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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO / Ursula K. Le Guin
A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO / Ursula K. Le Guin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

             O Desfile em Erhenrang

Dos arquivos de Hain, transcrito do documento audisível preparado em Gethen, 01-01101-934-2, para os estábiles em Ollul. Narração de Genly Ai, primeiro móbile em Gethen. Inverno, ciclo de Hain, número 93. Ano ecumênico 1490-97.

 

 

 

 

Farei um relato como se estivesse contando uma histó­ria, pois fui ensinado, quando criança, em minha terra natal, que a verdade é uma questão de imaginação. O mais im­pressionante fato pode desvanecer-se ou brilhar apenas pelo estilo da narrativa; como aquela jóia natural e singular de nossos mares que se torna mais cintilante quando usada por uma mulher, e opaca quando usada por outra, tornando-se gasta, até virar pó. Os fatos não são mais sólidos, coerentes, completos e reais do que as pérolas. Mas ambos são sus­ceptíveis. A história não é toda minha, nem contada só por mim. Na verdade, não estou certo do que seja esta trama; você poderá julgar melhor. Mas tanto faz, e se em certos momentos os fatos se apresentarem com um aspecto diferente, então você escolherá o que preferir. Entretanto, nenhum deles é falso e pertencem todos ao mesmo aconte­cimento. A história começa no 44.° diurnal do ano 1491, que, no planeta Inverno, na nação Karhide, corresponde ao odharhahad tuwa ou o 22° dia do terceiro mês da primavera do ano 1. É sempre ano 1 aqui. Apenas a data do ano que passou, ou do que está por vir, muda a cada dia do novo ano, e se conta para trás e para a frente, a partir da unidade. Assim, era primavera no ano 1 em Erhenrang, capital, Karhi­de, e eu estava com a minha vida em perigo e não sabia disso.

Encontrava-me num desfile. Andava exatamente atrás das trompas de caça, na frente do rei. Chovia. Nuvens de chuva sobre torres escuras, chuva caindo em recônditas ruas, uma escura cidade de pedra, batida por tempestades, atra­vés da qual o desfile, como um filão de ouro, serpenteava vagarosamente. Na frente vinham mercadores, potentados e artesãos da cidade de Erhenrang, fileira atrás de fileira, magnificamente vestidos, avançando através da chuva tão à vontade como peixes no mar. Seus rostos estavam radiosos e calmos. Não caminhavam a passo marcial. Era um desfile sem soldados, nem mesmo soldados de imitação.

A seguir vinham os fidalgos, os prefeitos, os represen­tantes, um cidadão qualquer, cinco ou quarenta e cinco, ou quatrocentos, de cada domínio ou co-domínio de Karhide. Era uma grande e ornamentada parada movendo-se ao som de clarins metálicos, ou aos sons cavernosos dos instrumen­tos de osso e madeira, ou à pura e seca melodia de flautas elétricas. As várias bandeiras dos grandes domínios, numa profusão de cores, no meio da chuva, se entrelaçavam com as flâmulas amarelas que enfeitavam o caminho, e as várias músicas de cada grupo se desencontravam e misturavam-se em muitos ritmos, ecoando na sóbria rua de pedra.

Atrás destes, um bando de malabaristas portava esferas de ouro polido, que atiravam para cima em vôos reluzentes, e agarravam para arremessar de novo, criando efeitos de fontes luminosas. De repente, o sol as transpassava, e as esferas, como se tivessem capturado literalmente toda a luz, resplandeciam douradas no ar.

Logo atrás, iam quarenta homens vestidos de amarelo, tocando trompas de caça. Esse instrumento, tocado apenas na presença do rei, produz uma vibração surda e tristonha. Quarenta trompas, tocadas em uníssono, abalam a mente de qualquer um, sacodem as torres de Erhenrang, fazendo despencar os últimos respingos de chuva. Se é esta a música real, não é de admirar que os reis de Karhide sejam todos loucos.

No grupo seguinte vinham a corte, guardas, funcioná­rios e dignitários da cidade e da corte, deputados, senado­res, chanceleres, embaixadores, lordes do reino, nenhum de­les mantendo a ordem e a marcha por hierarquia, mas caminhando com grande dignidade; e entre eles está o Rei Argaven XV, vestido com uma túnica, camisa e culote brancos, perneiras de couro alaranjado e uma longa capa amarela. Um anel de ouro é seu único adorno e signo de sua posição.

Atrás deste grupo, oito sujeitos fortes transportam a liteira real, cravejada de safiras amarelas, na qual nenhum rei tem sido transportado há séculos; uma relíquia cerimo­nial de um passado remoto. Dos lados da liteira, seguem oito guardas armados com espingardas usadas para pilhagem, também relíquias de um passado bárbaro, carregadas com carga de chumbo. A figura da morte caminha atrás do rei. E atrás dela vêm os estudantes das escolas de artífices, das faculdades, do comércio e do abrigo real, longas filas de jovens e crianças, em branco, vermelho, dourado e verde; e, finalmente, grande número de carros escuros, em marcha lenta e suave, fechava a parada.

Eu fiquei com os outros do grupo da corte no palan­que de madeira, ao lado do inacabado Arco da Ponte do rio Gate. O objetivo da parada é a conclusão deste arco, que completa as obras da nova estrada e o porto fluvial de Erhenrang, uma grande operação de dragagem, construção e abertura de estrada que durou cinco anos, e irá marcar o reinado de Argaven XV, nos anais de Karhide.

Estamos firmemente comprimidos no palanque, na nos­sa pesada e úmida elegância. A chuva terminara, o sol bri­lhava sobre nós, o esplêndido, radiante e traiçoeiro sol de inverno. Observei à pessoa à minha esquerda:

Está calor. Está realmente quente!

A pessoa à minha esquerda, um karhideano atarracado e moreno, de cabelos lisos e espessos, vestindo um sobre­tudo pesado de couro verde, trabalhado em ouro, camisa grossa, calças pesadas e uma corrente de prata no pescoço, transpirando abundantemente, respondeu-me:

É verdade.

Em torno de nós, o povo da cidade, as fisionomias erguidas para o alto, parecia um amontoado de pedrinhas escuras, com milhares de olhos atentos, brilhando ao sol.

De súbito o rei ergueu-se e surgiu numa passarela de madeira, dirigindo-se ao alto do arco cujas pilastras incom­pletas dominavam a multidão, o cais e o rio. À medida que avança, a multidão ondula e ouve-se um murmúrio abafado: "Argaven!" Ele não responde. O povo não espera mesmo uma resposta.

As trompas emitem um estrondo dissonante e se calam. Silêncio em torno. O sol brilha sobre a cidade, o rio, a multidão e o rei. Os pedreiros instalam um guincho elétrico, e à proporção que o rei vai subindo, a chave do arco vai sendo içada e ajustada quase imperceptivelmente. Um gran­de bloco, pesando toneladas, na abertura entre as duas pi­lastras, serve para uni-las e completar o arco. Um pedreiro, com pá e balde, aguarda o rei no alto do andaime, enquanto os outros trabalhadores descem por escadas de cordas, como um enxame de moscas. O rei e o pedreiro se ajoelham entre o rio e o sol, na extremidade da passarela. Apanhando a pá, o rei começa a cimentar as juntas da chave. Ele não cimenta apenas simbolicamente, mas dedica-se ao trabalho de forma bastante metódica. O cimento que ele usa é de cor rosada, diferente do outro, e depois de observar cinco ou dez mi­nutos esta abelha-mestra trabalhando, pergunto à pessoa à minha esquerda:

As chaves são sempre fixadas com cimento verme­lho? Esta mesma cor é vista nas juntas de todas as chaves de cada arco da velha ponte...

Enxugando o suor da testa, o homem — homem, devo dizer, porque já me referi a ele — responde:

Há muito tempo essa chave era instalada com uma mistura de ossos e sangue. Ossos e sangue humanos. Sem isso, o arco cairia, você sabe. Atualmente usamos sangue de animal.

Ele fala freqüentemente assim, de maneira franca em­bora cautelosa, irônica, como que ciente de eu estar vendo e julgando como um alienígena, uma consciência estranha, alguém de uma raça tão elevada quanto especial.

Ele é um dos homens mais poderosos de seu país. Não estou seguro do equivalente histórico de sua posição: vizir, primeiro-ministro ou conselheiro. Na linguagem karhideana significa "o ouvido do rei". Ele é senhor de domínio e se­nhor do rei. Manipulador dos grandes acontecimentos. Seu nome é Therem Harth rem ir Estraven.

O rei parece ter acabado o seu trabalho e eu me rego­zijo; mas, atravessando sob a curva do arco, na teia de andaimes, ele começa a cimentar o outro lado da chave. Não se pode ser impaciente em Karhide. Seu povo é fleumático, mas obstinado e pertinaz. Leva até o fim suas tarefas. As multidões, às margens do Sess, gostam de apreciar seu rei no trabalho. Mas estou cansado e com calor. Nunca senti tanto calor no inverno e creio que jamais sentirei outra vez. Não consigo apreciar o acontecimento. Estou vestido para a idade do gelo e não para o calor do sol, com camadas e camadas de roupas, fibras sintéticas e naturais, peles, couro, uma armadura maciça contra o frio, dentro da qual mur­cho como uma folha de rabanete. Para me distrair, olho a multidão e os outros membros da comitiva que rodeia o palanque com suas bandeiras de clãs e domínios, pendentes, imóveis e brilhantes à luz do sol. Displicentemente pergunto a Estraven:

Que significam aquelas bandeiras?

Ele conhece todas, apesar da grande quantidade, algu­mas de domínios distantes, de tribos primitivas, da fronteira do Pering Storm ou da Terra de Kerm.

Eu mesmo sou de Kerm — diz ele quando percebe a minha admiração por seu conhecimento. — De qualquer maneira — continua —, tenho obrigação de conhecer os domínios. Eles fazem parte de Karhide. Governar esta terra é governar seus senhores. Não que isso jamais tenha sido feito. Você conhece o ditado: "Karhide não é uma nação, mas uma briga de família"? — Eu não conhecia e penso que ele o inventou na hora, pois aquele ditado tinha muito de sua marca pessoal.

Nesta altura, um outro membro da Kyorremy — ou seja, o Parlamento, que é liderado por Estraven — abre caminho e chega junto dele, começando a conversar. Trata-se do primo do rei, Pemmer Harge rem ir Tibe. Fala muito baixo com Estraven, com um sorriso freqüente e ar inso­lente. Estraven, derretendo-se como gelo ao sol, permanece elegante mas frio, respondendo aos murmúrios de Tibe em voz alta, num tom cortesmente polido, fazendo o outro pa­recer um tolo. Escuto-o, mas não compreendo o que falam, a não ser a perceptível animosidade entre Tibe e Estraven. Nada tem a ver comigo, mas estou bastante interessado no comportamento destes senhores que governam uma nação, na velha acepção do termo; que manobram o destino de vinte milhões de pessoas. O poder se tornou uma coisa tão complexa e sutil na evolução alcançada pelo Conselho Ecumê­nico que apenas uma mente sensível pode senti-lo a funcio­nar — aqui ele ainda é limitado, visível. Com Estraven sente-se o poder como uma ampliação do caráter do homem; ele não pode fazer um gesto inútil ou proferir uma palavra que não seja observado ou escutado. E ele sabe disto, e este conhecimento lhe dá mais realidade que à maioria das pessoas: uma solidez de ser, uma substancialidade, uma grandeza humana. Nada nos faz tão realizados como o êxito. Não confio em Estraven, cujas intenções são bastante obscuras; não gosto dele, mas sinto e respondo à sua auto­ridade tão seguramente quanto o faço ao calor do sol.

Enquanto penso, o sol escurece através de nuvens que se reagrupam, e logo uma rajada de chuva cai duramente na parte alta do rio, dispersando as multidões nas margens e escurecendo o céu. Quando o rei desce da passarela, a luz se filtra ainda mais uma vez e vêem-se a sua figura alva e o grande arco recortando-se nítidos e esplêndidos contra o horizonte já obscurecido pela tempestade.

As nuvens se fecham; um vento frio vem rasgando a Rua do Porto e do Palácio, o rio torna-se acinzentado, as árvores, nas margens, vergam-se. O desfile terminou. Daqui a meia hora estará nevando. Quando o carro real subiu a Rua do Porto e do Palácio, a multidão se dispersou lentamente como o movimento de maré vazante. Estraven volta-se para mim e diz:

Quer jantar comigo hoje à noite, Sr. Ai?

Aceitei mais por surpresa do que por prazer.

Estraven me auxiliara muito nos últimos oito meses, mas eu não desejava nem contava com um favor tão especial como o convite para ir a sua casa. Harge rem ir Tibe estava ainda muito próximo, ouvindo, e percebi que o convite era feito para ser ouvido. Aborrecido por este tom de intriga um tanto afeminada, desci do palanque e misturei-me com o povaréu, andando encurvado e de cabeça baixa. Não sou muito mais alto que a média do povo de Gethen, mas esta diferença se faz marcante num ajuntamento de pessoas.

É ele, olha! O Enviado!

Certo, isto fazia parte da minha missão, mas este as­pecto tornava-se cada vez mais pesado e difícil. Cada vez mais ansiava pelo anonimato, pela identidade com os outros. Ansiava mesmo ser igual a todos os outros. Algumas qua­dras adiante da Rua das Cervejarias, virei em direção aos meus alojamentos quando, subitamente, senti Tibe andando ao meu lado.

Uma cerimônia impecável disse o primo do rei sorrindo para mim.

Seus longos dentes amarelos surgiam e sumiam naquele rosto marcado por uma fina teia de rugas, embora não fosse um homem velho.

Bom sinal para o sucesso do novo porto re­truquei.

É verdade. Realmente... — Mais dentes apare­ceram.

A cerimônia da chave é marcante.

É verdade. Ela é uma tradição dos nossos ante­passados. Lorde Estraven, sem dúvida, já lhe explicou tudo.

Lorde Estraven tem sido muito gentil.

Eu tentava falar de maneira impessoal; entretanto, tudo que dizia assumia um duplo sentido.

Realmente, realmente... — disse Tibe. — É ver­dade que Lorde Estraven é conhecido pela atenção especial que concede aos estrangeiros... — Sorriu de novo e cada dente aparecia carregado de múltipla intenção.

Poucos estrangeiros são tão estranhos quanto eu, Lorde Tibe. Sou muito grato por todas essas considerações.

É verdade... é verdade... E a gratidão é uma emoção rara, nobre, muito cantada pelos poetas. Muito rara mesmo aqui em Erhenrang, talvez por ser impraticável. Es­tamos vivendo uma época dura, uma época ingrata. As coisas não são mais como foram em priscas eras, não é mesmo?

Sei muito pouco sobre isso, senhor, mas tenho ouvido este mesmo lamento em outros mundos.

Tibe me olhou por certo tempo, como que tentando avaliar minha perturbação. Depois, num largo sorriso, pôs à mostra seus grandes dentes amarelos.

Ah, é verdade! É verdade. Sempre me esqueço que você vem de outro planeta. Mas naturalmente isto não é coisa que você possa esquecer. Entretanto, sua vida aqui em Erhenrang seria mais simples e segura se você pudesse es­quecer, não? Bem, aqui está o meu carro. Estacionei bem fora do caminho. Gostaria de lhe dar uma carona, mas tenho que me privar deste prazer, pois sou esperado no palácio real e... parentes pobres devem sempre chegar cedo, como diz o ditado, não? É isso... — finalizou o primo do rei, su­bindo no seu pequeno carro negro, movido a eletricidade, dentes à mostra para mim, mas olhar velado pelas retículas de rugas. Fui para minha Karhosh[1].

Agora que a neve do último inverno já degelara, seu jardim fronteiriço aparecia, mas as portas de inverno, que ficam a alguns centímetros acima do nível do solo, perma­neciam seladas por alguns meses mais na expectativa do outono com suas neves abundantes. Num canto do edifício, na rampa que ainda cobria parte da floração primaveril do jardim, encontrava-se um jovem casal conversando, de mãos dadas. Estavam na primeira fase típica de kemmer, para nós, amor. Tinham os pés descalços na lama gelada, as mãos entrelaçadas, olhos nos olhos, e sobre eles caíam dançando flocos suaves de neve. Sem dúvida, era primavera no pla­neta Inverno.

Jantei na minha ilha e quando soou a 4.a hora nos gon­gos da Torre Remny, fui para o palácio cear. Os karhideanos tomam quatro refeições substanciais por dia: desjejum, almoço, jantar e ceia, além de uma série de outras merendas nos intervalos. Não há nenhuma refeição de carne animal em Inverno e nenhum produto derivado dos mamíferos, como leite, manteiga ou queijo. Os únicos alimentos ricos em pro­teína são as diferentes qualidades de ovos, peixes, nozes e cereais de Hain. É uma alimentação rica em calorias, devido ao clima tão cruel; por isso, todos têm que se reabastecer freqüentemente delas. Eu me habituei, assim, a me alimen­tar a toda hora. Só mais tarde fui descobrir que os gethenianos haviam aperfeiçoado uma técnica tanto de se reabas­tecer freqüentemente como também de jejuar indefinida­mente.

A neve ainda caía, com um ameno vento primaveril, muito mais agradável que a chuva ininterrupta do degelo que acabara. Dirigi-me ao palácio, sob uma nevasca silen­ciosa, no pálido anoitecer. Perdi-me no caminho apenas uma vez. O palácio de Erhenrang é como uma fortaleza, uma selva murada de palácios, torres, jardins, pátios, claustros, passadiços cobertos, túneis, pequenas florestas e torres de sentinela, produto de séculos de paranóia em grande escala.

Em meio a tudo isso, surgem as paredes avermelhadas e sombrias da casa real, que embora em desuso temporário é habitada unicamente pelo rei. Todos os demais, emprega­dos domésticos, funcionários civis, lordes, ministros, parlamentares, guardas, etc., dormem em outro palácio ou fortaleza, quartel ou casas, dentro das muralhas.

A casa de Estraven era a Residência da Esquina Ver­melha, sinal de notável honraria real, construída há quatro­centos e quarenta anos para Harmes, o bem-amado compa­nheiro de Emran III, cuja beleza ainda é celebrada, e que foi raptado, mutilado e imbecilizado pelos capangas da Fac­ção Innerland. Emran III morreu quarenta anos depois, ainda saciando sua vingança naquele infeliz país. Ele era mais conhecido como Emran, o Desgraçado.

Sua tragédia é tão antiga que todo o seu horror se diluiu com o tempo, mas uma certa atmosfera de infelicidade e melancolia ficou impregnada nas pedras e sombras da casa.

O jardim era pequeno e murado. Árvores secas debru­çavam-se sobre uma piscina de pedra. Através das faixas de luz das janelas da casa eu via flocos de neve caindo junto com os esporos das árvores nas águas turvas da piscina.

Estraven me esperava de cabeça descoberta e desagasalhado, no frio, observando aquela incessante e secreta queda de flocos e sementes no anoitecer. Cumprimentou-me silenciosamente e conduziu-me para o interior da casa. Não havia outros convidados. Admirei-me com isto, mas fomos logo para a mesa e, claro, não se conversa de negócios às refeições... Além do mais, meu espanto foi dirigido para a refeição: era preparada de maneira deliciosa, mesmo contan­do com os eternos e comuns pães de maçã, que se transfor­maram em algo especial nas mãos de um cozinheiro experi­mentado, a quem não poupei elogios.

Após a ceia, bebemos cerveja quente junto à lareira. Num mundo onde o utensílio mais comum é um pequeno quebra-gelo para partir a crosta gelada que se forma no seu copo, entre dois goles, uma cerveja assim é para ser apre­ciada!

Estraven conversara amavelmente à mesa. Agora, sen­tado na frente da lareira, diante de mim, estava calado. Ape­sar de já estar há dois anos em Inverno, ainda me sentia incapaz de ver o povo do planeta sob seu próprio ângulo. Eu bem que tentava entendê-los, forçando-os a pertencerem a um dos gêneros — masculino ou feminino —, classificação tão inútil à natureza deles, mas essencial à nossa. Assim, bebericava a minha cerveja amarga e fumegante e lembrava que, à mesa, a atitude de Estraven fora bem feminina, todo ele charme e tato, faltando-lhe substância máscula.

Seria essa feminilidade suave e fácil que me desagra­dava e me levava a desconfiar dele? Por outro lado, era im­possível pensar nele como uma mulher; não aquela figura escura, irônica e poderosa ali ao meu lado, na escuridão que­brada apenas pela luz da lareira... No entanto, quando pen­sava nele como homem, havia algo falso, de impostura. Seria nele ou em minha atitude em relação a ele? Sua voz era macia, não profunda; não chegava a ter um timbre masculi­no, embora tampouco feminino. . . Mas o que ele estava dizendo?

— Sinto muito — dizia ele — ter adiado por tanto tempo o prazer de tê-lo em minha casa. Mas, afinal, sinto-me satisfeito na medida em que não é mais necessário haver qualquer problema de prestígio político entre nós.

Fiquei intrigado com isso. Ele havia sido meu introdu­tor e patrocinador na corte até aquele momento. Quereria dizer que a audiência que me conseguira com o rei, para o dia seguinte, me colocara no mesmo nível dele?

Não sei se estou compreendendo... — disse-lhe.

Foi a sua vez de ficar surpreendido.

Bem, você há de entender disse finalmente —, há de compreender que de agora em diante... não estou mais agindo a seu favor junto ao rei, é claro...

Estraven falava como se tivesse vergonha de mim, não de si próprio. Havia, nitidamente, um sentido no seu con­vite e no fato de eu haver aceitado que me escapara. Porém meu erro foi quanto à educação; o dele, quanto à moral. Tudo o que pensei foi que tinha acertado em não confiar nele. Estraven não era apenas hábil e poderoso: era também infiel.

Durante todos esses meses em Erhenrang fora ele quem me escutara, quem respondera às minhas perguntas, pro­curara médicos e engenheiros para me examinarem e à minha nave; apresentara-me às pessoas que precisava conhecer e lentamente me erguera do status inicial com que tinha sido recebido um fenômeno altamente imaginoso até o meu atual reconhecimento, como o Enviado misterioso que seria recebido pelo rei. Agora que me havia colocado nesta alta e perigosa posição, ele me participava que ia retirar seu apoio.

Você me fez confiar em seu apoio.

Foi um erro.

Você quer dizer que, tendo obtido esta audiência, você não falou ao rei a favor da minha missão como havia...

Tive o bom senso de parar antes da palavra "prome­tido".

Não posso.

Eu estava muito aborrecido, mas não havia nele nem zanga nem preocupação.

Pode me dizer por quê?

Após uns instantes respondeu que sim e parou para pensar de novo. Neste momento passou-me pela cabeça que um alienígena, indefeso e inepto, não deveria pedir satis­fações ao primeiro-ministro de um reino, especialmente quan­do ele não compreendia, e talvez nunca chegasse a com­preender, os alicerces desse poder e do governo desse reino. Sem dúvida, tratava-se de uma questão de prestígio, esse intraduzível e todo-poderoso princípio de autoridade social em Karhide e de toda a civilização getheniana. E, como tal, não conseguia compreendê-lo.

Você ouviu o que o rei me disse hoje, na ceri­mônia?

Não.

Estrâven inclinou-se para a frente da lareira, retirou o jarro de cerveja das brasas quentes e tornou a encher meu canecão. Não disse mais nada. Eu então continuei:

O rei não falou com você na minha presença.

Nem na minha — retrucou.

Percebi que estava perdendo outra pista. Maldita tor­tuosidade efeminada!

Retomei a palavra:

Está tentando me dizer, Lorde Estraven, que caiu no desagrado real? — Pensei que ele fosse ficar zangado com a minha observação, mas não mostrou nenhum sinal disso. Acrescentou apenas:

Não estou tentando lhe dizer nada, Sr. Ai!

Por Deus! Eu bem que gostaria!

Ele olhou para mim, com curiosidade.

Bem, então veja a coisa por este ângulo: há pessoas na corte que estão nas boas graças do rei, mas não estão a favor de sua missão e de sua presença aqui.

"E assim", pensei eu, "você está se apressando a juntar-se a eles, vendendo-me, para salvar sua pele." Mas era inútil dizer-lhe tais coisas.

Estraven era um homem da corte, um político, e eu fora um tolo em confiar nele. Mesmo numa sociedade bissexuada, o político está longe de ser um homem integral. Seu convite para jantar mostrava que ele pensava que eu aceita­ria sua traição tão facilmente quanto ele a cometera. Era óbvio que a auto-preservação era mais importante que a honestidade. Fui, assim, levado a dizer-lhe:

Sinto muito que suas atenções para comigo tenham lhe causado contratempos.

Senti um fugaz sentimento de superioridade moral, mas não por muito tempo. Ele era imprevisível.

Reclinou-se de modo a que a luz rubra da lareira inci­disse sobre seus joelhos, nas pequenas mãos delicadas, mas fortes e no canecão de prata.

Conservou o rosto sombrio mergulhado no escuro, sem­pre escondido sob o espesso cabelo longo, sobrancelhas e cílios grossos, mas mantendo uma certa suavidade de expressão. Pode-se ler a fisionomia de um gato, de uma lontra ou de uma foca? Parece-me que alguns gethenianos são como estes animais, com olhos brilhantes que não mudam de ex­pressão quando falam.

Eu mesmo procurei encrenca para mim respon­deu. Por algo que, afinal, nada tem a ver comigo, Sr. Ai. Você sabe que Karhide e Orgoreyn têm uma questão terri­torial quanto à posse de terras na fronteira do Outono Se­tentrional, perto de Sassinoth. O avô de Argaven exigia o vale do Sinoth para Karhide e os comensais nunca reconhe­ceram essa exigência. Muita neve para uma nuvem só... e está ficando cada vez mais grossa... Tenho ajudado alguns fazendeiros karhideanos que vivem no vale para que se mu­dem para o lado de cá, pensando que com isso poderia facilitar o problema, deixando o vale simplesmente para Orgota, que ali tem vivido há milhares de anos. Eu fazia parte do Outono Setentrional há anos e cheguei a conhecer alguns desses fazendeiros. Desagrada-me vê-los mortos em atos de pilhagem ou então enviados para as comunidades rurais em Orgoreyn. Por que não simplificar o objeto da disputa? Mas isto não é uma idéia patriótica realmente é uma covardia e envolve a lealdade do próprio rei.

Suas ironias, essas questiúnculas de brigas de fronteiras com Orgoreyn não me interessavam. Voltei ao meu assunto. Confiando ou não, tinha que me valer dele, ainda.

Sinto muito disse —, mas é lastimável que esta questão de uns poucos fazendeiros venha a prejudicar as chances de minha missão junto ao rei. Estão em jogo muito mais que alguns quilômetros de fronteiras.

É certo, muito mais. Mas talvez o Conselho Ecumê­nico, que está a milhares de anos-luz, tenha um pouco de tolerância conosco.

Os membros do Conselho Ecumênico são homens muito pacientes, senhor. Podem esperar, por centenas de anos, que Karhide e o resto do planeta Gethen deliberem se querem ou não se juntar ao resto da humanidade. Eu estou falando apenas das minhas esperanças pessoais. E o desapontamento também é pessoal. Eu pensei que, com o seu apoio...

Eu também. Bem, geleiras não se degelam numa noite...

As frases feitas vinham-lhe facilmente, mas senti que seu pensamento estava longe. Ele meditava. Imaginei-o movimentando-se como um dos peões do seu xadrez de poderio.

Você veio ao meu país numa época difícil — disse finalmente. — As coisas estão mudando, estamos numa virada de rumos. Não, não é bem isso... Eu penso que sua presença, sua missão, poderia evitar erros nossos, dar-nos uma nova e total opção. Mas terá que ser no momento exato e no lugar certo. Tudo depende, terrivelmente, da sorte, Sr. Ai!

Impaciente com essas generalidades, retruquei:

Você quer dizer que ainda não chegou minha hora. Você me aconselharia a cancelar minha audiência?

Minha gafe era imperdoável em Karhide, mas Estraven não se perturbou:

Receio que apenas ao rei seja concedido este pri­vilégio.

Por Deus! Não me referia a isso!

Criado na livre e aberta sociedade da Terra, eu nunca compreenderia o protocolo, a impassividade tão valorizada pelos karhideanos. Sabia o que significava um rei, a própria história da Terra estava cheia deles, porém eu não tinha tido experiência viva e direta com reis, e agora fora completamente sem tato. Apanhei minha caneca e dei uma tragada vigorosa.

Bem, pretendo revelar menos ao rei do que preten­dia, agora que não conto mais com o seu apoio.

Muito bem.

Por que "muito bem"? — perguntei.

Bem, porque, meu amigo, nós não somos loucos. Nenhum de nós é rei, evidentemente. Suponho que pretenda dizer a Argaven, de modo racional, que sua missão aqui é tentar uma aliança entre gethenianos e o Conselho Ecumêni­co. Ele já sabe disso porque já lhe contei, é óbvio. Fiz tudo para interessá-lo na sua pessoa e na sua missão. Mas foi inútil e inoportuno. Esqueci-me, por estar muito interessado em ambos, de que ele é um rei e não vê as coisas como nós e sim como rei. Tudo o que lhe contei resumiu-se, para ele, em ameaça ao seu poder, ao seu reino — um grão de poeira no espaço —, ao seu reinado, uma piada para os homens que governam centenas de mundos.

Mas o Conselho Ecumênico não governa, ele coorde­na. Seu poder é, precisamente, o poder dos seus Estados membros e mundos. Como aliada do conselho, Karhide vai ficar infinitamente menos ameaçada e mais importante do que jamais foi.

Estraven silenciou. Fitava de modo abstrato o fogo cujas flamas, tremulando, se refletiam na corrente de prata que lhe rodeava o peito, símbolo do cargo que ocupava na­quela comunidade.

A casa estava tranqüila. Os empregados que serviram o jantar tinham ido embora, pois lá não havia escravidão e serviçais para uso pessoal. Alugava-se serviço e não gente. Uma figura como Estraven deveria ter guardas de segurança, pois assassinato era uma instituição muito em uso em Karhide; entretanto, eu não vira nenhum.

Estávamos sós. Eu me sentia isolado com um desco­nhecido, entre quatro paredes de um palácio sombrio, numa cidade soturna, em plena Idade do Gelo, num mundo estra­nho para mim.

Tudo o que dissera desde que viera para o planeta In­verno parecera-me, de repente, estúpido e inacreditável. Como poderia esperar que aquele homem, ou outro qual­quer, acreditasse nas minhas histórias sobre outros mundos e outras raças, um vago governo benevolente em qualquer ponto distante do espaço?

Era tudo absurdo. Eu havia aparecido em Karhide numa nave. Diferia fisicamente dos gethenianos em alguns aspectos isso exigia uma explicação, mas a minha era absurda, eu mesmo não acreditava nela, naquele momento.

Acredito em você disse por fim o estranho que estava a sós comigo. Tão forte havia sido também a minha crise de abstração que o encarei espantado. Tenho receio de que Argaven também acredite em você... Mas ele não confia em você, em parte porque não confia mais em mim. Tenho cometido erros, tenho sido descuidado. Não posso enganá-lo, tenho posto sua vida em risco. Esqueci o que é ser rei, que um rei se considera, ele próprio, o país, esqueci o que é patriotismo e que ele tem que ser, forçosamente, o patriota perfeito. Responda-me: sabe, por experiência pró­pria, o que seja patriotismo?

Não — respondi-lhe, abalado pela força daquela personalidade vigorosa que, de repente, se atirava sobre a minha pessoa. Continuei: Penso que não. Se por patriotismo você não quer dizer o amor à sua própria terra natal, então não sei o que significa patriotismo.

Não, não quero dizer amor quando falo de patrio­tismo. Quero dizer medo. Medo do outro. Suas conotações são políticas e não poéticas: ódio, rivalidade, agressão. Cres­ce em nós esse medo. Cresce ano a ano. Trilhamos essa estrada até muito longe. E você, que veio de um mundo que ultrapassou as nações há séculos, mal pode imaginar do que estou falando.

Parou subitamente. Após alguns momentos, tendo no­vamente recobrado seu controle, falou calmo e polido:

É por causa do medo que me recuso a patrocinar agora sua causa junto ao rei. Não, não temo por mim mesmo, Sr. Ai. Não estou agindo patrioticamente. Afinal, há outras nações em Gethen.

Não tinha idéia de aonde ele queria chegar, mas estava certo de que o que ele dizia era exatamente o que pensava.

Entre todas as almas obscuras, enigmáticas e bloquea­das que eu encontrara naquela cidade árida, a sua era a mais sombria. Não iria entrar no seu jogo intrincado. Não res­pondi. Logo a seguir, continuou cautelosamente:

Se eu o compreendi, o Conselho Ecumênico é essencialmente dedicado aos interesses da humanidade em geral. Agora, os orgotas, por exemplo, têm experiência em subordinar os interesses locais aos interesses gerais, enquanto Karhide não o faz absolutamente. E os comensais de Orgoreyn são na maioria homens sãos, talvez pouco inteligentes, enquanto o rei de Karhide não é apenas insano como tam­bém imbecil.

Estava claro que Estraven não tinha nenhuma lealdade. Respondi com um certo desprezo:

Deve ser difícil, então, servir ao rei, se é este o caso.

Não estou bem certo se algum dia servi ao rei — disse o primeiro-ministro. — Ou se realmente pretendia servir-lhe. Não sou empregado de ninguém. O homem deve ser fiel à sua própria sombra.

O gongo da Torre Remny batia a 6.a hora — meia- noite — e então aproveitei para desculpar-me e sair.

Quando vestia o sobretudo no hall de entrada, ele disse:

Perdi a minha oportunidade agora, pois creio que você está deixando Erhenrang...

Por que ele supunha isto?

...mas confio que dia virá em que eu possa lhe lazer perguntas novamente. Há tanta coisa que desejo saber! Por exemplo, sobre a leitura da mente, você mal começou a me explicar sobre isto.

Sua curiosidade parecia perfeitamente genuína. Ele ti­nha a audácia dos poderosos. Suas promessas de ajuda tinham me parecido sinceras, também. Respondi que sim, naturalmente, quando ele quisesse, e isto foi o fim da noite. Con­duziu-me através do jardim, onde caía uma neve fina sob a lua enorme, mas embaçada. Estremeci de frio quando saí­mos, pois estava abaixo de zero, e ele acrescentou com uma surpresa polida:

Está com frio?!

Para ele, naturalmente, aquela era uma noite prima­veril. Sentia-me cansado e abatido. Respondi-lhe:

Tenho sentido frio desde que vim para este mundo.

Como é que você chama este mundo, na sua língua?

Gethen.

Você não tem um nome equivalente, de vocês...?

Temos; o primeiro investigador o batizou. Cha­mou-o planeta Inverno.

Tínhamos parado na porta do jardim. Fora, os tetos e a silhueta do palácio pesavam, sombriamente, contra a neve, recortados, aqui e ali, por janelas estreitas como seteiras, fracamente iluminadas por dentro.

Sob o arco estreito da entrada, olhei para cima; queria ver se a chave também estava cimentada com ossos e sangue.

Estraven despediu-se e entrou. Ele nunca era indelicado em seus cumprimentos ou despedidas.

Atravessei as aléias silenciosas do palácio, minhas botas chiando ao esmagar a fina neve enluarada, e me dirigi para meus alojamentos, através das ruas soturnas da cidade. Estava com frio, sem confiança, e, sobretudo, perturbado pela perfídia, solidão e medo.

 

 

Dentro da nevasca — A terra dos suicidas

Lenda de uma coleção de contos folclóricos do norte de Karhide, gravada e arquivada no Colégio dos Historiadores, em Erhenrang. Narrador desconhecido. Gravação datada do reinado de Argaven VIII.

 

Há duzentos anos, no lar de Shath, fronteira do Pering Storm, havia dois irmãos que se juraram kemmering. Na­quela época como irmãos sangüíneos, poderiam manter-se cm kemmer até o momento em que um deles tivesse um filho, após o quê, deveriam separar-se. Assim, não era permi­tido manter a ligação por toda a vida. Até então, eles o fizeram. Quando a criança foi concebida, o Lorde de Shath ordenou-lhes quebrar o voto e que nunca mais se encontras­sem. Ao receber esta ordem, um deles, o que gerara a criança, desesperado, sem ouvir conselhos ou aceitar ajuda, suicidou-se por envenenamento. Então o povo de Shath amoti­nou-se contra o irmão e expulsou-o de lá e dos domínios, lançando sobre ele a culpa e a vergonha do suicídio. E desde que seu próprio senhor o exilara e esta atitude era conhecida de todos, ninguém queria recebê-lo. Após três dias de hospedagem obrigatória, ele foi expulso como um fora-da-lei. Assim, andou de casa em casa até que, vendo que não havia Unidade na sua própria terra e que seu crime não seria perdoado, ele falou: "Não sou mais ninguém perante os ho­mens Ninguém me vê. Falo e não me ouvem. Bato e não sou recebido. Não há lugar na lareira para mim, nem comida na mesa ou leito para repousar. Mas ainda tenho um nome: Getheren é meu nome. Este nome deposito aqui, na vossa casa, entre vós, como uma maldição; com ele fica a minha vergonha. Ficai com ambos porque, agora, parto em busca da minha morte".

Alguns homens avançaram contra ele, aos gritos e em agitação, pretendendo matá-lo, pois assassinato é sombra menor sobre uma casa em que há suicídio[2]. Mas ele fugiu correndo em direção aos Gelos Eternos, não deixando que o alcançassem. Os perseguidores retornaram a Shath e desistiram. Getheren, que relutava em acreditar no que acontecera, porque era inexperiente e não abrigava dureza em seu cora­ção, prosseguiu e após dois dias de jornada chegou às geleiras de Pering[3].

Havia caminhado em direção aos gelos do norte. Não havia alimento nem abrigo, a não ser o seu casaco. Nas ge­leiras nada cresce e não há animais. Era o mês de susmy e as primeiras nevascas estavam caindo, dia e noite. Ele cami­nhou só, no meio da tempestade. No segundo dia, sentiu-se enfraquecer; na segunda noite teve que dormir um pouco; na terceira manhã, ao levantar, sentiu as mãos enregeladas e não conseguiu movimentá-las para desamarrar as botas. Seus pés também estavam duros. Começou a engatinhar apoiado nos joelhos e cotovelos, sem direção, pois não im­portava onde morresse; tanto fazia um lugar ou outro, mas, de qualquer maneira, ele sentia que devia ir para o norte.

Depois de um certo tempo a neve cessou de cair e o vento de soprar. O sol brilhou. Ele não podia ver nada, pois a pele do seu capuz lhe caía sobre os olhos. Não sentindo mais frio nas pernas, nos braços e no rosto, pensou que o frio o havia congelado. Entretanto, ainda podia se mover. A neve que recobria as geleiras lhe pareceu estranha, como se fosse um capim branco que crescia no gelo. Quando o tocava, dobrava e se erguia como se fosse grama comum.

Parou de engatinhar e sentou-se, empurrando o capuz para poder ver melhor os gramados brancos de neve bri­lhante que se lhe estendiam pela frente. Havia moitas de árvores de folhagem branca; o sol brilhava, o ar estava parado; tudo era branco ao redor. Getheren tirou as luvas e olhou as mãos. Estavam, também, da cor da neve. A ulce­ração do frio havia desaparecido, os dedos se articulavam e já conseguia manter-se de pé. Não sentia mais dor, fome nem frio. Avistou, ao longe, na direção norte, uma torre branca destacar-se do gelo, semelhante à torre do domínio. E deste longínquo local, de repente, surgiu uma figura que caminhou para ele. Ao aproximar-se, Getheren percebeu que estava desnudo e seus cabelos e pele eram inteiramente alvos. Chegando ao alcance de sua voz, Getheren perguntou:

Quem é você?!

A branca figura respondeu:

Sou seu irmão e kemmering: Hode.

Hode era o nome do irmão que se suicidara. Getheren reconheceu-o, então, em corpo e fisionomia. Mas ele não possuía vida dentro de seu corpo e sua voz soava como gelo ao partir-se. Getheren voltou a indagar:

Que lugar é este?

Este é o lugar dentro da nevasca. Nós, os suicidas, moramos aqui. Aqui podemos ser fiéis ao nosso juramento.

Getheren ficou apavorado.

Não vou ficar aqui! Se você tivesse partido comigo para as terras do sul, teríamos vivido juntos e conservado nosso voto por toda a vida; ninguém teria sabido da nossa transgressão à lei. Mas você quebrou o juramento ao acabar com a sua vida. E agora você não pode sequer pronunciar o meu nome.

Era verdade: ele movia os lábios, mas o nome de seu irmão não era emitido. A figura branca aproximou-se de Getheren com os braços estendidos para segurá-lo. Chegou mesmo a alcançar sua mão esquerda, mas Getheren libertou-se, fugindo dele em direção ao sul. Nesta direção, subi­tamente, viu erguer-se na sua frente uma espessa parede de neve. Penetrou nela e caiu, novamente, de joelhos, voltando a rastejar.

No nono dia após a sua partida para as geleiras, ele foi encontrado no domínio de Orhoch, localizado a nordeste de Shath. Encontraram-no arrastando-se na neve, faminto, quase cego, rosto queimado pelo sol e pela neve, e sem fala. Ninguém sabia quem era ele. Alguém disse que ele poderia ser Getheren, de Shath; outros acharam impossível, que não poderia ser, pois Getheren fora para as geleiras e a esta altu­ra já deveria estar morto.

Entretanto, ele se recuperou de tudo, exceto de sua mão esquerda, que ficou perdida e teve que ser amputada.

Negou seu nome e, quando se sentiu melhor, foi para as terras do sul, trocando seu nome para Ennoch.

Os anos se passaram e um dia Ennoch, já bem velho, vivendo nas planícies de Rer, encontrou um homem de seu país. E então perguntou-lhe:

Como vai o domínio de Shath?

- Mal, muito mal – retrucou-lhe o homem.

E contou-lhe que nada havia prosperado lá; o povo estava enfraquecido por doenças, as sementes da primavera permaneciam congeladas no solo ou os grãos maduros apodreciam... Assim era há muitos anos.

Foi aí que Ennoch resolveu revelar seu segredo:

- Sou Getheren de Shath – e contou tudo o que acontecera nas geleiras.

E terminou seu relato com estas palavras:

- Diga ao povo de Shath que recupero a mim, meu nome e minha sombra.

Dias depois ele adoeceu e morreu. O viajante levou suas palavras para Shath, e dizem que desta época em diante o domínio prosperou de novo, e tudo retomou sua vida normal nos campos e nas comunidades.

 

 

                     O Rei Louco

Levantei-me tarde e passei o resto da manhã relendo minhas notas sobre a etiqueta palaciana e as observações sobre os costumes e a psicologia dos getherianos, que me foram fornecidas por meus predecessores, os investigadores. Eu não prestava muita atenção ao que lia, pois sabia tudo de cor; lia apenas para fazer calar em mim uma voz que monologava no meu interior: “Saiu tudo errado”. Às vezes pensava comigo mesmo que eu teria me saído muito bem sem o auxílio de Estraven – talvez até melhor do que com ele. Afinal de contas, meu trabalho era solitário. Existe apenas um primeiro móbile. As notícias iniciais sobre o Conselho Ecumênico, em qualquer mundo, têm que ser dadas por uma só pessoa, presente em carne e osso, ao vivo e sozinho. Pode ser morto, como aconteceu com Pellelge, no Taurus 4, ou encarcerado como louco, como o foram os três primeiros móbiles em Gao, um após outro; no entanto, esta prática continua em uso porque funcionha. Uma voz falando a verdade é mais poderosa que exercitos e armadas, dando-se-lhe tempo – tempo em abundância – e tempo é uma coisa de que o conselho dispõe sem se preocupar.

Minha voz interior me negava esse sucesso, mas silenciei-a com argumentos e fui ao palácio, calmo e resoluto, para a minha audiência com o rei na 2ª. Hora. Mas foi tudo inútil; muito antes de ver o rei na sala de espera, eu já o sabia. Guardas e ajudantes do palácio introduziram-me na antecâmara, à qual se chegava através de longos corredores e salões. Um ajudante-de-ordens pediu-me para aguardar e deixou-me só naquela salas alta e sem janelas. Ali permaneci, todo paramentado para a visita real. Vendera meu quarto rubi (os investigadores tinham anotado que os gethenianos valorizam, tanto quanto os terráqueos, as pedras precdiosas, e eu lá cheguei com um punhado de gemas para pagar meus gastos); uma parte havia aplicado nas roupas para o desfile do dia anterior e para a audiência de hoje: vestuário novo, bem-confeccionado, pesado como deve ser em Karhide uma camisa branca de tecido de pelica, calções cinzentos, uma sobrecasaca longa com capuz —, o chamado hieb de couro turquesa, manto, botas e luvas, adequadamente postas no cinturão frouxo. A segurança de sentir-me bem vestido aumentava a minha serenidade e resolução. Olhava em tor­no, tranqüilo e confiante.

Como tudo na residência real, aquela sala era alta, vermelha, velha e pouco mobiliada, com uma atmosfera friorenta e úmida, como se as correntes geladas que nela penetravam se originassem em séculos passados. Um fogo estava aceso na lareira, mas não aquecia o suficiente. La­reiras acesas em Karhide aquecem a alma, mas não o corpo.

A Idade da Invenção, industrial e mecânica, em Karhi­de, já tem mais de três mil anos, e nesses trinta séculos puderam desenvolver excelentes processos de aquecimento central usando vapor, eletricidade e outros princípios. Mas não os instalam em suas casas. Talvez para não perderem sua resistência fisiológica ao frio. Talvez como os pássaros do Ártico que, quando conservados em gaiolas aquecidas, uma vez soltos ficam com as patas enregeladas. Eu era, entretanto, um pássaro tropical e sentia frio frio lá fora, frio dentro de casa, incessante e perseverantemente, sempre sentindo frio. Caminhava para cima e para baixo, tentando me aquecer.

Além de mim e do fogo na lareira, havia muito pouca coisa: uma banqueta e uma mesa com uma taça repleta de pedras decorativas e um velho rádio de madeira entalhada com ossos e pratas uma peça rara de artesanato. Estava tocando baixinho uma canção monótona, e eu aumentei o volume quando o boletim palaciano passou a ser transmiti­do. Os karhideanos não lêem muito e preferem notícias e literatura ouvidas. Livros e televisão são menos comuns que rádios, e não circulam jornais.

Eu havia perdido o noticiário pelo rádio de manhã, em casa, e agora o escutava abstratamente, o pensamento longe, até que a repetição de um nome chamou-me a atenção. Fi­quei atento. Era sobre Estraven! Uma proclamação estava sendo relida.

 

"Therem Harth rem ir Estraven, Lorde de Estre, no Kerm, é privado de seus títulos no reino e de sua cadeira na Assembléia. O rei lhe ordena que abandone o reino e todos os domínios de Karhide. Se ele não o fizer no espaço de três dias e, se durante sua vida aqui voltar, poderá ser morto por qualquer pessoa, sem haver nenhum julgamento poste­rior. Nenhum compatriota poderá dirigir-se a ele ou abrigá-lo em sua casa ou em suas terras, sob pena de prisão; igual­mente, nenhum cidadão de Karhide poderá lhe emprestar dinheiro ou dar-lhe alimentos, nem pagar nenhuma de suas dívidas sob pena de prisão ou multa. Todos os concidadãos devem saber que o crime pelo qual Harth rem ir Estraven é exilado é crime de traição. Tendo ele usado abertamente de seus privilégios na Assembléia e no palácio, sob o pre­texto de servir lealmente ao rei, pretendia que a nação-domínio de Karhide abrisse mão de sua soberania e entre­gasse o poder à uma certa união de povos. Em relação a esta união, quero que todos saibam que não existe, não passando de um artifício e uma ficção de certos traidores, conspirando para o enfraquecimento da autoridade em Karhide na pessoa de seu rei, em benefício de inimigos reais, atuantes em sua pátria. Odguyrny tuwa, 8.a hora no palácio de Erhenrang. Argaven Harge."

 

A ordem impressa fora afixada nos portões da cidade, nos postes das estradas, e o que transcrevo acima é a tra­dução literal de uma dessas cópias.

Meu primeiro impulso foi instintivo. Desliguei o rádio como para evitar que ele me acusasse também e fugi precipitadamente para a porta. Aí parei. Voltei à mesa junto da lareira e fiquei estático; não estava mais calmo nem confiante. Tive um impulso de abrir minha pasta, tirar meu audisível e enviar uma mensagem urgente até Hain. Controlei-me, porém. Ainda bem que não tive mais tempo, pois a porta dupla abriu-se inteiramente e um ajudante-de-ordens postou-se ao lado para que eu passasse e anunciou-me: "Genry Ai". Meu nome é Genly Ai, mas os karhideanos não sabem pronunciar o "1". Introduziu-me no salão vermelho onde estava o Rei Argaven.

Este salão era imenso, alto e comprido. Quase meia milha até as lareiras, outro tanto de altura até os tetos cheios de vigas, de onde pendiam bandeiras e flâmulas poeirentas e esfarrapadas pelo tempo. As janelas eram fendas ou aberturas nas paredes espessas e a luz fraca, escassa, vinha do alto. Minhas botas novas rangiam enquanto caminhava em direção ao rei. Parecia uma caminhada de seis meses.

Argaven estava na frente da lareira central, a maior das três, num tablado baixo e grande uma figura pequena na sombra avermelhada, muito ereto, embora um tanto bar­rigudo, escuro e sem nada de marcante no seu aspecto, a não ser o brilho do grande anel de sinete no polegar.

Parei na frente do tablado e, como já fora instruído, nada falei.

Suba, Sr. Ai. Sente-se.

Obedeci, sentando-me na cadeira ao lado direito da lareira central, conforme a etiqueta prescrevia.

Argaven não se sentou. Ficou a uma certa distância, com o fogo crepitante da lareira pelas costas, dizendo a seguir:

Diga-me o que tem a dizer, Sr. Ai. Soube que o senhor é portador de uma mensagem.

O rosto voltado para mim, iluminado e sulcado pelos reflexos do fogo, parecia a superfície rugosa da lua e era cruel também. Argaven era menos real, menos másculo do que parecia a distância. Tinha a voz fria e a cabeça de luná­tico inclinada de modo bizarro, num ângulo arrogante.

Meu senhor, o que tinha a dizer desapareceu da minha mente. Acabo de saber da desgraça que caiu sobre Lorde Estraven.

Argaven sorriu com uma careta forçada e estática. De­pois, riu-se estridulamente, como uma mulher zangada que pretende parecer estar se divertindo.

Maldito seja ele! Aquele traidor orgulhoso, posudo e perjuro! Você jantou com ele ontem à noite, não? E ele lhe disse o quanto ele é poderoso, como manda no rei e como seria fácil para você se entender comigo, desde que ele assim planejasse, não? Foi isso que ele lhe disse, Sr. Ai?!

Hesitei. Mas o rei prosseguiu:

Vou lhe dizer o que ele tem-me dito a seu respeito, se está interessado em saber. Tem-me aconselhado a recusar sua audiência, conservá-lo de "molho", esperando; talvez, despachá-lo para Orgoreyn ou para as ilhas. Durante estes quinze dias tem-me dito isto, esse insolente! Mas foi ele que foi despachado para Orgoreyn... ah! ah! ah!

De novo aquele riso agudo, falso, com as mãos cruza­das enquanto ria. Um guarda silencioso apareceu entre as cortinas, atrás do estrado, mas Argaven grunhiu para ele e ele desapareceu. Ainda rindo e fazendo caretas, Argaven chegou bem perto de mim e olhou-me fixamente nos olhos. Suas pupilas brilhavam, alaranjadas. Fiquei mais assustado com ele do que esperava. Não sabia que rumo tomar, no meio de tanta incoerência, senão o da franqueza.

Quero, apenas, perguntar-lhe, Excelência, se estou sendo considerado cúmplice no crime de Estraven.

Você!? Não.

Fixou-me ainda mais de perto e continuou:

Não sei que diabo o senhor é: se uma aberração sexual, um monstro artificial ou um visitante dos domínios do vazio. Mas, certamente, não é um traidor. É apenas um instrumento de algum deles. Eu não vou punir instrumen­tos. Eles fazem mal apenas nas mãos de um manobrador incompetente. Deixe-me dar-lhe alguns conselhos.

Argaven disse isto com uma ênfase curiosa e certa sa­tisfação. Ocorreu-me, então, que nestes últimos tempos nin­guém tinha, jamais, me dado conselhos. Eles respondiam a perguntas, mas não davam conselhos abertamente, nem mesmo Estraven quando tentava me auxiliar. Isto devia estar ligado ao prestígio.

Não deixe ninguém usá-lo, Sr. Ai — dizia o rei. - Afaste-se dos partidos. Conte suas mentiras, faça o que quiser, mas não confie em ninguém. Ouviu bem? Não confie em ninguém. Maldito seja aquele traidor frio e calculista! Eu confiava nele. Coloquei o colar de prata do poder em torno de seu pescoço. Agora desejaria tê-lo enforcado com ele! Nunca confiei nele, nunca! Não confie em ninguém. Que ele morra de fome! Que ele apodreça! Que...

O Rei Argaven tremeu, engasgou, retomou o fôlego com um som de náusea e voltou-me as costas. Começou a chutar as lenhas acesas, até que faíscas saltaram no seu rosto e caíram no seu cabelo e túnica negra.

Ele, então, as aparou com as mãos abertas. Em seguida lalou, sem se voltar, naquele mesmo tom histérico:

Diga o que tem a dizer, Sr. Ai!

Posso fazer-lhe uma pergunta, Excelência?

Faça-a! — Ele oscilava de um lado para outro en­quanto contemplava o fogo. Tinha que lhe falar assim como ele estava, de costas para mim.

Acredita naquilo que tenho a dizer?

Estraven enviou-me gravações dos cientistas a seu respeito e outras, de engenheiros das oficinas que examina­ram sua nave, etc., etc. Eles todos não podem ser mentirosos - todos dizem que o senhor não é humano. Então...?

Então, Excelência, há outros como eu. Isto é, eu sou um representante...

Desta união, desta autoridade, sim, sei muito bem. Para que eles o enviaram aqui, é isto que quer que lhe pergunte?

Apesar de Argaven não parecer nem são nem sagaz, tinha uma longa prática em evasivas, em sutilezas retóricas e desafios, usados na conversação daqueles cujo principal objetivo na vida era a manutenção do seu prestígio em alto grau. Áreas completas desse tipo de relacionamento me eram obscuras, mas eu conhecia algo de seu aspecto competitivo, em busca do prestígio, e sobre o perpétuo duelo de debates que podem se travar em torno de um nada. Incontestavelmente eu não estava duelando com Argaven, mas tentando me comunicar com ele.

Não fiz segredo disso, Excelência. O Conselho Ecumênico quer uma aliança com as nações de Gethen.

Para quê?!

Benefícios materiais. Aumento de conhecimento. Aumento de penetração na complexa e intensa vida inteli­gente. Enriquecimento da harmonia entre os povos e glória maior de Deus. Curiosidade. Aventura. Prazer.

Eu não estava falando a mesma linguagem falada por aqueles que governam homens, reis, conquistadores, ditado­res, generais. Nesta língua, não havia resposta à sua per­gunta.

Taciturno e oscilando nos pés alternadamente, Argaven fitava o fogo, desatento.

Quão grande é este reino... fora, no espaço desse conselho?

Há oitenta e três planetas habitáveis no campo de ação do Conselho Ecumênico e, neles, cerca de três mil na­ções ou grupos antro típicos.

Três mil? Entendo. Agora me diga: por que nós, um contra três mil, temos alguma coisa a ver com todos esses monstros vivendo no espaço vazio? — Voltou-se para me olhar, pois ainda estava fazendo perguntas retóricas, quase como piada. Entretanto essa atitude não era real. Ele como Estraven me havia prevenido estava alarmado, sentindo-se inseguro.

Três mil nações em oitenta e três mundos. Mas o que está mais próximo de Gethen está a dezessete anos de viagem em naves que se movem quase à velocidade da luz. Se pensou que Gethen poderia ser envolvido em pilhagens ou ser molestado por tais vizinhos, considere a distância em que vivem. Invasões não valem o incômodo, através do espaço.

Não falei de guerra, por uma simples razão: não há tal palavra em Karhide.

O comércio, no entanto, vale à pena. Em idéias, em técnicas comunicáveis pelo audisível; em bens, em pro­dutos manufaturados, enviados por naves dirigidas ou de controle remoto; embaixadores, homens de cultura e comer­ciantes... alguns poderiam vir aqui, alguns dos seus po­deriam ir pelo universo afora. O Conselho Ecumênico não dirige um reino — é uma organização coordenadora, um centro vital de comércio e cultura. Sem ele a comunicação entre os mundos dos homens seria muito abandonada à sua sorte e o comércio, muito cheio de riscos, como pode ver. A vida humana é muito curta para enfrentar o tempo-espaço entre os mundos se não existir uma rede de comunicação, de centralização de controle para se trabalhar através dela. Somos todos homens, Vossa Excelência sabe. Todos nós. Todos os mundos de homens já estão organizados há bilênios, por um único mundo: Hain. Nós variamos, mas somos filhos do mesmo lar...

Nada disso despertou a curiosidade do rei, ou lhe deu mais segurança. Continuei por mais um pouco, tentando su­gerir-lhe que seu prestígio ou o de Karhide seria intensifi­cado e não ameaçado pela aliança com o conselho, mas nada disso adiantou. Argaven continuou ensimesmado, como uma velha lontra numa jaula, balançando-se para a frente e para trás, exibindo os dentes numa careta dolorosa. Parei de falar.

São todos tão pretos quanto você?

Os gethenianos são castanho-amarelados ou castanho- avermelhados, geralmente, mas eu vira muitos tão negros quanto eu.

Alguns são mais pretos ainda — respondi-lhe. — Temos de todas as cores. — Abri minha pasta (que havia sido polidamente revistada pela guarda do palácio várias vezes até chegar ao grande salão vermelho) e dela surgiu meu aparelho audisível e alguns retratos, filmes, pinturas e al­guns cubos. Era uma pequena galeria da espécie humana: povo de Hain, de Chiffewar, os cetios, de S, Terra e Alterra, os de Maxima, de Kapteyn, Ollul, de Taurus 4, Rokanan, Ensbo, Cime, Gde e Sheashel Haven... O rei lançou o olhar, sem grande interesse, para um casal.

Que é isto?

Uma pessoa de Cime, uma fêmea. — Tive que usar a palavra que os gethenianos aplicavam a uma pessoa ape­nas na fase culminante de kemmer, a sua palavra para o animal fêmea.

Permanentemente?!

Sim.

Ele deixou cair o cubo e ficou gingando novamente, olhando para mim ou além de mim, a luz do fogo dançando no seu rosto.

Eles são todos assim como você?...

A compreensão deste fato era um obstáculo que eu não poderia eliminar para ele. Afinal, teriam que se acostumar com isto.

São. A fisiologia sexual dos gethenianos é única entre os seres humanos, pelo menos conhecida até agora.

Assim, todos eles, em todos esses planetas, estão em kemmer permanentemente? Uma sociedade de perverti­dos? Bem me disse Lorde Tibe... e eu pensei que ele estava brincando. Bem, pode ser uma realidade, mas é uma idéia nauseante, Sr. Ai, e não vejo por que seres humanos daqui desejariam, ou tolerariam, entendimentos com criatu­ras tão monstruosamente diferentes. Mas... talvez o senhor esteja aqui para me comunicar que não tenho escolha quanto a isto.

A escolha de Karhide está nas suas mãos, Exce­lência.

—- E se eu o mandar de volta?

Bem, eu irei. Talvez pudesse tentar de novo noutra geração...

Isso o atingiu. E ele revidou:

Você é imortal?

Não, absolutamente, Excelência. Porém os saltos no tempo são bem úteis. Se eu deixar Gethen agora em busca do mundo mais próximo, Ollul, vou levar dezessete anos do tempo humano para lá chegar. O salto no tempo é decor­rência do fato de viajarmos tão ligeiro quanto a luz. Se eu, simplesmente, lá chegando voltasse de novo, minhas poucas horas passadas na nave seriam, aqui, trinta e quatro anos, e eu poderia começar tudo de novo.

Essa idéia de pulo no tempo, com sua falsa ilusão de imortalidade, fascinara a todos a quem havia contado, desde os pescadores da ilha de Horden até primeiros-ministros, mas ao rei ela deixara indiferente.

Apontando para o aparelho, perguntou em sua voz aguda:

Que é isto?

Um comunicador e receptor ao mesmo tempo.

Um rádio?

Ele não funciona com ondas de rádio nem com outra forma de energia. O princípio sobre que ele trabalha, a constante da simultaneidade, é análogo, de certo modo, à gravidade.

Eu me esquecera de que não estava falando com Estraven, que lera tudo sobre a minha pessoa e escutava inte­ligentemente e com atenção todas as minhas explicações, mas sim com um rei entediado.

Ele atua, Excelência, produzindo uma mensagem em dois pontos simultaneamente. Em qualquer lugar um ponto tem que ser fixo -— em um planeta com uma certa massa —, mas o outro extremo é portátil. Este é o outro extremo. Está programado para o primeiro mundo: Hain. Uma nave espacial Nafal leva sessenta e sete anos para ir de Gethen a Hain, mas se eu escrever uma mensagem nesta tecla, ela será recebida em Hain no mesmo momento em que a estou enviando. Há alguma comunicação que Vossa Excelência desejaria fazer com os estábiles em Hain?

Não falo voidiano — respondeu o rei com seu ar maligno.

Eles têm um intérprete sempre a postos e que sabe karhideano. Eu os alertei.

O que quer dizer com isto? Como?

Bem, como Vossa Excelência sabe, não sou o pri­meiro alienígena a vir a Gethen. Fui precedido por um gru­po de investigadores que não anunciaram sua presença, mas fizeram-se passar, da melhor maneira possível, por gethenianos e viajaram por Karhide, Orgoreyn e o Arquipélago durante um ano. Quando voltaram, fizeram o relatório ao Conselho Ecumênico, há quarenta anos, durante o reinado do avô de Vossa Excelência. Seus pareceres foram extrema­mente favoráveis. Então estudei as informações e as línguas que gravaram e vim. Gostaria de ver como trabalha este instrumento, Excelência?

Não gosto de truques, Sr. Ai!

Não é truque, Excelência. Alguns dos seus cientis­tas o examinaram.

Eu não sou um cientista.

— O senhor é um soberano, Excelência. Seus pares, no primeiro mundo ecumênico, aguardam uma palavra de Vossa Excelência.

Ele olhou-me ferozmente. Tentando envaidecê-lo e interessá-lo, tinha-o encurralado numa cilada do poder. Estava saindo tudo errado.

Muito bem. Pergunte à sua máquina o que faz um homem ser traidor.

Bati as teclas vagarosamente e o registro foi feito na língua karhideana: "O Rei Argaven de Karhide pergunta aos estábiles, em Hain, o que faz um homem ser traidor". As letras se acenderam na pequena tela e desapareceram. Argaven acompanhava a operação, mais calmo no seu inquie­to balouçar.

Houve uma pausa, uma longa pausa. Alguém, a setenta e dois anos-luz de distância, estava, sem dúvida, manobran­do o computador para o idioma karhideano, ou, quem sabe, para um computador de registro filosófico.

Finalmente, letras claras acenderam-se na tela, tremeluzindo e desaparecendo gradativamente: "Para o Rei Argaven de Karhide, em Gethen, saudações. Não sei o que faz um homem ser traidor. Nenhum homem se considera traidor, o que torna difícil definir o termo. Respeitosamente, Spimolle G. F., pelos estábiles, em Saire, no planeta Hain 93/ 1491/45".

Quando a gravação na fita ficou pronta, destaquei-a e entreguei-a a Argaven. Atirou-a na mesa, voltou à lareira, quase entrando nela, dando pontapés nas achas em brasa e apagando as faíscas que lhe caíam na roupa.

Uma resposta igual à que eu poderia obter de qual­quer áugure. Respostas não bastam, Sr. Ai. Nem essa sua maquininha aí, nem seu veículo, sua nave. Um velhaco com suas trapaças. O senhor quer que eu acredite na sua pessoa, suas histórias, sua mensagem. Mas por quê? Por que acre­ditar? Se existem oitenta mil mundos cheios de monstros, soltos por aí entre as estrelas... e daí? Não queremos nada deles. Escolhemos nosso próprio modo de viver e assim permanecemos por muito tempo. Karhide está na iminência de uma nova era, uma grande era. Seguiremos nosso próprio caminho.

Hesitou como se tivesse perdido o fio do pensamento; não seus próprios argumentos, talvez. Alguém estaria sendo, agora, seu conselheiro, já que Estraven não o era mais.

E se o conselho quisesse algo conosco, não teria enviado o senhor sozinho. É uma piada, uma brincadeira. Eles estariam aqui, aos milhares.

Não há necessidade de mil homens para abrir uma porta, Excelência.

Mas seriam necessários para mantê-la aberta.

O conselho vai esperar que Vossa Excelência abra. Não vão forçar nada, nem exigir nada. Fui enviado só; aqui permanecerei só, para que lhe seja impossível temer-me.

Temê-lo? — exclamou o rei em voz alta, voltando seu rosto convulsionado pelas sombras. — Claro que eu o temo, Enviado! Eu temo aqueles que o enviaram; temo men­tirosos, mágicos, e, o pior de tudo: eu temo a amarga verdade. E é por isso que governo bem meu país. Porque apenas o medo governa os homens. Nada mais; só isto funciona. Nada dura tanto. O senhor é o que diz ser; no entanto, não passa de uma piada, uma farsa. Não há nada no espaço entre as estrelas a não ser o vácuo, o terror, a escuridão. E o senhor vem dele sozinho tentando me assustar. Já estou assustado! E eu sou o rei... Medo é o rei! Agora pegue suas coisas e se vá, não há mais nada a dizer. Já dei ordens para que tenha toda a liberdade em Karhide.

Foi assim que me afastei da presença real — as botas chiando ao longo do piso vermelho, na penumbra vermelha do salão, até a última porta dupla se fechar atrás de mim.

Eu fracassara totalmente. O que me preocupava, ao deixar a casa real e caminhar pelo pátio, não era meu fra­casso, mas a parte nele desempenhada por Estraven. Por que o rei o havia exilado por se tornar advogado da causa do conselho (pois assim parecia ser pelo teor da proclama­ção) se (de acordo com o próprio rei) ele agira exatamente ao contrário? Quando ele havia aconselhado ao rei para ficar longe de mim, e por quê? Por que ele fora exilado e eu ficara livre? Qual deles mentira mais, e por que, diabos, estavam mentindo? Estraven para salvar sua pele, o rei para salvar as aparências. A explicação era óbvia. Mas teria mes­mo Estraven mentido para mim? Descobri que não sabia.

Eu passava agora pela Residência da Esquina Vermelha. As portas do jardim estavam abertas. Relanceei os olhos para as árvores de seren inclinando-se, esbranquiçadas sobre o tanque escuro, os caminhos de tijolos avermelhados, de­sertos na luz cinza da tarde serena. Um pouco de neve depositara-se nos recantos rochosos da piscina. Lembrei-me de Estraven a me aguardar ali, na noite anterior, e senti uma pontada de pura piedade pelo homem que vira na vés­pera, no desfile, soberbo sob o peso de sua panóplia e po­der, um homem no apogeu de sua carreira, poderoso e mag­nífico, decaído agora, por baixo, acabado. Estaria correndo para a fronteira, com a morte marcada para dali a três dias, e sem ninguém com quem falar. A sentença de morte é rara em Karhide. A vida no planeta Inverno é dura de se viver e o povo enfrenta a morte em conseqüência da natureza, da fome, mas nunca da lei. Fiquei pensando para onde Estraven iria com aquela sentença a persegui-lo. Sem meios de loco­moção, pois todos eles eram propriedade real — barco ou carro anfíbio —, permitiriam que ele fugisse? Ou estaria caminhando por seus próprios pés, nas estradas, carregando consigo o que pudesse ser útil? Os karhideanos andam a pé, em sua maioria. Não têm animais de carga, nenhum veículo voador, o tempo reduz a marcha de veículos de força na maior parte do ano e eles não são gente que goste de se apressar.

Imaginei aquele homem orgulhoso indo para o exílio, passo a passo, uma pequena silhueta na longa estrada para o golfo. Tudo isso me passou pela cabeça ao cruzar diante da sua residência; como também todas as minhas especula­ções confusas referentes aos atos e motivos de Estraven e do rei. Não esperava mais nada deles. Tinha falhado. O que viria a seguir?

Deveria ir para Orgoreyn, o país vizinho e rival de Karhide. Mas uma vez lá seria difícil voltar e eu ainda não tinha acabado a minha missão aqui. Era preciso conservar viva na mente a idéia de que minha vida inteira podia ser consagrada à realização desta missão para os ecúmenos. Não havia pressa, nenhuma necessidade de me precipitar para Orgoreyn antes de saber mais sobre Karhide, particularmen­te sobre os monastérios. Por dois anos estivera só a respon­der questões. Agora seria minha vez de perguntar. Mas não em Erhenrang. Compreendi, finalmente, o que Estraven me tentara avisar, e, embora desconfiasse de seus avisos, não podia menosprezá-los. Ele estivera a me dizer, embora indi­retamente, que deveria sair da cidade e da corte. Pensei nos dentes de Lorde Tibe. O rei me dera liberdade de andar pelo país; eu iria usá-la. Como eles dizem na escola ecumê­nica: quando a ação se torna impraticável, recolha informa­ções; quando não obtiver informações, durma. Eu não tinha sono ainda. Assim, resolvi seguir em busca dos monastérios e conseguir, talvez, informações dos áugures.

 

 

                           O décimo nono dia e a morte

Esta lenda do Karhide oriental, conforme contada na família Gorinhering, por Tobord Chorhawa, foi registrada por G. A. — 93/1492.

 

Lorde Berosty rem ir Ipe chegou ao Monasterio Thangering e ofereceu quarenta berilos e metade da colheita de seus pomares como pagamento por uma predição, e o preço foi aceito. Apresentou sua pergunta ao áugure-mestre, Odren: "Em que dia morrerei?"

Os áugures se agruparam na escuridão e Odren deu finalmente a resposta:

"Você morrerá no odstreth (décimo nono dia do mês)".

"Em que mês? Em que ano?", perguntou Berosty, mas o encantamento tinha-se quebrado e não houve outra res­posta.

Ele correu para o círculo que eles formavam e segurou Odren, sacudindo-o pela garganta, quase sufocando-o e gri­tando que lhe quebraria o pescoço se ele não desse a res­posta completa. Mas os outros áugures conseguiram afastá-lo e seguraram-no, apesar de ele ser um homem forte.

Ele ainda lutou para se libertar, gritando: "Dê-me a resposta!" Odren ordenou: "Vá! A resposta já foi dada e seu preço pago".

Furioso, Berosty voltou para Charuthe, o terceiro do­mínio da família, uma região pobre, ao nordeste de Osnoriner, que ele empobrecera ainda mais pelo preço que tivera que pagar pela consulta.

Trancou-se numa sala fechada, num dos salões mais altos da torre, e não aparecia nem para amigos, nem inimi­gos, nem na época das sementeiras, nem da colheita, para kemmer ou excursões predatórias. Assim foi durante todo aquele mês, e o seguinte, até que se passaram dez meses e ele ainda se mantinha no seu quarto, esperando. Nos dias 18 e 19 de cada mês, ele não comia nem bebia nada, nem mesmo dormia. Seu kemmering (parceiro por amor) e amigo por votos era Herbor, do clã de Geganner. Herbor chegou ao Monasterio Thangering, no mês de Grende, e procurou o áugure-mestre: "Preciso de uma predição". Odren pergun­tou: "O que tem você para pagar?" E observou que o homem estava pobremente vestido e calçado e seu trenó era velho. Tudo nele refletia decadência. "Eu lhe darei minha vida", disse Herbor. Odren mudou o tom da voz e perguntou-lhe como se estivesse falando a um grande nobre: "Não terá outra coisa a dar?! Nada mais, meu senhor?" Herbor disse: "Nada mais. Nem sei se a minha vida tem algum valor para o senhor". "Não", continuou o áugure-mestre, "não tem valor para nós." Herbor caiu de joelhos, acabru­nhado pela vergonha e pelo amor. Depois de alguns momen­tos, voltou a suplicar: "Eu lhe peço, suplico-lhe, responda a minha pergunta. Não é em meu benefício". "Em benefício de quem, então?" "De meu senhor e companheiro, Ashe Berosty", disse ele chorando. "Desde que saiu daqui sem a sua resposta, não teve mais alegria, nem amor, nem sobera­nia. Vai morrer por isso." "Isto é certo; de que morre um homem senão de sua morte?", respondeu o áugure-mestre. Mas a paixão de Herbor o comoveu, e após uns momentos de reflexão voltou a falar: "Vou procurar a resposta à sua pergunta, Herbor, e não pedirei pagamento. Mas pense bem: há sempre um preço a pagar na vida. Aquele que indaga paga o que vale a resposta". Herbor colocou as mãos de Odren encostadas aos seus próprios olhos em sinal de gra­tidão e assim a predição foi feita. Os áugures se reuniram novamente na escuridão e Herbor, no meio deles, fez a sua pergunta: "Quanto tempo viverá Ashe Berosty?" Assim indagando, Herbor poderia deixar seu coração tranqüilo com a certeza. Na escuridão, Odren exclamou como se sentisse uma grande dor, como se estivesse sendo queimado pelo fogo: "Mais do que Herbor de Geganner!" Não era a res­posta que Herbor esperava, mas foi a resposta que obteve. Como era paciente e conformado, voltou a Charuthe com ela, através das neves de Grende.

Chegando aos domínios, galgou a torre e aí encontrou Berosty sentado, frio e pálido, diante de um fogo quase ex­tinto, os braços apoiados numa mesa de pedra vermelha e a cabeça afundada nos ombros.

"Ashe", disse Herbor, "estive no Monastério Thangering e o áugure-mestre me atendeu. Perguntei-lhe quanto tempo você viveria e sua resposta foi: 'Berosty viverá mais do que Herbor'."

Berosty ergueu lentamente a cabeça para ele, interrogando-o: "Você lhe perguntou quando eu morreria?" "Eu perguntei quanto tempo você viveria." "Quanto tempo?! Seu imbecil!" Berosty estava furioso. "Você teve o direito de fazer uma pergunta aos áugures e não lhes perguntou quando eu vou morrer? em que dia? em que mês? em que ano? quanto tempo me resta? Seu louco, seu imbecil! Mais do que você, sim, mais do que você!" Berosty levantou o tampo da mesa de granito vermelho como se fosse uma folha de lata e atirou-o na cabeça de Herbor. Herbor caiu esma­gado pela pedra. Berosty ficou paralisado, alucinado. Ergueu a mesa e viu que esmagara a cabeça do companheiro. Largou o tampo da mesa sobre o pedestal e ajoelhou-se ao lado do amigo morto, abraçando-o como se estivessem em kemmer e tudo fosse felicidade. Assim abraçados, eles foram encon­trados mais tarde quando as pessoas foram procurá-los. Berosty enlouqueceu e teve que ser mantido encarcerado, pois queria sair sempre à procura de Herbor, que julgava estar vivo em algum canto dos domínios. Assim viveu du­rante um mês e depois se enforcou, no odstreth, o décimo nono dia do mês de thern.

 

 

             A prática de vaticínios

A administradora da minha ilha, homem muito falante, foi quem organizou minha viagem para o leste.

— Se alguém quer visitar os monastérios, tem que atra­vessar o Kargav. Atravessar as montanhas que levam ao velho Karhide, a Rer, a antiga capital dos reis. Bem, vou lhe contar: um camarada meu chefia uma frota de carros anfíbios que vão atravessar o passo de Eskar, e ontem ele me contava, enquanto bebíamos uma xícara de orsh[4], que eles vão fazer a primeira travessia deste verão no osme getheny[5], pois tem sido uma primavera quente e a estrada já está limpa até Engohar, já que os arados vão desobstruir o resto do caminho dentro de poucos dias. Bem, você não me apanhará jamais cruzando o Kargav, por este céu que me cobre! Mas eu sou um yomeshta, sejam louvados os nove­centos tronos celestiais e abençoado seja o leite de Meshe, pois pode-se ser um yomeshta em qualquer parte. Somos todos apenas iniciados, claro — pois o meu Lorde Meshe nasceu há dois mil duzentos e dois anos —, mas a velha estrada para Handdara remonta a dez mil anos. Você tem que buscar o velho continente se procura os velhos costu­mes. Agora, preste atenção, Sr. Ai: vou conservar seu aloja­mento aqui na ilha para qualquer época que queira voltar, mas acredito que seja uma pessoa sábia o bastante para se afastar agora de Erhenrang por uns tempos, pois todos sabem que o traidor mostrou publicamente ser seu protetor junto à corte. Agora, com o velho Tibe como conselheiro real, as coisas vão ficar fáceis novamente. Se descer ao porto novo, vai encontrar ali o meu camarada. Diga-lhe, então, que o enviei...

E assim por diante. Como disse, ele era falador e tendo descoberto que eu caíra no desagrado, não perdia oportunidade para me aconselhar, mesmo usando, disfarçadamente, a forma "se fosse eu..." ou "se não fosse".

Ele era o gerente da minha ilha, mas eu o via sob uma forma feminina, pois tinha quadris largos que balançavam quando andava, uma cara gorda e delicada e uma natureza benevolente, embora abelhuda. Parecia-me ignóbil e espião. Era bom para mim, mas gostava de exibir meus aposentos para os curiosos, enquanto eu estava fora, sempre em troca de pequenas gorjetas: "Veja o quarto do Enviado miste­rioso!"

Era tão feminino em modos e aparência que cheguei a lhe perguntar quantos filhos tivera. Ele ficou mal-humorado. Nunca tivera nenhum. Mas fecundara quatro. Esta era uma das pequenas surpresas que eu vivia recebendo. O choque cultural não é tão forte quanto o choque biológico que eu sofrera como homem: um ser inteiramente masculino que passara a viver entre seres humanos que eram cinco sextos do tempo neutros, hermafroditas.

O noticiário do rádio estava repleto de realizações do novo primeiro-ministro — Pemmer Harge rem ir Tibe —, mas a maior parte delas se referia ao caso do vale do Sinoth.

Tibe, evidentemente, estava pressionando Karhide a re­clamar a posse daquela região — precisamente o tipo de ação que em outro mundo, neste mesmo estágio de civili­zação, levaria a uma guerra. Mas no planeta Gethen nada leva à guerra. Disputas, assassinatos, vendetas, incursões de pilhagem, rixas e torturas, ou outras perversidades, tudo isto fazia parte do repertório agressivo humano, mas não sabiam fazer guerra. Faltava-lhes, creio, a capacidade de mobilização. Comportavam-se como animais ou como mulheres, neste aspecto, e não como homens ou formigas. De qualquer forma, até então nunca haviam agido assim. O que eu sabia de Orgoreyn indicava que, nestes últimos cinco a seis séculos, estava se tornando uma sociedade altamente mobilizável, um verdadeiro estado-nação. Essa competição por poder, até então desenvolvida principalmente no setor econômico, poderia forçar Karhide a se sentir estimulada pelo seu vizi­nho mais poderoso a se tornar uma nação, em vez de peque­nos Estados em litígio, como Estraven tinha dito, e, tam­bém, tornar-se patriótica. Se isto acontecesse, os gethenianos teriam uma chance excelente de chegarem ao estado de guerra.

Eu desejava ir para Orgoreyn e ver se minhas previsões tinham base, mas queria primeiro liquidar certos assuntos com Karhide. Assim, vendi outro rubi ao joalheiro da Rua Eng e, sem bagagem, a não ser uma muda de roupa, meu dinheiro, o audisível e uns poucos instrumentos, parti como passageiro em excursão comercial, no primeiro mês do verão.

Os carros anfíbios partiam, ao nascer do sol, do cais varrido pelo vento do porto novo. Passavam debaixo do arco e rumavam para leste, vinte carros, com aspecto de barcaças volumosas, mas silentes, movendo-se em velocidade de tra­tor, em fila única, descendo as ruas de Erhenrang através das neblinas matutinas. Levavam caixas de lentes, rolos de fitas de gravação, bobinas de fios de cobre ou platina, rolos de tecidos de fibras vegetais cultivadas e tecidas na vertente ocidental, cestos de flocos de peixe seco do Golfo, embala­gens de peças pequenas de maquinaria e dez caminhões de cereal de Orgota — tudo destinado à fronteira do Pering Storm, no extremo nordeste do território.

Todo transporte no continente é feito por estes vagões- caminhões movidos a eletricidade, que são transformados em barcaças nos rios e canais, sempre que possível.

Durante os meses de neve intensa, tratores, arados len­tos, trenós movidos a energia e os raros navios quebra-gelos, nos rios congelados, eram os únicos transportes, além dos esquis ou trenós individuais. No degelo[6], nenhuma forma de transporte é viável; assim, a maior parte do tráfego é feita com rapidez quando chega o verão. As estradas ficam coalha­das de caravanas. O tráfego é controlado, cada veículo ou grupo deles é obrigado a manter-se em contato constante, através do rádio, com os postos de controle nas barreiras, ao longo do caminho.

Deslocam-se, no entanto, lentamente, na velocidade ter­restre de vinte e cinco milhas por hora. Os gethenianos po­deriam fazê-los andar mais depressa, mas não o fazem, e se indagados respondem com um: "Por quê?" Assim como os habitantes da Terra, quando se lhes pergunta por que correm tanto, respondem: "Por que não?" Questão de gosto. Os terráqueos gostam do progresso, de ir rápido para a frente. O povo do planeta Inverno, que sempre vive no ano 1, acha que o progresso é menos importante que o indi­víduo. Eu estava de acordo com os terráqueos, e, deixando Erhenrang, fiquei impaciente com a marcha lenta, metódica, da caravana. Minha vontade era saltar e sair correndo.

Mas estava contente em me afastar daquelas tortuosas ruas de pedra, ladeirentas e obscurecidas por telhados es­curos e torres inumeráveis, daquela cidade sem sol, onde mi­nhas esperanças haviam se transformado em medo e traição.

Ao iniciar a subida dos primeiros contrafortes do Kargav, a caravana fazia paradas curtas, mas freqüentes, para refeições nas estalagens à beira da estrada. Ao entardecer, tivemos a primeira visão completa da cordilheira, de um ponto elevado do contraforte. Vimos o Kostor, que tem quatro milhas de altura, da base ao cume; os imensos des­penhadeiros de sua vertente ocidental ocultavam picos ao norte, alguns dos quais se erguiam a trinta mil pés.

Ao sul do Kostor, os picos, um ao lado do outro, se recortavam contra um céu incolor. Contei-os em número de treze, o último se perdendo indefinido na névoa da distân­cia. O guia deu-me o nome dos treze, ao mesmo tempo em que contava histórias de avalanches, carros de carga que eram varridos da estrada por ventos fortíssimos, oriundos das montanhas; tripulações inteiras bloqueadas por nevascas em alturas inacessíveis, etc., etc., num amigável esforço para aterrorizar-me.

Ele descreveu a queda de um desses carros no abismo: "Notável era a lentidão com que ele despencava! Parecia ter levado toda a tarde descendo o abismo, lentamente". Ele sentiu até alívio ao vê-lo desaparecer, sem nenhum ruído, dentro do lençol de neve que jazia embaixo.

Na 3.a hora, paramos para jantar numa estalagem, vasto salão com grandes e crepitantes lareiras. Sob um teto feito de vigas enormes de madeira, as mesas estavam abarrotadas de comidas gostosas. Não pernoitamos ali; nossa caravana conduzia carro-leito, mas só para os motoristas que se reve­zavam. Apressamo-nos — à moda karhideana — para sermos os primeiros a chegar à região do Pering Storm e assim colher a nata do creme, como se diz vulgarmente, para nossos nego­ciantes e empreiteiros.

As baterias foram recarregadas, uma nova turma de motoristas substituiu a anterior e seguimos caminho.

Não havia cama para passageiros; passei a noite no assento duro, com apenas uma pausa para cear, numa pe­quena hospedaria, no alto das montanhas. Karhide não é um país que se preocupe com conforto.

Ao nascer do dia, acordei e vi que tínhamos deixado tudo para trás, exceto rochas, gelo, luz e o estreito passo, sempre ascendente, em cuja trilha seguíamos. Pensei, estre­mecendo, que há coisas de maior valor que conforto material, a não ser que sejamos mulheres velhas ou gatos. Não havia mais estalagens entre essas aterradoras vertentes de neve e granito. Nas horas das refeições, os carros anfíbios estacio­navam silenciosamente, um atrás do outro, em ângulos ín­gremes, na vertente gelada, e desciam todas as pessoas dos veículos, reunindo-se perto do carro-restaurante, no qual eram servidas, em tigelas, sopas quentes, fatias de pão seco de maçã e cerveja amarga, em canecões. Ficávamos agrupa­dos em torno, batendo com os pés no chão para manter a circulação, engolindo com sofreguidão a comida e a bebida, de costas para o vento cortante que vinha carregado de neve seca. Logo após retomávamos viagem.

Ao meio-dia estávamos no passo de Wehoth, a catorze mil pés de altura, com o termômetro marcando oitenta e dois graus Fahrenheit ao sol e treze à sombra.

Os carros funcionavam tão silenciosamente que se podia ouvir o ruído de avalanches, bem distantes de nós, despen­cando pelas íngremes encostas azuladas.

Mais tarde chegamos a quinze mil e duzentos pés, o ponto máximo da subida: Eskar. Olhando para a encosta meridional do Kostor, por onde estivéramos como que raste­jando lentamente durante todo aquele dia, pude ver uma estranha formação rochosa, muito acima da estrada, como que uma protuberância, semelhante a um castelo.

Está vendo aquele monastério ali em cima? — per­guntou o motorista.

Aquilo é uma construção?

— É o Monastério Ariskostor.

Mas ninguém pode viver naquelas alturas!

Ah, mas os velhos mestres podem. Eu costumava chefiar uma caravana que lhes levava alimentos de Erhenrang, no último verão. Naturalmente eles não podem entrar, nem sair, por uns dez meses no ano, mas não ligam. Há uns sete ou oito residentes lá.

Contemplei aquela edificação rochosa, solitária na vas­tidão das alturas, e não acreditei no motorista. Mas por que descrer? Se alguma raça podia sobreviver em atmosfera tão glacial, essa raça era a dos karhideanos.

A estrada de descida serpenteava, ora para o norte, ora para o sul, beirando precipícios, pois a encosta oriental do Kargav é mais íngreme que a ocidental, caindo em plata­formas, como uma gigantesca escadaria, na própria formação rochosa da montanha. Ao pôr-do-sol, vimos a uns sete mil pés abaixo de nós, sob uma imensa sombra azulada, uma pequena serpente de pontos escuros se arrastando. Era outra caravana que havia deixado Erhenrang um dia à nossa frente.

Mais tarde chegamos lá, e também deslizávamos suave­mente, sem trepidação, para evitar a queda de avalanches. De lá avistava-se, bem abaixo e muito além, pelas bandas de leste, terras extensas que se apresentavam embaçadas por nuvens e pelas sombras projetadas e recortadas pelos fila­mentos prateados dos seus rios: era a planície de Rer.

Neste quarto dia de partida de Erhenrang, tínhamos chegado a Rer. A separar as duas cidades há uma distância de mil e cem milhas, um paredão escarpado de várias milhas de altura e três mil anos de tempo. A caravana fez uma pa­rada fora dos portões ocidentais, onde seria adaptada em barcaças para navegar nos canais. Nenhuma condução pode entrar em Rer, pois fora construída há mais de vinte séculos, muito antes da invenção dos carros.

Não há ruas em Rer. Há passeios cobertos, como túneis, que no verão podem ser utilizados por dentro ou por cima, como se queira. Casas, ilhas e alojamentos são construídos de modo caótico, numa confusão prodigiosa que culmina, como a anarquia fez em Karhide, em esplendor: as grandes torres do Palácio de Un, cor de sangue e sem janelas. Cons­truído há dezessete séculos, essas torres abrigaram os reis de Karhide por mais de mil anos, até Argaven Harge, o primeiro de sua dinastia que cruzou o Kargav e se instalou no grande vale da vertente ocidental.

Todos os edifícios de Rer são fantasticamente maciços, com fundações profundas, à prova d'âgua e das intempéries. No inverno, o vento que sopra nas planícies liberta a cidade da neve, mas quando há uma nevasca, ela se acumula nas ruas e não limpam nada, pois as ruas praticamente desapare­cem. Usam, então, os túneis de pedra ou abrem túneis tem­porários através do gelo. As casas ficam como que submer­sas, apenas os telhados fazem protuberâncias nesse lençol branco e portas-janelas são instaladas sob os beirais, ou no próprio teto, como janelas de águas-furtadas, ou lucarnas.

O degelo é a pior época nesta planície cortada por muitos rios. Os túneis se transformam em esgotos de água e o espaço entre os edifícios vira lagos ou canais. Por eles circula, em botes, a população de Rer, quebrando com os remos a remanescente crosta de gelo. E sempre, tanto no inverno quanto no verão, as torres vermelhas lá estão, in­destrutíveis como o próprio coração da cidade.

Instalei-me numa hospedaria cara e lúgubre, como que acocorada à sombra das torres. Após uma noite repleta de pesadelos, acordei cedo, paguei um absurdo pela cama e pelo café da manhã e obtive informações imprecisas quanto ao caminho que deveria seguir. Então parti a pé em busca de Otherhord, um antigo monastério não distante de Rer.

Logo me perdi. Mas mantendo minha direção com as torres atrás e a vastidão branca do Kargav à minha direita, saí da cidade no rumo sul. Uma criança, filha de fazendeiros, indicou-me o caminho para Otherhord. Lá cheguei ao meio- dia, quer dizer, julguei que chegara ao lugar desejado, mas não estava bem certo. Era, na verdade, um bosque espesso, não bem uma floresta, com suas árvores cuidadosamente cultivadas, mais do que o comum numa terra que já zelava bastante por suas florestas; uma picada se abria nos flancos do morro, entre as árvores.

Após caminhar um pouco deparei com uma cabana de madeira, bem à minha direita, e daí pude ver uma edifica­ção bastante grande, também de madeira, mais longe, à mi­nha esquerda. Chegava até mim o cheiro gostoso de peixe fresco sendo fritado.

Fui caminhando vagarosamente, um tanto inseguro. Eu não sabia como os handdaratas encaravam forasteiros. Real­mente sabia muito pouco sobre eles. Handdara é uma seita, sem ser uma instituição, sem sacerdotes, hierarquia, votos ou credos. Ainda sou incapaz de dizer se eles têm um deus ou não. Sua única manifestação objetiva se dá nessas forta­lezas, espécie de retiro ou mosteiro onde as pessoas se reco­lhem para passar uma noite ou toda a vida.

O que me levava a buscar este culto intangível, nos seus esconderijos secretos, era a vontade de obter uma res­posta que os investigadores não tinham conseguido para a pergunta: "Que são esses augures? O que eles realmente fazem?" Eu tinha me demorado em Karhide muito mais que meus investigadores e duvidava muito das histórias dos áugures e de suas profecias. Lendas sobre vaticínios são comuns através de toda a história da humanidade. Deus fala, espí­ritos falam, computadores falam. Ambigüidade oracular ou probabilidades estatísticas dão margem de acerto e as discre­pâncias são expurgadas. Os mitos, no entanto, são dignos de serem investigados. Eu não conseguira ainda convencer nenhum karhideano da existência da comunicação telepática — eles não acreditariam se não "vissem". Exatamente como eu, em relação aos áugures do handdara.

Enquanto prosseguia no meu caminho, observei que uma aldeia inteira se espalhava à sombra daquela floresta, ao pé da montanha, de maneira tão casual como tudo em Rer, mas pacífica, rural, secreta.

Acima dos tetos e das trilhas projetavam-se os ramos dos hemmens, a árvore mais comum no planeta Inverno, uma robusta conífera com agulhas espessas de um vermelho pálido. As veredas estavam coalhadas de hemmen; o vento vinha perfumado com o pólen de hemmen, e todas as casas eram construídas com sua madeira escura. Parei, finalmente, me perguntando em qual casa deveria bater, quando uma pessoa apareceu entre as árvores e me cumprimentou cor­tesmente:

Está procurando um lugar para morar? — per­guntou.

Vim fazer uma consulta aos áugures.

Decidi que eles deveriam tomar-me por um karhideano, pelo menos no começo. Nunca tivera nenhum trabalho de passar por um nativo, se eu o desejasse. Entre todos os dialetos existentes, o meu sotaque passava despercebido e minhas diferenças sexuais estavam escondidas pelo vestuário pesado.

Eu não tinha a cabeleira abundante e fina dos gethenianos, assim como a obliqüidade dos olhos; era mais escuro e mais alto que a maioria, mas não além dos limites da média. Tinha feito uma depilação definitiva da barba quando ainda estava em Ollul. (Naquela ocasião não sabíamos das tribos "peludas" de Perunter, que não são apenas barbados, mas têm cabelos pelo corpo, como os terráqueos.) Eu tinha um nariz achatado, enquanto os dos gethenianos eram proe­minentes e estreitos, adaptados à respiração em atmosfera extremamente fria. Às vezes perguntavam como quebrara o nariz.

A pessoa que estava no caminho de Otherhord olhava para meu nariz com uma certa curiosidade.

Então, quer falar com o áugure-mestre? Ele está ali na clareira, agora, a não ser que tenha saído de trenó. Ou preferia falar, primeiro, com um dos celibatários?

Não estou bem certo... Sou muito ignorante...

O jovem sorriu e fez vénia com a cabeça.

Tenho muita honra em saber. Já vivo aqui há três anos, mas não adquiri ignorância suficiente para ser digno de mencioná-lo.

Ele estava com disposição para brincar, mas seus modos eram gentis, e pelo que eu já havia captado do modo de pensar do handdara podia perceber que tinha me vanglo­riado ao dizer aquilo, o equivalente a dizer "sou muito bo­nito"...

Bem procurei completar —, eu nada sei sobre os áugures. ..

O que é invejável respondeu o jovem. Posso conduzi-lo à clareira? Meu nome é Goss. Era seu pri­meiro nome.

O meu é Genry — disse-lhe desistindo de pronun­ciar o "1" do meu nome certo. Seguimos para o interior da floresta sombria através de um cáminho que mudava fre­qüentemente de direção, ora subindo, ora descendo. Junto dos maciços troncos de hemmens estavam as pequenas casas coloridas da floresta. Tudo era vermelho e castanho, calmo, fragrante, úmido e sombrio. De uma cabana partia o doce e discreto sopro de uma flauta. Goss caminhava rápido e ágil, gracioso como uma adolescente, alguns passos à minha frente. De repente, sua roupa se iluminou: era a luz do sol que batia em cheio num prado completamente verde.

Na nossa frente estava uma figura ereta, imóvel, túnica vermelha e camisa branca, recortada contra a pradaria verde como uma incrustação de esmalte brilhante. Mais adiante, outra, imóvel como uma estátua, em azul e branco. Esta nem sequer se moveu em nossa direção durante o tempo em que nos dirigíamos à primeira. Estavam praticando o hand­dara do ser, que é uma espécie de transe. O handdarata, vol­tado para as negativas, chama esta prática de "não-transe", que envolve uma espécie de esquecimento de si próprio através de uma extrema receptividade e consciência senso­rial. Apesar de a técnica ser o oposto exato da maior parte das práticas de misticismo, é também, no fundo, uma dis­ciplina mística voltada para a experiência da imanência. Não posso, porém, falar com segurança de nenhuma prática dos handdaratas.

Goss dirigiu-se ao primeiro, o de túnica vermelha. Ele saiu de sua profunda meditação, de sua imobilidade, olhou- nos e veio lentamente na nossa direção. Senti respeito e espanto: ao meio-dia, em plena luz do sol, ele brilhava com intensidade, com uma luz toda sua, interior. Era tão alto quanto eu, porém mais esbelto. Seu rosto era belo, aberto, límpido. Quando seu olhar encontrou o meu, senti, subita­mente, vontade de dirigir-me a ele através da comunicação mental que até então não usara, desde que descera em Gethen, e não deveria usar ainda. Mas o impulso de fazê-lo foi mais forte que meu controle. Tentei enviar-lhe meus pensa­mentos. Não houve resposta. Parecia que nenhum contato fora feito. Ele continuava a olhar direto para mim. Após um momento, sorriu e falou numa voz suave:

O senhor é o Enviado, não?

Sou... — gaguejei.

Meu nome é Faxe. Estamos honrados em recebê-lo. Quer ficar conosco em Otherhord, por uns tempos?

É o que mais desejo. Estou procurando aprender alguma coisa sobre sua prática de vaticinar. E, se existe algo que lhe possa dar em troca, sobre o que sou, de onde venho...

Como queira respondeu Faxe com um sorriso sereno. É muito lisonjeiro para nós saber que cruzou o oceano do espaço e depois alguns milhares de quilômetros através do Kargav para chegar até nós.

Minha vinda até Otherhord é motivada pela fama de suas profecias.

Desejaria assistir à prática dos vaticínios, talvez... Ou tem alguma pergunta a fazer?

Seu olhar límpido me forçava a falar a verdade.

Não sei bem disse.

Nusuth respondeu —, não importa. Talvez, se demorar algum tempo, descobrirá se tem ou não alguma pergunta a fazer. Os áugures só podem se reunir em deter­minadas épocas. Assim, seria conveniente que se demorasse conosco alguns dias.

Assim o fiz e foram dias muito agradáveis.

O tempo corria sem muita organização, exceto para o trabalho comunal, a lavoura no campo, a derrubada das árvo­res, a manutenção para os quais as pessoas de passagem, assim como eu, eram convocadas quando um auxílio extra se fazia necessário. Fora o trabalho, um dia podia transcorrer sem que se proferisse uma só palavra; as pessoas com quem eu mais falava eram o jovem Goss e Faxe o áugure-mestre —, cujo caráter extraordinário era translúcido e profundo como águas claras; era a própria quintessência do caráter do local.

Ao entardecer havia, às vezes, reuniões na sala com lareira de alguma das casas. Havia conversa, cerveja e tam­bém música, a vigorosa música de Karhide, melodicamente simples, mas ritmicamente complexa, sempre tocada ex tempore.

Uma noite, dois residentes dançaram. Eram homens tão velhos que seus cabelos tinham encanecido por completo e seus membros eram frágeis; as dobras das pálpebras caíam quase recobrindo os olhos escuros. Sua dança era vagarosa, precisa e controlada. Fascinava o olhar e o espírito. Começaram a dançar na 3.a hora, após o jantar. Os músicos tocavam seus instrumentos, ou paravam, com exceção dos tambores, que permaneciam em sua batida igual, apenas com mudanças sutis. Os dois dançarinos ainda estavam firmes na 6.a hora — meia-noite —, após cinco horas de dança, na contagem terrestre.

Era a primeira vez que estava vendo o fenômeno cha­mado dothe o uso controlado, voluntário, do que chama­ríamos "energia histérica". Só assim pude acreditar nas ve­lhas lendas dos velhos homens do handdara.

Era uma vida introvertida, auto-suficiente, estagnada, estruturada naquela "ignorância" tão prezada pelo handdara e obediente à sua regra de inatividade ou não-interferência. Esta regra expressada tão bem na palavra "nusuth", que só tem uma tradução: "não importa" é o cerne do culto. E não pretendo compreendê-lo.

Mas comecei a entender melhor Karhide após esta quin­zena passada lá. Sob a aparência vistosa dos desfiles e pai­xões políticas nacionais, jaz a antiga, sombria, passiva, silen­ciosa e fecunda escuridão do handdara. E deste silêncio ergue-se, inexplicavelmente, a voz do áugure-mestre. O jovem Goss, que se divertia sendo meu guia, disse-me que a per­gunta que eu pretendia fazer poderia se referir a qualquer assunto e ser formulada como eu quisesse.

Quanto mais precisa e objetiva a pergunta, mais exata será a resposta disse. Imprecisão gera imprecisão; e algumas perguntas são naturalmente irrespondíveis.

E se perguntar uma destas? indaguei.

O mestre pode recusá-la. Perguntas que não podem ser respondidas já destruíram grupos de áugures...

Destruíram como?

Sabe da história do Lorde de Shorth, que obrigou os áugures do Monastério Asen a responder à pergunta "Qual é o significado da vida?"? Bem, isto foi há uns mil anos. Os áugures ficaram na escuridão por seis dias e seis noites. Por fim, todos os celibatários ficaram catatônicos, os zanis morreram, o Pervertido matou a pedradas o Lorde de Shorth e o áugure-mestre era um homem... chamado Meshe.

O fundador do culto yomesh?

Ele mesmo respondeu, irônico, como se se tra­tasse de um caso engraçado. Mas seria eu a causa da zomba­ria, ou os yomeshtas?

Havia decidido que perguntaria algo que exigisse a resposta "sim" ou "não", que pudesse tornar claro se havia ou não ambigüidade na resposta.

Faxe confirmou o que Goss dissera: que o assunto a ser perguntado podia ser referente a coisas completamente ignoradas por eles. Poderia, por exemplo, perguntar se a colheita de Hoolm seria boa, este ano, no hemisfério norte do planeta S. Eles responderiam, sem ter conhecimento se­quer da existência de um planeta chamado S. Isto parecia colocar o assunto no plano de pura sorte divinatória, como jogar cara ou coroa.

Mas Faxe replicou que não, que a sorte absolutamente não fazia parte daquilo, que o processo, no conjunto, era precisamente o oposto à sorte.

Então vocês fazem a leitura da mente, sem saber o que estão fazendo.

Para quê?! Se a pessoa que pergunta soubesse a resposta, ela não pagaria nosso preço para isto.

Escolhi uma pergunta para a qual eu não tinha a certeza de uma resposta. Apenas o tempo provaria se estariam certos ou não. A não ser que coincidisse, como eu esperava, de ser uma dessas profecias profissionais admiráveis, aplicáveis a qualquer problema.

Não seria uma pergunta banal não iria perguntar se ia parar de chover ou qualquer outra dessas ninharias, uma vez que já sabia o quanto era dura e perigosa esta tarefa para os nove áugures de Otherhord. O preço era alto dois dos meus rubis foram para os cofres do monastério —, mas ainda mais alto o era para eles. Quando cheguei a co­nhecer melhor Faxe, tornou-se-me difícil acreditar que fosse um impostor profissional ou um impostor honesto, auto-iludido.

Sua inteligência era clara, polida, precisa como os meus rubis. Não ousava preparar-lhe uma armadilha. Perguntei aquilo que mais desejava saber.

No 18.° dia do mês, os nove se reuniram num grande edifício que geralmente ficava trancado; uma sala alta, fria, de chão de pedras, mal iluminada por um par de janelas, tipo seteira, e pelo fogo aceso de uma lareira situada no final da sala.

Sentaram-se na pedra nua, em círculo, todos eles enca­puzados e com mantos. Mais pareciam um círculo de dólmens, no pálido brilho da lareira distante. Goss, alguns jovens residentes, um médico do domínio vizinho, observa­vam em silêncio, sentados junto da lareira, quando atravessei o salão e penetrei no seu círculo. Tudo era muito informal, mas a atmosfera estava tensa. Uma das figuras encapuzadas ergueu o olhar quando penetrei no meio deles e vi um rosto estranho, de feições ásperas, pesadas, com olhos insolentes, a me observar.

Faxe sentou-se de pernas cruzadas, imóvel, cheio de uma energia concentrada, carregada, que fazia sua voz, usual­mente leve e suave, estalar como um raio.

Faça a sua pergunta! disse ele.

Fiquei no meio do círculo e fiz minha pergunta:

Este mundo, Gethen, daqui a cinco anos, será um membro do Conselho Ecumênico dos Mundos Conhecidos?

Silêncio. Fiquei ali, preso no centro de uma teia tecida de silêncio.

É uma pergunta respondível retrucou o áugure tranqüilamente.

Houve uma sensação de relaxamento. Aqueles blocos de pedra encapuzados se movimentaram; o que tinha olhado tão estranhamente para mim começou a sussurrar com seu vizinho.

Deixei o círculo e juntei-me aos observadores perto da lareira. Dois dos áugures permaneciam desligados, sem falar. Um deles levantava a mão esquerda, de tempos em tempos, e batia no chão, rápida e levemente, umas vinte vezes, e a se­guir imobilizava-se novamente.

Não os havia visto antes: eram os zanis, explicou-me Goss. Eles eram insanos. Goss os chamava de "divisões do tempo", talvez o equivalente a esquizofrênicos. Os psicólogos de Karhide, apesar de não conhecerem a comunicação mental e serem como médicos cegos, eram hábeis em saber lidar com drogas, hipnose, choques, toques criônicos e várias ou­tras terapias mentais; perguntei se esses dois psicopatas não poderiam ser curados.

Curados?! exclamou Goss. Você curaria um cantor por possuir voz?

Cinco membros do círculo eram residentes de Otherhord, adeptos do handdara e também celibatários enquanto permanecessem como áugures, não adotando parceiros (kemmer) nos seus períodos de potência sexual. Um deles devia estar em período de kemmer, durante a prática do vaticínio, eu podia percebê-lo. Já sabia perceber a sutil intensificação física que caracteriza a primeira fase do kemmer. Ao lado deste kemmerer, sentou-se o Pervertido.

Ele veio de Spreve com o médico — disse-me Goss. Alguns grupos de áugures despertam a perversão artificialmente, isto é, injetando hormônio masculino ou feminino durante os dias que precedem a sessão. Mas é melhor ter-se a fase naturalmente. É claro, alguns gostam de notoriedade.

Goss usava o pronome "ele", que designa o animal ma­cho, não o que distingue o ser humano no papel masculino do kemmer. Ele parecia um pouco embaraçado os karhideanos discutem assuntos sexuais livremente e falam de kemmer com respeito e prazer misturados. Mas tornam-se reticentes ao se tratar de perversão pelo menos o eram comigo. Um prolongamento excessivo deste período, com de­sequilíbrio hormonal pendendo para o masculino ou o femi­nino, provoca o que eles chamam perversão. Não é raro; três a quatro por cento dos adultos podem ser pervertidos fisio­lógicos ou anormais, quer dizer, normais segundo nosso padrão. Eles não são excluídos da sociedade, mas são tole­rados com um certo desdém, como os homossexuais o são em sociedades bissexuadas.

A gíria karhideana para designá-los é "semimortos", pois são estéreis.

O Pervertido do grupo, após aquele primeiro longo e estranho olhar dirigido a mim, não prestou mais atenção a ninguém a não ser ao seu vizinho, o kemmerer, cuja sexua­lidade ativa seria estimulada gradativamente até se formar uma capacidade feminina completa, por essa insistente e exagerada masculinidade do Pervertido. Este mantinha-se falando suavemente, inclinando-se para ele, que respondia pouco e parecia se encolher. Os outros estavam calados e não havia outro som a não ser o murmúrio do Pervertido. Faxe observava atentamente um dos zanis. O Pervertido colocou a mão rápida e suavemente na do kemmerer, que esgueirou-se ao tato, com medo ou repulsão, e olhou para Faxe como que pedindo auxílio. Faxe não se mexeu. O kemmerer então permaneceu no seu lugar e não se moveu quando seu vizinho o tocou novamente.

Um dos zanis ergueu o rosto e emitiu um longo e falso riso: "Ah, ah, ah..." Faxe ergueu a mão. Imediatamente todos os rostos do círculo se voltaram para ele, como se tivesse juntado o grupo num só feixe.

Era uma tarde chuvosa aquela. A luz acinzentada tinha se desvanecido nas estreitas e altas janelas; agora, frestas de luz se alongavam pelo solo, como velas fantásticas, longos triângulos da parede ao chão e sobre o rosto dos nove. Vinham do luar lá fora. O fogo havia se extinguido há muito e não havia outra luz senão estas listas pálidas deslizando pelo círculo, desenhando um rosto, uma mão, um dorso imóvel.

Por instantes vi o perfil de Faxe rígido e pálido como uma pedra clara naquela luz difusa do anoitecer. A diagonal do luar atingiu as costas do kemmerer de cabeça encurvada sobre os joelhos, mãos crispadas, corpo tremendo ao ritmo regular das batidas das mãos do zani sobre as pedras. Esta­vam todos ligados, ligadíssimos, como se fossem ponto de união de uma teia de aranha. Eu sentia, independente de minha vontade, a conexão que os ligava, sem palavras, inar­ticulada, através de Faxe, que tentava controlar e manobrar, pois ele era o centro, o mestre, o áugure-mor. A luz fraca acabou por desaparecer ao atingir a parede oposta; mas aque­la rede de forças, de tensões no silêncio, crescia.

Eu tentava me manter mentalmente desligado deles; fiquei muito inquieto por aquela tensão silenciosa e elétrica, por uma sensação de ser sugado para lá, tornando-me um ponto, uma figura integrada também naquela rede. Porém sempre que tentava erguer uma barreira psíquica entre mim e eles era pior: sentia-me cortado e acuado dentro de mim mesmo, com a mente perseguida por alucinações da visão e do tato, um caldeirão fervente de imagens selvagens, visões abruptas e sensações carregadas de tensões sexuais grotescas, violentas, um fermentar vermelho e negro de raiva erótica. Sentia-me como que sugado para dentro de aberturas, de bocas com lábios esfarrapados, vaginas, feridas, entradas do inferno; perdia meu equilíbrio, caía... Se não conseguisse deter esse caos, despencaria mesmo, ficaria louco e não sa­beria como recobrar-me disto. As forças de empatia que estavam em ação eram imensamente poderosas e confusas. Surgidas da perversão e frustração do sexo, estavam muito acima do meu controle e da minha repressão. Entretanto, elas estavam controladas. O centro ainda era Faxe. Horas se passaram, não havia mais luar, apenas escuridão, e no centro dela estava Faxe a pitonisa uma mulher, uma mulher vestida de luz. Era uma luz prateada; de prata era sua armadura... Uma mulher vestida com armadura de prata com uma espada... A luz subitamente aumentou, tornou-se fogo, intolerável, e ela gritou, numa expressão de dor e terror:

Sim! Sim! Sim!

O riso histérico do zani recomeçou e cresceu, cada vez mais forte, até atingir uma altura insuportável, indo e vindo, oscilante, muito mais forte que qualquer voz humana poderia gritar, perfurando o tempo. Houve movimentos no escuro, uma confusão de pés se arrastando e como que uma quebra de encanto, uma evasão de prenúncios.

Luz! Luz! exclamou uma voz poderosa. Inúme­ras vezes: Luz! Luz! Acendam a lareira! Luz!

Era o médico de Spreve. Ele havia entrado no círculo e o encantamento se quebrara. Estava ajoelhado ao lado dos zanis, as peças mais vulneráveis do grupo. Ambos estavam encolhidos no chão. O kemmerer repousava com sua cabeça nos joelhos de Faxe, respirando ofegantemente, ainda tremendo todo. A mão de Faxe acariciava seu cabelo, com uma certa gentileza ausente. O Pervertido tinha se retirado para um canto, soturno e deprimido. A sessão tinha terminado, o tempo continuava como sempre. A rede de energia se dis­solvera em cansaço e mal-estar. Onde estava a minha respos­ta, a predição do oráculo, a ambígua enunciação da profecia?

Ajoelhei ao lado de Faxe. Olhou-me com seu olhar lím­pido. Por instantes eu o vi, como antes, no escuro, como uma mulher vestida de luz e queimando no fogo, gritando: "Sim!"

A voz suave de Faxe quebrou a visão.

Obteve sua resposta, Enviado?

Sim, áugure-mestre.

Na verdade ele me havia respondido. A resposta havia sido "sim". Daqui a cinco anos, Gethen seria um membro do Conselho Ecumênico. Nenhum enigma; nada excuso ou dúbio. Naquele mesmo momento fiquei certo da qualidade da resposta. Não tanto uma profecia, mas uma constatação. Não era possível negar minha própria certeza de que a res­posta estava certa. Tinha a clareza imperativa de uma pre­monição.

Temos naves Nafal e transmissão instantânea e comu­nicação mental, mas não tínhamos ainda conquistado o dom da premonição. Para isto, tínhamos que ir a Gethen.

Dias depois, Faxe conversava comigo:

Eu sirvo como um fio condutor; a energia se con­densa em nós, sempre indo e voltando, redobrando o impulso cada vez mais até que explode e a luz se faz em mim, em torno de mim; eu passo a ser a própria luz. O velho homem do Monastério Arbin disse uma vez que se o áugure-mor pudesse ser colocado no vácuo, no momento exato da respos­ta, ele permaneceria queimando por anos. É isso que os yomeshtas acreditam que Meshe faça — que ele vê o pas­sado e o futuro, nitidamente, não por um momento, mas durante toda a sua vida. É difícil de acreditar. Duvido que alguém possa suportá-lo. Más não importa...

Nusuth, a ambígua negativa do handdara.

Passeávamos lado a lado e Faxe me olhava. Seu rosto, um dos mais belos rostos humanos que eu já vira, parecia duro e ao mesmo tempo delicado, como mármore esculpido.

No escuro — disse ele —, havia dez pessoas e não nove. Havia um estranho.

— É verdade, havia. Eu não tinha barreiras contra vo­cês. Faxe, você é aquele que escuta, um ser com empatia natural e provavelmente um telepata natural e poderoso tam­bém. É por isso que você é o responsável, o que pode con­servar as tensões e reações do grupo circulando numa inten­sidade sempre crescente até que a tensão explode e você consegue, neste momento máximo, a resposta.

Ele me escutou com grave interesse.

É estranho ver os mistérios do meu ofício vistos do lado de fora, através de outros olhos e outras mentes. Tenho-os visto, sempre, do ângulo interno, como um discípulo.

Se você permitir, Faxe, isto é, se desejar, gostaria de me comunicar com você através de uma conversação mental.

Estava seguro de que ele era uma fonte natural de po­der comunicador, e alguma prática bastaria para derrubar, um pouco, a barreira do seu inconsciente.

Uma vez feito isso, eu ouviria o que os outros pensam?

Não, não. Não além do que você já consegue através da empatia. Comunicação mental é comunicação voluntária, enviada e recebida.

Então por que não falar alto?

Bem, pode-se mentir falando.

E não se mente comunicando-se mentalmente?

Intencionalmente não.

Faxe pensou um pouco.

Isto é assunto do interesse de reis, políticos e ho­mens de negócios.

Homens de negócios combateram o uso da comuni­cação mental, que podia ser uma habilidade que se adquire pela prática da aprendizagem. Eles a proscreveram durante décadas.

Faxe sorriu.

E os reis?

Já não temos reis...

Ah, é verdade. Bem, obrigado, Genry. Mas o meu campo de estudo é justamente o não-aprender. E preferia não aprender ainda uma arte que mudaria o mundo por completo.

Mas, segundo suas próprias previsões, este seu mun­do irá mudar e dentro de cinco anos.

Então mudarei com ele, Genry. Não tenho nenhuma vontade de mudá-lo agora.

Estava chovendo, a fria e demorada chuva do verão de Gethen. Estávamos andando sob as árvores de hemmen, nas colinas acima do monastério, onde não havia caminhos abertos. A luz peneirava-se acinzentada através dos ramos escuros e cristalinas gotas d'água caíam sobre nós das agulhas vegetais escarlates. A temperatura era baixa, mas amena e o ar vibrava com o ruído leve da chuva.

Faxe, diga-me uma coisa: você, como handdarata, possui um dom que todos os homens do mundo ambicionam. Você o possui. Pode predizer o futuro. No entanto, você vive como qualquer um de nós, isto é, sua dádiva parece não ter importância.

Como poderia ter importância, Genry?

Bem, veja: por exemplo, a rivalidade entre Karhide e Orgoreyn, esta disputa entre os dois pelo vale do Sinoth. Karhide tem perdido muito ultimamente. Agora, por que o Rei Argaven não consulta seus áugures, perguntando que decisões tomar, ou que membro do conselho escolher como primeiro-ministro, ou coisas deste gênero?

Genry, perguntas são difíceis de fazer.

Não vejo por quê. Ele poderia perguntar simples­mente: "Quem me servirá melhor como primeiro-ministro?"

Claro, ele poderia perguntar. Mas ele não sabe o que é "servir-lhe melhor". Poderia significar que o homem escolhido decidisse entregar o vale a Orgoreyn; talvez ser exilado; ou assassinar o rei... em suma, poderia significar muitas coisas que ele não gostaria ou aceitaria.

Ele teria que fazer uma pergunta muito precisa...

Ele teria que fazer muitas perguntas. Mesmo um rei tem que pagar o preço.

Você cobraria caro?

Muito caro — respondeu Faxe, tranqüilamente. — Quem pergunta paga o preço, como você sabe. Reis têm vin­do a nós, mas não freqüentemente...

E o que aconteceria se um dos áugures fosse ele próprio um homem poderoso?

Residentes dos monastérios não podem ter status social. Eu posso ser mandado a Erhenrang e fazer parte do conselho. Se eu for, assumo meu status e minha sombra, mas as minhas predições terão que acabar. Se tivesse alguma per­gunta a fazer enquanto servisse ao governo, teria que ir ao Monastério Orgny e aí, para obter minha resposta, teria que pagar, também, o meu preço. Mas na verdade, nós, no handdara, não queremos respostas. É difícil evitá-las, mas tenta­mos sempre.

Faxe, estou confuso...

Bem, viemos para cá principalmente para aprender que não se devem fazer perguntas.

Mas são vocês que respondem!

Você não percebeu, ainda, Genry, por que nós aperfeiçoamos e praticamos os vaticínios?

Não.

Para mostrar a perfeita inutilidade de se saber a resposta de uma pergunta errada!

Pensei bastante sobre o que me dissera, enquanto caminhávamos, assim, debaixo da chuva, lado a lado.

Sob o capuz, seu rosto estava cansado e quieto; seu brilho bruxuleava, às vezes. Entretanto, ele ainda me espan­tava. Quando me olhava com seu olhar límpido, sereno e sincero, era uma expressão que trazia a tradição de treze mil anos de prática. Uma maneira de pensar e uma forma de viver tão antigas, tão bem firmadas, tão integrais e coerentes que davam ao ser humano a desinibição, a libertação de si próprio, a integridade de um animal livre, uma grande e estranha criatura que olha para você numa dimensão muito além do eterno momento presente...

O desconhecido — disse Faxe, suavemente —, o não-previsto, o não-provado, é nisto que se baseia a vida. Ignorância é a base do pensamento. A não-certeza é a base da ação. Se se tivesse certeza de que Deus não existe, não haveria nenhuma religião. Nenhum handdara, nenhum

Yomesh, nenhum Deus doméstico, nenhum. Mas também se provássemos que Deus existe, não haveria religião. Diga-me, Genry: o que é certo? previsível? inevitável? Qual é a única coisa certa que nós sabemos sobre o nosso futuro?

Que morreremos.

Claro, é esta, realmente, a única questão que pode ser respondida, Genry, e já sabemos a resposta... A única coisa que faz a vida possível é a permanente e intolerável incerteza. Não saber o que vem depois.

 

 

                         O perigoso desterro

O cozinheiro, que sempre chegava a casa cedo, acor­dou-me; eu dormia profundamente e ele teve que me sacudir:

"Acorde, acorde, Lorde Estraven, está aí um mensa­geiro da casa real!"

Afinal despertei, e, tonto de sono, compreendi o que dizia. Levantei-me apressadamente e cheguei à porta onde o mensageiro me esperava — e foi assim, nu e estupefato, como um recém-nascido, que ingressei no meu exílio.

Ao ler o comunicado que ele me entregara, disse para mim mesmo que havia cavado meu túmulo; mas não esperava que tudo se precipitasse tão rápido. Enquanto observava o mensageiro pregar o maldito papel na porta da minha residência, senti como se estivessem cravando aqueles pregos nos meus próprios olhos. Voltei-me e permaneci vazio e despojado, destruído pela dor que não suportava.

Passada a crise, fui fazer o que tinha que ser feito; na 9.a hora, ao soar dos gongos do palácio, eu já havia partido.

Nada mais me prendia lá. Levei o que pude carregar. Propriedades e dinheiro do banco não poderia resgatar, a não ser pondo em risco as pessoas que me ajudassem, e quanto mais amigos maior seria o risco. Escrevi para o meu antigo kemmering Ashe, dizendo-lhe como poderia usar certos valores meus em benefício de nossos filhos, mas avisei-o para que não tentasse enviar-me dinheiro, pois Tibe iria ordenar a vigilância das fronteiras. Não podia assinar a carta. Telefonar para qualquer pessoa seria o mesmo que enviá-la à prisão; apressei-me, então, em deixar o palácio antes que qualquer amigo viesse, inocentemente, à minha procura e perdesse o dinheiro e a liberdade, como paga pela amizade que me oferecia.

Parti em direção oeste, através da cidade. Parei num cruzamento e pensei: "Por que não ir para leste, atravessar as montanhas e as planícies, até a Terra de Kerm, a pé, e voltar para meu lar em Estre, onde nasci, naquela casa de pedra, na vertente da montanha? porque não?" Parei algu­mas vezes no caminho e pensei em retornar e ir para lá. Mas olhava os rostos dos transeuntes e via neles espiões enviados para me seguir na fuga de Erhenrang; então, cada vez mais me convencia da loucura de tentar retornar ao meu lar. Seria o mesmo que me suicidar. Estava destinado a viver no exílio e meu único caminho de volta ao lar seria a morte. Assim, continuei em direção oeste e não olhei mais para trás. Os três dias de tolerância me deram tempo para chegar ao ponto extremo do golfo, em Kuseben, a oitenta e cinco milhas de distância. A maior parte dos exilados tinha uma noite de aviso, antes da proclamação da ordem de banimento, e, assim, haveria a oportunidade de conseguir uma passagem no navio que descia o Sess, antes que os tripulantes fossem punidos por darem ajuda.

Essa cortesia, porém, não era da natureza de Tibe. Nenhum comandante me levaria à fronteira e o percurso de Erhenrang até lá é de quatrocentas milhas. Não tinha escolha senão ir a pé até Kuseben.

O cozinheiro previra esta emergência; eu o tinha despe­dido logo, mas, ao partir, ele deixara pronto todo o alimento que pudera preparar, num pacote que me reabasteceria pelos três dias de caminhada. Essa bondade salvou-me e incutiu-me coragem na fuga, pois, todas as vezes que comia uma fruta ou um pedaço de pão, pensava: "Há um homem que não me considera traidor; foi ele que me deu isso para comer".

É duro, descobri então, ser chamado de traidor. Por mais estranho que pareça, é um epíteto fácil de se dar a outrem, mas é um pejorativo que se agarra na gente, se in­crusta e convence. Até eu já estava meio convencido.

Cheguei a Kuseben ao entardecer do terceiro dia, com os pés doloridos e aflito; havia perdido o gosto pelas cami­nhadas, nos últimos anos, com a vida confortável e sedentária que levava em Erhenrang. Às portas da cidade, esperando por mim, estava Ashe.

Durante sete anos fomos kemmering e tivemos dois filhos. Nascidos de sua carne, eles tinham seu nome, Foreth rem ir Osboth, e eram educados por ele, em Clanhearth. Há três anos ele procurara o Mosteiro Orgny e usava, agora, o colar de ouro dos celibatários. Não nos tínhamos visto nestes três anos; no entanto, ao ver seu rosto à luz do crepúsculo, senti em mim o velho hábito de nosso amor, como se tivesse acabado ontem, apenas. Senti, então, a sua fidelidade, que o havia levado a partilhar da minha desgraça. Ao sentir, de novo, aquele laço inútil a me apertar, fiquei aborrecido, pois o amor de Ashe me forçava, sempre, a agir contra a minha própria vontade.

Passei ao largo por ele. Se eu deveria ser cruel, não pre­tendia ocultá-lo, aparentando bondade.

"Therem...", ele me chamou, e seguiu-me.

Caminhei rápido pelas ruas ladeirentas de Kuseben em direção ao cais. O vento sul soprava do mar agitando as árvores sombrias do jardim e através deste anoitecer quente e tempestuoso apressei-me em afastar-me dele como de um assassino.

Com os pés feridos não conseguia andar ligeiro; então, ele me alcançou.

"Therem, eu vou com você."

Não respondi.

"Há três anos, neste mês de Tuwa, nós juramos..."

"Há três anos", retruquei, "você quebrou o juramento, deixando-me, o que foi uma escolha sábia."

"Nunca quebrei nosso juramento, Therem."

"É claro, porque não havia nenhum! Era um jura­mento falso. Você sabe, já o sabia naquela época. O único voto de fidelidade verdadeiro que fiz na minha vida não foi jamais pronunciado e nem o poderia ser. Aquele a quem jurei está morto e a promessa desfeita, há muito tempo. Você não me deve nada, nem eu a você. Deixe-me seguir."

Enquanto falava, minha zanga e amargura voltavam-se contra mim e minha própria vida, como uma promessa par­tida. Mas Ashe, que não sabia disto, emocionou-se e lágrimas brotaram-lhe incontroláveis.

"Quer levar isto, Therem?" Estendeu-me um pequeno embrulho, continuando: "Eu... eu não lhe devo nada, mas o amo muito."

"Não, eu tenho dinheiro, Ashe. Deixe-me ir. Devo ir sozinho."

Segui e ele não mais me acompanhou. Mas a sombra de meu irmão estava comigo. Tinha feito mal em falar dele. Fizera muita coisa errada. Não tive sorte ao chegar ao embar­cadouro. Nenhuma embarcação de Orgoreyn estava no porto, de modo que eu pudesse estar a bordo e, assim, fora do solo de Karhide à meia-noite, como era a minha única alternativa. Poucos homens estavam no cais e, assim mesmo, já se diri­giam às suas casas, apressadamente. O único que encontrei era um pescador que consertava o motor de seu barco. Di­rigi-me a ele, mas, ao olhar-me, deu-me as costas e nada disse. Diante disso senti medo. O homem me reconhecera; ele tam­bém estava avisado. Tibe mandara capangas para impedir-me de sair e me obrigar a ficar em Karhide até se esgotar o meu prazo. Até agora tinha sentido dor e raiva, mas não medo. Não pensava que a ordem de exílio pudesse ser, apenas, um simples pretexto para minha execução. Quando soasse a 6.a hora, eu seria uma presa fácil para os homens de Tibe e ninguém poderia gritar: "Assassinos!", porque a justiça fora feita.

Sentei-me num saco de areia, na escuridão do porto, na ventania. O mar batia contra as estacas do comprido cais e os botes de pesca oscilavam presos no ancoradouro. No ex­tremo deste brilhava a luz de um poste solitário; através de sua luz contemplei a profunda escuridão do mar.

Alguns reagem prontamente ao perigo imediato. Eu não. Minhas qualidades estão na capacidade de prever. Ameaçado de perto, fico como um imbecil. E ali fiquei, sentado num saco de areia, pensando se um homem poderia nadar até Orgoreyn. O gelo já se derretera no golfo de Charisune há um ou dois meses; pode-se permanecer em suas águas sem morrer enregelado por algum tempo. Mas a distância até as margens de Orgoreyn é de cento e cinqüenta milhas — e eu não sabia nadar.

Desviei o olhar do mar para as ruas de Kuseben na esperança de que Ashe tivesse me seguido. A que ponto havia chegado! A vergonha me fez cair em mim e pude raciocinar. Suborno ou violência eram as minhas alternativas se eu fosse tratar com aquele pescador que ainda trabalhava no seu bar­co. Mas um motor com defeito nada iria resolver. Pensei em roubar, então. Mas os motores dos barcos de pesca ficam trancados. Poderia fazer um circuito provisório, colocar o motor para funcionar e manobrar o barco para fora do cais de amarração, das lâmpadas do cais e, então, fugir para Orgoreyn. Mas nunca havia manobrado um barco a motor; seria uma saída louca, desesperada. Remar, sabia remar! Já o fizera no lago de Kerm. E havia um barco a remo, amarrado entre duas lanchas. Mal pensei, agi. Disparei pelo cais, sob as lâmpadas acesas, pulei no barco, desamarrei-o e, instalan­do os remos, dirigi-me para as ondas encrespadas do mar, onde as luzes apenas se refletiam, ligeiramente, nas águas escuras. Quando já estava bem afastado, parei de remar para recolocar o tolete de um dos remos no lugar, pois ele não estava funcionando bem. Eu deveria remar um bocado, em­bora não tivesse esperanças de escapar, no dia seguinte, de alguma patrulha ou pescador orgota. Quando me curvei sobre os remos, uma terrível fraqueza me percorreu o corpo. Pensei que fosse perder a consciência, e me encolhi no banco. Era a náusea da covardia tomando conta de mim não sabia que a covardia jazia tão forte no interior do meu ser. Ao erguer os olhos, vi duas figuras em pé, no fim do cais, como dois riscos negros, contra o brilho distante da iluminação. Percebi, então, que a minha paralisia não era provocada pelo terror, mas sim por uma arma silenciosa de longo alcance. Pude perceber que um deles portava uma espécie de espin­garda e, se já passasse da meia-noite, ele dispararia e me atingiria mortalmente. Mas a espingarda de caça produz um estampido forte e isto eu não ouvira. Era, sem dúvida, uma arma assônica. Seu campo de ação é de, aproximadamente, cem pés. Não sei bem o seu alcance mortífero, mas não es­tava longe dele, pois eu estava dobrado em dois, como uma criança em cólicas. Tinha muita dificuldade em respirar, o impacto me apanhara no peito. Dobrado sobre os remos, de­sesperado, não podia perder um segundo mais, pois eles na certa possuíam um barco rápido e viriam dar cabo de mim. A escuridão estava à minha frente e para ela remei. Remei quase sem forças, cuidando de não soltar as mãos dos remos, pois não tinha mais tato. Assim cheguei às águas agitadas do mar alto do golfo. Aí parei. Cada remada aumentava a dormência dos braços; meu coração funcionava mal e os pul­mões haviam esquecido de como absorver o ar. Tentei remar e não consegui. Colocar os remos no barco era também inútil. Quando a luz do holofote de um barco-patrulha deslizou. e me pôs em destaque, como um floco de neve sobre a fuligem, não pude mais desviar os olhos do ofuscamento. Eles desco­laram minhas mãos crispadas de sobre os remos, içaram-me do barco e me depositaram, como um peixe fisgado, no convés. Senti que me rodeavam, mas não compreendi bem o que diziam — exceto um, o comandante, pelo tom de sua voz: "A 6.a hora ainda não se extinguiu..." E respondendo a um outro: "E que tenho eu com isto?" Parecia disposto a me ajudar: "O rei o exilou... vou obedecer à ordem do rei; não faço por menos..."

Assim, desobedecendo às ordens dadas pelo rádio, pelos homens a serviço de Tibe, e contra os argumentos dos próprios companheiros que temiam um revide, aquele oficial da patrulha de Kuseben conduziu-me através do golfo de Charisune e deixou-me em terra, a salvo, no porto de Shelt, em Orgoreyn. Se ele fez isso por pura shifgrethor[7] como reação contra os capangas de Tibe que queriam matar um homem desarmado, ou por exclusiva bondade, não sei... Nusuth. "O admirável é inexplicável."

Ergui-me quando percebi o contorno da nova terra re­cortado no horizonte, emergindo do nevoeiro matutino, e consegui andar um pouco, saindo do barco em direção à rua, nas imediações do cais. Mas logo caí de novo. Quando voltei do desmaio, estava no hospital comensal da 4 a Área Costeira de Charisune, na 24.a Comensalidade de Sennethny. Disso eu estava certo, pois estava gravado numa plaqueta, em orgota, na cabeceira da cama; havia, ainda, uma lâmpada de leito de hospital, um copo de metal na mesa-de-cabeceira, os man­tos das enfermeiras, as cobertas e a camisa de doente que eu usava. Um médico veio me ver.

"Por que resistiu ao dothe?"

"Não estava em dothe", respondi, "estava no campo sônico."

"Seus sintomas eram os de uma pessoa que havia resis­tido à fase de relaxamento do dothe."

Ele era uma figura imponente e acabei por admitir que usara a força do dothe para conter a paralisia, enquanto re­mava, sem saber nitidamente o que fazia. De modo que, na­quela manhã, na fase de thangen — quando se deve ficar imóvel —, eu me levantara e quase acabara por me liquidar. Quando ficou tudo claro para ele, disse-me que poderia sair em um dia ou dois, e dirigiu-se para o leito próximo.

Atrás dele veio o inspetor. Atrás de cada pessoa em Orgoreyn vem o inspetor.

"Seu nome?"

Eu não lhe perguntara o dele; tenho que aprender a viver sem espírito como fazem em Orgoreyn — não me ofender, nem ofender inutilmente. Não lhe dei meu sobre­nome, que não interessava a ninguém ali.

"Therem Harth? Não me parece um nome orgota. De que comensalidade é?"

"Karhide."

"Não pertence a Orgoreyn. Onde estão seus documen­tos de identificação e seus papéis de entrada?"

"Onde estariam?", pensei.

Eu tinha ficado ao léu pelas ruas de Shelt antes de terem me levado para o hospital, onde chegara sem papéis, pertences, roupas ou dinheiro. Quando soube disto, desatei a rir de pura raiva no fundo não era zanga. O inspetor se ofendeu com o meu riso.

"Não está compreendendo que é um indigente e um estranho sem identidade? Como pretende voltar a Karhide?"

"Num caixão."

"O senhor está dando respostas inadequadas a pergun­tas oficiais. Se não tem intenção de voltar a seu próprio país, terá que ser enviado a uma fazenda comunal onde há lugar para criminosos vulgares, estranhos e pessoas sem identi­dade. Não há outro lugar para indigentes e subversivos em Orgoreyn. É melhor declarar que tem a intenção de voltar a Karhide dentro de três dias ou serei..."

"Estou proscrito de Karhide."

O médico, que já havia prestado atenção ao meu nome, voltou-se, puxou o inspetor para um canto e falou-lhe qualquer coisa em voz baixa. O inspetor ficou amargo como cerveja de má qualidade e quando voltou falou comigo lentamente, silabando cada palavra:

"Bem, calculo que vai declarar-me sua intenção de pedir um formulário de permissão para tornar-se residente permanente da grande comensalidade de Orgoreyn. E espera obter um emprego útil como membro da comensalidade ou cidadania?"

"Naturalmente", respondi. A graça tinha ido embora com aquela palavra "permanente", uma palavra macabra, se é que há outra pior.

Após cinco dias, concederam-me residência permanente, como membro da cidadania de Mishnory (que eu tinha solicitado), e me foram dados papéis de identificação temporários para a viagem por esta cidade.

Eu teria vivido faminto se o velho médico não tivesse me retido no hospital. Ele gostava de ter um primeiro-ministro de Karhide na sua enfermaria, e o primeiro-ministro era grato por isto.

Fui para Mishnory como carregador, numa caravana, levando peixe fresco de Shelt. Uma viagem rápida e cheia de odores que terminou no mercado central de Mishnory meridional, onde logo achei trabalho nos frigoríficos. No verão sempre há trabalho nesses lugares, com a descarga, empacotamento e armazenamento desse artigo tão perecível. Eu lidava, de preferência, com peixes, e me alojei numa ilha perto do mercado com meus companheiros de trabalho. Era chamada a Ilha do Peixe e fedia como nós. Mas eu gostava do trabalho que me mantinha a maior parte do dia em arma­zéns refrigerados. Mishnory, no verão, é um forno o rio ferve, os homens suam. No mês de Ockre houve dez dias e dez noites em que a temperatura nunca foi abaixo de ses­senta graus, e um dia chegou a oitenta e oito graus. Tendo que sair do meu refúgio frio para aquela fornalha fumegante, no fim do dia andava um par de milhas até as margens do Kunderer, onde há árvores e pode-se ver o grande rio, em­bora não se possa descer até ele. Perambulava até tarde e voltava, enfim, à Ilha do Peixe, através da noite abafada, as­fixiante. Nesta parte de Mishnory as lâmpadas eram freqüen­temente quebradas para atos íntimos no escuro das ruas. Mas os carros dos inspetores estavam sempre espionando e acen­dendo os faróis nestas ruas recolhidas, tirando dos pobres seu único direito privado, a noite. A nova lei de registro de estrangeiros promulgada no mês de Kus, como uma jogada no tabuleiro de xadrez com Karhide, invalidou meu registro e perdi meu trabalho; passei, então, meio mês esperando nas ante-salas de um número infinito de inspetores.

Meus companheiros de trabalho me emprestavam di­nheiro e roubavam peixe para meu jantar, até eu conseguir ser reintegrado no trabalho antes que morresse de fome. Eu aprendera a lição. Estimava esta gente áspera e leal, mas eles viviam numa ratoeira, nela não havia saída, e eu tinha trabalho a desempenhar noutro meio, embora não fosse da minha preferência. Fiz chamadas telefônicas para os contatos que vinha adiando há três meses. No dia seguinte, estava lavando minha camisa na lavanderia coletiva que ficava no pátio cen­tral de nossa ilha, junto aos companheiros, todos nós semi­nus, quando, através dos vapores fedorentos da roupa impregnada de peixe e da barulheira da água, ouvi alguém me chamar pelo sobrenome: ali estava o Comensal Yegey, exatamente o mesmo que eu conhecera na recepção do embaixador dos Arquipélagos, no salão de cerimônias do palácio de Erhenrang, há sete meses.

"Saia daí, Estraven", disse ela em sua voz alta, nasal e aguda, típica dos ricos de Mishnory. "Vamos, deixe aí essa maldita camisa."

"Não tenho outra."

"Então pegue sua camisa nesse ensopado e venha. Que calor faz aqui!"

Os outros olharam Yegey com uma curiosidade severa, sabendo-o um homem rico, mas não comensal. Não gostei de sua presença. Deveria ter mandado alguém procurar-me. Muito poucos orgotas têm qualquer sentimento de decência, e eu queria vê-lo, logo, fora dali. Como a camisa estava molhada, pedi a um rapaz que estava perambulando por ali que a guardasse até a minha volta. Minhas dívidas estavam pagas; meus papéis voltaram ao bolso da capa e, assim, sem camisa, abandonei a ilha e fui com Yegey para a residência dos po­derosos.

Fui registrado, novamente, nos arquivos de Orgoreyn como seu "secretário". Não mais como um número numa ficha, mas como seu "dependente". Nomes não importam; antes deles tem que se ter um título que diga o que a pessoa faz, o cargo que ocupa, antes de dizer quem é. Mas desta vez o rótulo estava adequado: eu era mesmo um dependente e muito em breve iria amaldiçoar o destino que me levara a comer do pão da casa alheia. Eles se esqueceram de mim por um mês e eu fiquei tão impotente quanto no tempo em que me encontrava na Ilha do Peixe.

Numa tarde chuvosa do último dia de verão, Yegey mandou-me buscar e fui ao seu gabinete, onde o encontrei conversando com o comensal do distrito de Sekeve, Obsle, que eu conhecera quando chefiava a missão comercial da Marinha orgota, em Erhenrang. Baixo e encurvado, com pequenos olhos triangulares num rosto gordo e achatado, fazia uma dupla estranha com Yegey, ossudo e delicado. Eram, porém, mais do que isso: eram dois dos trinta e três mem­bros que governavam Orgoreyn. E, quem sabe, outras coisas mais, além disso.

Trocamos cumprimentos e bebemos um trago de aqua-vita de Sithish. Aí, tomando fôlego, Obsle me disse:

"Agora, me conte, por que você agiu daquele modo no caso Sassinoth, Estraven? Se há uma pessoa incapaz de errar no cálculo da hora precisa de agir ou na avaliação da shifgrethor, essa pessoa é você.

"O medo sobrepujou a cautela, comensal."

"Medo de quê, diabos?! De que você tem medo, Es­traven?"

"Do que está acontecendo agora, a continuação desta luta pelo poder no vale do Sinoth, a humilhação de Karhide e a raiva que brota da humilhação — e o uso desta raiva pelo governo de Karhide."

"Uso? Com que fim?"

Obsle era grosseiro. Yegey, delicado, mas abespinhado, interrompeu:

"Comensal, Lorde Estraven é meu hóspede e não pre­cisa ser submetido a um interrogatório."

"Lorde Estraven responderá às perguntas quando achar que deve, como sempre fez", disse Obsle rindo, mas com a alfinetada escondida nas pregas gordurosas do sorriso. "Ele sabe que está entre amigos."

"Eu busco os amigos onde os encontro, comensal, mas não espero conservá-los por muito tempo."

"Sei disso. Entretanto, podemos empurrar juntos um trenó sem sermos kemmering, como dizem em Eskeve, não é? Com mil demônios! Eu sei a razão por que você foi exi­lado, meu caro. . . por amar Karhide mais que ao seu rei."

"Melhor gostar do rei do que de seu primo, não?"

"Ou gostar de Karhide mais do que de Orgoreyn", completou Yegey. "Estou enganado, Lorde Estraven?"

"Não, comensal."

"Você pensa", disse Obsle, "que Tibe deseja governar Karhide eficientemente, como o fazemos em Orgoreyn?"

"Sim. Tibe, usando a disputa do vale do Sinoth como um aguilhão, e afiando-o de vez em quando, pode, em um ano, executar grandes mudanças em Karhide, que os últimos mil anos não viram. Ele já tem um modelo em que se basear: o Sarf. E ele sabe como manobrar os temores de Argaven. Isto é mais fácil do que despertar a coragem de Argaven, como tentei. Se Tibe conseguir, os senhores verão que têm um inimigo à sua altura."

Obsle concordou; Yegey disse:

"Eu abro mão ao shifgrethor."

"Aonde você quer chegar, Estraven?"

"Nisto: este continente pode conter dois Orgoreyns?"

"Ai, ai, ai... o mesmo penso eu", acrescentou Obsle. "Você meteu isso na minha cabeça há muito tempo, Es­traven, e eu nunca consegui arrancar do meu pensamento. Nossa sombra se projeta cada vez mais vai cobrir Karhide também. Uma disputa entre dois clãs, sim; uma linha entre duas cidades, admito; uma disputa de fronteiras e alguns incêndios e assassinatos, está certo. Mas uma disputa entre nações? Uma rixa que envolva cinqüenta milhões de almas? Oh, pelo doce leite de Meshe, isto é uma visão que tem perturbado meu sono, algumas noites, e faz-me acordar suando... Não estamos seguros, não mesmo! Você sabe disso, Yegey; você já disse isso, inúmeras vezes, a seu modo."

"Já votei treze vezes contra a pressão sobre a disputa do vale do Sino th. Mas no que deu? A facção dominante tem vinte votos a seu dispor e cada ação de Tibe fortalece o controle do Sarf sobre os vinte. Ele constrói uma cerca no vale, coloca guardas nela, armados com fuzis de caça — fuzis de caça! Pensei que eles já estivessem guardados em museus. Ele alimenta a facção dominante com o desafio sempre que precisa de um."

"E assim fortalece Orgoreyn. Mas também Karhide. Cada resposta que vocês dão às suas provocações, cada hu­milhação que fazem Karhide sofrer, cada êxito do seu pres­tígio, vai fazer Karhide cada vez mais forte, até que se torne seu igual — tudo sob o controle de um único centro como Orgoreyn. E, em Karhide, os fuzis de caça não estão em museus, são usados pela guarda real."

Yegey preparou outro copo de aquavita. Os orgotas nobres bebem esse fogo precioso, trazido dos longínquos mares enevoados de Sith, como se fosse cerveja. Obsle enxu­gou a boca, piscando os olhos.

"Bem", disse afinal, "tudo é como sempre pensei e como ainda penso. Acho que temos um trenó para empur­rarmos juntos, mas tenho uma pergunta a fazer antes de estarmos atrelados a ele. Diga-me agora: o que foram todas essas coisas obscuras, confusas e disparatadas sobre um envia­do do lado oposto da Lua?"

Ah, pensei, então Genly Ai havia também requerido permissão para entrar em Orgoreyn...

"O Enviado?! Ele é o que diz ser."

"E isto quer dizer..."

"Um enviado de outro mundo..."

"Pare com suas malditas metáforas de karhideano, Es­travem Desisto de shifgrethor. Quer me responder?"

"Já o fiz."

"Ele é um alienígena?", disse Obsle, seguido de Yegey.

"E obteve audiência com o Rei Argaven?"

Respondi afirmativamente a ambos. Ficaram silenciosos por um momento e depois puseram-se a falar ao mesmo tem­po, sem ocultar seu enorme interesse:

"Que parte ele desempenhava nos seus planos? Você apostou nele, parece, e perdeu. Por quê?"

"Porque Tibe passou-me uma rasteira. Eu tinha os olhos nas estrelas e não olhei mais para a lama onde cami­nhávamos."

"Você se dedicou à astronomia, meu caro?"

"Seria melhor se todos nós nos dedicássemos a ela, Obsle."

"Este enviado representa uma ameaça para nós?"

"Creio que não. Ele traz a oferta de seu povo, nada mais: comunicação, comércio, tratados e alianças. Veio só, sem armas ou defesa, sem nada a não ser um pequeno apa­relho de comunicação e sua nave. Ele permitiu que fizéssemos exame completo nela. Ele não deve ser temido. Entretanto, em suas mãos vazias, ele traz o fim do reino e da comensalidade."

"Por quê?"

"Como vamos lidar com estranhos, a não ser como irmãos? Como Gethen pode tratar com uma união de oitenta mundos, a não ser como um só mundo?"

"Oitenta mundos?!" exclamou Yegey, e riu amarelo.

Obsle olhava-me de esguelha e acrescentou:

"Imagino que você conviveu tanto com aquele louco do palácio real que acabou igual a ele... Por Meshe! Que baboseira é esta de alianças com sóis e tratados com luas? Como o cara chegou aqui? Na cauda de um cometa? Montado num meteoro? Numa nave? Que espécie de nave flutua no ar, nos espaços vazios? Estraven, você não está mais louco do que sempre esteve, isto é, inteligente e sabiamente louco. Todos os karhideanos são insanos. Conduza-me, meu senhor, eu o seguirei! Adiante!"

"Não pretendo ir a lugar algum, Obsle. Para onde posso ir? Você, entretanto, pode. Se você acompanhasse o Enviado um pouco, ele poderia mostrar-lhe outro caminho, fora do vale do Sinoth, fora desta diabólica aventura em que estamos todo envolvidos."

"Muito bem; vou retornar à astronomia na minha ve­lhice. Com que objetivo?"

"A grandeza. Se você caminhar mais sabiamente do que eu. Senhores, eu estive com o Enviado, examinei a nave que cruzou o espaço e sei que ele é, verdadeiramente, o mensageiro de algo fora desta terra. Quanto à honestidade da sua mensagem e à verdade das descrições deste além, não há como comprovar; pode-se julgar, apenas, como se julga um homem. Se ele fosse um dos nossos, eu diria que ele é um homem decente. Mas isto vocês poderão avaliar pessoal­mente, talvez. Entretanto, uma coisa é certa: na sua presença, as linhas que marcamos na terra não são limites nem defesa. Há um desafio maior que Karhide, nas portas de Orgoreyn. O homem que enfrentar este desafio, que primeiro abrir as portas da nossa terra, será o líder de todos. Tudo: os três continentes, toda a terra. Nossa fronteira, agora, não é uma linha entre duas colinas, mas a linha que nosso planeta faz em torno do sol. Colocar todo seu prestígio numa causa me­nor é uma coisa tola, no momento."

Eu conquistara Yegey, mas Obsle continuou sentado, mergulhado na sua gordura, observando-me com seus olhos pequeninos.

"É preciso um mês para considerar o assunto", obser­vou. "E, se viesse de outra fonte que não a sua, Estraven, acreditaria ser pura farsa, uma armadilha para nosso orgu­lho, tecida com a luz das estrelas. Mas conheço seu pescoço rijo. Muito duro para se curvar a uma desgraça assumida a fim de nos tapear. Não acredito que esteja falando a verdade e sei também que uma mentira o faria engasgar... bem, bem; ele falará conosco como falou com você?"

"É isso justamente que ele deseja: falar e ser ouvido. Aqui ou ali. Tibe vai silenciá-lo se ele tentar falar, novamen­te, em Karhide. Sinceramente, temo por sua sorte; ele pa­rece não compreender o perigo a que está exposto."

"Você nos dirá o que sabe?"

"Direi, sim, mas há alguma razão que o impeça de vir aqui e falar pessoalmente?"

Yegey, roendo a unha, respondeu pensativamente:

"Creio que não. Ele requereu permissão para entrar na comensalidade. Karhide não faz objeção. Seu pedido está sendo examinado."

 

 

                                O problema sexual

Das anotações de Ong Tot Oppong, investigador, do pri­meiro grupo ecúmeno que foi a Gethen-Inverno. Ciclo 93, E. Y. 1448.

 

1448 — 81.° dia. Trata-se, provavelmente, de uma ex­periência. A idéia é desagradável. Mas agora que há evidên­cia a favor da teoria de que a colônia Terra foi uma expe­riência, a implantação de um grupo normal de Hain, num mundo com seus autóctones proto-hominídios, esta possibi­lidade não pode ser ignorada. A manipulação genética huma­na foi, certamente, praticada pelos colonizadores; só ela ex­plica os seres de S ou os hominídios alados em degeneração de Rokanan. Algo diferente poderá explicar a fisiologia se­xual dos gethenianos? Acidente? Possivelmente. Seleção na­tural, impossível. Sua ambissexualidade não tem nenhum ou pouco valor adaptativo. E por que escolher um mundo tão difícil para um experimento? Não há explicação.

Tinibossol acha que uma colônia foi instalada, num período interglacial, em condições climatéricas mais amenas, nos primeiros quarenta ou cinqüenta mil anos, aqui. Quando o gelo recomeçou a progredir, a avançar, a retirada de Hain foi completa e os colonizadores ficaram entregues a si pró­prios; uma experiência abandonada. Estou teorizando a res­peito das origens da fisiologia sexual dos gethenianos. Mas o que sei realmente sobre ela? Otie Nim fez comunicados sobre a região de Orgoreyn que esclareceram algumas das minhas dúvidas iniciais. Mas vamos registrar aqui tudo o que sei, e depois minhas hipóteses. Tudo na devida ordem.

O ciclo sexual dura em média de vinte e seis a vinte e oito dias — em geral é de vinte e seis dias, aproximadamente. Durante vinte e um ou vinte e dois dias, o indivíduo fica em somer, isto é, sexualmente inativo, latente. No décimo oitavo dia, efetuam-se mudanças hormonais sob a ação da pituitária, e no vigésimo segundo ou vigésimo terceiro dia o indivíduo entra na fase de kemmer. Na sua primeira fase de kemmer ele ainda se conserva totalmente andrógino (em karhideano, secher).

Um getheniano, nesta primeira fase de kemmer, se à sós ou com outros não em kemmer, é incapaz de copular. No entanto, o impulso sexual é tremendamente poderoso nesta fase, dominando toda a personalidade, submetendo tudo ao seu imperativo. Quando o indivíduo encontra um parceiro em kemmer a secreção hormonal é então estimulada (principalmente pelo toque, pelo tato), até que num dos parceiros há o predomínio dos hormônios de um dos sexos: masculino ou feminino.

Os órgãos genitais se desenvolvem ou se atrofiam, con­forme for o caso, o jogo do amor se intensifica e o compa­nheiro, estimulado pela mudança, assume o outro papel se­xual (sem exceção? se há exceções, ocorrendo em parceiro de kemmer do mesmo sexo, é tão raro que é ignorado).

Nesta segunda fase de kemmer (em karhideano, thorharmen), o processo de definição mútua da sexualidade e po­tência ocorre, aparentemente, dentro do espaço de tempo que vai de duas a vinte e quatro horas. Se um dos parceiros já está em pleno kemmer, a fase para o outro pode ser en­curtada; se os dois estão entrando em kemmer juntos, ela se processa mais lentamente. Indivíduos normais não têm pre­disposição especial para tal tendência sexual — eles sequer sabem se serão machos ou fêmeas e não têm escolha deli­berada quanto a isso. (Otie Nim registrou que na região de Orgoreyn o uso de hormônios para estabelecer uma deter­minada sexualidade é freqüente, mas não pude observar isto nas zonas rurais de Karhide.) Uma vez definido o sexo, ele não pode mudá-lo naquele período de kemmer. A fase culminante (em karhideano, thokemmer) dura de dois a cinco dias, durante os quais a tendência e a capacidade sexuais atingem o apogeu. Ela acaba bastante abruptamente, e se a concepção não se efetua o indivíduo retorna à fase somer em poucas horas (nota: Otie Nim pensa que esta quar­ta fase é o equivalente do ciclo menstrual), e o ciclo reco­meça. Se o indivíduo que desempenha o papel feminino fica grávido, a atividade hormonal, naturalmente, continua e, pelo período de 8,4 meses de gestão e seis a oito meses de lactação, o indivíduo permanece feminino. Os órgãos sexuais masculinos ficam reduzidos (como estão quando em somer), o busto se desenvolve e a circunferência pélvica se alarga. Com o fim do período de lactação, o indivíduo retorna ao somer e torna-se um andrógino perfeito.

Não se estabelecem hábitos fisiológicos e a mãe de vá­rias crianças pode ser o pai de muitas outras.

Observações do ponto de vista social: muito superficiais ainda; tenho me deslocado muito para obter dados coerentes.

O kemmer nem sempre é realizado aos pares, embora este seja o hábito mais comum, porém nas casas de kemmer, nas cidades e metrópoles, grupos podem ser formados e o relacionamento sexual se dar promiscuamente, entre machos e fêmeas do grupo.

O extremo oposto desta prática é o costume de jurar kemmering (em karhideano, oskyommer), que é, na realidade e nos seus propósitos, um casamento monogâmico. Não tem autorização legal, mas é uma antiga e forte instituição aceita social e eticamente. A estrutura básica dos clãs e domínios karhideanos está, sem dúvida, fundada na instituição do casa­mento monogâmico. Não estou seguro das regras do divórcio; aqui em Osnoriner há divórcio, mas não um novo casamento após o divórcio ou morte do companheiro: jurar kemmering, só uma vez na vida.

A descendência, naturalmente, em toda Gethen, é reconhecida pela parte da mãe, "pai de carne" (em karhideano, amha).

O incesto é permitido, mas com muitas restrições, mes­mo de irmãos dos mesmos pais de juramento. Mas irmãos não podem jurar kemmering, nem conservar o kemmering após o nascimento dos seus filhos. Incesto entre gerações diferentes é formalmente proibido, em Karhide-Orgoreyn; mas conta-se que é permitido entre as tribos de Perunter, no Continente Antártico. Pode ser calúnia.

Que mais sei ao certo? Isto parece resumir tudo.

Há um aspecto deste arranjo anômalo que pode ter um valor adaptativo. Desde que a cópula se efetue apenas no período de fertilidade, as possibilidades de conceber filhos são grandes, como em todos os mamíferos que têm um ciclo de fecundidade. Em condições de vida difíceis, onde a mortalidade infantil é alta, o valor da sobrevivência da raça im­porta muito. Atualmente nem a taxa de mortalidade nem a de natalidade são elevadas nas áreas civilizadas de Gethen. Tinibossol estima a população em aproximadamente cem milhões de pessoas, nos três continentes, e acha que tem se mantido estável pelo menos por um milênio. Parece que desempenham um papel considerável nesta estabilidade a abstenção ética e ritualística e o uso de anticoncepcionais.

Há facetas da ambissexualidade que apenas podemos entrever ou imaginar, mas que não chegamos a compreender completamente. Este fenômeno de kemmer fascina a todos os investigadores, naturalmente. Mas, nos gethenianos, ele os domina. A estrutura de sua sociedade, a administração da indústria, agricultura, comércio, o assunto de suas histórias, tudo é organizado para se ajustar a essa oscilação cíclica do somer e do kemmer. Todos têm seu feriado uma vez por mês; ninguém, não importa a posição social, é obrigado ou forçado a trabalhar quando em kemmer. A entrada nas casas de kemmer não é proibida a pessoa alguma, seja pobre ou forasteiro. Tudo recua diante do tormento e alegria dessa paixão, sempre a repetir-se. Isto é fácil de compreender. O que é difícil de aceitar é que durante quatro quintos do tempo essa gente não tem motivação sexual alguma. Há lugar para o sexo, muito mesmo, mas lugar à parte.

A sociedade de Gethen, no seu funcionamento normal e na sua continuidade, é assexuada.

Considerações: (1) Qualquer um pode assumir qualquer gênero. Parece simples, mas os efeitos psicológicos são incalculáveis. O fato de todos, entre dezessete e trinta e cinco anos, estarem sujeitos à gravidez implica que ninguém, psicológica ou fisicamente, é completamente mulher, inteiramente submissa a essa condição, como o é em outros lugares. As tarefas são, bem como os privilégios, partilhadas de maneira igual. Todos correm o mesmo risco ou têm a mesma possi­bilidade de escolher. E, sendo assim, ninguém é tão livre como qualquer macho o é nas outras sociedades. (2) Uma criança não tem relacionamento psicossexual com a mãe ou com o pai. Não há complexo de Édipo no planeta Inverno. (3) Não existe sexo sem consentimento; portanto, não há estupro. Como na maioria dos mamíferos — exceto o homem —, a relação sexual só pode ser efetuada por mútua aceitação e consentimento; de outra forma não é admissível. Há sedução, sim, mas muito bem calculada. (4) Não há divisão da huma­nidade em fortes e fracos, protetores e protegidos, domina­dores e submissos, senhor e escravo, ativo e passivo. Aqui em Gethen a tendência ao dualismo que se infiltra no pen­samento humano é muito mais enfraquecida, ou assume outra forma.

Nas minhas conclusões finais deve ser incluído o se­guinte: quando você encontra um getheniano não pode nem deve fazer o que faz um bissexual, isto é, classificá-lo ou rotulá-lo de homem ou mulher, e adotar uma atitude condi­cionada a isso — uma atuação que resulta do papel que fazemos ao pertencermos ou não ao mesmo sexo. O nosso padrão de interação sócio-sexual aqui é inexistente. Eles não sabem jogar deste modo. Eles não se vêem como homens ou mulheres. Isto é quase impossível de ser aceito por nossa imaginação. Pois qual é a primeira pergunta que fazemos a respeito de um recém-nascido?

Por outro lado, não podemos pensar neles como pessoas neutras. Não o são. Eles são, em potencial, masculinos e femininos, ou seja, seres integrais, com o duplo aspecto. Na falta de uma nomenclatura humana para designá-los, quando em somer procuro usar o pronome ele, da mesma forma que é usado para designar Deus. É menos definido, menos espe­cífico que o neutro ou feminino. Mas o uso do pronome me conduz, continuamente, a esquecer que o karhideano que está ao meu lado não é um homem e sim homem-mulher.

O primeiro móbile que aqui chegar deve ser prevenido de que, a não ser que seja muito autoconfiante ou senil, seu orgulho será afetado. O homem gosta de ver sua virilidade admirada, como a mulher gosta de ser apreciada por sua feminilidade, não importa quão indiretas e sutis sejam as indicações de atenção e apreciação. Em Inverno isso não existe. A pessoa é respeitada e julgada tão-somente como um ser humano neutro. É uma experiência espantosa.

Voltando à minha teoria: observando os motivos de tal experiência, se é que houve alguma, e tentando, talvez, des­culpar nossos ancestrais hainianos da culpa de barbarismo por tratar vidas humanas como objetos, fiz algumas suposi­ções referentes ao que eles estavam tentando obter.

O ciclo de somer-kemmer parece-nos degradante, uma volta ao ciclo dos mamíferos inferiores em cio, uma sujeição de seres humanos a um imperativo mecânico do sexo. É pos­sível que os experimentadores desejassem ver se seres huma­nos, sem uma potência sexual contínua, conservar-se-iam inteligentes e capazes de cultura.

Por outro lado, a limitação do impulso sexual a uma fração de tempo descontínua e a sua equalização em androginia podem ser uma tentativa de evitar, em grande escala, tanto a exploração como a frustração do impulso. Deve haver frustração sexual — embora a sociedade se previna como pode contra isto; desde que a sociedade seja bastante nume­rosa para que haja sempre pessoas em kemmer, a realização sexual completa é sempre certa —, mas pelo menos ela não cresce: acaba quando o kemmer também termina. Bem, então eles são poupados de muita loucura e esbanjamento. Mas o que resta? O que existe para sublimar? O que realizaria uma sociedade de eunucos? Mas, naturalmente, não são eunu­cos; no somer são comparáveis a pré-adolescentes; não cas­trados, mas latentes.

Outra suposição quanto ao objetivo desse hipotético experimento: a eliminação da guerra. Os antigos hainianos pos­tulavam que a capacidade sexual contínua e a agressão social organizada são atributos de apenas um mamífero, o homem. Serão causa e efeito?

Ou, como Tumass Song Angot, consideravam ser a guer­ra uma atividade puramente masculina, um estupro coletivo, e assim, nesta experiência, eliminariam a masculinidade que violenta e a feminilidade que é violentada? Só Deus sabe.

A verdade é que os gethenianos, altamente competitivos (como provam os canais existentes para a competição e o prestígio social, etc.), parecem não ser muito agressivos; pelo menos, talvez aparentemente, nunca tiveram o que se chamaria guerra. Eles se matam facilmente uns aos outros, ou aos pares, raramente em grupos de dez ou vinte, jamais às centenas ou aos milhares. Por quê?

Pode ser que isso nada tenha a ver com sua psicologia de andróginos. E tem-se que considerar, também, o clima. O tempo em Inverno é tão impiedoso, tão próximo ao li­mite da tolerância, mesmo para eles, com toda a sua adapta­ção ao frio, que talvez desgastem o espírito combativo lutan­do contra as intempéries. Os povos marginais, as raças que conseguem sobreviver, raramente são as dos guerreiros. E, afinal, o fator dominante na vida getheniana não é sexo, nem outra coisa humana é seu ambiente, seu mundo gelado. Aqui o homem tem um inimigo mais cruel que ele próprio.

Eu sou uma mulher do pacífico Chiffewar e não uma técnica na natureza da guerra ou nas violências. Alguém terá que pensar melhor sobre isto. Mas realmente não vejo de que alguém possa se vangloriar após ter passado uma estação gelada no planeta Inverno e ter visto a face do gelo.

 

 

                     O espectro de Estraven

Passei o verão mais como um investigador que como móbile, percorrendo as terras de Karhide, de cidade em cida­de, de domínio em domínio, observando e escutando — coisas que um móbile não pode fazer logo de início, enquanto ele ainda é uma maravilha e uma monstruosidade, tendo de estar sempre em exibição e pronto para representar. Eu con­fessava aos meus hospedeiros, nessas zonas rurais e nos vila­rejos, quem eu era; a maioria já tinha ouvido falar a meu respeito pelo rádio e tinha uma vaga idéia do que eu era. Alguns eram mais curiosos que outros. Às vezes assustavam-se com a minha presença ou mostravam uma repulsão xenofóbica. Um inimigo, em Karhide, não é o estrangeiro,"'o forasteiro. O estrangeiro que chega, desconhecido, é um hós­pede. O inimigo é o vizinho.

No mês de Kus eu vivi na costa oriental, num clã-lar chamado Gorinhering — uma casa, fortaleza ou fazenda, construída na colina que domina os nevoeiros eternos do oceano Hodomin. Cerca de quinhentas pessoas vivem aí. Há quatro mil anos eu encontraria seus ancestrais morando no mesmo lugar e no mesmo tipo de casa. Nesses quatro milênios, aperfeiçoaram a máquina elétrica, o rádio, os veí­culos a energia, as fábricas de tecidos e de instrumentos agrícolas e tudo o mais começou a ser usado. Uma Idade da Máquina começou a surgir, gradualmente, sem nenhuma re­volução industrial, ou qualquer outra revolução.

O planeta Inverno não realizou em trinta séculos o que a Terra fez em trinta décadas; mas também nunca pagou o preço que a Terra pagara por isto.

O planeta Inverno é um mundo hostil pela sua natu­reza; a punição pelo erro é rápida e fatal: morte por frio ou por fome. Sem escapatória, sem adiamento de execução. Um homem pode confiar na sua sorte, mas uma sociedade não pode, e a mudança cultural, como um processo de mutação, não é feita de forma casual.

Assim, tudo foi sendo feito muito vagarosamente. Um observador diria, a certa altura de sua história, que toda a expansão e todo o progresso tecnológicos como que pararam. No entanto isso nunca aconteceu. Compare a corrida de uma torrente com a inércia de uma geleira glacial. Ambas chegam onde querem chegar; a diferença está no tempo, na velocida­de do processo.

Conversei muito com as pessoas idosas de Gorinhering e também procurei ouvir as crianças. Era a minha primeira oportunidade de ver de perto as crianças de Gethen, pois em Erhenrang elas estão todas nas escolas, nos lares públicos ou particulares. Cerca de um quarto a um terço da população urbana adulta consagra seu tempo de trabalho integral aos cuidados e à educação das crianças. Aqui é o clã que cuida dos seus. Todos são responsáveis por eles. É um grupo bem selvagem, correndo em perseguição pelas colinas e praias nevoentas. Quando eu conseguia reter uma criança algum tempo para conversar, descobria-a tímida, orgulhosa e ingenuamente confiante.

O instinto de maternidade/paternidade varia imensa­mente lá. Como, aliás, em qualquer parte. Não se pode gene­ralizar. Nunca vi um karhideano bater numa criança. Só vi, uma vez, falarem asperamente com uma delas. Chamou-me a atenção sua ternura para com elas: profunda, efetiva e quase destituída de possessividade. Nisto, neste detalhe, é que ela talvez difira do que chamamos "instinto maternal". Suspeito que a distinção entre instinto paternal e maternal, aqui, é pouco digna de nota, pois o desejo de proteger, de favorecer, não é uma característica inerente ao gênero. Cedo, nos pri­meiros dias do mês de Hakanna, ouvimos, em Gorinhering, no boletim do palácio, que o Rei Argaven anunciara suas esperanças de vir a ter um herdeiro. Não um outro filho de um kemmering; destes, ele já tinha sete, mas um herdeiro do seu próprio corpo, um filho-rei. O rei estava grávido. Achei isso tremendamente cômico, o mesmo acontecendo com os homens de Gorinhering, mas por razões diferentes. Diziam que ele já estava velho para conceber um filho e referiram-se ao assunto com malícia obscena. Os velhos, então, ficaram dias cacarejando sobre o assunto. Riam-se do rei, mas não estavam muito interessados nele. "Os domínios são o próprio Karhide", dissera Estraven. À proporção que os conhecia melhor, muito do que Estraven me dissera volta­va à minha mente. Aquela nação, aparentemente unificada no correr dos séculos, era uma colcha de retalhos de princi­pados descoordenados, cidades, vilas, unidades pseudofeudais ou tribais, um esparramado, um derramamento de individualidades vigorosas e aguerridas; e, sobre elas, uma es­pécie de rede de autoridades, agindo de modo ainda bastante fraco e inseguro. Nada poderia jamais unir Karhide e transformá-la numa nação. Até mesmo o uso dos instrumentos de comunicação, que muito concorre para criar nacionalismos, havia falhado aqui.

O Conselho Ecumênico não poderia tentar atrair esse povo como uma unidade social, uma entidade mobilizável. Eles teriam que apelar para sua potencialidade humana, seu forte, mas ainda inexplorado senso de humanidade. Fiquei bastante agitado pensando nisto. Eu estava errado, natural­mente, mas já tinha aprendido alguma coisa dos gethenianos, algo que, com o correr do tempo, provou ser de valor prático.

Deveria retornar para o lado ocidental antes do fecha­mento do passo de Kargav, a não ser que eu pretendesse passar o ano todo no velho Karhide. Mesmo aqui, no litoral, já tinha havido duas nevadas no último mês do verão. Com relutância, resolvi voltar para o ocidente e cheguei a Erhenrang no começo de Gor, o primeiro mês de outono.

Argaven havia se recolhido, em reclusão, no palácio de verão de Warrever, e nomeara Tibe regente, durante sua au­sência. Tibe estava, realmente, exercendo ao máximo seu poder.

Logo após a minha chegada, comecei a perceber as falhas da minha análise: já estava ultrapassada. Comecei então a me sentir desconfortável, até mesmo inseguro na­quela capital.

Argaven estava enfermo; a incoerência sinistra de sua mente obscurecia o ambiente da capital e ela se nutria do medo. Tudo de bom que fora executado no seu reinado tinha sido iniciativa dos ministros e do conselho. Sua luta com os pesadelos não chegou a danificar o reino. Com seu primo Tibe, entretanto, a situação era outra: sua loucura tinha lógica. Tibe sabia quando e como agir. O pior é que ele não sabia quando deveria parar. Falava muito pelo rádio. Estraven, quando no poder, jamais o fizera. Isto não era do gosto deste povo; seu governo deveria ser não uma exibição pública, mas velado e indireto. Tibe, entretanto, gostava de discursar. Ao ouvir sua voz nas emissoras revi mentalmente seu sorriso cheio de dentes afiados e o rosto fino e profusa- mente cheio de rugas. Seus discursos eram longos e vigoro­sos: elogios a Karhide, depreciação de Orgoreyn, aviltamento das "facções desleais", discussões sobre a "integridade das fronteiras do reino", conferências sobre história, ética, eco­nomia, tudo isto numa tonalidade de arenga emocional hi­pócrita, que se tornava estridente quando vituperava ou adulava. Falava em demasia sobre o amor à pátria, o orgulho da terra natal, mas pouco sobre orgulho pessoal ou prestígio.

Teria Karhide perdido tanto prestígio assim, no caso do vale do Sino th, para que ele não pudesse ser evocado? Não; ele até falava freqüentemente sobre o caso. Concluí que esta­va evitando, deliberadamente, falar de prestígio porque de­sejava despertar outra espécie de emoção, de natureza mais elementar e incontrolável. Tentava sacudir, despertar algo mais primário, para o qual prestígio era apenas a sua sublimação, seu refinamento. Ele queria que seus ouvintes fossem tomados de susto e ira. Os assuntos não eram inspirados em orgulho cívico, nem em amor embora estivesse sempre usando esta palavra —, mas da maneira como as expressava significavam auto-elogio e ódio. Falava um bocado sobre verdade, também. Dizia que estava "atacando o mal pela raiz", isto é, o mal que existia debaixo da camada de verniz da civilização é uma metáfora ubíqua e ilusória que encobre uma realidade mais importante. Pode ocultar uma quantidade de coisas de uma só vez. Uma delas, a mais perigosa, é a impli­cação de que civilização, por ser artificial, é antinatural, o oposto do primitivo... Naturalmente não deve haver verniz e sim um processo natural de crescimento; e primitivismo e civilização são os graus extremos de uma mesma coisa. Se existe um oposto à civilização, seria a guerra. Das duas uma: guerra ou civilização. Não as duas.

Parecia-me, ao ouvir suas arengas cansativas, que pro­curava, por meio do medo e da persuasão, forçar seu povo a mudar a escolha que ele já havia feito há muito, uma escolha entre estes dois pólos extremos.

A ocasião tinha amadurecido, talvez. Embora seu avan­ço material e tecnológico tivesse sido vagaroso, por pouco que dessem valor ao "progresso" por si mesmo, eles tinham conseguido chegar, nestes quinze séculos, um pouco adiante da natureza.

Não estavam mais à mercê de sua impiedosa tempera­tura, de modo algum; uma colheita má não dizimava de fome uma província inteira, nem um inverno pesado isolava mais as cidades. Nesta base de estabilidade material, Orgoreyn criara um Estado centralizado, unificado e altamente compe­tente. Agora Karhide estava reunindo suas forças e fazendo o mesmo, e a maneira de consegui-lo não era pela exaltação do orgulho cívico, nem pela melhoria do comércio, nem mesmo melhoria das estradas, fazendas, colégios, etc. Não, nada disso. Tibe considerava tudo isto civilização, verniz, e os repudiava com desprezo. Estava procurando algo mais seguro e o mais rápido e eficiente meio de transformar povos em nações: a guerra. Suas idéias sobre o assunto poderiam não ser bem definidas, mas eram bastante firmes.

O outro processo rápido e total de se mobilizar povos é através de uma nova religião. Nenhuma estava, entretanto, à sua disposição. Ele, então, usaria a guerra.

Enviei a Tibe uma nota na qual citava a pergunta que fizera aos áugures de Otherhord e a resposta que eles me haviam dado. Tibe não respondeu. Fui então à embaixada de Orgoreyn e requeri permissão para minha entrada no país.

Havia menos pessoas nos escritórios dos estábiles ecúmenos em Hain do que nas embaixadas dos pequenos países, e todos eles armados com milhares de fitas virgens e grava­das. Eles eram vagarosos, meticulosos; não havia aquela desleixada arrogância e tortuosidade inesperada que caracte­rizavam os membros do governo de Karhide. Enquanto eles preenchiam os formulários, eu aguardava.

A espera foi demorada e desconfortável. O número de guardas do palácio e da polícia nas ruas de Erhenrang pare­cia se multiplicar dia a dia; estavam armados e já usavam uma espécie de uniforme. O ambiente da cidade era desolado, embora os negócios fossem bons, a prosperidade, geral e o tempo, belo. Ninguém queria nada comigo. Meu senhorio já não exibia mais meu quarto, mas queixava-se de ser mo­lestado pelo "pessoal do palácio", e me tratava não mais como uma pessoa de categoria invejável, mas como um sus­peito político.

Tibe fez um discurso sobre uma incursão armada no vale do Sinoth: "Esses fazendeiros valentes de Karhide, ver­dadeiros patriotas"... que haviam atravessado a fronteira ao sul de Sassinoth, atacado e incendiado uma aldeia orgota, matando camponeses, e depois arrastado os cadáveres e jo­gado no rio Ey. "Tal túmulo", continuou o regente, "é que todos os inimigos da nação vão encontrar!" Ouvi esta ameaça na sala de almoço de minha ilha.

Muitas pessoas pareciam carrancudas, outras desinteres­sadas, algumas satisfeitas, mas nesta variedade de expressões havia um elemento comum, um pequeno tique, uma contra­ção facial que até então não percebera neles: a presença da ansiedade.

Naquela noitinha, um homem veio ao meu quarto. Meu primeiro visitante desde que eu voltara. Era esbelto, pele suave e modos tímidos; usava o colar dourado dos áugures ou dos celibatários.

Eu sou um amigo daquele que o protegeu... — ele se apresentou, com a brusquidão peculiar dos tímidos. Vim lhe pedir um favor, em benefício dele.

Quer dizer Faxe?

Não. Estraven.

Minha expressão solícita deve ter mudado. Houve uma pausa silenciosa após a qual ele falou:

Estraven, o traidor. Você se lembra dele?

A raiva tinha substituído a timidez e ele ia usar do seu prestígio comigo. Se quisesse me divertir dir-lhe-ia algo assim: "Não estou bem certo, fale-me dele". Mas eu não queria brincar; estava bastante acostumado ao temperamento vulcânico dos karhideanos. Retruquei-lhe então:

Certamente que me lembro!

Mas... não com amizade... — Seu olhar era di­reto e penetrante.

Bem respondi —, com muita gratidão e desapontamento também. Ele pediu-lhe que me procurasse?

Não.

Nova pausa, e esperei uma explicação.

— Desculpe-me; eu me enganei. Creio que um julga­mento errôneo me tenha trazido aqui.

Tentou encaminhar-se para a saída, mas barrei-lhe os passos.

Por favor, espere. Não sei quem é você nem o que quer de mim. Deve-me permitir o direito de uma cautela razoável; afinal, Estraven foi exilado por apoiar a minha mis­são aqui.

Você se considera em dívida com ele por este fato?

Bem, de certa maneira, sim. Entretanto, a missão de que estou incumbido sobrepuja qualquer dívida ou leal­dade pessoais.

Sendo assim disse o estranho com um certeza impetuosa —, é uma missão imoral.

Esta observação me deteve. Ele parecia um advogado do Conselho Ecumênico, e nada me ocorreu para dizer-lhe.

Não creio que seja — retruquei-lhe finalmente; e continuei: — O defeito não está na missão ou mensagem, como querem alguns; mas no mensageiro. Mas, por favor, diga-me em que posso servi-lo.

Tenho em meu poder uma certa quantia em dinheiro que pude reunir do naufrágio da fortuna do meu amigo. Sa­bendo que está se dirigindo para Orgoreyn, pensei que talvez pudesse levar e entregar-lhe o dinheiro; claro, se você o encontrar. Como não desconhece, está sujeito a punição se for apanhado. Não sei mesmo se vale a pena... Ele pode estar em Mishnory ou numa de suas malditas fazendas, ou, quem sabe, até mesmo morto. Não tenho meios para desco­brir; mas tenho amigos lá, e aqui nem ouso perguntar. Pensei em você por estar acima da politicagem, livre para ir e vir para onde lhe aprouver. Bem, não parei para pensar que tem, também, sua política pessoal. Peço-lhe desculpas por minha imbecilidade.

Bem, levarei o dinheiro para ele. Se estiver morto ou não puder encontrá-lo, a quem devo devolvê-lo?

Ele me encarou. Suas feições se transformaram e co­meçou a chorar, pois os karhideanos choram facilmente, não tendo vergonha das lágrimas, bem como do riso.

Obrigado. Meu nome é Foreth. Sou residente do Mosteiro Orgny.

Você é do clã de Estraven?

Não. Fui seu kemmering; meu nome é Foreth rem ir Osboth.

Estraven não tinha kemmering quando eu o conheci, mas este jovem que estava à minha frente não me inspirava nenhuma suspeita. Ele poderia estar a serviço de alguém, mas era autêntico. E acabara de me dar uma lição: que prestígio também pode ser jogado em nível de ética e que o mais hábil pode ganhar. Havia me tocado em dois pontos.

Entregou-me uma valiosa quantia em notas de crédito dos Mercadores Reais de Karhide, nada que me incriminasse e também nada que pudesse me impedir de gastá-la, se quisesse.

Se você o encontrar... — parou no meio da frase.

Uma mensagem?

Não; mas se eu fosse informada...

Se eu o encontrar, procurarei enviar notícias dele para você.

Obrigado — disse e estendeu as mãos para mim, o que é um gesto de grande amizade por parte de quem o faz. Os karhideanos não o fazem facilmente.

Desejo-lhe sucesso na sua missão, Sr. Ai. Ele sabia que o senhor veio aqui para o bem, eu sei. Estraven acredita­va firmemente nisto. — Não havia nada no mundo para este homem afora Estraven. Ele era um daqueles que estão condenados a amar uma só vez na vida. Disse-lhe novamente:

Nenhuma palavra sua que eu possa levar a ele?

Diga-lhe que as crianças estão bem... — Então hesitou e sussurrou: — Nusuth, não importa — e me deixou.

Dois dias depois tomei a estrada, abandonando Erhenrang; desta vez a estrada noroeste, e a pé.

Minha permissão de entrada em Orgoreyn tinha vindo muito antes do esperado, pelos funcionários da embaixada; quando fui buscá-la, me trataram com uma espécie de res­peito envenenado, sentindo que os protocolos e regulamentos tinham sido postos de lado por alguém de prestígio para me facilitar a entrada.

Como em Karhide, não havia nenhum regulamento quanto a deixar o país; assim, tratei de partir logo.

No verão, eu aprendera como Karhide podia ser uma terra agradável para se passear. Estradas e hospedarias eram construídas para as longas caminhadas a pé, bem como para veículos movidos a energia; onde faltasse hospedaria podia-se contar, infalivelmente, com o código de hospitalidade, como se já estivessem esperando nossa chegada.

Eu perambulava pelas terras prodigiosas, situadas entre o Sess e o Ey, sem pressa, ganhando meu sustento nos cam­pos dos grandes domínios, onde faziam a colheita, todas as mãos, ferramentas e máquinas a trabalharem a todo o vapor para que os campos dourados estivessem ceifados antes que o tempo mudasse. Estava tudo dourado, ameno, naquela sema­na de andanças. À noite, antes de adormecer, eu saía das fazendas escuras ou lares com suas lareiras acesas, onde me alojava, e ia andar pelo campo, a olhar as estrelas cintilando como cidades remotas, naquele escuro e ventoso céu outonal.

Eu me sentia realmente relutante em deixar esta terra que havia achado tão indiferente ao Enviado, mas tão gentil ao estrangeiro. Temia começar tudo de novo, repetir minhas notícias em nova língua para novos ouvidos, e talvez falhar outra vez. Caminhava mais para o norte que para oeste, justificando minha curiosidade em conhecer o vale do Sinoth, o foco da rivalidade entre Karhide e Orgoreyn. Apesar de o tempo se manter constante e limpo, começava a ficar frio. Finalmente, dirigi-me para oeste, antes de alcançar Sassinoth, lembrando-me que havia uma cerca nesta parte da fronteira e eu talvez não pudesse sair tão facilmente de Karhide por este local. Aqui a fronteira passava pelo rio Ey, estreito, mas caudaloso, nutrido pelas geleiras, como todos os rios do grande continente. Caminhei para o sul umas tantas milhas para achar uma ponte e cheguei a uma, ligando dois vilarejos: Passerer, no lado de Karhide, e Siuwensin, em Orgoreyn. As localidades se contemplavam sonolentas, de cada lado do barulhento Ey.

O guarda da ponte perguntou-me apenas se pretendia voltar naquela noite e acenou-me adeus quando parti. No lado de Orgoreyn, no lado orgota, um inspetor foi chamado para conferir meus papéis e levou nisso mais de uma hora. Re­teve meu passaporte dizendo para ir buscá-lo na manhã se­guinte. Deu-me, no seu lugar, um vale para refeições e alo­jamento na Casa dos Forasteiros, do comensal de Siuwensin.

Demorei-me mais outra hora no escritório do superintendente da Casa dos Forasteiros enquanto este lia meus documentos e conferia a autenticidade do visto, telefonando para o inspetor da estação da fronteira, justamente por onde eu acabara de passar.

Não posso definir bem a palavra orgota aqui traduzida por "comensal" e "comensalidade". Na sua raiz está uma palavra que significa "comer junto", Seu uso inclui todas as instituições nacionais e governamentais de Orgoreyn, desde o Estado como um todo, através dos seus trinta e três sub-estados confederados ou distritos, até as províncias, cidades, fazendas comunais, minas, fábricas, etc. Como um adjetivo, se aplica a tudo isto. Quanto à forma "os comensais", ela geralmente serve para designar os trinta e três membros de cada distrito que formam o corpo governante executivo e legislativo da grande comensalidade de Orgoreyn; mas também pode significar os cidadãos, o povo propriamente dito. Nesta curiosa falta de distinção entre o geral e o específico, na acepção da palavra e no seu uso, tanto para o todo como para as partes específicas, o Estado e o indivíduo, nesta im­precisão e generalização, é que reside sua exata significação.

Meus papéis e minha pessoa foram, afinal, liberados e na 4.a hora tomei minha primeira refeição, desde o desjejum- almoço, muito cedo: uma ceia de mingau de kadik e fatias finas de pão de maçã.

A cidade era muito pequena para aquela multidão de funcionários. A Casa Comensal era menor que seu nome. A sala de jantar tinha uma mesa, cinco cadeiras e nenhuma lareira. O alimento vinha da pensão do vilarejo. A outra sala era o dormitório: seis camas, um bocado de poeira, um pouco de mofo. Eu estava só. Como todos pareciam ter ido para a cama logo após a ceia, fiz o mesmo. Adormeci naquele silêncio profundo do campo em que se ouvia o próprio zunido dos ouvidos. Dormi uma hora e acordei de repente, nas garras de um pesadelo de explosões, morte e conflagração. Era um sonho mau, daquela espécie em que você desce correndo uma rua estranha, no escuro, com um bando de desconhe­cidos, enquanto casas se incendeiam atrás e as crianças cho­ram e gritam. Levantei-me correndo e acabei dando por mim no campo aberto, num terreno já devastado, ao lado de uma sebe escura. A meia-lua vermelho-escura e algumas estrelas apareciam entre as nuvens. O vento estava pene­trantemente frio. Perto de mim, um grande estábulo ou celeiro se avolumava no escuro e a distância pude ver bolas de fogo e fagulhas subindo, levadas pelo vento. Estava des­calço e de pernas nuas, só com camisa, sem calções nem casaco ou manto. Mas meu embrulho estava comigo; conti­nha uma muda de roupa e o audisível, pois eu os usava como travesseiro quando viajava. Evidentemente eu me agarrava às minhas posses, mesmo dormindo. Peguei os sapatos, os calções e o manto de inverno forrado de pele e vesti-me, ali na escuridão e no frio do campo silencioso, enquanto Siuwensin se consumia no fogo, meia milha atrás. Procurei, depois, achar uma estrada e breve a encontrei, cheia de pessoas refugiadas como eu, mas que sabiam para onde se dirigir. Eu os segui, sem saber que caminho tomar. Sabia que devia me afastar de Siuwensin e na caminhada consegui informar-me de que os habitantes do lado de Passerer haviam efetuado um reide de pilhagem. Invadiram, puseram fogo em tudo e recuaram; não tinha havido luta. De repente, perto de nós, luzes cintilaram na escuridão e vimos uma fila de uns vinte veículos se dirigir para Siuwen­sin em alta velocidade, passando por nós com um relâmpago de luz e um chiar de rodas. Depois o silêncio e a escuridão de novo.

Acabamos chegando a uma fazenda comunal, onde fo­mos detidos e interrogados. Procurei ligar-me ao grupo com quem tinha vindo pela estrada; mas foi uma tentativa infeliz, pois eles também não haviam levado consigo seus papéis de identificação... Como estranhos sem passaportes, fomos separados do resto do rebanho e recebemos alojamento separa­do, onde teríamos que passar a noite: um celeiro, uma vasta adega de pedra sem janelas, onde fomos trancados por fora.

De vez em quando a porta era desaferrolhada e um novo refugiado era atirado lá dentro por um policial-fazendeiro, armado com a pistola sônica.

De portas fechadas, a escuridão era absoluta. Alguns olhos, cansados do negrume da cela, emitiam cintilações e faíscas rodopiantes no escuro. Fazia frio e o ar estava satu­rado de poeira e cheiro de cereal. Ninguém possuía uma lanterna de mão, pois aquela gente, como eu, fora arrancada de seus leitos. Um par estava praticamente nu e alguém lhes forneceu cobertores para se cobrirem. Nada possuíam; se tivessem podido levar alguma coisa, teriam levado seus pa­péis. Melhor estar nu do que sem documentos em Orgoreyn.

Ficaram todos sentados de maneira dispersa na escuri­dão. Alguns conversavam um pouco em voz baixa. Ninguém demonstrava qualquer sentimento de companheirismo em relação aos outros. Não havia queixas, propriamente. Ouvi um murmúrio ao meu lado:

— Eu vi aquele, do lado de fora de minha porta. Sua cabeça estava estourada.

Eles usam aquelas espingardas que explodem peda­ços de metal. Espingardas de caça.

Tiena disse que eles não eram de Passerer, mas de Ovord; vieram de caminhão.

Mas não há disputa entre Ovord e Siuwensin...

Eles não compreendiam, mas não se queixavam, não

protestavam por estarem encarcerados num buraco pelos próprios concidadãos, após terem sido caçados e seus lares queimados. Não procuravam encontrar razões para o que lhes sucedia. Os sussurros no escuro, naquele dialeto orgota, sinuoso, suave, que fazia as sílabas karhideanas parecerem foguetes estourando numa lata, foram, pouco a pouco, cessando. Dormiam. Uma criancinha choramingava de vez em quando, chorando ao eco de seu próprio choro.

Quando a porta se abriu, guinchando, já era dia alto. A luz do sol penetrou ofuscante e perfurante como uma faca nos olhos. Eu seguia atrás dos outros mecanicamente, tro­peçando por vezes, quando ouvi chamarem meu nome. Não cheguei a reconhecê-lo de imediato, pois pela primeira vez meu nome era pronunciado com o "1", corretamente. Al­guém o estava repetindo a intervalos, desde que a porta se abrira.

Por favor, Sr. Ai, por aqui — disse-me alguém apressadamente. Eu não era mais um refugiado. Fui posto em separado daqueles anônimos com quem partilhara a noite e a falta de identidade. Eu tinha nome conhecido e reconhe­cido; eu existia. Era um alívio, realmente. Segui meu guia alegremente.

O escritório da fazenda comunal local era confuso e desarrumado, mas arranjaram tempo para cuidar de mim, desculpando-se dos desconfortos da noite anterior.

— Não deveria ter escolhido Siuwensin para entrar na comensalidade! — lamentava um inspetor gordo. — Deveria ter usado as estradas de mais fácil acesso!

Eles não sabiam quem eu era ou por que eu deveria receber um tratamento melhor; sua ignorância era evidente, mas isto não fazia diferença. Genly Ai, o Enviado, tinha que ser tratado como uma pessoa que merecia deferências. E assim o foi. Pelo meio da tarde estava a caminho de Mishnory, num carro colocado à minha disposição pelo 8.° Distrito de Homsvashom Oriental. Tinha um passaporte novo, um passe livre para todas as casas de hospedagem no meu ca­minho e um convite telegrafado para a residência, em Mishnory, do Sr. Uth Shusgis, primeiro-comissário de estradas e portos do 1.° Distrito Comensal.

O rádio do pequeno carro funcionava enquanto rodava; assim, atravessei durante toda a tarde as grandes plantações de cereais das terras do leste, sem cercas (pois não há gado) e cheias de riachos, e, ao mesmo tempo, ia prestando atenção ao rádio. Os assuntos transmitidos eram: colheitas, tempo, condições das estradas, avisos para dirigir com cuidado, notícias dos trinta e três diferentes distritos, a produção de várias fábricas, dados sobre fretes marítimos, fluviais e dos portos. De vez em quando se ouvia a transmissão de certos cantos típicos do yomesh e depois, novamente, voltavam a falar do tempo. Era tudo muito ameno, depois das arengas de Erhenrang. Não houve nenhuma menção da invasão de Siuwensin; o governo orgota, evidentemente, procurava abafar o caso, e não exaltar os ânimos. O breve boletim oficial, repetido a intervalos, dizia simplesmente que a ordem estava sendo mantida ao longo da fronteira.

Eu gostava disto; era uma medida tranqüilizadora. Ade­mais, tinha a firmeza calma que eu sempre admirara nos gethenianos. A ordem seria mantida. Sentia-me satisfeito por estar fora de Karhide, uma terra incoerente, empurrada para a violência por um rei paranóico, grávido, e por seu regente, um egomaníaco.

Estava contente por estar dirigindo a vinte e cinco mi­lhas por hora, através dos vastos campos de cereais, sob um céu cinzento, uniforme, em direção à capital cujo governo acreditava em ordem.

A estrada era freqüentemente sinalizada (diferente das estradas de Karhide, nas quais tinha-se que perguntar ou adivinhar o caminho) com setas indicando paradas em tais ou quais estações de inspeção, nas regiões comensais. Nestas espécies de alfândegas a identificação era examinada e qualquer presença registrada. Meus documentos eram válidos para todas as investigações. Após uma demora mínima, era des­pachado, polidamente, e prevenido da distância da próxima casa de hospedagem, caso desejasse comer ou dormir.

A vinte e cinco milhas por hora a distância da vertente norte até Mishnory é considerável e gastei duas noites no percurso. A comida, nestas hospedarias do governo, era in­sossa, mas farta; o alojamento decente, faltando, porém, iso­lamento. Mas, de certo modo, este era dado pelo tom reti­cente dos companheiros de hospedagem. Não travei nenhum conhecimento ou tive uma verdadeira conversa em nenhuma destas paradas, apesar de fazer várias tentativas.

Os orgotas não eram inamistosos, mas faltava-lhes curiosidade; eram incolores, secos, moderados. Eu gostava deles. Tivera dois anos de colorido, paixão e cólera em Karhide. Aquela mudança era bem recebida. Seguindo a margem orien­tal do grande rio Kunderer, cheguei, na minha terceira ma­nhã, a Mishnory, a maior cidade deste país. Sob a luz solar que brilhava tênue entre as pancadas de chuva, era uma cida­de de aparência esquisita: paredes de pedra lisa, com algumas janelas estreitas, bem altas; ruas amplas onde a multidão se fazia minúscula; postes de iluminação altíssimos, tetos pontiagudos como mãos em oração; telhados como os usa­dos em galpões, sobressaindo das casas, dezoito pés acima do solo, como se fossem prateleiras — uma cidade mal propor­cionada, grotesca, à luz do sol. Não fora construída para o sol, mas sim para o inverno. No inverno, com as ruas reco­bertas de neve em camadas grossas, os tetos em aclive com gelo pendente em goteiras caprichosas, os trenós estacionados sob os tetos dos galpões, as estreitas janelas brilhando amarelas através da chuva já carregada de gelo, se evidenciava a beleza daquela cidade, sua adequação, sua economia. Mishno­ry era mais limpa, larga e clara que Erhenrang, mais aberta e mais imponente. Grandes edifícios de pedra branco-amarelada dominavam o ambiente; simples blocos maciços dentro de uma arquitetura uniforme alojavam as repartições e serviços do governo comensal e também os templos mais importantes do culto yomesh, oficializado pelo Estado.

Tudo era simples, grandiosamente concebido e ordena­do. Não havia confusão nem sinuosidades, ao contrário de Erhenrang, que dava a impressão de estar sempre à sombra de algo esmagador e penumbroso. Eu me sentia como se tivesse emergido de uma Idade das Trevas e lastimei ter passado dois anos em Karhide. Este país, sim, parecia pron­to para entrar na era ecumênica. Dirigi-me para o interior da cidade, caminhando um pouco ao acaso, voltei então para o Escritório Regional e fui a pé até a residência do comissá­rio do 1.° Distrito Comensal de Estradas e Portos. Não es­tava bem certo se o convite era uma solicitação ou uma ordem polida. Nusuth. Eu estava em Orgoreyn para falar pelos ecúmenos, e poderia tanto começar por aqui como por qualquer outra parte.

Minhas noções sobre a calma e o controle dos orgotas foram derrubadas pelo Comissário Shusgis, que avançou em minha direção, sorrindo e empolgado. Segurou minhas mãos, num gesto que os karhideanos reservam só para os momen­tos da mais intensa emoção pessoal, sacudiu meus braços para cima e para baixo, como tentando fazer saltar algumas fagulhas do meu motor, e emitiu um cumprimento ao embai­xador do Conselho Ecumênico dos Mundos Conhecidos em Gethen.

Isto foi uma surpresa para mim, pois nenhum dos cator­ze inspetores que haviam revistado meus documentos mostra­ra qualquer sinal de reconhecer meu nome ou os termos "Enviado" ou "Conselho Ecumênico" que, afinal, em Karhi­de, eram vagamente familiares a todos os que eu encontrava. Concluí que Karhide nunca emitira nenhuma comunicação pelo rádio referente à minha pessoa que tivesse alcance para ser captada pelas estações de Orgoreyn. Ao contrário, procuraram conservar-me como um segredo nacional.

Não sou embaixador, Sr. Shusgis, apenas um enviado.

Futuro embaixador, então! Claro! Por Meshe!

Shusgis era um homem sólido e risonho; olhou-me de alto a baixo e riu de novo.

O senhor não tem a aparência que eu esperava! De modo algum. Diziam que era tão alto como um poste de rua, magro como um guia de trenó, negro como fuligem e de olhos oblíquos! Eu esperava um monstro! Nada disso. Apenas um pouco mais escuro que nós.

Cor de terra — retruquei-lhe.

Você estava em Siuwensin na noite do reide? Por Meshe! Em que mundo vivemos! Poderia ter sido morto na travessia da ponte do Ey, após ter cruzado os espaços para chegar aqui! Bem, bem... afinal o temos. Um bocado de gente quer vê-lo, ouvi-lo e recepcioná-lo em Orgoreyn.

Instalou-me, imediatamente, sem discussões, num apartamento de sua residência. Membro importante do governo, homem rico, vivia num estilo de vida que não tinha equiva­lente em Karhide, mesmo entre os senhores dos grandes do­mínios. Sua casa era do tamanho de uma ilha, abrigando cerca de cem empregados, entre serviçais domésticos, funcio­nários, conselheiros, técnicos, etc.; mas não tinha lá parentes nem pessoas ligadas por laços consangüíneos. O sistema de clãs familiares, de lares e domínios, ainda que um tanto ou quanto discernível na estrutura da comensalidade, já tinha si­do "nacionalizado" há várias centenas de anos em Orgoreyn.

Nenhuma criança de mais de um ano de idade vive com seus pais; todos são criados por lares comensais. Não há clas­ses sociais nem títulos transmissíveis à descendência; e heran­ças particulares não são legais. Um homem, ao morrer, deixa sua fortuna ao Estado. Todos começam iguais. Mas obvia­mente não continuam assim. Shusgis era rico e generoso com a sua riqueza. Havia certos luxos em meus aposentos que eu não sabia existir em Gethen, como, por exemplo, um chu­veiro. Havia também um aquecedor elétrico, assim como uma lareira bem abastecida. Shusgis riu-se:

Disseram-me: mantenha o Enviado aquecido; ele vem de um planeta quente e não pode suportar o nosso frio. Trate-o como se estivesse grávido, ponha peles em sua cama e aquecedores no seu quarto, aqueça sua água de banho e conserve as janelas fechadas. Isto é o bastante? Vai se sentir confortável? Por favor, diga-me o que mais gostaria de ter aqui.

Confortável?! Ninguém, jamais, em Karhide, em qual­quer circunstância, perguntara-me se estava confortável.

Sr. Shusgis — respondi, emocionado —, sinto-me como se estivesse em casa.

Mas ele não ficou satisfeito enquanto não colocou outro cobertor de pele na cama e mais achas no fogo da lareira.

Sei como é — disse-me. — Quando estava grávido, não conseguia manter-me aquecido; meus pés eram como pedras de gelo; quase me sentava sobre o fogo, todo o inver­no. Foi há muito tempo, naturalmente, mas bem me lembro!

Gethenianos procuram ter seus filhos cedo; a maioria entre vinte e quatro e vinte e seis anos passa a usar anticoncepcionais e deixa de ser fértil, no lado feminino, aos qua­renta anos. Shusgis já estava nos cinqüenta, daí o seu "há muito tempo". Era-me difícil imaginá-la como uma jovem mãe! Era um político sagaz, duro mas jovial, cujos atos de consideração serviam aos seus interesses e seu interesse era ele próprio. Seu tipo é universal: ele é encontrado na Terra, em Hain ou em Ollul. Eu o encontraria também no inferno.

Está muito bem informado quanto à minha aparên­cia e gosto, Sr. Shusgis. Sinto-me lisonjeado. Não pensei que a minha fama me houvesse precedido.

Não retrucou —, pelo que vi, eles bem que o poderiam ter enterrado sob a neve, lá em Erhenrang, hein?! Mas deixaram-no ir embora. Foi então que imaginamos que não era apenas um desses lunáticos karhideanos, mas um enviado real.

Perdão, não estou acompanhando seu pensamento...

Ora, Argaven e seu séquito o temiam, Sr. Ai. Sen­tiam medo do senhor e queriam vê-lo pelas costas. Medo de que, se o maltratassem ou o silenciassem, houvesse uma revanche, uma incursão vingadora provinda dos espaços side­rais! Por isso não ousaram tocar-lhe. Assim mesmo, tentaram silenciá-lo, porque o temem e temem aquilo que traz para Gethen.

Ele estava sendo exagerado; eu não tinha recebido ne­nhuma restrição ou censura nos noticiários de Karhide, pelo menos enquanto Estraven estava no poder. Mas tive a im­pressão de que, por qualquer motivo, não houvera muitas notícias sobre a minha pessoa em Orgoreyn, e Shusgis con­firmou minhas suspeitas.

Então, não temem o que eu trago para Gethen?

Não, não tememos.

Pois olhe, algumas vezes eu mesmo temo.

Ele riu-se, jovialmente, à minha réplica.

Não preciso provar minhas palavras continuamente, não sou um vendedor, mas estou oferecendo progresso. Te­mos que nos encontrar como iguais, com uma compreensão mútua, antes que minha missão propriamente dita comece.

Sr. Ai, há muita gente querendo vê-lo, desde os mandachuvas até os menos importantes; alguns são aqueles com quem está desejando manter contato, pessoas que fazem alguma coisa, que realizam. Eu tive a honra de hospedá-lo porque tenho uma casa grande e também porque sou conhecido como uma espécie de camarada neutro, não um domi­nador, não um alto comensal, ou comerciante, apenas um simples comissário que cumpre com seu dever e não vai expô-lo a comentários sobre com quem e onde se hospedou... — Ele riu e continuou: Mas isto não impedirá que seja convidado para jantares e almoços, e muitas vezes.

Estou ao seu inteiro dispor.

Hoje à noite haverá uma pequena ceia com Vanake Slose...

Comensal de Kuwera, Distrito, não? Natural­mente, aceitaremos.

Já havia estudado o assunto antes de chegar àquele lu­gar. Ele se alvoroçou com a minha consideração em dignar-me a aprender coisas de seu país. Boas maneiras aqui eram diferentes das de Karhide. Lá, as atenções exageradas que ele me prodigalizava ou teriam rebaixado seu prestígio ou insultariam o meu; eu não estava bem seguro, mas um deles seria atingido.

Eu precisava de roupas para a recepção, pois o meu me­lhor conjunto se perdera no reide em Siuwensin. Assim, naquela tarde, peguei um táxi do governo e fui ao centro comprar um traje orgota. O manto e a camisa eram iguais aos de Karhide, mas em vez de calções de verão eles usavam botas altas até as coxas, frouxas e pesadonas, durante todo o verão. As cores eram vivas, azuis ou vermelhas, o tecido, o corte e a confecção deixavam muito a desejar. Era a pro­dução em massa. O vestuário dava uma amostra daquilo que faltava naquela cidade impressionante e maciça: elegância. Elegância é um preço a mais a pagar em troca de conforto, e eu estava disposto a pagá-lo.

Voltei para a casa de Shusgis e me deliciei com um banho bem quente de chuveiro, cujos jatos vinham de todos os lados como uma ducha estimulante. Lembrei-me das frias banheiras de lata de Karhide, onde eu batia os dentes e tinha calafrios, e da minha bacia com as bordas franjadas pelo gelo, no meu quarto de Erhenrang. Era isto elegância? Viva o con­forto! Vesti meu novo traje vermelho-brilhante e fui condu­zido juntamente com Shusgis no seu carro particular com motorista. Há mais empregados e empregos em Orgoreyn que em Karhide. Isto porque todos os orgotas são funcioná­rios do Estado, o Estado tem que dar emprego para todos e assim o faz. Esta, pelo menos, é a explicação dada e aceita, apesar de a maior parte das explicações que envolvem economia, sob certos aspectos, parecer esconder o ponto prin­cipal.

O salão branco de recepção do Comensal Slose era brilhantemente iluminado e continha uns trinta convidados, três dos quais eram comensais e todos os demais pessoas notáveis, num ou noutro setor. Era mais do que um pequeno grupo de orgotas ansiosos por conhecerem o alienígena. Eu não era uma curiosidade, como havia sido um ano inteiro em Karhide; nem anomalia, nem um enigma; era, assim me parecia, uma chave. Mas que porta eu teria que abrir? Alguns deles tinham uma noção, aqueles que me cumprimentavam efusivamente, mas eu não tinha nenhuma.

Nada descobri durante a ceia. Em todo este planeta, mesmo entre os bárbaros das estepes geladas de Perunter, é terrivelmente vulgar falar de negócios às refeições. Como a ceia foi logo servida, adiei minhas perguntas e dei atenção ao meu anfitrião, aos convidados e à sopa de peixe. Slose era uma pessoa jovem, frágil, com olhos claros e brilhantes e a voz intensa e abafada. Parecia um idealista, um espírito dedi­cado. Gostei de suas maneiras, mas fiquei pensando a que ele se dedicaria na vida. À minha esquerda sentou-se outro comensal, um camarada de rosto largo, gorducho, chamado Obsle. Era corpulento, jovial e inquiridor. Na terceira colherada de sopa ele já me perguntava por que diabo eu havia nascido em outro mundo, como era lá, e, se era mais quente que Gethen, como todos diziam, quanto mais quente?

Bem, nesta mesma latitude, na Terra, nunca neva.

Nunca neva?! Nunca mesmo?! — Ele ria, divertindo-se prazerosamente, como uma criança ri ante uma boa mentira, encorajando outras a rirem.

Nossa região subártica é como sua zona habitável. Estamos muito distantes da nossa última Idade do Gelo, muito mais que vocês. Fundamentalmente Terra e Gethen são bem semelhantes. Todos os mundos habitados o são; o homem só pode sobreviver dentro de estreitos limites ambien­tais. Gethen está num extremo...

Então há outros mundos mais quentes que o seu?

A maior parte deles o é... alguns são quentes, como Gde, por exemplo. É, na maior parte, areia e deserto rochoso. Já era quente, no começo, e uma civilização predatória des­truiu seu equilíbrio ecológico há mais de sessenta mil anos, queimando as florestas para fazer lenha. Há ainda gente lá, mas, parece-me — se bem compreendo o Texto — que a idéia que Yomesh nos dá é como se lá vivessem ladrões após a morte.

Isto provocou um largo sorriso em Obsle, um sorriso quente que me fez subitamente modificar meu julgamento sobre ele.

Alguns subcultos sustentam que os períodos após a vida são realmente situados, fisicamente, em outros mun­dos, outros planetas do universo. Esta idéia tem fundamento, Sr. Ai?

Não. Tenho sido descrito de várias maneiras, mas ninguém ainda me definiu como um fantasma.

Mal terminara a frase, aconteceu que algo me atraiu a atenção à minha direita. Voltei-me curioso e vi uma pessoa escura, com roupas escuras também, quieta e ensombrecida; ela estava sentada perto de mim, o espectro da festa. A aten­ção de Obsle fora desviada por seu outro vizinho e a maioria estava prestando atenção a Slose, sentado à cabeceira da mesa. Falei em voz baixa:

Não esperava vê-lo aqui, Lorde Estraven!

O inesperado é que faz a vida suportável — retru­cou ele.

Incumbiram-me de uma mensagem para o senhor.

Ele olhou interrogativamente.

Sob a forma de dinheiro, um pouco do seu dinheiro. Foreth rem ir Osboth enviou-lhe. Eu o tenho comigo, na casa do Sr. Shusgis. Providenciarei para que chegue às suas mãos.

Muita gentileza sua, Sr. Ai.

Ele estava quieto, subjugado, um homem banido gas­tando toda a sua vitalidade em terra estranha. Parecia pouco inclinado a falar comigo e eu, por minha vez, fiquei contente com seu silêncio.

Entretanto, durante aquele jantar tão longo, pesado e barulhento, apesar de minha atenção voltar-se para aqueles orgotas poderosos e complicados que pretendiam me usar, fiquei, sempre, agudamente consciente de sua presença, do seu silêncio, de sua fisionomia escura e atenta.

E uma idéia atravessou meu espírito, apesar de tentar afastá-la como indigna: eu não viera a Mishnory para comer peixe preto assado com os comensais por minha livre e espon­tânea vontade; nem eles me tinham trazido ali. Ele o fizera.

 

 

                     Lenda de amor e traição

Trata-se de uma lenda da região leste de Karhide, como foi contada em Gorinhering por Tobord Chorhawa e mais tarde registrada por Genly Ai, o Enviado. É uma história bem conhecida, tem diversas versões e há uma peça de teatro baseada nela e representada por grupos folclóricos ambulantes, no leste do Kargav.

 

Há muito tempo, antes da época de Argaven I, que unificou Karhide num reino único, havia inimizade de san­gue entre o domínio de Stok e o domínio de Estre, na Terra de Kerm. Essa rivalidade se manteve através de saques e em­boscadas durante três gerações, e não havia jeito de se apa­ziguarem, pois eram disputas em torno de terras. As terras férteis são abundantes em Kerm e o orgulho de um domínio reside na extensão de suas fronteiras, e os senhores das ter­ras em Kerm são homens orgulhosos e suscetíveis, que vivem num ambiente sombrio.

Aconteceu então que o jovem herdeiro carnal do Lorde de Estre da linhagem de Estraven —, ao esquiar no lago de Icefort, no mês de Irem, numa caçada de pesthry[8], che­gou a um local em que a camada de gelo era fina e esta, com seu peso, rompeu-se e ele afundou no lago. Lutando contra o gelo, ele conseguiu emergir daquela água glacial e usou um esqui como alavanca sobre a borda mais firme do lago; suas condições, porém, eram péssimas, pois, molhado da cabeça aos pés, ficou exposto ao kurem[9]. E a noite se aproximava.

Estre situava-se a oito milhas acima da encosta, e assim ele perdeu as esperanças de alcançá-la; dirigiu-se, com dificuldade, para o vilarejo de Ebos, na margem norte do lago. À proporção que anoitecia, um nevoeiro ia baixando das vertentes geladas e recobrindo o lago; tornando-se impossível encontrar a direção, ele nem sequer sabia para onde dirigir seus esquis. Continuou caminhando cuidadosamente com receio do gelo fino, tentando, ao mesmo tempo, agitar-se porque sabia que, gelado como estava até a medula dos ossos, em breve não se locomoveria mais. Finalmente, através da cerração intensa, vislumbrou uma luz incerta. Retirou os esquis, pois o terreno já estava áspero para deslizar e a neve era rala em muitos lugares. Suas pernas mal o susten­tavam, mas o jovem reuniu toda a sua energia para chegar até a luz. Era uma cabana de floresta, rodeada de thore, única espécie de árvore que cresce nos bosques de Kerm. Bateu na porta com força e gritou por socorro; alguém abriu a porta e o levou até o calor do fogo. Não havia mais nin­guém, apenas esta pessoa. Aproximou-se do jovem, e tirou-lhe a roupa encharcada, uma verdadeira armadura congela­da. Depois o ajudou a deitar-se despido no leito quente, nas cobertas de pele, e com seu próprio corpo aqueceu-lhe os pés, as mãos, o rosto, e, a seguir, deu-lhe cerveja quente para beber. Afinal, recuperando a circulação, ele olhou para aquele que cuidava dele. Era um estrangeiro, mas tão jovem quanto ele. Olharam-se. Ambos eram graciosos, fortes de constituição, de traços delicados, morenos e de bela postura. O jovem de Estre percebeu que o fogo de kemmer estava marcado no rosto do outro. E falou:

Eu sou Arek, de Estre, da linhagem Estraven.

E eu — respondeu o outro — sou Therem, de Stock.

Então o jovem Arek de Estre esboçou um sorriso triste e disse, num murmúrio ainda fraco:

Você me aqueceu e devolveu-me a vida para matar-me, Therem de Stok?

Não! — respondeu firme o outro.

E estendendo a mão, tomou a mão de Arek procurando sentir se a frieza já havia desaparecido de seu corpo. A este contato, embora Arek estivesse ainda se aproximan­do do seu kemmer, ele sentiu o fogo do amor despertar em seu íntimo. Por algum tempo ficaram assim, imóveis, tocando-se nas mãos.

Elas são iguais — disse Therem, e colocando a pal­ma de sua mão de encontro à do outro, mostrou que ambas eram iguais em tamanho e forma, dedo por dedo, tão idên­ticas como as mãos de uma mesma pessoa.

Eu nunca o vi antes... —- disse Therem.

Somos inimigos mortais... — respondeu Arek.

Surpreendido, ele se ergueu, ajeitou o fogo da lareira

e voltou para junto de Arek.

— Somos inimigos mortais — murmurou Arek —, mas eu juraria kemmering com você.

E eu com você — retrucou o outro.

Assim, juraram laços eternos um com o outro e, jus­tamente, nas terras de Kerm. Naquela época, como agora, aquele voto de fidelidade não podia ser quebrado nem subs­tituído. Permaneceram juntos por alguns dias na cabana, às margens geladas do lago.

Certa manhã, um grupo de caçadores de Stok chegou à cabana. Um deles conhecia Arek de vista; nada disse. Repentinamente puxou seu punhal e, diante de Therem, esfaqueou o jovem na garganta e no peito. Ele caiu morto, banhado em sangue, ao pé da lareira.

Ele era o herdeiro de Estre! — gritou o assassino.

—- Ponha-o no trenó e leve-o à terra dele para ser en­terrado lá! — ordenou Therem. E, abatido, deixou a cabana e voltou para Stok.

Mas os homens que partiram com o corpo de Arek no trenó abandonaram-no na floresta para ser comido pelas feras e retornaram, na mesma noite, para Stok.

Therem compareceu em pessoa ante seu pai carnal, Lorde Harish rem ir Stokven, e interrogou os caçadores que tinham voltado da missão não cumprida:

Obedeceram às minhas ordens?

Obedecemos, senhor.

Mas Therem retrucou:

Mentira! Se tivessem ido lá, jamais voltariam com vida das terras de Estre! Estes homens desobedeceram às minhas ordens e mentiram para ocultar sua insubordinação. Eu exijo seu banimento.

Lorde Harish o atendeu e eles foram expulsos de seus lares e perderam seus direitos.

Pouco tempo depois destes acontecimentos, Therem deixou os domínios e passou a residir no Monastério Rotherer. Só um ano mais tarde voltou a Stok.

Naquele verão, no domínio de Estre, procuraram por Arek nas montanhas e planícies; por fim puseram luto por ele e lamentaram sua morte durante todo o verão e todo o outono, pois ele era o filho único do seu senhor.

No fim do mês de Therm, quando o inverno recobria, com seu pesado manto glacial, a superfície da terra, um homem desceu a encosta da montanha, em esqui, e entre­gou ao guardião do portão de Estre um vulto envolvido em peles, dizendo:

Este é Therem, o filho do filho do senhor de Estre.

Logo em seguida desapareceu para o lado das monta­nhas, antes mesmo que alguém pensasse em detê-lo.

Embrulhado nas peles estava um recém-nascido cho­rando. Levaram a criança a Lorde Sorve e repetiram as pa­lavras do forasteiro. O velho senhor, cheio de dor, viu nas feições da criança seu filho morto, Arek. Ordenou que o criassem como filho do lar e conservassem o nome de Therem, apesar de este nome nunca ter sido usado por seu clã.

A criança cresceu graciosa, elegante e forte; era more­na e silenciosa. Todos encontravam nela muita semelhança com o falecido Arek. Adolescente, Lorde Sorve, na genero­sidade da velhice, nomeou-o herdeiro de Estre. Houve, en­tão, corações partidos entre os filhos de kemmering de Lor­de Sorve, todos homens fortes, no auge da pujança, e que haviam esperado por aquela regalia. Prepararam uma em­boscada contra o jovem Therem e quando este saiu para caçar, no mês de Irrem, tentaram pegá-lo. Mas Therem não seria apanhado desprevenido. Atirou em dois irmãos de criação e os atingiu, apesar do espesso nevoeiro que reco­bria o lago. Com o terceiro, ele lutou a faca e o matou, por fim, ficando muito ferido no peito e no pescoço, com cortes profundos da luta. Permaneceu ao lado do corpo do meio-irmão morto ali no gelo e viu que a noite caía. Tornava-se fraco e nauseado à proporção que o sangue se lhe esvaía pelos ferimentos. Pensou, então, em dirigir-se a Ebos, em busca de socorro. Mas, na crescente escuridão, perdeu seu caminho e chegou à floresta de thore, na mar­gem oriental do lago. Vendo ali uma cabana abandonada, entrou e, muito enfraquecido para acender o fogo, caiu sobre as pedras frias da lareira, e lá ficou, com as feridas san­grando.

Alguém veio à noite, um homem sozinho. Parou à soleira e ficou quieto, contemplando o homem ensangüen­tado na lareira. Entrou, então, apressadamente e fez uma cama de peles tiradas de uma velha arca, acendeu o fogo e fez curativos nos ferimentos de Therem.

Quando ele viu o jovem olhar para ele, disse:

Eu sou Therem de Stok.

E eu sou Therem de Estre.

Houve um silêncio entre ambos. Então o jovem sorriu:

Você tratou dos meus ferimentos para me matar, Stokven?

Não — 'disse o mais velho.

Como aconteceu que você, o Lorde de Stok, esteja aqui, sozinho, nesta terra em litígio?

Eu venho muito aqui — replicou Stokven.

Procurou o pulso do jovem e sua mão para ver se tinha febre; por um instante a palma de sua mão se colocou con­tra a palma da mão do jovem, dedo por dedo; ambas eram iguais, como as mãos de um mesmo homem.

Somos inimigos mortais — disse Stokven.

Assim é, mas eu nunca o vi antes.

Stokven desviou o rosto para o lado e continuou:

Eu já o vi, há muito tempo. Meu maior desejo é que haja paz entre nossas casas.

Jurarei paz com você — respondeu o jovem Therem.

Assim fizeram e não falaram mais, adormecendo, em seguida, o ferido. Pela manhã, o senhor de Stokven tinha ido embora. Um grupo de gente do vilarejo chegou à cabana e levou Therem de volta para seu lar, em Estre. Aí, ninguém ousou se opor à vontade do senhor, cuja decisão havia sido consumada, a sangue, no lago gelado. Por morte de Sorve, Therem tornou-se o senhor de Estre. Dentro de um ano, ele terminou com a velha rivalidade, dando metade das ter­ras em litígio para o domínio de Stok. Por isto e pelo assas­sinato de seus irmãos de criação, ele passou a ser chamado Estraven, o Traidor. Entretanto, seu primeiro nome, Therem, continuou sendo dado às crianças desse domínio.

 

 

                   Confabulações em Mishnory

Na manhã seguinte, quando terminei o desjejum que me fora servido na suíte da mansão de Shusgis, o telefone emitiu seu toque polido. Quando tirei o receptor do gancho, a pessoa que me chamava falou em karhideano:

Sou Therem Harth rem ir Estraven. Posso subir?

Pois não...

Fiquei satisfeito em confrontar-me com ele novamente. Estava claro que nenhum relacionamento estreito seria possível entre nós. Mesmo considerando que seu infortúnio e exílio tinham sido causados por minha missão, eu não podia me responsabilizar por eles, e não tinha nenhum sentimento de culpa racional; seus atos e motivos não tinham ficado claros para mim em Erhenrang e eu sentia que não podia confiar nele. Desejava mesmo não vê-lo misturar-se com os camaradas orgotas que tinham me recebido tão bem. Sua presença era uma complicação e um embaraço para mim. Ele foi introduzido nos meus aposentos por um dos inúme­ros empregados da casa. Fiz com que se sentasse numa gran­de poltrona estofada e ofereci-lhe uma cerveja matutina. Recusou. Suas maneiras não eram constrangidas ele já abandonara a timidez há muito tempo, se é que algum dia a tivera —, mas estava comedido, arredio, distante.

A primeira nevada disse. E vendo-me olhar em direção às pesadas cortinas: Não olhou ainda para fora?

Afastei as cortinas e vi os flocos de neve rodopiando e caindo pesadamente nos telhados, apesar de soprar uma aragem leve na rua. Era o 17.° dia odarhard gor do primeiro mês de outono.

Ainda é cedo para nevar murmurei, com os olhos deslumbrados pela magia da neve.

Estão prevendo um inverno rigoroso este ano.

Deixei cair as cortinas. A suave luz exterior batera nas suas feições, revelando uma fisionomia envelhecida. Ele havia passado por maus pedaços desde que o vira pela última vez na residência vermelha, ao lado de sua lareira.

Tenho aqui comigo o que me pediram para lhe entregar — falei, e dei-lhe o maço de dinheiro envolto em papel metálico que eu colocara sobre a mesa à sua espera. Apanhou-o e agradeceu discretamente. Permaneci de pé e ele, após instantes, ainda segurando o pacote nas mãos, levantou-se. Minha consciência me incomodava, mas não ten­tei apaziguá-la. Queria desencorajá-lo de se dirigir a mim, já que para ele isso significava humilhação; era muito penoso.

Olhou-me diretamente nos olhos. Sua estatura era bem menor que a minha; de pernas curtas e compacto, não era nem mesmo da altura das mulheres da minha raça. Entretanto, quando me olhava, não parecia estar me olhando de uma posição mais baixa. Não o encarei; examinei o rádio que estava na mesa com um ar de interesse abstrato.

Não se pode acreditar em tudo o que se ouve no rádio, por aqui — disse ele de maneira agradável. — Pare­ce-me que em Mishnory você vai precisar receber algumas informações, e conselhos.

Creio que há um número bem grande de pessoas que desejam fornecê-los.

— E há segurança em números, hein? Dez é um nú­mero que inspira mais confiança que 1? Desculpe-me. Não deveria estar falando em karhideano, esqueci-me. — E con­tinuou em orgota: — Homens banidos não devem nunca se expressar na sua língua nativa; sai muito carregada de pa­lavras amargas; e esta língua é mais adequada a traidores, creio. Ela desliza pelos lábios como mel... Sr. Ai, quero agradecer-lhe pela gentileza que teve de nos prestar esse serviço. Tanto para mim como para meu velho amigo e kemmering Ashe Foreth. Em nosso nome eu lhe agradeço e posso retribuir-lhe em forma de um conselho. — Parou. Eu me mantive quieto. Nunca o ouvira proferir essa espécie de cortesia dura, mas elaborada. Não tinha a menor idéia do que isso significava. Ele continuou: — O senhor é, em Mishnory, o que nunca foi em Erhenrang. Lá diziam que o senhor era; aqui eles dirão que o senhor não é. O senhor é o instrumento de uma facção. Eu o aconselho a ter cui­dado neste jogo, pela maneira como o estão manobrando. Aconselho-o a descobrir como é a facção inimiga, quem são eles, e nunca deixar que usem sua pessoa, pois eles não vão fazer nada em benefício seu ou de sua missão.

Silenciou. Estava a ponto de lhe pedir para que fosse mais claro quando ele disse:

Adeus, Sr. Ai. — Voltou-se e saiu.

Fiquei paralisado. O homem era como um choque elé­trico — pegava a pessoa totalmente desprevenida. Ele aca­bara de me tirar toda a satisfação com que havia tomado a minha refeição matinal. Fui até a estreita janela e olhei para fora. A neve tinha rareado um pouco. Era bonito vê-la des­lizando pelo ar em flocos brancos, como a queda das péta­las de uma cerejeira em flor nos pomares do meu país natal, quando.o vento primaveril sopra nas verdes encostas de Borland, onde nasci; na Terra, na quente Terra, onde as árvores ficam carregadas de flores na primavera. De repente, fiquei profundamente abatido e saudoso. Dois anos eu já vivera neste maldito planeta e o terceiro inverno já come­çara antes de o outono ter-se consumado. Meses e meses de um frio incansável, gelado por fora e por dentro até a me­dula, geadas, gelo, vento, chuva, neve, frio... ali isolado, alienígena, sem uma alma em quem confiar. Pobre Genly! Deveria chorar?

Vi Estraven saindo para a rua, uma figura encorpada e escura de encontro ao cinza-pérola da neve. Seu olhar vagou ao redor; ele ajustou o cinto solto do manto não usava casaco e desceu a rua, andando com uma ágil e peculiar graça, uma agilidade em todo o seu ser que lhe dava a aparência de ser a única coisa viva em toda Mishnory.

Retornei ao quarto aquecido. Era confortável mas mui­to abafado, com o aparelho de calefação, as cadeiras esto­fadas, a cama recoberta de peles, os tapetes, as cortinas, os abrigos e peliças.

Vesti meu casaco de inverno e saí para dar uma volta e arejar um pouco daquela atmosfera desagradável. Eu teria que almoçar, neste dia, com os comensais Obsle e Yegey e outros que encontrara na noite anterior, e seria apresentado a alguns desconhecidos. Em geral, o almoço é servido numa grande mesa, com as travessas arrumadas; come-se de pé, talvez para não termos a impressão de que passamos o dia todo sentados em torno de uma refeição. Mas esta era uma recepção formal e havia mesas com lugares para se sentar e o cardápio era enorme, com mais de vinte pratos, quentes ou frios, na maioria variações em torno de ovos e pão de maçã. Quando estávamos nos servindo, antes que se forma­lizasse a etiqueta de boa educação que prescrevia conversa de assuntos leves à mesa, Obsle observou-me:

O comensal chamado Mersen é um espião de Erhenrang e Gaum é um agente reconhecido do Sarf, você já sabe, não?!

Falava despreocupadamente e riu-se como se tivesse feito uma brincadeira, deixando-me para cuidar de seu pra­to. Eu não tinha a menor idéia do que fosse o Sarf.

Quando o grupo começou a se sentar à mesa, um jovem aproximou-se do nosso anfitrião e falou-lhe algo discretamente. Yegey voltou-se logo para nós e disse:

Novas de Karhide: o filho do Rei Argaven nasceu esta manhã e morreu logo a seguir.

Houve uma pausa silenciosa seguida de murmúrios. Então o jovem Gaum, sorrindo ironicamente, ergueu seu caneco de cerveja e fez um brinde:

Vida longa a todos os reis de Karhide!

Alguns beberam com ele, mas a maioria não o fez.

Por Meshe! Rir-se da morte de uma criança! — retrucou um velho gordo sentado ao "meu lado, com suas botas altas em torno das coxas, semelhantes a saias, e a fisionomia carregada de desagrado pelo mau gosto do brinde.

Começou-se a discutir quais dos seus filhos por kemmering o Rei Argaven iria escolher como herdeiro, pois ele já passara dos quarenta e não teria mais filhos carnais; por quanto tempo Tibe continuaria como regente, etc. Alguns achavam que a regência terminaria logo, outros duvidavam disso.

O que pensa disso, Sr. Ai? — perguntou-me Mer­sen, o tipo que Obsle me identificara como agente de Karhide e, obviamente, uma pessoa da confiança de Tibe. E continuou insistindo: — O senhor acaba de chegar de Erhenrang; o que há de verdade nesses rumores de que Argaven, na realidade, abdicou sem proclamação, entregan­do as rédeas a seu primo?

Bem, ouvi rumores também sobre isto.

Pensa que tenham alguma base concreta?

Não tenho a menor idéia...

Neste ponto, o anfitrião começou a falar do tempo, pois todos já haviam começado a refeição.

Após os empregados terem retirado os pratos e a mon­tanha de restos de assado e conservas, sentamo-nos todos em torno de uma longa mesa e aí foram servidos pequenos cálices de um licor muito forte — aqua-vita. E passaram a me fazer perguntas.

Desde os meus exames feitos pelos médicos e cientistas de Erhenrang, eu não tinha me defrontado com pessoas tão ansiosas em me fazer perguntas. Poucos karhideanos, mesmo entre os pescadores e fazendeiros com quem passara meus primeiros meses, procuraram satisfazer sua curiosidade, que era intensa, por meio de simples interrogatório. Eles eram introvertidos, indiretos, fechados, não gostavam de pergun­tas e respostas. Lembrei-me do que Faxe me dissera quanto a respostas... Mesmo os técnicos haviam limitado suas perguntas estritamente ao campo profissional, tais como a fisiologia do meu ser, funções circulatórias e glândulas nas quais eu diferia enormemente do padrão getheniano. Eles nunca chegaram a perguntar, por exemplo, como a sexuali­dade contínua da minha raça influenciava as instituições so­ciais e como lidávamos com o nosso kemmer permanente. Escutavam quando lhes falava; os psicólogos ficavam aten­tos quando lhes informava sobre a comunicação mental, mas nenhum deles chegou a fazer indagações gerais que lhes possibilitassem uma visão adequada do que fosse uma so­ciedade terrestre ou ecumênica, isto é, com exceção de Estraven.

Aqui, entretanto, não estavam tão presos às considera­ções concernentes a prestígio e orgulho pessoais, e perguntas não eram consideradas insultos, quer para quem as fizesse quer para quem respondesse a elas. Verifiquei logo que alguns deles estavam ali para descobrir se eu era uma fraude. Isto me deixou desconcertado, mas por pouco tempo. Eu encon­trara incredulidade, mas raramente má fé. Tibe fizera uma exibição elaborada de "como levar avante esta farsa", no dia da parada em Erhenrang, mas agora eu sabia que isto fazia parte do jogo que fizera para desmoralizar Estraven. Eu mesmo estava certo de que Tibe acreditava realmente em mim. Afinal, ele tinha visto a nave que me levara ao seu planeta; teve livre acesso a todas as informações concer­nentes ao meu transporte e ao meu audisível, pelos relató­rios que foram feitos. Nenhum destes orgotas tinha visto a nave. Poderia mostrar-lhes o audisível, mas ele não era um instrumento muito convincente, pois era difícil demais para ser compreendido, tanto se usado para fazer truques como para provar a realidade. A velha Lei de Embargo Cul­tural se opunha à importação do audisível, e assim não tinha em meu poder nada além da nave, do aparelho, da caixa de retratos, da peculiaridade inconteste do meu corpo e da sin­gularidade duvidosa de minha mente. Os retratos passavam de mão em mão e eram examinados com aquela expressão neutra que se vê no rosto dos que olham fotos de família de outras pessoas. O interrogatório continuou.

O que é o Conselho Ecumênico, um mundo? Uma liga de mundos? Um lugar, um governo? indagou Obsle.

Bem, tudo isso e nada disso. Conselho Ecumênico é uma expressão nossa, terrena. Na linguagem vulgar signi­fica família; em karhideano seria o "lar". Em orgota não sei, não estou bem seguro, pois não conheço bem a língua. Creio que não seria a comensalidade, embora haja semelhan­ça entre o governo comensal e o ecumênico. Mas é, essen­cialmente, uma forma de governo. É uma tentativa de uni­ficar o místico com o político e, como tal, é quase um fracasso; mas este fracasso tem feito mais bem à humani­dade que o sucesso dos seus predecessores. É uma sociedade e contém, pelo menos em potencial, o fator cultura. É uma forma de educação, sob certo aspecto; é uma espécie de grande universidade, imensa mesmo. Na sua essência estão as forças da comunicação e da cooperação, e, sob outro ân­gulo, é uma espécie de liga ou união de mundos, possuindo em certo grau uma organização convencional centralizada. É este aspecto o da liga que eu agora estou represen­tando. O Conselho Ecumênico, como uma entidade política, funciona através de coordenação e não de regras. Não impõe leis, as decisões são tomadas por consentimento de um con­selho, não por ordens ou consenso geral. Como uma enti­dade econômica, é imensamente ativa, procurando comuni­cação interespacial e mantendo o equilíbrio comercial entre oitenta mundos, oitenta e quatro mais precisamente, se Gethen entrar na sua esfera...

O que você quer dizer com "não impõe suas leis"? perguntou Slose.

Não tem nenhuma. Os Estados membros têm as suas próprias leis; quando elas conflitam entre si, intervém como mediador, tenta fazer um ajustamento legal ou ético, ou confronto, ou escolha, conforme for o caso. Mas se eventualmente o conselho, como uma experiência de superorganização, falhar, terá que se transformar numa força mantene­dora da paz, manter uma polícia, etc. Até agora não foi necessário. Todos os principais mundos estão se recuperando de uma era desastrosa, ocorrida há um par de séculos; re­cuperando idéias e habilidades perdidas, aprendendo a falar novamente... — Como eu poderia explicar a Idade da Agressão e seus efeitos posteriores para um povo que ainda não tinha nem sequer a palavra "guerra"?!

Isto é simplesmente fantástico, Sr. Ai! — disse o anfitrião, o Comensal Yegey, uma criatura de aspecto deli­cado mas de olhos perspicazes. — Não consigo compreender o que querem conosco. Quero dizer, que vantagem teria para eles a aliança de outros mundos mais? E, pelo que estou vendo, não seria um mundo muito avançado, pois não temos naves estelares e outras coisas, como eles têm...

Nenhum de nós tinha, até que os hainianos e cetianos chegaram. E alguns mundos custaram a obtê-los, com séculos de espera, até que o Conselho Ecumênico estabele­ceu os padrões para aquilo que vocês chamam de Mercado Comum.

Isto despertou uma risada geral, pois este era o nome da facção de Yegey dentro da comensalidade.

Mercado Comum é, realmente, a razão da minha vinda aqui, para tentar estabelecê-lo. Comércio não só em mercadorias, naturalmente, mas também em conhecimentos, tecnologia, idéias, filosofia, arte, medicina, ciência, teorias... Duvido muito que Gethen pudesse conseguir um intercâm­bio físico de idas e vindas com outros mundos. Estamos aqui a setenta anos-luz do mais próximo mundo ecumênico; Ollul, um planeta da estrela que vocês chamam Asyomse, o mais remoto, está a duzentos e cinqüenta anos-luz de dis­tância e suas estrelas não são sequer visíveis daqui... Mas com o comunicador audisível pode-se dialogar com estes mundos, como se faz por rádio com as cidades vizinhas. Tenho, porém, minhas dúvidas quanto ao encontro de povos. A espécie de comércio de que falo pode ser altamente pro­veitosa, mas consiste basicamente em comunicação e não em transporte. Meu trabalho aqui é, realmente, saber se estão dispostos a se pôr em contato com o resto da humanidade.

Você quer dizer Orgoreyn? Ou Gethen como um todo? — perguntou Slose, inclinando-se ansiosamente para a frente.

Hesitei por um momento, pois esta não era a pergunta que estava esperando.

No momento, quero dizer, exatamente, Orgoreyn. Mas o contato não pode ser exclusivo. Se Si th, ou as Na­ções da Ilha, ou Karhide decidirem pertencer ao Conselho Ecumênico, eles podem. É uma questão de escolha indivi­dual, uma de cada vez. Então, o que acontece, num planeta altamente desenvolvido como Gethen, é que os vários an­tro tipos, ou regiões, ou nações — como queiram — acabam por estabelecer um grupo de representantes para funcionar como coordenadores deste- planeta com os outros planetas — um estábile local, como diríamos nós. Economiza-se um bocado de tempo se começarmos assim, e dinheiro também, pois as despesas são partilhadas. Por exemplo, se decidissem construir uma nave espacial para vocês...

Por Meshe! — exclamou Humery ao meu lado. — Você quer que nós viajemos aí pelo vácuo?! Nossa!

Ele chiou como as notas fortes de um acordeão, com repulsa e caçoada ao mesmo tempo. Gaum interferiu:

Onde está sua nave, Sr. Ai?

Sua pergunta foi feita de modo sorridente, como se fosse extremamente sutil e ele desejasse que essa sutileza fosse notada. Era um ser extraordinariamente belo, para qualquer padrão de beleza, e não pude deixar de contemplá-lo com prazer, enquanto imaginava, ao mesmo tempo, o que seria o Sarf.

Bem, isto não é segredo; aliás foi muito divulgado em Karhide pelo rádio. O foguete que me deixou na ilha de Horden está agora na fundição da Escola Real de Arte­sãos, a maior parte dele, pelo menos. Creio que os técnicos removeram algumas partes para serem examinadas.

Foguete? — perguntou Humery, pois eu tinha usa­do a palavra orgota que significa fogo de artifício.

Isto descreve, de modo sumário, o método de pro­pulsão da nave, senhor.

Humery chiou mais um pouco; Gaum apenas sorriu.

Então o senhor não tem meios de voltar a... bem, ao local de onde veio?

Oh, claro que sim. Posso falar com Ollul pelo audisível e pedir-lhe para que uma nave Nafal me apanhe aqui. Chegaria em dezessete anos. Ou então poderia enviar uma mensagem para a nave espacial em órbita em torno do seu sol, agora. Chegaria aqui no espaço de dias.

A sensação que isto causou era perceptível, e mesmo Gaum não pôde ocultar sua surpresa. Havia uma certa estra­nheza nisto — este era o único fato de maior significação que eu havia conservado oculto em Karhide, mesmo de Estraven. Se, como me tinham feito compreender, os orgotas sabiam sobre mim apenas aquilo que Karhide deixara passar, esta seria apenas uma entre muitas surpresas. Mas não. Era a maior.

Onde está esta nave, senhor? — perguntou Yegey.

Girando em torno do sol, entre Gethen e Kuhurn.

Como chegou de lá até aqui?

Pelo foguete — respondeu por mim o velho Humery.

Exatamente. Nunca pousamos uma nave espacial em qualquer planeta populoso antes que uma comunicação franca ou uma aliança tenha se estabelecido. Assim, vim numa pequena embarcação a jato e aterrissei na ilha de Horden.

E pode entrar em contato com a nave maior pelo rádio comum, Sr. Ai? — A pergunta veio de Obsle.

Posso.

Omiti, no momento, a menção do meu pequeno saté­lite transmissor posto em órbita pelo foguete. Não queria dar-lhes a impressão de que seus céus estavam coalhados de invenções nossas.

Seria preciso um transmissor poderoso, mas vocês têm bastante possibilidade disso.

Então poderíamos irradiar para a sua nave...

Poderiam, se tivessem o código certo. As pessoas a bordo estão num estado físico a que chamamos "estase", ou seja, o que vocês chamam de hibernação; assim eles não perderão o tempo de suas vidas enquanto aguardam que eu cumpra a minha missão aqui. Um sinal adequado, na fre­qüência de onda certa, irá colocar em ação o dispositivo que os trará de volta à vida. Após o quê, teremos consultas atra­vés do rádio ou do audisível, usando Ollul como o centro transmissor.

Alguém perguntou num tom preocupado:

Quantos há lá?

Onze.

Esta informação provocou um suspiro de alívio e riso. A tensão relaxou um pouco.

Que acontece se você não se comunicar mais? — perguntou Obsle.

Sairão do estado de estase daqui a quatro anos...

E virão procurá-lo aqui, então?

Não, se tiverem recebido comunicados emitidos por mim. Consultarão os estábiles em Ollul e em Hain pelo audisível. Provavelmente tentarão enviar, de novo, outra pessoa como "enviado". O segundo, em geral, encontra o ca­minho já aberto pelo primeiro; tem menos complicações a enfrentar e as pessoas já procuram acreditar neles...

Obsle sorriu abertamente. A maioria ainda parecia pen­sativa e reservada; Gaum fez um aceno leve, como se aplau­disse a presteza da resposta, um aceno de conspirador. Slose tinha o olhar fixo, brilhante e tenso, como que fascinado por uma visão interior, da qual se libertou abruptamente para perguntar-me:

Por que, Sr. Enviado, nunca falou desta outra nave nos dois anos de estadia em Karhide?

Como podemos saber que ele não o fez? retru­cou Gaum sorrindo.

Nós sabemos muito bem que ele não o fez, Sr. Gaum disse Yegey também sorrindo.

Não o fiz e vou dizer por quê. A idéia desta nave no espaço, em torno de Gethen, aguardando ordens, pode­ria ser assustadora. Penso mesmo que isso pode acontecer até com os senhores. Em Karhide, não cheguei a sentir que poderia me abrir com aqueles que estavam em maior con­tato comigo a ponto de me arriscar a falar desta nave. Aqui os senhores quiseram se ocupar de mim, estão desejosos de me ouvir falar abertamente, em público, não estão sob a pressão do medo. Arrisquei-me porque creio que chegou a hora de fazê-lo e que Orgoreyn é o lugar adequado.

Está certo, Sr. Ai, está certo! disse Slose com violência. Dentro de um mês o senhor poderá mandar buscar essa nave e ela será bem-vinda em Orgoreyn como sinal visível do início de uma nova época. Vamos abrir os olhos dos que ainda não querem ver!           

Comemos, bebemos e fomos para casa; eu estava exaus­to, mas satisfeito com o rumo que as coisas tinham tomado. Havia ainda certas obscuridades e sinais velados, natural­mente. Slose queria fazer de mim uma espécie de novo cre­do; Gaum, por sua vez, desejava que eu parecesse um im­postor. Mersen procurava disfarçar o fato de ser um espião de Karhide, tentando provar que o espião era eu. Mas Obsle, Yegey e alguns outros já estavam se relacionando comigo num nível mais alto. Eles desejavam entrar em contato com os estábiles e trazer a nave Nafal para solo orgota a fim de persuadir ou coagir a comensalidade de Orgoreyn a aliar-se ao Conselho Ecumênico. Acreditavam que ao fazerem isto Orgoreyn teria uma vitória enorme, quanto a prestígio na­cional, sobre Karhide, e que os comensais que planejassem e executassem esta vitória receberiam, na mesma proporção, prestígio e poder no governo. Sua facção do Mercado Livre, uma minoria entre os Trinta e Três, se opunha à continuação da disputa em torno do vale do Sinoth, e, em geral, repre­sentava uma política conservadora, não-agressiva e não-racionalista. Eles tinham ficado afastados do poder por muito tempo e estavam calculando que a maneira de retornar ao poder seria no rumo que eu estava indicando. Como eles não vissem, além disso, que minha missão ali era um meio e não um fim em si própria, isto não era um grande incon­veniente. Uma vez empenhados nesta causa, poderiam descobrir até onde ela poderia levá-los. Enquanto isto, embora míopes, eram, pelo menos, realistas.

Obsle, tentando persuadir os outros, dissera:

Ou Karhide teme a força que esta aliança nos trará e Karhide sempre tem medo de novos caminhos e novas idéias, não se esqueçam —, e assim terá ficado para trás, ou então o governo de Erhenrang toma coragem e vem se juntar a nós, em segundo lugar. Em ambos os casos, o pres­tígio de Karhide estará abalado, e em ambos os casos nós é que guiamos o trenó. Se tivermos a inteligência de nos aproveitarmos disso agora, teremos uma vantagem permanente... e que vantagem!

Depois, voltando-se para mim:

Mas se os ecúmenos desejam nos ajudar, Sr. Ai, nós necessitamos de mais coisas para exibir ao nosso povo além de um só homem, conhecido apenas em Erhenrang.

Sei disso, comensal. O senhor gostaria de uma bela e vistosa prova e eu também gostaria de lhe oferecer uma. Mas não posso trazer a nave para cá até que a sua segurança e sua integridade estejam razoavelmente asseguradas. Preciso do consentimento e da garantia do seu governo o que quer dizer, imagino, de toda a cúpula dos comensais —, e anunciados publicamente.

Obsle pareceu triste, mas concordou:

É razoável.

Voltando para casa com Shusgis, que contribuíra para os debates apenas com o seu sorriso jovial, perguntei-lhe:

Sr. Shusgis, o que é o Sarf?

Um dos escritórios permanentes da administração interna. Cuida de documentos falsos, viagens sem autoriza­ção, substituições em trabalhos, falsificações... esta espé­cie de coisas... rebotalho, lixo. Isto é o que sarf significa em orgota: esgoto.

Então os inspetores são agentes do Sarf?

Alguns são.

E a polícia está parcialmente sob sua autoridade?

fiz a pergunta cautelosamente e assim também obtive a resposta.

Suponho que sim. Estou na administração externa e não posso, naturalmente, estar a par da administração in­terna também.

É realmente confuso; o que é, por exemplo, a Re­partição de Águas?

Assim, me desviei, como pude, do assunto Sarf. O que Shusgis não dissera sobre o assunto podia não significar absolutamente nada para o homem de Hain ou do afortu­nado Chuffewer, mas eu nascera na Terra. Não é uma coisa totalmente má ter ancestrais criminosos. Um avô incendiário pode legar aos descendentes um nariz que detecta a fumaça ao longe.

Tinha sido fascinante e divertido encontrar em Gethen governos tão semelhantes aos do nosso passado histórico na Terra — uma monarquia e uma genuína burocracia, de ven­to em popa. Esta última forma era também fascinante, mas menos divertida. Era estranho que na menos primitiva das duas sociedades é que a situação se tornasse mais sinistra. Assim, Gaum, que gostaria que eu fosse um mentiroso, era um agente da polícia secreta de Orgoreyn. Ele saberia que Obsle o identificara como tal? Certamente que sim. Era, então, o agente provocador? Estaria trabalhando a favor ou contra a facção de Obsle? Qual destas facções dentro desse Conselho dos Trinta e Três era controlada ou controlava o Sarf? Era bom ter esses assuntos esclarecidos, mas não era fácil deslindá-los.

Meu caminho, que por uns tempos parecera claro e cheio de esperança, estava se tornando tão tortuoso e blo­queado de mistérios como o fora em Erhenrang. Tudo cor­rera bem até o momento em que Estraven surgira ao meu lado como um espectro, pensei.

Qual é a posição de Lorde Estraven aqui em Mishnory? — perguntei a Shusgis, que se instalara, confortavel­mente, num canto do carro, a cochilar.

Estraven?! Harth, como é chamado aqui, você sabe. Não temos títulos ou linhagem em Orgoreyn; tudo isso foi derrubado com a Nova Era. Bem, ele é dependente do Comensal Yegey, creio.

Ele vive lá?

Acho que sim.

Estava para falar que estranhara que ele estivesse na casa de Slose, na noite anterior, e não na de Yegey hoje. Mas lembrando do nosso encontro matinal, achei coerente. A idéia de que ele estava se conservando afastado de mim intencionalmente me fazia sentir em posição incômoda.

Eles o encontraram — disse Shusgis se acomodando no assento — no litoral sul, numa fábrica de peixes enla­tados ou coisa parecida, e deram-lhe uma ajuda para sair da sarjeta. Algumas das pessoas do Mercado Comum, quero dizer. Naturalmente, ele lhes havia sido útil quando estava no conselho e como primeiro-ministro, e agora eles o apóiam. Fazem-no principalmente para chatear Mersen, creio. Ah! Ah! Ah! Mersen é espião de Tibe, e naturalmente ele pensa que ninguém sabe, mas todo mundo sabe, e ele não supor­ta ver Harth. Pensa que ele é ou um traidor ou um agente duplo. Como está na dúvida, não quer arriscar seu prestígio para descobrir. Ah! Ah! Ah!

E o senhor, o que pensa que é Harth?

Um traidor, Sr. Ai, pura e simplesmente. Vendeu informações do seu país no vale do Sinoth, em troca de evi­tar a subida de Tibe ao poder, mas não conseguiu seus obje­tivos. Ele teria se defrontado com uma punição pior do que o exílio se fosse aqui. Por Meshe! Se você joga contra os seus perde todo o jogo. Isto é o que esses sujeitos sem pa­triotismo não são capazes de ver. Apesar de que suponho que Harth não ligue muito para que lado joga, contanto que se conserve rastejando para qualquer forma de poder. Aqui, em cinco meses, ele não se saiu mal, como o senhor pode ver.

É... não se saiu tão mal assim...

Não confia nele também?!

— Não, não confio.

Estou satisfeito em ouvir isto, Sr. Ai. Não sei por que Yegey e Obsle se agarram àquele sujeito. Ele é um traidor confesso em proveito pessoal e tenta se agarrar ao seu trenó, Sr. Ai, até que possa continuar sozinho nele. É como eu vejo o caso. Bem, não sei se lhe daria rédeas livres se ele viesse me pedir por elas!

Shusgis bufou e acenou vigorosamente como que apro­vando sua própria opinião, e sorriu para mim, o sorriso de um homem cheio de virtudes para com um seu igual.

O carro deslizava suavemente através das ruas largas e bem-iluminadas. A neve matutina havia se derretido, exceto os amontoados junto às sarjetas; estava caindo uma chuva miúda agora. Os grandes edifícios do centro de Mishnory, escolas e repartições do governo estavam tão imprecisos através da chuva que, vistos assim, pareciam se dissolver. Os contornos eram vagos, as fachadas escorridas, úmidas, manchadas. Havia algo de fluido, insubstancial nesta cidade, paradoxalmente pesada, como que construída de monólitos, nesse Estado que era também monolítico no todo e nas par­tes. E Shusgis, meu jovial anfitrião, um homem pesado, subs­tancial, era também, com seus contornos imprecisos, um tan­to vago, ligeiramente irreal.

Desde que eu atravessara de carro, há quatro dias, os campos dourados de Orgoreyn, começando meu progresso triunfal em direção ao santuário intimista de Mishnory, sentia que me faltava algo. Mas o quê? Sentia-me ilhado. Não tinha mais sentido frio ultimamente. As salas eram decentemente aquecidas ali. Não tinha mais me alimentado com prazer; a comida orgota é insípida. Tudo bem. Mas por que as pessoas que eu encontrava, quer bem ou mal dispostas em relação a mim, me pareciam também insípidas? Havia personalidades marcantes entre elas Obsle, Slose, o belo e detestável Gaum —, no entanto, faltava a elas uma certa qualidade, uma certa dimensão como ser; elas não convenciam, não eram completamente sólidas, pensei. Era como se fossem seres sem alma.

Essa espécie de especulação exagerada fazia parte essen­cial do meu trabalho. Sem uma certa habilidade para isto, eu não poderia ter qualidades como móbile, e eu recebera um treinamento formal em Hain, onde me haviam reconheci­do como dotado de percepção extra-sensorial. O que se busca com isto pode ser descrito como a percepção intuitiva de uma inteireza moral; e ela deve se expressar, além do mais, não em símbolos racionais mas em metáforas. Eu nunca fora um sensitivo muito notável e nesta noite, muito cansado, eu duvidava de minhas próprias intuições.

Quando me encontrei nos meus aposentos, tomei um banho bem quente. Mas mesmo assim permaneceu em mim um vago mal-estar, como se aquela água quente não fosse real e palpável, e não se pudesse confiar nela.

 

 

                     Diário de um exilado

Mishnory. Streth susmy (6° dia do segundo mês de outono). Não tenho muitas esperanças; entretanto, tudo leva a crer que não devemos perdê-las. Obsle pechincha e bar­ganha com seus companheiros comensais; Yegey usa da li­sonja; Slose faz prosélitos e a força da sua causa ganha vigor. São homens astutos e têm sua facção sob controle. São ape­nas sete, dos Trinta e Três, da facção Mercado Comum, e de toda a confiança; quanto aos demais, Obsle pensa em ganhar o apoio certo de dez, o que lhe dá a maioria por um fio.

Um deles parece ter um interesse autêntico no Enviado: é o Comensal Ithepen, do distrito de Eynyen, que ficou muito curioso sobre sua missão, desde quando trabalhava para o Sarf e tinha o encargo de censurar as emissões de rádio que eram captadas de Erhenrang. Ele parece carregar o peso dessas supressões na consciência. Propôs a Obsle que os Trinta e Três anunciem seu convite à nave estelar, não apenas aos seus compatriotas, mas também a Karhide, soli­citando a Argaven juntar-se a este convite. Um plano real­mente nobre, mas que não será executado. Não irão pedir a Karhide para juntar-se a eles em coisa alguma.

Os homens do Sarf, entre trinta e três comensais, naturalmente opõem obstáculos à presença do Enviado e à sua missão aqui. Quanto aos indecisos e indefinidos que Obsle espera conquistar, acho que temem o Enviado, tanto quanto Argaven e sua corte o temiam, apenas com uma diferença: Argaven o considerava louco como ele próprio, enquanto aqui eles o julgam mentiroso, como eles o são. Temem estar engolindo um sapo em público, o que já fora recusado por Karhide, uma farsa, talvez inventada por Karhide. Eles fazem o convite e o fazem publicamente e o que vai acontecer ao seu prestígio pessoal, se isto falhar e a nave estelar não aparecer? Na verdade, Genly Ai exige de nós demasiada confiança. Para ele, claro, não é demasiada.

Obsle pensa, como Yegey, que uma maioria do Con­selho dos Trinta e Três será persuadida a confiar nele. Não sei bem por que eu tenho menos esperanças do que eles; talvez, no fundo, não deseje que Orgoreyn tenha uma ati­tude mais esclarecida que Karhide, enfrentando os riscos e ganhando a parada, deixando Karhide na sombra. Se essa inveja é patriótica, está chegando tarde; logo que vi a inten­ção de Tibe em me expulsar, fiz tudo o que pude para asse­gurar a entrada do Enviado em Orgoreyn, e, aqui no exílio, não medi esforços para conquistá-los para sua causa.

Graças ao dinheiro que ele me trouxe, dado por Ashe, vivo independente agora, como "unidade" e não como "dependente".

Não vou mais a banquetes. Não sou visto em público com Obsle ou outros membros de apoio do Enviado e não o tenho visto, mesmo, há quase meio mês, desde o seu se­gundo dia em Mishnory. Ele me entregou o dinheiro de Ashe como quem paga uma quantia estipulada a um assas­sino profissional. Nunca estive tão ofendido como então, e insultei-o deliberadamente. Eu sabia que estava zangado, mas não estou certo de que ele tivesse compreendido o insulto ele pareceu aceitar meu conselho, a despeito da maneira como o dei. Quando a minha indignação esfriou, senti isto, e fiquei preocupado. Seria possível que durante toda a sua estadia em Erhenrang ele buscasse meu conselho, sem saber como dizer-me que ele o queria? Se assim foi, então ele não entendeu nada do que lhe dissera, especialmente no dia da parada, à noite, sentados à lareira do palácio.

Seu orgulho pessoal deve ter base própria; é construído e sustentado, embora de modo diferente do nosso; enquanto eu pensava estar sendo grosseiro e vulgarmente franco com ele, talvez me achasse excessivamente sutil e confuso. Seu desajeitamento é ignorância. Sua arrogância também é ignorância. Ele não sabe quem somos, como nós ignoramos o que ele é. Ele é, na realidade, um completo alienígena, e eu sou um idiota, deixando minha sombra obscurecer a luz da esperança que ele nos trouxe. Tenho que reprimir a minha vaidade humana. Tenho que me afastar do seu caminho, pois está claro que é isto que ele deseja. Ele está certo. Um trai­dor exilado não é um bom defensor de sua causa.

De acordo com a legislação orgota que determina que cada "unidade" deve ter uma ocupação, trabalho numa fá­brica de plástico, da hora oitava até o meio-dia. É um tra­balho fácil: manobro uma máquina que liga peças de plástico para formar pequenas caixas transparentes que não sei para que são usadas.

De tarde, livre de ocupações, retomei as antigas dis­ciplinas físicas e mentais que aprendi em Rotherer. Fiquei contente em ver que não perdi minhas habilidades na con­centração da força de dothe ou em entrar em transe. Mas saio dele sem benefícios reais, assim como no treino de quie­tude e jejum. Parece que nunca os aprendi e tenho que co­meçar tudo de novo, como uma criança. Jejuei um dia, e como minhas entranhas protestaram! Imagino uma semana! Um mês!

As noites estão geladas agora; hoje à noite um vento duro traz chuva gelada. Toda a noitinha fiquei pensando em Estre, pois o som do vento aqui se assemelha ao de lá. Es­crevi para meu filho uma longa carta. Enquanto escrevia, senti, de novo, a presença de Arek, como se estivesse vivo, ao meu lado. Por que, afinal, escrevo estes apontamentos? Para meu filho ler? Não vai lhe fazer nenhum bem. Talvez para estar em contato com minha terra, usando minha pró­pria língua.

Harhahad susmy (9.° dia do segundo mês do outono). Nenhuma notícia do Enviado foi até agora emitida pelo rá­dio, nenhuma palavra. Fico pensando se Genly Ai percebe que em Orgoreyn, a despeito de todo aquele aparato gover­namental, nada é feito visivelmente, nada é dito em voz alta. A máquina governamental esconde as maquinações políticas. Tibe quer ensinar Karhide a mentir. Toma lições com Orgo­reyn; sem dúvida, uma boa escola. Mas creio que teremos dificuldades em aprender a mentir, tendo praticado há tanto tempo a arte de fazer rodeios em torno da verdade sem alcançá-la; contornando-a, mas sem mentir.

Uma grande operação de saque feita pelos orgotas atra­vés do Ey queimou os celeiros de Tekember. Exatamente o que o Sarf quer e o que Tibe deseja. Aonde isto vai nos levar?

Slose cabalizou todo o seu misticismo yomesh para as afirmações do Enviado e interpreta a vinda dos ecúmenos como a vinda do reino de Meshe entre nós; com isto se afasta da realidade.

"Devemos parar essa rivalidade com Karhide antes de o Novo Homem aparecer", diz ele, "devemos limpar nos­sos espíritos e prepará-los para sua vinda. Temos que nos livrar do orgulho, proibir todos os atos de vingança e nos unirmos, sem inveja, como irmãos de um mesmo lar."

Mas como? Como quebrar esse círculo vicioso?

Guyrny susmy (10.° dia do segundo mês do outono). Slose chefia um comitê que propõe suprimir as peças obsce­nas representadas nas casas públicas de kemmer. Elas devem ser semelhantes às huhuth karhideanas. Slose se opõe a elas porque são vulgares, baixas e blasfemas. Mas opor-se a algo é mantê-lo.

Dizem que "todos os caminhos levam a Mishnory". Certo, se você volta as costas a Mishnory e se afasta de lá, ainda está no seu caminho. Opor-se à vulgaridade é, inevita­velmente, ser vulgar. Você deve procurar outro caminho, ter outro objetivo, assim você pode trilhar outra estrada.

Hoje, Yegey falou na reunião dos Trinta e Três:

"Eu me oponho terminantemente ao bloqueio da ex­portação de cereais a Karhide e ao espírito de competição que o motiva".

Correto, mas ele não vai se libertar da estrada de Mish­nory indo por este caminho. Tem que apresentar a outra alternativa. Orgoreyn e Karhide têm que mudar o rumo que ambos estão tomando devem procurar outra direção e quebrar esse círculo maléfico. Yegey, assim penso, deveria falar apenas do Enviado e nada mais. Ser um ateísta é man­ter Deus presente. Sua existência ou não-existência leva à mesma coisa no plano da prova. Assim, "prova" não é uma palavra que se use bastante entre os handdaratas, que esco­lheram não encarar Deus como um fato, sujeito tanto à prova quanto à fé, e eles quebraram o círculo que os prendia e saíram livres.

Saber quais as perguntas que são irrespondíveis e não responder a elas esta qualidade é muito útil em tempos de tensão e de trevas.

Tormenbod susmy (13.° dia do segundo mês do ou­tono). Meu mal-estar aumenta. Nenhuma palavra sobre o Enviado foi proferida ainda no rádio pela Emissora Central. Nenhuma das notícias que costumávamos irradiar em Erhenrang foi jamais liberada aqui e os boatos sobre recepções ilegais de emissões radiofônicas nas fronteiras e as histórias de viajantes e comerciantes nunca se espalharam muito por aqui. O Sarf tem um completo controle sobre as comunica­ções, mais do que eu imaginava ser possível. Isso é assus­tador.

O rei e a Kyorremy de Karhide têm bastante controle sobre o povo, mas muito pouco sobre o que ouvem e ne­nhum sobre o que dizem. Aqui o governo pode controlar não só os atos como também o pensamento. É óbvio que ninguém deveria ter tal poder sobre os outros.

Shusgis e os outros andam abertamente com Genly Ai pela cidade. Fico pensando se ele percebe que esta abertura esconde o fato de que ele é, na realidade, um desconhecido. Ninguém sabe que está aqui. Perguntei aos meus companheiros na fábrica e não sabem de nada. Pensam que estou fa­lando de algum fanático e louco sectário de Yomesh. Não há nenhuma informação, nenhum interesse, nada que possa ajudar sua causa ou proteger sua vida. É uma pena que ele se pareça tanto conosco. Em Erhenrang, o povo o apontava na rua porque sabiam algo dele, falavam dele e sabiam que ele lá estava. Aqui, onde sua presença é mantida em segredo, ele passa sem ser notado. Eles o olham do modo como o fiz pela primeira vez: um jovem forte e moreno, um pouco fora do comum quanto à altura e com aparência de estar entrando em kemmer. Estudei os dados fornecidos pelos médicos, no ano passado, e nele as diferenças são marcantes. Não são superficiais. Deve-se conhecê-lo para saber o quanto ele é alie­nígena. Por que, então, eles o escondem? Por que um dos comensais não força a mão e fala dele em público ou pelo rádio? Mesmo Obsle, por que está silencioso? Por medo, é claro. Meu rei temia o Enviado; esses camaradas daqui te­mem uns aos outros. Creio que eu seja a única pessoa em quem Obsle confia, porque sou um estrangeiro. Ele sente prazer na minha companhia e eu na dele; muitas vezes pe­diu-me conselhos, com toda a franqueza. Mas quando eu o pressiono para falar, para despertar o interesse público como uma defesa contra as intrigas entre facções, ele não me atende.

"Se toda a comensalidade estivesse de olho no Envia­do, o Sarf não ousaria tocar nele, ou em você."

Obsle suspira:

"Sim, eu sei, mas não podemos fazê-lo, Estraven. O rádio, boletins impressos, periódicos científicos, tudo está nas mãos do Sarf. Que é que posso fazer? Discursos nas esquinas como algum pregador fanático?"

"Bem", respondo-lhe, "pode-se fazer algo como falar ao povo, pôr em marcha uma onda de rumores; eu tive que fazer uma coisa assim, ano passado, em Erhenrang. Fazer com que o povo faça perguntas para as quais você tem res­posta, isto é, o Enviado as tem."

"Se ao menos ele trouxesse aquela danada da nave para cá, para que tivéssemos algo para mostrar ao povo... Mas como está..."

"Ele não trará a nave aqui a não ser que ele saiba que vocês estão agindo de boa fé."

"E não estou?!", exclama Obsle inchando como um sapo. "Não gastei todo o meu tempo o mês passado neste assunto? Boa fé! Ele espera que acreditemos no que diz e, em troca, não confia em nós?"

"Ele deveria?"

Obsle bufa, mas não replica. Ele é o mais honesto dos membros do governo orgota que conheço.

Odgetheny susmy (14.° dia do mês do outono). Para ser uma alta patente no Sarf tem-se que possuir, assim me pa­rece, uma certa forma complexa de estupidez. Gaum é um bom exemplo. Ele me encara como um agente de Karhide tentando conduzir Orgoreyn a uma tremenda perda de pres­tígio, persuadindo seu governo a acreditar na farsa de um enviado do Conselho Ecumênico; ele pensa que passei meu tempo como primeiro-ministro na preparação de tal plano. Por Deus! Tenho coisa melhor a fazer do que gastar meu prestígio com a ralé. Mas isto é uma coisa elementar que ele não está capacitado para ver. Agora que Yegey, aparen­temente, se libertou de mim, Gaum pensa que eu posso ser comprado e assim se preparou para fazê-lo à sua própria maneira. Ele tem me observado ou mandou me espionar, de modo que ficou sabendo que eu deveria entrar em kemmer no dia 12 ou 13; assim, a noite passada, ele me apareceu em pleno kemmer, induzido por hormônios, evidentemente, pronto para me seduzir. Encontramo-nos, por acaso, na Rua Pyenfen.

"Harth! Não o tenho visto há muito tempo; por onde tem se escondido ultimamente? Então, vamos tomar uma cerveja juntos?"

Escolheu uma cervejaria próxima de uma casa pública de kemmer. Pediu aqua-vita e não cerveja. Ele não queria perder tempo. Após o primeiro copo, colocou sua mão na minha e aproximando seu rosto do meu, murmurou:

"Não nos encontramos por acaso, estava à sua espera. Eu o desejo como meu parceiro esta noite." E me chamava pelo primeiro nome.

Eu só não cortei sua língua porque desde que saí de minha terra não carrego punhal comigo. Disse-lhe que tinha intenção de abster-me de kemmer enquanto estivesse no exílio. Mas ele falava amorosamente, segurando minhas mãos e se transformando em fêmea a olhos vistos.

Gaum é belíssimo em kemmer e ele contava com essa beleza e com sua força sexual, sabendo, suponho, que sendo handdarata eu não usaria drogas antiafrodisíacas e tentaria a abstinência, com muitos aspectos em desvantagem. Ele se esqueceu, porém, que a aversão é tão forte quanto qualquer droga.

Libertei-me das suas garras, pois, naturalmente, já esta­va me excitando, e abandonei-o, com a sugestão de que de­veria procurar a casa de kemmer ali ao lado. Olhou-me com ódio, mas era de dar pena. Ele estava realmente em kemmer e seu desejo era intenso, embora falso na sua fina­lidade. Pensou, realmente, que eu iria vender-me tão barato? Deve pensar que sou muito instável, o que me torna, real­mente, inquieto. Danem-se esses sujeitos sujos! Não há se­quer uma alma limpa entre eles!

Odsordny susmy (15.° dia de outono). Esta tarde, Genly Ai falou na reunião dos Trinta e Três. Não permitiram en­trada ao público, nem emissão pelo rádio, mas Obsle gravou a sessão e depois pude ouvir a fita.

O Enviado falou bem, com uma candura e insistência comoventes. Há nele uma inocência que eu achava estranha e infantil; mas, em outras ocasiões, essa aparente candura revela uma disciplina de conhecimento e uma grandeza de finalidades que me impressionam. Através dele sinto que fala um povo perspicaz e magnânimo, uma raça que juntou numa única sabedoria todas as velhas, terríveis e profundas experiências de vida. Mas ele é jovem, e, assim sendo, impaciente e sem vivência. Ele está em nível mais alto que nós, e tem uma visão ampla, maior que a nossa, mas ele próprio, como pessoa humana, tem somente a dimensão de um homem. Expressa-se, agora, melhor que em Erhenrang, de maneira mais simples e mais sutil; aprendeu seu ofício trabalhando nele, como todos nós o fazemos.

Seu discurso era freqüentemente interrompido pelos membros da facção dominante, que pediam ao presidente para fazer calar aquele lunático, expulsá-lo e dar andamento aos outros assuntos. O Comensal Yemenbey era o mais de­sordeiro e provavelmente o mais espontâneo. E vociferava para Obsle: "Você não está engolindo todo esse blá-blá-blá?!" Havia interrupções metodicamente feitas por Kaharosile, mas era difícil segui-las na gravação. De memória:

Alshel, presidindo: Sr. Enviado, achamos que as informações e propostas feitas pelos senhores Obsle, Slose, Ithepen, Yegey e outros são extremamente interessantes e estimulantes. Entretanto, precisamos de um pouco mais de material para levar isto avante. (Risadas.) Desde que o soberano de Karhide tem em seu poder o seu veículo, trancado de modo que não podemos vê-lo, seria possível, como foi sugerido, o senhor fazer descer a... nave estelar? Como a chama mesmo?...

Genly Ai: Nave estelar é um bom nome, Sr. Alshel.

Alshel: Sim? Mas como vocês a chamam?

Genly Ai: Bem, em termos técnicos é uma Nafal 20, de vôo interestelar, sob controle manual e de concepção dos celtianos.

Alshel: Por favor... Bem, se pudesse ter essa nave aqui embaixo, no solo que pisamos, como diria, para que tivéssemos alguma prova substancial...

Voz: Vísceras de peixes é que são substanciais!

Genly Ai: Gostaria muito de trazer à terra essa nave, Sr. Alshel, como prova e testemunho de nossa boa fé recíproca. Aguardo apenas seu pronunciamento público deste acontecimento.

Kaharosile: Comensais, vocês não estão vendo do que se trata? Não é uma piada estúpida. Tem a intenção de ser uma caçoada pública de nossa credulidade, nossa es­tupidez, maquinada com uma audácia incrível por esta pes­soa que está em frente a nós. Vocês sabem que ele vem de Karhide, sabem que é um agente karhideano. Podem ver que ele é um deformado sexual e que devido à influência do culto das trevas é deixado em Karhide sem cura, e às vezes é até criado artificialmente para as orgias sexuais dos áugures. E no entanto, quando ele diz "eu sou dos espaços side­rais", alguns dos senhores fecham os olhos, curvam a cabeça e realmente acreditam! Nunca pensei que isto fosse possí­vel... etc., etc.

A julgar pela gravação, Ai suportou insultos e agres­sões com paciência. Obsle disse que ele se saiu bem. Eu ficara vagando fora do salão, para vê-lo à saída da sessão. Ai tinha um ar severo e meditativo. E com razão. Minha inutilidade é insuportável. Fui eu quem pôs esse mecanismo a funcionar e agora não posso controlar sua evolução. Pe­rambulo pelas ruas com o capuz abaixado para ver, de relance, o Enviado. Para essa vida cheia de subterfúgios e inútil, atirei fora meu poder, meu dinheiro e meus amigos. Que tolo você é, Therem! Por que nunca posso colocar meu cora­ção numa causa plausível?

Odeps susmy. O audisível que Genly Ai colocou, agora, nas mãos dos Trinta e Três, aos cuidados de Obsle, não vai mudar nada na mente deles. Se os matemáticos reais não compreenderam seu princípio, então os engenheiros e matemáticos orgotas compreenderão ainda menos, e nada será confirmado. Uma lógica admirável se fosse um mundo de áugures e de handdara, mas infelizmente temos de tocar para a frente, provando e desprovando, perguntando e respondendo.

Uma vez mais pressionei Obsle quanto à exeqüibilidade de Ai emitir pelo rádio um comunicado com sua nave este­lar, despertá-los do sono e conversar com os comensais pelo rádio em plena reunião dos Trinta e Três. Desta vez, Obsle tinha um argumento à mão para justificar não fazê-lo.

"Escute, caro Estraven, o Sarf controla nosso rádio, você já sabe disto. Eu não tenho a menor idéia de quais os homens do setor de comunicação que servem ao Sarf como agentes; a maior parte, me parece, pois é um fato que eles manobram as recepções e emissões em todos os níveis desde os técnicos até os operários. Eles poderiam e o farão — blo­quear ou falsificar qualquer transmissão que recebêssemos, se é que receberíamos alguma. Você pode imaginar tal coisa, numa reunião? Nós, a favor de seres espaciais, vítimas de nosso próprio truque, escutando com o fôlego suspenso a um amontoado de estática, e nada mais. Nenhuma resposta, nenhuma mensagem?"

"E você não tem dinheiro para contratar algum téc­nico que seja leal, ou mesmo subornar, chantagear um dos deles?", perguntei.

Inútil. Ele teme por seu prestígio pessoal. Seu compor­tamento em relação a mim também já mudou. Se ele cancela a recepção para o Enviado hoje à noite as coisas estarão em maus lençóis.

Odarhad susmy. Ele cancelou a recepção.

Esta manhã fui ver o Enviado, no adequado estilo orgota. Não abertamente na casa de Shusgis, onde o pessoal deve estar infiltrado de agentes do Sarf, Shusgis sendo um deles; na rua, por acaso, à moda de Gaum, disfarçado e à sorrateira:

"Sr. Ai, quer me ouvir por um momento?"

Olhou em volta, espantado, e ao me reconhecer se alar­mou. Após uns instantes, exclamou:

"Com que finalidade, Sr. Harth? O senhor sabe que não posso confiar no que diz, desde Erhenrang."

Na sua ingenuidade havia uma certa dose de percepção das coisas. Ele sabia que eu desejava dar-lhe um conselho e não pedir-lhe algo; falou assim para poupar meu orgulho. Respondi-lhe:

"Isto aqui é Mishnory e não Erhenrang, mas o peri­go a que está exposto é o mesmo. Se não pode persuadir Obsle ou Yegey a fazer um contato pelo rádio com sua nave para que as pessoas que nela estão possam fazer uma decla­ração em apoio às suas, e ao mesmo tempo se conservarem a salvo, então acho que deve usar o seu próprio audisível e chamar a nave imediatamente. O risco que ela vai correr é menor que o risco que você está correndo agora, sozinho."

"Os debates dos comensais sobre minhas mensagens ficaram em segredo. Como sabe sobre minhas declarações, Sr. Harth?!"

"Por que fiz disso a razão das minhas preocupações...

"Mas isto não é preocupação sua, aqui, senhor. É dos comensais de Orgoreyn."

"Digo-lhe que corre risco de vida, Sr. Ai", voltei a dizer-lhe.

A isto ele nada retrucou. Deixei-o, então.

Eu devia ter-lhe falado dias atrás. Agora é muito tarde. O medo destrói sua missão e minhas esperanças outra vez. Medo, não do que vem de fora, do não-terrestre. Não aqui. Esses orgotas não têm senso nem grandeza de espírito para temer o que é verdadeiro e imensamente estranho. Eles nem sequer sabem vê-lo. Olham para um homem de outros mundos e vêem o quê? Um espião de Karhide, um pervertido, um agente, uma triste e mesquinha unidade política como eles.

Se ele não mandar buscar a nave imediatamente será tarde demais. Talvez já seja. E a culpa é minha. Fiz tudo errado.

 

 

                         O tempo e as trevas

Extraído dos Ditos do Alto Sacerdote Tuhulme, um livro do culto yomesh, escrito no Orgoreyn setentrional, há novecentos anos.

 

Meshe é o cerne do tempo. A época de sua vida em que ele passou a ver tudo com clareza foi quando já vivia na Terra há trinta anos; e após a revelação, viveu mais trinta anos. Assim, a visão ocorreu no meio da sua existência.

Todas as idades, até a revelação, foram de tão grande extensão de tempo quanto as que viriam depois; assim a revelação ocorreu no meio do tempo e, neste cerne, não há tempo passado nem tempo futuro. Existe em qualquer parte do tempo que passou como em qualquer parte do tempo que está por vir. Não foi e não será. É tudo. Tudo é visto.

O pobre homem de Sheney chegou a Meshe se lamen­tando que lhe faltava alimento para sustento do filho de sua carne, cereais para moer, pois as chuvas tinham apodre­cido as sementes no solo de sua terra e toda a sua gente passava fome. Meshe disse-lhe: "Cave nos campos pedrego­sos de Tuerresh e lá vai encontrar um tesouro em prata e pedras preciosas, pois lá eu vi um rei enterrá-lo há dez mil anos, quando outro rei, seu vizinho, tramou uma luta con­tra ele".

O pobre homem de Sheney cavou nas terras de Tuer­resh e desenterrou no local indicado por Meshe um amon­toado de jóias antigas. Ao vê-las, gritou de alegria. Meshe, porém, que estava ao seu lado, chorou ao ver a sua reação, dizendo: "Vi um homem matar seu próprio irmão por uma dessas pedras buriladas. Isto, há dez mil anos, e os ossos do homem assassinado vão jazer neste túmulo onde está o te­souro. Ó criatura de Sheney, eu sei também onde seu túmulo está; vejo-o estendido nele".

A vida de cada um está no cerne do tempo, pois tudo foi visto na visão de Meshe e está dentro do seu olho. Somos discípulos da sua visão. Nossos feitos são sua revelação; nosso ser, sua sabedoria.

Uma árvore de hemmen, da floresta de Ornen, que se estende por mais de cem milhas de comprimento e de lar­gura, era muito velha e muito frondosa, com centenas de ramos, e em cada ramo milhares de galhos, e em cada galho centenas de folhas. A árvore falou para si própria: "Todas as minhas folhas são vistas, exceto uma; esta está ocultada pela sombra das outras; esta folha eu a mantenho em segre­do, só para mim. Quem irá vê-la na escuridão das outras folhas? E quem irá contá-las?" Meshe atravessou a floresta de Ornen, nas suas caminhadas, e desta árvore arrancou esta única folha.

Nenhuma gota de chuva que cai nas tempestades de outono já caiu anteriormente, e a chuva tem caído, cai e cairá em todos os outonos de todos os anos. Meshe conhece cada gota onde caiu, cai e cairá. Nos seus olhos estão todas as estrelas e a escuridão em que elas se situam, e, no entan­to, tudo é claro.

Respondendo às perguntas do Lorde de Shorth, no mo­mento da revelação, Meshe viu os céus como se fossem um único sol. Acima da terra e abaixo da terra, toda a esfera celeste era tão brilhante quanto a superfície do sol e não havia escuridão. Pois ele viu não o que foi nem o que será, mas o que é. As estrelas que desapareceram e com elas sua luz estavam presentes no seu olhar e toda a sua luz brilhava naquele instante[10].

Trevas existem apenas para os olhos dos mortais que pensam que vêem, mas nada vêem. Na visão de Meshe não existem trevas. Assim, aqueles que invocam as trevas[11] são chamados de loucos e expulsos do seio de Meshe, pois eles chamam de princípio e fim tudo o que não existe. Não há princípio nem fim, pois tudo está no centro do tempo. Assim como todas as estrelas podem ser refletidas numa úni­ca gota de chuva ao cair da noite, assim também todas as estrelas têm em si refletida a gota de chuva. Não há trevas nem morte, pois tudo existe à luz do momento presente e seu começo e fim são um só. Um centro, uma visão, uma lei, uma luz. Olhe, agora, para os olhos de Meshe!

 

 

                     Prisioneiro nos campos da morte

Alarmado pelo aparecimento repentino de Estraven e pela sua familiaridade com os meus negócios, especialmente pela pressa insistente dos seus avisos, aluguei um táxi e diri­gi-me para a ilha de Obsle, a fim de saber dele por que Estraven sabia tanto e por que subitamente saíra do anoni­mato, insistindo para que eu agisse exatamente ao contrário do que Obsle me recomendara. O comensal não estava e o vigia não sabia onde encontrá-lo ou quando regressaria. Fiz o mesmo com Yegey, também sem sorte. Caía uma nevasca forte, a mais pesada daquele outono; meu motorista recusou-se a seguir adiante da casa de Shusgis porque não tinha cor­rentes para os pneus. A noite também não consegui me comunicar por telefone com Obsle, Yegey ou Slose. Na hora do jantar, Shusgis me explicou: um festival do culto yomesh estava se desenrolando, a Solenidade de Todos os Santos e Defensores do Trono, e as altas patentes deveriam ser vistas e comparecer aos templos.

Ele encontrou explicação também para o comportamen­to de Estraven de modo bastante perspicaz, como sendo o de um homem que já fora poderoso e que agora, decaído, se agarrava a qualquer coisa, pessoa ou acontecimento para influenciá-los, cada vez mais desesperada e menos racional­mente, à proporção que o tempo passava e ele sentia que estava se afundando num anonimato impotente. Concordei em que isto explicava o comportamento ansioso, quase de­sesperado, de Estraven. Mas esta ansiedade havia me con­tagiado. Senti-me muito pouco à vontade durante aquela longa refeição. Shusgis falava ininterruptamente, comigo e com seus subordinados e aduladores, à mesa. Nunca eu o tinha visto assim, tão prolixo e incansavelmente jovial. Quando terminou o jantar, já era bastante tarde para sair e, de qualquer forma, a solenidade iria reter os comensais até tarde, mesmo depois da meia-noite, segundo Shusgis.

Decidi não cear e fui para a cama cedo. Entre meia-noite e o alvorecer, fui acordado por desconhecidos e infor­mado de que estava preso. A seguir fui conduzido por guar­das armados até a Prisão de Kundershaden.

Kundershaden é muito antiga, uma das poucas constru­ções velhas, remanescentes em Mishnory. Eu a observara freqüentemente nas minhas caminhadas pela cidade; era um lugar lúgubre, sujo e cheio de torres, muito diferente dos pálidos edifícios vistosos da comensalidade. É o que parece ser: uma cadeia. Não é um disfarce, com nome de outra coisa, uma fachada, um pseudônimo. É real, uma coisa real, exatamente aquilo que as palavras representam.

Os guardas, um bloco sólido e maciço, empurraram-me aos trancos pelos corredores e deixaram-me só numa peque­na saleta, muito suja e fortemente iluminada. Dentro de poucos instantes, um outro lote de guardas entrou escoltan­do um homem de cara magra, com ar de autoridade. Ele dispensou todos, exceto dois deles. Perguntei-lhe se poderia enviar uma mensagem ao Comensal Obsle.

O Comensal Obsle sabe de sua detenção.

Sabe?! — espantei-me, imbecilmente.

Meus superiores agem de acordo com as ordens dos Trinta e Três. Vamos ao que interessa.

Os guardas me seguraram. Resisti-lhes dizendo, bastan­te aborrecido:

Não precisam me intimidar. Responderei ao inter­rogatório!

O homem de rosto fino não prestou atenção; chamou de volta outro guarda e os três me amarraram numa mesa reclinável, despiram-me e injetaram-me um líquido, suponho que o soro da verdade.

Não sei o tempo que durou o interrogatório ou o que eles me perguntaram, pois estava fortemente dopado todo o tempo e não me lembro de nada. Quando voltei a mim, não tinha idéia de quanto tempo fora detido em Kunder­shaden; quatro ou cinco dias, julgando pelas minhas condi­ções físicas, mas não estava bem certo. Ainda por algum tempo depois disso eu não sabia em que dia do mês estava, em que mês, na realidade mal reconhecia o ambiente em torno de mim.

Estava num caminhão de caravana, muito semelhante àquele que me levara do Kargav a Rer, mas na parte fechada e não na cabine do motorista. Havia cerca de vinte a trinta pessoas comigo, difícil dizer quantos, já que não havia ja­nelas e a luz se filtrava apenas por uma fresta na porta tra­seira, vedada por quatro camadas espessas de tela de aço. Evidentemente já estávamos em viagem quando recobrei a consciência; cada um tinha seu espaço definido, e no ar pai­rava um cheiro de vômito, suor e excreções insuportável. Ninguém conhecia ninguém. Ninguém sabia para onde ia. Quase não havia conversa. Era a segunda vez que me trancafiavam no escuro, com pessoas que não se queixavam, in­teiramente desesperançadas. Eu reconhecia, agora, o alerta que me fora dado na minha primeira noite neste país, como um sinal que eu obstinadamente ignorara. Eu ignorara o subterrâneo negro e havia ido procurar a essência desse país, acima do solo, à luz do dia. Era por isso que nada me pa­recia real ali. O real era aquilo, agora. Percebi que o cami­nhão estava indo em direção leste e não pude me libertar desta sensação, embora ficasse claro que ele ia para oeste, cada vez mais para o interior de Orgoreyn. Nosso senso de orientação e de campo magnético fica prejudicado nos outros planetas, quando a inteligência não sabe compensar essa deficiência; o resultado é um profundo atordoamento, um sen­timento de que tudo, literalmente, tornou-se vago, impreciso.

Um dos prisioneiros morreu naquela noite. Ele tinha sido esbordoado e pisoteado no abdome e morreu de forte hemorragia anal e estomacal. Ninguém pôde fazer nada por ele; nem havia nada a fazer.

Um vaso plástico com água havia sido empurrado em nossa direção algumas horas antes, mas há muito ele estava vazio. O homem estava ao meu lado; tomei sua cabeça e a apoiei nos meus joelhos, para que pudesse respirar melhor. Assim morreu. Estávamos todos nus, mas seu sangue me recobria todo, formando como um vestuário a me revestir pernas, coxas e mãos, em camadas escuras, duras, secas e sem calor.

À noite, o frio era cortante, e tivemos que nos amon­toar para conseguir um certo aquecimento. O cadáver foi afastado, sendo excluído do agrupamento humano. Ficamos acocorados juntos, balançando e sacudindo os corpos como um só bloco, em movimento durante toda a noite. A escuri­dão era completa dentro daquele caixão de aço. Estávamos numa estrada rural e nenhum outro veículo nos acompanha­va; mesmo com o rosto colado na grade, nada se via lá fora, a não ser a escuridão e uma vaga bruma de neve caindo.

Neve caindo, neve recém-caída, neve congelada, neve misturada a recentes pancadas de chuva, neve recongelada... a língua orgota e a karhideana têm uma palavra própria para designar cada uma destas expressões. Em karhideano que eu domino melhor que o orgota cheguei a contar sessenta e duas palavras para as várias espécies, estados e qualidades de neve. Há também outro conjunto de palavras para neva­das; outro para gelo, um conjunto de vinte ou mais que definem o grau de temperatura, como é a força do vento, e que espécie de precipitação está ocorrendo.

Sentado no chão, comecei a fazer listas mentais destas palavras, naquela noite. Metodicamente, sempre que me lembrava de uma palavra nova, recomeçava a lista em ordem alfabética.

Muito depois da aurora o caminhão parou. Gritaram através da janelinha que havia um morto lá dentro: "Ve­nham retirá-lo"... Cada um de nós gritava, berrava, batia nas paredes e na porta, fazendo um tal pandemônio ali den­tro que mal podíamos suportar. Mas ninguém apareceu. O caminhão ficou lá parado, por horas. Afinal, som de vozes lá fora. O caminhão pôs-se em movimento, derrapando no gelo, e partiu de novo. Podia-se perceber através da janela que já era manhã ensolarada e dia alto e que estávamos atra­vessando colinas com florestas.

Assim continuamos por mais três dias e noites; era o quarto, desde o meu despertar. O caminhão não parou em nenhum ponto de inspeção e creio que nunca passou dentro de qualquer cidade ou vilarejo. Seu percurso era errático e furtivo. Havia paradas para mudança de motorista e recar­ga de bateria; havia outras mais prolongadas por razões que não discerníamos no interior. Dois dias ele permaneceu pa­rado, do meio-dia ao anoitecer, como se estivesse abandona­do, e então recomeçava sua marcha de novo, à noite. Uma vez por dia, cerca de meio-dia, um grande jarro de água era passado através de um alçapão na porta.

Contando o cadáver, havia vinte e seis de nós ali. Os gethenianos agrupam os valores não em dúzia e sim em números de treze, vinte e seis, cinqüenta e dois, talvez porque o ciclo lunar seja de vinte e seis dias, invariavelmente, que é o que serve de referência para fixar a duração do mês e o ciclo sexual.

O cadáver foi empurrado contra as portas de aço, na parte traseira, de modo que ficasse no local mais frio. Nós nos sentávamos ou acocorávamos, cada um no seu lugar, seu território, seu domínio, até de noite; quando o frio se tornava intolerável, nos juntávamos pouco a pouco e formáva­mos enfim um bloco só, ocupando um só espaço, aquecido no centro, mas frio na periferia. Havia bondade entre nós. Eu e outros nos revezávamos no centro; um velho e outro com uma tosse muito doentia foram reconhecidos natural­mente como os menos resistentes do grupo. Não lutávamos para conquistar esse lugar mais quente, nós o dividíamos na­turalmente todas as noites. É uma coisa espantosa essa bon­dade que o ser humano não perde. Espantosa, sobretudo quando, no frio e na escuridão, nus, é tudo o que nos resta. Nós, que somos ricos, tão cheios de força, acabamos com essa pequena dádiva e não temos nada além disso para trocar.

Apesar desse ajuntamento físico à noite, ficávamos dis­tantes em mente e espírito uns dos outros. Alguns estavam dopados pelas drogas, outros provavelmente tinham sido inutilizados mental e socialmente, todos haviam sido maltra­tados e injuriados; entretanto, era enfim bem estranho que essas vinte e cinco pessoas ali reunidas não falassem umas com as outras, nem mesmo para se injuriar. Havia bondade e tolerância, mas em silêncio, sempre em silêncio. Encurra­lados naquela fedorenta escuridão, partilhávamos da nossa mortalidade, éramos sacudidos e caíamos uns sobre os outros, atritados lado a lado pelo sacolejar do veículo, respirávamos o mesmo ar confinado e dividíamos o calor de nossos cor­pos como o fogo pode ser partilhado. Mas permanecíamos estranhos. Nunca soube o nome de nenhum deles.

Um dia, o terceiro, creio, quando o caminhão estava parado há horas, e eu já imaginava que eles simplesmente tinham nos abandonado em qualquer lugar deserto para apo­drecer, um deles começou a falar comigo. Discorria a respei­to de uma longa história sobre uma usina ao sul de Orgoreyn, onde trabalhava e tinha se metido em encrencas com um superintendente. Falava continuamente numa voz monótona e suave, colocando sempre a sua mão na minha, como para se certificar da minha atenção. O sol estava declinando, um raio penetrava pela fresta, e eu, subitamente, pude ver, mes­mo recuado, uma jovem suja, bonita, assustada, estúpida, olhando para mim enquanto falava, sorrindo timidamente em busca de consolo. O jovem orgota estava em kemmer e havia sido atraído por mim. Foi a primeira vez que algum deles pediu-me algo e eu não podia atender-lhe. Levantei-me e fui até a janelinha em busca de ar e fiquei olhando para fora, só retornando ao meu lugar depois de muito tempo.

Naquela noite o caminhão subiu e desceu ladeiras. De vez em quando parava inexplicavelmente. A cada parada um silêncio glacial, como que eterno, nos rodeava por fora do caminhão, o silêncio das vastidões, das alturas. O jovem em kemmer ainda permanecia ao meu lado e ainda procurava me tocar. Levantei-me de novo e fiquei contra a grade da janela, a respirar ar puro, que cortava minha garganta e os pulmões como uma lâmina. Minhas mãos, comprimidas con­tra a porta, tornaram-se dormentes e em breve senti que poderiam congelar. Minha respiração tinha feito como que uma pequena ponte de gelo entre meus lábios e a tela. Tive que parti-la com os dedos antes de voltar ao meu lugar. Quando me acocorei com os outros, comecei a tremer de frio, um tremor de uma espécie que até então não sentira ainda, com espasmos como convulsões de febre. O caminhão afinal recomeçou a viagem. O barulho e o movimento davam uma ilusão de calor, desfazendo aquele profundo silêncio glacial, mas eu ainda me sentia gelado. Pareceu-me que está­vamos em altitude bastante elevada, durante quase toda a noite, mas era difícil calcular, pois não se podia confiar nem na própria respiração, batidas cardíacas ou nível energético, dadas as circunstâncias em que estávamos sobrevivendo. Sou­be depois que havíamos atravessado o passo de Sembensyens e ultrapassado assim nove mil pés de altitude.

A fome não me incomodava demais. A última refeição sólida que fizera fora o jantar na casa de Shusgis. Eles devem ter me alimentado em Kundershaden, mas não me recordo disso. Comer não fazia parte dessa existência, dentro de um caixão de aço, nem eu chegava a pensar mais nisto. Mas a sede, por outro lado, é uma das condições básicas de vida. Uma vez por dia, numa parada qualquer, o alçapão, na parte traseira, era destrancado e por ele empurravam-nos o jarro plástico que era renovado com água e a nós devolvido, pe­netrando no ambiente com uma lufada de ar gelado. Não podíamos medir a quantidade de água que cabia a cada um. O jarro passava de mão em mão, dávamos três ou quatro goladas antes que nos fosse arrebatado por nosso vizinho. Ninguém era guarda de ninguém. Ninguém também poupava água para dar ao homem que tossia, agora com febre alta. Sugeri que isso fosse feito, todos ao redor concordaram com um aceno, mas na hora o acordo não foi cumprido. A água era partilhada de modo mais ou menos equitativo nin­guém tentava ultrapassar a sua quota, e acabava logo. Uma vez os três últimos ficaram sem uma gota quando a jarra chegou a eles; na vez seguinte, dois deles insistiram em ser os primeiros e os outros concordaram. O terceiro estava en­rodilhado, quieto no seu canto, e ninguém se preocupou em fazê-lo beber. Por que eu também não o fizera? Não sei. Era o quarto dia no caminhão e se o caso tivesse acontecido comigo, acho que não me importaria muito nem me esforça­ria para obter minha ração. Tinha consciência da sua sede e do seu sofrimento, do homem doente e dos outros, muito mais do que do meu próprio. Estava incapaz de fazer qual­quer coisa para aliviar o sofrimento alheio e aceitava esse fato, indiferentemente, como os outros. Sei que as pessoas podem se comportar de maneira muito diferente nas mesmas circunstâncias. Mas esse povo orgota era treinado, desde o nascimento, a uma disciplina de cooperação, obediência e submissão ao espírito de comunidade que provinha de escalões superiores. As qualidades como independência e decisão tinham se enfraquecido neles. Não tinham grande capacidade de encolerizar-se. Ali formavam um todo e eu era parte dele; os que estavam ali pensavam assim e isto era um refúgio e conforto à noite, o bloco compacto de corpos amontoados, cada um absorvendo a vida do outro. Mas não havia lide­rança ou chefia; era um bloco passivo.

Pessoas cuja vontade fosse mais aguçada e trabalhada, poderiam ter-se saído muito melhor: falado mais, partilhado da água com mais justiça, dado maior apoio ao doente e levantado o moral do grupo. Não sei bem. Sei apenas que era assim o comportamento lá dentro.

Na quinta manhã, se minha contagem estava correta, o caminhão parou. Ouvimos conversas lá fora e chamados, em voz alta, para lá e para cá. As portas traseiras foram destrancadas por fora e escancaradas. Um por um, desliza­mos para fora, alguns de quatro, outros pulando ou raste­jando no chão. Éramos vinte e quatro. Havia dois mortos, o cadáver antigo e um novo, o do homem que não bebera água nos últimos dois dias. Eles foram arrastados lá de dentro.

Estava frio do lado de fora e aquele ofuscante brilho luminoso da luz solar sobre a neve alvíssima foi como um choque sobre nós, que acabáramos de emergir daquele fétido caixão. Muitos começaram a chorar.

Ficamos em pé, agrupados ao lado do grande veículo, todos nus, fedorentos, com a nossa nudez exposta à cruel luz do dia. Eles nos enfileiraram e nos conduziram a um prédio, a algumas jardas de distância. As paredes metálicas, o telhado recoberto de neve, o terreno em torno, deserto naquela amplidão branca, a cordilheira alvíssima ao longe, quase invisível pela cintilação do sol, o céú infinito, tudo, tudo parecia flutuar e tremeluzir, cintilando com o excesso de luz.

Dentro de uma cabana de madeira fomos alinhados para nos lavarmos numa imensa tina coletiva, e todos, ávidos, começamos a beber a água do banho. Em seguida, fomos conduzidos ao edifício central, onde nos deram roupas de baixo, camisas cinzentas, calções, meias e botas de feltro. Um guar­da conferiu nossos nomes numa lista, já no refeitório, junto a aproximadamente uma centena de outros homens de cinza. Sentamo-nos a mesas aferrolhadas no chão e lá nos serviram o desjejum: mingau de cereais e cerveja. Ao término da refeição, os prisioneiros antigos e os novos foram divididos em pelotões de doze. Meu pelotão foi conduzido a uma serraria, a uma certa distância do edifício principal, dentro da área cercada. Fora dela e não muito distante, a floresta revestia as colinas, em direção ao norte, tão longe quanto a vista podia alcançar. Sob o comando de um guarda, começamos a carregar sacos de serragem da serraria para um de­pósito de madeira, onde ela era armazenada para o inverno. Não era fácil andar, curvar-se ou levantar pesos após aqueles dias passados no caminhão. Não nos deixavam ficar ociosos, mas também não forçavam nosso ritmo de trabalho.

Ao meio-dia nos serviam uma caneca cheia de orsb, uma bebida feita de cereal não-fermentado. Antes do cair da noite, éramos conduzidos de volta aos alojamentos e nos ser­viam um jantar, uma espécie de sopa de vegetais e cerveja. Ao escurecer, éramos trancafiados nos dormitórios, que permaneciam com as luzes acesas durante toda a noite. Dormía­mos em prateleiras fundas, pregadas ao longo das paredes do quarto, em duas fileiras. Os prisioneiros antigos ocupa­vam a prateleira superior, as mais disputadas, pois o calor emitido pelos corpos tende a subir no ar. Como colchão, cada um recebia, na porta, um saco de dormir. Eram grosseiros, fedorentos, com o cheiro dos outros, devido ao uso, mas conservavam o calor do corpo e aqueciam. O inconveniente para mim era seu tamanho pequeno. Um getheniano de porte médio poderia penetrar nele até a cabeça, inclusive, mas eu não conseguia, assim como não conseguia espichar-me com­pletamente no meu beliche.

Aquele lugar era chamado 3.a Fazenda Voluntária da Comensalidade de Pulefen, 30.° Distrito, na extremidade noroeste da zona habitável de Orgoreyn, limitada pelas montanhas Sembensyens, o rio Esagel e o litoral. É uma área esparsamente povoada, sem nenhuma cidade de importância. A cidade mais próxima é um lugarejo chamado Turuf, a muitas milhas na direção sudeste; eu nunca a vira.

A fazenda está situada no começo de uma vasta região florestal inabitada Tarrenpeth. Muito ao norte para as árvores de grande porte como o hemmen, o serem ou o vate negro a floresta era de uma só espécie de arbusto, uma conífera retorcida e raquítica, com uma altura de dez a doze pés, cheia de agulhas acinzentadas, o conhecido thore. O número de espécimes de plantas ou animais no planeta Inverno é relativamente pequeno. Mas cada espécie existe em grande abundância. Havia milhares e milhares de thores e nada mais naquela região, numa imensa floresta. Mesmo o deserto é cuidadosamente poupado aqui, e apesar de aquela floresta estar sendo devastada há séculos não há espaços desertos nela, nenhuma desolação, nenhuma área reduzida a tocos, nem encostas com erosão. Cada árvore era aproveitada, assim parecia, e não se desperdiçava nada, nem um punhado de serragem.

Havia na fazenda uma pequena fábrica, e quando o mau tempo impedia a saída dos prisioneiros para a floresta, trabalhávamos na serraria ou na fábrica, aproveitando lascas, cascas e serragem, fazendo compensados em formatos diferentes e extraindo do thore uma resina usada para plásticos. O trabalho era uma atividade autêntica e não éramos sobre­carregados. Se nos dessem um pouco mais de alimentação e melhor vestuário seria até agradável, mas como vivíamos eternamente esfomeados e com frio era impossível sentir qualquer prazer.

Os guardas raramente eram ásperos e nunca cruéis. Eram apáticos, desleixados, pesadões e, sob meu ponto de vista, algo efeminados não no sentido de delicadeza, mas exatamente no sentido oposto: tinham uma bovina aparência carnal, branda e tosca, sem arestas ou pontas aguçadas.

Entre meus companheiros de prisão eu tive pela pri­meira vez em Inverno a sensação de ser um homem no meio de mulheres, ou eunucos. Os prisioneiros tinham a mesma flacidez e vulgaridade. Era difícil diferenciá-los, todos com o mesmo tom emocional baixo, a mesma conversação trivial. A princípio tomei esta falta de vivacidade, esse nivelamento, como efeito da privação de alimentos, calor e liberdade; mas em breve percebi que era algo mais específico: era o resultado das drogas ministradas aos prisioneiros para supri­mir-lhes o ciclo de kemmer. Sabia que existiam drogas que podiam reduzir ou praticamente eliminar a fase de potência do ciclo sexual; eram usadas quando a necessidade, saúde ou moralidade exigiam abstinência. Um ou mais períodos de kemmer poderiam ser eliminados sem efeitos nocivos maiores. O uso voluntário de tais drogas era comum e tolerado. Não me ocorrera que poderiam ser administradas a pessoas sem a menor vontade de submeter-se a isto. Mas havia for­tes razões para tal prática: um prisioneiro em kemmer seria um elemento perturbador no seu grupo de trabalho. Se fi­casse sem trabalho, o que seria feito com ele? sobretudo se nenhum outro prisioneiro estivesse em kemmer, na mes­ma ocasião, o que seria possível, pois éramos apenas cento e cinqüenta. Atravessar o período de kemmer sem um par­ceiro é um bocado duro para um getheniano; melhor mesmo era simplesmente suprimir essa miséria e a perda de tempo no trabalho e não passar pelo período de kemmer de forma alguma. Assim, eles o evitavam. Prisioneiros que tinham lá vivido muitos anos já estavam psicológica e fisicamente, creio, adaptados a esta castração química. Eram tão assexua­dos quanto um boi. Não sentiam vergonha e não tinham desejos, como os anjos. Mas não é próprio do ser humano viver sem estas duas emoções. Sendo tão definida e limitada pela natureza, a necessidade sexual do getheniano não é realmente muito perturbada pela sociedade. Há menos sexo reprimido, canalizado, codificado que em qualquer sociedade bissexuada que eu conheça. A abstinência era nitidamente voluntária; indulgência aceitável. Medo e frustração sexual são, ambos, extremamente raros. Era o primeiro caso que eu já vira de um propósito social se opor a um impulso sexual. Sendo uma supressão e não apenas uma repressão, não causava frustração, mas algo mais sinistro, afinal de contas: passividade.

Não há insetos vivendo em comunidades no planeta Inverno. Os gethenianos não partilham suas terras, como os terráqueos o fazem, com essas velhas formas de sociedade animal, essas inúmeras colônias de pequenos bichos sem sexo, trabalhando somente sob o comando do instinto de obediência ao grupo, à comunidade. Se houvesse formigas ali, os gethenianos já as teriam imitado há muito tempo.

O regime de vida das fazendas ou campos voluntários é uma invenção bastante recente, limitando-se apenas a este país, no planeta, e desconhecido nos demais. Mas é uma advertência sinistra da direção que uma sociedade suscetível de controle sexual pode tomar.

Em Pulefen, como já disse, vivíamos subnutridos em relação à energia despendida no trabalho e nossa roupa, es­pecialmente o calçado, era totalmente inadequada para aque­le clima gelado. A situação dos guardas, a maioria certa­mente prisioneiros, não era muito melhor. A finalidade do lugar e do seu sistema era punitiva, mas não destrutiva, e, creio, seria suportável não fosse a prática de drogar e os interrogatórios. Alguns dos prisioneiros eram submetidos a exame em grupos de doze; recitavam uma espécie de cate­cismo ou confissão de fé, tomavam sua injeção contra o kemmer e eram liberados para o trabalho. Outros, os pri­sioneiros políticos, eram submetidos de cinco em cinco dias a interrogatórios sob a ação de drogas.

Ignoro que drogas eles usavam. Ignoro também a fina­lidade destes interrogatórios. Não me lembro do que me perguntavam. Eu voltava a mim, no dormitório, algumas horas depois, já deitado no meu beliche, com mais seis ou sete companheiros na mesma situação: alguns voltando a si como eu, outros ainda pálidos e fracos sob a ação entorpecedora da droga. Quando conseguíamos nos pôr de pé, os guardas imediatamente nos levavam para trabalhar na ofici­na. Após o terceiro ou quarto interrogatório desse tipo, fi­quei incapacitado para me erguer. Deixaram-me ficar e no dia seguinte juntei-me ao meu grupo, embora ainda me sentisse trêmulo. No interrogatório seguinte, fiquei inutilizado por dois dias, pela ação dos hormônios contra o kemmer ou do soro da verdade, que exerciam um efeito tóxico sobre meu organismo e meu sistema nervoso. Era um efeito cumulativo.

Lembro-me que pensei em falar com o inspetor no interrogatório seguinte para não me injetar nada, pois só estava dizendo a verdade. Diria: "Senhor, não vê como é inútil obter respostas a uma pergunta falsa?" Então o inspetor se transformaria em Faxe, com seu colar de ouro de áugure em torno do pescoço e eu teria com ele um longo diálogo, de maneira muito agradável, enquanto controlava o cair do ácido, em gotas, do tubo para uma tina de serragem.

Quando fui levado, porém, à saleta do interrogatório, o ajudante do inspetor abriu-me logo a gola e deu-me a pi­cada antes mesmo que eu pudesse abrir a boca e falar. E tudo o que me lembro desta sessão ou, quem sabe, de uma outra? é da figura do inspetor, um jovem argota de aparência cansada, com as unhas sujas, dizendo monotonamente: "Tem que responder às minhas perguntas em orgota, não deve falar outra língua. Deve falar em orgota".

Não havia enfermaria. O princípio que regia o campo era trabalhar ou morrer. Mas havia uma certa clemência, na prática, algo que os guardas permitiam existir entre a morte e o trabalho.

Como já disse antes, não eram cruéis, mas tampouco bondosos. Eram relaxados e não se importavam com as coi­sas, desde que ficassem longe de encrencas. Deixavam-nos, a mim e a outros prisioneiros, ficar no dormitório, nos nos­sos sacos de dormir como em observação, quando era óbvio que mal nos podíamos manter de pé.

Fiquei muito doente após o último interrogatório, como também um outro companheiro, um sujeito de meia-idade que tinha uma doença do fígado e estava morrendo. Como morria lentamente, deixavam-no ficar lá no seu beliche a maior parte do tempo. Foi a pessoa que ficou mais nítida na minha memória, nas lembranças de Pulefen. Ele era, fisicamente, um getheniano típico, de estrutura compacta, per­nas e braços curtos, com uma espessa camada de gordura subcutânea dando-lhe uma aparência rotunda ao corpo, mesmo doente. Tinha mãos e pés pequenos, cadeiras largas e peito fundo, com os mamilos pouco mais desenvolvidos que a média dos homens da minha raça. A pele era castanho- escura, os cabelos pretos finos e com aparência de pêlo de animal. O rosto era largo, as feições bem delineadas, mas pequenas, e as maçãs do rosto salientes. É um tipo racial bastante parecido com alguns dos grupos terrenos que vivem em grandes altitudes ou nas zonas árticas. Seu nome era Asra; tinha sido carpinteiro.

Conversávamos. Asra não se preocupava em viver, assim imaginei, mas tinha medo da morte. Procurava distrair seu pensamento e afastar esse medo. Tínhamos pouco em comum, a não ser essa proximidade da morte, e isto não era assunto sobre que desejássemos conversar; assim, a maior parte das vezes não nos entendíamos bem. Isto também não lhe importava. Eu, mais jovem e incrédulo, gostaria muito que houvesse compreensão mútua, explicações. Mas não havia. Então falávamos. A noite, o alojamento brilhava com luzes fortes, barulhento e cheio de gente. Durante o dia as luzes eram apagadas e o grande alojamento era silencioso, vazio e penumbroso. Ficávamos em dois beliches juntos e falávamos em voz baixa. Asra gostava muito de contar lon­gas histórias cheias de meandros sobre sua juventude numa fazenda comensal, no vale de Kunderer, aquela vasta e es­plêndida planície que eu atravessara ao entrar no país, a caminho de Mishnory.

Seu dialeto era marcante e usava muitos termos que eu não conhecia, nomes de pessoas, de lugares, costumes, instrumentos, e assim eu apenas conseguia acompanhar a linha do seu pensamento. Quando ele se sentia melhor, no meio do dia, perguntava-lhe sobre um mito, uma fábula. A maior parte dos gethenianos é bem abastecida desses assuntos. Sua literatura é quase toda oral, embora existam textos escritos, e são, num sentido bem amplo, bastante literários. Asra co­nhecia as narrativas orgotas mais importantes, as pequenas parábolas de Meshe, a história de Parsidy, grande parte dos épicos e as sagas dos navegantes. Estes e outros trechos do folclore, ele os contava, lembrando sua infância, no seu dia­leto meio ininteligível, e depois, cansando-se, calava-se e pe­dia-me que lhe contasse outros.

O que eles contam em Karhide? perguntava, esfregando suas pernas que o atormentavam com dores e aguilhoadas, voltando para mim seu rosto com um sorriso tímido e paciente. Uma vez respondi-lhe:

Sei de uma história de povos que vivem noutros mundos...

Que espécie de mundo seria?

Um como este, parecido em quase tudo, só que ele não gira em torno deste sol. Ele gira em torno de uma estrela que vocês chamam de Selemy. É uma estrela ama­relada, como o sol, e nesse mundo vive outra gente.

Isso está nos ensinamentos de Sanovy, essa coisa sobre outros mundos. Havia um velho pastor, meio louco, do culto de Sanovy, que vinha ao nosso lar quando eu era criança e contava-nos histórias: para onde os mentirosos vão quando morrem, para onde os suicidas vão, e para onde vão os ladrões. É para lá que iremos, eu e você, hein? Para um desses lugares?!

Não, este mundo de que eu falo não é o mundo dos espíritos. É um mundo real. A gente que vive lá é gente real, verdadeira, viva como a daqui. Mas há muito, muito tempo, eles aprenderam a voar.

Asra fez uma careta.

Não batendo asas, como está pensando, aprenderam a voar em máquinas, veículos como os carros. Mas isto era difícil de explicar na língua orgota, que não tem uma palavra precisa para o significado de voar; o vocábulo mais próximo seria deslizar. Bem continuei —, eles cons­truíram máquinas que subiam no ar como o trenó desliza na neve, E após um certo tempo aprenderam como fazê-las movimentar-se cada vez mais rápidas e mais longe, até que se tornaram mais velozes que uma pedra lançada por atiradeira. Então ultrapassaram as nuvens e foram por aí afora, até chegar a um outro mundo que também girava em torno de um outro sol. Quando chegaram lá, também encontraram homens...

Deslizando pelo ar?...

Talvez sim, talvez não. Quando chegaram ao meu mundo nós já sabíamos como nos locomover no ar. Mas nos ensinaram como voar de um mundo para outro. Nós ainda não tínhamos máquinas capazes disso.

Asra estava intrigado pela introdução do narrador na narrativa. Eu estava febril pelo efeito das drogas e não sabia mais como continuar a história.

Continue dizia ele, tentando dar sentido às coi­sas que ouvia. Que faziam eles além de andar no ar?

Ah, o mesmo que o povo daqui faz. Só que eles estão sempre em kemmer. Ele deu um sorriso zombe­teiro. Não há nenhuma possibilidade de despistamento nesta vida e meu apelido entre os prisioneiros e guardas era infa­livelmente o mesmo: pervertido. Mas onde não há desejo nem desonra, ninguém, mesmo sendo anômalo, é isolado. E creio que Asra não fazia nenhuma conexão desta noção comigo e minhas peculiaridades. Ele as encarava, meramen­te, como uma variação do velho tema, e assim repetiu:

Em kemmer, todo o tempo... É então um lugar de prazer? Ou um lugar de punição?

Não sei, Asra. O que é este mundo aqui?

Nem um nem outro, meu jovem. Isto aqui é o mundo como ele é, apenas. Você nasce nele e... as coisas são como são...

Não nasci nele. Eu vim para ele. Eu o escolhi.

O silêncio e a penumbra nos rodeavam. Fora, distante, no campo, além da prisão, havia apenas um remoto sussurro de som, uma serra rangendo, nada mais.

Ah, bem... sendo assim... — murmurou e logo suspirou, esfregando as pernas doloridas, com um fraco ge­mido, de que ele mesmo nem se apercebeu.

Nenhum de nós escolhe... — disse afinal.

Duas noites depois entrou em coma e logo morreu. Nunca cheguei a saber por que crime, falta ou irregularidade ele fora levado para as fazendas voluntárias. Sabia apenas que lá estava há menos de um ano.

No dia seguinte ao de sua morte, eles me mandaram buscar de novo para outro exame; desta vez tiveram que me carregar e não consigo me lembrar de mais nada depois.

 

 

                     A tenebrosa fuga (do diário de Estraven)

 

Quando Obsle e Yegey se ausentaram da cidade e o vigia da casa de Slose impediu minha entrada, senti que esta­va no momento de voltar-me para os meus inimigos, pois nada mais podia obter dos amigos. Fui ao Comissário Shusgis e preparei-lhe uma chantagem. Como não tinha dinheiro su­ficiente para comprá-lo, pus em jogo minha reputação. Entre os pérfidos, o nome de traidor encabeça a lista. Contei-lhe que estava em Orgoreyn como agente da facção dos nobres de Karhide, que estava planejando o assassinato de Tibe, e que ele tinha sido escolhido como meu contato com o Sarf; se ele se recusasse a me dar a informação de que necessitava, eu passaria outra informação aos meus amigos em Erhenrang, isto é, a de que ele era um agente duplo, servindo à facção do Mercado Livre. Isto, naturalmente, seria encami­nhado de volta a Mishnory e ao Sarf. E o pobre desgraçado caiu na história. Contou-me logo o que eu desejava saber e chegou a perguntar se eu aprovava. Eu não corria perigo imediato por parte de meus amigos Obsle, Yegey e os outros. Eles tinham comprado sua segurança sacrificando o Envia­do, e confiavam em mim para não causar embaraço tanto a eles quanto a mim próprio.

Até eu procurar Shusgis, ninguém, exceto Gaum, tinha me considerado importante, mas agora eles estariam firmes no meu encalço. Tenho que liquidar logo meus assuntos e desaparecer.

Não tendo jeito de entrar em contato com o pessoal de Karhide, pois as cartas seriam lidas e as transmissões de rá­dio e telefonemas interceptados, dirigi-me então pela pri­meira vez à embaixada real.

Sardon rem ir Chenewich, que eu conhecera bem na corte, estava fazendo parte do pessoal de lá. Concordou imediatamente em enviar uma mensagem a Argaven, notificando o que acontecera ao Enviado e onde ele se encontrava pri­sioneiro. Podia confiar em Chenewich, que era inteligente e honesto, e em que esta mensagem não seria interceptada, apesar de não poder prever absolutamente o que faria Argaven, de que forma agiria ao saber destas notícias.

Eu desejava que Argaven estivesse a par da informação no caso de a nave espacial ter que baixar, subitamente, ao solo; até aquele momento eu tivera esperanças de que ele tivesse se comunicado com ela antes de o Sarf o haver detido.

Eu também estava em perigo, e se tivesse sido visto entrando na embaixada, o perigo seria maior e imediato.

Saí direto de seus portões para o cais das caravanas, no lado sul, e antes do meio-dia, odstreth susmy, deixei Mishnory, do mesmo modo por que nela penetrara: como carrega­dor de caminhão. Tinha em meu poder os meus antigos vistos de entrada, agora um pouco alterados para o novo tipo de trabalho. A falsificação de papéis é arriscada em Orgoreyn, onde eles são inspecionados cinqüenta vezes diaria­mente, mas não é raro as pessoas tentarem correr esse risco, e meus antigos camaradas da ilha do Peixe me haviam ensi­nado alguns truques sobre o assunto. Usar um nome falso me humilha, mas só isto poderia me salvar ou possibilitar a minha travessia do país até o litoral do mar Ocidental. Meus pensamentos estavam aí, no ocidente, enquanto a cara­vana atravessava a ponte de Kunderer e saía de Mishnory. O outono caminhava para o inverno agora, e eu teria que chegar ao meu lugar de destino antes que as estradas se fechassem ao tráfego pesado e enquanto eu pudesse ter algu­ma possibilidade de ação. Eu já vira uma fazenda ou campo voluntário em Komsvashom, quando estivera na administra­ção de Sinoth, e já conversara com ex-convictos dessas fazen­das. O que vira e ouvira voltava, agora, intensamente à minha memória. O Enviado, tão vulnerável ao frio, usando casaco mesmo à temperatura de trinta graus negativos, não sobreviveria ao inverno em Pulefen. Este pensamento me fazia andar mais depressa, mas a caravana ia em ritmo lento, serpenteando e parando de cidade em cidade, ora para o norte ora para o sul, carregando e descarregando. Isto me tomou quase um mês até chegar a Ethwen, no estuário do rio Esagel. Lá tive sorte.

Conversando com os homens na Hospedaria dos Via­jantes, ouvi falar de um comércio de peles, em atividade na parte alta do rio, e de como os caçadores de pele licenciados subiam e desciam o rio em trenós ou barcos de neve, através da floresta de Tarrenpeth quase até os gelos árticos. Sobre suas conversas de armadilhas de caça, arquitetei um plano.

Há pesthry de pele branca na Terra de Kerm, assim como nos platôs gelados de Gobrin; elas gostam dos lugares bafejados pelos ventos das geleiras. Eu as caçara, quando jo­vem, nas florestas de thore em Kerm; por que não ir caçá-las agora nas florestas de thore em Pulefen?

No oeste distante e ao norte de Orgoreyn, nas grandes extensões selváticas das terras de Sembensyen, os homens se locomovem, para lá e para cá, à vontade, pois não há bastante inspetores para vigiar-lhes os passos. Algo da antiga liberdade sobrevive aí, durante a Nova Era. Ethwen é um porto acinzentado, construído sobre as rochas pardas da baía de Esagel; um vento chuvoso cheirando a maresia sopra nas ruas e o povo é constituído de marujos taciturnos, de fala curta e seca. Volto meus olhos para Ethwen com gratidão, pois ali a sorte me favoreceu.

Comprei esquis, raquetas de neve, armadilhas, provi­sões; adquiri minha licença de caça e autorização e identifi­cação do escritório comensal e parti a pé, subindo o Esagel, com um grupo de caçadores conduzidos por um velho cha­mado Mavriva. O rio ainda não estava gelado e os carros podiam usar a estrada — pois chovia mais do que nevava nesta vertente costeira, mesmo agora, no último mês do ano.

A maior parte dos caçadores aguardava até chegar o pleno inverno e no mês de Thern subiam o Esagel nos barcos para neve. Mavriva pretendia chegar ao extremo norte muito cedo e preparar as armadilhas para as pesthry logo que elas viessem para baixo, para as florestas, na sua primeira corren­te migratória. Mavriva conhecia bem toda essa região, as montanhas de Fogo melhor do que ninguém, e nesses dias que passei na sua companhia, rio acima, aprendi muita coisa com ele que iria aproveitar depois.

Na cidade de Turuf desliguei-me do grupo, alegando sentir-me doente. Eles continuaram para o norte, mas eu desviei-me em direção nordeste, sozinho, a caminho dos alti­planos montanhosos de Sembensyen. Passei alguns dias estu­dando a terra e então, tendo escondido quase tudo que levara comigo num vale oculto, a umas trinta e três milhas de Tu­ruf, voltei a esta cidade pelo sul e me alojei na Hospedaria dos Viajantes. Como que me abastecendo para uma caçada, comprei esquis, raquetas de neve e provisões, bolsão de pele, agasalhos de inverno, tudo de novo, em duplicata; um foga­reiro Chabe, uma tenda de polyskin e um trenó muito leve, também, para levar tudo isso. Então, nada a fazer senão aguardar que a chuva se transformasse em neve e a lama em gelo; não esperei muito, pois levara quase um mês indo de Mishnory a Turuf. No mês de Thern (primeiro mês de in­verno), no 4.° dia (Arhad), o frio se transformou em gelo e a neve que eu tanto aguardava começou a cair. Ultrapassei a cerca elétrica de Pulefen no começo da tarde, e todos os rastros deixados para trás foram recobertos pela neve que caía. Dei­xei o trenó numa vala formada por um ribeirão, bem dentro da floresta, a oeste da fazenda, e carregando apenas a mo­chila às costas, fiz o percurso a pé, abertamente, até os por­tões da fazenda. Aí mostrei meus papéis, que falsificara de novo enquanto esperava em Turuf. Eles eram azuis agora, identificando-me como Thener Benth, um preso sob livra­mento condicional, e anexo a eles estava uma ordem de me apresentar a Eps Thern, na Terceira Fazenda Voluntária da Comensalidade de Pulefen, para exercer as funções de guarda por dois anos. Um inspetor de olho vivo suspeitaria desses papéis amarrotados, mas ali havia pouca gente esperta. Nada mais fácil que penetrar numa prisão. Quanto a sair dela, era também fácil. O chefe dos guardas de plantão repreendeu-me por ter chegado um dia atrasado segundo as ordens escritas recebidas e enviou-me para os alojamentos. O jantar tinha acabado de ser servido, e felizmente já era muito tarde para me entregarem as botas e uniformes de costume, de modo que as minhas próprias, muito boas, não foram confiscadas. Não me deram nenhuma arma de fogo, mas encontrei uma à mão enquanto fazia minha busca na cozinha, tentando convencer o cozinheiro a me dar algo para comer. Sua arma estava pendurada num prego atrás da porta. Roubei-a. Não tinha carga mortífera; talvez nenhuma delas tivesse. Não matam gente nestas fazendas; deixam a pessoa fugir, e a fome, o frio e o desespero fazem isto por eles. Havia trinta ou quarenta guardas de prisão e uns cento e cinqüenta a cento e sessenta prisioneiros, nenhum deles com muito boa aparência, a maioria caindo de sono, embora não passasse da 4.a hora. Consegui que um jovem guarda me levasse a dar uma volta e me mostrasse os prisioneiros dormindo. Pude então vê-los naquela ofuscante luz que fazia claro como dia aquele enorme dormitório e desisti das minhas esperan­ças de agir naquela mesma noite, antes que atraísse suspeita sobre mim. Estavam todos metidos nos seus sacos de dormir como crianças no ventre materno, invisíveis, indistinguíveis. Todos, menos um, muito comprido para se esconder, rosto escuro e encaveirado, olhos fechados e enterrados nas órbi­tas, o cabelo num emaranhado fibroso. A sorte que me bafe­jara em Ethwen agora também tinha girado sua roda sob minhas mãos. Sempre tive um dom, o de saber quando chega o momento oportuno de agir, agir com presteza protegido pela boa sorte. Pensei que houvesse perdido esta capacidade no ano passado, em Erhenrang, e nunca mais fosse recupe­rá-la. Foi uma felicidade sentir que reavia este dom, saber que podia manejar minha boa sorte e a sorte do comando, como um trenó lançado no exato momento, declive abaixo, em direção a um alvo certo. Continuei a desempenhar o meu papel de guarda, resmungando e espionando tudo como um cara inquieto, curioso. Acabaram por me colocar no último turno de vigilância, e à meia-noite só eu e um outro guarda permanecíamos acordados. Continuei meu incansável escru­tínio dos presos, caminhando a esmo, ao longo das fileiras dos beliches. Organizei bem na minha mente os planos e tratei de fortalecer minha vontade e meu corpo, entrando em dothe, pois minhas forças físicas sozinhas não seriam suficientes sem a ajuda daquela força espiritual que provém das trevas. Um pouco antes do amanhecer entrei no dormitório e com uma pancada de um centésimo de segundo na cabeça de Genly Ai, com o revólver roubado, atordoei-o rapidamente. Depois retirei-o do beliche, envolto nas cobertas, e carreguei-o nos ombros até a sala dos guardas.

"Que está fazendo?!", perguntou um dos guardas, so­nolento.

"Está morto."

"Outro morto? Por Meshe, e ainda mal começou o inverno." Voltou-se para olhar a cara do Enviado, pendu­rado para baixo, nas minhas costas.

"Ah, esse aí é o Pervertido. Pelo olho de Meshe, eu não acreditava nas coisas que contavam dos karhideanos até que vi esse cara aí; que aleijão mais feio que é! Ele passou toda essa semana gemendo e suspirando, deitado, mas não pensei que fosse morrer assim tão depressa. Bem, vá lá fora e deixe ele lá até clarear o dia; não fique aí parado como um carregador com um saco de batatas às costas..."

Parei no escritório do inspetor, ao fim do corredor, pois sendo guarda nada me impedia de entrar lá. Procurei e achei o painel de chaves dos alarmas e de desligamento de forças. Nada estava etiquetado, mas os guardas tinham escri­to iniciais ao lado delas para avivar a memória quando hou­vesse uma emergência. Supondo que "C. C." fosse para as cercas, desliguei o circuito para cortar a corrente elétrica que corria ao longo delas, na defesa mais remota e externa da fazenda. Continuei arrastando Genly Ai, agora pelos ombros. Quando cheguei junto do guarda de plantão na guarita, fiz uma cena como se estivesse fazendo muito esforço para erguer o corpo, pois não desejava mostrar o quanto isto estava sendo realmente fácil para mim, em pleno poder da força de dothe.

Aproximando-me dele, falei:

"Um prisioneiro morto. Eles me mandaram retirá-lo do dormitório. Onde posso largá-lo?"

"Não sei. Leve-o para fora; debaixo de um telhado, assim ele não fica sob a neve o tempo todo e volta, flutuando na correnteza, fedendo, no degelo. Está nevando peditia."

Ele queria dizer que era neve sove, uma neve espessa, úmida, que estava caindo, a melhor notícia para mim.

"Está bem, está bem...", retruquei, e tratei de levar minha carga para fora do alojamento e de suas vistas.

Coloquei o Enviado nos meus ombros de novo e cami­nhei rápido na direção nordeste umas centenas de jardas, chegando até a cerca, agora desligada; atirei a carga do outro lado e pulei, também. Então, novamente com Ai nos ombros, tratei de escapar o mais depressa possível em direção ao rio. Não estava muito distante da cerca da prisão quando ouvi um apito trilar agudamente e os holofotes se acenderem. Esforcei-me para me ocultar e às pegadas que deixava na neve com a minha passagem. Consegui chegar ao rio sem que eles pudessem alcançar meus rastros.

Fui para o norte, em terreno limpo sob árvores ou através das águas, quando não encontrava caminho limpo; o rio era um pequeno tributário de águas turbulentas do rio Esagel, e estava ainda sem capa de gelo. O amanhecer torna­va tudo claro e tratei de apressar-me.

Por estar em pleno dothe, o Enviado, apesar de com­prido e desajeitado, não era pesado demais para mim. Acom­panhando a correnteza a descer pela floresta, cheguei à ravi­na onde deixara meu trenó; prendi Ai ao trenó com alças de couro, acolchoando-o com as coisas que trouxera, até que ele ficou bem escondido debaixo de tudo e, principalmente, bem abrigado contra o tempo. Então troquei minhas roupas e comi alguma coisa da mochila, pois a grande fome que se sente nos longos períodos de dothe já estava tomando conta de mim. Parti em seguida para o norte pela estrada florestal mais importante. Dentro em pouco, um par de esquiadores me alcançou. Eu estava vestido e equipado como caçador e disse-lhes que estava tentando me pôr em contato com a turma de Mavriva que tinha ido para o norte nos últimos dias de Grende. Eles conheciam Mavriva e aceitaram minha história depois de darem uma olhada na minha licença de caçador. Não esperavam encontrar os dois homens que esca­param da prisão indo para o norte, pois nada existe ao norte de Pulefen, a não ser floresta e gelo. Eles talvez nem esti­vessem interessados em encontrar os fugitivos. Por que esta­riam? Continuaram no seu caminho e uma hora depois cru­zaram comigo novamente, já voltando para a fazenda. Um deles era o meu companheiro de ronda noturna. Mas nunca havia olhado bem para o meu rosto, embora o tivesse na sua frente metade da noite. Quando desapareceram de vista, tomei outro rumo e durante todo aquele dia fiz um longo semicírculo através da floresta e das vertentes ociden­tais da fazenda, voltando finalmente destas vastidões desér­ticas para o pequeno vale escondido acima de Turuf, onde havia guardado meu equipamento extra. Era difícil manobrar o trenó naquelas terras muito enrugadas, com um peso muito maior que o meu próprio para puxar, mas a neve era abun­dante e já estava se tornando bem endurecida, e eu estava em dothe. Tinha que manter este estado, pois quando se relaxa, não se fica em condições para mais nada. Nunca tinha mantido o estado de dothe por mais de uma hora, mas sabia que alguns anciãos podem conservá-lo em plena força por um dia e uma noite, às vezes mais, e minha necessidade agora era uma boa aplicação do meu treinamento. Em dothe a pessoa fica num certo estado de despreocupação, e a ansie­dade que eu sentia era em relação ao Enviado, que já deveria ter acordado há muito daquela pancada sônica que lhe havia dado na cabeça. Ele não se mexera ainda e eu não tinha tempo de me ocupar dele no momento. Seria seu corpo tão diferente do nosso que o que para nós não passaria de mera paralisia para ele significava a morte?

Quando a sorte nos bafeja temos que ter cuidado com nossos pensamentos e nossas palavras; eu já o chamara duas vezes de morto e o carregara como os mortos são carregados. Cheguei a pensar que fora um homem morto que eu arras­tara pelas colinas acima e que minha sorte e sua vida haviam sido malbaratadas, afinal de contas. Pensando nisso, pra­guejava e suava e a força do dothe parecia se esvair de mim como a água através de uma jarra rachada. Mas continuei e as forças não me abandonaram até que atingi o esconde­rijo, aos pés das colinas. Então armei a tenda e fiz o que estava ao meu alcance por Genly Ai. Abri uma caixa de alimentos superconcentrados em cubos, a maior parte dos quais devorei avidamente, mas separei alguns para fazer um caldo que consegui que ele ingerisse, pois já parecia morrer de inanição.

Havia feridas nos seus braços e no peito, conservados em chagas pela imundície do saco de dormir em que ele estava metido. Limpei e tratei dos ferimentos e coloquei-o, bem aquecido, dentro do saco de peles, tão bem escondido quanto possível. Não havia mais nada a fazer por ele no momento.

A noite caíra e com ela a escuridão completa, e o preço pelo abuso de minhas energias estava sendo cobrado agora; deveríamos, eu e ele, mergulhar na escuridão do relaxamento total. Dormimos. A neve caiu durante toda aquela noite; durante o dia e a noite seguintes ao meu sono relaxador — o thangen — deve ter nevado também, não uma tempestade de neve, mas a primeira grande nevada de inverno. Quando afinal voltei a mim e ergui-me para olhar lá fora, a tenda estava submersa até o meio pela neve. A neve brilhava sob a luz solar, mostrando sombras azuladas. Só uma nuvem acinzentada obscurecia o brilho do céu, a espiral de fumo do vulcão Udenushreke, o mais próximo de nós, das monta­nhas de Fogo. Em torno daquele cone visível da tenda, só neve, montes, montículos, depressões, declives, tudo branco, imaculado.

Estando ainda na fase de recuperação, sentia-me muito fraco e sonolento, mas toda vez que me erguia dava a Ai um pouco de caldo; e ao anoitecer deste dia ele pareceu voltar a si, pelo menos à vida. Sentou-se, chorando como se estivesse debaixo de intenso terror. Quando me ajoelhei ao seu lado, ele lutou para desvencilhar-se de mim, mas, sendo um esforço muito grande ainda para ele, desmaiou novamen­te. Aquela noite ele falou muito numa língua que eu não co­nhecia. Era estranho, naquela escuridão silente do deserto ge­lado, ouvi-lo a proferir palavras de uma língua que usavam em outros mundos desconhecidos para mim. O dia seguinte foi bastante duro, pois sempre que procurava cuidar dele, tomava-me por um dos guardas da fazenda e ficava aterro­rizado pela idéia de que eu pudesse dar-lhe alguma droga. Ele murmurava, então, palavras em orgota e karhideano, todas misturadas, implorando-me para "não fazer isto", lu­tando com uma força que lhe vinha do pânico. Era de dar pena. Isto sucedeu diversas vezes, e como eu estava ainda no período de thangen, fraco de forças e vontade, parecia que não conseguiria cuidar dele; cheguei a pensar mesmo que lá não o tinham apenas drogado, mas feito uma lavagem cerebral, deixando-o insano e imbecil. Desejei, por instantes, que tivesse morrido no trenó na volta pela floresta, ou que não tivesse tido sorte em escapar com ele; e desejei ter sido aprisionado e enviado para uma dessas fazendas para pagar pela minha estupidez.

No dia seguinte quando acordei, ele estava me olhando.

"Estraven?!", murmurou fracamente e com espanto.

Então meu coração se alegrou. Pude tranqüilizá-lo e cuidar de suas necessidades; naquela noite ambos dormimos bem.

Acordamos bem dispostos e sentamo-nos para comer. As feridas estavam cicatrizando. Perguntei-lhe o que as tinha causado.

"Não sei; creio que são conseqüência das drogas; vi­viam me dando injeções..."

"Para evitar kemmer? Tomei conhecimento disto por homens que já foram prisioneiros dessas fazendas."

"Sim. E outras, não sei do que se tratava, se era o soro da verdade. Fizeram-me mal mas continuaram a aplicá-las assim mesmo. O que eles estavam tentando descobrir? O que mais poderia dizer-lhes?"

"Talvez não se tratasse propriamente de um interro­gatório, mas de submetê-lo, subjugá-lo..."

"Submeter-me, como?"

"Tornando-o dócil, viciando-o, por meios forçados, a um dos derivados de orgrevy. Esta prática não é desconhe­cida em Karhíde. Ou talvez eles estejam fazendo uma nova experiência em você e outros. Tenho ouvido falar que eles testam drogas para lavagem cerebral e outras técnicas nos prisioneiros que vivem nas fazendas. Eu duvidava disso quando ouvi falar; agora não duvido mais."

"Vocês têm essas fazendas em Karhide?"

"Em Karhide? Não."

Ai esfregava a testa, de modo irritado.

"Eles certamente devem dizer em Mishnory que não existem tais lugares em Orgoreyn, certamente... "'

"Ao contrário. Eles se orgulham delas, mostram fil­mes e gravações dessas fazendas voluntárias, onde desvia­dos sociais são reabilitados e onde dão abrigo, ou encarceram, a grupos tribais 'degenerados'. Eles costumam levar a pessoa a percorrer a Fazenda Voluntária do 1.° Distrito, bem nos arredores de Mishnory; um belo lugar para ser exi­bido, segundo a opinião geral. Se acredita que temos essas fazendas em Karhide, Sr. Ai, está nos 'supervalorizando'... Realmente, não somos gente sofisticada."

Ficou por muito tempo a contemplar o brilho da luz do fogareiro Chabe que eu elevara ao máximo para nos dar calor abundante. Depois me encarou:

"Você já me disse, hoje pela manhã, mas meu espí­rito estava confuso ainda e não compreendi bem: onde esta­mos e como chegamos aqui?"

Contei-lhe, novamente, a nossa tenebrosa fuga.

"Então, você simplesmente saiu me carregando como morto?"

"Sr. Ai, qualquer prisioneiro ou todos juntos pode­riam sair daquele lugar infernal, em qualquer noite, se não estivessem mortos de fome, exaustos, desmoralizados e dro­gados; e se tivessem vestuários adequados ao frio daqui, e se tivessem para onde ir... Aí está o problema: para onde ir? Para uma cidade? Prisioneiros não têm documentos de identificação; estão liquidados. Para o deserto? Não têm abrigo nada feito. No verão, creio que levam mais guar­das para a fazenda de Pulefen. Mas no inverno eles sabem que o frio é seu aliado e carrasco." Ele mal me ouvia.

"Você não poderia me carregar por alguns metros, Estraven, quanto mais correr... arrastando meu corpo num trenó, por um par de milhas, através dessa terra, na es­curidão..."

"Tudo é possível em dothe..."

"Por vontade própria?" "Sim."

"Você é... um dos handdaratas?"

"Fui criado no handdara e vivi dois anos no Monastério de Rotherer. Na Terra de Kerm, a maioria dos clãs é

handdarata."

"Pensei que, após um certo período de dothe, a exaus­tão extrema das energias da pessoa entrasse numa espécie de colapso..."

"É verdade: o thangen é chamado o 'sono das tre­vas'. Dura muito mais que o período de dothe, e desde que você entre nessa fase de recuperação, é perigoso tentar re­sistir a ela. Dormi direto duas noites seguidas. Estou, ainda, em thangen, não poderia sequer caminhar até aquela colina.

E a fome é parte dele, comi quase toda a ração que tinha estocado para durar uma semana."

"Muito bem", respondeu ele com nervosismo, "acre­dito em você. Que posso fazer senão acreditar... Aqui estou eu, aqui está você... Mas não compreendo, não com­preendo mesmo para que você fez isto tudo."

Ao ouvir isto, perdi meu equilíbrio e fiquei de olhar fixo na faca quebra-gelo que estava ao meu alcance, sem olhá-lo, sem replicar nada, até que minha raiva fosse con­trolada.

Afortunadamente não havia ainda muito calor ou ativi­dade no meu coração e disse a mim mesmo que ele era um homem ignorante, um estrangeiro mal-orientado e assustado. Assim, cheguei a um ponto de equilíbrio e, finalmente, falei:

"Sei que é, em parte, culpa minha sua vinda para Orgoreyn e para as fazendas voluntárias. Estou tentando corrigir meu erro."

"Você não teve nada a ver com a minha vinda para Orgoreyn."

"Sr. Ai, temos visto as mesmas coisas com olhos diferentes. Pensei, erradamente, que elas pareciam ser idên­ticas para ambos. Vamos voltar atrás, para a primavera do ano passado. Comecei a encorajar o Rei Argaven a esperar, a não tomar uma decisão sobre o senhor ou sua missão, cerca de meio mês antes do dia da colocação da chave-mestra, aquela cerimônia, lembra-se? A audiência já estava planejada, e era melhor levá-la avante, embora eu não esperasse ne­nhum resultado dela. Pensei que o senhor houvesse com­preendido tudo isso, mas me enganei. Não queria ofendê-lo, mas aconselhá-lo. Pensei que tinha compreendido o perigo da súbita ascensão de Tibe ao poder. Se Tibe tivesse sabido de uma boa razão para temê-lo, já o teria acusado de servir a uma facção, e Argaven, que é facilmente manobrável pelo medo, o teria mandado assassinar, fatalmente. Eu o queria salvo e para isto tinha que estar por baixo enquanto Tibe estivesse no alto e poderoso. Como aconteceu, caí junto com você. Eu já estava fadado a cair apesar de não imaginar que seria aquela noite, depois da nossa conversa; mas ninguém é primeiro-ministro de Argaven por muito tempo. Após ter recebido a ordem de exílio, não podia mais me comunicar com você, pois iria contagiá-lo com a minha desgraça e assim aumentar ainda mais seu risco de vida. Vim para cá e tentei antes sugerir-lhe que deveria vir para Orgoreyn também. Pressionei os homens de quem desconfiava menos, entre os trinta e três comensais, para permitirem sua entrada. Sem este favor deles, você não o conseguiria. Eles viam em você uma via de acesso ao poder e eu os encorajei nisto, uma abertura para pôr fim à rivalidade nascente entre Karhide e Orgoreyn e a volta ao Mercado Comum, uma chance também de quebrar os grilhões do Sarf. Mas eles são homens ultra-cautelosos, temerosos de tomar iniciativa. E, ao invés de exibi-lo, eles o ocultaram, perdendo assim sua vez. Então o venderam ao Sarf para salvar suas peles. Eu confiei muito neles, portanto a falta foi minha."

"Mas com que finalidade, toda esta intrigalhada? Essa preocupação em esconder-me, conjurações e luta pelo poder? Tudo isso para quê, Estraven? O que você buscava?"

"Eu buscava o que você busca: a aliança do meu mundo com os mundos de fora. O que você pensou?"

Ficamos nos olhando, face a face, através do fogo do fogareiro, como um par de bonecos de pau.

"Mesmo que essa aliança fosse com Orgoreyn?"

"Mesmo que fosse com Orgoreyn, Karhide seguiria logo após. Eu só pus em jogo o meu amor-próprio porque muita coisa está em jogo para todos nós, meus compatrio­tas. Que importa qual seja o país a acordar primeiro, desde que todos acordem?"

"Com os diabos, como posso acreditar no que diz?", explodiu Genly Ai. A sua extrema fraqueza física fez a sua indignação parecer um lamento. "Se tudo isto é ver­dade, você poderia ter explicado parte, pelo menos, muito antes, na primavera passada, e teria nos evitado esse inferno de Pulefen. Seus esforços em meu benefício..."

"Falharam, eu sei. E eu o coloquei em perigo, causei dor e vergonha. Sei disto. Mas se eu tivesse tentado comba­ter Tibe a seu favor, você não estaria aqui, estaria num tú­mulo em Erhenrang. E agora há gente em Karhide e em Orgoreyn que acredita em sua história, porque eles me ouviram. Eles ainda podem servi-lo. Meu maior erro, como você disse, foi não ter sido bastante claro para você. Não estou acostumado a isto; não sei dar nem receber conselho ou censura."

"Não estou querendo ser injusto, Estraven."

"No entanto, está sendo. É estranho. Sou o único homem em Gethen que confiou em você completamente e também o único homem em Gethen em quem você recusou confiar."

Ele baixou a cabeça e após alguns instantes disse:

"Sinto muito, Estraven."

Era ao mesmo tempo desculpa e admissão.

"A verdade é que você é incapaz de acreditar, ou não quer acreditar, no fato de que eu creio em você."

Levantei-me, pois minhas pernas estavam dormentes e vi que tremiam com o cansaço e a ansiedade.

"Ensine-me, Genly Ai, a técnica da conversação men­tal", disse, tentando falar naturalmente e sem rancor, "a linguagem que não encerra mentiras dentro dela. Ensine-me e então me pergunte por que eu fiz o que tenho feito."

"Gostaria de fazer isso, Estraven."

 

 

                   Em direção ao gelo eterno

Acordei. Até agora tinha sido profundamente estranho, inacreditável, acordar dentro de um obscurecido cone de calor e minha razão me dizer que era uma barraca em que eu estava deitado vivo, que já não estava mais na fazenda de Pulefen. Desta vez não senti nenhuma estranheza ao acordar; tive, isso sim, um sentimento muito grato de paz. Sentei-me, bocejei, e procurei pentear os cabelos com os dedos. Olhei para Estraven, espichado no seu saco de dor­mir, em sono pesado ainda, a poucos pés de mim. Não usava nada a não ser calções, pois ele sentia muito calor. Seu rosto escuro e secreto estava como que desnudado ao meu olhar. Estraven dormindo parecia um tanto parvo, como todas as pessoas que dormem: era um rosto arredondado, relaxado, distante, com pequenas gotas de suor acima do lábio superior e das sobrancelhas espessas. Lembrei-me de como suara naquele dia do desfile em Erhenrang, no palan­que real, todo ele num vestuário de alta categoria, sob a luz solar. Via-o agora sem defesas e seminu, numa luz mais fria, e pela primeira vez eu o vi como ele era. Acordou tarde e era lento no despertar. Finalmente cambaleou, erguendo-se, bocejando; vestiu uma camisa e espichou a cabeça para fora, e depois perguntou-me se queria uma xícara de orsh. Quan­do viu que eu já havia engatinhado e esquentado um pote com água que ele deixara congelada numa panela na noite anterior, aceitou uma taça, agradeceu-me formalmente e sen­tou-se para beber.

Para onde vamos agora, Estraven?

Depende do lugar aonde o senhor deseje ir e a espécie de viagem que vai poder realizar.

Qual é o caminho mais rápido para se sair de Orgoreyn?

Na direção oeste. Pelo litoral; trinta milhas, aproximadamente.

E então?

As baías já estão geladas aqui. De qualquer forma, nenhum navio vai muito longe no inverno. Seria o caso de esperar, num esconderijo, até a próxima primavera, quando os grandes cargueiros saem para Sith ou Perunter. Nenhum irá para Karhide se o embargo de comércio continuar. Po­deríamos trabalhar a bordo para pagar a passagem. Estou sem dinheiro, infelizmente.

— Há outra alternativa?

Karhide, por terra.

Muito longe? Mil milhas, talvez?

Mais ou menos, por estradas. Mas não poderíamos tomar estradas; não passaríamos pelo primeiro inspetor. Tal­vez pudéssemos tomar o rumo norte através das montanhas, depois leste através do Gobrin, e então desceríamos até a fronteira, na baía de Guthen.

Através do Gobrin?! Quer dizer, do grande deserto de gelo?

Ele sacudiu a cabeça afirmativamente.

Isso não é possível no inverno, é?

Creio que sim, com sorte, como em qualquer jor­nada no inverno. Sob certo aspecto, atravessar uma geleira no inverno é até melhor. O tempo firme, como sabe, costu­ma perdurar nessas grandes geleiras onde o gelo reflete o calor do sol; as tempestades são empurradas para a peri­feria. Daí as lendas sobre a "moradia dentro da nevasca"... Isto conta a nosso favor. Pelo menos um pouco.

Então você pensa seriamente...

Seria tolo eu tê-lo tirado de Pulefen se isto não fosse possível. — Ele ainda estava magoado, formal, taci­turno. A nossa conversa da noite anterior havia afetado a ambos.

Então você considera a travessia pela geleira um risco menor do que esperar aqui até a primavera por uma travessia marítima?

Ele concordou com um aceno. E explicou, lacônico:

Solidão.

Pensei sobre o assunto, uns instantes.

Espero que esteja levando em conta minha resistência pouco adequada. Não sou tão resistente ao frio quan­to você. Não sou, também, perito em esquiar, nem me sinto em boa forma física, embora tenha melhorado muito de dois dias para cá...

Concordou novamente.

Creio que podemos conseguir disse com aquela simplicidade total que eu tomara, durante tanto tempo, por ironia.

De acordo!

Olhou-me de viés e bebeu sua xícara de orsh. É uma espécie de chá, a partir do grão de perm torrado e fermen­tado; é uma bebida escura, agridoce, com forte conteúdo de vitaminas A e C, açúcar e um estimulante muito agradável da família das lobélinas. Onde não há cerveja em Inverno há orsh; e onde não há orsh nem cerveja, não há ninguém.

Vai ser duro disse finalmente, depositando a xícara vazia. Muito duro. Sem sorte, não vamos con­seguir.

É melhor morrer nas geleiras do que naquele esgoto de onde você me tirou!

Cortou um pedaço de pão de maçã seco, ofereceu-me uma fatia e sentou-se mastigando, pensativamente:

Vamos precisar de comida.

E o que nos acontecerá se conseguirmos chegar a Karhide? O que lhe acontecerá, quero dizer; você ainda é um proscrito?

Voltou-me seu olhar escuro como o de uma lontra:

Sou. Suponho que tenha que ficar do lado de cá.

E quando descobrirem que você ajudou o prisio­neiro deles a fugir?

Não precisam descobrir ele sorriu desolado. Primeiro teremos que atravessar a geleira.

Escute, Estraven insisti —, você me perdoa pelo que lhe disse ontem...

Nusuth... — Levantou-se, ainda mastigando, co­locou o capuz, o casaco e as botas, deslizando para fora como um animal marinho desliza para a água. Já do lado de fora da porta de fechamento automático, ele tornou a meter a cabeça no interior da barraca e disse:

Posso demorar, talvez seja necessário até passar a noite toda fora. Pode se arrumar sozinho?

Claro que sim.

Está bem, está bem... — e sumiu.

Nunca conheci ninguém que reagisse tão integral e rapidamente a uma mudança de situação como Estraven. Eu estava em recuperação e desejava ir também; ele estava fora do período de thangen; quando tudo se normalizou para ele, já estava em ação. Era esté o segredo, sem dúvida, da extraordinária carreira política que ele jogou fora por minha causa; era também a explicação de sua fé em mim e a devo­ção à minha missão. Quando eu cheguei, ele estava prepa­rado. Ninguém, porém, no planeta Inverno, o estava. E, no entanto ele se considerava um homem lento, de reações fracas em situações críticas. Uma vez ele me contou que, por pensar tão vagarosamente, tinha que guiar seus atos por uma intuição geral sobre o rumo que sua sorte estava to­mando, e que esta intuição raramente lhe falhava. Dizia isso seriamente; devia ser verdade. Os áugures dos monastérios não são os únicos no planeta Inverno que podem fazer previsões. Eles têm o dom da premonição, mas não desen­volveram sua segurança nela. Neste assunto, os yomeshtas também têm seu ponto a favor o dom não é estritamente ou simplesmente de previsão, mas é antes o poder de ver (mesmo por uma fração de segundo) tudo de uma vez só, ver a totalidade.

Mantive o fogareiro de aquecimento no seu máximo enquanto Estraven estava fora e assim me senti bem aque­cido, pela primeira vez, em muito tempo.

Creio que devia ser o mês de Thern, agora, o primeiro mês de inverno de um novo ano 1, mas tinha perdido a noção do tempo em Pulefen.

O fogareiro era um desses aparelhos excelentes e eco­nômicos, aperfeiçoados pelos gethenianos, no seu esforço mi­lenar de vencer o frio. Apenas o uso de uma pilha de fusão como fonte de energia poderia melhorá-lo. Sua bateria de energia biônica durava catorze meses, com uso contínuo; sua produção de calor era intensa; ao mesmo tempo era fogão, aquecedor e fonte de luz, tudo numa coisa só, e pesava quatro libras. Não teríamos viajado cinqüenta mi­lhas sem ele. Devia ter custado um bocado de dinheiro a Estraven, aquele dinheiro que eu lhe tinha entregue tão arro­gantemente em Mishnory. Assim como a barraca, confeccio­nada com um plástico especial, resistente ao mau tempo e planejada para evitar, pelo menos, a condensação de vapor d'água no seu interior que é a praga de todas as tendas nos lugares frios —, os sacos de dormir de peliça de pesthry; roupas, esquis, trenós, abastecimento de alimentos, tudo da melhor qualidade, leve, durável, caro. Se ele tinha ido em busca de mais alimentos, como iria comprá-los?

Estraven não voltou senão ao anoitecer do dia seguin­te. Eu saíra diversas vezes com raquetas de neve, caminhando pelas encostas do vale nevado que escondia nossa tenda, procurando reabilitar minha energia e prática. Eu era hábil nos esquis, mas não tanto no uso destas raquetas. Não ousa­va me distanciar muito de nossa tenda, pois poderia perder os rastros de volta; era uma terra desértica, montanhosa, cheia de ravinas e cavidades e que se levantava abruptamente para as montanhas de leste, sempre coroadas de nuvens. Não tive tempo de pensar no que faria neste lugar abandonado se Estraven não voltasse. Ele veio precipitando-se vertiginosamente na encosta e parou ao meu lado, sujo, cansado e carregado. Tinha nas costas um enorme saco fuliginoso recheado de pacotes: Papai Noel que desce pelas chaminés da velha Terra. Os embrulhos eram de germe de kadik, pão de maçã seco, chá e fatias de um açúcar duro, vermelho e com gosto de terra que os gethenianos refinam em uma de suas usinas.

Como conseguiu isto tudo?!

Roubei — disse 0 antigo primeiro-ministro de Karhide estendendo as mãos para o fogo que ele ainda não abai­xara. Estava com frio. — Em Turuf, o lugar mais perto daqui.

Foi tudo que ouvi e soube. Ele não estava orgulhoso do seu feito, nem mesmo podia rir-se dele. Roubo é um crime vil em Inverno; na verdade, o único homem mais desprezado que o ladrão é o suicida.

Vamos gastar essas coisas, em primeiro lugar — disse, quando pus uma panela de neve no fogareiro para derreter. — É muito peso.

A maior parte do alimento que ele armazenara era ração hiperconcentrada, alimento desidratado e comprimido em forma de cubos, de uma mistura de alta caloria e grande teor alimentício. O nome orgota para ela é gichy-michy, e era assim que a chamávamos, apesar de falarmos karhideano quando ficávamos a sós.

Tínhamos o bastante para passarmos sessenta dias com um mínimo de ração: uma libra por dia para cada um.

Depois de haver se lavado e comido, Estraven ficou sentado muito tempo perto do fogo, calculando precisamen­te o que tínhamos, quanto e quando deveríamos gastar. Não tínhamos balança e o cálculo era feito na base de uma caixa de gichy-michy como unidade. Ele sabia, como muitos ge­thenianos, o valor calórico e nutritivo de cada alimento, sabia de suas próprias necessidades sob diversas condições e como calcular a minha bastante bem. Saber disso é matéria de alto valor para a própria sobrevivência em Inverno.

Quando afinal conseguiu planejar a distribuição de nossas rações, mergulhou no seu saco e pegou no sono. Durante a noite, ouvi-o murmurar números, pesos, dias, distâncias...

Tínhamos, mais ou menos, oitocentas milhas de cami­nho pela frente. As primeiras cem seriam para o norte ou nordeste, através das florestas e as últimas vertentes seten­trionais das montanhas Sembensyens, até a grande geleira, o lençol de gelo que recobre o Grande Continente, acima do quadragésimo quinto paralelo e que, em certos lugares, desce até o trigésimo quinto. Um desses braços para o sul fica na região das montanhas de Fogo, os últimos picos das Sembensyens; esta região era a nossa primeira meta.

Aí, nessas montanhas, pelo raciocínio de Estraven, poderíamos atingir o lençol gelado, quer descendo por uma vertente montanhosa quer subindo por uma geleira que para ela converge. Daí por diante viajaríamos através do deserto gelado por umas seiscentas milhas, sempre para leste, onde seu limite se aproxima do norte, de novo, perto da baía de Guthen. Então iríamos descer e cortar em direção sudeste, por umas cinqüenta a cem milhas, através dos pântanos de Shenshey, que nesta ocasião estariam revestidos de uma camada de neve profunda, de uns dez a vinte pés, até atingirmos as fronteiras de Karhide.

Esse caminho nos mantinha afastados das zonas povoa­das, do começo ao fim da nossa fuga. Não iríamos encontrar nenhum inspetor. Isto era, indubitavelmente, da maior im­portância. Eu não tinha documentos e Estraven achava que os dele não agüentariam mais qualquer falsificação. De qual­quer forma, embora eu pudesse passar por um getheniano, onde ninguém esperaria que eu fosse outra coisa, não passa­ria despercebido a um olhar mais atento e indagador. Neste ponto de vista, o caminho sugerido por Estraven nos era altamente prático. Sob os outros pontos de vista, era total­mente insensato. Guardei essa opinião para mim, pois o que eu dissera, que preferia morrer fugindo, era totalmente ver­dadeiro, se se tratasse de escolher um tipo de morte. Estra­ven, porém, ainda estava estudando alternativas. Passamos o dia seguinte empacotando e carregando o trenó, cuidado­samente.

Se você chamasse a nave espacial, quando ela po­deria chegar? — perguntou-me Estraven.

Varia de oito a quinze dias, dependendo de onde esteja na sua órbita solar em relação a Gethen. Ela poderia estar no outro lado da órbita solar.

Não seria mais rápida do que nós?

Não. O sistema de propulsão da Nafal não pode ser usado dentro do sistema solar. A nave pode chegar ape­nas por propulsão de foguete, o que faz com que se atrase, no mínimo, oito dias. Por quê?

Ele puxou e amarrou fortemente uma corda antes de me responder.

Estava pensando na sábia possibilidade de pedir ajuda do seu mundo, desde que o meu parece tão pouco promissor. Há, em Turuf, um radiofarol.

Qual a sua potência?

Não muito grande. O maior transmissor nessas proximidades seria em Kuhumey, cerca de quatrocentas milhas ao sul daqui.

Kuhumey é uma cidade grande, não?

A quarta parte de um milhão de almas.

Teríamos que conseguir, de algum modo, o uso do transmissor do rádio; depois nos ocultaríamos pelo menos por oito dias. Com o Sarf alertado... já viu, não teríamos muita chance. — Ele balançou a cabeça num aceno.

Retirei o último saco de germe de kadik, acondicionei-o cuidadosamente no seu canto, no meio do trenó, e disse:

Se tivesse chamado a nave naquela noite em Mishnory, a noite em que você me aconselhou a fazê-lo, a noite em que fui preso... Mas Obsle tem o meu audisível, ainda o tem em seu poder, creio...

Ele pode usá-lo?

Não. Nem mesmo por acaso, remexendo. O con­junto das coordenadas é extremamente complexo. Mas se eu o tivesse usado...!

E se eu tivesse adivinhado que o jogo estava fei­to... — ele completou e sorriu. Não era uma pessoa de lamentar o passado.

Você me preveniu. Apenas não acreditei em você.

Quando o trenó ficou carregado, ele insistiu em que passássemos o resto do dia sem fazer nada, poupando energia. Ficou deitado na tenda, escrevendo num caderninho de apontamentos, com sua letra pequena, rápida e vertical, os acon­tecimentos que estão descritos no capítulo anterior. Ele não tinha conseguido manter seu diário atualizado no mês ante­rior e isto o contrariara; ele era bastante metódico. Fazer um diário era para ele tanto uma obrigação como um laço com sua família, o clã de Estre. Só soube disso depois; na ocasião não sabia o que ele tanto anotava, e fiquei por perto, engraxando os esquis ou simplesmente não fazendo nada. Assobiei uma melodia de dança e parei no meio. Se tínhamos apenas uma tenda e éramos obrigados a partilhá-la, sem levar o outro à loucura, uma certa dose de autocontrole e de boa educação era, natural e evidentemente, necessária...

Estraven olhou-me quando eu assobiava, mas não com irritação, é certo. Contemplou-me de um modo bastante sonhador e disse:

Gostaria de ter sabido desta nave o ano passado... Por que eles o enviaram a este mundo sozinho?

O primeiro enviado a um novo mundo sempre vem só. Um estranho é uma curiosidade, dois são uma invasão.

A vida do primeiro enviado tem uma avaliação mui­to baixa.

Não; o Conselho Ecumênico, realmente, não consi­dera a vida de alguém de pouco valor. Eles pensam assim: é melhor colocar uma só vida em perigo do que duas ou vinte. É também muito caro e perde-se muito tempo, você sabe, embarcar gente nessas grandes viagens intereste­lares. De qualquer forma, eu me apresentei como voluntário para o trabalho.

— Em perigo, resta a honra — disse ele, evidentemen­te um provérbio, pois acrescentou de modo cortês: — Esta­remos cheios de honrarias quando chegarmos a Karhide...

Enquanto ele falava, eu me perguntava se conseguiría­mos mesmo chegar a Karhide, através de oitocentas milhas de montanhas, ravinas, pântanos e baías congeladas, tudo desolado, desabrigado e sem vida, no auge do inverno e no meio de uma idade glacial. Lá estava ele sentado escrevendo suas anotações, com a mesma perseverante paciência e exatidão que vira num rei louco a rejuntar com cimento uma pedra no alto de uma ponte.

Quando chegarmos a Karhide...

Seu "quando" não era apenas uma data sem esperança. Ele pretendia chegar a Karhide no 4.° dia do quarto mês de inverno, arhad anner.

Iniciaríamos a jornada no dia seguinte, o 13.° dia do primeiro mês, tormenboi thern. Nossas rações, como ele previa, poderiam ser desdobradas para durar três meses gethenianos, ou seja, setenta e oito dias; assim, iríamos per­correr doze milhas por dia em setenta dias. Tudo já estava predeterminado. Nada mais a fazer a não ser dormir um bom sono.

Partimos ao nascer do sol, com raquetas de neve, sob uma nevasca que caía fina, sem ventos. A superfície das colinas era bessa, macia e ainda não compacta, o que os esquiadores da Terra chamam de neve selvagem. O trenó estava muito pesado; Estraven calculou que o peso total era de mais de trezentas libras. Era duro empurrá-lo naquela neve, embora fosse de tão fácil manejo como um pequeno barco bem construído. As lâminas de deslizar eram verda­deiras maravilhas, revestidas com um polímero que reduzia a resistência a praticamente nada; mas naturalmente isto não adiantava quando ele se atolava todo num montão de neve. Nestas superfícies acidentadas, subindo e descendo aclives e ravinas, achamos melhor um ir na frente, de cabresto, puxando, e outro atrás, empurrando. A neve caiu fina e suave­mente, durante todo o dia. Paramos duas vezes para uma refeição ligeira. Nessa vastidão montanhosa não se ouvia um som. Assim caminhamos todo o dia, e de repente já anoitecera. Paramos num pequeno vale, muito semelhante ao que deixáramos pela manhã, entre colinas cheias de montes de neve. Estava tão cansado que cambaleava, e assim mesmo não acreditava que o dia tivesse acabado. Tínhamos percorrido, pelo marcador do trenó, quase quinze milhas.

Se pudéssemos continuar naquele ritmo, bom para uma neve fofa, estando tão carregados e através de terreno íngre­me, cujas encostas e vales corriam em direção contrária ao nosso caminho, então certamente faríamos melhor no gelo, com a neve endurecida, o terreno plano e uma carga cada vez mais leve.

Minha confiança em Estraven fora mais sob pressão da vontade do que espontânea, mas agora acreditava piamente nele. Estaríamos em Karhide em uns setenta dias.

Já viajou assim antes? — perguntei-lhe.

De trenó? Muitas vezes.

Longas distâncias?

Já fiz umas cem milhas nos gelos de Kerm, no outo­no, anos atrás.

A parte extrema da Terra de Kerm, ao sul, é uma pe­nínsula montanhosa que se estende para o sul deste semi-continente, e é também, como a parte norte, recoberta de gelo. Os seres humanos do grande continente de Gethen vivem numa estreita faixa de terra entre dois imensos pare­dões brancos. Um decréscimo de oito por cento na radiação solar, eles calculam, levaria essas paredes a se estenderem, juntando-se; não haveria homens nem terras, apenas gelo.

Para quê?

Curiosidade; espírito de aventura.

Ele sorriu hesitando:

O aumento da complexidade e intensidade no cam­po da vida inteligente — disse, citando uma das minhas frases ecumênicas preferidas.

Ah! Você estava conscientemente ampliando a ten­dência evolutiva inerente ao ser; uma das suas manifesta­ções é o instinto de exploração. — Estávamos ambos muito satisfeitos conosco, sentados na tenda aquecida, bebendo chá quente e esperando que o mingau de germe de kadik ficasse pronto.

Aí está — falou. — Éramos seis. Todos jovens. Eu e meu irmão de Estre e quatro amigos de Stok. Não havia nenhum objetivo na excursão. Queríamos apenas ver o Teremander, uma montanha imponente que lá existe. Nem todos conseguem vê-la do lado da terra.

O mingau ficou pronto, de qualidade muito diferente daquilo que nos serviam na fazenda de Pulefen; tinha o gosto de castanha assada da Terra e se dissolvia delicio­samente na boca. Totalmente revigorado, benevolente, eu disse:

A melhor comida que tenho comido em Gethen tem sido sempre na sua companhia, Estraven.

Não naquele banquete em Mishnory.

Não, é verdade... Você odeia Orgoreyn, não?

Poucos orgotas sabem cozinhar bem. Odiar Orgo­reyn? Não; como poderia? Como se odeia ou como se ama um país? Tibe fala muito sobre isto; não tenho esse dom. Conheço gente, conheço cidades, fazendas, montanhas, rios, rochas, sei como, ao entardecer do outono, o sol cai oblíquo sobre certa terra arada nas montanhas; mas qual a finalidade de dar fronteiras a isto tudo, ou dar-lhe um nome e deixar de amar, no momento em que muda de nome? O que é amor ao seu próprio país? O que é ódio ao país do próxi­mo? Não é uma coisa boa. É apenas amor-próprio? Isto é bom, mas não se deve fazer disso uma virtude ou uma pro­fissão... Da mesma forma que amo a vida, amo as mon­tanhas do domínio de Estre, mas esta espécie de amor não acaba numa linha fronteira de ódio; além do mais, eu sou ignorante, assim espero.

Ignorante sim, mas no sentido do handdara, de ignorar a abstração, agarrar-se firme à coisa real... Havia nesta ati­tude algo feminino, a recusa ao abstrato, ao ideal, à submis­são ao que nos é oferecido, que me desagradava um tanto. Ele acrescentou, porém, com escrúpulo:

Um homem que não detesta um mau governo é um tolo. E se existisse algo como um bom governo nesta terra, seria uma grande alegria servi-lo. Aí nós nos entenderíamos.

Conheço um pouco desta alegria — disse eu.

É, eu já calculava isso.

Enxagüei nossas tigelas com água quente e joguei-a fora da tenda, através da porta que se fechava por pressão de válvula. Estava um breu lá fora; a neve continuava fina e suave, apenas visível no raio da iluminação que refletia da tenda. Gelados, novamente, no interior da tenda, esten­demos nossos sacos de dormir. Ele falou qualquer coisa como "Dê-me as tigelas, Sr. Ai" ou coisa parecida, e re­truquei:

Vai ser sempre, Sr. Ai, mesmo através das geleiras de Gobrin?...

Olhou-me e riu:

Não sei como chamá-lo...

Meu nome é Genly Ai.

Eu sei. Você usa meu título.

Também não sei como chamá-lo.

Harth.

Então, eu sou Ai. Quem usa nomes próprios?

Irmãos do mesmo lar ou amigos — disse-me, e estava distante ao dizer isto, fora do alcance, embora esti­vesse a dois pés de mim, numa tenda de oito pés. Sem res­posta. O que é mais arrogante do que a honestidade? Fria­mente, introduzi-me no saco de dormir.

Boa noite, Ai — disse aquele estranho, e o outro estranho respondeu:

Boa noite, Harth.

Um amigo. O que é um amigo, num mundo onde qual­quer amigo pode se tornar um amante em determinada fase da lua? Eu não o poderia ser, preso dentro da minha virili­dade. Não seria amigo de Therem Harth, ou de qualquer outro da sua raça. Nem homem nem mulher, nenhum deles e ambos no entanto, cíclicos, lunares, mudando a um toque da mão, eles não eram da minha espécie, da mesma con­formação que eu; não seríamos amigos; não haveria amor entre nós.

Dormimos. Acordei durante a noite e ouvi a neve tamborilando como chuva sobre a tenda. Ao nascer do dia, Estraven estava de pé preparando o desjejum. O dia clareou luminoso. Empacotamos tudo e partimos quando o sol dou­rou a copa dos arbustos raquíticos que bordejavam o vale.

Estraven puxava o trenó pela frente e eu o empurrava pela traseira, segurando o leme. No chão, a neve começava a formar uma crosta, e nas vertentes descendentes, limpas, parecíamos uma dupla de cães de atrelagem, correndo juntos.

Naquele dia, contornamos e depois entramos na flo­resta que margeia a fazenda de Pulefen, floresta de árvores de thore, anãs, grossas, com o tronco nodoso e cheias de estalactites de gelo. Não ousamos tomar a estrada principal para o norte, mas as estradas secundárias para transporte das toras de madeira nos indicavam a direção; e quando as florestas se tornavam ralas de árvores, o caminho ia cla­reando.

Desde que atingimos Tarrenpeth, havia menos ravinas ou cristas muito íngremes. O marcador de velocidade, ao entardecer, acusava vinte milhas pelo percurso do dia e estávamos menos cansados que na noite anterior.

Um consolo para o inverno, neste planeta, é que os dias permanecem sempre muito claros. O planeta tem pou­cos graus de inclinação ao plano da eclíptica, não suficiente para tornar notável uma diferença de estações nas baixas latitudes. A estação não é um efeito de hemisfério, mas um acontecimento global, o resultado de uma órbita eliptóide.

Na parte mais afastada e de rotação mais lenta da órbita, ao se aproximar e afastar do afélio, há apenas a sufi­ciente perda de radiação solar para perturbar o já instável padrão do tempo, que gela o que já está frio e transforma o verão cinzento e úmido em inverno violento e branco. Mais seco que o restante do ano, o inverno poderia ser mais agradável, não fosse o frio intenso. O sol, quando é visto, brilha muito alto; não existe aquela lenta transição da luz em escuridão como nas capas polares da Terra, onde o frio e a noite chegam juntos. Gethen é um planeta com um in­verno terrível, cortante e luminoso.

Levamos três dias atravessando a floresta de Tarren­peth. No último, Estraven parou e acampou cedo, para colo­car armadilhas. Ele queria apanhar pesthrys. Eles são um dos maiores animais terrestres daqui, do tamanho de uma raposa, vegetarianos e ovíparos, com uma esplêndida prote­ção de pêlos longos cinza ou branca. Ele estava em busca de carne, pois a deles é comestível. Esses animais estavam em migração para o sul em grandes quantidades; eles são tão solitários e de pisadas tão leves que vimos apenas dois ou três, mas as pequenas pegadas deixavam sua marca estre­lada, bem funda, na neve, em cada clareira da floresta, e todas mostravam o rumo do sul. As armadilhas de Estraven se encheram em menos de duas horas. Ele limpou e retalhou seis animais, pendurou a carne para congelar e cozi­nhar um pouco para o nosso jantar aquela noite. Os gethe- nianos não são um povo de caçadores, pois há muito pouco para caçar, nenhum herbívoro de grande porte, assim como carnívoros, mas nos mares os peixes são abundantes. Eles pescam e plantam. Nunca havia visto um getheniano com sangue nas mãos. Estraven olhou para as peles brancas:

Aqui está o pagamento de uma semana de casa é comida para um caçador e temos que desperdiçar isto.

Estendeu-me uma para apalpar. A pele era tão suave e espessa que nossa mão se enterrava nela. Nossos sacos de dormir, casacos e capuzes eram forrados com essa pele, uma proteção insubstituível para o frio e muito bela de se ver.

Não me parece digno estragar tão linda pele para se obter um cozido.

Estraven lançou-me seu olhar duro, incisivo e rápido:

Precisamos de proteína e atirou fora as peles, que foram devoradas durante a noite pelos russys, uns ferozes animaizinhos, mistos de rato e cobra, que devoraram não só as peles como as entranhas e os ossos, lambendo até os rastros sangüíneos na neve.

Ele estava certo; aliás, estava sempre certo. Havia mais de duas libras de carne comestível em cada animal. Comi minha parte do ensopado e poderia ter comido o resto sem reparar. Na manhã seguinte, quando começamos a subir mon­tanhas, eu sentia o dobro da resistência e força que tivera até então.

Naquele dia, subimos sempre. A nevasca benéfica e o kroxet um tempo sem ventos cuja temperatura oscila en­tre zero e vinte graus Fahrenheit que nos tinham acom­panhado até então, protegendo-nos de uma provável perse­guição, agora, infelizmente, se dissolviam numa temperatura acima do ponto de gelo e chuva. Começava a compreender por que os gethenianos se queixam quando a temperatura se eleva no inverno e se alegram quando ela baixa. Na cidade, a chuva é uma inconveniência; para um viajante, uma catás­trofe. Arrastamos o trenó pelos flancos das Sembensyens acima, toda a manhã, debaixo de uma neve encharcada de chuva, feito um mingau gelado e forte. A tarde, nas vertentes escorregadias, a neve já havia sido toda arrastada. Torrentes de chuva, montes de lama e cascalho. Retiramos as lâminas, colocamos rodas no trenó e continuamos a puxar para cima.

Como carroça sobre rodas, ele era um inferno, saltando e emperrando a cada instante. A escuridão chegou antes que tivéssemos encontrado um abrigo qualquer sob penhascos ou uma caverna para instalar a tenda; assim, a despeito de todo o cuidado, as nossas coisas se molharam. Estraven dissera que uma tenda como aquela nos abrigaria bem em qualquer tem­po desde que se conservasse seca por dentro.

Se você perder muito calor do corpo à noite não dorme bem; para isso é preciso que seus pertences estejam bem secos. Nossa ração está muito curta para nos permitir qualquer esbanjamento. Não podemos contar com a luz do sol para secar nada; assim, temos que ter cuidado para que não se molhem.

Eu escutara e tinha sido sempre muito cuidadoso, evi­tando a neve e a umidade dentro da tenda. Assim, só se for­mava o inevitável vapor d'água decorrente da nossa cozinha, e o emitido por nossos pulmões e poros. Mas esta noite, an­tes que a tenda fosse armada, tudo estava encharcado. Acocoramo-nos junto do fogareiro Chabe, soltando vapor por todo lado, e logo preparamos um guisado de carne quente e sólido, bastante gostoso, para compensar a situação difícil. O marcador de distância acusava apenas nove milhas, igno­rando a dura e penosa ascensão pelos flancos montanhosos.

Primeiro dia em que fazemos menos que a cota determinada — falei.

Estraven concordou e cuidadosamente partiu um osso para tirar o tutano. Ele tirara suas roupas exteriores e sentou-se em camisa e calções, descalço e de gola aberta. Eu não; sentia muito frio para tirar o casaco, capuz e botas. Ali ficou ele, quebrando osso e comendo tutano, asseado, forte, eter­no. Seu cabelo macio, liso, deixava escorrer a água, como as penas de um pássaro, caindo nos ombros, como das calhas de uma casa, e ele nem reparava. Não se sentia desencorajado. Estraven fazia parte desta natureza.

A primeira refeição de carne me havia dado cólicas intestinais e nesta noite elas pioraram. Fiquei acordado na­quela escuridão encharcada e povoada pelo barulho da chuva sobre a tenda. Na primeira refeição da manhã, ele comentou:

Você passou uma noite ruim.

Como sabe?

Ele dormira profundamente, mal se mexia, mesmo quando eu saía da tenda. Dirigiu-me seu olhar duro de novo:

Que há de errado com você?

Diarréia.

Ele estremeceu e observou aborrecido:

Foi a carne.

Suponho que sim.

A culpa foi minha, eu devia saber...

Não se preocupe, está tudo bem.

Pode viajar?

Posso.

E a chuva caía, caía. Um vento leste, vindo do mar, conservava a temperatura na casa dos trinta graus, mesmo aqui, a três ou quatro mil pés de altitude. Nunca víamos nada além de um quarto de milha adiante de nós, pois tínha­mos uma cerração acinzentada e torrentes de chuva pela frente. Como as vertentes se erguiam acima de nós, nunca pude ver nada a não ser a chuva caindo. Andávamos orien­tados pela bússola, conservando-nos o tempo todo em dire­ção norte, sempre que os cortes e guinadas das grandes vertentes nos permitiam. As geleiras tinham, outrora, re­coberto essas encostas e há centenas ou milhares de anos elas haviam recuado para o norte. Havia ainda traços delas nas encostas graníticas, longas retas como se fossem canais recor­tados em forma de U. Podíamos deslizar o trenó ao longo dessas ranhuras como se estivéssemos numa estrada. Eu era melhor quando puxava, apoiando-me nos arreios, e o esforço me conservava aquecido. Quando paramos para comer um pouco, ao meio-dia, senti-me doente e gelado; não pude comer nada. Continuamos subindo novamente. A chuva caía ininterruptamente. Estraven parou sob uma grande saliência de rochas negras, no meio da tarde. Armou a tenda antes que eu conseguisse me desatar dos arreios. Ordenou-me que entrasse nela e repousasse.

Estou bem — disse-lhe.

— Não está, não. Entre.

Obedeci-lhe, mas fiquei ressentido pelo tom imperativo que usou comigo. Quando ele entrou na tenda com as coisas de que precisávamos para a noite, sentei-me para cozinhar, pois era a minha vez. Disse, no mesmo tom autoritário, para eu ficar em repouso.

Não precisa me dar ordens — retruquei.

— Desculpe — acrescentou, inflexível, de costas para mim.

Não estou doente, sabe muito bem.

Não, não sei bem. Se você não quer ser franco co­migo, tenho que julgar pela sua aparência. Ainda não reco­brou suas forças e a marcha tem sido dura. Não sei até onde vai o limite de suas forças.

— Posso lhe avisar, quando sentir que estou chegando lá...

Eu estava irritado com o seu ar de superioridade. Ele era de estatura e compleição mais femininas que masculinas, mais curvas que músculos; sua cabeça menor que a minha. Quando puxávamos, eu tinha que encurtar minha passada para ajustar-me à dele, conter minha força para não avantajar-me em relação a ele; um garanhão em parelha com uma mula.

Então não está se sentindo doente?

Não, naturalmente estou cansado. Você também está...

É verdade. Estava aflito com você; temos ainda muito caminho a percorrer.

Ele não tinha intenção de parecer meu protetor. Julga­ra-me doente, e doentes precisam ser tratados. Era franco e esperava uma franqueza recíproca que eu não era capaz de retribuir-lhe. Afinal, ele não tinha nenhum padrão de mas­culinidade, de virilidade, para complicar seu amor-próprio. Por outro lado, se ele podia reduzir o tom do seu orgulho, como percebi que fizera comigo, talvez eu pudesse dispensar os elementos competitivos de meu auto-respeito masculino que ele tão pouco entendia, tanto quanto eu não entendia bem seu shifgrethor...

Quanto percorremos hoje?

Olhou em volta e sorriu gentilmente:

Seis milhas.

No dia seguinte fizemos sete, depois doze e no outro conseguimos sair daquele tempo de nuvens de chuva; era o nono dia da nossa pesada jornada. Estávamos a seis mil pés acima do nível do mar, num alto platô, com provas recentes de um abalo sísmico que erguera montanhas ainda cheias de atividade vulcânica. Encontrávamo-nos nas montanhas de Fogo da cordilheira de Sembensyen. O planalto se estreitava gradualmente num vale e este convergia numa passagem entre duas estreitas e longas vertentes. Quando nos aproximávamos do fim do passo, as nuvens de chuva foram se tornando mais finas e escassas. Um frio gelado do norte as dispersou completamente, desnudando os picos do dorso da cordilheira, à direita e à esquerda, feitos de basalto e neve, malhados de preto e branco como uma colcha de retalhos, brilhando como jóias, num céu que resplandecera límpido, sob o sol. A nossa frente, limpos e varridos pelo mesmo vento, víamos vales sinuosos a centenas de pés abaixo de nós, cheios de gelo e grandes blocos de pedra. Para além desses vales, uma grande muralha de gelo, e, erguendo nos­sos olhos até o cimo dela, víamos a própria geleira, a grande geleira de Gobrin, ofuscante e sem horizonte até o mais alto do norte, branca, de uma brancura que os olhos não podiam suportar. Aqui e ali, surgindo desses vales cheios de pedre­gulhos, desses penhascos e massas, às margens desse grande campo gelado, ergue-se a cordilheira negra — uma grande e volumosa massa ameaçadora que surge do planalto até a altura dos picos da união do passo em que estávamos. Dos seus flancos, um longo e pesado rastro de fumaça se estendia no ar. Mais adiante, havia outros picos, pontas negras, cones de cinza vulcânica nessa geleira branca. Rolos de fumaça se desprendiam dessas bocas de fogo que se abriam dentro do gelo.

Estraven ficou parado na frente do trenó, olhando aquela magnífica desolação.

— Estou contente de viver para poder ver este espe­táculo — disse.

Senti o mesmo. É bom ter um objetivo nas viagens que empreendemos, mas o que importa mesmo, afinal, é a via­gem em si mesma.

Não havia chovido nestas encostas do norte. Campos de neve se estendiam do passo até os vales. Tornamos a guardar as rodas, desencapamos as lâminas do trenó, calça­mos os esquis e partimos para o norte, para baixo, para dentro daquela vastidão silenciosa de fogo e gelo, que, em grandes letras, em preto e branco, anunciava morte, morte através do continente todo.

O trenó deslizava como uma pena e nós ríamos de pura alegria.

 

 

         A mão esquerda da escuridão (do diário de Estraven)

 

Odyrny thern (primeiro mês de inverno — 24.° dia). Ai me pergunta, metido no seu saco de dormir: "O que você está escrevendo, Harth?" "Um registro", respondo-lhe. Ele sorri: "Eu deveria estar mantendo um diário para os arqui­vos ecumênicos, mas sem gravador nunca conseguiria"'.

Expliquei-lhe que esses apontamentos são para a minha gente de Estre, que os incorporarão, se os acharem adequa­dos, aos registros dos domínios. Isto levou meu pensamento ao meu lar e ao meu filho. Procuro afastá-lo do meu espírito e pergunto: "Seus pais são vivos?" "Não", responde Ai, "mor­tos há setenta anos." Fiquei intrigado. Ele não tinha ainda trinta anos de idade. "Você está contando um tempo de extensão diferente do nosso?" "Não. Bem, estou dando sal­tos no tempo. Vinte anos da Terra até Hain-Davenant, daí mais cinqüenta para Ellul, de Ellul para cá mais dezessete. Vivi fora da Terra apenas sete anos, mas nasci há mais de cento e vinte anos."

Há muito tempo, em Erhenrang, ele me explicara como o tempo era encurtado dentro das naves que vão tão rápidas quanto a luz das estrelas, mas não tinha computado isto con­tra a extensão da vida humana ou das vidas que ele deixa atrás de si no seu próprio mundo. Enquanto ele vivia algu­mas horas em uma destas naves, inimagináveis, indo de um planeta a outro, todos aqueles que ele deixou para trás tornaram-se velhos e morreram; seus próprios filhos envelhe­ceram. "Eu pensava", disse-lhe finalmente, "que só eu era um exilado." "Você por minha causa e eu pela sua", disse ele, e riu-se novamente, um som quase alegre naquele pesado silêncio.

Estes três últimos dias, desde que descemos o passo, têm sido de trabalho duro, quase desperdiçado, mas Ai não está mais abatido nem ultra-otimista; e tem mais paciência comigo. Talvez as drogas já tenham sido eliminadas de seu organismo. Talvez tenhamos aprendido a trabalhar juntos.

Passamos o dia descendo do esporão basáltico que le­váramos todo o dia anterior a galgar. Visto do vale embaixo, parecia um bom caminho para o gelo, mas quanto mais alto subíamos nos encontrávamos com um paredão rochoso de pedras frouxas e um declive cada vez mais íngreme até que, mesmo sem trenó, não o poderíamos escalar. Voltamos e hoje à noite estamos aqui embaixo novamente.

Nada cresce nesta terra de rochas, campos de rochas soltas, uma espécie de terreno baldio cheio de seixos, barro, lama. Um dos braços da geleira desapareceu desta vertente nestes últimos cem anos, deixando a carcaça nua da terra exposta ao ar; nenhuma carne, nenhum mato. Aqui e ali, fumarolas espalham uma espécie de nevoeiro amarelado, baixo, pouco acima do solo, ascendendo lentamente no ar que cheira a enxofre. A temperatura está a doze graus, a atmosfera parada, pesada. Tenho esperança de que nenhuma neve pesada caia até que saiamos deste lugar malfazejo, até chegarmos ao braço da geleira a algumas milhas a leste da cadeia rochosa. Parece-se a um largo rio gelado, descendo do platô, entre duas montanhas vulcânicas, ambas coroadas com vapores e fumaça. Se o alcançarmos através das vertentes do vulcão mais próximo, ela nos dará um caminho até o platô gelado. Na direção leste, uma pequena geleira desce até um lago gelado, mas corre de modo sinuoso, e daqui grandes fissuras podem ser vistas nela; e intransponíveis para nós, equipados como estamos. Concordamos em experimentar as geleiras entre os vulcões, apesar de que, nesta direção leste, iremos perder a contagem de dois dias na nossa meta final, um na direção leste e outro recuperando o caminho de volta.

Opposthe thern (25.° dia). Está nevando neserem[12]. Impossível viajar. Dormimos todo o dia. Temos rebocado o trenó há quinze dias, o sono nos fará bem.

Ottormenbod thern (26.° dia). Ainda neserem. Dor­mimos o bastante. Ai ensinou-me um jogo da Terra que se joga com pequenas pedras quadradas; é um jogo excelente e difícil, chama-se go. Como ele observou, há muitas pedras aqui para se jogar go. Ele está suportando o frio bastante bem, e se coragem bastasse, iria até gostar dela como um verme da neve. É engraçado vê-lo entrouxado em casaco, manta e capuz, quando a temperatura está acima de zero; mas quando estamos arrastando o trenó, se o sol está a des­coberto e o vento não muito cortante, ele tira o casaco e transpira como qualquer um de nós. Combinamos uma regra de meio termo quanto ao aquecimento da tenda. Ele gostaria que ela fosse mais quente e eu, mais fria, pois o conforto de um é a pneumonia do outro. Decidimos por uma média e ele tirita quando está fora do saco de dormir, enquanto eu transpiro abundantemente no meu; mas tomando-se em consideração a distância de mundos que nos separa, parti­lharmos juntos essa tenda já é um sucesso razoável.

Getheny thanern (segundo mês de inverno — 1.° dia). Saímos da tempestade de neve; vento acalmado, tempe­ratura em torno de quinze graus todo o dia. Acampamos na vertente ocidental do vulcão mais próximo, monte Dremegole, segundo o meu mapa de Orgoreyn. Seu companheiro, do outro lado do rio gelado, é chamado Drumner. O mapa é pobre em informações; há um grande pico a oeste que não está registrado nele e tudo está fora de escala. Os orgotas, evidentemente, conhecem pouco suas montanhas de Fogo. Na verdade há muito pouco a oferecer, a não ser grandeza. Hoje o trabalho foi pesado, arrastamos o trenó numa exten­são de onze milhas. Solo muito rochoso. Ai já está dormin­do. Eu arranhei o tendão do meu calcanhar, tentando des­vencilhar o pé que se encravara entre dois pedregulhos, e manquei a tarde toda. O repouso noturno deve curá-lo. Amanhã deveremos estar na descida para a geleira.

Nosso estoque de alimentos tem caído assustadoramen­te, mas é porque temos comido do alimento mais sólido. Tínhamos cerca de cem libras de comida bruta, metade dela roubada em Turuf; sessenta libras se foram após quinze dias de viagem. Já comecei o gichy-michy, uma libra por dia, economizando dois sacos de germe de kadik, açúcar e um cesto de bolos de peixes secos para variarmos depois. Estou contente de haver consumido esta carga mais pesada, pois o trenó desliza mais fácil.

Sordny thanern (2° dia). Estamos a vinte graus; chuva gelada, vento descendo pelo rio de gelo como uma correnteza num túnel. Acampamos a um quarto de milha da orla, ao longo de uma comprida estria de fim. A descida do Dremegole foi áspera e difícil, na rocha nua ou em ter­reno rochoso; as bordas da geleira são cheias de fissuras e tão coalhadas de cascalhos e rochas descidas junto com o gelo, que achamos melhor colocar o trenó novamente sobre rodas.

Antes que tivéssemos percorrido cem jardas, uma roda rachou e o eixo entortou. Usaremos lâminas, de agora em diante. Fizemos apenas quatro milhas hoje; ainda na direção errada. A geleira parece fazer uma longa curva para oeste até o platô de Gobrin. Aqui, entre vulcões, a distância é de cerca de quatro milhas de largura e não deveria ser difícil cami­nhar para o centro, apesar de se apresentar com mais fendas e com uma superfície mais irregular do que eu esperava.

O Drumner está em erupção. A saraivada úmida que cai nos chega à boca com gosto de fumaça e de enxofre. Uma escuridão pairou todo o dia a oeste, mesmo sob as nuvens de chuva. De vez em quando, as nuvens, a chuva, o gelo, o ar, tudo se transformava, tingindo-se de um vermelho som­brio, que ia desmaiando lentamente até o acinzentado. A geleira treme um pouco sob nossos pés.

Eskichwe rem ir Her apresentou uma hipótese sobre a atividade vulcânica na zona nordeste de Orgoreyn e do Arquipélago: sua atividade seria gradativamente aumentada nestes últimos milênios e pressagiaria o fim da era glacial, ou, pelo menos, sua recessão, e o começo de um período interglacial. O gás carbônico liberado pelos vulcões na atmosfera serviria como isolador, conservando a energia calórica das ondas longas refletidas pela superfície da terra, embora permitindo que o calor solar direto, provindo de fora, penetrasse sem qualquer perda calórica. A temperatura média mundial, ele diz, terá, no final, uma elevação de trinta graus, até atingir setenta e dois. Sinto-me feliz em não estar vivo nesta ocasião. Ai diz que teorias semelhantes têm sido apresentadas pelos sábios da Terra para explicar a recessão da sua última Idade do Gelo. Tais teorias permanecem, na maior parte, sem possibilidades de prova e irrefutáveis; nin­guém sabe, com certeza, por que o gelo vai ou vem. A neve da ignorância continua virgem.

Uma grande mesa de fogo arde, agora, na escuridão, sobre o vulcão Drumner.

Eps thanern (3.° dia). O medidor acusa dezesseis mi­lhas de percurso hoje, mas não temos mais do que oito milhas em linha reta, do acampamento de ontem à noite. Estamos ainda no passo de gelo, entre os dois vulcões. O Drumner está em erupção. Vermes de fogo rastejam, descendo suas verten­tes, e podem ser vistos quando o vento varre os sedimentos em ebulição, as nuvens de cinzas e o vapor branco. Sem pausa, de modo contínuo, um chiado ressoa, subitamente, no ar, tão longo e imenso que penetra em todos os poros do nosso ser. A geleira treme, estala, oscila e parte-se sob nossos pés, demoradamente. Todas as passagens que as nevascas poderiam ter lançado através, das fendas profundas desapa­receram, desmanteladas por esses tremores de terra sob o gelo. Movemo-nos para a frente e para trás procurando o término de uma dessas aberturas a fim de impedir que o trenó seja engolido para dentro, em busca da próxima pas­sagem, tendo sempre em mira a direção norte, mas forçados a tomar laterais, ora para a direita, ora para a esquerda.

Mais acima, o Dremegole, fazendo coro com a atividade do Drumner, grunhe e expele uma fumaça fétida.

Esta manhã, quando olhei para Ai, vi que seu rosto havia sido ulcerado pelo frio: nariz, orelhas, queixo, tudo estava de um cinza de morto. Fiz-lhe massagem para lhe restituir a circulação e a vida. Temos que tomar mais cuidado. O vento que sopra aqui é mortífero, esta é a ver­dade; e temos que recebê-lo pela frente quando fazemos nosso arrastão. Sentir-me-ei feliz quando conseguir sair desse braço de gelo cheio de rugas e fendas, entre esses dois mons­tros rosnando. Montanhas são para serem vistas, e não ouvidas.

Arhad thanern. Alguma neve sove, entre quinze e vinte graus. Caminhamos vinte milhas hoje, cinco destas deno­tando avanço; a borda do Gobrin está visivelmente próxi­ma, ao norte, na nossa frente. Podemos agora ver que o rio de gelo tem a largura de milhas, o "braço" entre os dois vul­cões não passa de um dedo e agora chegamos ao dorso da mão.

Olhando para trás, para o caminho já percorrido, vê-se uma corrente de geleiras divididas, estraçalhadas, esmigalha­das pelos picos negros em ebulição. Na frente, ela se alarga, subindo lentamente e encurvando-se suave, tornando mínimas as bordas escuras de terra, indo ao encontro do paredão de gelo mais acima, sob camadas de nuvens, fumaça e neve.

Cinzas vulcânicas caem, agora, misturadas com a neve e o gelo, o chão está coalhado de rebarbas; é uma superfície muito boa para se caminhar mas muito áspera para arrastar coisas, e as lâminas do trenó necessitam de renovação cons­tante das camadas de revestimento protetor.

Algumas vezes, projéteis vulcânicos mais pesados se espatifam no gelo, perto de nós. Eles emitem um sibilo alto quando atingem o solo e o choque do atrito cava um buraco queimado no solo gelado. Cinzas, ao caírem no chão, tamborilam como chuva.

Arrastamo-nos de modo infinitesimal, em direção ao norte, através desse caos de um mundo em formação.

Louve-se esta criação inacabada!

Netherhad thanern. Desde cedo não neva; céu coberto e ventoso. Quinze graus de temperatura. A geleira múltipla em que nos encontramos vai desaguar no vale a leste e esta­mos na sua borda, do lado oeste. Os dois vulcões agora já estão um pouco atrás de nós, apesar de uma vertente íngreme do Dremegole ainda se erguer a leste, quase à altura da nossa vista. Galgamos um ponto onde teremos de escolher entre seguir a geleira na sua longa curvatura para oeste e assim, gradualmente, retornar a subida até o platô de gelo; ou então escalar os penhascos de gelo que estão a uma milha ao norte dessa nossa parada noturna, e assim economizar vinte a trinta milhas de arrastão, à custa deste risco.

Ai é a favor de corrermos o risco. Há uma certa fragi­lidade nele. Parece um ser exposto, desprotegido, vulnerá­vel, mesmo quanto aos seus órgãos sexuais, que ele tem que levar sempre no exterior de si; mas ele é forte, incrivelmente forte. Não estou muito certo de que ele possa arrastar o trenó por mais tempo que eu, mas quando ele o faz tem duas vezes mais força e ligeireza. Ele pode erguer o trenó pela frente ou por trás para facilitar a transposição de um obstáculo. Eu não poderia fazer isto, a não ser que estivesse em dothe. Para tornar coerente essa combinação de força e fragilidade, ele pode chegar facilmente ao desespero e possui uma resposta rápida ao desafio; uma coragem paciente e ardente. A lenta e dura caminhada desses dias o esgotou de corpo e alma; de tal forma que se ele fosse da minha raça eu o julgaria um fraco. Mas ele não é nada disso tem bravura como nunca vi igual, está sempre alerta. Ele está pronto, decidido a pôr em jogo a vida em qualquer prova de perigo. "Fogo e medo; bons escravos, maus senhores." Ele faz do medo seu servidor. O medo que o induziria a dar a volta mais longa do percurso. Mas a coragem e a razão estão com ele. Qual a certeza de procurar o caminho mais seguro, numa jornada destas? Há decisões insensatas que eu não tomaria, mas não existe nenhuma segura.

Streth thanern. Falta de sorte. Não houve jeito de levar o trenó para cima, embora gastássemos o dia todo nisso. Neva sove, em rajadas fortes; cinzas espessas misturadas nela. O tempo esteve escuro todo o dia, e o vento, soprando então de leste, novamente jogava o manto de fumo do Drumner na nossa direção. Aqui o chão treme menos, mas houve um grande tremor quando tentávamos escalar uma escarpa em prateleira; soltou-se o trenó do local onde o tínhamos abrigado e fui arrastado com ele uns seis pés abaixo, aos tropeções. Mas Ai, com pulso forte e energia, nos sustentou e evitou que despencássemos abaixo uns vinte pés ou mais, até a base do penhasco. Se um de nós quebrar a perna ou o ombro num vacilo, seria o fim de ambos. Precisamente nisto reside o risco, bem feio, se olharmos de perto.

O vale inferior da geleira atrás de nós está branco de vapor; a lava chega até lá. Não podemos voltar atrás. Ama­nhã vamos tentar a subida mais adiante.

Beren thanern. Pouca sorte novamente. Vamos conti­nuar procurando para leste. O dia de ontem foi tão escuro como o anoitecer. Nossos pulmões ardem, não devido ao frio (permanece acima de zero, sempre, mesmo à noite, com este vento de leste), mas à inalação de cinzas e vapor da erupção. No fim do segundo dia de esforço desperdiçado, avançamos em terreno difícil, que se contorcia entre blocos de pedra e sobre penhascos de gelo, sempre detidos por um paredão liso ou uma saliência intransponível, tentando e fa­lhando outra vez. Ai ficou exausto e enraivecido. Parecia prestes a chorar, mas não o fez. Creio que ele acha que chorar é mau ou vergonhoso. Mesmo quando estava muito mal e enfraquecido, nos primeiros dias da nossa fuga, ele escondia seu rosto de mim quando chorava. Que razões pessoais, raciais, sociais, sexuais — que sei eu? — tem ele para não chorar? Entretanto, seu próprio nome é um grito de dor. Assim me soou, quando, há muito tempo, em Erhenrang, ouvindo falar de um "alienígena", perguntei seu nome; era como um grito saindo de uma garganta humana.

Ele dorme agora. Seus braços têm espasmos nervosos e crispam-se; é fadiga muscular. O mundo ao nosso redor é feito de gelo, rocha, cinzas, neve, fogo, escuridão, tremores, contorções e gemidos. Olhando para fora, há poucos mi­nutos, vi a incandescência do vulcão como uma floração vermelho-escura no seio de imensas nuvens pairando na es­curidão.

Orny thanern. Ainda sem sorte. É o vigésimo segun­do dia de nossa jornada e desde o décimo dia não fizemos progresso em direção a leste; na realidade regredimos de vinte a vinte e cinco milhas na direção oposta. Desde o décimo oitavo dia nenhum avanço, absolutamente; bem poderíamos ter ficado parados. Se conseguirmos chegar à geleira, tere­mos alimentos suficientes para nos sustentar durante a sua travessia? Este é um pensamento difícil de se afastar da mente. O nevoeiro e a escuridão provindos da erupção im­pedem a visão mais ampla e, assim, fica difícil escolher bem o caminho. Ai quer fazer cada subida que vê, mesmo íngre­me, desde que mostre algum indício de plataforma. Ele fica impaciente com a minha prudência. Temos que controlar o nosso temperamento. Eu estarei em kemmer dentro de um dia ou dois e as tensões irão aumentar. Enquanto isto, bate­mos com as cabeças em penhascos de gelo, num entardecer frio, cheio de cinzas. Se eu escrevesse uma nova lei yomeshta, enviaria os ladrões para aqui, após a morte. Ladrões que roubam sacos de comidas em Turuf. Ladrões que roubam o nome e o lar de um homem e o enviam, coberto de opró­brios, para o exílio. Minha cabeça está pesada; tenho que riscar tudo isso depois, estou muito cansado para reler agora.

Harhahad thanern. No Gobrin. Enfim, no vigésimo terceiro dia chegamos aos gelos eternos do Gobrin.

Logo que partimos esta manhã vimos, a umas poucas centenas de jardas além do nosso, local de acampamento noturno, uma passagem aberta até a geleira, uma estrada encurvada, larga e como que pavimentada pelas cinzas vul­cânicas, desimpedida, dentro daquele caos e entulho da ge­leira, direta através dos penhascos de gelo. Andamos por ela como se estivéssemos caminhando pelas margens do Sess. Estamos nos gelos eternos. Agora vamos para leste de novo, em direção à nossa terra.

Ai contagiou-me com o puro prazer que demonstra por nossa façanha. Olhando com frieza, isto aqui é tão ruim quanto tudo até agora. Estamos na beira do platô. Racha­duras enormes — algumas tão grandes que poderiam engolir um vilarejo inteiro, todas as casas de uma vez -— correm dentro do solo, para o norte, até perder de vista. A maioria barra nosso caminho; sendo assim, temos também que ir para o norte e não leste.

A superfície do solo é difícil. Nós embarafustamos o trenó entre grandes blocos e amontoados de gelo, imensos entulhos levantados pela pressão desse grande lençol de gelo que se atira e se comprime contra as montanhas de Fogo. As bordas dessas superfícies partidas tomam formatos estra­nhos, fantásticos, lembrando torres invertidas, gigantes sem pernas, catapultas, etc. Com uma imensa espessura de quase uma milha, o gelo aqui se ergue e se adensa, como tentando abafar as montanhas e silenciar as bocas de fogo. Algumas milhas ao norte, um pico se destaca, uma pirâmide de arestas aguçadas, desnuda mas não desprovida de graça, de um vul­cão novo; mais novo milhares de anos que este lençol gelado que esmaga e empurra, todo em abismos e fendas, amontoa­dos de grandes blocos maciços ou enrugamentos, sobre seis mil pés de encostas baixas que não podemos ver.

Durante o dia, olhando para trás, vimos a nuvem de fumo que se erguia do Drumner em erupção, pairando como uma grande extensão cinza-acastanhada na superfície do gelo. Um vento moderadamente constante tem soprado, bem ao nível do solo, vindo do nordeste, limpando o ar aqui em cima da fuligem e do mau cheiro das entranhas do planeta, que temos respirado esses dias, e horizontalizando a fumaça que recobre como uma tampa escura as geleiras, as monta­nhas mais baixas, os vales de pedra, o resto do mundo. O gelo parece advertir: "Nada existe, a não ser o gelo eterno". Mas o vulcão jovem, ali adiante, tem outra coisa a dizer. Não há nevadas, um céu encoberto puro e alto a quatro graus negativos no platô, ao escurecer. Abaixo, uma mixórdia de gelo, gelo antigo. O gelo novo é traiçoeiro, um material escorregadio, azulado, escondido sob uma capa de verniz branco. Nós dois já caímos diversas vezes. Caí e deslizei de barriga sobre ele, uma vez, até uma boa distância. Ai, que estava nos arreios, riu-se a valer. Depois desculpou-se dizen­do que pensara ser eu a única pessoa em Gethen que já saíra deslizando de barriga ao cair no gelo.

Treze milhas hoje. Neste ritmo, entre as encostas re­cortadas, amontoadas e fissuradas, vamos nos esgotar ou chegar a coisa pior que um simples deslizamento de barriga para baixo.

A lua parece de cera; está baixa, avermelhada, escura como sangue coagulado, com um halo acastanhado ao redor.

Guyrny thanern. Alguma neve, vento crescente e temperatura em declínio. Hoje, novamente, treze milhas, o que perfaz uma distância total, desde que acampamos pela primeira vez, de duzentas e cinqüenta e quatro milhas. Temos, assim, uma média diária de dez milhas e meia, onze e meia, se omitirmos os dias em que passamos esperando a tempes­tade passar. Dessas milhas, de setenta e cinco a cem, sendo de tração, não nos deram nenhuma vantagem no avanço.

Não estamos muito mais perto de Karhide do que quan­do partimos. Mas temos uma chance melhor de lá chegar, penso eu.

Desde que conseguimos nos descartar daquela escuri­dão vulcânica e nosso espírito não está engolfado em traba­lho e preocupação permanentes, voltamos a conversar na tenda, à noite, após o jantar.

Como estou em kemmer, seria mais fácil ignorar a pre­sença de Ai se não estivéssemos numa tenda a dois. O que perturba é, naturalmente, que ele também está em kemmer, naquela sua peculiar maneira de ser, isto é, sempre em kem­mer. Deve ser uma estranha espécie de desejo a fogo lento, se espalhando por todos os dias do ano, sem escolha de sexo; mas assim é e aqui estou eu. Hoje à noite, minha consciência aguda de sua presença física era penosa de igno­rar e eu estava demasiadamente cansado para canalizá-la em sublimação ou qualquer outra atitude disciplinadora. Ele, afinal, me perguntou: "Eu o ofendi?" Expliquei-lhe meu silêncio, com um certo embaraço. Tinha receio de que risse de mim. Afinal de contas, ele, para mim, é uma aberração sexual tanto quanto eu o sou para ele: aqui no gelo cada um de nós é um caso singular, isolado, pois eu estou desli­gado da sociedade dos meus iguais, como ele está da dele. Não há outros gethenianos para explicar e comprovar minha existência. Somos iguais, em suma, iguais na solidão, na alienação. Ele não riu, naturalmente. Ao contrário, falou com uma gentileza de que eu não o imaginava capaz. Falou também de isolamento, de solidão.

"Sua raça é espantosamente única no universo. Não há, entre os mamíferos, outra espécie semelhante. Não exis­tem raças ambissexuais. Nenhum animal inteligente o é, mesmo para ser criado como de estimação. Deve dar uma característica toda especial esta singularidade. Não falo do pensamento científico apenas, apesar de vocês serem extraor­dinários formuladores de hipóteses é notável como vocês chegam ao conceito de evolução tendo que se defrontar com essa falha intransponível entre vocês e os animais inferiores. Mas, filosoficamente, emocionalmente, ser tão solitário num mundo tão hostil tem que alterar todas as perspectivas."

"O culto yomeshta diz que essa singularidade do ho­mem é a sua divindade."

"Senhores da Terra, sim. Outros cultos, em outros mundos, chegaram à mesma conclusão. São cultos de cultu­ras dinâmicas, agressivas, destruidoras da ecologia. Orgoreyn está tomando esse padrão; pelo menos eles parecem inclinados a movimentar as coisas ao seu redor. Que dizem os handdaratas?"

"Bem, no handdara... você sabe, não há teorias, não há dogmas. Talvez eles estejam menos cientes dessa distância entre homem e animal, preocupando-se mais com as semelhanças, os laços que unem todas as coisas vivas, como parte de um todo. Um poema de Tormer ficou hoje o dia todo na minha lembrança. São estas suas palavras:

A luz é a mão esquerda da escuridão e a escuridão é a mão direita da luz.

Vida e morte são como amantes na unidade do êxtase — dois em um — como mãos postas, uma contra a outra, são o princípio e o fim.

Minha voz tremeu quando recitei o poema, pois me lembrei, enquanto o pronunciava, que meu irmão, na carta que me escrevera antes de morrer, dizia estas mesmas pa­lavras.

Ai perdeu-se em abstrações e após alguns instantes disse:

"Você está isolado e não-dividido. Talvez você esteja tão obcecado pela totalidade como nós estamos pela duali­dade".

"Somos dualistas também. Dualidade é essencial, não é? Desde que exista o eu e o outro."

"Tu e eu", disse ele. "Sim, no final, isto é mais pro­fundo do que sexo..."

"Diga-me, Ai, como o outro sexo de sua raça difere de vocês?", perguntei. Ele pareceu espantado, e, na reali­dade, minha pergunta também me espantou. O kemmer traz à tona essa espontaneidade nas pessoas. Nós estávamos muito autoconscientes.

"Nunca pensei nisso. Você nunca viu uma mulher."

Ele usava a palavra que eu já conhecia, na sua língua.

"Vi retratos delas; as mulheres parecem gethenianos grávidos, mas com peitos maiores. Diferem muito do seu sexo mentalmente? São como uma espécie diferente?"

"Não... sim... Não, naturalmente que não... Não, verdadeiramente. Mas a diferença é muito importante. Suponho que a coisa mais importante, o fator único de maior peso na vida do indivíduo, é se ele nasceu macho ou fêmea. Na maior parte das sociedades, isto determina suas expectativas, atividades, pontos de vista, ética, maneiras, quase tudo. Vocabulário, vestuário, até mesmo alimentação. As mulheres, em geral, comem menos. É difícil separar as diferenças con­gênitas das adquiridas. Mesmo quando as mulheres partici­pam igualmente da sociedade com os homens, elas, afinal, é que geram os filhos, cuidam deles e praticamente os criam."

"Igualdade não é a regra geral, então? Elas são infe­riores mentalmente?"

"Não sei. Elas não se inclinam muito para a mate­mática, composição musical, invenções ou pensamento abstra­to. Mas isto não quer dizer que sejam tolas. Fisicamente são menos musculosas que o homem, mas vivem mais do que eles. Psicologicamente..."

Após um momento de silêncio, fitando o fogo, Ai sa­cudiu a cabeça:

"Harth", disse, "não sei lhe dizer como são as mu­lheres. Nunca pensei nelas de um modo abstrato, você sabe — e, céus! — quase me esqueci de que estou aqui há dois anos... Você não pode imaginar. Num certo sentido, as mulheres são mais estranhas para mim que você, Harth. Com você, de qualquer forma, eu partilho de um mesmo sexo..." Ele olhou distante e riu, mas pesaroso e cons­trangido. Meus próprios sentimentos eram complexos e dei­xamos morrer o assunto.

Yrny thanern. Dezoito milhas hoje, leste, nordeste pela bússola, nos esquis. Saímos da encosta pressurizada e cheia de fissura na nossa primeira hora de tração. Ambos puxa­mos, eu na frente, primeiro; mas não há mais necessidade de testar o solo com cautela, pois está firme, espesso sobre gelo sólido e sobre ele uma camada de revestimento, algu­mas polegadas de neve nova da última nevasca, com uma boa superfície de deslizamento. Nem nós nem o trenó pre­cisamos abrir caminho; o trenó deslizava tão leve que era difícil de imaginar que ainda carregávamos cem libras para cada um. Durante a tarde, nos revezamos no carreto, pois é muito fácil fazê-lo nesta superfície esplêndida. É uma pena que todo aquele trabalho exaustivo sobre rochas tivesse sido feito em subidas íngremes, quando estávamos tão carregados.

Agora vamos com ligeireza. Carga muito leve, descubro-me a pensar em comida, um bocado. "Nós comemos", diz Ai, de modo etéreo.

Todo o dia deslizamos leve e rápido sobre a planície gelada, bem nivelada e branca de todo, sob um céu cinza-azulado, sem falhas, exceto alguns picos negros atrás de nós, e uma mancha avermelhada, a respiração do Drumner mais distante. Nada mais: o sol velado, o gelo eterno.

 

 

                 O mito orgota da criação

As origens deste mito são pré-históricas. Ele tem sido registrado de diferentes formas. Esta versão bastante primitiva foi transcrita de um texto datado do período pré-yomesh, encontrado nas cavernas santuárias de Isenpeth, nos desertos de Gobrin.

 

No começo nada existia a não ser o sol e o gelo. Du­rante longos anos, o sol a brilhar abriu uma grande fissura no gelo. Nos seus flancos apareceram grandes formas ge­ladas, e não se via o fundo. Gotas d'água se derretiam dessas estruturas e caíam dentro do abismo.

Uma destas formas falou: "Eu sangro". Outra acres­centou: "Eu choro". E a terceira exclamou: "Eu suo". Estas formas geladas conseguiram galgar o abismo e foram para a planície gelada. Aquela que falara "eu sangro" foi até o sol e das suas entranhas arrancou matéria, que moldou e com a qual formou os vales e as montanhas do planeta. Aquela que' falara "eu choro" soprou no gelo e, derretendo-o, fez os mares e os rios. A que falara "eu suo" juntou as águas e as terras e fez plantas, árvores, grãos, animais e os homens. As plantas cresceram no solo e no mar; os animais se multi­plicaram na terra e nadaram no mar, mas os homens não despertaram. Eles eram trinta e nove. Estavam adormecidos no gelo e não tinham vida.

As três figuras de neve se sentaram encurvadas, com os joelhos encolhidos para junto do corpo, e deixaram-se derreter pelo sol. Dissolveram-se em leite, que escorreu para a boca dos que dormiam e eles despertaram. Este leite só é sugado pelos filhos dos homens, e, sem ele, jamais acordam para a vida.

O primeiro a acordar foi Edondurath. Era tão alto que, quando se ergueu, sua cabeça rachou o céu e deste caiu a neve. Ele viu os outros homens mexendo-se e acordando; então teve medo e os matou, um a um, com um soco de seu punho.

Entretanto, um deles, o penúltimo, conseguiu escapar. Chamava-se Haharath. Escapando da morte, fugiu para lon­ge, sobre as planícies de gelo e as terras degeladas. Edondurath corria atrás dele e conseguiu, finalmente, alcançá-lo, abatendo-o. Haharath morreu. Edondurath, então, voltou ao local do seu nascimento, nos gelos de Gobrin, onde jaziam os outros mortos. Enquanto ele perseguia Haharath, outro havia escapado com vida. Edondurath construiu um abrigo com os corpos congelados de seus mortos e aí aguardou que o fugitivo retornasse.

Cada dia um dos cadáveres perguntava:

Ele arde? Ele arde?

Ao que os outros respondiam com suas línguas geladas:

Não... Não...

Passa-se o tempo e Edondurath entra em kemmer. Dor­mindo, movia-se e falava em voz alta. Quando acordou, os cadáveres estavam todos dizendo:

Ele arde! Ele arde!

E o mais jovem dos mortos, ao ouvi-los dizer isto, en­trou na casa dos cadáveres e lá se acasalou com Edondurath. Desta união provieram as nações de homens, oriundas da carne de Edondurath, geradas no ventre de Edondurath. O nome do jovem morto, pai dos homens, nunca se soube. Cada criança que nascia tinha uma mancha de sombra que a seguia para onde fosse, à luz do dia. Edondurath indagou:

Por que meus filhos são acompanhados pelas trevas?

Seu kemmering respondeu:

Porque nasceram em casa de carne humana, e, assim, a morte está sempre nos seus calcanhares. Estão no meio do tempo. No começo havia sol e gelo, não havia sombra. No fim, quando nos extinguirmos, o sol vai se consumir e a sombra engolirá a luz e nada restará a não ser o gelo e as trevas.

 

 

                   A revelação do amor

Algumas vezes, quando estou começando a dormir, num quarto escuro e silencioso, tenho, por momentos, uma gran­de e preciosa ilusão do passado. A parede da tenda se en­curva sobre meu rosto, não visível, mas audível, um plano inclinado de um sussurro suave: o da neve a cair. Nada pode ser visto. A luz emitida pelo fogareiro Chabe está desligada e existe apenas uma esfera de calor, um centro irradiador de tepidez; a leve umidade e a aderência apertada do saco de dormir; o som da neve, a respiração de Estraven levemente percebida no sono. Escuridão. Nada mais. Estamos os dois abrigados, repousando dentro, no centro de todas as coisas. Fora, como sempre, a grande escuridão, o frio, a solidão da morte.

Em tais momentos felizes eu sei, sem sombra de dú­vida, qual é o centro verdadeiro de minha própria vida, aquele tempo já passado e perdido, e, no entanto, permanen­te, o momento duradouro, o coração da tepidez.

Não estou tentando dizer que era feliz durante esta semana de tração de trenó através daquele vasto lençol ge­lado, no auge do inverno. Vivia faminto, supertenso, e mui­tas vezes ansioso, e, claro, tudo piorava quanto mais tempo se passava. Não era feliz, isto é certo. Felicidade está ligada à razão e apenas a razão a conquista. O que me era ofere­cido era o que não se pode conquistar e não se pode reter; não se chega nem mesmo a reconhecer quando acontece; que­ro dizer, puro contentamento. Eu era sempre o primeiro a acordar, geralmente antes do nascer do dia. Meu coeficiente metabólico é ligeiramente mais elevado do que o padrão getheniano, como o são minha altura e peso; Estraven considerara essas diferenças ao fazer o cálculo das rações alimen­tares, e, no seu modo escrupuloso, que parecia um tanto doméstico, ou então científico, eu, desde o começo, tivera por dia uma dose de alimento a mais do que ele. Meus protestos por esta proteção caíram por terra ante a justiça evidente dessa divisão desigual. Embora assim fosse, o que me cabia era pouco. Estava faminto, sempre faminto, cada dia mais. Acordei porquê tinha fome.

Estava ainda escuro; acendi a luz do fogareiro e colo­quei no fogo uma panela de gelo que tínhamos trazido para dentro, na véspera. Estraven, enquanto isso, continuava no seu combate feroz e silencioso com o sono, como se lutasse com um anjo. Vencedor, ele se sentou, olhou-me de modo vago, sacudiu a cabeça e acordou. Quando acabamos de nos vestir, calçar as botas e enrolar os sacos de dormir, a refei­ção já estava pronta: uma caneca de orsh em ebulição e um cubo de gichy-michy dissolvido pela água quente e transfor­mado numa espécie de massa de broa. Mastigávamos vaga­rosamente, solenemente, apanhando no chão qualquer miga­lha que caísse. O fogareiro esfriava enquanto comíamos. Empacotamos o resto: panelas, canecos, fogareiro. Enfia­mos nossos sobretudos com capuz e nossas luvas grossas e deslizamos para o ar livre. A frieza da atmosfera era incrível! Todas as manhãs tinha que me reacostumar. Se já tivéssemos saído antes para nossas necessidades fisiológicas, essa segunda saída então era ainda mais penosa.

Algumas vezes nevava, outras vezes uma imensa luz, maravilhosamente dourada e azulada, do dia nascente, se estendia através daquelas milhas de gelo; mas em geral era tudo cinzento mesmo.

Levávamos o termômetro para dentro da tenda, duran­te a noite, e quando saíamos era curioso observar seu pon­teiro girar violentamente para a direita (os mostradores gethenianos se lêem ao contrário dos nossos ponteiros de relógio), tão depressa que mal podíamos ver caindo vinte, cinqüenta, oitenta graus, até que parava em algum ponto entre zero e sessenta negativos.

Um de nós desmontava a tenda e a dobrava, enquanto o outro ajeitava os embrulhos no trenó; a tenda era colocada por cima de tudo e bem amarrada. Estávamos prontos para nos atrelarmos aos arreios e esquiar. Pouco metal era usado nessas correias e arreios, mas algumas fivelas eram de liga de alumínio, impossíveis de abotoar com luvas e que nos queimavam os dedos desnudados como se estivessem incandescentes. Precisava tomar muito cuidado com meus dedos quando â temperatura ficava abaixo de vinte graus, especialmente quando ventava, pois poderiam ficar congelados em segundos. Meus pés nunca foram atingidos, e isto é um fator da maior importância numa jornada de inverno, onde uma exposição de uma hora ao frio intenso pode aleijar uma pes­soa por toda a vida.

Estraven tivera que calcular meu tamanho, e as raque­tas de neve que ele comprara para mim eram um pouco maiores, mas um par extra de meias ajustava-as perfeitamen­te. Calçamos os esquis e atrelamo-nos o mais rápido possí­vel; quando as lâminas deslizantes se recobriam de gelo nós as limpávamos e partíamos novamente.

Algumas manhãs, após uma nevasca forte, tínhamos que perder um bom tempo desenterrando com pás a tenda e o trenó, antes de poder caminhar. A neve recente não era difícil de cavar embora fizesse montes impressionantes ao nosso redor; eles eram o único empecilho com que nos defrotávamos por centenas de milhas, a única coisa que fazia relevo naquele lençol de gelo.

Mantínhamo-nos na direção leste guiados pela bússola. A direção usual do vento era nortesul, descendo das gelei­ras. Dia após dia soprava pela esquerda. O capuz não bas­tava como proteção contra ele e eu usava uma máscara facial que protegia meu nariz e o lado esquerdo. Mesmo assim, meu olho esquerdo gelou e fechou-se um dia, e eu pensei que o havia perdido. Mesmo quando Estraven o descongelou com seu hálito e sua língua, eu não enxerguei coisa alguma por um certo tempo; provavelmente algo tinha se congelado além dos cílios. À luz do sol, ambos usávamos protetores para os olhos, telas com uma fenda, e nenhum de nós foi afetado pela cegueira da neve. Mas também não havia opor­tunidade para isso. O gelo, como dissera Estraven, tende a manter uma zona de alta pressão sobre a sua área central, onde milhares e milhares de milhas de brancura refletem a luz do sol. Ainda não estávamos nesta zona central; quando muito, nas suas bordas, entre ela e a zona de tempestades turbulentas e de precipitação que atormentam continuamen­te as terras subglaciais. O vento norte traz tempo limpo, brilhante, mas quando vem do nordeste ou noroeste desloca a neve ou dilacera a neve que caiu, já seca, formando nuvens que cegam e ferem como areia nas tempestades de pó; ou, então, se reduzindo a quase nada, desliza em caminhos si­nuosos sobre a superfície gelada, deixando o céu branco, o ar branco, nenhum sol visível, nenhuma sombra; e a neve mesmo, o gelo, desaparece sob nossos pés.

Mais ou menos ao meio-dia fazemos uma parada; se o vento está forte, cortamos e montamos blocos de gelo numa parede protetora. Aquecemos a água para dissolver o gichy- michy e bebemos a infusão quente, às vezes com um torrão de açúcar dissolvido também, e de novo nos colocamos a ca­minho. Raramente falávamos enquanto caminhávamos ou durante a refeição, pois nossos lábios estavam feridos e quando abríamos a boca o frio penetrava fazendo doer os dentes, a garganta e os pulmões; era preciso conservar a boca fechada e respirar pelo nariz, especialmente quando o ar estava abaixo de zero, uns quarenta ou cinqüenta graus. Quando baixava mais que isso, o processo de respiração era ainda mais complicado pelo rápido congelamento do ar ex­pirado, e se não se prestasse atenção, as narinas poderiam fechar-se por congelamento; então, para evitar a sufocação, engoliam-se golfadas de lâminas cortantes de ar gelado.

Sob certas condições, nossa respiração, ao sair, conge­lava instantaneamente, fazendo um ruído frágil de coisa par­tida, como foguetes explodidos a distância e um chuveiro de minúsculos cristais; cada respiração era uma tempestade de neve em miniatura.

Caminhávamos até ficar exaustos ou até o tempo es­curecer; parávamos, arrumávamos a tenda e, se havia amea­ça de vento forte, prendíamos com cravelhas o trenó no chão e nos instalávamos para a noite. Num dia comum, te­ríamos marchado de onze a doze horas e feito cerca de doze a dezoito líiilhas. Não parece uma boa média, mas as condi­ções eram adversas. A crosta de neve raramente estava em condições adequadas para se fazer o trenó esquiar ou des­lizar. Quando leve e nova, o trenó corria através dela e não sobre ela; parcialmente endurecida, os esquis deslizavam, mas o trenó emperrava freqüentemente, o que nos levava a parar com um sobressalto; quando dura, estava sempre acumulada em longas ondas fabricadas pelo vento o sastrugi —, que em certos lugares chegam até quatro pés de altura. Tí­nhamos que puxar o trenó para o alto, sobre cada cume com bordas aguçadas ou cornijas, depois deslizá-lo para baixo e novamente para cima na seguinte, pois elas nunca pareciam correr paralelas ao nosso rumo.

Havia imaginado que todo o platô do Gobrin fosse constituído de um lençol gelado, mas nele havia centenas de milhas que se pareciam a um mar encapelado, totalmente enregelado.

Aquela história de fazer acampamento tomando precauções de segurança, retirar antes toda a neve acumulada no vestuário, etc., etc., era fatigante. Às vezes parecia tempo perdido. Era tarde, fazia frio, estávamos tão cansados que parecia melhor se acomodar dentro dos sacos de dormir, ao abrigo, e não se ocupar em armar a tenda. Lembro-me de como isto me vinha à cabeça certas tardes e de como eu me agastava amargamente com a insistência do meu companhei­ro para que fizéssemos tudo de modo correto e preciso. Odiava-o nestas ocasiões com uma força que se erguia de um sentimento destrutivo que jazia no meu espírito. Odiava as exigências ásperas, intrincadas e obstinadas que ele fazia em nome da sobrevivência. Quando tudo ficava pronto e entrávamos na tenda, quase que imediatamente o calor do fogareiro era sentido, como uma camada protetora, envolvente. Uma coisa maravilhosa nos rodeava: aquecimento. Morte e frio se distanciavam, lá fora. O ódio também ficava lá fora. Comíamos e bebíamos. Depois conversávamos. Quando o frio era extremo e nem mesmo a excelente insulação tér­mica da tenda conseguia conservá-lo de todo fora, ficávamos dentro dos nossos sacos, tão perto do fogão quanto possível. Uma pequena camada de geada revestia a superfície interior da tenda. Ao abrir a válvula de entrada, penetrava na tenda uma corrente de frio que se condensava imediatamente, enchendo a atmosfera interna com uma poeira rodopiante de neve finíssima. Quando havia tempestade de neve, agu­lhas de ar gelado penetravam através das aberturas, embora estas fossem bem reguladas, e uma poeira impalpável de cisco de gelo enevoava o ar. Nessas noites, a tempestade roncava com um barulho incrível e não podíamos conversar, a não ser que gritássemos, com as cabeças próximas uma da outra. Algumas noites, tudo ficava parado, com uma quietude que se imagina antes da formação dos mundos ou a que existirá após o aniquilamento total.

Uma hora depois da nossa refeição noturna, Estraven abaixava o fogareiro — se fosse possível — e desligava a emissão de luz. Quando fazia isto, murmurava uma prece de graças, curta e encantadora, as únicas palavras do ritual handdara que eu consegui aprender: "Louvadas sejam a treva e a criação inacabada". Dormíamos. Pela manhã, reco­meçava tudo. Fizemos isto cinqüenta dias.

Estraven mantinha seu diário, apesar de não ter escrito mais do que anotações do tempo e da distância percor­rida por dias e dias seguidos, durante o percurso no gelo. Entre essas notas, há menções ocasionais, raras, de algum pensamento seu ou algum detalhe de nossas conversas. Mas nenhuma palavra sobre os diálogos mais profundos entre nós que enchiam nosso repouso, entre o jantar e o sono, nas muitas noites do primeiro mês no gelo, enquanto ainda tí­nhamos energia suficiente para conversar; ou de certos dias em que ficamos prisioneiros na tenda, retidos por tempesta­des. Contei-lhe que eu não fora proibido de usar a conver­sação paraverbal num planeta não aliado, mas que não era hábito fazê-lo; e pedi-lhe para guardar com ele o que apren­dera comigo, pelo menos até que pudesse debater o que fizera com meus companheiros da nave. Ele concordou e manteve a palavra. Nunca disse nem escreveu nada sobre nossas conversas silenciosas. Essa conversa mental era a úni­ca coisa que eu podia oferecer a Estraven, além da minha civilização e da minha realidade de estranho, na qual ele estava tão interessado. Eu podia conversar e descrever coisas de modo infindável, mas era tudo o que tinha a dar. Na realidade, talvez seja a única coisa importante que tenhamos para oferecer ao planeta Inverno. Mas não podia dizer que fora gratidão o motivo que me fez infringir a Lei do Em­bargo Cultural. Não estava pagando uma dívida. Estraven e eu tínhamos chegado, simplesmente, ao ponto em que partilhávamos de tudo que era digno de partilhar. Espero que algum dia seja possível o relacionamento sexual entre o getheniano bissexuado e o ser humano tipo hainiano, unissexuado, embora tal relação seja, inevitavelmente, estéril. Isto ainda está para ser provado. Estraven e eu não prova­mos nada, exceto talvez um detalhe, um tanto sutil: o ponto mais próximo de uma crise a que nossos desejos sexuais nos conduziram.

Era noite, no começo da segunda jornada sobre o gelo. Passáramos todo o dia lutando, avançando e recuando, na zona cheia de fendas, a oeste das montanhas de Fogo. Sentíamo-nos cansados mas vitoriosos, seguros de que um caminho limpo se abriria breve à nossa frente. Mas após o jantar Estraven ficou taciturno e cortou minha conversa logo de começo. Após uma das suas recusas abruptas, diretas, falei-lhe:

Harth, se eu disse algo errado de novo, por favor, diga-me o que foi!

Ficou silencioso.

Devo ter feito algo errado. Sinto muito. Não con­sigo aprender. Nunca compreendi bem o que vocês chamam de shifgrethor.

— Shifgrethor? Vem de uma velha palavra que quer dizer "sombra".

Ficamos silenciosos por uns instantes, e então ele me fixou com um olhar direto e gentil. Seu rosto, na luz aver­melhada, estava suave, vulnerável e distante como as feições de uma mulher que contempla você, meiga em seus pensa­mentos, mas silenciosa. Vi, então, novamente, e de uma vez por todas, o que eu sempre temera ver e de que havia pre­tendido não tomar conhecimento: a sua metamorfose, ho­mem e mulher ao mesmo tempo.

Qualquer necessidade de explicar as fontes desse medo desapareceu; o que me restava, afinal, era a aceitação dele tal como era. Até então eu o havia rejeitado, recusado sua realidade autêntica. Ele tinha aceitado quando eu lhe dis­sera — a única pessoa em Gethen que confiava em mim — que era o único getheniano em que eu não confiava. Pois ele era o único que tinha aceitado minha pessoa, completamen­te, como um ser humano; que tinha gostado de mim pessoal­mente e me dera sua lealdade pessoal por completo. Sendo assim, esperava de mim o mesmo grau de igualdade, reco­nhecimento e aceitação de si próprio. Eu não tinha demons­trado desejo de lhe ceder. Tivera medo. Não queria dar minha confiança, meu afeto, a um homem que era mulher, a uma mulher que era homem.

Explicou-me então que estava em kemmer e estava ten­tando evitar qualquer contato comigo. De modo seco, decla­rou simplesmente:

Não devo tocá-lo fisicamente — seu tom era extre­mamente constrangido e seu rosto estava voltado para o outro lado.

Compreendo; estou completamente de acordo — retruquei.

Foi aí que a grande e súbita certeza de nossa amizade se confirmou, uma amizade extremamente necessitada por ambos no nosso exílio e tão posta à prova nesses dias e noites de dura caminhada; amizade que bem poderia ser chamada, agora e depois, de amor. E essa certeza me pare­cia, como a ele também, ter aflorado daquela tensão sexual entre nós, agora admitida e compreendida, mas não aplacada.

Era um amor que surgira das nossas diferenças e não das nossas afinidades; para mim, ele era a ponte, a única ponte através de tudo o que nos separava. Nosso encontro sexual seria o encontro, mais uma vez, de outras tantas ex­periências de dois seres alienígenas. Tínhamos nos tocado da única maneira que poderíamos nos tocar. Deixamos ficar assim. Não sei se estávamos certos.

Falamos bastante mais aquela noite e lembro-me que me era muito difícil responder de modo claro quando ele me perguntou como eram as mulheres. Nos dias subseqüen­tes, permanecemos muito distantes e cautelosos um com o outro. Um amor profundo entre duas pessoas envolve, afi­nal, o poder e a oportunidade de ferir seriamente. Nunca me ocorrera, antes dessa noite, que eu poderia ferir Estraven. Agora que as barreiras haviam caído, as limitações nos meus termos em nossa conversa e entendimento mútuos pareciam- me intoleráveis.

Duas ou três noites após, ao terminar o jantar, disse ao meu companheiro que o mingau de kadik açucarado havia sido um regalo especial para comemorar um recorde de vinte milhas de percurso.

Na última primavera, aquela noite no seu castelo, você disse que queria que eu lhe falasse mais sobre a comu­nicação para verbal.

-— Falei...

Você quer ainda tentar aprender como se faz isso?

Ele riu:

Você quer me apanhar mentindo!

Se você mentiu para mim, foi há muito tempo e em outro país.

Ele era honesto, mas raramente direto. Aquilo o di­vertiu:

Em outro país posso lhe contar outras mentiras. Mas eu pensava que lhe fosse proibido ensinar essa ciência mental aos... nativos, digamos, até que nos agreguemos ao Conselho Ecumênico.

Não é proibido, mas em geral não o fazem. Mas eu o farei, se você quiser. E, claro, se eu puder. Não sou um especialista, um estimulador.

Há gente especialmente treinada para isto?

Há, não em Alterra, onde a percentagem de sensi­bilidade natural é alta; lá, dizem, as mães falam aos seus filhos ainda no ventre. Não sei o que os futuros bebês res­pondem. Mas quanto a nós, temos que aprendê-la como se fosse uma língua estrangeira. Ou melhor, nossa própria lin­guagem, mas aprendida muito tarde.

Creio que ele compreendeu por que lhe oferecera para ensinar-lhe esta técnica; desejava muito aprendê-la. Era uma tentativa que fazíamos. Procurei me lembrar como poderia fazê-lo, como tinha sido estimulado na idade de doze anos.

Iniciei dizendo-lhe que clareasse o espírito, deixasse-o vazio. Isto ele fez melhor, mais prontamente que eu, sem dúvida, pois era um discípulo do handdara. Então dirigi-lhe minha palavra mental, tão claramente quanto podia. Ne­nhum resultado. Tentamos de novo. A pessoa que recebe não pode emitir sem antes ter adquirido a capacidade re­ceptora. Até que a sensibilidade telepática tivesse sido sen­sibilizada por uma recepção nítida, eu tinha que chegar à sua mente primeiro. Tentei, por uma meia hora, até sentir-me "rouco" mentalmente. Ele parecia abatido.

—- Pensei que me seria fácil confessou.

Ambos estávamos esgotados e cancelamos a tentativa naquela noite. Nossos esforços nos dias seguintes não foram mais bem sucedidos. Tentei emitir um pensamento para Estraven enquanto ele dormia, lembrando-me do que meu estimulador me ensinara sobre a ocorrência de "mensagens em sonho" entre pessoas com o dom telepático, mas não funcionou.

Talvez falte esta capacidade à minha raça disse. Temos tido alguns sinais e suspeitas desse dom, até temos palavra para ele, mas não conheço nenhum exemplo com­provado de telepatia entre nós.

Assim foi também com minha gente por milhares de anos. Havia uns poucos sensitivos por natureza, que não compreendiam seu dom e que não tinham com quem se comunicar do mesmo modo. Todos os demais estavam em estado latente, se tanto. Já lhe falei de que, exatamente no caso de um sensitivo nato, a capacidade é psicológica, em­bora tenha uma base fisiológica: um produto da cultura, um efeito colateral do uso da mente. Crianças pequenas, retar­dados e membros de sociedades subdesenvolvidas ou em re­gressão não podem exercer esse dom. A mente tem que atingir um certo grau de complexidade primeiro. Você não pode formar aminoácidos a partir de átomos de hidrogênio; antes, uma série de operações complexas têm que ocorrer; é a mesma coisa. Pensamento abstrato, interação social va­riada, ajustamentos culturais intrincados, percepção estética e ética, tudo tem que atingir um determinado nível antes que certas conexões possam ser feitas, antes que esta poten­cialidade seja atingida.

Talvez nós, os gethenianos, não tenhamos atingido esse nível.

Vocês o ultrapassaram. Mas há o fator sorte. Como na criação dos aminoácidos... ou fazendo uma analogia no plano cultural, apenas uma analogia que ajuda a esclarecer: o método científico, por exemplo, o uso de técnicas experimentais concretas na ciência. Há povos do Conselho Ecumênico que possuem um padrão alto de cultura, uma sociedade complexa, filosofia, arte, ética de alto gabarito e um grande nível de realizações nestes campos; no entanto, nunca apren­deram a pesar uma pedra de modo preciso. Podem aprender, naturalmente. Apenas, por meio milhar de anos, nunca o fizeram. Há povos que não têm matemática altamente desen­volvida, nada além da mais simples aritmética. Cada um é capaz de aprender cálculo, mas nenhum deles o faz, nunca o fez. Na verdade, meu próprio povo, o da Terra, era igno­rante, até três mil anos atrás, quanto ao uso do zero.

Isto fez Estraven pestanejar.

Quanto a Gethen, o que estou curioso de saber é se o resto de nós vai ter a capacidade de fazer augúrios, se isto também faz parte da evolução da mente se vocês nos ensinarem as técnicas.

Você acha que é uma qualidade útil fazer profecias acuradas?

Naturalmente!

Você tem que chegar a acreditar que ela é uma coisa inútil a fim de poder exercê-la.

Seu handdara me fascina, Harth, mas de vez em quando me pergunto se não é um simples paradoxo aplicado em termos de meios de viver...

Tentamos a conversa mental de novo. Nunca fizera antes tantas tentativas com um não-receptor total. A expe­riência era desagradável. Comecei a sentir-me como um cien­tista tentando rezar. Estraven acabou bocejando e disse:

Sou surdo, surdo como uma rocha. É melhor ir dormir.

Concordei. Apagou a luz, murmurando sua breve prece das trevas; enfurnamo-nos nos nossos sacos e dentro de mi­nutos ele deslizava no sono como um nadador em águas escuras. Senti seu sono como se fosse o meu; o laço empá­tico lá estava, e, mais uma vez, chamei-o em pensamento, sonolentamente: "Therem!" Sentou-se reto, subitamente, e sua voz chegou até mim:

"Arek, é você?" "Não, sou eu, Genly Ai. Estou me comunicando em pensamento com você." Suspendeu a respiração. Silêncio. Remexeu no fogareiro, acendeu a luz e me fixou com seus olhos sombrios, cheios de medo:

Sonhei disse ele. Pensei que estava em casa.

Você recebeu a minha mensagem mental.

Você me chamou!? Era meu irmão. Foi a voz dele que ouvi. Ele está morto. Você me chamou de Therem? Eu... isto é mais terrível do que eu pensava.

Ele sacudiu a cabeça, como se faz quando se quer ex­pulsar um pesadelo da memória, e depois enfiou-a entre as mãos.

Harth, desculpe-me.

Não, me chame pelo meu nome. Se você pode falar dentro do meu crânio com a voz de um homem morto, então você pode me chamar pelo meu primeiro nome. Ele teria me chamado Harth? Ah, estou sentindo por que não há mentiras nisto. É terrível... Está bem, está bem; fale co­migo de novo.

Espere.

Não. Continue!

Com seu olhar ardente e assustado sobre mim, dirigi-me a ele mentalmente. "Therem, meu amigo, não existe nada a temer entre nós dois."

Continuou olhando-me fixamente; pensei que não en­tendera. Mas não.

Ah, existe sim: disse. Após uns instantes, con­trolando-se, disse mais calmo: Falou na minha língua.

Bem, você não conhece a minha.

Você disse que havia palavras, sei... entretanto, eu imaginava isto mais como uma compreensão...

Empatia é uma outra coisa, embora não esteja des­ligado dela. Foi ela que nos ligou esta noite. Mas na comu­nicação mental propriamente dita os centros da fala no cérebro são ativados, assim como...

Não, não, não. Fale-me disto depois. Por que falou com a voz do meu irmão? Sua voz estava carregada de emoção.

A isto não sei como responder; não sei. Fale-me dele...

Nusuth... Meu irmão de sangue, Arek Harth rem ir Estraven. Era um ano mais velho que eu. Teria sido o senhor de Estre. Nós... eu abandonei o lar, você sabe, pelo bem dele. Ele já está morto há catorze anos.

Ficamos em silêncio. Não podia perguntar-lhe o que havia por trás de suas palavras. Tinha lhe custado dizer o que dissera. Afinal falei-lhe:

Fale mentalmente comigo, Therem. Chame-me pelo meu nome...

Eu sabia que ele poderia fazê-lo: a ligação estava feita, ou, como os técnicos dizem, as fases eram consonantes e, naturalmente, ele não tivera ainda a idéia de como erguer a barreira voluntariamente. Se fosse eu o que escutava, pode­ria mesmo ouvi-lo pensar.

Não retruquei. Nunca... ainda não...

Mas nenhum choque, espanto, terror, poderia controlar

aquela mente insaciável, expansiva, por muito tempo.

Após ter desligado a luz, de novo, subitamente, ouvi seu gaguejar no meu ouvido interior: "Genry..." Mesmo em comunicação mental, ele nunca poderia dizer "Genly" de modo certo. Repliquei imediatamente; no escuro, articulou um som angustiado de medo, mas com um certo sabor de satisfação.

Basta, basta disse alto. Após instantes, consegui­mos por fim dormir.

Isto não lhe vinha facilmente. Não que lhe faltasse o dom ou não pudesse desenvolver a habilidade, mas porque era algo que o inquietava profundamente e ele não aceitava com naturalidade. Aprendeu rápido como extinguir as bar­reiras mentais, mas não estou certo de que podia contar muito com elas. Talvez todos nós fôssemos assim, quando os primeiros estimuladores vieram, há séculos, do mundo de Rokanon, ensinando-nos esta "arte perdida". Talvez o ge- theniano, sendo um ser singularmente completo, sinta essa fala telepática como uma violação desta sua totalidade, uma brecha na integridade, dura de ser suportada por ele. Talvez fosse próprio do caráter de Estraven, no qual candura e reserva eram igualmente fortes: cada palavra que dizia surgia das profundidades silenciosas. Ouviu minha voz como a voz de um morto, a voz do seu irmão. Eu não sabia o que existia entre ele e aquele irmão além de amor e morte; mas sentia que todas as vezes em que nos comunicávamos telepaticamente, algo nele estremecia e se encolhia como se tocasse numa ferida. Tanta intimidade entre nós dois estabelecida mentalmente era, na realidade, um laço, mas um laço obscuro e austero, não admitindo muito esclarecimento (como eu esperava que acontecesse), somente mostrando mais a ex­tensão dessa escuridão do desconhecido.

Dia após dia arrastávamo-nos para leste, sobre a planície gelada. O tempo central dessa nossa caminhada, como planejáramos, o 35.° dia, odorny anner, nos encontrou a pou­ca distância do meio do espaço a percorrer. Pelo marcador de distância, já havíamos, na verdade, viajado cerca de quatrocentas milhas, mas provavelmente apenas três quartos disto tinham sido realmente um avanço para a nossa meta e poderíamos calcular apenas por alto quanto ainda deveríamos percorrer.

Tínhamos gasto dias, milhas, rações na nossa longa pe­leja para atingir o Gelo Eterno. Estraven não estava tão preocupado quanto eu pelas centenas de milhas que tínhamos à nossa frente.

O trenó está mais leve — disse. — No final do percurso estará mais leve ainda e poderemos reduzir as ra­ções, se for necessário. Temos comido muito bem, você sabe.

Pensei que ele estava sendo irônico, mas deveria saber melhor que eu.

No 40.° dia e nos dias subseqüentes fomos detidos por uma tempestade. Durante essas longas horas de permanên­cia na tenda, bloqueados, Estraven dormiu quase que ininterruptamente e não comeu nada, embora bebesse orsh ou água açucarada nas refeições. Ele insistia para que eu co­messe ao menos metade das rações.

Você não tem prática em jejuar.

Senti-me humilhado.

E você, senhor dos domínios e primeiro-ministro, tem?

Genry, praticamos jejum até que ficamos treinados nele. Ensinaram-me a jejuar desde criança, no meu lar em Estre, e entre os handdaratas, no Monastério de Rotherer. Perdi a prática em Erhenrang, é verdade, mas recomecei o treino em Mishnory. Por favor, atenda-me. Sei o que estou dizendo, meu amigo.

Ele jejuou e eu o obedeci.

Continuamos com mais quatro dias cruéis, nunca acima de vinte e cinco graus negativos, quando outra tempestade se aproximou, soprando forte sobre nós, vinda de leste, acompanhada de furacão. Dentro de dois minutos, após as primeiras lufadas violentas, a neve rodopiou tão espessa que não podia ver Estraven a seis pés de distância. Eu havia voltado minhas costas para ele e para o trenó a fim de recuperar meu fôlego, sufocado pela neve asfixiante e cegante, e, quando, logo a seguir, me voltei, ele tinha desaparecido. Nada mais estava na minha frente, nem ele nem o trenó. Andei como um cego, tateando, na direção em que ele deveria estar. Nada. Gritei, mas não podia ouvir a minha própria voz. Estava surdo e só, num universo compacto, ofuscado por milhares de fagulhas cinzentas diminutas. Entrei em pâ­nico e comecei a andar às tontas, fazendo apelos, tentando a comunicação mental de modo frenético.

"Therem!"

Bem abaixo de minha mão, ajoelhado, ele respondeu:

Vamos, dê-me uma ajuda para amarrar a tenda.

Obedeci e jamais toquei naquele minuto de pânico. Não era necessário. Essa tempestade durou dois dias; tínhamos perdido cinco dias e haveria mais. Nimmer e Anner são os meses das grandes nevascas.

Estamos começando a esgotar a reserva, não? — disse ele uma noite quando eu media nossas rações e as dis­solvia em água quente.

Olhou-me. Seu rosto firme e largo mostrava sinais de perda de peso nas profundas sombras das maçãs do rosto; seus olhos tinham se afundado e a boca estava ferida, com os lábios rachados. Só Deus sabe da minha aparência, se Estraven estava assim!

Ele sorriu:

Com sorte conseguiremos, mas sem ela nada feito.

Era o que havia dito desde o início. Com todas as mi­nhas ansiedades, minha impressão de estar jogando uma car­tada final desesperada, eu não fora bastante realista para acreditar nele. Mesmo agora, eu pensava: "Certamente, como temos feito esse esforço penoso..." Mas o gelo não sabe o que é esforço penoso. Por que o saberia?

Como vai a sua sorte, Therem? — disse finalmente.

Ele não sorriu a isto. Nem respondeu. Apenas, após um instante, falou:

Tenho pensado sobre eles, lá embaixo.

Lá embaixo, para nós, significava o sul, o mundo fora do platô de gelo, região de homens, terras, estradas, cidades, tudo que agora se tornava tão difícil de imaginar como coisa real.

Você sabe que enviei mensagem para o rei sobre você, no dia em que deixei Mishnory. Narrei-lhe o que Shusgis me contara, que você estava sendo enviado para a fazenda de Pulefen. Naquele momento, minhas intenções não estavam claras, apenas segui meu impulso... Tenho pensado nele, desde então. Algo assim pode acontecer. O rei verá uma oportunidade de pôr em jogo seu orgulho pessoal. Tibe vai aconselhar contra, mas Argaven deve estar ficando um pouco cansado dele agora e pode ignorar seu conselho. Ele vai perguntar: "Onde está o Enviado, o con­vidado de Karhide?" Mishnory vai mentir. Vai dizer que morreu de febre de horm neste outono, o que "lamentam muito". E continuarão o diálogo mentiroso: "Então, como se explica que tenhamos sido informados pela nossa embai­xada que ele está na fazenda de Pulefen?" "Ele não está lá, vocês podem ir ver." "Não, não, naturalmente que não; acreditamos na palavra dos comensais de Orgoreyn..." Al­gumas semanas após essa troca de mensagens, o Enviado aparece no Karhide setentrional, tendo escapado de Pulefen. Consternação em Mishnory, indignação em Erhenrang. Os comensais ficam muito vexados, pois foram apanhados men­tindo. Você será um tesouro, um irmão há muito perdido e que volta ao lar, para o Rei Argaven, Genry. Mas por pouco tempo. Você deve mandar buscar sua nave estelar imediata­mente, na primeira oportunidade que tiver. Traga seu povo a Karhide e lá realize sua missão imediatamente, antes que Argaven tenha tempo de ver um possível inimigo em você, antes que Tibe ou algum outro conselheiro o assuste nova­mente, jogando com sua loucura. Se ele fizer um negócio com você, manterá a palavra. Quebrá-la será como partir sua honra. Os reis Harge mantêm sua palavra. Mas você tem que agir ligeiro e trazer a nave logo.

Eu o farei, desde que receba o mais leve sinal de boas-vindas.

Não, perdoe-me aconselhá-lo, mas você não deve esperar por boas-vindas. Você as terá, eu creio. O mesmo com a nave. Karhide tem sido dolorosamente humilhada neste meio ano. Você vai dar a Argaven a oportunidade de mudar tudo. Creio que ele não perderá a oportunidade.

Muito bem. E você, enquanto isso...

Eu sou Estraven, o Traidor. Não tenho nada a ver com você.

No começo... — sugeri.

No começo... — ele concordou.

Você poderá se esconder, se houver perigo logo no início?

Certamente que posso.

Nossa comida estava pronta e nos atiramos a ela. Co­mer era uma coisa tão importante que nunca conversávamos enquanto comíamos; o tabu estava sendo completamente cumprido, talvez na sua forma original, nenhuma palavra pronunciada, até ser ingerida a última migalha. Quando acabou, ele disse:

Bem, espero que tenha previsto tudo bem. Você fará... desculpe...

Você está me dando um conselho direto?

Havia certas coisas que eu, finalmente, chegara a compreender. E continuei:

Naturalmente que sim, Therem. Realmente, como você pode duvidar disto? Você sabe que para mim não há shifgrethor a defender...

Isto o divertiu, mas estava ainda pensativo.

Por que veio só? disse afinal. Por que foi enviado sozinho? Tudo vai depender de aquela nave descer. Por que tudo foi feito tão dificultoso para você e para nós?

É o costume dos ecúmenos, e há razões para isso. Apesar de que, na realidade, estou ponderando se jamais compreendi estas razões. Eu pensava que era em benefício de vocês que eu estava vindo só, tão obviamente só, tão vulnerável que minha pessoa não seria uma ameaça, não alteraria o equilíbrio das coisas; não uma invasão, apenas um mensageiro. Nada existe a mais que isso. Só, eu não posso mudar seu mundo, mas posso ser mudado por ele. Só, devo ouvir e falar. Só, as relações que eu possa fazer, se chegar a fazer, não são impessoais e não apenas políticas. São individuais, pessoais. Não nós e eles, mas eu e você. Não política, não pragmática, mas mística num certo sentido; o Conselho Ecumênico é um organismo místico, não um orga­nismo político. Eles consideram todo começo muito impor­tante. Começos e meios. Sua doutrina é justamente o oposto daquela em que os fins justificam os meios. Sendo assim, agem de modo sutil e vagaroso, ao mesmo tempo estranho e arriscado, do mesmo modo que a evolução, que, em certo sentido, é seu modelo... Assim, fui enviado só, em seu benefício ou no meu próprio? Não sei. É verdade, isto tornou os acontecimentos mais difíceis. Mas eu podia perguntar: por que vocês nunca se acharam em condições de inventar veículos que voem no ar? Um desses pequenos aeroplanos roubado ter-nos-ia poupado um bocado de dificuldades!

Como poderia ocorrer a um homem são que ele pu­desse voar?! retrucou firmemente Estraven.

Era uma boa questão, num mundo em que nenhum ser vivente é alado e os anjos da hierarquia yomeshta não voavam, mas deslizavam como a neve suave a cair, como as sementes ao vento naquele mundo sem flores.

Nos meados de Nimmer, após muito vento e frio, en­tramos num período de tempo calmo por muitos dias. Se havia tempestade era na direção sul, lá embaixo; e nós, no interior da nevasca, tínhamos um céu encoberto, mas sem vento. A princípio essa coberta de nuvens era fina e o ar ficava radiante, com uma luz solar difusa e uniforme refle­tida tanto das nuvens quanto da neve, do alto e de baixo. Durante a noite, o tempo piorou. Todo o brilho desa­pareceu, deixando um vazio. Penetramos nele logo ao sair da tenda. O trenó, a tenda e Estraven lá estavam, ao meu lado. Mas nem eu nem ele projetávamos nenhuma sombra. A luz era uniforme em torno de nós, abrangendo tudo. Quan­do andávamos sobre a neve eriçada, nenhuma sombra apa­recia nas pegadas. Não deixamos rastros. Trenó, tenda, eu, ele, nada, absolutamente nada. Nenhum sol, nenhum céu, horizonte ou mundo. Um vazio cinza, esbranquiçado, no qual parecíamos flutuar. A ilusão era tão completa que eu preci­sava tomar cuidado para conservar meu equilíbrio. Meu ouvido interno se acostumara ao comando da visão quanto à posição que tomava; e nada captava, pois era como se estivesse cego. Tudo foi bem enquanto carregamos o trenó, mas puxá-lo sem nada pela frente, nada para olhar, nada como ponto de referência para os olhos daquele modo foi, inicialmente, desagradável e, depois, exaustivo. Estávamos de esquis, numa boa superfície de fim, sem sastrugi e sólida — isto era certo. Deveríamos desenvolver um bom tempo de percurso, mas íamos cada vez mais lentamente, tatean­do nosso caminho através daquela planície, sem nenhum obstáculo, e mantermos um ritmo normal de caminhada exi­gia um grande esforço de vontade. Cada pequena alteração na superfície chegava com um tranco, como ao subir escadas, o degrau inesperado ou então o degrau esperado e ausente, pois não podíamos ver nada adiante. Não havia sombras como referência. Esquiávamos cegos com nossos olhos aber­tos. Dia após dia foi assim. Começamos a encurtar nossas jornadas, pois no meio da tarde ambos estávamos suando e tremendo com o esforço e o cansaço. Cheguei a desejar neve, tempestade, qualquer coisa; mas manhã após manhã saíamos da tenda no vazio, no branco, o que Estraven chamava de não-sombra.

Um dia, cerca de meio-dia, odorny nimmer, o sexagé­simo primeiro da jornada, aquela branquidão em torno co­meçou a deslizar e se encolher. Pensei que meus olhos me enlouqueciam e dei pouca atenção à comoção do ar até que, subitamente, percebi um vislumbre de um apagado sol mortiço sobre nós. E olhando para baixo, na direção do sol, bem na nossa frente, vi uma imensa forma negra surgir do vazio na nossa direção. Tentáculos negros se contorciam para cima, como tentando se agarrar no espaço. Estanquei, bloqueado, nos meus passos, e fiz com que Estraven se contorcesse nos esquis, pois estávamos ambos nos arreios, puxando o trenó. O que é?!

Ele contemplou aquela monstruosa forma escura escon­dida na cerração e disse por fim: Os penhascos! Deve ser o Esherhoth. E continuou a puxar.

Estávamos a milhas de distância deles, mas eu pensara estarem quase ao alcance de meu braço. À proporção que aquela brancura se transformava em um nevoeiro baixo e espesso que desaparecia gradativamente, pudemos ver os penhascos claramente, antes do pôr-do-sol: grandes pináculos rochosos devastados e corroídos projetando-se para fora do solo, não aparecendo mais do que os icebergs aparecem aci­ma do mar, isto é, montanhas geladas, afogadas, mortas há milênios.

Descobrimos depois que estavam algo ao norte de nossa rota mais curta, se é que podíamos confiar no mapa mal desenhado que possuíamos.

No dia seguinte foi a primeira vez que mudamos nosso rumo um pouco para sudeste.

 

 

                           Volta ao lar

Sob um céu sombrio e ventoso, mourejamos todo o dia tentando encontrar na visão dos penhascos de Esherhoth uma razão de estímulo e encorajamento,, pois era a primeira coisa que víamos, em sete semanas, diferente de gelo, neve ou céu. Eles estavam assinalados no mapa como vizinhos aos pântanos de Shenshey, em direção sul e a leste da baía de Guthen. Mas este mapa da área do Gobrin não era de me­recer todo nosso crédito. E estávamos ficando extenuados.

Percebemos que estávamos mais próximos da região meridional da zona das geleiras, que o mapa indicava pelo reencontro do gelo comprimido e cheio de fissuras, no nosso segundo dia de rumo sul. O solo não estava tão convulsio­nado quanto na região das montanhas de Fogo, mas era péssimo também. Encontrávamos vastas áreas afundadas, provavelmente o leito de lagos no verão; falsos assoalhos de neve que poderiam se abrir sob os pés, como uma imensa goela, e nos tragar no bolsão de ar que ficava logo abaixo; áreas inteiras cheias de gretas e borbulhas; e cada vez mais freqüentes as grandes fissuras, velhos desfiladeiros abertos no gelo, alguns tão largos como as gargantas entre monta­nhas e outros de dois a três pés de largura, mas profundos. No odyrny nimmer (pelo diário de Estraven) o sol apareceu depois de um forte vento norte. Enquanto deslizávamos o trenó através de pontes de gelo, sobre estreitas fendas, tanto para a esquerda quanto para a direita, víamos abismos azu­lados nos quais pedras de gelo deslocadas pelos deslizadores caíam com uma sonoridade delicada, apagada, mas profun­da, como se agulhas de prata ressoassem em finas lâminas de cristal, batendo nelas ao cair.

Lembro-me bem do prazer dessa corrida, leve como um sonho, na manhã ensolarada sobre os abismos. Mas o céu começou a embranquecer, o ar tornou-se espesso; sombras desapareceram, também o azul do céu e da neve. Não estávamos preparados para o perigo da frente branca nessa superfície acidentada. Como o gelo estivesse pesadamente ondulado, eu estava empurrando enquanto Estraven puxava; eu tinha os olhos postos no trenó, minha mente concentrada nesse impulso quando, de repente, a barra como que se arrancou violentamente de minhas mãos que a agarravam firme­mente e o trenó correu veloz para a frente numa súbita investida. Agarrei-o por instinto e gritei: "Espere!", para Estraven diminuir a marcha, pensando que ele acelerara ao encontrar um terreno fácil. Mas o trenó deteve-se subitamente, com uma forte inclinação para baixo na sua parte dianteira e Estraven não estava lá. Quase abandonei a barra de direção do trenó para ir procurá-lo. Foi pura sorte eu não o ter feito. Sustentei-o enquanto olhava estupidamente em torno, à sua procura, e foi assim que eu vi a borda de uma fenda, tornada visível pela queda de uma outra seção da ponte de gelo que se quebrara. Ele tinha caído direto, pelos pés, e nada iria impedir o trenó de segui-lo a não ser o meu peso, que sustentou firme a parte traseira dos deslizadores no gelo. Ele continuou deslizando para baixo pela força do peso de Estraven, que estava pendurado pelos arreios na boca do abismo.

Fiz toda a pressão que pude sobre a parte traseira do trenó, puxando, sacudindo violentamente e manobrando como alavanca para tirá-lo da borda do precipício. Ele não veio facilmente. Mas joguei todo o meu peso até que come­çou relutantemente a se mexer e então deslizou abrupta­mente da borda. Estraven tinha conseguido firmar suas mãos na borda do precipício e seu peso agora me ajudava. Agarrando-se com mãos e pés e puxado pelos arreios, ele chegou à borda da fissura e estatelou-se de cara no gelo. Ajoelhei-me ao seu lado, tentando desafivelar seus arreios, alarmado pela maneira como ele estava esparramado no chão, como morto, exceto pelo movimento de respiração opressa no seu peito. Seus lábios estavam cianóticos, e um dos lados do rosto arranhado e ferido.

Sentou-se afinal, desequilibrado ainda, e disse num fra­co sussurro:

Tudo azul... azul... torres imensas lá embaixo.

O quê?

No abismo. Tudo azul — cheio de luz.

Você está bem?

Procurou afivelar-se novamente.

— Você vai na frente... com uma corda... e uma bengala. — Ele ofegava. — Vá sondando o caminho.

Assim foi. Por algumas horas nos revezamos, um puxan­do e outro guiando, tateando o caminho como um gato sobre uma casca de ovo, percutindo o solo a cada passada a ser dada, com antecipação, com a bengala. Nesse ambiente de branco total não se podia ver uma fissura a não ser quando se estava em cima dela, olhando já para o fundo — e então seria tarde, pois as bordas eram íngremes e nem sempre fir­mes. Cada passada era uma surpresa, uma queda ou um so­lavanco. Nenhuma sombra. Uma esfera totalmente única, branca: nós nos movíamos no interior de uma imensa bola de vidro gelado. Nada dentro, nada fora. Mas havia racha­duras nesse vidro. Tatear e dar um passo. Tatear e dar um passo. Tatear em busca daquelas rachaduras invisíveis atra­vés das quais cairíamos, sempre, sempre, sempre... Uma tensão sem tréguas foi tomando, aos poucos, conta de todos os meus músculos. Tornou-se extremamente penoso dar um passo sequer.

O que é que há, Genry?

Fiquei lá parado, no meio do nada. Lágrimas brotaram e congelaram minhas pálpebras, fechando-as.

Tenho medo de cair.

Mas você está amarrado na corda — disse ele. Veio à frente e vendo que não havia nenhuma fenda visível, per­cebeu o que se passava e disse:

Armar acampamento.

Não está na hora. Temos que continuar.

Mas ele já estava desamarrando a tenda. Mais tarde, após a refeição, disse: — Já era tempo de parar. Não creio que possamos continuar neste rumo. O gelo parece estar caindo em pedaços e estará sempre assim durante todo o percurso. Se pudéssemos ver, estaria bem. Mas não cegados pela brancura.

Então como vamos chegar aos pântanos?

Bem, se continuarmos rumo ao leste, em vez de ten­tar o sul, poderemos atingir um gelo em boas condições perto da baía de Guthen. Eu vi as geleiras uma vez no verão, de barco, na baía. Elas atingem as encostas das montanhas Vermelhas e vão alimentar os rios de gelo, abaixo, que vão até a baía. Se descêssemos uma dessas geleiras poderíamos dar uma corrida para o sul do mar de gelo até Karhide e assim entrar pelo litoral e não por terra, o que talvez seja melhor. Mas isto vai somar algumas milhas a mais -— aproximadamente entre vinte e cinqüenta, assim creio. Qual é a sua opinião, Genry?

Minha opinião é que eu não posso dar mais vinte passos enquanto perdurar essa brancura total.

E se conseguirmos sair dessa área de fendas?

Bem, se sairmos dela está bem. E se o sol aparecer de novo, você senta no trenó e eu lhe faço uma corrida grátis até Karhide. — Isto era típico das nossas pobres ten­tativas de humor, nessa altura da caminhada; eram tolas mas conseguiam fazer-nos ri. Não há nada errado comigo falei —, exceto um medo agudo crônico.

Medo é muito útil. Como escuridão, como sombra. O seu sorriso era uma feia fenda, numa máscara escura, rachada e se despelando, recoberta com peles pretas e com duas pintas de rocha negras. É estranho que a luz do dia não seja o bastante. Precisamos das sombras para poder caminhar.

Dê-me aqui seu caderno de apontamentos. Ele tinha anotado nossa caminhada do dia e feito cálculos de contagem de milhas e rações. Empurrou aquele bloco e seu lápis de carvão para mim. No reverso da capa, desenhei a curva dupla dentro do círculo e escureci a metade yin do símbolo; depois empurrei-lhe o caderninho de volta, per­guntando: -— Conhece esse sinal?

Olhou-o por muito tempo com um olhar estranho e retrucou: Não.

Ele é usado na Terra, em Hain e Chiffewar. É o yin e o yang. Luz é a mão esquerda da escuridão... Como diria? Luz, sombra. Medo, coragem. Frio, quente. Masculi­no, feminino. É como você, Therem. Ambos e um só. Uma sombra escura na neve branca.

No dia seguinte, tateamos nosso caminho para nordeste através dessa ausência branca de tudo, até que não encontramos mais nenhuma rachadura no solo um dia inteiro de percurso. Estávamos a dois terços da ração, esperando cobrir a distância maior sem privação de alimento. Parecia-me que não importava muito se tal acontecesse, pois a dife­rença entre pouco e nada parecia muito sutil. Estraven, no entanto, estava na trilha do que chamava sua sorte, seguindo o que parecia ser a intuição ou premonição, mas que era mais experiência aplicada e raciocínio. Fomos na direção leste por quatro dias, quatro dos mais longos percursos que já fizéramos, de dezoito a vinte milhas por dia. Foi então que o tempo que se conservava parado no zero se alterou, e houve um rodopiar ininterrupto de partículas de neve em torno de nós, na frente, atrás, dos lados, nos olhos, uma tempestade começando enquanto a luz desaparecia. Ficamos três dias abrigados dentro da tenda enquanto a tempestade rugia lá fora, um longo uivo ininterrupto de pulmões que não respiravam.

Isto vai me levar a gritar de novo — disse a Estraven, em conversação mental, e ele, com aquela formali­dade hesitante que marcava sempre esse tipo de entendi­mento: — Inútil, o vento não escutará.

Dormíamos horas seguidas, comíamos pouco, cuidáva­mos de nossas ulcerações produzidas pelo frio, inflamações e queimaduras, um pouco de conversa mental, e de novo sono. O lamento ininterrupto do vento foi morrendo aos poucos em uma espécie de murmúrio, depois em soluços, depois silêncio. O dia irrompeu. Através da válvula de abertura da porta, o brilho do céu penetrava. Aqueceu o coração embora estivéssemos muito deprimidos para sermos capazes de mostrar nosso alívio com alacridade ou expansão de movimentos. Desmontamos o acampamento — o que nos levou um par de horas, pois nos arrastávamos como dois velhos — e par­timos. O caminho era estrada abaixo, um inconfundível, leve declive — a crosta estava perfeita para esquiar. O sol bri­lhava. O termômetro, pelo meio da manhã, acusava dez graus abaixo de zero. Parecíamos adquirir forças à propor­ção que avançávamos, e o fazíamos de modo rápido e fácil. Andamos neste dia até as estrelas aparecerem no céu. Para jantar, Estraven nos regalou com uma ração completa. Na­quela média, teríamos o suficiente para mais sete dias.

A roda da fortuna continua girando — disse ele com serenidade. — Para fazer uma boa marcha, temos que comer direito.

Coma, beba e divirta-se — retruquei. O alimento tinha me levado a um estado de euforia. Ri-me exagerada­mente das minhas próprias palavras. — Tudo uma coisa só: comer, beber, divertir-se. Não se pode ser alegre sem comer, não é? — Isto me parecia um mistério quase igual ao do círculo yin-yang, mas não durou. Algo na expressão de Es­traven acabou com ela. Senti então vontade de chorar, mas consegui me dominar. Estraven não era tão forte quanto eu, e isto não era justo, ele iria chorar também. Mas já estava dormindo, adormecera sentado com a tigela no colo.

Não era muito próprio dele ser assim tão pouco metódico. Mas dormir era uma boa idéia.

Acordamos tarde na manhã seguinte. Fizemos uma re­feição dupla e nos pusemos nos arreios a puxar nosso trenó, agora leve, até a borda do mundo.

Para baixo dela, que era uma encosta muito íngreme, branca e vermelha, à luz pálida do meio-dia, estava à nossa vista a baía de Guthen: um mar congelado, de uma margem a outra e de Karhide até o pólo Norte.

Para descer até esse mar de gelo através de rebarbas partidas, saliências, plataformas e trincheiras de gelo que se conglomeravam entre as montanhas Vermelhas levamos aque­la tarde e o dia seguinte todo. No segundo dia abandonamos o trenó. Fizemos mochilas para carregar às costas; a tenda era o volume maior, que um de nós carregava, e os sacos de dormir o outro, sendo que as provisões estavam igualmente distribuídas. Tínhamos um peso menor que vinte e cinco libras para cada um carregar; acrescentei o fogareiro ao meu pacote. Era bom se livrar daquele infindável em­purrar e puxar, tropeçar e desembaraçar com dificuldade. Falei disso a Estraven, que relanceou o olhar para trás para o trenó abandonado, uma coisa indefesa naquele vasto tor­mento de gelo e rocha avermelhada.

— Trabalhou bem — disse ele. Sua lealdade se esten­dia, na mesma proporção, às coisas, às coisas pacientes, obsti­nadas, de confiança, que usamos e com que nos acostuma­mos por nos ajudarem a viver. Ele sentia falta do trenó.

Naquele anoitecer, o septuagésimo quinto de nossa jor­nada e o qüinquagésimo primeiro no platô, harhahad anner, abandonamos os gelos eternos do Gobrin pelo mar de gelo da baía de Guthen. Novamente viajamos muito tempo e até tarde, até escurecer. O ar era frio, mas claro e parado, e a superfície gelada, muito plana e sem trenó para arrastar, convidava a esquiar. Quando montamos nosso acampamento naquela noite era estranho pensar que, ali deitados, abaixo de nós, não havia mais milhas de gelo mas apenas uma camada de uns poucos pés e logo abaixo, água salgada. Mas não perdemos muito tempo pensando. Comemos e dormimos.

À aurora, novamente dia límpido, apesar de terrivel­mente frio, já a quarenta graus abaixo de zero ao nascer do sol; olhando na direção sul, podíamos ver o litoral, avolumando-se aqui e ali com línguas de gelo que se projetavam acima do horizonte e que iam caindo para o sul, até ficar quase uma linha horizontal. Seguimos perto da costa, no começo. Um vento norte nos favorecia até que alcançamos uma boca de vale entre duas montanhas alaranjadas; dessa garganta descia, uivando, um vendaval feroz que nos derru­bou no chão. Fugimos precipitadamente para leste, para a planície marítima, onde ao menos podíamos ficar em pé e continuar caminhando.

Os gelos eternos do Gobrin estão nos cuspindo fora de sua boca! exclamei.

No dia seguinte, a curva para leste do litoral estava livre, plana, à nossa frente. À nossa direita, Orgoreyn, mas aquela curva azulada adiante era Karhide.

Naquele dia acabamos com os últimos grãos de orsh e os restos do germe de kadik. Tínhamos agora para cada um duas libras de gichy-michy e seis onças de açúcar.

Não sei descrever esses últimos dias de nossa jornada muito bem porque, realmente, não consigo me lembrar deles com nitidez. A fome pode aguçar a percepção, mas não quando combinada com uma fadiga extrema; suponho que meus sentidos tenham ficado embotados. Lembro-me de ter tido câimbras de fome, mas não me lembro do sofrimento que sentia com elas. Sentia, sim, todo o tempo, um vago sentimento de liberação por haver ultrapassado um limite, e de alegria, além de uma terrível sonolência. Chegamos à terra firme no décimo segundo dia, posthe anner, e subimos com dificuldade para uma praia gelada e para dentro da desolação rochosa da costa de Guthen. Estávamos em Karhi­de. Tínhamos atingido nossa meta. Nossos estoques tinham acabado por completo. Fizemos um festival de água quente para comemorar a chegada. Na manhã seguinte, levantamo- nos para descobrir uma estrada qualquer, algum indício de habitação humana. Se havia alguma estrada, ela estava debaixo de uns dez pés de neve e talvez a tivéssemos cruzado várias vezes sem o saber. Não havia nenhum sinal de terra lavrada. Andamos vagueando de sul a oeste naquele dia e no dia seguinte. Ao entardecer deste, vimos uma luz bri­lhando numa colina distante através do escurecer quando caía uma neve fina. Calamo-nos por alguns instantes. Fi­camos parados, olhando. Afinal, meu companheiro falou, rouco:

É uma luz?

Já era muito tarde da noite quando chegamos, camba­leando, a um vilarejo karhideano, uma rua só entre casas escuras, de tetos pontudos, a neve amontoada até a altura das suas portas de inverno. Paramos numa que parecia uma estalagem, e através de estreitas fendas das janelas filtra­va-se uma luz amarelada, a mesma que tínhamos visto da colina. Abrimos a porta e entramos.

Era odsordny anner, o octagésimo primeiro dia de nos­sa viagem; tínhamos gasto onze dias a mais do que o pre­visto por Estraven. Ele calculara com exatidão nosso supri­mento de alimentação: setenta e oito dias. Tínhamos feito oitocentas e quarenta milhas pelo marcador do trenó, mais um tanto por cálculo estimativo, dos últimos dias. Muitas dessas milhas tinham sido desperdiçadas em retrocessos, e se tivéssemos mesmo um percurso de oitocentas milhas a cobrir, talvez nunca pudéssemos levá-lo a termo; quando conseguimos um bom mapa vimos que a distância entre Pulefen e essa aldeia era de menos de setecentas e trinta milhas e todas essas milhas e dias gastos em percorrê-los tinham sido através de uma desolação inenarrável: rochas, gelo, céu e silêncio nada mesmo, por oitenta e um dias, exceto nós dois.

Entramos numa sala grande, quente como uma estufa, iluminada fartamente e também cheia de comida e cheiro de comida, gente e vozes de gente. Segurei Estraven pelos ombros. Rostos estranhos se voltaram para nós, olhos estranhos. Eu me esquecera da existência de gente que não se parecia com Estraven. Fiquei horrorizado; na realidade era um cômodo bastante pequeno e a multidão era apenas de sete ou oito pessoas, que certamente ficaram tão surpresas quanto eu por uns instantes. Ninguém chega a Kurkurast em pleno inverno, vindo do norte, à noite. Contemplavam-nos interrogativamente e as vozes se calaram. Estraven falou, numa voz fracamente audível:

Pedimos a hospitalidade do domínio.

Barulho, confusão, zunzum, alarme, boas-vindas.

Viemos pelos gelos eternos do Gobrin.

Mais barulho, vozes, perguntas nos rodearam.

Querem cuidar do meu amigo?

Pensei ter dito isso, mas foi Estraven que falou. Al­guém me fez sentar. Trouxeram-nos alimento; cuidaram de nós, aceitaram-nos, fizeram-nos sentir em casa.

Almas incultas, apaixonadas, rixentas, ignorantes camponeses de uma terra pobre, sua generosidade trouxe um final nobre àquela áspera jornada. Davam com ambas as mãos. Nenhuma mesquinharia, nenhuma avareza. Sendo assim, Estraven recebia o que eles nos davam como um senhor entre senhores, ou um mendigo entre mendigos, um homem no meio de sua própria gente.

Para esses pescadores — aldeões, que vivem no extre­mo limite do que pode ser habitado, num continente quase no limite do habitável —, honestidade é tão importante quanto alimento. Têm que jogar limpo uns com os outros; não há o suficiente para permitir trapaças. Estraven sabia disto e quando, após dois dias, eles começaram a perguntar, discreta e indiretamente, com o devido respeito ao seu amor-próprio, por que nós escolhemos o inverno para ir aos gelos de Gobrin, ele replicou imediatamente.

Silêncio não é o que eu gostaria de escolher e, no entanto, ele é melhor do que uma mentira.

É bem sabido que homens respeitáveis podem ser postos fora da lei e, no entanto sua sombra não precisa se amesquinhar por esta razão — disse o cozinheiro da estalagem, que era o segundo em importância na aldeia, logo depois do chefe, e sua sala de refeições era uma espécie de salão de recepção para todos do domínio, na época do inverno.

Uma pessoa pode ser um fora-da-lei em Karhide e a outra em Orgoreyn — disse Estraven.

Certo, uma por seu clã e outra pelo rei em Erhenrang.

O rei não pode reduzir o tamanho da sombra de um homem, embora possa tentar — retrucou Estraven, e o cozinheiro ficou satisfeito com a resposta. Se o próprio clã de Estraven o tivesse expulsado, ele seria considerado uma pessoa suspeita, mas as censuras reais tinham pouca impor­tância. Quanto a mim, evidentemente um estrangeiro, e sendo assim aquele que fora renegado por Orgoreyn, isto só pesava a meu favor.

Nunca dissemos nossos nomes aos hospedeiros em Kurkurast. Estraven tinha muita relutância em usar um nome falso, e nossos verdadeiros não podiam ser revelados. Era, afinal de contas, um crime dirigir a palavra a Estraven, quan­to mais abrigá-lo, vesti-lo e alimentá-lo como o estavam fazendo. Mesmo um vilarejo remoto do litoral de Guthen tem rádio e eles não podiam invocar ignorância da ordem de exílio; apenas a ignorância verdadeira da identidade do hóspede serviria, à guisa de desculpa. A sua vulnerabilidade pesava sobre a consciência de Estraven mesmo antes que ele pudesse considerá-la. Na nossa terceira noite, ele entrou no meu quarto para combinarmos a nossa próxima decisão.

Um vilarejo de Karhide é como um antigo castelo feu­dal na Terra; não possui moradias separadas. No entanto, nesses velhos edifícios dos lares, do comércio e dos codomínios (não havia um senhor de Kurkurast) e na casa dos estrangeiros, cada habitante dos quinhentos do local poderia ter privacidade e mesmo isolamento em quartos ao longo desses antigos corredores com paredes muito espessas. Cada um de nós recebera um quarto, no andar mais alto do lar. Eu estava sentado no meu, ao lado da lareira acesa, quei­mando uma turfa proveniente dos pântanos de Shenshey, turfa pequena e de aroma muito forte, quando Estraven entrou:

Muito breve devemos sair daqui, Genry.

Lembro-me dele, lá em pé, nas sombras daquele quarto iluminado apenas pelo fogo, pés descalços e usando apenas os calções que o chefe lhe dera. Na intimidade do seu lar, os karhideanos andam semi-vestidos ou mesmo nus. Na nossa viagem Estraven perdera toda aquela solidez compacta, ma­cia, que caracteriza fisicamente todos os gethenianos; estava macilento e cheio de cicatrizes, o rosto queimado pelo frio como se fosse por fogo. Ele era uma figura escura, áspera, e no entanto esquiva na luz fugaz e bruxuleante.

Para onde?

Sul e leste, acho melhor. Em direção à fronteira. Nossa primeira tarefa é descobrir um transmissor de rádio com potência bastante para alcançar sua nave. Após isto, tenho que descobrir um esconderijo ou então voltar para Orgoreyn por uns tempos, para evitar que qualquer punição caia sobre os que nos ajudaram aqui.

Como você voltaria para Orgoreyn?

Como fiz antes: cruzando a fronteira. Os orgotas não têm nada contra mim.

Onde encontraremos um transmissor?

Não antes de Sassinoth.

Recuei. Ele fez uma careta.

Não existe nenhum mais perto?

Cento e cinqüenta milhas mais ou menos, mas já fizemos mais em terreno pior. Há estradas por todo o cami­nho; as pessoas nos receberão. Podemos pegar uma carona num trenó elétrico.

Concordei mas fiquei deprimido à perspectiva de uma nova retomada de jornada no inverno, e esta não em direção a um abrigo, mas de volta àquela maldita fronteira de onde Estraven poderia retornar ao exílio, deixando-me só.

Fiquei cismando sobre o assunto e disse finalmente:

Há uma condição que Karhide tem que cumprir antes de se juntar aos ecúmenos. Argaven tem que revogar seu banimento.

Ele não disse nada, ficou contemplando o fogo.

Estou falando sério insisti. Primeiro as coisas mais importantes.

Agradeço-lhe, Genry falou. Sua voz quando fa­lava suavemente como agora tinha muito de um timbre femi­nino, rouca e pouco vibrante. Olhou-me com gentileza, sem sorrir. Mas eu não esperava rever meu lar por muito tempo ainda. Tenho estado exilado há vinte anos, você sabe. Este banimento não é muito diferente. Cuidarei de mim, você cuide de você e do seu Conselho Ecumênico. Isto você tem que fazer sozinho. Mas ainda é muito cedo para falar nisso. Diga para sua nave baixar! Quando isto estiver feito, então pensarei no que vem depois.

Ficamos ainda dois dias em Kurkurast, alimentando-nos bem e repousando, esperando por um veículo compressor de neve que estava sendo esperado do sul e que nos daria uma carona quando voltasse. Nossos hospedeiros consegui­ram que Estraven lhes contasse toda a nossa aventura ao cruzar os gelos. Ele contou como só o sabe contar uma pessoa ligada à tradição da literatura falada; e é assim que ela se torna uma saga, cheia de locuções tradicionais e epi­sódios, e no entanto exatos e vividos, desde o fogo sulfuroso e o passo escuro entre o Drumner e o Dremegole, até as rajadas ululantes do vento que soprava entre as aberturas das montanhas na baía de Guthen; com intervalos cômicos como sua queda na fenda até as experiências místicas quan­do ele falou dos sons e dos silêncios do gelo, e de quando o tempo e as coisas não tinham sombras ou das trevas pro­fundas da noite. Eu escutava, tão fascinado quanto os de­mais, meu olhar sem se desviar do rosto sombrio do meu amigo.

Saímos de Kurkurast apertados os três dentro da ca­bine do compressor de neve, um desses grandes veículos movidos a eletricidade que esmaga e comprime contra o solo a neve acumulada nas estradas de Karhide, o principal meio de conservar as estradas abertas no inverno, pois tentar conservá-las retirando a neve e jogando para o lado tomaria todo o tempo e o dinheiro do reino, e além do mais todo o tráfego, pelo menos no inverno, é feito na base de lâminas como patins colocadas sob os veículos. O compressor trabalha numa média de duas milhas por hora, e assim chega­mos na próxima aldeia ao sul de Kurkurast após o anoitecer. Aí, como sempre, fomos bem recebidos, alimentados e abri­gados pela noite. No dia seguinte, caminhamos a pé, íamos agora em direção à terra das montanhas costeiras que rece­bem o impacto do vento norte que desce na baía de Guthen, e já numa região mais povoada, e assim seguíamos de lar em lar. De vez em quando pegávamos uma carona num trenó elétrico, uma vez até por trinta milhas. As estradas, embora nevadas caíssem freqüentemente, estavam bem duras e demarcadas. Havia sempre alimentos na nossa mochila, colocados pelos nossos hospedeiros da noite anterior; havia sempre um teto e fogo para nos abrigar e aquecer ao fim de um dia de andança.

Entretanto, esses nove dias de fácil percurso nos esquis através de uma terra hospitaleira foram os mais duros e melancólicos da nossa jornada, piores que a subida das geleiras, piores que os últimos dias de fome. A saga se acabara, pertencia ao gelo e ao passado. Estávamos muito cansados. Seguíamos em direção errada, não havia mais alegria nos nossos corações.

"Algumas vezes temos que ir contra o movimento da roda", era a opinião de Estraven. Ele continuava na mesma firmeza, mas pela sua voz, andar, comportamento, o vigor fora substituído pela paciência, e certamente por decisão obstinada. Ele estava muito silencioso, não queria conversa mental comigo.

Chegamos a Sassinoth. Uma cidade de alguns milhares de almas, empoleirada nas vertentes montanhosas que do­minam o Ey gelado: brancos tetos, paredes cinza, monta­nhas com manchas escuras das florestas e formações rocho­sas protuberantes, campos e rios brancos; através do rio, o disputado vale do Sino th, todo branco...

Chegamos lá quase de mãos vazias. Fôramos deixando a maior parte do nosso equipamento de viagem nas mãos de nossos generosos hospedeiros e agora só tínhamos o foga­reiro Chabe, nossos esquis e as roupas que usávamos. Assim, aliviados de carga, procuramos nosso rumo, perguntando a direção a uma porção de pessoas, não da cidade, mas de uma fazenda nos arredores. Era um lugar pobre, não fazia parte de nenhum domínio, mas estava sob a administração do vale. Quando Estraven era um jovem secretário naquela administração, fizera amizade com o proprietário, e na reali­dade comprara aquela fazenda para o atual proprietário há um ano ou dois, quando estava ajudando o povo a se esta­belecer a leste do Ey com a esperança de acalmar a dispu­ta sobre a propriedade do vale. O fazendeiro, ele próprio, abriu-nos a porta; era um robusto homem de fala macia, da idade de Estraven. Seu nome era Thessicher.

Estraven caminhara nesta região com o capuz abaixado, cobrindo as feições. Ele temia que o reconhecessem; mas isto era precaução desnecessária; quem iria se dar ao traba­lho de reconhecer Harth rem ir Estraven nessa figura mal­trapilha, magra e abatida? Thessicher ficou ali olhando des­confiado, incapaz de acreditar que ele era quem dizia ser.

Levou-nos para dentro e sua hospitalidade estava à altu­ra do padrão que recebêramos, embora fosse de poucos re­cursos. Mas ele se sentia sem jeito conosco, preferiria não nos ter ali. Era compreensível, ele estava arriscando o con­fisco de sua propriedade pelo crime de nos ter abrigado. Mas como ele devia esta propriedade a uma generosidade de Estraven e poderia agora estar tão necessitado quanto nós, se ele não o tivesse ajudado então, não parecia desleal pe­dir-lhe para correr um certo risco, em troco. Meu amigo, no entanto, pedia seu auxílio não como uma retribuição de favor, mas como amizade, não contando com o seu dever, e sim com o seu afeto. Na verdade, Thessicher se acalmou após passar a sua primeira reação de alarme e, com aquela volubilidade de karhideano, tornou-se exuberante e nostál­gico, relembrando os velhos tempos e velhas amizades com Estraven ao lado do fogo durante parte da noite. Quando Estraven lhe perguntou sobre um local de esconderijo, alguma fazenda abandonada ou isolada onde um homem banido pu­desse ficar por um mês ou dois à espera da revogação da ordem de exílio, Thessicher retrucou imediatamente: "Fique aqui".

O olhar de Estraven se iluminou ao ouvir isto, mas ponderou; e concordando em que ele não estaria muito em segurança tão perto de Sassinoth, Thessicher prometeu-lhe encontrar um esconderijo. Não seria difícil, falou, se Estra­ven tomasse um nome falso e trabalhasse como cozinheiro ou ajudante de fazenda; o que não seria agradável, mas certamente melhor do que voltar a Orgoreyn.

Que diabo vai fazer em Orgoreyn? Vai viver de quê, lá?

À custa da comensalidade — replicou meu amigo, com um vestígio daquele seu sorriso de lontra. — Eles dão trabalho a todos nas unidades, você sabe. Não há problcmn

Mas eu preferiria ficar em Karhide... se você acha real­mente que se pode dar um jeito...

Tínhamos guardado o fogareiro Chabe, a única coisa de valor em nosso poder; ele sempre nos serviu até o fim da jornada. Na manhã seguinte à nossa chegada na fazenda, apanhei o fogareiro e esquiei para a cidade.

Estraven, naturalmente, não veio comigo, mas me expli­cara o que tinha que fazer, e tudo correu bem. Vendi o foga­reiro no comércio local, depois apanhei a boa quantia de dinheiro apurada, dirigi-me à escola profissional onde a esta­ção de rádio estava instalada, e comprei dez minutos de "transmissão privada a recepção privada". Todas as estações separam uma parte de seu horário diário para tais transmis­sões de ondas curtas, e a maior parte dele é utilizada pelos mercadores comunicando-se com seus agentes além-mar ou fregueses no Arquipélago, Sith ou Perunter, pois o custo é bem elevado, embora não seja absurdo. Menor que o custo de um fogareiro de segunda mão. Meus dez minutos seriam logo na 3.a hora, na parte da tarde. Eu não queria ficar esquiando de ida e volta para a fazenda de Thessicher duran­te todo o dia; por isso permaneci em Sassinoth e comprei um almoço farto, bom e barato numa das casas de pratos pron­tos. Sem dúvida a cozinha de Karhide era melhor do que a orgota. Enquanto comia, lembrei-me do comentário de Es­traven quando lhe perguntei se detestava Orgoreyn; lembrei- me de sua voz, na noite anterior, dizendo da maneira mais amena possível: "Eu preferia ficar em Karhide..." e me perguntei, não pela primeira vez, o que é patriotismo, em que consiste o amor à pátria, aquela lealdade cheia de ternu­ra que tinha despertado enternecimento na voz embargada do meu amigo, e quanto esse amor tão real pode se converter freqüentemente num fanatismo tolo e vil. Quando ele começa a se tornar nocivo?

Após o almoço, fiquei perambulando por Sassinoth. Os negócios da cidade permaneciam ativos, lojas, mercados, ruas cheias de vida, e apesar das nevadas e da temperatura a zero, tinham um aspecto irreal, como de uma peça de teatro. Eu ainda não voltara, no meu âmago, da solidão dos gelos. Sen­tia-me deslocado entre estranhos e sentia a falta da presença de Estraven ao meu lado.

Subi a rua íngreme recoberta de neve até a escola e fui introduzido na sala de rádio, onde me ensinaram a operar no transmissor de uso público. Na hora marcada enviei o sinal de "acordar" ao satélite de retransmissão que estava em ór­bita, estacionado a cerca de trezentas milhas acima de Karhide meridional. Estava lá para dar segurança numa situação destas, pois o audisível tinha desaparecido e assim eu não poderia me comunicar com Ollul para entrar em contato com a nave, e eu não tinha nem tempo nem equipamento para fazer o contato direto com a nave em órbita solar. O trans­missor de Sassinoth era mais do que adequado, mas o satéli­te não estava equipado para responder nada, só poderia en­viar a mensagem à nave. Não havia nada a fazer além de enviá-la e aguardar. Não tinha meios de saber se a mensagem fora recebida e retransmitida à nave. Não sabia se tinha feito tudo certo. Mas chegara ao estado de aceitação de todas es­sas incertezas com o coração calmo.

Quando saí, vi que tinha nevado fortemente e que seria melhor passar a noite na cidade, pois não conhecia bem as estradas para me aventurar nelas na neve e no escuro. Tendo ainda umas sobras de dinheiro, procurei uma hospedaria, mas insistiram em que fosse para o colégio; lá jantei com um bando de estudantes cheios de vida, e passei a noite num dos dormitórios. Adormeci com uma agradável sensação de segurança, provinda dessa extraordinária e infalível bondade de Karhide para com os estrangeiros. Eu viera para o país certo, logo de início, e estava de volta a ele. Mergulhado nesses pensamentos adormeci; mas acordei muito cedo e segui para a fazenda de Thessicher antes da primeira refeição, tendo passado uma noite inquieta, cheia de sonhos e sobressaltos.

O sol nascente era pequeno e de cor fria num céu vivo, e projetava sombras de cada saliência ou rachadura na neve. A estrada estava toda estriada com claros e escuros. Ninguém se movia em todos aqueles campos de neve, mas bem distan­te um pequeno vulto vinha em minha direção com aquele meneio característico e suavemente veloz de um esquiador. Muito antes de vê-lo com nitidez, reconheci Estraven.

O que há, Therem?

Tenho que alcançar a fronteira — disse-me sem se­quer parar quando nos cruzamos. Ele já estava sem fôlego. Fiz meia-volta e ambos seguimos para oeste, eu com dificul­dade em acompanhar sua velocidade. Onde a estrada se en­curvava para entrar em Sassinoth, ele a abandonou, esquian­do através dos campos sem cercas. Cruzamos o Ey congelado uma milha mais ou menos ao norte da cidade. As margens eram íngremes, e no fim da escalada ambos tivemos que pa­rar e descansar. Não estávamos ainda em condições para esta espécie de corrida.

O que aconteceu? Thessicher...?

Sim. Ouvi-o no seu rádio. Ao nascer do sol. Denunciou-me. — Seu peito arfava como quando ele estivera joga­do no chão ao sair do abismo. — Tibe deve ter posto minha cabeça a prêmio.

Aquele maldito traidor ingrato! — murmurei, ga­guejando, não querendo me referir a Tibe, mas a Thessicher, cuja traição era cruel por ser de um amigo.

Ele é isso — disse Estraven —, mas eu pedi dema­siado dele, exigi muito de um pobre de espírito. Escute, Genry. Volte para Sassinoth.

Vou acompanhá-lo pelo menos até a fronteira, Therem.

Deve haver guardas orgotas lá.

Ficarei deste lado. Pelo amor de Deus...

Ele sorriu. Ainda respirando com muita dificuldade, levantou-se e continuou, e eu com ele.

Esquiamos através de pequenos bosques cobertos de geada e sobre as elevações e campos do vale em disputa. Não havia como esconder-se, nem esgueirar-se... Um céu banha­do de sol, um mundo branco e duas pinceladas de sombras nele, fugindo. Um solo irregular escondia-nos a fronteira até que chegamos a cerca de oito milhas dela; então vimo-la in­teira, delimitada por uma cerca, apenas uma parte das estacas emergindo na neve e o topo delas pintado de vermelho. Não havia guardas visíveis no lado orgota. No nosso lado havia rastros de esqui e para o sul pequenas figuras se movendo.

guardas neste lado. Você vai ter que esperar até o escurecer, Therem.

São os inspetores de Tibe — ele ofegava e sua voz era amarga. Girou para o lado, e disparamos para trás da pequena elevação em que já tínhamos subido, procurando a proteção mais próxima. Lá passamos o longo dia, numa vale­ta entre as árvores de hemmen, seus galhos avermelhados bem baixos em torno de nós, vergados ao peso da neve. Dis­cutimos muitos planos de ir ou para o norte ou para o sul da fronteira, para ficarmos livres desta zona muito conturbada, ou tentar ultrapassar as montanhas a leste de Sassinoth, e até mesmo de voltar para o norte do país, na zona quase desérti­ca — mas cada idéia tinha que ser posta de lado. A presença de Estraven já tinha sido denunciada e não poderíamos mais andar por Karhide às claras, como tínhamos feito até então. Nem poderíamos viajar mais secretamente por longas distân­cias, pois não tínhamos tenda, nem alimento nem muita força. Nada restava a não ser uma escapada fulminante através da fronteira, ali defronte.

Ficamos escondidos naquele buraco escuro, sob árvores sombrias e bem próximos um do outro para não desperdiçarmos o calor do corpo. Lá pelo meio-dia, Estraven cochilou um pouco, mas eu estava com muito frio e fome para poder dormir; fiquei deitado ali, numa espécie de estupor, tentando me lembrar das palavras que ele me citara uma vez: "Dois são um só, vida e morte jazendo contíguas". Era como quan­do estávamos no interior da tenda, nos gelos — mas agora sem abrigo, sem alimento, sem calor; nada mais restava a não ser nosso companheirismo, e isto logo ia acabar.

O céu se encobriu de tarde e a temperatura começou a cair. Mesmo naquela toca, estava muito frio para se ficar imóvel. Tínhamos que marchar em volta e mesmo assim, ao escurecer, fui tomado de uma crise de tremores como a que sentira no caminhão-prisão a caminho de Pulefen. A escuri­dão parecia levar séculos para chegar. No tardio crepúsculo azulado abandonamos a valeta e rastejamos atrás de árvores e moitas até podermos distinguir a cerca da fronteira, uns pá­lidos pingos avermelhados salpicando a neve. Nenhuma luz, nem som ou movimento. Da direção sul, bem distante, vinha o difuso clarão de uma cidadezinha, alguma minúscula vila de Orgoreyn para onde Estraven poderia se dirigir com seus documentos de identificação quase inaceitáveis e ter assegurada pelo menos uma noite na prisão da comensalidade ou talvez na próxima fazenda voluntária. De repente, só neste último instante, vi o que meu egoísmo e o silêncio de Estraven tinham me ocultado: para onde ele estava indo e o que o aguardava. — Therem, espere!

Mas ele já se despencara, voando colina abaixo: um es­quiador esplêndido e veloz e desta vez sem me ter como em­pecilho. Disparou numa longa e rápida descida encurvada, fugia de mim e ia direto para os guardas armados da fron­teira. Creio ter ouvido gritos de aviso ou ordens de parar, e uma luz se acendeu em algum lugar, não estou certo; de qualquer forma, ele não parou e partiu como um raio em direção à cerca, e eles o derrubaram quando a atingiu! Não usavam a pistola sônica, mas as espingardas de caça, antiga arma' que explode fragmentos de metal num disparo. Atira­ram para matar. Estava morrendo quando o alcancei, espar­ramado no chão e sem os esquis, fincados na neve, o peito estraçalhado pelos tiros. Segurei-lhe a cabeça e chamei por ele, mas não me respondeu; apenas saindo do tumulto e da desagregação de sua mente, quando penetrava na inconsciên­cia, emitiu claramente e uma só vez: "Arek!" Dessa forma, fundiu-nos ambos no mesmo amor. Então silenciou para sempre. Continuei segurando-o, ajoelhado ali na neve, en­quanto morria. Deixaram-me ficar ali com ele. Depois me ergueram, levaram-me numa direção, ele em outra, eu para a prisão, ele para as trevas.

 

 

                       Missão sentimental

Em alguma parte do diário que Estraven escrevera du­rante nossa jornada através dos gelos de Gobrin, ele se inter­rogara por que seu companheiro tinha vergonha de chorar. Poderia ter lhe dito então que não era vergonha, e sim te­mor. Agora eu atravessava o vale do Sinoth, nesta noite da sua morte, através desse país gelado que está além do medo. Lá descobri que se pode chorar o quanto se queira, mas não adianta nada.

Fui levado de volta a Sassinoth e feito prisioneiro, por­que estivera na companhia de um banido e mais provavel­mente porque não sabiam o que fazer comigo. Desde o co­meço, mesmo antes da chegada das instruções oficiais de Erhenrang, trataram-me bem. Minha cela da prisão era um quarto na Torre dos Senhores em Sassinoth; tinha uma la­reira, um rádio e eram servidas cinco fartas refeições diárias. Não era confortável: a cama dura, as cobertas leves, o piso sem tapetes e o ar frio — como em qualquer quarto em Karhide. Mas me enviaram um médico em cujas mãos e voz encontrei mais conforto e bem-estar do que jamais obtivera em Orgoreyn. Após ele ter-me feito uma primeira visita, a porta ficou destrancada. Lembro-me dela aberta e eu dese­jando que estivesse fechada por causa da fria correnteza que vinha do corredor. Mas não tinha nem força nem ânimo de me levantar e ir lá fechá-la. O médico, um jovem grave e com atitudes maternais, disse com ar de pacífica certeza: "O senhor tem sido subalimentado e se esforçou demais por uns cinco ou seis meses. Está no limite da exaustão. Não há mais nada a ser feito. Fique deitado e repouse. Como os rios gela­dos nos vales, no inverno. Fique quieto. Tenha paciência".

Mas assim que adormecia, parecia que estava entrando naquele caminhão com os outros, todos fedendo, tremendo, nus, comprimidos uns contra os outros para aquecer. Todos menos um, que estava contra a porta de grades, com a boca repleta de sangue coagulado. Ele era o traidor. Ele tinha fugido, desertando-nos, abandonando-nos. Acordava com raiva, uma débil raiva que me fazia tremer e se transformava em lágrimas frágeis.

Devo ter estado bem doente, pois me recordo dos efei­tos da febre alta e de que o médico ficara comigo por mais de uma noite. Não consigo relembrar o que se passou, apenas de ter dito a ele e sentido minha voz lamurienta:

Ele poderia ter parado. Ele viu os guardas. Ele foi direto em direção às balas.

O jovem médico não retrucou logo.

Não está dizendo que ele se matou?

Talvez.

Isto é uma coisa cruel de se dizer de um amigo. Não acredito que Harth rem ir Estraven fosse capaz disto.

Não me lembrara, quando falei, do desprezo que essa gente tem pelo suicídio. Não é para eles, como para nós, uma opção. É a abdicação da opção, um ato de deslealdade, a pró­pria traição. Para os karhideanos, segundo nossos padrões, o crime de Judas não está na sua traição a Cristo, mas na­quele gesto que, selando o desespero, nega a chance de per­dão, mudança, vida seu suicídio.

Então vocês não o chamam Estraven, o Traidor?

Nunca o fiz. Há muitos que nunca levaram em consideração a acusação contra ele, Sr. Ai.

Mas eu estava incapaz de ver qualquer consolo nisto, e exclamei, atormentado:

—- Então, por que eles atiraram nele? Por que está morto?

Para isto não encontrou resposta, pois não havia ne­nhuma.

Eu nunca fui interrogado de maneira formal. Só me perguntaram como saíra de Pulefen e entrara em Karhide e qual o destino e o objetivo da mensagem em código que enviara pelo rádio. Disse-lhes:

Essa informação foi enviada diretamente a Erhenrang, ao rei.

O assunto da nave foi mantido secreto, mas as notícias da minha fuga de uma prisão orgota, minha viagem através dos gelos eternos em pleno inverno, minha presença em Sassinoth, tudo era noticiado e comentado livremente. O papel desempenhado por Estraven não era mencionado, nem sua morte. E no entanto eram fatos conhecidos. Segredo em Karhide é em grande parte uma questão de discrição de um silêncio tácito e reconhecido —, uma omissão de per­guntas, e não uma omissão de respostas. Os boletins fala­vam apenas do Enviado Sr. Ai, mas todos sabiam que era Harth rem ir Estraven que tinha ido me arrancar das mãos orgotas e me trouxera através dos gelos até Karhide, para dar um desmentido completo da história dos comensais sobre minha súbita morte de febre de horm no último outono em Mishnory.

Estraven tinha previsto quase com precisão os efeitos da minha volta; só errou quando subestimou esses efeitos. Por causa daquele estrangeiro que estava doente numa cama, sem agir, sem ligar a nada num quarto em Sassinoth, dois governos caíram no espaço de dez dias.

Dizer que o governo orgota caiu é dizer, naturalmente, que um grupo de comensais substituiu outro no controle do governo dos Trinta e Três. O Sarf, que tinha me enviado a Pulefen, conseguiu se manter, apesar do vexame sem precedentes de ser apanhado mentindo, até o anúncio público feito por Argaven da chegada iminente da nave espacial em Karhide. Naquele momento, o grupo liderado por Obsle, a facção do Mercado Livre, tomou a liderança da comensalidade. Afinal, prestaram certo serviço a eles. Em Karhide, a queda de um governo significa a queda e substituição do primeiro-ministro, juntamente com uma'reorganização do ga­binete, da Kyorremy, embora assassinato, abdicação e insur­reição sejam alternativas freqüentes. Tibe não lutou por se manter no poder. Meu valor atual no jogo de prestígio inter­nacional mais minha vindicação (por implicação) de Estraven deram-me uma tal força que ultrapassava a sua de muito, e assim ele se demitiu, como soube mais tarde, mesmo antes de o governo de Erhenrang ter sabido que eu emitira a men­sagem para a nave. Ele agiu após o aviso secreto de Thessicher, esperou apenas saber da notícia da morte de Estraven e então se aquietou. De uma só vez, teve sua punição e sua vingança.

Após haver recebido completas informações Argaven enviou-me uma convocação, um pedido para voltar a Erhen­rang, juntamente com uma quantia liberal para as despesas. A cidade de Sassinoth, com idêntica liberalidade, permitiu que o médico me acompanhasse na viagem, pois eu ainda não estava em boas condições. Fizemos a viagem em trenó elétrico; lembro-me apenas de partes dela; foi calma, suave, com grandes paradas para os compressores limparem a estrada e longas noites em estalagens. Deve ter levado de dois a três dias, mas me pareceu muito mais longa, e não me recordo de quase nada até o momento em que atravessamos os portões ao norte de Erhenrang e entramos na cidade de ruas profundas cheias de neve e sombra.

Senti então que meu coração se endurecia e minha men­te clareava. Tinha vivido aos pedaços, desintegrado. Agora, embora fatigado pela viagem sem dificuldades, senti que ainda existia alguma força intacta dentro de mim. Força do hábito, mais parecia, pois aqui, finalmente, eu estava num lugar que conhecia bem, uma cidade em que já vivera e trabalhara por mais de um ano. Conhecia as ruas, as torres, os pátios sombrios e as fachadas do palácio. Sabia o que tinha a fazer aqui. E pela primeira vez veio-me muito nítido que, estando meu amigo morto, eu deveria atingir a meta pela qual ele sacrificara a vida.

Nas portas do palácio havia ordens para me dirigir a uma das residências para convidados. Era a Torre Redonda, que conferia o mais alto grau de prestígio na corte; não tanto um favor real, mas o seu reconhecimento de alguém de status elevado. Embaixadores de potências amigas eram, geralmen­te, hospedados ali. Era um bom sinal. Mas para chegar lá era preciso passar pela residência da Esquina Vermelha; relanceei o olhar pela estreita passagem em arco da estrada, com sua árvore revestida apenas de gelo acinzentado, na beira do pequeno lago, e a casa que ainda permanecia desocupada.

Na entrada da Torre Redonda, fui recebido por uma pessoa com manto branco sobre uma camisa escarlate e com o colar de prata nos ombros — Faxe, o áugure do Monastério de Otherhord. À vista de sua figura bondosa e bela, a primeira pessoa conhecida que via há muito tempo, senti uma onda de alívio invadir-me e acalmar minha tensão inte­rior. Quando Faxe tomou minhas mãos nesse gesto raro de boas-vindas, recebendo-me como seu amigo, eu não poderia ter correspondido melhor ao calor de sua recepção.

Ele tinha sido chamado pelo conselho do seu distrito, o Rer meridional, logo no começo do outono. Eleição para membros do conselho, de residentes dos mosteiros do hand-dara, não é fato incomum; não é comum, no entanto, um áugure aceitar participar, e acredito que Faxe teria recusado se não estivesse muito preocupado com o governo de Tibe e a direção que ele estava dando ao país. Assim, abandona­ra o colar de ouro dos áugures trocando-o pelo de prata de conselheiro; e logo conseguiu atingir seu alvo, pois desde Thern ele era membro do conselho que serve para equilibrar a força do poder do primeiro-ministro, cabendo ao rei no­meá-lo para esta honraria. Ele estava, talvez, a caminho da eminência do poder que Estraven perdera há menos de um ano. As carreiras políticas em Karhide são rápidas, repenti­nas e abruptas.

Na Torre Redonda, uma pequena casa pomposa e fria, Faxe e eu tivemos uma conversa extensa, antes que eu me encontrasse com qualquer outra pessoa ou fizesse qualquer declaração formal ou aparecimento público.

Perguntou-me com seu olhar límpido sobre mim:

Há uma nave vindo para cá, para descer ao solo, maior do que a que o trouxe às ilhas de Horden, três anos atrás. Certo?

Sim; isto é, enviei uma mensagem para se prepa­rarem para descer.

Quando virá?

Quando vi que eu nem sabia sequer em que dia do mês estávamos, comecei a perceber como tinha passado mal nestes últimos dias. Tive que voltar atrás até o dia anterior à morte de Estraven. Quando descobri que a nave, se esti­vesse na distância mínima, já estaria em órbita planetária esperando apenas um sinal meu, tive outro choque.

Tenho que me comunicar com a nave. Esperam ins­truções. Quando o rei deseja que eles desçam? Tem que ser uma área bastante grande e desabitada. Tenho que utilizar um transmissor.

Tudo foi arranjado com presteza e facilidade. As infin­dáveis frustrações e dificuldades dos meus contatos anterio­res com o governo de Erhenrang tinham se dissolvido como blocos de gelo num rio em enchente. A roda estava giran­do... No dia seguinte teria uma audiência com o rei.

Estraven precisara de seis meses para conseguir a mi­nha primeira audiência. A segunda custara-lhe o resto de sua vida.

Estava ainda muito fatigado para sentir apreensão desta vez e havia coisas na minha cabeça que pesavam mais do que esta autoconsciência. Novamente caminhei ao longo do grande salão ornado de bandeiras poeirentas, e fiquei de­fronte do grande estrado com três lareiras onde três fogos crepitavam e faiscavam. O rei, sentado na lareira central, encurvado num banquinho ao lado da mesa, disse:

Sente-se, Sr. Ai.

Sentei-me do outro lado de Argaven, e olhei para a sua fisionomia iluminada pelas chamas. Não parecia bem, e esta­va envelhecido, também. Parecia uma mulher que perdera seu bebê, ou um homem que perdera o filho.

Bem, Sr. Ai, sua nave vai pousar.

Vai pousar no pântano de Athten como escolheu, senhor. Ela vai descer este entardecer, no começo da 3.a hora.

E o que acontecerá se errar o lugar? Vai queimar tudo em torno?

Vão seguir um feixe de radiofarol. Tudo está pre­parado. Não vão errar.

E quantos "deles" há lá dentro? Onze, certo?

Sim. Não é um número de se temer, senhor.

As mãos de Argaven se contraíram, num gesto inaca­bado. Não tenho mais medo do senhor, Sr. Ai.

Estou contente de ouvir isto.

O senhor me foi muito útil.

Mas não sou seu servidor.

Sei disto disse ele com indiferença. Fixava o fogo, mordendo o interior do lábio.

Meu audisível está nas mãos do Sarf em Mishnory, assim presumo. Entretanto, quando a nave estiver aqui, eles terão outro audisível a bordo. Estarei, daí por diante, se o senhor aceitar, na posição de enviado plenipotenciário do Conselho Ecumênico, com poderes de discutir e assinar um tratado de aliança com Karhide. Tudo isto pode ser con­firmado com Hain e os outros membros pelo audisível.

Muito bem.

Não falei mais porque ele já não estava prestando aten­ção. Mexeu num tição com a ponta da bota e algumas fagu­lhas se desprenderam. Por que diabos ele me enganou? perguntou, agora com a voz aguda, estridente, e pela primeira vez olhando bem nos meus olhos.

Quem? perguntei, devolvendo-lhe o olhar.

Estraven.

Ele procurou fazer com que o senhor não se en­ganasse. Afastou-me quando o senhor começou a favorecer uma facção que me era hostil. E trouxe-me de volta quando isto o levaria a receber a missão do Conselho e sua boa vontade para com ela.

Por que ele não me disse nada sobre essa grande nave?

Porque ele não sabia dela, nunca falei disto até que fui para Orgoreyn.

E uma boa coleção de bobagens vocês falaram lá, os dois. Ele tentou fazer com que os orgotas recebessem sua missão. Ele estava trabalhando ao lado da facção do Mercado Livre todo o tempo. Você pode me dizer se isto não é traição?

Não é. Ele sabia que, não importa qual nação fizesse primeiro a aliança com o Conselho Ecumênico, a outra seguiria logo depois. Como será, realmente: Sith, Perunter e o Arquipélago vão também acompanhar os outros, até haver unidade. Ele amava sua pátria muito sinceramente, senhor, mas ele não servia a ela ou ao senhor. Ele servia ao mesmo mestre que eu sirvo.

O Conselho Ecumênico? — perguntou perplexo Argaven.

Não. A humanidade.

Enquanto falava, não sabia se o que dissera era ver­dade. Em parte, era verdade, um aspecto da verdade. Não era menos verdadeiro o fato de os atos de Estraven terem provindo de pura lealdade pessoal, um sentido de responsa­bilidade e amizade para com um simples ser humano, eu. Nem isto seria toda a verdade.

O rei não replicou. Seu rosto sombrio, inchado e de­vastado estava de novo voltado para o fogo.

Por que mandou chamar a nave antes de me ter notificado sua presença em Karhide?

— Para forçar a situação, senhor. Uma mensagem para o senhor teria antes passado por Lorde Tibe, que me teria devolvido aos orgotas. Ou me liquidado, como liquidou meu amigo.

O rei não disse nada.

Minha sobrevivência pessoalmente não importa tan­to, mas tenho, como sempre tive, um dever para com Gethen e o Conselho Ecumênico, uma tarefa a cumprir. Comuniquei-me com a nave primeiro para garantir uma oportunidade de realizar essa tarefa. Foi o conselho de Estraven, e estava certo.

Bem, não estava errado. De qualquer forma, eles vão pousar aqui; seremos os primeiros. E eles são todos como o senhor, hein? Todos pervertidos, todos em kemmer? Um bando bem estranho que vamos disputar a honra de receber... Diga a Lorde Gorchern, o camareiro-mor, como eles esperam ser recebidos. Tome as providências para que não haja ofensas nem omissões. Eles serão alojados no pa­lácio, onde achar que seja mais adequado. Quero dispensar- lhes honrarias. Você me proporcionou umas duas boas joga­das, Sr. Ai. Fez os comensais de mentirosos e depois de tolos.

E muito em breve aliados, meu senhor.

Eu sei! — ele retrucou asperamente. Mas Karhide em primeiro lugar. Karhide na frente!

Concordei com a cabeça.

Após um curto silêncio, ele perguntou:

Como foi aquela marcha através dos gelos?

— Não foi fácil.

Estraven tinha tudo para ser um bom companheiro em tão louca aventura. Era duro como o ferro. E nunca perdia a calma. Sinto que esteja morto.

Não encontrei o que dizer.

Receberei seus... compatriotas em audiência ama­nhã à tarde na 2.a hora. Há alguma coisa mais para dizer?

Senhor, vai revogar a ordem de banimento de Es­traven, para limpar seu nome?

Ainda não, Sr. Ai. Não se apresse. Alguma coisa mais?

Nada mais.

Pode ir, então.

Até eu o traíra. Dissera que não faria descer a nave até seu banimento ser revogado e seu nome ficar limpo nova­mente. Mas não podia jogar fora a oportunidade pela qual ele morrera, insistindo nesta condição. Isto não o traria de volta nunca mais.

Passei o resto do dia fazendo os preparativos com Lor­de Gorchern e outros para a recepção e alojamento do pes­soal da nave. Na 2.a hora partimos de trenó elétrico para os pântanos de Athten, cerca de trinta milhas a nordeste de Erhenrang. O local do pouso era nas fronteiras de uma re­gião vasta e desolada, uma turfeira muito pantanosa para ser cultivada ou povoada, e que agora, nos meados de Irrem, era uma vastidão achatada e congelada, com uma profun­didade de muitos pés de neve. O radiofarol havia estado funcionando todo o dia e tinha recebido sinais de confir­mação da nave.

Ao descer, a tripulação deve ter visto, no painel, a grande muralha estendida através do grande continente, ao longo da fronteira, da baía de Guthen ao golfo de Charisune, e os picos do Kargav ainda sob a luz solar, uma cadeia de estrelas; já era crepúsculo quando, olhando para o céu, vimos uma estrela descendo.

Ela veio até nós com grande troar e glória; vapor bran­co subia em torno quando seus estabilizadores se afundaram no grande lago de água e lama provocado pelo reator. Abaixo do pântano havia permafrost duro como granito, e por fim ela se aquietou, corretamente equilibrada, e ali ficou esfriando os motores sobre aquele lago já recongelado rapidamente, como um peixe enorme e delicado, apoiando-se na sua cauda de prata escura, ao crepúsculo de Inverno.

Ao meu lado, Faxe de Otherhord falou pela primeira vez do troar e esplendor da descida da nave. — Estou conten­te de ter vivido para ver isto — disse ele. Assim falara Estraven enquanto olhava para os gelos eternos, para a morte, assim ele também falaria agora. Para afastar a dolorosa má­goa que me envolvia, comecei a andar em direção à nave. Ela já estava sendo revestida de uma camada de gelo pelos resfriadores existentes sob o casco e, quando cheguei perto, a alta portinhola deslizou, abrindo-se, e uma rampa foi pro­jetada numa graciosa curva. A primeira pessoa a sair foi Lang Heo Hew, inalterada, precisamente como eu a vira pela última vez, três anos atrás na minha vida, um par de semanas na dela. Ela me olhou e olhou para Faxe e os outros da delegação que me tinham acompanhado e parou ao pé da rampa. Disse solenemente em karhideano: — Vim em amizade. — Aos seus olhos, todos nós éramos estrangeiros. Deixei Faxe cumprimentá-la em primeiro lugar.

Ele me indicou a ela, que se aproximou e segurou-me pela mão direita à maneira da minha raça, olhando para meu rosto: — Oh, Genly, eu não o reconheci! — Era estra­nho ouvir uma voz de mulher após tanto tempo. Os outros saíram da nave logo depois a meu conselho; evidência de qual­quer desconfiança nesta altura seria humilhar a comitiva dos karhideanos, ferindo-os no amor-próprio. Do lado de fora, se apresentaram com uma bela cortesia. Mas todos pareciam muito estranhos para mim, homens e mulheres, apesar de conhecê-los tão bem. Suas vozes também me causavam estranheza — muito profundas ou muito agudas. Eram como um bando de grandes, estranhos animais de duas espécies dife­rentes: grandes macacos com olhos inteligentes, todos no cio, todos em kemmer...

Pegavam minha mão, tocavam-me, seguravam-me. Con­segui me controlar e dizer a Heo Hew e Tulier o que eles precisavam saber em primeiro lugar sobre o que iam enfrentar, na volta de trenó a Erhenrang. Quando chegamos ao palácio, entretanto, tive que me recolher aos meus aposentos imediatamente.

O médico de Sassinoth veio me ver. Sua voz quieta e seu rosto, uma feição séria e jovem, nem de homem nem de mulher, um rosto humano, era um alívio para mim, familiar, direito... Após me mandar ir para a cama, administrando-me um tranqüilizante suave, falou: Já vi seus companhei­ros de missão. Isto é uma coisa maravilhosa, a vinda de seres que vivem nas estrelas. E durante a minha vida!

Aí estava, novamente, o prazer, a coragem, que é o mais admirável no espírito dessa gente como em qualquer espírito humano —, e, embora não pudesse partilhar isto com ele, negá-lo seria uma atitude detestável. Disse, sem sinceridade, mas com absoluta verdade: É também uma coisa maravilhosa para eles chegar a um novo mundo, a uma nova humanidade.

No fim daquela primavera, no mês de Tuwa, quando as enchentes de degelo estavam baixando e viajar tornou-se possível de novo, tirei umas férias da minha pequena embaixada em Erhenrang e fui para o leste. Minha gente tinha se espalhado, agora, por todo o planeta. Desde que fôramos autorizados ao uso de carros aéreos, Heo Hew e três outros tomaram um e voaram sobre Sith e o Arquipélago, nações do hemisfério marítimo que eu tinha negligenciado por com­pleto. Outros estavam em Orgoreyn e dois, relutantes, em Perunter, onde o degelo nem sequer começara, até Tuwa, e tudo voltaria a se congelar. Tulier e Ke'sta estavam se saindo muito bem em Erhenrang e sabiam como solucionar qual­quer emergência. Nada era urgente. Afinal, uma nave par­tindo imediatamente do mais próximo aliado de Inverno não poderia chegar antes que dezessete anos, em tempo planetário, tivessem transcorrido. Inverno é um mundo marginal, quase no limite do habitável. Para fora, em direção ao Orion meridional, nenhum mundo fora descoberto onde vivessem homens. E é longo o caminho de volta entre Inverno e os primeiros mundos dos ecúmenos, os mundos centrais de nossa raça: cinqüenta anos até Hain-Davenant e toda uma vida até a Terra. Não há pressa.

Cruzei a cordilheira do Kargav agora pelos passos infe­riores, numa estrada que serpenteia ao longo e acima da costa do mar meridional. Fiz uma visita à primeira vila em que eu vivera quando os pescadores me trouxeram das ilhas de Horden há três anos; o povo desse lugar recebeu-me, agora como então, sem a menor surpresa. Passei uma sema­na na grande cidade portuária de Thather, na embocadura do rio Ench, e então, começando o verão, iniciei minha cami­nhada a pé até a Terra de Kerm. Andei para o leste e para o sul naquele país escarpado e áspero, cheio de penhascos, colinas verdes, grandes rios e casas solitárias, até chegar ao lago Icefoot. Das margens do lago, olhando para as monta­nhas, vi uma luz que conhecia: o revérbero, a difusão branca do céu, a cintilação das geleiras que jaziam além mais no alto. Os gelos lá estavam.

Estre era um lugar muito antigo. Seu lar e edificações eram todos de granito cortado das pedreiras que existiam nos flancos onde estava situada. Era descampada, povoada pelo barulho do vento.

Bati e a porta se abriu. Eu disse:

Peço a hospitalidade do domínio. Eu era amigo de Therem de Estre.

Quem me abriu a porta foi um esbelto jovem de olhar grave, de uns vinte anos de idade. Aceitou minhas palavras em silêncio e silenciosamente fez-me entrar no lar. Levou-me ao lavatório, à rouparia e à grande cozinha e quando providenciou para que o estranho pudesse se lavar, vestir-se e alimentar-se, deixou-me entregue a mim mesmo num quarto cuja estreita janela, em fenda, dava para o lado do lago e das florestas de thore que existem entre Estre e Stok. Era uma terra árida, uma casa árida. O fogo crepitava forte na lareira maior, dando, como sempre, mais calor para a vista e para o espírito que para a carne, pois o chão e as paredes de pedra e o vento lá fora, vindo das montanhas e dos gelos, consu­miam a maior parte do calor das chamas. Mas não senti tanto o frio quanto costumava nos meus primeiros dois anos em Inverno. Já vivera muito tempo numa terra fria, já me acos­tumara.

Em uma hora, o rapaz (ele tinha a delicadeza ágil de uma moça no seu jeito e nos movimentos, mas nenhuma garota poderia conservar tanto tempo um silêncio tão obsti­nado) veio ao meu encontro para me dizer que o senhor de Estre iria me receber, se me agradasse estar com ele. Segui-o escadas abaixo, através de longos corredores onde uma espé­cie de jogo de esconde-esconde estava se realizando. Crian­ças disparavam ao nosso lado, pequeninos circulavam em torno, com gritos de agitação, adolescentes deslizavam feito sombras de porta em porta, com as mãos sobre as bocas para não cair na risada. Uma coisinha gorducha de cinco ou seis anos carambolou nas minhas pernas, caiu e se agarrou nas mãos do meu acompanhante como proteção. "Sorve!", ele guinchou, olhando-me todo o tempo com seus grandes olhos bem abertos, "Sorve, vou me esconder na cervejaria!" E lá se foi ele como uma pedrinha redonda lançada por uma atiradeira. O jovem Sorve não se alterou e me conduziu ao salão interno onde estava o Lorde de Estre.

Esvans Harth rem ir Estraven era um velho, já passado dos setenta, aleijado por uma artrose dos quadris. Sentava-se ereto numa cadeira de balanço perto do fogo. Seu rosto era largo, muito marcado e gasto pelo tempo, como uma rocha numa torrente — mas um rosto calmo, terrivelmente calmo.

É o Enviado Genry Ai?

Sou eu.

Olhou-me e eu para ele. Therem fora o filho carnal deste velho senhor. Therem era o mais moço, Arek o mais velho, aquele irmão cuja voz ele ouvira na minha quando eu falava mentalmente com ele; ambos mortos agora. Não conseguia descobrir nada de parecido com meu amigo na­quelas feições calmas, duras e velhas que meu olhar perscru­tava. Não achei nada, apenas a certeza, o fato incontestável, da morte de Therem.

Eu viera numa missão sentimental a Estre, esperando encontrar consolo. Não havia consolo; e por que deveria essa peregrinação ao lugar da infância de meu amigo fazer alguma diferença, encher qualquer ausência, acalmar algum remorso? Nada poderia ser mudado agora. Minha vinda a Estre tinha, todavia, uma outra finalidade, e esta eu poderia realizar.

Estive com seu filho nos meses que antecederam sua morte. Estava com ele quando morreu. Trouxe o diário que ele mantinha. E se existe algo que eu possa lhe contar desses dias...

Nenhuma expressão especial apareceu na sua fisiono­mia. Esta calma não era para ser alterada. Mas o jovem, com um movimento súbito, saiu da sombra para a luz entre a janela e o fogo e falou asperamente:

Em Erhenrang eles ainda o chamam Estraven, o Traidor.

O velho senhor olhou para o rapaz, depois para mim.

Este é Sorve Harth — disse —, herdeiro de Estre, filho dos meus filhos.

Não havia nenhuma interdição de incesto ali, eu bem o sabia. Mas a estranheza disto, para mim, um ser da Terra, e a estranheza de ver um relâmpago do espírito do meu amigo neste rapaz sombrio, impetuoso e provinciano, tira­ram-me a palavra por instantes. Quando consegui falar, mi­nha voz tinha perdido a firmeza.

O rei vai revogar sua sentença. Therem não foi um traidor. Que importa que algum tolo o chame assim?

O velho senhor acenou vagarosa e suavemente com a cabeça.

Importa, sim — disse ele.

Vocês cruzaram os gelos de Gobrin juntos? — Sor­ve perguntou. — Você e ele?

Sim. Cruzamos.

Gostaria de ouvir esta história, Sr. Enviado — disse o velho Esvans, sempre calmo. Mas o rapaz, o filho de The­rem, gaguejou:

Quer nos contar como morreu? Quer nos contar sobre os outros mundos, nas estrelas, as outras espécies de homens, as outras vidas?

 

 

[1] Ilha. Palavra que designa edifícios habitacionais que abrigam a maior parte da população de Karhide. Essas ilhas têm de vinte a duzentos quartos particulares; as refeições são feitas num refeitório comum. Alguns funcionam como hotéis, outros como cooperativas comunais e outros combinam esses dois tipos. São, na realidade, uma adaptação urbana da instituição karhideana chamada lar, apesar de lhe faltar a estabilidade genealógica do verdadeiro lar.

[2] Sua transgressão ao código que controlava o incesto tornou-se um crime porque foi vista como a causa do suicídio do irmão.

[3]  As geleiras de Pering são um lençol glacial que cobre a parte extre­ma setentrional de Karhide. No inverno, quando a baía de Guhen gela, fica ligada às geleiras de Gobrin, em Orgoreyn.

[4] Uma espécie de chá. (N. do T.)

[5] Primeiro dia e mês do verão. (N. do T.)

[6] Nome da estação que vem logo depois do inverno. (N. do T.)

[7] Honra pessoal. (N. do T.)

[8]  Animal próprio da região. (N. do T.)

[9]  Temperatura úmida, de zero a vinte graus Fahrenheit.

[10]  Este ê um dos enfoques das teorias místicas usadas como base para a hipótese de um universo em expansão, teoria proposta pela primeira vez pela Escola de Matemáticas de Sith há quatro mil anos. É aceita pelos cosmologistas, mesmo sabendo-se que as condições meteorológi­cas em Gethen impedem a obtenção de dados astronômicos provenien­tes de observação. A velocidade da expansão (constante de Hubble; constante de Rerherek) pode ser, na realidade, calculada tendo-se como base a quantidade de luz observada no céu noturno; o ponto em questão é aquele referente ao fato de que, se o universo não estivesse se expandindo, o céu noturno não pareceria ser negro.

[11] Os handdaratas.

[12] Neve fina em vendaval moderado; uma espécie de tempestade de neve fraca.

 

                                                                                Ursula K. Le Guin

 

 

                      

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