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Josh encontrava-se sentado, o corpo convertido numa bola tensa, braços firmes em torno dos joelhos e costas apoiadas ao poste de um canto da cama. Conservava a cabeça inclinada para baixo e erguia-a levemente de vez em quando, para espreitar. Havia demasiada gente à sua volta. Não queria que estivessem ali. O quarto constituía o espaço dele e não dos outros. As suas coisas pertenciam-lhe, não queria que estranhos lhes tocassem.
A mãe permanecia junto da porta, a chorar, o que lhe desagradava. Detestava ouvi-la chorar e saber que a culpa era dele. Até então, dera-se conta disso, quando o fazia privadamente. Agora, era diante de todos. E a culpa pertencia-lhe.
Ela não devia ter mexido na mochila. Na verdade, ele nunca pensara que ela o faria. A mãe gostava de respeitar a propriedade privada de cada um. Josh deplorava que tivesse procedido assim. E ainda lhe custava mais não poder responder às suas perguntas. Não tinha possibilidade de lhe falar do Captor, sob pena de acontecerem coisas hediondas. Ainda piores que as actuais. A ideia apavorava-o tanto que também desejava chorar, mas nem isso ousava fazer.
Josh? Podes dizer-nos alguma coisa sobre como o gorro foi parar à tua mochila?
O chefe Holt sentava-se na borda da cama e olhava-o com uma expressão grave. Josh fitou-o por um momento e desviou o olhar para o polícia de pé junto da cómoda. As algemas reflectiam a luz no cinturão preto. Talvez eles acabassem por prendê-lo e encerrá-lo numa cela. Talvez pensassem que o outro miúdo era um «extinto» por culpa sua. O medo acudia-lhe à garganta e ele tentava engoli-lo.
Alguma vez viste este rapaz?
O outro polícia, à paisana, segurava na sua frente uma folha de papel com uma fotografia do «extinto». Josh cobriu o rosto com as mãos e espreitou por entre os dedos. O polícia parecia-se um pouco com Tom Hanks, com a diferença de que não era nada engraçado. Pelo contrário, dir-se-ia impaciente.
Alguém te ofereceu o gorro?
Encontraste-o algures?
É muito importante que nos digas.
Podias salvar a vida a este rapaz.
Eles não compreendiam. Não sabiam nada sobre o Captor ou o que significava ser um extinto. Na verdade, havia um número elevado de coisas que desconheciam. Josh fechou os olhos com firmeza. Mentalmente, abriu a porta do seu lugar secreto e entrou, onde ninguém o poderia alcançar, assustar ou fazer perguntas a que lhe fora recomendado não responder.
Wilhelm desviou o olhar da cama e sacudiu as mãos aos lados do corpo, num gesto de frustração. Mitch levantou-se lentamente, como que extenuado.
Não podemos fazer alguma coisa? murmurou o outro, com ansiedade. Hipnose? Pentotal de sódio?
Acho que tem razão, Marty ironizou Mitch. Suponho que nada se opõe a que droguemos crianças para lhes arrancar as respostas pretendidas.
Voltou-se para Hannah, que tremia, de olhos congestionados e agitados. Não o surpreenderia que se entregasse ao desespero; porém, ela mantinha-se senhora de si. De súbito, aproximou-se do filho, puxou-o para os seus braços e embalou-o, provavelmente tanto para o confortar como a si própria. Ao menos, tinham conseguido manter a imprensa à distância. Para já. Como ela lhe telefonara para casa, Mitch tivera a possibilidade de impor o silêncio à rádio e reunir o seu pessoal através de meios menos detectáveis. A situação não se manteria por muito tempo, naturalmente. Quando se retirassem da casa, talvez já houvesse repórteres acampados no relvado. No entanto, de momento, o peso opressivo ainda não se fazia sentir.
Outro peso ausente era Paul, pois ninguém o prevenira. Decerto argumentaria que lhe assistia o direito de estar presente, e talvez fosse assim, mas constituía uma complicação que ninguém desejava. Sobretudo Hannah, em particular depois da cena que protagonizara naquele serão. Ela precisava de uma âncora emocional, alguém que a tranquilizasse e, com esse objectivo em vista, haviam recorrido ao padre Tom, o qual se encontrava agora junto da porta do quarto e parecia mais um vagabundo que outra coisa, com a barba por fazer e o cabelo castanho desgrenhado.
Se dispõe de uma pausa com o Homem Lá de Cima, padre, ficávamos-lhe gratos com a sua presença explicou Mitch.
Arranjam-se sempre uns minutos livres.
O interpelado cruzou o pequeno quarto e inclinou-se, a fim de pousar a mão no ombro de Josh e murmurar-lhe algo ao ouvido.
Que acham? perguntou Ellen North, afastando-se para o corredor. Mitch seguiu-a. Apercebeu-se de Wilhelm no seu encalço e lamentou que não fosse Megan que estivesse presente.
A Hannah garante que o filho esteve sempre sob vigilância desde que regressou. Ninguém podia ter-lhe dado aquilo sem que se apercebesse. E o Josh nunca perdeu a mochila de vista. Portanto...
Alguém se introduziu na casa pela calada da noite e colocou o gorro na mochila? Sem o conhecimento dela? Parece-me uma hipótese muito forçada.
Se tem outra melhor, ouçamo-la.
O Wright regressou à sua residência, ao fundo do quarteirão interpôs Wilhelm.
Nunca se atreveria a aproximar-se destes lados insistiu Mitch. Mas precisaremos de uma relação de todos os que estiveram aqui nos últimos dias.
A chave de tudo é o rapaz asseverou o outro. Conhece as respostas a todas as nossas perguntas encerradas na cabeça. Persisto na hipnose.
Mitch voltou-se para Ellen.
O que ele revelasse sob hipnose teria aceitação no tribunal?
Haveria luta acesa. A defesa não se pouparia a esforços para nos arrasar com argumentos contundentes. De um modo geral, o depoimento de crianças não é considerado muito fidedigno. São altamente sugestionáveis, susceptíveis a que lhes instalem ideias na mente: no consciente e no inconsciente. Mas se o Josh pudesse revelar alguma coisa que ajudasse a seguir uma pista concreta para localizar o Dustin Holloman ou indicar a identidade do cúmplice, mereceria a pena efectuar a tentativa.
Mitch ponderou os prós e os contras e decidiu:
Vou consultar a Hannah.
Encontraram mais alguma coisa na mochila?
Está tudo na sala de jantar.
Estava aberta, com o conteúdo espalhado em volta como as entranhas de um animal estripado. Ellen sentiu-se invadida por uma ponta de amargura ao ver as coisas que o garoto reunira, como se receasse que tornassem a raptá-lo, e desta vez queria que o acompanhassem fragmentos da sua vida. Assim, havia vários brinquedos pequenos e um canivete de escuteiro. Uma lanterna eléctrica para dissipar a escuridão. Um walkie-talkie para entrar em contacto com a mãe. Uma escova de dentes, com uma minúscula «tartaruga mutante ninja» presa ao cabo. Um instantâneo dele, com a mãe e a irmã, tirado no dia do baptismo da bebé, em que ele vestia um fato azul, o cabelo sem dúvida fixado com laca e um sorriso de orgulho nos lábios, enquanto segurava Lily nos braços.
Pobre criança... murmurou Wilhelm, fazendo deslizar o dedo ao longo de uma velha bola de basebol, com várias manchas de relva.
Como se a sua vida não fosse já suficientemente dura, tivemos de nos introduzir em sua casa e violar-lhe a privacidade deplorou Mitch.
Ellen fixou o olhar num bloco de apontamentos em cuja capa se lia: Caderno de Pensamentos do Josh. Para o Josh da mamã. Um coração meticulosamente desenhado sublinhava o sentimento. Mitch tinha razão. Dir-se-ia que estavam empenhados em devassar a infância do garoto.
Procurou uma esferográfica na bolsa e utilizou-a para levantar a capa do bloco. O acto era produto de um hábito antigo para não produzir impressões digitais.
Sabia perfeitamente o que desejava encontrar; os nomes dos raptores de Josh, desenhos do lugar em que o haviam retido. O que, porém, se lhe deparou foram rabiscos pequenos e estranhos de quadrados pretos e rostos tristes, de rugas finas onduladas. Numa das páginas, ele escrevera: Quando eu era um extinto, e, por baixo, pontos de tinta quase imperceptíveis traçavam olhos e uma boca. Não havia qualquer admissão ou revelação apenas os pensamentos fracturados de uma criança alterada.
Não vejo qualquer interesse em ficar com isto decidiu, por fim. Basta procurar eventuais impressões digitais.
A porta da rua abriu-se e fechou-se, o que fez introduzir uma rajada de ar frio e animosidade. A voz do xerife Steiger vibrou desagradavelmente como folha de lixa no asfalto.
Onde diabo está o Holt?
O chefe encontra-se na sala de jantar, xerife. Mitch emitiu um som indefinível entre dentes e Ellen apertou o casaco à sua volta.
Vou andando. Se precisarem de alguma coisa, telefonem-me.
Steiger quase colidiu com ela quando se dirigia pesadamente para a sala de jantar, o rosto crestado contraído em rugas de fúria. A advogada afastou-se com prontidão, sem o menor desejo de participar na escaramuça iminente. O caso Holloman pertencia a Park County e não à cidade de Deer Lake.
Vai sair, Miss North? perguntou Noga, estendendo a mão para lhe abrir a porta, ao mesmo tempo que começavam a soar vozes alteradas no aposento contíguo.
Vou. Os decibéis demasiado elevados afectam-me os tímpanos. Boa noite, Noogie.
Com estas palavras, Ellen imergiu na atmosfera glacial, enquanto extraía da algibeira do casaco as chaves do carro, uma viatura que Manley Vanloon lhe cedera, enquanto a sua era sujeita a reparações. Tratava-se de um Cadillac enorme, que quase a embaraçava ter de utilizar, pois, se havia alguma coisa que detestava, era despertar a atenção.
Pelo canto do olho, apercebeu-se de que alguém bloqueara o carro no caminho de acesso, e estacou quando viu quem era.
Mais uma noite longa, doutora disse Brooks, apeando-se do Cherokee. Mais uma noite longa e fria. Posso dizer uma coisa encomiástica sobre o clima destas paragens: convida a passar essas noites longas e frias entre os lençóis e com companhia. Nunca pensei que viria a considerar o sexo uma táctica de sobrevivência. Acha que isso o despe de todo o prazer?
Não faço a menor ideia replicou ela, dirigindo-se para o Cadillac.
Podíamos certificar-nos.
O capuz da parka dele emoldurava-lhe o rosto e conferia a impressão de um lobo a olhá-la vorazmente da entrada do covil. O seu interesse nela era de auto-satisfação, ideia assaz degradante quando aplicada à sua capacidade profissional.
Antes morrer de hipotermia, mas prefiro que não seja aqui, pelo que lhe ficava extremamente grata se retirasse o seu camião do meu caminho.
Ele inclinou-se para trás, surpreendido, como se a tirada verbal que acabava de ouvir o tivesse atingido em cheio no rosto.
A propósito, que faz aqui? perguntou Ellen. Não acredito que se inteirasse disto através da rádio ou da televisão.
Limitei-me a seguir o Steiger. Estávamos a tomar uns copos no Blue Goose.
Que enternecedora camaradagem! Se está tão empenhado em ir para a cama com alguém, ouvi dizer que ele não se opõe a ser fornicado por uns fragmentos de informação.
Obrigado, mas não é o meu tipo.
Tenho uma novidade para si. Eu também não. O seu amigo Costello disse-lhe o contrário?
O Costello? Que tem ele a ver connosco?
Explique-mo você. Não. Ergueu a mão para evitar a resposta. Já me têm mentido e manipulado o suficiente ultimamente.
Nunca lhe menti.
É uma questão de semântica. Não tem falado verdade, embora isso me preocupe pouco. Vá, tire a carripana daí que quero ir para casa.
Deslizou para trás do volante do Cadillac, cuja porta fechou quase com violência, vagamente esperançada em esmagar um ou dois dedos ao interlocutor. No entanto, ele subiu para o Cherokee ileso e procedeu à inversão de marcha. O clarão de faróis proveniente do Sul anunciou a chegada dos primeiros representantes dos media. Dentro de poucos minutos, a rua estaria cheia deles. O ruído acordaria os vizinhos, que assomariam para investigar a causa, esperançados em figurar nos noticiários matinais.
As janelas da residência de Garrett Wright estavam imersas em escuridão. Estaria a dormir, alheio à última agitação, ou permaneceria sentado nas trevas, sorridente?
Hás-de cometer um erro, mais cedo ou mais tarde murmurou Ellen. A única coisa que tenho de fazer é levar-te a julgamento.
Quando passou do estreito caminho de acesso à rua, os faróis atrás de si seguiram-na. Brooks. Acudiram à mente dela visões de homicídio perpetrado com um veículo. Podia embater na viatura dele e reduzi-la a sucata. Sentia-se cansada, deprimida e desiludida o momento apropriado para uma confrontação.
Acaba com isto de uma vez por todas. Afasta-o da tua vida, antes que voltes a cometer um deslize.
Não pronunciou uma única palavra quando o deixou entrar. Harry irrompeu da cozinha para os saudar, olhou o rosto da dona e afastou-se em direcção ao quarto.
Não dispa a parka, porque não se vai demorar advertiu Ellen, desembaraçando-se do casaco.
Tenho direito a ouvir as acusações contra mim, ou passamos directamente à sentença?
Ele encostou-se à parede, perfeitamente à vontade, como se não tivesse o menor interesse em saber de que era acusado.
Frequentou a Purdue, como bolseiro de basebol começou ela, recitando a informação que confirmara no artigo da Newsweek.
A maioria dos estados não considera isso crime, mesmo que eu não acertasse na bola com o taco.
Permaneceu lá na faculdade de Direito prosseguiu, ignorando a tentativa de humorismo.
Ante a amargura da minha família. Quase não se atreviam a aparecer nas funções escolares de Auburn.
O Tony Costello também frequentou a Purdue.
Como o mundo é pequeno, hem? Ele nem pestanejou.
Apareceu aqui, com um interesse especial por este caso. De repente, o Wright dispensa o seu advogado e introduz o Costello no cenário, um defensor cujos honorários não pode pagar com o seu salário de professor.
Está a implicar que fui eu que o mandei vir? Com que objectivo?
Você veio em busca de um enredo para fazer um romance. Talvez tivesse um desenlace especial em mente. É possível que se especialize em manipular pessoas. Quem sabe se é da laia do Wright e tudo não passe de um jogo para si?
Pinta-me como um mestre da arte do crime! Ellen olhou-o com intensidade e aproximou-se dele, o corpo rígido de cólera.
Não pretenda divertir-se à minha custa. Estou-me nas tintas para a natureza do seu jogo. A única coisa que precisa de saber é que parei com as brincadeiras. Terminaram as visitas ao interior do gabinete da acusação. Vá queixar-se ao Bill Glendenning, se quiser, embora eu duvide de que fique muito surpreendido, depois de considerar as ramificações de o envolver nisto. Quer candidatar-se a governador. O povo do Minnesota não aceitará com satisfação a ideia de que negociou a justiça de uma criança para se bronzear ao fulgor de uma celebridade discutível.
Safa! Brooks estremeceu. Tem uma língua viperina, cara amiga. Devia mandá-la registar como uma arma perigosa.
O seu olhar moveu-se para a boca dela e Ellen compreendeu que desta vez fora ela quem se havia aproximado demasiado. Com efeito, se ele afastasse as costas da parede, o contacto dos dois corpos seria inevitável. Não obstante, recusava retroceder.
Que diria se lhe assegurasse que não conheço o Costello? acrescentou ele.
Responderia que não tenho qualquer motivo para acreditar em nada do que me diz.
Hum... Estamos a contas com um pequeno problema de confiança.
Não pode haver problemas com algo que não existe. Não confio em você e ainda menos nele.
Porquê? A curiosidade tornou a expressão dele mais interessada. Que fez para merecer a sua animosidade?
É um autêntico tubarão. Fará o que for necessário para ganhar um processo ou qualquer outra coisa que pretenda.
E ele pretendia-a? É à volta disso que tudo gira, não é, Ellen? Por assim dizer, o Costello fodeu-a, figurada e literalmente...
Ponha-se na rua! ordenou Ellen. Já disse o que tinha a dizer. Sabe onde é a porta. Procure-a. Utilize-a.
Brooks segurou-a pelo braço no momento em que começava a afastar-se. Num movimento estonteante, ela viu-se encostada à parede e ele a pressioná-la, o rosto a milímetros do seu.
Acho que não, doutora. Só depois de ter uma oportunidade para me defender.
Não estamos num julgamento. Aqui, não tem quaisquer direitos. Não sou obrigada a ouvi-lo. Não tenho de o aturar.
Ah, isso é que me vai ouvir grunhiu ele. Tenho sido acusado de muitas coisas, ao longo da vida, e culpado da maioria. Mas só conheço o Costello de pouco mais do que «bom dia» ou «boa tarde». Encontrámo-nos uma ocasião num jantar de antigos alunos. Tentou convencer-me a escrever um livro sobre determinado processo em que estava envolvido e recusei. Não me sentia minimamente interessado em contribuir para lhe incrementar a carreira. Não vim aqui para renovar as nossas relações e ainda menos influí na vinda dele.
Quer convencer-me de que a presença de ambos não passa de mera coincidência?
Acredite ou não, tanto se me dá. Já disse o que pretendia. Vim para assistir ao desenrolar deste caso e obter material para uma história e não provocá-la.
Mas está a obter o que procurava, não? murmurou Ellen, rangendo os dentes.
Não digo o contrário.
Entretanto, reflectia que tinha na sua frente um indivíduo que ostentava o termo Perigoso ao longo da fronte. Constituía uma ameaça. Profissional e sexualmente.
Você, só por si, representa uma história, doutora. Quero saber mais a seu respeito. Tudo.
A admissão suscitou uma espécie de palpitação em todo o corpo dela, de uma natureza que suscitou um espasmo de embaraço e vergonha. Nada se alterara. Continuava a não confiar nele. Brooks não tinha nada a lucrar ao reconhecer um conluio com Costello e muito a perder. Por outro lado, teria tudo a ganhar se a seduzisse.
Eu possuía-a agora mesmo sussurrou ele, fazendo deslizar o indicador ao longo do rosto dela e imobilizando-o na área acima dos seios. Se você não se opusesse.
Ellen recuperou a voz com grande dificuldade, e as palavras brotaram sem firmeza:
Nem pense.
Pois é. Ele exibiu uma expressão de cansaço no olhar. Tem excesso de prudência, falta-lhe o tempo, devido a uma agenda demasiado preenchida. Não sou um lume instantâneo que possa apagar por meio de um interruptor. Se se aproximasse muito, poderia queimar-se. Deus nunca permitiria que se arriscasse e cometesse um erro.
Isto não diz respeito apenas à minha pessoa.
Não? Se não fosse este caso, estaríamos na cama? Encontrar-me-ia dentro de você neste momento?
Se não fosse este caso, não estaria aqui.
Brooks reflectiu que não estava em jogo a mera pretensão de possuir uma mulher. Tinha de ser aquela.
Pois não admitiu, após uma pausa. Mas encontro-me aqui agora. Quer tentar redimir-me?
Haveria algum interesse em tentar? Ela não fez a pergunta, com receio da natureza da resposta. A expressão que lhe aparecera no olhar constituía um misto de emoções, nenhuma das quais tranquilizadora, e que, de resto, não podia sequer considerar. Pelo menos agora, quando se achava sob o efeito de um peso enorme nos ombros. E, quando o julgamento terminasse, Brooks partiria, com a missão cumprida, rumo a uma tragédia de outrem.
Se é a redenção que procura, converse com um padre acabou por dizer, a meia voz. Não está sob a minha responsabilidade. Não sou imbecil ao ponto de imaginar o contrário.
De facto, imbecil não é. Ele encolheu levemente os ombros e voltou-se para o pequeno armário onde ela conservava as bebidas. Verteu dois dedos de uísque num copo e esvaziou-o de um trago. Vim por motivos pessoais. Em busca de respostas.
Ellen tinha a convicção de que essas respostas tinham pouco a ver com Josh Kirkwood ou Garrett Wright. De que se revestiam mais de interesse pessoal do que profissional.
E encontrou-as?
Não admitiu ele, com ar amargurado. Pelo contrário: as perguntas tornam-se cada vez mais difíceis.
Ela acompanhou-o à porta, combatendo a necessidade de lhe perguntar pela verdade. Por fim, optou por não se pronunciar.
Tem razão, doutora assentiu Brooks, antes de sair. Siga sempre pelo bom caminho. Não sou companhia recomendável para ninguém. É um facto comprovado.
Inclinou-se para lhe dar um beijo formal de despedida, que parecia transportar um misto de mágoa e uísque, e desapareceu na noite.
As ruas de Deer Lake estavam privadas de vida. Os próprios cães vadios não se aventuravam a percorrer ruas com temperaturas muito abaixo de zero, intensificada pelo vento cortante. Uma noite própria para incautos e polícias. As patrulhas mantinham-se nas estradas para recuperar os insensatos que se precipitavam em ravinas. Por seu turno, os detectives desafiavam a intempérie para explorar a pista mais recente de um caso que se mantinha impenetrável.
Jay permanecia sentado ao volante do carro estacionado na esquina de Lakeshore Drive, com o motor ligado, enquanto ponderava se devia voltar à residência dos Kirkwood. No entanto, a imprensa aparecera, e ele sabia que qualquer oportunidade de obter um elemento novo se extinguira. De resto, acabava de descobrir que não estava muito interessado nisso. O acesso de adrenalina que surgira no contacto com Steiger no Blue Goose esgotara-se. Agora, apenas sentia um vazio íntimo indefinível que o impediria de visitar a casa em Ryan’s Bay.
Por fim, pôs o Cherokee em marcha e seguiu para Dinkytown, onde os comércios pareciam abandonados e os prédios em decadência. Um empregado mantinha-se atrás do balcão de uma loja de conveniência, um oásis que não atraía ninguém.
Ainda havia luz acesa em algumas janelas de dormitórios no campus da Universidade Harris; porém, os edifícios das aulas achavam-se imersos nas trevas. Mesmo em plena noite, a universidade dava a impressão de tradição e dinheiro.
Garrett Wright pretendia que estava a trabalhar ali, no Edifício Cray, na noite do rapto de Josh, tal como Christopher Priest. Se fossem cúmplices nessa situação alucinada, por que razão não se teriam fornecido mutuamente álibis? Jay admitia que isso podia fazer parte do jogo. Tratar-se-ia de um pequeno fragmento de verdade para ajudar Priest a iludir o polígrafo.
Na realidade, o assunto tornava-se cada vez mais curioso, reconhecia Brooks, enquanto se afastava do local e enveredava pela Old Cedar Road. Os segredos e pecados existentes sob a superfície de vidas aparentemente vulgares sempre o haviam fascinado. Coisas de que ninguém suspeitava desenrolavam-se por detrás de fachadas de normalidade em cenários poéticos como Deer Lake.
Travou o carro a meio de uma rua deserta, acendeu um cigarro e dirigiu o olhar através da janela do lado do passageiro. Uma talhada da Lua iluminava debilmente a paisagem invernal e realçava a brancura da neve. Um quadro de paz absoluta.
Seguindo para sul, a artéria contornava o sector leste de Ryan’s Bay, onde tinha sido encontrado o blusão de Josh, nove dias atrás. Segundo a agente O’Malley, fora aí que a operação se iniciara, ao longo da faixa da solitária estrada distrital. Ocorrera aí o acidente de viação, que mantivera Hannah Garrison até mais tarde no hospital. Christopher Priest mandara um estudante fazer um recado e este utilizara a saída das traseiras do campus, como a maioria fazia. A sua viatura atingira uma inesperada e, segundo a agente O’Malley, manufacturada faixa de gelo que o fez derrapar para a mão contrária. A condutora do carro que seguia no sentido oposto tivera morte instantânea e um passageiro sucumbira a um ataque cardíaco à chegada ao hospital. Dois outros sinistrados foram transportados de helicóptero ao Centro Médico de Hennepin County, onde agora o estudante também se encontrava em condição crítica, por se haver desenvolvido uma infecção bacteriana que lhe ameaçava a existência.
Havia muitas vidas afectadas ou suprimidas em virtude daquele caso. E, se a agente O’Malley não se equivocara, tudo principiara ali, naquele local isolado e sossegado na periferia da cidade. À semelhança de uma pedra lançada ao lago, os efeitos originavam sucessivos círculos concêntricos.
Causa e efeito. A reacção em cadeia dos eventos. Brooks perguntava-se até que ponto o manipulador dos acontecimentos previra o que sucedia. Não podia adivinhar que Ellen North ficaria a cargo do processo ou que a história despertaria a atenção de um escritor de Eudora, Alabama, como uma evasão e um acto de auto-exame. Não obstante, escolhera um advogado com laços, embora oblíquos, com ambas as partes: Anthony Costello.
Acudiu-lhe a sensação de que era observado por olhos negros brilhantes de uma dimensão mais sombria, o que levou uma impressão de desconforto a percorrer-lhe a coluna vertebral.
Ele passara de observador para personagem da peça. Mais um preso na teia daquele crime.
É a sua profissão: passar de um conjunto de vítimas para outro. Isso impressiona-o ou está imunizado?
Imunizado, não. Precavido. Mantenho-me a uma distância conveniente. Não permito que a situação se torne pessoal.
Mentiroso.
Uma sensação de frio assolou-lhe os ombros, e ele estendeu a mão para ligar o aquecimento, mas descobriu que se achava ao máximo. A temperatura exterior devia estar incrivelmente baixa. Que fazia ali, como um imbecil, num lugar isolado a meio da noite? Não estaria muito melhor na cama com Ellen? Uma advogada que não lhe dispensava a mínima confiança ou respeito, apenas empenhada em que fosse feita justiça a uma criança, uma família, um polícia, uma cidade.
Não passas de um príncipe das Arábias acabou por concluir entre dentes.
Procurou novo cigarro, mas descobriu que o maço estava vazio. Resignado à inevitável realidade de uma noite em claro e mais introspecção, fez o Cherokee inverter a marcha e rumou ao campus da Universidade Harris, enveredando pelo caminho mais curto para o Tom Thumb. O empregado, um jovem corpulento com manchas vulcânicas de acne nas faces, vendeu-lhe uma embalagem com dez maços de Marlboro e ofereceu o habitual comentário sobre o tempo agreste.
Um veículo solitário que rolava para sul obrigou-o a imobilizar-se na periferia do parque de estacionamento do Tom Thumb. Directamente em frente, do outro lado da rua encontrava-se a loja de artigos em segunda mão denominada Pack Rat, onde Todd Childs trabalhava em tempo parcial, quando não organizava álibis para o seu mentor. Ninguém o tornara a ver desde antes de a viatura de Ellen haver sido vandalizada. Segundo alguns rumores, encontrava-se alojado num hotel de Twin Cities, por gentileza da equipa de Costello, que fizera circular a informação sobre o testemunho iminente. Mas também parecia possível que estivesse refugiado numa herdade algures, de guarda a Dustin Holloman e a executar o trabalho de sapa do plano demencial de Wright, enquanto este permanecia, confortável e calmamente, na sua residência, com a auréola da inocência à sua volta.
Jay conduziu o Cherokee para a faixa de rodagem, com algo sobre o Pack Rat a prender-lhe a atenção. Um reflexo na janela. Um débil clarão, como o foco de uma lanterna eléctrica.
Era uma hora estranha para procurar pechinchas numa loja de artigos usados.
Por outro lado, estaria alguém a assaltá-la? Mas que haveria lá merecedor de ser roubado? Provavelmente, nada do recheio valeria mais de dez dólares, além do que a caixa registadora não deveria conter uma soma espectacular. A menos que houvesse um cofre, com o conhecimento dos empregados. Todd Childs, por exemplo. Ou talvez ele tivesse deixado algo de crucial no local, uma coisa que não se podia arriscar a recuperar em pleno dia.
Por fim, decidiu marcar o 112 no seu telemóvel, para participar um assalto em execução, após o que desceu do carro, teve o cuidado de evitar que a porta produzisse qualquer ruído e guardou as chaves na algibeira, Escoar-se-iam preciosos minutos antes da chegada de um carro-patrulha. Embora o assaltante decerto não recorresse a um meio de transporte, se conseguisse sair da loja, restava-lhe começar a correr. Se se tratasse de Childs ou se este fosse cúmplice de Wright, era uma excelente oportunidade para o capturar e porventura encerrar o caso.
E se contribuíres para a detenção de um suspeito, pensa no aspecto publicitário, reflectiu, com sarcasmo. Pelo menos, seria a primeira reacção de Ellen, embora a opinião dela a seu respeito carecesse de importância.
Começou a encaminhar-se para o edifício em que a loja se situava, esperançado em que o assaltante não se apercebesse do ranger da neve sob os seus pés.
A porta abriu-se de rompante no momento em que ele a alcançava, atingindo-o com violência e obrigando-o a perder o equilíbrio. Seguiu-se a aparição de um vulto de negro, que empunhava um objecto curto e escuro, o qual embateu com violência num dos lados da sua cabeça e o fez cair pesadamente no chão.
Ele sacudiu a cabeça para tentar dissipar o princípio de aturdimento, ao mesmo tempo que se esforçava por determinar aquilo que o rodeava. Conseguiu pousar os joelhos e as mãos no chão no instante exacto em que o clarão dos faróis do Crown Vic lhe incidia em cheio, cegando-o. O ruído metálico indicou-lhe que o seu Cherokee também não seria poupado, pelo que tratou de rolar o mais depressa possível até à parede, onde se agarrou a um tubo vertical e tratou de trepar um pouco.
Entretanto, o veículo assassino efectuava uma série de manobras, com o inevitável chiar de pneus e nova colisão com o Cherokee.
O filho da mãe ia pôr-se em fuga. Se a Polícia não aparecesse nos segundos imediatos, desapareceria porventura para sempre.
A fúria surda obrigou-o a entrar em acção e descurar toda a prudência. Endireitou-se com dificuldade, como um ébrio, abanou a cabeça para recuperar a lucidez e começou a correr em direcção ao Cherokee, cuja porta do lado do passageiro parecia ter sido atingida por um aríete. Enquanto o Crown Vic rolava em direcção à estrada, primeiro passo para a liberdade, ele perdeu alguns segundos a contornar a sua viatura e sentar-se ao volante.
Após várias tentativas, o motor entrou em actividade, e Jay iniciou uma perseguição de cujo resultado não acalentava esperanças muito sólidas. Escoaram-se longos minutos, enquanto os dois veículos devoravam os quilómetros, ao mesmo tempo que ele procurava impedir que a distância que os separava se acentuasse. Não obstante, a presa, cuja designação era cada vez menos apropriada, afastava-se gradualmente.
Por último, desapareceu após uma subida íngreme. E, impossibilitado de dominar o volante no declive que se seguiu, Jay viu, horrorizado e impotente, o Cherokee abandonar a faixa de rodagem e ser impedido de tombar numa ravina pela interposição providencial de uma árvore.
Viu-se projectado contra a porta do lado do passageiro, cuja janela se achava estilhaçada, enquanto o radiador silvava. Seguiram-se momentos ou minutos? de aturdimento, até que começou a distinguir um clarão intermitente, que só se podia dever ao farolim rotativo do carro-patrulha.
O seu último pensamento consciente limitou-se a: Deixaste ir tudo por água abaixo, herói das Arábias.
Diga-me o que recorda.
Jay fechou os olhos e estremeceu. As dores deslizavam ao longo de todo o lado direito do corpo como uma maceta a tocar xilofone nas suas vértebras. O Dr. Baskir, um homem de pequena estatura, nariz enorme e sotaque estranho, examinara-o minuciosamente logo após a sua entrada no Hospital de Deer Lake e procedera ao tratamento preliminar. Anunciou que não havia qualquer vértebra fracturada e os músculos se manteriam «irritados» durante vários dias, além do que desinfectou devidamente os dois cortes num dos lados da cabeça e, com uma pinça, retirou os fragmentos de vidro de entre os cabelos.
De tudo isto, Brooks julgou-se autorizado a supor que viveria para poder contar a sua aventura, embora houvesse o inconveniente de a Polícia o obrigar a descrever os factos diversas vezes. Já o fizera ao adjunto do xerife, que chegara ao local do termo da perseguição escassos momentos após o despiste do Cherokee.
Agora, a trindade santa de Steiger, Wilhelm e Holt formavam um semicírculo em torno de uma das extremidades da marquesa de exame da sala das urgências. Todos apresentavam expressões graves e apreensivas, adjectivos que sem dúvida também se aplicavam ao sinistrado. Este encontrava-se sentado, com a calça amarfanhada coberta de sangue e a camisa rasgada pelo excessivamente zeloso pessoal da ambulância que o recolhera. O Dr. Baskir envolvera as vértebras numa ligadura fortemente apertada que o impedia de respirar com normalidade, o queixo estava fracturado, a cabeça latejava como se acabasse de receber o contacto persistente de um martelo-pilão e ele sentia um frio insuportável.
Já lhes disse por duas vezes lembrou.
Não reconheceu o tipo que surgiu da loja? perguntou Holt.
Só reparei que usava uma máscara de esqui. Atingiu-me com a porta e começou a correr. Não sei quanto media de altura, nem pude reparar no seu aspecto geral.
Por outras palavras, não sabe absolutamente nada, não é? rosnou Steiger. Os minutos de convívio que haviam tido no Blue Goose ao princípio da noite já não eram recordados por quem se vira privado das horas de sono habituais.
Com que foi atingido? quis saber Wilhelm.
Parecia um bastão. Curto. Preto. Doeu-me como um raio.
Holt entreolhou-se com o homem do BCA.
Dá a impressão de que é o que o Wright utilizou para atingir a Megan murmurou o primeiro.
Parece, de facto. Mas também podia ser uma lanterna eléctrica.
Ou qualquer objecto da sucata daquele antro aventurou Steiger. Mas para que se assalta um local desses?
É uma boa pergunta admitiu Mitch. O dono diz que nunca tem lá mais de cinquenta dólares, que, às sextas-feiras, leva para casa. O pessoal está ao corrente disso.
Talvez o objectivo não fosse o dinheiro sugeriu Ellen.
Encontrava-se junto da porta, esperançada em que parecesse descontraída em vez de que quase não se aguentava nos pés. Os homens desfizeram parcialmente o seu círculo e olharam-na com algum aborrecimento. Ela retribuiu a atitude, sem disposição para amabilidades. O seu olhar pousou em Brooks e, ao mesmo tempo, acudiu-lhe uma ponta de alarme, pelo que se esforçou por o desviar para Mitch.
Se foi o Childs, talvez tivesse alguma coisa guardada lá aventou. E, no caso de estar ligado ao Wright, pode tratar-se de qualquer elemento útil.
Estamos a revistar o local a pente fino. Wilhelm bocejou abertamente. Oxalá que haja alguma coisa que justifique o trabalho. Ainda que a busca tarde eternamente.
Ninguém nos garante que o assaltante não a levou consigo lembrou Mitch. E existem fortes possibilidades de não ter a menor relação com o nosso caso.
O que é que apurou sobre o carro? perguntou Ellen.
O Chi Ids conduz um velho Peugeot informou Mitch. Não obtivemos nada acerca desse Crown Vic.
Nem sequer o número de matrícula lamentou Steiger.
A chapa estava suja alegou Jay. E foi de noite.
Sim, pois... Por que razão temos de partir do princípio de que se tratava do Childs ou que este assalto se relaciona com os raptos? Quanto a mim, trata-se de mais uma monumental perda de tempo para nos desviar a atenção do que devíamos estar a fazer, só porque aqui o nosso Truman Capote decidiu fazer de Dirty Harry.
É uma imagem bem escolhida comentou Jay, secamente.
O xerife dirigiu-lhe um olhar acerado e anunciou:
Os meus homens têm a descrição do carro. Se o virem, interceptam-no. É até onde vamos levar as diligências. Quanto a mim, vou para casa.
Mas não deviam efectuar uma busca nas garagens privadas? Jay tentou soerguer-se, mas lamentou imediatamente a ideia. E se for esse o vosso homem? O autor do rapto do Dustin Holloman? Dispomos de algum motivo para pensar assim? Alguém ou alguma coisa nos garante que não se trata de um delinquente juvenil em busca de uns cobres. Mas se for o Childs... Steiger voltou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta.
Vou-me deitar. Não recebo telefonemas, a menos que se trate de um delito importante. Safa! disse Wilhelm a ninguém em particular. Quando a secção de pessoal tiver conhecimento das horas extraordinárias que esta investigação exige, come-me vivo
Que vão vender boletins para a porta da igreja retorquiu Mitch. Assim, talvez estabilizem as finanças.
Muito divertido... Enquanto o agente desaparecia no corredor, ele voltou-se para Ellen. Julgou que eu estava a brincar. Meneou a cabeça e dirigiu-se a Jay. Devia ter-nos deixado tratar do assunto,! Mister Brooks. Nós somos a Polícia e o senhor, o escritor salientou em tom paternalista exagerado. De futuro, não o esqueça. Basta que se lembre, por exemplo, dos carros que atingiu, ainda que de raspão.
Eu pago os estragos grunhiu Jay. Mitch virou-se de novo para Ellen.
Vou-me embora. Esta noite, não podemos fazer mais nada. Temos de aguardar para ver o que os rapazes do WiIhelm conseguem, embora exista a possibilidade de o Steiger ter razão numa das poucas vezes da sua vida e tudo não passar de um rebate falso. Preciso de recuperar umas horas de sono. Ao meio-dia, tenho de ir buscar a Megan ao hospital.
Ela assentiu, com uma inclinação de cabeça. Quando o outro se retirou, compreendeu a loucura que cometera ao comparecer. Que ideia se lhe metera na cabeça? Podia ter enviado Cameron como seu representante ou aguardado até de manhã. Brooks não oferecera qualquer revelação ou elemento útil, mas apenas o palpite de que o homem que perseguira era o que lhes interessava.
Que tem para dizer?
Chegou o momento de me acusar de ter encenado tudo para incrementar o interesse pelo meu livro?
Não acredito que nem sequer fosse suficientemente longe para sacrificar a vida. Aniquilaria o seu próprio objectivo, não acha? Por outro lado, a sala de espera está cheia de repórteres para o vitoriar como suposto herói.
Ele soltou uma gargalhada, que terminou num gemido de dor, e voltou a deitar-se na marquesa, ao mesmo tempo que rangia os dentes.
Pode crer, doutora, que nunca tive inclinação para herói. Não fazia a menor tenção de apanhar esse filho da mãe, até que tentou matar-me. Isso fez-me ir aos arames.
Afinal, que fazia você ali?
Andava às voltas no carro, a contemplar o significado da vida. Não deixa de ser irónico que quase consegui ver perfurado o meu bilhete de ingresso no paraíso.
Deixe-se de impertinências.
Ao mesmo tempo, ela perguntava-se como era possível que ele ainda tivesse ânimo para emitir comentários jocosos. Naquele momento, podia estar reduzido a um cadáver fragmentado em vários pontos, segundo a sua versão dos acontecimentos, largamente confirmada pela evidência.
Sabe quanto tempo é necessário para uma pessoa ficar mortalmente enregelada, numa noite como esta? acabou por perguntar.
Não, mas acho que já tinha percorrido a maior parte da distância. Jay começou a abrir e fechar gavetas na base da mesa, à procura de alguma coisa para substituir a camisa inutilizada. Será que não há aquecimento nesta espelunca? Que costumam fazer? Congelam os micróbios até à morte?
Divirta-se à sua vontade, mas, quanto a mim, já morreu ou foi afectada de algum modo demasiada gente neste jogo infernal! A situação não tem nada de engraçado.
Ellen precisava de se apoiar a alguma coisa, endurecer, pois as audiências principiariam na terça-feira. Não podia dar-se ao luxo de permitir que a pressão a dominasse.
Bem, tenho de me retirar acrescentou, após uma pausa.
Jay acompanhou-a com os olhos, ao encaminhar-se para a porta, enquanto dizia a si próprio que a deixasse partir. Por fim, estendeu o braço e pousou-lhe a mão no ombro.
Aguarde um momento, por favor.
Ela deteve-se, mas não se voltou. Ele viu por cima do ombro que tinha fechado os olhos.
Não precisava de ter vindo continuou. Estava preocupada comigo?
Devia estar com insónias.
Talvez... Colocou-se diante dela e segurou-lhe o queixo, para levantar o rosto. Tinha as faces pálidas, acentuadas por sombras de exaustão e tensão. De qualquer modo, estou-lhe grato acrescentou, num murmúrio.
Ellen não se opôs a que pousasse os lábios nos seus. Não passava de um simples beijo. Algo que ambos poderiam esquecer com facilidade. E fá-lo-iam.
Procure dormir recomendou ele, com vestígios do sorriso de pirata. Promete sonhar comigo?
Só se não me restar um único átomo de sensatez replicou ela e retirou-se.
Paul encontrava-se sentado no carro emprestado ao fundo de Lakeshore Drive. Não se atreveria a permanecer aí muito tempo, com receio de que alguma viatura da Polícia passasse e o vissem, pois nessa eventualidade os jornalistas não tardariam a aparecer. Duas semanas atrás, desejava que os media o procurassem. Agora, esforçava-se por evitá-los e conduzia meios de transporte cedidos por alguém, para que não o reconhecessem, o que fazia com que começasse a sentir-se como um criminoso.
Não havia ninguém a quem pudesse recorrer para obter um pouco de apoio. A família em St. Paul nunca fora outra coisa para além de um fardo e um embaraço. Não era um deles: trabalhadores manuais e viciados na cerveja. Colectivamente, tinham a profundidade intelectual de uma poça de lama. Descobria agora que não havia amigos nas suas relações. As pessoas que o tinham procurado para manifestar simpatia no início da actual provação contemplavam-no com uma reserva subtil. Ele notava-o sem margem para dúvidas e pressentia as barreiras emocionais que erguiam.
Era à companhia de Karen que desejava recorrer. Tentara telefonar naquela noite só para lhe ouvir a voz ao atender, mas o número fora alterado e o novo não figurava na lista. Não podia visitá-la, porque Garrett se encontrava lá e ela nunca o procuraria por estar receosa.
Não era que não o amasse, pois Paul estava convencido do contrário. Evocou a última vez que tinham feito amor, uma semana depois de iniciadas as pesquisas para encontrar Josh. No dia em que fora encontrado o blusão do garoto em Ryan’s Bay. Naquela noite, brigara com Hannah. E com Mitch Holt, o qual achava que devia prestar mais apoio à esposa. Ele retaliara à sua maneira procurando refúgio junto de Karen. Essa, sim, compreendia-o bem. Amava-o. Não lhe atribuía a culpa de coisa alguma.
Raramente se reuniam na casa devido ao risco que isso representava. No entanto, Paul fora lá, naquela noite. Ela recebera-o no quarto de hóspedes, onde se haviam desenrolado as actividades excitantes que só aquela mulher sabia provocar. Aceitava tudo o que ele lhe proporcionava e depois conservava-se-lhe fortemente abraçada.
É pena não poderes ficar.
Infelizmente, não posso mesmo.
Eu sei, mas oxalá pudesses. Ela ergueu a cabeça e fitou-o. Oxalá pudesse dar-te todo o amor e apoio de que necessitas. Quem me dera poder oferecer-te um filho... Teria o teu bebé, Paul. Passo o tempo a pensar nisso. Quando vou a tua casa e seguro a Lily nos braços, faço de conta que é minha... nossa.
É claro que ela não podia fazer por ele aquilo de que mais necessitava agora. Não podia conservar-se a seu lado, apoiá-lo, afastar-lhe as preocupações da mente... por causa de Garrett. Era por culpa da cabra de Ellen North que Garrett Wright se encontrava em liberdade sob fiança. Devia ter continuado na prisão até ao julgamento. Depois da leitura do veredicto, ficaria atrás das grades permanentemente.
Essa parte não se modificaria. Não era possível. Teria de se desenrolar tudo a seu favor. Paul achava que o merecia.
O edifício do tribunal estava encerrado oficialmente aos sábados, o que significava que eles disporiam do escritório por sua conta, com a imprensa impossibilitada de entrar. «Agradeçamos a Deus os pequenos favores», reflectia Ellen. Os repórteres tinham-se mostrado vorazes, na noite anterior, começando por assolar a área de Lakeside após a descoberta do gorro de malha de Dustin Holloman e mais tarde no hospital, na sequência da perseguição alucinada movida por Jay Brooks. Quando ela se retirara, encontrara Adam Slater à sua espera.
Estava a ver que tinha de ficar com os cojones congelados, se queria obter um comentário observou, com um largo sorriso.
Não tenho qualquer comentário a fazer replicou ela, desviando-se para o evitar.
Deixe-se disso, por favor. Só uma informaçãozinha para os leitores de Grand Forks. Contento-me com a sua opinião abalizada sobre o mal que impera no mundo.
Porque não sobre a bisbilhotice dos media, que não poupam ninguém? Tenho uma missão a cumprir, Mister Slater, e estou farta de tropeçar em vocês cada vez que dou meia volta. Não sou obrigada a revelar-lhe coisa alguma, e agradecia que me deixasse em paz.
Ele não apreciou a atitude. Nenhuma informação e um remoque. Decerto não perderia a oportunidade para a fazer parecer a «cadela suprema do Norte» nas páginas do Grand Forks Herald. Paciência. Tinham-lhe chamado coisas muito piores noutras ocasiões e sobrevivera. As opiniões pessoais dos repórteres eram as menores das suas preocupações.
Entrou no seu gabinete e passou a hora imediata em arrumações, ao mesmo tempo que se esforçava, em vão, por eliminar a sensação de que tinha sido invadida.
Como demónio conseguira ele entrar sem o seu conhecimento?
Como se explicava que o gorro de malha de Dustin Holloman tivesse ido parar à mochila de Josh?
Phoebe chegou pouco depois, com a sua efervescência natural aparentemente ainda afectada pelos incidentes da véspera. Largou a mochila numa cadeira e aproximou-se da máquina de café, com um suspiro abafado.
Cameron foi o último a aparecer, portador de uma embalagem de biscoitos de chocolate e desculpas por chegar tarde.
Fiz escala no centro dos defensores da lei informou, pousando a pasta na mesa de reuniões e despindo o blusão de esqui. O gorro de malha é indiscutivelmente o do Dustin Holloman. Os pais identificaram-no.
Eu sei. Falei com o Steiger a esse respeito.
O facto de estar em poder do Josh é quase sinistro murmurou Phoebe, com o olhar fixo na chávena de café.
Os chuis estão fulos volveu Cameron. A imprensa vai cobri-los de ridículo. O mau da fita circulou debaixo dos seus narizes em casa dos Kirkwood, para deixar lá o irritante objecto. Incrível.
Nós também não vamos ficar muito mais bem vistos recordou-lhe Ellen. A menos que disponha de um túnel que passe por baixo da área de Lakeside, o Garrett Wright não pode ter sido o autor da proeza.
O jogo das escondidas continua. Ele extraiu três processos da pasta e depositou-os também na mesa. Em seguida, apontando para cada um sucessivamente, disse: O telefone de casa do Wright, o do escritório e o telemóvel. Vejamos se conseguimos descobrir algum indício prometedor.
Nenhuma das relações continha os telefonemas destinados a Hannah, Mitch ou Ellen. Não havia qualquer número repetido fora do vulgar. Não encontraram nada, o que, segundo a maneira de pensar da advogada, era alguma coisa. Não havia em qualquer das listas uma chamada para o escritório de Tony Costello, o que significava que Karen Wright não lhe telefonara. E, nesse caso, restava uma alternativa óbvia.
Ellen sabia que ele era capaz de um egoísmo implacável.
O que fizera no caso de Fitzpatrick provava-o à sociedade. Mas aquilo ali constituía um passo mais avançado. Tinha desaparecido uma criança. Enojava-a pensar que ele podia ter conhecimento do crime e do criminoso e permanecia inactivo para alterar a situação.
À parte apelar à sua condição de ser humano, ela não dispunha de qualquer recurso. Tecnicamente, ele não fizera nada de ilegal. Faria o cobertor da confidencialidade estender-se o suficiente para se defender. As eventuais acusações de encobrimento e protecção seriam refutadas com eficiência. Se Ellen levasse o assunto ao conhecimento da imprensa, não duvidava de que Costello recorreria ao jogo sujo para a desacreditar.
E se fosse outra pessoa a abordar o assunto? cismou em voz alta, tamborilando com a esferográfica no lábio inferior. E se conseguíssemos que o Wilhelm apontasse o foco ao Costello?
Cameron emitiu um som que não diferia muito de um guincho, ao mesmo tempo que lhe acudia um clarão malicioso aos olhos ante a perspectiva de envolver Wilhelm em alguma coisa.
Pois, pede-se ao Marty. Dirá o que for preciso... desde que se convença de que a ideia é sua.
A única coisa que tem de fazer é produzir algum barulho, referir-se a obter um mandado para consultar o registo das chamadas telefónicas do Costello. Chegou a altura de este ter a imprensa no seu encalço, em vez de o adular. Ela voltou-se para Phoebe. Tente entrar em contacto com o agente Wilhelm e peça-lhe que passe por cá mais tarde.
A secretária assentiu com uma inclinação de cabeça e abandonou a sala.
Ela está de luto? estranhou Cameron, arqueando uma sobrancelha.
Pela morte de um romance em embrião. Um dos abutres menos ofensivos tinha-a na mira. Cortei-lhe o apoio ao chão e pu-lo a mexer.
Safa! Que mamã daria, Ellen?
Isso é uma proposta de casamento?
Uma mera observação. Acho-a encantadora, mas aterroriza-me.
Obrigada. Ela conseguiu esboçar uma risada. É o irmãozinho que nunca desejei.
Tem piada! Todas as minhas irmãs dizem o mesmo! Ele fez uma pausa e mudou de assunto. Como vão as coisas, depois do que aconteceu a noite passada? Podia ter-me pedido que fosse a casa dos Kirkwood. Depois do que sucedeu aqui...
De qualquer modo, não tinha sono. Cada vez que fechava os olhos, via a fotografia do Josh.
Talvez os mágicos do laboratório consigam obter alguma coisa susceptível de indicar onde esteve encerrado.
A imagem era pungentemente clara na mente de Ellen. Josh de pijama listrado, o rosto impenetrável como o cenário à sua volta. O clarão do flash a incidir nas faces e a torná-las quase lívidas, num profundo contraste com a escuridão atrás dele. Dir-se-ia que se encontrava num vazio negro.
É possível concedeu, sem qualquer esperança.
O Grabko encontrará algum elemento nos registos médicos?
Abanou a cabeça, grata pela mudança de assunto. Havia trabalho para executar. Era preferível concentrarem-se no que tinham de fazer do que no que não podiam alterar ou estava fora do seu controlo.
O Costello sopra fumo, esperançado em que a imprensa grite «Fogo!»
Mas, de caminho, insufla dúvidas no espírito do Grabko.
O juiz tem de se pronunciar acerca das provas, o que pode inclinar a balança a nosso favor. Pousou o indicador no fax que continha o resultado do exame preliminar do laboratório. Havia sangue do Josh naquele lençol. Assim como cabelo. E do Garrett Wright. É o nosso primeiro elemento físico concreto que o relaciona com o garoto.
Que ideia teria o Wright metida na cabeça para envolver a O’Malley nesse lençol?
Pensava que escaparia. Julgava-se invencível, convencido de que, mesmo que nos fornecesse esse elemento, nada se alteraria porque não o apanharíamos.
Tratava-se de um desafio, como no caso da fotografia de Josh. Aquela ficha tinha permanecido no gabinete dela um dia ou uma semana? Quando fora a última vez que abrira aquela gaveta?
Fez deslizar os óculos de leitura ao longo do nariz e fixou o olhar no colega por cima dos aros.
Como vai esse resumo? Apanharemos o Garrett Wright, suponho?
O interpelado exibiu um sorriso indefinido, ao mesmo tempo que extraía um documento da pasta aberta.
O Anthony Costello vai lamentar que os seus dispendiosos colaboradores não possam elaborar um arrazoado tão bom como este. Não tem nem uma palha em que se apoiar, quando se trata de anular a detenção com base na Quarta Emenda.
Ellen arrancou-lho da mão e leu-o. Percorria-a a maior esperança possível de que Grabko decidiria a seu favor. Os argumentos expostos por Cameron eram bem fundamentados, porém o caso revestia-se de demasiada importância para a detenção depender de um pormenor técnico discutível.
Costello decerto também não o ignorava. Era mais um exemplo daquilo a que ela chamava defesa tipo «pia de cozinha», em que o advogado recorria a tudo o que conseguia encontrar incluindo a proverbial pia de cozinha, na tentativa para tornar as águas turvas e confundir o resultado. E diversificar as energias da acusação. Cameron gastara horas naquele trabalho, a fim de construir uma argumentação global sólida contra o que era essencialmente um bluff da defesa. Podia ter dedicado esse tempo precioso a contribuir para robustecer as acusações contra Wright.
Sabia que já chegou o relatório da toxicologia sobre o sangue do Josh? perguntou ela. Vestígios de Triazolam, também conhecido por Halcion.
Se pudéssemos localizar o Wright numa farmácia a adquirir o produto...
Duvido que tenhamos essa sorte.
Aposto que o Todd Childs nos obteria algum Halcion, se lhe pedíssemos com bons modos.
Para isso, tínhamos de o encontrar primeiro.
Ou alguém que costume comprar-lhe produtos farmacêuticos.
Precisamos de mais pessoal. Os nossos recursos estão demasiado dispersos, para ainda nos dispersarmos mais à procura de clientes do Childs. Nem sequer sabemos se negoceia com drogas ou se limita a consumi-las. Obteve alguma coisa do homem do Wilhelm sobre o passado do Wright?
Sim, uma carga de banalidades. Cameron fez rolar os olhos. Enviaram-me a mesma informação por fax dois dias consecutivos.
Estupendo...
O Mitch recorreu a outra fonte para indagar se havia elementos sobre um modus operandi similar em qualquer das áreas em que ele viveu desde mil novecentos e setenta e nove, mas ainda não recebeu nada de positivo. Também solicitou informação acerca de homicídios não solucionados nas mesmas áreas geográficas.
Pretende construir um palheiro para encontrar a nossa agulha resmungou Ellen, começando a folhear o reduzido maço de papel que ele acabava de lhe entregar.
E o pior é que não dispomos de tempo para diligências morosas.
E você, por sua própria conta, que apurou?
Encontra-se tudo aí. Comecei na Harris e fui andando para trás. Antes de vir para aqui, o Wright leccionou durante pouco tempo na Universidade da Virgínia, depois de passar pela da Pensilvânia, onde Christopher Priest também deu aulas durante o mesmo período. Ele arqueou as sobrancelhas. Uma coincidência curiosa, não acha?
Não acredito em coincidências. Onde obteve essa informação?
Bem, li-a no Pioneer Press admitiu, com uma ponta de embaraço.
Só faltava isto! grunhiu Ellen. A imprensa tem melhor acesso a informação sobre o nosso suspeito do que nós.
Tiveram um ponto de partida mais fértil. Grande parte do que escreveram sobre o Wright provém de artigos antigos seus a respeito dos Sci-Fi Cowboys, há um par de anos. Consultei todos na biblioteca e tirei fotocópias. Também estão aí.
Folheou as páginas das notas dactilografadas, apensas aos recortes de jornais. Um continha uma foto de Christopher Priest e outra dos Cowboys debruçados sobre um pequeno robô que lançava bolas e as depositava num cesto. Wright e três outros rapazes achavam-se em segundo plano, os rostos alterados pela má qualidade da fotocópia.
O Priest enviou uma lista dos Sci-Fi Cowboys do passado e do presente informou finalmente. Com relutância, diga-se de passagem.
Pensa que podem conter algum indício interessante?
Não sei. Creio que a nossa curiosidade não lhe agrada. Embora tenha grande apreço por esses miúdos, sabe prefeitamente que qualquer deles podia ter cravado uma navalha no pneu do meu carro. Em todo o caso, recorri a uns conhecidos do sistema de Hennepin County para localizarem alguns antigos membros dos Cowboys e averiguarem eventuais ligações com o Wright no passado.
O Priest pode fazer barulho, se descobrir que transpomos os limites do direito à privacidade advertiu Cameron. Tem conhecimentos influentes, como sabemos. Os Sci-Fi Cowboys são uma contribuição deduzível de impostos, com várias figuras políticas importantes como intervenientes.
Para já, está a um passo de ser considerado cúmplice involuntário. Estou-me nas tintas, mesmo que mantenha boas relações com o papa.
Superou a prova do polígrafo.
Olha a grande avaria! Isso significa apenas que é desprovido de emoções, quando se torna necessário. Pode passar por andróide, a maior parte do tempo. Ellen voltou a concentrar-se no relatório que referia os locais onde Wright leccionara anteriormente e pousou o dedo sobre a Universidade da Pensilvânia. Ele e o Priest estiveram aí no mesmo período. Parece-me apropriado solicitar aos Serviços Centrais relatórios sobre raptos e homicídios não solucionados nessa área geográfica.
Entendido.
Óptimo.
No entanto, se o nosso homem se dedicou a essa actividade no passado, decerto procurou apagar todos os traços. Não encontrei nada de especial nos seus antecedentes. Nasceu e cresceu em Mishawaka, Indiana, e os pais separaram-se quando tinha onze anos. O pai voltou a casar e mudou-se para Muncie. O Wright e a irmã ficaram com a mãe, que morreu de uma embolia, há pouco tempo.
Irmã? A curiosidade de Ellen acentuou-se. Onde está? Conversaram com ela?
Não obtive nada a seu respeito. Provavelmente encontra-se algures, casada. O próprio Wright seria a única pessoa a procurar, mas não o estou a ver a fornecer essa informação por se condoer de nós. Eu diria que a irmã é um beco sem saída, embora exista a possibilidade de surgir em cena, para estrelar a telenovela intitulada O Show de Ricki Lake.
Cameron fez uma pausa e pegou numa fotocópia do álibi oficial escrito de Wright.
Uma leve mudança de tópico. Ele afirma que chegou a casa mais tarde do que o habitual, no sábado, vinte e dois, para almoçar, e regressou à universidade cerca das duas e meia. Temos uma testemunha que alega ter visto o Saab dele dirigir-se para sul, em Lakeshore, a essa hora. Ora, nós, claro, não acreditamos que era ele que conduzia, porque foi mais ou menos nessa altura que aconteceu o ataque à O’Malley. Mas também sabemos que o Christopher Priest se encontrava em St. Peter. Portanto, quem supomos que se achava ao volante do Saab! O Childs? A esposa?
Ellen retirou os óculos do nariz, impeliu a cadeira para trás e levantou-se lentamente, ao mesmo tempo que contraía as faces num trejeito de dor, em virtude da tensão que se acumulara nas costas.
Sabemos que o Priest ficou em St. Peter, sábado à noite. Existe alguém capaz de confirmar que também se encontrava lá, durante a tarde?
Cameron consultou os apontamentos.
Almoçou com um amigo que é professor na Gustavus Adolphus. Não está especificado durante quanto tempo. Tratarei de indagar.
Que nó górdio, santo Deus! murmurou ela, voltando-se para a janela. O jardim em frente estava deserto, assim como as ruas das cercanias, pois continuava a nevar e o vento glacial persistia. As esperanças de isto se desanuviar não parecem famosas acrescentou, não se sabendo se aludia às condições meteorológicas ou ao andamento das investigações.
Basta-nos inculcar a dúvida na mente do Grabko de que era o Wright que conduzia o Saab naquele dia e hora. Necessitamos apenas de o convencer a andar para a frente com o julgamento. Compete à Polícia capturar o cúmplice.
Eu sei, mas não consigo dominar a impressão de que o Costello dispõe de um corpulento coelho para extrair da manga.
O Childs?
Não me admirava nada. Estou ansiosa por que chegue o momento em que o terei entre a espada e a parede por mentiroso.
Não se deve tratar apenas do Childs. Conheço o Costello. Não me surpreenderia que se saísse com algum estratagema absolutamente inesperado. Cameron olhou a colega por um momento e observou: Está a trabalhar de mais. E eles não se poupam a esforços para a enlouquecer. Entre o atentado ao seu carro e o assunto de ontem à noite, tem todos os motivos para estar física e mentalmente esgotada. Mas possuímos material suficiente para atribuir ao Wright no julgamento. O Costello não pode alterar os elementos de que dispomos.
Ellen ergueu a mão e, inesperada e incompreensivelmente, pousou os dedos nos lábios, ao recordar o beijo com que Jay Brooks se despedira dela na véspera.
Porque foste ao hospital, ontem à noite?, perguntou-se intimamente.
Bem, vamos ao trabalho decidiu, por fim. Quero uma corda bem grossa nesse laço imaginário.
Instalaram-se e Cameron começou a trincar um dos biscoitos de chocolate que trouxera, enquanto lia mais uma vez a lista dos elementos até então obtidos.
Portanto, à parte a detenção em si, faz alguma ideia do que o Costello vai pôr em causa?
Não admitiu ela. E aguardará até ao último momento para nos elucidar. No entanto, podemos especular. De que lhe parece que tentará desembaraçar-se?
Das luvas. Permaneceram por descobrir durante dias. Argumentará que foram colocadas no local onde apareceram. Dirá que podiam pertencer a qualquer pessoa e não temos provas de que eram do Wright.
Motivos de peso. Portanto, não as incluiremos como prova na audiência preliminar. Reservamo-las para mais adiante. Entretanto, decerto conseguiremos provar que são mesmo dele. Com mais uns borrifos de sorte, terá parado de nevar até lá e encontraremos a arma para acompanhar as luvas. Apurou-se alguma coisa quanto ao facto de o Wright ter registado uma arma de fogo neste distrito?
Nada. Tornei as pesquisas extensivas a Virgínia, Pensilvânia, Ohio e Indiana, mas os criminosos em série maníacos tendem a julgar-se acima dessas formalidades mundanas.
Muito bem. Ou antes, muito mal. Que mais? Ele encolheu os ombros.
Temos a máscara de esqui, o lençol com manchas de sangue, o testemunho do Mitch, a identificação da Ruth Cooper na Polícia...
O que aconteceu antes de Cristo.
E depois? O Wright tinha um advogado. Cingiu-se à lei. Sem problemas. Possuímos muito mais material que o Costello. Na sua lista de testemunhas, figuram o Childs, que podemos virar do avesso, a vizinha que viu o Saab do Wright no sábado e a Karen Wright. Que tem ela para dizer? A única coisa que até agora lhe puderam extrair foi que a detenção do marido não passou de um grande mal-entendido.
Ninguém alegou que se trata da testemunha de um álibi. Se o Wright estava a trabalhar nas ocasiões em que os crimes foram cometidos, como ele afirma, que pode ela revelar?
Que ele lhe telefonou? exclamaram, em uníssono. Acto contínuo, voltaram a consultar o registo dos telefonemas.
A porta abriu-se de rompante e Ellen ergueu os olhos, supondo que se tratava de Phoebe, mas arregalou-os ao ver que era Megan O’Malley, com Mitch um passo atrás.
Megan! bradou, sinceramente abismada. Alegra-me vê-la de boa saúde!
E mais ou menos inteira replicou a recém-chegada, secamente.
Na realidade, tinha um aspecto horrível. As escoriações no rosto haviam atingido a fase de fruta podre. Os crescentes abaixo dos vibrantes olhos verdes eram da cor de ovos estrelados excessivamente passados. Além disso, coxeava e apoiava-se pesadamente a uma canadiana. Por último, a mão direita achava-se imobilizada num molde de gesso que se estendia aos dedos.
Cameron levantou-se para lhe oferecer uma cadeira, porém ela rejeitou-a e ignorou totalmente o olhar de impaciência que Mitch lhe dirigiu.
Encontraram alguma coisa de interessante? perguntou, debruçando-se sobre a papelada dispersa em cima da mesa.
Ellen fechou a pasta de plástico à sua frente e levantou-se para lhe obstruir o campo visual.
Estamos apenas à procura de pontos soltos declarou, com desprendimento. Listas de telefonemas e coisas assim. Nada de especial. Está preparada para prestar declarações?
Mal consigo conter a impaciência redarguiu a outra, com um sorriso sarcástico.
Não podemos demorar-nos anunciou Mitch, interpretando a linguagem corporal da advogada. Queria só que soubesse que falei com a Hannah por causa de tentarmos recorrer à hipnose com o Josh. Consultámos a psiquiatra, que se mostrou relutante, mas acabámos por chegar a um consenso.
Quando será?
Amanhã. Às quatro da tarde. No consultório dela, em Edina. Gravaremos a sessão em vídeo, como medida de precaução.
Quero estar presente.
Calculei que quereria.
Descobriram alguma coisa nos antecedentes do Wright? quis saber Megan. Alguma ligação com o Priest ou o Childs?
Ainda estamos à procura informou Ellen. O Priest e o Wright foram professores na Universidade da Pensilvânia durante o mesmo período. Quanto ao Childs, nada. Sabemos que frequentou o liceu em Oconomowoc, Wisconsin, e está disposto a perjurar. De momento, não é possível localizá-lo. A noite passada, alguém assaltou o Pack Rat, e pode ter sido ele... ou qualquer outra pessoa. O Wilhelm encontra-se lá neste momento e os técnicos passam o local a pente fino. No entanto, como não se sabe o que se deve procurar, receio que se limitem a perder tempo.
Não me passou sequer pela cabeça que o Wilhelm encontrasse fosse o que fosse.
O pior é que se pode tratar de mais uma diversão interpôs Cameron. Uma nova tentativa para que o Wright pareça inocente.
Mas porquê escolher um lugar onde o falso álibi dele funciona? O olhar de Megan tornou-se penetrante, enquanto as engrenagens do raciocínio começavam a funcionar. E por que razão levariam a operação a cabo a uma hora tão adiantada da noite, quando era mais improvável alguém passar e vê-los?
Talvez fosse mesmo o Childs que se introduziu no local, porque tinha lá alguma coisa... drogas, por exemplo... de que se apoderou e pôs em fuga especulou Ellen. Nessa eventualidade, os seus amigos do BCA utilizam muito pessoal para nada.
É assim que as coisas estão volveu a outra. Em todo o caso, eu não gostaria de estar no lugar do Marty, quando tiver de proceder a explicações aos superiores.
Naquele momento, Phoebe reapareceu para anunciar:
O agente Wilhelm vem a caminho.
É a minha deixa para me retirar declarou Megan. Se me apanha aqui, faz saltar uma rolha e acabo por o atingir com a canadiana.
Ellen acompanhou-a e a Mitch até à porta da sala de entrada, compadecida da dificuldade com que a mulher caminhava, ao mesmo tempo que admirava a posição voluntariosa com que espetava o queixo.
Está ao corrente da operação desta noite? perguntou a Mitch.
Sim, está tudo preparado. Não o perderemos de vista, para averiguar quem se aproxima dele. Se o Childs aparecer, lançamos-lhe a luva.
Óptimo. Obrigada por passar por cá. Vemo-nos amanhã. Façamos figas para que o Josh nos esclareça tudo. Entretanto, continuaremos a escavar.
A chave de tudo está no passado do Wright asseverou Megan. Tenho pena de não poder participar na caçada.
Sabe perfeitamente que não a posso envolver recordou Ellen. Você já não é uma agente em serviço, mas uma vítima.
Sei muito bem o que sou insistiu a outra, com um olhar duro. E devo agradecê-lo ao Garrett Wright.
A Ellen tem as mãos atadas, Megan afirmou Mitch. Tu sabe-lo bem.
Passara pelo apartamento de Megan naquela manhã, dera de comer aos dois gatos e ligara o termostato para que o ambiente parecesse mais de uma casa de habitação do que de um sótão glacial, cheio de correntes de ar. Situado no segundo piso de um velho prédio vitoriano na Ivy Street, devia ser um dos menos acessíveis da cidade. Dois lanços de degraus para transpor, com um joelho amachucado e uma canadiana.
Ela encontrava-se agora junto da janela da sala e acariciava o pêlo do pequeno gato cinzento com a mão válida, enquanto conservava a outra ao lado do corpo.
Foste afastada do caso lembrou-lhe ele.
Oficialmente salientou ela, com relutância. Mas isso não significa que não possa executar uma ou outra tarefa de importância secundária por minha conta.
E correr o risco de o caso ser levado a recurso? Não estás a raciocinar com clareza. Vem cá. Mitch conduziu-a suavemente para o sofá. Tens de te sentar, ou o joelho vai inchar como um balão cheio de água.
O facto de ela não oferecer resistência indicou-lhe que estava à beira da exaustão. Sentou-se cautelosamente, enquanto Mitch amontoava vários livros no chão para que apoiasse a perna.
Sinto-me uma inútil reconheceu, com um suspiro.
Eu sei, minha querida.
Isto é tudo tão difícil... murmurou, pousando a mão na dele. Somos policias. Estamos treinados para raciocinar de uma determinada maneira, actuar e perseguir os maus. Vermo-nos privados disso, quando mais o necessitamos... Interrompeu-se, ao mesmo tempo que meneava a cabeça. Sim, custa muito.
Mich instalou-se no sofá ao lado dela e rodeou-lhe os ombros com o braço. Sexta-Feira, o gato preto, saltou para cima de uma das colunas do equipamento estereofónico, dobrou as patas debaixo do corpo e ficou a observá-los através da penumbra do fim da tarde.
Ainda não me contaste o que disse o cirurgião, ontem.
Megan desviou os olhos dele. Se os fixasse no gato em vez de em Mitch, ser-lhe-ia mais fácil mentir, que era precisamente o que desejava fazer: mentir, a ele e a si própria.
Ora, que sabe ele? murmurou.
Mitch conteve um suspiro de impaciência. Más notícias. Notícias que a magoavam e aterrorizavam, embora não o quisesse admitir ou aceitar a derrota.
Pois é. Ele puxou-a para que se lhe apoiasse. Ainda é cedo para eles poderem traçar uma conclusão segura.
Exacto assentiu Megan, em voz tensa. Ainda não podem pronunciar-se com segurança.
Por enquanto, não queria escutar o veredicto final dos médicos. Não se sentia preparada para enfrentar a realidade, não se afundaria sem luta. Aliás, Mitch já estava ao corrente de tudo, pois telefonara ao cirurgião e mentira, dizendo que era o irmão dela, Mick. O hospital só estava autorizado a informar a família, que não se importava minimamente com o que lhe acontecia.
O melhor que o cirurgião ortopedista tinha para comunicar era que não fora necessário amputar a mão. Seguir-se-iam novas intervenções cirúrgicas e meses de fisioterapia, mas era improvável que alguma vez recuperasse a mobilidade normal.
Temos de apanhar o Wright, de uma maneira ou de outra articulou Megan, em voz sumida. Deve pagar pelo que fez.
Ah, isso paga, de certeza, querida assegurou-lhe Mitch, acentuando o amplexo.
Ela desviou um pouco a cabeça para o olhar.
Não me chames querida.
Chamo, se me apetecer grunhiu ele, com um sorriso. Que tencionas fazer para o evitar? Espancas-me?
Pois, com a mão engessada. Megan sorriu igualmente, mas reassumiu a expressão grave com prontidão. Que vou fazer? A única coisa que sempre quis ser foi polícia.
Não te resta só isso. Lembra-te de que podes contar comigo. De resto, descobrirás uma maneira de evitar os obstáculos. E estarei sempre presente para te pegar na mão válida,
Meu Deus, Holt murmurou, erguendo os lábios para o beijar. Devias deixar essa frase escrita para a posteridade.
A música não era má, uma fusão de blues e rock, com letra de um professor inglês. A banda consistia num grupo do campus que se intitulava HarriSons e o vocalista era um jovem escanzelado de calças de ganga rasgadas nos lugares apropriados e T-shirt manchada de transpiração, que brandia uma velha guitarra Stratocaster vermelha e fechava os olhos com vigor por baixo de um boné de basebol certamente capaz de seguir directamente para a lavandaria sem necessidade de qualquer indicação do percurso.
Jay ingeriu um longo trago da cerveja de três dólares e esquadrinhou a sala lenta e atentamente. Os seguidores de Wright haviam tomado conta do Pla-Mor Ballroom, um local de baile situado na periferia do campus, que atingira o auge nos anos quarenta e não sofrera a mínima alteração desde essa época. A iluminação tinha sido instalada para satisfazer o duplo objectivo de estabelecer o estado de espírito adequado e ocultar o facto de grande parte do estuque das paredes haver abandonado o lugar de origem desde longa data.
E, como o preçário da casa de modo algum se podia considerar exagerado, a clientela afluía em número elevado. Naquela noite, Anthony Costello achava-se presente numa das mesas localizada num ponto não exageradamente discreto, tendo Garrett Wright a seu lado, e entretinham a corte como monarcas. A esposa deste último e lacaios do advogado instalavam-se nas outras cadeiras em redor. Uma corrente quase constante de estudantes e prováveis membros docentes da universidade não parava de circular em frente para oferecer palavras encomiásticas e de apoio. A expressão de Wright era extremamente serena, sem a mínima arrogância, como se se limitasse a aceitar um tributo indiscutivelmente natural.
Quero penetrar-lhe na mente, pensava Jay, embora soubesse que teria de aguardar. Se Costello permitisse que o bondoso doutor dissesse alguma coisa antes do início das audiências, resumir-se-ia a mais propaganda. Não obstante, a experiência de uma apresentação era em si útil, pelo que, quando a banda anunciou um intervalo na sua actuação, emergiu do canto escuro em que se anichara como posto de observação e avançou para a mesa que lhe interessava.
Descortinou nada menos que três polícias à paisana, e havia um carro-patrulha estacionado no parque do estabelecimento. Se o cúmplice se apresentasse com Dustin Holloman na sua esteira, cair-lhe-iam em cima como moscas na sopa. Mas se aparecesse da mesma maneira que os outros clientes e se limitasse a um aperto de mão formal com o Dr. Wright?
Costello descobriu-o antes de ele alcançar a mesa e desenhou-se-lhe um largo sorriso nas faces, ao mesmo tempo que se levantava para o saudar cordialmente.
Ainda bem que pôde comparecer à nossa modesta soiree, Jay! Constou-nos que teve uma pequena aventura, a noite passada.
É uma maneira de a classificar replicou Brooks, sacudindo levemente o ombro em que o outro acabava de pousar a mão.
E é claro que a Polícia tenta associar essa intrusão na loja de sucata ao doutor Wright. O advogado meneou a cabeça, como se tivesse dificuldade em compreender a injustiça. A incompetência das autoridades atingiu um nível incrível.
No entanto, Jay deixou as palavras penetrarem por um ouvido e escaparem-se pelo outro e voltou-se para Garrett Wright, que o observava com curiosidade e um plácido sorriso.
Mister Brooks! exclamou, levantando-se e oferecendo uma mão que parecia extraordinariamente delicada. Aqui o Anthony disse-me que se interessa pelo meu caso, com vista à produção de um livro.
É uma possibilidade. Depende de como as coisas se desenrolarem na parte final.
Quer dizer que depende da minha culpabilidade?
O sorriso tornou-se divertido. Um comentário cáustico sobre a nossa sociedade, não acha? As pessoas não estão interessadas em perder tempo com a descrição de provas de inocência. Querem desenlaces imprevistos, traição, sangue.
Isso não é nada de novo, doutor Wright. Dantes, havia quem pagasse para assistir a execuções... e levava os filhos.
Sim, tem razão concedeu o professor, com uma leve inclinação de cabeça. Quem sabe se a humanidade não tem evoluído nos últimos anos para uma selvajaria brilhante e sofisticada?
Na verdade, isso explicaria os assassinos em série reconheceu Jay. Talvez tenha aí um tópico para um seu novo projecto académico.
De modo algum. As minhas áreas de experiência são a aprendizagem e a percepção. Não pretendo ser um perito no comportamento dos criminosos.
Jay desviou o olhar para a esposa do interlocutor, sentada a seu lado, pálida quase ao extremo da lividez, a qual esboçou um sorriso e tratou de desviar os olhos. Mostrou-se extremamente desconfortável quando Christopher Priest se instalou na cadeira mais próxima.
Num esforço para parecer despretensioso, Priest enfiara uma camisola de gola alta preta de uma medida abaixo da que lhe correspondia, que aderia quase violentamente ao tronco e realçava as dimensões da cabeça.
As T-shirts esgotaram-se anunciou o recém-chegado, dirigindo-se a Wright Os rapazes estão muito entusiasmados com o resultado.
Deviam era estar orgulhosos interpôs Costello. Virando-se para Jay, acrescentou: Essa sua história pode ser descrita de várias perspectivas. A inocência do doutor Wright, com as manifestações dos seus amigos, colegas, estudantes...
O brilho do seu defensor acudiu Brooks, com um sorriso. Há muito por onde escolher.
Seria um deplorável causídico, se não explorasse todas as possibilidades abertas para demonstrar a inocência do meu constituinte.
Sim, e todos sabemos o que acontece aos advogados que não procedem assim vigorosamente volveu Jay, num tom seco, simulando uma arma de fogo com o polegar e o indicador e apontando-a à cabeça.
O interpelado corou antes de replicar:
O doutor Wright ainda se encontrava preso por altura da morte do Enberg. Precisaria de possuir faculdades superiores às humanas para estar envolvido.
Jay arqueou as sobrancelhas, só para ter o prazer de ver a tensão arterial do outro subir alguns pontos.
Caro amigo redarguiu Costello, com nova palmada no ombro sensível de Brooks. Está a desperdiçar os seus talentos. Num contra-interrogatório, ninguém lhe levaria a palma.
Prefiro assistir ao desbobinar dos acontecimentos. Encarregue-se você das partes mais palpitantes.
Ellen observou a troca de sorrisos e de apertos de mão da entrada.
Que diria se lhe assegurasse que não conheço o Costello pessoalmente?
Que não passa de um mentiroso, Mister Brooks.
Ela quisera acreditar e ele traíra-a. Uma sensação de desaire acompanhava a irritação, enquanto os observava juntos.
Na verdade, a cena continha os ingredientes de amigos íntimos. Uma gargalhada, um sorriso, uma palmada nas costas. Brooks e Costello, antigos alunos da faculdade de Direito. Um par de tubarões que se completavam: Costello, o predador formal de fato Versace cinzento-metálico, e Brooks, o despreocupado em questões de indumentária e barba por escanhoar. E, além do advogado, Garrett Wright, que naquele momento se voltou e a olhou do outro lado da sala, após o que exibiu um sorriso de inteligência.
Ellen começou a avançar, aproveitando, na medida do possível, a protecção de um grupo de estudantes, ao mesmo tempo que se amaldiçoava por se ter precipitado a aparecer ali. Ela e Cameron haviam trabalhado até às nove, depois de Phoebe ter pedido autorização para se retirar, às oito, e ingerido uma refeição ligeira no Grandma’s Attic. Agora, arrependia-se de não haver seguido directamente para casa, pois nesse caso já se encontraria nos braços de Morfeu.
No entanto, a tentação fora demasiado forte: entraria apenas durante uns momentos para assimilar a atmosfera. Os eventos tinham principiado às sete. Às nove, os media já não se encontrariam presentes e assim ela poderia efectuar uma breve e discreta visita na sombra, somente para observar, e, quando fosse dado o alarme da sua presença, já se teria afastado.
Agora, ao analisar a ideia, admitia que fora de uma estupidez inaudita. O próprio Wright a descobrira, e Ellen tinha a impressão de que todos os olhares a fixavam.
Que faz ela aqui?
Não é a Ellen North?
É preciso desaforo!
Os comentários eram acompanhados de olhares acerados e dedos apontados. No entanto, ela ignorava-os e simulava uma serenidade que estava longe de sentir. Deslocava-se contra a corrente, o olhar cravado no dístico de saída no lado oposto da sala. Podia ter incumbido Cameron de espiar. Ou confiado nos relatórios dos homens de Mitch. Mas não. Tinha de se certificar pessoalmente.
De súbito, sentiu uma mão segurar-lhe o cotovelo. Tentou soltar-se, mas só conseguiu que a pressão se acentuasse.
Que diabo faz aqui? perguntou Brooks, a voz convertida em pouco mais do que um grunhido.
Podia fazer-lhe a mesma pergunta, mas é demasiado óbvio.
Ellen tentou de novo libertar-se; porém, ele estava demasiado perto e conduzia-a num rumo que se alterara sem ter a consciência disso. O dístico da saída começava a desviar-se para a direita. Ao invés, eles moviam-se na direcção do átrio escuro onde se situava o bengaleiro.
Está a traçar conclusões sem factos, doutora disse ele, quando passavam diante do pequeno oásis de luz e prosseguiam para a periferia da área menos iluminada.
Por fim, ela apoiou as costas à parede junto da saída de emergência e dirigiu-lhe um olhar incisivo.
Só se fosse parva aceitaria a sua versão dos factos, Mister Brooks. De resto, supunha que não se preocupava com aquilo em que creio ou não.
E eu que não se apoquentava com os meus actos.
Apoquenta-me que me mentisse. Quanto ao resto, pode ir para o inferno.
Não lhe menti.
Isso sim! Garantiu-me que só conhecia o Tony Costello pouco mais que de vista e não tinha nada de comum com a presença dele neste caso. Afinal, acabo de o ver sentado à mesa em que também se encontra o Garrett Wright, todos sorridentes e às palmadas amigáveis. E agora, se me dá licença, vou andando. Já vi tudo o que necessitava de verificar.
Ao mesmo tempo, dava-se conta de que começavam a observá-los e acalentou a esperança de que as suas previsões se confirmassem e os repórteres se houvessem retirado. De contrário, que excelente fotografia poderiam obter! A advogada da acusação em ameno tête-à-tête com Jay Brooks, numa recepção organizada pelos partidários do arguido!
Um dos agentes à paisana de Mitch emergiu da multidão e inquiriu:
Há alguma novidade, Miss North?
Brooks soltou-lhe o braço e retrocedeu para a sombra, ao mesmo tempo que a interpelada respondia:
Não, obrigada, Pat. Ia precisamente sair.
Quer escolta até lá fora?
Não se incomode. Tenho o carro perto. Decerto tem coisas mais importantes para fazer.
Enquanto se encaminhava para a porta principal, ela reflectia:
Não interessa o que ele faz, diz ou pensa. Sabes perfeitamente que não deves confiar na sua palavra. Não tens tempo para te preocupares com isso.
Quem me vir aqui, que pense o que quiser. Que acreditem no Wright, se lhes parecer. Tu conheces a verdade.
O que não era certo. Nenhum deles a conhecia... à excepção de Josh, que a conservava bem encerrada na mente.
Por fim, transpôs a saída e encontrou-se imersa na noite glacial. O parque de estacionamento diante da sala de baile estava cheio. Havia uma viatura verde e branca da Polícia de Deer Lake no canto mais afastado, para a eventualidade de alguma agitação altamente improvável. Ela encaminhou-se para o lado oriental do velho edifício. Tivera sorte em se lhe deparar um espaço numa rua residencial, aproveitando o que um Lincoln Town acabava de deixar.
Já viram, rapazes? É a cabra da advogada!
A voz obrigou-a a estacar. Compreendeu que cometera um erro crucial quando Tyrell Mann e os seus apaniguados tiravam partido da situação, abandonando as sombras ao longo do prédio na sua direcção. A avaliação rápida da situação indicou-lhe que se avizinhavam problemas. O local ficava fora do campo visual do parque de estacionamento. A leste, a vedação arborizada de cedros bloqueavam a visibilidade da casa mais próxima, a qual, do outro lado da rua, estava imersa na escuridão. A Manley Vanloon Pace Car situava-se no passeio mais perto, a uns cinco metros. Tão próximo e tão distante... A música da sala de baile penetrava no mundo exterior, suficientemente alto para abafar os sons de uma refrega.
O sorriso de Tyrell iluminou-lhe o rosto escuro, ao mesmo tempo que se desfazia do cigarro.
É preciso ter lata para aparecer aqui, senhora.
Paguei pelo privilégio replicou Ellen. E apenas com isso que se deve preocupar.
Preocupamo-nos com o doutor. É o nosso homem declarou J. R. Andersen.
Pois claro acudiu Speed Dawkins, na sua inflexão aflautada. É esse o homem.
E você quer pregar com ele na cadeia volveu Tyrell, agora já sem sorriso.
A imagem da navalha cravada no pneu surgiu bruscamente na mente dela, que passara parte do serão a esquadrinhar a ficha sobre os Sci-Fi Cowboys, em busca de possíveis suspeitos do vandalismo de que fora vítima. Andersen era um criminoso de gola branca, especializado em roubar dinheiro por meios electrónicos. Dawkins achava-se envolvido intermitentemente em problemas com drogas. Tyrell era uma aquisição mais recente, portador de um respeitável cadastro, em que figuravam assaltos na via pública e uma acusação de estupro que tinha sido arquivada por falta de provas.
Na verdade, aos dezassete anos, este último já se podia considerar um caso duro de roer, pelo que incursões no território do vandalismo não constituiriam uma actividade inédita. Em que ponto estabeleceria o limite das suas proezas tornava-se difícil de determinar.
Não preciso de lhe explicar como o sistema funciona, Tyrell. E tão-pouco tenho necessidade de salientar que o seu assédio não contribui para facilitar a situação do doutor Wright.
Não quero que me explique nada, cadela.
Acredito, mas é melhor prestar atenção. Entretanto, Ellen introduzira a mão na algibeira do casaco, rodeando com os dedos a chave mais volumosa que encontrou como eventual arma defensiva. Se você e os seus comparsas se excederem, irão direitinhos para a cadeia e os Sci-Fi Cowboys serão extintos. Qual lhe parece que será a reacção do doutor Wright, do professor Priest e dos outros apoiantes quando se inteirarem?
Isso é uma ameaça, sua cabra? inquiriu ele, avançando um passo.
É um facto. Ambos sabemos perfeitamente que o único motivo por que não tem os ossos encerrados numa cela de Hennepin Conty são os Sci-Fi Cowboys. Quer obter a prova real disso?
Não. De modo algum é o que quero.
Ellen arriscou-se a lançar uma olhadela aos outros dois. Dawkins observava Tyrell, preparado para obedecer à sua deixa, enquanto Andersen permanecia um passo atrás, de expressão neutra e pensamentos ilegíveis. O seu QI roçava os níveis do génio e, segundo os comentários de alguns guardas de campos de reinserção, deixava transparecer tendências para a psicopatia bem camufladas. Tanto podia intervir com amabilidade como com a sugestão apropriada para dispor do corpo dela.
O baile é lá dentro, rapazes.
Ellen esforçou-se por dominar o suspiro de alívio quando ouviu a voz de Brooks.
Ellen?
Quem raio é você? A impaciência tornou o olhar de Tyrell turvo. A porra do «cavaleiro solitário»?
Inclino-me mais para a porra da testemunha solitária. Jay colocou-se diante dela e puxou-a para trás, a fim de haver algum espaço entre eles e o jovem enfurecido. Munido da porra do telemóvel solitário e o dedo sobre a porra do marcador rápido solitário para chamar os chuis. Entendes a porra do que digo, porra de monte de trampa?
Ao mesmo tempo, a voz ia-se elevando gradualmente. Viera para confrontar Ellen e agora via-se na pele improvável de um salvador, com o telemóvel na mão erguida acima da cabeça, como se fosse uma granada.
Anda daí, Tyrell chamou Andersen, pousando a mão no ombro do comparsa. Sinto o membro congelar-se. Voltemos para dentro.
E começou a encaminhar-se para o prédio, enquanto Dawkins hesitava e Tyrell não parecia disposto a arredar pé.
Vá! insistiu Andersen, com impaciência. Antes que o professor funda um circuito.
Que porra de ideia foi essa, homem? grunhiu finalmente Tyrell. Estávamos só a conversar com a senhora.
O trio começou a afastar-se em direcção à iluminação amarelada do parque de estacionamento, enquanto Ellen os observava e respirava cada vez mais livremente.
Obrigada acabou por agradecer. É uma arma estropiada do arsenal do Wright. Estava inquieta com o que poderia decidir fazer.
Bem, reconheço que faria figura de urso se puxasse de uma arma admitiu Brooks. O maior estrago que este telemóvel pode produzir é largar ácido pela pilha.
Agora, só anseio ir para casa, trancar as portas, mergulhar num banho quente e beber uma dose dupla de brande. Bem, boa noite, Mister Brooks. E ela começou a afastar-se em direcção ao Cadillac.
Vim pelo mesmo motivo que você disse ele, seguindo-a. Observar.
Nesse caso, sugiro que procure o vocábulo no dicionário. Confundiu observação com participação.
O Costello faz tanto parte desta história como você. É claro que me interessa conversar com ele.
Não estou empenhada em ouvir o resultado.
Ela sentou-se ao volante, fechou a porta, fez rodar a chave na ignição... e o motor conservou-se silencioso.
Raios partam! vociferou, desferindo uma pancada com a mão enluvada no tabliê.
Enfurecida, premiu o comando do capot, procurou a lanterna eléctrica na bolsa e saiu do carro. O motor era do tamanho de um pequeno país, com a insignificante diferença de que faltava o distribuidor.
Merda!
Que linguagem, Miss North! comentou ele, fazendo estalar a língua e meneando a cabeça. Com uma expressão inocente, estendeu-lhe o telemóvel. Quer chamar um táxi?
Não diga parvoíces.
E a Polícia?
Que lucraria com isso? O Pla-Mor rebentava pelas costuras com suspeitos. A possibilidade de se apresentar alguém como testemunha era risível. Embora Tyrell, Andersen e Dawkins se encontrassem nas proximidades, não cometeriam a imprudência de conservar o distribuidor em seu poder. O delito era demasiado insignificante para a quantidade de tempo e energias que consumiria.
Vamos. Brooks guardou o telemóvel na algibeira e puxou das chaves. Dou-lhe boleia. Fez uma pausa. Levo-a directamente para casa. Palavra de escuteiro.
De facto, levou-a directamente para casa dele.
Ellen dirigiu-lhe uma mirada especulativa por cima do capô do Jimmy GMC que ele convencera Manley a alugar-lhe.
Suponho que nunca foi escuteiro?
Tem toda a razão, minha senhora.
Eu podia servir-me agora do seu telefone para participar um rapto.
Ou descontrair-se e desfrutar da minha famosa hospitalidade do Sul.
«Desfrutável» não é o termo até agora que eu escolheria para definir a nossa associação.
Então, por qual optaria? Jay fez uma pausa; todavia, ela não respondeu. É altura de termos uma conversa e achei melhor que se celebrasse num lugar onde não me possa pôr na rua nem bater em retirada.
Cortaram para a Old Cedar Road e enveredaram pelo percurso ao longo da área de urbanização em torno de Ryan’s Bay. Por fim, ele rumou a uma casa um pouco isolada, embora de modo algum solitária, imobilizou o veículo diante da porta de uma garagem para três unidades e accionou o telecomando. Entretanto, Ellen reflectia que o seu acompanhante podia visivelmente considerar-se materialmente bem abastado, pois aquelas residências não eram alugadas por quantias ao seu alcance.
Uma vez dentro, deixou-o na cozinha e cruzou a sala de estar em direcção à parede de vidro que antecedia a paisagem nevada. Ao mesmo tempo, ouvia Jay preparar bebidas e depois, mais perto, acender o lume na lareira de pedra. Quando, por último se encontrou ao lado dela, tinha despido a parka.
Uísque e soda anunciou, estendendo-lhe um copo de cartolina.
Pousou o seu no parapeito e apoiou o ombro à ombreira da janela. Não acendera a luz da sala, pelo que a iluminação se devia unicamente ao lume da lareira e ao luar. A escuridão parecia suscitar-lhe os estados de espírito mais recônditos.
Tenho um filho revelou sem qualquer preâmbulo. Não olhou para Ellen, numa eventual tentativa para se aperceber da reacção, e concentrou os esforços em controlar a sua. Levou o copo aos lábios, extraiu um cigarro do bolso da camisa e aguardou que a bebida repousasse no estômago para o acender.
A piada de tudo é que eu não sabia, e ele não sabe. Aplicou o isqueiro ao cigarro e expeliu uma nuvem de fumo para o tecto. Tem oito anos. Como o Josh. A mãe... minha ex-esposa... fugiu com ele ainda antes de eu conhecer a sua existência. É uma situação dos diabos descobrir a posteriori que uma parte do nosso ser desapareceu durante quase uma década.
Depreendo que ela estava grávida quando o abandonou? observou Ellen, a meia voz.
Cheguei a essa conclusão durante a guerra do divórcio, mas nunca me passou pela cabeça que fosse de mim. Jay soltou uma risada seca. Na altura, eu trabalhava como um cão, infeliz como um raio. A Christine e eu... Bem, estava praticamente tudo acabado, menos os gritos. Ela descobriu um advogado oportunista, daqueles que só se interessam por uma sociedade e um BMW todos os anos. Enfim, limitei-me a concluir que o bebé era dele. Não me passou pela cabeça que pudesse odiar-me tanto. Afinal, estava enganado.
Surpreendia-o que a amargura estivesse tão perto da superfície. Talvez fosse do uísque, que, historicamente, despertava o infortúnio nos homens da família Brooks. Acudiu-lhe ao pensamento o tio Hooter, sentado na varanda numa tarde quente de Verão, a soluçar por um cão que perdera em criança.
Enquanto ele deixava o silêncio prolongar-se, Ellen observava-lhe a expressão, sem artifícios, ao luar, maltratada e coberta por barba cerrada, num remoto esgar de dor que não tinha nada de comum com os ferimentos físicos.
Como o descobriu?
O avô dela vivia em Eudora. Nunca o visitava, mas eles voltaram quando morreu. O funeral realizou-se há dez dias. Ela decerto pensou que eu não teria decência suficiente para apresentar condolências, mas vimo-nos frente a frente: ela, o marido quase calvo... e o seu filho. Esboçou um sorriso que fez o coração de Ellen contrair-se. Diabos me levem se não é a imagem escarrada...
Você perguntou-lhe?
Ela disse-me: «O Cárter Talcott é o único pai que ele jamais conheceu. É uma criança feliz. Levamos uma vida agradável. Não destruas tudo, Jay.» Brooks abanou a cabeça. Que recearia que eu fizesse? Dizer a um garoto de oito anos que o homem a quem sempre chamara pai não o era?
Chupou o cigarro por um longo momento e apagou-o cuidadosamente antes de o depositar no cinzeiro.
Que resolveu fazer?
Vim para aqui declarou com simplicidade. Tinha acompanhado o caso na televisão e nos jornais e voei para Minneapolis nessa mesma noite. Fugi. Resolvi averiguar in loco como era o verdadeiro sofrimento. Fez uma breve pausa. O meu filho está vivo e encontra-se com pessoas que o amam. De resto, eu nem sequer sabia que me faltava a sua presença. Por conseguinte... Encolheu os ombros levemente. Não é nada que se pareça com o caso dos Kirkwood ou dos Holloman, com a intervenção de um maníaco. Ou do Mitch Holt, cujo filho foi abatido a tiro por um drogado qualquer. Não tenho o direito de me queixar só porque não serei eu a acompanhar o meu filho nos seus estudos.
Ellen reflectia que a aparente indiferença não passava disso uma aparência. Embora a sua tragédia não atingisse a escala dos Kirkwood, não a tornava menos penosa.
Não tenciona tentar alguma coisa? aventurou-se a perguntar. Uma espécie de custódia conjunta, por exemplo. Ser reconhecido como pai biológico do rapaz, pelo menos?
Ele sente-se feliz replicou, sacudindo a cabeça. Tem uma vida agradável normal. Que espécie de filho da mãe seria eu se decidisse transtornar tudo?
Mas se é o pai...
O pai dele é o Cárter Talcott. Limitei-me a fornecer a matéria-prima. Terminou a bebida, esmagou o copo de cartolina entre os dedos e tentou dominar a expressão.
Não procuro conselho ou simpatia acrescentou em voz tensa. Você queria saber a razão por que vim para aqui, porque escolhi esta história para explorar. Ficou inteirada. Não tem absolutamente nada a ver com o Anthony Costello. Estou-me nas tintas para o dinheiro que isto me proporcionar. Vim para me perder entre o infortúnio de outrem. Seguiu-se um pesado silêncio, que acabou por cortar. Acabe a bebida, para que a leve a casa.
Ellen pousou o copo no peitoril da janela e aproximou-se dele lentamente. A casa estava fria, apesar do lume, uma espécie de frio que ela associava ao vazio, à solidão. Apoiou as costas à parede junto da lareira e abarcou o ambiente. Era um lar transitório.
Não pense que o odeio murmurou. Odeio, sim, este caso. O mal que está a produzir a esta cidade. O mal que está a produzir em mim. Tem-me recordado coisas que preferia não julgar possíveis na natureza humana... a minha própria incluída.
Mas não é a heroína da intriga.
Pois não. Limito-me a cumprir a minha obrigação, uma obrigação de que me afastei há dois anos, porque não suportava aquilo em que estava a tornar-me. Ser cínica desgasta uma pessoa, corrói-a por dentro. Não queria deixar de me preocupar com quem carecia de justiça. Supus que, se viesse para aqui, não me consumiria tanto. Afinal...
Afinal, encontrou o Garrett Wright, o Tony Costello, um advogado morto, um garoto desaparecido... e eu.
De um fundo de reserva que não sabia que lhe restava, Ellen desencantou um sorriso de certa amargura para corresponder ao dele.
E você. Enfim, talvez não seja tão mau como pensa. Trata-se de uma diversão, pelo menos. Fez uma breve pausa. Em todo o caso, não posso dar-me ao luxo de ser divertida.
Uma diversão? Jay experimentou o vocábulo na língua, como se fosse um fruto estranho, e a expressão maliciosa reapareceu no olhar. Misericórdia, Miss North! Faz-me parecer um gigolô.
Já lhe chamaram coisas piores.
Você, sem dúvida.
Sem dúvida.
Ela não se dera conta de que se encontrava tão perto, o
suficiente para ele erguer a mão e tocar-lhe na face. Para a puxar para si apenas com um olhar, com a ansiedade do olhar amargurado. Inclinou-se para a frente e beijou-a, com os lábios mornos e a saber a uísque.
Meu Deus, como a desejo... sussurrou.
Não posso. O caso...
Isto não tem nada a ver com o caso. Apenas diz respeito a nós. Acontece simplesmente... que necessito... de lhe tocar. Não se oponha, Ellen.
A vulnerabilidade dele impressionou-a, tal como a ansiedade na voz. A atracção que ela lhe suscitava desde o primeiro dia tornava-se irresistível. Embora tudo parecesse conjugar-se para que resistisse, a lógica indicava que não havia outra saída possível.
Não raciocine articulou Jay, numa inflexão quase inaudível. Pelo menos, esta noite. Por favor.
Por favor. Podiam ter aquela noite só para eles. Transpor a linha divisória. Durante um lapso de tempo cuja duração seria norteada pelas suas inclinações, tudo o resto se afastaria para segundo plano.
Ele puxou-a da parede e o casaco deslizou para o chão, enquanto se beijavam com voracidade crescente e ela começava a desabotoar-lhe a camisa. A partir daquele momento, os esforços conjugaram-se para que o vestuário se convertesse num mero empecilho que exigia supressão imediata.
Não haverá problema? murmurou ela. As mazelas não dificultarão... o resto?
Não é aí que me dói replicou Jay, no mesmo tom, rodeando-lhe o pulso com os dedos e levando a mão ao peito, sobre o coração.
A sinceridade do gesto surpreendeu-a e, inclinando a cabeça, pousou os lábios nesse lugar, ao mesmo tempo que deslizavam até ficarem de joelhos.
No instante imediato, ele afastou-se uns escassos centímetros e colou a boca a um dos seios túrgidos. A sensação foi eléctrica. Ellen soltou uma exclamação rouca, colocou as mãos nos ombros dele e puxou-o para si. A necessidade daquele gesto, de que aquele homem a possuísse, era avassaladora. Nunca soubera o que significava entregar-se de uma forma tão arrebatada e total. O efeito era simultaneamente aterrador e eufórico.
Ela conservou-se passiva, enquanto Jay acabava de a despir e se desembaraçava das últimas roupas. Em seguida, depositou um beijo suave na área abaixo do umbigo e, fazendo deslizar as mãos para as nádegas, prosseguiu a exploração com os lábios mais abaixo.
Ellen suspirou ante a sensação experimentada e sobretudo quando a língua iniciou o aprofundamento da incursão. O movimento instintivo para se esquivar foi prontamente neutralizado, e o contacto tornou-se ainda mais intenso e tórrido.
Finalmente, ele soltou-a, foi à gaveta da mesa-de-cabeceira buscar um preservativo, aplicou-o e iniciou a penetração, agora sem se lhe deparar a menor oposição.
O orgasmo foi retardado até à medida do que a voracidade lhes permitia, quando os dominou uma verdadeira vaga de loucura que os transportou a um clima fora de todas as possibilidades de qualquer previsão. O amplexo persistiu durante um longo momento, até que se atenuou gradualmente, e ela conservou o corpo dele o mais demoradamente ao seu alcance, com receio do que sentiria quando se desprendessem por completo.
Não deixava de lhe parecer singular o que passou a experimentar, quando anteriormente sempre se sentira bem consigo própria, auto-suficiente, capaz de partilhar uma relação ou passar sem ela. Nunca se definira em relação à sua posição perante um homem. Talvez devido ao caso que a absorvia quase totalmente. Nos últimos tempos, assolava-a uma pressão equivalente a um monte de pedras e, pelo espaço de escassos minutos, esse peso desaparecera. Pela primeira vez, podia conservar-se deitada ao lado de Brooks e sentir-se segura, com os braços dele à sua volta.
Segura. Com um homem que mal conhecia e no qual confiava superficialmente...
Às quatro horas e seis minutos da manhã uma explosão abalou Dinkytown. A onda de choque estilhaçou janelas ao longo do quarteirão, entre as quais todas as do Pla-Mor Ballroom. Às quatro e oito, Alvin Underbakke ligou ao 112 para comunicar o incidente e pedir a comparência dos bombeiros para apagar o incêndio que devorava um Cadillac branco diante da sua casa.
Onde estavas às quatro da madrugada? perguntou Mitch, com as mãos pousadas no espaldar da cadeira em que devia encontrar-se sentado.
Cuidava da minha beleza. Tyrell enfrentou-lhe o olhar com arrogância. Onde queria que estivesse, chefe? Que pretende colar-me ao rabo preto?
Vamos esclarecer uma coisa. Estou-me nas tintas para a cor do teu rabo ou de qualquer outra parte do corpo. Prefiro limpar essa arrogância que te besunta os ombros e levá-la para um sítio onde nunca há sol. Pretendo obter uma resposta correcta. Portanto, repito: onde estavas?
Dormia. Fomos à festa em homenagem ao doutor e depois deitámo-nos.
Na pousada do campus?
Não me lembro. Mitch começou a afastar-se da cadeira, com uma expressão ameaçadora e Tyrell apressou-se a acrescentar: Pois, na pousada. Porquê?
Alguém fez ir pelos ares o carro de Miss North.
A cabra estava lá dentro?
Mitch colocou o rosto a milímetros do outro.
Aqui para nós, é essa atitude que vai fazer com que acabes por malhar com os ossos na cadeia para o resto da vida. Sempre pensei que era indispensável ter ao menos uns miligramas de miolos para fazer parte dos Cowboys.
Tenho os suficientes para saber que posso chamar um advogado, se o desejar.
Mas para quê? Ninguém te deu voz de prisão. Parece-te que devias ter sido detido?
Vá-se lixar, Holt.
Ellen assistia ao diálogo da sala contígua através de um vidro espelhado do outro lado. As possibilidades de um elemento dos Cowboys dar com a língua nos dentes eram extremamente remotas. Por conseguinte, ninguém obteria nada de Tyrell. Noutro compartimento do corredor, o agente WiIhelm e J. R. Andersen entregavam-se à mesma estéril experiência.
Se um dos rapazes incendiara o Cadillac, seria indispensável uma testemunha ocular para o denunciar, e praticamente todos os habitantes de Deer Lake dormiam às quatro horas da madrugada de um domingo. Por conseguinte, ninguém tinha visto nada. Não havia quem se houvesse apercebido de Tyrell Mann, J. R. Andersen, Speed Dawkins, Todd Childs ou qualquer outro indivíduo suspeito.
As autoridades limitavam-se simplesmente a perder tempo. Mais uma vez. Ellen perguntava-se se Garrett Wright se encontraria em casa naquele momento, a ler tranquilamente a edição dominical do Star Tribune, com um largo sorriso de satisfação.
Consultou o relógio e meneou a cabeça. Tinha de estar no consultório da psiquiatra às quatro. Precisava de telefonar a Cameron para a ir buscar ao centro das operações. Por outro lado, não encarava com satisfação a perspectiva de uma hora de percurso. Ele decerto teria tantas perguntas para lhe fazer como os repórteres que aguardavam à saída.
A informação do incêndio do carro chegara-lhe ao conhecimento em casa de Jay através do seu beeper. Ele conduzira-a ao local, o que suscitara leves expressões de surpresa nos polícias presentes. Felizmente, os repórteres já tinham comparecido e partido. E, infelizmente, haviam ido à procura dela. No entanto, quando, mais tarde, a encontraram, esforçou-se por não lhes satisfazer a curiosidade.
Agora, Ellen abriu a porta da sala comum da central da Polícia e encaminhou-se para uma secretária desocupada. Christopher Priest levantou-se da cadeira em que o tinham deixado à espera, as faces normalmente pálidas coradas pela cólera.
Isto é o cúmulo, Miss North! Durante quanto tempo mais serão os rapazes interrogados sem a presença de um advogado?
Não estão a ser interrogados, professor. Apenas inquiridos.
Já mandei vir um.
Assiste-lhe esse direito.
Desde o princípio que lhe garanti que eles não tinham nada a ver com o caso. Agora, por exemplo, encontravam-se na pousada. Eu próprio me certifiquei.
Às quatro da madrugada? Que curiosa coincidência! O olhar dele assumiu uma expressão cortante como uma lâmina de barbear.
Protesto contra a implicação. Primeiro, chama-me à pedra por não os vigiar de perto. Agora, acusa-me de mentiroso quando o faço.
Não lhe chamei mentiroso replicou ela, calmamente. Disse que era uma coincidência curiosa. Como o facto de o Tyrell, o Andersen e o Dawkins terem sido vistos nas proximidades do meu carro, ontem à noite, não muito tempo antes de voar em pedaços.
São bodes expiatórios fáceis... começou ele.
Não. Nada no meio disto se pode considerar fácil. Sei que tem um interesse especial na inocência deles, professor, mas alguém há-de ser culpado, e pode muito bem dar-se o caso de não serem outros. Ellen pegou no telefone, mas pousou o dedo no descanso, enquanto olhava o interlocutor com curiosidade. Já agora, professor, pode dizer-me se esteve com alguém sábado à tarde, depois de almoçar com aquela pessoa sua conhecida da Gustavus?
A fúria no olhar do homem intensificou-se, mas conseguiu contê-la.
Está a criar inimigos de que se vai arrepender, Miss North articulou a meia voz.
O Captor prevenira-o de que aquilo aconteceria. Josh sentava-se na poltrona azul do consultório da Dra. Freeman, com o olhar fixo no aquário embebido na parede. Fora avisado de que alguém tentaria penetrar-lhe na mente, para abrir todas as portas. E tinham-lhe recomendado que nunca o permitisse. Ora, ele sabia como devia proceder. Era estupidamente simples. Imaginava o seu corpo como uma simples concha e puxava o ego para dentro, como um fantasma, após o que fechava todas as portas e janelas.
Não era uma coisa que lhe agradasse fazer. A princípio, considerara esse lugar na mente como algo de seguro, algo especial, mas não gostava de todas as coisas que o Captor colocara lá. Entristeciam-no. Assustavam-no. Provocavam-lhe uma sensação pungente no estômago. No entanto, fora advertido e tinha medo de desobedecer. Já haviam acontecido muitas coisas indesejáveis.
Desagradava-lhe a maneira como os adultos à sua volta procediam. Tinha sido com uma sensação de alívio que comparecera no consultório da Dra. Freeman, uma senhora bonita de pele escura e um sorriso atencioso. Fez-lhe perguntas, embora não as mesmas da Polícia. A voz nunca assumiu o tom agressivo da deles, como se pretendessem sacudir-lhe tudo de dentro. Pelo contrário, nesse dia pôs-se a falar de se descontrair e perguntou-lhe se nunca tivera a impressão de ser hipnotizado.
Bingo!
Queria hipnotizá-lo. Mais um ardil para o obrigar a dizer as coisas que devia ocultar.
Josh dirigiu à Dra. Freeman um olhar de profundo desapontamento, levantou-se da poltrona e aproximou-se do aquário, para contemplar o peixe, aprisionado do mesmo modo que ele tinha de ficar encerrado na sua mente.
Vigilante do outro lado do espelho, Hannah levava as mãos geladas às faces e desenvolvia esforços desesperados para não chorar. Mitch pousou-lhe a mão no ombro, numa tentativa para a tranquilizar. O agente Wilhelm exalou um suspiro de frustração e Ellen North trocou um olhar com Cameron Reed.
Suponho que ainda é cedo disse a advogada. Wilhelm emitiu um grunhido de impaciência.
Talvez seja tarde para o Dustin Holloman. Hannah sentia-se consumida pela indignação. De súbito, soltou-se da mão de Mitch e precipitou-se para o agente do BCA.
Não se atreva a censurar o Josh! bradou, agredindo-o, antes que fosse possível impedi-la. Não passa de um garoto! Não tem culpa de que vocês não consigam cumprir o dever! Não é culpado de o mundo estar cheio de escumalha como o Garrett Wright!
North acudiu e colocou-se diante de Wilhelm.
Acalme-se, por favor, Hannah recomendou, com serenidade. Ninguém culpa o Josh...
Vou levá-lo para casa declarou a outra.
A decisão foi tomada sem a habitual ponderação mental dos prós e contras. Irrompeu dela, em obediência à voz do instinto, agora que as camadas de educação e socialização haviam sido destruídas.
Já não se importava com o que os outros pensavam. Sabia que perdera toda a semelhança com a imagem de «mulher do ano» que todos os habitantes da cidade lhe atribuíam, mas era-lhe indiferente. Agora, só se preocupava com Josh, para o proteger e lutar a fim de obter a justiça que ele merecia.
Vou levar o meu filho para casa repetiu, olhando por cima do ombro para Mitch, que os trouxera no seu Explorer.
Lamento que não resultasse, mas tínhamos de efectuar a tentativa, tanto no interesse do Josh como no nosso.
Não murmurou Hannah. Nada disto foi para o bem dele. Não o compreende, Mitch? Nada do que acontecer agora pode alterar o que o Garrett Wright lhe fez e à nossa família. Nada. Jamais. A nossa única esperança reside na vingança.
Abandonou a sala e dirigiu-se para o gabinete da Dra. Freeman. Diante da porta, empertigou o busto, sacudiu o cabelo para os ombros, bateu uma vez e abriu-a.
Vamos para casa, Josh anunciou, estendendo a mão ao filho.
Mitch disparou um olhar acerado na direcção de WiIhelm, que friccionava o ombro atingido.
Recebes lições de sensibilidade do Steiger, nas horas vagas?
Estamos todos tensos resmungou o outro.
Ellen voltou para junto da janela de observação no gabinete da psiquiatra e olhou em silêncio, enquanto Hannah se inclinava para receber o filho nos braços.
Quem a pode censurar? murmurou a Cameron. No fundo, tem razão. Não quisemos esta sessão por causa do garoto, mas para salvar a pele. Há ocasiões em que detesto esta profissão.
Tanto quanto sabemos, o Wright suplantou-nos nesta sessão de hipnose. É professor de Psicologia, especializado em leccionar a percepção. Pode muito bem ter espremido a mente do miúdo como uma esponja, para depois lhe introduzir o que desejasse.
Terminada a sessão, a Dra. Freeman entrou na sala de observação. Não apresentou qualquer justificação do insucesso e referiu que lhe parecera que era cedo para explorar as recordações de Josh. Ele ainda não confiava inteiramente nela e, depois daquela experiência, tardaria muito mais tempo a mudar de atitude.
Mitch acompanhou Hannah e Josh à sua carrinha, enquanto Wilhelm subia para a sua viatura e cruzava a cidade em direcção a St. Paul, onde tinha um encontro com Bruce DePalma, o seu agente especial de serviço. Por seu turno, Ellen atravessou o parque de estacionamento com Cameron.
Não seria conveniente inspeccionar o meu carro antes de entrarmos? sugeriu ele. Podem ter instalado uma bomba.
No meu, não foi uma bomba, mas apenas um trapo a arder introduzido no depósito.
Pois, apenas...
O resultado final era o mesmo. O Cadillac estava destruído. Manley ficara apavorado, enquanto dava voltas sucessivas ao veículo carbonizado.
O pior era não se saber se Ellen era um alvo de apoiantes ou do cúmplice de Wright. Ou de ambos.
Ela tencionava visitar os pais após a sessão com a Dra. Freeman, os quais viviam a dois quarteirões de distância do consultório da psiquiatra e haviam telefonado à filha por duas vezes durante a semana, preocupados com a sua segurança. No entanto, Ellen ligara para lá e cancelara o encontro, para não complicar o serão de Cameron, pelo que este cortou a sul na France Avenue e seguiu em direcção à auto-estrada.
Talvez fosse melhor assim, reflectia ela, enquanto passavam diante de centros comerciais e intersecções que permitiam vislumbres de áreas tranquilas dos subúrbios. À primeira vista, uma visita parecia oferecer aquilo de que necessitava apoio e simpatia. Mas o que sentia não se podia curar com uma visita ao lar paterno. Como não fora possível ao abandonar Twin Cities, dois anos atrás tudo se limitava a um adiamento.
Combatia agora a sensação, à medida que acudia à superfície como petróleo. O medo de que se afastara quando abandonara o sistema de Hennepin County não consistia apenas numa atitude política e de desapontamento, mas no conhecimento de um mundo em decadência e a certeza de que tanto fazia parte do problema como se sentia enojada com ele.
A sensação de desolação continuava a assolá-la, enquanto deixavam os subúrbios para trás e a paisagem assumia um aspecto mais tranquilo, com tapetes de campos semeados e vales com áreas verdes de arvoredo. E, à medida que se acercavam de Deer Lake, invadiu-a outra inquietação sinistra, enquanto observava a paisagem: a ideia de que o espírito de vingança se encontrava por ali, algures, e que, se enveredassem pela estrada apropriada, talvez rolassem, sem o saber, diante da casa onde Dustin Holloman aguardava que o libertassem.
Cameron abandonou a auto-estrada na paragem de camiões de Big Steer e continuou por um longo percurso arborizado, até que começaram a aparecer casas dispersas da cidade. Enquanto iam percorrendo as ruas, Ellen via os mesmos símbolos repetidamente. As fitas nas portas pretendiam manifestar apoio e porventura afugentar o mal: «Tragam o Dustin para Casa.» Havia igualmente cartazes nas montras. A nova bandeira que o município hasteara através da Main Street dizia: «Protejam os Nossos Filhos!»
O apelo impressionou-a como se fosse de natureza pessoal. Os cidadãos voltavam-se imediatamente para a Polícia, que, de contrário, costumavam ignorar, esperançados em que o crime fosse solucionado, independentemente da ausência de pistas. A pressão das suas exigências silenciosas pousava-lhe nos ombros e convertia os músculos em pedra.
Quer voltar ao escritório? perguntou Cameron. Podíamos tentar contactar com mais alguns compinchas do Wright.
Desta vez, passo. Acho que já sofremos o suficiente para um dia. A única coisa que me interessa agora são umas horas de sono.
Sim, imagino que não dormiu muito, a noite passada. Mas duvido que conheças o motivo.
Ellen tinha dificuldade em se convencer de que passara a noite com Brooks. Que havia descurado tanto as suas defesas naturais. E logo com Jay Butler Brooks, nada menos! Não obstante, tinham-se procurado mútua e intimamente, e o resultado fora incrível.
E não menos incrivelmente complicado.
Creio que o Manley pensa que você é alvo de uma maldição disse Cameron, travando no caminho de acesso à residência dela, ao lado do Bonneville, uma das portas exibindo uma primeira demão de tinta cinzenta, onde estivera escrita a palavra «CABRA».
Ninguém lho pode levar a mal. Aqui para nós, eu própria estava com medo de deixar o meu carro na garagem dele. Não queria assumir a responsabilidade de o seu negócio voar em chamas.
A responsabilidade não é sua. Contente-se com o papel de vítima.
De qualquer modo, o meu convívio tornou-se perigoso.
Quer que entre?
Não. Ellen indicou um carro cinzento estacionado junto do passeio. O Mitch enviou-me um guarda. Não corro perigo. Obrigada pela boleia.
Tente evitar os problemas durante algumas horas.
Tenciono deitar-me cedo. Que mais problemas podem aparecer?
Acudiram-lhe visões do sorriso malicioso de Jay, enquanto conduzia o Bonneville para a garagem.
Francamente, Ellen! murmurou ao pegar na pasta. Que altura escolheste para dar largas ao teu líbido!
Da minha parte, não ouvirás qualquer queixa.
Voltou-se e viu Brooks emergir das sombras da garagem. Não perdera tempo a barbear-se, nem, aparentemente, a ir além de passar os dedos pelo cabelo.
Não preciso de me preocupar com a possibilidade de o cúmplice do Wright me apanhar! Primeiro, hei-de ter um ataque cardíaco. Que diabo fazes aqui?
Tinha as minhas dúvidas quanto à eficiência da tua equipa de vigilância e decidi pô-la à prova. Estendeu a mão e pegou na pasta. Como vês meteu água.
Isso estou eu a ver. Como entraste? Estava tudo fechado à chave.
Extraiu um cartão de crédito da algibeira e mostrou-o.
Nunca saio de casa sem ela. Deixei o carro no quarteirão vizinho, vim pelo beco das traseiras, transpus a tua vedação...
E o Harryl
Saudou-me com grande agitação da cauda. Não é propriamente um cão de guarda. Inclinou a cabeça na direcção da porta de comunicação da garagem para o quintal. Precisas de mandar colocar um fecho ali. Forcei o trinco; sem dificuldade, com o cartão de crédito. Qualquer ladrão vulgar o poderia fazer.
É uma perspectiva tranquilizadora...
Encara o aspecto risonho da situação continuou, seguindo-a através da porta. Ao menos, fui eu que te indiquei os pontos frágeis do teu sistema de segurança. A única coisa que procuro é uma sessão ardente de sexo.
Ah, apenas isso?
A noite passada não te mostraste tão indiferente. Pousou as mãos nas ancas dela e encostou-a à parede. Se a memória não me atraiçoa, entregaste-te a certas actividades ardentes...
Foi impressão tua alegou Ellen, com simulado desprendimento.
Está a corar, doutora.
É do aquecimento.
Com certeza!
Despiu o casaco, deu de comer ao cão e voltou para junto de Brooks, que se sentara na sala.
Estive a pensar murmurou ela, começando a mover-se em vaivém, com uma ponta de nervosismo.
Mau...
Aquilo de ontem à noite foi... foi incrível...
Mas...
Não se pode repetir.
Porque...
Porque tudo. Devido ao caso. Devido a quem sou. Devido a quem és.
Referes todos os motivos por que estamos juntos.
Eu sei. Abanou a cabeça com veemência. Não funcionaria bem, Jay.
Mas ontem funcionou perfeitamente lembrou ele, começando a aproximar-se.
Sabes ao que me refiro insistiu ela, com firmeza. Tenho prioridades.
E não faço parte delas.
Quererias fazer? Também tens as tuas. Duvido que esteja incluída.
Penso que tornei o meu interesse por ti bem claro desde o princípio.
O interesse em mim como personagem da peça esclareceu.
Ainda não confias em mim.
Sabes a posição em que me encontro. Foste advogado. Não deves, pois, tomar o assunto pessoalmente.
É um pouco difícil, considerando todos os aspectos envolvidos observou Jay, com uma risada sarcástica. Julgava que já tínhamos ultrapassado a fase de cobrir o rabo para não dar nas vistas. Como sabes, vi o teu de alguns ângulos muito íntimos.
Obrigada por me recordares redarguiu Ellen, começando a irritar-se. Queres vê-lo mais uma vez, para o poderes descrever pormenorizadamente no capítulo dezanove?
Safa, o que para aí vai! Sabes perfeitamente que não faria nada para te magoar.
Não, não sei. Estou ao corrente do motivo por que vieste a Deer Lake e deixei bem claro que o detestava. Revelaste-me que frequentaste a mesma faculdade de Direito que o Tony Costello, mas insistes em que apenas se conhecem superficialmente. Pretendes ser meu amigo e vais aos arames se não te revelo pormenores que devo manter confidenciais. Irrompes na minha vida vindo das sombras como um gatuno e depois dizes que queres velar pela minha segurança. Que diabo devo pensar de ti?
A pergunta pairou sobre ambos como uma luva gigantesca prestes a envolvê-los. Ela aguardava que ele tomasse a iniciativa, mas permaneciam ambos imóveis.
Há uma semana que te conheço acabou por articular a meia voz. Uma semana. Das piores da minha vida. Que te parece que devo pensar? Que és um herói? Que devo confiar em ti? Sabes o que aconteceu na última vez em que confiei num homem que se declarava meu amigo e dizia que me compreendia? Serviu-se da confiança, utilizou-me para adquirir algum poder. Um violador saiu em liberdade.
O Fitzpatrick? murmurou Jay.
A sua vítima contava com a minha equipa. O Art Fitzpatrick destruiu-lhe a vida e safou-se disso como se não fosse nada de importante, porque cometi a estupidez de confiar no homem errado. Terça-feira, enfrentarei esse indivíduo no tribunal, consciente de que nada o impedirá de obter o que pretende.
O Costello.
Brooks fechou os olhos e pronunciou o nome como uma maldição. As pedras do puzzle que utilizara durante uma semana ajustavam-se nos seus lugares. Estava ao corrente do colapso de Fitzpatrick, naturalmente, mas não houvera a mínima ligação directa com Costello, que não o representara. Não obstante, assediara ambos para referência futura. E actuara através de Ellen para o conseguir. O filho da mãe.
Ele fará o que for necessário para ganhar um processo ou qualquer outra coisa que pretenda.
E ele pretendia-a? É à volta disso que tudo gira, não é, Ellen? O Costello fodeu-a, figurada e literalmente?
As palavras trocadas furiosamente na noite de sexta-feira acudiam de novo à mente de Brooks. Costello traíra Ellen e encontrava-se agora presente, como representante de Wright opção tomada depois de o caso ter sido entregue a Ellen, depois de Jay entrar em cena. Não admirava, pois, que ela se sentisse quase paranóica.
E que fazes tu, Brooks? Sacode-la de um lado para o outro, como uma boneca de trapos?
Ele explorara as emoções dela, mantivera-a desequilibrada na tentativa de obter o que desejava a história, os elementos íntimos, a mulher, aquela mulher que se encontrava na sua frente com as defesas desgastadas e o amor-próprio empunhado como um escudo.
Que lhe parece o novo volte-face do seu enredo, Mister Brooks? proferiu ela, com amargura. Talvez prefira escrever essa história, explorar essas pessoas, embora me pareça que o tema de magnatas corporativos a cometerem abusos sexuais não constitua uma fonte tão lucrativa como o rapto de crianças. Parabéns, Jay. Conseguiste atingir um alvo duplo comigo. Deves estar orgulhoso.
Ellen... começou ele, estendendo a mão com alguma hesitação.
No entanto, Ellen recuou um passo, ao mesmo tempo que erguia as mãos, num gesto claro para o repelir.
Acho conveniente que te retires. A noite ainda é uma criança. Deves ir para casa e passar para o papel esta pequena cena de luta, enquanto a tens fresca na memória. Podes telefonar ao Costello, a fim de trocarem impressões sobre o meu comportamento sexual. Não há nada como a experiência em primeira mão, quando se trata de um trabalho de investigação.
Pára com isso.
Não me dês ordens em minha casa. Decerto não queres que chame o meu guarda, para pregar contigo na cadeia.
Ele não tinha a menor dúvida de que a ameaça seria cumprida, pois não recorreria a um bluff que não estivesse pronta a concretizar.
Desculpa acabou Jay por aventurar. Reconheço que sou um filho da mãe.
E pensas que isso te autoriza a continuar a sê-lo disse Ellen, meneando a cabeça, com incredulidade. Desde que previnas as pessoas com antecedência, para depois não se poderem queixar, não é? Desde que lhes expliques que vieste para as utilizar...
Não vim para me servir de ti.
Não? Pensas que ainda distingues a diferença? Dizes-me que aquilo de ontem à noite não teve nada de comum com o caso, mas dás meia volta e utilizas o material contra mim em... em ameaças levemente veladas.
Isso não é verdade. Estás a deformar tudo desmesuradamente.
Achas? Vejamos persistiu, com sarcasmo acutilante. Ontem à noite, dormimos juntos. Hoje, fui assistir à hipnose da minha vítima. E eis-te agora aqui, à procura de um pouco de conversa de travesseiro, e ficas fulo quando recuso. Que significa tudo isto?
Um monte de tretas sem pés nem cabeça? vociferou ele, irritado com a análise da situação que Ellen fazia, sobretudo porque, no fundo, desejava de facto inteirar-se do que se passara no consultório da Dra. Freeman, embora a tentativa de voltar a ir para a cama com ela de modo algum fizesse parte do processo.
Na realidade, não és melhor que aquele repórter que importunou o Steiger retorquiu ela, com uma expressão de desdém.
Não me prostituo para obter informação. Jay recomeçou a avançar, até que a encostou à parede. O que acontece entre nós não passa daqui. Talvez nos conhecêssemos devido a este caso, mas a profissão nem me passou pela cabeça, ontem à noite. Concentrava-me apenas na tua fogosidade, nas cedências que me ofereceste, no ardor com que correspondeste às minhas carícias.
A cada palavra que pronunciava a voz abrandava de intensidade.
Continuava a acercar-se, até que os dois corpos começaram a entrar em contacto.
O que se passou ontem à noite não tinha a menor relação com o caso acrescentou, num tom quase inaudível. Sabe-lo perfeitamente.
Ellen quase desejava que tivesse tido. Mas não havia necessidade nem conveniência de manifestar indignação. Era uma mulher adulta que fizera uma escolha. Ele não a seduzira. Precisara dela, que na altura o desejava. E, em parte, ainda o desejava.
És uma mulher, Ellen. Não fazes parte integrante do caso. Não podes permitir que te absorva inteiramente. Não era disso que pretendias afastar-te?
Sim. Mas onde devia traçar a linha divisória... e a partir de onde não o podia fazer? Onde terminava o caso e principiavam as vidas pessoais deles? Ainda podiam separar-se ou estavam tão inevitavelmente envolvidos como tudo o resto naquela teia?
Desta vez, a escolha não parece depender de mim declarou ela, com amargura. Houve uma ocasião em que me afastei, mas agora o mal visitou-me, neste lugar. Chegou o Costello. Tu. Os media. A Hannah recorreu aos meus préstimos. E o Josh. Para não falar das pessoas com as quais trabalho. E para as quais trabalho. Esforçou-se por exibir um misto de sorriso e gargalhada. Estou cercada.
Não sou o inimigo.
Pois não. Ele era uma daquelas criaturas míticas umas vezes boas, outras más, sempre na sombra e misteriosas, com o seu papel impreciso até ao desenlace da história.
Sabes o que enfrento. Compete-me obter justiça para essas pessoas. Trata-se do caso mais difícil de toda a minha carreira. E estou enferrujada. Aterra-me a ideia de que esse filho da mãe consiga ludibriar-me e partir em liberdade. E tu bates-me à porta, porque estás interessado em sexo.
Vim, porque me preocupava contigo persistiu Jay. E não me retiro.
A inflexão acerada do tom obrigou-a a arregalar os olhos.
Como dizes?
Com a breca, Ellen! Alguém te incendiou o carro. Foste ameaçada. Aquele louco e os seus comparsas colocaram-te no centro das suas atenções. Se consigo entrar sem que o teu guarda se aperceba, eles poderão fazê-lo com a mesma facilidade. Não, não saio daqui. Não quero que te magoem seriamente.
Não queria que a magoassem, mas fá-lo-ia ele próprio. Seria um vilão, de uma maneira ou de outra. Escreveria sobre o presente caso, para o converter numa diversão que seria lida e posta de parte, esquecida num transporte público. Reduzi-la-ia a uma personagem, assim como Hannah, Josh, Mitch e Megan. Obteria de tudo aquilo o que lhe interessava e voltaria as costas ao material utilizado. Apesar de haver concedido uma parte de si próprio a Ellen, afastar-se-ia dela.
Abarquei a intenção admitiu a advogada. E agradeço devidamente o cuidado. Mandarei instalar um ferrolho logo pela manhã.
E esta noite?
Arriscar-me-ei.
Não. Riscos são a última coisa a que deves expor-te. É mais prudente afastares-te, jogares pelo seguro. Já sofreste queimaduras uma vez. Porquê expores-te de novo?
Corri um risco muito maior, ontem à noite.
E agora arrependes-te.
Não concedeu ela. Limito-me a reconhecer a sensatez de não o repetir.
Ele estudou-lhe o rosto durante um longo momento a sinceridade, a resolução, o arrependimento daquele momento, se não da noite que tinham passado nos braços um do outro. Podia ter-se esforçado mais para a levar a mudar de ideias. Ou tentado seduzi-la, mas nessa eventualidade tudo o que ela pensava de detestável a seu respeito corresponderia à verdade, e, pela primeira vez desde longa data, a opinião de outrem interessava-lhe. Pela primeira vez em toda a sua vida, desejava ser algo que não era. Nobre.
A vida tornara-se demasiado complicada.
Por favor, Jay murmurou Ellen. Não é que não queira. Simplesmente, não posso. Sobretudo agora. Pedirei ao agente que entre e passe a noite no sofá. Sai, suplico-te.
Preferes ter um polícia a comer donuts no sofá do que a mim na cama? Santo Deus!
Não, mas é preferível assim. Entregou a parka a Brooks e começou a dirigir-se para a saída. Lamento que as coisas não sejam diferentes, mas o caso está primeiro que tudo, eu sou quem sou, tu és...
... Um mero empecilho para ti completou ele.. Bem, minha querida, não se trata propriamente de uma notícia de primeira página.
Depois de tudo isto terminar, talvez... começou ela, mas interrompeu-se, consciente de que não merecia a pena insistir naquela tecla, pois tinham partilhado uma noite sem fazerem promessas. Dá as boas-noites, Ellen ordenou a si própria.
Boa noite, Ellen ecoou ele, pousando a boca na dela. Em seguida, salientou: Se decidir arriscar-se, doutora, sabe onde pode encontrar.
E saiu, sem mais uma palavra.
Ellen conservou-se junto da porta, até que o frio a obrigou a fechá-la. No entanto, a pesada sensação de saudade, de pesar, mantinha-se enquanto levava a pasta para o quarto.
A edição da manhã de segunda-feira do Pioneer Press publicava um artigo sobre a detenção dos Sci-Fi Cowboys, telefonemas do presidente da Câmara, dois senadores estaduais e três congressistas e a ameaça de um processo judicial. Rudy surgiu no gabinete de Ellen antes de o seu primeiro café matinal arrefecer.
Eles não dispõem de elementos sólidos para mover um processo respondeu ela, pousando a chávena. O Priest está assanhado porque os seus rapazes são de facto malcomportados. O Mitch fez muito bem em os deter e interrogar.
Esse programa despertou a atenção a nível nacional. Faz alguma ideia da quantidade de gente que o patrocina?
Gente endinheirada. Com alavancas aos níveis local e geral. Gente a que Rudy já recorrera, ou viria a recorrer, em alguma fase da sua carreira.
Eu próprio o aprovei acrescentou, aproximando-se da janela, ao mesmo tempo que extraía um tubo de pastilhas para a garganta da algibeira das calças e introduzia duas na boca.
É um programa interessante admitiu Ellen. Ninguém o culpará, se se descobrir que há algumas maçãs podres na cesta.
Não podemos permitir que movam um processo às autoridades.
É apenas barulho e fogo-de-vista.
Porque não faz uma declaração qualquer? Para serenar os ânimos.
Fazendo o possível por não deixar transparecer a repulsa que a atitude do interlocutor lhe produzia, declarou:
Tenho todos os motivos para supor que esses miúdos incendiaram o Cadillac. Portanto, não tenciono serenar ânimos. Suponha que vem a descobrir-se que o Priest está implicado com o Wright no rapto?
Mas superou a prova do polígrafo. Encontrava-se em St. Peter quando a agente O’Malley foi atacada...
Sabemos que foi o Wright quem a atacou, mas isso não absolve o Priest de culpa. Pode estar a aludir ao facto agora com o único objectivo de nos fazer recuar e ficar com mais campo de manobra.
Não diga isso nem a brincar!
Acalme-se. O público alinhará ao lado dele. Assim como o Sig Iverson. Entretanto, você pode manter-se confortavelmente neutro. O mau... a má da fita sou eu. Não tem nada a perder, Rudy. A menos, claro, que se chegue à conclusão de que o Priest é um raptor e os Sci-Fi Cowboys reduziram aquele carro a torresmos.
Ellen quase soltou uma gargalhada ao vê-lo contorcer as faces numa panóplia de expressões que variavam do alívio ao pânico, sem parecer decidir-se por uma.
Pode encarregar-se você da declaração continuou ela. Não faça qualquer comentário sobre as investigações em curso. Tem toda a confiança na minha competência. Isto dito com uma expressão grave que possa dar origem a dúvidas. A sucessão de canção e dança do costume. O Fred Astaire não o teria feito melhor.
Ele enrugou a fronte, olhou-a com alguma indecisão e acabou por advertir:
Esse paleio acerado não lhe servirá de nada quando se candidatar a um cargo público.
Repito pela milésima vez que não tenho a mínima intenção de o fazer.
Rudy mudou subitamente de assunto.
Onde está o Jay Butler Brooks? Julgava que viria ao seu gabinete mais vezes. Quero vender-lhe uma ideia para um livro.
Sobre a sua biografia?
Não, sobre a carreira de um advogado regional explicou, com uma expressão grave. Depararam-se-me muitos casos fascinantes ao longo da vida. Como o dos irmãos Warneky, que fizeram uma das suas reses precipitar-se sobre um membro do pessoal. Pareceu um acidente, mas...
Ellen consultou o relógio significativamente.
Tudo isso é muito interessante, mas tenho de estar nos aposentos do Grabko dentro de cinco minutos. Tem estado a examinar a ficha médica do Josh Kirkwood. Mais tarde comunico-lhe o resultado, Rudy.
Com estas palavras, abandonou apressadamente o gabinete e deteve-se somente um instante junto da secretária de Phoebe, para lhe recomendar que fechasse a porta à chave, depois de Rudy sair. Utilizou as traseiras do edifício para evitar os repórteres, o que a obrigou a transitar por entre andaimes e nuvens de caliça, em virtude das obras que se efectuavam em grande parte do piso térreo.
O tribunal de família achava-se em funcionamento. O átrio defronte de onde fora a sala do juiz Franken estava repleto de crianças, maridos e esposas, que se olhavam com expressões hostis, assistentes sociais e advogados, todos à espera da sua vez para comparecer à presença do magistrado que o distrito enviara para ocupar o lugar deixado vago pelo óbito. Um pouco adiante, perante a entrada do juiz Grabko, achavam-se os respeitáveis membros da imprensa, empenhados em tomar conhecimento em primeira mão da decisão judicial.
E à minha espera, reflectiu Ellen. Estavam irritados pelo facto de os colegas do Pioneer Press se lhes terem antecipado com alguma informação nova e, sobretudo, a entrevista a Christopher Priest, pelo que se vingariam nela.
Corro com eles, se me conceder o exclusivo.
Ela voltou-se e viu que Adam Slater se acercara quase imperceptivelmente e permanecia perto até quase estabelecer contacto. De calças de flanela cinzentas e um blusão anónimo, quase se podia confundir com as pessoas presentes para participar num ou noutro processo. Uma abundante madeixa tombou sobre os olhos, no momento em que, com um gesto simuladamente solene, levou o bico do lápis aos lábios e o pousou no bloco-notas.
Safa, que você não desiste com facilidade, hem?
Existe a crença generalizada de que a nova geração de jornalistas não tem um objectivo definido. Sempre vai acusar os Sci-Fi Cowboys? De momento, são o tópico mais palpitante para uma reportagem digna desse nome. Rapazes maus tornados bons, arrancados das fauces da psicopatia e treinados para usar os seus poderes para o bem da humanidade.
Pelo menos, é a opinião generalizada. Uma notável excepção: você.
É um programa admirável recitou Ellen. Espero que se chegue à inabalável conclusão de que os rapazes não tiveram nada a ver com a explosão.
E quanto aos raptos?
Ninguém disse que eram suspeitos de ter raptado alguém.
Dirigiu um olhar enervado à porta de Grabko e à pequena multidão que a antecedia. Os nativos pareciam começar a impacientar-se, e não havia sinais de Costello. Ou se introduzira nos aposentos do juiz mais cedo ou aguardava à distância para efectuar uma aparição tanto quanto possível espectacular. Em qualquer das situações, ela achava-se entre a espada e a parede. Devia ter trazido um agente comigo.
Estão a efectuar-se diligências de rotina junto de todos os amigos íntimos e associados do doutor Wright acrescentou. E agora, se me dá licença, Mister Slater, tenho de estar no gabinete do juiz Grabko.
Muito bem. Obrigado por estes momentos de atenção. Ele afastou-se, depois de escrever algumas linhas no bloco, e chamou Quentin Adler, que se encontrava com outros colegas. Olá, Curly! Temos de conversar. Sabes que me tramaste?
O outro olhou em redor, como se duvidasse de que era o visado.
Isso é comigo?
As acusações não tinham pés nem cabeça!
A voz de Adler ecoou em redor e atraiu a atenção dos outros membros da imprensa, que se apressaram a acudir para uma ideia geral do que se passava. Assim, Ellen ficou com espaço livre para passar sem ser interceptada. E, quando alguns se aperceberam da sua presença, logrou esquivar-se com o mero e confortável «nenhum comentário», antes de transpor a entrada e desaparecer.
O segredo está todo no movimento do punho, Mister Costello disse Grabko, demonstrando o que dizia com um gesto lento.
O advogado achava-se na sua frente, impecável num fato que devia ter custado o correspondente ao salário de um mês de Ellen. A camisa era branca como as asas de um anjo e o nó da gravata listrada impecável. Tornava-se difícil acreditar que ele e Rudy Stovich pertenciam à mesma espécie.
Como em tantos aspectos da vida, a pesca depende da concentração, lógica e graciosidade acrescentou o magistrado.
E eu que não trouxe as botas de água! articulou Ellen, entre dentes, enquanto Costello lhe dirigia um sorriso cordial.
Com um gesto cauteloso, o juiz Grabko pousou a cana de pesca num suporte ao lado da secretária.
É pescadora, Ellen?
Só no sentido metafórico esclareceu ela, instalando-se numa cadeira. Pescou alguma coisa, Tony? perguntou a meia voz, enquanto este se sentava a seu lado.
É o que veremos foi o murmúrio ambíguo.
Grabko, por sua vez, afundou-se na poltrona almofadada, endireitou o laço bem no centro do colarinho e começou a cofiar a barba, como se fosse o pêlo de um gato, após o que pousou o olhar em Ellen, com preocupação paternal.
Constou-me que nos devemos considerar afortunados por continuarmos a tê-la entre os vivos.
Não creio que fosse um atentado à minha vida, Meritíssimo. Apenas um aviso.
O doutor Wright ficou preocupado, quando se inteirou observou Costello.
Com o incêndio do carro ou por eu não ter ardido com ele?
Garanto-lhe que a sua preocupação é sincera.
Acredito, sobretudo atendendo ao empenho que me move em o colocar atrás das grades para o resto da vida.
Também se aflige com as acusações aos Sci-Fi Cowboys. Não quer que o programa seja prejudicado devido às suas ligações com eles.
Qualquer prejuízo que o programa sofra dever-se-á às atitudes das personagens envolvidas asseverou Ellen. Penso que o doutor Wright e os seus colegas avaliaram exageradamente alguns desses rapazes.
Tem algum elemento contra eles? quis saber Grabko.
Nada de concreto, de momento. A Polícia e o BCA trabalham nisso, mas lutam com falta de pessoal. Graças ao seu cliente e respectivos amigos acrescentou ela, voltando-se de novo para Costello.
Todavia, ele sacudiu a responsabilidade.
O meu cliente está inocente. As provas que apresentaremos serão suficientemente eloquentes.
O que nos leva ao tema de hoje volveu o magistrado, pousando o indicador na pasta de plástico na sua frente. A ficha médica do Josh Kirkwood. Consagrei várias horas ao seu exame.
Ellen encheu os pulmões de ar e conservou-o.
Os maus tratos infligidos pelos pais são um crime horrível acrescentou o juiz. De uma espécie difícil de conceber numa família como os Kirkwood. Um óbice perigoso da nossa parte. Um grave problema que não conhece barreiras socioeconómicas.
Precisamente o nosso ponto de vista, Meritíssimo disse Costello, inclinando-se para a frente.
No entanto... Grabko interrompeu-se, para saborear o seu momento. Não encontrei nada nos registos do Josh Kirkwood que se pudesse constituir como sendo fora do normal ou relevante para este caso.
O ar foi libertado dos pulmões de Ellen.
Como nós sempre esperámos.
Costello permitiu-se um subtil encolher de ombros. Umas vezes ganha-se, outras perde-se. Conseguira o que pretendia: despertar a atenção dos media, a oportunidade para lançar as sementes da dúvida.
No fundo, não estou surpreendido admitiu. A Hannah Garrison é chefe dos serviços médicos do hospital onde o filho foi tratado. Muito respeitada, desfruta das simpatias gerais, o género de mulher que conseguiria convencer um colega ou uma enfermeira a deixar passar um incidente.
E, de caminho, convencê-los a falsificar os registos? sugeriu Ellen. Cuidado com o terreno que pisa, Tony. Está na iminência de colocar a sua insigne carcaça italiana num forno enorme ao rubro.
Não pretendo converter a mãe na vilã da peça defendeu-se ele. O marido sabe dominar e manipular em termos emocionais. Forçou-a ou convenceu-a.
Sim, e talvez haja vida em Urano, mas as suas especulações quanto a isso também não são admissíveis foi a réplica acutilante. O assunto em epígrafe é a ficha técnica. Acho que podemos encerrar essa faceta. Sigamos para diante.
Muito bem. Costello introduziu a mão na pasta e extraiu um documento. A nossa argumentação para retirar a acusação.
E a nossa contra a retirada redarguiu ela, entregando o relatório de Cameron.
Grabko aceitou os documentos com a expressão de satisfação de um professor que recebia projectos fora da classificação habitual dos seus alunos favoritos.
E prosseguiu Costello, puxando de um novo coelho da manga, na eventualidade de seguirmos em frente, um pedido para suprimir a parada de identificação.
O quê? Ellen voltou-se na cadeira para o encarar. Com que base? Foi uma operação perfeitamente legal. Dirigiu-se a Grabko. Foram necessários grandes esforços para garantir a sua imparcialidade, Meritíssimo.
Estava presente?
Não. Mister Stovich dirigiu o processo pessoalmente. Mas conversei com todas as pessoas envolvidas.
Costello entregou o novo documento ao juiz.
Nesse caso, deve ter plena consciência de que o representante legal do doutor Wright foi banido da sala onde Mistress Cooper redigiu o seu relatório.
Banido, repetiu ela, com incredulidade. Custa-me a crer. O Dennis Enberg assistiu à parada de identificação. Se não estava presente, quando Mistress Cooper preencheu o relatório, foi por sua alta recreação.
Não foi essa a versão que ouvi.
A quem?
Ao meu cliente.
Aí está uma fonte fidedigna. Um psicopata raptor de crianças.
E à própria Mistress Cooper. As suas declarações encontram-se apensas, Meritíssimo.
Gostava de ficar com uma cópia, se não se importa anunciou Ellen.
Costello permitiu-se um leve sorriso.
Com certeza, cara colega. Na verdade, você especificou que o seu departamento queria tudo por escrito. Enviei as suas cópias por um mensageiro.
A fúria ardia nas faces de Ellen, que olhou o advogado e articulou «filho da mãe» entre dentes. A malícia desenhada no rosto dele quase a sufocava, sobretudo porque conhecia a
origem. Voltara o ardil dela contra si própria. No curso normal de eventos num tribunal rural, os desafios efectuavam-se pelo telefone ou pessoalmente, a meia voz. As formalidades ignoravam-se. Ela impusera preceitos legais a Costello para o castigar, retardar a marcha, irritá-lo. E, afinal...
Que espécie de mensageiro enviou? Uma matilha de cães através do Winnipeg? perguntou, sarcasticamente. Eu devia ter sido prevenida sexta-feira, o mais tardar.
Com uma expressão de abjecta inocência, Costelo prestou a explicação a Grabko.
Só conseguimos contactar com Mistres Cooper sexta-feira à tarde, Meritíssimo. Com as restrições do tempo...
Alegremente aceites pelo senhor, Mister Costello salientou ela.
No entanto, ele ignorou-a.
Estamos a fazer o que podemos, Meritíssimo. E encontramo-nos absolutamente preparados para a audiência. Em todo o caso, esperávamos que nos concedesse alguma latitude.
Não posso ignorar o pedido, atendendo à sua gravidade. E penso que as circunstâncias podem ser consideradas uma boa causa para uma excepção à regra geral. Se lhe parece que isso altera o equilíbrio, Ellen, e acha que necessita de mais tempo...
Não, Meritíssimo declarou ela, em voz tensa. Estamos preparados. Só que não aprecio as emboscadas... sobretudo no caso de um assunto insignificante.
Porque não deixamos o magistrado decidir os méritos da solicitação? sugeriu Costello, em tom paternalista.
Grabko aplicou os óculos ao nariz e voltou-se para o documento na sua frente.
Segundo Mistress Cooper, Mister Enberg exprimiu interesse em entrar na sala onde ela redigia o relatório, mas um dos três agentes mandou-o sair e acompanhou-o.
Não acredito asseverou Ellen, em tom de desafio. Qual agente? Chamemo-lo.
O advogado soltou uma risada.
Estou certo de que nos dirá a verdade, quando vir de que se trata. Todos os polícias da cidade querem ver o meu cliente enforcado em público. Mistress Cooper é a única testemunha imparcial do que aconteceu.
O Dennis Enberg nunca permitiria que o expulsassem da sala, se quisesse estar presente argumentou Ellen.
No entanto, não está presente para nos elucidar, pois não?
Que sorte a sua, hein, Tony? Neste momento, o Dennis encontra-se numa mesa de aço inoxidável do Centro Médico de Hennepin County, a fim de ser serrado ao meio por um examinador médico.
Por favor, Ellen solicitou Grabko, um pouco incomodado. Mandarei chamar o agente e falarei com Mister Stovich, mas, como Mister Enberg está impossibilitado de se exprimir sobre o assunto, vejo-me obrigado a concordar com Mister Costello: Mistress Cooper é a mais imparcial de todas as pessoas envolvidas.
Mas nunca mencionou o facto, quando falei com ela.
Interrogou-a especificamente?
Não tinha qualquer motivo para lhe fazer essa pergunta. Conversámos demoradamente sobre a maneira de proceder na parada de identificação...
E ela não tinha qualquer motivo para pensar que havia algo fora do normal cortou o advogado. Mister Cooper não é causídica. Nem agente da Polícia. Não podia conhecer as maneiras de proceder oficiais. Confiava em que a Polícia se comportasse devidamente e viu essa confiança traída.
Não duvido de que foi o que a induziu a crer comentou ela, com um sorriso irónico.
Basta advertiu Grabko, pousando o documento. Falarei com todas as personagens envolvidas e tomarei uma decisão. Há mais alguma coisa para discutirmos hoje?
Nada, que me recorde, Meritíssimo declarou Costello, erguendo as mãos.
Não confirmou Ellen, com relutância.
Muito bem. O magistrado pôs-se a arrumar os documentos do processo. Voltaremos a encontrar-nos amanhã.
És na verdade um verme traiçoeiro, Tony acusou ela, entre dentes, quando abandonaram o gabinete.
Porquê? O interpelado assumiu uma expressão inocente. Porque cumpro a minha obrigação? Porque não acredito na culpabilidade do meu cliente?
Estás-te nas tintas para isso. Só te interessa alcançar a vitória. Iludiste a minha testemunha para executar o teu trabalho sujo. Acusas o pai do Josh Kirkwood de maltratar crianças e impugnas a reputação da mãe. Se acusares publicamente a Hannah Garrison de falsificar os registos médicos, espero que ela te mova um processo por difamação.
Não é um sentimento muito caritativo em relação a quem se preocupa com a tua segurança. Podias ter sido morta, naquele carro.
Trata-se meramente da tua opinião ou sabes alguma coisa que nós desconhecemos?
Pois é. Não só tento ilibar um monstro impiedoso como faço parte da conspiração para te matar. Santo Deus! Será que não consegues aceitar nada pelo seu valor facial?
O facto de tu teres duas caras complica a situação. Ele meneou a cabeça e, após uma pausa, advertiu com uma expressão cândida:
Tem cautela. Enquanto te concentras em mim à espera que desencadeie o ataque, anda por aí uma verdadeira serpente à espreita.
E o nome já está provavelmente no teu Rolodex.
O teu cúmplice imaginário?
Tecnicamente, creio que estou dentro da razão ao chamar-lhe teu cúmplice.
Enfim, veremos como as coisas se desenrolam acabou por decidir, despedindo-se com uma seca inclinação de cabeça.
Confesso que não sei como o posso ajudar, Mister Brooks disse Christopher Priest, com uma expressão tão neutra como a voz.
O seu gabinete correspondia ao que Jay imaginara: um pequeno cubo claustrofóbico, com livros e ficheiros metálicos. Um monitor de computador em cima da secretária expunha uma repetição infindável de logotipos. O aposento estava cheio de material académico tratados, livros de consulta e pontos de estudantes, mas nada em termos de bricabraque pessoal que induzisse uma sugestão do homem cujo nome figurava na pequena placa à entrada. A secretária apresentava-se demasiado arrumada e o ambiente geral despido de personalidade como o próprio professor.
Alguns dos meus alunos e eu estivemos envolvidos no esforço de voluntários para encontrar o Josh informou Priest, enquanto se sentava com meticulosidade. Instalámos estações de computadores no centro de voluntários e entrámos on-line para dispersar e receber informação através das várias redes. É essa a extensão da minha participação.
É um pouco de simplificação a mais, não acha, professor? A voz de Jay deixava transparecer cepticismo. O senhor ofereceu-se para colaborar nas investigações, e depois uma das agentes envolvidas foi atacada à sua porta e o seu melhor amigo detido.
Bem, de facto as coisas não se desenrolaram da maneira mais propícia.
E a doutora Garrison é sua amiga, salvo erro?
Sim, conheço a Hannah. Admiro-a, mesmo. Considero-a uma mulher extraordinária.
Agora, a Polícia procura aquele estudante... O Todd Childs... e investiga os Sci-Fi Cowboys. O senhor deve ter a impressão de que está a ser atacado pessoalmente.
Priest olhou o interlocutor como um mocho detrás dos óculos de tamanho desmesurado.
Não tive nada a ver com qualquer crime. E o mesmo se aplica aos Cowboys.
As circunstâncias apontam para o contrário, no caso dos rapazes.
As circunstâncias nem sempre são o que parecem. Os Sci-Fi Cowboys são um grupo de jovens muito selecto, Mister Brooks. Escolhidos a dedo pelos seus talentos e potencial.
A maioria desses talentos não está em contradição com a lei?
Talentos académicos especificou, circunspecto. São jovens muito brilhantes, que merecem uma oportunidade para provar que podem ser membros produtivos da sociedade.
E decerto se sentem gratos por essa oportunidade. O facto de conceder a um miúdo um dom dessa natureza inspira lealdade, a qual pode correr o risco de se manifestar da maneira mais imprópria.
Estou disposto a defendê-los com vigor. Já disse tudo o que se me oferecia a esse respeito à Polícia, à imprensa... e ao senhor, Mister Brooks. Se veio para ouvir uma admissão de culpa, não vejo o menor interesse nem conveniência em prosseguir esta nossa conversa.
Não, de modo algum...
Sei o que revelou às autoridades sobre o encontro com o Tyrell e os outros dois rapazes, sábado à noite.
Limitei-me a descrever o que aconteceu asseverou Jay, sem pestanejar. Não me inclino para qualquer dos lados em oposição.
Não? Os lábios finos do professor comprimiram-se. Não... alinha ao lado de Miss North?
Porque diz isso?
Conversaram sobre o assunto. Retiraram-se juntos. E ele estivera, vigilante, sentado ao lado da esposa de Garrett Wright. A ideia fazia vibrar uma sensação estranha de violação.
Miss North tem uma objecção filosófica ao meu trabalho salientou Jay, com um sorriso sardónico estudado. Tem conseguido comparar a publicação romanceada de crimes verdadeiros com os Romanos a venderem entradas para assistir ao espectáculo dos cristãos a serem devorados pelos leões.
Priest ponderou a resposta.
Uma correlação interessante. É claro que os seus leitores, Mister Brooks, estão isolados do horror imediato da violência, mas talvez compartilhem ambos uma atracção comum.
No meu caso, não.
Bem, no fundo, é tudo uma questão de percepção, suponho. E de que depende a percepção? Pode apresentar-se o mesmo conjunto de factos a cinco pessoas diferentes e obter outras tantas interpretações distintas, razão pela qual muitos advogados calejados nos poderão dizer que não há nada de tão pouco fidedigno como uma testemunha ocular. As opiniões que formamos baseiam-se em percepções individuais, algo que a ciência ainda não entendeu totalmente. Fascinante, não? Abanou a cabeça, como se os humanos fossem simplesmente demasiado complicados. A mente humana pode ser infinitamente lógica e pragmática ou persistentemente irracional. Uma mente vaga até à exasperação pode conter uma reserva de brilho. E outra brilhante pode apresentar-se fatalmente deficiente.
Qual aplicaria ao nosso raptor?
Não me atrevo sequer a aventurá-lo. O comportamento humano é a especialidade do doutor Wright e não a minha.
Mas não trabalhavam num projecto juntos?
Trabalhamos num projecto que se relaciona com a aprendizagem e a percepção.
Conhecem-se há muito tempo?
Leccionámos na Universidade da Pensilvânia.
Sim, mas já mantinham relações cordiais antes disso, segundo julgo?
Não sei ao que se refere declarou Priest, cauteloso.
Jay simulou inocência.
Entretive-me a efectuar um pequeno trabalho de investigação. Quando conversei com um vosso antigo colega na Pensilvânia, inteirei-me de que nasceram e se criaram na mesma cidade.
Bem, eu criei-me em Chicago.
Então, devo tê-lo lido algures. Em todo o caso, é estranho que um amigo se enganasse a esse respeito.
No entanto, posso ter visitado Indiana em criança, mas não me criei aí.
Portanto, não conhecia o doutor Wright antes?
Tornámo-nos amigos na Universidade da Pensilvânia.
Bons amigos? Daqueles que partilham coisas, se defendem mutuamente e ajudam sempre que possível?
Há alguma necessidade de prosseguir este tipo de interrogatório, Mister Brooks?
Este encolheu os ombros e sorriu.
Estou apenas a perscrutar o passado, professor. Em busca de antecedentes. Nunca sei onde as perguntas me vão conduzir e a natureza do que se me deparará. Por exemplo, podia dizer-me que faria tudo pelo Garrett Wright. Quem sabe onde uma resposta dessas poderia conduzir?
A um beco sem saída. Priest levantou-se. Desculpe pôr termo a esta nossa conversa, mas tenho de preparar uma aula.
Jay consultou o relógio. Segundo informação da recepcionista, o professor não tinha qualquer aula antes do princípio da noite.
Bem, acho que vou ter de desencantar o material do modo mais difícil reconheceu, pondo-se igualmente de pé. Obrigado pelo tempo que me concedeu. Pareceu ocorrer-lhe uma ideia. Só mais uma coisa. O estudante que sofreu o acidente de carro, na noite do rapto do Josh, participava no projecto conjunto seu e do doutor Wright?
É exacto.
Hum... Qual seria a percepção dele dessa coincidência?
É uma coisa que nunca saberemos declarou Priest. Fui informado esta manhã de que faleceu.
Jay sentiu-se abalado pela notícia. A morte era revelada quase com desprendimento, com tão pouco ou nenhum remorso como se se tratasse de um dado socialmente adquirido.
Encontrou-se no corredor, com a cabeça um pouco oscilante. O acidente de carro pusera tudo em movimento e agora o estudante que fizera um recado a Priest morrera. Todd Childs era aluno dele e de Wright. Olie Swain, suspeito principal até que se suicidara na cadeia, assistira a aulas de ambos os homens. Megan O’Malley suspeitava de Priest e fora atacada no quintal da residência de campo deste último.
Christopher Priest parecia tão integrado na história como Garrett Wright, embora ninguém dispusesse de qualquer elemento contra ele. Uma imagem imaculada, visível primeiro nos seus esforços para colaborar no esforço destinado a encontrar Josh, e agora em apoio ao colega.
Trabalhamos num projecto que se relaciona...
Ele superara a prova do polígrafo.
... com a aprendizagem e a percepção.
Priest e Wright conheciam-se de longa data. Não seria necessário forçar muito a imaginação para os admitir como parceiros em mais de um projecto escolar. Duas mentes acutilantes e calculadoras. Wright, bem-parecido e cativante; Priest, socialmente obscuro, com uma paixoneta por Hannah Garrison. O móbil era uma criatura esquiva desde o princípio, naquele crime. Não fora pedido resgate. Ninguém parecia odiar Hannah ou Paul. O desenrolar dos acontecimentos indicava que se tratava de um jogo de mentes. No entanto, o rapto de Josh Kirkwood concedera a Christopher Priest uma oportunidade de se aproximar de Hannah, chamar a atenção para si.
«E macacos me mordam se também não servirá para vender livros!», reflectiu Brooks. A história insólita dos professores psicopatas. Mentes brilhantes afectadas fatalmente.
Mas porventura Priest tivera ensejo de se apoderar de Dustin Holloman e «plantar» aqueles indícios? Parecia improvável que se expusesse a esse risco, sabendo que a Polícia tinha as atenções cravadas nele. E havia ainda Todd Childs a considerar.
Decidiu que, já que se encontrava ali, lançaria uma olhadela ao gabinete de Wright, a fim de verificar se oferecia algum pormenor interessante. Embora a Polícia já o tivesse passado a pente fino, ele gostava de visitar os ambientes das personagens que depois descrevia nos seus livros.
A porta achava-se levemente entreaberta, o que o obrigou a estacar a uma distância prudente. A sua aventura no Pack Rat ainda permanecia bem fresca no espírito, sob a forma de uma persistente dor de cabeça que não o largava. Assim, aproximou-se com naturalidade ao longo da parede, desta vez disposto a não ser apanhado de surpresa.
Uma vez junto da porta, impeliu-a mais alguns centímetros, esperançado em ver Todd Childs.
O aposento estava inundado de papéis. Livros haviam sido retirados das estantes e deixados no chão. Dir-se-ia que o varrera um tufão irresistível e, no meio do pandemónio, encontrava-se Karen Wright. Parecia totalmente perdida, frágil, abismada devido ao estado do que a rodeava. E Jay tiraria o máximo proveito disso, como o filho da mãe que era.
Sem se conceder nem um segundo para uma atitude nobre, bateu duas vezes com os nós dos dedos na porta e entrou.
Mistress Wright?
Ela voltou-se da parede oposta e olhou-o com perplexidade.
Não... não consigo encontrar nada articulou, timidamente.
De facto, isto está numa barafunda horrível. Que procura?
Livros. O Garrett pediu-me que viesse buscar alguns e vai ficar furioso, quando vir isto. Gosta de ter tudo sempre muito arrumado.
Faz alguma ideia de quem revirou tudo?
A Polícia. Os agentes disseram que procuravam indícios.
Procuravam indícios e, de caminho, exerciam uma vingançazinha, na opinião de Jay. Garrett Wright era acusado de ter atacado e espancado brutalmente um membro da autoridadde, uma coisa que os agentes não encaravam de ânimo leve.
Gostava que tivesse visto a nossa casa, quando eles terminaram continuou Karen, começando a arrumar a secretária. É aquele escritor, salvo erro. O Garrett disse-me que tenciona escrever um livro sobre o assunto. Não devia ser julgado. É um erro enorme.
Acha? perguntou ele, cautelosamente, observando-a com atenção.
Ele nunca raptaria o Josh.
O olhar dela lembrava uma borboleta, a pousar e voar de um lado para o outro, em torno do aposento. Podia estar a mentir ou com medo. Ou totalmente privada das faculdades mentais, como Teresa McGuire, a coordenadora do acompanhamento a vítimas e testemunhas, sugerira a Brooks, quando tomava café no Scandia House.
Ele nunca faria isso insistiu, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. Nem pensar... Nunca me faria isso.
Não faria o quê? perguntou Jay, enquanto tentava manter-lhe a atenção focada nele.
Ele não gosta de crianças. Não gostava de ser criança.
Conheceu-o então? Ela esboçou um sorriso e aproximou-se de uma das estantes devassadas. Jay moveu-se igualmente, para lhe manter o rosto no campo visual. Ouvi dizer que esteve a ajudar em casa dos Kirkwood, durante a ausência do Josh acrescentou. Para prestar assistência ao bebé. Karen podia ser uma espia de Wright voluntária ou forçada, para o pôr ao corrente da influência perniciosa que exercia nas vidas de Hannah e Paul.
A Lily... murmurou ela, desta vez com um largo | sorriso de ternura. É uma bebé preciosa. Eu daria tudo para ter um tesouro assim.
Não tem filhos?
O Garrett e eu não podemos. O sorriso extinguiu-se.
Lamento disse ele, automaticamente. Foi muito atenciosa em ter ajudado os Kirkwood. Qual era a sua ideia?
Bem, não me fazia a menor diferença. A Hannah e o Paul são amigos.
Karen exprimia-se no presente, como se ainda fosse exacto, e não fizesse a menor ideia da enormidade das acusações contra o marido. Como se, dizendo que tudo não passava de um engano, todos pudessem aceitar a sua palavra e prosseguir as suas vidas com a mesma naturalidade de anteriormente.
Levantou alguns livros do chão e começou a arrumá-los numa das estantes.
O Garrett não gosta de desarrumações observou, com uma ponta de divertimento no olhar.
Pois parece que desta vez voltaram tudo de pernas para o ar comentou Jay. E está metido numa encrenca.
Oh, isso não! Ela sacudiu a cabeça com veemência. Trata-se apenas de um enorme engano.
Impedido de entrar na sala! explodiu Mitch. Que grande gaita!
Cameron estremeceu. Phoebe encolheu-se. Ellen olhou-o fixamente.
Você estava presente quando ela redigiu a declaração?
Não imediatamente explicou Mitch. O Stovich entreteve-me com paleio durante uns minutos. Quando entrei, ninguém me disse absolutamente nada. Estava tudo em ordem. Se alguém tivesse impedido o Dennis de entrar, ele tinha guinchado como um porco na matança.
Foi o que eu disse queixou-se Ellen. E o Grabko também o devia saber. O Costello tem-no enfeitiçado.
Depois do trabalho que tivemos para organizar a parada de identificação! Ele respirou fundo e expeliu o ar demoradamente. Até onde nos afecta isto?
A advogada ponderou a situação por um momento, enquanto fazia girar o lápis entre os dedos.
Para uma audiência perante um magistrado, pouco. Mas eu queria a Ruth Cooper no banco das testemunhas admitiu. As suas declarações, juntamente com a identificação da voz, teriam produzido um impacte satisfatório.
Não se pode salvar nada?
Ela pode declarar que viu um homem em Ryan’sl Bay, naquela manhã, o qual foi a sua casa e lhe falou. Depois, o Costello contra-interrogará e perguntará se o indivíduo em causa se encontra na sala e o pode indicar, e a resposta só poderá ser negativa.
Raios...
Conservaram-se silenciosos por um momento, a deplorar intimamente a perda da testemunha. Por fim, Ellen perguntou.
Há alguma coisa da medicina legal?
O resultado preliminar da autópsia não contém nada que aponte para homicídio informou Mitch. A menos que surja algo de inesperado no laboratório, o médico legista vai-se inclinar para o suicídio.
No entanto, Ellen estava intimamente convencida de que Dennis Enberg tinha sido assassinado. A voz soturna que a perseguia desde aquela noite não parava de lhe sussurrar: A primeira coisa que faremos será matar todos os homens de leis.
O nível de alcoolémia indica que estava bem bêbedo.
O suficiente para carregar a arma?
Há muitos factores que desconhecemos. Podia tê-lo feito quando ainda tinha bebido pouco e depois alcoolizar-se mais, para reunir coragem para puxar o gatilho. Ou ter perdido o conhecimento e um assassino tratado de preparar a encenação e ajudado a fazer fogo.
Há algum parecer do BCA? interpôs Cameron.
Não me chegou nada aos ouvidos directamente. O Wilhelm e o Steiger estão em campo à procura de algum indício sobre o rapto do Dustin Holloman. A mãe recebeu um telefonema, supostamente do rapaz.
Como aconteceu com o Josh murmurou Ellen, sentindo um arrepio desagradável ao longo da coluna.
Assim parece. Localizaram a chamada em Rochester e encontram-se lá agora. Não espero que regressem esta noite.
A inconveniência era demasiado premente. Ela pedira aos três principais investigadores que se reunissem para recapitular tudo mais uma vez, antes da audiência. Queria dispor da imagem mais clara possível da situação do caso, da informação mais actualizada do BCA sobre a análise dos elementos. Agora, devido à ausência de Wilhelm, teria de indagar tudo pelo telefone. Um processo altamente consumidor de tempo, e o tiquetaque do relógio persistia de forma inexorável. Quatro e meia.
Não pela primeira vez, afigurava-se-lhe que um enviado invisível do inimigo se debruçava sobre o seu ombro, para absorver todos os pormenores. Não podemos perder, dissera Wright a Megan. Não podes vencer-nos. Somos muito bons neste jogo... Brilhantes e invencíveis.
E se fossem mesmo?
O relatório sobre as impressões digitais no escritório de Enberg corresponde mais ou menos ao que se esperava continuou Mitch. Estava tudo de pantanas, com marcas em toda a parte. Só Deus sabe quando foi a última vez que se procedeu à limpeza.
Impressões na arma?
Só as do Dennis.
E quanto à hora da morte? quis saber Cameron.
O médico legista situa-a por volta da uma da madrugada, mais hora menos hora.
O meu telefonema misterioso foi às duas murmurou Ellen.
E o empregado da Donut Hut situa o Paul Kirkwood no escritório do Enberg cerca das nove e meia volveu Cameron. O que o elimina da lista de suspeitos.
A menos que regressasse mais tarde sugeriu Ellen.
Não o incluo nisto. Mitch meneou a cabeça com veemência. Qual seria o móbil? O Enberg já não representava o Wright e estava a executar um trabalho deplorável antes do despedimento. Porque é que havia o Paul de o liquidar?
E porque o procurou? insistiu Ellen.
Faria sentido se fosse cúmplice do Wright sugeriu Cameron.
Bem, o Costello compraria metade disso. Ela pousou o lápis com um gesto de desespero. Já deixou transparecer a sua intenção. Vai fazer o possível para desviar as atenções para o Paul. O Grabko despachou contra ele no caso da ficha médica, mas isso não impedirá o nosso amigo Tony de badalar as suas pretensões perante os media.
Raios partam os advogados! vociferou Mitch, antes que se pudesse conter, com um olhar de embaraço a Ellen. Excluídos os presentes.
Ela, no entanto, limitou-se a encolher levemente os ombros.
E acerca dos Sci-Fi Cowboys? Alguém confirmou o seu paradeiro na noite da morte do Dennis?
Foram todos devidamente localizados, desde que façamos fé em quem forneceu álibis. Estavam ocupados em Deer Lake, na terça-feira, para um encontro com o Priest, e regressaram a Twin Cities ao anoitecer. Só reapareceram na circulação quinta-feira à tarde.
Algum ponto frágil nas suas histórias para sábado à noite? perguntou Cameron.
Mitch sacudiu a cabeça.
Ainda não. Apostava o meu salário em como o Tyrell Mann largou fogo ao Cadillac, mas não disponho de testemunhas, nem provas. Por outras palavras, de momento não temos nem a ponta de um chavelho. Tudo muito simples, como vêem.
Ellen tirou os óculos e esfregou os olhos.
Nada é simples no que se refere a este caso.
Isso são notícias velhas, doutora volveu Mitch. Se surgir alguma coisa de novo, telefono. Se precisar de mim, estou em casa. A Jessie faz o jantar para a Megan, e tenho de ajudar.
Ellen seguiu-o até à sala de reuniões. Na antecâmara, Quentin regalava alguém com a impressionante história de ter sido abordado à saída da sala do tribunal de família.
... e no momento em que se aproximou um segurança, o fulano disse: «Afinal, não é quem eu julgava!»
Como está a Megan? perguntou a advogada a Mitch.
Vai reunindo coragem para depor. Não gosta de interpretar um papel secundário. É polícia até às unhas dos pés. Confiei-lhe alguns elementos sobre o passado do Wright para não estar sem fazer nada.
Mitch...
Tem de ser, pois lutamos com falta de pessoal. E não se pode desperdiçar um espírito acutilante como o dela. De qualquer modo, precisa de se convencer de que continua activa.
Muito bem transigiu a advogada, consciente de que necessitavam de toda a colaboração possível.
Regressou à sala onde os outros se encontravam, e Phoebe disse:
Acho que foi galante e original da parte do Adam a maneira como a ajudou.
Adam ecoou Cameron, horrorizado.
Ellen fitou a secretária, ao mesmo tempo que enrugava a fronte.
Não houve nada de nobre naquilo. Apenas um acordo de negócios, chamemos-lhe assim. E ele divertiu-se muito. Estava a ser incomodativo e foi recompensado por isso. Já o trata pelo nome de baptismo?
Bem, apenas para facilitar. Phoebe procurou qualquer ponto na sala para pousar o olhar, excepto o rosto da advogada. Era todo o caso, é o nome dele. Como quer que lhe chame?
Uma recordação distante sugeriu Ellen, em tom incisivo. Já conversámos a esse respeito. No fundo e acima de tudo, trata-se de um repórter. O facto de ser simpático não lhe elimina esses atributos.
Não o conhece.
Nem você.
Nunca conheceria ninguém, se fosse tão paranóica como a doutora. O facto de nunca confiar em ninguém não significa que ninguém o deva fazer.
É um princípio muito nobre, mas trabalhamos num caso em que todas as cautelas são poucas.
A secretária levantou-se bruscamente e pegou no bloco-notas e num maço de documentos.
Se terminou de me pregar o sermão, tenho de fazer uns telefonemas ao BCA.
Ellen extraiu uma lista dactilografada de nomes e números de um processo e estendeu-lha.
Depois, contacte com estes agentes encarregados de acompanhar casos de liberdade condicional e pergunte se têm alguma coisa para mim.
É tão insensível! acusou Phobe, encaminhando-se para a porta.
A advogada pousou a cabeça entre as mãos e emitiu um grunhido.
Porque será que Deus não fez todas as secretárias já em situação de pós-menopausa?
Porque os chefes nunca poderiam fazer um pouco de exercício correndo atrás delas sugeriu Cameron.
Ela soltou uma risada seca e empertigou-se.
Tenho um mau pressentimento. Na véspera da audiência, o nosso rapaz lembra-se de uma ocorrência como telefonar à mãe do Dustin Holloman. Que terá preparado para o acontecimento de fundo?
Não sei admitiu ele, a meia-voz.
Ellen olhou pela janela para o céu ominosamente cinzento.
Pois eu não quero saber.
Os hábitos antigos reaparecem, como fantasmas, indesejados, trazendo consigo uma desconfortável sensação de déjà vu. Nos seus dias na via rápida de actividades, na véspera do início de um julgamento importante, assolava-a uma espécie de ritual, quase dominado pela superstição. Estava demasiado enervada para se descontrair, com receio de que houvesse alguma coisa que tivesse esquecido na sua preparação, e passava o serão no escritório, debruçada sobre documentos, pois parecia-lhe sempre que não os estudara suficientemente.
No entanto, desde que se transferira para Deer Lake, não houvera uma única noite como aquela. A audiência respeitante a Garrett Wright seria totalmente diferente. Em virtude da natureza das acusações. Devido a Costello. Por causa da qualidade do arguido. Tratar-se-ia de um minijulgamento com todo o drama inerente.
Assim, ela acompanhou Cameron à porta, para se certificar de que saía, mas recusou seguir-lhe o exemplo. Necessitava e detestava simultaneamente regressar aos velhos ritmos. Reconhecia e odiava a inquietação que a assolava como uma descarga eléctrica constante.
Regressou à sala de reuniões e começou a percorrê-la em vaivém diante da papelada dispersa em cima da mesa. À primeira vista, o material de que dispunham devia bastar. Só as declarações de Megan e Mitch decerto chegariam para levar Wright a julgamento. Além disso, havia o testemunho do criminologista do BCA sobre os achados preliminares na máscara de esqui que continha cabelo de Wright e o lençol em que este envolvera Megan e em que também havia cabelos dele e manchas de sangue correspondentes ao tipo do de Josh Kirkwood. Só isto decerto bastaria para organizar um processo em forma, apesar de as dúvidas persistirem e contribuírem para lhe corroer a confiança.
Como Mitch predissera, Wilhelm ainda não regressara de Rochester. A origem do telefonema à mãe de Dustin Holloman fora localizada num aparelho público num supermercado, onde devia haver numerosas testemunhas. Os agentes do BCA e polícias locais tinham gasto horas a esquadrinhar a área, sem o menor resultado positivo.
Só se fosse um verdadeiro louco o raptor se faria acompanhar do garoto em semelhante lugar público. Com efeito, todos os jornais e estações de televisão do distrito mostravam a fotografia de Dustin Holloman a torto e a direito desde o seu desaparecimento. O mais provável era que o autor da proeza tivesse gravado a mensagem do raptado, para reproduzir o texto pelo telefone.
Mesmo assim, era arriscado, como Ellen reconhecia, enquanto continuava a circundar a mesa. O indivíduo parecia cada vez mais arrojado. Sentia-se praticamente invencível. No entanto, bastaria que um simples descuido permitisse que uma testemunha inesperada detectasse um pormenor, ainda que ínfimo, para fazer com que toda a operação ruísse e as autoridades chegassem à descoberta inabalável.
Animada pela esperança, ela chegou mesmo a admitir a possibilidade de Wilhelm reaparecer com o indício irrefutável: uma descrição, o desenho de um artista, uma gravação em vídeo de uma câmara de segurança. Quem veriam? Todd Childs, ou alguém que se lhes deparava pela primeira vez?
A pergunta de Adam Slater acerca dos Sci-Fi Cowboys reapareceu-lhe na memória, quando se deteve diante da secção da mesa onde se encontrava o processo referente àquele grupo. Nenhum dos rapazes fora considerado suspeito do rapto, mas ela tinha agora conhecimento em primeira mão do ponto até ao qual se aventurariam para apoiar o seu mentor. Se praticassem algum vandalismo, fogo posto mais concretamente, até onde poderiam aventurar-se? Seria exagerado incluir o rapto entre as suas proezas?
Em teoria, talvez não. Logisticamente, não era realista. Os Cowboys eram menores, viviam com os pais ou familiares. Frequentavam a escola, tinham de se apresentar periodicamente às autoridades. Abandonar um dormitório durante a noite para participar no cenário complicado a que aqueles raptos haviam obedecido exigiria liberdade total de movimentos. Tão-pouco parecia provável, e ainda menos prudente, que Garrett Wright depositasse a sua confiança e futuro nas mãos de uma fauna tão jovem.
Childs era uma hipótese mais viável. Childs, o aluno de psicologia fascinado pela mente humana.
A aprendizagem e a percepção constituíram a especialidade de Wright.
Que tinham feito à mente de Josh? Que lhe haviam inculcado para assumir uma atitude hermética tão profunda?
Enquanto ponderava o assunto, Ellen consultava lentamente o material reunido acerca dos Cowboys. A lista dos membros do passado, as fotocópias de antigos artigos de 382 jornais. Um cabeçalho proeminente anunciava a admissão de um dos primeiros na Universidade da Escola Médica do Minnesota. Outro obtivera uma bolsa de estudo. Um amontoar de êxitos atrás de outros.
O olhar dela pousou num artigo que analisara algum tempo atrás. A foto mostrava Christopher Priest e um dos rapazes em primeiro plano, o que obtivera a bolsa de estudo, e viera a trabalhar com um robô. Garrett Wright, com dois jovens chamados James Johnston e Erik Evans, figurava um pouco atrás. A notícia datava de 17 de Maio de 1990, segundo ano da existência dos Cowboys. A fraca clareza do instantâneo conferia a Wright uma expressão sinistra. Ou talvez não se tivessem apercebido de que a objectiva o abarcaria e revelara a sua natureza verdadeira, a que se ocultava sob a máscara bem-parecida.
A ideia transmitiu uma sensação de desconforto ao longo da coluna vertebral de Ellen. A opinião pública tornava-se cada vez mais favorável ao professor. Com cada nova proeza do raptor de Dustin Holloman, o público mostrava-se crescentemente menos paciente com a perseguição a Garrett Wright, o seu herói local, um dos seus professores mais respeitados.
Começo a ser das poucas pessoas da fita que sabe que o insinuante conde não passa de um vampiro articulou ela entre dentes.
Enquanto puxava o telefone para si com uma das mãos, pegou na lista de agentes do serviço de liberdade condicional com a outra.
Estabeleceu contacto com dois que haviam abandonado o serviço no ano transacto e riscou os nomes de dois antigos Cowboys da relação de possíveis personagens inclinadas para o homicídio. Montei Jones convertera-se em estudante de Engenharia na Universidade do Minnesota e morrera num desastre de avião em 1993. James Johnston enveredara pelo curso de Direito e agora exercia advocacia de um modo notavelmente satisfatório. O seu antigo agente vigilante de liberdade condicional assegurou a Ellen que isso se devera ao programa de Garrett Wright.
Por fim, ela pousou o auscultador com um suspiro de desalento. No fundo, porém, que outra coisa esperava? Que um antigo protegido de Wright surgisse bruscamente em cena para contar uma história de maus tratos, abuso sexual ou algo do género, passado tanto tempo? Aliás, o contacto com elementos dos Cowboys de outras eras nunca fora além de um exercício para recolher pequenos fragmentos de palha.
De súbito, viu as cogitações interrompidas por uma pancada na porta exterior. Podia tratar-se de Wilhelm, portador de novidades, ou o agente Qualey, o seu guarda para aquela noite, ou ainda Cameron, que resolvera fazer serão.
Deparou-se-lhe Brooks, com um cesto de piquenique.
Porque será que não estou surpreendida? grunhiu Ellen. Era inconcebível que te mantivesses à distância, só porque te pedi.
Posso depreender que se trata de uma pergunta supérflua? redarguiu ele, o olhar brilhante de malícia.
Como conseguiste entrar no prédio? quis saber ela, algo irritada. O guarda não te impediu?
Subornei-o com um pau de chocolate e um exemplar autografado de Justiça para Ninguém. Ainda bem que não sou um assassino psicopata, hein? Ele entrou e depositou o cesto no balcão da recepção. Expliquei-lhe que éramos antigos colegas na faculdade e queria certificar-me de que jantavas, por saber que costumas perder o apetite na véspera de um processo importante.
Mas ele devia telefonar para o confirmar.
Disse-lhe que pretendia surpreender-te, ao mesmo tempo que lhe piscava o olho e dava uma cotovelada de inteligência. É um bom rapaz, o Ed. Talvez um pouco bom de mais. Assumiu um ar grave. Não inspeccionou o cesto, nem me revistou. Depreendeu que, se me conhecia... que não era o caso... eu devia merecer inteira confiança.
Eu também não te conheço. Devo temer pela vida? Olhou-a em silêncio por um momento, fingiu que reflectia maduramente e acabou por inclinar a cabeça.
Acho que me conheces muito bem. Não nego que às vezes sou um filho da mãe, mas os meus pontos positivos anulam tudo o resto. Só isso não basta para que desejes casar comigo?
Foi para o que vieste?
Não admitiu, baixando a voz. Queria ter a certeza de que jantavas, como já referi. Porque costumas perder o apetite na véspera de um processo importante, como também tive o ensejo de dizer.
Admira-me que decidisses estar com o incómodo.
Porquê? Mostrou-se repentinamente interessado numa madeixa dela e transferiu-a para detrás da orelha, após o que a contemplou, para avaliar o efeito. Receias que não tivesse obtido o que desejava, ontem à noite? Não desisto com essa facilidade.
Não sei se devo encarar isso como uma boa ou má notícia.
Então, talvez deva adoçar a pílula. Faço-me acompanhar de aperitivos, frango assado e informação.
Informação?
Isso é a sobremesa. Escusas de contar com ela, se primeiro não tragares o jantar.
O estômago encarregou-se de tomar a decisão por Ellen. A sanduíche de salada de atum e ovo cozido que adquirira na máquina da cafetaria terminara a sua breve existência no cesto de papéis.
Com um suspiro de resignação, precedeu Jay em direcção ao seu gabinete e sentou-se atrás da secretária, sobre a qual dispuseram o conteúdo da cesta.
Tens a certeza de que não tencionas matar-me? perguntou, ao ver a abundância da ementa. Parece que vens animado da única ideia de me fazer explodir o colesterol.
Sou do Alabama, como sabes, onde quando uma pessoa se senta à mesa é mesmo para comer. Acalentamos uma profunda convicção pelos poderes das matérias gordas. Vamos a isto.
Que informação é essa? perguntou ela, servindo-se de uma coxa de frango.
Ouvi falar do telefonema à mãe do Dustin Holloman começou ele, aproximando-se da estante para ler os títulos dos numerosos discos. Foi esta tarde, por volta das quatro e um quarto.
Sim. Os rapazes do BCA localizaram-na em Rochester. Confesso que estou admirada por não teres aparecido lá entre os primeiros.
É uma caçada diferente.
Pois, outro capítulo: «O Desespero Patético da Busca Fútil.»
Ignorou o remoque.
Encontrava-me na Universidade Harris a trocar dois dedos de conversa com o professor Priest, cerca das duas e meia. Acabou por correr comigo, alegando que precisava de preparar uma aula.
Não esqueças de que se dedica ao ensino.
Acabou por escolher um disco de Philip Aaberg e introduziu-o no aparelho. Acordes de piano estilo new age, com uma subtil melodia de western, brotaram dos pequenos altifalantes.
Segundo a recepcionista, ele não tinha aulas até às sete da tarde. Pode dar-se a casualidade de não apreciar o meu encanto meridional, mas isso não esclarece por que razão transpunha o portão do campus, quando eu saía do Edifício Cray às três menos dez.
Como se explica que saísses depois dele, se te expulsou do seu gabinete?
Efectuei um pequeno desvio pelo do Garrett Wright, quando a encantadora, embora tresloucada, esposa dele tentava encontrar uns livros que o marido lhe tinha pedido que fosse buscar.
Que livros? quis saber Ellen, empertigando-se.
Não me disse, mas duvido que restasse algo de incriminativo, pois a Polícia vasculhou e deixou tudo desarrumado.
Que disse ela?
Que o marido não devia ser julgado e tudo não passava de um enorme equívoco. Garantiu que ele nunca raptaria uma criança, porque não lhe agradavam, nem gostara de o ter sido. Perguntei-lhe se o conhecera então, mas fechou-se em copas.
Com o apetite subitamente esquecido, reclinou-se na cadeira.
Segundo o que sabemos, a Karen e o Wright conheceram-se na universidade.
E disse-lhe então que tivera uma infância desgraçada. Se a memória não me atraiçoa, a confissão faz parte do namoro.
Que mais lhe teria confessado?
Nunca se sabe, doutora. A esposa não pode ser obrigada a depor contra o marido.
Não, de facto. Figura na lista do Costello para o fazer em favor do Wright. Não se pode considerar uma testemunha credível, claro, mas isso não impedirá o nosso amigo Tony de tentar extrair-lhe alguns elementos, ainda que sejam apenas para estabelecer a confusão. Ellen fez uma pausa, com uma expressão pensativa. Com que então, ias a sair do Edifício Cray quando viste o Priest afastar-se no carro! Pode ter ido a qualquer sítio. Buscar o fato à tinturaria, por exemplo. Ou para casa.
Mas não foi.
Seguiste-o?
Com certeza. Cortou para sul.
Em direcção a Rochester, a uma hora de distância. Sentiu as pulsações acelerarem-se. Se Priest fosse o cúmplice de Wright, cometeria a imprudência de interromper uma entrevista concedida a um proeminente escritor para seguir para o local da jogada seguinte da sua doentia partida? Sentir-se-ia invulnerável a esse ponto?
Há outro pormenor curioso na minha pequena visita continuou Jay. Falei com um professor da Pensilvânia que conheceu o Priest e o Wright, segundo o qual foram os três miúdos em Mishawaka, com idades diferentes e em partes da cidade distintas. Embora não convivessem naquela altura, achou curioso que acabassem todos por ir parar à Pensilvânia. Quando referi o facto ao Priest, alegou que se criou em Chicago.
Porque haveria de mentir? É fácil verificá-lo através dos registos em centros de ensino.
Não sei. Quando me inteirei do telefonema a Mister Holloman, contactei com o agente Wilhelm e informei-o do que obtive. Calculei que também gostarias de saber, e já não contava que ele te falasse ainda hoje.
E que esperas lucrar com isso? inquiriu ela, com uma expressão de desconfiança.
Absolutamente nada...
Estás a tornar-te um bom da fita, Brooks concedeu, recomeçando a comer. Se não te acautelas, ainda destróis a tua reputação.
Ao mesmo tempo, reflectia que ele se transferira para Deer Lake a fim de se perder no charco do infortúnio de outrem. No entanto, o charco dos pais de Dustin e dos de Josh constituía um parente demasiado próximo. Jay tinha um filho. Na realidade, perdera-o ainda antes de conhecer a sua existência. Encontrara-o e fora-lhe arrebatado de novo no espaço de um dia.
Após um momento de reflexão, Ellen pegou no telefone e marcou o número do domicílio de Mitch. Foi a máquina que atendeu; todavia, a voz dele surgiu na linha no momento em que ela começava a transmitir a mensagem. Repetiu tudo o que Brooks dissera e acrescentou duas ou três conjecturas de sua própria autoria, para serem transmitidas a Megan. O caso parecia girar cada vez mais apertadamente em redor de Wright e do seu círculo de conhecidos, numa espécie de espiral em direcção ao passado. Christopher Priest partira, rumo ao Sul, às três da tarde. O telefonema ocorrera pouco depois das quatro. Se Megan conseguisse descobrir um único elemento consistente...
Julgava que a Megan O’Malley tinha sido afastada do caso observou Jay, quando ela cortou a ligação.
Olhou-o em silêncio por uns instantes, com expressão de jogadora de póquer, até que declarou:
Querias que eu confiasse em ti. Pois vou fazê-lo com o seguinte: a agente O’Malley perscruta o passado do Wright, porque o Wilhelm não estava a dar conta do recado.
Mas não será um pouco parcial?
Quanto a mim, é uma agente excelente e nada do que fizer alterará o passado do Garrett Wright. Todos os elementos que apresentar serão bem estabelecidos e corroborados.
No entanto, se o Costello descobre...
Providenciarei para que tal não aconteça.
Jay levantou-se, contornou a secretária e ajoelhou-se junto de Ellen.
Os meus lábios estão cerrados anunciou solenemente e pousou-os nas pontas dos dedos dela.
Jay...
Fê-los deslizar ao longo da palma e deteve-os na parte interior do pulso. Não confias em mim? murmurou, enquanto a retirava da cadeira. Ela sentiu-se percorrida por um misto de desejo e apreensão. Há muita coisa em jogo...
Eu sei. Nunca fui herói de ninguém e, aqui para nós sinceramente, repito a mim mesmo que não tenho nada que te tocar, porque és muito melhor do que eu jamais serei. Mas, apesar disso, desejo-te.
E consegues sempre o que desejas.
Sempre me convenci disso murmurou. Agora, contemplo-te e reconheço que nunca procurei nem me interessou uma recompensa como tu. Olho para a Hannah Garrison e vejo-a lutar pelo filho. Olho para ti e lutas pela justiça. Por que tenho lutado além do meu próprio lucro? Que bem fiz por alguém? Com um sorriso forçado, concluiu: Talvez consigas redimir-me.
Não quero essa responsabilidade replicou ela, no mesmo tom. É a tua opção. Tem de ser aquilo que queres.
O que eu quero... ecoou Jay, puxando-a para si. És tu que eu quero.
Beijou-a lenta, profundamente, e Ellen julgou detectar a ansiedade e confusão que o envolvia.
Por fim, quase de repente, sacudiu a cabeça e desprendeu-se.
Tenho de preparar o caso para amanhã articulou em voz estrangulada.
Já fizeste o melhor que podes asseverou ele, numa tentativa para a recuperar.
É precisamente esse o meu receio persistiu ela, afastando-se com firmeza e tratando de abotoar a blusa e ajeitar o cabelo.
Enquanto a observava, Jay evocava o nervosismo que costumava surgir antes do início de um julgamento. A ansiedade era uma das muitas coisas que atormentam um advogado em plena sessão judicial de que nunca tinha saudades. A sua actual actividade não se achava minimamente associada ao pânico, pois os casos iam-lhe parar às mãos em segunda vida, por assim dizer. Resultava mais seguro. Magoava menos. Talvez o cobarde sejas tu, Brooks.
Ellen não desejara aquele processo, mas aceitara o desafio não pela glória pessoal ou lucro, mas em virtude de ser considerada a melhor esperança do distrito para obter justiça.
É bom de mais para ti, Brooks.
Jay cruzou a sala em direcção ao lugar onde ela se encontrava, com o olhar fixo através do estore parcialmente levantado. Rodeou-a com os braços pelas costas, depositou um beijo no cabelo e murmurou:
Hás-de ganhar.
Como se a sua própria convicção bastasse para o conseguir.
Quem me dera ter tanto a certeza.
Mas a única coisa que ela sabia sem margem para qualquer dúvida era que, naquele jogo, em que a parada era muito elevada, a certeza era um ingrediente que não existia. E assolava-a a desagradável sensação de que a equipa contrária utilizava um baralho de cartas viciadas.
Às onze e dez, ela subia a escada em direcção ao segundo andar da biblioteca. Desfrutaria do duvidoso serviço do agente Qualey durante mais quarenta minutos. Tempo suficiente para pegar nos livros de que necessitava, embora de pouco lhe servissem. Se Grabko já tomara uma decisão sobre a parada de identificação, teria encontrado um precedente em que se apoiar. Ellen incumbira Cameron de procurar argumentos legais que reforçassem a sua posição. Levara uma respeitável pilha de livros para casa. Mas ela desejava uma familiaridade sólida com os casos citados nas decisões gerais relativas à violação do direito a recorrer a um defensor, pelo que se encontrava agora nos corredores obscuros do segundo piso.
Pensara em se fazer acompanhar do agente Qualey, mas compadecera-se dele e do seu joelho maltratado no hóquei. Depois de Brooks se retirar, ela trocara algumas palavras com Ed sobre segurança e ele garantira-lhe que não entraria mais ninguém. O terceiro andar encontrava-se deserto e as salas de audiências e o material de construção à espera que os voltassem a utilizar no dia seguinte.
Garantias lógicas confrontavam sensações pouco tranquilizadoras. Admoestando-se mentalmente por se deixar invadir por receios pueris, entrou na biblioteca e acendeu a luz.
Era uma sala prevista para a máxima eficiência, e começou a percorrer as prateleiras com determinação, pegando nos volumes que pretendia e levando-os para uma mesa. Memorizara os nomes dos casos, estaduais e federais: Estados Unidos contra Wade, Gilbert contra Califórnia, Estado contra Cobb e Estado contra Guevara.
Os dois primeiros tinham quase trinta anos de existência. Estado contra Cobb datava de 1979, embora isso carecesse de importância se o promulgado se aplicasse. Estado contra Guevara era o mais recente, 1993, e o mais pertinente, se a memória não a atraiçoava. Também tinha sido um caso de rapto de uma criança, no estado de Dakota, na parte sueste da área metropolitana. Uma testemunha reconhecera Guevara numa parada de identificação, porém o respectivo advogado conseguira tornar essa operação inválida. Ellen sentiu-se percorrida por nervosismo crescente ao recordar que o tribunal se pronunciara pela absolvição.
Esquadrinhava um caso inteiramente diferente, conforme a faceta lógica do cérebro lhe lembrava. Guevara fora acusado não só de rapto, mas igualmente de homicídio, por um júri. O facto de a criança raptada nunca haver sido encontrada impressionara mais pesadamente os jurados do que qualquer outro aspecto do caso.
Mas aquela parada de identificação podia ter obrigado a balança a inclinar-se para o outro lado...
Continuou a folhear o processo. Página após página de preceitos e decisões legais, mas deteve-se quando alcançou Estado contra Guevara.
Alguém a precedera e marcara a página com uma tira de papel branco. Voltou o livro de lado e, com as palpitações do coração a acelerarem-se, leu a mensagem na nota: é PECADO acreditar no mal dos outros, mas raramente um engano
O despertador em cima da mesa-de-cabeceira de Josh indicava um minuto depois da meia-noite. Hannah sentava-se de pernas cruzadas no saco-cama que estendera no chão do outro lado da cama do filho. A antecipação comprimia-se como uma corda de relógio no seu íntimo, cada vez mais tensa a cada minuto que passava, conduzindo ao que ela própria não sabia definir.
Uma batalha, pensava. Uma batalha por Josh. Não apenas por justiça, mas por ele próprio, que lhe fora arrancado. Até agora, ela desempenhara o papel de vítima, mas terminara. Quanto mais ponderava o assunto, maior a clareza com que se lhe deparava o desafio de algo de maligno, o papel que necessitava de desempenhar. A luta no tribunal principiaria dentro de horas, porém a batalha prosseguiria fora da sala, fora do alcance de Ellen North ou Anthony Costello. Ela compreendia bem tudo aquilo.
Cerrou as pálpebras e invocou o mal, uma entidade sem rosto. Na sua mente, podia ver-se de pé numa planície escura, com o céu baixo e carregado. Via Josh a um lado, fora do seu alcance, o rosto totalmente despido de emoção e qualquer possibilidade de ver. E ela podia saborear o mal, frio e pesado.
Não terá o meu filho. Você morrerá às minhas mãos, se for necessário.
Já o tenho. Já me pertence.
Eu mato-o.
Hannah levantou a mão e surgiu uma face entre os dedos. Descreveu um arco para baixo através da atmosfera opressiva, cortando a escuridão como lona que se abria, e expôs uma muralha de sangue. Este brotou em cima dela e derrubou-a, inundando-lhe os pés, a boca e o nariz, sufocando-a, afogando-a. Debateu-se para acordar, porém a torrente arrastava-a como uma inundação avassaladora, e depois não houve nada.
Josh sonhava com um ar de sangue. Flutuava nele, como num colchão de ar no lago. Seguro, mas não seguro. Seguro porque o Captor o dizia, o que o assustava porque já não queria confiar nele. Sentia a mãe puxá-lo, as suas mãos a irromper do mar para o agarrar. Queria ir com ela, mas receava que, se o fizesse, o Captor afogasse ambos. Mas se se mantivesse onde estava, o captor estaria sempre com ele, e cada vez o assustava mais. Podia ver o outro extinto no seu sonho, conservado acima dele pelas mãos do Captor, que cada vez o apertavam mais. O rapaz abria a boca para gritar, mas não surgia qualquer som, olhos cada vez mais arregalados de terror que ele sentia dentro de si. A sensação não lhe agradava. Dava-lhe vontade de chorar. De querer estar doente. De se voltar para a mãe, mas ela encontrava-se sob o mar de sangue.
Dominado pelo pânico, voltou-se para dentro de si, servindo-se do ardil do Captor para o iludir. Abriu a porta no interior da sua mente, entrou na câmara mais pequena e secreta e jurou não tornar a sair.
é PECADO acreditar no mal dos outros, mas raramente um engano
Ellen viu o bilhete em cima da mesa à sua frente, ouviu a mensagem um murmúrio sinistro que parecia envolvêla.
Podia sentir a presença dele, as mãos em torno da garganta.
Mal.
As mãos exerciam pressão. Ela saltou da cadeira para cima da mesa, enviando livros para o sangue que cobria o chão. Ela própria pousou nele com as mãos e os joelhos e escorregava e deslizava, enquanto tentava levantar-se. Não conseguia respirar, sentia a traqueia ceder sobre si própria. Debatendo-se, pôs-se de pé com dificuldade e deu meia volta. Garrett Wright sentava-se na cadeira que ela deixara vaga. As mãos em torno da sua garganta eram invisíveis.
A primeira coisa que faremos será matar todos os homens de leis.
A frase vibrava nos seus ouvidos, cada vez mais alto, até que as palavras se tornaram imperceptíveis.
Arquejando para respirar, soergueu-se na cama e fixou o olhar no telefone em cima da mesa-de-cabeceira. O medo avolumou-se-lhe na garganta, até que julgou que asfixiaria. Não obstante, esforçou-se por estender o braço e levantou o auscultador.
Ellen North articulou automaticamente, com a garganta tão seca como algodão.
O silêncio prolongou-se por um batimento do coração e surgiu uma voz rouca e pouco firme:
É o Steiger. Encontrámos o miúdo Holloman. Está morto.
ENTRADA NO DIÁRIO 1 de Fevereiro de 1994
A nossa lengalenga de pecados é uma velha canção clássica
Começámos jovens e durámos muito Impregnados de sangue novo, o nosso jogo continuará
Como afectará isto as acusações contra o Garrett Wright, Miss North?
Está disposta a admitir que acusa o homem errado, Miss North?
Mantém a sua teoria de um cúmplice, Miss North?
É verdade que a sua testemunha de parada de identificação desmentiu a afirmação anterior, Miss North?
Miss North!
Miss North!
Miss North!
As vozes frenéticas ecoavam no cérebro de Ellen, cada vez mais alto, como a do seu pesadelo, até que só ouviu ruído.
Parem! bradou, erguendo o rosto para o chuveiro quente, numa tentativa para lavar as imagens, intensas e penosas, na sua memória. O corpo de uma criança, as marcas arroxeadas de estrangulamento convertidas num círculo de escoriações em torno da pequena garganta. O corpo de uma criança com uma tira de papel fixada ao pijama listrado que vestia. Uma mensagem que cortava o coração: Uns erguem-se pelo PECADO e outros por virtude caem. O corpo de uma criança deitado fora como um pneu furado na berma da estrada, abandonado na base do sinal que dava as boas-vindas aos visitantes de Campion, «Um lugar amigável para viver.»
O humor negro, a intenção psicológica retorcida de deixar o corpo quando e onde havia sido encontrado, enojava Ellen quase tanto como o homicídio em si. A mensagem consistia em arrogância, desrespeito pelas entidades envolvidas uma falta de respeito hedionda pela vida, pela decência, pelos valores de um burgo pequeno.
O pacote total de crimes que constituía «o jogo» figurava entre os piores que ela jamais enfrentara. Com a descoberta do corpo de Dustin Holloman, a situação, já difícil até então, atingira um nível crítico.
Ela ainda conseguia ouvir os soluços da família Holloman, as vozes trémulas dos polícias. O próprio médico legista, o irascível Stuart Oglethorpe, chorara, quando o corpo sem vida de Dustin fora encerrado no saco de plástico e colocado no transporte funerário.
Ellen também tivera de desenvolver esforços invulgares para dominar a revolta e amargura que a assolavam. Representava a justiça. Se uma entidade necessitava de manifestar resistência, estoicismo, perante o mal, era a justiça. O povo recorria a ela, ao sistema, para reparar o mal, castigar o mal. Tinha, pois, de revelar uma posição forte.
Acudira-lhe uma espécie de aturdimento que, por assim dizer, a isolava. Eram as miraculosas propriedades autoprotectoras da psique humana em acção. Ela procedera a todas as diligências correntes, trocara impressões com Steiger e Wilhelm, enquanto os técnicos do BCA esquadrinhavam minuciosamente o local. Rostos individuais entre a multidão circundante surgiam fugazmente no campo visual periférico. Henry Foster, do Star Tribune. Um correspondente do Dateline. Jay.
Este viera por causa da história. A faceta cínica dela recordava-lhe esse facto, mas não podia descontar a expressão sombria do rosto dele ou o som da voz, quando alguns repórteres o abordaram em busca de opiniões, quando não conseguiam obter respostas de qualquer outra fonte.
É uma tragédia admitiu, em voz baixa e áspera. Não há nada que eu possa dizer para tornar o acto menos horrível.
As suas palavras conservaram-se na mente de Ellen, enquanto se preparava para o dia. A morte de Dustin Holloman era na verdade uma tragédia que não devia ter acontecido nunca, nem em parte alguma, mas ainda menos ali. Tratava-se de um crime contra a comunidade de Park County, o assassínio de uma inocência colectiva.
A ignorância não é inocência mas pecado.
Garrett Wright e a sua sombra podiam ter encarado a inocência daquele lugar como ignorância, mas o pecado era deles, e teriam de o expiar. Sim, pagariam o mal produzido.
A promessa solene ardia na mente de Ellen, no seu coração. Ela providenciaria nesse sentido. Não pedira que aquela batalha se desencadeasse, não desejara que chegasse ali, mas travá-la-ia com todas as armas ao seu dispor.
Sem se preocupar que os repórteres a seguissem, cruzou a cidade em direcção ao novo complexo de escritórios na Ramsey Drive, onde Costello alugara uma suite para a sua permanência até ao final do processo. A extravagância enojava-a. Era naquilo que o advogado se traduzia: dinheiro, poder, um batalhão de escravos para executar o trabalho, uma imagem polida como o mais raro dos diamantes.
Passou diante da recepcionista, dirigindo-se a Costello, que se encontrava no átrio a transmitir ordens a um dos associados. Os olhos de Dorman arregalaram-se quando a viu, porém a expressão dele era mais cautelosa.
Já sabes a última? inquiriu Helen.
Sobre o Dustin Holloman?
Está morto.
Vamos para o meu gabinete sugeriu Costello, pousando-lhe a mão no cotovelo.
No entanto, ela sacudiu-a com um gesto brusco.
É melhor ficarmos aqui. Prefiro que o teu pessoal saiba exactamente para que espécie de filho da mãe trabalha... se porventura ainda não se inteirou.
Isso não vem nada a propósito...
Achas? Podias ter salvo esta criança. Quanto mais não fosse, efectuavas um telefonema anónimo. No entanto, se o cúmplice do Wright for capturado, ele não tardará a seguir-lhe as pisadas, e macacos o mordam se tu não perdes o processo por causa de uma trivialidade como a vida de um miúdo.
Ao mesmo tempo, Ellen viu a recepcionista arregalar os olhos e assumir uma posição hesitante. Outra associada, uma afro-americana, que acabava de emergir de um gabinete, mostrou-se chocada. Entretanto, o rosto de Costello era uma máscara granítica.
Não tenhas a menor dúvida prosseguiu ela, numa inflexão pouco tranquilizadora. Hoje mesmo vou entregar uma queixa à comissão das relações profissionais. Se se me deparar um fragmento de indício que te relacione com o assassino do rapaz, dou cabo de ti. Acho-te tão culpado desta morte como se o tivesses estrangulado pessoalmente!
E encaminhou-se firmemente para a saída, quase esperançada em que a seguisse, mas tal não aconteceu. Apanhara-o desprevenido, derrubara-o do trono, e agora imaginava o que pensava. Não havia tempo para enfrentar a imprensa que aguardava à entrada. Era preferível não dizer nada, deixar os repórteres especular. Costello que lhes falasse, se quisesse.
Quando chegou ao edifício do tribunal, todo o bando de abutres já se encontrava a postos para extrair o maior suco possível da situação. O cenário em Campion tinha sido processado e abandonado, espremido de pormenores e metáforas e fotografado de todos os ângulos possíveis. Agora, empoleiravam-se nos principais degraus do edifício e vigiavam todas as entradas. Quando viram Ellen, as perguntas não deixaram de chover.
De que modo a descoberta do corpo do Dustin Holloman vai afectar as acusações contra o Garrett Wright, Miss North?
Está disposta a reconhecer que persegue o homem errado, Miss North?
Que foi fazer ao escritório de Anthony Costello? Vão estabelecer algum acordo?
Tenciona retirar todas as acusações?
Continua apegada à teoria de um cúmplice, Miss North?
Vai tentar atribuir o novo crime aos Sci-Fi Cowboys?
O gabinete da promotoria de Park County não tem nada para dizer sobre o assunto?
Tem acabou ela por responder, por cima do ombro, sem reduzir o andamento. Disponho de uma audiência para preparar e de um suspeito culpado até à medula. Se permitem que esta última atrocidade os demova de acreditar isso, tornam-se tão responsáveis como a pessoa que assassinou a criança.
Se acalentava a esperança de os reduzir ao silêncio com aquelas palavras, ficou desapontada. Ao invés, os clamores intensificaram-se, com todos a quererem falar simultaneamente. Como nos bons tempos, reflectiu passando diante do agente que guardava a entrada do escritório. Ou ainda pior.
O local de trabalho encontrava-se imerso em caos. Telefones retiniam sem cessar e parecia que ninguém atendia. Uma das recepcionistas de Campion sentava-se atrás da secretária, lavada em lágrimas. Phoebe ajoelhava-se junto da cadeira dela e oferecia-lhe lenços Kleenex e simpatia, com os olhos igualmente avermelhados devido a causas similares. Rudy encontrava-se no meio da agitação, como o comandante de um navio a afundar-se.
Isto é um pesadelo absoluto proclamou a meia voz, com um olhar incendiário cravado em Ellen, como se a ideia de largar o corpo assassinado de Dustin Holloman em plena via pública fosse sua. O Bill Glendenning telefonou-me para casa, a fim de exigir uma explicação. Diz ele que, tanto quanto pode avaliar do seu escritório, você perdeu o dominio da situação.
Você e não nós, reflectia ela, enquanto se dirigia para o seu gabinete, com o outro no seu encalço, empenhado em lhe atribuir a responsabilidade de tudo e ilibar-se.
Eu é que perdi o domínio? Nunca o tive! Entregaram-me um caso para construir e construí-o! Não sou omnipotente. Se dispusesse do domínio, como afirma, nada disto teria acontecido!
Bom, compreende ao que me refiro.
Sem dúvida. Desta vez meteu-se numa encrenca, não é, Rudy? Atirou-me com este caso para o regaço, porque lhe faltou a coragem para se ocupar dele. E agora? Deus o livre de analisar os elementos de que dispomos contra o Garrett Wright e apoiar-me!
Engana-se. Tenho-a apoiado desde o princípio insurgiu-se ele. Dei-lhe toda a minha confiança. Concedi-lhe rédea livre.
Na realidade, largara-lhe toda a corda possível, esperançado em que se enforcasse com ela, mas não antes de se desembaraçar de todos os resíduos. Todavia, se agora lhe voltasse as costas, julgá-lo-iam fraco. Por outro lado, se a apoiasse e ela visse os esforços finais malogrados, tornar-se-ia alvo de todas as críticas, mas a ressaca global incidiria em Rudy. A sua capacidade para tomar decisões seria posta em causa. Assim como as suas qualificações como magistrado. Já quase conseguia sentir as vestes a deslizarem-lhe do corpo.
Será necessário lembrar-lhe que o Mitch Holt se voltou contra o próprio Garrett? salientou Ellen. Garanto-lhe que é culpado.
Mas não da morte do Dustin Holloman.
Não é esse o caso em que trabalhamos. Mas não se preocupe. Quando for investigado, estarei em primeiro lugar na fila dos interessados. Quero pregar a pele desse filho da mãe na parede e palitar os dentes com os seus ossos. E agora, se me dá licença concluiu, começando a impeli-lo para fora do gabinete, tenho uma batalha para travar.
Levantem-se! O tribunal iniciou os seus trabalhos, sob a presidência do juiz Gorman Grabko.
O oficial de diligências voltou a utilizar o martelo, quando a ruidosa assistência se pôs de pé. Jay viu Gorman Grabko emergir dos seus aposentos com um ar de dignidade teatral, a calva quase reluzente e barba meticulosamente aparada. Subiu pausadamente os degraus de acesso ao seu lugar e sentou-se com movimentos solenes, após o que varreu o público com um olhar de curiosidade moderada.
Brooks contemplou a sala, tentando imaginar a cena do ponto de vista do juiz. A seguir às mesas dos advogados, na galeria, encontrava-se Paul Kirkwood, sentado na primeira fila, com uma expressão enfastiada. Rudy Stovich ocupava a cadeira à sua direita. A seguir, achavam-se Mitch Holt e Megan O’Malley, ainda com as marcas bem nítidas do espancamento.
O contingente da Universidade Harris instalara-se do outro lado do corredor central, atrás da mesa da defesa. Christopher Priest e o deão adjunto, um quadro de estudantes, com Todd Childs notavelmente ausente. Karen Wright, frágil e encantadora num vestido florido. E a imprensa em toda a volta.
Do seu lugar elevado, Grabko podia literalmente olhar os advogados de cima do ombro o prazer secreto de todos os magistrados. Ellen achava-se de pé atrás da mesa da acusação, as mãos cerradas em punhos aos lados do corpo. Estava furiosa, quase ao extremo de tremer. Pouco antes, Costello anunciara, quase com fanfarras, à imprensa que apresentara duas moções: uma para anular a acusação e a outra para suprimir a parada de identificação I dos autos. Agora, encontrava-se junto da mesa da defesa, igualmente de pé, com o seu associado, trajando impecávelmente, como sempre.
Seria possível que Grabko se tivesse deixado manobrar tão facilmente? A morte de Dustin Holloman levá-lo-ia a aceitar a inocência do arguido? A sua decisão deveria basear-se na evidência relativa à questão da constitucionalidade da detenção, mas isso não significava que outros factores não o influenciassem subconscientemente.
A ansiedade produzia um nó na garganta de Jay, que não conseguira eliminar da cabeça as imagens matinais. No decurso usual da sua profissão, vira centenas de fotos de cenas de crimes, mas nenhuma tão tétrica como a actual.
Não dispunha de palavras para descrever o tipo de tensão desesperada que tornara espesso o ar frio ao longo da estrada que conduzia a Campion. Acre, volátil, como uma nuvem química tóxica que podia incendiar-se e explodir à mínima faísca.
E não tinha a menor dúvida de que tudo fazia parte do plano magistral elaborado por Wright e o seu comparsa. Um acto destinado a chocar e abalar os seus oponentes no jogo: uns erguem-se pelo PECADO e outros por virtude caem. Quem representava a virtude mais do que a Polícia, do que a acusação, do que uma criança? O objectivo consistia em praticar o crime impune, derrotar o sistema da justiça de caminho, e destruir os servidores desse sistema.
O mal puro e simples de tudo aquilo era surpreendente.
E cada vez menos pessoas estavam dispostas a acreditar que o arguido personificava o ser maligno. O mal supunha-se hediondo, instantaneamente reconhecível e não um respeitado professor universitário que reabilitava delinquentes. Não um homem discreto e atraente de fato azul conservador.
Queiram sentar-se entoou Grabko. Em seguida, encavalitou uns semióculos no nariz e consultou um documento, como se não fizesse a menor ideia do processo que se lhe deparava. Vamos ocupar-nos de O Estado contra o doutor Garrett Wright. Fez uma breve pausa. Tem a palavra a defesa anunciou. Queira revelar os seus nomes para o registo.
Costello e o seu sicário levantaram-se simultaneamente.
Anthony Costello, Meritíssimo. Coadjuvado pelo seu associado, Mister Dorman.
Tem a palavra a acusação.
Advogada distrital assistente Ellen North, Meritíssimo.
Advogado distrital assistente Cameron Reed, Meritíssimo.
Doutor Costello. O magistrado voltou-se de novo para a defesa. No que se refere ao seu pedido de impugnação do processo e consequente detenção do doutor Wright, pelo facto de a Polícia ter violado os direitos mencionados na Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, ponderei meticulosamente os seus argumentos e factores envolvidos, sem esquecer a declaração do chefe Holt e a argumentação da acusação.
Fez uma pausa para criar efeito, ao mesmo tempo que cofiava a barba, como se somente agora houvesse traçado a conclusão. Jay inspirou o ar e conservou-o nos pulmões.
Reconheço que os seus argumentos se revestem de mérito. Houve na verdade uma certa demora entre a perseguição e a captura, durante a qual o chefe Holt perdeu o suspeito de vista.
Uma exclamação abafada colectiva percorreu a galeria. Na primeira fila, Paul Kirkwood inclinou-se para a frente e pousou a mão crispada na vedação, como se se preparasse para a transpor.
No entanto continuou Grabko, estou persuadido de que a regra das circunstâncias exigidas foi aplicada. Por conseguinte, indefiro a petição.
Outra vaga de som rolou sobre a sala, porém ele apressou-se a utilizar o martelo, com um franzir de sobrolho para a galeria.
É indispensável que reine a ordem absoluta. Esta audiência é um acto legal e não a representação de uma peça teatral. Os ocupantes da galeria devem manter-se silenciosos, sob pena de serem convidados a abandonar a sala.
Proferida a ameaça, reacondicionou-se na cadeira, pôs de lado o conjunto de documentos relativos à primeira moção e pegou noutro.
Quanto à moção da defesa para suprimir a parada de identificação dos autos, foi concedida.
Ellen levantou-se, enquanto a galeria atrás dela desafiava o destino e irrompia numa cacofonia de sons.
Por favor, Meritíssimo! bradou, enquanto Grabko voltava a utilizar o martelo. Solicito que os registos mostrem...
Miss North cortou o magistrado, enrugando a fronte por cima dos aros dos óculos. Deixou a sua opinião sobre a minha decisão bem clara no meu gabinete. A menos que queira ser alvo de uma admoestação por desrespeito, sugiro que não insista.
Ela mordeu o lábio inferior e decerto contou até dez, antes de assentir:
Perfeitamente, Meritíssimo.
Pode chamar a sua primeira testemunha.
O Estado chama a agente Megan O’Malley. Mitch dirigiu um leve sorriso de confiança a esta última,
que se levantou e avançou lentamente para o banco das testemunhas, seguida de perto pelo oficial de diligências, cuja expressão permitia crer que receava que ela considerasse a todo o momento a canadiana insuficiente para se equilibrar e caísse redondamente.
Uma vez instalada, procedeu ao juramento usual e Ellen principiou:
Agente O’Malley, queira indicar a sua ocupação.
Sou... era... agente de campo regional de Deer Lake do Bureau of Criminal Apprehension do Minnesota.
Disse «era». A sua posição em relação ao departamento alterou-se recentemente?
Sim articulou a interpelada, com alguma relutância. Estou de baixa por doença.
Devido a ferimentos sofridos a vinte e dois de Janeiro de mil novecentos e noventa e quatro?
Sim.
Estava incumbida das investigações sobre o rapto do Josh Kirkwood, não é verdade?
Exacto.
E investigava esse crime na data que acaba de referir?
Sim.
Quer fazer o favor de revelar ao tribunal o que aconteceu nessa manhã?
Protesto interveio Costello em tom enfastiado. Não há qualquer relevância nisso.
Ellen dirigiu-lhe um olhar acerado.
Por causa do motivo, Meritíssimo. Tencionamos estabelecer uma cronologia de eventos conducentes ao ataque cruel à agente O’Malley.
Grabko franziu os lábios e inclinou a cabeça.
Indeferido.
Ela saiu de trás da mesa e aproximou-se devagar do banco das testemunhas, com o que desviou a atenção do juiz do lugar da defesa.
Queira continuar, agente O’Malley.
Eu tinha parado o carro na berma da Old Cedar Road, apeei-me e pus-me a examinar um conjunto de marcas de derrapagem produzidas no piso durante um acidente de viação sucedido na noite do rapto do Josh Kirkwood, pouco antes da sua ocorrência.
Porque estava interessada por esse local?
Desconfiava da causa e da hora do acidente. Os ferimentos resultantes nos condutores e passageiros atrasaram a saída do hospital à mãe do Josh Kirkwood, a doutora Hannah Garrison, impedindo-a, por conseguinte, de o ir buscar a tempo ao local onde praticava hóquei. Entretanto, entre o acidente e a chegada dela ao recinto, o filho foi raptado.
Enquanto examinava essas marcas no piso da estrada, foi abordada por alguém?
Sim. O doutor Garrett Wright deteve o seu carro e exprimiu interesse no objectivo da minha presença ali. Limitei-me a dizer que verificava uma coisa.
Sabe se ele estava ao corrente do acidente que tinha ocorrido?
Sim, estava. O condutor do veículo responsável era um aluno da Universidade Harris envolvido num projecto do doutor Wright e do professor Christopher Priest.
Voltou a ver o doutor Wright, naquele dia?
Sim. Quando fui à Universidade Harris, para procurar o professor Priest. Este não se encontrava no seu gabinete, mas estava lá o doutor Wright, com um estudante.
Como estava o doutor Wright trajado, nessa ocasião?
Camisa, gravata e calças escuras.
Falou com ele?
Sim. Informou-me de que o Christopher Priest tinha ido a St. Peter e deveria estar em casa por volta das duas e meia da tarde.
Ficou ciente da sua intenção de o procurar em casa?
Ofereceu-se para me fornecer indicações.
Informou mais alguém da intenção de o fazer?
Não.
Onde se situa a residência do professor Priest?
No Stone Quarry Trail, dez mil duzentos e vinte e seis. É fora da cidade.
Numa área arborizada relativamente isolada, não é assim?
Exacto.
Quando chegou ao local, ele estava em casa?
Não. Encontrava-se trancada e às escuras. Sem qualquer carro visível. Comecei a contornar a casa, cuja parte sul desemboca no Quarry Hills Park. Quando me aproximava de um alpendre, no canto sudoeste da propriedade, avistei uma série de pegadas na neve que seguiam de sul... o parque... para essa construção. Achei o facto suspeito, pelo que puxei da arma de fogo, anunciei-me como agente da lei e exigi à pessoa escondida que saísse.
E saiu?
Não.
Que aconteceu a seguir?
Megan pestanejou lentamente, como se a cena se repetisse por detrás das pálpebras.
Uma espécie de crepúsculo sinistro. O céu carregado, a neve a cair, espessa e pesada. Uma floresta de árvores negras e mortas pelo Inverno circundava a propriedade.
Decidi regressar à minha viatura e pedir apoio pelo rádio acabou por explicar.
O coração palpitava um pouco mais forte. Ela deslocava-se ao longo do alpendre. Ainda doze metros e estaria em segurança. Não transpôs mais de cinco.
Alguém irrompeu do alpendre.
A primeira pancada atingiu-a com uma violência que a fez estender-se ao comprido. A arma soltou-se-lhe da mão. Ela viu-a deslocar-se ao longo da neve, até que desapareceu. Megan tentou endireitar-se, mas cambaleava, como que embriagada.
Tentei... tentei recuperar a arma. Ele caiu-me em cima.
Roupas negras, máscara de esqui e uma boca. Um bastão escuro curto a atingi-la fortemente.
Ele... espancou-me proferiu ela, a tensão a avolumar-se no peito. Como se usasse um cajado. Com força.
Várias vezes. Atingindo-lhe o ombro. E um dos lados da cabeça. A mão direita, quando a ergueu para se defender, com tanta fúria que a dor se prolongou pelo braço e explodiu no cérebro.
A recordação da dor trouxe uma onda de náusea. Ela absorveu o ar com dificuldade.
Perdi o conhecimento disse a meia voz.
Quando o recuperou, onde estava?
Atada a uma cadeira. Não sei onde.
Pode descrever o local?
Tinha os olhos vendados. Havia apenas uma pequena linha de visão na parte inferior da venda.
Ellen interrompeu o interrogatório e pousou a mão suavemente na vedação que antecedia a testemunha.
Sei que isto é difícil para si, Megan prosseguiu com extrema gentileza. Mas pode revelar-nos o que aconteceu enquanto foi mantida cativa?
A interpelada engoliu com dificuldade. Tinha de se dominar. Era uma polícia. Depusera milhares de vezes.
Mas nunca tinha sido vítima.
Olhou fugazmente Garrett Wright, sentado calmamente, com um leve sorriso de falsa inocência, e amaldiçoou-o, enviando-o para o recanto mais obscuro do inferno.
Bateu-me... repetidamente declarou, irritada com as lágrimas que lhe acudiam aos olhos. Sufocava-me. Falava em matar-me... talvez sim ou talvez não. Referia-se ao rapto do Josh. Chamava-lhe um jogo.
E converteu-a num peão do seu jogo, foi?
Disse que eu seria a próxima jogada deles.
Apesar de não poder ver o seu agressor, chegou a uma conclusão sobre a identidade. Como o conseguiu?
Só duas pessoas sabiam que eu tinha ido a casa do Priest, uma das quais era o Garrett Wright. Também me viu examinar as marcas do local do acidente. Se estava envolvido, devia saber que eu procurava alguma coisa em especial. Tinha falado com ele em várias ocasiões. Estava familiarizada com o seu modo de se exprimir. Sabia a sua altura em relação à minha. Também havia notado que tinha o hábito pronunciado de se baloiçar para trás e para a frente, apoiado nos calcanhares. Eu podia ver uma secção do chão junto da cadeira em que me sentava. Assim, reparei nas botas, vi-o baloiçar-se dessa maneira, enquanto perorava interminavelmente sobre a pessoa brilhante que era.
E disse alguma coisa em especial que lhe fez vibrar uma campainha no cérebro?
Sim. Perguntei-lhe porque tinha escolhido o Josh, porquê os Kirkwood, e, com profundo desdém, replicou: «Porque não? Uma família tão perfeita!» Quando eu tinha falado com ele, nesse mesmo dia, empregara essa expressão: «Uma família tão perfeita!»
Ellen afastou-se do banco das testemunhas, para que Grabko e a imprensa pudessem ver bem a depoente. Em seguida, pôs os óculos de leitura e pegou num documento de entre os vários que Cameron espalhara em cima da mesa.
Os ferimentos que o homem lhe produziu foram graves, suponho?
Sim.
Segundo o relatório médico, identificado como Documento da acusação, sofreu uma contusão, várias pequenas fracturas múltiplas, luxação intensa dos rins, algumas vértebras fracturadas e uma lesão intensa no joelho direito. Isto para não mencionar fracturas múltiplas na mão direita, que exigirão várias intervenções cirúrgicas para haver a remota esperança de recuperar a mobilidade.
Fez uma pausa e olhou Megan com visível compaixão.
Agente O’Malley, considerando a extensão dos danos produzidos na sua mão, pensa existir realmente a esperança de poder reatar as suas obrigações como agente de campo do BCA?
A pergunta atingiu a testemunha como um tijolo no plexo solar. A resposta mantivera-a acordada noites inteiras a especular sobre o seu possível futuro. Na verdade, assustava-a como o mais tenebroso dos terrores, pois a única coisa que sempre desejara na vida fora tornar-se uma boa polícia. e se isso agora não fosse possível, que seria... quem seria?
As lágrimas ofuscaram-lhe a visão e pestanejou furiosamente enquanto erguia o queixo num ângulo de orgulho.
Não é provável. Não.
A advogada fitou Costello com intensidade, ao mesmo tempo que anunciava:
A testemunha está ao seu dispor.
Ele levantou-se, de expressão fria, impávida, a fronte enrugada, enquanto consultava um recorte de jornal.
Devo confessar que estou um pouco confuso, agente O’Malley. Revelou ao tribunal que investigava aspectos do rapto de Josh Kirkwood, no dia vinte e dois. É exacto?
Sim.
No entanto, segundo um artigo do Star Tribune, de sábado, vinte e dois de Janeiro, já tinha sido afastada do seu cargo, suspensa temporariamente do serviço activo. Em conformidade com o seu agente especial, Bruce DePalma, fora substituída na região de Deer Lake pelo agente Martin Wilhelm no dia anterior, devido à maneira deficiente como conduzia as investigações.
Isso é falso replicou Megan, com aspereza. O advogado arqueou uma sobrancelha.
Está a chamar mentiroso ao seu agente especial?
Não, doutor Costello replicou ela, sem pestanejar. Estou a chamar mentiroso ao senhor.
O juiz Grabko deixou transparecer um pequeno sobressalto.
Espero que predomine um minimo de decoro nas minhas audiências, agente O’Malley, sobretudo da parte dos representantes da lei.
Ela não efectuou o mínimo esforço para pedir desculpa. Se o pomposo imbecil desejava assistir a algum sinal de contrição, teria de o solicitar.
No entanto, Costello seguiu em frente, por não querer alterar o ritmo que se impusera.
A senhora tinha estado a trabalhar no caso durante dez dias sem o mínimo resultado satisfatório.
Protesto acudiu Ellen, levantando-se. Este ataque não tem qualquer fim prático. A agente O’Malley não está a ser julgada.
Meritíssimo, a defesa considera que a posição da agente O’Malley, assim como o seu estado mental no dia vinte e dois, são factores importantes...
Estamos numa audiência preliminar e não num julgamento, doutor Costello volveu ela. Assiste-lhe o direito de interrogar as testemunhas e não de as impugnar.
O martelo contactou vigorosamente com o tampo da mesa.
Estamos na minha sala de audiências, Miss North. É a mim, pois, que compete velar pela observação das regras.
Sim, Meritíssimo proferiu Ellen, em voz tensa. Queira fazê-lo.
Objecção indeferida. Continue, por favor, doutor Costello.
Este saiu de trás da sua mesa e avançou para a área aberta diante do magistrado.
Tinha sido instruída pelo agente especial DePalma para comparecer na central do BCA em St. Paul no sábado, vinte e dois?
Sim admitiu Megan, não sem relutância.
Apesar disso, vagueava por Deer Lake, à procura de marcas de derrapagem, a fazer perguntas e, segundo a sua própria admissão, a continuar uma investigação com a qual já não tinha a menor ligação. Isto é exacto?
Não. Continuava a sentir-me estreitamente ligada ao caso. Ainda tinha perguntas para fazer. Considerava-me na obrigação de tentar obter respostas. O facto de ter de comparecer na central do BCA não superava a necessidade de localizar uma criança em perigo e capturar o sinistro responsável.
Por conseguinte, desafiou ordens directas de um superior?
Protelei-as.
Porque não queria largar o caso?
Talvez já não fosse a responsável das investigações, mas continuava a ser um membro da Polícia. Sentia uma obrigação moral.
É verdade que havia certa controvérsia sobre a sua nomeação para a região de Deer Lake? inquiriu o advogado, mudando de pistas com a perícia de um piloto do Grand Prix.
Suponho que sim.
Está a ser modesta. Era a primeira mulher na história do BCA a exercer as funções de agente de campo. Não é verdade? perguntou com simulado espanto.
É.
Havia grande pressão para que solucionasse o caso Kirkwood? Maior do que se fosse um homem?
Isso não sei declarou Megan, com uma expressão impassível. Nunca fui homem.
A galeria foi percorrida por algumas risadas abafadas, e o martelo voltou a fazer-se ouvir, ao mesmo tempo que o olhar do juiz assumia um ar carregado.
A imprensa esquadrinhava, muito literalmente, todos os seus movimentos prosseguiu Costello. O bafo da central soprava nas suas costas. A senhora actuava sob forte tensão. Acha isto uma análise correcta da situação?
Sim.
Ansiava, portanto, solucionar o caso. Na verdade, a sua própria carreira dependia disso.
Com efeito, queria solucioná-lo. Era a minha obrigação.
Estava desesperada.
Determinada.
Ele voltou o seu perfil para a galeria e exibiu um largo e cativante sorriso, ao mesmo tempo que abanava a cabeça.
Tem uma propensão teimosa para a racionalização, agente O’Malley.
Protesto! disparou Ellen.
Deferido. Queira limitar-se às perguntas, doutor Costello.
Este inclinou levemente a cabeça e retrocedeu para a mesa da defesa. Dorman sentava-se na posição de sentido como um cachorro amestrado e estendia-lhe o documento apropriado, que ele aceitou e folheou.
Diga-me uma coisa, por favor, agente O’Malley: em alguma ocasião, no decurso da investigação, o doutor Wright foi considerado suspeito do desaparecimento do Josh Kirkwood?
Não. Só depois de me sequestrar e agredir, e o chefe Holt o perseguir e capturar.
Um músculo do queixo de Costello contraiu-se levemente, e os olhos negros brilhavam quando se voltou para Grabko, o qual se debruçou sobre o banco das testemunhas, com as faces ruborizadas pela irritação.
Agente O’Malley, tenho a certeza de que sabe que não deve responder nesses termos. Se o repetir, poderá ser acusada de desrespeito.
Perfeitamente, Meritíssimo articulou ela.
Não é verdade continuou Costello que tinha considerado várias outras pessoas suspeitas, entre as quais o Paul Kirkwood?
Em conformidade com a maneira de proceder usual nas investigações de raptos, a família mais próxima figurava entre as primeiras pessoas a investigar.
Foi um pouco mais rigorosa na sua consideração do Paul Kirkwood do que se limitasse a obedecer a um preceito de rotina.
Sou uma polícia cumpridora do regulamento foi a resposta, de olhos semicerrados. Nunca me limito a obedecer a preceitos de rotina.
É uma característica admirável. Por conseguinte, cumpria rigorosamente o regulamento quando submeteu Mister Kirkwood à recolha de impressões digitais?
A recolha das impressões digitais deveu-se unicamente a fins de eliminação.
A senhora falou com o doutor Wright e o seu aluno, no dia vinte e dois disse Costello, mudando mais uma vez de táctica. Mas visitou a Universidade Harris à procura do professor Priest. É exacto?
Sim.
Porquê?
Queria fazer-lhe algumas perguntas.
Considerava-o suspeito?
A possibilidade existia.
Deixou transparecer ao doutor Wright que se deslocaria à residência do Christopher Priest nesse dia. Pode dizer se ele ou o Todd Childs teriam divulgado o facto a outras pessoas?
Não posso.
Há a possibilidade de a vossa conversa ter sido escutada por alguém no corredor junto do gabinete?
Não.
Por conseguinte, não pode afirmar que o doutor Wright era apenas uma de duas pessoas ao corrente da sua ida a casa do professor Priest?
Tanto quanto eu sabia, era.
A que horas chegou a casa do professor?
Cerca da uma e quarenta e cinco da tarde. Costello arqueou as sobrancelhas para o público.
Mas o doutor Wright tinha especificado que Priest só voltaria aproximadamente às duas e meia. Porque foi lá com tanta antecedência?
Megan inclinou a cabeça num ângulo beligerante.
Queria estar presente para o receber com todas as honras.
Agente O’Malley... advertiu Grabko.
Considerava-o suspeito salientou Costello.
Perguntou e respondeu interveio Ellen, em tom de cansaço, levantando-se. Meritíssimo, podemos solicitar ao meu ilustre colega que entre directamente na perseguição? Não existe qualquer relevância na existência de um suspeito ou uma dúzia. O doutor Wright foi o homem detido.
O rosto do magistrado tornou-se tenso, como se a quisesse contradizer e não pudesse.
Passemos adiante, doutor Costello. Este nem pestanejou.
Diga-me outra coisa, agente O’Malley: viu o rosto da pessoa que a atacou na residência do professor Priest?
Ele atingiu-a de lado. A arma voou da mão dela.
Não.
Viu o rosto da pessoa que a atacou, enquanto era mantida prisioneira naquelas instalações?
A dor provinha de todos os lados simultaneamente, atingindo-lhe várias vezes o ombro, o joelho, a mão.
Agente O’Malley?
Vi-lhe os pés.
O advogado mostrou-se indignado.
E, baseada nisso, queria que julgássemos um membro respeitado da comunidade por crimes hediondos?
Não! Eu...
Reconheceu a voz?
Julgas que te mataremos, menina esperta? Não serias de modo algum a primeira, nem pouco mais ou menos... Um murmúrio, suave, sem a menor inflexão...
Não, mas...
Costello voltou as costas à testemunha.
Não o viu, não conseguiu reconhecê-lo, ele não pronunciou o nome... recapitulou, com a voz a intensificar-se a cada sílaba. Largou o depoimento escrito dela na mesa e tornou a encará-la. Pode dizer-nos alguma coisa, antiga agente O’Malley, susceptível de nos levar a crer que a sua conclusão de que o seu agressor era o doutor Garrett Wright consistia em algo mais do que a atitude desesperada de uma mulher que comprometera as investigações e tinha de fazer alguma coisa para evitar que a sua carreira fosse pelo esgoto abaixo?
Protesto! exclamou Ellen. Grabko utilizou mais uma vez o martelo.
O som foi bloqueado na mente de Megan pelo ruído insuperável da fúria. O ténue domínio que conservava sobre si própria extinguiu-se e a cólera irrompeu sem limites.
Posso assegurar que ele é culpado! vociferou, levantando-se. Posso garantir que é o filho da mãe doentio que considera um jogo raptar crianças e destruir vidas, e merece pior do que este tribunal lhe pode atribuir!
Ordem! gritou Grabko, batendo o martelo como um carpinteiro, até que a cabeça se soltou do cabo e voou na direcção da mesa da defesa. Ordem, por favor!
O oficial de diligências encaminhou-se para o banco das testemunhas, mas retrocedeu ao ver que Megan empunhava a canadiana com intenções óbvias.
O foco da sua atenção encolerizada fixava-se em Costello, que se encontrava a menos de meio metro de distância, absolutamente calmo, com um leve sorriso nos cantos dos lábios.
Meu Deus, O’Malley, caíste-lhe mesmo nas mãos! Que maneira de acabar!
Ela tinha de se apresentar exactamente como ele a queria pintar obcecada, parcial, descontrolada. Desesperada. A compreensão do facto fazia-a sentir-se doente, aturdida. Por fim, sentou-se pesadamente na cadeira e fechou os olhos.
Não tenho mais perguntas declarou Costello, e dirigiu-se calmamente para junto do seu cliente.
O Estado chama o chefe da polícia Mitch Holt proferiu Ellen calmamente, como se a sua primeira testemunha não acabasse de ser expulsa da sala.
No fundo, não a censurava por se ter desnorteado. Considerando tudo aquilo a que Wright a submetera, surpreendia-a que não houvesse puxado de uma arma e o abatesse... e a Costello. A grande interrogação na mente da advogada consistia na natureza do impacte que o testemunho emocional da doente exerceria. A imprensa talvez se inclinasse para o lado dela ou não, mas Grabko ficara claramente irritado. Aquela audiência constituía o seu espectáculo, e a testemunha comprometera o êxito da mesma. Seria possível que recapitulasse as suas declarações e visse alguma outra coisa além de vermelho?
Com uma réstia de sorte, Mitch acalmaria o magistrado e a galeria, pois apresentava um aspecto geral tranquilizador, plenamente senhor de si. Após o juramento da praxe, Ellen começou:
Chefe Holt: quer ter a bondade de descrever ao tribunal os eventos ocorridos na noite de vinte e dois de Janeiro?
Cerca das oito e quarenta e cinco da noite, recebi uma chamada da agente O’Malley. Achava-se obviamente em apuros. Não lhe foi permitido falar muito. Em seguida, surgiu na linha uma voz masculina não identificada, a qual me transmitiu indicações no sentido de comparecer, só, na entrada sudoeste do Quarry Hills Park, às nove e um quarto.
Explicou para quê?
Disse que tinham um presente para mim e queriam ganhar o «jogo».
Dirigiu-se então ao parque, como lhe era indicado?
Não precisamente como me era indicado. Enviei imediatamente uma viatura anónima com dois agentes ao local mencionado e outra à entrada sudeste, enquanto eu próprio entrava no parque pela porta oeste.
No local onde o parque comunica com as imediações de Lakeside.
Exacto. Aguardei entre o arvoredo. Às nove e cinco minutos, uma GMC de modelo recente entrou no parque, avançou alguns metros no caminho e deteve-se. O condutor apeou-se, contornou a carrinha até ao lado do passageiro e abriu a porta para que descesse uma mulher, que escoltou durante cerca de dez metros para sul.
Megan, que coxeava pesadamente, sem a menor dúvida ferida com gravidade. A fúria que ele sentira quase o devorava como uma fogueira.
Seguiu-se uma luta entre eles informou Mitch, em voz átona. Abandonei o esconderijo de arma em punho, anunciei-me como membro da Polícia e ordenei-lhes que se imobilizassem.
Naquele momento, reconheceu alguns dos dois?
Sim. A agente O’Malley. O agressor usava uma espécie de máscara de esqui.
Estava armado?
Sim. Empunhava uma pistola semiautomática de nove milímetros.
E ameaçava a agente O’Malley com ela?
Sim. A certa altura, pousou-lhe o cano na têmpora. E Mitch sabia que um movimento errado, uma decisão dúbia bastaria para que ela fosse morta diante dos seus olhos. Ordenei-lhe que largasse a arma e informei-o de que estava detido. A agente O’Malley fê-lo desequilibrar-se, mas ele impeliu-a para mim e saltou para o volante da carrinha, não sem antes disparar várias vezes. Pendurei-me na retaguarda, fiz fogo para partir o vidro da janela desse lado e ordenei-lhe que parasse a viatura.
Ele fê-lo?
Não. Ripostou ao fogo, mas a seguir perdeu o domínio do volante.
A carrinha abandonou a faixa de rodagem, voou para o espaço e pousou no declive, ao mesmo tempo que produzia uma torrente de neve.
Fui projectado ao chão e a carrinha embateu numa árvore.
Perseguiu então o suspeito a pé?
Sim. Correu para oeste, embrenhou-se no arvoredo e começou a escalar a encosta, em direcção a Lakeside, detendo-se de vez em quando para disparar.
O senhor foi atingido?
Uma das balas atravessou a manga do meu agasalho e roçou o braço.
Mas continuou a perseguição?
Sim. Em dado momento, ele descartou-se da máscara, que depois encontrei no chão.
Que destino lhe deu?
Deixei-a onde estava. A unidade da cena do crime fotografou-a mais tarde, guardou-a como prova num sobrescrito de celofane e enviou-a ao laboratório do BCA para ser processada.
Ellen voltou-se para o juiz, enquanto Cameron se levantava e apresentava várias fotografias a um amanuense.
Meritíssimo, a máscara propriamente dita continua no laboratório do BCA, mas o Estado gostaria de incluir as fotografias da cena do crime em seu lugar para fins relativos à presente audiência preliminar.
Doutor Costello? O olhar do magistrado transferiu-se para o advogado.
Não tenho nada a objectar, Meritíssimo. Grabko dirigiu-se ao amanuense.
Aceite as fotografias como elemento de argumentação.
Para onde lhe pareceu que o suspeito se dirigia? perguntou Ellen, concentrando-se novamente em Mitch.
A subdivisão de Lakeside. Percorreu os quintais das traseiras das casas de Lakeshore Drive.
Correu ao longo da pista de esqui, com desvios ocasionais para as árvores que a ladeavam. O ar glacial penetrava-lhe nos pulmões como uma lâmina de barbear. Consciente de que era insensato perseguir um professor universitário que conduzia um Saab e trabalhava com delinquentes juvenis.
Persegui o suspeito através de quintais, rumo a norte. Vi-o introduzir-se numa garagem pela porta das traseiras, segui-o, dominei-o e dei-lhe voz de prisão.
E é o homem sentado nesta sala?
Sim, é ele. Mitch dirigiu um olhar incendiário ao indivíduo cujo jogo tornara o tecido da vida em Deer Lake irreparável. O doutor Garrett Wright, o arguido.
Obrigada, chefe Holt. Ela sentou-se, com uma inclinação de cabeça. Não tenho mais perguntas.
Mitch viu Costello levantar-se e perguntou-se se se entregaria ao mesmo jogo que praticara com Megan, acercando-se cada vez mais dela, até que, não conseguindo continuar a suportar, explodira. Na verdade, ele não desdenharia a oportunidade de o zurzir. De preferência, numa rua escura, sem testemunhas.
Chefe Holt começou o advogado de defesa, conservando-se de pé, imperturbável, atrás da mesa. Segundo o que declarou, o arguido usava uma máscara de esqui quando o viu pela primeira vez no parque. Conseguiu descortinar-lhe o rosto, naquele momento?
Não.
Ele falou consigo?
Não.
Que indicação tinha a chapa de registo da carrinha que ele conduzia?
Pertencia ao Roy Stranberg, que na altura se encontrava no Arizona. Tinha sido roubada.
As impressões do doutor Wright foram encontradas na viatura?
Não.
E quando perseguia o suspeito através do arvoredo, viu-o desembaraçar-se da máscara de esqui? Viu-lhe o rosto?
Não.
Suponho que o arvoredo aí é denso? Há muitas árvores?
Sim, pode chamar-se arvoredo a um conjunto de muitas árvores confirmou Mitch, secamente.
Segundo julgo, não teve uma visão clara e constante do suspeito.
Constante não, mas os disparos mantinham-me elucidado da sua posição.
A galeria foi percorrida por mais uma risada abafada, mas Costello não perdeu a oportunidade.
E, quando deteve o doutor Wright, ele tinha alguma arma de fogo em seu poder?
Não.
Segundo as declarações, as mãos do doutor Wright foram mais tarde submetidas a exames para procurar resíduos de pólvora, os quais se revelaram negativos. É exacto?
Sim.
Uniu as pontas dos dedos das duas mãos e aproximou-as do queixo, numa atitude meditativa.
Portanto, o senhor corria através de arvoredo. É escuro. Está a nevar. Tenta esquivar-se aos tiros e evitar as árvores. Perdeu o suspeito de vista mais de uma vez, não é verdade?
Vi-o com clareza absoluta quando entrou naquela garagem.
Mas tinha-o perdido de vista antes disso?
Apenas durante segundos.
Quantos?
Não os cronometrei.
Cinco? Dez? vinte?
Menos de vinte. Menos de quinze.
Mas não pode indicar um número exacto?
Não.
Por conseguinte, é possível que o homem que viu entrar nessa garagem não fosse de modo algum esse suspeito?
Seria improvável.
Mas possível.
Remotamente.
Antes de proceder à detenção, tinha algum motivo para crer que o suspeito que perseguia fosse o doutor Wright? A agente O’Malley tinha-me dito que era. Compreendo proferiu Costello, com uma inclinação de cabeça exagerada, ao mesmo tempo que fazia rolar um lápis distraidamente entre os dedos. Chefe Holt: quando recebeu aquele telefonema da agente O’Malley e se inteirou de que ela corria perigo, que sentiu?
O interpelado olhou-o com desconfiança.
Não estou a compreender.
Temeu pela vida dela?
Com certeza.
E quando a viu em Quarry Hills Park, obviamente ferida com gravidade, ficou irritado?
Protesto interpôs Ellen, com um olhar de través ao antagonista. Há alguma intenção definida nisto?
Uma muito especial, Meritíssimo.
Grabko assentiu com um movimento de cabeça.
Prossiga. Responda à pergunta, chefe Holt.
Sim.
Ficou, pois, irritado. Temia pela vida dela. Queria capturar o responsável. Desejava-o ardentemente.
É o meu dever em circunstâncias similares.
Mas os seus sentimentos iam além da preocupação profissional, suponho. Não é verdade que o senhor e a agente O’Malley estão envolvidos emocionalmente?...
Protesto! Ellen levantou-se prontamente. Isto encontra-se absolutamente fora do âmbito desta audiência preliminar! Estamos aqui para recapitular factos e provas e não a vida privada de agentes da Polícia!
Grabko utilizou o novo martelo.
Não quero ouvir mais recomendações suas, Miss North - advertiu em tom incisivo. Talvez seja conveniente explicar a sua intenção ao tribunal, doutor Costello.
Ellen largou o lápis em cima da mesa e cruzou os braços.
Tem algum problema com a minha sugestão, Miss North? - perguntou o juiz, friamente.
Sim, tenho, Meritíssimo. Proporciona ao doutor Costello a oportunidade de apresentar o seu caso à imprensa, que é muito provavelmente o motivo pelo qual enveredou por esta via.
O resultado da presente audiência não se baseará nas opiniões da imprensa, doutora. A decisão final será minha e só minha, com base nos elementos apresentados. Nessa conformidade, é a mim que compete decidir a relevância da linha de interrogatório do doutor Costello. Se me parecer que se reveste de mérito, permiti-la-ei. De contrário, será posta de parte.
E será posta de parte por todo o jurado potencial que lê o Pioneer ou vê as KARE-Eleven News! Talvez não contemos com um júri sentado na sala, Meritíssimo, mas existe uma galeria que actuará como júri e juiz. Se o doutor Costello tem de se entregar a esta piedosa argumentação, que o faça em aparte.
Os olhos de Grabko pousaram nos rostos ansiosos da galeria, que salivavam com antecipação na perspectiva de escutarem algo que alguém não queria que lhes chegasse ao conhecimento, e decidiu com relutância:
Aparte.
Reuniram-se a um lado da mesa, com Costello e Ellen ombro a ombro, flanqueados pelos respectivos associados.
E agora, por favor, doutor Costello, elucide-nos sobre o seu brilhante plano indicou Ellen, a meia voz, numa intonação viperina.
Deve desculpar Miss North, Meritíssimo observou ele, com um sorriso condescendente. Compreende-se que ela não deseje que este tema seja abordado: o efeito das relações pessoais sobre os motivos.
Entretanto, ela estava surpreendida que ele próprio se atrevesse a deslizar sobre gelo tão quebradiço. Voltou-se para o juiz, alterou levemente a posição do corpo e cravou o salto do sapato no de Costello, um elegante exemplar feito por medida, ao mesmo tempo que exercia um leve movimento de rotação.
Meritíssimo, o chefe Holt e a agente O’Malley actuavam na sua capacidade de membros da Polícia e encontram-se hoje aqui para prestar declarações nessa qualidade disse o advogado entre dentes, enquanto tentava libertar sub-repticiamente o pé da tortura crescente. No entanto, como Miss North sabe, as emoções extravasam da nossa vida pessoal para a profissional. Sobretudo numa situação altamente tensa... como esta na realidade era. Assim, penso que, se essas emoções afectavam o julgamento do chefe Holt, o tribunal deve inteirar-se.
Isso tornará o seu cliente menos culpado? perguntou Ellen.
O meu cliente está inocente, vítima das circunstâncias e da tentativa desesperada da agente O’Malley de se conservar apegada à sua vida profissional.
Semicerrou as pálpebras ao argumentar:
Meritíssimo, posso salientar que as únicas «tentativas desesperadas» que se nos deparam aqui são as do meu prezado colega para introduzir uma linha de interrogatório totalmente imprópria?
Não, não pode retrucou o magistrado. Agradeço-lhe que pare de tomar decisões por mim e mantenha bem presente no espírito a natureza do seu lugar nesta sala.
O meu lugar?
Cameron deu-lhe uma leve cotovelada e puxou-a um pouco para trás.
Meritíssimo, não tenho tanta experiência como Miss North ou o doutor Costello deste tipo de sessões aventurou, o rosto sardento inundado de humildade, mas suponho que a defesa, se pretende realmente apresentar um caso, deve expor elementos que sejam mais claramente de exculpação na sua natureza do que mera teoria especulativa. Engano-me a esse respeito?
A expressão de Grabko atenuou-se um pouco ante a oportunidade de fazer de professor de leis, e a tensão difundiu-se.
Tem toda a razão, doutor Reed. No entanto, as declarações podem ser de exculpação, não é assim?
Sem dúvida, Meritíssimo.
E, teoricamente, até uma declaração de uma testemunha da acusação pode ser considerada assim, se lhe forem proporcionados um peso e luz suficientes.
E fertilizada pelo advogado de defesa apropriado. A tentativa de Cameron de uma atitude diplomática acabava de ser esmagada pelo amor de Grabko do som da sua própria voz.
Prossiga com cautela, doutor Costello recomendou este último. Quero ouvir expor um ponto de vista definido no interrogatório e não um advogado a prestar declarações sob o disfarce de um contra-interrogatório.
Com certeza, Meritíssimo assentiu Costello. Muito obrigado.
Ellen recusou-se a dar-lhe a satisfação de o olhar. Disposto a não correr riscos evitáveis, Cameron voltou fisicamente as costas dela para a mesa da defesa.
Boa tentativa, Opie proferiu Ellen, entre dentes.
Está a irritá-lo advertiu ele no mesmo tom, enquanto se sentava.
Ele é que me irrita.
Sim, mas a sorte dele não está nas suas mãos.
Nos meus sonhos.
Costello retomou o seu lugar atrás da mesa da defesa e conservou uma certa distância do banco das testemunhas.
Ora bem, chefe Holt. É, pois, verdade que o senhor e a agente O’Malley estão envolvidos pessoalmente?
Não vejo o que diabo pode ter com isso, doutor replicou o interpelado, endurecendo a expressão.
O juiz inclinou-se para a frente.
Responda à pergunta, chefe Holt, e queira abster-se de incluir imprecações no seu vocabulário.
Perfeitamente, Meritíssimo grunhiu o outro, que em seguida se voltou para Costello. Sim, estamos.
Portanto, quando a viu em perigo, a sofrer, a sua reacção foi além da preocupação profissional normal?
Sim.
Queria deter a pessoa responsável, e a agente O’Malley disse-lhe que essa pessoa responsável era o doutor Garrett Wright.
Sim.
Convenceu-se de que a pessoa que perseguia era o doutor Wright, o qual vive em Lakeshore Drive. A perseguição conduziu-o nessa direcção e, quando viu alguém introduzir-se na garagem dele, seguiu-o, embora reconheça que perdeu de vista o seu suspeito durante um lapso de tempo indeterminado. Corresponde isto à verdade?
Segundos especificou Mitch. Uma pulsação. Onde pretende chegar, Costello? Cuspa-o de uma vez e deixe-se de tiradas teatrais.
Queria que a agente O’Malley conservasse a sua posição de agente regional, não é verdade?
A agente O’Malley é uma polícia excelente.
Além de sua amante. E ela tinha decidido, baseada praticamente na ausência total de qualquer prova, que o doutor Wright era culpado. Disse ao senhor que não podia ser outro, pelo que o perseguiu.
Persegui o suspeito corrigiu Mitch, sentindo o sangue fervilhar ante a insinuação. Detive o suspeito. Estava-me nas tintas para se era o doutor Wright ou o doutor Spock.
Não lhe passou pela cabeça que o homem que acabou por deter e o suspeito que perseguiu através do arvoredo podiam ser pessoas diferentes?
Não.
O doutor Wright e a esposa vivem em Lakeshore Drive, no noventa e três, não é assim?
É.
Pode dizer-me quem mora apenas duas casas a norte, no número noventa e sete?
Os Kirkwood.
Paul Kirkwood?
Exacto.
Não tenho mais perguntas, chefe Holt.
Ellen acompanhou Costello com a vista, enquanto se ia sentar.
Ele vai mesmo fazê-lo, hein? murmurou Cameron. Tentará atribuir tudo ao pai do Josh.
Fará o que considerar necessário replicou ela, no mesmo tom. O Garrett Wright e a sua sombra não são os únicos que praticam um jogo no meio de tudo isto. Vendo que Grabko se preparava para dispensar a testemunha, levantou-se. Só mais uma coisa, Meritíssimo.
A expressão do juiz deixou transparecer uma ponta de impaciência, mas grunhiu um «sim» e reclinou-se, ao mesmo tempo que cofiava a barba.
As casas de Lakeshore Drive estão numeradas nas traseiras, chefe Holt?
Que eu saiba, não.
Por conseguinte, quando seguiu o suspeito na garagem, não sabia se se tratava da do número noventa e três, noventa e cinco ou noventa e um?
De facto, não fazia a menor ideia. Nem importava.
Portanto, o suspeito que perseguiu através do arvoredo trajava de preto, segundo revelou a este tribunal?
Sim. Calças, botas e blusão de esqui escuros.
E como estava vestido o doutor Wright quando o capturou?
Calças, botas e blusão de esqui escuros.
Dava sinais de cansaço?
Sim. Respirava com dificuldade e transpirava.
Faz alguma ideia da temperatura naquele momento?
Cinco graus abaixo de zero, com vento de vinte nós.
Por conseguinte, umas condições atmosféricas pouco propícias para uma pessoa transpirar, não é verdade?
Objecção.
Retiro a pergunta declarou Ellen, dominando um sorriso malicioso. Em relação aos testes para detectar vestígios de pólvora a que o doutor Wright foi submetido, o resultado seria afectado se usasse luvas no momento em que se serviu da arma de fogo?
Sim.
Não tenho mais perguntas, chefe Holt. Obrigada.
A última testemunha da acusação era um criminalista da central do BCA de St. Paul. Norm Irlbeck estivera no cenário dos acontecimentos na noite do rapto da agente O’Malley e fora ele que recolhera o lençol manchado de sangue que envolvia Megan. Ellen mostrou-lhe fotografias deste último tiradas no local e na central.
É este o lençol, Mister Irlbeck?
Sim. A resposta foi pronunciada com a firmeza de quem se exprimia com convicção absoluta.
Em seguida, ela entregou as fotos ao amanuense.
Segundo sei, o lençol continua a ser submetido a testes, não é assim! prosseguiu, dirigindo-se de novo à testemunha.
Exacto. Os exames do ADN só estarão concluídos dentro de quatro ou cinco dias.
No entanto, já houve algumas conclusões preliminares, suponho?
Sim. Foram encontrados dois tipos de sangue distintos. O positivo, que é o tipo da agente O’Malley, e AB negativo, pertencente ao Josh Kirkwood.
E os testes mais completos do ADN agora em curso determinarão se na verdade o sangue AB negativo pertence na realidade ao Josh Kirkwood?
Sim.
Também foram encontrados cabelos no lençol?
Sim. Que foram comparados com amostras e reconhecidos como similares ao tipo da agente O’Malley, do Josh Kirkwood e do arguido, o doutor Garrett Wright. Também os havia de uma quarta pessoa não identificada.
E quanto à máscara de esqui encontrada no percurso da perseguição, Mister Irlbeck? Também continha cabelos?
Sim. Condiziam com os do arguido, mas havia outros correspondentes aos não identificados no lençol.
Muito obrigada, Mister Irlbeck. Não tenho mais perguntas.
Mister Irlbeck começou Costello ainda antes de Ellen regressar ao seu lugar, a análise do cabelo constitui uma ciência exacta fidedigna?
De modo algum.
Não pode, pois, proceder à identificação absolutamente positiva de que um cabelo encontrado num lençol pertence a uma determinada pessoa com base no estudo desse mesmo cabelo?
Não senhor.
Há alguma maneira de determinar quem utilizou a máscara de esqui em último lugar?
Não, senhor.
E há alguma forma de saber com exactidão como qualquer dos cabelos foi parar ao lençol?
Não, senhor.
Poderiam ter sido colocados lá deliberadamente?
É possível.
Não tenho mais perguntas.
Phoebe entregou a Cameron um saco de plástico e colocou outro para Ellen em cima da mesa de reuniões, sem olhar para ela.
Ignorando o ar abespinhado da secretária e a comida, a advogada pôs-se a percorrer a sala em vaivém, demasiado enervada para tragar o que quer que fosse. A parte deles na audiência preliminar decorrera de modo satisfatório, embora Costello marcasse alguns pontos; porém, à tarde desenrolar-se-ia o show dele, e tudo poderia acontecer.
Dispomos de mais do que o suficiente disse Mitch, que também não conseguia estar quieto. Mesmo que o Grabko se sinta tentado a aceitar a argumentação do Costello, há material bastante para levar o Wright a um julgamento de onde não resultará a mínima hipótese de absolvição.
No entanto, Ellen perguntava-se que esforços seriam indispensáveis para o conseguir, com a imprensa a ventilar todas as coisas que Garrett Wright podia não ter feito. Não podia ter levado Josh para casa. Nem raptado ou matado Dustin Holloman. Era esse agora o foco de concentração do público: o monstro à solta. A decisão de Grabko tinha de se basear na lei, mas não passava de um homem, tão susceptível aos rumores e pressões como qualquer outro.
É bem claro para que lado se inclina disse ela. Eu não via um juiz conceder tanta liberdade de acção numa audiência preliminar desde que os episódios do Perry Mason deixaram de ser exibidos. Lamento que ele permitisse que a martirizassem daquela maneira, Megan.
Esta sentava-se na extremidade da mesa, claramente abatida, como se a provação da manhã houvesse esgotado as poucas energias que lhe restavam.
Eu é que devia pedir desculpa murmurou, cabisbaixa. Tinha a obrigação de saber impedir um cretino daqueles de me sugar a paciência.
A culpa não foi sua.
O filho da mãe fez-me parecer uma maluca capaz de dizer e fazer tudo para ficar com aquela detenção na minha folha de serviços.
Ou alguém perfeitamente segura dos factos apresentados e empenhada em condenar um indivíduo culpado observou Ellen. É tudo uma questão de percepção. As pessoas vêem o que querem.
Sabemos o que querem ver, quando olham para o Wright.
Na verdade, ninguém desejava acreditar que um homem como Garrett Wright era capaz de praticar o mal. E, com a morte de Dustin Holloman, os habitantes de Park County ainda teriam mais dificuldade em o encarar como o seu demónio.
Portanto, temos de provar que estão enganados decidiu com firmeza.
Sem a menor dúvida assentiu Megan, com uma vigorosa inclinação de cabeça.
A defesa chama o doutor Garrett Wright a depor anunciou Costello, com o que provocou visível, e audível, agitação na galeria.
Parecia uma decisão arrojada, jogar aquele trunfo tão cedo e oferecê-lo para o contra-interrogatório da acusação.
Jay via-se forçado a admitir que não era a primeira vez que assistia a algo do género. Recordava-se de, uma ocasião, na Penitenciária Angola, sob um calor intenso no distrito de Luisiana, haver entrevistado um indivíduo aparentemente inofensivo, culpado das maiores atrocidades, entre as quais o desmembramento meticuloso de algumas das suas vítimas. Chamava-se Rodman Madsen, viajante de uma empresa produtora de bombas de irrigação, duas vezes premiado com o galardão de melhor vendedor do ano e tesoureiro da delegação local dos Elks. Um assassino por detrás da fachada socialmente impecável. Ninguém que o conhecia suspeitara jamais das suas hediondas actividades.
Garrett Wright dirigiu-se para o banco das testemunhas e recitou o juramento usual. De fato azul-escuro e gravata discreta, exalava a impressão da quinta-essência do jovem profissional atraente, conservador, educado. Jay quase notava na atmosfera a onda de aprovação e respeito dos que o rodeavam.
Costello começou por convidar o seu constituinte a enumerar os atributos profissionais que possuía e abordou os efeitos no campo das suas proezas cívicas, antes de entrar propriamente no assunto de fundo.
Doutor Wright, onde se encontrava na quarta-feira, doze de Janeiro, entre as cinco e meia e as sete e meia da tarde?
Trabalhava com afinco informou o interpelado, com suavidade. Consultava documentos pertinentes a um trabalho a que alguns dos meus alunos se dedicam relativo à aprendizagem e percepção.
E onde o fazia?
Numa arrecadação da cave do Edifício Cray.
No campus da Universidade Harris?
Sim. Exibiu um sorriso cândido. Receio possuir muitos mais livros do que o meu gabinete pode conter.
Estava só?
Não. Um aluno meu, o Todd Childs, permaneceu comigo até cerca das oito e meia.
Quando se inteirou pela primeira vez do rapto do Josh Kirkwood?
Mais tarde. Através do telejornal das dez horas.
Conhece o garoto em causa?
Tão bem como qualquer dos meus vizinhos. O suficiente para o reconhecer, cumprimentar.
E os pais dele?
A Hannah e o Paul? Certamente. São conhecidos meus e de minha mulher. Amigos ocasionais.
Alguma vez houve qualquer desentendimento entre vós?
Não. Nunca.
Na verdade, falou diversas vezes com a doutora Garrison depois de o filho ter sido raptado, não é assim? Para lhe apresentar comiseração, digamos, aconselhá-la.
Sim. Por sinal, telefonei-lhe na noite de vinte e um, para indicar o nome de uma terapeuta de família que conheço em Edina. Era evidente que a provação corroía o seu matrimónio.
E a imprensa procurou-o diversas vezes, após o desaparecimento do Josh, para exercer as funções de consultor. Exacto?
Decerto, embora eu advertisse várias vezes os repórteres de que não possuo experiência na área do comportamento criminal.
Antes da noite da sua detenção, alguma vez foi interrogado pela Polícia sobre o desaparecimento do Josh Kirkwood?
Como suspeito, não. Fizeram-me algumas perguntas de natureza geral: se tinha notado a presença de estranhos nas imediações, alguma alteração no lar dos Kirkwood ultimamente, etc., coisas desse género.
E que revelou?
Que não lhes podia ser útil nesse capítulo, pois passava a maior parte do tempo na universidade ou no meu gabinete em casa.
Onde se encontrava na tarde de sábado, vinte e dois de Janeiro?
A trabalhar. O novo semestre começa segunda-feira. Tinha de preparar a matéria.
Estava só?
O Todd Childs manteve-se comigo até cerca da uma e um quarto. Depois, fiquei só. Desloquei-me rapidamente a casa para um almoço tardio, por volta da uma e meia, e regressei ao campus perto de uma hora mais tarde. À parte isso, permaneci durante a tarde e serão no Edifício Cray.
E chegou a casa a que horas?
Cerca das nove e um quarto da noite.
Pode descrever ao tribunal o que aconteceu quando chegou?
Acabava de arrumar o carro na garagem e encaminhava-me para a porta de casa quando ouvi o que me pareceram disparos de armas de fogo nas traseiras. Corri para lá e avistei um homem que corria na minha direcção. Pensei que se tratava de um assaltante ou qualquer outro tipo de delinquente, pelo que entrei com a intenção de telefonar ao
Não fazia a menor ideia do que tinha acontecido nessa tarde à agente O’Malley, raptada e agredida?
Com certeza que não. Como podia imaginar sequer uma coisa dessas?
Sim, como? proferiu Costello, voltando-se para a galeria. Doutor Wright, possui alguma máscara de esqui como a que vimos esta manhã nas fotografias da acusação?
Possuí, há algum tempo, pois era pouco menos que um fanático de corta-mato de esqui. Costumava fazê-lo três vezes por semana, independentemente do frio, mas não me dediquei a essa actividade nos dois últimos Invernos.
Faz alguma ideia do que aconteceu a essa máscara de esqui?
Não. O Dr. Wright abanou a cabeça com veemência. Suponho que a minha mulher se desfez dela numa das habituais vendas de garagem.
Finalmente, para que fique registado, raptou o Josh Kirkwood?
De modo algum.
Obrigado, doutor Wright. Não tenho mais perguntas. Ellen levantou-se quando Costello ainda não ia a meio caminho do seu lugar e contornou, empertigada, a extremidade da mesa, para dominar o cenário. Assistira atentamente, enquanto Wright e o advogado teciam a sua teia, com a absorção de Grabko e da imprensa. Agora, competia-lhe desmontar tudo e transferir a simpatia dos media e do público para o seu lado.
Doutor Wright, essa arrecadação que utiliza na cave do Edifício Cray situa-se no canto noroeste do edifício?
Exacto.
A primeira divisão ao fundo da escada?
Sim.
E, no patamar dessa escada, há uma saída que, através de um vazadouro, conduz a um pequeno parque de estacionamento da faculdade. É assim?
Com certeza.
Um local muito conveniente para um escritório auxiliar continuou Ellen. É fácil entrar ou sair sem dar nas vistas.
Objecção.
Vou reformular a frase prontificou-se, congratulando-se por poder vincar o seu ponto de vista pela segunda vez. Alguém o viu sair do Edifício Cray na noite de doze?
Eu, pelo menos, não vi ninguém.
Segundo nos revelou, um dos seus alunos, o Todd Childs, encontrava-se então consigo.
É exacto.
O Todd Childs e mais ninguém?
Mais ninguém.
Pode explicar a razão pela qual, nas suas revelações iniciais à Polícia, esse aluno não fez a menor alusão a ter estado consigo, nessa noite?
Objecção. Convida à especulação.
Deferida.
E no dia vinte e dois? Alguém pode confirmar a sua asserção de que regressou ao Edifício Cray após o almoço ou que trabalhou até depois das nove dessa noite?
Encontrava-me só e inconsciente de que precisaria de um álibi mais tarde.
Havia uma remota sugestão de divertimento no olhar de Wright quando o cruzou com o de Ellen durante uma fracção de segundo. A de que a deixava expandir-se, sem produzir o menor perigo.
E, no dia vinte e dois insistiu ela, depois de o Todd Childs abandonar o seu gabinete, não viu ninguém, nem vivalma, durante todo o dia e metade do serão?
Não.
Cruzou os braços e arqueou uma sobrancelha, enquanto se deslocava lentamente diante do banco das testemunhas.
Não lhe parece estranho? Como disse, o novo semestre principiaria na segunda-feira seguinte. Acha que é o único professor com gabinete no Edifício Cray que necessitava de preparar a matéria.
Não posso falar pelos meus colegas replicou Wright, calmamente. Talvez estivessem mais bem preparados do que eu. Ou então o estado do tempo impediu-os de comparecer no campus. Estávamos sob uma forte tempestade de neve.
Pois estávamos. Ela inclinou a cabeça com veemência. Era um tempo horrível, frio, implacável. Apesar disso, quando o chefe Holt o deteve, o senhor estava acalorado, transpirava, não usava luvas. Pode explicar isso?
Acabava de sofrer uma experiência assustadora, Miss North. Tinha ouvido detonações e vi um homem correr para mim, introduzir-se na minha garagem e atacar-me. Parece-me motivo suficiente para transpirar um pouco.
E as luvas?
Tinha-as esquecido.
Numa noite tão agreste?
Estava cansado. Era tarde.
A expressão do olhar repetiu-se, agora talvez ligeiramente mais demorada. Ellen voltou-lhe as costas e aproximou-se da mesa da acusação, com o falso pretexto de consultar as suas notas.
Doutor Wright, segundo a agente O’Malley declarou, quando falou consigo no gabinete do professor Priest, o senhor usava camisa, gravata e calças escuras. Na altura em que o chefe Holt o deteve, trajava da cabeça aos pés de negro. Como explica isso?
Mudei de roupa quando fui a casa para almoçar foi a resposta imperturbável. Era sábado. Sabia que passaria o resto do dia só, pelo que decidi pôr-me mais à vontade.
Por conseguinte, vestiu-se como um guerreiro ninja.
Objecção! bradou Costello.
Deferida. Grabko olhou-a, enrugando a fronte. Sabe perfeitamente que não se fazem observações dessas, Miss North.
Tem razão, Meritíssimo. Não tenho mais perguntas. Circularam murmúrios na galeria, enquanto Ellen se ia sentar. Ela sabia a que se referiam. Como se explicava que não o tivesse crucificado até que confessasse... se porventura havia alguma coisa para confessar? No entanto, sabia que não merecia a pena perder tempo com perguntas, se sabia antecipadamente que as respostas não passariam de mentiras que não conseguiria desmontar.
A defesa chama Annette Fabrino.
A mulher que acudiu ao banco das testemunhas tinha um corpo de curvas suaves e o rosto de um anjo de Rafael. Dir-se-ia surpreendida numa acção censurável, claramente enervada com a perspectiva de ter de prestar declarações em público. Costello aproximou-se e tentou pô-la à vontade com um dos seus sorrisos cativantes.
Tenho apenas um par de perguntas para lhe fazer, Annette começou em tom protector. Não a reterei muito tempo. Antes de mais, pode indicar o seu endereço?
Lakeshore Drive, noventa e dois.
Logo a seguir ao quarteirão do doutor Wright, não é verdade?
Sim.
No sábado, vinte e dois, assomou à janela, por volta das duas e meia?
Sim, senhor. O meu marido devia regressar de uma viagem de negócios cerca das duas, mas estava atrasado e não tinha telefonado. Sentia-me, pois, preocupada, sobretudo devido ao estado do tempo.
Que viu quando assomou à janela?
O doutor Wright passar no seu carro, em direcção a sul.
Tem a certeza da hora?
Sim. Consultava o relógio de cinco em cinco minutos.
Obrigado, Annette. Costello voltou a exibir o sorriso e enfiou as mãos nos bolsos das calças. Nada mais. Não custou muito, pois não?
Mistress Fabrino. Ellen não perdeu tempo em iniciar o contra-interrogatório. Creio que a sua casa se situa no lado oeste da rua. O edifício Tudor da esquina?
Sim.
Diz a senhora que viu o Saab cinzento do doutor Wright rolar para sul. Isso significa que o condutor se encontrava no lado do carro mais afastado de sua casa.
Bem... sim.
E nevava fortemente nessa tarde, salvo erro?
É verdade. A neve caía mesmo a potes, por assim dizer. Era por isso que estava enervada. Ouvi dizer pela rádio que as estradas se apresentavam muito difíceis.
Por conseguinte, com a queda abundante de neve e o condutor do lado oposto à sua janela, quando diz que viu o doutor Wright passar no carro, conseguiu certificar-se de que se tratava dele?
Bem... Annette hesitou. Na verdade, não. Acho que o vislumbrei apenas.
Sabia que se tratava da viatura dele?
Sim. Não há outra igual nas imediações.
Portanto, parece razoável que depreendesse que era ele que o conduzia disse Ellen, com aparente desprendimento. Mas pode afirmá-lo, sem margem para qualquer dúvida?
A testemunha parecia tudo menos capaz de fazer semelhante afirmação e olhou em volta, como se procurasse um ponto de apoio. Quando tentou fixar a vista em Costello, Ellen interpôs-se, a fim de impedir este último de indicar a Annette, por meio da sua linguagem corporal, que o estava a trair.
Bem, pensei que era ele acabou por admitir.
Mas pode jurá-lo?
Não.
Não tenho mais perguntas declarou Ellen, com um sorriso de satisfação. Obrigada pela sua cooperação, Mistress Fabrino.
A defesa chama Todd Childs.
O oficial de diligências abriu a porta da sala do júri e Todd Childs fez a sua aparição. Costello lograra a habilidade de o manter em segredo no edifício do tribunal durante o período do almoço. E não fora o único truque de magia que conseguira. Transformara-o tanto, que Ellen teve de o olhar por um longo momento para o reconhecer. O rabo-de-cavalo desaparecera e agora usava casaco de xadrez abotoado e gravata. De rosto escanhoado e olhar desanuviado, dirigiu-se para o banco das testemunhas e prestou juramento.
Diga uma coisa a este tribunal, Todd. Estava com o doutor Wright no serão do dia doze?
Sim, estava. O interpelado baixou os olhos para as calças novas e fingiu que retirava um vestígio de lã. Na cave do Edifício Cray. Revíamos uns dados que tínhamos compilado no ano passado e procurávamos correlações em estudos anteriores.
Nas declarações que prestou à Polícia a vinte e quatro de Janeiro, disse que foi ao cinema, nessa noite.
Childs lançou uma olhadela rápida a Costello, depois a Wright e de novo para as calças.
Fiz confusão. De facto, fui, mas à última sessão e não à primeira.
A que sala foi?
À do centro comercial de Burnsville.
Tinha ouvido falar do rapto do Josh Kirkwood?
Não.
No sábado, vinte e dois, a agente O’Malley passou pelo gabinete do professor Priest, quando você se encontrava lá. É verdade?
Sim.
Depois de ela se retirar, o doutor Wright pareceu apreensivo ou excitado?
Não.
Falou de a seguir ou dirigir-se à residência do Christopher Priest?
Não.
Disse alguma coisa sobre o rapto do Josh Kirkwood? Todd inclinou a cabeça com veemência.
Sim. Disse que era lamentável, porque pertencia a uma família muito simpática.
Costello deu meia volta com um gesto gracioso.
A testemunha é sua, Miss North.
Ellen aproximou-se do banco das testemunhas com as mãos unidas na sua frente, como se rezasse, e uma expressão pensativa.
Conhece o doutor Wright de longa data, não é assim, Tood? Desde que começou a frequentar a Universidade Harris, salvo erro.
Ele olhou-a pelo canto do olho, com desconfiança.
Exacto.
Sempre desejou frequentar o curso de Psicologia.
É verdade.
E o doutor Wright não era apenas um professor para si, creio. Digamos mais um conselheiro, um mentor.
Sim.
E um amigo?
Respeito-o muito revelou, com um olhar duro.
É uma coisa admirável.
Porque é um homem admirável.
Poucos homens admiráveis são acusados de rapto e agressão.
Meritíssimo! exclamou Costello.
Não me obrigue a tornar a avisá-la, Miss North advertiu Grabko, friamente.
Peço desculpa, Meritíssimo disse Ellen, num tom que desmentia as palavras, sem desviar a atenção da testemunha. Diz que respeita e admira o doutor Wright. Até que ponto? O suficiente para mentir?
Não!
Objecção!
Deferida.
Onde foi ao cinema naquela noite, Todd? perguntou, sem abrandar um miligrama do ímpeto.
Já o disse. Ao do centro comercial de Burnsville.
De Burnsville? Fingiu-se perplexa. Transpôs toda essa distância para ir a uma última sessão numa quarta-feira à noite e tinha-se esquecido durante as suas declarações à Polícia?
Disse que fui ao cinema.
Muito bem. Nesse caso, foi o facto de ter estado com o doutor Wright na altura do rapto que esqueceu? Ou esqueceu-se de que alega que foi ao cinema de Burnsville, porque é um nome que não vem mencionado nas suas declarações originais?
Não me pareceu importante.
Até que a Polícia tentou confirmar a sua versão nos cinemas de Deer Lake acusou, com veemência. Tem um GPA três ponto oito cinco na Harris, não é verdade?
É.
Nesse caso, julgo podermos assumir que conhece o significado e ramificações de perjúrio...
Costello ergueu os braços ao céu.
Isto excede todos os limites, Meritíssimo.
Mude de tom, Miss North.
Decerto, Meritíssimo disse ela automaticamente, continuando a não desviar os olhos do depoente. Onde tem estado nestes últimos dias, Todd?
Objecção.
Deferida.
Sabia que a polícia de Deer Lake o procurava?
Objecção. Não há relevância nisto argumentou Costello, pondo-se de pé.
É relevante para a credibilidade da testemunha, Meritíssimo. Se ela tem estado escondida, para evitar...
Grabko utilizou o martelo, enquanto as faces se tornavam avermelhadas acima da barba.
Não persista nessa linha, Miss North. Ellen abriu as mãos.
Lamento, Meritíssimo, mas a testemunha forneceu declarações em conflito à Polícia e a este tribunal. É extremamente parcial em relação ao arguido e...
Já vincou o seu ponto de vista, Miss North. Inclinou a cabeça em assentimento e começou a afastar-se do banco das testemunhas.
Não tenho mais perguntas.
Childs principiou igualmente a retirar-se, mas foi interceptado por Mitch Holt e um polícia uniformizado.
Que raio?... começou ele, sacudindo o braço que o agente lhe segurava.
Costello levantou-se com prontidão.
Meritíssimo, isto é um desaforo!
A assistência interrompeu o seu silêncio, enquanto a agitação no corredor prosseguia e os repórteres subiam para as cadeiras, a fim de poderem ver melhor. O oficial de diligências transpôs a cancela, ao mesmo tempo que Mitch e o agente Stevens seguravam Childs e o conduziam para a porta, com Grabko a destruir mais um martelo atrás deles.
Este último apressou-se a convocar os advogados mais uma vez. Ellen colocou-se junto de Costello, enquanto sentia a cólera emanar dele em vagas sucessivas, ao mesmo tempo que a acusava de transformar a audiência num espectáculo de circo.
Não acha que está a ser um pouco paranóico, doutor Costello? retrucou ela, calmamente. A Polícia procurava o Todd Childs há vários dias para o interrogar sobre aquele assalto. Como não o conseguiram encontrar, decerto aproveitaram a primeira oportunidade que se lhes deparou.
Em pleno tribunal? uivou ele, prestes a perder as estribeiras.
Também não apreciei o espectáculo, Miss North interveio Grabko, com uma expressão grave. Hei-de conversar com o chefe Holt a esse respeito.
Devia ser afastado das investigações volveu Costello. O conflito de interesses é óbvio.
O assunto não faz parte desta audiência lembrou Ellen.
Recomendo-lhe pela última vez, Miss North, que se abstenha de pretender usurpar-me as funções persistiu o magistrado. E, agora, queiram regressar aos seus lugares, para que reatemos os trabalhos de uma forma civilizada. Queira chamar a testemunha seguinte, doutor Costello.
Quando regressavam às respectivas mesas, a porta ao fundo da sala abriu-se e foi transposta por um homem de meia-idade e cabelo preto liso, que transpôs o corredor central, com um sobrescrito na mão enluvada. Em seguida, entregou-o a Dorman, com o qual trocou algumas palavras a meia voz. Por fim, o olhar de Costello assumiu uma expressão brilhante, ao mesmo tempo que proferia:
A defesa chama Karen Wright.
Esta instalou-se serenamente no banco das testemunhas, e Ellen perguntou-se se o ar calmo que exibia se deveria à intervenção de alguma droga. Fixou os olhos quase arregalados em Costello e aguardou pacientemente que iniciasse o interrogatório.
Antes de mais, Karen, quero agradecer-lhe ter vindo depor principiou ele, com particular amabilidade. Sei que isto é difícil para si. Os últimos dias têm sido penosos,
não é verdade?
Nem imagina. Ela aproximou o lenço dos olhos para recolher uma lágrima que ainda não aparecera. Simplesmente horríveis. Nunca pensei... Interrompeu-se e cerrou as pálpebras durante um momento. Detestáveis.
Há quanto tempo casou com o doutor Wright?
Parece que estamos unidos desde sempre foi a resposta, com um leve sorriso de nostalgia. Dezasseis anos.
E, durante todo esse período, o seu marido alguma vez teve problemas com a lei?
Nunca. Abanou a cabeça, ao mesmo tempo que torcia o lenço no regaço. Nem sequer uma autuação por infracção das regras do trânsito. É um homem muito cuidadoso. Não devia ter sido detido. Nada disto devia ter acontecido.
Alguma vez o ouviu dizer mal dos Kirkwood?
Não. Nunca.
E a senhora?
Considerava-os amigos.
Na verdade, prestou-lhes apoio moral durante o desaparecimento do Josh, não é assim?
Fiz companhia à Lily. Assomou uma lágrima a cada olho. É tão querida... Adoro bebés. O Garrett e eu não podemos ter filhos acrescentou, voltando a baixar os olhos para o regaço, como se o facto fosse vergonhoso.
Onde estava na noite de doze? perguntou Costello, bruscamente, empenhado em a desviar de águas perigosas.
A trabalhar. Exerço as funções de secretária a tempo parcial da Seguradora Rural do Estado de Halvorsen do Complexo Omni.
Trabalha com frequência à noite?
Bem... não. Ela fechou os olhos e respirou fundo.
Trabalhava, naquela noite?
Brotou-lhe um som estranho do fundo da garganta e começou a embalar-se, ao mesmo tempo que as lágrimas reapareciam, agora mais abundantes.
Não é justo gemeu. Não está certo...
Karen murmurou Costello. Responda à pergunta, por favor. É muito importante. Encontrava-se no Complexo Omni, naquela noite. Estava a trabalhar?
Ela olhou-o, com uma expressão atormentada no rosto atraente. Em seguida, esquadrinhou a assistência com a vista, que fixou em alguém e acabou por imobilizar no marido, sem que ele parecesse dar-se conta do facto.
Desculpe sussurrou, baixando finalmente os olhos para o regaço. Tenho tanta pena... Não, por favor...
Karen insistiu Costello. Tem de responder à pergunta.
Ela lançou a bomba com uma inflexão tão ténue, que todos os presentes tiveram de apurar os ouvidos.
Fiquei até mais tarde, porque... tinha uma ligação com o Paul Kirkwood.
A confissão atingiu Ellen como uma onda de choque. Entre a assistência, estabeleceu-se profunda agitação, com a voz de Paul Kirkwood a sobrepor-se às outras.
Isso é falso! Diabos o carreguem, Wright! Foi você que a preparou para isto! Há-de pagar-mas, seu filho da mãe!
No entanto, a única coisa que acudia ao pensamento de Ellen era que alguém já pagara. Josh.
Assiste ao advogado o direito de provar que alguém cometeu o crime e não o seu constituinte recitou Dorman, que se levantara e colocara ao lado de Costello, como um sicário ansioso por ajudá-lo.
Este último sentara-se numa das cadeiras das instalações de Grabko, com o sobrescrito na mão. Ellen sentia os seus olhos fixos nela, calmos, penetrantes.
É uma campanha de difamação inconcebível! vociferou a advogada, que permanecia sentada com dificuldade, em virtude da indignação crescente. Não passa de uma tramóia de um raio!
Não permito essa espécie de linguagem nos meus aposentos, Miss North! lembrou o magistrado, com uma mirada incisiva.
Os manejos do doutor Costello não se podem admitir, Meritíssimo. Bradam aos céus!
Grabko sugerira que recolhessem ao seu gabinete, antes que a situação se tornasse imparável na sala, pois o pandemónio na galeria ameaçava explodir como um balão picado por um alfinete.
As aventuras de natureza sexual do Paul Kirkwood estão totalmente fora desta audiência continuou Ellen, voltando-se para Costello. No entanto, se aquilo corresponde à verdade, proporciona ao seu cliente um motivo alheio ao do mal.
Pelo contrário replicou o outro, friamente, o motivo transfere-se para o Paul Kirkwood.
Explique-se melhor.
Segundo pensamos, o rapaz descobriu o tinhoso segredo do pai, que resolveu fazê-lo desaparecer da circulação como um meio de matar dois coelhos de uma cajadada: calar o garoto e afastar do caminho o rival nos afectos da Karen.
Porque havia de ficar por aí? tornou ela, com sarcasmo. Não seria ele que estava emboscado de arma em punho no dia do assassínio de Kennedy?
As tiradas cáusticas não são para aqui chamadas salientou Grabko.
Desde que não constituam um disfarce da defesa murmurou Ellen, que estremeceu em seguida, quando Cameron a beliscou sub-repticiamente no braço.
Mistress Wright está disposta a declarar que tinha relações íntimas com o Paul Kirkwood num gabinete desocupado do Complexo Omni na noite em que o Josh desapareceu anunciou Costello. O Paul devia encontrar-se com ela às seis e quarenta e cinco e só apareceu depois das sete, mostrando-se incapaz de explicar o atraso e parecendo extremamente agitado.
Isso é o que a esposa do seu cliente diz. Acho absurdo o próprio facto de ter sido chamada a depor.
O seu testemunho estabelece o cenário, Meritíssimo. O Paul Kirkwood é suspeito desde o princípio. Não tem qualquer álibi para o período do rapto, tinha um ponto comum com a carrinha pertencente ao Olie Swain, que pode ter sido seu cúmplice. Mentiu repetidamente acerca dessa viatura. Nas suas declarações às autoridades, a testemunha de Ryan’s Bay explicou que o homem que passou por sua casa procurava o cão do filho, que chamava pelo nome. Quem garante que não se tratava do próprio Kirkwood?
Qualquer pessoa com dois átomos de sensatez. Se se recorda, essa testemunha identificou o seu cliente na respectiva parada.
Identificou um homem de parka e óculos escuros.
Reconheceu-o pela voz.
O Paul Kirkwood não figurava na parada de identificação. Ela fez o melhor que pôde. Tanto quanto sabemos, o Kirkwood pode ter disfarçado a voz. Tentava atribuir o acto ao doutor Wright...
Então, porque não se apresentou como sendo o Garrett Wright? interpôs Cameron. Porque se envolveria? Esta teoria faz sentido.
Pois eu acho que há margem para dúvidas declarou Costello com um impecável encolher de ombros. A Polícia foi ao ponto de lhe recolher as impressões digitais.
Para fins de eliminação argumentou Ellen.
Você conhece perfeitamente a diferença entre o que a Polícia diz e o verdadeiro significado das suas palavras.
Há dois dias, considerava os agentes da autoridade estúpidos ao ponto de não serem capazes de atar os cordões dos sapatos. Agora, acha que todos os seus actos obedecem a uma ideia preconcebida.
Falta ainda a questão da detenção lembrou Cameron.
Que se explica facilmente, se o Kirkwood tinha em mente incriminar o doutor Wright asseverou Costello. Os cabelos no lençol e no gorro de malha aplicavam-se sem dificuldade. Sugiro que se solicite a Mister Kirkwood que forneça algumas amostras dos seus.
Seguiu-se um breve silêncio, que Ellen acabou por cortar.
O Paul Kirkwood não está a ser julgado aqui proferiu, com serenidade forçada. Foi investigado e eliminado como possível suspeito, Meritíssimo. Parece existir uma ligação directa entre o rapto do Josh Kirkwood e o assassínio do Dustin Holloman. Na verdade, o caso Holloman tem sido utilizado para desafiar as autoridades de tal modo que o Wright pareça inocente. Se o Paul Kirkwood é o vilão da fita e procura fazer com que o Garrett Wright sofra as consequências, isso não faz sentido. Temos de prosseguir com a audiência, tratar de tirar as nossas conclusões, com base nos elementos de que dispomos. Ora, eles apontam claramente para o doutor Wright e um cúmplice que ainda não foi detido.
Grabko franziu os lábios e afundou um dedo na barba, como se procurasse uma carraça.
O caso Holloman está fora do âmbito desta audiência. O Paul Kirkwood relaciona-se directamente com o problema diante de nós. Embora não aprove inteiramente o seu método para expor o possível envolvimento do Paul Kirkwood, doutor Costello, isto é uma audiência preliminar e não um julgamento, e sinto-me inclinado para lhe permitir um mais largo campo de acção. Aliás, é a verdade que procuramos.
Sem a menor dúvida, Meritíssimo assentiu Costello, com uma expressão grave.
Às vezes, perdemos de vista o objectivo final no sistema do nosso adversário acrescentou o juiz. A ambição ofusca-nos os motivos mais puros. Fez uma breve pausa. Bem, ouçamos o que Mister Wright tem para nos dizer.
Costello aguardou que todos se tivessem levantado das cadeiras para voltar a falar.
Antes de continuarmos declarou, erguendo o sobrescrito entre os dedos, o meu associado, Mister York, trouxe um elemento que, segundo creio, incrementará a validade da nossa defesa. Com os gestos estudados de um ilusionista, abriu-o e extraiu uma gravação em microcassete. Tenho aqui a fita magnética do atendedor de chamadas do escritório do Paul Kirkwood, com mensagens da noite em que o filho foi raptado.
Como lhe foi parar às mãos? quis saber Ellen, quase rispidamente.
A explicação foi acompanhada de uma expressão de perfeita inocência.
Segundo tudo parece indicar, alguém a introduziu no receptáculo do correio do meu escritório. Anonimamente, claro.
Claro que sim...
Ouviu o conteúdo, doutor Costello? perguntou Grabko.
Não, Meritíssimo. No entanto, a minha assistente, Miss Levine, escutou-o e considerou-o suficientemente importante para me enviar a cassete para aqui. Sugiro que a oiçamos concluiu o advogado, pousando a cassete na secretária do magistrado.
Ellen sentia-se como se a houvessem atingido com um martelo-pilão. O tanas era que ele não a ouvira! Estava plenamente convencida de que Tony Costello conhecia exactamente o conteúdo e estava convencido, sem margem para qualquer dúvida, de que lhe permitiria marcar alguns pontos importantes.
Tenho de objectar, Meritíssimo aventurou ela ainda.
Não havia a menor alusão a esta gravação entre os elementos preparatórios da presente audiência. Não fazemos a mínima ideia da sua proveniência, de como foi obtida, quem supostamente a enviou ou a natureza dos seus motivos.
O doutor York já teve oportunidade de entrar em contacto com duas das pessoas cujas vozes figuram na gravação, Meritíssimo informou Costello. Confirmaram ter efectuado as chamadas em causa na noite de doze.
Escutemo-las decidiu Grabko, pegando na cassete. Depois verificaremos se a sua validade é admissível.
Sempre eficiente, o Dr. Dorman extraiu da algibeira do casaco um leitor de cassetes, que estendeu ao juiz.
A primeira coisa que ouviram foi ruído de fundo, em que se distinguia o som de um motor, até que surgiu uma voz, que se cravou no coração de Ellen como uma agulha.
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.
O som da voz do filho vibrava na cabeça de Paul repetidamente, como acontecia ao longo das últimas três semanas. Uma interminável mescla de inocência e acusação varria o cérebro como uma garra.
E, sobreposta, a de Mitch Holt, baixa e tensa.
Em que diabo está a pensar, Paul? O Josh telefonou-lhe a pedir ajuda, que diabo! Nem sequer se dignou responder. Fingiu que não tinha ouvido. Conservou o raio da gravação durante três semanas e não disse uma única palavra. Como explica isso?
E, por cima disso, a voz glacial de Ellen North.
A defesa está a construir um caso contra si, Mister Kirkwood. Não estou muito certa de que não o devesse fazer eu. Mentiu à Polícia. Ocultou informação...
Atribuiu as culpas à Hannah disse Holt. Durante todo este tempo, concentrou a culpa sobre a cabeça dela. Filho da mãe! Nunca teve coragem para se erguer e dizer a verdade.
A verdade libertá-lo-á.
E a verdade arruiná-lo-ia.
Ele não podia acreditar que aquilo lhe estava a acontecer. Depois de tudo por que passara. Depois de tanto que sofrera. Agora, aquilo. Traição pela única pessoa que julgara que o amara. Karen.
Era incompreensível pensar que ela se voltaria tão completamente contra ele. Ela amava-o. Queria ter os filhos dele. O casamento com Wright não passava de uma farsa, como ela própria dissera mais de uma vez. Ele não lhe podia dar o que ela desejava, o que ela queria. Apenas amava o seu trabalho e não a esposa.
Paul estremeceu ao recordar aquele momento na sala do tribunal. Todos os olhos se haviam voltado para ele, ávidos, acusadores. O diabo que levasse todos. Desejavam Hannah para sua heroína desde o princípio. A mãe amargurada, assolada pela culpa. Hannah, de tranças douradas e trágicos olhos azuis. Hannah, a médica dedicada, a mulher do ano. Hannah, Hannah, Hannah.
Agora, voltar-se-iam para ela com simpatia e ele constituiria o bode expiatório. Nunca lhe perguntariam o que o levara a abandonar o lar. Nunca quereriam ouvir que ela não era qualquer espécie de esposa, ignorava os filhos em favor da sua preciosa carreira e esforçara-se por o emascular.
Ele tentara chegar até ela antes que os outros conseguissem, mas rodeavam-no todos, com perguntas acutilantes, e depois seguiam-no no carro, sem um momento de tréguas.
Agora anoitecera. A imprensa devia ter visitado a casa e ido embora muito tempo atrás. Hannah não lhes fornecera nada no passado uma única entrevista, uma foto, quando o sacerdote a ajudava a entrar no centro de voluntários da cidade. Paul tinha de pensar que ela tornaria a evitá-los, mesmo que significasse renunciar a uma oportunidade de o humilhar publicamente. E os repórteres chamar-lhe-iam nobre e sofredora e pintá-la-iam como a bondosa mulher traída. A ideia revolvia o estômago de Paul.
Ele rolou ao longo de Lakeshore, através da área que escolhera pelo seu prestígio, em direcção ao lar que desejara, com a vista do lago e parque. Tratava-se do género de vista que ambicionara desde a juventude. Agora, acabaria por ser o de Hannah. Ela obteria a simpatia e a casa. A ironia era tão amarga como bílis.
Quando passava diante da residência de Wright, teve de lutar para prosseguir para além da sua própria porta. Teria gostado de ver a expressão do rosto de Karen, ao enfrentá-la.
Amo-te, Paul... Eu teria o teu bebé... Faria tudo por ti.
Excepto mentir no tribunal.
Podia ter-lhe fornecido um álibi. Ao invés, fazia o mundo inteiro desabar-lhe na cabeça. Bonito amor...
Mulheres. Cabras, todas elas. O desmoronar da sua existência. A sua mãe, Hannah, O’Malley, Ellen North... Karen.
Fiquei até mais tarde, porque tinha uma ligação com o Paul Kirkwood.
Tinha. Pretérito.
Amo-te, Paul... Eu teria o teu bebé, Paul... Faria tudo por ti... Tenho muita pena... Foi um erro...
Um erro.
Deus sabia que ele cometera muitos, o menor dos quais decerto não fora conservar a maldita cassete.
Sabemos que o telefonema aconteceu antes das seis e um quarto, Paul. Estava lá? Ouviu-o? Onde foi quando saiu do escritório? Porque não podemos encontrar ninguém que confirme essa história? Porque não nos falou do telefonema, Paul? Como se explica que deixasse a Hannah arcar com as culpas?
Porque a culpa fora dela. Inteira. Se ela cumprisse o seu dever... se estivesse presente para ir buscar o filho... se fosse uma esposa como devia ser...
A culpa era a última emoção que Hannah desejava sentir. Havia semanas que se afogava nela. Uma culpa de mãe composta por uma sensação de insucesso de uma doutora, porque o paciente que a retivera no hospital nessa noite também se perdera. Mas o que sucedera essa noite era diferente, mais fútil, menos merecido.
Teria ela podido ser uma esposa melhor, uma amante melhor, mais apoiante, menos crítica? Que fizera para levar Paul a odiá-la tanto? Porque se voltara ele para Karen Wright?
As perguntas enfureciam-na. Havia outras mais importantes para fazer. Paul encontrava-se no seu escritório quando Josh telefonara, naquela noite? Porque se fartara ele de mentir... sobre a carrinha, sobre tantas coisas? Porque se mostrava Josh tão aterrorizado diante dele? Porque parecia um estranho? Estaria envolvido em todo o horror que ocorrera nas últimas três semanas? Talvez fosse porque as possíveis respostas a essas perguntas a aterrorizavam tanto, que deixava as outras treparem à mente e distraírem a atenção. Irritavam-na por as conceber, mas não tornavam o marido um monstro.
Acha que o seu marido raptou o Josh?
Pensa que matou o Dustin Holloman?
Ele tinha acesso a uma carrinha...
Sabia do assunto?
Maldito sejas, Paul murmurou ela. Retirou as mãos da água com sabão, pegou na toalha da loiça e pousou-a no rosto.
Ela não sabia se poderia aguentar muito mais. A alvorada trouxera a notícia do assassínio de Dustin Holloman e, com ela, um alívio terrível que era o facto de haver morrido o filho de outrem e não o seu. Josh parecia mais retraído que nunca, mas continuava com ela, fisicamente. E, enquanto o tivesse consigo, haveria esperança. Houvera depois a notícia do tribunal. Não de Mitch ou Ellen North, mas dos repórteres que tinham acudido à casa a exigir respostas, como se lhes devesse alguma coisa por todo o inferno que haviam provocado.
Podemos obter uma reacção sua sobre a ligação adúltera do seu marido com a esposa do homem que está a ser julgado por ter raptado o seu filho?
Se ficara abalada anteriormente, agora sentia-se totalmente arrasada. E, mais uma vez, voltara-se para Tom McCoy.
Meu Deus, Hannah, já nem sequer lhe chamas padre. Ela recordava-se vagamente do título, quando conversavam, porque não o queria preocupar ou comprometer a sua amizade. No entanto, no âmago do coração, habituara-se a não o encarar como seu sacerdote. A necessidade que sentia da sua companhia, do seu apoio, do seu conforto, era muito mais forte do que isso.
E as pessoas pensam que Paul é desonesto por me enganar. Que pensariam se soubessem que me apaixonei por um padre?
É claro que ninguém o saberia jamais, sobretudo o próprio Tom. Era um amigo demasiado bom para perder. Quando chegara a notícia do tribunal, ela telefonara-lhe. Ele acudira e afastara a imprensa, obrigara-a a comer canja de galinha e lera histórias às crianças. Sentara-se com ela no saco-cama do quarto de Josh, enquanto este adormecia, após o que a convencera a sair de lá, para ir repousar.
Percorria-a uma profunda ansiedade, angústia, que a obrigava a fechar os olhos, numa tentativa para a neutralizar. Porventura não suportara o suficiente, sem ter de se enamorar de um homem que nunca poderia ser seu?
O som da porta da garagem para a lavandaria arrancou-a do período de autocomiseração. Um alucinado instinto primário levou-a a voltar-se para a faca de trinchar em cima do balcão. O assassino de Dustin Holloman continuava à solta. Quem poderia garantir que não tornaria a atacar para eliminar Josh? Se o garoto conseguisse identificá-lo...
A porta da cozinha abriu-se e Paul fixou o olhar na faca que ela empunhava.
Suponho que posso adivinhar o que gostarias de fazer com isso murmurou.
O pânico irrompeu por instantes e atenuou-se, deixando uma ponta de amargura na sua esteira. Hannah pousou a faca, enquanto dizia:
Não mereceria a pena.
A imprensa estranhou que eu te enganasse observou ele, com uma risada seca.
Curiosamente, a confissão de culpa magoava mais proveniente da boca de Paul. A mesma boca que jurara amor e fidelidade. Ela beijara aqueles lábios com paixão, amara o seu sorriso, preocupara-se com o seu franzir. Tinha proferido mentiras e beijado outra mulher.
Ela queria lançar-se-lhe em cima, puni-lo, mas, quando abriu a boca para falar, o desejo de lutar extinguiu-se.
Eu amei-te murmurou, sabendo imediatamente que não era verdade. Amara outro, não o homem amargurado, encolerizado. O que aconteceu, Paul? O que se passou contigo?
Comigo? estranhou ele, incrédulo. Se tivesses concedido um pouco de atenção a outra coisa além da tua carreira, nos últimos anos, talvez não precisasses de perguntar.
Ela abanou a cabeça.
Não, Paul. Não é do meu trabalho que se trata. Por uma vez, é acerca de ti que tudo se move. Voltaste-me as costas, em favor de outra mulher. Foste tu que efectuaste essa escolha. Tínhamos algo de maravilhoso e deitaste-o fora.
Pois, atribui-me as culpas disse ele com impaciência, desviando os olhos dela.
Tenho de tas atribuir replicou Hannah, com veemência. Gostava era de saber até que ponto o devo fazer.
Que diabo queres dizer com isso?
Que o Josh te telefonou naquela noite e não fizeste nada.
Tinha saído...
Mas ninguém sabia onde estavas. Era com ela”? Apontou o dedo acusador na direcção da casa dos Wright. Quando eu andava de um lado para o outro, como uma louca, estavas a fornicar com a Karen Wright? Num momento em que o teu filho precisava de ti?
Era a tua noite de...
Não! Não me culpes. Eu tentava salvar uma vida e tu mantinhas relações íntimas... ou pior. E mostraste o desplante de depositar toda a culpa no meu regaço, como se não tivesses feito nada de mal, nem me tivesses mentido e à Polícia e feito só Deus sabe que mais!
A implicação atingiu-o com dureza. A defesa está a organizar um processo contra si, Mister Kirkwood.
Eu nunca faria mal ao Josh insistiu.
Então, porque não quer que te aproximes dele?
Não acredito que penses que fui eu que o raptei!
Porquê? Mentiste quanto a tudo o resto!
A defesa está a organizar um processo contra si, Mister Kirkwood.
A imprensa concentrava-se nele. A acusação olhava-o com desconfiança crescente. Agora, aquilo. Santa Hannah a julgá-lo implacavelmente. Ela era de ouro e ele nada, ninguém. Naquele momento, odiava-a o suficiente para a desejar morta.
Cabra! A explosão brotou sem contenção possível. Hannah viu o impacte iminente. O dorso da mão atingiu-a no queixo e fez a cabeça voltar-se bruscamente para o lado. Nunca em toda a vida havia sido agredida por razão alguma.
Não, Paul! exclamou Tom McCoy, irrompendo na cozinha e vendo que havia indícios de a agressão prosseguir.
No entanto, como não fosse obedecido, interpôs-se e socou-o com violência, obrigando-o a cair de joelhos.
Porque veio aqui? inquiriu, olhando-o na expectativa. Não acha que já fez mal bastante?
O interpelado levantou-se lentamente, ao mesmo tempo que passava os dedos pelos lábios.
Vim buscar as minhas coisas.
-Não há nada para si nesta casa. Saia!
Não pode expulsar-me do meu próprio lar.
Isto já não é o teu lar interpôs Hannah. Acabas de renunciar a todos os direitos. Põe-te na rua, antes que chame a Polícia.
Paul desviou os olhos dela para o padre Tom, que usava uma espessa camisola de lã, calça de belbutina e botas.
Estou a compreender murmurou, com um sorriso sarcástico.
Em seguida, pegou na toalha da loiça de cima do balcão e passou-a pela boca.
Mandarei entregar as tuas coisas no escritório prometeu ela.
Apoiou-se ao frigorífico, enquanto o marido se retirava, recusando olhar para ele, até que a porta se fechou atrás de si.
Está bem? quis saber Tom, aproximando-se e estendendo as mãos.
Não... começou Hannah.
Ele tomou-a nos braços, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e acariciou-lhe o cabelo. O amor que lhe devorava o íntimo era o mais puro, o mais intenso que jamais conhecera. Amava-a de uma maneira que significava que faria tudo por ela, seria tudo por ela. Não descortinava nada de censurável nisso.
Não compreendo murmurou Hannah. Tínhamos uma vida agradável. Porque deu de tal modo para o torto?
Ele não podia partilhar a explicação que lhe acudia: Para me poderes amar. Não sabia se se tratava da vontade de Deus ou apenas da sua.
Não ignorava o que o bispo lhe diria: não passava de um teste à sua fé e ao seu dever para com a Igreja. A ideia de que o Criador podia utilizar as pessoas desse modo, como peões de uma partida de xadrez, incitava-o à rebelião.
Lamento, Hannah murmurou. Daria tudo para alterar a situação.
Quero apenas afastar-me. Pegar nas crianças e ir para um lugar novo e limpo e começar de novo.
Eu sei.
Iria comigo? Dava-me jeito um amigo, quando lá chegasse.
No entanto, quando ela o fitou, viu a verdade desenhada no rosto. Uma verdade que não carecia de palavras. Uma verdade que falava ao seu abalado coração. Uma verdade que ele selou com um beijo. Um beijo muito terno, muito doce. Cheio do género de promessas que ela queria recolher com ambas as mãos e utilizar como escudo contra um futuro incerto.
Ao invés, pousou a cabeça no ombro dele e conservaram-se assim durante um longo momento, perguntando-se intimamente qual seria o seu passo seguinte.
E agora? perguntou Cameron.
Tinham-se reunido no Gabinete de Guerra do centro de exercício da lei, onde a linha do tempo de tudo o que acontecera nas três últimas semanas se prolongava em todo o comprimento da parede.
Temos de analisar melhor o Paul Kirkwood disse Wilhelm. Verificar se conseguimos situá-lo no lugar e hora errados. Confiscar o seu registo de chamadas telefónicas. Verificar...
E o suspeito de que dispomos? cortou Mitch, irritado. O nosso homem é o Garrett Wright.
Mas a gravação...
Não prova absolutamente nada.
Como pode dizer isso? O garoto telefonou...
E o Paul estava ocupado.
Mas a amante não pode confirmar a hora.
E para que conservaria ele essa gravação? perguntou Cameron.
Culpado disse Mitch, simplesmente.
Pois é acudiu Steiger em torno do palito que mordia. Daquela espécie de culpa que vem com uma sentença para um hotel do estado.
Não diga parvoíces retrucou Mitch. Se o Paul fosse culpado do rapto do Josh, livrar-se da gravação seria uma das suas prioridades. Nunca teria ido a casa da Ruth Cooper para dizer que procurava o raio do seu cão.
A menos que seja louco.
Wilhelm parecia um cachorro com um brinquedo novo para mordiscar.
E há a ligação com a carrinha. E a reacção do miúdo. E...
E eu tenho um homem à minha espera no tribunal, amanhã lembrou Ellen, quase com rispidez. Construímos um processo contra o Garrett Wright, que foi capturado pelo Mitch. A nossa antiga testemunha identificou-o. Que diabo fazem vocês para me ajudar a levar o Garrett Wright a julgamento?
Wilhelm franziu os lábios e baixou os olhos para o seu café.
Ele não podia ter raptado o Dustin Holloman.
Não estamos a tratar desse volveu ela. Não duvido de que você adorava meter todos os crimes no mesmo embrulho e andar para a frente, mas as coisas não funcionam assim. Concentrámos o nosso foco no Wright e num cúmplice. Já lhe passou pela cabeça, agente Wilhelm, que eles querem precisamente que nos voltemos para o Paul Kirkwood?
Mas temos de explorar todas as pistas, Miss North. Pedi a Mister Stovich que obtivesse mandados de busca de casa e do escritório do Paul Kirkwood, além de um compartimento que ele tem alugado num depósito pessoal, na parte sul da cidade. Trataremos de os utilizar ainda esta noite, se os recebermos a tempo. À luz do material dessa gravação, eu diria que olhámos para o outro lado demasiado tempo, no que se refere ao Paul Kirkwood.
Ellen não encontrou argumentos para contrapor. Por muito que lhe custasse ver a investigação rumar noutro sentido, tudo indicava que não lhe restava qualquer alternativa. Costello falara da cassete à imprensa e a Polícia via-se compelida a actuar nessa conformidade.
Acompanha-os? perguntou, por fim, a Cameron.
Com certeza.
Em seguida, voltou-se para Mitch.
Conseguiu alguma coisa com o Todd Childs?
Fui ameaçado com um processo por detenção sem motivo.
Fingiu-se surpreendida.
Ele deu a impressão de que se considerava detido?
Um simples mal-entendido disse Mitch, impassível. Acalmou-se, depois de lhe oferecermos uma chávena de descafeinado.
E, de caminho, obter as suas impressões digitais na chávena.
Estão a examiná-las neste momento. Se conseguirmos situá-lo no escritório do Enberg, disporemos de uma excelente alavanca para solucionar esta trapalhada.
Quando se saberá o resultado?
Dentro de dois dias.
A audiência preliminar deve terminar amanhã antes do almoço lembrou Cameron. O Grabko pode pronunciar o veredicto ainda durante a tarde.
Precisamos de uma réstia de sorte, meus senhores disse Ellen. E tem de ser esta noite.
Steiger levantou-se lentamente. Retirara a fita adesiva do nariz, mas a escoriação persistia, prolongando-se pelos malares como pintura de guerra.
Há sempre a possibilidade de o acusar mais tarde, se o resultado não chegar antes do veredicto.
Ela olhou-o, surpreendida.
E se ele não se meter no seu pequeno Saab e bater asas em direcção ao pôr do Sol, talvez o levemos a julgamento. Não quero correr esse risco. É indispensável retê-lo aqui. Amanhã.
Tenho homens a investigar todos os telefonemas relacionados com Campion informou Steiger, começando a dirigir-se para a porta e declarando a reunião terminada, pela parte que lhe dizia respeito. Não coloque as suas esperanças numa fasquia muito elevada.
Aproveitando a oportunidade, Wilhelm apressou-se a imitá-lo.
É verdade, xerife. Queria conversar consigo por causa desses telefonemas.
Ellen observou a dupla deserção com um misto de irritação e desespero. Se o plano de Wright consistia em dividir para conquistar, marcava pontos naquela tarde. A revelação da gravação do atendedor de chamadas de Paul Kirkwood actuava como uma cunha e dividia a sua equipa de um modo ainda mais decisivo que o rapto de Dustin Holloman.
Vá oferecer-lhes algumas sugestões, Cameron indicou, com um olhar significativo,
O advogado enfiou o sobretudo e saiu. Estabeleceu-se silêncio durante um momento, até que Ellen se voltou para Mitch.
Quer embarcar também no comboio dos que acham que eu devia ter pedido um adiamento ao juiz?
As probabilidades de essa viagem ser bem sucedida parecem-me pouco prometedoras.
Soltou um suspiro e desalento e virou-se para a linha do tempo, desejosa que brotasse de lá um pormenor elucidativo. O único nome que lhe despertava a atenção, e não muita, era o de Paul Kirkwood.
Paul possuíra a carrinha de Olie Swain, o molestador de crianças condenado. O exame da viatura não proporcionara nada de aproveitável. Paul dispunha de desculpas em vez de álibis. Não havia qualquer elemento inabalável contra ele. Procurara o filho incansavelmente sob temperaturas inferiores a zero graus o filho, que não lhe permitia que se aproximasse.
Que pensa realmente acerca do Paul?
O rosto de Mitch mostrava-se impávido, enquanto examinava igualmente a linha do tempo, com os olhos a pousar em cada anotação que mencionava Paul.
Como já referi mais de uma vez, muita gente gostaria que fosse ele o mau da fita. Não é muito conhecido, nem alvo de grandes simpatias. As pessoas acreditavam mais facilmente que alguém como ele ficou de repente com vários parafusos soltos do que um homem como o Garrett Wright ser um génio do mal.
Eu podia admitir isso, quando era o Josh que tinha desaparecido. Queriam manter a maldade numa única família. Mas como o podemos ligar ao Dustin Holloman? Não faz sentido.
Depende da forma como se desfia o rosário, doutora. Quem incrimina quem?
Não me diga que também começa a acalentar dúvidas.
Bem, a situação é a seguinte. Mitch enfiou os dedos entre os cabelos, que encimavam um rosto dominado pelo cansaço. No fundo, não creio que o culpado seja o Paul, mas posso deixar-me dominar excessivamente pela experiência. De qualquer modo, precisamos de aprofundar mais a possibilidade. Não estou demasiado entusiasmado com a execução daqueles mandados de busca, mas é uma coisa que se tem de fazer.
Mais tempo perdido a caçar gambozinos, na opinião de Ellen, enquanto Garrett Wright se reclinava na sua poltrona e sorria de satisfação e o cúmplice emergia e recolhia às sombras sem ser visto nem alvo da menor suspeita.
Faz-nos falta uma ponta solta que possamos puxar acabou por admitir. Como vai a Megan com o passado do Wright?
Por enquanto, nada. É um trabalho moroso. Se ele nunca foi apanhado até agora, deve ter deixado poucas migalhas soltas para recolher.
Não o podemos deixar safar-se com isto.
Fixou a atenção na entrada da linha do tempo correspondente a 22 de Janeiro. Agente O’Malley atacada e raptada. Suspeito capturado após perseguição a pé. Para ele, não passava de um jogo.
É a única coisa que lhe interessa: vencer o sistema, esquivar-se ao laço. Até nos forneceu elementos, para tornar o jogo mais interessante.
A ideia de ele poder vencer aterrorizava-a.
Num tópico relacionado informou Mitch, disponho de uma testemunha que pode ter visto o seu misterioso bombista, na manhã de domingo.
Uma testemunha? O rosto de Ellen iluminou-se. Quem?
Wes Vogler, um camionista que mora nessa área. Partia para uma viagem na manhã de domingo, quando viu um miúdo negro cruzar o parque de estacionamento de Pla-Mor, mas não ligou, porque duas famílias de negros se tinham mudado para lá recentemente. Quando regressou, hoje, inteirou-se da explosão e da hora, desconfiou e decidiu que nos devia informar.
Você acha que ele viu o Tyrell?
É uma hipótese. Ou deparou-se-lhe uma oportunidade de envolver um miúdo em apuros. O pescoço do Wes é um pouco para o vermelho. O nosso informador não está muito entusiasmado com a possibilidade de Deer Lake se tornar «cinicamente diferente».
Prepare uma parada de identificação de fotos. Se o Vogler o reconhecer, chamaremos o Tyrell para uma representação ao vivo.
Se conseguirmos encontrá-lo, pois desapareceu da circulação, nos últimos dias. A Polícia de Minneapolis mantém os olhos abertos nesse sentido.
Ellen enrugou a fronte, enquanto recolhia as suas coisas.
Não sei se me deva sentir aliviada ou recear pela vida.
O miúdo é um canhão à solta, mas de modo algum estúpido asseverou Mitch. Depois do dia de hoje, fica a saber que a situação se inclina a favor do Wright. Que lucraria em a molestar, doutora?
Nada reconheceu ela. Mas pode pensar que talvez se divertisse, de qualquer modo.
O apartamento de Megan O’Malley era o único no segundo andar. Jay bateu à porta e aguardou. Do outro lado, algo caiu no chão com um ruído abafado. A imprecação que o acompanhou foi breve e incisiva.
Quem é?
Jay Butler Brooks, minha senhora.
A porta abriu-se até onde a corrente de segurança permitia e ela cravou o olhar no escritor.
Vou ser breve e clara, Brooks declarou, secamente. Nada a comentar. Nada a comentar. Nadíssima a comentar.
Não sou um repórter.
Sei muito bem quem é. O que pretende?
Apresentar-lhe uma proposta.
Os olhos verdes dela semicerraram-se de desconfiança.
Sei que anda a explorar o passado do Garret Wright acrescentou ele. Gostava de a ajudar.
Não faço a menor ideia do que está para aí a dizer. Estou com baixa.
A Ellen North informou-se. Também me garantiu que me arrancava o coração pelas plantas dos pés, se eu traísse o segredo.
Megan olhou-o especulativamente em silêncio durante um momento, enquanto ponderava o que devia fazer.
Bem, talvez me arrependa.
Soltou a corrente, abriu a porta e fez sinal com a cabeça para que ele entrasse. Em cima da mesa da sala, havia pilhas de recortes de jornais e fotocópias de relatórios policiais. Mais ou menos a meio da desordem, encontrava-se um gato preto.
Desculpe a desordem murmurou ela, coxeando até uma cadeira, na qual se sentou pesadamente. As condições físicas não me têm permitido que proceda à arrumação habitual.
Há sempre prioridades reconheceu Jay, sentando-se na sua frente, enquanto o gato o olhava com indiferença.
Ouvi dizer que está a preparar um livro. Antes de seguirmos em frente, devo esclarecer que tenho uma aversão visceral aos oportunistas.
Não é essa a razão que me traz.
Ela soltou uma risada seca.
Quer participar na investigação, mas isso não tem nada de comum com o livro que lhe proporcionará alguns milhares de dólares, pois não? Poupemos tempo, Mister Brooks. Garanto-lhe que sei como o mundo funciona.
Não tenho a mínima dúvida a esse respeito, agente O’Malley. Uma mulher não atinge a sua posição na Polícia norteada apenas por princípios inocentes.
Pois não. A maioria de nós recorre ao sexo.
Tretas, minha senhora disse ele, com um sorriso polido. Conheço a sua folha de serviço. É excelente na sua profissão.
Não o nego. Mas que tem isso a ver consigo... se não anda a pesquisar material para a sua história?
Sei que pretende capturar o Garrett Wright.
Pregá-lo a uma cruz e colocá-lo de cabeça para baixo. E daí?
Posso ajudá-la. Tenho uma casa cheia de máquinas de escritório. Faxes, computadores com modem, multilinhas telefónicas, etc. Para aquisição de elementos das suas pesquisas, precisa de consumir muito tempo a consultar numerosas e variadas fontes. Eu elimino a entidade intermediária. Sou a sua cobertura. As suas pernas. As suas mãos.
Talvez, nos seus casos de ficção. Mas isto é a vida real. Os locais de aquisição tornam-se particularmente difíceis.
Não creio que seja bem assim. Por exemplo, o Costello começa já a levantar a voz sobre o conflito de interesses a respeito do Mitch Holt. Imagine como se manifestaria se descobrisse que a mulher desejosa de enviar o seu cliente para a prisão perpétua continua envolvida nas investigações. Pegava no que resta da sua carreira, agente O’Malley, cortava-a em pedaços muito pequenos e fazia-os desaparecer no esgoto, impelidos com champanhe.
Isso é uma ameaça?
Não. Limito-me a salientar que o meu envolvimento não seria de modo algum mais potencialmente perigoso que o seu. Pelo contrário, menos. De resto, as máquinas pertencem-me e não tenho laços pessoais no caso que nos interessa. Não há lei alguma que me impeça de investigar o passado de uma pessoa, desde que consultemos material público.
Ela ponderou o assunto durante alguns segundos, ao mesmo tempo que observava o interlocutor, o lia.
A Ellen sabe que veio aqui?
Não. Já tem problemas de sobra.
Não me satisfez a curiosidade. Se não é o seu livro que o faz mover, de que se trata?
Jay levantou-se e começou a percorrer a sala em pausado vaivém. Passados uns instantes, perguntou:
Quando viu a sua primeira criança assassinada?
Na segunda semana de uniforme informou Megan, sem hesitar. Tinha três anos, estrangulada pelo amante alcoólico da não menos beberrona mãe.
Eu vi a minha hoje.
Dustin Holloman. Ele fez deslizar os dedos pelas lombadas de alguns livros em cima da mesa, todavia, ela sabia que não lia os títulos. Tinha presente no pensamento o corpo de uma criança, da mesma maneira que lhe acontecia sempre que via surgir no seu o corpo daquela petiza de três anos, com todos os pormenores, apesar de decorridos mais de dez anos.
Vim a Deer Lake por razões pessoais. Razões egoístas, devo reconhecê-lo. Supunha que podia manter alguma distância emocional deste caso, mas verifiquei que não me era possível. Não quero ser aquele espécime que consegue permanecer confortavelmente afastado de semelhantes cenários pungentes. Quero ajudar. Preciso de o fazer. Cravou o olhar nela. Sabe o que é uma pessoa ter de se provar a si própria, mesmo que ninguém a esteja a observar?
Sei murmurou Megan, baixando os olhos para as mãos pousadas no regaço. Sim, sei perfeitamente.
Nesse caso, que resolve? Aceita-me?
Reflectiu que, acima de tudo, queria ver Wright atrás das grades, e, na verdade, Brooks podia ajudar a acelerar o processo. As investigações precisavam que surgisse um elemento decisivo, e o mais depressa possível. A chave devia estar mergulhada no passado do homem, mas ela era a única que se concentrava exclusivamente nisso, pois as autoridades haviam estado dispersas em diligências quase incessantes. Brooks poderia ser as suas pernas e mãos, além de mais um cérebro a trabalhar para decifrar o puzzle.
De contrário, tudo indicava que ninguém impediria Garrett Wright de se libertar definitivamente das sequelas do mal que semeara.
Aceito declarou, com uma expressão solene.
Mas não me faça arrepender. Não quero ter de arrastar esse pesadelo toda a vida que me resta.
Eles começaram a executar os mandatos de busca às nove e quarenta e três da noite, por insistência de Mitch, em casa de Kirkwood, esforçando-se, na medida do possível, por minimizar a importância da diligência perante Hannah e congratulando-se por o padre Tom se achar nas proximidades, a fim de proporcionar apoio e conforto, enquanto os agentes procuravam algum indício revelador de que o marido dela era o autor do rapto do filho e do inferno em que a tinha mergulhado.
Por muito que Mitch gostasse do trabalho a que se dedicava, havia ocasiões em que detestava ser polícia. No entanto, as buscas ao escritório de Paul, apesar de minuciosas, não revelaram nada de positivo.
Quando chegaram ao depósito na parte sul da cidade, onde havia compartimentos de aluguer para guardar objectos ou mesmo valores, passava da meia-noite. O vigilante da noite, um indivíduo de mais de sessenta anos, teve de ser acordado e, apesar dos grunhidos de contrariedade, abriu a porta aos agentes, os quais utilizaram a chave de que estavam munidos para ter acesso ao -compartimento pertencente a Paul Kirkwood.
Em seguida, o vigilante foi para a entrada fumar um cigarro, sem interesse pelo que a Polícia pretendia, e Cameron Reed assistiu, de uma distância prudente, à aparentemente pouco prometedora operação.
Acabou por ser Mitch quem efectuou a descoberta que rogava a todos os santos que não ocorresse.
Meticulosamente dobradas numa gaveta da parte inferior do móvel e contidas num saco de plástico preto, havia umas calças de ganga de criança e uma camisola azul.
O vestuário que Josh Kirkwood usava na noite em que desaparecera.
No que dizia respeito a aniversários, o trigésimo sexto não teve nada de especial.
Apesar de a ideia conter uma ponta de egoísmo, Ellen esperara algo de melhor para Josh, Hannah, Megan e a própria justiça. Um presente de última hora sob a forma de uma prova esmagadora, irrefutável.
Afinal, o presente simbólico proveio de uma entidade mais elevada animada de um inexcedível sentido de humor negro. Um elemento que implicava Paul Kirkwood claramente. Pelo menos, aos olhos da pessoa que mais importava: Gorman Grabko.
À luz da descoberta verificada depois do encerramento dos trabalhos, ontem à tarde, não vislumbro qualquer alternativa, Ellen declarou o magistrado, olhando-a com uma expressão grave.
Ela evitava olhar Costello, plenamente consciente do que lhe leria no rosto: a vitória absoluta.
Mas, Meritíssimo, não sabemos como a roupa foi parar ao compartimento do Kirkwood alegou, quase sem convicção.
A porta estava fechada a cadeado, Meritíssimo salientou Costello.
Os cadeados podem ser forçados. O doutor Costello devia consultar o seu associado, o doutor York, a esse respeito volveu ela, em tom acutilante. Temos na nossa presença...
Uma trapalhada, Miss North cortou Grabko. Tudo indica que a acusação não estava devidamente preparada para apresentar o seu caso ao tribunal.
Mas o chefe Holt capturou o Garrett Wright. Temos provas...
O que a acusação tem são algumas noções mal cozinhadas sem o apoio de factos sólidos insistiu Costello, entrando a matar. Miss North queria forçosamente que o resultado fosse esse por razões só do seu conhecimento e recorreu a métodos estranhos à ética para processar um homem inocente.
A navalha verbal introduziu-se integralmente entre as costelas de Ellen. Ética. Ambição. O advogado não tinha o menor respeito pela primeira e alimentava-se da segunda.
Acabamos de ouvir palavras absolutamente injustas e fora de qualquer contexto, Meritíssimo articulou, pousando os dedos crispados no espaldar da cadeira à sua frente. O meu único interesse neste caso consiste em que se faça justiça.
Com essa intenção em mente, só vejo um caminho a seguir disse Grabko. Aprovar a pretensão do doutor Costello para anular o processo e acalentar a esperança de que as autoridades distritais reunam elementos mais sólidos e convincentes antes de voltarem a recorrer aos tribunais.
Ellen não encontrou mais nada para dizer. Na sua mente, acabava de soar o martelo do juiz a dar o caso por encerrado com a sua anulação, com a libertação definitiva de Garrett Wright. Ela necessitava de telefonar a Hannah Garrison antes que a imprensa a procurasse, para lhe comunicar que o homem que raptara o filho regressara à residência vizinha, livre de qualquer acusação.
A derrota era esmagadora. Apesar do peso insustentável que sentia sobre os ombros, conseguiu empertigar-se e encaminhar-se para a porta. Cameron e Dorman foram os primeiros a sair. Ellen seguia-os, com Costello a encerrar o pequeno cortejo, como o principal protagonista da peça a abandonar o palco após mais uma actuação magistral.
Cá fora, ele dirigiu-se-lhe com uma expressão compreensiva.
Não leves o assunto tão a peito, Ellen. Desta vez, não dispunhas de material suficiente para ganhar.
Tu nunca hás-de compreender, pois não? articulou ela, meneando a cabeça. Isto não devia dizer respeito a ganhar ou perder, mas, única e exclusivamente, a justiça.
Não, tu é que nunca compreenderás. O que interessa sempre é ganhar.
De novo na sala, Ellen ocupou o seu lugar à mesa, junto de Cameron.
Tudo terminou em poucos momentos. Mais do que os rigorosamente necessários, apenas porque Grabko gostava de pontificar perante o público. Entretanto, ela reflectia que Garrett Wright seria pintado como um mártir e os habitantes de Deer Lake reclamariam a cabeça de Paul Kirkwood.
O pior cenário possível.
Quando o juiz terminou a sua arenga, a galeria explodiu numa ensurdecedora cacofonia. As portas de acesso ao corredor abriram-se e os repórteres transpuseram-nas, a fim de se prepararem para a inevitável conferência de imprensa, embora alguns preferissem começar por disparar as perguntas antes da reunião formal:
Que acusações se formularão contra o Paul Kirkwood, Miss North?
Tenciona processar o gabinete da promotoria, doutor Costello?
Há alguma verdade nos rumores do seu afastamento do cargo que actualmente exerce, Miss North?
Miss North!
Ela voltou-se entre a multidão e deparou-se-lhe Garrett Wright a menos de um metro de distância, calmo, com uma expressão quase de desculpa.
Sem qualquer rancor declarou, como o cavalheiro consumado que era. Limitou-se a cumprir a sua missão.
E venci-te. Vencemos-te.
Ellen ouviu as palavras tão claramente como se ele as tivesse pronunciado em voz alta. Ao mesmo tempo, apercebia-se do interesse devorador com que os repórteres contemplavam ambos.
Assumindo uma expressão de indiferença, ignorou a mão que ele lhe estendia e replicou:
Continuo a cumpri-lo, doutor Wright. Sabe o que se costuma dizer: uma coisa não acaba até que se chega ao fim.
Que significa isso? perguntou Hannah, estupefacta, meneando a cabeça.
Afundou-se lentamente no sofá, como se os joelhos não conseguissem suportar o peso do corpo. Descobriu que apoiava o telefone portátil ao rosto com ambas as mãos, porque as pontas dos dedos se haviam tornado dormentes e receava largá-lo.
Significa que o Wright está absolutamente livre... de momento explicou Ellen. Mas, pela parte que me toca, o assunto não terminou. Farei tudo ao meu alcance para o levar a julgamento. Prometo-lho.
Hannah dirigiu o olhar para o outro extremo da sala, onde Josh se sequestrara, naquela manhã. Voltava-se para a parede, com os joelhos erguidos levantados até ao peito e o rosto oculto. Achava-se encerrado numa prisão mental e o homem que o colocara aí regressara à liberdade.
Isso já você tinha feito murmurou ela, com uma inflexão de amargura.
Lamento, Hannah. O que tínhamos contra ele devia bastar, mas com o cúmplice ainda à solta e os elementos que apareceram ontem...
Ellen não julgou necessário completar a frase, e a interlocutora decidiu que tentava ser diplomática. As notícias já eram suficientemente desagradáveis sem acentuar o facto de que Paul agora seria interrogado, depois do achado da roupa de Josh, numa gaveta do compartimento alugado pelo próprio pai.
Mitch transmitira-lhe a indesejável nova a meio da noite.
Não sei como dizer-lhe isto, Hannah... Não estamos bem certos do seu significado... A roupa pode ter sido colocada lá propositadamente para que a encontrássemos... Temos de conversar com o Paul... Não sabe onde se encontra?
Não sei quem ele é, reflectiu Hannah. Não sei o que se tornou. Não sei do que seria capaz. Não sei por que razão o Josh o receia. Não consigo acreditar que me agrediu.
Mas o Mitch capturou o Garrett Wright alegou, dirigindo-se mais a si própria do que a Ellen.
Eu sei. E ele também. O Costello soprou fumo suficiente para encobrir a realidade ao juiz. Precisamos apenas de um pouco mais de tempo, mais um elemento sólido contra o Wright ou uma pista que nos conduza ao cúmplice. Há-de surgir, mais cedo ou mais tarde. Passarei por aí assim que puder. Entretanto, se o Josh tiver alguma coisa para dizer sobre o que aconteceu, previna-me imediatamente.
Hannah conservou o telefone pousado no regaço durante muito tempo depois de Ellen cortar a ligação. A sua linha com a justiça fora cortada e ela e os filhos ficavam abandonados à sua sorte.
Ponderou a possibilidade de chamar Tom, mas recusou-se esse conforto. Como se tudo o resto ainda não fosse suficiente, não desejava a culpa inerente ao facto de pensar que o corrompera.
Quase sem se aperceber de que Lily trepara ao sofá, pegava no telefone abandonado e iniciava uma conversa imaginária, Hannah aproximou-se do filho, ajoelhou-se a seu lado, abraçou-o e beijou-o levemente no topo da cabeça. No entanto, ele não se moveu nem proferiu uma única palavra.
Não permitiremos que ele nos vença, Josh murmurou Hannah. Não o deixarei levar-te de junto de mim. Não voltarei a abandonar-te. Juro-o.
Mesmo o pior dia na história da humanidade teve somente vinte e quatro horas. Ellen repetiu aquela máxima ao longo de todo o dia. Durante a conversa com Hannah. Durante a tempestuosa reunião com Rudy. Durante a breve, embora excruciante, conferência de imprensa. Aquele dia tinha apenas vinte e quatro horas e ela sobreviveria para suportar o seguinte. Costello despertara o tigre existente no seu íntimo. Só se sentiria satisfeita quando lhe dilacerasse a garganta e eviscerasse Wright e o cúmplice.
Rudy não a demitira. Nem o faria. Porque necessitava dela. Para bode expiatório dos seus infortúnios oficiais e sobretudo na altura em que o caso fosse a julgamento. Por conseguinte, ela tencionava aproveitar a situação o melhor possível.
No dia seguinte, reagrupar-se-iam. Ellen convocaria os seus polícias para uma sessão de estratégia. Nessa ocasião, as impressões digitais de Todd Childs poderiam corresponder às encontradas no escritório de Dennis Enberg e assim eles disporiam do impulso de que careciam para o obrigar a falar. Talvez tivessem igualmente em seu poder os relatórios preliminares da autópsia de Dustin Holloman, que era onde Steiger e Wilhelm haviam passado a tarde. Se a informação mencionasse alguns cabelos dispersos, vestígios da pele das pontas dos dedos do rapaz e uma impressão de ADN sob a forma de uma gota de sangue, existiria novo material suficiente para reatar as operações. Se Megan descobrisse nem que fosse uma única anomalia no passado perfeito de Garrett Wright...
Ellen pegou no telefone e marcou o número da agente mais uma vez, mas obteve apenas o atendedor de chamadas.
Ela estivera ausente todo o dia. Mitch dissera que Megan tinha encontrado um lugar melhor para trabalhar, mas não sabia o número nem dispunha de tempo para se alongar no assunto. Alguns alunos da Universidade Harris tinham aproveitado a libertação de Garrett Wright como pretexto para produzir distúrbios no campus e chamar-lhe comemoração da vitória, traduzindo-se em brigas, vandalismo e destruições gerais. Com uma festa de celebração da vitória marcada para as oito e a prometida comparência do homenageado, a Polícia contava com algumas horas de problemas.
Ellen consultou o relógio. Nove e um quarto. A festa já devia estar em marcha. Transmitira instruções a Phoebe para estar presente, mas suspeitava de que preferisse conceder o serão a Adam Slater.
Os candidatos a «Cúmplice do Ano» estariam presentes Christopher Priest e Todd Childs, assim como os Sci-Fi Cowboys. Tyrell Mann arriscar-se-ia a comparecer? Garrett Wright constituiria a figura principal, com a esposa ao lado, drogada e distante, os segredos do seu matrimónio trancados na sua mente aparentemente vazia.
Ellen apostaria que fora a ligação dela com Paul que pusera tudo em movimento. Representava o motivo de Wright para escolher Josh e incriminar o rival. E Dustin Holloman não passara de um peão para o fazer parecer inocente.
Mas quem orquestrara a segunda parte do jogo? E porque desaparecera Paul subitamente, se apenas era culpado de adultério?
As interrogações fervilhavam no cérebro da advogada, que se permitiu um pequeno grunhido de desolação quando se levantou da cadeira e aproximou da janela. A hora de jantar chegara e terminara sem que ingerisse qualquer alimento. A falta de carburante contribuía para a deprimir ao ponto de imaginar que não se podia afundar mais.
Encontrava-se só no escritório. Acabrunhada, com fome, cheia de frio, velha e só.
Não te esqueças de te sentir condoída de ti própria recomendou-se entre dentes, enquanto se espreguiçava e depois esfregava as mãos para evitar que gelassem.
Por uma vez, desejava que Brooks aparecesse sem ter sido convidado. Mas, tanto quanto sabia, ele podia ter mudado de equipa, agora que Wright recuperara a liberdade. De súbito, reviu o seu rosto na noite anterior ao início da audiência preliminar, no local onde ela se encontrava agora.
Dissera que nunca fora o herói de ninguém e perguntara-lhe se o queria redimir.
A expressão do olhar que acompanhara aquelas palavras perdurou-lhe no pensamento, até que a sua faceta prática assumiu a supremacia. Estava a perder tempo. Tinha uma mesa cheia de anotações e declarações para rever. Mais uma vez. Fora para isso que escolhera aquele período sossegado do dia. Não para se sentir velha, só e com pena de si mesma. Nem para se entregar a considerações de cariz romântico sobre cavaleiros de armadura prateada e almas feridas.
Não pôde conter um estremecimento quando o telefone tocou.
Deixou-o continuar, enquanto eliminava mentalmente as pessoas que podiam ser: a mãe, Megan com a ansiada pista, Jay, algum repórter que conseguira arrancar o número dela a Rudy...
Ellen North proferiu para o bocal.
É o Darrell Munson. Desculpe demorar tanto a telefonar-lhe, mas acabo de regressar a casa de uma sessão de mergulho ao largo de Key West.
Munson. O nome tornou-se-lhe claro no espírito gradualmente. Um agente vigilante de liberdade condicional.
Obrigada por ter ligado agradeceu sem entusiasmo.
A pista dos Sci-Fi Cowboys não conduzira a parte alguma, além do clube de fãs dos alunos de Garrett Wright, e ela acalentava fracas esperanças de que aquele telefonema diferisse dos restantes, mas resolveu explicar a situação ao homem.
Isso custa muito a crer disse ele, ao mesmo tempo que a voz arrefecia ao longo do fio. Conheci bem o doutor Wright e sempre o respeitei. Não me agrada a sua evidente intenção de o desacreditar.
Cumpro a minha obrigação, Mister Munson esclareceu Ellen. As provas são esmagadoras, de contrário não teríamos organizado o processo. Se ele está inocente, não tem nada de que se preocupar. Não se pode dizer que seja o primeiro de quem suspeitámos.
Pois, bem... articulou o homem, numa inflexão relutante. Que pretendia de mim?
Saber se continuou a acompanhar os rapazes que tinha no programa dos Sci-Fi Cowboys. Estamos a contactar com antigos membros como parte da investigação do passado do Wright.
Tive dois no primeiro ano do programa. Depois, transferiram-me de Dodge para aqui.
O Tim Dutton e o Erik Evans.
Sim, claro. Sei onde o Tim se encontra, pois continua a enviar-me postais pelo Natal. É aprendiz de electricista em New Hope. Do Erik é que perdi o rasto. A última vez que soube dele, estudava computadores. Um moço muito inteligente, diga-se de passagem. Possuidor de forte personalidade. Filho de um pastor metodista.
Não parece corresponder ao seu delinquente juvenil médio.
Não creio que o fosse. Tinha alguns problemas emocionais em casa. A mãe andava dentro e fora de instituições. Tudo datava daquele caso com o filho de um vizinho, quando o Erik tinha dez anos. Um trauma desses pode abalar qualquer pessoa.
Que trauma?
Assistiu ao enforcamento de um amigo.
Não me diga!
Exacto. Foi uma coisa horrível. A mãe dele atribuiu a culpa ao Erik e foi muito vigorosa a esse respeito. Veio em todos os jornais da época. Admira-me que não se recorde, doutora North. O miúdo chamava-se Slater.
Ela empertigou-se, como que sacudida por uma descarga eléctrica.
Perdão?
Slater. Adam Slater.
Percorreu-a uma corrente glacial. Adam Slater? Santo Deus!
Pode descrever esse Erik Evens?
A última vez que o vi, media cerca de um metro e setenta e cinco, magro, loiro...
Loiro. A secção do cérebro especializada na refutação de hipóteses duvidosas apoderou-se do pormenor.
Muito obrigada pelas informações, Mister Munson. Foram-me muito úteis.
Largou o auscultador no descanso antes que pudesse pousá-lo. Erik Evans. O jovem na foto do jornal ao lado de Garrett Wright. Loiro, não muito alto.
Os miúdos cresciam. As pessoas pintavam o cabelo.
Precipitou-se para a mesa onde se encontrava a maior parte da documentação e pegou na pasta de plástico que lhe interessava. As mãos tremiam tanto que quase não conseguia folhear os relatórios e recortes de jornais. No entanto, chegou ao fim sem encontrar o que pretendia. O artigo tinha desaparecido.
Adam Slater.
Repórter de um jornal insignificante. Ninguém se dera ao trabalho de confirmar as credenciais da imprensa. Havia demasiados membros dos media para investigar e outros assuntos mais prementes.
Talvez não passasse de mera coincidência o facto de Adam Slater, repórter de Grand Forks, partilhar um nome com uma criança que morrera onze anos atrás. Uma criança que fora companheira de brincadeira de um futuro elemento dos Sci-Fi Cowboys.
Não acreditas em coincidências, Ellen articulou em surdina.
Adam Slater cortejava Phoebe e Ellen advertira-a de que ele possuía um motivo qualquer. Só que nunca lhe passara pela cabeça que fosse aquele.
Reviu mentalmente a anotação que marcava a página de que necessitava no livro sobre processos judiciais do Minnesota na biblioteca do segundo andar: é PECADO acreditar no mal dos outros, mas raramente um engano.
Pecado. Tantas anotações tinham incluído referências ao pecado...
Erik Evans era filho de um pastor metodista.
Tinham procurado debaixo de todas as pedras possíveis, na esperança de encontrar o cúmplice de Garrett Wright, quando se encontrava constantemente entre eles, a inteirar-se de tudo o que acontecia. Achava-se na estrada na manhã em que o corpo de Dustin Holloman fora descoberto. Se Ellen não se equivocava, tinha sido ele que estrangulara o rapaz e o deixara junto de um marco quilométrico, com uma nota pregada ao peito: alguns erguem-se pelo PECADO e outros pela virtude caem.
Erik Evans. Adam Slater. O protegido de Garrett Wright.
Impunha-se que telefonasse a Mitch. Slater devia encontrar-se na celebração da vitória, a desfrutar intimamente. Talvez com Phoebe. Phoebe, por Deus! E se a festa já tivesse terminado? E se se encontrassem juntos? E se Adam Slater tivesse decidido que ela já não era necessária para nada?
Ellen largou os papéis que tinha na mão e estendeu a mão para o telefone, mas de súbito imobilizou-a.
Junto do aparelho, havia uma única rosa vermelha, com o pé enrolado no fio, cuja ficha devia estar introduzida na tomada da parede.
As minhas fontes comunicam-me que tem estado a fazer demasiadas perguntas, Miss North. Ele encontrava-se à entrada da sala de reuniões, o cabelo pintado caído sobre um dos olhos. Chegou o momento de parar com isso. Para sempre.
Se o acende, morre advertiu Megan.
Jay imobilizou o isqueiro a meio caminho do cigarro que lhe pendia da boca.
Não acha que já padeci o suficiente? acrescentou ela. Terei sobrevivido à agressão para vir a morrer de cancro do pulmão contraído através de fumo em segunda via, por assim dizer, enquanto tento solucionar o caso?
Ele retirou o cigarro da boca e pousou-o na mesa ao lado do maço.
Sabe que o tabaco representa uma parte substancial da economia do Sul do país?
Sei, mas isso não me impressiona.
Já tinham discutido o assunto três vezes e Jay perdera sempre. Sabia que podia puxar dos galões, pois encontravam-se em sua casa, mas, ao invés, acabara por transigir.
Os olhos de Megan fixaram-se de novo no computador e ele continuou a martelar determinadas teclas, em busca de algum elemento útil relativo ao passado de Garrett Wright.
No entanto, o material debitado era variado e abundante, mas não continha o mínimo elemento aproveitável para aquilo que lhes interessava.
E, como uma sombra ominosa, pairava a irrefutável realidade de que Garrett Wright recuperara a liberdade. Jay reflectia que Ellen não devia ter aceite a situação muito mais pacificamente do que Megan. Decerto encarava a derrota com uma afronta pessoal e preparava-se para reatar a luta.
Jay desejara encontrar-se com ela após a decisão do tribunal, mas parecera-lhe mais importante continuar junto da agente O’Malley, num trabalho de pesquisa que podia ou não resultar proveitoso.
Preciso de uma bebida decidiu, por fim, levantando-se. Também quer?
Infelizmente, não liga com os medicamentos que estou a tomar. Assim, tenho de me contentar com uma Coca-Cola. Com gelo, por favor recomendou ela, enquanto ele desaparecia na cozinha.
Fixou o olhar no mar de papel que espalhara sobre a mesa alongada. Bilhetes, faxes das universidades onde Wright leccionara, etc. E, em tudo aquilo, não fora detectada uma única palavra animadora.
Não podemos perder, compreendes? Não podes vencer-nos. Somos muito bons neste jogo.
Percorreu-a um arrepio involuntário. A força de vontade a que necessitou de recorrer para fechar a caixa preta do medo deixou-a quase sem vigor.
Foco. Precisava de um foco. A concentração mantinha-a num equilíbrio quase perfeito. Pegou na lista de chamadas e percorreu os nomes, para assinalar os respectivos números que voltaria a marcar, na manhã seguinte. Contactos que estabelecera com diversas delegações oficiais.
Haviam chegado vários faxes no final do dia, mas nenhum continha a informação desejada. Jay «teclara» o mesmo pedido em numerosas redes de computador, utilizando o seu nome e fama como incentivo, mas ainda não chegara nada de aproveitável.
Garrett Wright absorvera grande parte da voluntariedade de Megan, mas não conseguira privá-la do mais importante elemento que a tornava uma boa polícia. A mente. O coração. A determinação. Ainda podia funcionar perfeitamente. Teria apenas de recorrer a métodos diferentes.
Safa! murmurou Brooks, mais tarde, com o olhar fixo no computador. Toda a gente neste raio de país tem uma história para contar. Há, por exemplo, uma mulher do Arcansas que alega que o seu papagaio galês foi raptado por alienígenas espaciais.
Dá a impressão do argumento de um livro disse Megan, levantando-se e ensaiando uns passos apesar da rigidez dos músculos. Conseguiu atrair alguém, além de loucos varridos?
Talvez tenha razão. Ele suspirou e esfregou os olhos. Preciso de uma pausa, antes que estoire.
Sim, vá dar uma volta. Eu fico a tomar conta do forte.
Tem a certeza de que não quer também respirar um pouco de ar puro? perguntou, pegando na parka e vestindo-a.
Absoluta. Ela sorriu e instalou-se na cadeira que ele acabava de vagar diante do computador. Dê cumprimentos meus à Ellen.
Ouviu a porta da cozinha fechar-se e, pouco depois, o ruído do motor da carrinha dele. Ainda não se extinguira por completo quando surgiu a luz verde.
Megan leu no pequeno ecrã os escassos parágrafos relativos a um crime que tinha sido solucionado cerca de dez anos atrás. O seu sexto sentido o sentido policial desenvolvia a actividade máxima. A lógica indicava-lhe que se tratava de uma possibilidade positiva entre numerosas negativas, mas era a primeira que surgia.
Pegou no telefone, fixou-o entre o ombro e o ouvido e marcou o número da Polícia estadual da Pensilvânia.
Pois é, Mister Brooks articulou entre dentes. Creio que surgiu finalmente a luz no fundo do túnel.
Não esperávamos que cavasse tão fundo admitiu Slater, entrando com naturalidade, as mãos enfiadas nos bolsos do habitual blusão de esquiar preto. Aliás, a investigação não faz parte da sua especialidade.
A minha especialidade consiste em apresentar provas irrefutáveis replicou Ellen, utilizando a sua visão periférica para tentar localizar algo que servisse de arma ao seu alcance.
Ele meneou a cabeça, com uma expressão desconsolada.
Se deixasse isso a cargo dos chuis, talvez não tivéssemos de a matar.
Mesmo que me matem, não escaparão ao castigo. Ela estava surpreendida por se conservar tão calma, tão racional, quando retiniam todos os alarmes no seu íntimo. A Polícia não tardará muito tempo a juntar dois e dois e obter os inevitáveis quatro. Bastará que siga a pista que utilizei.
Duvido muito. O mais certo é seguir a pista que preferiu no caso do Enberg. Slater fingiu-se compungido. Pobre rapaz! Não aguentou a pressão.
A cena que se lhe deparara no escritório de Dennis reapareceu no pensamento de Ellen. O sangue, matéria cerebral colada à parede por trás do corpo. A cabeça quase totalmente destruída.
Ninguém engolirá isso declarou, em tom de desafio, ao mesmo tempo que os dedos rodeavam sub-repticiamente uma das pesadas canetas de Cameron. Em seguida, mergulhou os punhos cerrados nos bolsos do espesso casaco. Não disponho de armas de fogo.
Não seja tão literal. Ele avançou mais um passo. Há muitas maneiras de uma pessoa se suicidar. O enforcamento. dióxido de carbono. Comprimidos. Lâminas de barbear.
Ela retrocedeu. Se conseguisse manter distância suficiente entre ambos, ficar em lados opostos da mesa de reuniões... Se pudesse alcançar a antecâmara...
Basta-me gritar afirmou, com simulado desprendimento. Há um segurança lá fora...
Acontece que sei que Mister Stovich deixou de ver necessidade de o manter, sobretudo agora que a acusação contra o doutor Wright foi retirada. Ele esboçou um sorriso. Segundo a minha boa admiradora Phoebe, o nosso comum amigo Rudy ficou enxofrado com a maneira como a doutora perdeu o caso.
Deve orgulhar-se da sua obra. Os seus esforços foram recompensados. Obrigou a Polícia a correr de um incidente para outro. Depois, colocou aqueles objectos comprometedores no compartimento alugado do Paul Kirkwood.
Na verdade, não me saí mal da tarefa.
Assassinou uma criança inocente.
Um retoque magistral na pintura, hein?
Não sente nada?
Encolheu os ombros, aparentando a inocência e indiferença às consequências dos seus actos próprias de um jovem de dezasseis anos.
Bem, tive de o asfixiar à pressa.
Porque não matou o Josh?
Porque isso não figurava no plano. Abanou a cabeça. Vejo que ainda não compreendeu. O jogo é muito mais divertido, quando se descortinam os pontos frágeis do adversário.
Não receiam que ele fale?
Não declarou secamente, começando a avançar. E estou farto de a ouvir falar, doutora. Terminemos com isto.
Entretanto, Ellen contornara a mesa, que agora se interpunha totalmente, porém Slater encontrava-se mais perto da saída, entretido a observá-la com antecipação predatória.
Se pensa que vou aguardar impassível que me mate, não é tão inteligente como o julgava preveniu ela. Tenho todas as intenções de lutar, e os ferimentos ou simples escoriações resultantes da defesa farão franzir o sobrolho aos investigadores.
Não haverá nada disso.
Ellen começou a deslizar ao longo da mesa, passando diante dos relatórios e notas amontoados... reflectindo que nenhum deles apontaria para Slater. Este tinha razão. Se não fossem as diligências dela, os contactos com pessoas e entidades do seu passado, ninguém se lembraria daquele mancebo de aspecto estouvado e inocente.
Quando foi que o Wright o escolheu? resolveu perguntar. Descobriu o episódio do rapaz chamado realmente Slater, quando você ingressou nos Cowboys?
Construiu os Cowboys à minha volta vangloriou-se, com um sorriso de orgulho. O programa existe porque ele pretendia os meus préstimos.
A ironia era tão retorcida como arame farpado. Um programa proclamado à escala nacional para alterar as vidas de jovens acabara por se tornar uma capa para a corrupção total de uma única.
É apenas o Wright? perguntou ela, enquanto os dedos apertavam a caneta no bolso do casaco. Agora, estava directamente diante dele. A igual distância da porta. Embora Slater tivesse uma vantagem de quinze anos, Ellen correria para salvar a vida. Ou há também o Priest envolvido?
Como deve compreender, não lhe vou revelar tudo.
Porquê, se vou morrer?...
De acordo, mas não quero que abandone este mundo satisfeita. É apenas mais um ponto para a minha equipa, o facto de morrer a dar tratos à imaginação.
Que pena... articulou, concentrando-se na cólera em vez de no medo. Pegar em alguém tão inteligente e talentoso como você e convertê-lo num criminoso comum.
Não há nada de comum em mim, Miss North. A expressão dele tornou-se granítica. O Garrett fartou-se de procurar até me encontrar: um rapaz que compreendesse o jogo, uma pessoa tão superior como ele.
Superior? Ellen arqueou uma sobrancelha. Não passa de um abrutalhado, cobarde e assassino.
Os olhos dele semicerraram-se acima das faces que se avermelhavam. Do bolso esquerdo do blusão, extraiu uma pistola de aturdir, um rectângulo de plástico preto que não parecia mais ameaçador do que um telecomando de televisão.
O paleio chegou ao fim, cabra.
Ellen precipitou-se para a porta, porém ele alcançou-a na extremidade da mesa e apontou-lhe a arma ao peito. Ela sacudiu-se bruscamente e os sessenta mil vóltios de electricidade atravessaram a manga do seu casaco. Com um grito agudo, puxou da caneta e cravou-a com toda a fúria do instinto de sobrevivência.
Slater emitiu um uivo no instante em que o objecto até então destinado somente para escrever se lhe afundava na face. Ellen não se deteve para contemplar o resultado. Correu para a porta com todas as energias que conseguiu reunir, ao mesmo tempo que pedia socorro, embora soubesse que o edifício se encontrava deserto e os sons nunca chegariam ao contíguo, onde se achava uma unidade da Polícia.
Pelo caminho, voltou-se momentaneamente para verificar que Slater a seguia, o que lhe valeu colidir com a secretária da antecâmara e ver todas as constelações devido à dor aguda. No entanto, consciente de que a mínima redução da marcha poderia ser fatal, limitou-se a pegar numa máquina de agrafar e seguiu em frente.
Maldita cabra! soluçou ele, sem todavia interromper ou abrandar a perseguição.
Conseguiu finalmente alcançá-la quando se preparava para transpor a porta exterior, que acabava de abrir, e rolaram no chão. Isso não a impediu, contudo, de manter a resistência e, empregando as pernas como alavancas, afastou-o de cima, ao mesmo tempo que utilizava o agrafador, visando as têmporas e malares. O aturdimento subsequente permitiu-lhe pôr-se de pé e precipitar-se para o corredor, rumando à porta do departamento do xerife, situado junto do patamar do piso inferior.
Slater voltou a alcançá-la na escada, agarrou a gola do casaco e um punhado de cabelo, quase a fazendo descolar os pés do chão. A pistola aturdidora surgiu no campo visual dela, todavia o ombro amorteceu a pancada.
Agora, o braço esquerdo de Ellen achava-se entre os dois corpos, como uma cunha. Deslocando-se para baixo, pousou os dedos nos testículos dele e exerceu a maior pressão possível. Desta vez, o grito que ele emitiu ultrapassou em numerosos decibéis o silvo da sirene de uma fábrica, enquanto a largava e se dobrava pela cintura, contorcendo-se. Ela oscilou por um instante, as canelas embateram nos degraus e pousou as mãos nos joelhos, enquanto largava o agrafador.
Levanta-te.
Gaita. Não há opções. Foge já.
Chegou a tua hora, cabra, no dia do teu aniversário! Aniversário. Trinta e seis anos. O aniversário que Ellen temera. De repente, trinta e seis anos afiguravam-se-lhe longe da mocidade.
Precipitou-se pela escada acima, tropeçou quando um salto se prendeu na aresta de um degrau. Agarrou-se rapidamente ao corrimão, raspou a mão pelo estuque áspero da parede, partiu uma unha e esfolou os nós dos dedos.
O vão da escada era mal iluminado, desenhando nos cantos manchas luminosas irregulares provenientes das luzes dos patamares superiores e inferiores. Luzes de segurança. Não ofereciam segurança nenhuma. No subconsciente ouviu uma voz baixa, de fumador: O seu patrão precisa de ter uma conversa com alguém sobre segurança. O caso que tem entre mãos é explosivo. Tudo pode acontecer.
Chegou ao terceiro andar e encaminhou-se para a entrada, no lado este. Se conseguisse descer as escadas a este se conseguisse chegar à passagem entre os edifícios... Ele não ousaria tentar apanhá-la na passagem, com o gabinete do xerife uns metros adiante.
Agora apanhámos-te, cabra! ” Havia telefones nos escritórios por que passava a correr.
Os escritórios estavam fechados. O seu auto-eleito assassino seguia-a correndo, a rir. O som dos passos dele trespassava-a como uma lança, como a certeza de que ele a mataria. Persegui-la talvez não estivesse nos seus planos, mas tornara-se parte do jogo.
O jogo. A loucura de tudo aquilo era tão aterradora como a perspectiva da morte. Atacar o sistema. Destruir vidas. Acabar com vidas. Nada de pessoal. Apenas um jogo. Passou a correr pela sala do tribunal do juiz Grabko e contornou a esquina que levava às escadas a sudeste. Um andaime ocupava o vão da escada, cortando-lhe o caminho da fuga. Um andaime para obras. Santo Deus, ia morrer por causa de um estúpido friso de estuque!
Xeque-mate, cabra esperta.
As escadas de nordeste pareciam a um quilómetro de distância. A meio caminho ficavam os portões de ferro que bloqueavam a via a céu aberto entre o tribunal e a cadeia. Precipitou-se para o alarme contra incêndios, na parede, agarrou o dispositivo de vidro que se quebraria e traria ajuda.
A placa estalou. Nada. Nenhum som. Nenhum alarme.
Não, meu Deus!
Deitou a mão ao quadro inútil. Malditas obras. Novos alarmes. Mais decorações.
Vá lá, Ellen. Sê uma cabra gentil e deixa-me matar-te.
Agarrou o puxador da porta do cubículo da mangueira de incêndio e deu-lhe um safanão.
Tens de morrer, cabra. Nós temos de ganhar o jogo. A mão dele fechou-se sobre o seu braço.
Os dedos dela fecharam-se sobre o cabo do machado.
Ele projectou o corpo contra a porta e fechou-a, atingindo um osso do pulso dela, que soltou um grito agudo e caiu de joelhos.
Soluçando, com o pulso esquerdo fracturado pousado na cintura, ajoelhou-se aos pés do seu potencial assassino. As lonas dos operários achavam-se dispersas em volta, cobertas de caliça e areia tão fina como farinha, juntamente com pedaços de argamassa antigos e latas de cerveja vazias.
Vá lá, Ellen insistiu Slater, agachando-se. Sê uma cabra decente e deixa-me matar-te.
Ele só reparou na mão direita dela quando se abriu a cinco centímetros do seu rosto, para lhe encher de caliça os olhos e o orifício provocado pela caneta.
Ellen endireitou-se e apoderou-se do machado. Voltou-se no momento em que ele se precipitava para ela e lhe atingia a coxa. Com a arma aturdidora.
A corrente atravessou a saia e avançou através dos nervos. Alcançou o cérebro instantaneamente e deixou para trás um assombro paralisado. Numa fracção de segundo, todo o controlo dos braços e pernas se extinguiu. Ela caiu como uma pedra, enquanto o machado se lhe soltava da mão e tombava fora do seu alcance.
Permaneceu estendida numa lona, de olhos abertos, enquanto ele se debruçava para a observar.
Uns erguem-se pelo pecado e outros pela virtude caem murmurou, com o rosto escalavrado a poucos milímetros do dela. Outros ainda, pela virtude morrem.
A ordenança, uma jovem de aspecto nórdico, cabelo puramente loiro e uniforme impecável, acompanhou Jay ao longo da passagem entre o departamento do xerife e o edifício do tribunal, ao mesmo tempo que não se continha de opinar que era ele que devia ter interpretado o papel principal do filme Homicídio Justificável e não o Tom Cruise.
Obrigado. Ele dirigiu-lhe um vago sorriso de agradecimento. Em todo o caso, sinto-me muito mais à vontade no meu papel de escritor. Não tive absolutamente nada a ver com o filme.
De qualquer modo, acho que devia pensar na hipótese de tentar o cinema insistiu ela, que se chamava Mindy.
Enquanto avançava através da penumbra em direcção às escadas, imaginava a expressão no rosto de Ellen quando lhe comunicasse que ajudava Megan O’Malley a procurar indícios comprometedores no passado de Wright.
Transpôs os degraus até ao primeiro andar e meneou um pouco a cabeça ao ver a porta dos escritórios dela totalmente aberta. Nem sequer se dera ao trabalho de passar pela casa de Ellen, apesar da hora, convencido de que não recolheria ao apartamento para lamber as feridas. Regressaria imediatamente ao trabalho, para esgaravatar tudo ainda com mais afinco do que até então.
Esperava encontrá-la na sala de reuniões, debruçada sobre uma pilha de relatórios, os óculos a deslizar ao longo do nariz. No entanto, estava deserta. Os nervos dele tornaram-se tensos ao avistar os papéis dispersos no chão. Papéis sujos com várias manchas de sangue.
Ellen jazia de bruços na lona cheia de caliça como uma boneca quebrada, os braços estendidos aos lados em ângulos invulgares. Esforçava-se por obrigar o cérebro a funcionar, tentava, debalde, impelir os membros a movimentar-se.
Ouvira passos e sabia que entrara outra pessoa no edifício. Ao aperceber-se da voz de Jay que a chamava, tentou gritar, mas não havia o menor som contido na sua mente. Slater, escarranchado sobre ela, apertava-lhe o pescoço até quase a impedir de respirar.
Ele passara os últimos minutos a cortar um pedaço de corda do andaime, para improvisar um laço, e Ellen, embora impossibilitada de se mover, podia observá-lo. Ao primeiro som de outra pessoa no edifício, Slater colocou os dedos na posição apropriada sobre a laringe dela.
Ellen comprimiu as pálpebras e tentou concentrar os poderes mentais dispersos em Brooks. Procura-me, por favor, Jay. Vem cá acima, por favor. Despacha-te.
Tornaram a soar passos em baixo. Apressados. A romper em correria. E se Jay não viesse? E se abandonasse o edifício e procurasse de novo o xerife? Assim, Slater disporia de tempo para a matar e pôr-se em fuga. Mesmo que tivesse perdido a oportunidade de fazer com que parecesse um suicídio, consumaria o seu principal objectivo.
Ela tinha de fazer alguma coisa. Já.
A sensibilidade regressava gradualmente aos braços e, com ela, a sensação pungente resultante do pulso fracturado. Se pudesse restabelecer a ligação entre o pensamento e o movimento...
Devagar, os dedos curvaram-se num punho e esgaravataram inconscientemente os pedaços de gesso no chão. Só se lhe depararia uma oportunidade. Se falhasse...
Com toda a concentração que conseguiu reunir, ordenou ao braço que se mexesse e aos dedos que se abrissem. Ao mesmo tempo, porém, Slater deu-se conta da movimentação e debruçou-se para murmurar roucamente ao ouvido:
Cabra maldita... Estás morta. Já.
Com estas palavras, cravou os dentes na cartilagem da orelha.
A boca de Ellen abriu-se ao tentar absorver ar, mas apenas logrou enchê-la de caliça e gesso, uma vez que permanecia de bruços.
Contudo, o instinto de sobrevivência disparou adrenalina em todas as direcções e impeliu o corpo a entrar em acção. Desferindo pontapés sem um alvo definido, dobrou um braço para trás, conseguiu introduzir um dedo no orifício provocado pela caneta na face dele e tentou alargá-lo.
Fragmentos de gesso que tombaram no chão da pequena rotunda atraíram a atenção a Jay, que já subia a escada apressadamente. De repente, irrompeu o grito estrangulado, masculino. Em cima, de onde o gesso caíra.
Ellen!
Gritou o nome, ao mesmo tempo que subia os degraus precipitadamente, consciente de que, se ela corria perigo e não tinha qualquer possibilidade de o chamar, não havia um segundo a perder.
Slater desferiu um soco na cabeça de Ellen e em seguida puxou-lhe o pulso são, para desfazer o contacto do dedo com o orifício no rosto. No instante imediato, pôs-se de pé de um salto no instante em que Jay se tornava visível na extremidade norte do corredor. Depois, pegou no machado de incêndio e correu para ele.
Ellen soergueu-se de joelhos, respirando com dificuldade, e, horrorizada, viu o jovem inclinar o braço para trás e desferir um golpe demolidor com o machado, como se fosse um taco de basebol.
Jay esquivou-se para o lado e a lâmina aguçada cortou apenas o ar, embora a uma distância alarmantemente próxima. E, antes que Slater tivesse tempo para segunda tentativa, ele saltou para a frente e atingiu-o no queixo, obrigando-o a vacilar.
A partir daí, com o machado posto fora de combate, tudo se concentrou em vigorosa e implacável luta corpo a corpo, em que, todavia, não tardou a surgir uma faca de caça que Slater conseguiu extrair do bolso do blusão.
Ellen pôs-se de pé no momento em que Jay tombava de costas antes de a faca aparecer em cena, dominada por um misto de medo, fúria e dor. Slater era a chave do mal que contaminara o seu céu. Matara Dennis Enberg e Dustin Holloman. Não deixaria igualmente de a fazer desaparecer do número dos vivos, se não fosse a intervenção de Jay, que agora se preparava para assassinar igualmente.
Jay conseguiu esquivar-se à primeira arremetida da faca, embora a lâmina lhe cortasse a manga da parka. Mas não teve tanta sorte na segunda, nem na terceira.
Slater movia a perigosa arma furiosamente, o rosto convertido numa máscara de sangue proveniente do ferimento causado por Ellen. A faca atingiu o braço de Jay ao tentar defender-se e chegou até ao osso, mas ele conseguiu ainda empregar o outro punho para um soco em plena cabeça.
Por último, desembaraçou-se do perigo permanente que representava a proximidade dos dois corpos e tentou esquivar-se começando a correr; todavia, não tardou a ser alcançado.
Entretanto, Ellen, após um momento fugaz para tentar recompor-se das vias respiratórias, correu para os dois homens em luta, depois de pegar na arma aturdidora, que Slater largara, apontou-lha ao lado da cabeça e disparou os sessenta mil vóltios directamente no cérebro.
De olhos arregalados, ele caiu pesadamente, o corpo dominado por convulsões, até que se imobilizou por completo.
Ela olhou-o horrorizada ao aperceber-se gradualmente do que acabava de fazer. O vigor alimentado pelo alarme e iminência da morte de Jay às mãos de um alucinado dissipou-se e começou a ser dominada por fortes tremores.
Está tudo bem murmurou Brooks, rodeando-a com o braço esquerdo, pois o outro acusava os efeitos da faca. Tudo terminou, querida.
Ao mesmo tempo, apercebia-se de um aturdimento crescente que ameaçava tornar-se extensivo à mente. Dava-se conta de que a energia que integrava o seu ser se convertia numa bola suave e abandonava gradualmente a concha que constituía o corpo. Esforçava-se, no entanto, por combater a sensação, por sedutora que fosse. A única coisa que desejava era manter Ellen nos braços e protegê-la.
Meu Deus, estás a sangrar! sussurrou ela, ao aperceber-se do ferimento mais profundo no ombro.
Não te preocupes. Não posso morrer herói. Com um pálido sorriso, Jay acrescentou: Seria demasiado irónico.
No seu sonho, Josh via sangue. Rios dele. Torrentes dele. Lagoas calmas e oleosas. Estava imerso nele até ao queixo. A corrente interna impelia-lhe os pés. As mãos do Captor rodeavam-lhe os tornozelos e tentavam puxá-lo para baixo. O Captor escolhera-o. Queria-o para si. Josh tinha medo de desobedecer. Refugiara-se na caixa mais pequena da mente e, mesmo assim, continuava em poder do Captor.
Fora-lhe dito que obedecesse. De contrário, aconteceriam coisas más. Coisas terríveis. Já tinham começado. Ele podia ver todo o seu mundo desmoronar-se, tal como o Captor lhe mostrara. Mas, apesar disso, continuava agarrado aos lados da sua caixa, ao que restava do seu mundo.
Se pudesse ocultar-se o tempo suficiente... Se conseguisse tornar-se ainda mais pequeno dentro da concha do seu corpo... Se tivesse possibilidade de voltar para dentro da caixa...
As mãos escorregavam. Inspirou ar no momento em que o Captor o puxou para baixo, através do sangue.
De súbito, com a mesma rapidez, ficou livre. Irrompeu à superfície, pairou, como se tivesse sido expelido de uma fisga. Para a luz. Para o ar. Podia voltar a respirar. Voava. E, em baixo, o sangue convertia-se num charco cada vez mais pequeno, até que desapareceu.
Os olhos de Josh abriram-se repentinamente. O quarto estava às escuras, à parte a luz nocturna e os algarismos no seu relógio. Parecia-lhe que tinha estado a dormir durante muitíssimo tempo. Dias em vez de horas. A mãe dormia no saco-cama no chão. Parecia muito cansada e preocupada. Tinha a fronte enrugada.
Por minha causa.
Por causa do Captor.
Havia muitas coisas que ela nunca compreenderia. Muitas coisas que ele desejava que ambos pudessem esquecer e iniciar de novo, como se nunca tivessem estado vivos até agora.
Talvez o pudessem fazer, se ele o desejasse com vigor suficiente... se conseguisse encontrar a coragem.
A casa de campo situava-se numa propriedade arborizada isolada junto da linha divisória do Sul, na zona rural de Tyler County. Os vizinhos mais próximos eram os agricultores amish, que não mostravam o menor interesse pelas idas e vindas dos «ingleses». Ellen tinha de imaginar que naquela manhã se interessavam. Viaturas dos departamentos dos xerifes de Tyler County e Park County, as autoridades de Deer Lake e do BCA enchiam o pátio, enquanto veículos de serviços noticiosos e de repórteres ocupavam a estrada. Agentes uniformizados mantinham a imprensa à distância, enquanto os detectives e técnicos executavam o seu trabalho.
Estacionada no alpendre da maquinaria, encontrava-se uma carrinha Ford Economic de 1984 branca enferrujada. Comparável em idade e estado à que Paul Kirkwood possuíra e vendera a Olie Swain. Igual à que uma testemunha vira no ringue de hóquei mais ou menos na altura em que Josh fora raptado. Uma pequena caixa de ferramentas no banco da frente continha um rolo de fita adesiva, pedaços dobrados de tecido provavelmente para administrar éter e seringas hipodérmicas para injectar sedativos. A caixa de instrumentos de um raptor.
Ellen afastou-se do alpendre, ombros encolhidos devido ao frio, e olhou em volta, abarcando a herdade imaculada, com as suas pequenas construções e perímetro de pinheiros. Tinham sido desenvolvidos grandes esforços para que tudo parecesse normal. O caminho de acesso à casa estava irrepreensivelmente limpo. Uma família de gamos de betão encontrava-se no pátio, nas proximidades do bebedouro dos pássaros. Havia cortinas nas janelas. Ainda pendiam luzes de Natal das vigas.
Fazia tudo parte do jogo.
Slater encontrava-se internado no hospital, sob vigilância, observado para a eventualidade de surgirem efeitos permanentes da descarga eléctrica. Não falava; porém, o seu nome proporcionara a chave de que eles necessitavam. Ellen, vagamente aturdida devido à medicação contra as dores que o Dr. Lomax lhe administrara antes de tratar do pulso fracturado, telefonara a Cameron do hospital a meio da noite e pusera-o a trabalhar para reunir informação em nome de Adam Slater. Para uma emergência, dispunham de um número de telefone, juntamente com um endereço.
A alvorada acabava de iluminar o cinzento do horizonte da zona oriental. Ellen dormira sem repousar, a intervalos, numa cama do hospital. Pesadelos dos últimos dias acordavam-na sempre que o sono ameaçava tornar-se mais pesado. A sensação das mãos de Slater não desaparecia em torno do pescoço.
Mudara-se para Deer Lake, a fim de fugir à violência e cinismo da cidade, mas fora aí que a haviam atacado, impelida para a violência, para salvar a sua vida e a de Jay. Um ponto a favor da equipa de Wright. Mais uma ondulação no lago apenas. Somente mais uma ramificação do seu jogo, juntamente com confíanças destruídas e um casamento desfeito, para não falar de inocência e vidas perdidas.
Ela estava grata a Deus por Jay não figurar entre as vítimas mortais. Embora tivesse perdido sangue suficiente para exigir uma transfusão, os ferimentos não ameaçavam a vida.
Está preparada para entrar, doutora? perguntou Mitch, pousando a mão no ombro de Ellen.
Ela assentiu com um movimento de cabeça e avançaram para a casa. Cameron alegara que ela não se achava em condições de penetrar no cenário, todavia ela persistiu. Permitiu que ele assumisse o papel principal, mas precisava de se achar presente.
Wilhelm abriu a porta das traseiras com uma chave do chaveiro de Slater e entraram, contendo a respiração em antecipação do que se lhes depararia. O interior estava limpo e arrumado, com vários ornamentos e uma fotografia de família de desconhecidos pendurada na parede da sala.
Provavelmente a família de uma das vítimas, segundo Ellen suspeitava. Talvez mesmo do próprio Slater. Ela reflectiu que devia ter apreciado o retorcido sentido de humor dele. Se não recorresse ao nome da sua primeira vítima, talvez nunca tivesse sido desmascarado.
Faz tudo parte do jogo.
O jogo é mais divertido quando se detectam os pontos do adversário.
Um dos dois quartos estava decorado para um rapaz jovem, com prateleiras repletas de brinquedos, cada um com um rótulo de um nome e data. Trofeus de jogos passados vencidos. A ideia enojava-a. Conservou-se no corredor, resistindo à necessidade de se apoiar à parede e correr o risco de destruir impressões digitais latentes. Ao invés, apoiou-se a Cameron, que lhe rodeou os ombros com o braço, conservando-se silencioso e pálido.
Exibiam todos a mesma expressão, como ela reflectia vagamente: Mitch, Wilhelm e o xerife de Tyler County. Nem o próprio Steiger conseguia evitá-la. Havia vestígios de lágrimas nos olhos de Mitch quando emergiu do quarto.
Há uma sapatilha vermelha lá dentro - informou em voz tensa. Com o nome Milo Wiskow. É do caso que a Megan desencantou na Pensilvânia. A única coisa que temos de fazer é encontrar uma ligação entre o Wright e esta casa, e ele desaparece da circulação para sempre.
Final do jogo.
Encontraram o que necessitavam na cave, onde Megan estivera atada a uma velha cadeira e fora torturada. O pequeno bastão preto que Wright utilizara para a espancar pendia de um cabide por cima de uma pequena banca de trabalho, como se não passasse de uma ferramenta vulgar de um indivíduo habilidoso.
A cave dividia-se em três compartimentos, um dos quais fechado de fora por meio de um cadeado. Mais uma vez, Wilhelm forneceu a chave do chaveiro de Slater e eles entraram na pequena dependência onde os rapazes haviam sido mantidos.
A única peça de mobiliário era uma cama do tipo beliche e a única iluminação provinha de uma lâmpada desnuda suspensa do tecto, com o interruptor do lado de fora da porta. Uma objectiva de vigilância de vídeo e altifalantes estereofónicos encontravam-se montados no tecto alto, com as respectivas ligações a um sistema na principal sala de trabalho. De dois bancos no balcão, Slater e Wright podiam observar o cativo, falar-lhe, passar as gravações de cassetes meticulosamente arrumadas junto do aparelho.
Segurando-a cuidadosamente com luvas de látex, Mitch introduziu uma na ranhura e premiu o botão. A voz de Wright vibrou nos altifalantes, suave e sinistra.
Olá, Josh. Sou o Captor. Sei o que pensas. Sei o que queres. Posso fazer-te viver ou morrer. Posso fazer os teus pais viverem ou morrerem. Tudo depende de ti. Fazes o que eu mando. Pensas o que mando, recordas o que te mando. Controlo a sua mente. Sei tudo o que pensas.
Safa... murmurou Mitch, ao mesmo tempo que desligava o aparelho.
Controlo da mente. Terror psicológico de crianças. Como estivera na cela em que Wright mantinha os rapazes, Ellen não tinha dificuldade em imaginar como eles se deviam assustar, solitários sem saberem se alguém os iria salvar ou se morreriam.
Sou o Captor. Sei o que pensas. Sei o que queres...
Pensava em Josh sentado no consultório da psiquiatra, que tentava arrancar-lhe suavemente respostas. Não admirava que ele não falasse. Wright entranhara-lhe o medo tão fundo que seriam necessários anos para lho extirpar. Talvez nunca mais se sentisse totalmente seguro.
O filho da mãe... resmungou Steiger.
Estava convencido de que nunca seria desmascarado murmurou Ellen. Julga-se invencível.
Mas engana-se redondamente articulou Mitch. Vamos capturá-lo. Mais tarde examinaremos melhor tudo isto. Quero ver esse malvado no fundo de uma cela.
Chefe chamou Wilhelm, que se encontrava junto de uma secretária a uns três metros de distância. Deve interessar-lhe ver isto.
Que é?
Veja.
O agente pegara numa pasta de plástico de uma fiada de várias similares e pousara-a sobre a secretária, aberta na primeira página. Ellen acercou-se juntamente com Mitch e pousou os olhos na caligrafia de criança.
ENTRADA NO DIÁRIO
27 de Agosto de 1968
Eles encontraram o corpo hoje. Não tão cedo, nem pouco mais ou menos, como esperávamos. Tudo indica que os julgávamos bons de mais. Os chuis não são tão espertos como nós. Ninguém é.
Assistimos a tudo no passeio. Que cena deplorável! Homens adultos lavados em lágrimas e a vomitar entre os arbustos. Fartaram-se de percorrer aquela área do parque, espezinhando a relva e partindo pequenos ramos. Invocavam Deus, mas Ele não lhes acudia. Não desciam quaisquer raios. Ricky Meyers continuava morto.
Continuámos no passeio, enquanto chegava a ambulância, assim como viaturas da Polícia e as de pessoas de vários pontos da cidade. Mantivemo-nos no meio da multidão, sem que reparassem em nós. Julgavam-nos insignificantes, mas na realidade éramos muito superiores. É gente cega, estúpida, demasiado confiante. Nunca lhes passaria pela cabeça fixar a curiosidade em nós.
Nós temos doze anos de idade.
Nós.
Aposto no Priest disse Mitch, ligando o farol rotativo.
O seu Explorer encabeçava o cortejo de veículos da polícia que enveredavam por Lakeshore Drive. Já chegara um grupo compacto de repórteres, que invadira o relvado da residência de Wright, com o que, por uma vez, se mostravam úteis, encurralando-o em sua própria casa.
A Megan tinha os olhos postos nele. Talvez se conhecessem quando crianças, pois leccionaram juntos na Universidade da Pensilvânia, fundaram os Cowboys e, em conformidade com o Slater, isso aconteceu com base no plano do Wright para o desenvolver como seu protegido.
Ellen sentava-se, tensa, ao lado dele, com a antecipação a dominar cada músculo do seu rosto.
Mas se estavam juntos neste jogo, porque não se ilibaram mutuamente acerca da noite em que o Josh desapareceu? Por que razão o Todd Childs compareceu na audiência para contradizer as declarações prestadas anteriormente à Polícia?
A doutora disse que ele queria marcar pontos contra nós. Além disso, ilibaram-se um do outro, e aquele de nós que acredita num é automaticamente levado a admitir que a culpa recai no outro. Mitch cortou para o caminho de acesso à residência de Wright e desligou o motor. Vejamos se o doutor Wright pode ajudar a responder às dúvidas que nos restam. Depois, fornecerá comentários, quando passarmos as gravações.
No entanto, aguardavam-nos numerosas perguntas, enquanto se dirigiam para a porta da frente. Steiger soltou um grito autoritário, aproveitando a oportunidade para assumir ares importantes.
Mitch tocou à campainha e aguardou.
Doutor Garrett Wright! gritou. É a Polícia.
Abra, por favor. Precisamos de conversar consigo. Aguardaram um momento, que lhes pareceu interminável, até que utilizou o telemóvel. Noogie? Há algum movimento nesse lado?
Nada, chefe replicou a voz grave de Noga.
É o chefe Holt, doutor Wright volveu Mitch, batendo à porta, em vez de recorrer à campainha. Queremos falar consigo.
Tem de estar em casa afirmou Wilhelm. Foi visto na celebração da vitória, ontem à noite. Sabemos de fonte segura que voltou para cá.
Sim, mas terá ficado? observou Mitch. Se lhe constou que o seu iluminado protege foi desmascarado e capturado, pode ter batido asas. Tornou a servir-se do telemóvel. Noogie? Espreita na garagem e verifica a situação em termos de viaturas.
Vejo um Saab e um Honda, chefe.
Então, não falta nenhuma. Volveu os olhos para Ellen. Digo que devemos entrar. Talvez haja razão para isso. De caminho, corre com os media, Wilhelm. Em seguida, experimentou o puxador da porta. Trancada. Há aí curiosos, Noogie?
Não.
Então, entra em acção.
Entendido, chefe.
Noga era o aríete de serviço da corporação policial, e a porta não tardou a soltar-se dos gonzos. Em poucos momentos, a entrada da frente deixou de constituir uma dificuldade para a intrusão dos colegas.
A casa estava imersa em silêncio e Mitch começou a esquadrinhar as dependências visíveis do amplo vestíbulo.
Doutor Wright? chamou, puxando da sua Smith & Wesson de nove milímetros. Polícia! Apareça onde o possamos ver!
A quietude não sofreu a mínima alteração.
Bem, parece que vamos ter de recorrer aos métodos menos suaves acrescentou, voltando-se para Ellen e Cameron. É melhor aguardarem lá fora. Não quero que isto se converta numa situação de reféns. Cobre-me, Noogie.
Tenha cuidado, Mitch recomendou ela, pousando-lhe a mão no braço. Ele agora não tem nada a perder.
Depois de percorrerem todo o piso térreo sem qualquer aparição, transpuseram a escada com cautelas crescentes, até que chegaram à última porta do corredor, a qual se achava fechada. Mitch bateu e pousou a mão no puxador.
Saia de mãos no ar, Wright! Está preso!
Nada. Após breve compasso de espera, começou a fazê-lo girar, após o que deslizou para dentro encostado à parede. Não houve, porém, um único disparo, e ele apercebeu-se no instante imediato da razão por que não obtivera resposta.
Garrett Wright jazia na larga cama, totalmente despido, com a garganta cortada quase de uma orelha à outra e uma faca de carniceiro cravada até ao cabo em pleno peito, os olhos abertos sem vida erguidos a um céu que nunca conheceria.
Ainda não está rígido murmurou Mitch. Deve ter morrido há poucas horas.
Ellen olhou demoradamente o largo rasgão que quase seccionara a cabeça do corpo por completo, após o que se virou para o cenário em redor.
Não há sinais de luta.
Foi pena. Ele devia ter disposto de tempo para encarar a morte nos olhos. Devia ter sentido o medo que inspirava às suas vítimas.
Os dois carros encontram-se na garagem e a Karen Wright desapareceu lembrou Wilhelm. Ou foi ela e pôs-se a andar ou o assassino levou-a consigo.
O Paul Kirkwood jurou vingança publicamente disse Cameron. Tinha uma ligação com a Karen.
Mande emitir mandados de captura nos nomes de ambos indicou Ellen, tornando a fixar os olhos no homem cuja vida se esvaíra com o sangue.
Um assassino. Um indivíduo cuja mente e coração tinham sido tão negros como o sangue que empapava os lençóis à sua volta. Atormentara, torturara, matara e limitara-se a considerar tudo um jogo. Implacável e cruel. Levara outra pessoa a matar, e essa afectaria outras vidas, e as sequências prosseguiriam interminavelmente, como uma corrente de petróleo a sangrar para o oceano.
Sempre desejei filhos disse Karen, embalando o bebé nos braços. O Garrett e eu não os podíamos ter, mas o Paul e eu, sim. Podemos ter a Lily.
Hannah arregalava os olhos para a mulher que lhe invadira a casa algumas horas antes da alvorada. Karen Wright. A insípida e inócua Karen. Sempre pronta para ajudar. De olhos ternos, bonita. Amante do seu marido. Esposa do homem que lhe raptara o filho.
Hannah acordara ao som de uma voz que cantarolava no corredor. Uma voz de mulher proveniente do quarto de Lily. Estremunhada e confusa, abandonara o saco-cama e acudira a inteirar-se do que acontecia.
Encontrava-se agora no corredor entre os dois quartos, ainda esperançada em que se tratasse de mais um dos seus estranhos pesadelos que a flagelavam desde o início da provação, embora consciente de que não era o caso. Karen Wright achava-se no quarto de sua filha, tendo em seu poder Lily e uma arma de fogo.
Como conseguiu entrar? acabou por perguntar.
Com uma chave replicou a outra, com desprendimento, sem desviar os olhos da criança. Tenho duplicados de todas as do Paul. Exibiu um sorriso sonhador. Posso obter a do seu coração, agora que o Garrett já não se pode erguer entre nós.
Levantou-se da cadeira de balouço, sem largar Lily nem a arma de nove milímetros, embora a carga parecesse excessiva para ela.
És tão querida, não é verdade, Lily? Sempre imaginei que me pertencias. Queria que o Garrett se apoderasse de ti para ma oferecer, mas só lhe interessavam os rapazinhos. Foi sempre assim. Sempre detestou os filhos.
Não pode ficar com ela declarou Hannah, secamente.
Karen semicerrou os olhos e os lábios comprimiram-se.
Não a merece, como eu. Dou, farto-me de dar, e nunca recebo nada em troca. Chegou a minha vez. Disse-o ao Garrett, mas não fez caso. Expliquei-lhe que queria o Paul. Amo o Paul. Esse pode dar-me um filho. Mas não! Tinha de fazer com que parecesse culpado. Quis destruir aquilo que eu desejava. Cometeu um erro grave, irreparável.
Mas... como reagiu o seu marido?
O Garrett... Bem, não me deu ouvidos. Não quis que eu fosse feliz. Amo o Paul e ele obrigou-me a traí-lo... Está quieta, não me irrites! Estas palavras destinavam-se a Lily, que começava a debater-se com vigor crescente. Segurou-lhe o queixo e voltou o rosto para si. A tua mãe agora sou eu, ouviste?
Josh observava a cena, um pouco atrás da mãe. Chegara sem que elas se apercebessem e continuavam alheias ao facto. Avistou a arma. Ouviu as palavras. Inteirou-se assim de que fora capturado. Como o outro rapaz. O outro extinto agora morrera, tal como o próprio Josh havia sido prevenido. Aconteceriam coisas terríveis, se revelasse a verdade a alguém. No entanto, ele guardara silêncio e, apesar disso, tinham acontecido, continuavam a acontecer.
O medo no seu íntimo lutava contra a necessidade de se libertar dele. Queria ficar livre. Ansiava por que a sua família adquirisse a liberdade. Se o desejasse com vigor suficiente, talvez... Se se portasse bem... Se ao menos reunisse a coragem suficiente...
O Paul sabe que está a fazer isto? perguntou Hannah, desviando-se lenta e dissimuladamente para a parede.
Se conseguisse chegar à cómoda, pegaria na caixa de pó de talco, lançá-lo-ia aos olhos de Karen e arrebatar-lhe-ia Lily antes que a mulher pudesse utilizar a arma.
O Paul ama-me persistiu Karen. Sou aquilo de que ele precisa. Sou o género de mulher que ele merece.
Quanto a isso, estou plenamente de acordo replicou Hannah, com uma risada amarga.
Fora ele que atraíra o pesadelo para aquela casa, impelido pelo egoísmo. Afigurava-se, pois, que Karen Wright correspondia inteiramente ao que merecia.
Seremos uma família feliz. Empunhou a arma, ameaçadoramente. Está quieta, já te disse, Lily! Vê lá se queres que utilize isto.
Josh aproveitou a concentração momentânea da mulher para entrar em acção. Precipitou-se no quarto e mergulhou na direcção das pernas dela.
Não, Josh! gritou Hannah.
No instante imediato, estabeleceu-se uma confusão de som e movimento, enquanto ela saltava para se apoderar da arma.
Se fosse o Paul, o Wright teria oferecido luta conjecturou Ellen.
A menos que o drogassem primeiro aventou WiIhelm.
Ele não tinha estômago para matar assim opinou Mitch. Com uma arma de fogo, talvez. Mas, com uma faca, nem pensar.
A Karen cansou-se de o marido querer dominá-la como fazia às suas vítimas volveu Ellen. Utilizou-a para chegar até ao Paul. Só Deus sabe como se serviu dela anteriormente.
O que interessa agora é saber que rumo ela seguiu interpôs Cameron. E estaria só?
Pegue no telefone e ligue à empresa de táxis sugeriu ela. Tenho grande dificuldade em acreditar que o Paul passou por cá e a levou, depois de ela testemunhar essencialmente contra ele no tribunal.
Marcas anunciou Noga, subitamente. Havia algumas nas traseiras.
Na neve recém-caída.
Vamos vê-las decidiu Mitch dirigindo-se para a porta, ao mesmo tempo que transmitia instruções por cima do ombro: Assuma o domínio da situação e mantenha os media à distância, Wilhelm.
Ellen seguiu-o através da porta da cozinha e da garagem em que Wright fora detido na primeira vez, desembocando no pátio, onde repórteres se moviam em torno do perímetro, numa tentativa para conseguir um ângulo de visão melhor.
Vamos ter de fazer qualquer declaração à imprensa considerou ela, a meia voz. Forneça uma foto da Karen aos enviados da televisão. Se se trata de uma possível assassina, o público precisa de saber.
De facto, não vejo outra solução, de momento. Mitch começara a seguir Noga ao longo das pegadas,
em direcção à residência dos Kirkwood, quando o som de detonações cortou o ar frio da manhã.
Colidiram com a cómoda e projectaram o candeeiro ao chão, enquanto a arma se soltava da mão e deslizava ao longo do tapete. Hannah tentou recolhê-la; todavia, Karen puxou-a por uma das tranças e tentou recuperá-la; Josh, porém, antecipou-se.
Acto contínuo, segurou a pistola com ambas as mãos e apontou-a à cabeça da tresloucada, a escassos centímetros de distância, com o cano a oscilar levemente para a frente e para trás.
Karen imobilizou-se como uma estátua, enquanto Lily jazia no chão, sacudida por soluços. Por seu turno, Hannah esforçou-se por se levantar e afastar-se da outra, com os olhos fixos no filho.
És má disse o garoto a Karen, de olhar inexpressivo. Não podes levar a minha irmã. Não te deixo.
Vão acontecer-te coisas más pronunciou Karen, num tom sinistro. Tu sabe-lo e eu também. O Captor há-de castigar-te.
O Captor morreu.
O coração de Hannah quase parou e estendeu a mão ao filho.
Dá-me a pistola, querido.
Tenho de os impedir volveu ele, os olhos marejados. Sou o único que o deve fazer. A culpa é minha. Se não, maltratam-te e à Lily.
Não, meu querido murmurou ela, agachando-se a seu lado.
As pequenas mãos seguravam a coronha com força, sem que o cano se desviasse do rosto de Karen.
Ela também é uma Captora. Eles têm poder. Quer levar a Lily. Para lhe fazer mal. Tenho de a impedir. Cabe-me a mim.
Não, Josh insistiu Hannah, acercando-se um pouco mais. Eu não a deixo levá-la. Dá-me a pistola.
Ele não fez o menor movimento para obedecer, e a mãe rodeou-o com os braços, à espera de ouvir o som terrível de um disparo. Se actuasse demasiado depressa e tentasse desviar a arma, poderia explodir. E, por muito que desejasse que se fizesse justiça, não queria que fosse daquela maneira. Não queria que semelhante desfecho ficasse a pesar sobre o filho durante o resto da vida.
Tentando não tremer, pousou a mão na dele sobre a coronha e murmurou:
Tudo terminou, querido. Dá-me a pistola. Eles já não têm o menor poder sobre nós.
Ao mesmo tempo, reflectia: Eu perdi-o uma vez, meu Deus. Não faças com que volte a ficar sem ele, por favor. Deixa-nos começar de novo. Já.
Josh arregalou os olhos para Karen, sentindo o contacto do gatilho na curvatura do dedo. Queria ser livre. Desejava as coisas da maneira como estavam anteriormente. Se matasse todos os Captores...
A voz da mãe parecia provir do interior da sua própria mente. Havia tantas coisas que ela não podia compreender...
Por favor...
Queria ser livre.
Fixou os olhos em Karen e... não sentiu nada.
Ele morreu murmurou, ao mesmo tempo que a compreensão de tudo despontava.
A ligação quebrara-se, desaparecera durante a noite. Estava livre.
Livre...
Retirou a mão da arma, voltou-se para a mãe, encostou-se ao seu ombro e começou a chorar.
Hannah cingiu-o com um dos braços e conservou a pistola apontada a Karen. Noutra parte da casa, ouviu uma porta abrir-se, e a voz de Mitch ecoou como a da salvação.
Ela desejava aquilo que pensava que eu queria disse Hannah, quase num murmúrio.
Encontrava-se à entrada do quarto de Josh e contemplava-o enquanto dormia. O dia tinha sido uma autêntica maratona. Polícias a entrar e sair de casa, interessados em declarações, a disparar perguntas e tirar fotografias. A imprensa com uma nova escalada de pesquisa de informações. Enviados especiais de revistas e canais de televisão, agentes de Hollywood empenhados em propor contratos para um filme. No entanto, ela acabara por conseguir repelir todos e deixar entrar somente uma pessoa: Tom McCoy.
Ela pretendia uma família feliz acrescentou Hannah, com uma expressão meditativa. Como nós chegámos a ter... num passado distante...
A história das vidas dos Wright desbobinara-se ao longo do dia, à medida que a Polícia e o departamento da acusação examinavam os diários encontrados na casa da herdade. Uma vida dupla conduzida desde a infância. Garrett, inteligente, sociopata, controlador, manipulador. A irmã, Caroline, uma sombra, subserviente, introvertida. Filhos de uma mulher fria, amargurada, que valorizava as aparências em detrimento da substância. Abandonados pelo pai, que voltara a casar e iniciara uma nova família.
Garrett assumira o domínio de Caroline, absorvera-a na sua vida e na sua psique, até parecer que se tornavam uma única entidade. A irmã conseguira libertar-se dele, quando fugira de casa aos dezassete anos, apenas para ser localizada uns treze meses mais tarde. E o controlo, a manipulação, todo o ciclo retorcido recomeçara. Viviam como marido e mulher, mas mantinham uma fachada irrepreensível como professor de Psicologia e companheira conjugal imaculada, enquanto Garrett assumia a supremacia absoluta e praticava o seu jogo doentio.
Gostava de saber se ele nos escolheu por supor que éramos uma família irrepreensível ou saber que acontecia precisamente o contrário.
Falou com o Paul? quis saber Tom, observando-a com um misto de curiosidade e ternura.
Contactou com o Mitch, quando tudo se tornou público. Tinha-se instalado num hotel em Burnsville, porque precisava de tempo para reflectir, segundo alegou. Ela fez uma pausa, imersa em cogitações. Não lhe telefonei para que voltasse. Não tenho nada para lhe dizer mais diplomaticamente do que o meu advogado pode fazer.
O sacerdote reflectiu que era naquele momento que a devia aconselhar. Se fosse um bom padre da Igreja, da palavra de Deus, tentaria explicar-lhe que ainda havia esperança, as feridas poderiam sarar e tudo o que se quebrara no matrimónio podia recompor-se através da prece e da esperança. Mas não acreditava que fosse assim, nem se considerava um bom padre. Na verdade, já não conseguia encarar-se minimamente como tal.
Lamento profundamente declarou com sinceridade.
Eu também sussurrou Hannah, enquanto evocava passagens dispersas e remotas de uma vida em comum que devia ter sido para sempre. Não estava escrito que durasse até ao fim dos nossos dias.
Ao invés, as promessas haviam sido quebradas, e ela ficara a contas com a frustração e o pesar pelos fragmentos quebrados.
A mão de Tom pousou na sua, para oferecer conforto e coragem, produzindo um ténue véu de culpa na mescla complexa de emoções com as quais Hannah já lutava.
Apetece-me uma bebida murmurou, voltando o rosto para o lado.
Começava a anoitecer, mas parecia-lhe meia-noite. Exaustos com a provação de todo o dia, Josh e Lily haviam adormecido ao fim da tarde, mas a noite prosseguia. Longas horas de silêncio à espera de serem preenchidas com introspecção e meditação sem sentido.
Hannah encheu dois copos de chardonnay e levou-os para a sala de estar, onde Tom se ocupava do lume da lareira. Ela reparou que usava calças de ganga e um dos seus frequentes blusões de lenhador, sem vestígio do colarinho clerical.
Que tenciona fazer? perguntou ele, enquanto pousava o atiçador. Continuará aqui?
Não. Ela fez uma pausa, à espera de que a admoestasse, mas não foi o que aconteceu. Apesar de termos aqui muitas boas recordações, até essas podem magoar. Julgo preferível procurar ares diferentes, novos. Permitir que o Josh comece tudo de novo. Sentou-se na extremidade do sofá mais perto do lume e levou o copo aos lábios. Tem sido um excelente amigo, no meio de tudo isto, Tom. Não encontro palavras para lhe agradecer.
Não preciso de agradecimentos replicou ele, instalando-se numa poltrona tão próxima que os joelhos de ambos quase se tocavam.
Eu sei que é o seu dever, mas...
Não. Não estamos em presença dos meus deveres de clérigo. Ou talvez estejamos. A antecipação e temor contiveram a revelação por uns instantes. Vou abandonar o sacerdócio.
A expressão no rosto de Hannah era menos nítida do que ele previra, mas não diferente do que esperava. Choque, com uma camada subjacente de receio.
Não, Tom, por favor. Ela pousou o copo com a mão trémula. Não diga que o levei a... Os olhos azuis emitiam um brilho difuso como um lago no Verão. Já tenho mais culpa do que necessito sobre os ombros.
Não lhe compete sentir-se culpada. Ele inclinou-se para a frente e pousou os braços nas coxas dela. Não existe culpa alguma. Sinto o que sinto e regra alguma me pode convencer de que está errado. Fez uma breve pausa, algo hesitante. Como pode ser errado amar alguém? Tenho ruminado nessa questão até não restar nada para analisar. Não vejo como jamais poderei encarar o assunto com paz de espírito total. Esboçou um sorriso algo amargo. Monsenhor Corelli sempre afirmou que o meu doutoramento em Filosofia ainda me provocaria problemas. Penso de mais.
Mas é um sacerdote admirável insistiu Hannah. Faz as pessoas pensarem, interrogarem-se, olharem mais no fundo de si próprias. Se não procedemos assim, o que somos?
Estagnados. Confortáveis. Felizes concedeu ele. O crescimento magoa. Precipita a mudança, que é assustadora. Seria mais fácil para mim continuar na Igreja. Mais seguro. É o que sei. Há partes dela que amo. Mas tenho de ser hipócrita para o fazer. Não posso viver assim.
Ela reflectiu que se tratava de um bom sacerdote, mas demasiado para o continuar a ser. Não podia agir contra os seus princípios, mesmo que eles fossem contrários à Igreja.
Eu não devia lançar-lhe o assunto para o regaço esta noite. Só que tomei a decisão, e a Hannah a sua, e não quero contribuir para lhe aumentar o fardo que suporta. Desejava apenas que o soubesse.
Hannah considerou que, pelo menos à primeira vista, eles mereciam algo de melhor do que terem de se separar. Mas poderia isso jamais acontecer? Algo que não murchasse à sombra do seu passado ou fosse esmagado pelo peso da cumplicidade?
Preciso de tempo acabou por declarar. Creio que ambos precisamos. Atravessámos uma série de situações penosas demasiado depressa. Sei, sem margem para qualquer dúvida, que tenho de me afastar. Preciso de aclarar tudo, até não restar a mínima hesitação. Pode compreender isto?
Posso. Tom olhou-a com uma expressão serena. Desde que não me coloque à margem definitivamente, quando analisar o passado.
Ela conservou-se silenciosa durante um momento, consciente de que nada que o futuro lhe apresentasse se revestia de facilidade. O peso das suas opções oprimia-a de modo quase irresistível. Tempo. Sim, era sobretudo desse ingrediente que careciam. Por fim, pousou os braços em torno da cintura dele e murmurou:
Amo-o.
Ele baixou a cabeça e beijou-lhe a face.
Então, posso esperar o tempo que for necessário. Desde que não seja eternamente.
Ellen reclinou-se na cadeira atrás da secretária e emitiu um longo suspiro. Parecia-lhe que era o primeiro momento do dia em que podia respirar livremente. Pelo menos, era o primeiro de repouso. A exaustão afigurava-se-lhe uma âncora suspensa do ombro. A dor latejava através do corpo. Não obstante, a sensação de alívio superava tudo o resto. O pesadelo chegara ao fim.
Garrett Wright fora transferido para um tribunal mais alto. Karen Wright dera entrada no hospital psiquiátrico do distrito para um exame em que decerto chumbaria. Adam Slater achava-se sob vigilância permanente na prisão local. O BCA e o FBI trabalhavam em conjunto para reunir todo o material disperso pelo país e pelo tempo sobre as actividades secretas de Wright. Casos que tivessem ficado insolúveis ou terminado com a condenação de pessoas inocentes.
Os habitantes de Deer Lake fingiriam que esqueciam tudo, mas trancariam as portas e vigiariam os filhos, sem voltarem a estar confiantes como no passado. Ellen regressaria à sua rotina, embora jamais tornasse a experimentar a mesma sensação de paz. E Brooks...
Ela tinha de se habituar à ideia de que isso também mudara. Não queria acreditar que ele se podia envolver nas vidas das pessoas que haviam sido violadas por aqueles crimes sem ficar afectado de alguma maneira fundamental. Viera àquele lugar para se manter à margem dos eventos e contemplar tudo de uma posição segura, mas acabara por ser sugado pela voragem. Salvara-lhe a vida. Não podia ser o mesmo homem que chegara a Deer Lake duas semanas atrás, o mercenário disposto a colher dividendos do sofrimento alheio.
No entanto, os acontecimentos ocorridos, as revelações efectuadas, não passavam daquilo que ele viera procurar. Sensacionais, retorcidos, complexos. Somente a história Erik Evans/Adam Slater merecia um livro. Que ocorrera de errado na mente de uma criança para a converter num assassino? Ellen tinha de admitir que se sentia curiosa. Queria ter a possibilidade de compreender o que sucedera, extrair um pouco de sensatez de tudo aquilo.
Talvez acabasse mesmo por ler um dos livros de Brooks. Porventura existia algum valor em manter uma certa distância de um crime e analisar o motivo. E algum conforto em isolar a loucura do que se passara. De qualquer modo, ela encontrava-se imersa no sistema desde longa data para ser ingénua. Sabia perfeitamente que não havia isolamento possível do mal. Brotava e difundia-se como uma trepadeira assassina. Mesmo em lugares tranquilos como Deer Lake.
Uma pancada na porta quase a sobressaltou. A excitação do dia culminara com uma conferência de imprensa às seis da tarde. Bill Glendenning deslocara-se pessoalmente do seu requintado e isolado gabinete em St. Paul para tecer comentários acerca dela perante uma infinidade de câmaras de televisão... com Rudy ao lado. A atmosfera de excitação prolongara-se e mantivera o pessoal do tribunal durante mais tempo de serviço, para analisar, embora superficialmente, as proezas de uma vida inteira de Wright.
Cameron assomou à porta e perguntou:
Precisa de boleia para casa?
Não, obrigada. Ainda fico mais um bocado. Estou a criar coragem para atravessar a maré dos media. Já apareceu alguma coisa sobre o registo das chamadas telefónicas do Slater?
Lamento. Ele enrugou a fronte. O número do Costello não figura lá. Tanto no registo do número de casa como do telemóvel. Se não conseguirmos estabelecer uma ligação, teremos de o largar da mão.
Por outras palavras, o nosso prezado confrade Tony Costello poderá continuar a voar livre como o vento.
Se lhe serve de consolação, acho que vai tardar algum tempo a sair do buraco em que se afundou. Não esqueçamos que representava um dos criminosos mais desprezíveis do país.
E livrou-o da prisão volveu Ellen, consciente de que Costello só consideraria essa face do caso. Não como uma humilhação, mas como um jogo ganho.
Continuarei a investigar prometeu o outro. E a doutora? Já obteve alguma coisa sobre o Priest?
Não há qualquer alusão a ele nos registos dos dois criminosos. Alega que mentiu acerca de se ter criado em Mishawaka, porque teve problemas emocionais na época e acabou por abandonar os estudos. Falsificou documentos para poder ingressar na faculdade, afirmando que frequentou um excelente liceu de Chicago. Nega a pés juntos o conhecimento das actividades do Wright, mas custa a crer que nunca suspeitasse de nada. O FBI recebeu-o esta tarde e decerto terminará por lhe espremer a verdade.
Tenciona mover um processo ao Todd Childs por perjúrio?
Com certeza. Ela inclinou a cabeça com veemência.
Aposto que foi ele que assaltou o Pack Rat, embora isso já seja mais difícil de provar. Sabia que o procurávamos e o Costello aconselhara-o a desaparecer da circulação. O pior era que o Childs tinha material armazenado na loja e sabia que não se manteria lá muito tempo, se não o fosse buscar. Encolheu os ombros, com o que recorreu a músculos que mais valia deixar sossegados. Pelo menos, é a minha teoria. Pensaremos em obter provas mais tarde.
Entretanto, talvez não fosse má ideia ir para casa e dormir durante um ou dois dias sugeriu Cameron. Vai precisar de energias nos tempos mais próximos. Consta por aí que será a primeira da fila de candidatos ao lugar do Rudy, quando ele se instalar no do juiz Franken, no tribunal.
Essa é nova para mim. Como de costume.
Soltou uma gargalhada, embora isso não o fizesse parecer tão novo como uma semana atrás.
Amanhã, telefono-lhe. Outra coisa: lembrei-me de passar por casa da Phoebe, para ver como aguenta o golpe. Ficou arrasada com o caso do Slater e culpa-se do que lhe aconteceu, doutora. De caminho, quer que lhe diga alguma coisa?
Sim, diga-lhe que não é crime confiar em alguém, mesmo que não o mereça declarou Ellen, com uma expressão pensativa. Não a censuro pelo que aconteceu. De qualquer modo, ele teria encontrado uma maneira de levar a água ao seu moinho. De todos os modos, alegra-me que não a magoasse fisicamente.
Ámen a isso.
Ele retirou-se finalmente e a advogada ficou entregue a cogitações durante uns momentos.
De súbito, a porta voltou a abrir-se, agora para dar passagem a Megan O’Malley.
Julgava-a por aí a comemorar observou Ellen, com um sorriso, ao mesmo tempo que lhe indicava uma cadeira.
Estou à espera do Mitch, que ficou lá dentro com os Feebies e o Priest. As comemorações reservamo-las para mais tarde. E a doutora? Desembrulhou o assunto, e a Polícia de Minneapolis capturou o seu alucinado bombista.
A única coisa que de momento me interessa é um longo banho quente e uma cama. O termo de tudo isto representou um grande alívio e satisfação. No entanto, subsiste uma expectativa relacionada com o levantamento total da rocha e poder ver tudo o que há por baixo que me refreia as festividades. O mundo está cheio delas, como sabemos. Desejo apenas limpar esta totalmente e poder iniciar as escavações debaixo de outra.
Megan assentiu com uma inclinação de cabeça e uma expressão pensativa.
Bem, passei por cá apenas para lhe agradecer ter-me deixado participar nas investigações. Sei que correu um risco importante.
Mas paguei um preço. É uma boa polícia, Megan.
Fiz o que pude, que não seria tanto, nem nada de parecido, sem o seu amigo Brooks. Se não se oferecesse para ajudar, ainda me encontraria ao telefone a ligar para as numerosas e dispersas fontes de informação.
Que me diz? estranhou Ellen, perplexa.
Apresentou-me uma proposta. Sabia que eu vasculhava o passado do Wright...
E ele queria utilizá-lo.
Nada disso. Desejava ajudar. Ofereceu-me a utilização do seu computador, fax e telefones e trabalhámos juntos metade da noite de terça-feira e todo o dia de ontem. Foi assim que nos inteirámos do caso da Pensilvânia. Ele não lhe disse?
Fomos desviados do caminho por um maníaco homicida. Depois, no hospital, foi o Mitch quem me falou no caso Wiskow.
Porque, entretanto, Brooks se sujeitava à aplicação de alguns pontos naturais.
Oferecera-se para ajudar. Em favor do caso ou apenas com o foco apontado ao seu livro?
Megan levantou-se cautelosamente e colocou a canadiana debaixo do braço esquerdo.
Para quem foi advogado, pode considerar-se um tipo fixe. Sem ofensa.
Nem me passou pela cabeça assegurou-lhe Ellen. Ele deslocara-se a Deer Lake para observar de longe, assimilar tudo e finalmente vender.
Ajudara a esclarecer o assunto. Salvara-lhe a vida... e roubara-lhe o coração. Ela não o queria admitir, mas correspondia à verdade. A sua vida revestia-se de muito maior simplicidade antes de ele se lhe introduzir. Conseguira transpor todas as barreiras e despertar algo no seu íntimo que até então Ellen refutara necessidade, a necessidade de sentir, de estimar em excesso.
Ele viera para se concentrar no caso e este agora terminara.
Raios te partam, Brooks! articulou entre dentes, para ninguém em especial, pois tornara a estar só. E agora, que mais?
Sugiro um bife suculento para o jantar e uma noite lenta e longa na cama recomendou ele, emergindo do corredor às escuras. Juntos. Para dormir.
Tinha mais ou menos o mesmo aspecto da primeira noite em que o vira, com o sorriso escarninho de pirata e tudo. O casaco desabotoado permitia ver a bandoleira que amparava o braço dobrado.
Ellen ignorou a ideia de que o conjurara com a imaginação e fitou-o, de fonte enrugada.
Há ainda uma fila de espera, lá fora?
Não, minha senhora. Sou o último.
Que fazes aqui? Devias estar internado no hospital.
O doutor Baskir pôs-me a andar.
Custa-me muito a crer.
Bem. Ele emitiu um suspiro de resignação. Talvez eu contribuísse para isso.
Essa já é uma versão mais crível.
Tornou a sorrir, contornou a mesa, apoiou a coxa a uma das extremidades e pegou num pesa-papéis como se fosse uma bola de basquete.
O meu tio Hooter sempre disse que eu era capaz de seduzir uma professora de catecismo.
Um talento muito útil. Quem seduziste para chegar aqui?
O meu velho amigo agente Qualey. Sabias que, uma ocasião, dominou um ladrão atirando-lhe uma cobra viva?
Que fazia ele com a cobra viva?
Não sei. Nem me interessa. Pelo menos, tenho a certeza absoluta de que não quero escrever um livro sobre isso.
Acredito. O que tens para escrever acerca deste caso basta-te. Mentes perversas, sexo, violência, corrupção, etc. O material favorito do grande público.
Não haverá livro algum anunciou Jay, ao mesmo tempo que observava a reacção da interlocutora. Perdi a minha objectividade.
Mas ganhara coisas que ainda não se convencera por completo que desejava: simpatia, nobreza, uma consciência. Tudo isso parecia um conjunto de medalhas que lhe haviam pregado no peito, em vez de na camisa.
A Megan explicou-me o que fizeste para ajudar murmurou Ellen. Estou-te muito grata.
Não deixes isso transpirar. Destruirias a minha reputação de oportunista manhoso.
Pode haver quem abarque a situação quando vir que não resulta um best-seller de tudo isto.
É uma contingência a que terei de me sujeitar. Desta vez, que o faça outro.
Portanto, vieste até ao Minnesota, enregelaste o rabo e quase perdeste a vida para nada?
Tanto não direi. Brooks baixou a voz e aproximou-se. De modo algum. O que levarei daqui é mais valioso que qualquer história.
Vais partir? Ela apressou-se a tentar dominar a surpresa. De facto, como já não há nenhum livro para escrever...
Ele viera para um livro. Para nada mais. Tinha a vida constituída no Alabama. E Ellen em Deer Lake. Os seus caminhos haviam-se cruzado e agora voltariam a separar-se.
Parecia demasiado prematuro.
Tenho um filho que gostava de conhecer explicou Jay, baixando a voz. Apenas conhecer. Perdi oito anos da sua vida. Terei muita sorte se não vierem a ser mais, se dispuser de uma opção.
Ela conseguiu encontrar um sorriso para lhe oferecer.
Ainda bem que fizeste essa opção, Jay. Oxalá tudo corra pelo melhor.
Oxalá. Ele fez uma breve pausa. Depois, gostava de experimentar a minha habilidade na ficção.
Não me digas!
Procuro uma protagonista continuou, observando-a com atenção. Os dias e noites de uma linda assistente da acusação. Endireitou-se e acercou-se mais, enquanto um sorriso se ia alargando nas faces de Ellen. Queres ajudar-me nas pesquisas? segredou numa inflexão como fumo sobre cetim, ao mesmo tempo que se inclinava mais para a beijar. Sugiro que comecemos pelas noites...
EPÍLOGO
Ela sentava-se, só, no pequeno quarto branco, com a única iluminação proveniente da Lua através da alta janela gradeada. Verdadeiramente só pela primeira vez na vida. Como um balão libertado no espaço. Provenientes de outros quartos como aquele, ela conseguia ouvir os gritos agudos e o choro sinistro de pessoas sem rosto. Sons nocturnos. Sons que lhe proporcionavam uma estranha sensação de conforto.
Entoando suavemente uma balada para si própria, baloiçava uma almofada num braço, enquanto escrevia na parede, com um lápis azul:
ENTRADA NO DIÁRIO
3 de Fevereiro de 1994
Adeus a Garrett
Adeus a nós
Olá a mim
Quem será a minha família?
Dentro da minha cabeça Dentro do meu coração
Fora destas paredes Um jogo novo vai principiar
Um dia…
Tami Hoag
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