Biblio "SEBO"
Rio de Janeiro, julho de 1889
O Sol estava quase se pondo, uma brisa fresca ensaiou passagem por entre os cafés, livrarias e lojas da Rua do Ouvidor, espantando o calor acumulado ao longo do dia. Era inverno, mas isso não significava qualquer coisa nos trópicos, e nos fundos do pequeno estabelecimento ficava pelo menos 10 graus mais quente, pois compartilhavam a parede com a cozinha de uma famosa confeitaria. A menina limpou o suor com as costas da mão e se esforçou para terminar logo de cobrir o chapéu com uma vaporosa renda verde. Trabalhava como assistente no ateliê daquela modista há cerca de dois anos, tempo suficiente para saber que teria problemas se deixasse trabalho por fazer.
–Maria, onde estão as fitas de veludo – perguntou Madame Claire colocando a cabeça para dentro do pequeno depósito, que funcionava também como sala de costura.
–As entreguei antes do almoço madame!
– Pois não sei onde foram parar– disse batendo palmas– vá, ande!
Na verdade sua patroa de chamava Genivalda , mas toda modista que se preze devia ser francesa, por isso trocou o nome e tentava aparentar o sotaque. Metade de suas clientes também fingiam falar francês, uma atuação que funcionava perfeitamente se ninguém fizesse perguntas demais. Ela tão pouco se chamava Maria, por coincidência tinha nome e sobrenome franceses: Marie Dubois os herdara de sua mãe, nascida em Marselha e falecida no Rio de Janeiro apenas 19 anos depois. Maxime viera ao Brasil aos 17 anos trabalhar em uma afamada pension d’artistes. Essa espécie de lugar oferecia bebidas, musica e mulheres para os cavalheiros dispostos a gastar muito. Por azar, Maxime engravidou poucos meses após chegar, gestações não eram incentivadas nesse tipo de negócio, mas de alguma maneira sua mãe conseguiu dar a luz. Os detalhes escapavam a Marie, mas a mãe continuou morando no mesmo casarão depois que ela nasceu.
Lembrava pouco daquela época e menos ainda da mãe que morreu subitamente quando Marie tinha apenas 2 anos de idade. A cortesã que acolhera Maxime, não tinha interesse e ficar responsável por uma criança, mesmo uma que prometia ser uma beleza quando crescesse. A mãe não deixara qualquer dinheiro, nem fora presenteada com jóias por algum cliente. Tudo que ficou foi um medalhão de pouco valor que Marie sempre levava no pescoço.
Foi D. Alva, a costureira das moças da pension, que quis ficar com a menininha. Foi morar então no casebre da mulher, às vezes faltava comida, mas nunca amor. A senhora a criara com carinho, ensinando além do oficio a ser temente a Deus. Antes da mãe de criação dar o ultimo suspiro, cerca de três anos atrás, Marie lhe prometera andar pelo bom caminho. Por esse motivo Marie não usava seu nome de batismo, não pertencia a elite e uma mulher pobre com seu nome e sua aparência seria considerada prostituta, mesmo que não o fosse. Pela mesma razão precisava sair do trabalho antes que o Sol se pusesse. Às 17:30 as senhoras de família não andavam mais pela Rua do Ouvidor, a partir de então se tornava território das damas da noite e dos boêmios.
Colocou rapidamente o chapéu terminado sobre um cabideiro de madeira e se apressou para procurar as fitas exigidas por pela patroa. As achou na parte da frente da boutique, no mesmo lugar em que madame estava quando as pediu pela primeira vez. A mulher não agradeceu ou respondeu quando Marie se despediu antes de sair porta afora. Madame Claire era muito exigente, mas não particularmente ruim. O mau humor que apresentava nas ultimas semanas se devia a ausência deliberada de seu amante. Dom Coutinho e a Madame estavam juntos há muitos anos, desde que ele veio para o Rio estudar direito a mando do pai, um fazendeiro do café. Dom Coutinho nunca se formou, mas conseguiu posição melhor. Em vez de doutor e filho do coronel, se tornou um futuro barão.
O imperador havia concedido muitos títulos no ultimo ano, os grandes fazendeiros precisavam ser acalmados após a abolição da escravatura. Marie desconfiava que ao contrario do filho, o pai preferia mão de obra gratuita ao título. Mas assim que ascendeu a nobreza, Dom Coutinho começou a planejar uma viagem a Europa. Traria objetos para decorar a casa da capital, e ficaria mais refinado, como devia ser um homem de sua posição. Não levou a esposa, o que fez a amante achar tudo duas vezes pior. Nos meses em que estava fora, madame Claire não cansava de repetir que um homem sozinho no exterior não podia estar a procura de boa coisa. Quando o navio que o traria de volta aportou e ele não apareceu para uma visita nos dias seguintes, o ânimo de Madame assim como seu humor atingiram níveis críticos. Longe de querer o mal de sua patroa, mas Marie não pode deixar de se sentir um tanto aliviada em relação ao suposto rompimento dos dois. Sempre que Dom Coutinho ia a boutique podia sentir os olhos do homem sobre ela. Olhos pequenos, de porquinho, a seguindo, avaliando e cobiçando.
Mesmo com todo o calor, Marie se enrolou em uma capa assim que pôs os pés na rua. Era uma longa caminhada até o quartinho que alugava, a vestimenta pesava e incomodava, mas também fazia o trajeto mais seguro. Não era uma mulher alta, magra como se encontrava, e se bem coberta, boa parte das pessoas a tomava por um rapazote. Andou rápido, evitando um grupo de soldados e só diminuindo o passo para fazer o sinal da cruz ao passar pela Igreja de São Francisco de Paula.
Em uma ruela sem calçamento, em cima de uma padaria ficava sua casa. Acenou para a mulher do padeiro que acabava de fechar o estabelecimento e subiu a escadinha precária que levava ao segundo andar. O quarto era espartano: uma cama, um baú que servia de guarda roupas, a cadeira velha que abrigava os apetrechos de higiene, e uma cruz de madeira na parede. Apenas o suficiente para sobreviver, mas Marie sempre sentia uma grande satisfação ao entrar naquele lugar, eram tempos difíceis, tinha sorte por ter um trabalho e um lar. Jogou a capa sobre a cama, tirou os sapatos furados e usou a água que tinha ficado desde a manhã para se limpar do suor e da sujeira do dia de trabalho. Colocou o camisolão que havia pertencido a Dona Alva e finalmente se deitou. Como sempre os pés e as costas doíam e o estomago reclamava, na noite anterior tinha tido um pouco de febre, mas já se sentia melhor. Antes que o cansaço levasse a para uma desejável inconsciência, rezou uma Ave Maria e se deixou mergulhar no sono profundo.
Estava muito frio, um vento gelado atravessou sua camisola se entranhando entre suas costelas. Caminhou por corredores sem fim, seus pés tateavam a textura rústica das pedras do piso, de vez em quando teias de aranha tocavam seu rosto, mas não sentia medo, só pressa. Precisava achar logo o que veio procurar. Chegou a um terraço esculpido em pedra viva,ao longe podia ver montanhas ainda mais altas, a luz do Sol permanecia ofuscada pela chuva fina que caía,a água empapava suas roupas e encharcavam o chão. Marie viu seus próprios traços refletidos na poça mais funda. O rosto triangular coberto por uma pele pálida, nariz reto, a água fazendo com que os fios de cabelo retos e escuros grudassem pelo caminho. Quando o reflexo ergueu os olhos de um espantoso dourado , Marie sentiu o coração parar. Eram seus olhos, mas havia ferocidade neles, a mulher que a encarava era uma completa estranha. Outra rajada de ar a atravessou, entrou pelas narinas, enchendo os pulmões. Dessa vez não era frio, mas morno e perfumado. Cheirava a canela – Venha– dizia o vento – venha para mim!
Acordou sobressaltada, com o batimento cardíaco descompassado. Ainda não havia amanhecido, mas o barulho de panelas no andar de baixo indicava que o trabalho na padaria já estava em andamento. Com a capa sobre os ombros e bacia em mãos, desceu para iniciar o dia. Esgueirou–se por uma portinhola nos fundos do estabelecimento e entrou na cozinha.O padeiro lhe deu um aceno e sua mulher se virou em direção ao balcão para colocar leite fervido em uma caneca esmaltada.
– Bom dia– disse Marie bebericando o liquido quente.
– Estás atrasada –falou a mulher– Se sentes bem ?
Marie assentiu e esperou pelo pedaço de pão dormido que estava lhe servindo. Aquilo seria metade de tudo que comeria durante o dia, fazia horas desde o almoço da véspera e a fome geralmente impedia que prestasse muita atenção na conversa de sua senhoria. Engoliu o café da manhã e passou a um pátio de terra batida , em que bombeou para conseguir água, lavou o rosto, a boca e encheu a bacia para que pudesse se lavar mais a noite.
Quando por fim chegou ao trabalho, o Sol já havia nascido completamente. Usou a chave auxiliar para entrar, madame só chegaria depois das nove, o que significava que poderia costurar em paz por bastante tempo. Começou com a barra do vestido verde que seria entregue junto com chapéu e luvas. Em ponto miúdo, colou uma tira de renda plissada e iniciou o processo de bordar por cima. Depois de tanto tempo fazia aquilo de modo automático, se a agulha escapava só encontrava dedos calejados para furar. Apele se enrijecera e há muito já não sangrava por qualquer bobagem. O cheiro do café preto e dos doces sendo assados ao lado invadiu seu nariz e Marie se permitiu desejá–los. Sabia que gula era pecado, mas em sua opinião, só se cometida. Gula imaginária não tirava ninguém do céu, se tirasse estaria perdida.
O sino da entrada tocou e Marie puxou a cortina para ver quem chamava. Um menino de não mais que dez anos enfiou uma carta por baixo da porta e saiu, antes mesmo que pudesse recolhê–la. Papel grosso e de boa qualidade, lacrado a cera com três palavras escritas do lado de fora. Marie apostou que diziam “Ma petit Claire”. Não sabia ler nem escrever nada além de seu próprio nome, mas imaginava que a letra na correspondência tinha uma boa chance de pertencer a Dom Coutinho e era assim que ele a chamava. Madame ficaria feliz. Provavelmente.
A patroa não apareceu na hora de sempre e nem nas seguintes, o que era completamente anormal. Madame Claire não faltava nunca. Marie não tinha permissão para atender clientes, recebeu dois pagamentos e despachou uma encomenda. Talvez fosse repreendida por executar essas funções apesar de parecer o certo a se fazer. Tudo dependeria do humor da madame.
Foi ficando aflita com o passar da tarde. Quase no fim do expediente, lhe ocorreu que talvez a própria madame tivesse enviado a carta, para avisar de algum contratempo. Sua única alternativa era pedir a alguém que lhe dissesse a quem estava endereçada. Fechou a boutique e com o papel seguro na mão foi até a livraria mais próxima. Um funcionário que vendesse livros com certeza saberia ler. Foi ignorada por uns bons minutos, o que não foi surpresa devido ao modo como estava vestida. Sem se dar por vencida, avançou até o balcão e estendeu o envelope bem na frente do homem que trabalhava no caixa.
– Pode me dizer a quem está carta foi remetida ?
– Aqui vendemos livros, não fazemos favores– falou o homem com descaso
– É uma emergência– disse baixinho e depois completou sem saber de onde saiam as palavras– E não vou sair até que leia para mim.
– Está querendo confusão, boneca?
– Não. Só quero que me diga o que está escrito aqui na frente! Não te custa nada!
Marie esperou que o homem decidisse que seria mais rápido cooperar que a tirar da livraria á força, e foi exatamente o que ele fez. Bufando, fixou a vista no envelope, mas não teve tempo de decifrar nem a primeira palavra. Alguém arrancou a correspondência de suas mãos com violência, lhe dando um encontrão que quase fez com que Marie caísse. Levantou a cabeça para ver quem tinha feito aquilo e deu de cara com dois olhos de porquinho muito zangados. Dom Coutinho parecia tão bravo que mal podia balbuciar as palavras.
– Sua patroa sabe que viola sua correspondência pessoal ?
– Não – disse Marie com urgência– Eu não estava...
Ele a agarrou pelos cabelos e começou a puxá–la para a rua. O vendedor fez menção de intervir, mas se conteve ao ver o traje fino e a bengala com ponteira de ouro usada por Dom Coutinho. Vermelha de vergonha e sabendo que ninguém iria ajudar, Marie se deixou guiar. Sentia os olhares dos transeuntes e sabia que boa parte deles pensava que ela devia ser uma ladra ou coisa pior. Voltaram a boutique, ela tremia enquanto abria a porta, mas ao mesmo tempo se sentiu aliviada pela humilhação publica ter chegada ao fim.
Dom Coutinho jogou uma poltrona ao chão e escancarou a porta do depósito antes de se voltar para Marie. Parecia transtornado e agora que o observava com mais atenção talvez estivesse bêbado.
– Onde está aquela vadia ? – ele perguntou
– Não há ning– Marie não conseguiu terminar a frase. Não havia o que responder, ele logo perceberia que ela não tinha nada a ver com o que quer que fosse que houvesse ocorrido entre ele e Madame Claire– porque era óbvio que algo sério tinha acontecido.
–ONDE? – O homem gritou e jogou a bengala e estilhaçou um espelho.
Marie se encolheu e tentou escapar aos braços do homem que agora vinha em sua direção. A acertou no ombro e o impacto a fez ricochetear contra a parede.
– Sabe o que ela fez? Foi até minha casa, falou com minha esposa– disse lentamente – Falou com as visitas de minha esposa, acordou inclusive a meus filhos. Agora vai me dizer onde aquela vadia está, ou vai se arrepender do dia que nasceu!
– Eu não sei– Marie articulou– Madame não apareceu hoje.
Outro golpe e dessa vez ela caiu. Um dor aguda na cabeça quase a fez desfalecer. Tentou se arrastar para longe do homem, mas com força a arrastou de volta.
– Por favor– Marie pediu
– Sua vadiazinha !
Espremida entre a parede e o chão, tentou gritar mas Dom Coutinho lhe apertou a garganta. Com a mão direita, rasgou a parte da frente de seu vestido. Em pânico, percebeu o que estava acontecendo e se debateu. O homem descobriu seus seios e beliscou com força um mamilo. Não conseguia respirar, bateu os braços no chão o desespero tomando conta. Ele se abaixou e lambeu sua boca enquanto levantava sua saia. Sentiu um súbito ardor nas pontas dos dedos, tinha se cortado em um caco do espelho quebrado. Se esforçou por puxá–lo para si, quando sentiu o objeto cortante seguro, usou todas as suas forças para ferir seu agressor. O pedaço de espelho atingiu o pescoço de Dom Coutinho, nem a lapela, nem a camada de gordura conseguiram impedir o ferimento profundo. Ele caiu de uma vez, se debatendo como um peixe. Marie se pôs de pé e cambaleou até o depósito.
Precisava sair dali o mais rápido possível, quando descobrissem o que tinha feito, a policia viria por ela. Ninguém acreditaria em legítima defesa ou se importaria que fosse esse o motivo. Com uma calma que só podia vir do choque, começou a agir. Trocou o vestido rasgado e respingado com sangue por um marrom mais simples que estava quase pronto para ser entregue, pegou sua capa e o que estava na caixa de dinheiro. Se certificou que todas as cortinas permaneciam fechadas, pulou o corpo estendido no chão e saiu pela porta, a trancando em seguida. Fez o caminho de sempre, mesmo sabendo que não poderia ir para casa, seria o primeiro lugar em que iriam procurá–la.
Viu de longe a mulher do padeiro fechando o negócio. Esperou que fosse embora e forçou a portinhola lateral, rezando para não fazer barulho demais. Só pensava em chegar à bomba d”água. Lavou–se varias vezes, no fundo achava que jamais se sentiria limpa de novo. Usou um pedaço de saco para se secar e não pôde parar a crise que veio a seguir. Tremia e deixou que as lagrimas escorressem livremente. Oh Deus! Quase havia sido estuprada e depois tinha matado e roubado. Contendo o desejo de se lavar mais uma vez, deixou a padaria e subiu para o quartinho. De joelho vasculhou o baú de madeira, seus papéis estavam no fundo. Na Rua do Ouvidor ninguém sabia seu nome real, era Maria, a costureira tímida, e assim também acreditavam seus senhorios e acreditaria a policia. Se fosse para longe o suficiente, em um lugar que ninguém conhecesse seu rosto, ficaria segura. Juntou os documentos e a caixa de dinheiro dentro de uma pequena bolsa de crochê e seguiu rua abaixo, se ocultando na escuridão.
Capitulo II
O Portugal era o maior navio aportado na cidade. Um gigante de aço com mais de cinco mil toneladas que fazia a rota de ouro e prata, ligando diversos portos sul–americanos a Europa. As novas embarcações a vapor cruzavam o Atlântico em apenas vinte e oito dias. Marie não iria tão longe, pretendia desembarcar no porto de Santos, mesmo assim a passagem da terceira classe custou quase todo o dinheiro que tinha. Uns vizinhos da época em que morava com Dona Alda se mudaram há pouco para São Paulo. Foram trabalhar na lavoura, eram gente boa, temente a Deus e o mais próximos de amigos que possuía. Talvez pudessem ajudá–la a arrumar um emprego, foi o único que lhe ocorreu já que ficar na capital não era mais uma opção.
Embarcou aos primeiros raios da alvorada, as acomodações da terceira classe dividiam espaço com o depósito. Um amontoado mal cheiroso e desconfortável, por sorte o navio ia mais vazio do que voltava da Europa. Dos 700 lugares, não mais que 200 estavam ocupados, em sua maioria imigrantes e outros trabalhadores que se dirigiam ao sul e a São Paulo. Algumas matronas italianas improvisaram diversas divisórias para dar mais privacidade às mulheres, no geral era até melhor do que esperava.
Às oito horas em ponto Marie estava no convés junto com o resto das pessoas para assistir o Portugal zarpar. Chiara e Elea, duas jovens que tinha conhecido enquanto se instalava. Pulavam e acenavam para quem ficava. A mãe das duas fez um gesto de desgosto e puxou a irmãzinha caçula para o outro extremo.
– Addio, non più indietro
Marie não falava uma palavra em italiano, mas se viu rindo da animação das duas, assim como quem estava em volta. Uns poucos retardatários embarcavam, com um arrepio pensou que Dom Coutinho devia ter voltado da Europa naquele mesmo navio, balançou a cabeça para espantar as imagens que começavam a se formar, e voltou a prestar atenção nas palhaçadas das moças. Não compartilhavam o idioma, mas foram gentis desde o inicio, se preocupando por seus hematomas e se mantendo por perto. Sabia que era patético ficar tão agradecida por migalhas de atenção, mas de certa forma cuidado vindo de desconhecidos é melhor que cuidado nenhum.
Senhoras com chapéus cobrindo os penteados elaborados acompanhadas por um senhor vestindo ternos de linho embarcaram e se reuniram aos outros passageiros na parte da proa reservada a primeira classe.
Três homens muito grandes e ricamente trajados, ainda que excessivamente cobertos para o clima tropical foram os últimos a subir a rampa. Houve um burburinho e alguns passageiros da primeira classe se afastaram do trio, abrindo caminho para que passassem. Marie não teve dificuldade para entender o motivo, o mais forte deles era negro. O homem estava tão bem vestido quanto qualquer um nos salões das altas rodas e isso desagradava muitos membros daquela que até pouco tempo atrás ainda era uma sociedade escravocrata. Marie se alegrou quando a Princesa Isabel assinou a lei que extinguiu a escravidão, os boatos diziam que o Imperador que jazia doente no exterior se alegrou também, embora quase nada tenha mudado desde então.
– Questa giacca è così grande che io possacostruire una casa con lui – gritou Elea para os três.
Marie riu. O homem de extravagantes cabelos loiros se voltou para onde elas estavam, o Sol ofuscou suas feições, mas podia jurar que ele estava bravo. Talvez fosse ela que estivesse agindo como um ratinho assustado. O medo que sentia desde a noite passada se dissipou assim o navio se pôs em movimento. Conseguira fugir. Mas seu alivio durou menos que nada, a oscilação do barco fez o estomago revirar. Olhando pelo lado bom, o jejum forçado impediria que vomitasse. À medida que o tempo passava Marie decidiu que não havia lado bom coisa nenhuma, a mãe de Chiara e Elea colocou um pano molhado sobre sua testa e por gestos disse que passaria em breve. A mulher deveria saber , enfrentara o mar em uma viagem muito mais longa que a que Marie pretendia fazer.
No final da tarde conseguiu engolir um pouco de sopa rala, a comida da terceira classe era a mesma da tripulação e contra todas as probabilidades possuía um sabor muito bom. Exausta da noite em claro e com dores tanto pela agressão quanto pelo mal estar, se recolheu em uma cama de lona, agarrada a pequena bolsa de crochê, mas o frio fez com que fosse difícil dormir. Lá fora fazia pelo menos 25 graus, sua temperatura corporal é que havia se elevado, de todo jeito a fadiga terminaria vencendo.
Seus pés refizeram o mesmo caminho através da construção de pedra bruta, quando chegou no terraço foi chicoteada pelo vento e pela chuva forte. Sons de metal batendo contra metal vieram do desfiladeiro abaixo, milhares de vozes clamavam. O cheiro de canela a invadiu,uma voz se ergueu sobre todas as outras. Marie se precipitou para a beirada, o rei usava uma capa negra, a armadura prateada em volta do seu dorso, toda ornada com desenhos romanos. Ele gritou mais uma vez, levantou seu escudo e incitou o cavalo a se erguer em duas patas. Ela caiu sobre um joelho, e seu clamor se juntou a da multidão.
Abriu os olhos e parecia que o teto se fechava sobre sua cabeça. Rezou a Ave Maria que se esquecera ao deitar, mas nem assim pôde respirar melhor. Escapuliu para o convés procura da brisa marítima, já não tinha mais febre só muito calor. Amaldiçoou a si mesma, não podia ficar doente agora.
O mar era uma imensidão negra, interminável e assustador, seu balanço ainda não lhe fazia tão bem, mas parecia melhor lá fora que nos alojamentos. Já o céu brilhava espetacular sem nenhuma nuvem, as constelações formando desenhos geométricos. Não se ouvia um pio, até mesmo o barulho das ondas no casco se mostrava suave, a ausência de som parecia errada de alguma forma. A sombra de um marinheiro podia ser vista além das duas chaminés e isso fez com que Marie se sentisse tola. Não havia nada errado. E se houvesse, ela saberia ? Aquela era sua primeira e única viagem por mar. Tinha passado por muitas coisas nas ultimas 48 horas, apenas isso.
Desceu três níveis até a terceira classe, a sua frente o corredor que separava as acomodações do depósito. Tudo normal, não havia nada errado. Estancou de repente, pelo seu campo visual podia ver a porta do depósito aberta e um tripulante jazia caído ao seu lado. Se virou por completo e a imagem oscilou, desaparecendo e aparecendo em seguida. Levou à mão a boca e deu um passo para trás, suas costas bateram em algo sólido. Mãos fortes a obrigaram a se virar, uma a submetia pelo ombro machucado, a outra empurrou o queixo de Marie para cima. Olhos azul celeste, tão frios quanto gelo a capturaram. – Está tudo bem – eles diziam – Vá dormir. Que bobagem, pensou Marie, claro que estava tudo bem! Um sono poderoso a alcançou, só podia se concentrar o suficiente para achar sua cama e cair exausta.
– De onde ela surgiu – perguntou uma voz vinda da porta do depósito.
– Já cuidei dessa– falou outra voz acima de sua cabeça – Vá ver se há mais alguém no convés.
Marie não via nada, só o caminho que leva ás acomodações. Tudo normal, tudo bem.
– Pareço um de seus malditos criados Klaus ? Se parecer me avise, morro de vontade de usar suspensórios, calças curtas e chapéu tirolês.
Marie lutou contra o estupor e o estranhamento. Não estava tudo bem! Piscou e quando abriu os olhos deu de cara com a porta do depósito aberta, o vigilante desfalecido e dois homens tão grandes que inclinavam a cabeça para não raspá–la no teto. Discutiam como se ela não estivesse presente, tinham sotaques fortes e diferentes entre si. O loiro de cabelos longos ainda mantinha uma mão em seu ombro, o moreno de olhos verdes se escorava em uma parede com expressão insolente. Um terceiro surgiu de dentro do depósito, negro e ainda maior que os outros.
– Não está aqui. Provavelmente nunca esteve.– falou em tom baixo e então se deu conta de Marie– O que há com a garota?
Ela ofegou, pulou para longe do loiro e ensaiou o inicio de um grito. Dedos feitos de granito se fecharam sobre sua boca.
– Que inferno – ouviu alguém falar
– Não a fascinou?
– O fiz
– Faça de novo ou me deixe fazê–lo.
Foi virada em direção ao homem negro, ele se abaixou para colocar o rosto em frente ao seu. Os olhos eram amendoados, de um castanho encorpado. Marie relaxou, tudo voltava a ficar bem. Dois segundos depois o sentimento de bem estar foi substituído por puro pânico. Viu–se presa entre os dois estranhos, se debateu e tentou com todas as forças se livrar. Em vão. Aparentavam não se dar conta de seu esforço físico. Cravou as unhas sobre o braço do gigante loiro e arranhou contra uma couraça resistente, aquilo não podia ser uma pele normal. O moreno da parede riu e o negro deu os ombros.
– A fascinação está enfraquecendo– falou– logo começaremos a chamar atenção. Vamos sair daqui.
– E ela– perguntou o moreno– jogamos do navio?
O coração parou por cerca de um batimento, Marie se contorceu um pouco mais, lagrimas ameaçaram embaçar sua vista. Ia morrer.
– Levamos a garota conosco– respondeu o loiro– pelo menos por hora.
A jogou nos ombros como se pesasse menos que uma criança e iniciou a súbita até a primeira classe. Marie gritou, mesmo incapaz de pronunciar palavras coerentes, implorou por ajuda para todo tripulante e passageiro que encontraram no caminho. Cada um deles, atuou como se não a visse. Diferente da atitude do livreiro que não quis se envolver quando Dom Coutinho a arrastou, as pessoas dentro do navio agiam como se não percebessem ou como se não houvesse nada estranho em uma mulher desesperada sendo carregada contra a vontade.
Entraram em uma cabine não muito espaçosa, coberta por papel de parede fino nas cores cinza e branco. O cômodo, comprido e estreito, possuía uma cama de casal em um estremo, a seus pés duas poltronas fazendo conjunto com uma mesinha e um armário acoplado na parede. No fundo, uma porta decorada dava entrada para o lavatório. Duas escotilhas redondas permitiam que luz e ar entrassem. Colocou Marie no chão sem muito cuidado, os joelhos dobraram e ela se encolheu no tapete azul cobalto.
– Nem pense– falou o gigante seguindo seu olhar até as escotilhas– é uma queda de mais de vinte metros até a água. Nem se fosse um peixe sobreviveria.
Tateou a parede e abriu o que parecia ser um cofre, tirou de lá de dentro um cordão e um pingente de cobre. – Agora me dê seu pé.
Os olhos de Marie abriram como pratos e correram em direção à porta. Precisava fugir. O homem bufou com impaciência, se ajoelhou e puxou uma das pernas de Marie para cima, prendeu a correntinha em seu tornozelo e a soltou. Era tão grande que ocupava praticamente toda a cabine, com movimentos despreocupados, lhe deu as costas, trancou a porta e retirou a chave a guardando no bolso.
– Quero a bolsa também !
Marie negou com a cabeça e se agarrou mais ainda a bolsinha de tricô, tudo o que tinha estava ali, não entregaria sem brigar. Mas não ouve briga só um movimento tão rápido que Marie mal pôde prever. Com um puxão rompeu a alça fina e pegou a bolsa. Ela se impulsionou para frente tentando recuperá–la, mas foi contida por um braço apenas. A mantendo afastada, despejou o conteúdo na mesa de mogno. Abriu a caixa e remexeu algumas moedas com os dedos, desenrolou os documentos amarelados e leu em voz alta.
– Marie Dubois, nascida em 1869, filha de Maxime Dubois e pai desconhecido. Hum...
Largou seu punho de qualquer jeito e Marie se desequilibrou sobre a beirada da cama.
– Durma um pouco Marie– falou ao guardar os pertences dela no cofre– Você parece exausta.
Então saiu da cabine trancando novamente a porta atrás de si.
Para ser honesto Klaus Rolf devia admitir que estava mais cansado que furioso. A viagem de quase um ano pela América Latina se mostrara infrutífera. Perseguiram inimigos imaginários país por país, cada uma das pistas que conseguiram se mostrara falsa. Não lhes restava muitas opções. A passos largos se dirigiu para o refeitório do navio. De madrugada, apenas o bar funcionava, Karuc e Winter estavam em volta de uma pequena mesa retangular e se juntou a eles. O garçom serviu um conhaque duplo e voltou a cochilar atrás do balcão.
– Nada nem remotamente parecido com um lóculo esteve naquele depósito – informou Karuc
– Supondo que conseguiríamos mesmo identificar um– respondeu Klaus
– Há outras possibilidades– falou Winter virando sua dose de uma vez– veneficas,sarcedos, manes...
– Tirando os sacerdos, não ouvimos falar de nenhum desses há pelo menos dois séculos. E sacerdos são humanos... O que quer que esteja nos caçando não.
– Há veneficas na Inglaterra– afirmou Winter– Recebi relatos de meu capataz, mas ainda não conseguimos achá–las.
– Não são venéficas – sentenciou Karuc– era criança na época da inquisição, me lembro bem de algumas que conseguiram sair da Europa tentando fugir. Mulheres sozinhas, apavoradas demais para reagir. Além do mais as bruxas usam os quatro elementos, plantas, infusões... Desde tempos imemoriais que não são capazes de fazer o que temos visto.
Em sua mente Klaus viu os corpos destroçados de dezenas de membros de seu povo. Algumas vilarejos inteiros foram atacados, mas o alvo preferencial eram famílias que viviam disfarçadas entre os humanos. Raramente viviam sozinhos, necessitavam e almejavam participar de um grupo. Pertenciam a uma raça antiga, viviam por mais tempo, seus corpos eram fortes, possuíam alguns sentidos mais aguçados e seus líderes podiam confundir a mente humana por pouco tempo, inclusive impregnando objetos . A fascinação era na realidade a ultima de suas habilidades sobrenaturais. As lendas falavam de um tempo em que podiam se transformar em lobos a luz da lua cheia, uma época em que a Terra era reduto de seres mais velhos e poderosos. Agora estavam em sua maioria enfraquecidos e desaparecidos. Os filhos da Lua chegavam a apenas alguns milhares, o assassinato de muitos de sua população era uma das maiores ameaças que enfrentaram desde a grande guerra.
– Devemos nos separar– falou Karuc– Sigo até Liverpool com Winter. Yaroslav está em Londres, nos reportaremos a ele e iremos para casa. Somos mais úteis protegendo nossas comunidades que perseguindo sombras mundo afora.
– Volto direto para a Colônia – falou Klaus– já estou afastado há tempo demais.
– E a garota– perguntou Winter– o que descobriu ?
– Marie Dubois, brasileira, 20 anos, levou uma surra há pouco tempo e está completamente apavorada. Acredito que o trauma recente a impediu de ser fascinada. Tem um amuleto para não ser percebida pela tripulação. Vou mantê–la comigo até que possa descobrir se ocorre algo mais. Se não, o melhor é fasciná–la quando estiver mais calma e deixar que siga seu caminho.
– De acordo– respondeu Karuc, e se levantou para partir.
Klaus o seguiu deixando Winter em companhia de suas doses de conhaque. O que desconfiava, o inglês gostava mais que de estar tão perto deles. Eram machos líderes, os alphas não conviviam bem por muito tempo. Ter chegado até ali sem que se matassem podia ser considerado um milagre. Estava ansioso por retornar para a colônia. Depois dos primeiros ataques, o clã do qual era o comandante, aproveitou a onda imigratória na região e vieram para o novo continente. Há mais de trinta anos se estabeleceram no Sul do Brasil. A região era selvagem e inóspita, sobreviveram com um pouco mais de facilidade que outros colonos, devido a boa resistência física e ao fato de que tinham recursos financeiros. E ás vezes nem isso fazia com que o lugar se tornasse menos áspero.
Klaus alcançou a cabine e destrancou a porta, a primeira vista não havia sinal da garota, o amuleto arrancado de seu tornozelo fora jogado no canto oposto do quarto. Não importava, o feitiço ainda conseguia evitar que humanos prestassem atenção aquele lugar. Sua audição supersensível percebeu a respiração ritmada vindo do fundo do ambiente. Ela se encontrava no chão ao lado da cama, adormecida e encolhida dentro do vestido grande demais. Lembrava uma menina vestindo as roupas da mãe. O lábio inferior mostrava um corte fino e o lado direito do rosto um grande hematoma, por cima do qual secaram algumas lagrimas recentes. Na mão esquerda um pano tosco protegia o que parecia serem cortes. Notara tudo isso da primeira vez, mas podia jurar que os nódulos esfolados eram uma nova aquisição. A tola devia ter esmurrado a porta tentando sair.
Amaldiçoou entre dentes, com muito cuidado a colocou sobre a cama e se acomodou no tapete ao lado. Amanhã providenciaria alguns ungüentos, novas ataduras e uma boa refeição para a menina. Descansada e alimentada seria fácil apagar sua memória. Anotou mentalmente a intenção de colocar alguns contos de réis naquela bolsinha surrada, para compensar pelo susto. Fechou os olhos, e antes de dormir rezou a quem quer que estivesse ouvindo por uma solução para seu povo.
“A multidão bradava do precipício, a cada momento mais vozes se juntavam ao coro. Do terraço de pedra, Marie viu a noite cair. A luz esmoreceu e por um momento tudo foi escuridão. Mas um brilho pálido surgiu lentamente de trás das montanhas, os raios da Lua cheia aqueciam sua pele como se fosse o Sol em um dia de verão. Quando por fim iluminaram o Rei , ele já não usava capa nem armadura, estava nu e o cheiro de canela que depreendia a atingiu mesmo na distancia.Ergueu os braços e absorveu o fulgor que vinha do céu. Seus olhos negros se tornaram prateados,as pupilas dilatadas engolindo o branco ao redor, os músculos e os ossos estenderam–se ,garras ocupavam o lugar de seus dedos e rugiu com as presas aparentes. O lobo gigante de pé em duas patas era esplendoroso em sua força e fúria. O Rei Lobo uivou e um a um os soldados que o acompanhavam se entregavam a transmutação. Marie não os seguiu, mas gritou o nome de seu rei, inundada pelo poder que ele emanava.” – Marius!
Klaus acordou em um salto, primeiro achou que sonhava mas o quarto definitivamente cheirava a canela, especiarias e muitas coisas mais; vento, rocha, chuva, tipos variados de incenso, e isso era apenas o que conseguia identificar. Um aroma pertencente a um macho da sua espécie. Quanto mais velho, mais sofisticado o cheiro era. Yaroslav o chefe do clã russo de quase 600 anos possuía três matizes, Karuc de mais de 400 exalava não mais que duas. Além da garota e de si mesmo, a cabine permanecia vazia. O odor sumiu subitamente, assim como chegara. Deixando um rastro fraco, mas real. Karuc estava a sua porta assim que conseguiu se pôr de pé.
– Sentiu ? – sussurrou baixo o suficiente para que só o amigo ouvisse
– Vem daqui– sentenciou Karuc no mesmo tom– captei em meus aposentos e segui até aqui.
– Impossível– falou Klaus – não há mais ninguém...
– Marius!
Os dois estancaram enquanto a garota adormecida murmurava. Aquele era um nome mítico, saído direto das fábulas que as mães contavam antes dos filhos dormirem. Klaus questionou Karuc com o olhar. Nenhum deles tinha resposta para aquilo.
– Ela pode ser uma de nós? – sussurrou Klaus
– Cheira como humana.
– Talvez tenha uma descendência qualquer... Um avô ou um parente que lhe contava histórias. Explicaria porque não pudemos fasciná–la.
– Mas não explica o cheiro.
– Que diabos – disse passando os dedos pelo cabelo – se for uma venefica , pode estar agindo para nos emboscar.
– Também não cheira como uma venéfica. Meu avô acolheu algumas no clã quando eu era jovem. Possuem um aroma especifico e um tipo de voz que é impossível confundir.
– Vamos chamar Winter?
– Para que ele a leve direto para Yaroslav ? – respondeu Karuc – o que acha que ele faria com ela?
Dimitri Yaroslav era o alpha mais velho e poderoso entre os clãs restantes. Possuía uma espécie de liderança implícita, mas não oficial, reconhecida por todos, menos pelo clã Chinês. Um homem duro, de métodos enérgicos e até cruéis. E estava furioso mais que qualquer um com os ataques. Soubesse ou não de algo, Klaus duvidava que frágil como se encontrava, a garota sobrevivesse a um interrogatório com Yaroslav. A lealdade de Winter para o com o russo era total, se quisesse manter o mistério de Marie Dubois em segredo, o inglês deveria ficar a parte.
– Se não quiser conservá–la consigo, eu o farei– disse Karuc.
Klaus sabia que o homem falava sério, Karuc era conhecido por nunca blefar. Ainda se sentia um pouco temeroso de que a tal Marie fosse um embuste para induzi–los a uma armadilha. Se a levasse para a colônia poderia colocar seu povo em risco. Contra tudo, sua intuição dizia que a menina era inocente. E nada impedia que a vigiasse de perto.
– Ela fica comigo– respondeu Klaus
Karuc apenas assentiu e fez menção de se retirar. Machos alphas não faziam amizade entre si, mas o chefe do clã africano irradiava certa força moral. Ainda que não fosse um guerreiro mortal o respeitaria, e isso significava muito no mundo de ambos.
– Permaneceremos em contato – falou antes de sair.
Capitulo III
Marie acordou um pouco confusa, não reconhecia o lugar em que estava nem se lembrou a principio de como havia ido parar ali. A medida que as lembranças voltaram o terror retornou também. Marie se deu conta de estar na cama e não recordava de como fora parar lá, mas era o menor de seus problemas. O gigante loiro estava de pé na sua frente, hoje estava barbeado, com os cabelos ainda úmidos do banho, cheirava a colônia e também a um chá encorpado. Seus ombros quase igualavam com a porta em largura, o rosto de traços finos e olhos azuis gelados, exatamente como percebera na noite anterior. Mas só hoje notou que era assombrosamente bonito. Ele a encarava pensativo e mesmo com todo o medo que bloqueava sua garganta, resolveu agir.
– Não vou contar a ninguém o que houve ontem – disse com voz vacilante – eu nem sei o que vi. Apenas me deixe ir, por favor!
– Façamos o seguinte: Tome um bom banho, vou sair para lhe dar um pouco de privacidade conseguir um vestido limpo no porto e pedir alguma comida na cozinha. Depois disso, se me obedecer, conversaremos sobre o que viu ontem.
– O porto ? – disse Marie– Preciso descer!
– Não vai descer – falou com seu sotaque carregado – Trancarei a porta e ninguém pode te ouvir. Quando eu voltar falaremos, e poderemos decidir se você desembarca ou não.
– Não! – ofegou ela– Necessito ficar em Santos, paguei apenas até aqui. Perceberão que não devia estar aqui, me permita descer. Nunca mais me verá, não causarei problemas. Juro...
– Não jure – a cortou de forma brusca – Apenas me obedeça. A banheira já está cheia. Vá antes que esfrie!
Abandonou a cabine sem lhe dirigir nem mais uma palavra. Ouviu a chave girar na fechadura e assim que achou que já havia partido a tempo suficiente, voltou a esmurrar a porta. Não importava o quanto os nós dos dedos doíam, alguém haveria de ouvi–la. Mas da mesma maneira que na noite passada ninguém a acudiu. Se ver metida em assuntos alheios se tornara uma constante nos últimos dias. Não tinha nada com o relacionamento de Madame Claire e Dom Coutinho e nem com os negócios desse homem. Só queria viver sua vida em paz, era pedir demais?
Talvez se cooperasse ele a deixaria livre. Estava claro que viu algo que não deveria, convencê–lo que não era perigosa para seus assuntos parecia a única alternativa. Foi até o cubículo que servia como banheiro, desembaraçou os cabelos com um pente de marfim, se despiu e entrou na pequena banheira de cerâmica com água morna até a metade. Um sabão branco e perfumado ocupava um aparador a seu lado.
Só ouvira falar daquele tipo de produto até agora, era caro demais para uma costureira, usava sabão comum e ervas para se limpar. O objeto era suave ao toque e fazia com que seus machucados ardessem , mesmo assim se esfregou até que surgisse espuma, lavou e enxaguou os cabelos com uma cuia de porcelana, quanto estava quase acabando, um braço passou pela fresta da porta e depositou no chão de madeira uma muda de roupas. Se secando tão bem quanto podia e tendo certeza que a porta voltava a estar fechada, Marie vestiu uma roupa de baixo e um vestido simples, ambos de algodão branco.
O loiro a aguardava sentado aos pés da cama. Indicou com um dedo uma bandeja arrumada sobre a mesinha de mogno. Um bule fumegante espalhava o aroma de café. O estômago de Marie se agitou e ela se sentou na poltrona, um pouco insegura a respeito de se alimentar na frente dele.
– Coma tudo– ordenou
Metade daquelas coisas, Marie só conhecia por ter visto na vitrine da confeitaria perto de seu trabalho. Havia alguns brioches, tortinhas de limão, biscoitos confeitados de todas as cores, torradas, ovos, queijo, geléia e café preto. A necessidade por se nutrir superou qualquer inibição assim que provou o primeiro bocado. Fechando os olhos se entregou a sensação de ter a fome completamente saciada.
A garota não comia como uma lady, enfiava grandes quantidades de comida na boca e mastigava rápido, para seu crédito mantinha os lábios fechados enquanto o fazia. Eram os modos de alguém faminto. Klaus prometeu a si mesmo que ela teria muitas outras refeições fartas. Parecia ainda mais jovem, possuía traços delicados, boca cheia, nariz reto, olhos entre o castanho e o dourado. Se bem cuidada poderia ser uma beldade. Mesmo magra como se encontrava, notou algumas curvas que o horrível vestido marrom ocultara. Jogou esse tipo de pensamento para a parte mais funda do cérebro. Não precisava de mais complicações, nem costumava agir como Winter atrás de um rabo de saia. Sentimentos, desejos e paixões deviam ser mantidos sobre controle. Assim guiava sua vida e seu povo.
Esperou pacientemente e quando Marie acabou, insistiu para que tomasse mais um pouco de café.
– Deseja mais alguma coisa– perguntou – Se não, deixe–me trocar essas talas em sua mão.
Ela negou com a cabeça, se tornando consciente de toda a situação novamente. Fingindo não ter visto a negativa foi até ela e pegou seu pulso. Desamarrou as faixas imundas e examinou os machucados ainda abertos. Com certeza havia segurado um objeto cortante, não uma faca pois teria deixado cortes mais retos.
– Como conseguiu isso – perguntou enquanto espalhava uma pasta de calendula e arnica sobre as feridas e as cobria com tiras de pano grosso– Se quiser pode passar um pouco no seu rosto mais tarde, vai ajudar a sarar, um guarda que estava na porto me disse que costuma usar quando se machuca em serviço.
Não respondeu, ficou rígida tanto com a pergunta, quanto com a alusão ao policial. Notou pela primeira vez que a moça nunca havia ameaçado chamar as autoridades ao se ver confinada. Ouviu os batimentos dela se acelerarem e seus olhos voarem em direção a porta. Continuava trancada, mas prevendo que iria entrar em pânico e que havia conseguido um trunfo,se antecipou.
– Não disse nada a seu respeito. Fique calma!
– Eu não– ela balbuciou confusa – Porque diria algo a meu respeito?
– Por motivo nenhum, mas sei que não gostaria, assim como eu não gostaria que você dissesse algo sobre mim.
– Não vou dizer nada sobre você – exclamou esperançosa.
– Claro que não vai, mas veja bem, não é tão simples– falou sério, terminando de atar o curativo, mas sem soltar seu braço.
– Por que não – perguntou Marie um tanto mais apreensiva.
– Preciso ter certeza de que é sincera. Só precisa responder algumas perguntas, se eu achar que está mentindo, não poderei te deixar partir. Entende?
Marie olhou o gigante loiro boquiaberta. Não fazia qualquer sentido, exceto que sua liberdade dependia disso. Mesmo não entendendo o que aquilo queria dizer, fez um sinal positivo com a cabeça.
– Pergunte o que quiser– Menos sobre Dom Coutinho, acrescentou em pensamento.
– O que estava fazendo ontem perto do depósito?
– Eu tive um pesadelo, fui ao convés procurar minhas amigas e respirar um pouco.
– Que amigas?
– Duas italianas que conheci quando embarquei– Marie mordeu os lábios, não querendo envolver ninguém nesta confusão, ele ergueu as sobrancelhas esperando que continuasse e contra seus princípios terminou fazendo–o – Chiara e Elea, não sei o sobrenome.
– Certo. E o que me diz de sua família? Quem são eles?
– Minha mãe era Maxime Dubois, era francesa, veio ao Rio de Janeiro – sem querer sentiu que ruborizava– trabalhar, morreu quando eu tinha 2 anos. Não sei quem é meu pai.
– Tem qualquer outro parente?
– Não. Minha mãe veio ao Brasil sozinha. Fui criada por D. Alda, uma costureira, depois que Maxime morreu.
Ele não se alterou minimamente, o que fez Marie se perguntar se tinha entendido que tipo de trabalho sua mãe realizava. Mas apenas continuou o interrogatório de forma concentrada.
– Falou que teve um pesadelo. Ontem enquanto estava aqui, falou dormindo.
– O que eu falei?– Será que tinha falado sobre Dom Coutinho e o assassinato. Oh Deus!
– Falou um nome: Marius!
Marie respirou aliviada. Fora apenas mais um de seus sonhos, nada que a pudesse incriminar. Estava tendo–os há anos, no inicio eram fragmentos e imagens obscuras. Nas ultimas semanas se tornaram mais freqüentes e nítidos, não perturbavam Marie, embora às vezes a fizessem acordar no meio da noite.
– Eu sonhava – respondeu Marie– De vez em quando tenho esses sonhos, não são nada demais.
– E o que acontece neles ?
Marie deu os ombros. Eram só sonhos, um conjunto de imagens e sensações. O que ele queria que dissesse ? O homem a encarou esperando uma resposta. Pois bem, a teria.
– Eu ando por um lugar antigo, sempre vou parar em um terraço de pedra. Lá embaixo há um precipício. Algumas vezes nada acontece, apenas sinto o vento perfumado e a chuva me molhar. Em outras há um exército. Nos últimos sonhos um rei estava a frente da multidão, era moreno, se vestia de preto e prata e todos gritavam seu nome: Marius.
Omitiu deliberadamente a parte em que o vento falava com ela, o padre Jorge a fizera rezar três rosários quando confessara a ele seus sonhos, logo após a primeira comunhão. Acreditava que ele soubesse das vezes em que o rei ficava nu, se transformava em uma besta e uivava para a lua a penitencia seria muito maior. Também não aprovaria uma mulher solteira ficar a sós com um homem em um ambiente fechado, mas não é como se tivesse qualquer alternativa, tanto em relação aos sonhos quanto a estar ali.
O homem a sua frente a olhava pensativo, Marie não tinha muita experiência com o sexo oposto, tirando o padre Jorge e alguns vizinhos mais velhos não convivera com muitos deles. Mas possuía a clara impressão que o gigante loiro era difícil de ler. Seus olhos gelados e a expressão impenetrável a deixavam nervosa.
– É casada, noiva ?
– Não.
– E para onde está indo?
– Vou encontrar alguns amigos em Santos, eles vão me arranjar um emprego – não mentia exatamente. Esse era o plano original e esperava com todo seu coração que acontecesse o que dizia– sou costureira, também estou disposta a trabalhar na lavora.
A garota não apresentava sinais clássicos de quem mentia.Os batimentos cardíacos não se alteraram demais, nenhum tique nervoso ou o olhar escapando do seu. Mas não falava tudo, disso tinha certeza. Fez a pergunta chave, prestando atenção extra em suas reações.
– Sabe quem sou eu ou algum de meus companheiros.
– Não sei– ela respondeu. E Klaus acreditou nela.
– E quanto a um cheiro forte de canela e especiarias?
– Um cheir... cheiro? Marie pareceu confusa mas depois de pensar um pouco falou– Ah, eu falei sobre isso também enquanto dormia? Está no meu sonho, não sempre, só algumas vezes.
– O que mais aparece só de vez em quando nesses sonhos?
– Muitas coisas , sonhos são assim!
Ela se mostrou embaraçada, as bochechas adquiriram um adorável tom de rosa e pela primeira vez desviou os olhos dos seus os pousando sobre o próprio colo.
– Não entendo porque quer saber essas coisas– murmurou.
– Tem razão– respondeu – Na verdade acho que não há motivo para duvidar da senhorita.
“Hora de mudar de tática” pensou Klaus. Não tiraria mais nada da menina, existia a possibilidade que não houvesse muito mais que ela conseguisse dizer. Do mesmo modo não compreendia se os tais sonhos teriam qualquer ligação com seu povo. O desespero pode transformar as pessoas em tolas. Possivelmente estivesse tornando ele e Karuc suscetíveis á fantasia.
A menina aparentou tranqüilidade ao ouvi–lo dizer sua ultima frase. Se pôs de pé em expectativa e perguntou.
– Posso ir agora?
– Claro – falou Klaus se pondo de pé despreocupadamente– eu mesmo a levarei até uma autoridade em Santos, para que possam ajudá–la a encontrar seus amigos.
– Não é necessário – falou, toda a cor sumindo de seu rosto.
– Faço questão, visto que atrasei seu desembarque e posso ter causado um desencontro entre vocês. É um porto muito grande e cheio, sabe?
– Eles não vieram me esperar. Os encontrarei em sua casa no interior.
Klaus se sentiu um pouquinho culpado por manipulá–la dessa maneira. Mas não existia qualquer chance que a deixasse partir. Se pudesse persuadir que ficasse por vontade própria, melhor para ela. Se não, usaria métodos mais enérgicos, de toda maneira iria para a Colônia com ele.
– Infelizmente, não posso permitir– retrucou Klaus– É uma moça solteira e sozinha. Insisto em entregá–la aos cuidados de uma autoridade até que esteja em companhia de seus amigos.
– Achei que não queria a policia envolvida – a moça disse
– Na verdade, não fiz nada de mal e você?
Empalideceu mais ainda, o que achava impossível. A respiração da menina ficou difícil e o coração disparou. Era o pânico vindo.
– Sei que está fugindo Marie – falou baixinho
Ela recuou e deu um encontrão na mesinha com a bandeja derrubando um prato e um bule, mas não mostrou se dar conta. Era um animalzinho preso em uma armadilha. Nova pontada de pena que Klaus ignorou.
– Fugiu de casa, foi isso?– ela continuou muda, medo e desconfianças estampados no olhar– Não quero prejudicá–la. Me sinto um pouco responsável por você e não posso deixá–la abandonada a própria sorte. Posso entregá–la a uma autoridade ou pode vir comigo para o Rio Grande.
– Por quê ?
– Já disse, me sinto responsável. Meu povo se estabeleceu nesse local há pouco mais de trinta anos. É um povoado próspero, facilmente lhe conseguiria um emprego. Tenho uma parente que vive só e que talvez gostasse de ter a ajuda de uma mulher jovem
– Se eu disser que não?– perguntou em um fio de voz.
– Entregarei seus documentos e a colocarei sobre a responsabilidade de uma autoridade – sentenciou de forma dura.
– Então irei.
Mais fácil que carregá–la todo o caminho, pensou Klaus. Não podia culpá–la por suspeitar dos motivos dele. Mas tinha boas razões, e em sua companhia estaria mais segura que por sua própria conta. Mesmo assim sentiu necessidade de abrandar seu receio.
– Ficará bem, tem minha palavra. Repouse um pouco mais, a viagem de Porto Alegre até a colônia é difícil, então descanse enquanto pode.
Falaria com Karuc sobre o interrogatório, e o ultimo que restaria por fazer seria despistar Winter. O inglês estranharia que mantivesse a menina na cabine por mais tempo. Lhe passaria desconfianças vagas e deixaria que ele as dissipasse. Conseguir que alguém chegue a conclusão desejada sozinho funciona mais que uma mentira. Winter não era bobo, e tendia a se entediar facilmente. Usaria a ambas as características para tirá–lo da trilha de Marie.
Capitulo IV
– A garota continua difícil de fascinar– informou Klaus enchendo os dois copos na mesa.
– Quer que eu tente ? – perguntou Winter virando de uma vez sua dose.
Felizmente sua raça resistia bem a bebidas alcoólicas. Fazer um filho da Lua ficar bêbado podia ser uma questão de litros e não de uns poucos copos. Algumas vezes Noah Winter, o barão de Dearne, desejaria que fosse mais fácil. Um bom porre, faria estar preso por dias em um navio mais suportável. Neste mesmo momento , enquanto o Portugal permanecia aportado, preferiria explorar o porto que bater papo com o loiro estóico que era o chefe do clã germânico, recentemente remanejado para o Sul do Brasil. Duvidava muito que seu próprio clã se dispusesse a segui–lo para fora da Europa. Mas duvidava mais ainda de querer ele mesmo se estabelecer em um lugar ermo.
– Não creio haver nada demais nela– disse o Alemão– mas só para ter certeza, talvez pudesse averiguar. A menina estava em companhia de duas italianas, Chiara e Elea. A família desembarcou cedo, mas talvez não tenham pego o trem para a hospedaria do Imigrante. Zarpamos á noite, fale com elas antes disso. Descubra se sabem algo sobre a moça.
– Hum– resmungou Winter– Por que não faz isso?
– Lida com humanos com mais freqüência que eu e Karuc... Pensei inclusive, que gostaria de fazê–lo.
– Tem certeza que não está lidando com a belezinha em sua cabine? – provocou , sem obter qualquer reação de Klaus.– Bem, uma rodada de vinho com novos amigos não faria mal. “E sem ofensa, mas dois italianos profundamente adormecidos, podem ser mais animados que você e Karuc acordados.” Completou em pensamento.
Winter deixou o navio trajando camisa, calça, colete e botas. Sem paletó e chapéu pareceria mais despojado, o que sempre facilitava o contato com pessoas simples. Isso e ter o bolso cheio de moedas. Chamar de porto o lugar ermo e sem muita estrutura era bondade, mas mesmo assim um porto sempre atraia um pouco de comércio e movimento. Um grupo de imigrantes barulhentos jogava cartas em um botequim próximo. Quatro rodadas de bebida e duas mãos de baralho depois, descobriu que a família que procurava aguardaria por mais dois dias , só então pegariam o trem. Não precisou procurar muito, a mãe, o caçula e duas mulheres jovens tentavam negociar um lugar para se limpar e algo para comer em um armazém precário que servia de pensão. Passou por dezenas de outros na mesma condição e enfiou algumas moedas na mão do dono.
– Preciso de um quarto– falou– só até amanhã.
O velho olhou duvidoso a quantia em sua mão e concordou fazendo um gesto para que o seguisse. Foi levado até um cômodo de madeira com uma cama de casal uma mesa velha com quatro cadeiras e um cubículo conjugado para higiene e as necessidades.
– É o melhor que tenho.
– Serve– respondeu Winter dando mais algum dinheiro ao homem– agora me traga comida para cinco e todo o vinho que tiver.
Voltou ao saguão improvisado e não se fez de rogado ao puxar conversa com o grupo, eram falantes e em seu melhor italiano logo os convenceu a usarem seu quarto para se lavar e descansar um pouco enquanto ele esperava lá fora. Almoçaram uma sopa rançosa juntos e Winter até conseguiu se divertir um pouco. Duas horas depois o menino pequeno e a mulher mais velha, que havia descoberto era tia das outras mulheres, ressonavam na cama de casal.
Mirou em Elea. Além de mais velha era a mais desinibida.Também era mais voluptuosa que sua prima, pele morena de sol, cabelo loiro mel, rosto bonito e risada escandalosa. Winter definitivamente poderia gostar daquela missão em particular. Apostou que Elea fazia o tipo esperta, se bem incentivada estaria disposta a tudo, inclusive a falar.
– Vou buscar mais vinho– disse – quer me ajudar trazendo essas garrafas vazias?
Ela se levantou, piscando para Chiara e saiu pela porta carregando três garrafas nos braços. Winter se aproximou furtivamente por trás e soprou em sua orelha.
– Que tal mais um pouco de vinho a sós.
Elea ofegou, e deu uma risadinha.
– Parece uma má ideia.
Com agilidade a segurou pelo pulso e até um pequeno depósito de alimentos no pátio exterior.
– Não vejo nenhum vinho por aqui – ela disse piscando os belos olhos castanhos.
– Ah– falou Winter dando passos em sua direção até tê–la bem perto – Podemos tomar outra coisa.
Enfiou os dedos na base de sua trança e a beijou com força. Ela resistiu por cerca de dois segundos e depois abriu os lábios permitindo a invasão de sua língua. Enquanto mordiscava o pescoço e os ombros, a inclinou contra uma pilha de sacos de cereais. Puxou a blusa para baixo e dois seios amplos e redondos, com mamilos grandes e rosados pularam para fora.
– Não tão rápido– ela disse. Mas não se retesou ou tentou se cobrir.
– Eu gosto rápido– respondeu experimentando o peso de seus peitos na palma da mão.
– Você é um cavalheiro fino e rico, não?
– Sim– respondeu Winter– Muito rico, mas não tão fino.
Ela riu, mas havia um pouco de receio em sua expressão, aproveitou o momento para tomar um mamilo entre os lábios. Elea gemeu e se arqueou contra ele. Traçou uma trilha de beijos pelo seu colo, garganta e queixo até que seus olhos se encontrassem. Com sua mente a paralisou, assim que notou que se encontrava cativa, perguntou de modo imperativo:
– O que sabe sobre a garota brasileira com quem estava no inicio da viagem?
– A pobrezinha, estava machucada e assustada– respondeu de modo lacônico.
– Já a conhecia?
– Não.
– Sobre o que conversaram?
– Nada. Não fala italiano, nem eu português. Não a vi desde a primeira noite.
– A procurou ?
– Sim, perdeu seu medalhão no alojamento e queria devolve–lo.
– Onde está o medalhão ?
– Nas minhas coisas.
– Vá pega–lo!
– Agora– perguntou e pareceu um pouco desnorteada.
– Se cubra e vá– ordenou.
–Caiu sobre um saco maior e aguardou. Elea voltou trazendo um medalhão de latão, vários símbolos gravado na frente , nos verso uma inscrição em latim. Winter gelou, se aquilo fosse o que pensava, era grande. Guardou o objeto no bolso e se voltou para a italiana.
– Agora venha aqui– falou subindo a mão por baixo de sua saia e agarrando uma nádega dura. Apreciava fartura em uma mulher, e aquela era um banquete inteiro. Girou rápido demais para que ela visse, e em um segundo se achou embaixo dele, as pernas enroscadas em seu quadril, totalmente aberta. Ofegou de surpresa, mas relaxou em seguida.
– Achei que não queria– Elea murmurou
– Sabe o que quero?– falou colando sua testa a dela.
– O que ?
– Quero que fique muito– o mais que já esteve– molhada. Molhada por mim!
Viu a expressão de espanto de Elea se transformar em satisfação quando seu corpo obedeceu.
– Como fez isso– A italiana perguntou.
– Mágica– sussurrou.
Aspirou o aroma de verão da mulher e se preparou para afundar nela. Oh sim, seria bom. Ela gritou, mas não por ele, ouviu um barulho atrás de si e a ultima coisa que percebeu foi um dor lascinante na nuca. Alguém o acertara.
Faltava uma hora para o Portugal zarpar. A tripulação exigia que todos já estivessem a bordo, mas isso era problema deles, o de Karuc era encontrar Winter. A família da italiana com que ele fora visto da ultima vez estavam no mínimo muito bravos, e não podia lhes tirar a razão. Ignorou solenemente cada olhar de desprezo que lhe era endereçado no Porto. Há muito se acostumara, a América e a Europa se esqueceram que pessoas com sua cor de pele construíram civilizações tão grandiosas que jamais voltariam a ser igualadas. Podiam olhar o quanto quisessem, não chegavam a fazer mais que isso. Até os humanos possuíam instinto de sobrevivência, e este mandava a mensagem que não deviam se meter com um macho alpha de sua espécie.
Escreveu uma carta para Klaus e pagou a um marinheiro para que a entregasse. O homem ia se negar, mas uma segunda olhada para Karuc o fez reconsiderar. Informava que permaneceria em terra caso Winter não fosse encontrado até a hora da partida. E pedia na missiva que o alemão continuasse a viagem e mantivesse a garota em segurança. Sua intuição dizia que era importante manter Marie Dubois a salvo. Estava vivo a tempo demais para aprender a confiar quando algo lhe vinha tão forte.
Fechou os olhos e colocou seus sentidos para funcionar. Não ouvia nada além de conversas e barulhos de um cais em funcionamento. O vento marítimo espalhara rápido o rastro do inglês. Caminhou pelo lugar, rodeou a pensão e por fim conseguiu algo. Winter havia estado deitado sobre um daqueles sacos, o quartinho também cheirava a mulher humana. Por cima disto havia um aroma indistinto. Algo vivo, pois sentia notas almiscaradas e sobrenatural, nenhum humano possuía um cheiro tão complexo. Pouco, mas ainda mal tinha começado. Não sairia da America do Sul sem Winter. Era uma promessa e Karuc não as fazia em vão.
Capitulo V
Klaus releu a carta do Africano muitas vezes. Odiava ter sido deixado de fora, que diabos ocorrera com Winter afinal de contas? Passara os últimos quatro dias se sentindo enjaulado dentro do navio. Manteve um olho em Marie, mas ela pressentiu seu estado de espírito e se mostrou reservada. Se ressentia-se de ficar confinada à cabine não reclamou, inclusive relaxou depois que ficou claro que não tinha a intenção de encostar um dedo nela e continuou dormindo no tapete. Sabia que a garota passava um bom tempo na banheira e não recusou nenhuma refeição. Quando chegaram em Porto Alegre tentou se focar. Sua primeira obrigação era para com seu povo, precisava voltar e ter certeza que estavam bem. Devia acima de tudo se assegurar de não ser seguido.
Desceram a rampa, lado a lado e ele se afastou um pouco para ter certeza que sua bagagem já estava sendo descarregada. Além dos pertences pessoais, trazia algumas coisas para a colônia que comprara no Rio de Janeiro: tecidos, algumas ferramentas, especiarias, produtos de limpeza, papel e tinta. Por causa delas seria necessário alugar um barco pequeno para seguirem viagem rio acima. Fazer esse arranjo demorou um pouco mais do que esperava, o capitão do barco cobrou mais caro do que seria de praxe, mas estava com pressa e queria chegar logo na Colonia, por isso pagou. Quase conseguiu apreciar a coragem do homem em não ceder frente a ele, quase.
Procurou Marie com os olhos e não a achou, há apenas um minuto atrás estava parada próxima a rampa de desembarque de passageiros. Um burburinho há poucos metros de si a revelou. Um oficial do navio a acossava, segurando seu punho, vários populares de puseram em volta para assistir.
– Não pagou para vir até aqui – esbravejou o homem – Deveria te jogar no mar, é esse o castigo para quem viaja dessa maneira.
– Solta ela – disse Klaus em voz baixa.
A pequena multidão saiu de seu caminho enquanto alcançava o centro da confusão.
O oficial o olhou confuso, viu o homem quase fazê–lo, mas então fechou mais os dedos na pele dela. Humanos não costumavam criar confusão com os alphas de sua espécie, talvez pelo tamanho, e em parte por instinto. Mas sempre havia os idiotas.
– Ela é uma clandestina– resmungou o homenzinho– é assunto da companhia, não se meta amigo!
– Não sou seu amigo– respondeu Klaus sem demonstrar emoção – A senhorita está sob minha responsabilidade, respondo por ela.
– Ah, já vejo– retrucou o oficial maldosamente– fizeram um acordo durante a viagem, mas não é assim que se paga a passagem moça!
– Solte–a, é a ultima vez que estou pedindo – falou Klaus em tom baixo.
O homem ainda esboçava um sorrisinho irônico, mas largou Marie que em disparada, se colocou atrás de Klaus, agarrando a manga de seu casaco. Ele sentiu uma súbita onda de bem estar por ela procurar proteção nele. Mas satisfação sentiria mesmo ao arrancar dois dentes do homenzinho. Respirou fundo para se controlar, não precisava chamar atenção sobre si.
– Pois bem, vamos ao escritório da companhia resolver isso– falou Klaus– Pago a passagem dela de Santos até aqui e vocês me devolvem a diferença da passagem de dois amigos que pagaram de primeira classe até a Europa e desembarcaram no ultimo porto. Tenho uma carta de ambos me autorizando a fazê–lo. Tinha pressa e não pretendia me demorar aqui, mas já que insiste.
Klaus praticamente ouviu o pequeno cérebro do homem funcionando, uma passagem de primeira para o velho continente custava oito meses de salário de um trabalhador comum. O escritório da companhia não ficaria satisfeito ao saber que um oficial forçara a devolução do dinheiro. Obviamente ele não tinha procuração nenhuma de Karuc e Winter, mas ele não sabia disso.Com certeza o oficial os tinha visto juntos no navio. Não era um grupo difícil de notar.
– Não é necessário – falou o homenzinho – Fica a passagem dela pela de seus amigos.
– Não– disse Klaus– Insisto em fazer as coisas direito. A não ser, é claro, que se desculpe com a senhorita por ter sido grosseiro.
– Peço desculpas, senhorita– a ultima palavra foi quase cuspida, mas Klaus não se importou, bastava. Seguido por uma Marie muito vermelha, abandonou o local.
O Gigante era estranho, pensou Marie. A seqüestrara, obrigara a vir com ele para o Sul e passara os últimos dias praticamente sem falar com ela. Além de conversar pouco, ele também não ria ou se mostrava bravo. Nunca. Mesmo assim não lhe tinha feito mal , e de algum modo estúpido sentia que não a machucaria. Poderia estar completamente errada, afinal ele era um desconhecido e agia sem razão aparente. Nesse momento, apenas um pouco depois de tê–la defendido do marinheiro mal humorado, a fizera vestir seu casaco e a arrastara para um armarinho.
– Vai precisar de uma capa para a viagem– falou para a vendedora – e um par de botas.
A adolescente colocou uma capa curta cinza de lã sobre o balcão e depois de medir os pés de Marie, voltou com uma bota preta com cadarços.
– Também tenho algumas meias senhor– falou a vendedora sorridente.
– Sim, uns dois pares pelo menos. Também traga um chapéu se tiver.
– Não tenho como pagar por essas coisas– sussurrou Marie ao ver a jovem sumir atrás de uma porta.
– Não se preocupe.
– Por que está fazendo isso – Marie perguntou, um pouco sem jeito.
– Porque aqui não é o Rio de Janeiro, é frio e vai ficar pior a medida que subirmos a Serra.
– Qual é seu nome– ela perguntou de supetão.
Ele a olhou espantado, como se só agora se desse conta de não haver se apresentado.
– Klaus. Klaus Rolf.
Pagou por suas roupas e por outros itens que ela supunha, levava para alguém na tal colônia. Quis fazer muitas outras perguntas, se era casado, quem seria a parente para a qual iria trabalhar, o que esperava que fizesse e como se chamava o local para onde iam. Fez apenas a ultima, enquanto jantavam pão, sopa e vinho em uma pensão próxima ao porto.
– Nova Waldmond . Há uma vila e pequenas propriedades rurais em volta. Somos pouco mais de 200, mas é uma comunidade unida, a maioria de nós veio do mesmo local e nossas famílias sempre se conheceram.
– De onde vieram? – perguntou Marie .
– Boa parte da Baviera, alguns ainda da Áustria. Sempre viveu no Rio da Janeiro Marie?
– Sim– respondeu– é a primeira vez que saio de lá.
– A vida no campo é diferente da na cidade. Há mais trabalho, mas também pode ser mais tranqüila. Você se acostumará.
Foi o mais perto de uma conversa que tiveram, fora o interrogatório do segundo dia. Na pensão usaram o mesmo sistema do navio, ela dormiu na cama e Klaus no chão. Se recolheram cedo, pois partiriam antes do amanhecer para Nova Waldmond.
Marie não estava mais no terraço de pedra, usava as mãos e os pés nus para escalar precipício abaixo. Caiu algumas vezes, mas mesmo assim continuou seu caminho até a multidão. Quando chegou era pura lama, mas isso não importava. As pessoas a saudaram e abriram caminho para que passasse. Não estava só, outras mulheres fizeram o mesmo percurso. Não parou para observá–las, tudo que importava era chegar ao rei. Ele continuava a frente do exercito, refulgindo em sua armadura prateada. De perto seu rosto era jovem,mas Marie sabia que não podia calcular a idade, era eterno. Os olhos negros perfuraram sua alma, o rei a chamava e ela obedeceu. Prostrou–se a a sua frente ao mesmo tempo em que as mãos de Marius iam para ela. A tocou nas costas e o calor que emanava queimou sua pele como se fosse um ferro em brasas. Gritou de júbilo e dor.
– Marie, acorde!
Klaus estava sobre ela e sacudia seus ombros. Custou a conseguir acalmar a respiração, tremia inteira como se um trovão a tivesse atravessado. Suas costas ardiam e lutou para afastá–las da cama.
– Teve um pesadelo – disse ele– Gritava e se debatia.
– Minhas costas– Marie choramingou e odiou como sua voz soava– queimam!
Klaus, a ajudou a se sentar e se inclinou para olhar as costas da garota. Estava coberta por uma comportada roupa de baixo. Talvez tivesse sido picada por um inseto, parecia em aflição balançando as mãos e os braços freneticamente.
– Se acalme –pediu– deixe–me ver.
Com cuidado afastou a gola redonda e espiou dentro, por sorte não precisava de uma ajuda para enxergar na penumbra. Mas quase foi buscar uma vela para ter certeza do que via. Uma queimadura em alto relevo formava um símbolo . Não podia distingui–la totalmente, apenas as bordas bem marcadas, a ferida se encontrava inchada como se houvesse acabado de ser feita. Por Deus, ainda depreendia certo calor.
– Há um machucado– não tinha muita certeza do que mais poderia dizer.
Se levantou e molhou um lenço na água da moringa colocada em cima de uma mesinha. Pressionou levemente o pano contra o ferimento, ela emitiu um soluço e descansou a cabeça em seu peito. O mais delicadamente que pôde, fez com que ela se deitasse de bruços. Ajeitou o lenço dentro da gola e com a outra mão a embalou para que voltasse a dormir, mas duvidava que conseguisse. Devia estar doendo como o diabo, a respiração entrecortada dela confirmava isso.
– O que sonhou?– perguntou baixinho.
– Sonhava que eu ia até o rei, eu me ajoelhava, ele tocava minhas costas e me queimava– balbuciou – Estou ficando louca?
Tem algo feito a brasa nas costas , quis lhe dizer, mas achou que teria tempo. Por hora, a menina se sentia mal e estava abalada. O quarto ainda cheirava sutilmente a canela e especiarias, nunca odiou tanto aquele cheiro.
Marie passou toda a manhã amuada. Klaus não conseguiu que tomasse mais que uma xícara de chá antes de saírem. Também se negou a deixar que visse novamente o machucado. Queimaduras podiam infeccionar e o percurso até a colônia tinhas suas dificuldades. Mais do que nunca queria chegar logo. Necessitava conversar com alguém sobre os estranhos acontecimentos. Eva Rommer fazia as vezes de curandeira e professora dentro do clã. Deixaria Marie a seus cuidados. Se algo de toda essa bagunça pudesse ser explicado, Frau Eva saberia.
Em um pequeno vapor que servia como cargueiro navegaram pelo rio Taquari . Suas águas estavam turvas pela seca, a cheia só viria no inicio do próximo ano. Klaus apreciava o ambiente selvagem, tão diferente dos campos de sua infância e da Viena de sua juventude, mesmo assim já considerava aquele lugar sua casa. Não eram os únicos passageiro, pelo menos outras quinze pessoas faziam o mesmo trajeto. Pensou novamente no paradeiro de Karuc e Winter. Seria muito difícil ter noticias dos dois na colônia. Por isso mandou uma missiva a Yaroslav enquanto se encontravam em Porto Alegre. Não o queria se metendo em seus negócios, mas se o inglês e o africano não fossem encontrados, alguém deveria ficar sabendo.
– Amanhã desembarcaremos em São Sebastião do Caí – Klaus disse sobre os ombros de Marie– Tobias, meu capataz já deve estar nos esperando com as carroças. A partir de então iremos por estradas e trilhas de difícil acesso.Teremos que dormir na mata inclusive.
– Estou bem descansada – falou Marie – Não fiz outra coisa na ultima semana que descansar. Não atrapalharei a viagem.
– Não disse que o fará– replicou Klaus– Mas faria bem me deixar ver o estado desse maldito machucado em suas costas.
– Já não sinto dor– falou ela.
Duvidava muito que não sentisse. A recusa dela em deixar que cuidassem da ferida começava a irritar Klaus. Colocando o senso prático acima da delicadeza a pegou pelo braço e levou até a cabine fechada que lhes correspondia. Havia nada mais que dois bancos de madeira no local, mas o suficiente para terem um pouco de privacidade.
– Só quero olhar– falou Klaus– Ver se está inflamado ou algo assim.
– Já disse, estou bem!
– Está é muito teimosa, isso sim! Se for o veneno de um inseto, pode precisar de remédio– falou para convencê–la.
– Acha que pode ser uma mordida de inseto – perguntou se sentando a seu lado com os olhos muito abertos.
Não. Não achava. Um objeto quente fez a marca de bordas definidas. Disso tinha certeza.
– Talvez.
Ela tirou a capa curta e desabotoou o vestido branco até a cintura, retirando os braços e deixando a mostra apenas a roupa de baixo. Com os braços cruzados e o rosto muito vermelho, girou o corpo para que verificasse a ferida. Klaus pensou que seria mais educado se tivesse virado enquanto Marie se despia. Uma parte sua sussurrou que não o teria feito mesmo que ela pedisse. Afastou a gola de sua combinação e desfez um laço que a prendia nas costas. A pele de Marie era lisa e pálida como se aquela parte de seu corpo nunca houvesse conhecido o sol. A marca se encontrava quatro dedos abaixo dos ombros: Um M de três centímetros de diâmetro rodeado por uma moldura de símbolos menores. Insígnias antigas e relacionadas a seu povo. Já não estava inchado, nem mostrava sinal de infecção.
– Dói– perguntou tocando de leve com o indicador.
– Não. Sinto como se a pele estivesse mais rígida, apenas isso– ela falou – é uma mordida?
– Não se parece com uma mordedura. Na verdade, se assemelha a uma letra M. Como se fosse marcada a brasa.
Marie se retesou, mas não se levantou. Klaus fez se voltar para poder ver sua expressão. Lagrimas ameaçavam cair e ele deu dois tapinhas sem jeito sobre seu ombro para confortá–la.
– Acho que é o demônio – falou em voz tão baixa que um humano teria tido que se esforçar para ouvir.
– Marie, olhe para mim– disse colocando dois dedos sob seu queixo– Não é o demônio. Acredite !
– Que mais pode ser ?– falou ansiosa– Fiz algo terrível e estou sendo castigada! Eu, eu...
– Você ?
– Eu matei– sussurrou.
Klaus imaginava que aquela confissão só saíra de sua boca devido ao mais absoluto pavor. Agora ela chorava abertamente. Ótimo! Reconhecia, dois ou três daqueles símbolos, mas não o contexto todo. Continuava muito confuso a respeito da relação de Marie com os filhos da Lua. Embora fosse óbvio que existia alguma, e muito forte.
A abraçou e a puxou para seu colo, embalando–a com palavras tranqüilizadoras em sua língua natal. Marie ocultou o rosto no vão de seu ombro e se deixou ficar.
– Enf... Enfiei um pedaço de vidro no pescoço dele – falou baixinho.
– Em quem lhe fez aquelas marcas roxas no rosto ? – perguntou no mesmo tom.
Ela assentiu de leve e continuou a falar. – Era amigo de minha patroa, estava bravo com ela e eu estava sozinha na boutique. Ele ia...
– Fez a coisa certa Marie – Klaus falou – defender a própria vida não é errado!
Não sabia o que ela acharia pior, ser castigada pelos céus ou que estivesse ligada a criaturas que consideraria nada mais que monstros. Klaus temeu que em breve tivesse que destruir as crenças básicas dela sobre o mundo que a cercava. Marie era uma garota simples e inocente. E também muito bonita. Melhor seria se afastar , ela despertava algo seu instinto de proteção e isso em um Filho da Lua causaria problemas na certa. Em vez de colocar distancia entre eles, escorregou os lábios até a fronte dela. Marie não recuou e ele se viu alcançando seus lábios.
Marie não percebeu de imediato que acontecia, mas Klaus cobriu sua boca com suavidade. A pele do homem era quente e perfumada e não quis que afastasse. As mãos dele subiram por suas costas nuas e deixou que as dela fossem em direção aquele cabelo loiro e comprido. Quisera fazer aquilo desde a primeira noite e deslizou seus dedos por entre os fios sedosos.
– Abra a boca para mim, querida – ele pediu
Marie arquejou quando a língua dele a invadiu, se enrolando e sugando a dela. Klaus beijava seu pescoço agora, raspou os dentes contra o glóbulo de sua orelha e ela se arrepiou. Não devia deixar que continuasse, mas era tão bom! Uma mão estava sob a saia, deslizando por uma perna, panturrilha, joelho e mais acima. Marie se sobressaltou quando ele seguiu acariciando a parte de dentro da coxa.
– Não vou fazer nada que não queira– sussurrou contra seu ouvido– me deixe apenas sentir você.
Se relaxou contra ele e permitiu que a tocasse na parte mais intima. Klaus esfregou com dois dedos, soltou um gritinho abafado pelas bocas unidas. Separou suas dobras e entrou um pouco friccionando e pressionando com movimentos circulares.
– É deliciosa, Marie – falou aumentando a velocidade– diga meu nome!
– Klaus!– balbuciou
– Diga que gosta.
– Oh, eu gosto.
E gostava muito. Tanto que era incapaz de coordenar um pensamento sequer. Só existia aquele momento e as sensações maravilhosas. Veio em ondas e se deixou arrastar até que explodiu de dentro para fora. Tinha as unhas enfiadas nos braços de Klaus, ela a segurou com força até que a respiração voltasse ao normal. Envergonhada demais para encará–lo, escondeu o rosto em seu peito, ele, soltou algo que podia ser um riso e acariciou seu cabelo.
– Quanto tempo até ter coragem de me olhar de novo?
– Oh, nunca mais– exclamou um pouco exasperada.
Agora definitivamente ele estava rindo.
Capitulo VI
A luz do luar iluminava parcialmente as paredes de pedra do velho templo. Ouvia o barulho de um rio ao longe e mais nada. Nem o vento batendo nas copas das árvores nascidas no desfiladeiro, nem o grito dos pássaros no céu. Apenas água corrente e a respiração do rei.
Ele estava de pé em frente a um trono partido. Não trajava armadura, mas uma toga branca que brilhava contra a pele morena. Seu rosto esculpido em pedra, bonito demais para ser real. Seus lábios nunca se abriram, mas Marie sentiu o hálito de canela a rodear enquanto suas palavras chegavam até ela.
– Eu sou Marius, da linhagem de Rômulo.
– Estou a suas ordens meu senhor– respondeu Marie
– Compartilharás meu sangue e o poder que flui através dele?
– Sim, meu senhor.
– Venha– ordenou
Marie se prostrou a seus pés e estendeu as duas mãos em suplica. O rei fez um corte no próprio punho e um filete de liquido vermelho escuro escorreu por entre os dedos de Marie.
Abriu os olhos e só viu escuridão. O céu acima de sua cabeça estava opaco e sem estrelas, a dois metros de distancia as brasas da fogueira quase extinta iluminavam parcamente o acampamento improvisado.
Chegaram a São Sebastião do Caí há mais de dois dias. Três homens jovens e fortes esperavam por eles na cidade. Todos loiros, altos e sérios, embora não tão impressionantes como Klaus. Seus sotaques eram ainda mais carregados e várias vezes os ouviu conversar na língua natal. Traziam consigo três carroças e um cavalo para transportar os produtos adquiridos no Rio de Janeiro.
Partiram no mesmo dia para a colônia, primeiro por uma estrada larga, pavimentada com pedras. Depois por estradas mais estreitas de terra e finalmente por trilhas precárias dentro da mata. As carroças pesadas andavam a passo de tartaruga serra acima. Mais de uma vez tiveram que parar para reforçar uma roda, ou liberar um veículo de um galho mais baixo. Boa parte do percurso foi feita a pé, puxando os cavalos pelas subidas íngremes.
No final do segundo dia, Marie já estava exausta, mas principalmente incomodada pelo frio e vento intenso. Tentou se levantar da esteira de lona para reavivar o fogo, temia os animais que escutava de madrugada.Ao colocar o pé para fora foi contida por um braço pesado.
– Onde vai ?
Quando é que Klaus havia se deitado tão perto?
– Até a fogueira.
Ele se acomodou mais perto, a abraçando por cima do cobertor.
– Tobias vai cuidar do fogo. Durma mais um pouco.
– Eu sonhava– falou
– Com o quê ?
– O rei se cortava e derramava sangue em minhas mãos.
– Não pense nisso – respondeu Klaus de forma um pouco brusca.
Marie fechou os olhos mais podia dormir, não era apenas o sonho, mas sobretudo a respiração de Klaus sobre seu cabelo, o peso de seu braço e o calor que emanava. Desde aquele dia no barco, não voltaram a se beijar e não o ouvira rir de novo. Ele a tocava apenas ao ajudá–la a subir e descer da carroça e Marie lamentava por isso. D. Alva e Padre Jorge ficariam decepcionados se soubessem as coisas que passavam por sua cabeça. Mas simplesmente não podia evitar.
– Há uma igreja na vila ?
– Ainda não – respondeu Klaus– Por que pergunta?
– Preciso me confessar.
– Confesse a Deus – disse ele – Mas não acho que tenha nada pelo qual precise se penitenciar.
Klaus ainda estava intimamente irritado pelo que Marie contara a respeito de seu ataque. O aborrecia também que ela se sentisse culpada por ter se defendido. Se fosse ele a ter colocado as mãos no sujeito, o fim dele não teria sido tão limpo. E para finalizar havia os tais sonhos e as curva suave do quadril comprimido conta ele. Quando chegasse na colônia daria um jeito de liberar sua agitação. Uma semana cortando lenha e tomando seis banhos frios por dia, deviam resolver.
Entraram nas cercanias de Nova Waldmond no meio da tarde. Foram avistados e saudados de longe por alguns colonos que ainda trabalhavam em suas lavouras. O Sol estava quase se pondo ao alcançarem a vila, as edificações em pedra e madeira foram aperfeiçoadas desde que estivera ali. Construções simples e sólidas que evocavam um outro mundo. Já não usavam a técnica enxaimel há muito em sua terra natal, mas se mostrou eficiente no clima úmido do Brasil. Em volta de todas as casas se viam canteiros de flores selvagens. Um pouco de nevoa começava a se formar abaixo de onde estavam, mesmo assim a vista das montanhas era esplendorosa.O ambiente caseiro o aqueceu, as pessoas abriram as janelas para vê–los e umas poucas crianças perseguiram as carroças pela rua principal.
– É lindo– disse Marie
– Que bom que gostou. Venha, quero que conheça alguém.
Deixaram os homens e outros jovens descarregando os coches e Marie acompanhou Klaus até uma casa térrea e ampla que, lhe disse, servia também de escola. Uma senhora robusta de cabelos grisalhos e olhos castanhos aguardava do lado de fora.
– Marie, essa é Frau Eva.
A mulher a olhou com franca curiosidade. Trocaram diversas frases em alemão até que Frau Eva segurou a mão de Marie e sorriu.
– Venha filha, quero ver esse seu machucado enquanto o jantar termina de cozinhar.
A casa possuía móveis de madeira rústica. Uma jovenzinha de não mais que treze anos mexia as panelas em um fogão de lenha. Tudo lá dentro aparentava simplicidade e limpeza. Acompanhou Frau Eva até um cômodo menor em que havia uma cama de solteiro e um armário. Cheirava a ervas e álcool.
– Frau Eva cuida dos doentes, faz remédios e partos– explicou Klaus.
Ele aguardou do lado de fora enquanto Marie se deixava examinar. A mulher tocou e apertou suas costas, apalpou a garganta, levantou as pálpebras e mediu seu pulso. Perguntou sobre sua família, hábitos e doenças infantis. Por fim pediu que descrevesse seus sonhos em detalhes. Marie o fez, mas devido aos últimos acontecimentos, ficava desconfortável falando do assunto. Já não parecia bobagem, mas uma maldição.
– Sei que é loucura – explicou a Frau Eva depois que terminou o relato.
A senhora deu dois tapinhas tranqüilizadores sobre sua mão e sorriu.
– A vida sempre parece, criança. Não se preocupe, vamos descobrir o que está acontecendo. Vou te deixar aqui para descansar e se refrescar até o jantar.
Klaus andava de um lado para outro enquanto esperava. Que Frau Eva lhe desse uma resposta era urgente. Se não pudesse fazê–lo que o diabo carregasse essa situação. Seguiram em direção a sala que funcionava como escola e Frau Eva procurou um livro surrado em uma estante. O abriu sobre a mesa principal e indicou uma ilustração feita a mão. Klaus viu o mesmo M maiúsculo rodeado por símbolos menores que apareceu gravado em Marie.
– É o brasão de Marius ?
– Sim, na verdade esse emblema heráldico não foi visto desde os tempos antigos. Que essa pequena humana tenha uma conexão com ele é surpreendente.
– Sabe o que isso significa – perguntou Klaus – Porque estou perdido aqui.
– Não posso ter certeza – falou Frau Eva – Marius foi o ultimo de nossos grandes reis. Viveu há mais de dois mil anos e venceu cada batalha que liderou. Era um líder capaz e o guerreiro mais mortal de que se tem noticia. Diz a lenda que morreu pelas mãos de uma venéfica pela qual se apaixonou. Desde então o sangue de nosso povo esmoreceu e perdeu muito do que já foi.
– Marie pode ser uma descendente de Marius ?
– Não acredito que seja– respondeu a mulher se sentando e indicando com a mão que Klaus fizesse o mesmo – Marius não deixou filhos. Examinei a moça e ela é humana. Seus olhos têm uma cor incomum e se curou relativamente rápido o que pode indicar que tenha algum antepassado pertencente a nosso povo. Mas é só especulação.
– Ou seja – falou Klaus – ainda não sabemos nada.
– Sinto muito– disse Frau Eva – E o que fará com ela?
Tinha planejado deixar Marie aos cuidados de Frau Eva. Podia ajudar a mulher com alguns trabalhos domésticos e enquanto isso a senhora investigaria os estranhos sintomas que apresentava. Se por acaso se mostrasse puramente humana, não seria difícil arranjar uma ocupação para ela em uma cidade próxima. Tinha alguns contatos e os usaria para que a garota pudesse seguir sua vida. Um plano sensato e aceitável.
– Ela vai ficar na minha casa– respondeu Klaus – Ninguém deve falar nada diretamente sobre sermos diferentes dos humanos. Aos poucos, lhe contaremos.
– Está deduzindo que ela realmente tenha alguma ligação conosco. Se a moça for humana, não pode ficar aqui!
– Eu decido isso– respondeu Klaus friamente.
– Sim, meu senhor!
Saiu da pequena sala de aula frustrado. O conhecimento de Frau Eva não revelara nada concreto. Os sonhos, a resistência ao controle mental, o estranho cheiro que às vezes a rodeava e a marca eram indícios mais do que suficientes de que algo ocorria a Marie. Mesmo assim foi impulsivo de sua parte decidir levá–la para sua casa. Mas pelo menos poderia garantir pessoalmente que ela ficasse bem. Jantaram em companhia de Frau Eva e da jovem Annete, sua sobrinha. Antes de sair, lembrou de pedir que providenciassem algumas roupas com as costureiras da vila. Marie não tinha virtualmente nada, e não poderia usar o vestido branco para sempre.
– Achei que ficaria aqui – disse Marie depois que deixaram a casa.
– Frau Eva me disse que não precisa de ajuda – mentiu ele – A sobrinha já está com ela.
– Ah – respondeu Marie – Então para onde vou ?
– Fica comigo por enquanto. Pode cuidar da casa e lhe pagarei um salário justo. Que tal?
Marie não sabia se aquilo seria uma boa idéia, não depois do que aconteceu no barco.
– Mora sozinho ?
– Sim– respondeu a guiando pelo braço até a maior construção ao redor da rua principal – Mas passo muito tempo fora, não me verá muito.
Não soube se sentiu alivio ou decepção. Ficava confusa perto de Klaus, sentia coisas que não devia. Apesar disso, começava a gostar cada vez mais dessas sensações e ele era a única pessoa que conhecia por ali.
Entraram por uma cerca baixa de madeira, a casa era de pedra como todas as outras e imitava o estilo reinante. Mas diferente das outras, possuía dois andares e uma sala mais ampla que a de Frau Eva. O ambiente estava limpo e arejado, com certeza alguma mulher da vila a havia cuidado. Alguns móveis, pareciam destoar do mobiliário local, mais antigos e refinados. Perguntou–se se os havia trago da Alemanha. Pessoas que podiam possuir e transportar peças assim não precisavam imigrar.
– Á esquerda fica a cozinha e a despensa, há também um pequeno pátio externo. Essa porta aqui é o banheiro a da direita meu escritório. Lá em cima há três quartos, o do final do corredor é o meu, pode escolher entre os outros dois.
– E o que espera que eu faça ?
– Que mantenha a casa limpa, cozinhe. Um rapaz trará água e lenha todas as manhãs. O que precisar pode mandar buscar na mercearia em meu nome e alguém virá para ajudar com as roupas uma vez por semana .
Marie fez um gesto de concordância. Pôde perceber que aquele era um lugar em que todos trabalhavam duro, se sentiria mais confortável trabalhando também. O quarto que pegou para si não era muito grande, continha uma cama, uma penteadeira com cadeira e um armário pequeno. Tinha também uma adorável cortina bordada e Marie achou o lugar aconchegante e feminino. Dormiu profundamente e acordou cedo para iniciar sua nova vida.
Capitulo VII
– O que é isso – perguntou Marie olhando a pilha de roupas que lhe era entregue.
– Sie Klaus mandou entregar para a senhorita. São só algumas peças que a costureira tinha prontas, depois pode mandar fazer alguns vestidos.
A menina chamada Annete estava parada na porta da frente com os braços estendidos. Tinha um sotaque difícil de entender e Marie preferiu não se estender muito. Pegou as roupas e colocou de qualquer jeito sobre uma mesinha de café.
– Sabe onde o senhor Klaus está agora ?
– Estava no celeiro – respondeu Annete um pouco surpresa – Se as roupas não servem, posso tentar arranjar outras...
– Não é isso. As roupas estão ótimas, obrigada. É só que preciso falar com ele.
Mesmo achando que era rude, não convidou a menina para entrar. Saiu fechando a porta e seguiu as instruções de Annete para chegar ao celeiro. Não houve dificuldade, a vila era pequena e a construção ficava no centro, bem ao lado de um pequeno armazém. Empurrou a porta de madeira e espiou dentro.
Cerca de dez homens empilhavam sacos com grãos. Klaus estava de lado conferindo uma lista com o jovem Tobias. Ele ergueu os olhos do papel até ela sem que precisasse chamá–lo.
– Marie ?
– Posso falar com você um minuto – perguntou baixinho se sentindo um pouco constrangida ao ser observada pelos outros.
Klaus foi até onde ela estava, se afastaram um cinco passos da entrada principal.
– Eu não quero– ela disse
– Não quer o quê ?
– Que me dê roupas. Já pagou por minhas botas e me deu uma capa, não é certo que fique me dando coisas. Ainda mais depois de...
Forçou, mas não conseguiu fazer qualquer alusão verbal ao que havia ocorrido entre eles no barco.
– Se vou trabalhar para você, posso usar muito bem meu salário para me vestir.
– Vai receber no final do mês – respondeu um pouco irritado – Até lá não pode usar apenas os dois vestidos que têm.
– Não é certo que me dê coisas– repetiu.
– Está sendo tola. É apenas o suficiente para que possa viver. Essa bobagem toda não é porque se preocupa com o que os outros vão pensar, é ?
– Não.
Sim. Fora criada para respeitar certas normas. D. Alva ensinou que ser boa era ser modesta, honesta, prezar pelo próprio nome e não se dar ao desfrute. Fizera coisas inimagináveis nos últimos dias e não se sentia bem a respeito de muito delas.
– Apenas não quero me aproveitar – continuou.
– E não quer que eu me aproveite – completou seco – Não se preocupe. Não considero que uma muda de roupas e um emprego me dêem passagem livre para a sua cama. Preciso voltar ao trabalho, se me dá licença...
As semanas seguintes passaram rápido. Marie estabeleceu uma rotina rígida, mas não estafante demais. De manhã limpava a casa e fazia o almoço. Á tarde sobrava um pouco de tempo para si antes que começasse a fazer o jantar, então arrumava a cozinha e o que restava para a noite era reabastecer a lareira e colocar querosene nos lampiões. Klaus apareceu apenas duas vezes para jantar, mal o tinha visto desde então. Ouvia seus passos pela casa bem tarde da noite e quando levantava ele já havia saído. Possuía mais roupas agora, do que em qualquer época de sua vida. Vestidos, saias e blusas simples, próprios para o clima e o trabalho, mas que a agradavam bastante, apesar de sua reação inicial.
A comunicação com as pessoas da vila ainda se mostrava difícil. Falavam em sua maioria alemão e eram reservadas. Frau Eva sugeriu que fosse a escola ajudar com a pronúncia das crianças em português. Em contrapartida ensinaria Marie a ler e também um pouco de sua língua e cultura. A senhora se mostrou uma professora eficiente e em poucos dias já podia ler algumas sílabas.
Naquela tarde, Marie chegou atrasada para a aula. Sete crianças menores liam em voz alta um texto em alemão escrito no quadro negro. Sentou–se na ultima mesa e aguardou.
– Muito bem – falou Frau Eva– Agora quem quer contar a Fräulein Marie o que acabamos de ler?
Uma menina gordinha de cabelos castanhos de no máximo dez anos de idade levantou a mão.
– Pode falar Oda.
A garotinha se levantou e se virou para Marie. Com um sotaque forte e palavras vacilantes começou a dizer.
– É uma leinnda.
– Lenda– corrigiu Frau Eva
– Uma lenda sobre nosso povo. Somos o povo de Rômulo, rei de Roma.
Oda olhou para Frau Eva pedindo ajuda e esta continuou a história.
– Rômulo e Remo, fundadores de Roma, eram filhos de uma deusa e um humano. Foram abandonados na floresta para morrer, mas uma loba os resgatou e cuidou deles os amamentando com o próprio leite. Um dia, um caçador matou a loba, quando a noite chegou os dois seguiram a trilha do caçador até sua cabana. Mataram o caçador e Remo em fúria, também assassinou a família do caçador. Diana, deusa da caça, apareceu e amaldiçoou os dois, condenou–os a se tornarem bestas a cada lua cheia. Mas Diana era justa e disse que se a partir daquela data suas ações fossem corretas e trouxessem o bem para os homens, poderiam controlar a besta e seu poder. Remo fez coisas ruins nos anos seguintes e sua descendência enlouqueceu e enfraqueceu até sumir. Diz a lenda que nosso povo é o povo de Rômulo. Nossos homens não se transformam mais em lobos, mas ainda temos a força da Lua em nosso sangue.
– É uma bela história – disse Marie.
– Há lendas como a nossa no Brasil ? – perguntou um menino loiro.
– Sim– respondeu Marie – Minha mãe adotiva contava que o sétimo filho de uma família podia se tornar lobisomem nas noites de Lua Cheia.
– Isso não é verdade – exclamou Oda– Precisa...
A menina foi interrompida por uma bronca em alemão e Frau Eva lançou um olhar de aviso para todos antes de prosseguir.
– Na verdade há lendas como essa em todo o mundo. Mas são mais fortes na Alemanha, Inglaterra, França, Rússia, Egito,Turquia e China que onde dizem que os sete filhos menores de Rômulo formaram clãs.
– E o filho mais velho– perguntou alguém
– Reinava sobre todos– Disse Frau Eva– Outro dia falaremos dessa parte da lenda. Estão dispensados.
Marie se despediu das crianças com um aceno e esperou a professora na porta da sala.
– Não é assim que lobisomens nascem – lhe confidenciou Oda baixinho antes de partir – Precisa nascer alpha, mas isso era antes, agora nem eles conseguem se transformar mais.
Frau Eva que havia sumido dentro de casa e apareceu um minuto depois trazendo duas cestas de vime.
– Preciso ir a mercearia, me acompanha ?
– É claro!
– O que Oda lhe dizia ?
– Não tenho certeza – Disse Marie rindo.
Andaram pela rua sem pavimentação até uma construção de madeira que servia como depósito e posto de trocas. Encheram as cestas de cereais e legumes, Marie aproveitou para conseguir uma vassoura nova e um pouco de sabão para limpeza. O balconista do armazém insistiu para que levassem maças. Marie terminou com uma cesta cheia, achando surpreendente como as pessoas conseguiam convencê–la facilmente, mesmo falando em outra língua.
– Posso fazer compotas com elas – disse depois a Frau Eva.
– Depois posso lhe ensinar a receita de alguns doces que costumamos comer– falou a mulher– E então, o que achou da história que ouviu ?
– A lenda?– perguntou Marie surpresa – é interessante, eu acho.
– Nosso povo têm uma conexão muito forte com ela. As canções, as histórias que contamos para nossos filhos dormirem e as pequenas tradições, ajudam a não nos esquecermos de quem somos. Faz sentido para você ?
– Acredito que sim – respondeu Marie.
– Preciso me apressar com o jantar, prometi ainda hoje visitar uma mulher que vive em um sitio próximo – falou Frau Eva – Mas vou lhe passar um dever de casa, quero que pense no motivo da mesma lenda existir em países tão distantes. Amanhã conversamos sobre isso.
Marie se despediu da senhora e voltou para casa. Na verdade não entendia muito bem sobre o que Frau Eva queria que pensasse. Fantasmas, lobisomens, mula sem cabeça eram apenas histórias para assustar meninos levados. Nunca freqüentara uma escola antes, talvez aprender fosse exatamente raciocinar de maneira diferente a respeito de assuntos comuns.
Colocou a história de lado e se concentrou em começar a cozinhar. Assaria alguns legumes e prepararia com peixe de água doce. Se desse tempo, faria geléia de maça também.
Com uma tigela entre as pernas começou a descascar as batatas. O tempo passava rápido quando trabalhava e logo o Sol sumiu atrás das montanhas. Colocou a mesa, se Klaus não viesse, teria que separar sua comida e guardá–la no forno, como das outras vezes. Ainda não havia se sentado quando ele chegou. Tinha as mãos sujas de barro e usava roupas simples e resistentes, nada caro como costumava usar durante a viagem.
– Estamos construindo um moinho – explicou depois de se lavar e se sentar á mesa– Há muito trabalho a ser feito antes que comece o período das chuvas.
– Frau Eva disse que quando chegaram, há trinta anos, não havia nada aqui, apenas mata fechada– falou Marie o servindo com um generoso pedaço de peixe.
– É verdade. Foi difícil para as crianças em especial. Dormimos muito tempo em cabanas improvisadas.
– Você era pequeno nessa época ?
– Não exatamente.
Klaus viu Marie tentando fazer as contas. Aparentava no máximo trinta e cinco, mas na realidade já passara dos cento e vinte . Não lhe diria isso, mas decidira não mentir mais. Ao viver na colônia, aos poucos perceberia que eram diferentes. Seria o único modo que a descoberta não fosse um grande choque, se é que era possível.
– Está delicioso– falou mudando de assunto.
– Obrigada– falou sorrindo.
Uma covinha apareceu em seu rosto e Klaus sentiu um puxão no baixo ventre. Marie, assim como ele, sorria e falava pouco. Nenhum dos dois ganharia o prêmio de mais expansivo do Brasil, mas gostava que tivessem temperamentos semelhantes. Fazia com que estar com ela fosse fácil. Só não era mais agradável porque não podia por em prática nenhuma das coisas que desejava sempre que a via.
Marie terminou o jantar em silêncio, ele agradeceu pela refeição e se trancou em seu escritório como e todas as noites. Lavou os pratos e panelas, recolheu a lenha na varanda e foi se preparar para dormir. Não chegou ao primeiro degrau da escada. Uma pontada a dobrou ao meio, e no minuto seguinte não era ela mesma. Preenchia a pele de outra mulher, e por seus olhos via um cenário de puro terror. Estava presa em uma casa de madeira, o lampião iluminava parcamente o ambiente. Duas crianças pequenas choravam embaixo da cama,reconheceu um deles da escola. A mulher apertava a mão contra o próprio estomago e um pouco de sangue empapava seu vestido. Mas a atenção dela estava fora da casa, podia ouvir gritos e um rugido grave. Seu marido– o marido daquela mulher– lutava com alguém. Procurou um facão, um pedaço de pau, qualquer coisa que pudesse usar para defender seus filhos se a coisa invadisse. Mas claro como o dia, soube que nenhum deles sobreviveria.
Marie se arrastou até a porta mais próxima, esmurrou com toda sua força. Parecia loucura, mas uma voz berrava em seu interior que era real. Klaus respondeu em segundos, logo estava ajoelhado ao seu lado com olhar preocupado.
– Eu vi– balbuciou ansiosa– Estavam sendo atacados!
– O que... Quem estava sendo atacado?
– Uma mulher ...
– Você sonhou novamente ?
– Não foi um sonho! A mulher estava trancada em casa com dois meninos. Estava machucada, algo ia atacar!
– Se acalme – ordenou ele a colocando de pé e puxando para dentro do escritório.
Deixou–se cair sobre uma cadeira rústica e escondeu o rosto nas mãos.
– Não sei explicar. Mas foi como se estivesse dentro da cena. Um dos meninos, o vi hoje na aula...
– Viu pessoas aqui da colônia serem atacadas ? Quem? Me conte em detalhes.
– Rudolph, acho que o nome do menino era esse...
Marie não tinha certeza, ainda não conhecia as pessoas da colônia muito bem. Também não estava certa a respeito de sua sanidade.
– Os Ballmann – murmurou Klaus –Venha comigo!
Teve praticamente que correr para conseguir segui–lo pela rua principal da vila. Na porta da mercearia, alguns homens bebiam cerveja. Klaus deu algumas ordens em alemão e dois deles prontamente se puseram a seu lado.
– Vá para a casa de Frau Eva e me espere lá! Conte a ela o que viu.– disse a Marie antes de seguir em direção a estrebaria.
Pegaram cavalos que já estavam selados. O sitio dos Ballmann ficava a leste, não muito longe da vila. Podia ser apenas uma alucinação de Marie, rezava para que fosse. Cavalgaram por uma trilha íngreme e escura até avistar algumas cercas de criação e a ponta de um chalé de madeira. Estimulou a montaria com o pé e não parou nem mesmo a ouvir seus homens gritarem.
Havia sangue na grama seca, Peter Ballmann jazia caído com parte do corpo na própria varanda. A entrada havia sido forçada, a cena lá dentro ficaria marcada para sempre dentro do cérebro de Klaus. A criança mais nova ainda respirava, com um grito chamou um companheiro.
– Vá até a vila chamar ajuda, traga mais alguns homens com você e deixe todos em alerta– se virou para o outro – Fique aqui com o menino. Se eu não voltar até amanhã, Tobias está no comando. Diga a ele que deve mandar uma mensagem a Yaroslav em Londres e manter todos juntos na vila.
Seguindo o rastro quase imperceptível do assassino, Klaus se embrenhou na mata. O cheiro se desvanecia rápido, mas a criatura deixara o trabalho pela metade. Não devia estar longe.
Capitulo VIII
Frau Eva não estava em casa quando Marie chegou. Ficou em companhia de sua sobrinha Annete até que meia hora mais tarde o caos desceu sobre o lugar. A professora chegou acompanhada de dois homens e uma criança ferida. Reconheceu o rostinho ensangüentado de sua visão e sentiu que ia desmaiar. Ouviu a mulher dizer que encontrara com eles ao voltar de uma visita que fizera e dar ordenar que levassem o garoto para o quarto. Annete correu para pegar ataduras e remédios no armário.. Marie quis se enrolar em um canto e chorar, mas foi para a cozinha ferver um pouco de água como a haviam mandado.
A medida que a noticia se espalhou, tochas surgiram de todos os cantos iluminando a vila e as vozes da pequena multidão reunida na rua se tornaram mais altas. Conseguiu captar fragmentos de conversas, apesar da maior parte ser dito em alemão.
– Pode ser um animal selvagem!
– Animal, uma ova! Não adiantou fugirmos, nos acharam!
– Exatamente como acontecia na Baviera!
– De nada adiantou fugir.
Olhos desconfiados e até hostis a encararam de fora da janela. Um burburinho se espalhou e Marie não precisou ter outra visão para saber que se referia a ela. Um grito mais irado fez com que se retraísse.
– Estão dizendo que viu o ataque enquanto acontecia – disse Annete baixinho ao entrar na cozinha.
– Eu – Marie gaguejou sem saber o que dizer.
– Frau Eva pediu que Tobias a levasse em casa, ele está te esperando na porta dos fundos. É melhor ficar longe da comoção – Disse Annete se desculpando – Não fazem por mal, estão assustados.
O jovem loiro chamado Tobias que Marie conhecera na viagem a escoltou de volta. Os olhos das pessoas a seguiram e uma ou duas delas proferiram insultos, mas ninguém a tocou. Ele parou na entrada e se dirigiu a ela pela primeira vez que se lembrasse.
– Tranque a porta e as janelas. Vou estar por perto se precisar.
– Onde está Klaus? – ela perguntou.
– Foi atrás de quem assassinou a família.
Girou o trinco e se encostou contra uma parede. Ele dissera quem, não o quê. E Klaus estava sozinho atrás do assassino. Trocou o vestido pela camisola, uma fresta na janela de seu quarto permitiu que acompanhasse boa parte da movimentação exterior. Cochilou sentada na cadeira que colocou para espiar pela abertura. Acordou com o som de uma discussão do lado de fora. Reconheceu o timbre grave da voz de Klaus, ele falou por um tempo e então a multidão se dispersou e seu vulto caminhou de volta para casa. Marie desceu a escada pulando e abriu a porta antes mesmo que ele pisasse na varanda.
Ele estava sujo e desgrenhado, mas ainda em melhor estado que os Ballmann. Perseguira a coisa floresta a dentro, o assassino havia brincado com ele o fazendo dar voltas no mesmo lugar, sem nunca se mostrar. O que os caçava era mais rápido e forte que os filhos da Lua. Furioso o suficiente para quebrar o que estivesse pela frente, se controlou ao encontrar o olhar assustado de Marie.
– Preciso de um banho – falou ao passar por ela– Depois conversamos.
Precisava mesmo era de um tempo para se acalmar e colocar a cabeça no lugar. A vila estava em ebulição, eles deixaram tudo que conheciam para manter suas famílias seguras. Muitos perderam familiares e amigos brutalmente assassinados. E agora, isolados como se encontravam eram alvos mais fáceis ainda. Mergulhou na água morna e absorveu toda a culpa. Fora sua decisão vir para o Brasil, e isso podia significar a morte para seu clã. Vestiu roupas limpas e foi até Marie que esperava na sala.
– O menino?
– Ainda está vivo. Frau Eva disse que vai se recuperar. Nosso povo é mais resistente do que parece– respondeu se sentando a seu lado.
– E os outros ? – Havia medo nos olhos dela ao perguntar.
– Estão mortos.
– Oh meu Deus– ela ofegou– eu não sei como vi aquilo. Juro que não sei!
– Se não tivesse visto, não teríamos chegado a tempo de salvar o garotinho – falou segurando a mão dela.
– As pessoas não acham que um animal os tenha atacado– disse – Acham que pode ser minha culpa.
– Meu povo está assustado. Já passamos por isso antes, sabemos que não é um animal selvagem. Você é nova por aqui, estão apavorados, apenas isso.
– Mas então o que pode ser ?
Klaus apenas balançou a cabeça para sinalizar que não sabia.
– Vai ser um longo dia amanhã, vamos dormir.
Ele não soltou sua mão enquanto subiam a escada, pararam frente a frente no pequeno corredor.
– Quer que eu fique com você até dormir?
– Sim– respondeu ela sem titubear.
Marie entrou e se deitou na cama de solteiro. Klaus não se sentou na cadeira ou no chão como fez muitas vezes durante a viagem. Deitou–se ao lado dela, a espremendo contra a parede com seu tamanho descomunal. Levou a mão dela aos lábios e a beijou, Marie acariciou sua mandíbula e a barba por fazer.
– Quero você Marie– falou com a voz rouca– quero desesperadamente.
Ela não respondeu. Klaus percebeu o coração dela acelerar, não tentou se afastar, ao contrário, continuou acarinhando seu rosto. Os olhos dourados de Marie procuraram os dele. Klaus se inclinou para frente e a beijou. Queria saborear cada pedaço, cada aroma dela. Empurrou a língua para dentro e Marie abriu a boca para recebê–lo.
– Se quiser que eu pare, me diga agora.
– Não quero que pare– ela sussurrou.
Ele puxou a camisola para cima, passando por seus braços e jogando a peça de tecido no chão. Se livrou também da própria camisa e Marie passou os dedos timidamente pelo seu peito. Ele delimitou o pescoço delicado e desceu os dedos até os seios pequenos de mamilos escuros.
– Você é linda!
Bonita, delicada e pequena como uma flor. Klaus queria mergulhar nela, que sentisse prazer e gritasse seu nome. Acima de tudo ansiava para fazê–la sua. Com reverencia deslizou a boca até os botões diminutos e sugou. Marie ofegou e apertou os braços ao redor de seu pescoço.
– Toque–me– pediu a ela.
Marie tateou os bíceps dourados, o tórax e levou a mão até seu estômago. Ele guiou–a até mais abaixo, por cima da calça agarrou o membro masculino. Era grosso e empurrava contra o tecido. Cresceu vendo crianças brincando nuas na praia durante o verão, mas jamais havia visto um homem adulto nu. Klaus não satisfez sua curiosidade imediatamente, mas girou se colocando por cima dela. Separou suas pernas e cobriu de beijos a extensão de pele entre o joelho e sua virilha. A tomou com a boca, lambendo e provocando suas dobras até que estivesse mole e completamente entregue. Chupou seu centro e Marie gritou. Estava úmida e quente, o prazer quase havia chegado quando ele se ergueu e deixou a calça cair. Seu membro era grande e ostentava uma poderosa ereção, se ajoelhou entre suas pernas e o esfregou contra ela. Instintivamente se abriu mais e Klaus começou a penetrá–la lentamente. Era muito grande e Marie se contraiu.
– Vai doer um pouco– sussurrou na sua orelha.
Ele empurrou um pouco mais e parou para que se acostumasse, então sem aviso golpeou contra a barreira de sua virgindade. Marie se contorceu e ele ficou imóvel.
– Desculpe anjo – falou a beijando na testa e entrando nela de vez. Moveu-se uma vez e depois outra, aos poucos a dor foi dando lugar a sensação de estar completamente preenchida. Uma onda de calor a cobriu de dentro para fora, chegou ao mesmo tempo para os dois e Marie novamente se viu gritando.
– Agora, você me pertence – falou antes que se entregassem ao sono. Dormia como um anjo, os cabelos escuros espalhados pela cama, a pele alva corada pelos beijos que trocaram.
Klaus lamentou ter que se levantar. Gostaria de passar o resto do dia com ela na cama. Sem fazer barulho foi até a cozinha e acendeu o fogão a lenha. Esquentou um pouco de água para que Marie pudesse se limpar e outro tanto a fim de fazer um pouco de chá para ambos. Subiu equilibrando um balde e as xícara fumegante.
A despertou com um beijo, os olhos dourados se abriram e imediatamente enrubesceu um pouco mais. Enrolada em um cobertor aceitou o chá, mas não que ele a ajudasse a se limpar. Klaus ignorou seus protestos e a prendeu no colo, esfregando um pano com água morna para tirar as marcas da noite anterior. Marie escondeu o rosto em seu peito enquanto as ultimas manchas de sangue sumiam.
– Não deve ter vergonha de mim, agora é minha mulher.
– Não somos casados– ela sussurrou se voltando para encará–lo.
– Agora somos, embora um padre não o tenha dito – Klaus falou sério – Nos unimos e eu a reclamei como minha embaixo de meu próprio teto. A tradição exige apenas isso para que se torne minha.
– Não preciso sequer aceitar ?
– Não – respondeu rindo– Sinto muito, não pode opinar a respeito.
Marie riu. Fora criada para casar na igreja e viver segundo seus preceitos, mas isso parecia ser em outra vida. Estar com Klaus era correto dentro de seu coração. Estava rodeada de coisas tristes e misteriosas, mas ele em sua vida fora o melhor presente que recebera.
– O que acontece agora? – ela perguntou e não se referia aos dois.
– Vamos honrar os Ballmann pela ultima vez e nos preparar. O que atacou a família voltará essa noite.
Capitulo IX
Winter amaldiçoou pela milésima vez a si mesmo. Só um homem estúpido concordaria em arrastar atrás de si uma peste como aquela italiana. Devia tê–la enfiado em um barril e jogado no mar de Santos. Na realidade devia ter feito o mesmo com Karuc. O imprestável conspirara com o alemão para mantê–lo longe da garota e isso ocasionara diversos problemas.
Fora seqüestrado e levado para um galpão vazio. Permanecera amarrado juntamente com Elea. Nos dois dias seguintes ficou sem comida ou água. Ele podia agüentar, mas debilitou bastante a garota. Quando finalmente seus atacantes chegaram para torturá–lo, Karuc os resgatou.
Levou um tempo até que se restabelecessem e pudessem juntar as peças. Conheciam agora a identidade do inimigo e, devido ao medalhão da garota chamada Marie, sabiam algo muito maior também. Desde então estavam tentando achar Klaus. Tinham chegado a Porto Alegre há alguns dias, mas encontrar um guia até a colônia erma do clã germânico se mostrou um problema.
A italiana era seu segundo maior problema. Viu demais para poder ser fascinada e agora sabia bastante sobre os filhos da Lua e seus oponentes. Em vez de correr ao se dar conta que não lidava com humanos, se enfureceu e o acusou de destruir sua vida. A família de Elea deixou de procurá–la e partiu com outros imigrantes para o interior, depois que alguém fizera correr o boato que a garota fugira com um inglês rico. Por fim, os três se hospedaram em um hotel discreto e corriam a cidade sempre que podiam tentando localizar algum colono submetido a Klaus, mas até agora sem sucesso.
–Eu irei, com guia ou não – falou Karuc durante o jantar.
– Mesmo você não pode rastrear uma pequena vila oculta nessa região – replicou Winter– É grande e selvagem demais.
– Sim, mas já tenho algumas pistas, não será uma viagem às cegas.
– Não me entenda mal Karuc, não estou apegado a você de um jeito fofo, nem nada assim, mas não me agrada ver um companheiro preste a cometer suicídio. Está ferido, homem! Quase morremos, perdeu sangue suficiente para matar um humano. Não pode se embrenhar na mata e esperar que tudo corra bem.
– Avisar Klaus é questão de vida ou morte. Ele precisa saber sobre a moça. Há muito em jogo.
Winter fez um movimento de rendição com os ombros. Suicida ou não, a missão de Karuc era de extrema importância. ele próprio tinha assuntos urgentes a resolver.
– Devo voltar para Inglaterra. Yaroslav e os outros clãs devem ser informados imediatamente. Levarei o medalhão e você leva Elea.
– Que espécie de acordo é esse? – perguntou Karuc rindo – Ela é toda sua, não tenho nada a ver com essa confusão.
– Não me importo – respondeu Winter mais alto para que Elea, sentada do outro lado da sala, pudesse ouvir – Leve–a e dê de presente para alguma tribo de índios.
A garota não se fez de rogada, levantou o nariz, deixou o prato sobre um aparador e se aproximou dos dois.
– Não vou com ninguém– falou apontando para o peito de Winter– Não sou um saco de batatas para ser jogada de um lado para outro. Você vai me devolver para minha família e jurar para eles que não estou desonrada.
– Quer que minta para eles ? Nós não terminamos nada, mas não posso jurar...
– Não dormi com ninguém– afirmou Elea batendo a mão na mesa.
– É virgem ? – perguntou Winter surpreso.
– Um pouco – respondeu ela.
– Um pouc... e como é isso?
– Hum, hum – Karuc limpou a garganta e Elea teve a delicadeza de parecer envergonhada – Vou tentar falar com o capitão daquele pequeno vapor mais uma vez. Amanhã partirei em busca do Rolf, me despeço aqui.
Karuc beijou a mão de uma enrubescida Elea e meneou a cabeça em direção a Winter. Observou o africano deixar a pensão. O pesado casaco que usava era capaz de esconder punhais e pistolas. Winter, fora criado usando espadas, uma arma mais elegante e precisa em suas mãos que qualquer outra. Mas já não era possível portar uma espada em qualquer lugar. Os tempos mudavam e nos últimos cem anos ocorreram mudanças como Winter jamais teria imaginado. Fabricas, maquinas incríveis e armas que podiam decretar a morte de alguém há metros de distancia. As novas tecnologias colocavam os humanos em pé de igualdade com as raças antigas em questão de periculosidade. Poucas vezes na história estiveram em posição tão vulnerável.
Não deixava de ser irônico que um inimigo tão antigo quanto a própria existência dos filhos da Lua ressurgisse em um momento de renovação tão grande. Winter bebeu a ultima taça de vinho e refletiu sobre as descobertas surpreendentes dos últimos dias. Talvez fosse difícil convencer a todos da veracidade daquilo, conseguia imaginar os clãs da China e Turquia se recusando a acreditar neles. Mesmo assim era imprescindível que a verdade se fizesse conhecer. Uma reunião entre os lideres dos sete clãs deveria ser realizada e para isso necessitava estar na Europa. Navios cruzavam o Atlântico todo o tempo, o problema era o que fazer com a italiana. Desconfiava que ela não iria ficar nem um pouco feliz com a decisão que ele fora obrigado a tomar. Se aproximou sorrateiro do quarto que ela ocupava sozinha no pequeno na pensão, entrou sem bater e se jogou sobre a cama feita.
– Hora de falar sério, doçura!
– Não me chame de doçura – ela resmungou – E saia daí.
Elea que estava de pé em frente a janela apontou para uma cadeira vaga. Winter ignorou e se espreguiçou um pouco, afofando o travesseiro embaixo de sua cabeça.
– Não posso continuar aqui, vou voltar para a Inglaterra.
– Vá com Deus!
– Como bem sabe, depois de tudo que ouviu não pode ficar solta por aí.
– Vou achar minha família.
– Não vai – disse Winter– Eles pararam de te procurar depois de dois dias. Algo me diz que não estão morrendo de preocupação.
Preferia não ter sido cruel, mas Elea era especialmente teimosa em relação a esse assunto. Além do que, com as informações que possuía se tornara uma peça importante, poria em risco qualquer humano com que se associasse.
– Eles não sabem o que aconteceu – respondeu determinada.
– E se soubessem não acreditariam.
– Não é culpa deles, é sua! Desde que te conheci você me embebedou, tentou me seduzir, fui seqüestrada, quase morta de fome, abandonada por minha família e ferida – disse apontando para um pequeno ralado no cotovelo.
– Oh sim, foi submetida a um grande ferimento por minha causa– disse irônico – mas não muda o fato de que sabe demais. É perigoso tanto para você quanto para meu povo. Por isso vim te informar que vamos embarcar para a Inglaterra, doçura.
– Voltar para a Europa com você ? – perguntou surpresa – De jeito nenhum! Não viajei um mês em condições miseráveis para ficar só uma semana no Brasil. Vim construir uma vida aqui, e é isso que vou fazer!
Winter passou as mãos pelos cabelos, nem dois minutos de conversa e já começava a perder a paciência.
– Não estou te fazendo um convite, estou te informando que por bem ou por mal irá comigo.
– Vou repetir, de maneira nenhuma saio desse país ou mesmo dessa cidade com você!
E dito isso, Elea o puxou pelo braço para fora do quarto, resmungando algo que soou muito semelhante a almofadinha, antes debater a porta bem na sua cara.
Mentalmente calculou suas opções, poderia drogá–la e carregá–la para o navio, mas isso chamaria muita atenção. Poderia drogá–la, esconde–la em um baú e fazê–la viajar no compartimento de carga. Não. Humanos morriam muito fácil, não fosse por isso, seria uma boa idéia. Teria que recorrer a fascinação, mas só funcionava se a pessoa fosse pega de surpresa e Elea sempre se armava em sua presença. Não importava, arranjaria uma maneira.
Capitulo X
Os corpos dos Ballmann foram trazidos até a praça principal, junto com a noticia que havia mais uma vítima. O agricultor de um sitio próximo e fora encontrado ao amanhecer . Estavam enrolados em bandagem branca e colocados sobre uma pira de madeira. A comunidade inteira estava presente, oraram juntos em uma língua que Marie não reconheceu. Frau Eva falou um pouco e foi seguida por Klaus. Ninguém, nem mesmo as crianças choravam, mas era possível sentir o sofrimento no ar. Três homens levantaram tochas e atearam fogo a palha na base da pira, enquanto as chamas consumiam tudo algumas mulheres cantaram. A musica fez o coração de Marie encolher um pouco, o rosto assustado de Rudolph Ballmann e de sua mãe ficaria tatuado para sempre em sua mente. A cerimônia terminou, mas a multidão ainda se reunia na rua central. Klaus se colocou no centro e ergueu uma mão pedindo silêncio, sua altura sobressaía mesmo a distancia.
– Irmãos – Falou ele – Acabamos de honrar nossos companheiros e essa não será a tarefa mais difícil do dia. A ameaça ainda paira sobre nós, há muito que ser feito...
– E ela ? – gritou um homem apontando para Marie– Não haviam nos achado até a venéfica aparecer.
– Não é uma venéfica. É minha esposa.
O silêncio das pessoas após o anuncio de sua união com Klaus conseguiu fazer ainda pior o aquela manhã, nem mesmo Frau Eva e Annete lhe cumprimentaram. Entendia bem que não era o momento para festas, mas um pouco de aceitação teria tornado as coisas mais fáceis para ela. Klaus já demonstrara o quanto a comunidade era importante para ele, não queria abalar a relação dele com seu povo.
– Ela trouxe o inimigo até nós – acusou uma mulher – viu o ataque sem que estivesse presente!
– Chega– gritou Klaus – É minha companheira e como tal será respeitada!
O homem que gritara primeiro encarou Marie com ferocidade. Devia estar louca pois podia jurar que os olhos do homem se alargaram e mudaram de cor bem na sua frente. Com uma mão apenas pegou uma tora de madeira que havia sobrado da construção da pira.
– Perdi minha esposa cinqüenta anos atrás, não vou ver meus filhos morrerem da mesma maneira. Digo que a venéfica enfeitiçou nosso líder.
O resto aconteceu tão rápido que Marie não pôde acompanhar. O homem se moveu em sua direção, abriu a boca para gritar, mas Klaus chegou antes que sua voz. Se interpôs entre ela e o agressor e rugiu. O barulho grave saiu de sua garganta ao mesmo tempo em que desarmava o homem. Jogou a enorme tora de madeira por cima das cabeças das pessoas, pelo menos seis metros adiante. Ninguém podia ser tão forte assim. As pessoas que assistiam a cena abaixaram a cabeça e murmuraram Sie se dirigindo a Klaus. Tobias e outros dois jovens dominaram o homem e o arrastaram dali.
Ele se virou e estendeu o braço de forma protetora, Marie se precipitou para abraçá–lo, mas parou assim que o encarou. Os olhos de Klaus haviam se modificado assim como o do homem,a pupila se dilatara até o branco ao redor sumir, do azul claro haviam passado a amarelo. Os caninos se alongaram lembrando muito o Rei Lobo de seus sonhos. Apavorada retrocedeu dois passos.
– Marie – ele chamou
Não respondeu, se virou e correu sem saber bem aonde ia. Terminou dentro do celeiro oculta por uma pilha de sacos. Abraçou os joelhos e tentou fazer a respiração voltar ao normal. Que loucura era essa ? Ouviu passos dentro da construção e em seguida Klaus estava ajoelhado na sua frente. Com aparência normal, os olhos iguais a sempre, mas ainda mais cautelosos.
– O que ?
Marie fechou a boca. Sequer sabia que pergunta fazer.
– Nasci assim – ele disse – Meu povo está espalhado pelo mundo, temos certas características que nos diferem do resto das pessoas.
– A lenda – Marie ofegou.
Sua mente finalmente começava a funcionar. Lembrou da história ouvida na escola e do que Frau Eva dissera.
– Sim, o que ouviu é parte da nossa tradição.
– Lobisomens !
– Um nome inventado por outras pessoas. Até onde sei não tem nada a ver conosco. Não comemos criancinhas ou transformamos os outros com nossa mordida. Somos apenas diferentes.
– Frau Eva, Annete, as crianças... Todos eles?
Klaus assentiu sério.
–Ia me contar ?
– Aos poucos, não dessa maneira...
Escondeu o rosto entre as mãos e se encolheu mais. Estava unida a esse homem e agora percebia que não sabia nada a respeito dele. Acreditara em tudo que ele dissera, como podia ser tão estúpida?
– Marie, sei que é muito para assimilar de uma vez, mas chegou a hora de saber tudo. Acredito que de alguma maneira você está ligada ao meu povo.
Foi o suficiente para fazê–la erguer a cabeça de novo em expectativa.
– No navio conseguiu resistir a meu comando mental. Depois houve seus sonhos e a marca que apareceu em suas costas.
– Foi você – acusou – você fez isso !
– Não – Klaus negou com a cabeça – Mas estas coisas estão relacionadas aos Filhos da Lua e eu tinha que descobrir o porque. Ainda não sei o que significam, mas você sonha e tem marcada as costas com o símbolo de um antigo líder de meu povo.
– Eu não quero ouvir– Marie falou – Me deixe em paz!
– Tudo bem – respondeu Klaus – Mas não pode ficar aqui sozinha, vá para casa. Ainda há algo lá fora nos caçando.
– O que é ?
– Não sabemos, a respeito disso eu disse a verdade.
– Vou embora daqui. Quero sair desse lugar.
– Sei que está assustada, mas não vai a lugar nenhum – Klaus falou com veemência– É minha esposa, também não menti a esse respeito. Eu te amo, quero passar o resto de minha vida com você, teremos filhos e um futuro juntos. Não vou permitir que fuja. Entendeu?
Marie se retraiu quando ele tentou tocá–la e o ouviu soltar um bufo exasperado.
– Eu cuido dela – uma voz se fez ouvir acima da cabeça de ambos.
Frau Eva chegou de mansinho e lançou um olhar sério para Klaus.
– A filha mais velha dos Finger acabou de chegar a vila. Algo inutilizou a ponte que levava a seu sitio, a mãe está grávida, tem três irmãos menores e o pai se machucou na lavoura. Há mais duas famílias que agora estão isoladas por causa da ponte.
Klaus se levantou de pronto, ainda olhando para Marie.
– Fique com Frau Eva, volto assim que puder.
Klaus deixou o celeiro com a mente trabalhando em dois focos. Marie reagira mal, não devia ter descoberto daquela maneira e na pior hora possível. O inimigo sempre atacava a noite, tinham ainda umas boas horas. Ao o anoitecer, Marie e todo o seu povo deviam estar abrigados e protegidos pelos guardas do clã. Não eram muitos, onze ao todo, mas podiam lutar e se defender melhor que o resto da tribo.
Sinalizou para Tobias com a cabeça e o rapaz se juntou a ele.
–Vou levar alguns homens para consertar a ponte e resgatar as famílias que estão do outro lado. Enquanto isso prepare provisões e patrulhe a área próxima. Peça a Frau Eva que junte mulheres e crianças em um lugar seguro dentro da vila.
– Sim, Sie.
– E fique com um olho em Marie.
Tobias era o Beta, confiava nele sem qualquer restrição. O rapaz fez um gesto de entendimento e se afastou, assoviando para que dois guardas fossem com Klaus.
O local que procuravam ficava a menos de trinta minutos da vila. O grupo desmontou se aproximou do vão onde há pouco existia uma ponte de madeira e corda. A ponte jazia pendurada do outro lado, tabuas e outras partes esborrachadas contra o leito do pequeno riacho.
– Não há como consertar isso antes do anoitecer– disse um deles.
– Vamos dar a volta – falou Klaus – todos em silêncio e atentos.
A travessia sem a ponte era feita através da floresta fechada e cobria um percurso muito maior, talvez fosse o objetivo do inimigo afastá–los da vila e emboscá–los. Como fosse não podia deixar os Finger e as outras famílias sem socorro, tampouco conseguiria ajudá–los a pé. Mesmo fortes como eram, seria impossível carregar mais de uma dezena de pessoas até a vila. Mas levar os cavalos mata a dentro era ainda mais difícil. Foram horas até avistar as primeiras plantações. Os pessegueiros estavam vazios visto que ainda não era época de colheita, a horta assim como os outros plantios estavam descuidados e não se podia ouvir nenhum barulho de criação.
A casa tinha portas e janelas trancadas e o mesmo ar de abandono. Uma criança gritou dentro de suas paredes, rompendo o silêncio ao mesmo tempo em que Joseph Finger mancava para fora.
– Graças a Deus está aqui Sie! Minha esposa está preste a dar a luz e tenho um menino ferido. Foi atacado por algo ontem a noite.
– Viram o que o atacou ?
– Não senhor, me ajudem a levá–los daqui. Venham!
O piso da sala de madeira rangeu quando Klaus e seus homens entraram. Via bem na penumbra e seguiu os passos do dono da casa até o quarto. Na cama simples de casal uma mulher permanecia deitada de olhos fechados, mas sem qualquer sinal de gravidez.
– Não disse que sua esposa logo daria a luz?
– Disse ?
Klaus se virou para Joseph Finger no mesmo momento em que esse avançou para ele. Com força descomunal mesmo para um Filho da Lua, Joseph Finger o arremessou ao teto. O corpo grande bateu provocando ranhuras na madeira e caiu com um baque. Correntes foram colocadas ao seu redor e foi arrastado semiconsciente para os fundos da casa. Atado a uma árvore frondosa ergueu a cabeça e encarou um grupo de sete pessoas entre eles o senhor e senhora Finger. Conhecia cada um deles desde que nasceu.
– Já conversaremos Sie – respondeu um deles – Mas primeiro precisamos cuidar dos seus guardas.
Os dois desacordados foram puxados para fora da mesma maneira e os sete os rodearam. Rugiram baixinho e suas feições se transformaram com olhos de lobo e presas aparentes se jogaram em cima dos guardas ferindo e dilacerando o que viam pela frente.
Enojado e estupefato Klaus virou a cabeça. Conheceu aquelas pessoas por toda a sua vida, antes na Alemanha e agora no Brasil, compartilhavam o mesmo clã. O laço que os unia era sagrado e inquebrantável. A lei da alcatéia que permitiu que seu povo sobrevivesse por milênios. Agora que se transformaram, cheiravam diferente do que deveriam, mas ainda não podia identificar o que eram.
– Deve estar se perguntando por que – uma voz suave disse por trás de Klaus.
Pequena em seu vestido de linho cinzento, Frau Eva se colocou em seu campo de visão.
– A senhora ?
– Todos nós na verdade – disse fazendo um gesto abrangente com a mão.
Klaus sentiu a raiva tomar conta e o sangue do lobo ferver em suas veias. Sua visão se aguçou e as presas se tornaram maiores, forçou as correntes, mas não foi capaz de se libertar.
– Toda a sua força é insuficiente Sie – disse Frau Eva – Seu sangue está enfraquecido é a nossa vez agora!
– A vez dos Tardos – concluiu Klaus – O sangue amaldiçoado de Remo.
– Exatamente. A linhagem de Remo não desapareceu, quando nossos exércitos foram destruídos e nosso povo perseguido pelos Filhos da Lua na época da grande guerra, fizemos o necessário para sobreviver: nos misturamos a vocês.
A história da criação dos Filhos da Lua voltou claramente a cabeça de Klaus. Rômulo e Remo foram amaldiçoados pela deusa Diana. A descendência de Remo se entregou a loucura. Mil anos depois, durante a grande guerra travada entre os povos sobrenaturais os tardos, como eram chamados, lutaram ao lado dos inimigos dos Filhos da Lua, perderam a guerra e sumiram desde então.
– Nós nos unimos ao inimigo, compartilhamos seus clãs e suas tradições, mantendo as nossas em segredo. Por séculos vivemos com medo, mas não mais...
– O que mudou? – perguntou Klaus
– Éramos poucos, estávamos enfraquecidos e desconectados e nosso poder vem da alcatéia. Quando nosso numero aumentou o poder voltou a circular por nossas veias . Quanto menos vocês são, mais fortes ficamos. Ainda não podemos dispor de todos os sete clãs, mas muito em breve todos desaparecerão. Hoje é a vez do clã Germânico.
– Quantos de vocês há na colônia ? – Perguntou incrédulo que o inimigo fosse parte de sua própria gente.
– Cerca de vinte.
– Quem ?
Frau Eva não respondeu, fez um sinal negativo com a cabeça e se virou para pegar algo, quando chegou mais perto pôde ver um punhal de prata preso entre seus dedos.
– É necessário que seja lento, quero que esteja vivo para assistir ao fim deste clã. Você e a venéfica que tornou sua esposa queimarão juntos.
– Marie não é uma bruxa.
– Claro que é! Que mais poderia ser?
Enfiou o punhal duas vezes no estomago de Klaus, soltou um urro que parecia vir de outra pessoa e então foi apunhalado pela terceira vez.
– É necessário que seja lento, quero que esteja vivo para assistir ao fim deste clã.
Capitulo XI
Marie não precisou deixar o celeiro, crianças e mulheres o lotaram pouco depois. Era a única construção da vila capaz de comportar mais de 100 pessoas. Compartilharam alimentos e um chá forte, a ninguém foi permitido voltar para casa. Os homens formaram uma barreira no perímetro, alguns tinham espingardas, outros facões e até algumas espadas, mas nenhum estava desarmado. Quando a noite caiu até mesmo as crianças se calaram.
Oda e outras duas meninas acenaram de longe para Marie, Annete trouxe um pouco de chá e ninguém lhe dirigiu mais a palavra. Estavam desconfiados, mas depois do que houvera na praça achava não corria mais risco de ser agredida. Sentia os nervos em frangalhos e ainda muito confusa para raciocinar com clareza. Estava com medo por si mesma, e apesar de tudo,também por aquelas pessoas e por Klaus. Fosse o que fosse, precisava dele em sua vida. Antes de cruzar com ele naquele navio seu mundo era cinzento, sempre sozinha, escondida, com medo, se negando as coisas mais banais. Klaus a tratara com respeito e atenção, que Deus a ajudasse pois o queria de qualquer jeito, quando voltasse lhe diria isso e pediria perdão por ser tão boba.
Frau Eva partira há horas a chamado de Klaus para atender uma mulher grávida. Rezou para que estivessem bem e voltassem logo. Uma movimentação do lado de fora do celeiro fez muitas cabeças se levantarem em alerta. De relance viu uma enorme sombra ser cercada por vários homens e erguer os braços.
– Sou Karuc,Filho da Lua e líder do clã Africano – gritou – Muitos aqui me conhecem, venho em missão urgente. Onde está Klaus Rolf ?
– Klaus foi cuidar de uma emergência – respondeu um homem armado com uma espada – Eu te saúdo, Karuc. Estivemos juntos em Austerlitz,
Apertaram as mãos e as armas ao seu redor se abaixaram.
– Eu também o saúdo Karuc do clã africano. Sou Tobias e respondo na ausência de Klaus.
– Onde está a moça que Klaus trouxe com ele?
Cabeças se viraram em sua direção e Tobias se pôs na frente do enorme homem. Deus o abençoasse.
– Por que quer saber ?
– Tenho um assunto da maior importância para tratar com a senhorita Dubois.
– É senhora Rolf – corrigiu Tobias.
– De certo que é – respondeu a olhando diretamente – podemos conversar?
Gritos vindos de fora interromperam sua resposta. Frau Eva chegou gritando em alemão, acompanhada por outra mulher que chorava. A comoção foi geral, todas as mulheres se precipitaram para fora se juntando aos homens na rua principal. Teve que abrir caminho entre as pessoas afim de poder enxergar o que acontecia. Frau Eva tinha as mãos e os braços arranhados e a outra mulher também se sujara de sangue. A poucos metros delas vislumbrou a cabeça loira de Klaus ,o queixo colado no peito, erguido pelos braços por dois homens que nunca tinha visto. Estava machucado e talvez desacordado, forçou passagem e correu até onde ele estava. Foi pega no meio do caminho por outros dois pares de mãos, se retorceu, mas foi jogada ao chão e imobilizada.
– A bruxa enfeitiçou nosso líder – gritou Frau Eva– Vi com meus próprios olhos Sie Klaus atacar dois companheiros e tentar matar uma família.
– Ela é culpada dos ataques – acusou a outra mulher.
Berros se ouviram, mas Marie não conseguia erguer a cabeça para ver o que acontecia. Pelo cheiro e calor intuiu que o resto da pira funerária havia sido acesa.
– Parem com isso – falou Tobias – Antes de qualquer loucura devemos ouvir o líder.
– Klaus está insano – falou Frau Eva – Ajudou nos ataques ao nosso povo, traiu a alcatéia. A lei ancestral exige que pague com a morte!
– Queimem a bruxa – algumas vozes pediram.
Marie se debateu contra o chão de terra escura e foi arrastada para mais perto do fogo. Puxavam seus cabelos e unhas eram fincadas em sua pele, em desespero gritou, mas o som foi abafado por outros de luta. Sem saber como, foi afastada de seus captores e prensada contra um corpo sólido. O gigante negro recuou a mantendo grudada em suas costas. Empunhava uma espada e uma clareira se abriu ao redor deles. Viu Klaus deitado no meio, Tobias com uma ferida na testa e outros três homens a seu lado.
Sem aviso, Karuc puxou Marie para frente, e a jogou com violência contra Klaus.
–Protejam– na – berrou enquanto derrubava um homem com um facão e recebia uma bala de espingarda no ombro.
Engatinhou até onde Klaus estava e amparou sua cabeça. Tinha diversas feridas no tórax e mal respirava. A multidão se fechou a seu redor e novamente ouviu ruídos de batalha a sua volta, um dos homens ergueu um punhal em sua direção. Abraçou o corpo inerte de Klaus e se preparou para morrer.
O golpe nunca chegou, em vez dele recebeu uma rajada de vento no rosto, a familiar brisa morna cheirando a canela. “Dividi meu poder com você Marie, passe o para a alcatéia.” Marius. Protegeu o pescoço com o braço e ganhou um grande talho no pulso. Obedecendo a uma intuição deixou que seu próprio sangue cobrisse as feridas de Klaus. Foi tirada de onde estava por várias pessoas tentou se agarrar a ele, mas a camisa se rasgou presa entre seus dedos. Se viu levada mais próximo da pira. Sete homens tentavam imobilizar Karuc, mas ele ainda oferecia resistência. Tobias e os homens que protegeram Klaus tentavam chegar até ela, mas jamais passariam por todas aquelas pessoas a tempo.
O uivo potente encobriu qualquer outro som. A luta cessou frente ao barulho e Klaus apoiado em seus braços e pernas começou a se levantar. Por baixo da camisa, os músculos incharam e suas articulações estalaram se esticando. Pêlos de um castanho intenso se misturaram e por fim ocultaram o longo cabelo loiro. Os olhos e as feições se modificaram o transformando completamente. Garras e presas gigantes surgiram e uivou mais uma vez. A besta tinha aspecto lupino e se erguia pelo menos trinta centímetros mais alta do que Klaus costumava ser. Com uma rapidez desumana se pôs a frente do homem que estava com Frau Eva e atacou.
Em vez de recuar o homem revidou o ataque. Era quase tão forte como Klaus, mas não tão grande ou rápido. Rolaram juntos por cima do fogo, Marie e outros se jogaram para fora do caminho. Uma mulher agarrou Klaus pelo pescoço e fincou as presas em suas costas. Outros chegaram rasgando e mordendo, mas o lobo continuou rebatendo.
Mais uivos se ouviram, e pelo canto do olho viu Tobias e alguns outros também se transformarem completamente. Klaus foi coberto por mais atacantes, um quinto homem chegou por trás e apontou uma enorme tora em chamas na sua direção.
– Vão matá–lo – Marie gritou – Ajudem!
Sem pensar e com as mãos nuas se lançou em cima do homem, ele só pareceu notá–la quanto balançou um braço e a arremessou dois metros a frente. Bateu contra uma árvore e enquanto a vista escurecia ainda pôde as pessoas da vila seguirem seu exemplo. Um senhor com espingarda acertou o atacante da tocha na perna e outros uniram a briga. Ainda que fossem muito mais fortes que um humano comum, não eram páreo para Klaus ou seus oponentes, mas estavam em numero muito maior e isso iria decidir quem viveria ou morreria hoje.
Abriu os olhos depois de um espasmo de dor. Uma luz suave entrava pela janela, reconheceu o teto do quarto de Klaus e logo seu rosto entrou em foco. Os cabelos loiros pendiam soltos e Marie levantou a mão para tocá–los mas um novo espasmo a impediu.
– Quebrou duas costelas e tem uma bela concussão na cabeça – ele informou
– Me sinto ótima – Marie respondeu.
– É uma grande mentirosa – disse com carinho.
–Você está bem? – perguntou ignorando a dor e se virando para olhá–lo.
– Nem um arranhão, vê ?– disse abrindo a camisa e mostrando um abdômen liso.
– Mas eu vi – balbuciou Marie – estava ferido.
– A transmutação completa cura feridas imediatas.
Marie assentiu pensando na forma que ele e alguns outros tomaram ontem.
– Por que não se transformou antes?
– Não podia– respondeu Klaus – Há séculos perdemos a faculdade de nos transformarmos daquela maneira. O que ocorreu ontem foi um milagre e foi você sua mensageira.
– Não entendo – falou Marie
– Tenho muito para te explicar, mas não agora. Está ferida, precisa descansar.
– Me conte – falou agarrando Klaus pelo braço – Quero ouvir tudo. Se deite aqui comigo.
– Tem certeza ?
– Tenho.
Klaus se ajeitou a seu lado, estendendo as pernas no colchão e entrelaçando os dedos nos dela.
– Quanto tempo eu dormi – perguntou Marie
– Algumas horas, amanheceu faz pouco.
– E o que aconteceu ?
– Parece que é uma longa e surpreendente história.
– Comece pelo inicio.
– Bem, você já sabe o que somos e ouviu a lenda de nossa criação. A tradição diz que Rômulo e Remo se desentenderam e suas descendências se afastaram. Embora detentores da mesma maldição a besta de Remo não podia ser exteriorizada, estava sempre no comando dentro dele. A loucura correu por gerações até que em um grande conflito na era antiga os filhos de Remo se voltaram contra nós. Combatemos em frentes diferentes e vencemos. Nosso ultimo rei viveu nessa época, seu nome era Marius e foi o guerreiro mais feroz de que se tem noticia.
– Marius ? Meu Marius?
– Por assim dizer– respondeu Klaus com uma expressão estranha.
– Marius foi morto por uma venéfica, uma bruxa, por quem se apaixonou. Morreu sem deixar filhos e desde então nossa raça se tornou mais fraca a cada século. Não nos transformávamos completamente, ficamos menos férteis e mais fracos fisicamente do que éramos antes. Há cerca de quarenta anos atrás começamos a sofrer ataques em todos os clãs espalhados pelo mundo. Esse inimigo invisível trazia pavor e diminuía nossos números. Os líderes dos clãs formaram uma força tarefa para descobrir a ameaça. Eu Karuc e Winter viajamos por quase um ano tentando descobrir alguma pista sobre o inimigo, já tínhamos quase desistido quando apareceu no navio. Havia algo sobre você, não podia ser fascinada como uma humana comum e uma noite enquanto sonhava falou o nome de Marius. Karuc e eu resolvemos investigar , mas escondemos de Winter.
– O homem moreno de olhos verdes que estava no navio com vocês?
–Esse mesmo – respondeu Klaus – Para despistar o mandamos falar com as italianas que lhe fizeram companhia na viagem , certos de que não descobriria nada. Mas uma delas tinha o seu medalhão.
– O medalhão da minha mãe – exclamou Marie se sentando – Tanta coisa aconteceu que não sabia onde o havia perdido!
– O medalhão é uma replica do original, mas continha certas inscrições.
Marie se lembrou da peça de metal envelhecida e coberta por símbolos e letras.
– O que significavam ?
– Só três palavras : Fada dos Lobos.
– Ainda não entendo.
– As fadas dos lobos eram figuras presentes nos clãs dos dias antigos. Mulheres que podiam conectar as alcatéias com o rei e o líder de seu clã. No folclore português que é o mais difundido no Brasil são chamadas de peeiras. Karuc acredita que você descenda de nosso povo em algum grau e de uma linhagem de mulheres especiais. Explica os sonhos, os sinais e a marca com o brasão de Marius nas suas costas. Ontem quando nossos sangues se misturaram você me ligou ao rei e pude me transformar. E a partir de mim outros machos do clã também puderam.
– Mas se Marius está morto como isso é possível.
– Eu e Karuc temos algumas suposições, mas nenhuma certeza. As mais fortes delas são que talvez Marius não esteja realmente morto e que você não seja a única peeira por aí. Marius a chamou, possivelmente tenha chamado outras mulheres também, teremos que procurá–las. E o melhor de tudo é que os inimigos, os tardos, não sabem disso. Mesmo com todo o seu conhecimento, Frau Eva não pôde identificar o que você era.
– E afinal o que houve com ela ?
– Fugiu, Annete e outras seis da vila também. O resto deles está morto. Além disso perdemos doze homens, uma mulher e três dos meus guardas. Temos algumas pessoas bem feridas, Karuc levou dois tiros e está de pé e um guerreiro impressionante...
– Eu sinto muito por eles– falou apertando um pouco mais a mão de Klaus
– E eu sinto que tenha passado por tudo isso. Você é parte de mim e é parte da alcatéia também, mas se não puder nos perdoar, não a obrigarei a ficar.
– Não há nada o que perdoar– afirmou Marie – Eles estavam assustados e foram induzidos a pensar o pior de mim. E quanto a você, só me fez o bem. Não posso e não quero viver longe de você. Eu te amo mais do que qualquer coisa!
Klaus a abraçou e não houve dor que tornasse o momento menos doce, finalmente tinha achado algo pelo qual valia a pena viver.
Maiê F. Rezende
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