar ali algum criado, porque desde muito tempo que um criado ficava sempre de vigia na casa contígua aos aposentos do conde, por ordem dele.
Com efeito, aí estava um negro que parecia dormitar, sentado à moda oriental sobre a alcatifa. O conde despertou-o.
- Dá-me lume, Ali.
O negro inclinou a cabeça e saiu para obedecer: porém voltou instantes depois e fez alguns sinais com os braços em frente do seu amo, como se fosse mudo.
- Não querem dar-te lume? - disse o conde, traduzindo os gestos do negro. - Ali, talvez te não houvessem entendido bem!
- Sim! - fez o negro.
- Nesse caso irei eu mesmo pedi-lo; quando estou na Europa, acostumo-me a estes modos grosseiros de tratar os hóspedes num hotel público.
Dizendo isto o conde saiu para o corredor, distinguiu luz num pequeno quarto que ficava a pouca distância e para ali se dirigiu, empurrando logo a porta.
- Creio que o senhor é empregado do hotel? - perguntou Monte Cristo entrando num pequeno quarto.
- é verdade, há aqui o costume de ficar sempre um homem de serviço durante a noite.
Muito bem. Venho unicamente acender o meu cachimbo, porque os meus criados esqueceram-se de pôr o lume como costumam no meu quarto.
- E fumará aqui mesmo, à minha vista?
Porque faz essa pergunta?
- De contrário não consentirei que V. Ex.a acenda o cachimbo.
- Não consentirá? Porquê? É proibido fumar em Florença?
- Não, senhor, eu não me oponho a que fume, oponho-me simplesmente a que saia daqui, não o levando apagado.
- Asseguro-lhe que nunca me interessou tanto o diálogo! - disse o conde, tomando lume e fumando. - Desejo-lhe boas noites e vou para o meu quarto.
- Não sairá - repetiu o empregado colocando-se em frente da porta e do conde.
- Vamos! Está tonto de sono. O sono produz muitas vezes o efeito do vinho, entretanto aborrece-me o seu estado! Afaste-se.
Dizendo isto, o conde lançando brandamente a mão ao ombro do empregado tentou afastá-lo, mas o florentino firmou as mãos nos umbrais da porta
e conservou-se firme.
- Segundo vejo, quer impacientar-me!
- E o senhor transgredir as condições impostas por nós quando mandou tomar o aposento que ocupa nesta casa.
- Que condições são essas?
A principal é não acender lume nos seus quartos, ainda que seja simplesmente no cachimbo. E se tenta sair daqui, puxo aquele cordão e em breve virá alguém em meu socorro.
O conde ouviu com espanto as palavras do florentino e teve curiosidade de o interrogar mais.
- Então o que deu origem a essas condições, será segredo?
- Não sei, senhor conde: eu cumpro as ordens que me deram.
- É com receio de fogo?
- Creio que sim, senhor! Parece-me que por um destes simples descuidos ardeu, há muitos dias, na estrada da Florença, a cabana em que o senhor conde pernoitou.
E como sabe o senhor isso? – perguntou MONte Cristo estupefacto.
O dono dessa cabana é caçador e fornece o hotel com a sua caça.
Todavia deve ter-se confiança nas pessoas!
- Confiança numas e desconfiança noutras.
- Então desconfia de mim?
- De modo algum, entretanto a prevenção não faz mal.
O conde compreendeu tudo. Compreendeu que o acusavam de incendiário; porém como a justiça não o incomodava, muito fácil lhe foi cair neste raciocínio: “julgam-me doido!”
- Muito bem - disse o conde pausadamente e despejando o cachimbo - amanhã pedirei explicações minuciosas acerca do que sucede; por enquanto desejo-lhe boas noites.
O florentino cortejou-o, e ele passou. Em todo o resto da noite não pôde o conde dormir. A fatalidade perseguia-o de perto
- Oh! - murmurou ele com raiva. - mister que eu conheça o inimigo que me persegue.
No dia seguinte, chamando o seu mordomo, ouviu com afectada indiferença quanto ele por consideração lhe tinha até àquele ponto ocultado. Não havia outro meio de desmentir a voz pública senão sujeitar-se ao exemplo inquestionável do tempo.
Ao cabo de um mês, como Haydée se sentisse melhor, o conde resolveu partir para a cidade de Piza, onde Haydée deveria ficar, enquanto ele se dirigia à ilha de Monte Cristo. Os preparativos fizeram-se com a presteza habitual. Bertúccio tinha já partido com_ antecedência de quatro dias, depois de saldar as suas contas com a casa de Corsini; e o conde dando o braço a Haydée, desceu as escadas do hotel para entrar na carruagem que o esperava a fim de o conduzir até ao cais onde devia embarcar numa lancha para descer o rio. Uma hora depois, ele e Haydée estavam já longe da cidade; repentinamente os sons lúgubres dos sinos dando sinal de incêndio, chegaram-lhe aos ouvidos. O conde voltou a cabeça em direcção da cidade, e viu com horror uma nuvem negra de fumo que se revolvia sobre um grande edifício.
- Onde lhes parece que seja o fogo, meus amigos? - perguntou ele aos homens da lancha.
- Ia jurar que é no hotel Corsini! respondeu um deles depois de indagar com a vista a direcção do edifício em chamas.
Haydée, pálida como um espectro, olhou para o conde em cuja fisionomia estava a amarga expressão do desespero.
- Oh! - murmurou Haydée, a meia voz. Parece que deixamos a fatalidade por onde passamos!
Entretanto, Bertúccio achava grande dificuldade em preparar o alojamento para seu amo em Piza, e não tinha outro recurso senão comprar uma moradia para o receber. Este negócio porém demorou-se mais do que Bertúccio supunha e quando o conde de Monte Cristo desembarcou em Piza, não tinha um tecto que o abrigasse, apesar do prestígio da sua imensa riqueza. O conde e Haydée ficaram no cais, em frente de Bertúccio, que os tinha ido esperar.
- Logo, não há um domicílio que me receba, Bertúccio?
- Asseguro-lhe que fiz as maiores diligências. - Ofereceste o suficiente?
- Mais que o suficiente! - respondeu Bertúccio.
- Oh! É pródigo, senhor mordomo, isso é mau! - tornou o conde como se estivesse gracejando.
- Então, senhor - perguntou Haydée - para onde vamos?
- Bertúccio bem o sabe, ele já me havia dado a indicação da casa, e fia-se nisso; mas preveni-o de que me esqueceu...
- Senhor...
- Vamos, senhor Bertúccio, enquanto nós damos um pequeno passeio pela cidade arranje os seus negócios por minha conta. Daqui a uma hora, desejo que espere por mim no lugar em que estamos neste momento.
Dizendo isto, o conde fez um sinal com a mão
e afastou-se de Bertúccio dando o braço a Haydée.
Bertúccio ficou estupefacto! Sabia que era preciso obedecer, quando o conde dizia, quero: porém não sabia de que modo havia de cumprir a vontade de seu amo. Bertúccio voltou as costas e desapareceu por uma das ruas da cidade; três quartos de hora mais tarde, voltava ele todo esbaforido ao lugar onde se tinha apartado do conde: na fisionomia agitada mas risonha do mordomo, conhecia-se que tinha desempenhado a sua missão a troco de extrema fadiga. O conde e Haydée não tardaram em aparecer.
Bertúccio conduziu-os então para um pequeno edifício próximo do cais, onde tinha alugado três quartos para Haydée e para o conde. Em pouco tempo tencionava o conde de Monte Cristo partir, e já tinha para esse fim tomado uma barca; mas um incidente extraordinário obrigou-o a partir no dia seguinte.
Era alta noite, quando acordou sobressaltado pelo ruído assustador que reinava na rua, em frente das janelas do seu quarto. Ergueu-se e correu a indagar a causa desse ruído: no momento em que se abria a porta, ressoou então pelo edifício o grito terrível de muitas vozes aflitivas: fogo!
Um suor frio inundou a fronte de Monte Cristo. correu ao leito de Haydée, e despertando-a com precipitação, disse-lhe que se aprontasse sem a menor demora para fugir. Enquanto Haydée, trémula e vacilante, compunha apressadamente o seu vestuário, o quarto encheu-se de muitas pessoas, que corriam em turba armados de machados. De todos os lados parecia abrir-se o chão para deixar sair essas figuras pálidas de terror e arquejantes de esforço, que sempre correm com azáfama à cenas terríveis de um incêndio.
Uma das portas do quarto do conde acabava de cair aos golpes de machados; viu-se então o pavimento em chamas, que se comunicavam ao tecto;
o incêndio era vigoroso e rápido; revelava-se de um modo assustador em dois pontos do edifício. No primeiro impulso daquela cena de desordem, no avivado daquele quadro terrível, que parece desenhado pela mão de Satanás, ninguém procurava o conde, ninguém pronunciava o seu nome, e o conde, tomando Haydée nos seus braços vigorosos, desceu com rapidez a escada pelo centro das chamas e do fumo.
- Oh! "Meu Deus! - bradava ele. Qual é a mão inimiga que me fere tão sem piedade!? Que surja perante mim esse homem ou esse demónio execrável que me persegue!
O conde estava na rua; tendo rompido dificilmente pelo centro daquela massa viva que se agitava na frente do edifício em chamas, chegou a um pequeno largo deserto, cujos prédios estavam aclarados pelo reflexo do incêndio vizinho. Aí parou o conde, apoiando uma perna sobre um marco de pedra, e sustendo nela o corpo desfalecido de Haydée.
- Homem ou demónio! - murmurou ele com raiva. Quem quer que sejas, aparece, fala e dize o que queres de mim! Pelo Deus que criou o mundo, pelo génio dos abismos, por tudo quanto para ti puder haver de sagrado ou maldito, ergue-te e fala!
- Na gruta de Monte Cristo! - respondeu uma voz estridente, que fez estremecer o conde.
Capítulo 47
A vaidade do homem
EDMUNDO DANTES partiu sem demora para a ilha de Monte Cristo. Haydée acompanhava-o. Passando apenas uma noite no mar, e tendo dobrado a ilha de Elba, o pequeno barco aportou ao recife da ilha sem o menor incidente. A presença majestosa e sombria daqueles rochedos, cujos cumes azulados pelos reflexos da aurora, que tão bela parecera outrora ao conde de Monte Cristo, infundia-lhe então um terror vago, pareceu-lhe mais deserta do que nunca; os seus rochedos mais escabrosos, o seu aspecto mais selvagem.
Logo que o barco lançou ao mar a sua pequena lancha, o conde esperou com ansiedade o momento de desembarcar, empregando o tempo em observar atentamente se descobria alguma figura humana no centro da ilha: nem a menor sombra por ali passava.
Nenhum barco se aproximava da ilha, segundo o conde havia observado; mas apesar disso, a ilha não estava tão deserta como parecia. Não obstante haver um luar magnífico, acenderam-se algumas fogueiras na ilha, e uma delas que estava um pouco mais elevada do que as outras, parecia arder sobre um dos mais altos rochedos.
O conde, tendo observado a fundo a disposição dessas fogueiras, reconheceu que eram ali dispostas para o guiarem até ao lugar em que deveria ser ajustado o resgate do seu filho. Despediu-se de Haydée e afastou-se dela, não antes de a beijar três ou quatro vezes, como se se despedisse dela para sempre. A pobre senhora, acostumada a obedecer em tudo àquele homem, não ousou contrariá-lo, depois de haver insistido no desejo de o acompanhar até ao interior da ilha.
O conde quis desembarcar só, e assim o fez, tomando por um atalho que conhecia e que subia em espiral, chegando alguns minutos depois à entrada da gruta.
Com efeito, era aquele o ponto em que o conde parecia ser esperado: a última fogueira, a que estava superior a todas as outras, ardia sobre o portal, denegrido e chamuscado da sala subterrânea. O conde parou notando o desassossego, o mau estado e o abandono em que estava aquele portal magnífico, construído sob a sua direcção conforme o estilo bisantino. O interior da gruta estava fracamente iluminado por uma luz resinosa, colocada em frente de uma das paredes.
O conde desceu a escada onde o musgo tinha crescido em abundância e que parecia não ter sido trilhado por pé humano desde muito tempo. O seu espanto cresceu ao notar o abandono do interior da sala. As paredes estavam nuas, a abóbada requeimada, o pavimento obstruído com entulho e pedaços de madeira queimada.
De tudo quanto outrora havia de belo e magnífico naquela gruta, nada restava.
O conde sentiu pela primeira vez na sua vida que um erro passado pesava sobre ele. Passou a mão pela fronte, como se quisesse evitar uma visão desagradável; e olhando depois em redor de si para examinar se estava só, deu um pequeno grito, lendo estas palavras escritas em letras negras na parede principal:
“AOS POBRES O QUE É DOS POBRES”
A MÃO DO FINADO ESTÁ ERGUIDA SOBRE EDMUNDO DANTES, O AMIGO FALSO, O AMANTE CRUEL, O INFANTICIDA ATRÓS!
Por momentos ficou extático, com os olhos cravados no dístico singular, cujo sentido não compreendeu logo, mas cuja expressão lhe pareceu terrível.
Depois dos primeiros instantes de surpresa, Edmundo Dantes leu segunda vez o dístico fatal, tratando de lhe encontrar a par do merecimento literário, o interesse moral que ele envolvia: porém para este exame frio e rigoroso, não estava então o espírito de Edmundo Dantes. Para o homem se julgar a si próprio, é preciso que cesse nele a menor exaltação das paixões que haja no seu peito, e que se despeça de qualquer ideia ou pensamento contra os seus inimigos pessoais.
Edmundo Dantes não estava neste caso; era pai, tinham-lhe roubado o seu único filho, e este golpe é assaz violento para um pai extremoso! Ele estava perturbado, o seu coração não podia com a regularidade necessária ao homem profundo, ao moralista imparcial.
- Oh! - bradou ele. - Que dístico espantoso há ali! Como fui eu um amante cruel, um amigo falso... um...
- Acaba! Acaba se podes! - interrompeu uma voz estridente, soando no interior da gruta.
O conde levou maquinalmente a mão à coronha de uma das suas pistolas, porém largando-a, cruzou com toda a tranquilidade os braços sobre o peito. Benedetto estava diante dele, envolto numa capa napolitana e conservando o rosto oculto por uma máscara de seda negra.
- Quem é o senhor? - perguntou o conde com altivez.
- Pouco importa, contanto que saiba responder às suas palavras! - disse Benedetto.
- Seja como quiser: o que eu tenho para lhe dizer é simples, pois de sobra conheço os costumes dos homens da sua profissão em toda a Itália. Quanto quer receber em resgate de meu filho?
- Nada, senhor conde de Monte Cristo!
- Como assim? Quer fazer-me acreditar num acto de extrema generosidade? - perguntou com um sorriso de desprezo.
- Não senhor, nem o senhor poderia acreditar num acto de extrema generosidade, porque nunca foi generoso! Quem não usa não cuida. Eu quero fazer-lhe crer que é demasiado vaidoso por se julgar em circunstâncias de pagar o resgate de seu filho.
- Entretanto, peça quanto quiser - disse o conde com desdém.
- É algum Deus que tudo possa conceder-me?
- Não, porém fez-me esse Deus o homem mais poderoso da terra para julgar os outros homens e puni-los como eles o merecessem.
- Pois bem, nesse caso pedirei novecentos milhões.
- Essa quantia excede a proporção estabelecida para comprar no mundo a vontade de uma nação pelo capricho de um só homem? Eu disse-lhe que Deus me fez poderoso para julgar homens, não para comprar nações.
- Finalmente, declara que é pobre, depois de me haver afiançado que Deus o havia feito poderoso! Oh, basta de ilusões, Edmundo Dantes! Quem és tu para julgar os outros homens e puni-los? Quando foi o tempo em que não caminhaste arrastado pela paixão que te dominava e cego pelos raciocínios que concebias!? A chave de ouro que Deus te colocara nas mãos para entrar no mundo como te aprouvesse, empregaste-a mal! O gládio que ele te concedeu para justiçar, desvairou-se nas tuas mãos trémulas! Deus fulmina-te! Submete a fronte vaidosa ao decreto infalível da providência.
Edmundo reconheceu que não tinha a tratar com um simples salteador romano.
- Dize-me: serás tu o mesmo do palácio Gra-denigo em Veneza? - perguntou ele.
- Não sei o que dizes! - respondeu Benedetto.
- Pergunto se és tu o homem que me tem perseguido desde que entrei de novo na Europa? Serás tu o mascarado importuno do palácio de Gradenigo?
Serás tu o raptor de meu filho, o incendiário que tem assinalado com terror as minhas viagens desde Mântua a Piza? És o capitão do Tormenta? Fala, pois estamos aqui juntos. Quem és tu? Que queres de mim?
- Quero explicar-te o que ali está escrito! - respondeu o salteador apontando para o dístico da parede.
“Oh! Meu filho!” murmurou o conde consigo mesmo, comprimindo o peito e disfarçando uma lágrima.
- Edmundo Dantes! - disse Benedetto pausadamente. - Quando uma vez eu desembarquei no porto de Marselha, caiu a meus pés uma mulher em cujo rosto pálido estava a expressão horrível da fome e do desespero! Essa mulher erguia os braços para mim e bradava: “Dê-me uma esmola, por amor de Deus!” A desgraçada tinha sido esposa de um homem que a amava e que pertencia à classe dos oficiais-generais do exército francês; dessa união havia um filho que estava longe dela! Quando essa mulher vivia feliz em companhia do filho e do marido, tu começaste a preparar-lhe a desgraça, e a desgraça não tardou a alcançá-la! Lembras-te de Mercedes? Lembras-te da tua antiga namorada, Edmundo Dantes? Ela ficou viúva, viu-se privada de seu filho, que partiu para a África para reabilitar o seu nome da infâmia que manchava o de seu pai! Ela sofreu quanto uma mulher pode sofrer! Ela padeceu ao cabo do seu longo sofrimento, a fome e a miséria que foram coroar a tua obra maldita! Eis como eras cruel no teu amor, Edmundo Dantes! Eis como estavas alucinado! Outro qualquer homem teria perdoado tudo, só para que vivesse feliz a mulher a quem ainda amava! Outro qualquer homem teria sido generoso, cumprindo esta palavra de Deus: “Perdoa aos teus inimigos, para que o Céu te perdoe a ti!” Edmundo Dantes, posso assegurar-te que a mulher do general Morcerf te amava mesmo ao lado do seu marido; pensava em ti quando lhe reclinava a fronte no peito e ainda por ti ela tinha derramado muitas lágrimas sobre a sua coroa de esponsais e o seu véu de noivado! Pagaste-lhe bem esse amor, essa saudade! Querias tu - continuou Benedetto - que ficasse condenada a-eterna viuvez aquela mísera catalã, mesmo antes de te haver pertencido? Ela chorou e esperou por ti muitos anos,
e tu nunca voltaste; ela supôs-te morto, estava mais desligada e livre e podia pertencer a outro homem! Foste vaidoso, foste insensato, foste cruel! Agora queres saber porque te acuso de amigo falso? Lembras-te de Alberto de Morcerf? Lembras-te do tempo em que te fingias seu amigo, em que o atraías a ti, fascinando-o como a serpente fascina a vítima? Lembras-te e premeditavas o modo de o perder, de lhe roubar o pai, de o lançar na miséria, enquanto ele, acreditando na tua amizade, apertava contra
o peito essa mão traidora que deveria feri-lo de morte? Lembras-te daquela noite no teatro, em que o infeliz te foi pedir uma explicação e do modo como lhe respondeste? Isto não é ser traidor sobre os traidores? Edmundo Dantes, onde estava a tua religião, o teu Deus, a tua crença? Que qualidades de dogmas seguias tu nos teus chamados actos de justiça? Onde estavam as leis divinas ou humanas, que te podiam absolver destes absurdos, destes crimes?
- Miserável! - bradou o conde com raiva. - Quem és tu que me condenas como se foras Deus?
- Eu sou o escolhido de Deus para te justiçar na terra! Eu sou o que empunho agora o gládio sublime que ele te concedera e que tu desprezaste para tomar o punhal e o veneno do assassino! escuta-me, pois, ainda não ouviste quanto eu devo dizer-te. Quero explicar-te porque te acuso de algoz desapiedado e de infanticida atroz! Recorda-te do senhor de Villefort, recorda-te do pequeno Eduardo, recorda-te de sua mãe.
- Sim! - bradou o conde. - Todos esses foram sacrificados aos manes de meu velho pai, morto de fome e de miséria pela traição de Villefort! Sabes tu o extremo com que eu respeitava e amava aquelas honradas cãs? Conheces qual é o desespero que um bom filho pode experimentar quando lhe dizem: “Teu pai morreu de fome, longe de ti?” Oh! Muito mais, porque não estava longe de mim; vivia a dois passos da prisão em que me havia encerrado o pro-curador-régio, como se encerra um cadáver no sepulcro! Sabes tu, ou calculas acaso, o que sejam esses horrores?
- Experimentei outros! Vi meu pai reduzido ao último estado de demência - respondeu Benedetto. - Vi-o morrer a meu lado, depois de ele ter visto desaparecer de horror em horror toda a sua família em redor de si!...
- Jesus! Quem és tu, então?
- Sou o teu juiz e serei o teu algoz! Escuta-me e treme, porque vais ouvir a tua sentença.
- Serás acaso um homem diferente de mim, para me poderes condenar? O teu peito estará isento de paixões, para que ajuízes com tranquilidade a res-peito das minhas?
- Sim! - tornou Benedetto com um sorriso de compaixão. - Eu fui um assassino, um ateu, mas arrependi-me; fiz-me justo, acreditei em Deus! A minha conversão foi sublime.
- E como acreditaste nela? Como sabes que Deus te perdoou?
- Porque tudo me diz que fui o escolhido para castigar-te. Em toda a parte onde passei ouvi um brado que te condenava. No mar, o grito aflitivo de Alberto Morcerf, a quem salvei de um naufrágio! Em terra a voz delirante da infeliz Mercedes! reconhece pois que o céu te abandonou! Reconhece esta verdade que muitos factos estão provando! Quando eu me apresentei no teu palácio de Veneza, não reconheceste em mim o mascarado do palácio de Gradenigo! Não te opuseste à minha recomendação de levares o teu filho ao bodo dos pobres; depois quando pernoitaste na estrada de Mântua a Florença, naquela cabana onde te conduziu um simples acaso, como se Deus quisesse patentear bem a meus olhos que tu eras um condenado, estiveste ao lado do berço em que descansavam duas crianças e não soubeste reconhecer o teu próprio filho.
- Ah! - fez o conde de Monte Cristo, como fulminado por um raio.
- Reconhece pois que o céu te condena, miserável, e acredita que os momentos de outrora em que te julgaste inspirado e grande, não eram mais do que momentos de vaidade humana. Verdugo desa-piedado, nunca soubeste perdoar! Nos teus actos de vingança monstruosa, envolveste e confundiste o inocente com o criminoso! Pois bem, a perda de teu filho paga o sangue de Eduardo Villefort.
- E fui eu acaso que assassinei aquela pobre criança?
- Foste, sim! Todos os crimes da desgraçada mulher de Villefort pesam sobre ti.
- Porquê? Quem o sabe, fala!
- Não posso, há um segredo entre ti e Deus, que eu não posso decifrar; porém se eu não digo a verdade, se na tua consciência não está o peso de todos os crimes daquela mulher, desmente-me em face de Deus, que nos escuta!
O conde de Monte Cristo ficou mudo.
- Bem - continuou Benedetto - reconheces o teu erro. reconhecerás também a justiça de Deus! Aquela imensa fortuna que ele depositou em tuas mãos, deverias reparti-la com os pobres e não aplicá-la em fazer-te rodear de luxo bárbaro, que sempre ostentaste na Europa em face da miséria! Vê, repara bem para o que te cerca, todos os tesouros que existiam aqui foram já repartidos pelos pobres pela minha mão; e os que tu possuis serão também igualmente divididos por eles!
- Seja, dou-te a minha riqueza em troca de meu filho.
- Não mais verás o teu filho - respondeu ele. - Roubou-to a mão do finado! Um segredo igual ao do sepulcro pesa agora sobre o seu nascimento!
- Maldição! A tua vida responderá pelo meu filho!
E o conde pálido, agitado, avançou para Benedetto empunhando as suas pistolas.
- Dispara, eu confio mais em Deus do que em ti! - respondeu Benedetto.
- Insensato! - exclamou o conde, rindo e chorando como um louco e arrojando para longe as duas pistolas, que se dispararam pela violência do choque. Homem ou demónio! Não calculas o meu sofrimento, tu não és pai, não sabes o que é o amor paterno! Pede-me o que quiseres, tudo te darei pelo resgate do meu querido filho.
- Não é possível, porque toda a tua riqueza será apenas o preço de outra coisa.. Imagina tu que tua esposa, receosa de que te sucedesse alguma catástrofe neste encontro, desembarcou da barca e guiada pelo reflexo das minhas fogueiras, começou a caminhar para este ponto; imagina mais que meia dúzia de homens destemidos, saltando dentro da barca, a incendiaram, enquanto quatro braços possantes sustinham o corpo flexível e ligeiro da formosa Haydée na entrada desta gruta.
Apenas Benedetto acabou de falar, ouviu-se um grito agudíssimo que vinha dos rochedos; o conde respondeu-lhe com um brado de coragem e subindo precipitadamente as escadas da gruta, deteve-se na crista da rocha, interrogando com a vista aquele espaço imenso, o mar, o céu e os rochedos.
- Haydée! Haydée... - bradou o conde.
E o eco repetia com um acento lúgubre o nome querido que o conde pronunciava.
Vê lá em baixo aquelas chamas que o vento agita à flor das águas - disse uma vÓz ao conde.
Era Benedetto.
- Tudo está acabado para ti!
- Haydée, onde estás? Que novo inferno nos rodeia?
O conde olhou em redor de si; Benedetto havia desaparecido, as fogueiras estavam extintas, apenas se divisava no pequeno recife as chamas que consumiam a barca; e dentro da gruta, o clarão moribundo do facho que ali ardia.
A figura airosa e cheia de vigor de Edmundo Dantes desenhava-se qual sombra fantástica, no céu azulado do Mediterrâneo.
Com os braços cruzados sobre o peito arquejante, o cabelo solto e agitado pela brisa do espaço, de pé sobre a crista do mais alto rochedo da ilha, com o corpo inclinado para o abismo, ele parecia ali, a ficção arrogante do poeta, o génio dos rochedos elevados sobre o seu trono de granito em face do mar.
Por momentos, o conde permaneceu assim, como se estivesse entregue à meditação profunda do seu passado todo inteiro: depois soltou um doloroso gemido e voltando as costas ao abismo, desceu vagarosamente para o interior da ilha.
- Foi aqui onde me embriaguei com a posse daqueles tesouros que vim desenterrar! Ai, mesquinhez da humanidade! Oh, imperfeição do espírito humano em comparação com o seu criador omnipotente! Eu tive a louca vaidade de me julgar também omnipotente no mundo, como o embriagado julga caminhar sobre uma alcatifa de rosas quando os seus pés se recortam nas lâminas de um alcantil! Assim como a embriaguez se dissipa, as rosas se desfazem ao sopro da realidade, eu acordo finalmente da minha sonhada ventura! Onde está a gruta esplêndida que existia aqui? Onde está a mulher oriental, que eu tanto amei?
Onde está o meu filho? Aonde vai a tranquilidade do meu peito, o prazer íntimo desta alma? Tudo acabou! Tudo passou como um sonho pueril da criança vaidosa! Sou ainda imensamente rico, mas de que me servirá essa riqueza? O que farei eu no mundo? Que novos prazeres encerrará ele em si para _me distrair?
E o conde calou-se um instante, olhou vagarosamente em redor de si com um gesto suplicante; depois correu a elevar do chão o facho que estava a findar; agitou-o, mas a chama extinguiu-se fazendo um último esforço. O conde de Monte Cristo lançou um grito de terror, achando-se em completa escuridão.
- Haydée! Minha Haydée... A fatalidade que me persegue, esmaga-te também! Ai! Eu darei quanto possuo para que te não suceda mal! Venha alguém, surja na minha frente um homem qualquer, a quem eu possa dizer isto, ainda que esse homem tenha de ser o anjo reprobo!
Dizendo isto permaneceu em silêncio, como se esperasse uma resposta qualquer; porém o silêncio foi profundo e não interrompido ao redor dele. O conde repetiu o que havia dito, e então cintilou uma luz no interior da gruta, e em poucos instantes, ele distinguiu a figura tranquila de Benedetto, cujo rosto estava ainda oculto pela máscara.
- Conde de Monte Cristo - disse-lhe ele parando a certa distância. -A tua opulência pela tua mulher.
- Tudo quanto possuo te ofereço pelo resgate dela.
- Então acompanha-me.
O conde seguiu Benedetto para uma das salas interiores da gruta, onde estava uma mesa ordinária com preparos para escrever. Indicando-a ao conde, Benedetto colocou-se em frente dele e fez-lhe um sinal que ele compreendeu.
Momentos depois, o conde de Monte Cristo, tendo acabado de escrever algumas palavras e assinado diferentes letras de câmbio de enorme valor, passou às mãos de Benedetto toda a sua imensa fortuna.
- Estou pobre! - disse ele. - Tão pobre como no dia em que desci pela primeira vez a este lugar. e amanhã nem terei um amigo no mundo, mas felizmente sou feliz! Acabo de salvar a minha querida Haydée.
- Muito bem! - respondeu Benedetto. - Ela vai ser-te restituída, mandarei colocar no recife do sul um pequeno barco à tua disposição. Partirá amanhã.
- Mas o meu inocente filho? perguntou o conde de Monte Cristo ansiosamente.
- Pesa sobre o teu filho o segredo do sepulcro! - respondeu Benedetto com voz solene.
O conde ia a falar, porém Haydée, aparecendo na sala, correu a precipitar-se-lhe nos braços. Benedetto retirou-se.
CAPíTULO 48
Gratidão de Peppino
PELO espaço de alguns minutos permaneceram abraçados, como se fosse aquela a primeira vez que se encontravam depois de um longo período de separação.
- Pobre criança! - murmurou o conde, beijan-do-a na fronte. -A desgraça que me fere não sabe respeitar a tua inocência.
- Julga que sofro, meu bom amigo? - perguntou Haydée com toda a candura da sua alma singela. - Não, eu ainda sou bem feliz: estou ao seu lado.
O conde não respondeu; uniu-a ao peito e amparando-lhe a cabeça com as mãos, contemplou-a em silêncio, como se meditasse no futuro que a esperava.
- Haydée - disse Monte Cristo depois de a haver contemplado em silêncio com as lágrimas nos olhos - as tuas ilusões têm de ceder ao golpe de uma realidade fatal! Ainda ontem eu me vangloriava de possuir os fundos necessários para satisfazer a cobiça dos malvados que nos roubaram o nosso querido filho; hoje, porém, não posso afirmar que terei com que comprar o pão do sustento de amanhã! Conheço bem este mundo de misérias, ódios e intrigas, o nosso caminho desde hoje em diante é semeado de espinhos terríveis onde as tuas lágrimas inocentes hão-de cair com abundância na presença dos meus martírios!
- Eu por mim serei feliz, vivendo com o meu senhor, vivendo com o nosso filho.
- Não, não - respondeu o conde. - Aquela pobre criança está perdida para sempre! Nunca mais a tornaremos a ver.
Haydée lançou um grito, levando as mãos aos finos cabelos num acto de desespero. O conde ocultou o rosto.
Seguiu-se um momento de profundo silêncio. Haydée, lançando sobre o conde um olhar apaixonado, disse-lhe com um sorriso amargo:
- Senhor, muitas vezes lhe perguntei eu, noutro tempo, se a morte era um mal! Ao ver aquele aspecto sombrio, aquele rosto descarnado, aquela foice terrível, que vai ceifando as vidas sem piedade, sem dó, eu estremecia por me lembrar que um dia chegaria a minha vez! Porém agora imagino a morte de outro modo: suponha, senhor, que a imagem dela não traz horror consigo; que a sua dextra é menos dura, e que em vez de lhe mostrar a foice com que há-de separar a alma do corpo, lhe indica o mistério sublime de uma felicidade inteiramente nova.
- Haydée! - murmurou o conde.
- Então, meu bom amigo, se o mundo é miserável, se é cheio de horrores, o que temer empresença da morte?
- Eu adivinho o teu pensamento! Sei o q queres dizer.
- Bem! Aí está recuado em frente da morte, no momento em que lhe não resta mais do que ela! Senhor, muitas vezes lhe ouvi falar da morte, como do sono reparador, que esperava dormir durante a noite que seguia um dia agitado! Nesses momentos fui eu aprendendo o modo de a encarar sem o menor receio, até que chego a encará-la com interesse. Onde está a energia com que então falava? Quando e imensamente rico, quando tinha diante de si um futuro inteiro de felicidade, não estremecia com a ideia da morte; e hoje que sabe que é pobríssimo, hoje, que nem sabe como lhe há-de vir o dia de amanhã, hoje, que a mão do destino parece ter-lhe cortado de um só golpe as mais doces esperanças, o que é que tanto o faz estremecer e vacilar em presença do sono eterno? Se a felicidade se acaba para nós, acabemos nós para o mundo!
- Pois bem, Haydée - disse o conde fixan-do-a. - Tu, que mais de uma vez em tua vida, quase desde o berço, tens visto a desgraça eminente, e ambicionado a morte como único meio de a evitar, não tremes com o sacrifício tremendo que te pro-pões; mas com que direito divino ou humano podemos nós consumar esse sacrifício? Para a criatura ter o direito de morrer pelo seu livre arbítrio seria necessário que ela houvesse nascido pela sua própria vontade. Julgas tu que seja dar prova de um espírito forte e de uma virtude austera, tomar veneno ou descarregar um golpe que nos roube a vida, no momento em que sentimos os horrores da miséria? Isso não será no tribunal divino mais do que um acto de fraqueza ou alucinação! A resignação com que nos submetemos à nossa sorte, a paz de espírito com que suportamos a miséria e os trabalhos neste mundo, são coisas de maior apreço quando as nossas almas forem julgadas!
Senhor - tornou Haydée - também muitas vezes o ouvi condenar como sofísticos os raciocínios que acaba de expender! Dizia que para se tomar veneno ou para se descarregar um golpe que nos roube a vida, nos era necessário um grau superior de força de vontade, que se não dá em todas as pessoas, quando elas não estão completamente alucinadas. Onde está pois a força da sua vontade? Onde está a chama enérgica do seu grande espírito?
O conde ficou imóvel. Haydée, tirando da algibeira uma caixa pequena, feita de uma só esmeralda, com a tampa de oiro, abriu-a, e tomou com os dois dedos seis pequenas pílulas de uma substância escura: depois, vasando água num copo, que encontrou, lançou-lhe dentro as seis pílulas que a pouco e pouco se desfizeram.
- Vamos, a luz do dia aclara o mundo, subamos ao rochedo. Aqui está o veneno, meu bom amigo, e acredite-me que só assim poderá evitar a desgraça que não o poupará mais, desde o momento em que perde a fortuna! Mas nós tomaremos igual por-ção - continuou Haydée separando em dois vasos igual porção de líquido e colocando um em cada extremidade da mesa. - Agora subamos.
Dizendo isto, ela conduziu o conde para fora da gruta, e ambos se detiveram na crista do rochedo.
O mar estava sereno, o sol começava a levantar-se e os seus raios projectavam-se quase em linha horizontal sobre as águas. Um navio com todo o pano inchado pela brisa da manhã, passava em frente da ilha.
Tudo parecia apresentar em redor do conde um certo aspecto de vida, riqueza e placidez, que o entristecia.
Enquanto ele e Haydée se despediam do mundo, erguidos sobre um rochedo escarpado que se elevava no centro das águas, dois homens deixando-se escorregar por uma das aberturas que davam claridade à sala interior da gruta, escutavam com atenção se alguém lhes teria ouvido o rumor dos passos. Convencidos de que ninguém se aproximava, caminharam para a mesa, sobre a qual Haydée tinha deixado os dois copos com o veneno e aí se detiveram.
Como será possível conhecer o do conde? - perguntou um.
- Creio que é este - respondeu o outro pegando no copo que estava ao lado da entrada da sala. - Como assim?
- Haydée há-de lançar mão do que ficar mais perto.
Dizendo isto, o homem colocou o copo no seu lugar, e pegando no outro, lançou o líquido para um recanto da sala, substituindo-o por água.
- Bem, e se por acaso o conde não pegar neste copo, mas sim, no outro? - perguntou o companheiro.
- Então lançar-me-ei sobre ele!
- Em todo o caso, queres salvá-lo? Mas se a sua hora estiver chegada?
Hei-de pagar esta dívida de gratidão; o conde salvou-me a vida, eu salvarei a sua. Partamos, eles descem.
Dizendo isto, os dois homens saíram para a sala imediata, e aí se ocultaram ràpidamente com a rocha, porque o conde dando a mão a Haydée já vinha na escada.
Eles atravessaram em silêncio a primeira sala e penetraram na segunda, detendo-se em frente da mesa.
- Então, Haydée, ainda queres deixar este mundo que tão belo nos pareceu?
- Meu amigo - respondeu Haydée enxugando uma lágrima - perdoa a minha fraqueza, eu não tenho em mim a força superior que é necessária para morrer pelo meu livre arbítrio!
- Haydée! Haydée! - exclamou o conde toman-do-a nos braços: - Pobre criança! E eu que tanto te amo!
- Obrigada, meu bom amigo, agradeço-te esse sentimento, e crê que também te voto um amor profundo, veemente! Dá-me um beijo.
O conde colocou os lábios no rosto de Haydée. Ela afastou-lhe brandamente a fronte com as mãos, erguendo os olhos ao céu e, lançando com rapidez o braço na direcção da mesa, pegou no copo:
- Jesus! - bradou o conde, aterrado.
Haydée tinha bebido todo o veneno.
- Eu vou partir - disse ela sorrindo-se. - Acompanha-me, meu bom amigo.
O conde caminhou para o lado oposto da mesa, e tomando o outro copo, bebeu com toda a placidez o líquido que ele continha. Depois voltou-se para Haydée.
- Oh! Meu marido! - exclamou ela lançando-lhe os braços em volta do pescoço. - Eu amei-te muito e sentia faltar-me a vida no peito! A ideia de que tu me sobrevivias, a ideia de te perder, a ideia de que outra mulher te amasse, te beijasse, como eu te beijo e amo! Eu amei-te quanto uma mulher pode amar um homem, chamei-te meu, e após eu, tu não serás de outrem! O ciúme é pior mil vezes do que a morte! Eu morro e tu morres comigo.
Haydée calou-se de súbito. As faces tornaram-se-lhe lívidas, o olhar amorteceu, e os lábios contraíram-se-lhe cobrindo-se de uma espuma amarelada que lhe inundava a boca.
O conde amparou-a nos braços e ajoelhou.
- Ah!... meu amigo, o meu coração cobre-se de gelo, vou morrer. Morre tu comigo, meu marido, o meu derradeiro beijo, o meu derradeiro suspiro, o meu derradeiro pensamento... é para ti!
Dizendo isto, deixou pender a cabeça no braço do conde; os olhos conservaram-se-lhe abertos, parecendo fixar ainda com ciúme o rosto do conde de Monte Cristo.
- Está morta! - murmurou ele colocando a dextra sobre o peito de Haydée. -E porque vivo eu ainda? Porque não sinto já em mim aquele fogo terrível que parece queimar-me as entranhas? Já passou meia hora, tempo de mais para o efeito do veneno! Oh! Eu não
hei-de sobreviver-te! - exclamou levantando-se e tomando nos braços o corpo de Haydée. - Vem, minha boa amiga, teremos um-sepulcro digno de nós!
Dizendo isto, o conde subiu as escadas da gruta; trepou ao cume de um rochedo, e estreitando con-tra o peito o cadáver de Haydée, correu na direcção do abismo, bradando:
- Oh! Deus todo poderoso! Recebe a minha alma!
- Não! - bradou uma voz, e o conde sentiu-se preso na beira do abismo pelos braços possantes de um homem.
O cadáver de Haydée rolou de rochedo em rochedo e desapareceu.
- Insensato! Quem és tu? - perguntou o conde. - Não é preciso possuir milhões para salvar a vida de um homem - senhor conde. Eu sou Peppino Roca Priori.
CAPíTULO 49
A mão do senhor de Villefort
No dia seguinte àquele em que Peppino havia pago a sua dívida de gratidão, salvando a vida de Edmundo Dantes, ainda este estava ajoelhado na beira do abismo em que tinha rolado o cadáver de Haydée, e elevando os olhos ao céu, orava do íntimo de alma; resignava-se como verdadeiro cristão à sorte amarga que o esperava no mundo. A sua resolução estava tomada, e ajoelhando uma última vez sobre o rochedo, disse o seu derradeiro adeus àquele cadáver despedaçado no fundo do abismo.
Recordando-se que um pequeno barco o esperava num dos recifes da ilha, desceu vagarosamente à praia disposto a abandonar aquele lugar fatal. Caminhava com a cabeça inclinada sobre o peito e os braços pendidos, para o pequeno recife do sol, quando um homem surgiu de súbito na frente dele. Era Benedetto.
O seu rosto não tinha máscara, estava tranquilo; poisou com firmeza o olhar na fisionomia abatida do conde de Monte Cristo, e os seus lábios contraíram-se num sorriso repassado de ironia. A pequena distância deles, distinguia-se Peppino. O conde e Benedetto contemplaram-se por momentos em pro-fundo silêncio.
- Conheces-me finalmente, Edmundo Dantes? - perguntou-lhe Benedetto cruzando os braços sobre o peito.
- Ah! És tu! - murmurou o conde.
- Ainda bem, aliás teria de te recordar o nome do príncipe Andréa Cavalcanti, improvisado por ti para uma das tuas malditas e hediondas comédias!
- E és tu o homem que me tem perseguido? - perguntou o conde sacudindo a fronte e acompanhando estas palavras com um leve sorriso de desprezo. - Ah! E a todos os teus actos de violência, cometidos pelo simples desejo de possuir riquezas, dás sem pejo o título pomposo de justiça de Deus!
- Enganas-te; conde de Monte Cristo! - replicou Benedetto com placidez. - Não foi o desejo de possuir riquezas, como dizes! Eu hoje tenho tanto quanto possuía antes de te privar das tuas, elas foram repartidas pelos pobres, e as que ainda restam sê-lo-ão dentro em breve; se te persegui sem dó nem piedade foi para vingar o sangue inocente de meu irmão Eduardo!
- Teu irmão? - perguntou o conde.
- Sim, eu ignoro a história terrível do meu nascimento; isto é, sei quem é o autor dos meus dias, e falta-me apenas saber quem é minha mãe. Sabes acaso quem ela é?
- Sei! a baronesa Danglars.
- Obrigado - disse ele com expressão feroz. - Agradeço a tua generosidade, e estou certo que se não houvesses calculado quanto eu havia de sofrer com essa revelação, não ma terias feito! Escuta-me, pois; se esta é a última vez que nos encontramos; escuta- eu quero dar-te conta de algumas pessoas que conheceste. Minha mãe foi roubada por mim e ficou reduzida à miséria. Ignoro onde esteja, ignoro mesmo se vive ainda. O barão Danglars acabou como havia começado a sua carreira de crimes, isto é, voltou à condição de simples marinheiro, e expirou numa noite de tempestade aos golpes que lhe descarregava o piloto do meu barco Tormenta. Agora, falta-me dizer-te o que fizeram de Luigi Vampa; tu que tinhas protegido sempre aquele audaz ladrão, ao passo que te prezavas de punir com rigorismo o roubo e o crime! Eu, pelo contrário, entreguei-o por um punhado de piastras à justiça romana, que o justiçou um mês depois. Agora que te vejo reduzido ao último grau de desespero, agora que em toda a Itália te amaldiçoam o nome ou te julgam completamente alucinado; agora que não tens nem esposa nem filho; agora que não terás com que comprar o alimento de amanhã; agora finalmente que acabou para sempre o improvisado conde de Monte Cristo com todo o seu louco e imenso prestígio, hás-de reconhecer que se Deus te fez imensamente poderoso, foi só para que pre-miasses a virtude, assim como me fez expressamente audaz e atrevido, para que castigasse o crime! Tanto eu, como tu, não fomos mais do que simples instrumentos da sua alta justiça. A nossa tarefa está concluída, e nós voltamos ao nada! A família Morel vive feliz, assim como muitas outras pessoas com as quais repartiste a tua felicidade; e tu acabas na miséria porque tiveste o orgulho de te julgar inspirado como um apóstolo! A dívida está paga, e a mão do finado vai voltar para o cadáver!
Dizendo isto, Benedetto abriu rapidamente um pequeno cofre, e tomando a mirrada mão que ele continha, bateu com violência na face de Edmundo Dantes, bradando:
- Homem alucinado pelo excesso da tua paixão, sê maldito para sempre!
O conde lançou um grito de desespero, ao mesmo tempo que Benedetto e Peppino se afastavam.
O conde permaneceu por alguns momentos com o rosto oculto nas mãos. Depois, olhando em redor de si viu-se completamente só. Ia para atirar-se ao mar, mas pensou que não tinha direito para furtar-se ao castigo do céu, e resignando-se caminhou para o embarcadouro do sul, onde de facto o esperava uma embarcação ligeira com dois homens.
Quinze dias depois, um homem embuçado numa capa escura, sob a qual parecia ocultar um volume, parava junto do portal de ferro da residência de Morel, perto da cidade de Roma.
Aí, afastou do peito a capa que o envolvia, e estendendo os braços, colocou nos primeiros degraus o corpo de uma criança que parecia tomada de sono profundo; depois voltando sob os seus passos, fe-chou a cancela e puxou com violência a sineta de bronze, cujo som ecoou por todo o edifício. Valentina chegou à janela, enquanto um criado que tinha saído de casa lançava um pequeno grito de surpresa, detendo-se próximo da escada.
- Pietro - perguntou Valentina - que embrulho é esse?
- É uma criancinha que está aqui exposta na escada!
- Mas então quem poria aqui esta pobre criança?
- O portão está fechado - disse Pietro, que voltava já do jardim -e eu não vi vivalma na estrada.
Valentina, tomando a criança nos braços, subiu para a sala, indo ao encontro de Maximiliano.
- Meu amigo - disse ela - o céu deu-nos um filho. Havemos de cuidar dele e educá-lo como se fosse realmente nosso.
Em poucas palavras explicou a Maximiliano quanto sucedia. A criança olhava espantada para quanto a cercava; depois escondeu o rosto no peito de Valentina.
- Vejamos que papel é esse que está no peito da criança - disse Maximiliano.
- É verdade! exclamou Valentina, pegando no papel.
Minha senhora:
É caridosa e boa; por isso em nome de Deus lhe é confiado este menino que deverá criar como se fosse seu: o inocente é órfão; o seu nascimento é hoje e deverá ser para o futuro, um segredo profundo entre Deus e o passado!
Nem mais uma letra tinha o bilhete, nem um sinal que pudesse indicar a pessoa que o tinha escrito.
- E o nome? - disse Valentina. - Ele não tem nome! Melhor; dar-lhe-emos o nome de Edmundo, o nome do nosso benfeitor.
E as lágrimas assomaram aos olhos de Valentina, que novamente jurou servir de mãe ao des-graçado órfão.
CAPíTULO 50
O dia 27 de Setembro
BENEDETTO, tendo exposto o filho de Edmundo Dantes à caridade da piedosa Valentina, nada mais lhe restava para fazer senão voltar a França e ir depor junto do cadáver de seu pai a dextra, que ano e meio antes lhe havia decepado, movido sem dúvida por um pensamento alucinado e feroz energia. Che-gado a Paris, dirigiu-se pela noite ao cemitério de Pére Lachaise, onde, mediante uma bolsa cheia de ouro, conseguiu que o guarda o deixasse entrar.
- A qual dos túmulos é a visita? - perguntou-lhe o guarda.
- Ao jazigo das famílias de Saint Méran e Villefort.
“Ah!” pensou o guarda. “Este é o mesmo figurão que ma pregou da outra vez: pois se traz outra fisgada, pode crer que veio meter-se na boca do lobo!”
Momentos depois, pegando na enxada e numa lanterna, caminhou na frente de Benedetto em direcção ao mencionado jazigo. O guarda abriu a porta daquele asilo da morte, e poisando a lanterna junto dela afastou-se fazendo um sinal a Benedetto, o qual compreendeu logo.
Quando Benedetto deixou de sentir os passos do guarda, levantou a lanterna e desceu lentamente os degraus de mármore que o conduziam ao meio dos cadáveres de sua família. Abriu sem dificuldade o caixão do pai, cujo esqueleto estava envolto nos restos do lençol, única mortalha do antigo procurador-régio de Paris. O braço direito do esqueleto estava descansado sobre as cavernas do peito, e o outro estendido ao longo da espinha dorsal.
Benedetto, depois de contemplar por muito tempo o esqueleto em que estava impressa toda a hediondez da morte, tirou da algibeira uma caixa de madeira negra, e tomando dela a ressequida mão colocou-a sobre o peito do cadáver.
- Está satisfeita a dívida de meu pai, e a sua mão, longo tempo erguida à face dos vivos, descansa de novo sobre esse peito, cujo coração extinto tanto sofreu no mundo. Receba este meu beijo, que é a derradeira prova do respeito profundo que me inspirou o seu terrível sofrimento. E adeus para sempre!
Dizendo isto, beijou a dextra do cadáver, fe-chando em seguida a tampa do ataúde; depois, pegando na lanterna, subiu as escadas do sepulcro, e notando que a porta estava fechada, impeliu-a com a mão esquerda sem que ela cedesse; largando a lanterna, empregou também a direita, e por último o peso de todo o corpo; porém a porta estava fechada pela parte de fora e não cedia aos esforços de Benedetto. Por momentos ele permaneceu aniquilado, sem ter a menor ideia, sem conceber o menor pensamento acerca daquele caso: mas passada que foi meia hora, saindo daquele estado de torpor em que o havia lançado a surpresa, explicou a si próprio, com todo o sossego e placidez, a razão porque tinham fechado a porta. Bastou para esse fim, lembrar-se da primeira noite em que ali tinha penetrado.
Sou acusado de profanação, e o guarda entregou-me à justiça! Há ano e meio que foi visto este túmulo profanado e saqueado; eu tinha-me evadido Sem satisfazer a cobiça do guarda, e ele agora vinga-se de mim»;
Benedetto acostumado a lutar contra o perigo, não tinha a vaidade de vencer o impossível; sentou-se portanto nos degraus da escada, e encostando o rosto nas mãos, esperou pelo dia; a noite pareceu-lhe eterna! Com efeito, no dia seguinte, sentiu muitos passos que se aproximavam do sepulcro; a porta abriu-se, e Benedetto viu em frente de si as figuras sinistras de seis soldados com os sabres desembainhados.
- Cumpra-se a vontade de Deus até ao fim! - murmurou ele.
O guarda acompanhou-os até à porta do cemitério, e quando a escolta acabou de passar, ele fechou-a, dizendo com um riso bastante motejador:
- Até mais ver, senhor improvisado lorde Wilmore...
Benedetto foi conduzido para a Force. Apenas se lhe instaurou o processo, fácil foi reconhecer nele o mesmo homem que se havia evadido do cárcere, assassinando o carcereiro. O júri, depois de ter examinado os actos e discutido os crimes de Benedetto, não pôde deixar de pronunciar contra ele a sentença capital.
Benedetto, ao fim de oito meses de prisão, foi condenado à morte. Ouviu ler a sentença no mesmo cárcere em que havia cometido o assassínio na pessoa do carcereiro; ouviu a leitura vagarosa da sentença, com o mesmo sangue-frio e a atroz indiferença que o caracterizava desde certo tempo. Esta indiferença pronunciada não era causada pelo embrutecimento do seu espírito, como quase sempre sucede nos homens que depois de uma longa série de crimes, vêem elevar-se diante deles o patíbulo em que hão-de expiar em face da sociedade que insultaram: não, o estado em que Benedetto estava era o de uma resignação profunda como os decretos desse Deus poderoso que ele havia invocado para saber se deveria ou não ferir o homem vaidoso que tinha abusado do seu poder.
Chegou o dia antecedente ao da execução, e Benedetto entrou no oratório, portando-se com devoção em todos os actos religiosos que antecedem as execuções públicas de alta justiça. O confessor ouviu-o com interesse; no seu olhar enternecido, conhecia-se o efeito que nele produzia as suas palavras.
- Padre, eu creio em Deus - disse Benedetto fazendo o sinal da cruz - creio na sua justiça, e nem por um simples pensamento me atrevo a censurá-lo. Nasci do crime, fui baptizado com sangue e lágrimas, o meu fim não podia ser outro senão o patíbulo. Antes de crer em Deus, como hoje creio, senti neste peito quanto fel o desespero pode criar em peito de homem! Cometi muitos crimes, mas um dia parei; a presença de meu pai, pobre, velho, desgraçado e quase louco, comoveu-me; jurei então vingá-lo e meditei profundamente acerca dos homens e das suas acções. Acreditei em Deus, reconheci que era eu desde certo tempo o instrumento com que ele punia os maus; feri e roubei sem piedade, todos quantos já tinham feito o mesmo; para caminhar nesse novo trilho carecia de dinheiro, por isso apoderei-me das jóias que ornavam os cadáveres dos membros da minha família paterna, e não descansei um momento enquanto não alcancei chegar aonde havia premeditado! Vi em redor de mim o mau, o falsário, receberem o castigo dos seus crimes; os virtuosos o prémio das suas acções, e por isso não me surpreende agora o cadafalso que está erguido para mim. Mereço-o. Dê-me a sua mão e peça a Deus por mim.
Dizendo isto, Benedetto ajoelhou aos pés do padre, que invocava a misericórdia divina sobre a alma do padecente.
- Que dia é hoje? - perguntou Benedetto. - Vinte e sete de Setembro, meu filho.
- Vinte e sete de Setembro! - repetiu com um sorriso lúgubre. - Lá está o patíbulo para festejar o meu aniversário natalício!
- Perdoas a teus pais o desprezo a que te votaram? Perdoas a teu pai o seu intentado crime de infanticídio?
- Há muito que lhes perdoei tudo!
- Muito bem, meu filho, Deus seja contigo para sempre!
Logo que o sol penetrou nos sombrios pátios da Force, a porta do oratório abriu-se, e uma escolta foi tomar conta do preso para o conduzir à presença do algoz, para que este lhe cortasse os cabelos e lhe vestisse o traje dos condenados.
Depois destes preparativos, Benedetto subiu para o carro dos padecentes, e o algoz tomando lugar na almofada, deu sinal para a triste partida.
Um piquete de cavalaria acompanhou o carro até ao patíbulo em redor do qual se agrupava o povo com azáfama. Benedetto, recebendo a última benção do confessor, repeliu brandamente a venda que o algoz lhe apresentava, dizendo-lhe:
Deixe-me só olhar um momento para esta multidão que me cerca, quero ver se distingo um rosto amigo...
Em seguida, olhou com avidez para o povo que o rodeava; examinou de relance todas as fisionomias que lhe ficavam próximas; depois olhou para maior distância, e lançou um pequeno grito de surpresa.
Tinha visto dentro de uma sege que atravessava a praça, uma mulher com o hábito das irmãs de S. Lázaro que parecia acompanhar outra mulher doente.
Meu padre - disse ele para o religioso - neste momento não ambiciono mais do que falar àquela irmã de S. Lázaro, que atravessa o fundo desta praça numa sege. Pelo amor de Deus, vá dizer-lhe que venha.
O padre desceu logo o patíbulo para executar o desejo do padecente e a humilde irmã de S. Lázaro não pôs a menor dúvida em acudir ao seu chamamento.
À medida que ela se aproximava, a fisionomia de Benedetto alterava-se de um modo singular: levou repetidas vezes as mãos aos olhos como para suster um pranto involuntário. A irmã de S. Lázaro subiu as escadas do cadafalso e apresentou-se ao padecente.
- Meu Deus! - bradou ela, recuando como pelo efeito de uma visão terrível.
Benedetto pegou-lhe na mão e chegando-a aos lábios imprimiu-lhe um beijo, murmurando depois estas palavras, de modo que ninguém mais as escutasse:
- Perdoe-me, minha mãe, pois também já lhe perdoei. Quando lhe roubei quanto possuía estava longe de saber o que soube depois. Mas quis Deus que o meu dinheiro fosse empregado na justa vingança das cinzas de meu pai e que a pobreza não a deixasse prosseguir na vida que levava, e a arrastasse, pelo caminho do arrependimento, para os degraus do altar. Perdoe-me, pois.
- Jesus! Jesus! - bradou a pobre senhora com o desespero da dor, caindo de joelhos sobre o cadafalso.
- Hoje é o dia 27 de Setembro! - disse Benedetto, e encostando a cabeça ao cepo, exclamou para o algoz: - Mata-me!
E a lâmina da guilhotina decepou-lhe a cabeça. A irmã de S. Lázaro caiu como fulminada por um raio, junto do cadáver, bradando com angústia: - Fui mãe deste desgraçado.
São decorridos dois anos depois dos terríveis acontecimentos que acabamos de narrar. Todos os delinquentes haviam sofrido o justo castigo dos seus malefícios, sem que todavia deixasse de ser condenado o hediondo princípio da vingança.
Deus servira-se de um homem, que muito padecera, para punir os culpados que doutro modo escapariam à acção da justiça humana, e esse homem ensoberbeceu-se e exorbitou, chegando a ferir inocentes. Foi também por sua vez castigado pela mão de um criminoso, que tão-pouco ficou impune, apesar de se mostrar arrependido.
A soberba e adúltera baronesa Danglars, quando se supunha rica, livre e independente, sem marido e sem filha que a tolhessem, viu castigada a prosápia dando com a filha no palco de um teatro, e quando procurava consolar-se desse desgosto, encontra desgraçado e cada vez mais vil o homem cujo nome usava, e é roubada e ameaçada de morte pelo filho que o crime lhe dera e a quem mais tarde havia de perdoar e pedir perdão sobre as tábuas do cadafalso.
A baronesa Danglars tirada em braços do cadafalso onde caíra a cabeça do filho, foi, sem que ninguém visse nela mais que uma humilde e piedosa irmã de S. Lázaro, impressionada pelo terrível acto que presenciara, levada para o hospital da missão, onde morreu passados dois dias e duas noites de atroz delírio.
Eugénia Danglars, a desdenhosa jovem que, tendo visto a seus pés como rica e formosa que era, os moços mais nobres e simpáticos da sociedade francesa; tendo sido noiva do elegante filho do conde de Morcerf, o excelente e desditoso Alberto, viu-se depois ludibriada e coberta de ridículo por um falso príncipe, que não passava de forçado fugido das galés, e abandonando os pais à vergonha e desgosto em que tal fatalidade os lançara.
Foge com uma amiga, lança-se na vida sempre aventureira do teatro e acaba por se enamorar de um homem infame, de um salteador terrível que a rapta e a desgraça para sempre.
Aí ficou arrastando o luto do amante justiçado, e a dor de sentir que o amava até ao fim apesar da sua infâmia e da vil traição que lhe fizera. Corre com a sua inseparável Luísa d'Armilly os principais teatros da Europa e da América, trabalhando corajosamente para uma filhinha que deve à noite tre-menda das catacumbas romanas, onde, sobre um altar profanado, foi encontrada sem sentidos, quando lhe prenderam o amante.
A filha de Vampa é hoje uma das mais distintas divas que encantam os dilettanti dos Dois Mundos.
O conde de Monte Cristo depois de se dirigir a Paris e de percorrer cheio de humildade todas as sepulturas daqueles que na sua cegueira vitimou, com ou sem justiça, implora humildemente perdão aos descendentes do conde de Morcerf e de toda a família de Villefort. Edmundo foi a Roma, onde depois de fazer confissão geral dos seus pecados, tomou ordens, e regressando a França, voltou a Marselha, onde entrou num hospital que encontrou próximo da aldeia dos catalães; isto é, próximo do lugar onde jaziam as cinzas de seu pobre pai, e onde residia a sua antiga noiva, a cuja culpa involuntàriamente aplicara tão horrível castigo.
O hospital, com a sua ermida de uma construção singelíssima, era então por assim dizer o primeiro esboço das construções que existem hoje povoando aqueles rochedos, como guardas avançadas da cidade.
Alberto Mondego e Mercedes habitavam ainda a casinha da antiga aldeia dos catalães.
Alberto, a quem Benedetto fizera uma doação importante do dinheiro que tirara ao conde de Monte Cristo, empregou esse capital estabelecen-do-se no comércio que desde muito tempo lhe inspirava vivos desejos. O nome de Benedetto era abençoado entre Alberto e sua mãe, naquela paz íntima que eles gozavam.
Todavia, Mercedes ferida de um desgosto profundo desde a morte de seu esposo, caminhava progressivamente para o sepulcro.
Alberto, inquieto com o abatimento físico de sua pobre mãe, já tinha consultado dois dos melhores médicos de Marselha e eles concordaram depois de alguns meses, que Mercedes sucumbiria em pouco tempo, no caso de se lhe declarar uma bronquite, o que muito receavam, pela febre lenta e progressiva que a devorava.
Quanto mais se aproximava o período fatal da doença, tanto mais sossegada ela parecia, deixando transluzir a chama pura da sua alma inocente.
Uma noite, sentiu-se Mercedes muito abatida; uma agonia terrível a oprimia; parecia-lhe que não havia ar no espaço do seu quarto; sentou-se na cama e mandou chamar Alberto, que subiu logo. O pobre mancebo estremeceu apenas olhou para o rosto pálido e cadavérico da mãe; um suor frio lhe banhou a fronte, e o coração agitado começou a pulsar-lhe com um movimento nervoso e bastante irregular.
- Meu filho - disse Mercedes, forçando um sorriso doce - eu desejava preparar-me para comparecer perante Deus!
Pois já, minha mãe? - disse Alberto faltan-do-lhe a voz para completar o sentido das palavras, e abraçando cheio de amor e respeito o corpo frágil de Mercedes.
- Sim sim - tornou ela fazendo-se mais lívida e abrindo muito a boca para respirar. - Um confessor, meu filho, um confessor, depressa.
Alberto saiu precipitadamente do quarto e correu como um louco pelo rochedo com intenção de se dirigir à cidade; porém, maquinalmente, bateu na porta da ermida repetidas vezes. Momentos depois, viu diante de si a figura austera de um padre.
- Que quer, meu filho?
- Pelo amor de Deus, padre, venha socorrer a minha mãe que está a expirar.
O sacerdote não hesitou e seguiu Alberto para o quarto de Mercedes.
Quando chegou ali, ela já não distinguia bem os que a rodeavam: a morte, pela sua proximidade, já tinha lançado a sua poeira de gelo no rosto da vítima.
- Eis o ministro de Deus, minha mãe - disse Alberto chegando-se ao leito.
- Pois bem, meu filho, deixa-me um instante; a minha confissão será breve; eu pouco tenho que dizer.
Alberto beijou-a e saiu para a sala imediata. O religioso ficou só em frente da moribunda. - Venha, padre - murmurou ela.
- Oh! Deus! - disse ele conservando-se no mesmo lugar, como se os pés lhe estivessem pregados no chão e com o olhar cravado no rosto de Mercedes. - Oh! Deus Todo Poderoso, recebe no teu seio aquela alma pura, que bem torturada parte deste mundo! Mercedes!... - continuou ele a meia voz, aproximando-se então do leito. - Eu preciso do teu perdão!
- O padre?
- Sim, eu, que fui um insensato quando julguei poder sufocar no peito o amor que me inspiravas! Eu, que fui um malvado quando, para me vingar de Fernando Mondego, desfiz o edifício da tua felicidade e te obriguei a compartilhar a miséria e a vergonha dele!
- Padre, que diz? Quem é que assim fala com arrependimento do meu passado?
- Mercedes, Mercedes, eu não seria digno do teu perdão se não me sentisse verdadeiramente arrependido! Perdoa-me, pois.
-Oh! Deus poderoso! - murmurou ela. - Quem quer que seja, eu perdoo-lhe do íntimo da alma!
- Obrigado, obrigado.
- Edmundo! - disse ela a meia voz.
-Sim, sim, sou eu Mercedes! O teu cruel e insensato amante! Ah! Eu carecia também do teu perdão para morrer na paz do Senhor!
- Meu filho! - gritou logo Mercedes com as faces repentinamente incendiadas pelo delírio. - Meu filho, este homem quer talvez vingar-se ainda em ti da afronta que sofreu de teu pai!
- Piedade! - disse Edmundo pegando-lhe na mão e unindo-a ao peito com um movimento involuntário.
- Minha mãe, sossegue, eis-me aqui! - exclamou Alberto precipitando-se nos braços dela.
Edmundo afastou-se então do leito e, tomando nas mãos o crucifixo de marfim que pendia da parede, começou a murmurar uma oração pela alma de Mercedes. Seguiu-se meia hora de profundo silêncio, apenas interrompido pelas orações do sacerdote e pelo respirar cavernoso e informe da moribunda.
Depois, Alberto soltou um grito de dor, caindo de joelhos ao lado da cama e colocando os lábios na mão fria de Mercedes. Ela já não existia. A expiação estava consumada.
Alberto conservou-se por algum tempo abraçado ao cadáver de sua adorada mãe.
Edmundo compreendia a dor que afligia Alberto e tratou de o afastar do cadáver.
Alberto quis até onde fosse possível consagrar ao corpo de sua mãe todos os minuciosos cuidados.
Escolheu pela sua mão a roupa que lhe deviam vestir; o vestido, os ornatos e entre eles uma cadeiazinha de ouro com uma medalha fechada que achou escondida na gaveta, com a recomendação, escrita num pedacinho de papel pelo punho de Mercedes, de lha lançarem ao pescoço depois de morta. Era o retrato de Edmundo Dantes.
Depois de vestida e pronta para a sua triste jornada, Alberto foi contemplá-la e abraçá-la mais uma vez.
Meteu-a ele no caixão, estendeu-lhe sobre o rosto um lenço em que tinha enxugado o pranto, e guardou no peito o que Mercedes tinha usado a limpar o rosto durante os afrontamentos terríveis da morte. Feito isto, olhou pela derradeira vez para o cadáver
e fechou o caixão que devia ser transportado à ermida.
Durante a noite, Alberto e Edmundo velaram ao lado do féretro. Alberto respeitou todos os segredos de sua mãe, abstendo-se de fazer a menor pergunta a Edmundo. Este parecia uma estátua de mármore, tanto o dominava a dor, sem consolação e sem esperança de não poder remediar o mal que outrora, no seu louco devaneio da riqueza, julgara ser obra de uma justiça superior.
No dia seguinte, quando Alberto se convenceu em presença do sono profundo da morte que já não havia nada a esperar e que viu aberta a cova que tinha de esconder para sempre o corpo de sua mãe, chegou-se a Edmundo e disse-lhe com lágrimas nos olhos:
- A dor de um filho que perde a mãe, só a Pode compreender quem desde a infância, retribuiu sempre a sua mãe o amor sagrado que ela lhe tributava! Quero que esta ermida seja comprada e sustentada enquanto eu viver, dizendo-se nela uma missa todas as quintas-feiras, pela alma de minha mãe.
O sacerdote escutava-o em silêncio.
- Quem quer que seja, padre, calculo que debaixo da humanidade do seu hábito não bata um coração orgulhoso nem hipócrita. Peço-lhe, pois, pelo amor de Deus, que aceite a residência que vou abandonar e a conserve tal qual está, sem a menor diferença na sua posição interior ou exterior. O meu quarto será o seu; tudo providenciarei para a sua subsistência, e aqui terá também um abrigo para morrer na paz do Senhor.
O sino da ermida dos catalães tocava a finados. Edmundo baixou a cabeça comovido e murmurou uma palavra santa.
- Padre - continuou Alberto, com rapidez, para não ser testemunha da perturbação de espírito em que estava aquele infeliz - confio à sua guarda o túmulo de minha mãe!
E afastando-se, dirigiu-se à cidade. Comprou o terreno da casa e da ermida: depositou o dinheiro em casa de um banqueiro, para acudir às prestações que prometera a Edmundo; e deixando tudo disposto, saiu de França.
Dois dias depois foi encontrado um sacerdote morto sobre uma sepultura.
O sacerdote era Edmundo Dantes.
A sepultura era a de Mercedes.
Alexandre Dumas
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