Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MÃO ESQUERDA DE DEUS - P.2 / Paul Hoffman
A MÃO ESQUERDA DE DEUS - P.2 / Paul Hoffman

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

Durante vários meses, a jovem aristocrata esteve no paraíso. O talento de Riba para as artes do embelezamento extraía o máximo de sua beleza nada mais que moderadas. Houve inclusive um aumento no número de pretendentes, o que lhe possibilitou tratar esses candidatos a amantes – conforme exigido pelas tradições de galanteio dos Materazzi – com um desdém e um menosprezo ainda maiores. Conforme ela sabia muito bem, nenhuma droga, por mais rara e preciosa que fosse, igualava o prazer extraordinário de ser o centro dos sonhos e desejos de outra pessoa e poder, apenas com um sorriso ou um olhar, fazê–lo em pedacinhos. Embora a principio tenha se perdido no deleite de saber que estava partindo mais corações do que até mesmo a odiada Arbell Pescoço de Cisne, mademoiselle Jane começou a se dar conta, para o seu desconforto, de algo tão estranho e inusitado que, durante algumas semanas, ela teve certeza de que era imaginação sua.
Alguns dos jovens aristocratas que vinham ao seu encontro, e não mais que alguns, pareciam não ficar tão devastados pela sua constante rejeição quanto ela esperava. Eles resmungavam, se lamentavam e imploravam que ela reconsiderasse tanto quanto os demais, porém, ela era, conforme já vimos antes, uma garota sensível (ainda que apenas no que dizia respeito a si mesma) e começou a suspeitar que seus protestos não fossem totalmente sinceros. O que isso poderia significar? Talvez, pensou mademoiselle Jane, ela estivesse se acostumando a partir corações e seu prazer nisso estivesse diminuindo, como geralmente acontece com prazeres aos quais nos entregamos com freqüência. Mas não era isso, pois ela continuava a sentir exatamente o mesmo arrebatamento com aqueles que ficavam arrasados de verdade diante da sua frieza. Algo estava acontecendo.


x
x
x

x
x
x


Mademoiselle Jane sempre reservava o fim da manhã para partir corações, concedendo aos seus pretendentes fatias generosas do seu tempo, podendo chegar a até trinta minutos, se eles fossem especialmente bons em lamentar sua beleza, frieza e crueldade. Ela decidiu reservar a manhã inteira aos que considerava suspeitos para ver se conseguia sanar suas dúvidas perturbadoras. Seus aposentos eram projetados de maneira que ela pudesse espiar com facilidade seus pretendentes à medida que chegavam e partiam, e ela passou a manhã fazendo exatamente isso.
Já pela metade da manhã, ela estava em um mau humor furioso, uma vez que todos os seus medos haviam se confirmado, embora de uma maneira que desafiava a imaginação. Era tudo culpa de Riba, aquela cadela ingrata.
Três vezes naquela manhã ela suportara os protestos insinceros de jovens que, agora estava claro, tinham vindo ao seu encontro apenas porque isso lhes dava a oportunidade de chegar mais cedo, se humilharem diante dela e então partirem o mais rápido possível para fazerem cara de cachorro pidão para aquela piranha gorda da Riba. Aquilo era inimaginavelmente humilhante. Eles não só estavam traindo a mulher mais bela e desejável de Memphis (o que era um exagero – ela era a 15ª da lista, no máximo –, mas devemos dar um desconto por conta da sua compreensível indignação), como também o estavam fazendo com uma criatura do tamanho de um bonde, que tremia como um manjar branco sempre que andava.
Esse insulto – e, para uma Materazzi, chamar uma mulher de gorda era um insulto mortal – também não era, de forma alguma, justo. Era evidente que Riba contrastava com sua patroa, assim como com qualquer outra Materazzi, porém, ela jamais tremia como um manjar branco; além disso, nos dois meses que havia passado em Memphis, Riba estivera tão ocupada que já nem tinha condições ou tempo de comer tanto quanto no Santuário. O resultado era que ela havia perdido boa parte da sua formosura gorducha.
O que antes parecia um excesso de singularidade se tornara uma singularidade muito sedutora. As curvas e formas sinuosas de Riba faziam um número cada vez maior de jovens Materazzi, acostumados à magreza andrógina e ao mau gênio das mulheres do seu clã, observá–la com um interesse crescente sempre que ela passava por eles com sua patroa desdenhosa. Seu sorriso alegre e sua receptividade eram quase tão cativantes quanto a sua figura. Os Materazzi haviam sido criados sob os rituais de um amor cortês, que envolviam uma adoração desesperada e platônica a um objeto de afeição distante que só sabia tratar todos os homens como lixo. Assim, a conversão de vários rapazes àquela beldade formosa, que não os olhava de cima para baixo como se fossem algo que o gato trouxe da rua, mal precisava de explicações.
Em um estado pavoroso, mademoiselle Jane desceu correndo do seu esconderijo e atravessou a porta do seu aposento principal, adentrando a recepção, onde Riba acabara de fechar a porta às costas de um jovem Materazzi, que foi conduzido sorridente em direção à rua em uma névoa de desejos e anseios, mademoiselle Jane chamou aos gritos sua governanta.
– Anna–Maria! Anna–Maria!
Riba olhou assustada para a sua patroa, que, àquela altura, estava bastante vermelha de raiva.
– Qual o problema, mademoiselle?
– Cale a boca, seu monte barrigudo de banha – respondeu mademoiselle Jane, de maneira extremamente inadequada para uma mademoiselle, enquanto Anna–Maria, espantada por conta do grito
selvagem, entrava correndo na recepção. Mademoiselle Jane olhou para a governanta como se fosse explodir e então apontou para Riba.
– Tire essa vigarista traiçoeira da minha casa. Nunca mais quero ver essa vagabunda.
Mademoiselle Jane estava prestes a concluir seu ataque com um tapa na cara de Riba, porém, reconsiderou ao ver como o espanto no rosto da jovem havia se transformado em raiva por ter sido insultada com tanta fúria.
– Tire–a da minha frente! – gritou ela para Anna–Maria, zunindo de volta para os seus aposentos.
20
IdrisPukke se recusara a desistir de tentar reeducar o estômago de Cale. A principio, sua nova dieta teria que ser simples – e a simplicidade não era, no fim das contas, um teste para o talento de um bom cozinheiro? Da próxima vez que Cale voltou para comer um dos pratos especiais de IdrisPukke, deparou–se com uma truta fresca apanhada no lago próximo ao chalé, ligeiramente cozida a vapor, com batatas cozidas e ervas. Cale tomou cuidado com as batatas porque elas tinham um pouquinho de manteiga derretida em cima, porém, elas continuaram na sua barriga e ele até pediu mais.
E assim se passaram as noites e os dias. Cale continuava fazendo suas longas caminhadas com e sem IdrisPukke. Eles ficavam sentados em silêncio por horas e conversavam por horas, embora fosse IdrisPukke quem mais falasse. Ele também ensinou Cale a pescar, a comer na companhia de pessoas civilizadas (nada de arrotar, beber fazendo barulho e comer de boca aberta) e lhe contou sobre sua vida extraordinária – além de várias histórias em que ria às próprias custas, algo que Cale continuava achando desconcertante. À noite, ele às vezes sentia arroubos de felicidade quase incontroláveis sem nenhum motivo aparente. IdrisPukke também continuava a oferecer a Cale os benefícios de sua filosofia de vida.
– O amor entre um homem e uma mulher é o melhor exemplo possível de como todas as esperanças deste mundo são uma ilusão absurda, e isso porque o amor promete extraordinariamente muito e nos entrega extraordinariamente pouco. – Ou então: – Sei que você não precisa que eu lhe diga que este mundo é um inferno, porém, tente entender que os homens e as mulheres são, ao mesmo tempo, as almas atormentadas dele e os demônios que executam esses mesmos tormentos. – E ainda: – Ninguém verdadeiramente inteligente aceita o que quer que seja só porque alguma
autoridade diz que deve ser assim. Não aceite a verdade de nada que não tenha confirmado por conta própria.
Cale, por sua vez, lhe contava sobre sua vida com os Redentores.
– No começo, não eram apenas as surras que nos assustavam. Naquela época, acreditávamos no que eles diziam: que mesmo que não fôssemos pegos fazendo algo de errado, nascíamos maus e Deus via tudo o que fazíamos, então, precisávamos confessar tudo. Se não confessássemos e morrêssemos em um estado de pecado, iríamos para o inferno, onde queimaríamos por toda a eternidade. E quase todo mês meninos morriam, e os Redentores nos falavam que a maioria deles tinha ido para o inferno e queimariam por toda a eternidade. Eu costumava ficar acordado à noite depois das orações que sempre terminavam assim: “E se eu morresse esta noite?” Às vezes tinha certeza absoluta de que, se eu pegasse no sono, iria morrer e queimar para sempre em agonia. – Ele parou de falar por um instante. – Com que idade, IdrisPukke, você descobriu o que era o terror?
– Eu tinha bem mais de 5 anos, de qualquer forma. Foi na Batalha de Goat River. Estava com, vamos ver, 17 anos. Fomos emboscados em uma missão de reconhecimento. Minha primeira vez em uma batalha de verdade. Não que não tivesse sido treinado. Eu era bom, o terceiro da minha classe. A Cavalaria Druse veio descendo a colina e então houve apenas confusão, barulho e caos. Eu não conseguia falar, minha língua ficou grudada no céu da boca. Comecei a tremer e senti vontade de... bem... quero dizer...
– De cagar nas calças? – sugeriu Cale.
– Para que fazer rodeios? Quando tudo acabou, e não durou mais que cinco minutos, eu ainda estava vivo. Mas não tinha nem mesmo sacado minha espada.
– Alguém viu?
– Sim.
– O que eles disseram?
– “Você vai se acostumar.”
– Não bateram em você?
– Não. Mas disseram: “Se isso acontecer de novo, bem, você não vai durar muito.” – E então, você já se sentiu assim alguma vez? – perguntou finalmente IdrisPukke.
Não era, de forma alguma, uma pergunta simples. Uma das condições impostas por seu irmão, ou, mais precisamente, seu meio–irmão, para libertar IdrisPukke e deixar Cale sob seu controle era que ele deveria descobrir tudo sobre o garoto – e, o que era mais importante, tudo sobre sua aparente falta de medo, inclusive se ela era um talento ou algo de alguma forma engendrada pelos Redentores.
– Eu costumava sentir medo o tempo todo quando era novo – disse Cale algum tempo depois. – Mas então parei de sentir.
– Por quê?
– Não sei. – Isso não era verdade, é claro, ou pelo menos não inteiramente.
– E agora você não sente medo nenhum?
Cale o encarou. As ultimas semanas o haviam deixado perplexo; ele se sentia grato a IdrisPukke e experimentara várias sensações estranhas e inusitadas de amizade e confiança. Porém, seria preciso mais do que algumas semanas de gentileza e generosidade para abalar a desconfiança de Cale. Ele refletiu se deveria ou não mudar de assunto. No entanto, pelo jeito não parecia importar muito que ele dissesse a verdade.
– Eu tenho medo de coisas que possam me machucar em geral. Sei o que os Redentores querem fazer comigo. É difícil explicar. Mas lutar... é diferente. Aquilo que você estava dizendo sobre a Batalha de... – Ele olhou para IdrisPukke.
– Goat River.
– ...aquela história de tremer todo e ter vontade de cagar nas
calças.
– Não se preocupe em poupar meus sentimentos.
– Para mim é o oposto. Eu simplesmente fico frio. Tudo fica muito claro.
– E depois?
– Como assim?
– Você sente medo?
– Não. Na maioria das vezes, não sinto nada. Exceto depois que tirei o couro de Conn Materazzi. Aí eu me senti ótimo. Ainda me sinto. Mas quando matei aqueles soldados no ringue não me senti bem. Afinal, eles não fizeram mal nenhum. – Ele fez uma pausa. – Não quero mais falar sobre isso.
E, por ser um homem de bom–senso, IdrisPukke não abusou da sorte. Assim, durante as próximas semanas, Cale voltou às suas perambulações enquanto, à noite, os dois bebiam, fumavam e comiam juntos – a comida se tornando pouco a pouco cada vez mais gostosa, à medida que Cale ficava mais apto a digerir um pouco de peixe frito empanado em massa crocante, mais manteiga em seus vegetais, um pingo de creme nas suas amoras silvestres.
Durante o mês que Cale e IdrisPukke passaram gozando da calma e tranqüilidade do Chalé de Treetops, um homem e uma mulher os vigiaram. Não se deve inferir disso nenhum cuidado ou zelo – imagine a vigilância amorosa de uma mãe sobre o filho, mas sem o amor. Nas histórias de mocinhos e bandidos, é sempre o mocinho que fica sujeito à má sorte, aos infortúnios e aos descuidos. Os bandidos são sempre espertos e agem com disciplina, realizando planos astuciosos frustrados apenas no ultimo minuto. O mal está sempre à frente dos métodos infalíveis. Na vida real, tanto os bandidos quanto os mocinhos cometem erros simples e fáceis de evitar, têm dias terríveis e se equivocam. Os vilões possuem fraquezas que vão além da sua disposição para matar e ferir. Mesmo a alma mais fria e cruel tem seus pontos fracos. Mesmo o mais árido deserto possui seus oásis, suas árvores que fazem sombra e córregos de águas tranqüilas. Não é apenas a chuva que cai tanto sobre os justos quanto sobre os injustos, mas também a boa e a má sorte, as vitórias imprevistas e as derrotas imerecidas.
Recostado contra uma amoreira, Daniel Cadbury fechou o livro que estava lendo, O Príncipe Melancólico, e gemeu de satisfação.
- Fique quieto! – disse a mulher, que estava olhando com atenção para a direção oposta dele, mas que, ao ouvir o barulho do livro sendo fechado, lançou a cabeça na sua direção.
- Ele está a 200 metros de distância – disse Cadbury. – O menino não ouviu nada.
Conferindo por um instante que Cale ainda dormia às margens do rio mais abaixo, a mulher olhou de volta para Cadbury, desta vez, apenas encarando-o. Se não fosse quem era – um assassino, ex-escravo das galés e, vez por outra, agente secreto de Kitty das Lebres - , Cadbury poderia muito bem ter se sentido intimidado. Ela não era exatamente feia, talvez apenas extremamente sem-sal. Seus olhos, no entanto, desprovidos de qualquer coisa que não fosse hostilidade, teriam deixado quase qualquer um desconfortável.
- Quer emprestado? – disse Cadbury, gesticulando em sua direção com o livro. – É muito bom.
- Não sei ler – disse a mulher, achando que ele estava tirando sarro dela, o que era verdade. Normalmente, Cadbury não seria insensato a ponto de provocar Jennifer Plunkett, uma matadora tão admirada por Kitty das Lebres que ele lhe reservava apenas os assassinatos mais difíceis. Ele gemera de desânimo quando Kitty lhe disse quem seria sua parceira.
- Jennifer Plunkett não, por favor.
- Concordo que ela não seja uma companhia agradável – gorgolejou Kitty - , mas existem muitas pessoas importantes interessadas neste menino, inclusive eu, e meu instinto me diz que o tipo de violência extrema na qual Jennifer Plunkett é exímia pode ser necessária. Tolere-a por mim, Cadbury. – E assim foi.
Foi o tédio que fez Cadbury alfinetar a carniceira perigosamente talentosa que ainda o fuzilava com os olhos. Eles já estavam observando o menino por quase um mês e tudo que ele fizera tinha sido comer, dormir, nadar, andar e correr. Nem mesmo os prazeres de O Príncipe Melancólico, um livro com o qual ele se deleitara uma dúzia de vezes durante o mesmo número de anos, conseguiam evitar que ficasse irrequieto.
- Não quis ofender, Jennifer.
- Não me chame de Jennifer.
- Tenho que chamá-la de alguma coisa.
- Não, não tem. – Ela não afastou o olhar e tampouco piscou. Sua tolerância tinha limite, e não era muito grande. Cadbury deu de ombros para sugerir que estava cedendo, mas ela não se mexeu. Ele começou a se perguntar se não deveria ficar preparado. Então, como um animal, do tipo que não gostava da companhia humana, ela virou a cabeça para o outro lado e voltou a observar o menino adormecido.
Não são apenas os olhos dela que são estranhos, pensou Cadbury, é o que está por trás deles. Ela está viva, mas não consigo entender como exatamente.
Graças à sua profissão, Cadbury conhecia muito bem os homicidas. Afinal, era um deles. Ele matava quando necessário, dificilmente com prazer e, às vezes, com relutância e até mesmo remorso. A maioria dos assassinos de aluguel tirava certo prazer – em maior ou menor escala – do que fazia. Jennifer Plunkett era diferente, no sentido que ele achava impossível saber o que se passava na sua cabeça quando ela matava. Sua experiência de observá-la se livrar dos dois homens que IdrisPukke subornara os soldados para prender foi diferente de qualquer coisa que ele tivesse visto na vida. Quando foram soltos, e ignorando que não passavam de marionetes, eles caíram na besteira de entrar na floresta a 800 metros do Chalé de Treetops e acampar ali. Sem consultá-lo – o que era uma descortesia profissional, mas ele resolvera deixar isso para lá - , ela se aproximou dos dois enquanto eles ferviam um bule de chá e os esfaqueou. Foi sua discrição que impressionou Cadbury. Ela os matou tão sem esforço quanto uma mãe que estivesse catando os brinquedos do filho, como se fosse uma espécie de distração entediante. Quando os homens perceberam o ocorrido, já estavam morrendo. Pela sua experiência, até mesmo os matadores mais cruéis precisavam, ou preferiam, se preparar para matar. Mas não Jennifer Plunkett.
Seu devaneio foi interrompido pelo som do menino à beira do rio, que já havia acordado e estava se mexendo. Ele se afastara da margem cerca de 20 metros. Então, começou a gritar, emitindo um “Whooooooo!” grave e disparando em direção à água, correndo cada vez mais rápido. Erguendo a voz até um grito agudo, ele saltou para dentro do rio, encolhendo-se como uma bomba no ar e espalhando água por todo lado. Quase imediatamente, veio à tona com um salto, gritando alegremente de frio e batendo os pés de volta à margem. Peladinho da silva, ele dançou de
um lado para outro, rindo e gritando diante do prazer formidável da água gelada e do ar quente de verão.
- É bom ser jovem, né? – disse Cadbury. Era impossível não compartilhar da alegria do menino. E então, para o seu assombro, ele viu como isso era verdade. Jennifer Plunkett estava sorrindo, seu rosto transformado, como a pintura de uma santa. Jennifer Plunkett estava apaixonada. Ao notar que Cadbury a observava, ela abandonou no mesmo instante qualquer que fosse o paraíso para o qual o menino a levara. Ela o encarou, piscou como um falcão ou um gato selvagem e então deu as costas para o rio, sua expressão totalmente vazia.
- O que você acha que Kitty das Lebres quer com ele? – disse
ela.
- Não faço idéia – respondeu Cadbury. – Boa coisa não pode ser. É uma pena – acrescentou ele, com bastante sinceridade. – Ele parece um rapazinho tão alegre. – Cadbury se arrependeu das suas palavras assim que saíram da sua boca, no entanto, ele ainda estava perturbado pelo que tinha visto. Era como ver uma cobra corar de vergonha. Isso serve para você aprender, pensou ele, a não achar que sabe o que se passa na cabeça das outras pessoas. Repleto de admiração diante daqueles desdobramentos inusitados, ele se sentou e recostou-se de volta contra a amoreira.
No fim das contas, Cadbury não tardou a descobrir o que se passava pela cabeça dela. Para Jennifer Plunkett, ele parecia estar dormindo; no entanto, Cadbury era esperto demais para não levar em conta esse imprevisto. Ele manteve seus olhos não exatamente fechados sobre as costas de Jennifer, sacando sua faca Mott e escondendo-a, com a mão fechada em volta do cabo, debaixo da coxa direita, que estava mais longe dela. Durante trinta minutos inteiros, ele observou suas costas imóveis enquanto escutava repetidas vezes o “Whooo!” do menino, seguindo do barulho de água e das suas risadas escandalosas. Então ela se virou, aproximando-se dele com a faca em punho, novamente sem o menor estardalhaço, e começou a desferir o golpe mortal. Ele o bloqueou com sua mão esquerda e deu uma facada para cima com a direita. Ficou impressionado com a sua agilidade enquanto rolava com ela sobre as folhas secas de outono que cobriam o solo da floresta. Ficaram rolando para lá e para cá em seu abraço terrível, apenas os dois ouvindo o chiado quente e fraco de suas respectivas respirações e o farfalhar das folhas mortas, enquanto olhavam dentro dos olhos um do outro, seus lábios quase se tocando.
Então, aos poucos, começou a ficar claro que ele era mais forte. Ela se debateu, contorcendo-se com todo o seu enorme vigor, porém, logo Cadbury a imobilizou e ela estava derrotada. Contudo, Jennifer tinha mais uma arma, além de seu ódio e sua raiva, a que recorrer: seu amor monstruoso. Como ela poderia desistir dele e morrer? Assim, ela ergueu o corpo do chão, deslizou para o lado, desequilibrou Cadbury e se libertou da sua mão esquerda, levantando-se e disparando colina abaixo em direção ao seu menino querido.
- Thomas Cale! Thomas Cale! – gritou ela. O menino ergueu os olhos enquanto escalava nu a margem coberta de limo do rio. Boquiaberto, ele olhou para a harpia que descia aos gritos a colina, desesperada e exclamando seu nome sem parar: - Thomas Cale! Thomas Cale!
Em sua vida amaldiçoada por diversas visões extraordinárias, aquela era a mais estranha de todas: uma criatura assexuada, de aparência selvagem, gritava seu nome, brandindo uma faca no ar e disparando em sua direção com uma loucura terrível nos olhos. Apavorado, ele foi correndo apanhar suas roupas, tateando em busca da sua espada, que deixou cair e apanhou de volta em seguida. Então a ergueu para golpeá-la quando Jennifer estava quase em cima dele, berrando alucinadamente. Ele ouviu um zumbido cortante, seguido por um baque surdo, como o do tapa da mão de um homem contra o flanco de um cavalo. Jennifer soltou uma tosse fina e passou rolando por um Cale aterrorizado, chocando-se com força contra o tronco de um carvalho-japonês.
Cale correu para trás de uma árvore, seu coração esmurrando o peito e agitando-se como um pássaro recém-capturado. Ele começou imediatamente a procurar uma rota de fuga. Ao redor da árvore, havia um arco irregular de terreno a céu aberto com algo em torno de 50 metros de extensão. Ele olhou para o corpo. Agora, conseguia ver que se tratava de uma mulher, embolada contra a base da árvore com a bunda para cima e caída de lado. Ela estava com o que parecia ser uma flecha de 90 gramas enfiada nas costas, a ponta mal saindo do seu peito. Seu nariz sangrava, uma gota de sangue solitária caindo no chão a cada três ou quatro segundos. Não era um tiro fácil, acertar um alvo em movimento como aquele, mas tampouco era excepcional. Ela havia corrido na direção oposta da flecha, portanto, se ele saísse de trás da árvore naquele instante, teria que atravessar a linha de fogo. Começando a correr do zero, levaria cinco ou seis segundos para alcançar abrigo. Tempo suficiente para um tiro, não mais, e teria que ser muito bem dado. Porém, talvez ele fosse bom o suficiente. Kleist conseguia acertar um tiro daqueles três de quatro vezes.
- Ei! Garotão!
Ele estava a cerca de 200 metros de distância, e em linha reta, pensou Cale.
- O que você quer?
- Que tal um “obrigado”?
- Obrigado. Agora por que não dá o fora?
- Seu merdinha ingrato, eu acabei de salvar sua vida.
Ele estava se movendo? Parecia que sim.
- Quem é você?
- Seu anjo da guarda, parceiro, é isso que eu sou. Ela era uma garota muito ruim, aquela ali, muito ruim mesmo.
- O que ela queria?
- Queria cortar sua garganta, parceiro. É o que ela fazia para
viver.
- Por quê?
- Não faço idéia. Vipond me mandou para ficar de olho em você e naquele irmão imprestável dele.
- Por que eu deveria acreditar em você?
- Por nada. Aliás, nem se incomode. Só não quero que venha atrás de mim. Não quero ter que cravar uma flecha em você, não depois de todo o trabalho que tive para salvar sua pele. Então, simplesmente fique onde está por 15 minutos e, enquanto você aguarda pacientemente, eu sigo meu caminho e ninguém sai ferido. Combinado?
Cale pensou no assunto: fugir, segui-lo, apanhá-lo, arrancar a verdade dele na base da pancada. Ou, no caminho, levar uma flechada nas costas. Aquele homem soava como se soubesse o que estava fazendo. De qualquer forma, havia uma alternativa.
- Combinado. Quinze minutos.
- Palavra de honra?
- O quê?
- Esqueça. Que tal aquele “obrigado” então.
E, com essas palavras, tanto Cadbury quanto Cale se puseram a caminho. Enquanto Cadbury marchava de volta para a parte mais cerrada da floresta, Cale, usando as árvores como proteção, havia entrado no rio e nadava com cautela ao longo de sua margem, afastando-se dali.
Três horas depois, Cale e IdrisPukke estavam de volta ao rio examinando o corpo da mulher morta sob a proteção de uma nuvem de árvores. Eles tinham passado duas horas buscando qualquer sinal do suposto salvador de Cale, porém, não encontraram nada. IdrisPukke revistou o corpo e encontrou três facas, dois garrotes, um esmagador de polegares, um soco-inglês e, na sua boca, ao longo da gengiva esquerda, uma lâmina flexível de 2,5 centímetros, envolvida em seda.
- Independente do que ela estivesse tramando – disse IdrisPukke - , ela não queria lhe vender pregadores de roupas.
- Você acredita nele?
- No seu salvador? Me parece plausível. Entretanto, não sei se acredito exatamente nele. Mas, convenhamos, se ele quisesse matar você, poderia ter feito isso a qualquer momento do mês que passou. Ainda assim... isso cheira mal.
- Você acha mesmo que ele foi enviado por Vipond?
- É possível. Seria muita dor de cabeça por conta de um sujeito como você. Sem ofensa.
Cale só não ficou ofendido com a observação de IdrisPukke porque estava pensando a mesma coisa.
- E quanto à mulher? – disse ele, por fim.
- Vamos jogá-la no rio.
Então foi isso que eles fizeram, e esse foi o fim de Jennifer
Plunkett.
Naquela noite, os dois comeram dentro da cabana, só para garantir, e conversaram sobre o que fazer quanto aos acontecimentos estranhos do dia.
- A questão é – disse IdrisPukke -, o que podemos fazer? Se os responsáveis pela morte daquela moça quisessem fazer o mesmo com você, já teriam feito. Ou poderiam fazer amanhã.
- Você disse que cheira mal.
- É perfeitamente possível que Vipond tenha mandado alguém para ficar de olho na gente, mesmo que tenha sido por motivos pessoais. Também é possível que um dos membros do Mond que você humilhou de forma tão pública tenha pagado alguém para te colocar em um caixão. Eles têm dinheiro e ódio suficientes para isso. Ao que parece, a mulher estava vindo atacar você; ela estava com uma faca na mão. O tal homem a deteve e depois caiu fora. Esses são apenas os fatos. Obviamente não são todos eles, e novas descobertas podem nos fazer encará-los sob um prisma totalmente diferente. Mas, por enquanto, tudo não passa de especulação. Tanto se ficarmos aqui quanto se formos embora, continuamos vulneráveis a qualquer homem ou mulher com uma boa pontaria e malícia ou uma recompensa no coração. Aceitamos o que os fatos que temos nos dizem porque é o melhor que podemos fazer. Você tem uma alternativa?
- Não.
- Então pronto.
Na manhã seguinte, Cale acordou cedo e saiu, porém, não sem uma grande inquietude. Conseguia ver sentido no fatalismo de IdrisPukke, mas, no fim das contas, não era o destino dele que estava em jogo. Como o próprio IdrisPukke costumava dizer, qualquer filósofo pode suportar uma dor de dente, exceto o que a está sofrendo. Preocupado, ele mal registrou que havia um pombo de plumagem lustrosa zanzando pela mesa da varanda, comendo farelos de pão dormido.
- Não se mexa – falou baixinho IdrisPukke, bem atrás dele, estendendo um pedaço de pão enquanto se aproximava lentamente do pássaro e lhe dava de comer, colocando a outra mão com cuidado ao redor do seu corpo e, então, agarrando-o firme. Virando o pombo de ponta
cabeça, IdrisPukke tirou o pequeno tubo de metal preso a uma de suas pernas. Cale ficou observando a cena, estupefato.
- É um pombo-correio – falou IdrisPukke. – Enviado por Vipond. Aqui, tome. – Ele entregou o pássaro para Cale, desatarraxando o tubo, tirando um pedaço de papel de arroz de dentro dele e começando a ler. Ao fazê-lo, sua expressão ficou grave.
- Uma tropa de Redentores raptou Arbell Pescoço de Cisne.
O rosto de Cale ficou vermelho de espanto e perplexidade.
- Por quê?
- A mensagem não diz. A questão é que ela estava no lago Constanz. Ele fica a uns 80 quilômetros daqui. A rota mais curta de volta ao Santuário é através do desfiladeiro de Cortina, a uns 30 quilômetros de onde estamos. Se for por lá que eles estão indo, temos que encontrá-los e comunicar às tropas que Vipond está mandando atrás de nós. – Ele pareceu preocupado e confuso. – Isso não faz sentido. É uma declaração de guerra. Por que os Redentores fariam uma coisa dessas?
- Não sei. Mas existe um motivo. Isso não teria acontecido sem o assentimento de Bosco. E Bosco sabe o que faz.
- Bem, não tem lua no céu, então eles não podem viajar à noite, nem nós. Vamos juntas nossas coisas agora, dormir um pouco e começar ao amanhecer. – Ele respirou fundo. – Embora Deus saiba que nós temos poucas chances de alcançá-los.
21
No dia seguinte, IdrisPukke não quis partir antes de haver luz o bastante para enxergarem com clareza. Cale argumentou que era preciso correr aquele risco, porém, IdrisPukke não arredou pé.
- Se um desses cavalos se machucar pisando em falso no escuro, estamos ferrados.
Cale sabia que ele tinha razão, mas estava desesperado para partir logo, de modo que resmungou com uma irritação desdenhosa. IdrisPukke o ignorou por mais vinte minutos e então se puseram a caminho.
Durante os dois dias que se seguiram, eles pararam apenas para descansar os cavalos e comer. Cale o instigava o tempo todo a ir mais rápido. IdrisPukke, por sua vez, insistia calmamente que os cavalos, e ele mesmo, não agüentariam, mesmo que Cale agüentasse. Iriam precisar dos quatro para alcançar os Redentores, se é que conseguiriam alcançá-los. E também precisavam ter pelo menos um cavalo em condições de voltar rapidamente para os Materazzi para lhes transmitir as coordenadas.
- Você não parece preocupado com a garota – disse Cale.
- É exatamente por estar preocupado com ela que estamos fazendo isso do meu jeito: porque eu estou certo. Além do mais, o que Arbell Pescoço de Cisne significa para você?
- Absolutamente nada. Mas, se eu puder ajudar a deter os Redentores, então o marechal terá um bom motivo para ser mais generoso comigo. Tenho amigos em Memphis que também são reféns.
- Para mim, você não tinha amigos. Achava que vocês tinham sido unidos apenas pelas circunstâncias.
- Eu salvei a vida deles. Isso já me parece bastante amigável.
- Ah – disse IdrisPukke. - Pensei que você tivesse sido um herói relutante nessa história toda.
- E tinha mesmo.
- Então o que você é, mestre Cale? Nobre por natureza ou somente por acaso?
- Não sou nem um pouco nobre.
- Isso é o que você diz. Mas eu me pergunto se não existe um herói incipiente crescendo em algum lugar aí dentro.
- O que significa “incipiente”?
- Algo que está começando a vir à tona, começando a surgir.
Cale riu, mas não de forma agradável.
- Se é isso que você pensa, vamos torcer que não esteja em posição de descobrir.
E, ao ouvir essas palavras, IdrisPukke decidiu se calar.
No segundo dia, eles desceram até a estrada principal, que levava ao desfiladeiro de Cortina. Se é que se podia chamar aquilo de estrada.
- Já faz sessenta anos que ninguém mais usa essa estrada, desde que os Redentores fecharam a fronteira.
- A que distância o Santuário fica do desfiladeiro? – perguntou
Cale.
- Você não sabe?
- Os Redentores não deixavam mapas espalhados pelo Santuário, ou qualquer coisa que pudesse facilitar nossa fuga. Até alguns meses atrás, eu achava que Memphis ficava a milhares de quilômetros de distância. Se IdrisPukke não tivesse sido distraído por uma graciosa libélula escarlate e dourado, ele teria visto a mentira no rosto de Cale à medida que ele achava que tinha se entregado.
- Quero dizer – acrescentou Cale -, antes de vir para cá e perceber que não. – Foi então que IdrisPukke percebeu o nervosismo na sua voz.
- Qual o problema?
- Nada.
- Se você diz.
Morrendo de medo de ter revelado algo que estava preocupadíssimo em não revelar, Cale passou os dez minutos seguintes envolvido em um silêncio apreensivo. Quando IdrisPukke voltou a falar, era como se tivesse esquecido o assunto – o que de fato tinha acontecido.
- O Santuário está a uns bons 300 e poucos quilômetros do desfiladeiro, mas eles não precisam ir tão longe. Existe uma fortaleza a 30 quilômetros da fronteira. Eles a chama de Cidade do Mártir.
- Nunca ouvi falar.
- Bem, não é tão grande, mas as muralhas são grossa. Seria preciso um exército para tomá-la.
- E daí?
- Daí, nada. Materazzi adora a garota. Vai dar qualquer coisa que eles quiserem.
- Como você sabe que eles querem alguma coisa.
- Não faz sentido se não quiserem.
- O que faz sentido pra você e o que faz sentido para os Redentores está longe de ser a mesma coisa.
- Então você chegou a alguma conclusão sobre o que eles estão
fazendo?
- Não.
- Não tem nada a ver com você?
Cale riu.
- Os Redentores são um bando de desgraçados, mas você acha mesmo que eles começariam uma guerra com Memphis por causa de três garotos e uma menina gorda?
IdrisPukke resmungou.
- Não se você colocar dessa maneira. Por outra lado, você vem mentido para mim há dois meses.
- E quem é você para exigir a verdade?
- O melhor amigo que você tem.
- É mesmo?
- Sim, por capricho do destino. Então, não há nada que você queira me contar.
- Não. – E, ficou por isso mesmo.
Vinte minutos depois, eles toparam com os resquícios de uma
fogueira.
- O que você acha? – perguntou Cale, à medida que IdrisPukke peneirava os restos de cinza entre os dedos.
- Ainda está quente. Estiveram aqui há poucas horas. – Ele indicou com a cabeça a grama achatada e a terra ligeiramente revolvida. – Quantos?
Cale suspirou.
- Provavelmente não menos que dez, mas não mais que vinte. Desculpe, não sou muito bom nesse tipo de coisa.
- Nem eu. – Ele olhou em volta, pensativo e indeciso. – Acho que um de nós deveria voltar e dizer aos Materazzi em que pé estamos.
- Por quê? Isso vai fazer com que eles venham mais rápido? E mesmo se for o caso, o que vão fazer quando chegarem aqui? Se houve qualquer tipo de batalha, os Redentores irão matá-la. Eles não se rendem, isso eu garanto.
Desta vez, foi IdrisPukke que suspirou.
- Então o que você sugere?
- Alcançá-los e nos mantermos longe de vista. Assim que a gente souber qual é a situação, podemos calcular o que fazer. Trazer um pequeno número de Materazzi e dar cabo disso rápido. Essa é a minha idéia enquanto não os alcançamos. As coisas podem mudar quando isso acontecer.
IdrisPukke fungou e cuspiu no chão.
- Está certo. Você os conhece melhor.
Cinco horas depois, enquanto a noite caia. Cale e IdrisPukke rastejaram em direção ao topo de uma pequena colina logo antes da entrada do desfiladeiro de Cortina – uma fissura imensa na montanha de granito que demarcava a fronteira norte entre os Redentores e os Materazzi.
A colina dava vista para uma depressão de cerca de 6 metros de profundidade e 80 metros de largura, na qual eles conseguiam ver seis Redentores montando um acampamento. Arbell Materazzi estava sentada no meio do grupo aparentemente amarrada, pois não se moveu uma só vez enquanto eles ficaram observando. Cinco minutos depois, os dois recuaram até um grupo de arbustos a uns 200 metros de distância dali.
- Caso você esteja se perguntando por que só vimos seis deles ali, tem outros quatro, no mínimo, vigiando as cercanias – disse Cale. – Eles provavelmente enviaram um cavaleiro na frente até a fortaleza para esperá-los do outro lado.
- Vou voltar e tentar trazer os Materazzi – disse IdrisPukke.
- Para quê?
- Se eles estiverem perto, vão se arriscar a cavalgar no escuro. Mesmo se os Materazzi perderem metade dos seus cavalos no caminho, são apenas uma dúzia de Redentores, no máximo.
- E se vocês não estiverem aqui e prontos para atacar antes do amanhecer, eles já estarão no desfiladeiro e fora do alcance. E mesmo que não, um ataque à luz do dia é morte certa para a garota. Precisamos detê-los antes de eles partirem ou então desistir.
- Nós somos apenas dois – observou IdrisPukke.
- Sim – respondeu Cale. – Mas um de nós dois sou eu.
- É suicídio.
- Se fosse, eu não faria.
- Por que, então?
Cale deu de ombros.
- Se eu salvar a garota. Sua Excelência, o marechal, ficará eternamente grato. Grato o suficiente para me dar dinheiro, muito dinheiro, e salvo-conduto.
- E para onde você iria?
- Para algum lugar quente, onde a comida seja gostosa e o mais longe que você possa chegar dos Redentores sem cair da beirada do mundo.
- E seus amigos?
- Meus amigos? Ora, eles podem vir também. Por que não?
- É arriscado demais. Melhor deixá-la continuar como refém e os Materazzi que a comprem de volta com o que quer que os Redentores queiram.
- O que faz você ter tanta certeza de que ela é uma refém? – disse Cale, sua voz fria e irritada. IdrisPukke o encarou.
- Pois bem... talvez agora a gente ouça a verdade.
- A verdade é que você acha que os Redentores são como você, só que mais cruéis, mais loucos. E que, no fundo, o que você quer e o que eles querem é a mesma coisa. Só que não é. – Ele suspirou. – Não que eu os entenda, porque não é isso. Eu achava que entendia, até o que aconteceu antes de eu matar aquele bosta do Picarbo, o Redentor. Eu disse que fiz aquilo para evitar que ele, bem, a estrupasse.
- Estuprasse.
Cale, que odiava ser corrigido, ruborizou.
- Não importa como se diz, não era isso que ele estava fazendo. Ele estava retalhando a menina. – Então ele contou a IdrisPukke o que exatamente aconteceu naquela noite.
- Meu Deus! – disse um IdrisPukke horrorizado quando ele terminou. – Por quê?
- Não faço idéia. Era isso que eu queria dizer quando falei que parei de achar que sabia o que se passava nas cabeças pervertidas deles.
- Por que fariam isso com Arbell Materazzi?
- Já disse que não sei. Talvez queiram saber como uma Materazzi é, bem... – ele fez uma pausa, constrangido para variar - ... por dentro. Sei lá. Mas não faz sentido que eles a queiram por dinheiro. E isso não é do feitio deles.
- Faz mais sentido se eles quiserem você de volta.
Cale engasgou, quase rindo.
- Eles gostariam de fazer de mim um exemplo, um espetáculo para ninguém botar defeito. E não nego que chegariam a extremos para tanto. Mas começar uma guerra com os Materazzi por um acólito? Nem em um milhão de anos. - Ele sorriu, taciturno. – Imagino que a mesma idéia tenha passado pela cabeça do marechal. Estou disposto a apostar que nós quatro poderíamos ser mandados de volta ao Santuário num piscar de olhos apenas como um gesto da sua boa vontade. Você não acha?
IdrisPukke não respondeu, pois era exatamente nisso que estava pensando. Os dois ficaram calados por alguns minutos.
- É arriscado. Mas pode ser feito – falou Cale. – Ela não significa nada para mim – mentiu ele. – Não jogaria minha vida no lixo por uma pirralha mimada dos Materazzi. Mas, se os Redentores a levarem embora, tenho tudo a perder. Se conseguimos resgatá-la, tenho tudo a ganhar. Tudo o que você precisa fazer é me dar cobertura. Mesmo que eu fracasse, você tem uma chance mais do que razoável de fugir. E, convenhamos, ninguém vai lhe agradecer se descobrir que você conseguiu alcançá-la e os deixou irem embora sem fazer nada.
IdrisPukke sorriu.
- A injustiça da vida: sempre o melhor argumento. Muito bem. Conte-me seu plano.
- Bosco martelou três palavras na minha cabeça quase todos os dias da minha vida: surpresa, violência e momentum. Agora, ele vai desejar nunca ter feito isso. – Cale desenhou um circulo nas agulhas de pinheiro que cobriam o chão da floresta.
- Vão ter quatro guardas nas redondezas: leste, oeste, sul e norte. A noite está sem luar, então não podemos agir antes do raiar do dia. É nessa hora que você vai ter que matar o guarda do oeste, assim que conseguir vê-lo. Então, eu vou dar cabo do guarda ao sul. Você vai precisar manter a posição oeste, porque é o único lugar de onde dá para acertar um tiro atrás da rocha próxima à garota. É para lá que eu vou levá-la assim que a libertar. Você sabe imitar algum pássaro?
- Sei fazer uma coruja – falou IdrisPukke, sem muita confiança. – Mas não tem corujas nesta parte do mundo.
- Os Redentores provavelmente não sabem disso. – Cale fez uma pausa. – Como é o som de uma coruja?
IdrisPukke fez uma demonstração para ele.
- E se o guarda fizer um barulho enquanto eu estiver tentando
matá-lo?
- Tentando? – disse Cale, horrorizado. – Não tem essa de tentar. Não quero nem ouvir você falando que vai fazer o seu melhor. Pise na bola e eu estou morto. Entendido?
Idris Pukke encarou Cale com ressentimento.
- Não se preocupe comigo, garoto.
- Bem, eu me preocupo sim. Então, assim que ouvir o seu sinal, eu mato o guarda do sul. Vou precisar de um minuto para vestir a batina dele. Daí, vou simplesmente entrar no acampamento o mais discretamente que conseguir. Quando os guardas restantes descobrirem o que está acontecendo...
- Por que nós não matamos todos os vigias antes?
- Você jamais conseguiria zanzar por ali por muito tempo sem se entregar. Essa é a maneira mais segura possível. Eles ficarão confusos e eu estarei parecido com os outros Redentores no acampamento. O dia ainda estará quase escuro. Seja como for, se você fizer sua parte direito não vai demorar muito.
- O que eu faço depois?
- Você não vai enxergar onde os vigias estarão no norte e no leste a não ser que comecem a atirar. Se isso acontecer, atire de volta. Mantenha a cabeça deles abaixada. Eu levarei a garota para trás da rocha. Assim, eles só conseguirão nos acertar diretamente de cima. – Cale sorriu. – É aí que a coisa complica. Você precisa impedi-los de ir para cima e para trás de nós até eu poder fugir. Enquanto você conseguir evitar que eles tomem sua posição, ela estará segura. Depois que eu atravessar a beira da encosta, vai ser dois contra dois.
- Isso são 40 metros a céu aberto, sendo que os últimos 15 são uma subida íngreme. Se eles forem minimamente bons, você não me parece ter grandes chances.
- Eles vão ser bons.
- Enfim, não sei por que estou me preocupando com uma fuga suicida. Afinal, antes de qualquer coisa você tem que matar seis homens armados sozinho. Essa idéia toda é ridícula. Devemos esperar pelos Materazzi.
- Eles irão matá-la antes de os Materazzi chegaram. Essa é a única chance que ela tem. Confie em mim: estou gastando mais tempo para explicar o que vou fazer do que vou gastar fazendo. Vai ser uma surpresa para eles serem atacados tão perto do amanhecer, e não vão conseguir me diferenciar dos outros Redentores no escuro. Quando perceberem que é um ataque, vão esperar soldados Materazzi por todo canto, e não uma coisa como essa.
- Porque é idiota demais para acreditar.
- É a minha vida que está em jogo, não a sua.
- E a da garota.
- A garota só vale alguma coisa se formos nós a salvá-la. Sem isso, você vira uma espécie de nada... ou pior. A escolha é bem simples, eu diria.
Seis horas depois, IdrisPukke estava parado sobre o cadáver do guarda oeste.
No passado, IdrisPukke havia comandado diversas batalhas que resultaram na morte de milhares de homens. No entanto, fazia tempo que não matava um homem cara a cara. Ele fitou por um instante os olhos vidrados e a boca aberta do vigia, com os lábios retraídos sobre os dentes, enquanto sentia seu corpo inteiro começar a tremer.
Conseqüentemente, sua tentativa de imitar uma coruja ficou presa na garganta e teria assustado qualquer um que já tivesse ouvido o pio daquele pássaro antes. No entanto, menos de um minuto depois ele pôde ver a silhueta indistinta de Cale movendo-se lentamente pela encosta abaixo, tomando cuidado para não fazer barulho ou, se fosse visto pelos dois vigias restante, aparentar qualquer tipo de pressa.
Um medo profundo começou a invadir IdrisPukke enquanto ele observava o que, no fim das contas, não passava de um menino se encaminhar com tranqüilidade até os seis homens adormecidos e começar a agir.
Ele não sabia bem o que esperar, mas não havia imaginado nada parecido com aquilo. Cale sacou sua espada curta e, com um único movimento para baixo, apunhalou o primeiro vulto adormecido, que não se
moveu ou gritou. Ainda sem pressa, foi em direção ao segundo homem. Novamente, o mesmo golpe descendente vigoroso e a ausência de um grito. Enquanto ele se movia, o terceiro Redentor começou a se mover, chegando a levantar a cabeça. Outro golpe – se o homem gritou, IdrisPukke não conseguiu ouvir. Cale foi até o quarto homem, que havia se sentado e olhava sonolento para o menino, intrigado, mas sem medo. Uma estocada de cima para baixo contra a sua garganta e ele caiu para trás com um grito estrangulado, porém alto.
O quinto e o sexto homem acordaram – homens experiente, endurecidos pela guerra e por muitas surpresas. O primeiro gritou para Cale e veio direto para cima dele, tentando atingir seu rosto com uma lança curta. Cale mirou um golpe no pescoço, mas errou, perfurando em vez disso o ouvido do Redentor. O homem soltou um berro e caiu no chão gritando de dor. O último dos dorminhocos perdeu sua habitual presença de espírito, seus anos de luta subitamente inúteis, e ficou olhando horrorizado para o amigo, que agarrava, coberto de sangue, as folhas mortas da floresta. Ele observou em silêncio, tão imóvel quanto um tronco de árvore, um Cale em transe varar seu esterno com a espada. Uma simples arfada e ele caiu, o homem no chão ainda aos urros.
Pela primeira vez, Cale começou a correr, seguindo em direção à garota, que havia acordado a tempo de ver as três últimas mortes. Ela estava amarrada pelas mãos e pelos pés, e Cale a ergueu com um só movimento por sobre o ombro, correndo para se proteger atrás do pedregulho contra o qual ela estava dormindo. Uma flecha passou zunindo pelo seu ouvido esquerdo e ricocheteou nas rochas.
Diretamente acima das suas cabeças, IdrisPukke reagiu com uma flecha sua. A resposta do segundo vigia foi imediata e veio zunindo para dentro da árvore que escondia IdrisPukke.
Durante os minutos seguintes, flechas foram atiradas para lá e para cá, porém IdrisPukke conseguiu reconhecer um padrão – um dos guardas o caçava enquanto outro providenciava o fogo de cobertura. O dia ficava mais claro a cada segundo e, com o avançar da aurora, qualquer chance de Cale conseguir fugir desaparecia. IdrisPukke teria que sair dali logo, ou seria encurralado.
Cale gesticulou para Arbell ficar parada e quieta, então começou a se mexer, correndo de trás da rocha em direção à subida para sair da depressão, IdrisPukke, com o arco a postos, torceu por um tiro precipitado que entregasse a posição do arqueiro assim que ele visse Cale
em movimento. Porém, o arqueiro foi frio – ele esperaria Cale alcançar a subida que o desaceleraria para só então pegá-lo. O menino levou apenas cerca de quatro segundos para tanto e começou a subir, seus pés e suas mãos se afundando na camada superficial de agulhas de pinheiro soltas e secas, ficando cada vez mais lento. Então, depois de vencer três quartos da subida, ele escorregou em uma raiz de árvore coberta de barro e deslizou até parar, agitando os pés em busca de apoio. Foi apenas um segundo, porém, interrompeu seu impulso e deu ao arqueiro o tempo de que ele precisava. O tiro veio, zunindo como uma vespa através da depressão, atingindo Cale no instante em que ele atravessou a borda.
O coração de IdrisPukke saltou no peito – na penumbra, era difícil ver onde ele havia sido atingindo. O som, no entanto, era inconfundível: um barulho ao mesmo tempo suave e duro.
Agora, ele próprio estava encrencado. Os dois vigias só precisavam se preocupar com ele – se continuasse ali, suas chances seriam poucas, porém, se saísse, eles poderiam assumir sua posição atual e simplesmente se debruçar sobre a beira da depressão e dar cabo da garota, algo que, agora que só restavam dois deles, certamente fariam. Os arbustos ao seu redor eram cerrados e, embora isso o protegesse, fariam o mesmo para os guardas. Tudo estava a favor deles, enquanto não havia nada a seu favor.
Durante os cinco minutos seguintes, vários pensamentos desagradáveis atravessaram sua cabeça. O fato terrível da morte próxima e a tentação de dar no pé. Se ele morresse ali – e com certeza morreria, o diabinho da sua consciência ressaltou -, isso não adiantaria nada para a garota. No entanto, obviamente, ele teria que viver consigo mesmo depois. Mas você consegue, disse sua consciência diabólica. Melhor um vira-lata vivo do que um leão morto
E assim IdrisPukke, com a espada enfiada no chão à sua frente e um arco preparado para atirar, aguardou, suportando os pensamentos que martelavam o seu cérebro. E esperou. E esperou.
A dor não era novidade para Cale, porém, a flecha que o atingira logo acima da omoplata era uma agonia que ia muito além de qualquer coisa que tivesse sentido antes. O som que soltou através dos dentes cerrados foi de choro, tão impossível de ser detido pela coragem ou pela força de vontade quanto o sangue quente que ele sentia escorrer pelas suas costas. Seu corpo começou a tremer de dor, como se ele estivesse tendo uma crise epilética. Ele tentou respirar fundo, mas a dor não dava
trégua e o fez soltar uma série de arquejos espasmódicos. Precisava se sentar ereto e recuperar o controle. Ele começou a rastejar e choramingar, rastejar e choramingar. Então, desmaiou. Acordou em seguida sem saber ao certo quanto tempo havia ficado inconsciente – segundos, minutos? Estavam vindo ao seu encalço e ele tinha que se levantar. Rastejando até um pinheiro, ele começou a se puxar para cima. Impossível. Parou e então tentou novamente. Levante-se ou morra. No entanto, o máximo que conseguiu fazer foi dar meia-volta e recostar a parte não ferida das duas costas contra a árvore. Ele vomitou e desmaiou outra vez. Quando acordou, foi com um sobressalto e um gemido de dor, porém, desta vez, por conta da pedra do tamanho de um punho que o Redentor a uns 10 metros de distância jogou contra ele.
- Achei que você estivesse se fingindo de morto – falou o Redentor. – Cadê os outros?
- O que você disse? – Cale sabia que precisava se manter acordado e falando.
- Cadê os outros?
- Estão ali. – Ele tentou erguer a mão para apontar para longe de IdrisPukke, porém, perdeu a consciência novamente. Outra rocha, outro sobressalto.
- O quê? O quê?
- Diga-me onde eles estão ou vou colocar a outra flecha na sua
virilha.
- São vinte deles... eu conheço o Redentor Bosco... ele me
enviou.
O Redentor havia preparado seu arco para atirar, decidindo que não arrancaria nada que fizesse sentido de Cale, contudo, a menção de Bosco o espantou. Como alguém saberia sobre o grande Lorde da Guerra naquele lugar? Ele baixou o arco e isso foi o suficiente.
- Bosco disse... – Cale começou a murmurar as palavras, como se fosse desmaiar novamente, e o Redentor, sem pensar direito, deu alguns passos adiante para escutar o que ele dizia. Então, o menino atacou com o braço esquerdo bom, atirando a pedra de modo a atingir o Redentor bem no
alto da testa. Seus olhos giraram para trás, a boca escancarada, e ele desabou no chão. Cale voltou a desmaiar.
IdrisPukke ainda estava esperando no espaço pequeno, semicircular, cercado de três lados por arbusto tão densos que ele não conseguia enxergar o lado de fora e ninguém conseguiria enxergar o lado de dentro. Atrás dele, havia a descida de 9 metros de altura, no fundo da qual, torcia ele, Arbell Materazzi ainda esperava. Ouviu-se um farfalhar baixinho vindo de fora dos arbustos. Ele ergueu seu arco, a corda esticada ao máximo, e aguardou. Uma pedra caiu dentro do círculo. Ele quase disparou o tiro, conforme esperava a pessoa que jogou a pedra. Movendo o arco de um lado para outro para se proteger de uma entrada surpresa, ele exclamou com a voz trêmula:
- Se você entrar aqui, tem cinqüenta por cento de chances de levar uma flechada na barriga! – Ele deu três passos para o lado, para não entregar sua posição. Uma flecha saiu zunindo do meio dos arbusto, atravessando a beirada da depressão e errando IdrisPukke pelos exatos três passos que havia dado.
- Vá embora agora e nós não iremos atrás de você.
Ele se agachou, movendo-se novamente para o lado. Outra flecha. Ela também passou zunindo quase exatamente pelo lugar em que ele estava antes. Falar tinha sido um erro. Vinte segundos se passaram. A respiração de IdrisPukke soava tão alta aos seus ouvidos que ele tinha certeza de que o Redentor sabia exatamente a sua posição.
Vindo de cerca de 200 metros de distância, ouviu-se um grito agudo de agonia e horror. Então, ele foi silenciado. Tudo pareceu parar, restando apenas o vento que soprava pelas folhas durante o que pareceram minutos.
- Esse foi o seu amigo, Redentor. Agora só resta você. – Outra flecha, também desperdiçada. – Fuja agora e não iremos atrás de você. O acordo é esse, e você tem minha palavra.
- Por que eu deveria confiar em você?
- Meu colega vai demorar uns dois ou três minutos para chegar aqui. Ele vai confirmar o que eu digo.
- Está certo, concordo em fazer um pacto. Mas, se vocês vierem atrás de mim, juro por Deus que levo um dos dois junto comigo.
IdrisPukke decidiu continuar calado. Com Cale lá fora, claramente vivo e mal-humorado, tudo o que ele precisava fazer era esperar. Na verdade, Cale tinha desmaiado novamente logo depois de matar o Redentor no instante em que ele recuperou a consciência, e estava sem condições de fazer muita coisa, quanto mais de resgatar IdrisPukke. Contudo, após dez minutos de espera, sua ansiedade aumentando pouco a pouco. Cale falou baixinho com ele por trás dos arbustos à sua direita:
- IdrisPukke, estou entrando e não quero que você arranque minha cabeça quando eu fizer isso.
- Graças a Deus – disse IdrisPukke para si mesmo, baixando o arco e relaxando a corda.
Depois de um farfalhar demorado e confuso, Cale surgiu diante
dele.
IdrisPukke se sentou, dando um suspiro longo e profundo e começou a remexer no seu bolso em busca de tabaco.
- Achei que você estivesse morto.
- Não. – respondeu Cale.
- E quanto ao guarda.
- Ele está morto, sim.
IdrisPukke soltou uma risada amarga.
- Você não deixa ponto sem nó.
- Não sei o que significa isso.
- Esqueça. – IdrisPukke terminou de enrolar sua tabaco e o acendeu. – Quer um? – disse ele, gesticulando para a cigarrilha.
- Para ser franco – disse Cale. – Não estou me sentindo muito bem. – E, com essas palavras, ele caiu para a frente, desmaiando no ato.
Cale só voltou a acordar depois de três semanas, durante as quais ele beirou a morte em mais de uma ocasião. Em parte, isso se deu por conta da infecção causada pela ponta da flecha que havia se alojado em seu ombro, mas o principal motivo foi o tratamento que ele recebeu dos médicos caros que o acompanhavam noite e dia, e cujos métodos de uma estupidez nociva (sangria, raspagem, drenagem) quase conseguiram fazer o que uma vida inteira de brutalidades no Santuário não tinha conseguido. E não teriam fracassado se uma diminuição temporária da febre não tivesse permitido a Cale recobrar a consciência por algumas horas. Ao abrir os olhos, confuso e desorientado, Cale se deparou com um velho de gorro vermelho que o encarava de cima.
- Quem é o senhor?
- Eu sou o doutor Dee – falou o velho, voltando a posicionar uma faca afiada e não muito limpa sobre uma veia do antebraço de Cale.
- O que está fazendo? – disse Cale, afastando o braço.
- Fique calmo – disse o velho em um tom tranqüilizador. – Você está com uma ferida feia no ombro e ela infeccionou. Precisar ser sangrado para o veneno poder sair. – Ele pegou o braço de Cale e tentou mantê-lo parado.
- Me solte, seu velhote maluco! – gritou Cale, embora estivesse tão fraco que não conseguiu produzir mais que um sussurro.
- Fique quieto, sua peste! – exclamou o médico e, felizmente, foi essa frase que atravessou a porta, alertando IdrisPukke.
- Qual o problema? – falou ele do umbral. E então, vendo Cale acordado: - Graças a Deus! – Ele andou até a cama e se inclinou para bem perto do menino. – Estou feliz em vê-lo.
- Diga para esse velho idiota ir embora.
- Ele é seu médico, está aqui para ajudá-lo.
Cale desprendeu o braço novamente. Então se encolheu diante da dor no seu ombro.
- Tire-o de perto de mim – disse Cale – Ou juro por Deus que eu corto a garganta deste velho desgraçado.
IdrisPukke gesticulou para o médico ir embora, o que ele fez com uma demonstração considerável de orgulho ferido.
- Quero que você dê uma olhada no ferimento.
- Não sei nada de medicina. Deixe que o médico cuide de você.
- Eu perdi muito sangue?
- Perdeu.
- Então não preciso que nenhum cabeça-oca me ajude a perder mais ainda. – Ele se virou para o lado direito. – Diga-me de que cor ela está. Com cuidado, mas não sem causar uma dor considerável em Cale, IdrisPukke afastou o curativo manchado e de aparência suja.
- Está cheio de pus verde-claro e as beiradas estão vermelhas. – Sua expressão estava carregada, ele já havia visto ferimentos mortais como aquele antes.
Cale suspirou.
- Preciso de vermes.
- O quê?
- Vermes. Eu sei o que estou fazendo. Preciso de uns vinte. Lave-os cinco vezes em água limpa, potável, e traga-os para mim.
-Deixe-me buscar outro médico.
- Por favor, IdrisPukke. Se você não fizer isso por mim, eu vou morrer. Por favor.
Então, cerca de vinte minutos depois, cheio de apreensão, IdrisPukke retornou com vinte vermes cuidadosamente lavados que havia retirado de um corvo morto caído em uma vala lá fora. Com a ajuda de uma criada, ele seguiu as instruções detalhadas de Cale.
- Lave bem as mãos, depois as lave novamente com água fervida... Jogue os vermes sobre a ferida. Use um curativo limpo e prenda
as beiradas à pele... Garanta que eu fique sempre de barriga para cima. Me faça beber o máximo de água possível...
Com essas palvras, ele voltou a perder a consciência e não acordou por mais quatro dias.
Quando tornou a abrir os olhos, um IdrisPukke aliviado estava ao lado da sua cama.
- Como você está?
Cale inspirou fundo algumas vezes.
- Nada mal. Estou quente?
IdrisPukke colocou a mão sobre a sua testa.
- Nem tanto. Durante os dois primeiros dias, você ardeu em
febre.
- Quanto tempo eu dormi?
- Quatro dias, mas não descansou durante a maior parte deles. Você ficou fazendo bastante barulho. Foi difícil mantê-lo de barriga para cima.
- Dê uma olhada debaixo do curativo. Está coçando.
Com alguma insegurança, IdrisPukke afastou a beirada do curativo, seu nariz se contraindo de nojo diante do que esperava encontra. Ele gemeu de repulsa.
- Está feio? – perguntou um Cale ansioso.
- Deus do céu!
- O quê?
- O pus sumiu, e a vermelhidão também, quase toda, pelo menos – Ele afastou um pouco mais o curativo, mas, desta vez, os vermes agora gordos caíram em dupla e de três em três sobre a roupa de cama. – Nunca vi coisa parecida.
Cale suspirou – que alivio imenso.
- Livre-se dos vermes. Então me traga mais. Faça tudo de novo. – E, com essas palavras, ele caiu em um sono profundo.
22
Três semanas depois, IdrisPukke e um Cale ainda um pouco amarelo se aproximavam da grande fortaleza de Memphis.
No seu íntimo, Cale havia esperado algum tipo de recepção oficial e, embora negasse isso para si mesmo, desejava uma. Tinha, afinal de contas, matado oito homens sozinho e salvado Arbell Pescoço de Cisne de uma morte horrenda. Não que exigisse muito por ter corrido um risco tão grande: uma parada com milhares de pessoas atirando flores e gritando seu nome, completada pelas boas-vindas lacrimosas da bela Arbell sobre um palco ornado de seda, ao lado de um pai desesperadamente agradecido e tão dominado pela emoção que não conseguia falar.
Em vez disso, não houve nada. Apenas Memphis seguindo em seu afã implacável de fazer e gastar dinheiro — naquele dia sob um céu nublado, pois uma tempestade se aproximava. Quando eles estavam prestes a atravessar os imensos portões da fortaleza, o coração de Cale saltou no peito ao ouvir um repicar sonoro e repentino de sinos vindo da grande catedral, que ecoou lindamente pela cidade à medida que as demais igrejas seguiam seu exemplo. Suas esperanças, no entanto, foram frustradas por IdrisPukke.
—Eles tocam os sinos — disse ele, apontando com a cabeça a tempestade iminente — para afastar os relâmpagos.
Dez minutos depois, estavam desmontando de seus cavalos diante da mansão senhorial de Lorde Vipond. Um criado solitário estava ali para recebê-los.
—Olá, Stillnoch — falou IdrisPukke para o criado.
—Bem-vindo de volta, senhor — disse Stillnoch, um homem tão idoso e com a pele tão repleta de linhas e vincos que fez Cale se lembrar do antigo carvalho em um dos cantos do campo de treinamento do Santuário, uma árvore tão velha que era difícil dizer o quanto dela estava viva e o quanto estava morta.
IdrisPukke se virou para o menino exausto, porém extremamente desapontado. Preciso entrar para ver Vipond. Stillnoch levará você para o seu quarto. À noite, teremos um jantar. Nos vemos lá. — E, com essas palavras, ele andou até a porta principal. Stillnoch o conduziu em direção a uma porta menor no lado oposto da mansão. Um barraco miserável, aposto, pensou Cale com seus botões, seu rancor cada vez maior.
Mas, na verdade, o aposento — ou aposentos — acabou se mostrando bastante agradável. Havia uma sala de estar com um sofá macio e uma mesa de jantar de carvalho, um banheiro com latrinas próprias, algo de que tinha ouvido falar, mas que acreditava ser uma grande fantasia. E, é claro, um quarto com uma cama espaçosa e um colchão de penas.
—O senhor gostaria de algo para petiscar? — perguntou
Stillnoch.
—Sim — disse Cale, uma vez que aquilo parecia comida.
Stillnoch fez uma mesura. Quando ele retornou vinte minutos depois, trazendo uma bandeja com cerveja, torta de porco, ovo cozido e batatas fritas, Cale estava dormindo na cama.
Stillnoch tinha ouvido os boatos. Ele largou a bandeja e observou com atenção o menino adormecido. Com sua pele amarelada e feições abatidas por conta da infecção que chegara tão perto de matá-lo, ele não parecia grande coisa, pensou Stillnoch. No entanto, se ele tinha dado
uma bela surra naquele bastardinho arrogante do Conn Materazzi, então merecia  respeito e admiração.
E, com esse pensamento, ele cobriu o garoto adormecido, fechou as cortinas e foi embora.
—Ele atravessou o acampamento dos Redentores como se fosse a própria Morte encarnada. Eu já vi alguns assassinos nesta vida, mas nada parecido com aquele garoto.
IdrisPukke estava sentado de frente para seu meio-irmão e, bebendo uma xícara de chá, mostrava-se um homem claramente perturbado.
—E isso é tudo que ele é? Um assassino?
—Para ser franco, se tudo o que tivesse visto dele fosse isso, bem, eu teria fugido o mais rápido possível. E lhe falaria para suborná-lo e se livrar dele.
Vipond pareceu surpreso.
—Deus do céu, a idade deixou você sentimental. Esse tipo de gente é útil, sem dúvida. Mas estou lhe perguntando se ele é mais do que um delinquente homicida.
IdrisPukke suspirou.
—Eu diria que ele é bem mais que isso. E, se você tivesse me perguntado isso antes da luta no desfiladeiro de Cortina, se é que podemos chamar aquilo de luta, eu teria lhe dito que ele era um achado. O menino sofreu bastante, mas é esperto e inteligente, embora seja lamentavelmente ignorante sobre certas coisas, e eu lhe diria também que, no fundo, ele tem um bom coração. Mas fiquei chocado com o que aconteceu. Pronto, a questão é toda essa. Não sei o que pensar dele. Gosto daquele garoto, mas, para ser sincero, ele me dá medo. Vipond recostou no seu assento, pensativo. —Bem — disse ele por fim —, ele caiu nas suas graças independente das suas dúvidas é, para ser justo, você também caiu nas minhas. E, Deus é testemunha, elas lhe seriam muito úteis. O marechal Materazzi perdoou todos os seus pecados e agora pende a seu favor como
um sincelo das barbas de um holandês. — Ele sorriu para IdrisPukke. — Na verdade, se não fosse necessário manter todo esse assunto em segredo, vocês dois teriam uma parada, uma banda e tudo o mais. — Vipond abriu outro sorriso, desta vez, zombeteiro. —Você teria gostado disso, não? —Sim, teria — respondeu IdrisPukke. — E por que não? Só Deus sabe quanto tempo faz que ninguém fica feliz em me ver. —E de quem é a culpa? —Minha, querido irmão — falou IdrisPukke, rindo. —Toda minha. —Você talvez devesse explicar ao garoto por que sua recepção foi tão silenciosa. —Para ser sincero, acho que ele está pouco se lixando. Salvar Arbell Pescoço de Cisne foi apenas um meio de conseguir o que queria. Ele achou que poderia sair lucrando se arriscasse a própria vida, só isso. Nunca fez uma só pergunta a respeito dela. Apesar de todas as minhas dúvidas, elogiei sua coragem e, ainda assim, ele me olhou como se eu fosse um tolo. Ele quer dinheiro e um salvo-conduto para ir o mais longe possível de seus antigos mestres que os mares possam levá-lo. Não é do tipo que se importe com louvor ou injúria. Agradar ou desagradar dá na mesma para ele. —Então — disse Lorde Vipond —, ele é mesmo um sujeitinho excepcional. — Ele se levantou. — Seja como for, esteja você certo ou não, o marechal gostaria de agradecer a ele pessoalmente hoje à noite e, obviamente, Arbell Pescoço de Cisne também. Embora, pela cara que fez quando eu lhe disse isso, ela preferisse comer uma doninha.
23
— Pelo amor de Deus! — disse o marechal para sua filha. —
Anime-se.
—Ele me dá medo — disse a jovem pálida como a morte, porém
linda.
—Medo? Ele salvou sua vida. Qual o seu problema? —Eu sei que ele salvou minha vida, mas foi horrível. O marechal arquejou de irritação. —Suponho que tenha sido mesmo horrível. Matar é uma coisa horrorosa. Porém, ele fez o que era preciso e arriscou a própria vida, mais que arriscou, considerando as chances que tinha, e você fica aqui resmungando como foi ruim. O que você precisa é pensar como as coisas teriam sido terríveis se ele não tivesse feito o que fez. Arbell Pescoço de Cisne, que não estava habituada a ser repreendida dessa forma, pareceu ficar mais angustiada ainda. —Eu sei que ele salvou minha vida, mas isso não tira o meu medo. O senhor não viu como ele é. Eu vi, duas vezes. Nunca vi coisa parecida, ele não é humano. —Isso é ridículo, a coisa mais ridícula que já ouvi na vida. Por Deus, é melhor ser cortês com ele, ou vai estar encrencada.
Além de não estar habituada a ameaças, Arbell estava prestes a trocar seu papel de garotinha assustada por algo mais impetuoso quando a porta da pequena sala de jantar se abriu e o anúncio de um criado a interrompeu. —O chanceler Vipond e convidados, meu amo. —Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos — exclamou com entusiasmo o marechal, esforçando-se de tal forma para dispersar a frieza na atmosfera que tanto Vipond quanto IdrisPukke perceberam que havia algum mal-estar ali. Cale não percebeu nada além da presença de Arbell Pescoço de Cisne, que estava parada diante da janela, linda e tentando, sem sucesso, não tremer. Cale, que se encontrava em estado de ansiedade e apreensão desde que ficara sabendo que ela estaria presente no jantar, também se esforçava para fazer o mesmo. —Você deve ser Cale — falou o marechal, agarrando calorosamente sua mão. — Obrigado, obrigado. O que você fez jamais poderá ser retribuído. — Ele olhou em direção à filha. — Arbell. — Seu tom era ao mesmo tempo de incentivo e ameaça. Lentamente, a bela jovem, graciosa sem o menor esforço, alta e esguia, se aproximou de Cale e estendeu a mão. Cale a apanhou como se mal soubesse o que fazer com ela. Não percebeu que o rosto de Arbell (de um modo que você nem imaginaria possível) ficou tão pálido quanto a lua ou a neve. —Obrigada por tudo que fez por mim. Sou muito grata. IdrisPukke ficou com a impressão de já ter ouvido mais vida e entusiasmo nas últimas'palavras de um condenado a caminho da forca. O marechal lançou um olhar furioso para a filha — mas, ainda assim, pôde ver que ela sentia um medo profundo do menino à sua frente. À sua irritação pela falta de modos de Arbell, somava-se uma perplexidade genuína. Por maior que fosse sua gratidão — e ela era muito grande, pois o marechal adorava a filha — ele ficou, na verdade, um pouco desapontado com Cale. Ele havia esperado... bem, não sabia ao certo o que havia esperado, mas obviamente visualizara, graças à reputação apavorante do convidado, alguém de presença majestosa, dotado do tipo de poder carismático que, de acordo com sua experiência, homens violentos sempre carregavam. Cale, no entanto, parecia um jovem camponês. Possuía até uma espécie de beleza rude, porém, estava embasbacado e desconcertado
na presença da realeza, como geralmente acontece com os camponeses. Como uma criatura daquelas conseguiu dar uma surra nos melhores dentre os jovens Materazzi e matar tantos homens sozinho era um completo mistério. —Vamos comer. Você deve estar faminto. Venha, sente-se do meu lado disse ele, pegando Cale pelos ombros. Logo que se sentou diante de Arbell, que mantinha os olhos baixados para o prato à sua frente, ele se deu conta das numerosas fileiras de talheres à sua espera, um pelotão de garfos de vários tamanhos, um esquadrão correspondente de facas, afiadas e sem fio. Porém, o mais desconcertante de tudo era um objeto que parecia servir para algum tipo de tortura especialmente dolorosa a remoção de um nariz ou, digamos, de um pênis. Parecia uma pinça, mas as duas hastes se entrecruzavam e voltavam a se encontrar na ponta de uma maneira totalmente misteriosa. Ele já se sentia mal o suficiente — uma mistura incompreensível de adoração e ódio pela mulher sentada à sua frente, que pegara sua mão com tanto entusiasmo quanto se fosse um peixe morto. Aquela cadela ingrata e maravilhosa. Agora ele certamente pareceria algo que não conseguia suportar: um idiota. Dores terríveis e até a própria morte não pareciam causar medo em Calequem, afinal de contas, poderia se valer dessas duas coisas com mais habilidade do que ele próprio? —, contudo, a possibilidade de se sentir ridículo o deixava quase fraco de tanta ansiedade. Ele quase pulou de susto quando Stillnoch surgiu às suas costas tão silenciosamente que Cale não notou sua presença — uma façanha e tanto — até um prato ser colocado à sua frente e o solidário criado sussurrar: "Escargot!" no seu ouvido. Ignorando seu status de herói aos olhos de Stillnoch, Cale pensou que "Escargot!" fosse algum tipo de insulto desmoralizante de um criado que não gostava da sua presença entre os notáveis e virtuosos. Por outro lado, pensou ele, tentando se acalmar, talvez fosse um alerta. Mas, se fosse o caso, de que tipo? Ele baixou os olhos para o prato e sua confusão aumentou. Havia seis objetos dispostos à sua frente que pareciam capacetes de soldados minúsculos e encaracolados, com uma gosma manchada horrorosa escorrendo de dentro deles. Sem dúvida pareciam algo contra o qual você precisava ser alertado. — Ah! — disse IdrisPukke, cheirando o ar como o pior ator em uma peça teatral muda. — Excelente. Escargot em manteiga de alho! — Sentado ao lado de Cale, ele notou imediatamente o espanto do menino
diante da vasta fileira de talheres à sua frente e sua expressão de horror diante das seis lesmas em suas conchas. Uma vez conquistada a atenção de Cale, e, diga-se de passagem, do restante da mesa, ele ergueu a pinça de aparência esquisita com a mão direita e a apertou. As duas pontas em forma de colher se abriram e ele as usou para aninhar a concha da lesma. Ele desapertou um pouco o cabo e as colheres se fecharam com firmeza em volta dela. Apanhando um espeto pequeno com cabo de marfim, ele o enfiou dentro da concha e, de forma hábil, embora um pouco teatral, para que Cale pudesse ver o que ele estava fazendo, retirou o que parecia ser (apesar do alho, salsa e manteiga em que estava afogado) um pedaço de cartilagem cinza-esverdeado do tamanho de um lóbulo auricular. Então o atirou na boca com outro arquejo igualmente teatral de prazer. Embora a princípio aquela performance estranha tivesse deixado os demais ocupantes da mesa perplexos, eles logo perceberam o que IdrisPukke estava tentando fazer e evitaram deliberadamente olhar para Cale enquanto ele encarava com maldade seu primeiro prato. Você pode achar surpreendente que um menino disposto a comer um rato sem titubear entortasse o nariz para comer uma lesma. No entanto, ele jamais tinha visto aquele animal na vida — e quem garante que, nas mesmas circunstâncias, você não preferiria comer um rato saudável, de pelo lustroso e bem alimentado, em vez de uma lesma que saísse debaixo de um tronco podre soltando sua gosma bexiguenta pelo caminho. Examinando disfarçadamente seus companheiros de mesa à medida que eles atacavam seu jantar com capacete, Cale apanhou a pinça, agarrou a concha com ela e, usando o espeto, retirou a coisa mole, cinzenta e úmida lá de dentro Ele se deteve por um instante, conscientemente não observado pelos demais então a colocou na boca e começou a mastigar com o mesmo entusiasmo de um homem que estivesse comendo os próprios testículos.
Felizmente, os demais pratos lhe eram mais familiares, ou pelo menos se pareciam com algo que ele tivesse comido à mesa de IdrisPukke. Ficando de olho em seu mentor, Cale conseguiu utilizar os demais talheres de forma mais ou menos correta — embora lidar com os garfos sem se atrapalhar continuasse sendo um mistério. Os três homens foram os únicos a falar, sem abordar nenhum assunto sério: reminiscências e histórias sobre um ou outro episódio em comum do passado, embora não se tenha tocado no assunto delicado das antigas indiscrições e do banimento de IdrisPukke.
Durante todo o jantar, Arbell Pescoço de Cisne não desgrudou os olhos do seu prato nem uma vez, embora tampouco tenha comido muito. De vez em quando, Cale lançava-lhe um olhar e, a cada vez que fazia isso, ela lhe parecia mais bonita do que na anterior — os longos cabelos loiros, os olhos verdes e amendoados... e aqueles lábios! Vermelhos como um botão de rosa contra a pele branca, e um pescoço tão longo e esguio que palavras e descrições não lhe faziam justiça. Ele se voltou para o seu jantar, sua alma ressoando como um sino bem tocado. Contudo, aquele era um sino que repicava com algo mais que alegria e adoração — havia nele, também, o som da raiva e do ressentimento. Ela não se dignaria a olhar para ele porque não queria estar na sua presença. Ela o odiava, e ele (como poderia ser diferente?) a odiava em retribuição.
Assim que o último prato foi servido — morango com creme —, Arbell Pescoço de Cisne se deteve e falou:
— Perdão, não me sinto bem. Posso me retirar?
Seu pai a encarou, escondendo sua fúria apenas por causa dos convidados. Ele se limitou a assentir com a cabeça, na esperança de que aquele gesto irritado deixasse bem claro: Conversaremos mais tarde.
Ela correu os olhos pelos demais, embora sem passá-los por Cale, e então saiu. Cale ficou ali, fervendo de raiva. Imagine o maremoto de sentimentos — de amor, amargura e ira — que irrompeu e se chocou contra o rochedo da alma deste jovem. No entanto, com a garota ausente, não havia necessidade de ser cauteloso a respeito do motivo do seu rapto e do seu propósito misterioso. E também ficou claro porque não tinha havido multidões clamando sua gratidão eterna pela extraordinária bravura de Cale ao resgatar Arbell Materazzi. Quase ninguém sabia do ocorrido. O marechal pediu desculpas a Cale, explicando que, se o seqüestro tivesse sido divulgado, eles não teriam podido resistir às exigências de guerra. Ele e Lorde Vipond haviam concordado que precisavam saber o máximo possível sobre o gesto insondável dos Redentores antes de darem um passo tão drástico. —Estamos às cegas — disse Vipond para Cale. — E, portanto, corremos o risco de fracassar se nos lançarmos em uma empreitada deste vulto. IdrisPukke me disse que você não faz idéia do que os levaria a fazer algo tão provocativo.
—Não.
—Tem certeza?
—Por que eu mentiria? Não faz mais sentido para mim do que faz para vocês. Os Redentores nunca falaram de nada que não fosse a guerra contra os Antagonistas. E, mesmo assim, tudo o que diziam era que eles adoravam o Antirredentor e eram hereges que deveriam ser varridos da face da Terra.
—Não falavam sobre Memphis?
—Com repulsa e quase nunca. Para eles, era um lugar de perversão e pecado onde absolutamente qualquer coisa poderia ser comprada e vendida.
—Pegaram pesado — disse IdrisPukke —, mas dá pra entender o raciocínio deles.
O marechal e Vipond o ignoraram solenemente.
—Então você não tem nada para nos dizer? — perguntou o
doge.
Cale percebeu que estava prestes a ser descartado e que aquela era sua única chance de moldar seu futuro entre os poderosos.
—Só uma coisa. Se decidiram fazer algo, os Redentores não irão parar. Não sei por que eles querem sua filha, mas sei que continuarão vindo atrás dela custe o que custar.
Ao ouvir essas palavras, o marechal ficou lívido. Cale manteve sua vantagem.
—Sua filha, ela é uma pessoa de muito... — Cale fez uma pausa, como se buscasse a palavra certa — ... prestígio. — Ele gostara daquela palavra quando a ouviu, mas não tinha entendido muito bem o que significava. — Quero dizer, em toda parte do império eles a consideram, já ouvi as pessoas falando: sua joia mais preciosa. Tudo que ela possui de admirável é o mesmo que se admira nos Materazzi. —Ela representa o senhor, não é?
—O que você quer dizer? — perguntou o marechal.
—Se eles quisessem enviar uma mensagem... — Ele deixou sua voz morrer no meio da frase. —Que tipo de mensagem? — perguntou o marechal, cada vez mais ansioso. —Raptar Arbell Materazzi e matá-la para mostrar aos seus súditos que os Redentores podem alcançar até mesmo a nata do império. — Ele fez outra pausa, apenas para causar efeito. — Eles provavelmente saberão que um segundo rapto seria quase impossível, porém, a meu ver, não darão isso por terminado. Os Redentores sempre acabam o que começam. E tão importante para eles deixar isso claro quanto lhe mostrar que podem chegar a quem quer que seja. Estão tentando dizer para o senhor que não irão parar sob hipótese alguma. Aquela altura, o marechal estava branco como um lençol. —Ela está segura aqui. Faremos um cerco ao redor dela. Ninguém conseguirá entrar. Cale tentou parecer mais constrangido do que estava de fato. —Ela estava protegida, pelo que fiquei sabendo, por uma guarda de quarenta homens quando foi raptada do castelo no lago Constanz. Houve algum sobrevivente? —Não — disse o marechal. —E só uma opinião, não posso ter certeza, mas desta vez eles virão apenas para matar. Oitenta ou até 180 homens conseguirão mesmo impedi-los? —Se a história nos ensinou uma coisa, meu amo — disse IdrisPukke —, é que, se você está preparado para sacrificar sua própria vida, pode matar qualquer um. Vipond jamais tinha visto o marechal tão apreensivo e alarmado em nenhum momento da sua vida. —Você pode impedi-los? — perguntou o marechal a Cale. —Eu? — Cale fez cara de que a idéia nem tinha lhe passado pela cabeça. Ele refletiu por um instante. — Melhor do que qualquer um, eu diria. E ainda tenho Henri Embromador e Kleist.
—Quem? — perguntou o marechal. —Os amigos de Cale — observou Vipond, cada vez mais interessado no que Cale estava tramando. —Eles têm os seus talentos? — perguntou o marechal. —Eles possuem suas próprias habilidades. Juntos, podemos dar conta de qualquer coisa que os Redentores mandarem. —Você tem bastante confiança nos seus poderes, Cale — falou Vipond- — Levando-se em conta que passou os últimos dez minutos nos dizendo corno eles são invulneráveis. Cale o encarou. —Eu disse que os assassinos deles são invulneráveis a vocês. — Ele sorriu. — Não que eram invulneráveis a mim. Sou melhor do que qualquer soldado que os Redentores já tenham produzido. Não estou me gabando, é apenas um fato. Se o senhor não acredita em mim — disse ele, olhando para o marechal —, então pergunte para a sua filha e para IdrisPukke. E, se isso não bastar, então pergunte a Conn Materazzi. —Cuidado com a língua, seu fedelho — disse Vipond, a raiva substituindo sua curiosidade. —Jamais se dirija ao marechal Materazzi dessa maneira. —Já me disseram coisas piores — falou o marechal. — Se conseguir manter minha filha em segurança, eu o tornarei um homem rico e você poderá falar comigo em particular do jeito que bem entender. Mas é melhor que o que está dizendo seja verdade. — Ele se levantou. — Quero que me apresente, até amanhã à tarde, um plano por escrito para a proteção dela. Entendido? Cale assentiu. —Por ora, quero todos os soldados nesta cidade em serviço. Agora, se você puder nos deixar a sós. Você também, IdrisPukke. Os dois se levantaram, assentiram com a cabeça e forarrl embora. —Foi um espetáculo e tanto.— falou IdrisPukke ao fechar a porta.— Alguma parte dele era verdade?
Cale riu, mas não respondeu. Se tivesse dado uma resposta a IdrisPukke, ela teria sido que muito pouco daquele alerta tenebroso se baseava em algo que não fosse seu desejo de forçar Arbell Pescoço de Cisne a prestar atenção nele. Ele estava furioso com sua ingratidão e mais apaixonado do que nunca por ela. Porém, ela precisava ser punida por tratá-lo daquele jeito — e o que poderia ser melhor do que ser capaz de decidir quando ele preferia vê-la e ter oportunidades sem-fim de infernizar-lhe a vida na sua presença? É claro que o fato de sua presença lhe ser tão detestável era uma facada no peito, no entanto, ele era tãò capaz de viver com uma contradição tão dolorosa quanto qualquer um. A preocupação com a filha fazia o marechal temer o pior, tornando-o presa fácil para as previsões nefastas de Cale. Vipond não estava mais convencido do que IdrisPukke. Por outro lado, ele não via perigo na proposta de Cale. E estava claro que a idéia de que os Redentores poderiam tentar matá-la não era implausível. De qualquer forma, isso possibilitava ao marechal pensar que algo estava sendo feito enquanto Vipond trabalhava dia e noite para desvendar os motivos dos Redentores. Ele não tinha dúvidas de que algum tipo de guerra era inevitável e estava resignado a se preparar para ela, ainda que secretamente. No ara Vipond, travar qualquer guerra sem saber o que exatamente seu inimigo quer é um desastre esperando para acontecer. Assim, ele ficou satisfeito ao ver Cale começar a tramar o que quer que estivesse tramando — embora não fosse difícil entender o que era. Estava claro que o menino não sabia nada sobre o motivo por trás do seqüestro, mas tê-lo como guarda-costas de Arbell Materazzi a manteria em segurança. Ele era, à sua maneira menos paternal, tão grato a Cale por ele tê-la resgatado quanto o seu pai: as implicações políticas de se ter o membro mais adorado da família real nas mãos de um regime tão sanguinário e brutal quanto o dos Redentores eram impensáveis. As notícias que vinham do Front Ocidental sobre o grave impasse entre os Redentores e os Antagonistas eram terríveis, tão terríveis que eram difíceis de acreditar. No entanto, todos aqueles que conseguiam escapar pela fronteira para território Materazzi, em número lamentavelmente pequeno, contavam histórias de uma consistência alarmante, que emprestavam um tom de verdade aos relatos que seus agentes coletavam e transmitiam para ele. Se uma guerra contra os Redentores estava por vir, ela prometia ser diferente de qualquer outra.
24
— Diga-me o que você sabe a respeito da guerra dos Redentores contra os Antagonistas.
Vipond encarava Cale com uma expressão sombria do outro lado da sua grande mesa. IdrisPukke estava sentado mais longe, diante da janela, como se estivesse mais interessado no que estava acontecendo no jardim lá embaixo. —Eles são os Antirredentores — respondeu Cale. — Odeiam o Redentor e todos que acreditam nele e querem destruí-lo e expurgar sua bondade da Terra. —É nisso que você acredita? — perguntou Vipond, surpreso diante da mudança repentina de Cale do discurso comum para uma ladainha monótona. —E o que fomos ensinados a recitar duas vezes por dia na Missa. Não acredito em nada que os Redentores dizem. —Mas o que você sabe sobre os Antagonistas, sobre suas crenças? Cale pareceu intrigado e refletiu por alguns instantes. —Nada. Nunca nos disseram que os Antagonistas acreditavam em algo. Para nós, tudo que importava para eles era destruir a Única e Verdadeira Fé. —E você nunca perguntou? Cale riu. —Você não fazia perguntas sobre a Única e Verdadeira Fé. —Se sabia que os Antagonistas odiavam tanto os Redentores,
por que não tentou fugir para o leste? —Teríamos que viajar quase 2.500 quilômetros através do território dos Redentores e, depois, tentar cruzar outros mil e pouco de trincheiras no Front Ocidental. E, mesmo que tivéssemos sido idiotas o bastante de tentar, sempre nos diziam que os Antagonistas martirizariam um Redentor assim que botassem os olhos nele. Nos enchiam de histórias sobre como o Santo Redentor George foi fervido vivo em urina de vaca, ou sobre como viraram o Santo Redentor Paulus do avesso, enfiando um gancho pela sua goela abaixo e amar- rando-o em seguida a um bando de cavalos. Eles falavam ou cantavam o tempo todo sobre masmorras, fogo e espadas. Como eu disse, nunca me passou pela cabeça que os Antagonistas pudessem acreditar em algo que não fosse matar Redentores e destruir a Única e Verdadeira Fé. —Todos os seus colegas acólitos pensavam dessa maneira? —Alguns pensavam com eu, a maioria, não. Nunca haviam conhecido nenhuma outra coisa, então jamais questionavam. Para eles, o mundo era assim e pronto. Achavam que seriam salvos se tivessem fé e, se não tivessem então queimariam no inferno por toda a eternidade. Vipond começou a perder a paciência. —A guerra contra os Antagonistas vem sendo travada desde duzentos anos antes de você nascer. Você está me falando desde o início que, além de fazerem parte da Única e Verdadeira Fé, a única coisa para a qual vocês foram preparados, você especialmente, é para lutar. Ainda assim, não sabe nada a respeito das vitórias, derrotas, táticas, ou como esta ou aquela batalha foi ganha ou perdida. Custa-me crer nisso. O ceticismo de Vipond era perfeitamente justificável. Cale repassara cada batalha e confronto envolvendo os Redentores e os Antagonistas diante do Redentor Bosco, que o batia com seu cinto sempre que ele errava em sua análise do que deu certo ou errado. Cale tinha comido e bebido as batalhas no leste quatro horas por dia durante dez anos. No entanto, por outro lado, era verdade que ele não sabia nada sobre as crenças dos Antagonistas. Sua decisão de mentir sobre o que sabia a respeito do conflito se baseava tanto em instinto quanto em uma decisão calculada: se uma guerra entre os Materazzi e os Redentores estava por vir, ela seria acompanhada por sofrimentos terríveis e morte. Ele não queria fazer parte de nada daquilo — e, se confessasse o que sabia, Vipond pagaria qualquer preço para tê-lo do seu lado.
—Eles nos contavam apenas sobre vitórias gloriosas e derrotas desleais. Eram somente histórias, sem nenhum detalhe. Você não fazia perguntas. Quanto a mim — ele continuou mentindo —, eu fui apenas treinado para matar pessoas. Não passa disso: combate mano a mano e assassinato em três segundos. É tudo que eu sei. —O que diabos — perguntou IdrisPukke — é o assassinato em três segundos? —O nome diz tudo — respondeu Cale. — Uma verdadeira luta ate a morte é decidida em três segundos, e essa é a sua meta. Tudo o mais, toda essa lenga-lenga de arte na qual vocês treinam o Mond, é pura besteira. Quanto mais tempo dura a luta, maior é a interferência do acaso. Você pode tropeçar, seu oponente pode dar um golpe de sorte ou descobrir que você tem um ponto fraco enquanto ele tem um ponto forte. Então, você mata em três segundos ou sofre as conseqüências. Os Redentores no desfiladeiro de Cortina morreram com cães porque eu não lhes dei a chance de morrer de nenhuma outra forma. Cale estava chocando deliberadamente seus ouvintes. Desde pequeno, sua capacidade de mentir era tão grande quanto, hoje em dia, a de matar. E pelo mesmo motivo: ela era necessária para a sua sobrevivência. Ele havia desviado a atenção deles de um lado de seu passado que não queria revelar confessando a verdade sobre outra parte. E, obviamente, para homens tão experientes quanto Vipond e IdrisPukke, quanto mais chocante, melhor. Se os Materazzi acreditavam que ele era apenas um jovem e impiedoso assassino e nada mais que isso, então encorajá-los nesse sentido seria interessante para Cale. Era verdadeiro o suficiente, o que o tornava persuasivo, mas não era, nem de longe, toda a verdade. Vipond lhe fez mais algumas perguntas, porém, quer acreditasse totalmente em Cale ou não, tudo indicava que o menino não revelaria mais nada, de modo que ele passou a tratar dos seus planos para garantir a segurança de Arbell Pescoço de Cisne. Suas providências por escrito para mantê-la segura e suas respostas às perguntas de Vipond deixaram claro que Cale era tão versado em evitar a morte quanto em possibilitá-la. Finalmente satisfeito com as respostas do menino, neste sentido pelo menos, Vipond apanhou uma pasta grossa da sua mesa e a abriu. —Antes de você ir embora, quero lhe fazer uma pergunta. Tenho recebido uma série de relatórios de refugiados Antagonistas, agentes duplos e documentos capturados sobre uma política dos Redentores
chamada por eles de a Dispersão. Você já ouviu falar disso? Cale encolheu os ombros. —Não. Desta vez, Vipond foi convencido pela expressão intrigada no rosto de Cale. —Estes relatórios — prosseguiu Vipond — são sobre algo chamado Atos de Fé. Você conhece esse termo? —Execução por crimes contra a religião testemunhada pelos fiéis. —Afirma-se que mais de mil Antagonistas capturados estão sendo levados por vez para os centros de cidades controladas pelos Redentores e queimados vivos. Os que abjuram sua heresia antagonista recebem misericórdia e são estrangulados antes de ir para a fogueira. — Ele fez uma pausa, analisando Cale com atenção. — Você acha que esses Atos de Fé são possíveis? —Sim, são possíveis. —Existem também outras afirmações sustentadas por documentos capturados de que essas execuções são apenas o começo. Esses documentos fazem referência à Dispersão de todos os Antagonistas. Alguns dos meus homens dizem que se trata de um plano, a ser executado após a vitória, de transferir todo o contingente de Antagonistas para a ilha de Malagasy. Porém, alguns dos refugiados afirmam que o plano por trás da Dispersão é, uma vez que eles sejam transferidos para a ilha, matar todos os Antagonistas para acabar de uma vez por todas com sua heresia. Acho isso difícil de acreditar, no entanto, você tem mais experiência do que qualquer um de nós no que tange à natureza dos Redentores. O que acha disso? É possível? Cale ficou calado por um tempo, claramente dividido entre seu ódio pelos Redentores e a enormidade do que estava lhe sendo perguntado. —Não sei dizer — falou ele por fim. — Nunca ouvi falar de coisa parecida. —Veja bem, Vipond — disse IdrisPukke —, os Rendentores são obviamente um grupo brutal, porém, eu me lembro que vinte anos atrás, durante a insurreição em Mont, havia toda espécie de boatos sobre como,
em cada cidade que capturavam, eles reuniam todos os bebês, os atiravam no ar diante das mães e os empalavam com suas espadas. Todos acreditavam, mas era uma mentira deslavada. Nada disso jamais aconteceu. Pela minha experiência, para cada atrocidade que acontece outras dez são inventadas. Vipond assentiu. Não tinha sido uma reunião produtiva e ele se sentia ao mesmo tempo frustrado e pouco à vontade a respeito dos relatos que vinham do leste. Porém, outra coisa mais trivial o incomodava. Ele encarou Cale com suspeita. —Você andou fumando. Consigo sentir no seu hálito. —E qual o problema? —Eu decido qual é o problema, seu fedelho insolente. — Ele voltou sua atenção para IdrisPukke, que ainda olhava pela janela com um sorriso no rosto. Vipond olhou de volta para Cale. — Achei que você teria o bom-senso de não imitar IdrisPukke em tudo. Deveria encará-lo com um exemplo do que não pode ser feito. Quanto a fumar, trata-se de uma afetação infantil: um hábito repugnante aos olhos, detestável para o nariz, prejudicial ao cérebro, perigoso para os pulmões, que causa mau hálito e deixa qualquer homem, que o tenha por muito tempo, efeminado. Agora saiam, vocês dois.
25
Quatro horas depois, Cale, Henri Embromador e Kleist se acomodavam em seus quartos confortáveis na parte do palazzo que cabia a Arbell Materazzi. —E se eles descobrirem que não fazemos idéia de como ser guarda-costas? — perguntou Kleist enquanto se sentavam para comer. —Bem, eu não vou falar nada — disse Cale. — Você vai? Além do mais, duvido que seja muito difícil. Amanhã damos uma geral no lugar e garantimos que ele esteja seguro. Então, impedimos qualquer um de entrar e um de nós a acompanha aonde quer que ela vá. Se ela sair daqui, o que iremos desencorajar, não poderá ir além da fortaleza e será escoltada por dois de nós e mais uma dúzia de guardas. É só isso. —Por que simplesmente não embolsamos uma recompensa por tê-la salvado e damos o fora? A pergunta de Kleist era boa, pois era exatamente o que Cale sabia que uies deveriam estar fazendo. E, não fosse pelos seus sentimentos por Arbell Pescoço de Cisne, era isso mesmo que teria feito. —Estamos mais seguros aqui do que em qualquer outro lugar — foi tudo o que ele disse. — A gente vai receber a recompensa prometida e mais o dinheiro por cuidar deste problema. Esse trabalho é dinheiro fácil e a verdade é que temos um exército inteiro nos protegendo dos Redentores. Se você tiver algo melhor que isso, sou todo ouvidos. E isso encerrou a questão. Naquela noite, Arbell Pescoço de Cisne dormiu com Kleist e Henri Embromador guardando sua porta. —É melhor termos cuidado até traçarmos um mapa do local amanhã — disse Cale, planejando o tempo todo como faria sua entrada no dia seguinte como seu todo-poderoso protetor. Cale mostraria desdém por tudo relacionado a ela, que estaria acuada e temerosa, enquanto ele ficaria ao mesmo tempo satisfeito consigo mesmo e arrasado. Eram nove da manhã do dia seguinte quando Arbell Pescoço de Cisne saiu dos seus aposentos privados, tendo sido informada pelas duas criadas que lhe trouxeram o café da manhã que havia dois guardas do lado de fora, acompanhados por dois zés-ninguém imundos que elas só haviam visto antes limpando os estábulos.
Adotando sua expressão mais gélida, ela ficou irritada ao se ver, além dos dois guardas parados em posição formal de sentido um de cada lado da porta diante não de Cale, mas de dois meninos que também nunca tinha visto na vida.
—Quem são vocês e o que estão fazendo aqui?
—Bom dia, senhorita — disse Henri Embromador em um tom
afável.
Ela o ignorou.
—E então? — disse ela.
—Somos os seus guarda-costas — falou Kleist, controlando o impulso de cair de quatro diante da sua beleza estonteante e mascarando-o com uma expressão de quem já havia visto inúmeras beldades aristocráticas na vida e não estava impressionado, especialmente por aquela.
—Onde está o seu... — Arbell não conseguia pensar em uma palavra insultante o suficiente — ... mandante? — disse ela por fim, insatisfeita.
—Procurando por mim? — falou Cale, dobrando a curva de um corredor próximo dali, acompanhado por dois homens que carregavam vários rolos longos de papel.
—Quem são essas pessoas?
—São seus guarda-costas. Esse é Henri e aquele outro é Kleist. Eles têm a mesma autoridade que eu e a senhorita fará a gentileza de obedecer-lhes.
—Então, eles são os seus diabretes — falou ela, torcendo para soar o mais ofensiva possível.
—Diabretes, o que é isso?
—Demônios subalternos — respondeu ela, triunfante. — Como as moscas que acompanham Belzebu sempre que ele sai do inferno.
De forma nada surpreendente, isso irritou Henri e Kleist, enquanto Cale achou divertidíssimo.
—Sim — disse ele, sorrindo com malícia para os dois. — Eles são sem dúvida meus diabretes.
—Você não diria que eles são um pouco fracotes para serem guarda-costas?
Cale olhou para eles com pesar.
—Sinto muito pela aparência deles. Também não gostaria de ter que ficar olhando para esses dois o dia inteiro. Mas quanto a serem fracotes... tal- vez a senhorita prefira mandar uns dois Materazzi para cima deles, então verá como são fracotes.
—Então eles são assassinos, como você?
Henri ficou profundamente ofendido com aquilo, porém, Kleist claramente gostou do insulto. — São, sim — respondeu Cale com tranqüilidade. — Assassinos exatamente como eu.
Incapaz de pensar em uma resposta, Arbell Pescoço de Cisne se encaminhou de volta para os seus aposentos e fechou a porta às suas costas.
Dez minutos depois, ouviu-se uma batida na porta e ela fez sinal para sua criada particular atendê-la. Quando fez isso, a criada ficou satisfeita ao ver os olhos de Cale se arregalarem de espanto. Era Riba. A ascensão de Riba a um posto tão elevado foi, à sua maneira, tão estranha quanto a de Cale. Assim que Anna-Maria terminou de supervisionar a expulsão de Riba dos aposentos de mademoiselle Jane, a velha criada seguiu rapidamente para o palazzo ocupado pela Honorável Edith Materazzi, mãe de Arbell Pescoço de Cisne e esposa do marechal, embora os dois vivessem separados. Vale notar que, desde o casamento arranjado de vinte anos atrás, marido e mulher não tinham sido outra coisa senão completos estranhos, e a concepção de Arbell Pescoço de Cisne foi provavelmente uma das uniões mais frias da história da realeza. As tentativas do marechal de evitar sua esposa a qualquer custo eram geralmente bem-sucedidas, embora tivesse muito menos sucesso em negar a ela todo o seu poder ou sua influência sobre a condução dos assuntos políticos de Memphis. A Honorável Edith Materazzi era uma mulher que
conhecia segredos comprometedores, e eram poucas as atividades escusas ou ilegais ocorridas em Memphis que não chegavam, de uma maneira ou de outra, aos seus ouvidos — sendo que, quando a situação pedia, a própria estava por trás delas. Apesar de não ter nenhuma espécie de poder oficial — algo de que o marechal havia cuidado explicitamente —, a influência da Honorável Edith Materazzi era sustentada, no mais das vezes, por seu conhecimento dos esqueletos no armário e deslizes propensos a existir em qualquer família, por mais orgulhosa e nobre que ela seja. Assim, trinta minutos depois do ataque de pelancas de mademoiselle Jane para cima de Riba, a Honorável Edith Materazzi foi informada do ocorrido por AnnaMaria, sua espiã, e tomara providências para que um quarto fosse arrumado para a irritada e confusa Riba em seu próprio palazzo. Quando Vipond ficou sabendo do episódio e que Riba se encontrava nas garras da Honorável Edith Materazzi, convocou mademoiselle Jane imediatamente e deu uma bronca de gelar o sangue na sobrinha. Ela saiu do seu gabinete aos soluços, em um pranto horrorizado, mas não havia nada a fazer além de esperar e ver o que a bruxa velha estava tramando.
A Honorável Edith Materazzi não perdeu tempo. Ela sabia que alguma coisa estava acontecendo — e que envolvia sua filha. Havia boatos estapafúrdios sobre seu desaparecimento após visitar o lago Constanz três semanas atrás, que incluíam um casamento e um filho secretos. Nenhum deles tão estapafúrdio, no entanto, quanto a própria verdade. A Honorável Edith Materazzi havia gastado muito tempo e dinheiro para desvendar o que aconteceu sem muito sucesso — e pouco sucesso não era algo que ela estivesse preparada para tolerar. —Você está sendo bem tratada? — perguntou a Honorável Edith Materazzi enquanto dava tapinhas no sofá, indicando com um sorriso caloroso que Riba deveria se sentar ao seu lado. Nervosa, mas também desconfiada, Riba obedeceu. Já era bem versada na discriminação social existente em Memphis para perceber que havia algo estranho ali — o respeito pela menor diferença de hierarquia era uma exigência, como se tivesse sido ordenado pelo próprio Deus, e quem vinha de fora era ridicularizado independentemente de seu sta- tus nas províncias. Riba tinha ouvido falar diversas vezes sobre a condessa de Karoo, que chegara a Memphis há mais de dez anos e tinha pagado a viagem com o dinheiro da venda do seu chiqueiro. Isso era uma injúria grotesca, como todos sabiam muito bem, pois o povo de Karoo considerava os porcos criaturas sujas. Por que, então, perguntou-se Riba ao se sentar, uma mulher tão eminente a estava tratando com tanta gentileza?
—Antes de tudo, minha querida — disse a Honorável Edith Materraz- zi —, sinto muito que Jane tenha lhe causado tanto aborrecimento. Não é desculpa, obviamente, mas fui amiga da falecida mãe dela e não há outra maneira de colocar a questão: ela foi mimada, sempre lhe obedeceram todas as vontades. Porém, é assim que as coisas são hoje em dia, os pais dão tudo que as crianças pedem e o resultado você já viu. Mas não tem jeito — falou ela, suspirando e afagando a mão de Riba. — E eu sinto muito. Riba não sabia ao certo o que dizer. —Entendo, senhora. —Ótimo — falou a Honorável Edith Materazzi, como se a resposta a tivesse agradado. — Agora, quero lhe pedir um grande favor. Riba mal conseguia acreditar no que estava ouvindo. —Eu também tenho uma filha — disse a mulher com pesar. — E estou preocupada com ela. — Ela se voltou para Riba. — Você já teve a oportunidade de vê-la? —A mademoiselle Arbell? Sim, senhora. —Ah — suspirou baixinho a Honorável Edith Materazzi, como se uma lembrança distante lhe viesse à mente. — Ela é linda, não é? —Sim, senhora. Então a Honorável Edith Materazzi pegou a mão de Riba. —Agora eu quero lhe fazer uma confidencia e também ajudá-la, pois sinto que você é uma menina de bom coração, com a qual uma mãe pode dividir suas preocupações. Estou certa, Riba? —Sim, senhora, espero que sim — respondeu a menina espantada. —É o que me parece — falou a Honorável Edith Materazzi, como se tivesse olhado dentro da alma de Riba e visto apenas bondade e uma consideração profunda pelas inquietações maternas. —Devemos conversar sobre coisas que são difíceis para mim... porém, ser mãe vem antes que o orgulho, como estou certa de que você
descobrirá um dia. — Ela suspirou. — Meu marido me odeia e faz de tudo para me impedir de ver minha filha. O que você acha disso? Os olhos de Riba se arregalaram de perplexidade. —Acho muito triste, senhora. —E é mesmo. Ele me impede de vê-la e faz sua cabeça contra mim. Mas não posso me defender, pois, se ela se voltasse contra o marechal, suas chances no futuro seriam arruinadas. Isso eu não posso fazer. Então, Riba, devo suportar. Preciso tolerar que minha própria filha, a quem eu amo, acredite que eu sou fria e distante e não me importo nem um pouco com ela. O que você acha disso? —Eu... — Riba hesitou..— Eu acho que deve ser terrível para a senhora. —E é. Mas você pode me ajudar. Os olhos de Riba se arregalaram mais ainda, mas ela foi incapaz de pensar em uma resposta. —Ouvi dizer que você é uma excelente companhia e uma embelezadora muito habilidosa. —Obrigada, senhora. —Estão todos falando como os seus talentos transformaram aquela ingrata da Jane. Ela não é nenhuma beldade, para ser franca, mas você deve tê-la transformado em uma. —Obrigada, senhora. Fez-se uma pausa. —Agora, quero lhe pedir uma coisa que, além do mais, irá ajudá-la a alcançar uma posição invejável. Eu tomei providências para que você seja a embelezadora da minha filha. —Oh! — exclamou Riba. A Honorável Edith Materazzi sorriu. —E põe "oh!" nisso. Não é uma maravilha?
—Sim, senhora. —Tenho certeza de que você se sairá bem. Tudo o que peço, no entanto, são duas coisas. Você terá dificuldade em fazer uma delas, pois vejo que é uma menina boa e honesta. — Ela encarou Riba, que já estava esperando a pegadinha por trás daquilo. — Peço-lhe que não revele a minha filha que chegou a ela através de mim. — Ela agarrou a mão de Riba com força, como se estivesse sufocando desesperadamente um protesto mais do que natural. — Sei que parece errado e compreendo a sua posição, mas faço esse pedido apenas porque, de outra forma, ela irá recusá-la. Para se fazer uma coisa nobre, às vezes é preciso cometer um pequeno pecado. Quero apenas que você, de vez em quando, venha me dizer como ela está, sobre o que costuma falar, se algo a preocupa. Coisas pequenas, do tipo que uma filha contaria a uma mãe que a ama. Você poderia fazer isso, Riba? E claro que poderia. E, além disso, o que mais lhe restava? Ela firmou aquele acordo com a Honorável Edith Materazzi e, mesmo que não acreditasse totalmente nela, que diferença fazia? Na verdade, Riba não tinha escolha — e as duas sabiam disso. Sua Santidade o Redentor Bosco se acomodou em sua sacada e baixou os olhos para os soldados que se moviam mais abaixo, até onde a vista alcançava, preenchendo a vastidão do Santuário. Homens gritavam, mulas zurravam, cavalos bufavam e eram xingados por seus domadores. As visões e os sons de tantos preparativos o agradavam — afinal, era o começo daquilo que mais ambicionara vida. Ele deu outro gole na sopa, uma de suas favoritas: pé de galinha com uma verdura que era conhecida em Memphis como papel higiênico, onde era valorizada apenas por sua utilidade, e não como comida. Ouviu-se uma batida na porta. —Entre. Era o Redentor Stape Roy. —O senhor me chamou, Digníssimo? —Quero que o senhor reúna vinte Redentores e tente matar Arbell Pescoço de Cisne. —Mas, Sua Santidade, isso é impossível! — protestou Roy. —Sei muito bem disso. Se fosse possível, não o estaria enviando.
Irritado e com medo, Roy ainda assim conteve o impulso de perguntar a Bosco o que diabos ele queria dizer com isso. —O senhor está irritado comigo, Redentor Roy Stape. —Eu sirvo ao senhor como bem lhe aprouver, Digníssimo. Bosco se levantou e fez sinal para o Redentor vir até uma mesa sobre a qual um mapa das fortificações de Memphis estava estendido. —O senhor participou do cerco a Voorheis, não foi? —Sim, Digníssimo. —Quanto tempo a cidade demorou a ser tomada? —Quase três anos. Bosco gesticulou em direção ao mapa das fortificações de Memphis. —Quanto terfípo, em sua opinião de homem experiente, o senhor acha que levaríamos para destruir Memphis? —Mais que isso. —Quanto mais? —Muito mais. Bosco se virou para encará-lo. —Nós poderíamos nos arruinar, por mais poderosos que sejamos, tentando tomar Memphis pela força... e é por isso que não vai acontecer. O senhor ouviu os boatos sobre por que tentamos raptar Arbell Materazzi? O Redentor Stape Roy pareceu desconfortável. —É pecado escutar fofocas e outro maior ainda passá-las adiante, Digníssimo. Bosco sorriu.
—É claro, porém, neste caso, estou isentando o senhor. O pecado de espalhar boatos já lhe foi perdoado. —No geral, dizia-se que ela havia se convertido secretamente aos Antagonistas e estava espalhando sua palavra, além de ser uma bruxa que realizava orgias, corrompia homens aos milhares e fazia Redentores capturados se perverterem, obrigando-os a comer camarões sob tortura. Bosco assentiu. —Uma pecadora formidável, se for tudo verdade. —Eu apenas repeti os boatos, não disse que acreditava neles. —Bom para o senhor, Redentor. — Bosco sorriu. — Eu mandei que ela fosse seqüestrada porque queria forçar os Materazzi a saírem de trás dos muros de Memphis. Para todos os cidadãos do império, ela é uma rainha, idolatrada por sua juventude e beleza, uma estrela no Armamento. Em toda parte, mesmo no mais sórdido conjunto de barracos do império, eles falam sobre suas proezas; não é de se espantar que muitos as inventem ou exagerem. Ela é adorada, Redentor, e especialmente pelo próprio pai. Quando fui informado de que seu rapto havia fracassado não fiquei, no entanto, muito preocupado. Assim que a notícia de que fizemos algo tão abominável se espalhasse, meu objetivo teria sido cumprido. Os Materazzi sairiam aos pulos de Memphis, transbordando de ódio e prontos para nos varrer da face da Terra. — Bosco se sentou e olhou firme para o homem de aparência dura à sua frente. — Isso não aconteceu, e claro, deve estar pensando o senhor, de modo que só posso estar enganado. É apenas educado demais para dizê-lo. Porém, Redentor, o senhor também se engana. O marechal Materazzi, por outro lado, concorda comigo que ele pode ser um pai amoroso, mas não é um sentimental. Decidiu manter o rapto em segredo, exatamente por saber que não conseguiria resistir ao desejo de vingança de seu povo. O que me leva ao senhor, Redentor. Uma vez uma relação tão boa com aquela coisa em...
—Kitty Town, Sua Santidade.
—Quero que o senhor o convença a ajudá-lo a lançar um ataque utilizando um certo número de soldados... trinta, talvez cinqüenta... como achar melhor. O senhor informará a esses soldados que os boatos já disseminados tre os Redentores sobre a apostasia repugnante e pecaminosa de Arbell Pescoço de Cisne são verdadeiros, e que eles serão considerados mártires se morrerem como de fato morrerão. O senhor se certificará de
que cada um dos capitães de sua escolha carregará um certificado de martírio explicando por que eles estão executando a obra do Senhor. Com sorte, alg uns sobreviverão por tempo o bastante para os Materazzi arrancarem a verdade deles através da tortura. Desta vez, não quero que haja possibilidade alguma de nossa ação ser ocultada. Fui claro?
—Sim, Digníssimo — respondeu um Redentor Roy descorado.
—O senhor ficou bastante pálido, Redentor. Devo lhe informar que a sua morte não é necessária. Muito pelo contrário. O senhor também deve usar soldados que foram desonrados de alguma maneira. O que estou lhe pedindo é uma coisa diabólica, porém, necessária.
Quando descobriu que o sacrifício da sua própria vida imprestável não era necessário, a cor voltou às faces do Redentor Roy:
—Kitty das Lebres — disse ele — vai querer saber no que está se metendo. Ele provavelmente não achará que é de seu interesse se envolver em algo tão ambíguo quanto isso.
Bosco o dispensou com um gesto.
—Prometa o que quiser para ele. Diga-lhe que, quando vencermos, eu o tornarei o sátrapa de Memphis.
—Ele não é tolo, Sua Santidade.
Bosco deu um suspiro e refletiu por um instante.
—Leve para ele a estátua de ouro da Vênus Luxuriosa de Strabo.
O Redentor Roy pareceu abismado.
—Eu achei que ela havia sido quebrada em dez pedaços e atirada pela cratera do vulcão de Delphi.
—Foi apenas um boato. Por mais blasfema e obscena que seja, a estátua vai encher os ouvidos dessa sua criatura e deixá-lo surdo para qualquer dúvida que tenha, quer ele seja tolo ou não.
26
No decorrer das semanas seguintes, Cale sentiu todos os prazeres autodestrutivos de se infernizar a vida de alguém que você ao mesmo tempo adora e odeia. Para ser sincero — embora ele não fosse — Cale já estava farto deles.
Ele nunca havia encarado de fato o que estava esperando ao se tornar o guarda-costas de Arbell Pescoço de Cisne. Os sentimentos que nutria por ela —desejo e rancor em igual intensidade — teriam sido difíceis de conciliar para qualquer um, quanto mais para alguém que fosse uma mistura tão estranha de experiência brutal e completa inocência. Talvez um pouco de charme pudesse ter ajudado a evitar que ela se retraísse quando ouvia sua voz — porém, de onde um garoto daqueles tiraria charme? A repulsa física que Arbell sentia na sua presença era, compreensivelmente, uma grande ofensa para ele, no entanto, tudo que Cale sabia fazer em resposta era tratá-a com mais hostilidade ainda.
Essa atmosfera estranha entre Cale e sua patroa era fonte de grande inquietação para Riba. Ela gostava de Arbell Pescoço de Cisne, embora tivesse ambições de se tornar mais do que uma dama de companhia, por mais ilustre que fosse a dama. Arbell era gentil, atenciosa e, assim que descobriu como sua criada era inteligente, muito tranqüila e franca com ela. Não obstante, Riba era fiel a Cale ao ponto da adoração. Ele havia arriscado a própria vida para salvá-la de algo terrível, que geralmente não era para ser lembrado exceto em pesadelos. Ela não conseguia entender a frieza de Arbell em relação a ele e estava determinada a colocar juízo na cabeça da patroa.
A maneira como ela fez isso poderia ter parecido estranha para alguém de fora: fingindo ter tropeçado, ela derramou de propósito uma xícara de chá em cima de Cale, tomando o cuidado de acrescentar água gelada ao plano para garantir que a queimadura não fosse grave demais. Mas o chá estava bem quente. Com um grito de dor, Cale arrancou a túnica de algodão que estava vestindo.
—Oh, me desculpe, me desculpe — alvoroçou-se Riba, apanhando uma caneca de água gelada que havia deixado intencionalmente ao alcance da mão e derramando-a em cima dele também. — Você está bem? Me desculpe.
—Qual é o seu problema? — disse ele, mas sem irritação. — Primeiro você tenta me escaldar, depois tenta me afogar.
—Oh — arquejou Riba. — Sinto muito. — Ela continuou pedindo desculpas, entregando-lhe uma pequena toalha e paparicando-o de forma geral. —Tudo bem. Eu vou sobreviver — disse ele enquanto ia embora El meneou a cabeça na direção de Arbell. — Preciso trocar de roupa. Por
favor não deixe seus aposentos até eu voltar. — E, com essas palavras, ele saiu. Rj^' então se virou para ver se sua artimanha havia dado certo. Porém, como ge ralmente acontece com artimanhas complexas, seu resultado foi igualmente complexo. O que fez Arbell sentir pena, e do tipo que jamais imaginara poder sentir por Cale, era que suas costas fossem cobertas de vergões e cicatrizes Quase não havia centímetro na sua pele que não carregasse as marcas do seu passado brutal. —Você fez aquilo de propósito. —Fiz — disse Riba. —Por quê? —Para que a senhora pudesse ver o quanto ele sofreu. E então, com todo o respeito, deixar de ser tão cruel. —Do que você está falando? — disse uma Arbell estupefata. —Posso ser franca? —Não, não pode! —Vou ser de qualquer forma, já que cheguei até aqui. Para os padrões da aristocracia, Arbell não era uma aristocrata pomposa, no entanto, ninguém — não apenas uma criada, mas ninguém — jamais havia falado com ela daquela maneira, com exceção de seu pai. Seu assombro a deixou muda. —Você e eu, mademoiselle — falou Riba depressa —, podemos não ter muito em comum, mas uma vez eu tive de bandeja absolutamente quase tudo o que quis e imaginava apenas uma vida de dar e receber prazer. Bem, tudo isso acabou em apenas uma hora e eu descobri como a vida é terrível, cruel e inacreditável. Ela então contou os detalhes para sua patroa de olhos arregalados, sem omitir nada sobre o destino de sua amiga e sobre como Cale se arriscara a tudo, inclusive uma morte ainda mais cruel, para salvála. —Enquanto atravessávamos as Terras Crestadas, ele sempre me dizia que me salvar foi a coisa mais idiota e insensata que fez na vida. —E você acredita nele? — A pergunta foi feita, na verdade, em
tom de espanto. Riba soltou uma risada. —Não sei direito. Às vezes acho que ele está falando sério, outras nao. Mas eu vi as costas dele quando estávamos nos lavando em uma das lagoinhas das Terras Crestadas, só Deus sabe como ele conseguiu encontrá-la naquelelugar  terrível. Porém, Henri me disse o que eles fizeram com Cale. Desde que ele era pequeno, esse tal de Redentor Bosco jogava qualquer coisinha nas suas costas. Ele o acusava de tudo, quanto mais banal, melhor: rezar com os polega- res-cruzados, não escrever o número nove do jeito que ele queria. Então, o ar- astava para a frente dos outros e lhe aplicava uma surra violenta. Socava-o até ele cair no chão e o enchia de chutes. Daí, o transformou em um assassino. Àquela altura, Riba já havia se colocado em um estado de indignação profunda — e não só contra os Redentores. —Então, me parece surpreendente que ele não nos ache o cocô do cavalo do bandido... quanto mais que arrisque a própria vida para nos salvar. Os olhos de Arbell Pescoço de Cisne, embora fosse quase impossível, se arregalaram ainda mais diante daquela surpreendente figura de linguagem. —Então, mademoiselle, acho que está na hora de a senhora parar de erguer o nariz para ele e lhe mostrar a gratidão e a compaixão que ele merece. Riba já havia perdido algo da pureza de intenções com a qual começara sua bronca e passado a tirar prazer da própria indignação e do constrangimento da sua patroa. Porém, não era boba e viu que estava na hora de parar. Fez-se ím longo silêncio e Arbell piscou várias vezes enquanto tentava não chorar. Ela correu os olhos marejados pelo quarto, voltou a encarar Riba e então olhou à sua volta novamente. Por fim, soltou um longo suspiro. —Eu não sabia. Até agora nunca tinha percebido. Logo em seguida, ouviu-se uma batida na porta e Cale entrou. Apesar de a atmosfera estar totalmente alterada ali dentro, ele não notou nada da mudança que havia ocorrido desde sua saída. Ela, no entanto, era maior do que Riba imaginava ou do que a jovem que a sentia se dava conta. Arbell Pescoço de Cisne, a bela e mais desejada dentre todas as desejadas, foi invadida pela compaixão ao ver as cicatrizes terríveis nas costas de
Cale; contudo, também foi invadida por algo menos nobre: um desejo tão intenso quanto inesperado. Nu até a cintura, Cale representava um contraste absoluto em relação aos corpos esguios dos Materazzi, por mais fortes e ágeis que eles fossem. Cale era espa- daúdo, com uma cintura extraordinariamente fina. Não havia nada de elegante nele. Ele era todo músculos e força, como um touro. Não havia graciosidade ali. ninguém jamais teria feito uma escultura daquela massa de músculos e cicatrizes. Porém, o simples fato de vê-lo daquele jeito fez algo dentro de Arbell Materazzi se descompassar — e não foi apenas seu coração.
27
— Bem, Redentor — arrulhou Kitty das Lebres, as unhas de sua mão riciando a madeira da mesa sobre a qual estava a estátua dourada da Vênus Luxuriosa de Strabo. O som lânguido de sua voz fazia o Redentor Stape R0 se sentir como se algo pior do que você poderia imaginar estivesse prestes a entrar rastejando no seu ouvido. — Tudo isso é muito estranho — prosseguiu Kitty das Lebres, olhando para a estátua. Ou pelo menos era o que achava o Redentor Roy. Como sempre, o rosto do seu anfitrião estava coberto por um capuz cinza, coisa pela qual o Redentor se sentia muito grato.
—A estátua é sua, se o senhor nos ajudar. De que importam nossos motivos? O arranhar baixinho das unhas contra a madeira continuava, de modo que o Redentor quase deu um pulo quando ele finalmente parou e o braço coberto se estendeu para frente em direção à estátua, o hábito cinza deslizando de cima da mão de Kitty das Lebres — só que não se podia chamar aquilo de mão. Pense em algo cinza e peludo, mas não muito, como uma pata de cachorro, porém muito mais longa e com unhas mosqueadas — contudo, nem mesmo essa descrição é precisa o bastante. Gentilmente, como uma mãe afagando o rosto de um bebê, as unhas acariciaram a estátua por alguns instantes, recolhendo-se em seguida. —Uma bela peça — murmurou Kitty das Lebres. — Mas eu tinha ouvido falar que ela havia sido quebrada em dez pedaços e atirada dentro do vulcão de Delphi. —Está claro que não. Ouviu-se um longo suspiro que o Redentor conseguiu sentir contra o seu rosto, como o mau hálito quente e úmido de um cachorro grande e hostil. —Vocês não terão sucesso — arrulhou Kitty das Lebres. —Isso é uma questão de opinião. —É um fato — disse Kitty das Lebres com rispidez. —O problema é nosso. —Vocês estão tentando começar uma guerra, então também é problema meu. Fez-se uma longa pausa. —No entanto — prosseguiu Kitty das Lebres —, não faço objeções a uma guerra. Elas sempre foram proveitosas para mim no passado. O senhor ficaria surpreso, meu caro Redentor, com a quantidade de dinheiro que se pode fazer fornecendo comida, bebida de má qualidade, caçarolas e panelas mesmo para o mais ínfimo dos conflitos. Quero uma garantia por escrito de que, caso vocês vençam, nenhuma das minhas propriedades será danificada e eu terei proteção para transitar por onde bem quiser.
—Fechado. Nenhum dos dois acreditava no que o outro dizia. Kitty das Lebres certamente ficaria feliz em fazer dinheiro com uma guerra, porém, seus planos iam bem além disso. —Vai demorar um pouco — disse Kitty das Lebres com um suspiro, soltando outra lufada de hálito quente e úmido. — Mas os planos estarão prontos daqui a três semanas. —Isso é tempo demais. — Pode ser, mas é o tempo que vai levar. Adeus. Após essas palavras, o Redentor Roy foi convidado a sair dos aposentos privados de Kitty das Lebres, conduzido até um pátio e, em seguida, até a cidade propriamente dita. Uma multidão havia se reunido para observar dois rapazes de no máximo 16 anos de idade sendo enforcados em um patíbulo. Em volta dos pescoços aterrorizados de ambos, uma placa dizia: ESTUPRADOR. —O que é um estuprador? — perguntou o Redentor Roy ao guarda que o escoltava, inocência e maldade convivendo de forma bastante pacífica dentro dele. —É um sujeito que tenta ir embora sem pagar — foi a resposta. Um Cale pensativo se encaminhava para os aposentos já cuidadosamente isolados de Arbell Pescoço de Cisne. Apesar da desconfiança e do rancor profundos que sentia, Cale havia começado a detectar um abrandamento da parte dela em relação a ele. Ela já não o fuzilava com os olhos ou se encolhia sempre que ele se aproximava. Às vezes, Cale chegava até a se perguntar se a expressão nos seus olhos (embora não pudesse, é claro, reconhecê-la como compaixão ou desejo) não poderia significar alguma coisa. No entanto, ele logo descartava esse tipo de idéia, pois não fazia sentido. Ainda assim, algo intrigante estava acontecendo. Imerso nesses pensamentos, ele mal notou um grupo de meninos com cerca de 10 anos de idade à beira do campo de treinamento, parecendo suspeitos e atirando pedras uns contra os outros. Ao se aproximar, percebeu que um deles era muito mais velho, com uns 14 anos mais ou menos, tão alto, esbelto e bonito quanto os Materazzi do sexo masculino costumavam ser naquela idade. O mais estranho era que os meninos mais jovens não
estavam jogando pedras uns contra os outros, mas sim contra o garoto mais velho, enquanto gritavam com ele: "Retardado! Cabeça-oca! Imbecil! Zé-roela!" E então as pedras. Porém apesar do seu tamanho, o garoto maior simplesmente rodopiava assustado e confuso à medida que pedra atrás de pedra o atingia. Então uma delas bateu na sua testa e ele desabou. Quando os meninos já estavam correndo para frente para chutá-lo Cale chegou, agarrou um deles pela orelha, derrubou outro e lhe deu um chute de leve enquanto ele se estirava no chão. Em questão de segundos, o band estava fugindo, gritando insultos no caminho. —Se eu vir vocês novamente, seus pivetes — gritou Cale enquanto eles corriam —, vocês vão ter o privilégio de sentir minha bota inteira rosca adentro! Cale se agachou sobre o garoto caído. —Está tudo bem, eles já foram embora — disse ele para o monte choroso ao seu lado, que cobria o rosto com as mãos e estava abraçando os joelhos contra o peito. Não houve reação. O menino apenas continuou choramingando. — Não vou machucar você. Eles já foram. — Ainda nenhuma reação. Já um pouco irritado, Cale tocou seu ombro. O menino ganhou vida de repente, desferindo um golpe tão rápido que sua mão estalou contra a testa de Cale. Com um grito de susto e dor, Cale saltou para trás enquanto o menino o encarava totalmente perplexo, arrastando-se para trás em direção a um muro e olhando em volta, aterrorizado, em busca dos seus carrascos. —Merda! — disse Cale. — Merda! Merda! Merda! — O menino tinha punhos de ferro e parecia que ele tinha levado uma marretada. — Qual é o seu problema seu doido maldito! — gritou ele para o menino de olhos esbugalhados. — Eu estava tentando ajudá-lo e você quase arrancou minha cabeça.
O menino continuou a encará-lo, mas finalmente falou; porém, não era um discurso articulado, mas uma série de grunhidos. Não estando habituado aos aleijados e deficientes — eles não duravam muito no Santuário —, Cale demorou um pouco para perceber que o rapaz era mudo. Ele estendeu a mão. Lentamente, o menino a apanhou e Cale o ajudou a se levantar.
—Venha comigo — falou ele. O menino continuou olhando. Além de mudo, era surdo. Cale gesticulou para que ele o acompanhasse e, a passos lentos, choramingando de dor e- vergonha, o garoto obedeceu. Dez minutos depois, Cale estava limpando as feridas do rapaz na guarita provisória no terreno de Arbell Pescoço de Cisne quando ela veio correndo, acompanhada de Riba. Ela levou um susto ao ver o menino que sangrava diante de Cale e exclamou: —O que você fez com ele? —Como assim, sua louca? — gritou ele de volta. — Ele estava levando uma  surra de um bando dos seus queridinhos antes de eu botá-los para correr. Ela o encarou cheia de remorso por ter arruinado todo o bom trabalho que vinha fazendo nos últimos dias. — Sinto muito, sinto muito — falou ela, de forma tão lastimosa e claramente aflita que Cale sentiu um intenso prazer. Pela primeira vez, estava em vantagern na sua presença. No entanto, deu apenas um suspiro de repúdio. — Sinto muitíssimo — repetiu ela. Então, andou até o menino, transbordando ansiedade e preocupação, e o beijou. Cale nunca a havia visto mostrar aquele tipo de consideração por ninguém. Ele ficou observando, estupefato, a cena. O menino começou a se acalmar quase no mesmo instante. Arbell Pescoço de Cisne olhou para Cale enquanto acariciava o cabelo do rapaz. —Este é o meu irmão, Simon — disse ela. — A maioria das pessoas o chama de Simon Cabeça-Oca, embora nunca na minha frente. Ele é surdo-mudo. O que aconteceu? —Ele estava no campo de treinamento. Um grupo de meninos mais novos estava jogando pedras nele. —Monstros! — disse ela, virando-se de volta para o irmão. — Eles acham que podem se safar de qualquer coisa porque Simon não pode denunciá-los. —Ele não tem um protetor? —Tem, mas meu irmão gosta de ficar sozinho e está sempre escapando para o campo de treinamento porque quer ser como os outros. Mas eles o odeiam e temem por ele ser devagar. Dizem que ele está
possuído por um demônio. Mais feliz àquela altura, Simon começou a apontar para Cale e grunhir, encenando o incidente com as pedras e seu resgate. —Ele quer lhe agradecer. —Como você sabe? — respondeu Cale, um pouco ríspido demais. —Bem... eu não sei, mas ele tem bom coração, por mais simplório que seja. — Ela apanhou a mão de Simon e abriu-lhe a palma e a estendeu para Cale apertar. Assim que ele percebeu o que deveria fazer, Cale levou algum tempo para conseguir pará-lo de sacudir com energia sua mão. Enquanto isso, o sangue encharcava a atadura temporária que Cale havia colocado em volta da cabeça de Simon. Ele fez sinal para o menino se sentar e, sob o olhar preocupado de Arbell, desfez o curativo. Era um corte feio de quase 5 centímetros. —Aqueles desgraçados poderiam ter arrancado o olho dele fora. Vai precisar de pontos. Arbell Pescoço de Cisne o encarou com espanto. —Como assim? —Vai precisar de pontos, igual quando você remenda uma camisa uma meia. — Cale riu do que acabara de dizer. — Não que você faça isso, é claro. —Vou chamar um dos nossos médicos. Cale riu de desdém. —O último médico dos Materazzi que me tratou só não me matou porque eu não dei chance. Não é só porque vai ficar uma cicatriz enorme um ferimento irregular desses não sara sozinho. E quase certo que vá infeccionar e aí, só Deus sabe. Três ou quatro pontos bastam para fechar o corte e você mal vai notar que ele está ali. Arbell Pescoço de Cisne o encarou, totalmente perdida. —Deixe-me chamar um médico para dar uma olhada nele antes. Por favor, tente entender.
Cale deu de ombros. —Como quiser. Uma hora depois, dois médicos haviam sido chamados e, depois de discutirem acirradamente, não conseguiram estancar o sangramento, chegando até a piorá-lo de tanto cutucar e mexer nele. Àquela altura, Simon estava tão confuso e sentindo tanta dor que se fartou daquilo, recusando-se a deixar os médicos chegarem perto. Durante todo esse tempo, o ferimento em sua cabeça sangrava aos borbotões. Depois de assistir àquilo por alguns minutos, Cale foi embora, retornando meia hora depois para se deparar com Simon sentado em um canto, sem deixar que ninguém o tocasse, nem mesmo sua irmã. Cale puxou uma Arbell perturbada de lado. —Olhe só — disse ele —, eu comprei um pouco de aquileia no mercado para estancar o sangramento. — Ele meneou a cabeça para o drama que estava sendo encenado lá no canto. — Isso não está adiantando nada. Por que não pergunta ao seu pai o que ele acha? Arbell Pescoço de Cisne suspirou. —Meu pai se recusa a ter qualquer tipo de envolvimento com ele. Você precisa entender, é uma vergonha terrível ter um filho como esse. Posso decidir eu mesma. —Então decida. Dali a alguns minutos, os médicos haviam sido dispensados, de modo que apenas Cale e Arbell continuavam na guarita. Simon parou de gritar, mas ficou encarando os dois com desconfiança do seu canto. Cale fez questão de Simon o visse abrir o pacotinho dobrado contendo o pó de aquileia e Ljerramar um pouco dele na palma da mão. Cale apontou o pó, depois a ferida Je Simon e, por fim, a própria testa. Ele se deteve por um instante e então se Igproximou com cautela do menino, ajoelhando-se enquanto lhe mostrava a alma aberta com o pó de aquileia. Simon o encarou, a desconfiança se transformando em receio. Cale apanhou uma pitada do pozinho e a ergueu devagar até a cabeça do menino. Ele então inclinou a cabeça para trás, gesticulando para Simon fazer o mesmo. Da forma mais ressabiada que você possa imaginar, o menino obedeceu e Cale salpicou o pozinho sobre a ferida que ainda sangrava,
repetindo o processo seis vezes. Em seguida, se afastou e deixou Simon relaxar. Dez minutos depois, o sangramento havia parado. Mais calmo, Simon deixou Cale se aproximar dele outra vez para ele poder limpar o pó de aquileia da ferida. Embora aquilo fosse claramente doloroso, Simon foi paciente enquanto Cale fazia seu trabalho com delicadeza, observado o tempo todo por Arbell Pescoço de Cisne. Quando acabou, ele atraiu Simon de volta para o meio da guarita, fazendo-o se sentar à mesa. Então, ainda espiado com desconfiança pelo menino, Cale sacou um estojinho de seda de um bolso interno e o abriu sobre a mesa. Ele consistia em várias agulhas, algumas curvadas de diversas maneiras, com pedacinhos de linha já passados pelos buracos. A desconfiança retornou aos olhos de Simon à medida que Cale pegava uma das agulhas com sua linha e a erguia para lhe mostrar. Ele tentou várias vezes explicar através de mímica o que queria fazer, porém, tudo que aquilo conseguiu foi agravar a expressão de temor no rosto de Simon. A cada vez que ele tentava começar a dar pontos na ferida, Simon soltava um grito de horror, sem entender nada. —Ele não vai deixar. Tente outra coisa — disse Arbell, perturbada. —Olha — falou um Cale aborrecido e cada vez mais irritado —, o corte é fundo demais. Já disse que vai infeccionar... daí seu irmão vai ter mesmo motivo para gritar, isso se a infecção não calar a boca dele para sempre. —Simon não tem culpa, ele não consegue entender. Era impossível discordar, de modo que Cale simplesmente se afastou com um suspiro. Então, se aproximou de volta, sacou uma pequena faca do seu bolso interno e, antes que Simon ou Arbell Pescoço de Cisne pudessem reagir, abriu um talho profundo na própria mão esquerda, bem na parte carnuda que subia até o polegar. Pela primeira vez em vários minutos, houve silêncio. Tanto Simon quanto sua irmã ficaram chocados e aterrorizados diante da cena a que tinham acabado de assistir. Cale guardou a faca e, à medida que o sangue jorrava da ferida apanhou uma atadura da mesa e a pressionou contra o corte. Durante os cinco minutos seguintes, ele não falou nada e os outros dois se limitaram a encará-l0 Então, retirou com cuidado a atadura e viu que a hemorragia tinha parado UIT1 pouco. Ele se encaminhou devagar até a mesa, apanhou a agulha e a linha qUe havia mostrado a Simon como
se fosse executar um truque de mágica. E^ seguida, pousou a agulha com cuidado próximo da ferida e começou a puxá la de um lado do corte para o outro. Ele apertou a linha com uma expressão concentrada no rosto, como se estivesse remendando uma meia. Daí a amarrou com um nó e, apanhando a outra agulha preparada no seu estojo, repetiu o processo outras três vezes até a ferida estar bem fechada. Por fim, ergueu a mão costurada diante do rosto de Simon, para que ele pudesse examiná-la com atenção. Quando o garoto acabou de fazê-lo, Cale fitou dentro dos seus olhos, assentiu e esperou. Simon, pálido de apreensão àquela altura, respirou fundo e então assentiu de volta. Cale pegou outra agulha do estojo, levou-a até a ferida do menino (Cale pensava nele como um menino, embora tivessem a mesma idade) e a enfiou sob a pele. Os cinco pontos foram feitos depressa, porém, compreensivelmente, não sem uma boa quantidade de berros e gritos por parte de Simon. Quando terminou, Cale sorriu e balançou a cabeça — embora tivesse ficado branco feito um lençol, Simon havia suportado uma dor dos infernos. Cale se voltou para Arbell Pescoço de Cisne, àquela altura tão branca e trêmula quanto o irmão. — Ele tem tutano — disse-lhe Cale. — Seu irmão tem mais para mostrar do que as pessoas pensam.
O exibicionismo desavergonhado de Cale estava surtindo o efeito que ele queria. À medida que encarava a criatura extraordinária à sua frente, Arbell Materazzi — deslumbrada, chocada, temerosa e perplexa — já estava praticamente a meio caminho de ficar apaixonada. Os guelfos — um povo famoso por sua mesquinhez — possuem um ditado: nenhuma boa ação fica impune. Cale logo descobriria a verdade que podia haver por trás deste infeliz provérbio. Para o seu azar, no entanto, ele não havia sido criado para policiar o comportamento de garotinhos encapetados com seus modos cruéis e imaturos — havia sido criado para matar. Cale desconhecia totalmente a noção de violência moderada e, infelizmente, o chute que havia dado em um dos carrascos de Simon tinha sido mais forte do que a encomenda e quebrara duas das costelas do menino. Por um capricho do destino, o pai do garoto era Solomon Solomon, que já queria se vingar de Cale por ele ter dado uma surra em seis dos seus melhores alunos e que agora estava se mordendo de raiva pela contusão do filho. Como geralmente acontece com brutos homicidas, Solomon Solomon era um pai bondoso e condescendente, jsfáo obstante, sua ira — que àquela altura estava inflamada — precisava ser contida. Não era possível desafiar Cale para um duelo quando o motivo
para tanto era que seu filho havia sido ferido enquanto o monstrinho atacava o filho do marechal Materazzi. Por mais humilhado que o marechal se sentisse por ter um retardado como herdeiro homem, ele ficaria furioso diante daquela afronta à honra de sua família e, apesar de todo o seu vulto e de sua habilidade militar, Solomon Solomon se veria despachado para algum buraco no Oriente Médio para supervisionar enterros em leprosário. A raiva fervorosa que já sentia de Cale somou-se um ódio assassino à espera de uma só oportunidade. E ela não tardaria a chegar. Não era de se surpreender que Simon Cabeça-Oca, como ele era universalmente conhecido quando seu pai ou sua irmã não estavam por perto para ouvir, tenha começado a passar o máximo de tempo possível na companhia de Cale, Kleist e Henri Embromador. Surpreendente, no entanto, foi o fato de a companhia de alguém que não podia falar ou ouvir não fosse tão irritante para os rrês conforme se podia esperar. Como eles, Simon era um intruso geralmente maltratado, no entanto, os três meninos também sentiam pena dele por estar tão perto de tudo que lhes parecia o paraíso — dinheiro, prestígio, poder — e ao mesmo tempo tão incrivelmente longe. Além disso, Cale e companhia não permitiam que ele se tornasse um estorvo. Verdade que seu comportamento era errático e emocionalmente descontrolado, porém, isso se dava apenas porque ninguém se dera ao trabalho de incutir nele o que os meninos consideravam uma boa educação. De modo que eles fizeram isso, gritando com Simon sempre que ele os importunava — o que, por ser surdo, não adiantava nada — e dando-lhe um belo chute no traseiro, o que adiantava. O método mais útil de todos, como eles logo perceberam, era ignorá-lo redondamente quando ele entrava em um de seus surtos ininteligíveis ou se comportava mal de alguma outra forma. Ele odiava isso mais que tudo e logo aprendeu as habilidades sociais básicas de um acólito dos Redentores. Estas, embora pudessem não ser muito proveitosas socialmente nas salas de estar de Memphis, ainda eram as únicas regras de conduta que alguém havia lhe ensinado. Arbell dissera a Cale que Simon havia tido os melhores professores, mas sem resultado algum — contudo, os meninos tinham uma vantagem sobre até mesmo os melhores professores de Memphis. Os Redentores haviam desenvolvido uma linguagem de sinais simples para os vários dias e semanas durante os quais não lhes era permitido falar. Os acólitos, que não tinham permissã para tanto com mais freqüência ainda, haviam aprimorado essa linguagem Depois de tentar fazer, sem sucesso, com que Simon falasse algumas palavras Cale começou a lhe ensinar alguns dos sinais, que ele aprendeu depressa: água' pedra, homem, pássaro, céu e assim por diante. Três dias depois de começarem Simon puxou "a
manga de Cale enquanto eles andavam por um jardim com um grande lago e um casal de patos e feito "pássaro-água" com as mãos. Foi então que Cale começou a pensar que talvez Simon não fosse tão tapado, afinal N0 decorrer da semana seguinte, Simon absorveu a linguagem de sinais dos Redentores como se ela fosse água derramada em uma esponja seca. Longe de ser um cabeça-oca, ele acabou se mostrando tão afiado quanto uma tachinha. —Simon precisa de alguém — disse Cale enquanto os quatro estavam sentados na guarita, jantando — que invente mais palavras para ele. —E de que adianta isso — falou Kleist —, se ninguém sabe o que ele está sinalizando? De que vai servir pra ele? —Mas Simon não é um sujeitinho qualquer, é? Ele é o filho do marechal. Eles podem pagar alguém para ler seus sinais e falá-los em voz alta. —Pescoço de Cisne pagaria — disse Henri Embromador. Mas isso não estava nos planos de Cale. —Ainda não — falou ele, olhando para Simon. — Acho que ele merece se vingar do pai e de todos os outros com exceção da Pescoço de Cisne. Precisa fazer algo grande, algo que dê uma lição neles. Vou encontrar alguém e pagar do meu bolso. Embora essa fosse sem dúvida uma explicação verdadeira dos seus motivos, não era a verdade completa. Cale sabia muito bem que Arbell Pescoço de Cisne havia mudado bastante sua conduta em relação a ele, mas não sabia o quanto. Afinal, ele não era (e por que deveria ser?) muito versado em assuntos como os sentimentos de uma bela e muito desejada jovem por alguém que ainda a apavorava. Cale sentia a necessidade de fazer algo dramático para impressioná-la e, quanto mais formidável, melhor. Foi assim que, no dia seguinte, juntamente com IdrisPukke, seu conselheiro para aquele assunto, Cale se viu no escritório do superintendente do Gabinete dos Acadêmicos, uma instituição popularmente conhecida como o Cere- bro. Nele, eram treinados os vários burocratas necessários para a administração do império. Os postos mais importantes do governo eram, obviamente, reservados para os Materazzi — não só os de governador desta ou daquela província, como qualquer cargo
de poder e influência. No entanto, todos sabiam, embora não fosse reconhecido publicamente, que poucos deles tinham inteligência ou bom senso suficientes para gerir um domínio tão vasto de forma eficiente, ou se quer geri-lo. E foi isso que levou à fundação do Cérebro, um lugar que erava estritamente sob os princípios do mérito, para que a administração não desandasse a passos rápidos rumo à incompetência e ao caos. Sempre que um filho idiota ou um sobrinho corrupto dos Materazzi era nomeado governador de um estado conquistado qualquer, um número considerável de graduados do Cérebro entrava em cena para estabelecer um limite para o estrago que ele pudesse fazer. Foi, portanto, apenas para suprir os interesses da aristocracia que se possibilitou o nascimento daquela sabedoria, que garantia aos filhos inteligentes e ambiciosos dos comerciantes (embora não aos pobres brilhantes) a oportunidade de dar vazão à sua ganância e que participassem do futuro de Memphis. Isso evitava que se envolvessem no tipo de conspiração contra o estado de coisas que havia arruinado tantas aristocracias passadas e presentes. O superintendente olhou para IdrisPukke, um homem precedido de longe por sua reputação oscilante, com certa desconfiança. Desconfiança esta que não era atenuada pelo jovem rufião mal-encarado que o acompanhava e cuja reputação era pior ainda — se não um pouco mais misteriosa. —Como posso ajudá-los? — perguntou ele da forma menos prestativa possível. —Lorde Yipond — falou IdrisPukke, retirando uma carta de um bolso interno e colocando-a sobre a mesa diante do superintendente — pediu que recebêssemos a melhor assistência que vocês puderem oferecer. O superintendente olhou desconfiado para a carta, como se ela talvez não fosse totalmente autêntica. —Precisamos do seu melhor acadêmico para ser camarista de um importante membro da família do marechal. O superintendente se animou — aquilo poderia ser útil. —Compreendo. Porém, esse tipo de função não é geralmente reservada a alguém de dentro dos Materazzi? —Geralmente, sim — concordou IdrisPukke, como se essa tradição total e irrevogavelmente gravada em pedra não tivesse a menor importância.
—Neste caso, precisamos de um camarista inteligente e instruído, ou melhor, instruído em línguas. Uma pessoa flexível, capaz de pensar por si mesma. O senhor tem alguém desse tipo? —Temos várias pessoas desse tipo. —Então nós ficaremos com a melhor delas. E foi assim que, duas horas depois, um Jonathan Koolhaus aturdido, mal Creditando na própria sorte, se encaminhou para a fortaleza e foi conduzido, com toda a deferência devida a um camarista dos Materazzi, até a área do palazzo reservada a Arbell Pescoço de Cisne e, em seguida, até a guarita. Caso Jonathan Koolhaus não tivesse escutado o ditado do grande gene ral Void — "Nenhuma notícia é tão boa ou tão ruim quanto parece em Um primeiro momento" —, estava prestes a aprender a verdade que ela continha Ele havia esperado se ver em um aposento luxuoso, na antessala de uma vida majestosa, algo que achava ser exatamente o que seus talentos mereciam Em vez disso, se viu em uma guarita amontoada de camas encostadas contra parede e com um número igualmente grande de armas de aparência perigosa de todos os tipos. Algo estava errado ali. Meia hora depois, Cale chegou com Simon Materazzi. Cale se apresentou e Simon grunhiu para o acadêmico estupefato. Então, Jonathan foi informado do que se esperava dele: ele deveria usar seu conhecimento para desenvolver uma linguagem de sinais adequada para Simon e, então, o acompanharia por toda parte para ser seu tradutor. Imagine a revoltante decepção do pobre Jonathan. Ele, que vinha esperando um futuro glorioso no topo da sociedade de Memphis, acabava de descobrir que, na verdade, seria o porta-voz do Materazzi equivalente ao idiota do vilarejo. Sentiu-se> tão mal que, se tivesse guelras, elas estariam verdes. Cale mandou um criado lhe mostrar seu quarto, que não era muito melhor do que aquele que ocupava no Cérebro. Então, ele foi conduzido até os aposentos de Simon, onde Henri Embromador estava esperando para lhe mostrar o bê-á-bá da língua de sinais dos Redentores. Isso pelo menos serviu para tirar a cabeça do desanimado Koolhaus da sua própria frustração. Sua reputa- ção de possuir um talento natural para línguas era merecida e ele logo percebeu que não havia mistério naquele negócio de língua de sinais. Em duas horas, ja havia anotado todos os gestos. Aos poucos, foi ficando intrigado. Inventar, em vez de aprender, uma nova língua poderia ser interessante. Nenhuma noticia é tão boa ou tão ruim quanto parece em um primeiro momento. De qualquer forma, não
havia nada a fazer além de entrar no jogo, por mais que ele lamentasse o fato de que sua única ferramenta de trabalho fosse um tapado. Com o passar dos dias, Koolhaus começou a rever sua opinião: Simon tinha sido mais ou menos deixado à própria sorte durante toda a vida e era totalmente indisciplinado, uma vez que jamais estivera sob o controle de nenhum sistema educacional ou de boas maneiras. Duas coisas possibilitaram a Koolhaus ensiná-lo. O medo e a adoração que Simon sentia por Cale e seu próprio desejo ardente de aprender a se comunicar com os outros, agora que havia descoberto aquele prazer maravilhoso, mesmo dentro do nível simples permitido pela língua de sinais limitada dos Redentores. Essa combinação tornou Simon um aluno mais promissor do que parecia à primeira vista e eles avançaram rapidamente, embora fossem interrompidos pelo menos duas vezes por dia pelos acessos de raiva causados pela frustração de Simon quando não conseguia entender o que Koolhaus estava fazendo. Na primeira vez que Simon teve um desses ataques, um Koolhaus alarmado mandou chamar Cale, que fez Simon calar a boca ameaçando-lhe com uma bela surra caso ele não se comportasse. Simon, que depois do incidente dos pontos, achava Cale capaz de tudo, obedeceu. Fazendo um escarcéu, Cale transmitiu a Koolhaus a autoridade para aplicar castigos terríveis, porém não especificados, a Simon e o assunto foi resolvido. Koolhaus continuou ensinando, e Simon, que acima de tudo queria agradar a Cale, continuou aprendendo. Koolhaus não deveria, sob hipótese alguma, contar a ninguém sobre o que estava fazendo e sua presença foi explicada com o pretexto de que ele era o guarda-costas provisório de Simon. Embora ignorasse as ambições mais ousadas de Cale para com seu irmão, Arbell Pescoço de Cisne estava muito ciente das outras coisas que ele fazia por Simon. Não havia jogos no Santuário — divertir-se era uma atividade pecaminosa. A coisa mais perto disso era um exercício de treinamento em que dois lados, separados apenas por uma linha que nenhum dos dois podia cruzar, tentavam acertar os membros do grupo oposto com um saco de couro atado a uma corda. Se isso lhe parece inofensivo, você deveria saber que o saco de couro era cheio de pedregulhos. Ferimentos graves eram comuns; mortes, raras, porém não inauditas. Ao perceber que os três estavam amolecendo por conta da vida fácil que estavam levando em Memphis, Cale ressuscitou o jogo, mas com areia em vez de pedras. Ainda feito para ser apenas um exercício de treinamento, os meninos ficaram impressionados ao ver como, sem a ameaça de contusões graves constantes, eles estavam rindo e se divertindo com aquilo. Na falta de um jogador, eles deixaram Simon participar. Ele era desajeitado e não tinha a elegância dos demais Materazzi, porém,
esbanjava energia e tanto entusiasmo que se machucava com freqüência. Contudo, nunca parecia se importar com isso. Eles faziam tanto barulho, rindo e zombando do fracasso e incompetência uns dos outros, que Arbell não podia deixar de ouvi-los. Muitas vezes, ela ficava olhando pela janela bem acima do jardim enquanto seu irmão na, brincava e se sentia parte de um grupo pela primeira vez na vida. Isso também calou fundo no seu coração — junto, é claro, com o estranho poder e a força de Cale, seus músculos e suor enquanto ele corria, atirava o saco, perseguia os outros e gargalhava. Mais tarde, depois de ele esperar mais ou menos uma hora em frente ao quarto dela, Riba o chamou para entrar. Embora Arbell tivesse se preparado com todo o cuidado em seu quarto para parecer casualmente bonita, Cale f aguardando no salão principal. Como aquela era a sua primeira oportunida de vasculhar os arredores sozinho, ele começou a conferir sistematicamente tudo, desde os livros sobre as mesas até as tapeçarias e o quadro grande de Urn casal que dominava o salão. Estava analisando-o com atenção quando Arbell entrou atrás dele e falou: —Este é o meu bisavô e sua segunda esposa. Eles causaram um enorme escândalo por estarem realmente apaixonados um pelo outro. Cale estava prestes a perguntar por que ela tinha um retrato daqueles dois na parede quando Arbell mudou de assunto. —Eu queria — disse ela, em um tom muito baixo e acanhado — lhe agradecer por tudo que você tem feito por Simon. Cale não respondeu porque não sabia como e porque aquela era a primeira vez que o objeto de sua confusa adoração lhe dirigia a palavra de forma tão gentil desde que ele a vira pela primeira vez e se apaixonara perdidamente. —Eu vi vocês jogando lá embaixo hoje. Ele está tão feliz por ter alguém para... — ela iria dizer "brincar", porém, percebeu que aquele rapaz que alternava momentos de brutalidade e gentileza talvez interpretasse aquilo da maneira errada — ... chamar de amigo. Estou muito grata. Cale gostou bastante de ouvir aquilo. —Não tem de quê — disse ele. — Ele aprende rápido, é só você explicar o que está acontecendo. A gente vai dar uma endurecida nele. — Assim que as palavras saíram da sua boca, Cale percebeu que aquilo não
era bem a coisa certa a dizer. — Quer dizer, vamos ensiná-lo a se defender sozinho. —Não vão ensinar nada muito perigoso para ele, não é? — disse ela. —Não vou ensiná-lo a matar ninguém, se é isso que está perguntando. —Me desculpe — falou ela, desapontada por tê-lo ofendido. — Não quis ser indelicada. Cale, no entanto, já não estava tão melindrado na sua presença quanto antes. Percebia que Arbell havia ficado consideravelmente mais afetuosa em relação a ele. —Não, você não foi indelicada. Eu que peço desculpas por sempre me ofender com tanta facilidade. IdrisPukke já falou para eu me lembrar de que sou apenas um arruaceiro e que devo ter mais cuidado diante de pessoas que tiveram uma criação decente. —Jura que ele disse isso? — falou ela, rindo. —De pés juntos. Ele não tem muito respeito pelo meu lado sensível. —E você tem um? —Não sei. Você acha que seria uma boa coisa? —Acho que seria uma coisa maravilhosa. —Então eu vou tentar... embora não saiba como. Talvez você pudesse avisar quando eu estiver me comportando feito um arruaceiro e me dar uma bronca. —Eu teria medo demais — disse ela, seus cílios adejando lentamente para cima e para baixo.
Ele riu. —Sei que todo mundo pensa que eu não sou mais bem intencionado que um gambá, mas não chegaria a matar uma pessoa só porque ela me censurou por ser um brutamontes.
—Você é muito mais do que isso. — Seus olhos continuavam
adejando.
—Mas, assim mesmo, não deixo de ser um.
— Agora você está sendo sensível demais outra vez. —Está vendo? Você me censurou e eu não matei ninguém... e vou continuar tentando melhorar. Ela sorriu e ele gargalhou, e outro passo foi dado em direção às profundezas do seu coração perplexo.
Kleist estava ensinado a Simon e Koolhaus como emplumar uma flecha com penas de ganso. Aquela era a terceira tentativa frustrada de Simon e ele ficou tão furioso que quebrou a flecha e atirou as duas metades pela sala. Kleist o encarou com calma e fez sinal para Koolhaus traduzir. —Se fizer isso de novo, Simon, você vai sentir minha bota rosca adentro. —Rosca? — perguntou Koolhaus, querendo mostrar sua repulsa diante de tanta grosseria. —Você não é tão esperto? Descubra sozinho. —Adivinhem o que eu encontrei no porão aqui debaixo? — falou Henri Embromador, entrando na sala como se alguém tivesse colocado geleia além de manteiga no seu pão. —Como diabos — disse Kleist, sem erguer os olhos da mesa — eu vou saber o que você encontrou no porão? Henri Embromador se recusou a deixar seu entusiasmo ser diminuído. —Venham ver. — Sua alegria era tão óbvia que Kleist ficou curioso. Henri os conduziu até o piso que havia debaixo do palazza e ao longo de um corredor cada vez mais escuro, até chegarem a uma porta que ele abriu com dificuldade. Uma vez lá dentro, uma janela de batente bem lá no alto lhes forneceu toda a luz de que precisavam.
—Eu estava conversando com um dos velhos soldados, que estava me contando um monte de histórias de guerra, interessantes, por sinal, daí ele mencionou que, uns cinco anos atras, eles estavam em uma missão de busca nas Terras Crestadas atrás de Gurriers e toparam com uma carreta dos Redentores que tinha se separado do comboio. Tinha só uns dois Redentores por perto, então eles os enxotaram dali e confiscaram a carreta. — Ele andou até onde estava uma lona e a puxou para o lado. Debaixo dela, havia uma enorme coleção de relíquias: forcas sagradas de vários tamanhos feitas de madeira e metal; estátuas da Sagrada Irmã do Redentor Enforcado; os dedos das mãos e dos pés enegrecidos de diversos mártires preservados em pequenos recipientes decorados com motivos elaborados... um chegava a ter até um nariz, ou pelo menos era o que Henri Embromador achava... depois de setecentos anos, não dava para saber direito. Havia o antebraço direito de São Estevão da Hungria e também um coração em perfeito estado de conservação. Koolhaus olhou para Henri Embromador. —O que é tudo isso? Não entendo. Henri Embromador ergueu um pequeno frasco três quartos cheio e leu o rótulo: —Isto aqui é "óleo santo que pingou do caixão de São Walburga". Kleist perdeu a paciência, uma vez que a pilha de relíquias reavivara más lembranças. —Não me diga que você trouxe a gente até aqui para isso. —Não. — Ele seguiu até uma lona menor e, desta vez, afastou-a como no clímax do truque do mágico que eles tinham visto no palazzo na semana anterior. Kleist riu. —Bem, agora pelo menos você vai deixar de ser inútil. Espalhado pelo chão havia uma série de bestas leves e pesadas. Henri Embromador apanhou uma com um sistema de engrenagem dentada. —Olha só, uma balista. Aposto que dá pra fazer algo especial com isso. E isto aqui... — Ele apanhou uma besta pequena com o que parecia uma caixa em cima. — Acho que esta aqui é uma arma de
repetição. Já ouvi falar delas, mas nunca tinha visto uma antes. —Parece um brinquedo de criança. —Vamos ver depois que eu fizer uns dardos. Elas estão todas sem. Os Materazzi provavelmente os deixaram para trás... não sabiam o que eram. Simon fez alguns gestos com os dedos para Koolhaus. —Ele está preocupado com o que você disse sobre Henri. Kleist pareceu confuso. —Eu não falei nada. —Sobre ele ser um inútil. Simon quer que você peça desculpas ou vai sentir a bota dele rosca adentro. Era comum Simon não entender a maneira como os meninos se comunicavam. Antes de conhecê-los, estava habituado apenas a insultos diretos ou bajulações diretas. Kleist encarou Simon. Os dedos de Koolhaus corriam enquanto ele falava. —Henri Embromador é o que os Materazzi chamam... — Ele se esqueceu qual era a palavra e começou a buscá-la de volta. — Um cechino... um atirador. A única arma que ele usa é a besta. Duas horas depois, Cale apareceu na guarita e a notícia das bestas o colocou imediatamente de mau humor. —Vocês mandaram Simon e Koolhaus não saírem falando por aí? —E por que precisaríamos fazer isso? — perguntou Kleist. —Porque — respondeu Cale, já irritado de verdade — eu não vejo nenhum bom motivo para alguém ficar sabendo que Henri é um atirador. —E tem algum mau motivo? —O que eles não sabem não pode nos prejudicar. Quanto menos souberem sobre a gente, melhor. —Essa é boa, vindo de alguém que se exibiu daquele jeito no jardim de verão — falou Kleist.
—Cale — disse Henri —, como eu posso tirar as bestas lá debaixo ou fazer qualquer coisa com elas sem ninguém saber? Preciso fazer os dardos e preciso praticar. Mas, de qualquer forma, já era tarde demais. Dois dias depois, os três foram convocados para uma audiência com o capitão Albin. Ele parecia estar mais achando graça do que qualquer outra coisa. —Você não me parece fazer o tipo assassino, Henri. —Não sou um assassino, sou apenas um atirador. —Jonathan Koolhaus disse que você era um cechino. —Não dá para levar Koolhaus a sério. —Então você é um atirador que não mata gente. Para que serve você, então? Ofendido, Henri Embromador se recusou a cair naquela armadilha, mas o resultado daquilo tudo foi que Albin exigiu uma demonstração. —Fui informado de um certo dispositivo. Gostaria de vê-lo em ai
—Não é só um. São seis deles.
—Que seja, seis. O Campo dos Sonhos seria um local adequado?
—Qual o tamanho dele?
—Uns 300 metros.
—Não.
—De que você precisa?
—De uns 600.
Albin riu.
—Você está me dizendo que pode atingir um alvo a 600 metros de distância com essas coisas?
—Só com uma delas.
Albin fez cara de desconfiado.
—Imagino que possamos fechar a extremidade ocidental do Royal Park Daqui a cinco dias, então?
—Preciso de oito. Tenho que fazer alguns dardos, e as bestas precisam de cordas novas.
—Muito bem. — Ele olhou para Kleist. — Koolhaus me disse que você é um arqueiro.
—Ele tem a boca grande demais, esse Koolhaus.
—Independente do tamanho da boca dele, é verdade?
—Sou melhor do que qualquer um que o senhor já tenha visto.
—Então também teremos uma demonstração sua. E quanto a você, Cale, tem mais alguns truques escondidos debaixo da cartola? Oito dias depois, um pequeno grupo de generais Materazzi, o marechal, que havia convidado a si mesmo, e Vipond se encontraram atrás das grandes telas de lona geralmente usadas para arrebanhar cervos na frente de damas da sociedade que querem caçar um pouco. Albin, tão incansavelmente cauteloso quanto Cale, havia decidido que seria melhor manter a demonstração em segredo. Ele não saberia dizer por que, mas os três meninos estavam sempre escondendo alguma coisa e eram, portanto, imprevisíveis. E havia algo naquele menino Cale que sempre prometia caos. Melhor prevenir do que remediar.
Cinco minutos depois do início da demonstração, Albin percebeu que havia cometido um erro terrível. Não é fácil aceitar, não nos recônditos mais profundos da alma, que, por motivos de nascimento, outras pessoas menos capazes, trabalhadoras, inteligentes e dispostas a aprender devam sempre ter precedência no que o poeta Demidov chama de "a grande pocilga da vida . Uma vez que sempre esteve tão próximo de Vipond — um homem trabalhador, inteligente e de talento extraordinário —, a sensação de justiça pueril que ainda se escondia na alma de Albin havia ignorado
conscientemente o fato de que aquele aristocrata poderia facilmente ter sido chanceler caso fosse um completo imbecil. Os generais que aguardavam o início da demonstração eram mais ou menos competentes como tais do que qualquer outro grupo selecionado por virtude de seus parentes. Em Memphis, padeiros, cervejeiros, pedreiros todos respeitavam o direito de nascença com tanta rigidez quanto qualquer duquesa Materazzi. Você é um idiota, pensou Albin com seus botões, e merece essa humilhação. O problema não era apenas os três serem crianças — e muito estranhas, por sinal —, mas também o fato de não serem nem mesmo comuns. Era possível respeitar um pedreiro ou um ferreiro; até mesmo ser rude com um criado era considerado vulgar pela maioria dos Materazzi. Porém, aqueles meninos não possuíam identidade, não faziam parte de nada. Eram migrantes e, pior ainda, um deles tinha ido longe demais. Não que os generais fizessem vistas grossas à questão dos abusos do Mond e de Solomon Solomon — considerado por todos um brutamontes; mas corrigir esses desvios era da alçada dos próprios Materazzi. Questões como injustiças contra os membros das classes inferiores deviam ser resolvidas com discrição, porém, se não fossem, paciência. Não cabia à parte ofendida fazer justiça com as próprias mãos de forma tão eficaz e humilhante. O fato de Cale ter sanado seu próprio problema era uma ameaça inquietante. E talvez eles tenham razão, pensou Albin.
O primeiro foi Kleist. Doze soldados de madeira, geralmente usados para treino com espada, haviam sido posicionados a 300 metros de distância. Os Materazzi estavam habituados a arcos, contudo, os utilizavam essencialmente para caça; eram artefatos elegantes e bonitos importados a custos exorbitantes. O de Kleist era a coisa mais próxima de um cabo de vassoura que tinham visto na vida. Parecia impossível vergar algo tão feio. Ele apoiou a parte de baixo do arco no chão, firmando-o com o peito do pé esquerdo. Segurando a corda logo antes do laço na ponta, começou a vergálo. Mais grosso do que o polegar de um homem gordo, ele se curvou lentamente sob a força incrível de Kleist, que por fim prendeu o laço ao ilhó. Tentou, é claro, demonstrar o mínimo de esforço possível ao vergar um arco que só poderia ser subjugado pelo mais forte dos homens. Voltando-se para o semicírculo de flechas enfiadas no chão as suas costas, ele puxou uma, enfiando-a na corda do arco, puxando-a para trás na direção da bochecha, apontando e disparando. Tudo isso foi feito em um só movimento gracioso, com uma flecha sendo atirada a cada cinco segundos. Ouviu-se 11 baques idênticos à medida que as flechas atingiam seus alvos — e um erro silencioso. Um dos homens de Albin saiu correndo de trás de um muro protetor de traves de madeira e confirmou o placar balançando duas bandeirolas: 11 de 12. O marechal aplaudiu com entusiasmo, ao que os generais seguiram sua deixa, nem tão entusiasmados assim.
—Ah, muito bem! — falou o doge. Irritado com a reação chocha dos generais, Kleist agradeceu com um menear ressentido da cabeça e se afastou para que Henri Embromador mostrasse o que ele podia fazer.
—Existem três tipos básicos de bestas — começou ele alegremente con vencido de que a platéia compartilharia da sua empolgação. Ele ergueu a mais leve das duas armas que descansavam em seus suportes à sua frente.— Esta aqui é a besta de um pé. Nós a chamamos assim porque você precisa colocar um pé aqui. — Ele posicionou o pé direito no estribo que havia em cima da besta, prendeu a corda em um gancho afixado ao seu cinto e empurrou o pé para baixo ao mesmo tempo em que endireitava as costas, deixando o mecanismo de disparo agarrar a corda e encaixá-la na posição correta.
—Então — disse Henri Embromador, sua alegria diminuindo à medida que ele notava os olhares de reprovação dos generais —, eu posiciono o dardo e... — Ele se virou, apontou e atirou. Grunhiu de alívio ao ouvir o barulho surdo, alto mesmo a 300 metros de distância, do dardo atingindo seu alvo.
—Ah, belo tiro! — falou o doge.
Os generais ficaram encarando Henri não só indiferentes, como também emburrados e desdenhosos. Como havia esperado que a potência e precisão do disparo fossem impressionar, ele perdeu imediatamente a confiança e começou a ficar titubeante. Voltou-se para a besta seguinte, muito maior, mas com um design praticamente igual.
—Esta aqui é a besta de dois pés. Ela se chama assim porque a gente coloca... hum... dois pés no estribo... em vez de... hã... um só. Isso significa — acrescentou ele sem convicção — que ela te dá uma potência maior ainda.
—Ele repetiu os movimentos que fizera antes e soltou o dardo na direção do segundo alvo, porém, desta vez, ele o atingiu com tanta força que partiu a cabeça do soldado de madeira em duas.
O silêncio de desaprovação ficou tão frio quanto o gelo no topo da grande geleira de Salt Mountain. Se fosse mais velho ou mais experiente na arte das demonstrações, Henri Embromador teria parado e diminuído seu prejuízo. No entanto, como não era nenhuma das duas coisas, ele prosseguiu rumo a seu último grande erro. Ao seu lado, Henri tinha coberto
um objeto volumoso com uma das lonas do porão do palazzo. Desta vez, no entanto, não houve o ardor de um mágico entusiasmado. Com a ajuda de Cale, ele puxou a lona delado para revelar uma besta de aço duas vezes maior do que as últimas duas, mas presa a um poste grosso assentado com firmeza no solo. Havia uma grande bobina afixada à parte de trás da besta. Henri Embromador começou a girá-la e gritar por sobre o ombro. —Essa aqui é muito lenta para o campo de batalha, é claro, mas usando um sarilho e cordas de aço para o arco, dá para atingir um alvo a até meio quilômetro de distância.
Essa afirmação foi recebida com algo além de desaprovação fria. Ouviram-se claramente exclamações de incredulidade. Uma vez que ele não havia compartilhado as possibilidades de sua nova descoberta com Cale ou Kleist, estes estavam igualmente incertos. Aquele ceticismo, no entanto, animou Henri Embromador. Ele ainda era jovem, tolo e inocente o bastante para acreditar que, se você provar que as pessoas estão erradas, elas não o odiarão por isso. Henri fez sinal para um dos homens de Albin levantar uma bandeirola. Após um breve intervalo, outra bandeirola na extremidade oposta do parque foi erguida em resposta e uma segunda lona foi puxada de cima de um alvo pintado de branco de cerca de um metro de diâmetro. Henri posicionou o ombro na coronha da besta, fez uma pausa dramática e disparou. Ouviu-se um som métrico altíssimo quando a meia tonelada de potência contida no aço e na corda de cânhamo foi liberada. O dardo pintado de vermelho zuniu adiante como se impulsionado por um demônio particular e sumiu de vista em direção ao alvo. Engenhosamente, Henri havia coberto o dardo de tinta em pó vermelha, então, quando ele atingiu o alvo, o pó se espalhou dramaticamente por sobre a superfície branca. Houve arquejos de espanto e mais resmungos ainda. Até mesmo, e especialmente, de Kleist e Cale. Aquela tinha sido uma demonstração de habilidade extraordinária — embora nem tanto quanto parecia. Henri Embromador levara várias horas para armar e estabilizar a besta com sarilho no lugar exato e ajustar o arco para aquela distância cravada.
Fez-se um longo silêncio que o marechal tentou ocultar andando até Henri Embromador e fazendo uma série de perguntas.
—É mesmo? Minha nossa! Que incrível!
Ele chamou seus generais e eles se puseram a examinar a besta com todo o entusiasmo de uma duquesa chamada para inspecionar um cachorro morto.
—Bem — falou um deles por fim —, se um dia precisarmos matar alguém a uma distância segura, já sabemos a que recorrer.
—Não fale assim, Hastings — ralhou o marechal como um tio desaprovador, porém ainda brincalhão. Ele se voltou para Henri. — Não dê atenção a ele, meu jovem, eu achei isto fascinante. Muito bem. Dito isso, a demonstração acabou e o marechal e seus generais foram embora. —Você deu sorte — falou Cale para Henri — de ele não ter lhe dad um murro no queixo para calar sua boca. —Aquela besta — falou Kleist, meneando a cabeça para o gigante d aço parafusado ao poste. — Quantas horas você levou para botála para fazer aquilo? —Não muitas — mentiu Henri. Fez-se um breve silêncio. —Eu aprendi uma palavra nova no mercado de Memphis um dia desses — falou Kleist. — Caô. —Não há motivo — falou Vipond para os três meninos em seu gabinete no dia seguinte — para vocês entenderem como as coisas funcionam entre os Materazzi, mas está na hora de aprenderem assim mesmo. Os militares fazem suas próprias leis e estão subordinados apenas ao marechal. Embora eu o aconselhe em assuntos políticos, tenho bem menos influência quando a questão é guerra. Ainda assim, devo tirar vantagem da guerra em geral e mais ainda dos> seus talentos consideráveis para a violência em particular. Embora muito me envergonhe — disse ele, sem vergonha nenhuma —, posso necessitar das suas habilidades de tempos em tempos e é por isso que vocês precisam compreender algumas coisas. O capitão Albin é excelente no que faz, porém, não é um Materazzi, e, ao permitir que os generais testemunhassem sua demonstração, mostrou ignorar algo que certamente não ignora mais e do qual seria aconselhável vocês também ficarem cientes. Os Materazzi possuem uma aversão profunda a matar sem risco. Consideram isso totalmente indigno deles, da alçada de matadores e assassinos comuns. As armaduras dos Materazzi são as melhores do mundo e é exatamente por isso que custam os olhos da cara. Muitos deles levam vinte anos para se livrarem da dívida contraída na compra de uma so armadura completa. Está abaixo deles lutar contra oponentes desprotegidos e sem treinamento. Os Materazzi pagam essas quantias exorbitantes de modo a lutar com homens do mesmo nível deles, para que
possam matá-los ou morrer por suas mãos e conservar seu status mesmo na morte. Que tipo de status se consegue massacrando um pivete ou um carniceiro? —Ou sendo massacrado por eles — disse Cale. —Exato — falou Vipond. — Tente enxergar as coisas do ponto de vista deles. Não somos pivetes ou carniceiros, somos soldados treinados — disse Kleist. —Não quero soar ofensivo, mas vocês não têm vulto social. Usam armas e táticas que desafiam tudo em que os Materazzi acreditam. Para eles, vocês são Ljna espécie de heresia. De heresia vocês entendem, não é? —E que diferença faz? — disse Cale. — Um arpão ou uma flecha não sabe quem foi seu avô por parte de mãe nem se importa com isso. Matar é matar, da mesma forma que um rato com um dente de ouro continua sendo um rato. —Está certo — falou Vipond —, mas você não precisa gostar para entender que há trezentos anos esse é o estilo dos Materazzi e que eles não vão mudar só porque você acha que deveriam. — Ele olhou para Kleist. — Alguma de suas flechas consegue perfurar uma armadura Materazzi? Kleist deu de ombros. —Não sei, nunca atirei em nenhum Materazzi de armadura. Mas ela teria que ser boa pra cacete para agüentar uma flecha de 125 gramas a 100 metros de distância. —Então precisamos dar um jeito de você testar. Esse arco de aço seu, Henri. Os Redentores têm muitos deles? —Só tinha ouvido falar deles antes, nunca tinha visto nenhum. Meu mestre só havia visto dois, então acho que não. —Eu vi o tempo que ele demorou a ser carregado. Os Materazzi tiveram razão em desconsiderá-lo para o campo de batalha. —Eu disse isso quando o mostrei para o senhor — protestou Henri Embromador. — Um dardo de uma daquelas outras bestas consegue
atravessar armaduras. Já vi acontecer. Já fiz acontecer. —Mas e quanto a uma armadura Materazzi? —Deixe-me testar. —No seu tempo. Vou mandar um dos meus secretários e um dos meus conselheiros para assuntos militares conversarem com vocês amanhã. Quero tudo que sabem sobre as táticas dos Redentores no papel, entendido? Os três pareceram ressabiados quanto àquilo, mas não discordaram. Excelente. Agora saiam daqui.
28
Na história dos "duelos, muitas vezes deve ter havido motivos urgentes levaram ao assassinato de um homem por outro. Raramente, no entanto, há registro de quais seriam eles. Os que chegaram ao nosso conhecimento con sistem em insultos fúteis, reais ou imaginados, divergências de opinião quanto à beleza dos olhos de uma mulher, comentários que teriam menosprezado honestidade de alguém como jogador de cartas e assim por diante. O notório duelo entre Solomon Solomon e Thomas Cale foi impulsionado pela questão da prioridade na escolha de cortes de bife.
Cale se envolvera no assunto porque o cozinheiro contratado para alimentar os trinta homens necessários para proteger Arbell Pescoço de Cisne noite e dia haviam reclamado sobre a péssima qualidade da comida que estavam recebendo. Criados à base de pé de defunto, os três meninos nem tinham percebido que as refeições que vinham comendo não eram lá muito boas. Os soldados reclamaram para o cozinheiro que, por sua vez, reclamou com Cale.
No dia seguinte, ele foi encontrar o fornecedor e, por falta de coisa melhor para fazer, Henri Embromador foi junto. Se Kleist não estivesse a serviço, até ele teria ido. A questão era que proteger uma mulher 24 horas por dia, por mais bonita que ela fosse, era entediante até dizer chega, especialmente se você soubesse que o perigo sob o qual ela se encontrava era uma invenção quase total. Para Cale era diferente, pois ele estava apaixonado e passava suas horas com Arbell Pescoço de Cisne ou
simplesmente olhando para ela ou colocando em ação seu plano de fazê-la se sentir da mesma forma. Plano este que estava funcionando — mesmo enquanto Cale e Henri Embromador seguiam até o mercado para resolver as coisas com o fornecedor de carne. Em seus aposentos, Arbell Pescoço de Cisne tentava arrancar histórias sobre Cale de um Kleist relutante. Sua reticência vinha do fato de ele saber muito bem que ela queria desesperadamente escutar relatos do passado de Cale que o mostrassem sob uma ótica comovente ou generosa, enquanto Kleist, quase tão desesperadamente quanto Arbell, não queria dar a Cale a satisfação de oferecer isso a ela. Arbell, no entanto, era uma interrogadora hábil e charmosa ao extremo, além de muito determinada. Durante várias semanas, ela extraíra de Kleist — e do muito mais cooperante Henri Embromador — bastante coisa sobre Cale e sua história. Na verdade, a relutância de Kleist servia apenas para convencê-la ainda mais do passado terrível do rapaz pelo qual estava se apaixonando — suas tensas e recalcitrantes confirmações dos relatos de Henri Embromador tornando-os apenas mais plausíveis.
—O que ouvi sobre a brutalidade deste homem chamado Bosco
é verdade?
— Sim.
—Por que ele escolheu Cale?
—Deve ter tirado na sorte.
—Por favor, me conte a verdade. Por que esse homem era tão cruel com ele?
—Ele é um louco, especialmente quando o assunto é Cale. Não quero dizer que ele seja tipo os loucos que você vê por aí, delirando e aos berros. Em todos os anos que passei no Santuário, nunca o vi levantar a voz uma só vez. Mas ele é doido de pedra assim mesmo.
—É verdade que ele o fez lutar até a morte com quatro homens?
—É, mas Cale só ganhou porque aquele buraco na cabeça dele significava que ele consegue antecipar o que o adversário vai fazer em seguida.
—Você não gosta dele, não é?
— Tem alguma coisa para gostar aji?
—Riba me disse que ele salvou sua vida. —Levando em conta que foi ele mesmo que a colocou em risco, eu diria que estamos quites. —O que posso fazer por você, meu jovem? — perguntou o açougueiro animado, gritando por sobre a algazarra do mercado.
Cale gritou de volta com a mesma animação.
—Pode começar parando de mandar carne de cachorro e gato morto para a guarita do Palazzo Oeste.
O açougueiro, muito menos animado depois de ouvir aquilo, apanhou um porrete de aparência perigosa debaixo do balcão e começou a contorná-lo na direção de Cale.
—Quem você pensa que é, seu bostinha, para falar comigo desse jeito?
Ele veio para cima de Cale a uma velocidade surpreendente, levando-se em conta o seu tamanho, brandindo o porrete no caminho. O menino se aga- chou enquanto o porrete zunia por sobre a sua cabeça, tirando o equilíbrio do açougueiro, que foi ajudado em sua queda na lama pelo golpe que Cale lhe deu nos calcanhares. Ele então pisou sobre o punho do homem e torceu o pé para arrancar-lhe o porrete das mãos. —Agora — disse Cale, fazendo a ponta do porrete quicar de leve sobre a nuca do seu agressor. — Nós dois vamos até o lugar em que você guarda a carne e você vai escolher o melhor que tiver para mim, e todas as semanas vai me enviar mercadorias da mesma qualidade. Estamos entendidos? —Sim!
—Ótimo. — Cale parou de dar pancadinhas com o porrete na cabeça do açougueiro e permitiu que ele se levantasse.
—Por aqui — falou o homem, sua voz cheia de ódio contido
Os três foram até um depósito atrás de uma barraca cheia de ancas e flancos de carne de boi, porco e cordeiro, além de um canto reservado para as carcaças menores de gatos, cachorros e outras criaturas que Cale não reconheceu.
—Escolha o melhor — disse Henri Embromador.
O açougueiro começou a tirar os melhores pedaços de alcatra e filé dos seus ganchos quando uma voz conhecida gritou:
—Pare!
Era Solomon Solomon, com quatro de seus soldados mais experientes Embora possa lhe parecer estranho que um homem do escalão de Solomon Solomon estivesse escolhendo carne para os seus homens, devo ressaltar que soldados estão mais dispostos a tolerar morte, ferimentos, privações e doenças do que comida ruim. Solomon Solomon dava muita importância à função de fornecer, sempre que possível, a melhor comida para seus homens, e se certificava de que os soldados soubessem disso.
—O que você pensa que está fazendo? — perguntou ele ao açougueiro.
—Estou separando cortes para a nova guarda do palazzo — respondeu ele, indicando com a cabeça Cale e Henri Embromador, cujas presenças Solomon Solomon fingiu não notar. Ele se aproximou, inspecionando com curiosidade as peças de carne, e então correu os olhos pelo depósito.
—Quero tudo isso aqui entregue ao Quartel de Tolland hoje à tarde. Mas não aquela porcaria lá no canto. — Ele então baixou os olhos para a carne separada para Cale. — Inclua isto aí, também.
—Nós chegamos aqui primeiro — falou Cale. — Esta carne já
esta reservada.
Solomon Solomon encarou Cale como se nunca o tivesse visto
na vida.
—A prioridade neste caso é minha. Você contesta isso?
Embora fizesse calor lá fora, o interior do depósito era frio, uma vez que ele era escavado fundo na rocha, com placas grossas de gelo empilhadas bem alto pelos cantos — contudo, a temperatura caiu mais ainda com a pergunta de Solomon. Não havia a menor dúvida de que algo terrível dependia da resposta de Cale. Percebendo isso, Henri Embromador tentou ser gentilmente razoável com Solomon Solomon.
—Não precisamos de muito, senhor, apenas o suficiente para trinta homens.
Solomon Solomon não olhou para Henri Embromador e, na verdade, nem pareceu ouvi-lo.
—A prioridade neste caso é minha — repetiu ele para Cale. — Você contesta isso?
—Se o senhor preferir — respondeu Cale.
Muito devagar, deixando Cale ver exatamente o que ele estava fazendo, Solomon Solomon ergueu a mão direita no que era claramente um ritual e, com a palma aberta, deu um tapa quase carinhoso na bochecha do menino. Em seguida, baixou a mão e aguardou. Cale também ergueu a mão, com o mesmo vagar, e a levou com cuidado até o rosto de Solomon Solomon. Porém, no último instante, agitou o punho com toda sua força para que o tapa fizesse um clap!, que ecoou no silêncio profundo como uma bíblia sendo fechada com força numa igreja.
Os quatro guardas, furiosos por conta do golpe de Cale, avançaram.
—Parem! — falou Solomon Solomon. — O capitão Grey virá chamá-lo hoje à noite.
—Ah, é? — disse Cale. — E por quê?
—Você vai ver.
Com essas palavras, o homem deu meia-volta e foi embora. —E quanto à nossa carne? — exclamou Cale alegremente enquanto ele ia embora.
Ele olhou para o açougueiro de olhos esbugalhados, impressionado e com medo do drama mortífero que acabara de ser encenado no seu depósito.
—Imagino que não possa confiar que você vá entregar meu
pedido.
—É mais do que vale a minha vida, senhor.
Então é melhor levarmos alguma coisa de uma vez. — Ele ergueu uma peça de carne enorme até o ombro e foi embora.
29
Assim como quando um relâmpago atinge uma árvore em uma floresta seca e o fogo resultante logo engole todo o resto, o alvoroço gerado pelo encontro no depósito do açougueiro assolou todos os lares de Memphis. Quando ficou sabendo, o marechal Materazzi quase precisou ser amarrado de tão furioso Vipond praguejou. Os dois convocaram Cale e exigiram que ele se recusasse a lutar. —Mas fiquei sabendo que, se me recusar, qualquer um pode me matar no ato. Sem aviso. Era difícil argumentar com ele quanto a isso, pois era verdade. Cale era o inocente naquela história, ninguém podia discordar. De modo que Solomon Solomon foi levado à presença do marechal e do seu conselheiro, porém, apesar de uma enxurrada aterrorizante de insultos por parte do primeiro e das ameaças claras por parte do segundo de que, se levasse aquilo adiante, ele poderia esperar uma carreira como coveiro de leprosos no Oriente Médio, Solomon Solomon continuou impassível. O marechal ficou possesso. —O senhor vai dar um fim nisso ou acabará enforcado — exclamou o marechal. —Não vou dar fim a nada nem serei enforcado — exclamou de volta Solomon Solomon. E ele tinha razão; nem mesmo o marechal poderia evitar um duelo depois que os tapas tivessem sido dados, e tampouco poderia punir os participantes. Vipond tentou apelar para a vaidade de Solomon Solomon.
—O que matar um garoto de 14 anos de idade poderia lhe trazer além de desonra? Ele não é ninguém. Não tem nem mesmo pai ou mãe, quanto mais um nome de família que mereça ser defendido em combate. Onde o senhor estava com a cabeça quando se rebaixou a este ponto?
Esse era um bom argumento, porém, Solomon Solomon lidou com ele simplesmente se recusando a responder. E ficou por isso mesmo. O marechal o despachou dali aos berros e Solomon Solomon, cheio de raiva solene, foi embora. O encontro de Cale com Arbell Pescoço de Cisne foi tão atribulado quanto se poderia imaginar. Ela o implorou para não lutar, no entanto, como a alternativa era muito pior, logo passou a criticar furiosamente Solomon Solomon e então saiu correndo para encontrar o pai e exigir que ele colocasse um ponto final naquela história. Durante sua reunião chorosa com Arbell, Cale fez questão de levar Henri Embromador junto para que ele confirmasse sua versão do ocorrido. Depois atormentada jovem foi embora, Cale viu que Henri Embromador o estava encarando, claramente sem pensar nada de generoso. —Qual o seu problema? — perguntou Cale. —Você — respondeu Henri. —Por quê? —Porque está tentando fingir que não sabia exatamente o que iria acontecer quando ele lhe perguntou se você contestava seu direito de escolher a carne antes? -— Eu cheguei primeiro. Você sabe disso. —Você vai matar ou morrer por isso...? Por alguns cortes de bife? —Não. Eu vou matar ou morrer pelo fato de ele ter me surrado mais de dez vezes sem motivo. Ninguém nunca mais vai fazer isso comigo de novo.
— Solomon Solomon não é Conn Materazzi, e também não é um punhado de Redentores sonolentos pegos de surpresa. Você está sendo idiota. Ele pode te matar. —Ah, pode? —Sim. Espero que ele concorde com você que eu sou idiota. Porque aí ele vai ficar mais surpreso ainda quando eu o quebrar como um prato.
30
O Opera Rosso é uma magnífica arena semicircular com uma vista para a baía de Memphis que deixaria ate o homem mais viajado de queixo caído. Ele se ergue de forma tão íngreme da arena em si que já houve casos de membros da platéia empolgados demais que morreram após despencar das fileiras superiores. No entanto, o propósito do II Rápido, como é chamada a vertiginosa arquibancada, é possibilitar que um público de 30 mil pessoas se reúna em volta do campo que ele circunda e ao mesmo tempo sinta que poderia tocar a cena até dos lugares mais altos. Os duelos eram de dois tipos: simples e complexos. Nos primeiros, a luta só terminava quando um dos combatentes vertesse sangue; já nos segundos, um deles tinha que morrer. A oposição do marechal aos duelos complexos não se devia tanto a sentimentos de compaixão, embora na idade madura ele já não retirasse prazer de espetáculos sanguinários daquele tipo, mas sim à tremenda confusão que eles geravam. A animosidade, as rixas e os assassinatos por vingança que um combate mortal provocava traziam tanto sofrimento que o marechal passara a invocar todo o seu poder — fosse ele formal ou informal — para se certificar de que eles não ocorressem. As lutas até a morte eram algo que só servia para causar problemas em geral e incentivar o desrespeito pela classe dominante em particular. Atualmente, os cidadãos de Memphis iam até a Arena Vermelha apenas para assistir a touradas e lutas de ursos contra cães (embora as últimas estivessem saindo de moda). Lutas de boxe profissional e execuções também ocorriam ali. Portanto, a oportunidade de assistir a dois dos seus melhores lutadores — e ninguém discordava que Cale fosse um deles — se matando em público era imperdível. Sabe-se lá quando haveria outra chance daquelas?
No dia do combate, a imensa praça diante do Opera Rosso já estava lotada desde manhazinha. As filas para as dez entradas já contavam com milhares de pessoas, e os que logo perceberam que não conseguiriam entrar zanzavam pelos mercados e feiras que surgiam durante grandes eventos como aquele, formando uma verdadeira cidade de tendas. Havia beleguins e gendarmes em toda parte, de olho em ladrões e tumultos, sabendo que uma decepção poderia se transformar numa briga feia. Todos os parasitas e gangues da cidade estavam ali, os Suedeheads com seus coletes dourados e vermelhos e botas prateadas;  os hooligans com seus suspensórios brancos e cartolas pretas; os roqueiros com chapéus de feltro, monóculos e bigodinhos. As garotas tinham vindo com tudo também: as Lollards com seus casacos longos, botas que iam até as coxas cabeças raspadas; as Tickets com seus lábios vermelhos no formato de um arco de cupido, corpetes vermelhos apertados e meias-calças negras como a noite. Ouviam-se vozes chamando, gritos, vaias e risos — além de explosões de música e sons de trombetas quando os jovens Materazzi apareceram para serem admirados e invejados. E, para cada centavo que se ganhava, metade ia para o bolso de Kitty das Lebres. Durante as execuções, o populacho costumava atirar gatos mortos nos condenados. Embora fosse considerado perfeitamente adequado no tocante a criminosos e traidores, esse era um comportamento estritamente proibido em ocasiões como aquela — não se tolerava, sob hipótese alguma, desrespeito contra um dos Materazzi. Contudo, esse tipo de proibição não impedia que os cidadãos tentassem e, no decorrer da manhã, pilhas imensas de gatos mortos —além de doninhas, cães, arminhos e um ou outro porco-da-terra — cresciam em frente das dez entradas. Ao meio-dia, um toque de cometas ressoou anunciando a chegada de Solomon Solomon. Dez minutos depois, Cale, juntamente com Henri Embromador e Kleist, passaram despercebidos pela multidão, chamando atenção apenas quando os beleguins que vigiavam as filas as fizeram parar, observando com curiosidade mórbida os meninos entrarem no Opera Rosso.
31
Nos aposentos penumbrosos debaixo da Arena, reservados aos Materazzi pres tes a tentar se massacrar mutuamente, Cale estava sentado em silêncio com Henri Embromador e Kleist, refletindo sobre o que estava por vir. Até dois dias atrás, seus pensamentos tinham sido de uma raiva e sede de vingança simples — onipotentes, porém totalmente familiares. No entanto, tudo havia mudado quando ele se deitou nu com Arbell Pescoço de Cisne na cama, sob lençóis de algodão da melhor qualidade, e compreendeu pela primeira vez na vida o poder maravilhoso do êxtase. Tente imaginar o que Cale sentiu. —Cale, o faminto; Cale, o brutalizado; Cale, o assassino — ao ser envolvido nos braços e nas pernas daquela linda jovem, nua e perdidamente apaixonada, que acariciava seus cabelos e o beijava sem parar. E agora lá estava ele, esperando em uma câmara mal iluminada, cheirando a mofo, enquanto a Arena se enchia de 30 mil pessoas que esperavam vê-lo morrer. Até dois dias atrás, o que o impulsionava era o desejo de sobrevivência: profundo, animal, repleto de fúria — no entanto, sempre houve uma parte sua que não se importava nem um pouco se ele vivia ou morria. Agora, contudo, ele se importava e muito —, de modo que, pela primeira vez em muito tempo, Cale sentia medo. Amar a vida, obviamente, é uma coisa maravilhosa, mas não naquele dia em particular. Então os três ficaram ali, Henri Embromador e Kleist notando aquele pavor totalmente inusitado vindo de alguém que tinham passado a ver como intocável, quer gostassem dele ou não. Agora, a cada grito ou viva, a cada baque de uma porta imensa ou de um ascensor, a cada barulho
e eco de máquinas invisíveis, esperança e otimismo eram substituídos por dúvida e medo. Faltando apenas meia hora, ouviu-se uma batida de leve na porta e Kleist a abriu para deixar Lorde Vipond e IdrisPukke entrarem. Eles falaram baixinho, intimidados pela atmosfera estranha no aposento escuro.
—Ele estava bem? —Sim. —Precisava de alguma coisa? —Não. Obrigado. E então um silêncio de leito de morte se fez. IdrisPukke, testemunha do massacre terrível dos Redentores contra todas as probabilidades no desfiladeiro de Cortina, estava pasmo. O chanceler Vipond, tão sábio e habilidoso, que sabia jamais ter visto uma criatura como Cale na vida, via apenas um rapaz se ncaminhando para uma morte horrorosa diante de uma multidão aos berros. Aqueles duelos, que sempre lhe pareceram simplesmente temerários e injustificáveis, agora lhe pareciam grotescos e inaceitáveis. —Deixe-me ir falar com Solomon Solomon — disse ele para Cale. — Isso é uma idiotice sem tamanho. Posso inventar uma desculpa. Deixe comigo. Ele se levantou para ir embora e algo se agitou dentro de Cale, uma coisa que lhe era tão surpreendente que ele achou que jamais poderia senti-la outra vez. Sim, impeça isso. Não quero ir em frente. Não quero. Porém, quando Vipond alcançou a porta, outra coisa — não orgulho, mas sua profunda compreensão da realidade à sua volta — o fez chamá-lo. —Por favor. Chanceler Vipond. Não vai adiantar nada. Ele quer o meu couro mais do que a própria vida. Nada que o senhor diga fará diferença. Vai acabar lhe dando uma vantagem sobre mim que só me trará prejuízo. Vipond não discutiu porque sabia que ele tinha razão. Ouviu-se uma batida forte na porta. —Quinze minutos! Então, ela se abriu.
—Ah, o vigário está aqui para vê-lo. Um homem incrivelmente baixinho com um sorriso gentil entrou, usando uma roupa preta com uma faixa branca em volta do pescoço que lembrava um pouco uma coleira de cachorro. Ele disse: —Eu vim lhe dar uma bênção. — O vigário fez uma pausa. — Se você assim quiser. Cale olhou para IdrisPukke, que tinha certeza de que ele enxotaria o homem. Ao notar isso, Cale sorriu e disse: —Mal não vai fazer. Ele estendeu a mão e IdrisPukke a apanhou. —Boa sorte, menino — disse ele, indo embora depressa. Cale assentiu para Vipond e o chanceler fez o mesmo, deixando os três garotos e o vigário sozinhos. —Podemos prosseguir? — falou o vigário em um tom agradável, como se estivesse conduzindo uma cerimônia de casamento ou batismo. Ele enfiou a mão no bolso e retirou um pequeno recipiente de prata. Então abriu a tampa e mostrou a Cale o pó que havia lá dentro. — São as cinzas da casca queimada de um carvalho — disse ele. — Acreditase que elas simbolizam a imortalidade -— acrescentou, como se aquela fosse uma opinião a qual ele, é claro, não dava muita credibilidade. — Você me permite? — Ele mergulhou o indicador nas cinzas e as espalhou numa linha curta sobre a testa de Cale. —Lembra-te, homem, tu és pó e ao pó retornarás —entoou ele no mesmo tom animado. — Mas lembra-te também que, embora teus pecados sejam escarlates, eles se tornarão brancos como a neve, e que, embora  sejam vermelhos como carmim, se tornarão puros como a lã. — Ele fechou a tampa do recipiente de prata e o enfiou de volta no bolso com um ar de missão cumprida. — Ha... bem... boa sorte.
Enquanto ele se encaminhava para a porta, Kleist falou:
—O senhor disse o mesmo para Solomon Solomon?
O vigário se virou e encarou Kleist como se tentasse se lembrar.
—Quer saber de uma coisa — falou ele, com um sorriso estranho Acho que não. — E, com essas palavras, foi embora.
Houve um último visitante. Ao escutar uma batida fraca, Henri abriu a porta e Riba se esgueirou para dentro. Henri corou quando ela apertou por um instante sua mão antes de entrar. Cale olhava para o chão, parecendo perdido. Ela esperou alguns instantes até ele erguer os olhos, surpreso.
—Vim lhe desejar boa sorte — falou ela, sua voz apressada e nervosa —, além de dizer que sinto muito e lhe dar isso. — Ela estendeu um bilhete. Cale o apanhou e rompeu o selo elegante.
—Eu te amo. Por favor; volte para mim.
Ninguém falou nada por um minuto.
—O que você quer dizer com "sinto muito"? — perguntou Cale.
—É por culpa minha que você está aqui.
Kleist bufou de escárnio, mas continuou calado. Cale olhou para ela enquanto entregava o bilhete para Henri Embromador guardá-lo.
—O que meu amigo aqui está tentando dizer é que eu sou o único responsável por tudo isso. Não estou sendo gentil. E a verdade.
Como qualquer um de nós faria em seu lugar, ela queria se certificar de que seria perdoada, de modo que levou sua angústia ao limite.
—Ainda acho que a culpa é minha.
—Como queira.
Riba pareceu tão abatida ao ouvir isso que Henri Embromador se apiedou imediatamente dela, voltando a colocar a mão sobre a sua e conduzindo-a para fora dali até um corredor mais escuro ainda.
—Eu sou tão idiota — falou ela, chorando e com raiva de si
mesma.
—Não se preocupe. Cale estava falando sério quando disse que a culpa não é sua. Ele só precisa se concentrar no agora.
—O que vai acontecer?
—Cale vai ganhar. Ele sempre ganha. Tenho que ir. — Ela apertou sua mão novamente e lhe deu um beijo no rosto. Henri acompanhou sua saída com o olhar, sentindo várias coisas estranhas, e então voltou para a sala de espera. Faltando dez minutos, Cale havia começado, de forma silenciosa e automática, a fazer seus exercícios de antes de uma luta. Kleist e Henri se juntaram a ele — braços girando, pernas alongando, os três grunhindo baixinho por conta do esforço na penumbra. Então, ouviu-se uma batida forte na porta.
—Está na hora, cavalheiros, por favoooor!
Os meninos trocaram olhares. Em seguida, depois de uma breve pausa, 1 escutaram o barulho alto de um ferrolho deslizando por uma segunda porta na extremidade oposta do aposento. Ela abriu devagar, com um rangido, e um raio de luz varou a penumbra, como se o próprio sol estivesse esperando lá fora por Cale — a luz intensa descrevendo um arco pelo ambiente outrora mal iluminado, com toda a força de uma rajada de vento que tentasse empurrá-los de volta para a segurança da escuridão.
Ao seguir adiante, Cale pôde ouvir as últimas palavras dela. "Fuja. Vá embora. Por favor. Qual a importância disso para você? Fuja."
Poucos passos depois, ele estava na soleira e, então, adentrando o sol das duas da tarde. Juntamente com uma segunda explosão de luz, o urro selvagem da multidão, como se fosse o próprio fim do mundo, atingiu seus olhos e ouvidos. À medida que avançava 3, 4, 5 e depois 6 metros e seus olhos se ajustavam, ele divisou não a muralha de rostos dos 30 mil que se agitavam, vaiavam, torciam e cantavam, mas, a princípio, somente o homem que aguardava no centro da arena, segurando duas espadas embainhadas. Tentou não olhar para Solomon Solomon, porém, não conseguiu evitar. Cerca de 30 metros à sua esquerda, Solomon Solomon andava com as costas eretas, os olhos fixados no homem no centro da arena. Ele era imenso, muito mais alto e espadaúdo do que Cale se lembrava, como se tivesse dobrado de tamanho desde a última vez em que o vira. Cale estava abismado consigo mesmo à medida que o terror drenava as forças que o haviam tornado invencível por quase metade da sua vida. Sua língua, seca
como areia, estava colada ao céu da boca; os músculos de suas coxas doíam, mal conseguindo sustentá-lo; seus braços, fortes como madeira de carvalho, davam a impressão de que erguê-los seria uma façanha impossível; e havia uma queimação estranha nas suas orelhas, que soava mais alta ainda do que o barulho da multidão, com suas vaias, seus gritos e trechos de canções. Ao longo do muro do anfiteatro, havia várias centenas de soldados em posição de sentido de 4 em 4 metros, alterando olhares para a platéia e para grande arena em si.
Os muito odiados Suedeheads cantavam alegremente: NINGUÉM NOS AMA, MAS NÃO ESTAMOS NEM AÍ NINGUÉM NOS AMA, MAS NÃO ESTAMOS NEM AÍ MAS NÓS AMAMOS AS LOLLARDS E OS HUGUENOTES É OU NÃO É? É OU NÃO É? É OU NÃO É? NÃO? AAAAAAAH NÃO, ACHO QUE NÃO MAS NÓS AMAMOS A VALENTIA DE MEMPHIS... Então eles ergueram as mãos bem alto acima das cabeças e bateram pai mas no ritmo de uma nova canção, flexionando os joelhos para cima e para baixo ao fazê-lo: VOCÊ TEM QUE VIVER, OU VAI ACABAR MORTO VOCÊ TEM QUE VIVER, OU VAI ACABAR MORTO VOCÊ TEM QUE VIVER, OU VAI ACABAR MORTO VOCÊ TEM QUE VIVER, OU VAI ACABAR MORTO Tentando superar a performance deles e provocar os lutadores ao mesmo tempo, as Lollards de cartola cantavam com animação: EI, EI, QUEM É VOCÊ? EI, EI, QUEM É VOCÊ? SEU NOME É RUPERT? SEU NOME É FRED? JÁ, JÃ VAI COMER GRAMA PELA RAIZ. AH, NÃO SOMOS DE FOFOCA, NEM GOSTAMOS DE FALAÇÃO MAS LOGO VOCÊ ESTARÁ DEITADO DENTRO DE UM CAIXÃO DEITADO NUM CAIXÃO, SEM CHORO NEM VELA SEM AS PARTES DE BAIXO, COM A BOCA BANGUELA EI, EI, QUEM É VOCÊ?
Cada passo adiante arrastava Cale mais para baixo, como se a fraqueza e o medo, vivos dentro dele pela primeira vez em anos, fizessem miséria dentro das suas entranhas e de seu cérebro. Então finalmente chegou, parando ao lado de Solomon Solomon, cuja ira e potência queimavam ao longo de seu corpo como um segundo sol. O mestre de armas gesticulou para a esquerda e para a direita, indicando dois. Então exclamou:
—BEM-VINDOS À ARENA VERMELHA! Ao ouvir isso, a multidão, quase em uníssono, se levantou aos berros exceto pelo setor reservado aos Materazzi, onde os homens vibravam e as mulheres aplaudiam com indiferença. Aquela não era, de qualquer forma, a nata da sociedade Materazzi, que não se associaria de bom grado a algo tão vulgar quanto aquela ocasião ou o próprio Solomon "não exatamente um de nós" Solomon, que, embora respeitado por sua posição na hierarquia militar, era bisneto de um homem que havia feito sua fortuna como peixeiro. Isso não significa dizer que alguns dos membros ilustres do clã Materazzi não tivessem chegado atrasados — entre eles, um relutante marechal — para assistir ao evento de seus camarotes cuidadosamente recolhidos, enquanto comiam camarões pescados naquela manhã. No setor reservado para o Mond, o ódio inflamado que eles nutriam por Cale irrompia na forma de um mar de braços desferindo golpes em sua direção e de um coro de zombaria.
—BOOM LACALACALACA BOOM LACALACALACA TAC TAC TAC.
Das alturas da Arquibancada Oeste, algum marginal ou hooligan talentoso, tendo escapado da revista dos beleguins, atirou um gato morto que descreveu um arco imenso no ar, seu corpo aterrissando com um baque na areia a apenas 6 metros de Cale, seguido por um alegre rugido de aprovação da platéia.
O pânico tomou conta da alma definhada de Cale, como se uma espécie de reservatório de medo tivesse sido represado dentro dele durante todos aqueles anos e agora suas comportas se arrebentassem, levando embora toda a sua petulância e coragem, toda a sua ousadia e vontade de poder. Sua própria espinha dorsal tremia de covardia quando o mestre de armas lhe entregou a espada. Ele mal conseguia erguer a mão para
desembainhá-la, de tão fraco que se tornara. A arma lhe parecia tão pesada que ele a deixou cair até pender frouxa ao longo de seu corpo. Tudo havia se resumido a sensações — o gosto amargo da morte e do terror em sua boca; o sol brilhante e ardente; o barulho da multidão e a muralha de rostos. E então o mestre de armas levantou as mãos. A platéia caiu em silêncio. Em seguida, ele deixou os braços caírem paralelos ao corpo. A platéia urrou como uma só fera e Cale observou o homem que estava prestes a massacrá-lo erguer a espada e, com cautela e ponderação, avançar rumo ao menino trêmulo e dominado pelo pânico.
Algo no íntimo de Cale clamou por proteção, implorando para ser salvo: IdrisPukke, me salve; Leopold Vipond, me salve; Henri e Kleist, me salvem; Arbell Pescoço de Cisne, me salve. No entanto, ninguém poderia ajudá-lo, exceto o homem que ele mais odiava no mundo. Foi o Redentor Bosco quem o salvou do golpe violento e do sangue vermelho se espalhando pela areia; os anos de violência em suas mãos, o horror e o medo diários: foram  eles que vieram ao seu resgate. A começar pelo seu peito, a bile do pavor começou gelar. À medida-que Solomon Solomon o circundava lentamente, aquela frieza se espalhou para baixo pelo seu coração, estômago, pelas suas coxas e, por fim, pelos seus braços. Em questão de segundos, como uma droga miraculosa que suprimisse uma dor agonizante, sua velha conhecida indiferença ao medo e à morte, entorpecente e salvadora, estava de volta. Cale era ele mesmo novamente.
Solomon Solomon, a princípio desconfiado da imobilidade de Cale investiu rapidamente para desferir seu ataque, espada erguida, olhos decididos con trolado, o arauto habilidoso da morte violenta. Ele chegou à distância de ataque então se deteve por um instante. Ambos fitaram dentro dos olhos um do outro A platéia se calou. Então, todas as imagens pareceram se afunilar diante de Cale — uma senhora de idade que soma para ele como uma avó bondosa, enquanto passava um dedo pela própria garganta; o gato morto tão rígido no chão que parecia um brinquedo malfeito; a jovem dançarina à beira da arena, com sua boca escancarada de espanto e medo. E seu oponente arrastando os pés na areia, o barulho áspero muito mais alto do que a platéia, que parecia estar muito distante. E então Solomon Solomon reuniu suas forças — e desferiu o golpe.
Cale se agachou e passou por sob o braço dele, golpeando para baixo enquanto a espada de Solomon Solomon tentava cortá-lo em dois. Os dois haviam trocado de lugar — a multidão urrava, desesperadamerite entusiasmada e confusa. Nenhum deles tinha sido tocado. Então, algo começou a pingar da mão de Cale e, depois, a jorrar. O mindinho de sua
mão esquerda tinha sido amputado e estava caído na areia, pequeno e ridículo.
Cale deu um passo para trás, atingido finalmente pela dor — terrível, intensa e excruciante. Solomon Solomon ficou parado, assimilando com atenção o sangue e a agonia, seu serviço ainda incompleto, mas o ato de matar gravemente iniciado. Quando a platéia se deu conta do sangue na areia, um rumor foi crescendo aos poucos, ondulando ao redor da Arena. Houve vaias de parte da ralé, agora torcendo pelo pobre-diabo, vibração dos Materazzi e mais zombaria vinda do Mond. Então a platéia se calou devagar, à medida que Solomon Solomon, sabendo que tinha tudo sob controle, esperava que a perda de sangue, a dor e o medo da morte fizessem o trabalho em seu lugar.
— Não se mova — falou Solomon Solomon — e talvez eu acabe com você rápido. Embora não possa prometer nada.
Cale o encarou como se estivesse um pouco intrigado. Então girou a espada na mão, como se testando seu peso, e desferiu um golpe lento e preguiçoso contra a cabeça do oponente. Anos de instinto que o obrigavam a se mover diante de um ataque tão fraco fizeram Solomon Solomon avançar para cima de Cale, suas coxas enormes impulsionando-o para a frente como um velocista ao ataque. Porém, no seu segundo passo, ele caiu como se tivesse sido atingido por um dos dardos de Henri, desabando de cara e de peito na areia.
A multidão sorveu o ar como uma só criatura — um grande arquejo de espanto.
O golpe que Cale dera para baixo em seu primeiro ataque não tinha errado o alvo. Enquanto a primeira estocada de Solomon Solomon arrancava seu dedo, Cale cortara-lhe o tendão do calcanhar com a espada. Foi por isso que, além de sentir a agonia da dor em sua mão, ele havia ficado tão intrigado que Solomon Solomon continuasse aparentemente ileso. E por isso, também, que tinha sido tão negligente em seu segundo golpe — queria apenas fazê-lo se mexer.
Apesar do seu medo e da sua perplexidade, Solomon Solomon havia se erguido levemente do chão, apoiando-se sobre o joelho de sua perna boa e brandindo a espada na direção de Cale para mantê-lo longe.
—Seu bostinha imundo! — falou ele em um tom pouco mais alto que um sussurro. Então berrou numa explosão imensa de raiva e
frustração.
Cale se manteve fora de alcance e aguardou. Outra explosão de ira e humilhação por parte de Solomon Solomon. Cale ficou apenas observando à medida que o outro começava a aceitar sua derrota.
—Muito bem — falou Solomon Solomon, cheio de amargor e raiva. — Você venceu. Eu me rendo.
Cale olhou para o mestre de armas.
—Me disseram que isto aqui tinha que continuar até um de nós morrer. — disse Cale.
—A misericórdia é sempre possível — falou o mestre de armas.
—Agora é assim? Porque não me lembro de ninguém mencionar isso antes.
—Um oponente derrotado pode pedir misericórdia. Não é necessário concedê-la e é proibido censurar o vencedor se ele se recusar. Mas repito que a misericórdia é sempre possível. — O mestre de armas olhou para o homem ajoelhado. — Se o senhor a quiser, Solomon Solomon, precisa pedir por ela.
Solomon Solomon balançou a cabeça como se travasse uma grande batalha dentro de si mesmo, o que de fato estava acontecendo. Já dentro de Cale, houve em primeiro lugar perplexidade, depois uma indignação imensa e crescente. —Eu peço pela sua... —Cale a boca! — gritou Cale, correndo os olhos entre seu opone derrotado e o mestre de armas. — Seus hipócritas! Vocês me arrastam até aqui  numa coleira e, quando consideram conveniente, acham que podem mudar as regras porque as coisas não saíram conforme o esperado. É só isso que significa toda essa conversa fiada sobre nobreza: que vocês têm o poder de fazer tudo sai do jeito que querem. Tudo o que diz respeito a vocês não passa de um monte de mentiras. —Ele é obrigado — disse o mestre de armas — a lhe pagar 10 mil dólares para readquirir o direito sobre a própria vida.
Cale desferiu um golpe e, soltando um grito, Solomon Solomon desabou no chão, um talho profundo em seu antebraço. —Diga-me — falou Cale —, você vale mais ou menos agora? Você me bateu sem motivo ou piedade, mas agora olhe só onde está. Isso é ridículo. Quantas dezenas você já matou sem dar chance de eles pensarem duas vezes? Agora que é a sua vez, vem choramingar pedindo para abrirem uma exceção? —Cale bufou de assombro e repulsa. — Por quê? Esse é o seu destino; um dia será o meu. Qual é a sua, seu velho? E, com essas palavras, Cale foi até Solomon Solomon, puxou sua cabeça para cima pelos cabelos e o liquidou com um só golpe na nuca. Ele largou o corpo tornado frouxo na areia, com o rosto para cima, os olhos abertos e vazios, um filete de sangue ainda escorrendo do nariz. Logo ele também parou, e esse foi o fim de Solomon Solomon. Durante os últimos segundos de vida do seu oponente, Cale não havia registrado nenhuma outra coisa, nem mesmo a dor em sua mão esquerda ou a multidão. A raiva o ensurdeceu para todo o resto. Então, a dor e a multidão retornaram. O som da platéia era estranho — não havia vibração, exceto a que vinha de alguns pequenos setores embriagados demais para saber o que estavam testemunhando, e apenas alguns gritos e vaias, mas, no geral, o que se via era espanto e descrença. Do banco onde lhes disseram para esperar, Henri Embromador e Kleist observaram a cena em estado de choque. Foi Henri quem percebeu o que Cale faria em seguida. —Vá embora — disse ele baixinho. E então gritou para Cale: — Não! Tentou andar até lá, mas foi impedido por um beleguim e por um dos soldados. No meio do Opera Rosso, Cale girou o cadáver de costas, deixou cair a espada na sua barriga e então separou-lhe as pernas e começou a arrastá-lo pelo chão rumo à área reservada para os Materazzi. Ele levou cerca de vinte segundos para chegar, os braços do morto estendidos às suas costas, sua cabeça quicando na superfície não muito plana da arena e o sangue deixando um irregular rastro vermelho vivo. O mestre de armas fez sinal para as tropas diante da platéia se juntarem. As mulheres e os homens Materazzi e os jovens do Mond em um silêncio quase embasbacado.
Então Cale, ainda segurando as pernas de Solomon Solomon debaixo dos braços, parou, olhando para a platéia como se ela não valesse mais que 10 centavos, e largou os pés do cadáver com um baque no chão. Ele levantou os braços bem alto acima da cabeça e soltou um grito maligno de triunfo para a multidão. O mestre de armas fez sinal para o beleguim deixar Henri e Kleist arrastá-lo dali. Enquanto eles corriam, Cale começou a andar para cima e para baixo diante dos soldados e da platéia que eles protegiam, parecendo um furão buscando uma maneira de entrar em um galinheiro. Então, começou a esmurrar o peito com força com a mão direita três vezes, gritando com prazer a cada uma delas: "Minha culpa! Minha culpa! Minha máxima culpa!" Aquilo era incompreensível para a platéia, mas eles não precisaram de tradução. Explodiram de fúria e pareceram oscilar para a frente como uma só criatura, urrando seu ódio em resposta. Foi quando os dois meninos o alcançaram, colocando os braços sobre seus ombros. —E isso aí, Cale — falou Kleist enquanto o apertava com cuidado. — Por que você não os enfrenta um por um? —Está na hora de sair daqui, Thomas. Venha com a gente. Gritando insultos para a multidão por todo o caminho, ele deixou que o guiassem de volta até a porta da sala de espera. Trinta segundos depois, ela havia se fechado atrás dos três e eles estavam sentados sob a luz fraca, entorpecidos por um assombro terrível. Fazia apenas dez minutos que ele saíra dali. Em seu palazzo, Arbell Pescoço de Cisne aguardava notícias em um frenesi de agonia insustentável. Não suportava a idéia de ir até a Arena para vê-lo morrer, como tinha certeza de que morreria. Toda a sua intuição lhe gritava que ela havia visto seu amor pela última vez. Então, ouviu-se uma agitação estranha atrás da sua porta. Ela se escancarou e uma Riba de olhos arregalados e ofegante entrou correndo no quarto. —Ele está vivo! Você pode imaginar a cena quando eles ficaram sozinhos naquela noite -— os mil beijos de alegria, as carícias, a enxurrada de juras de amor e adoração.
Se naquela tarde ele havia cruzado o Vale da Morte, à noite fora recompensado com uma visão do paraíso. No entanto, o inferno também o
acompanh — a dor do dedo perdido era intensa, muito pior do que a de ferimentos mais graves que tinha sofrido antes. Só conseguiu se concentrar em sua recepção delirante quando Henri Embromador lhe arranjou, a um preço exorbitante punhado de ópio que logo reduziu a agonia a uma dorzinha embotada.
Mais tarde naquela noite, depois de Arbell terminar sua veneração cada centímetro do seu corpo, Cale tentou lhe explicar o que havia acontecid com ele antes da luta com o falecido Solomon Solomon. Talvez tenha sido o ópio, ou a tensão e o horror absolutos daquele dia, ou então a proximidade da morte pura e simples, porém, ele teve que se esforçar para fazer sentido Cale queria se explicar para ela, mas tinha medo. No fim das contas, Arbell o interrompeu por pena da sua confusão e do seu pavor e, talvez, também por si mesma. Não queria ser lembrada do pacto que seu estranho amante tinha com a arte de matar.
—Quanto menos palavras, mais rápida a cura.
Obrigado a deixar seus aposentos antes que os guardas da manhã chegassem, Cale saiu (embora somente depois de muitos outros beijos e juras de amor) para encontrar Henri Embromador montando guarda, sozinho.
—Como você está se sentindo? — perguntou Henri.
—Não sei. Estranho.
—Quer uma caneca de chá?
Cale assentiu.
—Então coloque para fazer. Encontro você quando o outro vigia
chegar.
Dez minutos depois, Henri Embromador se juntou a Cale na guarita quando o chá estava acabando de ferver. Os dois ficaram sentados em silêncio, bebendo e fumando, prazeres que Cale havia apresentado tanto a Henri Embromador quanto a Kleist, que agora raramente se via sem uma cigarrilha entre os lábios.
—Qual foi o problema? — perguntou Henri Embromador depois de cinco minutos.
—Me bateu um cagaço. Dos brabos.
—Achei que ele fosse matar você.
—E teria matado, se não tivesse sido tão desconfiado. Ele achou que eu não estar me movendo era algum tipo de truque.
Eles ficaram em silêncio por alguns instantes.
—E daí o que houve?
—Não sei. Aconteceu em questão de segundos, como se alguém tivesse me dado um banho de água fria.
—Foi sorte, então.
— É.
—E agora?
—Ainda não parei pra pensar.
—Talvez seja bom começar.
—Como assim?
— Já deu pra gente aqui.
—Por quê? — falou Cale, empertigando-se e fingindo se concentrar em preparar outra cigarrilha.
—Você matou Solomon Solomon, depois largou o corpo dele na frente dos Materazzi e os desafiou.
—Eu os desafiei?
— A fazer o pior que eles podiam, não foi isso? — Cale não respondeu. — Imagino que o pior deles possa ser bem ruim, você não acha? E não vai ser cara a cara da próxima vez. Alguém vai largar um tijolo na sua cabeça.
—Está certo. Já entendi.
Porém, Henri Embromador não. tinha terminado.
—E quando eles descobrirem sobre você e Arbell Materazzi? As únicas pessoas que você tem para protegê-lo são Vipond e o pai dela. O que você acha que ele vai fazer quando descobrir? Marcar um casamento? Você, Arbell Materazzi, com todo o seu esplendor e toda a sua graça, aceita este jovem pivete e encrenqueiro de marca maior, Thomas Cale, como seu legítimo esposo?
Cale se levantou, exausto.
—Preciso dormir. Não posso pensar sobre isso agora.
32
Cale caiu em üm sono profundo ao raiar do dia e com as palavras dur Henri Embromador ressoando na cabeça. Ele acordou 15 horas depois com os sinos da igreja fazendo a mesma coisa. Contudo, o som não era um repicar melodioso convocando os fiéis geralmente apáticos de Memphis para um d' santo, mas sim um clangor desesperado e estridente de alarme. Saltando d cama e atravessando a porta, ele disparou com as pernas nuas pelos corredores dos aposentos de Arbell. Lá fora, já havia dez guardas Materazzi e outros cinco desciam o corredor na direção oposta. Ele esmurrou a porta.
—Quem é?
—Cale, abra.
A porta foi destrancada e uma Riba assustada surgiu, enquanto Arbell a empurrava de lado e saía.
—O que está havendo?
—Não sei. — Cale gesticulou para os guardas Materazzi e a fez voltar para dentro do quarto. — Cinco dos seus aqui. Deixe as cortinas fechadas e se mantenha fora de vista. Você vai garantir que eles fiquem no canto do quarto, longe da janela.
Ela saiu de volta para o corredor.
—Quero saber o que está acontecendo. E se for meu pai?
—Volte para dentro — exclamou Cale diante deste temor perfeitamente justificável. — E pela primeira vez na vida faça o que te mandam. E tranque a porta.
Riba pegou a aristocrata horrorizada pelo braço com delicadeza e a conduziu de volta para o quarto, enquanto os cinco guardas, espantados ao ouvir alguém se dirigindo daquela maneira a Arbell, acompanhavam as duas. Cale assentiu para o comandante dos guardas enquanto o trinco da porta se fechava com um clique às suas costas.
—Mando notícias assim que as tiver. Alguém me dê uma espada.
O comandante fez sinal para que um dos seus homens lhe entregasse sua arma.
—Que tal uma calça, também? — acrescentou ele, para a diversão dos demais soldados.
—Quando eu voltar — falou Cale —, vamos ver quem vai estar rindo. — E, com essa resposta azeda, ele saiu do quarto e se pôs a correr. Apanhou as roupas no seu quarto e, menos de trinta segundos depois, havia descido dois lances de escada e estava no pátio do palazzo. Henri Embromador e Kleist já haviam posicionado guardas ao longo dos muros e, armados respectivamente com um arco e uma besta de um pé, estavam prestes a se juntar a eles.
—E então? — perguntou Kleist.
—Nada de mais — disse Henri. — Um ataque em algum lugar depois do quinto muro; homens vestindo o que está parecendo batinas. Ou não.
—Como os Redentores podem ter chegado tão perto?
A explicação era simples. Memphis era uma cidade comercial que não era atacada há décadas, e a probabilidade de que fosse era pequena. A enorme quantidade de mercadorias compradas e vendidas todos os dias ali precisava circular livremente pelos seis muros internos feitos para fazer exatamente o oposto durante um cerco, sendo que o último tinha ocorrido há cinqüenta anos. Os muros internos haviam se tornado um estorvo durante os tempos de paz, tendo sido aos poucos perfurados por diversas entradas e saídas, túneis de acesso para lixo, água, urina e excrementos, de
modo que o papel deles como barreira havia sido bastante comprometido. Um superintendente do departamento de esgoto havia sido chantageado por Kitty das Lebres — os Materazzi puniam os pecados de pederastia com uma severidade comparável à dos Redentores — e fora ele quem conduzira os cerca de cinqüenta invasores até os arredores do quinto muro. Qualquer menção a Kitty das Lebres, no entanto, estava proibida. Enquanto o ataque era realizado contra o palazzo, o superintendente estava jogado de cabeça para baixo em uma lata de lixo com a garganta cortada. Foi assim que a tentativa de Bosco de provocar uma retaliação por parte dos Materazzi à custa de alguns indesejáveis e pervertidos levou a uma batalha encarniçada bem no coração superprotegido de Memphis. O ataque atrás do quinto muro havia sido uma simulação conduzida por dez dos Redentores, no entanto, os quarenta restantes tinham se esgueirado por baixo do palazzo e saído no pátio através de um bueiro. Enquanto eles emergiam do esgoto como um monte de baratas com suas batinas pretas, Cale enviou Henri Embromador e Kleist para as muralhas, armados com seus arcos e suas bestas, perguntando-se o que fazer com os 12 Materazzi ao seu redor. Foi então que, boquiabertos, todos viram ao mesmo tempo os quarenta Redentores se espalhando na direção deles como uma mancha.
— Formem uma linha! Uma linha! — exclamou Cale para os seus homens, e então os Redentores atacaram. Cale gritou por Kleist, porém, à medida que os golpes eram dados e rebatidos, os combatentes estavam próximos demais para se arriscar um disparo. Mas então um bando de Redentores tentou contornar a linha dos Materazzi e chegar à porta do palazzo. O zumbido de vespa dos dardos e das flechas foi ouvido quando eles ultrapassaram a linha e Henri e Kleist conseguiram mirar com precisão.
 O grito de um deles, agarrando o próprio peito como se um marimbondo estivesse preso dentro da sua roupa, chamou a atenção de Cale, que se afastou da linha e correu rumo à porta do palazzo, cortando com a espada o tendão do calcanhar de um Redentor e fazendo o mesmo com um segundo, enquanto o terceiro à sua frente levava uma flechada na parte de cima da coxa. O homem cambaleou para trás gri tando quando um golpe mal calculado de Cale o atingiu na boca, varando sua mandíbula e espinha. Cale então deixou para trás o tumulto, chegando à entrada do palazzo e virando-se para encarar os atacantes. Intimidado pelos dardos e pelas flechas, o ataque já havia sido interrompido enquanto os Redentores se abrigavam atrás de um muro à altura do quadril, que seguia em forma de V em direção ao edifício. Cale continuou na entrada, esperando que eles viessem ao seu encontro. Os Redentores que tentassem agora poderiam se proteger contra a chuva mortal que caía das muralhas, de modo que,
engatinhando, eles seguiram em direção a Cale. Ele enfiou a mão no jarro de 1,80 metro com uma velha oliveira que decorava a entrada, apanhou os seixos do tamanho de punhos dispostos com esmero lá dentro e começou a atirá-los. Não estamos falando de uma criança atirando gravetos: as pedras se chocaram contra dentes e mãos, forçando os Redentores a se levantarem rumo aos dardos e às flechas que vinham de cima. Desesperados, os cinco Redentores ilesos correram para cima de Cale. Ele deu cotoveladas, chutes e mordidas e, enquanto lutava, eles caíam — no entanto, mesmo no calor daquela batalha pela vida, parte dele pensava que havia algo de estranho ali. A sensação foi ficando mais forte à medida que, como um herói de livro infantil, ele matava seus oponentes como se eles não passassem de capim — um soco, uma defesa, uma espadada, um golpe de misericórdia e pronto. Os guardas Materazzi, reduzidos apenas a três, tinham feito seus oponentes recuarem — então os padres perderam a coragem e tentaram fugir, sendo abatidos ou pelas espadas dos Materazzi que os perseguiam, ou por Kleist e Henri, que deixavam de proteger Cale para derrubar qualquer Redentor que tentasse chegar ao bueiro para escapar.
Restou a Cale a adrenalina pós-batalha, o coração a mil e o sangue disparando pelas veias. O pátio à sua frente parecia se mover, ora chegando mais perto, ora se afastando: a expressão moribunda de horror no rosto de um Re' dentor; um guarda Materazzi agarrando a própria barriga, tentando evitar que suas entranhas caíssem no chão; o "Isso! Isso!" quase sussurrado de outro celebrando o fato de estar vivo, de ter vencido, de ter passado por aquilo sem sofrer nenhuma desgraça; e o semblante jovem de um Redentor, sua pele tão branca quanto a cera de uma vela sagrada, sabendo que estava prestes a morrer enquanto um Materazzi parava sobre o seu corpo. E, ainda assim, Cale pressentia algo de completamente errado. Tentou gritar para que o guarda Materazzi não desse o golpe de misericórdia, porém, tudo que saiu de sua boca foi um gemido exausto que não pôde impedir o berro terrível e os pés se debatendo no chão.
—Você está bem, filho? — perguntou um guarda. Cale soltou um arquejo e inspirou fundo.
—Diga para eles pararem. — Ele apontou para os Materazzi que andavam por entre os feridos, liquidando-os. — Preciso interrogá-los. Agora! — O guarda gritou e se afastou para cumprir a ordem. Cale se sentou no muro baixo e observou uma mariposa pousar à beira de uma poça negra de sangue, provando-o com cautela e, satisfeita, começando a se alimentar.
—O que houve? — disse Kleist enquanto se aproximava com
arrogância de Cale. — Você ainda está vivo, não está?
—Tem alguma coisa errada.
—Você se esqueceu de agradecer.
Cale o encarou.
—Vá ver se restou algum sobrevivente.
Kleist quase perguntou de que seu último escravo tinha morrido, mas havia algo mais estranho do que o normal em Cale, de modo que ele achou melhor não falar nada.
Henri Embromador já havia começado a vasculhar os corpos, contando os dardos e rezando a Deus para suas vítimas estarem mortas. Ele percebeu que Kleist fazia o mesmo, embora os Materazzi tivessem liquidado rapidamente qualquer um que ainda estivesse se mexendo.
—Cale, venha ver isso aqui — gritou Kleist ao virar um corpo com uma de suas flechas nas costas. Henri Embromador ficou olhando enquanto Cale se aproximava, embora mantivesse certa distância, ansioso. — Olhe — falou Kleist. — É Westaby. — Cale encarou o rosto morto de um rapaz de 18 anos que tinha visto todos os dias no Santuário desde quando conseguia se lembrar.
—Ele é um dos gêmeos Gaddis — disse Henri Embromador. Fez-se um breve silêncio enquanto ele virava um corpo ao lado de barriga para cima. — E o irmão dele.
Vindo da outra ponta do pátio, próximo do bueiro, ouviu-se uma explosão de gritos e quatro Materazzi começaram a chutar e esmurrar um Redentor deitado no chão. Os meninos correram até lá e se puseram a afastá-los, porém, os Materazzi tentaram empurrar os três para longe até Cale sacar a espada e ameaçá-los dos mais terríveis desmembramentos se não abrissem espaço. Kleist e Henri Embromador arrastaram o Redentor dali enquanto os Materazzi observavam a cena, carrancudos.  O mau humor foi quebrado por outro guardaMaterazzi que veio andando até seus quatro colegas, empunhando uma espada dobrada em L. "Pode uma coisa dessas?", ele ficava falando. "Pode uma dessas?" Devagar, Cale se afastou de costas, seguindo em direção a Kleist Henri, sem desgrudar os olhos dos quatro Materazzi.
Cale, Kleist e Henri Embromador ficaram parados diante do Redentor inconsciente, recostado contra o muro do palazzo, seu rosto e seus lábios inchados e sua boca sem alguns dentes.
—Ele me parece familiar — falou Henri Embromador.
—Eu sei — disse Cale. — É Tillmans, o acólito de Navratil.
—O Redentor Papa Anjo? — disse Kleist, observando o rapaz inconsciente com mais atenção. — É, tem razão. É Tillmans mesmo. — Kleist estalou os dedos em frente ao rosto de Tillmans duas vezes.
—Tillmans! Acorde! — Ele sacudiu seus ombros e então o rapaz gemeu. Seus olhos se abriram lentamente, mas estavam sem foco.
—Eles o queimaram.
—Queimaram quem?
—O Redentor Navratil. Eles o queimaram numa grelha por tocar menininhos.
—Sinto muito. Ele era um sujeito decente, no fim das contas —
disse Cale.
—Desde que você ficasse de costas para a parede — falou Kleist. — Ele me deu uma costeleta de porco uma vez — acrescentou ele, no que era provavelmente a coisa mais próxima de um elogio fúnebre que Kleist jamais faria a um Redentor.
—Eu não conseguia suportar os gritos — disse Tillmans. — Ele demorou quase uma hora para morrer. Então eles me disseram que fariam o mesmo comigo se eu não me oferecesse a vir para cá.
—Quem supervisionou vocês no caminho?
—O Redentor Stape Roy e sua tropa. Eles nos disseram que, quando chegássemos aqui, haveria espiões de Deus para nos ajudar no combate e que, se nos saíssemos bem, ganharíamos uma nova chance. Não me mate, mestre!
—Nós não vamos machucá-lo. É só nos contar o que sabe.
—Nada. Eu não sei nada.
—Onde estão os outros?
—Não sei... como eu, eles não são soldados. Eu quero...
Os olhos de Tillmans começaram a se mexer de um jeito esquisito, um perdendo o foco e o outro olhando por sobre o ombro de Cale, como se estiesse vendo algo ao longe. Kleist estalou os dedos de novo, mas desta vez não houve resposta, somente seu olhar se tornando cada vez mais fora de foco e sua respiração, mais irregular. Então ele pareceu recobrar a consciência por um instante, soltando um "Como é que é?" Por fim, sua cabeça caiu para o lado.
—Ele não passa desta noite — falou Henri Embromador. — Pobre Tillmans. —É — disse Kleist. — E pobre Redentor Papa Anjo. Que jeito de morrer.
De todas as vezes que Cale tinha vindo ao Gabinete do Chanceler, aquela foi de longe a que mais demorou a ser recebido por Vipond. Foram quase três horas sentado em uma sala de espera lotada. Ele havia recebido instruções para chegar às três e manter o bico calado. Quando finalmente foi conduzido ao gabinete, Vipond mal olhou para ele.
—Devo admitir que tive minhas dúvidas quando você previu que os Redentores tentariam atacar Arbell em Memphis. Na hora me perguntei se você não estaria inventando isso para que você e seus amigos tivessem algo para fazer. Aceite minhas desculpas.
Cale não estava habituado a ver ninguém em posição de autoridade admitir que estivesse errado — especialmente quando estavam certos —, de modo que ele se limitou a fazer cara de esperto. Vipond entregou a Cale um folheto impresso. Nele, havia um desenho grosseiro de uma mulher com os seios de fora e, acima dela, a frase: A PROSTITUTA DE MEMPHIS. O folheto prosseguia descrevendo Arbell como uma notória depravada que prostituía a si mesma e a todos os inocentes em orgias em massa de adoração ao diabo e sacrifícios. Ela é um pecado!, declarava por fim o folheto, clamando aos céus por vingança.
Martelos trabalhavam na mente de Cale, tentando compreender o que significava aquilo.
—Os homens que atacaram do outro lado dos muros deixaram esses panfletos por todo o seu trajeto — disse Vipond. — Desta vez, não vai dar para abafar o assunto. Todos consideram Arbell Materazzi pura como a neve.
Embora isso claramente não fosse mais tão verdadeiro assim, as mentiras grotescas do panfleto eram tão intrigantes para Cale quanto para Vipond.
—Alguma idéia do que isso quer dizer? — perguntou Vipond.
—Não.
—Fui informado de que você interrogou um prisioneiro.
—O que sobrou dele.
—Ele tinha algo a dizer?
—Só o que já estava bem claro para nós. Esse nunca foi um ataque sério. Eles nem eram soldados de verdade. Conhecíamos uns dez deles: cozinheiros,  escreventes, alguns recrutas que faltaram demais às suas obrigações. É por isso' que foi tão fácil.
—Você não deve repetir isso em nenhum lugar. O que se está dizendo em toda parte é que os Materazzi conquistaram uma grande vitória contra um ataque covarde da elite dos assassinos dos Redentores.
—A elite dos pivetes dos Redentores, isso sim.
—O que aconteceu é visto com indignação e há muito respeito pela habilidade e pelo heroísmo dos nossos soldados em repelir o ataque. Não se deve dizer nada que contradiga essa idéia. Entendido?
—Bosco quer provocá-lo para que o senhor o ataque.
—Bem, ele conseguiu.
—Dar a Bosco o que ele quer é uma péssima idéia. Não estou
mentindo.
—Isso seria uma mudança. Mas acredito em você.
—Então o senhor precisa dizer aos seus soldados que, se eles acham que derrotar um exército de Redentores de verdade vai ser minimamente parecido com isso, vão se dar muito mal.
Pela primeira vez, Vipond olhou bem nos olhos do menino à sua
frente.
—Meu Deus, Cale, se você soubesse a falta de sensatez com que o mundo é governado. A humanidade nunca sofreu um desastre que não tenha sido anunciado por alguma pessoa. Nunca, em toda a história do mundo. E ninguém que tenha dado esse tipo de alerta e provado que estava com a razão tirou algum proveito disso. Os Materazzi não ouvirão ninguém em relação a este assunto, e muito menos Thomas Cale. É assim que as coisas são e não há nada que um ninguém insignificante como você, ou mesmo um alguém importante como eu, possa fazer a respeito.
—O senhor não vai dizer nada para impedi-los?
—Não, não vou. Nem você. Memphis é o coração da maior potência da Terra. Alguns pilares muito simples sustentam este império: comércio, ganancia e a crença generalizada de que os Materazzi são tão poderosos que não vale a pena correr o risco de nos desafiar. Ficarmos escondidos atrás dos muros de Memphis enquanto os Redentores levantam um cerco contra nós não e uma opção. Bosco não pode ganhar, mas nós podemos perder. Basta que as pessoas chem que estamos nos escondendo dele. Poderíamos suportar um cerco a Memphis por cem anos, mas não levaria seis meses para rebeliões começarem a pipocar daqui até a República do Cafundó de Judas. Estamos em guerra, então é melhor partirmos logo para ela.
—Eu sei como os Redentores irão lutar.
Vipond o encarou, exasperado.
—E o que você está esperando? Ser consultado? Os generais que estão planejando esta campanha agora não só conquistaram metade do mundo conhecido, como ou lutaram ou foram treinados por Solomon Solomon, mesmo que muitos deles não o tivessem em alta conta. Mas você! Um menino... um nada que luta como um cachorro faminto. Pode esquecer. — Sem paciência, ele despachou Cale com um gesto,
acrescentando o seguinte para deixá-lo com uma pulga atrás da orelha: — Você deveria ter deixado Solomon Solomon viver.
—Ele teria feito o mesmo por mim?
—De fato, não... o que é apenas mais um motivo para você ter se aproveitado da fraqueza dele. Se o tivesse deixado viver, teria caído nas graças dos Materazzi e acabado com a reputação de Solomon Solomon. A força é implacável tanto com o homem que a possui quanto com suas vítimas: os segundos ela esmaga, o primeiro, ela embriaga. A verdade é que ninguém possui realmente o tipo de poder que você tem por muito tempo. Aqueles que o tomam emprestado do Destino dependem demais dele e acabam destruídos.
—Você inventou isso agora? Ou foi alguma outra pessoa que nunca precisou estar diante de uma multidão louca para vê-la estripada só para ter o que fazer durante a tarde?
—Autocomiseração, é? Você não tinha a menor necessidade de estar lá e sabe disso.
Irritado, principalmente por não ter uma boa resposta para aquilo, Cale se virou para ir embora.
—Aliás, o relatório dos acontecimentos de ontem à noite diminuirão bastante a sua contribuição e a dos seus amigos. E você não irá reclamar disso.
—Posso saber por quê?
—Depois da sua apresentação na Arena Vermelha, você se tornou muito odiado. Pense no que eu lhe falei e vai entender o motivo. Mesmo que não entenda, não dirá nada sobre os incidentes de ontem.
—Estou pouco me lixando para o que os Materazzi pensam, de qualquer forma.
—Esse é o seu problema, não é mesmo? Você não se importa com o que os outros pensam. Mas deveria.
********
No decorrer da semana seguinte, toda sorte de Materazzi chegou a Memphis de suas respectivas propriedades. Era quase impossível andar pela cidade por conta dos cavaleiros com seus escudeiros, suas esposas, os criados de suas esposas e o sem-número de ladrões, miches, prostitutas, jogadores camelôs, gatunos, agiotas e comerciantes comuns, todos atrás da oportunidade de ganhar a bela quantidade de dinheiro que se podia conseguir numa guerra. Havia complexas questões de privilégio a serem resolvidas entre a nobreza dos Materazzi. O seu posicionamento estratégico no conflito servia para indicar o seu status naquela sociedade — um plano de batalha do clã Materazzi era uma mistura de estratégia militar com a disposição dos assentos em um casamento real. As chances de se causar ofensa ou ser ofendido eram exorbitantes. De modo que, apesar da urgência dos assuntos de guerra, o marechal passava a maior parte do tempo dando jantares e organizando confraternizações de todo tipo para apaziguar os ânimos perigosamente alterados, explicando que, o que parecia um insulto, na verdade era uma honra de grandes proporções.
Foi em um desses banquetes, para o qual Cale fora convidado (a pedido de Vipond, como parte de sua tentativa de reabilitá-lo), que os acontecimentos deram, mais uma vez, uma guinada inesperada. Por mais que o marechal nunca quisesse estar na presença de Simon, especialmente não em público, isso nem sempre era possível, principalmente depois de Arbell implorar que ele fosse convidado.
Lorde Vipond era um mestre das informações, fossem elas verdadeiras ou falsas. E possuía uma rede de contatos considerável em todos os níveis da sociedade dos Materazzi, desde os lordes até o mais humilde engraxate. Se quisesse que algo fosse amplamente divulgado, ou pelo menos amplamente tomado como verdade, esses informantes ouviriam uma história, real ou não, e então espalhariam a notícia. Essa forma de disseminar boatos úteis ou negar outros prejudiciais vinha, obviamente, sendo utilizada por todos os governantes desde Ozimandias, o Rei dos Reis, até o atual prefeito de onde o diabo perdeu as botas. A diferença entre Vipond e todos esses demais praticantes da arte oculta da boataria era o fato de ele saber que, para que as pessoas acreditassem em seus informantes quando mais necessário, quase tudo que eles diziam deveria ser verdade. O resultado era que qualquer mentira que Vipond quisesse ver aceita de forma generalizada quase sempre era engolida junto. Ele gastou parte deste seu valioso capital em Cale por estar muito ciente do espírito de vingança que havia sido incitado naqueles relacionados ou próximos a Solomon Solomon. Era quase certo que ele seria assassinado. Vipond,
apesar do que tinha dito a Cale, espalhara que o menino havia lutado bravamente ao lado dos Materazzi para ajudar a salvar Arbell, de modo que o perigo imediato de ele ser envenenado ou levar uma facada pelas costas em um beco escuro tinha sido bastante, se não completamente, diminuído. Estranhamente, se tivessem  perguntado a Vipond por que ele estava dedicando tanto tempo a alguém tão desimportante, ele não teria sabido responder. Porém, não havia ninguém para lhe perguntar isso.
Vipond e o marechal Materazzi estavam há várias horas reunidos, tentando em vão bolar uma estratégia militar que desse conta de todas as complicadas questões de poder e status geradas pela disposição dos Materazzi no campo de batalha. A verdade é que sentiam a falta de Solomon Solomon, cuja reputação heróica como soldado o tornara inestimável como um homem capaz de negociar e estabelecer acordos entre as diversas facções de Materazzi que lutavam por precedência na linha de combate.
—Sabe de uma coisa, Vipond — falou o marechal com tristeza. — Por mais que eu admire a sutileza com a qual você lida com esse tipo de questão, devo dizer que, no frigir dos ovos, poucos são os problemas no mundo que não podem ser resolvidos com um suborno generoso, ou empurrando seu inimigo por um desfiladeiro abaixo na calada da noite.
—Como assim, meu amo?
—Aquele menino, Cale. Não estou defendendo Solomon Solomon, você sabe que eu tentei impedi-lo, mas, para ser sincero, não achei que o menino tivesse chance contra ele.
—E se o senhor soubesse que sim?
—Não há necessidade de usar esse tom superior comigo; não venha me dizer que você sempre faz a coisa certa no lugar da coisa mais sensata. A questão é que precisamos de Solomon Solomon; ele poderia ter facilitado as coisas e colocado esses desgraçados em seus devidos lugares. É simples: nós precisamos de Solomon Solomon e não precisamos de Cale.
—Cale salvou sua filha, meu amo, e chegou muito perto de perder a própria vida no processo.
—Está vendo, lá vai você de novo. Mais do que ninguém você deveria saber que eu não posso levar as coisas para o lado pessoal. Sei muito bem o que ele fez e sou grato. Mas somente como pai. Como
governante, estou assinalando que o Estado precisa muito mais de Solomon Solomon do que de Cale. Essa é apenas a verdade óbvia e não faz sentido negá-la.
Então do que o senhor se arrepende, meu amo? De não tê-lo jogado de um precipício antes da luta?
—Você acha que pode me constranger a ponto de eu retirar o que disse? Em primeiro lugar, eu teria dado a ele uma sacola grande de ouro e lhe dito para sumir daqui e nunca mais voltar. O que, por sinal, é o que pretendo fazer quando esta guerra terminar.
—E se ele tivesse se recusado?
—Eu teria ficado bastante desconfiado, isso sim. Aliás, por que ele ainda está por aqui?
—Porque o senhor lhe deu um bom emprego no meio do quilômetro quadrado mais bem protegido do mundo inteiro.
—Então a culpa é minha? Bem, se é mesmo, então eu vou dar um jeito nisso. O menino é uma ameaça. Ele é sinônimo de azar, igual àquele sujeito na barriga da baleia.
—Jesus de Nazaré?
—É, esse aí. Quando essa questão com os Redentores estiver resolvida Cale vai embora e ponto final.
A outra coisa que tinha deixado o marechal tão mal-humorado era a perspectiva de ter que se sentar com seu filho por uma noite inteira — a humilhação era quase maior do que ele podia suportar.
No fim das contas, o banquete transcorreu bem. Os nobres presentes pareciam preparados, e até mesmo dispostos, a deixar velhos rancores e rixas de lado e se unirem diante da ameaça dos Redentores contra Memphis em geral e Arbell Pescoço de Cisne em particular. Durante todo o jantar, a filha do marechal foi tão meiga e, ao mesmo tempo, tão divertida e estonteante, que transformou o retrato grotesco que os Redentores pintaram dela em um motivo cada vez mais contundente para deixar as diferenças mesquinhas de lado e enfrentar o perigo que aqueles fanáticos religiosos representavam para todos eles.
Do início ao fim do banquete, ela tentou desesperadamente não olhar para Cale. Seu amor e desejo por ele eram tão intensos que ela tinha certeza de que ficariam evidentes até mesmo para os mais insensíveis. Cale, por sua vez, ficou de cara amarrada por achar que ela o estava evitando. Estava claro que Arbell tinha vergonha dele, que ficava constrangida de ser vista em público em sua companhia. Em contrapartida, o medo que o marechal sentia de ser humilhado por Simon parecia ser infundado. É bem verdade que o menino ficava inevitavelmente sentado ali sem dizer nada — porém, sua expressão habitual de espanto e perplexidade horrorizada havia sumido. Aliás, seu rosto parecia totalmente normal: um olhar de interesse aqui, outro de divertimento acolá. O marechal, no entanto, foi ficando cada vez mais irritado por não conseguir se livrar de uma tosse chata, provavelmente causada por ter que conversar tanto com o monte de gente que vinha lhe pedir coisas.
Outra coisa que incomodava o marechal era o rapaz ao lado de Simon. Não o reconhecia e ele não falou nada a noite inteira, porém, ao longo do jantar, ficou contorcendo sem parar a mão direita numa série enlouquecedora de gestos, apontando e jogando os dedos para frente, descrevendo inúmeros círculos no ar assim por diante. No final, aquilo já estava dando nos nervos do marechal de tal forma que ele estava prestes a mandar seu criado, Pepys, falar para o rapaz ou parar ou ir embora. Foi então que o companheiro de Simon se levantou e ficou esperando em silêncio — uma atitude tão espantosa em um ambiente daqueles que o zumbido de risadas e conversas quase desacelerou até parar.
—Meu nome é Jonathan Koolhaus — anunciou Koolhaus —, tutor lingüístico do Lorde Simon Materazzi. O Lorde Simon quer dizer uma coisa.
Diante dessas palavras, o salão se calou, mais de espanto do que de defe- rência. Simon então se levantou e começou a mover a mão direita da mesmís- sima maneira estranha que Koolhaus fizera a noite inteira. Ele então traduziu:
—Lorde Simon Materazzi disse: "Eu passei a noite inteira sentado de frente para o preboste David Lascelles e, durante todo esse tempo, ele se referiu a mim três vezes como sendo um cabeça-oca babão." — Simon sorriu, um sorriso largo e bem-humorado. — "Bem, preboste Lascelles, quando o assunto é ser um cabeça-oca babão, como dizem as crianças no playground: você precisa ser um para reconhecer o outro."
A explosão de risadas que se seguiu a isso foi alimentada tanto pela visão dos olhos arregalados e do rosto ruborizado de Lascelles quanto pela piada em si. A mão direita de Simon se agitou rapidamente para frente e para trás.
—Lorde Simon Materazzi disse: "O preboste David afirma ser uma grande desonra para ele estar sentado na minha frente." — Simon fez uma me- sura irônica para o preboste David e Koolhaus repetiu o gesto. A mão direita de Simon voltou a se mover. — "Devo dizer, preboste David, que a desonra é toda minha."
Com essas palavras, Simon se sentou com um sorriso bondoso, seguido por Koolhaus.
Por um instante, a mesa ficou olhando estarrecida, embora se pudesse ouvir algumas risadas e aplausos. E então, como se por força de um estranho acordo tácito, todos os convidados decidiram que iriam ignorar o que haviam acabado de ver e fingir que aquilo nunca aconteceu. Com isso, o zumbido de risadas e conversas se reacendeu e tudo prosseguiu, pelo menos na superfície, como antes.
A seu tempo, a confraternização chegou ao fim, os convidados foram conduzidos noite afora e o marechal, acompanhado por Vipond, quase saiu correndo para seus aposentos particulares, onde havia ordenado que seu filho e sua filha o aguardassem. Mal havia passado pela porta quando exigiu saber: —Que história é essa? Que tipo de truque desalmado é esse? — disse ele, encarando a filha.
—Não sei nada sobre isso. É um mistério tão grande para mim quanto para o senhor.
Enquanto isso, um Koolhaus assombrado agitava os dedos para Simon da forma mais discreta possível.
—Ei, você. O que está fazendo?
—É, hã... uma linguagem de sinais, senhor.
—O que isso quer dizer?
—É muito simples, senhor. Cada sinal do meu dedo representa
uma palavra ou ação. — Koolhaus estava tão nervoso e falou tão rápido que era quase impossível compreendê-lo.
—Mais devagar! — gritou o marechal. Koolhaus, tremendo, repetiu o que havia falado. O marechal ficou olhando, incrédulo, enquanto seu filho gesticulava para Koolhaus.
—Lorde Simon disse... hã... que não é para o senhor ficar bravo
comigo.
—Então explique o que é isso.
—É simples, senhor. Como eu disse, cada sinal representa uma palavra ou emoção. — Koolhaus tocou o próprio peito com o polegar.
—Eu.
Então fez um punho e o esfregou em um gesto circular sobre o
coração.
—Sinto muito.
Ele ergueu o polegar do mesmo punho, apontando-o para frente e fazendo um gesto de martelada.
—Por ter feito.
Em seguida, apontou para o marechal.
—O senhor.
Ele girou o pulso, jogando o punho para frente e para trás.
—Ficar com raiva.
Então repetiu os gestos tão depressa que mal dava para distingui-los.
—Eu sinto muito por ter feito o senhor ficar com raiva.
O marechal olhou para o filho como se encará-lo fosse revelar a verdade. A descrença e a esperança estavam claras no seu rosto. Então ele respirou fundo e lançou um olhar para Koolhaus.
—Como eu posso ter certeza de que é o meu filho quem está falando, não você?
Koolhaus começou a recuperar parte do seu equilíbrio habitual.
— É impossível, meu amo. Assim como nenhum homem pode saber o certo se ele próprio é uma criatura pensante e sensível enquanto todos os demais são máquinas que apenas fingem sentir e pensar.
—Oh, meu Deus — falou o marechal. — Estou diante de uma cria do Cérebro, sem a menor dúvida.
—De fato, senhor. Mas, apesar disso, o que digo é verdade. O senhor sabe que outras pessoas também sentem e pensam porque, com o tempo, seu bom-senso lhe mostrou a diferença entre o que é real e o que não é. Da mesma forma, se o senhor conversar com seu filho através de mim verá que, apesar de ser iletrado e lamentavelmente ignorante, a mente dele é tão afiada quanto a minha ou a sua.
Era difícil não se impressionar com a sinceridade afrontosa de
Koolhaus.
—Muito bem — disse o marechal. — Deixe Simon me contar como tudo isso foi armado desde o início até hoje à noite. E não acrescente nada ou tente deixá-lo mais esperto do que ele é..
Assim, durante os 15 minutos que se seguiram, Simon teve a primeira conversa de sua vida com o pai, e este com o seu filho. Vez por outra, o marechal fazia perguntas, no entanto, passou a maior parte do tempo escutando. E quando Simon terminou, lágrimas corriam pelos rostos dele e de sua irmã abismada.
O marechal finalmente se levantou e abraçou o filho.
—Eu sinto tanto, menino, mas tanto.
Em seguida, mandou um de seus guardas buscar Cale. Ao escutar essa ordem Koolhaus foi invadido por sentimentos decididamente conflitantes. A explicação dada por Simon tinha, em sua opinião, pendido de forma injusta a favor da idéia de Cale de lhe ensinar uma linguagem de sinais simples, sem levar tanto em conta que Koolhaus havia transformado
uma série de gestos grosseiros e simplórios numa linguagem viva e real. Agora lhe parecia que aquele desordeiro do Cale iria roubar toda a cena. Cale tinha, obviamente, ficado quase tão pasmo com o ocorrido durante o banquete quanto os demais convidados, não fazendo idéia dos avanços que Koolhaus e Simon tinham feito. Isso se deu, em grande parte, porque o primeiro fizera o segundo jurar que manteria segredo, no intuito de armar uma surpresa brilhante e ficar com todo o crédito.
Cale tinha esperado uma bronca e ficou bastante confuso ao ser saudado como um salvador tanto por Arbell quanto pelo marechal, que se sentia culpado por sua ingrata, embora não necessariamente equivocada, decisão de se livrar dele.
No entanto, Arbell também sentia culpa. Nos dias que se seguiram aos terríveis incidentes na Arena Vermelha, ela passara noites libidinosas com Cale,  devorando com paixão cada centímetro de seu corpo; contudo, durante o dia escutava seus visitantes debaterem os horrores da morte de Solomon Solomon Como havia expressado apenas repulsa por seu misterioso guarda-costas no passado, ninguém ficava constrangido em descrever o ocorrido com todos os seus detalhes desagradáveis. Parte daquilo podia ser descartado como fofoca e exagero em favor de um igual, porém, a coisa mudou de figura quando até mesmo a honesta e bem-intencionada Margaret Aubrey falou: "Não sei por que eu fiquei. No começo, senti pena dele. Ele parecia tão pequeno lá na arena. Mas, Arbell, foi a coisa mais fria e brutal que eu vi na vida. Ele falou com Solomon Solomon antes de matá-lo. Dava para ver que estava sorrindo. Não se trata nem um porco desse jeito, foi o que o meu pai disse."
Depois de ouvir isso, os sentimentos da jovem princesa ficaram extremamente confusos. E claro que estava ofendida com aquele insulto ao seu amante, no entanto, ela também não tinha visto aquela estranha indiferença assassina com os próprios olhos? Quem poderia culpá-la se um calafrio contido em silêncio tivesse se esgueirado até os recônditos mais profundos do seu coração, para ali ser trancado. Porém, todos esses pensamentos terríveis foram dissipados pela descoberta de que Cale tinha praticamente resgatado seu irmão do mundo dos mortos. Ela apanhou sua mão e a beijou com paixão e reverência — e lhe agradeceu pelo que tinha feito. Nem mesmo o fato de ele ter oferecido o crédito a Koolhaus fez muita diferença. O marechal — em meio a várias tentativas de limpar a garganta — e Arbell agradeceram ao tutor, mas então voltaram a encher Cale de elogios e agradecimentos. Koolhaus se sentiu traído, convenientemente se esquecendo de que fora Cale quem havia notado a inteligência oculta de Simon Materazzi e encontrado uma maneira de
libertá-la. A tentativa de Cale de incluí-lo na atmosfera geral de gratidão e reconhecimento era apenas sua maneira, começou a pensar Koolhaus, de retornar às luzes da ribalta enquanto o empurrava para longe delas. Assim, no dia em que finalmente conquistou duas das pessoas que ainda desconfiavam dele, Cale contrabalanceou isso fazendo mais um inimigo.
33
Naquela noite, Arbell Materazzi tomou Cale em seus braços, tendo afugentado todas as restrições que tinha a seu respeito. Como ele era corajoso, e como ela tinha sido ingrata ao nutrir uma só dúvida que fosse — isso sem falar na mudança miraculosa que ele havia causado em seu irmão. Como aquilo o fazia parecer generoso para com o próximo; e tão inteligente e cheio de perspicácia. Ela quase ardia de adoração ao fazer amor com ele naquela noite, venerando-o com cada centímetro de seu corpo flexível e perfeito. E que mágica sublime isso exerceu sobre a alma castigada de Thomas Cale, que alegria e encanto isso lhe trouxe. Mais tarde, envolvido na cama em seus braços elegantes e pernas que pareciam não ter fim, ele começou a se sentir como se as camadas mais profundas de sua alma congelada estivessem sendo tocadas pelo sol.
—Nada de ruim pode acontecer com você. Me prometa — falou ela após quase uma hora de silêncio.
—Seu pai e os generais dele não têm a menor intenção de me deixar sequer chegar perto de uma batalha. E, de qualquer maneira, eu não tenho intenção de lutar. Essa guerra não tem nada a ver comigo. Meu trabalho é proteger você. Só isso me interessa.
—Mas e se alguma coisa acontecer comigo?
—Nada vai acontecer com você.
—Nem você pode garantir isso.
—Qual o problema?
—Nada. — Ela segurou o rosto dele em suas mãos e fitou dentro dos seus olhos, como se buscasse algo. — Sabe aquele retrato na parede do outro quarto?
—O do seu bisavô?
—Isso, com a segunda mulher dele, Stella. Eu o pendurei ali por causa de uma carta que encontrei quando era menina, remexendo algumas velharias da família que achei num baú. Acho que fazia uns cem anos que ninguém olhava lá dentro. — Ela se levantou e foi andando até uma gaveta do outro lado do quarto, nua como um passarinho e o suficiente para parar o coração de qualquer homem. Como é possível, pensou ele, que uma criatura dessas me ame? Ela revirou a gaveta por um instante e então voltou com um envelope. Sacou duas páginas cheias e olhou para elas com tristeza. — Esta é a última carta que ele escreveu para Stella antes de morrer no cerco a Jerusalém. Vou ler para você o último parágrafo porque quero que entenda uma coisa  —  Ela se sentou ao pé da cama e começou a ler: Minha muito querida Stella, Tudo indica que atacaremos novamente dentro de alguns dias — talvez amanhã. Diante da possibilidade de nunca mais poder lhe escrever, sinto-me impelido a traçar linhas que podem chegar aos seus olhos quando eu já tiver partido. Stella, meu amor por voce e imortal, ele parece nos ligar por meio de amarras poderosas que somente Deus poderia romper. Se eu não retornar, minha querida Stella, jamais se esqueça do quanto eu te amo e, quando o último suspiro deixar meu corpo no campo de batalha, ele sussurrará seu nome. Mas Stella! Se os mortos puderem voltar a esta terra e se moverem invisíveis por entre aqueles que amaram, eu sempre estarei ao seu lado; no dia mais brilhante e na noite mais escura — entre seus momentos mais alegres e suas horas mais tristes —, sempre, sempre. E se uma brisa suave acariciar seu rosto, ela será meu hálito; se um vento gelado aliviar sua têmpora latejante, será meu espírito a passar.
Arbell levantou a cabeça, seus olhos cheios de lágrimas. —Essa foi a última notícia que ela teve dele. Ela engatinhou para mais perto de Cale do pé da cama e o abraçou forte. —Eu também estou ligada a você. Nunca se esqueça disso. Aconteça o que acontecer, eu sempre estarei por perto. Você sempre poderá sentir meu espírito velando pelos seus passos. Assolado e extasiado por aquela jovem linda e apaixonada, Cale não sabia o que dizer. Mas logo as palavras já não eram necessárias.
34
Wilfred "Cinco Barrigas" Penn, sentinela da cidade de York, pouco mais de 150 quilômetros ao norte de Memphis, arregalou bem os olhos para se manter acordado enquanto espiava por sobre os muros da cidade. Outro belo sol se erguia sobre a floresta que cercava a região e Cinco Barrigas pensou que, por mais cansativo e entediante que fosse o turno da noite, aquela era uma hora do dia que, independentemente de quantas vezes você a tivesse visto, sempre o deixava maravilhosamente feliz por estar vivo. Foi então que ele notou algo tão bizarro em sua estranheza e impossibilidade que o deixou mais intrigado do que alarmado. O que ele achava ver não podia estar acontecendo. A uns 2,5 quilômetros de distância, atrás da linha das árvores, um imenso objeto negro havia se erguido da floresta e voava alto no céu azul-avermelhado, vindo na direção da cidade. O objeto negro ficou maior e pareceu se mover ainda mais depressa. Tão chocado quanto um animal antes do abate, Cinco Barrigas ficou observando uma pedra grande, do tamanho de uma vaca, passar menos de 6 metros acima de sua cabeça, girando preguiçosamente em torno do próprio eixo. Ela descreveu uma curva até a cidade mais abaixo, destruindo quatro casas residenciais grandes enquanto quicava por entre um caos de pedras desmoronadas e poeira, vindo parar no Jardim Municipal dos Rouxinóis.
Durante as duas horas seguintes, os quatro trabucos móveis dos Redentores lançaram outras dez pedras e, depois de encontrarem sua linha de tiro, conseguiram causar danos maciços às muralhas. Os modelos eram novos e nunca antes testados no campo de batalha, e em dois deles os braços da grande alavanca se arrebentaram. Os Engenheiros Papais que haviam acompanhado o Exército do Redentor General Princeps logo fizeram sua avaliação dos defeitos dos novos modelos móveis e, em menos de uma hora, haviam recolhido os braços e iniciado a longa marcha de retorno a Shotover. A tarde foi tão quente que, embora nenhum pássaro cantasse, o som das cigarras era quase ensurdecedor. Houve um breve ataque às três por parte de 250 membros da cavalaria ligeira da cidade, no intuito de oferecer uma resposta que pudesse dar alguma idéia ao comandante das tropas inimigas de onde ele estava se metendo. Uma salva de flechas vinda das árvores os obrigou a se desviarem e tudo o que os Materazzi conseguiram com aquilo foi duas baixas, cinco feridos e dez cavalos que precisaram ser sacrificados. Os Redentores que ocupavam a linha das árvores observaram a cavalaria bater em retirada. Todos conseguiam sentir uma tensão pavorosa no ar, como se algo terrível estivesse à espreita, prestes a atacar. Então, começaram a rir quando o silêncio ameaçador foi quebrado pelas próprias criaturas que o causaram. Os gafanhotos, emudecidos pela chegada dos cavalos e aliviados por eles terem desaparecido, retomaram sua algazarra logo em seguida, como se fossem um só bicho, em vez de um milhão. Naquela noite, o trabalho sujo de verdade começou quando o primeiro-sargento Trevor Beale e dez de seus homens foram patrulhar a floresta de Dudley, da forma mais relutante que se possa imaginar. Ao amanhecer, Beale e sete de seus soldados estavam de volta aos muros da cidade com dois prisioneiros Redentores e relatavam as atividades da noite ao governador de York. —Por que, em nome de Deus, os Redentores estão nos atacando? —Não faço idéia, senhor — disse o primeiro-sargento Beale. —Foi uma pergunta retórica, primeiro-sargento, do tipo que é "feita apenas para produzir um efeito e não gerar uma resposta". —Sim, senhor. —E quanto aos números?
—Entre 8 e 16 mil, senhor. —Não consegue ser mais preciso? —Estávamos nos embrenhando em uma floresta densa, na escuridão total e no meio de um exército bem protegido, então, não senhor, não poderia ser mais preciso. Pode ser que sejam menos, pode ser que sejam mais. —Você é muito insolente, primeiro-sargento.
—Perdi três homens esta noite, senhor. —Sinto muito, mas não acho que a culpa seja minha. —Não, senhor. Três horas mais tarde, o primeiro-sargento Beale estava de volta ao gabinete do governador Agostino. —Tudo o que conseguimos arrancar deles, quer dizer, de um deles, foi um palpite de quantos são. Antes de calar a boca de vez, o prisioneiro disse que havia cerca de 6 mil na floresta, mas que o exército tinha se separado três dias antes. Ah, e eles estão sendo comandados por alguém chamado Princeps. —Me dê uma hora sozinho com eles, senhor. —Duvido muito que você seja melhor em maltratar prisioneiros do que Bradford. Afinal, esse é o trabalho dele. Além do mais, quero que vá com mais três levar uma mensagem para Memphis. Peguem caminhos diferentes; você vai pelo que tiver mais chance de evitar os piquetes dos Redentores. Uma hora depois, Beale e seus homens tinham deixado a cidade e os Redentores atacado uma abertura no muro sul, o que resultou em um combate breve porém encarniçado, com os trezentos Materazzi que os aguardavam em suas armaduras completas. Eles foram rechaçados após sofrerem vinte baixas sem que, a princípio, nenhum Materazzi tivesse ficado gravemente ferido. Somente quase uma hora após o ataque ficou claro que três soldados haviam desaparecido. E, mais estranho ainda, algumas horas depois, quatro colunas de fumaça começaram a subir pelo céu azul de verão, bem de onde os
trabucos dos Redentores estavam posicionados. Um grupo de batedores retornou logo em seguida para informar ao governador que o exército dos Redentores havia batido em retirada, tendo queimado os quatro trabucos que lhe custaram tanto esforço para trazer até York. Quando Beale chegou a Memphis três dias depo is, a cidade já havia tido notícia da outra metade do Quarto Exército do Redentor General Princeps e não ficou menos pasma com o que ouviu do primeiro-s argento. A segunda força dos Redentores, em vez de atacar as três cidades muradas no caminho, todas no mínimo tão importantes em termos estratégicos quanto York, havia simplesmente passado por elas e seguido para o Forte Invencível. A piada corrente entre os Materazzi era que o Forte Invencível não era um forte, mas isso não importava, pois ele também não era invencível. Tratava-se, na verdade, de um local composto por vastas planícies e colinas suaves que eram bruscamente interrompidas para darem lugar a cânions estreitos e desfiladeiros rochosos. Juntas, essas duas geografias contrastantes representavam o melhor e o pior terreno em que uma cavalaria e homens em armaduras completas poderiam lutar. Assim sendo, ele era o melhor lugar possível para se treinar o fluxo de Materazzi que entrava e saía de lá vindo de todas as partes do império. O resultado era que nunca havia menos de 5 mil cavaleiros e soldados lá por vez, muitos deles com anos de experiência. Para os Redentores, atacar o Forte Invencível não fazia sentido militar algum: significava desafiar o poderio bélico dos Materazzi em um de seus locais de maior força, no terreno em que eles treinavam diariamente. Quatro mil Redentores se posicionaram em formação de ataque nas colinas suaves que davam para o forte e desafiaram os Materazzi a atacá-los. E foi o que eles fizeram. Para o azar dos primeiros, uma força de mil cavaleiros Materazzi que retornava de um exercício naquela hora os surpreendeu pela retaguarda, e o resultado foi um massacre para os Redentores, que perderam quase metade de seus homens. Lutando para escapar, os 2 mil restantes recuaram para os vales Taméticos, reunindo-se aos outros 4 mil Redentores que ali aguardavam. Naquele lugar, o terreno era muito pior para os cavalos, de modo que não houve azar para os Redentores desta vez. O primeiro dia de batalha resultante foi violento, porém inconclusivo. Não houve segundo dia. Quando os Materazzi acordaram, perceberam que os Redentores haveriam recuado para as montanhas, onde a cavalaria não poderia segui-los. O que deixou os generais Materazzi em Memphis perplexos foi o mistério do que seus inimigos pretendiam alcançar com um ataque contra o Forte Invencível.
A notícia que chegou a Memphis no dia seguinte foi intrigante de um  jeito muito diferente, se é que "intrigante" pode incluir em seu
sentido horror e aversão. Às sete da manhã do 11° dia daquele mês, a Segunda Infantaria Mon tada dos Redentores sob o comando do Redentor Petar Brzica chegou a Mount Nugent, um vilarejo com cerca de 1.300 almas. Houve apenas uma testemunha da chegada deles, um rapaz de 14 anos de idade que, sofrendo de amor por uma das garotas do vilarejo, havia acordado cedo e seguido para um bosque próximo para chorar sem ser ridicularizado pelos irmãos mais velhos. Para o rapaz que observava das árvores, eles eram uma visão curiosa, porém, a estranheza de se ver trezentos soldados se aproximando de Mount Nugent foi bastante atenuada pelo fato de usarem batinas, algo que ele jamais vira antes. Além disso, estavam montados em burricos, o que os fazia se sacudir para cima e para baixo de um jeito muito engraçado, não lembrando em nada o trotar magnificamente ameaçador da cavalaria Materazzi que o rapaz havia admirado boquiaberto durante sua única visita a Memphis. Quando os Redentores deixaram o vilarejo oito horas mais tarde, todos os seus habitantes estavam mortos, exceto pelo menino. A descrição do massacre pelo xerife do condado baseada em seu relato chegou à mesa de Vipond junto com uma sacola de linho. Os Redentores logo acordaram os aldeões e os instruíram por meio de um alto-falante que aquela era apenas uma ocupação temporária e que, se eles cooperassem, não seriam feridos. Homens e mulheres foram separados, assim como as crianças abaixo dos 10 anos de idade. As mulheres foram levadas para o depósito de grãos do vilarejo, que estava vazio, uma vez que a colheita ainda não tinha sido feita. Os homens foram detidos no salão de conferências. As crianças, por sua vez, foram conduzidas à prefeitura, o único edifício de três andares do local, e detidas no segundo piso. Quando chegamos, vimos que os Redentores haviam erguido um poste no centro do vilarejo e, nele, havia o objeto anexado a este relatório. Vipond abriu a sacola de linho. Lá dentro, havia uma espécie de luva, mas sem os dedos, semelhante ao tipo usado pelos comerciantes no inverno para manter as mãos quentes, mas os dedos ágeis. Ela era feito do couro grosso mais forte de que se tinha notícia e, saltando da parte mais espessa ao longo da beirada da palma, havia uma lâmina de quase 13 centímetros, ligeiramente abaulada na ponta como se para acompanhar a curvatura do pescoço humano. Nela, podia-se ler a seguinte inscrição: "Graviso" — o local onde fora fabricada. Na parte de dentro da luva, havia uma etiqueta de identificação, como as que se prende às roupas das crianças na escola, com Petar Brzica bordado com esmero em azul. Tremendo, o chanceler Vipond retornou ao relatório.
A começar pelas mulheres, os Redentores as libertaram uma a uma. Elas foram obrigadas a se ajoelhar. Então, um único Redentor usando o objeto anexado a este relatório se aproximava por trás delas, puxava-lhes a cabeça para trás, expondo seus pescoços, e corria a lâmina, obviamente curvada para este intuito, pela garganta das vítimas. Os corpos então eram arrastados até sumirem de vista e a próxima vítima retirada do prédio em que estivesse detida. Encontramos apenas uma testemunha — um menino. Segundo ele, cada um desses assassinatos não levava mais de trinta segundos. Sem saberem o que as aguardava, as vítimas pareciam amedrontadas, mas não em pânico, e suas mortes se davam tão depressa que nenhuma delas gritou, tampouco em nenhum outro momento do dia. Assim, os Redentores já haviam matado todas as mulheres (391) à uma da tarde. (A testemunha conseguia ver a torre do relógio da prefeitura.) Os homens do vilarejo foram liquidados da mesma maneira (503). No entanto, quando chegou a vez das (304) crianças abaixo dos 10 anos de idade, eles abandonaram toda a preocupação em manter o que faziam em segredo. Individualmente ou em grupos de dois, as crianças eram jogadas da sacada mais alta para quebrarem os pescoços. Nem mesmo o bebê mais jovem foi poupado. Em toda minha vida, nunca vi coisa parecida. Ao terminar seu testemunho, e antes que pudéssemos impedi-la, a testemunha fugiu para a floresta, jurando vingança contra os agressores.
Geoffrey Menouth, xerife do condado de Maldon
Cale passara três dias no bosque que cercava o Royal Park observando o exército Materazzi treinar em suas armaduras completas. Havia testado o peso de um conjunto deixado em um corredor enquanto seu dono se instalava em um dos quartos do palazzo de Arbell. Ele devia ser alguém muito importante, pois a cidade já estava tão abarrotada de Materazzi que nem mesmo amor, dinheiro ou status — que era mais importante do que qualquer um dos dois — poderia lhe conseguir uma cama decente. Ele deduziu que a armadura deveria pesar uns 30 quilos. Diante disso, não conseguia ver como um fardo daqueles permitiria a ligeireza e a flexibilidade que achava fundamentais, por mais proteção que oferecesse. Porém, depois de vê-los treinar, descobriu que estava redondamente enganado. Ficou pasmo com a velocidade com que conseguiam se mexer, com a leveza de seus pés e como a armadura parecia acompanhar com
fluência cada um de seus movimentos. Eles saltavam de seus cavalos e montavam de volta com uma facilidade que o deixou abismado. Conn Materazzi chegou a subir uma escada pelo lado contrário, dando a volta no topo e se esgueirando para dentro da torre que fingia estar tomando. Os golpes que desferiam uns contra os outros poderiam cortar um homem sem armadura em dois, mas eles pareciam fazer pouco caso até mesmo dos mais violentos. Havia alguns pontos fracos — a parte superior interna da coxa, por exemplo —, porém, seria um risco imenso tentar aproveitar um deles. Teria de pensar bem naquilo. —BU! Peguei você — disse Kleist, surgindo de trás de uma árvore com Henri Embromador e IdrisPukke.
—Ouvi vocês chegando cinco minutos atrás. A gorda da sorveteria teria feito menos barulho.
—Vipond quer ver você. — Pela primeira vez, Cale os encarou.
—Ele falou o motivo?
—Uma esquadra dos Redentores sob o comando daquele bosta do Coates atacou um lugar chamado Port Collard, tacou fogo na metade e depois foi embora. Um dos soldados me disse que os nativos chamam lá de Pequena Memphis.
Cale fechou os olhos como se tivesse ouvido uma péssima notícia. E tinha mesmo. Quando terminou de explicar por que, ninguém falou nada por alguns instantes.
—Temos que ir embora — falou Kleist. — Agora. Hoje à noite.
—Acho que ele tem razão — disse Henri Embromador.
—Eu também. Só que não posso.
Kleist soltou um grunhido.
—Pelo amor de Deus, Cale, como você acha que você e a Lady Sebosa vão terminar?
—Por que você não vai ver se eu estou na esquina?
—Acho que você deveria contar para Vipond — disse IdrisPukke. —Não temos mais o que fazer aqui. Por que nenhum de vocês consegue enxergar isso?
—Conte isso para Vipond e nós três vamos acabar na baía de Memphis dando de comer para os peixes o sebo dos nossos rins.
—Ele pode ter razão — falou Henri Embromador. — Nós somos tão populares quanto um furúnculo a essa altura.
—E sabemos muito bem de quem é a culpa — disse Kleist, olhando para Cale. — É sua, caso esteja na dúvida.
—Vou contar para Vipond amanhã. Vocês dois vão embora hoje à noite. — disse Cale.
—Eu não vou — falou Henri Embromador.
—Vai sim — disse Cale.
—Não vou, não — insistiu Henri.
—Ah, vai sim — disse Kleist, insistindo da mesma forma.
—Pegue minha parte do dinheiro e vá — falou Henri Embromador.
—Não quero sua parte.
—Então não pegue. Nada o impede de ir embora sozinho.
—Sei que não, mas não quero.
—Por quê? — perguntou Henri.
—Porque — respondeu Kleist — eu tenho medo do escuro. — Com essas palavras, ele sacou a espada e começou a estraçalhar a árvore mais próxima.
—Merda! Merda! Merda!
Foi dessa maneira tortuosa que os três concordaram que deveriam ficar e que IdrisPukke iria com Cale contar para Vipond.
Desta vez, Cale não teve que esperar quando chegou ao gabinete de Vipond, sendo levado imediatamente à sua presença. Os primeiros dez minutos foram gastos com o relato de Vipond sobre os três ataques dos Redentores e sobre o massacre em Mount Nugent. Ele entregou a Cale a luva deixada no poste no meio do vilarejo.
—Tem um nome dentro. Você sabe quem é essa pessoa?
—Brizca? Ele era o carrasco do Santuário. Sua função era matar qualquer pessoa que não fosse um Ato de Fé. "Execuções públicas para a contemplação religiosa dos fiéis." — O tom em que disse aquilo deixou claro que era algo aprendido de cor. — Eles são conduzidos por Redentores mais sagrados do que ele. Nunca o vi usar, mas Brizca é famoso pela rapidez com que pode matar com esse negócio.
—Eu assumi — disse Vipond baixinho — a responsabilidade pessoal de encontrar este homem.
Ele se sentou e inspirou fundo. —Nenhum desses ataques parece fazer muito sentido. Você pode me dizer alguma coisa sobre a estratégia que os Redentores estão usando? —Sim.
Vipond se recostou e olhou para Cale, notando o tom estranho da sua resposta.
—Conheço essas táticas porque fui eu quem as desenvolveu. Se o senhor me der um mapa, posso explicar.
—Considerando o que você acabou de me dizer, não acho que lhe mostrar um mapa seja sensato. Explique primeiro.
—Se quer minha ajuda, preciso do mapa para explicar o que eles vão fazer e descobrir onde pará-los.
—Me dê um resumo. Depois veremos quanto ao mapa.
Cale podia ver que Vipond estava mais cético do que desconfiado — não acreditava nele.
—Uns oito meses atrás, o Redentor Bosco me levou até a Biblioteca da Corda do Redentor Enforcado, coisa que até onde eu sabia nenhum Redentor tinha feito por um acólito antes, e me deu acesso ilimitado a todas as obras ali sobre as táticas militares usadas pelos Redentores pelos últimos quinhentos anos. Então me entregou toda sua coleção pessoal sobre o império Materazzi, o que não era pouca coisa. Ele me mandou elaborar um plano de ataque.
—Por que você?
—Há dez anos que ele me ensinava sobre a guerra. Os Redentores têm uma escola só para isso. Somos uns duzentos no total. Eles nos chamam de Projetos. Eu sou o melhor.
—Quanta modéstia.
—Eu sou o melhor. A modéstia não tem nada a ver com isso.
—Prossiga.
—Depois de algumas semanas, decidi descartar um ataque surpresa. Gosto de surpresas, quer dizer, como tática, mas não desta vez.
—Não entendo. Este é um ataque surpresa. —Não, não é. Durante centenas de anos, os Redentores vêm lutando contra os Antagonistas. Ela é uma guerra quase toda de trincheira, e se encontra quase toda em um impasse. As trincheiras estão mais ou menos no mesmo lugar há 12 anos. É preciso acontecer algo de novo para acabar com esse impasse, mas os Redentores não gostam de novidades. Eles têm uma lei que permite a um Redentor matar um acólito no ato se ele fizer algo inesperado. Mas Bosco é diferente, ele está sempre pensando, e uma das coisas em que pensou foi que eu também era diferente e que podia me usar. —E como nos atacar vai resolver o impasse com os Antagonistas? —Eu também não conseguia entender isso direito, então perguntei para ele.
—E?
—Nada. Bosco só me deu uma bela surra. Daí continuei fazendo o que ele tinha mandado. A questão é, eu não achei que um ataque surpresa funcionaria contra os Materazzi porque eles não lutavam como ninguém: nem como os Redentores, nem como os Antagonistas. Os Redentores não têm cavalaria ou armaduras. Arqueiros são essenciais para eles. Vocês quase não os usam. Nossas armas de cerco eram grandalhonas e desengonçadas, sempre construídas no local de cada cerco. Vocês devem ter quatrocentas vilas e cidades com paredes cinco vezes mais grossas do que qualquer coisa a que estávamos acostumados.
—Dois dos trabucos usados em York deram problema, mas eles queimaram os quatro. Por quê? — —Eles conseguiram romper os muros no primeiro dia, não foi isso que o senhor disse?
—Foi.
—Eles testaram uma nova arma em uma batalha real contra um novo inimigo e bem longe de casa. Então, mesmo que duas tenham quebrado, as outras duas funcionaram.
—Mas duas, não.
—Então é preciso aperfeiçoá-las. Esse é o sentido de tudo isso.
—O que isso quer dizer?
—Não faz sentido surpreender seu inimigo nos termos deles e no território deles se você não tem a garantia de que vai dizimá-los rapidamente. Bosco sempre me batia porque, segundo ele, eu corria riscos desnecessários demais. Não desta vez. Eu sabia que os Redentores não estavam prontos, que nós... — ele se corrigiu — ... que eles precisavam realizar uma campanha curta, aprender o máximo possível sobre como lutavam os Materazzi, sobre qual era a qualidade de suas armas e armaduras e, então, bater em retirada. Mostre-me um mapa.
—Por que eu deveria confiar em você?
—Eu estou aqui lhe contando o que aconteceu, não estou? Nós
podíamos simplesmente ter caído fora.
—E se tudo isso que você está me contando for apenas falsa honestidade e Bosco estiver controlando você desde o início?
Cale riu.
—Essa é boa. Vou usar qualquer dia desses. Mostre o mapa.
—Nada disso — falou Vipond depois de um instante — deve sair deste gabinete.
—Quem me daria ouvidos além do senhor, de qualquer
maneira?
—Bem colocado. Mas, por via das dúvidas, se alguém mais souber que teve a ver com isso, sua recompensa será uma corda no pescoço. Vipond caminhou até uma prateleira na outra ponta do gabinete e puxou de cima dela um rolo de papel grosso. Ele fitou Cale bem nos olhos ao voltar para sua mesa, cortio se isso fosse fazer alguma diferença para alguém que passou a vida inteira escondendo os próprios pensamentos. Então, para o bem ou para o mal, tomou uma decisão e desenrolou o mapa sobre o tampo da mesa segurando as beiradas com pesos de papel de vidro venezianos e um exemplar de O Príncipe Melancólico, seu livro favorito. Cale analisou o mapa com uma concentração intensa diferente de qualquer coisa que Vipond havia visto nele antes. Durante a meia hora que se seguiu, ele respondeu às perguntas detalhadas de Cale sobre as localidades dos quatro ataques e os números e disposição dos soldados. Então se deteve e, por dez minutos, estudou o mapa em silêncio.
—Quero um copo d'água — disse Cale. A água foi logo trazida e ele a bebeu de uma golada só.
—E então?
—Os Materazzi possuem vilas e cidades muradas. Eu sabia que sem armas de cerco muito mais leves, que pudessem ser transportadas de cidade em cidade, seria melhor tocarmos trombetas e esperar as muralhas caírem. Falei para Bosco que os Engenheiros Papais precisavam construir algo muito menos pesado do que tínhamos e que fosse fácil de montar e
desmontar.
—E você mesmo projetou essas armas? —Eu? Não. Não entendo nada disso. Sabia apenas do que precisávamos.
—Mas ele não disse para você que concordava, que iria colocar seu plano em ação.
—Não. Quando fiquei sabendo dos ataques pela primeira vez, achei que estava... sabe como é... — Ele fez vários círculos com a mão ao redor da cabeça. —... meio maluco.
—Mas não está.
—Eu? A sanidade em pessoa. Enfim, eles aprenderam o que precisavam aprender em York e é por isso que bateram em retirada, levando três Materazzi junto. Queriam as armaduras, não os homens. Já devem estar a meio caminho do Santuário a essa altura, com os engenheiros esperando para dar uma bela olhada nelas.
—Você levou uma bela surra no Forte Invencível.
—Eu não, os Redentores.
—Você se refere a eles como nós às vezes. -— Força do hábito, chefe.
—Está certo, seu plano levou uma sova no Forte Invencível. .— Não exatamente, foi só azar. Os Materazzi não pretendiam atacá-los pela retaguarda, só calhou de eles estarem voltando na hora errada, quer dizer, para os Redentores. Se você quiser fazer Deus rir, conte seus planos para Ele. jsfáo é isso que dizem os agiotas de Memphis?
—Você deveria solicitar permissão para ir até o Gueto.
—Ninguém me falou.
—Sua língua é tão afiada que você vai acabar se cortando.
—Eu ainda estou vivo, se é isso que o senhor quer dizer.
—Ainda sustento que tudo saiu errado no Forte Invencível.
—Não é verdade.
—E por que não?
—Quantos Redentores morreram?
—Dois mil e quinhentos, aproximadamente.
—Eles enfrentaram sua cavalaria duas vezes e o restante conseguiu fugir. Os Redentores foram lá para ver do que vocês eram feitos, não para ganhar uma batalha.
—E quanto a Port Collard?
—Vocês o chamam de Pequena Memphis, por que isso?
—O porto foi construído em uma enseada natural muito parecida com a baía que temos aqui. A cidade foi erguida nos mesmos moldes. O design tinha funcionado uma vez... provincianos gostam de copiar as coisas... — Ele se interrompeu no meio da frase. — É. Isso mesmo. — Ele suspirou com força e espirrou. — Perdão. Certo, o que vai acontecer em seguida?
Cale deu de ombros.
—Sei o que viria em seguida no plano, isso não significa que será o que eles vão fazer.
—E por que não? Tem dado relativamente certo até agora.
—Não deu apenas certo, foi mais que isso. Eles conseguiram fazer tudo o que eu planejei.
Houve um silêncio desagradável. Surpreendentemente, foi Cale quem o quebrou.
—Perdão. O pecado do orgulho é muito forte em mim, pelo menos segundo Bosco.
—Ele está errado?
—É bem provável que não.
—Você conhece esse Princeps?
—Eu o encontrei uma vez. Ele era o chefe do governo militar ao longo do litoral norte na época. Lá a guerra não é de trincheira, para aqueles lados é só montanha e tal. É por isso que ele está no comando desta campanha porque é o melhor que eles têm para lutar com um exército em movimento Além de ser unha e carne com Bosco, embora até onde eu saiba não seja muito popular em outras vizinhanças.
—E você sabe por quê?
—Não. Mas li todos os seus relatórios de campanha. Ele luta como se não respondesse a ninguém. Esse tipo de atitude deixa o Gabinete da Intole rância furioso. Bosco o protege, pelo que sei.
—Então por que Princeps precisa que você diga a ele o que
fazer?
—O senhor precisaria perguntar para Bosco. — Cale gesticulou para o mapa. — Onde eles estão agora?
Vipond apontou para um local a cerca de 150 quilômetros do ponto mais ao norte das Terras Crestadas.
—Tudo indica que irão cruzar as Terras Crestadas até o
Santuário.
—É o que parece. Mas é arriscado demais conduzir um exército, por menor que ele seja, através das Terras Crestadas no verão.
—Então isso não faz parte do seu grande plano?
—O que faz exatamente parte do meu grande plano é que eles deem a impressão de que estão a caminho das Terras Crestadas através da floresta de Hessel, para vocês tentarem chegar lá primeiro e esperar eles virem ao seu encontro. Mas, assim que alcançarem a floresta, eles irão se voltar para o oeste e atravessarão este rio pela ponte Stamford, seguindo para Port Erroll bem aqui no litoral. A esquadra que incendiou a Pequena Memphis irá pegá-los neste porto. Se isso não der certo, pelo que li na biblioteca, as praias são rasas deste lado. Eles podem enviar barcos a remo se for preciso. — Ele apontou para um desfiladeiro no mapa. — Mesmo
que o tempo esteja ruim e a esquadra se atrase, assim que atravessarem o desfiladeiro de Baring, algumas centenas de Redentores poderiam conter até mesmo um exército numeroso por dias.
Vipond o encarou por tanto tempo sem dizer nada que começou a deixar Cale desconfortável e, em seguida, irritado. Ele estava prestes a falar quando Vipond lhe fez uma pergunta.
—Você espera que eu acredite que alguém da sua idade, seja ela qual for, receberia a tarefa de bolar um plano de ataque deste tipo e que então ele seria executado nos mínimos detalhes? Eu teria lhe confiado algo mais plausível.
A princípio, o rosto de Cale simplesmente se apagou, assumindo uma espécie de expressão morta que fez Vipond começar a se arrepender de seu tom de franqueza e se lembrar do prazer frio com o qual ele liquidara Solomon Solomon. O menino está a um passo da loucura, pensou ele. Mas então Cale gargalhou, um latido curto e repentino de divertimento.
—O senhor já viu os agiotas jogando xadrez no Gueto?
— Já.
—Um monte de velhos costuma jogar lá, mas tem algumas crianças também, muito mais novas do que eu. Uma delas sempre ganha, nem mesmo o velho rabicho com todos os seus cachinhos, barba, chapéu engraçado e tudo o mais consegue derrotá-lo. Então esse rabicho me diz...
—É rabino, me parece.
—Ah. Eu bem que estranhei. Enfim, então esse rabino ele me diz que o xadrez é um presente de Deus para nos ajudar a enxergar o seu plano divino, e que o tal menino que mal sabe ler é um sinal para acreditarmos na ordem que existe por trás de todas as coisas. Quanto a mim, eu tenho dois talentos: mato pessoas com a mesma facilidade com que você quebra um prato. E a outra coisa que sei fazer é olhar para um mapa ou parar em um lugar e conseguir ver como atacá-lo ou defendê-lo. É uma coisa que me vem como o jogo vem àquele menino no Gueto. Mas não acho que seja um presente de Deus. Se não acredita em mim, azar. Quem sai perdendo é o senhor.
—E como você os impediria? — O chanceler fez uma pausa. — Se fosse fazer isso.
—Para começar, não os deixaria chegar ao desfiladeiro de Baring, porque senão eles estarão salvos. Mas preciso de um mapa mais detalhado daqui até aqui — falou ele, apontando um trecho de cerca de 50 metros quadrados —, e duas ou três horas para pensar.
Deveria ele acreditar naquela criatura estranha à sua frente ou deixar tudo aquilo quieto? Uma das piadas favoritas do pai de Vipond era que, diante de uma crise, durante a metade do tempo era melhor esperar. "Não saia fazendo nada", dizia ele, "fique parado onde está."
—Espere no quarto ao lado e eu levo os mapas para você. Fique longe das janelas.
Cale se levantou e andou até o escritório particular, porém, quando estava prestes a fechar a porta às suas costas, Vipond o interrompeu.
—O massacre, ele também fazia parte do seu plano? Cale lançou-lhe um olhar estranho, mas, seja qual fosse aquela expressão, ela não era de ofensa.
—O que o senhor acha? — disse ele com tranqüilidade, fechando
a porta.
Vipond olhou para o seu meio-irmão.
—Você ficou bastante calado.
IdrisPukke deu de ombros.
—O que eu poderia dizer? Ou você acredita nele, ou não.
—E você acredita no que ele disse?
—Eu acredito nele. —E qual é a diferença?
—Ele esta sempre mentindo para mim porque não consegue se força assumir mais riscos do que precisa. Ser tão sigiloso pode ser um erro, e um erro que ele ainda está cometendo.
—Não sei bem se isso é exatamente um defeito — disse Vipond.
—Mas, como Cale, você também é uma pessoa sigilosa.
—E quanto a agora?
—Acho que ele está dizendo a verdade — falou IdrisPukke.
—Eu concordo. Assim que tomou a decisão de intervir, Vipond foi ficando cada vez mais tenso e impaciente para ver o plano de Cale, que levou não três horas, e sim mais de três dias para ficar pronto. "Você quer que ele fique bom ou quer tê-lo na sua mão agora?", falou Cale em resposta à exigência recorrente de Vipond de ver pelo menos algumas de suas idéias. Se toda essa impaciência parecia estranha para um pensador geralmente tão cabeça fresca era porque ele estava profundamente transtornado diante das mortes dos aldeões e do que elas revelavam sobre os estranhos relatos dos poucos refugiados Antagonistas que chegavam do norte. Algo na luva de Brizca deixara seus nervos à flor da pele, como se toda a maldade e sede de vingança do mundo tivesse se materializado na atenção dada ao seu design, na qualidade da costura e na maneira em que a lâmina havia sido presa com tanto esmero ao couro. Sua perturbação era ainda maior por ele ver a si mesmo como um homem do mundo, quase um cínico, e com certeza um pessimista. Havia se acostumado a esperar muito pouco das pessoas e raramente tinha surpresas nesse quesito. O fato de haver assassinato e crueldade no mundo não lhe era novidade. Porém, aquela luva era um testemunho da possibilidade de algo terrível que ia além da imaginação, como se o inferno que ele há tempos havia descartado como um terror destinado às crianças tivesse enviado um mensageiro não com chifre e casco no lugar dos pés, mas na forma de uma luva de couro fabricada com capricho.
Não era tarefa fácil para Vipond influenciar as táticas dos Materazzi, cuja inveja da sua preeminência chegava às raias da histeria. Vipond não era um soldado, mas era um político, o que não deixava de gerar suspeitas. Havia também o problema de o marechal Materazzi estar cada vez pior de saúde, o incômodo em sua garganta tendo se transformado em uma infecção pulmonar debilitante, que o deixara cada vez menos apto a comparecer às diversas reuniões convocadas para se discutir a campanha. Vipond precisava lidar com uma nova realidade — mes- mo que temporária. Ele, no entanto, conseguiu fazê-lo com a habilidade de sem- pre. Quando os batedores dos Materazzi perderam a trilha do exército Redentor na floresta de Hessel, não houve motivo para alarme, uma vez
que era esperado que eles saíssem dali em direção ao único caminho para as Terras Crestadas.
Foi então que Vipond teve uma reunião secreta com o vicemarechal, o general de campo Amos Narcisse, e o comunicou que sua rede de informantes tinha notícias sobre as verdadeiras intenções dos Redentores, mas que, no entanto, por motivos complexos, ele preferia que seu envolvimento no assunto permanecesse em segredo. Se Narcisse apresentasse essa informação ao conselho dos Materazzi como sua, isso reservaria uma glória considerável para o general de campo, assim como o plano de batalha que Vipond lhe ofereceria para ser analisado, caso o vicemarechal assim desejasse. Vipond percebia que Narcisse era um homem angustiado. Não que fosse um tolo, mas tampouco era mais que competente, por isso ficou alarmado ao perceber que, com a saúde comprometida do marechal, ele estava, para todos os efeitos, encarregado de toda a campanha. Jamais admitiria isso a ninguém, mas não acreditava ser o homem certo para a função. Vipond encorajou a total cooperação do general com promessas veladas, porém convincentes, de mudanças na lei tributária que seriam extremamente proveitosas para Narcisse, além de se oferecer a garantir o fim de uma disputa judicial de longa data envolvendo uma herança vultosa, que se arrastava por vinte anos e a qual Narcisse parecia fadado a perder.
Contudo, o general de campo não era totalmente corrupto, e mesmo ele não concordaria com uma estratégia que fosse colocar o império em risco. Ele passou várias horas debruçado sobre o plano de Vipond, ou seja, sobre o plano de Cale, antes de se convencer de que seus interesses financeiros e sua consciência militar estavam de acordo. Quem quer que tivesse bolado o plano, disse ele para Vipond, sabia o que estava fazendo. Ele fez menções não muito convincentes de não poder levar crédito no lugar de outro homem, mas Vipond o assegurou de que aquele plano era fruto de várias cabeças e que, de qualquer forma, o verdadeiro talento estaria na capacidade de liderança do homem que o executasse. No fim das contas, ele seria de fato o plano de Narcisse. Quando ele o apresentou e defendeu diante do conselho, isso já havia se tornado verdade, sendo que o fator decisivo para ele ser aceito foi o fato de o exército desaparecido dos Redentores ter aparecido justamente onde Narcisse previra.
Conforme afirma um famoso ditado, é uma boa coisa que as guerras sejam tão absurdamente caras, senão nós jamais pararíamos de travá-las. Por mais que isso seja verdade, também sempre parecemos nos esquecer que, embora possa haver guerras justas e injustas, nunca existem guerras baratas. O problema para os Materazzi era que a maioria dos
financiadores profissionais do império era composta pelos judeus do Gueto. Os judeus, no entanto, tinham uma grande desconfiança em relação às guerras de terceiros, pois elas muitas vezes significavam tragédia para eles, fosse qual fosse o resultado. Se emprestassem dinheiro para o lado derrotado, não haveria ninguém para pagá-los de volta, porém se financiassem o lado vencedor, geralmente se decidia que os judeus tinham de alguma forma começado a guerra eles mesmos e precisavam ser deportados Assim, não haveria mais motivo para pagá-los. Pensando nisso, os Materazzi garantiram hipocritamente aos judeus que as dívidas de guerra seriam pagas, ao passo que os financiadores do Gueto afirmaram, com a mesma hipocrisia, que era difícil obter crédito numa quantia tão grande e, mesmo que conseguissem, as taxas de juros seriam proibitivas. Foi durante essas negociações que Kitty das Lebres viu sua oportunidade e resolveu o problema oferecendo-se a financiar todos os custos de guerra dos Materazzi. Isso foi um imenso alívio para os judeus, que consideravam Kitty Town uma abominação aos olhos de Deus. Era sabido por todos que eles não fariam negócio com seu dono sob hipótese alguma, mesmo que isso significasse serem deportados. Kitty estava mais preocupado com os Materazzi. Apesar de todos os seus subornos, todas as chantagens e a corrupção política, ele sabia que a opinião pública em Memphis estava se voltando contra as práticas repugnantes que se davam em Kitty Town, e que algum tipo de medida contra ele era praticamente inevitável. Kitty das Lebres calculava que a guerra, especialmente uma tão aprovada pela população em geral, fosse acabar com o que ele considerava um acesso temporário de desaprovação moral ao seu local de trabalho. Ao financiar o que suspeitava ser uma campanha breve, Kitty das Lebres estava relativamente seguro que bancar todos os seus custos garantiria sua posição em Memphis por muito, muito tempo.
Então, finalmente os Materazzi estavam preparados para atacar os Redentores e, com o grande plano de Narcisse para guiá-los, 40 mil homens em suas armaduras completas partiram da cidade sob a torcida de multidões imensas. Foi divulgado que o marechal estava concluindo sua estratégia para a guerra e mais tarde se juntaria às tropas. O que não era verdade. O marechal estava extremamente debilitado por conta de uma infecção pulmonar e era pouco provável que sequer participasse da campanha. Além disso, o plano dos Redentores de fazer com que os Materazzi esperassem por eles na saída das "ferras Crestadas enquanto eles tomavam o caminho oposto havia claramente fracassado. Assim que eles deixaram a floresta de Hessel, uma força avançada de 2 mil Materazzi começou a segui-los pela outra margem do rio Oxus. Dali ern diante, cada
movimento do exército Redentor passou a ser observado e os detalhes transmitidos ao general de campo Narcisse.
Para a surpresa de Princeps, não houve nenhuma tentativa de deter seu exército e, em menos de três dias, eles já haviam cruzado quase 100 quilômetros. Aquela altura, os efeitos da disenteria haviam enfraquecido mais da metade de sua tropa e o comandante decidiu descansar por meio dia em Burnt Mills. Ele enviou uma comitiva ao encontro dos defensores da cidade, ameaçando massacrar todos os seus habitantes como haviam feito em Mount Nugent, porém, caso eles se rendessem imediatamente e fornecessem comida aos seus homens, seriam poupados. Eles acataram. Na manhã seguinte, os Redentores continuaram sua marcha em direção ao desfiladeiro de Baring. Então Princeps, vendo o horror que o massacre havia causado na população local, enviou uma pequena força de duzentos homens na frente, usando a mesma tática de fornecer aos seus homens ainda debilitados um suprimento contínuo de comida, que era em grande parte melhor do que aquela a que estavam acostumados, o que levantou bastante seus ânimos.
O plano de campanha que Cale desenvolvera para um ataque exploratório contra o império Materazzi havia até então se mostrado eficiente, no entanto, o território no qual estavam entrando havia sido mapeado de forma não mais que imprecisa nos documentos da biblioteca do Santuário. Um dos objetivos mais importantes do plano tinha sido trazer vinte cartógrafos e enviá-los em dez grupos diferentes para mapear o terreno que eles iriam atacar no ano seguinte da maneira mais detalhada possível. Os três grupos que mapeavam o caminho logo adiante ainda não haviam retornado, e Princeps se deslocava em um ambiente sobre o qual tinha apenas a mais vaga das impressões. No dia seguinte, Princeps havia tentado fazer seu exército atravessar o Oxus em White Bend, porém, as tropas que o seguiam na margem oposta haviam passado a contar com 5 mil homens. Ele foi obrigado a desistir e seguir para o interior, onde o caminho era difícil e os poucos vilarejos que poderiam ter usado para se reabastecerem tinham sido evacuados pelos Materazzi e tudo que fosse útil ou de valor removido.
No decorrer dos dois dias seguintes, os Redentores seguiram marcha, procurando com um desespero crescente uma maneira de atravessar o rio, algo que os Materazzi na margem oposta estavam igualmente determinados a evitar. A cada hora que passava, os Redentores ficavam mais cansados e fracos pela falta de comida e pelos efeitos da disenteria, conseguindo cobrir apenas 16 quilômetros por dia. Mas então a sorte deles mudou. Seus batedores haviam capturado um criador de gado e
sua família. Desesperado para salvá-la, o cria- dor lhes contou sobre um antigo vau, atualmente em desuso, o qual ele achava que até mesmo um exército numeroso conseguiria atravessar. Os batedores retornaram com a notícia de que a travessia seria difícil e que, embora o vau precisasse de reparos consideráveis, ele era recuperável. A sorte deles melhorou ainda mais. Pântanos extensos do outro lado do Oxus tinham forçado as tropas Materazzi a se afastarem bastante do rio e sumirem de vista. Depois de quase entrarem em desespero, os Redentores passaram a sentir uma grande onda de esperança. Duas horas depois, uma cabeça de ponte havia sido levantada do outro lado do Oxus e os demais Redentores começaram a reparar e reconstruir a travessia com pedras das casas mais próximas. Ao meio-dia, o trabalho estava pronto e o exército principal começou a atravessar o rio. Quando o sol se pôs, o último dos Redentores já havia chegado em segurança à margem oposta. E, embora pequenos números de Materazzi tivessem se aproximado a uma distância segura para observar a última hora da travessia, eles não fizeram nada além de continuar a enviar mensagens de volta para Narcisse.
Depois de andarem cerca de 5 quilômetros no dia seguinte, os Redentores se depararam com uma visão que fez Princeps perceber que seu exército estava acabado. As estradas lamacentas estavam acidentadas como terras mal aradas e os arbustos que as margeavam a 10 metros de distância rentes ao solo de tão pisoteados — dezenas de milhares de Materazzi haviam passado ali antes deles. Percebendo que um exército bem maior do que o seu deveria estar esperando entre eles e o desfiladeiro de Baring, Princeps fez o que pôde para resguardar a informação restante que tinha sido, desde o início, o objetivo principal do plano de Cale. Os cartógrafos sobreviventes fizeram o maior número possível de cópias de seus mapas e, em seguida, Princeps os enviou disfarçados em 12 direções diferentes, na esperança de que pelo menos um deles conseguisse chegar ao Santuário. Ele rezou uma pequena missa e então eles seguiram marcha. Passaram dois dias sem ver ou ouvir sinal do inimigo além do rio de lama que cruzavam. Então começou a chover forte em aguaceiros terrivelmente gelados. Debaixo de vento e chuva, o exército subiu uma colina íngreme, o que conseguiram fazer sem grandes problemas, porém, quando passaram por sobre o topo e chegaram à planície à sua frente, se depararam com o exército Materazzi reunido e aguardando por eles em grande número. De ambos os lados, descendo pelos vales, mais deles chegavam a cada momento. A chuva parou, o sol saiu e os Materazzi desfraldaram suas bandeiras e estandartes, que esvoaçavam alegremente, vermelhos, azuis e dourados, a luz do sol se refletindo na armadura prateada dos soldados.
Apesar de todos os esforços do Redentor General Princeps, a batalha agora era inevitável. Mas não naquele dia. Já era quase noite, e os Materazzi, tendo instilado o medo da morte e da danação eterna nos Redentores que os observavam, saíram de prontidão e recuaram um pouco para o norte. Ao ver isso, os Redentores também recuaram um pouco e se acomodaram no abrigo que lhes foi possível encontrar, embora não antes de Princeps mandar seus arqueiros cortarem das árvores que os cercavam uma baliza de proteção de 1,80 metro de largura para cada um. Temendo que os Materazzi pudessem atacar à noite, ele ordenou que não se acendesse nenhuma fogueira, para que nenhum atacante descobrisse a localização do acampamento. Molhados, com frio e famintos, os Redentores deitaram ali mesmo, se confessando, ouvindo a missa, rezando e esperando pela morte. Princeps caminhou entre eles entregando-lhes medalhas santas de São Judas, o padroeiro das causas perdidas, rezando por sua alma e pela de seus homens junto com todos, desde os cavadores de fossas até os dois arcebispos encarregados de comandar os soldados.
—Lembrem-se, homens — disse ele com animação para cada padre e soldado —, nós somos pó e ao pó retornaremos.
—E já teremos retornado a essa hora de amanhã — falou um dos monges, ao que, para grande surpresa do seu arquidiácono, Princeps riu.
—E você, Dunbar?
—Sim — respondeu Dunbar.
—Bem, você não está enganado.
A maioria dos Materazzi estava a menos de 800 metros de distância, suas fogueiras ardendo brilhantes. Os Redentores conseguiam ouvir trechos de canções, várias ofensas gritadas contra eles próprios e, no ar parado à medida que a noite transcorria, uma ou outra frase de conversas comuns. O primeiro- sargento Trevor Beale estava mais próximo ainda. Subordinado à equipe de Narcisse, ele estava tocaiado a menos de 50 metros de distância, tentando ver o que poderia fazer de útil.
Deprimido, molhado, com frio, fome e cheio de medo do que estava por vir, o Redentor Colm Malik se encaminhou até uma das poucas tendas que o Quarto Exército havia trazido consigo. "Bem", pensou ele, "a culpa é toda sua. Foi você quem insistiu em se oferecer a vir quando poderia ter ficado na segurança do Santuário, tirando o couro dos acólitos."
Ele se agachou para passar pela aba da tenda, deparando-se com o Redentor Petar Brzica com os olhos baixados para um menino de uns 14 anos, sentado no chão com as mãos amarradas atrás das costas. O menino tinha uma expressão  estranha no rosto — estava pálido de terror, o que era compreensível mas também havia outra coisa que Malik não conseguia distinguir. Ódio, talvez.
—O senhor mandou me chamar, Redentor.
—Malik, sim — disse Brzica. — Estava imaginando se o senhor poderia fazer um serviço para mim.
Malik assentiu com o máximo de desanimo que achava poder transmitir sem se dar mal.
—Este menino aqui é um espião ou um assassino contratado pelos Ma- terazzi, pois está me dizendo que foi testemunha da nossa ação em Mount Nugent. Precisamos dar um jeito nele.
—Sim? — Malik estava intrigado e não apenas botando
empecilho.
—Logo antes de os vigias o capturarem e trazê-lo até mim, eu recebi uma absolvição completa de todos os meus pecados do próprio Arcebispo.
—Entendo.
—Está na cara que não. Matar uma pessoa desarmada, por mais que ela mereça, requer uma absolvição formal. Não posso matá-lo com as próprias mãos e depois pedir outro perdão para o Arcebispo, ele vai achar que eu sou um idiota. O senhor já se confessou?
—Ainda não.
—Então qual é o problema? Leve-o para a floresta e livre-se
dele.
—O senhor não pode arranjar outra pessoa?
—Não. Agora ande logo com isso.
Assim, Malik conduziu o rapazinho aterrorizado pelo acampamento encharcado pela garoa, por entre as várias missas murmuradas que os monges rezavam uns para os outros e através dos piquetes, até a floresta próxima dali. A cada passo, seu coração se afundava mais nas botas molhadas: surras e corretivos eram uma coisa, mas cortar a garganta de um menino que já havia testemunhado algo do qual Malik se sentira enojado de participar era demais para ele. No dia seguinte, tinha um encontro marcado com o Criador. Assim que eles saíram de vista e se embrenharam nos arbustos, ele agarrou o menino e sussurrou:
—Vou deixar você fugir. Corra naquela direção e não olhe para tras. Entendido?
—Sim — falou o menino apavorado. Malik cortou a corda que prendia os seus punhos e ficou observando enquanto ele corria aos trancos e barrancos, chorando e desaparecendo na escuridão. Ele aguardou vários minutos para se certificar que, em seu terror, o menino não fizesse a burrada de voltar em direção ao piquete. Se alguém o encontrasse no dia seguinte, já não teria importância. E assim, esperando que este gesto de caridade pesasse para compensar seus muitos pecados contra os mais jovens, Malik voltou para o acampamento e direto para a faca do primeirosargento Trevor Beale.
Cale estava de pé bem antes do raiar do dia e, à medida que o céu se iluminava aos poucos, ele se viu acompanhado por Henri Embromador, depois Kleist e, por último, durante a própria aurora, IdrisPukke. Eles estavam no topo da colina de Silbury, de onde tinham uma visão desimpedida do campo de batalha. Silbury não era exatamente uma colina, mas sim um grande outeiro que havia sido erguido por motivos àquela altura desconhecidos e pessoas há muito esquecidas. Seu cume plano dava uma excelente plataforma de observação, não só para sentinelas vigiarem os movimentos do inimigo — embora o campo de batalha fosse visível o bastante de onde quer que você estivesse do lado dos Materazzi —, mas para os diversos agregados da corte: embaixadores, adidos militares, civis importantes e até mesmo mulheres de vulto no clã Materazzi. Uma delas era Arbell Pescoço de Cisne, que insistira em estar presente apesar da objeção fervorosa de seu pai e de Cale — ambos tendo assinalado que ela era um alvo primário para os Redentores e que, no calor e na confusão de uma batalha, a segurança de ninguém estava garantida. Ela argumentou que a presença de outras mulheres Materazzi tornaria sua ausência vergonhosa, especialmente em se considerando que aquela guerra estava sendo travada para salvar sua vida. Aqueles eram homens que estavam se arriscando à morte por causa dela, e apenas a covardia poderia
explicar sua ausência. Ela continuara batendo nessa tecla até o dia anterior ao conflito, o marechal cedendo somente depois de Narcisse confirmar tanto a condição deplorável e o pequeno contingente do exército Redentor como a segurança oferecida pela colina de Silbury. Ela era íngreme demais para facilitar um ataque e simples de se defender com uma breve e segura linha de fuga. Cale foi voto vencido, porém, já havia planejado que, ao primeiro sinal de perigo, ele a tiraria dali, à força se necessário. Assim que viu as linhas de combate formadas naquela manhãzinha, ficou muito mais aliviado.
O campo de batalha era um triângulo. Cale estava na colina de Silbury, no canto esquerdo da base, e o exército Materazzi, com algo em torno de 45 mil homens, se espalhava em uma linha compacta até o canto direito. Os Redentores ocupavam a ponta do triângulo. Dos dois lados, havia paredes grossas e quase impenetráveis de árvores de um negrume azulado e, entre elas, uma planície extensa, quase toda recentemente arada, mas com uma listra reluzente de palha amarela marcando a posição dos Materazzi. Eles estimaram que a distância entre os exércitos fosse de pouco mais que 800 metros.
—Você acha que são quantos? — perguntou Cale para Henri Embroma- dor, meneando a cabeça em direção aos Redentores. Ele demorou uns bons trinta segundos para responder. —Uns 5 mil arqueiros. Talvez 1.300 soldados. —Temos que dar o braço a torcer a Narcisse — falou IdrisPukke boce- jando. — Os Redentores não podem bater em retirada e, se atacarem nessas condições, ele vai massacrá-los. Vou pegar meu café da manhã. — Kleist foi com ele até onde um criado velho soprava um fogo, seu rosto vermelho como uma lagosta, ao seu lado um prato de ovos marrons e um pernil defumado do tamanho de uma perna de cavalo. Enquanto esperavam, um cão de caça vermelho de uma das mulheres dos Materazzi se juntou a eles, balançando o rabo e torcendo para ser incluído na refeição que estava sendo preparada. Enquanto comiam, não ouviram ninguém mais conceder nada a Narcisse, exceto uma quantidade considerável de comiseração. Embora seu plano contasse com o apoio e a admiração de todos, e isso vindo de homens que eram soldados muito experientes e habilidosos, durante vinte anos eles estavam acostumados a que o marechal Materazzi tivesse a última palavra sobre as questões de precedência na linha de ataque. Sua infeliz ausência do campo de batalha permitiu o ressurgimento de rivalidades há muito
esquecidas sem que houvesse uma solução clara para elas. Além disso, Narcisse tinha sido obrigado a modificar seu plano de batalha em três ocasiões — algo que mesmo grandes generais eram muitas vezes obrigados a fazer. Isso significava que nobres de sangue azul, que antes estavam destacados para funções importantes na linha de frente, agora precisavam aceitar postos de comando sem distinção, mas ainda assim essenciais, na retaguarda. Para eles, parecia um rebaixamento desonroso em suas vidas, que haviam sido dedicadas às glórias e proezas militares e eram, na verdade, definidas por elas. A engenhosidade de se encurralar os Redentores em um campo estreito havia se tornado o problema em si, pois havia muitos nobres de grande experiência, habilidade e coragem, mas não lugares o suficiente para colocá-los. E, para piorar, cada um deles estava convencido, e por bons motivos, de que era o melhor homem para a função, e que ceder a vez apenas para manter um acordo era uma concessão grande demais, que poderia prejudicar o império que todos eles haviam jurado proteger, se dispondo a morrer para tanto. Cada homem tinha um argumento em defesa própria e poucos não eram bons. Teria sido preciso toda a habilidade diplomática e anos de autoridade do marechal Materazzi para forçar um resolução e, por mais competente que fosse, Narcisse não tinha nenhuma das duas coisas. No fim das contas, decidiu que todos os nobres mais poderosos poderiam cada um liderar um setor da linha de frente e somente aqueles que imaginava poder ofender foram destacados para funções secundárias. Isso deixou a cadeia de comando complicadíssima, porém, foi a melhor saída que ele pôde encontrar, uma vez que a situação estava ficando mais e mais complexa a cada hora, à medida que um imenso número de recém-chegados também exigia seu lugar de direito no esquema geral dos acontecimentos. Narcisse confortava a si mesmo ao pensar que, embora os problemas de Princeps fossem infinitamente mais simples, eles também eram infinitamente mais graves. Fingindo ter que supervisionar a disposição das tropas inimigas, ele deixou a Tenda Branca e suas discussões para trás, porém, ao fazê-lo, notou Simon Materazzi vestindo uma armadura completa e causando grande comoção entre uma dúzia de soldados ao demonstrar seus recém-aprendidos golpes de espada. Narcisse puxou um de seus cavalari- ços de lado e sussurrou para ele. —Leve o filho cabeça-oca do marechal para a retaguarda imediatamente e o mantenha protegido até tudo isso acabar. A última coisa de que preciso é que ele saia andando em direção à batalha e acabe sendo morto. — Só para garantir, ele chegou até a esperar para ver aquilo ser feito, para a fúria incontida, porém inútil, de Simon. Koolhaus tinha ido pegar um copo d'água e não viu nada disso acontecer.
Cale e Henri Embromador ficaram observando e cogitando hipóteses, porém, por mais que discutissem o que fariam no lugar de Princeps, nenhum dos dois conseguia botar defeito no resumo que IdrisPukke fizera da situação. Então, a ansiedade deles começou a passar. —O plano é seu, na verdade — falou Henri Embromador enquanto olhava admirado para as esplêndidas fileiras de homens de armadura e estandartes coloridos. —A ideia é minha. O crédito por isto aqui é de Narcisse. Não está nada mau. Um pouco cheio demais. Mas nada mau mesmo assim. — Ele refletiu sobre o futuro sombrio que aguardava os Redentores mais abaixo com considerável prazer. Não obstante, foi com sentimentos indesejados de ódio misturado com medo que os dois continuaram olhando para o exército Redentor que começava a se formar em aglomerados de soldados, dividido em três unidades separadas por dois pequenos blocos de cavalaria. A esquerda e à direita, havia mais dois blocos de arqueiros. Apesar de todos os maus sentimentos que nutriam pelos Redentores, Cale e Henri Embromador conseguiam ver como eles estavam em maus lençóis. Àquela altura, tinham pouca ou nenhuma comida e estavam com frio e ensopados — à medida que o sol brilhava mais forte e eles começavam a se mover, podia-se ver o vapor subindo de seus corpos. Para os que estivessem com diarréia, a situação era ainda pior — não havia a menor chance de sair do campo de batalha e eles precisavam cagar bem onde estavam. E tudo isso diante de um exército bem equipado, bem alimentado e pelo menos dez vezes maior do que o deles. -As perspectivas eram deliciosamente adversas.
De frente para eles, os Materazzi haviam sido dispostos de forma nada sistemática em dois grupos de soldados, com suas armaduras completas (embora muitas ainda não tivessem sido ajustadas), cada um deles com 8 mil cabeças. Dos dois lados e atrás deles, havia duas fileiras de cavalaria, num total de 1.200 homens. As linhas de frente ainda não estavam formadas — muitos tinham se sentado para comer e beber e ainda se ouviam vários gritos, vivas e risadas, assim como várias tentativas extraoficiais de se conseguir, na base do empurra-empurra, uma posição na vanguarda. Carneiros estavam sendo assados e até um cavalo, com longas colunas de vapor saindo dos caldeirões fumegantes. Os que estavam agitados demais para sentar e comer, com suas pernas ainda desprotegidas enfiadas na palha amarela, vestiram a parte de baixo de suas armaduras, assumiram suas posições e tentaram se aproximar da linha de frente com
mais empurrões fortes, embora nenhum deles fosse indisciplinado a ponto de apelar para algo mais violento.
Duas horas depois, nada havia acontecido ainda. Pálida, Arbell Pescoço de Cisne se juntou a eles, acompanhada por um IdrisPukke agora de barriga cheia, Kleist e também Riba. Apesar de toda gorduchice que perdera no decorrer dos últimos meses, ela ainda representava e sempre representaria um contraste evidente em relação à sua patroa. Era mais baixa quase 20 centímetros, morena, de olhos castanhos e ainda tão curvilínea e carnuda quanto Arbell era sinuosa, loira e esguia. As duas eram tão diferentes de se ver quanto uma pomba e um cisne.
Uma Arbell ansiosa lhes perguntou o que eles achavam que iria acontecer e todos concordaram que os Materazzi estavam certos em se manter onde estavam, pois cedo ou tarde Princeps seria forçado a atacar. De qualquer ângulo que Cale observasse, a situação dos Redentores era prazerosamente desesperadora.
—Alguém viu Simon? — perguntou Arbell.
—Ele vai ficar com o marechal — disse IdrisPukke. Simon e o marechal tinham passado a ser inseparáveis.
—São quase como pai e filho — brincou Kleist longe dos ouvidos de Arbell.
Ainda preocupada, ela estava prestes a mandar dois criados atrás do seu irmão quando um grupo de cinco soldados montados se aproximou deles. Um era Conn Materazzi. Ele não chegava tão perto assim de Cale desde a luta. —Eu fui enviado pelo general de campo Narcisse para ver se você estava segura.
—Estou sim, bastante. Você viu meu irmão?
—Sim. Acho que vi, mais ou menos uma hora atrás. Na Tenda Branca com o otário que traduz o que ele diz.
—Você não tem direito de falar assim de Koolhaus. Procure Simon e, por favor, certifique-se de ele seja mandado para cá. — Então ela se virou para seus dois criados e os despachou para a Tenda dos Oficiais com as mesmas instruções.
Pela primeira vez, Conn Materazzi olhou para Cale.
—Você parece bem seguro aqui em cima, eu diria.
Cale não disse nada. Conn voltou sua atenção para Kleist.
—E quanto a você? Se tiver coragem o bastante para não ficar só sentado aqui enquanto nós lutamos no seu lugar, posso arranjar um lugar para você na linha de frente.
Kleist pareceu interessado.
—Está certo — respondeu ele de bom grado. — Tenho que resolver algumas coisinhas aqui antes, mas podem ir andando que eu alcanço vocês daqui a pouco.
Conn tinha bem pouco senso de humor, mas até ele percebeu que estava sendo gozado.
—Pelo menos seus amigos sebosos lá na frente têm a coragem de lutar por si mesmos. Já vocês vão ficar aqui enquanto nós vamos para a batalha.
—De que adianta — respondeu Kleist, como se estivesse explicando aquilo para alguém intelectualmente comprometido — ter um cachorro e latir por conta própria?
Porém, não era tão fácil tirar sarro de Conn — ou, melhor dizendo, no seu caso as gozações surtiam menos efeito, por ele ter sido criado para se considerar alguém de imenso valor.
—Vocês têm mais motivos para participar da batalha de hoje do que qualquer um de nós. Se acham isso engraçado, então não preciso da última palavra de um bufão para que os outros vejam quem vocês são de verdade.
E, tendo dado ele mesmo a última palavra, Conn virou seu cavalo para o outro lado e partiu. A verdade era que aquilo teve pouco efeito sobre Henri Embromador, e nenhum sobre Kleist, mas tocou numa ferida de Cale. A vitória contra Solomon Solomon lhe mostrara que sua habilidade estava à mercê de um terror que poderia ir e vir a qualquer momento. De que servia aquele dom se o pânico poderia suprimi-lo? Ele
sabia que o que o mantinha no topo da colina era o fato de aquela luta, estritamente falando, não ser sua; além de ele ser obrigado por dever e por amor a proteger Arbell Materazzi. No entanto, havia também a lembrança da tremedeira, da debilidade e de suas tripas se liqüefazendo — a terrível sensação de estar amedrontado e fraco. Àquela altura, havia outro visitante no topo da colina de Silbury; um vi- sitante cuja aparição casou frisson entre as figuras ilustres ali reunidas. Embora tivesse chegado ao pé da colina numa carruagem, ele havia sido transportado até lá em cima em uma liteira totalmente coberta, do tipo usado pelas damas Materazzi para se deslocarem pelas ruas estreitas da cidade antiquíssima, onde carruagens não conseguiam passar. Oito homens, claramente exaustos por conta da subida, carregavam a liteira, enquanto outros dez a vigiavam. —Quem é esse? — perguntou Cale para IdrisPukke. —Bem, não posso dizer que me surpreendo com facilidade, mas isso sim é espantoso. —E a Arca da Aliança? —Melhor olhar para baixo, não para cima. Se um dia o próprio diabo for possuído, vai ser por essa criatura aí. Estamos falando de Kitty das Lebres. Cale ficou devidamente impressionado e, por um instante, não falou nada enquanto olhava para os 11 guardas. —Eles parecem habilidosos. —E não é por acaso. Mercenários lacônicos. Devem custar uma bela graninha. —O que ele está fazendo aqui? Achei que fosse o tipo de gente de que você ouve falar, mas não vê nunca. —Brinque enquanto pode. Se você irritar Kitty, vai se arrepender. Ele provavelmente veio dar uma conferida no seu investimento. Além do mais, hoje é a chance de ser ver a história sendo feita e sem correr nenhum risco. Então a porta da liteira se abriu e um homem saiu lá de dentro. Cale resmungou de decepção.
—Esse não é Kitty — falou IdrisPukke. —Graças a Deus. Belzebu tem que impor respeito. —Às vezes eu me esqueço de que você é só um menino. Se um dia tiver a oportunidade de conhecer aquele ali — acrescentou IdrisPukke, gesticulando para o homem —, lembre-se, senhor Acabei de Sair das Fraldas, de arranjar um compromisso inadiável em algum outro lugar. —Agora eu fiquei com medo. —Você é um fedelho insolente mesmo, não é? Aquele é Daniel Cadbury. Procure o verbete "capanga" no Dicionário Geral do Dr. Johnson e você irá encontrar o nome dele. Pode procurar também por "assassino", "homicida" e "ladrão de ovelhas". Mas é o charme em pessoa. Prestativo a ponto de você achar que ele poderia lhe emprestar o próprio rabo e cagar pelas costelas. Enquanto Cale tentava entender esse interessante comentário, um Cad- bury sorridente veio até onde eles estavam. —Quanto tempo, IdrisPukke. Trabalhando muito? —Olá, Cadbury. Resolveu dar uma paradinha aqui para estrangular algum órfão? Cadbury sorriu como se achasse genuinamente divertida a malícia na voz de IdrisPukke e, alto como era, baixou os olhos com ar de aprovação para Cale. —Ele é uma figura, o seu amigo, não é mesmo? Você deve ser Cale acrescentou ele em um tom que sugeria que ser Cale era algo importante. —Eu estava na Arena Vermelha quando você deu cabo de Solomon Solomon. Não consigo imaginar um sujeito mais simpático tendo um fim daqueles. Muito impressionante, meu jovem, muito impressionante. Temos que almoçar juntos um dia, depois que esse aborrecimento todo acabar. — E, com uma me- sura que demonstrava respeito por Cale, mas como se viesse de um igual que também merecia ser respeitado, ele deu meia-volta e retornou para a liteira. —Ele parece muito simpático — falou Cale, com o intuito de irritar. —E vai continuar sendo, até o momento em que for obrigado, com todo o arrependimento do mundo, a cortar sua traqueia.
Ouviu-se um grito de Henri Embromador. As fileiras dos Redentores estavam se movimentando. Em uma linha de cerca de dez homens de profundidade, os 6 mil arqueiros e 1.900 soldados avançavam devagar. Quarenta e cinco metros mais adiante, à beira do campo arado que se estendia até onde estavam os Materazzi, eles pararam e a primeira fileira se ajoelhou. —O que eles estão tramando? — disse IdrisPukke. —Estão apanhando um punhado de terra para comer — disse Cale —, para se lembrarem de que são barro e ao barro retornarão. Depois de fazer isso, a primeira fileira se levantou e caminhou até o campo arado. A fileira atrás deles andou para frente, se ajoelhou, apanhou um bocado de terra e os seguiu — e assim por diante. Em menos de cinco minutos, todo o exército Redentor estava de volta à sua formação de batalha dispersa, andando quase em ritmo de passeio e sem marchar sobre o solo acidentado. Tudo que os Materazzi e os espectadores na colina de Silbury podiam fazer era esperar e observar. —Quando eles vão apressar o passo para o ataque? — perguntou IdrisPukke. —Nunca — disse Henri Embromador. — Os Materazzi não usam ar- queiros, então a distância mínima para um ataque letal é o quê? Um metro e oitenta? Não tem motivo para ter pressa. — Já fazia dez minutos que eles haviam começado a avançar e, tendo coberto 650 metros dos pouco mais de 800 até a linha de frente dos Materazzi, ouviu-se um grito dos centenários dos Redentores, cadâ qual responsável por uma centena de homens. O exército parou.
Houve mais gritos abafados dos centenários, e os arqueiros e soldados começaram a se deslocar para a esquerda e para direita, expandindo a linha de modo que ela cobrisse toda a extensão do campo de batalha. Em menos de três minutos, eles haviam acabado de reorganizar sua formação de ataque e estavam a cerca de um metro de distância uns dos outros. As sete fileiras atrás da linha de frente estavam organizadas como em um tabuleiro de damas, para que os arqueiros pudessem ver e gritar com mais facilidade por sobre as cabeças dos homens à sua frente.
Por alguns minutos, tinha ficado claro que cada Redentor estava carregando o que parecia uma lança de cerca de 1,80 metro de comprimento. No entanto, agora que eles haviam parado e estavam bem
mais próximos, não havia dúvidas de que o que carregavam era grosso e pesado demais para ser uma lança. Os centenários deram outra ordem e a utilidade daquela arma ficou óbvia. O que se seguiu foi uma longa série de marteladas, enquanto o que haviam se revelado balizas de defesa eram cravadas em um ângulo inclinado no solo com marretas pesadas que cada arqueiro também trazia.
—Por que eles estão preparando uma linha de defesa? — perguntou IdrisPukke.
—Não sei — respondeu Cale. — E vocês?
Kleist e Henri Embromador deram de ombros.
—Não faz sentido. Eles foram pegos desprevenidos pelos Materazzi. — Cale olhou para IdrisPukke com ansiedade. — Tem certeza que os Materazzi não vão atacar?
—Por que eles desperdiçariam uma vantagem dessas?
Àquela altura, os Redentores estavam ocupados afiando as pontas das balizas.
—Eles estão tentando provocá-los a atacar — disse Cale após alguns instantes. Ele se virou para IdrisPukke. — Estão a distância de tiro. Quatro mil arqueiros, seis flechas por minuto. Você acha que os Materazzi podem resistir a 24 mil flechas vindo para cima deles a cada sessenta segundos? IdrisPukke deu uma fungada e refletiu sobre o assunto. — Cento e tantos metros é longe pra cacete. Não me interessa quantos eles sejam. Cada um dos Materazzi está coberto dos pés à cabeça de aço. Não existe flecha que consiga penetrar aço temperado a essa distância. Não estou dizendo que eu gostaria de estar debaixo de uma chuva dessas, mas os Redentores terão sorte se uma em cem acertar o alvo. E eles não terão tantas flechas, no máximo algumas dúzias para cada um, para manter esse ritmo por muito tempo. Se esse for o plano deles... — IdrisPukke deu de ombros para indicar como fazia pouco daquilo.
Cale olhou para o grupo de cinco sinalizadores Materazzi que também observavam os Redentores do ângulo privilegiado da colina de Silbury. Um deles estava partindo com a notícia de que as balizas de defesa
estavam sendo fincadas no chão, algo que as linhas de frente dos Materazzi teriam dificuldade em ver. Haviam levado algum tempo para entender o que os Redentores estavam fazendo com as balizas e decidir se valia a pena enviar um mensageiro por causa daquilo.
Depois de observar o mensageiro desaparecer por sobre a beira da colina, Cale se voltou novamente para os Redentores. Uma dúzia de porta-estandartes, carregando bandeiras brancas com a imagem do Redentor Enforcado pintada de vermelho, erguiam as cores do exército. A ordem para apontar foi dada pelos centenários, longínqua demais para ser ouvida com exatidão, porém tornada óbvia quando milhares de arqueiros puxaram as cordas de seus arcos para trás, mirando-os para cima. Depois de uma curta pausa, um grito dos centenários e os estandartes foram baixados. Quatro nuvens de flechas descreveram um arco de quase 100 metros de altura no ar, zunindo em direção à linha de frente dos Materazzi. Três segundos depois, elas atingiram os Materazzi, que baixaram as cabeças para se protegerem das pontas. As 5 mil flechas se chocaram contra os alvos, silvando e retinindo, ricocheteando pela linha blindada, enquanto os soldados se curvavam sob a chuva de aço como se atravessassem uma tempestade de vento e granizo. Dos flancos, ouviam-se cavalos relinchando ao serem atingidos. Mas então outra saraivada de 5 mil flechas já os atingia novamente. Dez segundos depois, uma terceira. Durante dois minutos, aquela chuva continuou caindo sobre os Materazzi. Poucos morreram, outros poucos ficaram feridos — IdrisPukke tinha razão quando disse que a armadura daqueles soldados aguentaria o tranco. Porém, tente levar em conta o barulho, o interminável estardalhaço do metal, a curta espera, mais flechas, os cavalos relinchando, os gritos dos azarados atingidos no olho ou no pescoço e o fato de que nenhum daqueles homens havia sofrido um ataque tão hostil e aterrorizante na vida. Que sentido fazia ficarem simplesmente parados ali, levando flechadas de beatos insignificantes e covardes sem nenhuma educação, habilidade ou coragem de lutar mano a mano?
Foi a cavalaria em ambos os lados que quebrou a formação, o lado esquerdo partindo primeiro, na dúvida depois que dois de seus portaestandartes caíram — teria sido um sinal? Era muito difícil saber em meio ao relinchar dos cavalos feridos — seus próprios corcéis entrando em pânico e prontos para disparar — e enxergando apenas por uma pequena fresta para os olhos o que se desenrolava à sua volta. Três cavalos saíram correndo, assustados. Será um comando de ataque? Ninguém queria demonstrar covardia ao ficar para trás Atentos e tensos como corredores quando um atleta queima a largada, a linha de frente inteira avança. Gritos
vindos de trás para manter a formação se per dem em meio ao barulho — e então as flechas caem do céu novamente.
De repente, os cavalos do flanco esquerdo avançam — impaciência, fúria, medo e confusão fazendo-os disparar.
Narcisse, observando da Tenda Branca, xinga como se fosse explodir. Porém, logo percebe que eles não podem ser chamados de volta. Ele acena para seus porta-estandartes fazerem sinal para o flanco direito da cavalaria atacar também. E só então que o mensageiro chega da colina de Silbury para avisá-lo da série de balizas fincadas no solo entre os arqueiros nos flancos.
No topo da colina de Silbury, um Cale horrorizado observa com incredulidade a cavalaria avançar, os cavaleiros esporeando seus corcéis para formarem uma linha de ataque. Rapidamente eles se juntam em três fileiras, joelho a joelho, a menos de 300 metros da linha de arqueiros à sua frente. A princípio, mantêm uma velocidade não muito mais rápida do que a de um homem correndo de leve, de pé em seus estribos, as lanças debaixo dos braços direitos, a mão esquerda segurando as rédeas. Por cerca de 200 metros e quarenta segundos eles sustentam o mesmo ritmo, suportando a chuva de 20 mil flechas no caminho. E então, os últimos 50 metros — 2 mil misturas de homem, animal e aço seguindo em disparada para atropelar os arqueiros.
Os arqueiros, ainda com o gosto de lama misturado com medo na boca, disparam outra saraivada. Mais cavalos gritam e caem, esmagando seus cavaleiros, quebrando costas, derrubando também os que cavalgavam ao lado na queda. Mas a linha se aproxima. E então o choque do impacto. Nenhum cavalo atropela por vontade própria um homem ou se lança contra uma barricada que não possa saltar. Nenhum homem com a cabeça no lugar ficará parado diante de um cavalo em disparada e uma lança. Porém, um homem é capaz de escolher a morte, enquanto um animal, não. Eles não podem ser treinados para morrer. Quando os cavalos pareciam prestes a atingi-los como uma onda esmagadora, os arqueiros recuaram e foram depressa para o meio das balizas cerradas e afiadas. Alguns escorregaram, outros foram lentos demais e acabaram pisoteados ou lancetados. Cavalos alcançaram as balizas a uma velocidade grande demais e não conseguiram evitá-las. Empalados, relinchavam como se fosse o fim do mundo, os cavaleiros atirados da cela, com seus pescoços quebrados. Caídos na lama e se
debatendo como peixes, os Redentores os liquidavam com golpes de marreta ou então eram segurados por um enquanto outro os apunhalava através das articulações das armaduras, deixando vermelha a lama marrom.
A maioria dos cavalos empacou. Alguns escorregaram, fazendo seus cavaleiros caírem, outros continuaram avançando enquanto a grande carga parava num piscar de olhos, dando meia-volta, cavalo se chocando contra cavalo, transformados pelo medo em criaturas da metade do seu tamanho e peso e fugindo de volta à segurança da retaguarda. Cavaleiros foram ao chão às centenas e, em um segundo, arqueiros disparavam de trás das balizas e espancavam as cabeças e os peitos dos soldados desnorteados com golpes violentos de suas marretas. Três Redentores com suas batinas enlameadas para cada cavaleiro Materazzi que tentava se levantar do chão e sacar a espada, enquanto eram empurrados, escorregando e caindo de volta, e esfaqueados pela fenda dos olhos e das articulações da armadura. Mais adiante, em meio ao conjunto de balizas, irados e livres do medo, os arqueiros dispararam contra os cavaleiros que recuavam. Mais cavalos feridos caíram, enquanto outros disparavam numa corrida frenética.
O pior ainda estava por vir. Para dar apoio à cavalaria, como era sua obrigação, o vice-marechal teve de enviar a linha de frente de soldados para auxiliar o ataque. Com 10 mil cabeças e dispostos em oito camadas de homens, eles já estavam a meio caminho das linhas dos Redentores quando a cavalaria em retirada, seus cavalos aterrorizados e enlouquecidos pelo medo e pelos ferimentos, atropelou o contingente de Materazzi que avançava. Amontoados e encurralados dos dois lados pela floresta cerrada e atrás pelas demais fileiras de soldados, era impossível desviar para dar passagem aos cavalos em disparada. Desesperados para evitar o impacto mortal à medida que os cavalos avançavam em sua direção, os soldados começaram a se empurrar, dando encontrões uns nos outros para abrir caminho, agarrando seus vizinhos e criando ondas que se espalharam para trás e para os dois lados enquanto homem atrás de homem caía, agarrandose ao colega mais próximo para evitar a queda. Assim, o avanço foi totalmente contido e dispersado — homens escorregavam na lama revirada, xingando e arrastando uns aos outros para o chão. Os arqueiros dos Redentores, tendo ganhado tempo para se reorganizarem, dispararam as flechas restantes. Porém, desta vez, com os Materazzi parados e a pouco mais de 70 metros de distância, suas pontas poderiam atravessar até mesmo o aço das armaduras, se o tiro fosse certeiro.
Embora apenas algumas centenas de homens tivessem sido pisoteadas pelos cavalos em fuga ou feridas pelas flechas, os milhares que restavam come çaram a se agachar uns atrás dos outros, antes que os sargentos e capitães, aos berros, os obrigassem a retomar a formação e a investida reiniciasse. Embora prejudicados pela desordem e pela marcha de quase 300 metros sob o peso de 27 quilos de armadura em um campo lamacento, o poder de seu ataque foi aumentando pouco a pouco. Cinqüenta metros. Vinte. Dez... e, nos últimos metros restantes, eles começaram a correr, apontando suas lanças para cravá-las no peito dos oponentes. Porém, no momento do impacto, os Redentores, como se fossem uma só criatura, correram alguns metros para trás, desequilibrando seus inimigos, que pisaram em falso no instante do golpe. De modo que, novamente, ao longo das fileiras dos Materazzi os soldados titubearam até parar, na medida em que alguns avançavam e outros recuavam — e assim, aos trancos e barrancos, o grande impulso do ataque foi frustrado uma segunda vez. Agora, no entanto, apesar de toda a confusão durante o ataque, os Materazzi tinham certeza de que iriam ganhar — protegidos por suas armaduras, os melhores soldados do mundo estavam finalmente cara a cara com seus oponentes, em vantagem de cinco contra um. Seguros da vitória, eles avançaram. Além dos gritos e berros dos homens, o ar se encheu do barulho de lanças se chocando e dos grunhidos dos Materazzi — que se encontravam mais amontoados ainda, chegando a vinte camadas de profundidade em alguns pontos, todos se empurrando para chegar onde estavam a ação e a glória. No entanto, somente os Materazzi na dianteira podiam lutar — menos de mil homens conseguiam desferir golpes a seu bel-prazer. Reduzidos em número, os Redentores tinham espaço para entrar e sair da zona de ataque de menos de 4 metros. Incapazes de avançar, os Materazzi da frente eram empurrados pelos companheiros imediatamente às suas costas e, o que era pior, pelas dezenas atrás destes — os mais afastados não faziam idéia do que estava acontecendo na frente e continuavam o enipurra-empurra, assim como os do meio. A pressão começou a aumentar, um homem empurrando o outro, que empurrava o outro e assim por diante. Os soldados na dianteira tentavam se esquivar e desviar para os lados ou recuar à medida que os Redentores os golpeavam, mas não havia espaço. Então a pressão vinda de trás, de uma força incrível, os lançou para a frente em direção às pontas das lanças e aos golpes de marreta. Alguns caíram feridos; outros, sem conseguirem manter o equilíbrio por conta da pressão e da lama escorregadia feito graxa, derraparam e fizeram o homem de trás, que também estava sendo
empurrado, ir ao chão — e assim sucessivamente. Querendo dar um fim àquilo, as fileiras do meio dos Materazzi tentaram saltar por cima dos homens caídos na sua frente. No entanto, quer fosse esta a intenção deles ou não, a pressão dos homens de trás que não conseguiam enxergar os fizeram pisar em cima dos seus companheiros — muitos escorregaram e caíram também, acabando na lama ou incapazes de manter o equilíbrio ao pisotear os homens que se contorciam sob seus pés. De que adiantava uma armadura ali se não havia espaço para se mover? Ela não passava de um estorvo enquanto eles tentavam encontrar apoio ou escalar as duas, três camadas de corpos no chão. Embora os Rendetores também caíssem, eles podiam se levantar com facilidade ou serem puxados de volta pelos companheiros. Em três ou quatro minutos, uma muralha de Materazzi caídos se formou na dianteira, protegendo os Redentores e ameaçando frustrar o ataque — e, ainda assim, a retaguarda continuava a pressionar, suas fileiras tão numerosas que ninguém atrás conseguia ver o que acontecia mais adiante. Os homens ali achavam que cada queda na linha de frente significava que ela estava avançando, o que só servia para incentivá-los a empurrar mais. Poucos dos Materazzi empilhados no chão estavam mortos ou mesmo gravemente feridos, porém, em meio às estocadas, empurrões e lama já era difícil um soldado sozinho se levantar depois de uma queda. Com um segundo em cima dele, era quase impossível se mexer. Depois do terceiro, ele ficava tão indefeso quanto uma criança. Imagine a raiva e o medo destes homens — depois de anos de treinamento e de colecionar tantas batalhas e cicatrizes, reduzidos a serem esmagados até a morte ou esperarem, caídos na lama, que algum plebeu esmagasse seus peitos com uma marreta ou os esfaqueasse pelo visor do elmo ou pela articulação debaixo do braço. Quanta angústia, terror e impotência. E, sem descanso, aquela pressão terrível vinda de trás à medida que vinte fileiras de Materazzi empurravam, convencidos de que venceriam e loucos para deixar suas marcas antes de a batalha terminar. Mensageiros posicionados em volta do que se tornara a retaguarda do campo de batalha, ávidos por dar notícias, porém impossibilitados de ver o desastre mais à frente e que a batalha já estava perdida, enviaram comunicados de que a vitória era quase certa e chamaram reforços para arrematar o combate. Dentro da Tenda Branca, ouviam-se notícias contraditórias vindas da colina de Silbury, de onde o fracasso na linha de frente podia ser claramente visualizado pelos observadores. Contudo, mesmo lá em cima, somente os meninos e IdrisPukke conseguiam entender por completo a calamidade que se desenrolava diante de seus olhos. De modo que os observadores, inseguros e incertos, não tinham coragem de aconselhar que
os Materazzi batessem em retirada. Aquilo era por si só inconcebível, e a probabilidade de estarem enga- nados era grande demais. Assim, eles escreveram mensagens alarmantes, porém cercadas de dúvidas e poréns. Narcisse recebia sinais da frente de batalha exi- gindo reforços para arrematar o combate, mas também os comunicados desoladores da colina de Silbury, por mais que estivessem cheios de dedos e relutantes em encarar que a batalha já estava perdida. Ignorando os riscos, Narcisse tinha investido boa parte de seus homens em um único ataque contra um inimigo doente, enfraquecido e mal equipado diante do maior exército da Terra, que não perdia uma só batalha há mais de vinte anos. A derrota não fazia sentido. Assim, apesar de todo o temor que sentia diante dos comunicados da colina de Silbury, o general de campo deu rapidamente a ordem para que a segunda unidade se lançasse ao ataque.
De cima da colina, quando os meninos e IdrisPukke viram a segunda unidade avançar em direção à frente de batalha, os quatro soltaram um grito de incredulidade, espanto e raiva.
—O que está acontecendo? — perguntou Arbell Pescoço de Cisne para Cale. Seu amante ergueu a mão e resmungou.
—Não está vendo? A batalha já está perdida. Aqueles homens estão se encaminhando para a morte, e quem vai proteger Memphis quando os corpos deles estiverem apodrecendo no campo de batalha lá embaixo?
—Não pode ser. Diga que não é verdade. Não pode ser tão ruim.
—Olhe por si mesma — falou ele, gesticulando em direção à frente de batalha. Milhares de arqueiros dos Redentores cercavam os Materazzi pelos lados e até mesmo por trás, espancando-os com cajados e marretas e derrubando-os aos montes, uma vez que cada um que caia levava outros três ou quatro consigo para o chão. — Temos que sair daqui — disse Cale baixinho. — Roland — gritou, chamando o cavalariço de Arbell. — Traga o cavalo dela, e agora! Meu Deus — exclamou ele com uma agonia terrível. — Eu não acreditaria nisso se não estivesse vendo com meus próprios olhos.
Ele assentiu para Henri Embromador e Kleist, que começaram a voltar em direção às tendas. Porém, enquanto se afastavam, uma figura veio, mancando e ofegante, ao encontro deles.
—Esperem — chamou o vulto. Era Koolhaus, com o rosto vermelho e agitado. — Mademoiselle, é seu irmão, Simon. Ele me
despistou quando nos estávamos na retaguarda, observando a cavalaria. Achei que tínhamos apenas nos desencontrado na multidão, mas quando voltei para a tenda dele vi que a armadura que seu pai lhe deu de aniversário tinha sumido. Uma hora atrás, seu irmão estava com aquele idiota do Lorde Parson, que estava brincando que o levaria com ele durante o primeiro ataque. — Ele se deteve por um instante, caindo em silêncio. — Acho que ele está no campo de batalha lá embaixo. —Como você pode ter sido tão descuidado?! — gritou Arbell com Koolhaus. Mas, imediatamente, se voltou para Cale. — Por favor, encontre-o. Traga meu irmão de volta.
Cale estava pasmo demais para dizer qualquer coisa, mas Kleist,
não.
—Se quiser que os dois acabem mortos, não consigo pensar em maneira melhor de conseguir isso. — Kleist apontou para a batalha. — Daqui a alguns minutos, haverá 25 mil homens lá embaixo, todos espremidos em um campo de batatas. Os Redentores já ganharam. Tudo que nós veremos pelas próximas duas horas serão homens morrendo. E você quer que ele vá para lá? É como procurar uma agulha em um palheiro. E um palheiro em chamas, ainda por cima.
Porém, era como se ela estivesse surda e conseguisse apenas fitar dentro dos olhos de Cale, desesperada e suplicante.
—Por favor, ajude meu irmão.
—Kleist tem razão — falou Henri Embromador. — Independente do que aconteça com Simon, não podemos fazer nada.
Novamente, ela pareceu não ouvir, ainda fitando Cale nos olhos. Então, lentamente, sem esperanças, ela baixou o olhar.
—Compreendo — disse Arbell.
Foi isso, é claro, que o atingiu como se ela tivesse esfaqueado seu coração. Para ele, aquele era o som da perda da fé — e isso era insuportável. Ele sentia ter se tornado uma espécie de deus aos olhos dela, de modo que lhe era simplesmente impossível desistir daquela adoração. Durante todo esse tempo, Riba tinha mantido a boca fechada, esperando poder contar com os outros para deter Cale. No entanto, ela sabia que, quando o assunto era Arbell, ele já havia perdido todo o juízo. Por mais que
ela nutrisse por seu estranho salvador uma espécie de medo — e por mais rispidez e indiferença que Cale lhe reservasse quando os dois se cruzavam durante seus afazeres diários —, Riba tinha percebido há meses que, em se tratando de Arbell, havia certa loucura nele. —Não faça isso, Thomas — falou ela, tão austera quanto uma mãe. Arbell a encarou, ao mesmo tempo chocada e furiosa ao ver sua criada contradizê- la daquela maneira. No entanto, uma vez que tantas pessoas estavam contra ela naquela questão, ela não podia mandar Riba calar a boca, ou sequer se manifestar. Mas não fazia diferença. Era como se Cale não tivesse nem ouvido.
Cale olhou por sobre o ombro para a batalha que se desintegrava mais abaixo, seu coração afundando no peito. Então olhou para Henri Embroma- dor e Kleist.
—Me deem o máximo de cobertura possível, mas não se demorem a ponto de não conseguirem sair depois.
—Eu não ia'mesmo.
Cale riu.
—E não se esqueçam, se algum de vocês me atingir, eu vou saber quem foi.
—Se for eu, não vai, não.
—Voltem para Memphis com os guardas dela. Eu sigo vocês assim que puder.
Eles correram até a tenda para apanhar suas coisas. Cale puxou Idris- Pukke de lado.
—Se o pior acontecer, vá para Treetops.
—Você não deveria ir lá para baixo, menino — falou IdrisPukke.
—Eu sei.
Henri Embromador e Kleist voltaram com as mãos firmes e começaram a se preparar. IdrisPukke mandou um dos cavalariços de Arbell
tirar seus trajes oficiais, uma blusa estampada com dragões azuis e dourados que trazia bordado o lema do clã Materazzi: Antes Morrer do que Mudar. Então, a entregou para Cale.
—Se descer do jeito que está todo mundo vai querer acertar você. Se estiver vestindo isso, pelo menos os Materazzi não irão atacá-lo.
—E se for capturado — disse Arbell —, talvez eles percebam que você vale um resgate muito grande.
Ao escutar essas palavras, Kleist começou a gargalhar como se fosse a coisa mais engraçada que tivesse ouvido na vida.
—Deixe ela em paz — falou Cale.
—É melhor se preocupar com a própria pele, parceiro. Eu diria que ela vai ficar bem.
Com isso, Cale foi até a beirada da colina e desapareceu além dela, descendo a encosta íngreme quase em ritmo de corrida. Em trinta segundos, estava no campo de batalha. À sua frente, a segunda unidade já adentrava os destroços brutais do primeiro ataque, mais 8 mil homens espremidos em um espaço pequeno demais para metade disso. Os Redentores já haviam começado a se espalhar pelos lados, cercando os recém-chegados — os reforços dando-lhes apenas mais soldados incapazes de se mover que eles poderiam apunhalar e estripar à vontade. As fileiras apinhadas de soldados haviam se separado aqui e ali enquanto seguiam aos empurrões, e pilhas enormes de corpos, algumas chegando a 3 metros de altura, faziam o amontoado de gente oscilar em volta deles como o mar entre as rochas. Cale deu uma corridinha e, em dois minutos, estava seguindo ao longo da retaguarda dos Materazzi. Comparando aquela perspectiva com o panorama que tinha do alto da colina, ele não conseguia fazer idéia do que estava acontecendo. Alguns dos soldados ali atrás estavam recuados, inseguros quanto ao que fazer, enquanto outros tentavam avançar. Somente por conta da visão que tivera lá de cima ele sabia que, mais adiante e se espalhando pelos lados, um massacre estava ocorrendo. Ali, não havia nem mesmo muito barulho, somente grupos de soldados tentando seguir adiante, mudando de direção sempre que alguém encontrava uma brecha ou — depois que mais gente caía na linha de frente — conseguia avançar um pouco, achando que eles haviam tornado a penetrar as fileiras dos Redentores. E assim, milhares de
homens impacientes, torcendo para não perder aquela oportunidade, seguiam lentamente rumo a suas mortes.
Cale correu ao longo da fileira de trás procurando por Simon, uma missão tão impossível quanto Kleist previra. Porém, se enquanto descia a colina de Silbury ele estava se iludindo, agora lhe restava apenas o desespero. Jamais encontraria Simon, mesmo que ele ainda não estivesse morto. Tudo o que iria acontecer era que ele próprio morreria lá embaixo ou então retornaria como um fracassado aos olhos de Arbell. Mesmo que ela aceitasse que não havia nada que Cale pudesse fazer, ele não queria que Arbell tivesse que aceitar uma coisa dessas. Não queria abrir mão do que significava ser adorado.
No entanto, Cale tinha outras coisas com que se preocupar. Duas dúzias de Redentores surgiram ao lado de uma fileira de Materazzi. Em grupos de três, eles atacaram qualquer soldado que tentasse chegar à linha de frente. Um os derrubava com uma foice longa, um segundo os acertava com uma das marretas pesadas que haviam usado para fincar as balizas de madeira no chão e um terceiro os apunhalava por baixo do braço ou pelo visor do elmo. Depois de abatidos os retardatários, eles começaram até a usar as foices para dar rasteiras nos homens que, alinhados, tentavam avançar aos empurrões. Em meio à confusão e à lama, soldados que teriam sido praticamente invulneráveis em qualquer outra ocasião escorregavam e caíam no chão lamacento, debatendo-se antes de serem liquidados, indefesos como bebês recém-nascidos. Então um grupo de Redentores viu Cale e se moveu para atacálo por três lados. Uma flecha acertou o que estava à sua esquerda no olho, um dardo o que estava à sua direita. O primeiro caiu em silêncio, o segundo gritando e agarrando o próprio peito. O terceiro ainda estava com uma expressão assombrada no rosto quando Cale desferiu um golpe contra o seu pescoço cortando-lhe a garganta até chegar à espinha dorsal. Ele caiu se debatendo na lama ao lado do Lorde dos Seis Condados, que Cale havia matado segundos antes. Então ele entrou numa segunda briga, segurando o braço do seu agressor, batendo com a testa no seu rosto e apunhalando-o com habilidade no coração. Um ceifador caiu boquiaberto ao ser atingido por um dos dardos de Henri, mas a flecha de Kleist só atingiu o marreteiro no braço. Sua sorte durou dois segundos, até Cale, escorregando na lama, errar o golpe fatal e acertá-lo na barriga. Ele caiu aos berros, deitando-se onde levaria horas para morrer. Então, outra onda de soldados empurrou para trás os Redentores restantes e Cale ficou parado ali, coberto de sangue e se sentindo impotente, sem saber para que lado ir. Todo seu grande
talento não significava nada em meio àquela confusão — ali, ele era apenas um menino numa multidão de homens condenados. E então, quando ele estava prestes a dar meia-volta, outro grupo de homens foi ao chão. Sessenta soldados desabaram logo à sua frente, o maior número até então, e uma fenda longa se abriu em direção à linha de frente. Por um instante de terror ele hesitou, sabendo que aquela brecha era a própria mandíbula da morte se abrindo para ele. No entanto, o medo de fracassar diante dos olhos de sua amada o impulsionou até a abertura que se alargava brevemente e, conseguindo correr muito mais rápido do que os homens de armadura que escorregavam ao seu redor, ele chegou a uma distância de cerca de 4 metros da linha de frente. Porém, tudo o que o esperava era uma muralha impenetrável de Materazzi mortos e moribundos. Ninguém diante dele tinha um só ferimento, aqueles homens haviam apenas caído uns sobre os outros, sendo esmagados pelo peso dos que estavam em cima e dos que empurravam de trás. Por alguns momentos, havia apenas as pilhas de cadáveres e um gemido estranho, abafado. Os elmos de alguns deles tinham se soltado, outros, presos, mas com uma das mãos livres os haviam tirado numa tentativa desesperada de conseguir respirar. Seus rostos estavam roxos, alguns quase pretos — Cale podia ouvir os arquejos horrorosos daqueles que se esforçavam para encher seus pulmões de ar —, mas nada conseguiria entrar em seus peitos terrivelmente esmagados. Enquanto ele observava, a respiração daqueles homens parou e suas bocas se escancararam como as de peixes à margem de um rio. Muitos falaram com ele com seus sussurros apavorantes: "Me ajude! Me ajude!" Ele tentou libertar alguns, porém, era como se estivessem presos à farinha de arroz misturada com concreto das muralhas do Santuário. Ele se virou e correu os olhos pelas pilhas de mortos e moribundos que o cercavam. —Socorro! — falou uma voz rouca. Ele baixou os olhos para um jovem, seu rosto de um azul-arroxeado apavorante. — Socorro! — Cale afastou o olhar. — Cale, socorro!
Estupefato, Cale se virou. E então reconheceu o rapaz, mesmo sob os tons de preto e azul do seu rosto inchado. Era Conn Materazzi. Uma flecha passou zunindo pela sua orelha direita e retiniu ao atingir um dos mortos de armadura. Ele se agachou ao lado de Conn.
—Posso lhe oferecer uma morte rápida. Sim ou não?
Conn, no entanto, não pareceu ouvir aquilo.
—Socorro! Socorro! — disse ele, um som terrivelmente suave e
rascante.
Novamente, e de forma mais intensa ao se deparar com alguém que conhecia, Cale sentiu como era terrível estar ali — e como era inútil. Olhando ansioso por sobre o ombro, ele conseguia ver a abertura que lhe permitira chegar tão perto da linha de frente começar a se fechar de volta, à medida que os Redentores forçavam os Materazzi nas beiradas de volta para o meio. Ele se levantou para correr enquanto havia tempo.
—Socorro!
Algo nos olhos de Conn Materazzi congelou os cabelos da sua nuca — todo aquele horror e desespero terríveis. Cale mergulhou as mãos na pilha de mortos e puxou com toda sua força, então redobrada pela raiva e pelo medo. Porém, Conn estava preso, com um homem embaixo e três em cima, por quase 500 quilos de peso morto e chapas de aço. Ele puxou novamente. Nada.
—Me desculpe, colega — falou ele para Conn. — Tempo
esgotado.
Foi neste momento que um empurrão forte nas costas fez Cale se estatelar no chão. Assustado e surpreso, ele chapinhou na lama enquanto tentava sacar a espada e se desvencilhar do seu agressor. Era um cavalo. O animal olhou para ele e bufou, cheio de esperança. Cale o encarou de volta — com seu dono morto, ele estava procurando alguém para tirá-lo do campo de batalha. Imediatamente, Cale apanhou a corda presa à sela, amarrou-a em volta do cabeçote maciço e então se apressou a prendê-la em volta do peito de Conn e debaixo da sua axila. Àquela altura, seu rosto estava preto e seus olhos vazios. Por sorte, a corda era fina, porém muito resistente, e foi fácil passá-la por baixo de um braço e depois do outro. Ele a amarrou mais rápido do que qualquer outra coisa que tivesse feito na vida e então caiu na lama antes de conseguir saltar para cima da sela. Mais desesperado do que nunca, agarrou o cabeçote e, vendo que a fenda se fechava, gritou no ouvido do cavalo. Assustado, o animal disparou, derrapando no lodaçal até quase cair, mas finalmente recuperando o equilíbrio enquanto puxava com toda a força de um guerreiro corpulento acostumado a carregar mais de 100 quilos nas costas. A princípio, nada se mexeu, então com um impulso e um estalo da perna direita de Conn, ele foi libertado da pilha de cadáveres que o esmagava. O impulso repentino quase fez o cavalo cair novamente, e por pouco a sela não se soltou da mão de Cale. Então eles estavam em
movimento, os três seguindo em direção à abertura a não mais do que 6 ou 8 quilômetros por hora. Porém, o cavalo era forte, bem treinado e trotava adiante, feliz — apesar de todo o desastre à sua volta — por ter um cavaleiro montado nas suas costas. O instinto que mantivera o animal seguro enquanto ele zanzava pelo campo de batalha por mais de 15 minutos no meio de um massacre o protegeu novamente. Cale manteve o corpo o mais rente ao dorso do cavalo quanto possível, preparado para sacar sua faca e soltar Conn caso ele ameaçasse derrubá-los. No entanto, a lama que havia causado a morte de inúmeros Materazzi e ainda mataria outros tantos foi sua salvação. Inconsciente, ele pendia facilmente para qualquer direção que fosse puxado, quase como um trenó na neve. Com a cabeça abaixada, Cale instigou o cavalo a seguir em frente com os pés, sem ver os dois Redentores que vinham ao encontro do animal vagaroso. Ele tampouco os viu cair, gritando de horror e agonia como se fossem um só homem, abatidos pela vigilância implacável de Kleist e Henri Embromador.
Em menos de três minutos, o cavalo tinha atravessado o amontoado de homens que eram empurrados para o centro do campo e, sem drama ou alarde, deixado o local da batalha, carregando um Cale chacoalhante e arrastando um Conn inconsciente até uma passagem estreita entre a colina de Silbury e a floresta impenetrável que cingia o conflito. Uma vez fora de vista, Cale parou o cavalo e desceu para examinar Conn. Ele parecia morto, mas estava respirando. Rapidamente, Cale despiu sua armadura e, com grande dificuldade, o colocou de barriga para baixo em cima da sela. Enquanto isso, Conn gemia e gritava de dor por conta das costelas e da perna direita quebradas. Cale conduziu o cavalo adiante e, em cinco minutos, os sons da batalha desapareceram e foram substituídos pelo canto dos melros e pelo vento que soprava por entre as árvores da floresta.
Uma hora depois, Cale foi tomado por uma onda repentina de cansaço. Ele procurou uma maneira de se embrenhar na floresta e, sem conseguir achar uma entrada em meio à profusão de sarças e espinheiros que havia entre as árvores, se viu obrigado a cortar um caminho, embora tenha acabado cheio de talhos no rosto e nos braços ao fazê-lo. No entanto, depois de atravessada a beira da mata, a vegetação cerrada dava lugar a um terreno coberto de folhas mortas. Ele amarrou o cavalo e deitou Conn cautelosamente no chão. Ficou encarando-o por alguns minutos como se não conseguisse entender o que os havia levado àquele lugar juntos. Então, ajeitou sua perna com uma delicadeza que jamais dedicara a nenhuma outra coisa na vida, improvisando uma tala com dois galhos que havia cortado de um freixo. Em seguida, deitou-se no chão e caiu imediatamente em um sono profundo e terrível.
Acordou duas horas depois quando os pesadelos se tornaram insuportáveis. Conn Materazzi ainda estava inconsciente, agora pálido como a morte. Cale sabia que precisava encontrar no mínimo água, mas ainda estava exausto, de modo que por dez minutos ficou apenas sentado ali como em um transe medonho. Logo, Conn começou a gemer e se movimentar com agitação; ao despertar, viu Cale com os olhos baixados para ele. Ele gritou de horror e confusão.
—Calma. Você está bem.
Com os olhos esbugalhados e aterrorizados, Conn tentou recuar para longe de Cale. Ele urrou de dor.
—É melhor não tentar se mover — disse Cale. — Você quebrou o fê- mur. — Conn não falou nada por alguns minutos, enquanto a dor horrível em sua perna se dissipava muito lentamente.
—O que aconteceu? — perguntou ele por fim. Cale lhe disse. Quando terminou, Conn ficou um bom tempo calado. — O mais engraçado — falou ele quando finalmente quebrou o silêncio — é que eu nem cheguei a ver nenhum deles. Um Redentor, quero dizer. Nenhum que fosse. Você tem um pouco d'água? — O desespero e a agonia de Conn, o simples estado deplorável dele, começaram a despertar tanto pena quanto irritação em Cale.
—Vi fumaça logo antes de chegarmos aqui. Acho que ouvi falar ontem sobre um vilarejo perto da colina. Voltarei assim que puder. — Ele despiu o cavalo de sua armadura e cortou fora o máximo que pôde da cota de malha que protegia suas costas e flancos, conduzindo-o em seguida na direção de uma trilha. Montou nele e acariciou-lhe o topo da cabeça.
—Obrigado — disse ele ao animal, e então começou a cavalgá
lo.
35
Três horas depois, Conn Materazzi havia sido recolhido por um fazendeiro da região e deitado em uma cama, sua perna recolocada no lugar e totalmente imobilizada com quatro talas de nogueira e oito correias de
couro. Ele havia desmaiado novamente e gemeu de modo lamentável durante cerca de uma hora que Cale levou para endireitar sua perna a contento. Desde então, não recobrara a consciência. Para dizer a verdade, no fim sua palidez era tão escabrosa que era como se jamais fosse recobrála.
—Corte o cabelo dele — disse Cale para. o fazendeiro — e enterre sua armadura na floresta, para o caso de os Redentores aparecerem. Diga-lhes que ele é um lavrador. Se eu conseguir chegar a Memphis, mandarei buscá-lo aqui. Eles irão pagá-lo. Se não, ele mesmo o pagará quando estiver recuperado o bastante.
O fazendeiro olhou para Cale.
—Pode ficar com seus conselhos e com seu dinheiro. — E, com essas palavras, os deixou sozinhos. Logo em seguida, Conn acordou. Os dois ficaram algum tempo se encarando.
—Estou me lembrando agora — falou Conn. — Eu pedi sua
ajuda.
—Foi.
—Que lugar é esse?
—Uma fazenda, a duas horas do campo de batalha.
—Minha perna está doendo.
—Vai precisar ficar assim por seis semanas. Não dá pra saber se vai curar direito.
—Por que você me salvou?
—Não sei.
—Eu não teria feito o mesmo por você.
Cale deu de ombros.
—Esse é o tipo de coisa que só dá para saber quando acontece. Eu salvei você, isso é tudo que posso dizer.
Nenhum dos dois falou nada por um bom tempo.
—O que você vai fazer agora?
—Voltar para Memphis pela manhã. Se conseguir chegar lá, mando alguém buscar você.
—E depois?
—Vou pegar meus amigos e ir para algum lugar onde os soldados não sejam loucos e idiotas. Nunca imaginei que fosse possível perder uma batalha naquelas condições. Não acreditaria se não tivesse visto com meus próprios olhos.
—Não cometeremos o mesmo erro novamente.
—O que faz você pensar que terão essa chance? Princeps não vai ficar em Silbury se admirando no espelho. Ele vai sair metendo a porrada em vocês até os portões de Memphis.
—Nós vamos nos reagrupar.
—Com o quê? Três de cada quatro Materazzi estão mortos.
Conn não conseguiu dizer nada em resposta, apenas se recostou angustiado e fechou os olhos.
—Eu queria estar morto — disse ele por fim.
Cale riu.
—Você precisa se decidir, não foi isso que disse hoje de manhã.
Conn pareceu ainda mais deprimido, como se isso fosse
possível.
—Não sou ingrato — murmurou ele.
—Você não é ingrato? — falou Cale. — Isso quer dizer que você é grato, então?
—Sim, eu sou grato. — Conn fechou os olhos novamente. — Todos os meus amigos, meus parentes, meu pai, todos eles estão mortos.
—Provavelmente.
—Certamente.
Era bem provável que aquilo fosse verdade, de modo que Cale não conseguiu pensar em mais nada para dizer.
—E melhor você dormir. Não há nada que possa fazer além de melhorar e dar o troco para os Redentores da melhor forma que puder. Lembre-se: a vingança é a melhor vingança.
E, com essa pílula de sabedoria, ele deixou Conn com seus pensamentos angustiados.
Ao raiar da manhã seguinte ele partiu, montando o cavalo e decidindo que não havia necessidade de se despedir de Conn. Já havia feito mais do que o suficiente por ele, pensou Cale, e estava até um pouco envergonhado de ter arriscado a vida por alguém que, conforme o próprio Conn admitira, não teria feito o mesmo em seu lugar. Lembrou-se de uma observação feita por IdrisPukke certa noite em Treetops, quando eles estavam fumando juntos sob o luar. "Sempre resista aos seus primeiros impulsos. Eles normalmente são generosos." Na época, Cale tinha pensado que aquela era apenas mais uma das piadas de humor negro de IdrisPukke. Agora entendia o que ele queria dizer
Apesar de estar louco para chegar logo a Memphis e se certificar de que Arbell Pescoço de Cisne estava em segurança, Cale começou a viagem seguindo para o noroeste, afastando-se da cidade em um longo arco. Haveria muitos Redentores e Materazzi vagando confusos pela região, e nenhum deles muito seletivos quanto a quem matar. Ele evitou cidades e vilarejos e comprou comida apenas das fazendas isoladas que encontrou pelo caminho. Ainda assim notícias da batalha haviam chegado a todas elas, embora alguns falassem numa grande vitória e outros numa grande derrota. Ele dizia não saber nada a respeito e se apressava a retomar viagem.
No terceiro dia, ele pegou a direção oeste e seguiu para Memphis. Algum tempo depois, chegou à Agger Road, a estrada que ia de Somkheti até a capital. Estava deserta. Cale aguardou em meio às árvores antes da estrada por uma hora e, quando nada passou, decidiu se arriscar a seguir diretamente por ela. Isso acabou se provando o seu terceiro erro em quatro dias. Uma estranha inquietação começou a tomar conta dele à
medida que se aproximava de Memphis. Dez minutos depois, uma patrulha Materazzi surgiu de trás de uma curva fechada e Cale não teve como evitála. Pelo menos não eram os Redentores, e ele ficou aliviado, embora surpreso, ao ver que o homem que a comandava era o capitão Albin. No entanto, não conseguia entender o que o chefe da inteligência dos Materazzi estava fazendo ali. Sua incompreensão se tornou temor quando os vinte homens que acompanhavam Albin sacaram suas armas. Quatro deles eram arqueiros montados, suas flechas apontadas em cheio para o peito de Cale.
—Qual o problema? — perguntou Cale.
—Olha, não nos leve a mal, mas você está preso — disse Albin. — Seja um bom menino e não cause problemas. Nós vamos amarrar suas mãos.
Cale não tinha escolha senão obedecer. Provavelmente o marechal estava irritado porque ele deixou Arbell com Kleist e Henri Embromador. Um pensamento alarmante lhe veio à cabeça.
—Arbell Materazzi está bem?
—Está — disse Albin —, embora talvez você devesse ter pensado nisso antes de se mandar para onde quer que tenha se mandado.
—Eu estava procurando por Simon Materazzi.
—Bem, eu não tenho nada com isso. Agora nós vamos vendá-lo. Não faça caso por conta disso.
—Mas por quê?
—Porque eu estou dizendo.
Na verdade, era um saco pesado e com cheiro de lúpulo, a estopa tão grossa que isolava quase tanto o som quanto a luz. Cinco horas depois, Cale pôde sentir os músculos do cavalo debaixo dele se retesarem quando o caminho ficou íngreme de repente. Então, através do saco ele conseguiu ouvir o barulho surdo dos cascos contra madeira. Eles estavam atravessando um dos três portões de Memphis. Mesmo encapuzado, ele esperava ouvir muito mais barulho depois de entrar na cidade, no entanto, apesar de alguns gritos abafados aqui e ali, somente a continuidade da sensação de que subiam uma ladeira indicava que eles se encaminhavam
para a fortaleza. Sua ânsia de rever Arbell começou a dar um nó no seu estômago.
Por fim, eles pararam.
—Desmontem-no do cavalo — falou Albin. Dois homens o pegaram pelo lado esquerdo, puxando-o para baixo de forma até gentil e colocando-o de pé.
—Albin — falou Cale através do saco —, tire isso da minha
cabeça.
—Sinto muito.
Os dois homens o apanharam cada um por um braço e o arrastaram para a frente. Ele ouviu uma porta sendo aberta, então percebeu que havia entrado em algum lugar. Foi conduzido pelo que parecia um corredor. Outra porta se abriu com um rangido e novamente ele foi arrastado com cuidado. Alguns metros depois, pararam de andar. Após um instante, o saco foi retirado de sua cabeça.
Uma mistura de sujeira nos seus olhos com o fato de ter ficado tantas horas na escuridão total fez com que ele a princípio não enxergasse. Com as mãos amarradas, esfregou a vista para tirar o pó de lúpulo de cima dela e olhou para os dois únicos homens no salão. Um ele pôde ver imediatamente que era IdrisPukke, amordaçado e com as mãos atadas — no entanto, quando reconheceu o outro homem parado ao seu lado, uma onda terrível de medo e raiva fez seu coração parar por um instante. Estava diante do Redentor Bosco, o Lorde da Guerra. Passados os primeiros segundos de choque e aversão, Cale teve vontade de cair de joelhos e chorar como um bebê. E teria feito isso, não fosse pelo ódio que veio em seu resgate.
—Então Cale — disse Bosco —, a vontade de Deus nos trás de volta para onde começamos. Pense nisto enquanto me encara boquiaberto como um cão raivoso. O que toda sua ira e seus devaneios lhe trouxeram de bom?
—O que aconteceu com Arbell Materazzi?
—Ah, ela está bem segura.
Apesar de seu choque profundo, Cale não sabia ao certo se deveria perguntar por Henri Embromador e Kleist. Preferiu continuar calado.
—Não está preocupado com seus amigos? — perguntou Bosco. —Redentor — gritou ele enquanto a porta se abria na outra ponta do salão e Henri Embromador e Kleist, amordaçados e com as mãos atadas, eram trazidos para dentro.
Eles estavam ilesos, embora claramente aterrorizados.
—Tenho uma série de coisas para lhe contar, Cale, e gostaria de perder o mínimo de tempo possível com as habituais manifestações de incredulidade. Eu já menti para você alguma vez? — perguntou ele.
Ele o havia espancado com selvageria todas as semanas de sua vida e o obrigado a matar cinco vezes, porém, agora que tinha ouvido aquela pergunta, Cale precisava admitir que Bosco, até onde ele sabia, nunca havia lhe contado uma só mentira.
—Não.
—Lembre-se disso enquanto escuta o que tenho para lhe dizer. Você não pode ter dúvidas de que a importância do que vou lhe contar vai muito além deste tipo de mesquinharia. E, como prova da minha boa-fé, eu irei libertar seus amigos; todos os três.
—Prove — disse Cale.
Bosco riu.
—No passado, um tom de voz desses teria resultado em dor.
Ele estendeu sua mão e o Redentor Stape Roy lhe entregou um livro grosso encadernado em couro.
—Este é o Testamento do Redentor Enforcado. — Cale nunca tinha visto aquilo antes. Bosco espalmou a mão sobre a capa.
—Juro por Deus à custa da minha alma eterna que as promessas que farei neste instante e tudo o que disser hoje é a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade. — Ele olhou para Cale. — Satisfeito?
O simples fato de perjúrio não fazer parte do grande leque de atrocidades que Bosco cometera certamente não convencia Cale a acreditar nele. Porém, o Lorde da Guerra dava extrema importância a juramentos. E, além do mais, ele não tinha escolha.
—Sim — falou Cale.
Bosco se voltou para o Redentor Stape Roy.
—Dê o que eles precisarem, mas sem exageros, e um salvoconduto, depois pode libertá-los.
Stape Roy andou até IdrisPukke e o agarrou pelo braço, empurrando-o na direção de Henri Embromador e Kleist. Então, arrastou os três até a porta. Cale começou a achar que Bosco poderia estar dizendo a verdade: suas instruções para não dar demais aos três e a brutalidade casual do tratamento pareciam genuínas — qualquer coisa mais generosa ou menos rude seria suspeita.
—E quanto a Arbell Materazzi?
Bosco sorriu.
—Por que tanta determinação em descobrir o quanto você está iludido sobre o seu mundo?
—O que isso quer dizer?
—Vou lhe mostrar. Mas você precisa deixar que o amordacem e amarrem e concordar em ficar atrás daquele biombo nas sombras, sem fazer barulho algum, independente do que ouvir.
—Por que eu deveria lhe prometer alguma coisa?
—Em troca da vida dos seus amigos? Não me parece injusto.
Cale assentiu e Bosco fez sinal para que um de seus guardas o levasse para trás de um pequeno biombo nos fundos do salão. Pouco antes de alcançá-lo, Cale se voltou para Bosco.
—Como o senhor tomou a cidade?
Bosco riu, de forma quase autodepreciativa.
—Com facilidade e sem precisar lutar. Princeps enviou notícias da grande vitória do Quarto Exército para Port Errol em um espaço de três horas e ordenou que a frota voltasse para atacar Memphis sem demora. Aqui, a população entrou no mais completo pânico. A 80 quilômetros de distância, a esquadra viu navios fugindo desesperados da cidade. Nós simplesmente desembarcamos sem nenhum alarde. Foi bastante surpreendente, no fim das contas. Mas também muito satisfatório. Fique quietinho lá atrás e você vai ver e ouvir tudo.
Em seguida, Bosco o despachou com um gesto para trás do biombo. O guarda retirou uma mordaça do bolso e a mostrou para Cale.
—Podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil. Para mim,
tanto faz.
Porém, Cale estava ansioso para ver Arbell e não ofereceu resistência. Houve uma espera de alguns minutos, a presença de Bosco e a estranheza da sua conduta gerando uma inquietação crescente dentro de Cale. Ele ficou observando enquanto uma mesa e três cadeiras eram dispostas no centro do salão. Então a porta foi aberta e o marechal e sua filha conduzidos para dentro. Cale não sabia que era possível sentir um alívio tão profundo — uma onda tão poderosa e jubilosa de felicidade. Ela estava de branco e aterrorizada, mas parecia ilesa, assim como seu pai, embora os olhos dele estivessem abatidos e seu rosto devastado. Ele parecia vinte anos mais velho — e vinte anos nada saudáveis, diga-se de passagem. —Sente-se — falou Bosco com brandura.
—Pode me matar — disse o marechal. — Mas peço com toda a humildade que deixe minha filha viver.
—Minhas intenções são muito menos sangrentas do que o senhor imagina — falou Bosco, sem perder a brandura. — Sente-se. Não vou pedir de novo. — Essa estranha mistura de benevolência e ameaça intimidou ainda mais os dois e eles obedeceram.
—Antes de começar, quero que vocês tentem entender que as exigências e o fervor daqueles que servem ao Redentor Enforcado não estão ao alcance da sua laia. Eu tampouco quero ou busco sua compreensão, porém, é necessário para o bem de vocês que entendam a que
pé as coisas estão. — Ele assentiu para um dos Redentores, que puxou para trás a terceira cadeira, e então se deixou sentar. — Eu serei o mais claro possível. Temos controle total de Memphis e seu exército agora não passa de 2 mil soldados, a maior parte deles nossos prisioneiros. O seu império, por mais vasto que seja, já está começando a desmoronar. O senhor concorda?
Fez-se um silêncio.
—Sim — respondeu finalmente o marechal.
—Ótimo. Eu lhe devolverei o controle da cidade de Memphis e permitirei que o senhor reconstrua um exército permanente para reestabelecer o poderio do seu império. Mediante certas taxas e condições, cujos detalhes nós dois acertaremos mais adiante.
O marechal e Arbell encararam Bosco, seus olhos arregalados de esperança e suspeita.
—Que condições? — perguntou o marechal.
—Não me entenda mal — falou Bosco, tão baixinho que Cale mal conseguia ouvi-lo. — Isto não é uma negociação. O senhor, obviamente, não tem nada para negociar. Está totalmente impotente e tem apenas uma coisa que eu quero.
—E o que seria ela? — perguntou o marechal.
—Thomas Cale.
—Nunca. Por nada neste mundo — falou Arbell ardorosamente.
Bosco olhou pensativo para ela.
—Que interessante — disse ele. —Por que o senhor faria isso? — perguntou o marechal. —Trocar um menino por um império? Concordo que parece um tanto incomum.
—O senhor quer matá-lo — disse Arbell.
—Não é verdade.
—Porque ele matou um de seus padres enquanto ele fazia algo abominável.
—Bem, quanto a isso você tem razão: ele matou um de meus padres, que estava mesmo fazendo algo abominável. Eu não tinha conhecimento das práticas hereges dele até o dia em que Cale fugiu. Todos os que posteriormente descobrimos estarem envolvidos foram purificados.
—O senhor quer dizer mortos.
—Quero dizer purificados e depois mortos.
—Por que Cale achava que o senhor era o responsável?
—Vou perguntar para ele quando o vir. Mas se você acha que eu abriria mão de um império para executar Cale pelo assassinato de um herege e pervertido homicida... — Ele fez uma pausa, parecendo sinceramente intrigado. — Por que eu faria uma coisa dessas? Não tem o menor sentido.
—O senhor poderia estar mentindo — falou o marechal.
—Sim, poderia. Mas não vejo necessidade. Eu encontrarei Cale mais cedo ou mais tarde, embora prefira que seja mais cedo. O senhor possui os meios de me dar o que eu quero, mas minha paciência tem limite e, assim que ela acabar, não lhe restará nada.
—Não dê ouvidos a ele — falou Arbell.
—E por que tanta preocupação? — disse Bosco. — É porque vocês são amantes?
O marechal encarou a filha. Não houve exigências indignadas para que ela lhe contasse a verdade, nenhuma condenação por ela ter manchado o sangue real. Apenas um longo silêncio. Por fim, ele se voltou para Bosco.
—O que o senhor quer que eu faça?
Bosco inspirou fundo.
—Não há nada que possa fazer. Cale não confia em muitas pessoas, se é que confia em alguma, e certamente não no senhor. A exceção a essa regra é, obviamente, a sua filha, por motivos agora conhecidos por todos nós. O que peço é que ela escreva uma carta para Cale que entregará, por assim dizer, em segredo a um dos amigos dele. Nesta carta, você pedirá que ele a encontre em frente aos muros da cidade numa hora marcada. Eu estarei lá, e acompanhado por um número tão grande de soldados que ele será obrigado a se render. O senhor irá matá-lo. —Eu não o matarei — disse Bosco, levantando a voz pela primeira vez. — Jamais farei isso e por motivos que explicarei a ele quando Cale puder ver que estou lhe dizendo a verdade. Ele não faz idéia do que tenho para lhe contar e, até ele descobrir, sua vida será como vem sendo desde que deixou o Santuário: violenta, cheia de ódio, uma vida que pode levar apenas destruição irracional para todas as pessoas com as quais ele se envolva. Pensem sobre o caos que ele trouxe para a vida de vocês. Somente eu posso salvá-lo desta condição. Independente do que você acha que sente por Cale, jamais entenderá o que ele é de fato. Tente salvá-lo, o que é algo impossível para você, e tudo o que conseguirá fazer é arruinar o seu pai, o seu povo, a si mesma e, acima de tudo, a Cale. —Você deve escrever a carta — falou o marechal para a filha. —Não posso fazer isso — disse Arbell. Bosco suspirou, compreensivo. —Sei o que significa ter autoridade e poder. A escolha que precisa fazer agora é do tipo que ninguém invejaria. Qualquer decisão que tomar lhe parecerá inadequada. Você deve destruir todo um povo e um pai que ama, ou um só homem que também ama. Ela encarou Bosco, petrificada. —Porém, embora a escolha seja cruel, ela não é tão cruel quanto você teme. Cale não corre risco em minhas mãos, e eu o encontrarei cedo ou tarde de qualquer forma. O futuro dele está ligado demais à vontade de Deus para que Cale seja qualquer outra coisa que não parte de nós... e uma parte muito especial. — Ele se recostou na cadeira, dando outro suspiro. — Diga-me, minha jovem, apesar de todo o amor que sente por este rapaz, um amor que agora vejo ser genuíno... — Ele fez uma pausa para que ela pudesse engolir seu veneno adocicado. — Você não sentiu algo... — Ele se
deteve novamente, buscando com cautela a palavra certa. — Algo letal? —Foi o senhor quem o fez assim com sua crueldade. —Você se engana — respondeu Bosco em um tom razoável, como se compreendesse o motivo da acusação. — Na primeira vez em que o vi, quando ele era muito jovem, percebi algo de perturbador nele. Demorei muito para compreender o que era, porque simplesmente não fazia sentido. Era medo. Eu tinha medo daquele garotinho. Sem dúvida foi necessário moldar e disciplinar o que já havia ali, mas nenhum ser humano poderia fazer com que Cale se tornasse o que ele é. Não sou tão prepotente. Fui apenas um agente do Senhor ao conduzir sua natureza para o nosso bem comum e a serviço de Deus. Mas você viu a mesma coisa e sente medo... e não é para menos. A bondade que testemunhou nele algumas vezes é como as asas de um avestruz: elas podem bater, mas não alçam voo. Deixe que nós cuidemos de Cale e salve seu pai, seu povo e a si mesma. — Ele fez uma pausa dramática. — E Cale também. Arbell começou a falar, mas Bosco ergueu a mão para silenciála. —Não tenho mais nada a dizer. Reflita e tome sua decisão. Eu enviarei detalhes quanto ao horário e local onde encontraremos Cale. Cabe a você escrever ou não a carta. Dois Redentores que estavam aquele tempo todo diante da porta se aproximaram, indicando com um gesto que os dois deveriam sair. Enquanto ela ia embora, Bosco falou, como se o seu drama lhe despertasse uma solidariedade relutante: —Lembre-se de que você é responsável pela vida de milhares de pessoas. E eu prometo nunca mais levantar a mão contra ele novamente, ou permitir que qualquer outra pessoa faça o mesmo. — A porta se fechou e Bosco falou baixinho, para si mesmo: — Pois os lábios que ora lhe parecem tão doces quanto um favo de mel, logo serão tão amargos quanto o absinto, e tão cortantes quanto uma faca de dois gumes. O Lorde da Guerra se virou e gesticulou para que Cale saísse das sombras. O guarda removeu a mordaça dele e o levou até Bosco. —O que o faz pensar que ela vai acreditar no senhor? — disse Cale. —Não consigo imaginar por que não acreditaria: é quase tudo
verdade, mesmo que não seja toda ela. —E qual seria toda ela? Bosco o encarou como se tentasse desvendar algo em seu rosto, mas com uma incerteza que Cale nunca tinha visto antes. —Não — disse Bosco por fim. — Vamos esperar pela resposta da garota. —Do que o senhor tem medo? Bosco sorriu. —Bem, talvez um pouco de honestidade entre nós dois não faça mal a essa altura do campeonato. Meu medo, obviamente, é que o amor a tudo vença e ela se recuse a entregar você em minhas mãos. De volta ao seu palazzo, Arbell Pescoço de Cisne sofria as terríveis dores do desejo individual versus o dever público, cada uma das duas escolhas envolvendo uma traição pavorosa e impossível. No entanto, a situação era pior do que parecia, pois no recôndito mais profundo do seu coração (e no âmago ainda mais secreto que havia depois dele), ela já havia decidido trair Thomas Cale. Tente entender seu desamparo, o choque paralisante de se testemunhar tudo que ela conhecia desmoronar à sua frente. Compreenda, então, o poder terrível das palavras de Bosco, que ecoavam seus pensamentos mais temerosos quase à perfeição. Por mais excitante que Cale fosse para ela, a estranheza que a atraía nele era a mesma que lhe causava repulsa. Ele era tão violento, tão cheio de raiva, tão mortal. Bosco tinha enxergado bem através dela. Como Arbell, sendo quem era, poderia ser outra coisa que não refinada e delicada? E, não nos deixemos enganar, este refinamento e esta delicadeza eram a fonte da adoração de Cale; no entanto, Cale tinha sido moldado a golpes de martelo, forjado no fogo terrível de medos e dores inimagináveis. Como ela poderia ficar com ele por muito tempo? Já não era de hoje que uma parte de Arbell vinha procurando uma maneira de abandonar seu amante — à sua revelia, justiça seja feita. E então, enquanto Cale esperava que ela o salvasse ao mesmo tempo que tentava descobrir uma maneira de salvá-la, Arbell já havia escolhido o caminho amargo, porém sensato, do bem — do coletivo sobre o individual. Quem poderia, afinal de contas, ser contra isso? Não ela. Com certeza o próprio Cale entenderia com o tempo.
36
Quase seis horas mais tarde, Bosco entrou no quarto trancado em que Cale havia sido confinado. Ele trazia duas cartas. Entregou uma delas para o menino, que a leu com o rosto inexpressivo, aparentemente duas vezes. Então, Bosco lhe ofereceu a segunda. —Ela me pediu, aos prantos, para lhe dar isso depois que tivéssemos prendido você. Na carta ela pede que você acredite no quanto foi difícil entre- gá-lo em minhas mãos e que tente perdoá-la. Cale apanhou a carta que lhe foi oferecida e a jogou no fogo. —Eu tive um sonho maravilhoso — disse ele. — Agora estou acordado e com raiva de mim mesmo. Diga o que tem para dizer. Bosco se sentou atrás da mesa que era a única outra mobília no quarto. —Trinta anos atrás, quando eu fui para o deserto jejuar e rezar antes de me tornar padre, a mãe do Redentor Enforcado, que a paz esteja com ela, surgiu para mim em três visões. Na primeira, ela me disse que Deus tinha esperado em vão que a humanidade se arrependesse por ter matado Seu filho e perdera a esperança em sua natureza. A maldade do homem era grande na Terra, e por mais que Ele perscrutasse os pensamentos em seu coração eles continuavam sendo perversos. Ele se arrepende de tê-lo criado. Na segunda visão, ela disse que Deus havia me falado: "É chegada a hora de toda a carne perecer diante dos meus olhos; cada homem e mulher vivente feito por mim, você os varrerá da face da Terra. Quando tiver cumprido sua missão, o mundo chegará ao fim, os escolhidos entrarão no paraíso e homens e mulheres cessarão de existir." Eu lhe perguntei como eu poderia fazer isso, e ela me disse para jejuar e esperar por uma terceira e última visão. Nela, a mãe do Redentor Enforcado trouxe consigo um menininho carregando um galho de espinheiro e, da ponta dele, pingava vinagre. "Procure por essa criança e, quando a encontrar, prepare-a para o seu trabalho. Ela é a mão esquerda de Deus, também chamada de o Anjo da Morte, e realizará todos esses feitos." Durante todo aquele relato, Bosco parecia hipnotizado, como se não estivesse num quarto em Memphis, mas de volta aos desertos de Fátima, trinta anos atrás, ouvindo as palavras da Mãe de Deus. Então, foi como se uma luz tivesse sido apagada e o Redentor estivesse de volta. Ele olhou para Cale.
—Assim que eu vi aquele garoto ser trazido para o Santuário dez anos atrás, eu o reconheci. — Ele sorriu para Cale da forma mais estranha, um sorriso de amor e ternura. — Era você. Uma semana depois, uma procissão parou por um instante na fortaleza. Entre os montadds a cavalo, estava o Redentor General Bosco e, ao seu lado, Cale. Dentre os que haviam se reunido para observar, estavam o marechal Materazzi, o chanceler Vipond e alguns dos seus oficiais superiores que tinham sobrevivido à batalha da colina de Silbury. Entre eles, havia duas fileiras de soldados Redentores, presentes para garantir que o então livre, porém desarmado, Cale não fizesse nada de inconveniente. Era interessante para Bosco manter o marechal onde ele estava. No entanto, ele achou sensato não provocar Cale com a presença da garota, de modo que ordenara pessoalmente, para seu grande alívio, que ela se mantivesse longe da humilhação oficial direcionada a seu pai e a todo o povo de Memphis. Em vez disso, ela deveria assistir a ela e ouvi-la de uma janela próxima dali. Arbell não precisou de aviso para saber que não deveria ser vista. Apesar de suas precauções, Bosco se perguntou se havia sido uma boa idéia deixar Cale livre. O menino aproximou seu cavalo e olhou para o marechal por sobre as cabeças dos guardas. Ao seu lado, confuso, estava Simon. Cale não pareceu notá-lo. Quando começou a falar, foi em um tom de voz tão baixo que mal se fazia ouvir em meio ao barulho dos cavalos irrequietos. —Tenho uma mensagem para a sua filha — falou Cale. — Estou ligado a ela por amarras que nem mesmo Deus pode romper. Um dia, se ela sentir uma brisa suave no rosto, talvez seja meu hálito. Uma noite, se o vento gelado brincar com seus cabelos, talvez seja minha sombra passando. E, com essa ameaça terrível, ele se voltou para a frente e a procissão retomou sua marcha. Em menos de um minuto, havia desaparecido. Na penumbra de seu quarto, Arbell Pescoço de Cisne ficou branca e gelada como alabastro. Rápida e silenciosamente, o marechal e seu grupo se retiraram para re- moer sua humilhação. Enquanto Vipond retornava para o seu palazzo acompanhado pelo capitão Albin, ele se virou e disse baixinho: —Sabe de uma coisa, Albin, quanto mais velho fico, mais acredito que o amor, quando julgado pelos seus efeitos mais visíveis, se parece mais com o ódio do que com a amizade.
Meio dia depois, a procissão havia atravessado os limites de Memphis e virado na direção das Terras Crestadas e do Santuário mais além. Durante todo esse tempo, o Redentor General Bosco e Cale não trocaram uma só palavra. De um pequeno bosque ligeiramente afastado da estrada, Henri Embromador, Kleist e IdrisPukke observaram a procissão sumir de vista. E então começaram a segui-la.

 

 

                                                                                                    Paul Hoffman

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades