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CAIRO
- Meu Deus, esta maldita cidade.
Astrid Vogel estava de pé, junto às portas de correr, abertas para o anoitecer frio de Inverno. Havia uma pequena varanda com uma balaustrada de ferro forjado ferrugento, mas o senhor Fahmy, o recepcionista, avisara que as varandas andavam a cair nos últimos tempos, por isso, por favor, é melhor não ir para lá. Estavam no hotel havia dois dias e a sanita deixara de funcionar três vezes. Por três vezes o senhor Fahmy aparecera, de casaco e gravata, munido com um rolo de fita-adesiva castanha e uma bobina de fio de cobre. Todos os bons faz-tudo estavam no Golfo (no Kuwait, na Arábia Saudita ou nos Emirados) a trabalhar para xeques do petróleo. O mesmo acontecia com os professores, os advogados e os contabilistas. Os profissionais e os ricos tinham fugido. O Cairo era uma cidade de camponeses em ruínas e não havia ninguém qualificado para a reparar. Depois o autoclismo começava a funcionar, como o esperado, e ele sorria tristemente e dizia: "Está arranjado, inshallah", embora soubesse que estaria de volta no dia seguinte com o seu elixir de fita-adesiva e fio de cobre.
Teve início a chamada para oração da noite, primeiro um único muezim, muito distante, depois outro e mais outro, até que mil vozes grosseiramente amplificadas gritavam em uníssono. O hotel encontrava-se situado ao lado de uma mesquita e o minarete erguia-se mesmo em frente à janela. Naquela manhã, quando aquela coisa começou a troar pela madrugada, Astrid acordou de tal forma assustada que pegou na arma que estava em cima da mesa-de-cabeceira e correu nua para a varanda. Astrid era uma ateia devota. A religião deixava-a nervosa. No Cairo, havia religião por todo o lado. Envolvia as pessoas, rodeava-as. Não havia forma de lhe escapar. A solução era troçar dela. Naquela tarde, quando a chamada do muezim começou, levou Delaroche para a cama e fez com ele amor desenfreado. Agora' ouvia a chamada como um biólogo marinho poderia estudar os sons de acasalamento das baleias-cinzentas. Apercebeu-se de que era ligeiramente musical, harmoniosa, como uma daquelas fugas em que um violino toca a mesma série de notas depois de outra ter acabado. O Cânone do Cairo, pensou. O chamamento extinguiu-se lentamente até uma única voz pairar no ar, algures na direção de Giza e das pirâmides, e depois também ela desapareceu. Astrid permaneceu junto às portas de correr, os braços cruzados sobre os seios, a fumar um horrível cigarro egípcio, a beber champanhe gelado porque o hotel estava sem água engarrafada e a agua da torneira podia matar um búfalo-da-índia. Tinha vestido uma galabia de homem, as mangas arregaçadas e desabotoada até o umbigo. Delaroche, deitado na cama, observava o contorno indistinto do seu corpo de modelo através do tecido translúcido da túnica branca. Comprara-a naquele dia, num mercado de rua perto do hotel, chamando a atenção de uma forma apenas conseguida por uma loura alemã de um metro e setenta e oito nas ruas sexualmente oprimidas do Cairo. Durante algum tempo, Delaroche pensou que tinha cometido um erro ao deixá-la sair, mas era Inverno e havia milhares de turistas escandinavos na cidade, por isso ninguém se lembraria da alemã alta que insistira em comprar uma túnica de camponês no mercado. Alem disso, Delaroche gostava de andar a pé pelas ruas palpitantes do Cairo. Tinha sempre a sensação de estar a deslocar-se através de outras cidades: agora uma esquina de Paris, agora uma viela de Roma, agora um quarteirão da Londres vitoriana, tudo coberto de pó e entulhos como a Esfinge. Desejou poder pintar, mas naquela viagem não havia tempo para isso.
O vento noturno que entrava pelas portas abertas cheirava ao Deserto Ocidental. Misturava-se com o fedor que é exclusivo do Cairo: pó, lixo em putrefação, madeira a arder, fezes de macaco, urina, escapes de milhões de carros e camiões, fumos tóxicos das fábricas de cimento de Helwan. Mas era fresco e seco, maravilhoso na pele úmida e nua dos seios de Astrid. O pó acumulava-se no seu rosto. Estava por todo o lado, cinzento, fino como farinha. Penetrava-lhe na mala, nos livros e nas revistas. Delaroche estava constantemente a limpar a Beretta que lhe fora deixada no cofre de um banco do Cairo.
- Este pó - resmungava ele, passando com um farrapo oleado sobre o cano. - Este malvado deste pó.
Astrid gostava da janela aberta, pois o ar condicionado estava avariado e nada no saco de truques do senhor Fahmy podia arranjá-lo, mas as criadas fechavam sempre o quarto como um sarcófago.
- O pó - diziam, à laia de explicação, revirando os olhos para a janela aberta de Astrid. - Por favor, o pó.
Aventurou-se a ir à varanda, ignorando o terrível aviso do senhor Fahmy. Lá em baixo, homens empurravam carros silenciosos por uma rua estreita e obstruída. Havia um milhão de carros no Cairo e Astrid não vira um único verdadeiro estacionamento coberto. Os habitantes do Cairo tinham desenvolvido uma medida provisória completamente insana: limitavam-se a deixar os carros no meio da rua. Por uma mancheia de piastras amachucadas, empreendedores astutos tomavam conta de um carro o dia todo, empurrando-o de um lado para o outro, abrindo espaço para outros. Muitas ruas laterais da baixa eram intransitáveis, pois tinham sido transformadas em estacionamentos temporários. Do outro lado da estrada, ao lado da mesquita, um edifício de escritórios ruía lentamente. Em vez de retirarem os móveis de uma forma ordeira, os trabalhadores limitavam-se a atirar as coisas pelas janelas. Vinte soldados, camponeses das aldeias, estavam sentados junto ao prédio condenado, a cozinhar sobre pequenas fogueiras.
- Por que razão destacaram soldados para a porta do edifício, Jean-Paul? - perguntou, observando o espetáculo.
- O quê? - interrogou Delaroche, do interior do quarto.
Astrid repetiu a pergunta, desta vez mais alto. Conversação ao estilo do Cairo. Devido à cacofonia ensurdecedora nas ruas, a maior parte das conversas era conduzida aos gritos. Isto fazia com que fosse difícil planear o assassinato de Stoltenberg. Por razões de segurança,
Delaroche insistia em que falassem na cama, cara a cara, para que pudessem conversar baixinho, diretamente ao ouvido um do outro.
- Destacaram soldados para manter os peões afastados do prédio, para o caso de ruir de repente.
- Mas se o prédio ruir de repente, os soldados vão morrer. É uma loucura.
- Não, é o Cairo.
Uma carroça apareceu na estrada, puxada por um burro coxo. O condutor era um rapazinho, louro e de olhos verdes, vestido com uma túnica andrajosa. Da base da carroça ia caindo lixo. Os soldados insultaram o rapaz e atiraram pedaços de pão ao burro. Por um instante, Astrid pensou em pegar na arma e dar um tiro a um dos soldados.
- Jean-Paul, vem aqui, depressa - pediu.
- Zabbaleen - disse Delaroche, dirigindo-se à varanda.
- O quê?
- Zabbaleen - repetiu ele. - Quer dizer coletores de lixo. O Cairo não tem saneamento básico, nem sistema oficial de coleta de lixo. Durante anos, o lixo era simplesmente jogado nas ruas, ou queimado para aquecer a água do banho. Nos anos 30, os Cristãos Copta migraram para o Cairo vindos do sul. Alguns deles tornaram-se abbaleen. Não ganhavam dinheiro com isso, apenas o lixo que recolhiam. Vivem numa aldeia de lixo nas montanhas de Mokattam, a leste do Cairo.
- Meu Deus - exclamou ela, em voz baixa.
- É hora de nos vestirmos - ordenou Delaroche, mas Astrid permaneceu na varanda, olhando para o rapaz e seu lixo.
- Não gosto dele - disse e, por um momento, Delaroche não teve certeza se ela falava do abbaken ou de Eric Stoltenberg.
- É um sacana cruel, e também é esperto.
- Limite-se a fazer tudo conforme o planejado e as coisas vão correr bem.
- Não deixe que ele me faça mal, Jean-Paul.
Olhou-a. Matou uma dúzia de pessoas, viveu em fuga e, contudo, às vezes ficava tão assustada como uma menina. Acariciou-lhe o rosto e beijou sua testa com suavidade.
- Não vou deixar que ninguém te faça mal - prometeu.
Olharam para cima. Uma grande mesa de madeira balançava na varanda de um andar alto do edifício condenado. Pairou ali por um momento, como um passageiro agarrado ao parapeito de um transatlântico afundando, e depois espatifou-se na rua, despedaçando-se em mil bocados. O burro do abbaleen desatou a correr. Os soldados dispersaram-se. Olharam para cima e começaram a falar num árabe rápido, abanando os punhos na direção dos homens na varanda.
- O Cairo - concluiu Delaroche.
- Meu Deus - disse Astrid. - Que cidade de loucos.
O elevador do hotel era antiquado, abrindo caminho pelo centro de uma escada em espiral. Estava outra vez avariado, por isso Astrid e Delaroche tiveram de fazer a descida desde o sétimo andar. Fahmy, o eterno recepcionista, encolheu os ombros em sinal de desculpas.
- Amanhã, vem o técnico, inshallah - disse.
- Inshallah - repetiu Delaroche com um sotaque do Cairo perfeito, o qual Fahmy acatou com um aceno formal da sua cabeça calva.
O hall estava calmo, a sala de jantar deserta exceto por duas empregadas com aventais que limpavam o pó em silêncio. Delaroche considerava-a deprimente e vagamente russa, com as suas mesas compridas, a carne enrolada e o vinho branco quente. Astrid quisera ficar num dos grandes hotéis ocidentais (o Inter-Com ou o famoso Nile Hilton), mas Delaroche insistiu num sítio mais isolado. O Hotel Imperial era o tipo de lugar que os roteiros de viagens recomendavam a viajantes aventureiros que desejassem provar um pouco do verdadeiro Cairo.
Delaroche roubara uma motorizada: pequena, azul-escura, o tipo de scooter que os jovens italianos usam para fazerem corridas pelas ruas de Roma. Sentiu-se ligeiramente culpado, pois sabia que um rapaz egípcio qualquer tivera três empregos e poupara durante anos para poder comprá-la. Pôs Astrid dentro de um táxi e, num árabe rápido e correto, indicou ao motorista para onde levá-la. Delaroche partiu na sua moto, Astrid atrás dele no táxi.
Zamalek é uma ilha, comprida e estreita, que o Nilo rodeia como se de um fosso se tratasse. É um enclave dos abastados do Cairo: os resíduos da aristocracia, os novos-ricos, um grupo de jornalistas ocidentais. Apartamentos poeirentos elevam-se acima do penhasco e fitam com desaprovação o outro lado do rio, onde se encontra o barulho e o caos da baixa da cidade. Abaixo do penhasco, ao longo da água, existe uma represa onde uma juventude livre de Zamalek faz sexo até de manhã. Na ponta norte da ilha estão localizados os campos de críquete e os campos de tênis do Ghazira Sporting Club, os campos de jogos da velha elite britânica. Nas lojas e boutiques de Zamalek ouve-se o francês trazido para o Cairo por Napoleão. Os habitantes vestem roupas ocidentais, comem comida ocidental nos restaurantes e nos cafés, e dançam ao som de música ocidental nas discotecas. É o outro Cairo.
Eric Stoltenberg morava no último andar, o nono, de um edifício com vista para o rio. Os vizinhos queixavam-se das suas festas barulhentas e dos sons de acasalamento das conquistas frequentes. Todas as noites almoçava num dos restaurantes da moda de Zamalek e depois parava num clube noturno chamado Break Point para os seus copos e caça noturnos.
Tudo isso constava do arquivo de Delaroche.
O Break Point tinha um porteiro e uma ordem de entrada estatutária, como um clube de Nova York. O porteiro selecionava a clientela importante e as moças bonitas para entrarem em primeiro lugar. Eric Stoltenberg encaixava na primeira categoria, Astrid Vogel na segunda. Delaroche, um homem solteiro, atraente, na casa dos quarenta, teve de esperar dez minutos. Logo que entrou, dirigiu-se ao bar. Num árabe com o sotaque do Cairo pediu cerveja Stella, de fabrico egípcio. No clube noturno, com as suas luzes lúgubres e cortina de fumo, poderia passar por um qualquer egípcio da classe alta.
Pagou a cerveja e virou-se para perscrutar a sala. O sítio estava cheio, como era habitual: moças egípcias parcamente vestidas que dormiam com estrangeiros, rapazes que faziam o mesmo, umas quantas cabras da classe alta, alguns turistas aventureiros que não conseguiam suportar mais uma noite no terrível bar do Nile Hilton. Uma moça bonita convidou Delaroche para dançar, convite esse que ele recusou educadamente. Momentos mais tarde, surgiu o seu anjo da guarda, um rapaz grosseiro com um casaco de couro e uma camisa justa para provar que levantava pesos. Delaroche murmurou algo ao ouvido dele, o que fez com que o rapaz deixasse de imediato o bar, com a moça bonita a reboque.
Astrid dançava com Stoltenberg. Vestia uma das saias pretas compradas em Londres e um pulôver justo. Era uma turista chamada Eva Tebbe, nascida no Leste, que falava alemão com um sotaque saxônico. Astrid e Stoltenberg tinham-se conhecido na noite anterior, quando viera ali com Delaroche, o qual fez de turista francês do grupo. Stoltenberg atirou-se a ela de uma forma implacável. Restava-lhe dois dias no Cairo e depois ia para Luxor. Stoltenberg tentara engatá-la, mas ela recusou com tristeza, dizendo que o pequeno francês ficaria furioso. Nessa noite estaria sozinha, motivo pelo qual Delaroche não quis dançar e permanecia no bar, nas sombras.
Stoltenberg já fora um homem atraente, mas engordara devido ao álcool e à comida suculenta. Tinha o cabelo grisalho cortado rente e olhos azuis gelados. Vestia-se de preto: calças de ganga pretas, blusa de gola alta preta, blusão de couro preto. Tocava em Astrid enquanto dançava e, pela expressão dela, estava a gostar muito. Após três canções, dirigiram-se à mesa habitual de Stoltenberg. Conversaram, próximos um do outro.
Passados dez minutos, levantaram-se e abriram caminho pela pista até a porta, Stoltenberg puxando Astrid pela mão. O olhar dela passou por Delaroche mas não se deteve nele. Astrid, a profissional.
Observou atentamente o rosto dela e percebeu que estava assustada.
Era evidente que os negócios corriam bem a Eric Stoltenberg. Possuía um grande Mercedes preto e um motorista. Abriu a porta a Astrid, deu a volta por trás do carro e entrou para o veículo, sentando-se ao lado dela. O carro rugiu pelas ruas estreitas, depois virou para o penhasco e rumou a sul, ao longo do rio. Delaroche seguiu-os de mota, luzes apagadas, a cabeça oculta num capacete. Abrandou quando se aproximaram do apartamento de Stoltenberg, virado para o rio. Tal como em Londres, pensou. Leva-o para dentro, mete-o na cama, deixa uma porta aberta se puderes. Sem problemas. De repente, o Mercedes acelerou, passando pelo edifício a voar. Delaroche praguejou em voz alta e apressou-se atrás deles.
- Não te chamas Eva Tebbe - anunciou Stoltenberg, enquanto o carro acelerava. - O teu nome é Astrid Vogel. És um antigo membro da Fação do Exército Vermelho. - De que raio estás a falar? O meu nome é Eva Tebbe e sou uma turista de Berlim. Leva-me para o clube agora, seu doido varrido, ou vou gritar pela polícia. - Soube que eras tu cinco minutos depois de nos conhecermos. Aquele teu sotaque saxônico maluco não foi bom o suficiente para enganar um profissional.
- Profissional do quê? Leva-me de volta para o clube, já!
- Trabalhei para a Stasi, sua idiota! Lidei com a Red Army Faction. Nunca esteve no Leste, mas muitos camaradas seus estiveram. Tínhamos fotografias e dossiês completos sobre todos os membros da Red Army Faction, incluindo uma tal de Astrid Vogel.
- Meu nome é Eva Tebbe - repetia ela como se fosse um mantra. - Sou uma turista de Berlim.
- Pedi a um velho companheiro meu que me enviasse por fax esta fotografia. Agora está mais velha, seu cabelo está diferente, mas é você.
Meteu a mão no blusão de couro e exibiu a fotografia. Astrid olhava pela janela. Tinham atravessado o rio para o Cairo Ocidental e avançavam em direção a Giza.
- Olhe - gritou -, é você, olhe!
- Não sou eu. Por favor, não sei do que está falando.
Podia ouvir a própria voz a perder a convicção. Aparentemente, Stoltenberg também, pois deu-lhe uma violenta bofetada na boca com as costas da mão. Os olhos dela marejaram-se e sentiu nos lábios o gosto a sangue. Olhou para a fotografia, uma antiga foto de identificação da Alemanha
Ocidental. Era uma magrizela revolucionária, uma expressão no rosto que dizia como se atreveram a tirar-me esta porra desta fotografia. O corte de cabelo espetado de Kurt Vogel, os óculos com lentes de cristal de rocha de Kurt Vogel. Sempre achara que era uma fotografia bastante horrorosa, mas quando a policial a colocou num cartaz a dizer "procura-se", tornou-se o símbolo sexual da Esquerda radical.
As pirâmides estavam à sua frente, recortadas de encontro ao azul profundo da noite do deserto. Uma Lua muito branca a três quartos pairava baixa no céu, brilhante como um archote. Onde diabo estás tu, Jean-Paul? pensou ela. Resistiu ao impulso de se virar para trás e procurá-lo. O que tinha ele dito? Não vou deixar que ninguém te faça mal É bom que faças alguma coisa depressa, querido, pensou, ou este homem vai fazer de ti um mentiroso. Por qualquer razão, ele não lhe revistara o corpo, nem a mala. A arma ainda lá estava, uma pequena Browning automática, mas sabia que jamais conseguiria tirá-la a tempo, no espaço limitado do banco traseiro. Não teve outro remédio a não ser esperar, ganhar tempo e pedir a Deus que Jean-Paul estivesse algures na escuridão. As pirâmides desapareceram. Viraram para um trilho estreito e sem pavimento, que se estendia até o deserto.
- Para onde me estás a levar? - perguntou Astrid. - Se queres dar uma queca, podemos dá-la aqui mesmo. Não tens de me levar para o deserto e pores-te com estes jogos estúpidos. Voltou a esbofeteá-la. - Cala-te - ordenou.
O Mercedes dava solavancos e baloiçava desenfreadamente.
- Quem te contratou?
- Ninguém me contratou. Não sou quem tu dizes. Quero voltar para o meu hotel.
Por favor, não faças isto.
Deu-lhe outra bofetada, desta vez com mais força.
- Responde-me! Quem te contratou?
- Ninguém, por favor.
- Quem é o homem? O teu parceiro, o francês?
- Ele não passa de um idiota do meu grupo de viagem. Não é ninguém.
- Mataste o Colin Yardley em Londres?
- Eu não matei ninguém.
- Mataste o Colin Yardley em Londres? Foi o francês?
Eu não mato pessoas. Trabalho para uma revista em Berlim. Sou designer gráfica. Não me chamo Astrid Vogel. O meu nome é Eva Tebbe. Por favor, isto é coisa de loucos. Para onde me leva?
- Para um lugar onde ninguém vai te ouvir gritar e onde ninguém vai te encontrar depois que eu te matar. - Levou novamente a mão ao blusão e desta vez retirou uma arma. Encostou o cano no pescoço dela e puxou seu cabelo. - Mais uma vez - disse. - Quem é o francês? Quem te contratou?
- Meu nome é Eva Tebbe. Sou designer gráfica em Berlim.
Pensou nas velhas palestras sobre doutrinação na Red Army Faction. Se forem presos, não lhes deem nada. Desafiem, censurem, mas não lhes deem nada. Eles vão provocar, mexer com sua cabeça. É isso que os policiais fazem. Não lhes deem nada. Naquele caso, o conselho tinha uma aplicação muito prática, pois no momento em que dissesse a verdade a Stoltenberg, com certeza ele a mataria.
Puxou-lhe o cabelo com violência e depois soltou-a. A mala dela estava sobre o banco, entre os dois. Abriu-a e revirou o conteúdo até encontrar a Browning. Mostrou-a, como prova da traição, e colocou-a dentro do blusão. - É muito desleixado, esse teu francês, Astrid. Enviou-te para uma situação muito perigosa. Ele sabia que trabalhei para a Stasi. Devia ter percebido que podia reconhecer uma antiga assassina da Fação do Exército Vermelho. E preciso ser-se um sacana muito frio para enviar uma mulher para uma situação destas. O carro parou numa escarpa do deserto com vista para a cidade. Abaixo deles, o Cairo estendia-se como um leque gigante, estreito a sul, amplo a norte, na base do delta do Nilo. Milhares de minaretes erguiam-se em direção ao céu. Interrogou-se qual seria o dela. Queria estar de volta àquele quarto de hotel horroroso, com a sanita que não funcionava, junto ao edifício prestes a ruir. - É evidente que amas esse homem. É por isso que estás disposta a suportar a dor física por ele. Ele não sente o mesmo por ti, garanto-te. Caso contrário, nunca teria permitido que te aproximasses de mim. Está te usando, como aqueles sacanas na Red Army Faction te usaram.
Stoltenberg disse algo ao motorista num árabe rápido que Astrid não compreendeu. O motorista abriu a porta e saiu. Stoltenberg encostou-lhe novamente a arma ao pescoço.
- Muito bem - disse. - Vamos tentar só mais uma vez.
Delaroche desligou o motor da mota quando viu as luzes de travão do Mercedes a acender. Parou em silêncio, retirou a mota do trilho e aproximou-se do carro a pé. A Lua projetava sombras. O Cairo murmurava à distância. Imobilizou-se quando ouviu uma porta do carro abrir e fechar. O veículo permaneceu às escuras; Stoltenberg, como qualquer bom agente, inutilizara a luz interior. Ao luar, Delaroche viu o motorista, de arma na mão, a verificar o perímetro. Delaroche acocorou-se atrás de um aglomerado rochoso e esperou que o homem se aproximasse. Quando o motorista se encontrava a cerca de dez metros de distância, Delaroche pôs-se de pé e apontou a Beretta na escuridão. Stoltenberg estava novamente a esbofeteá-la, no rosto, na nuca, nos seios. Ela sentiu que o homem começava a gostar daquilo. Pensou noutra coisa, qualquer coisa. Pensou na casa flutuante no Prinsengracht e na pequena livraria e desejou que Jean-Paul Delaroche nunca tivesse entrado na sua vida. A porta do motorista abriu e fechou-se. Na escuridão, Astrid mal conseguia distinguir a silhueta de um homem atrás do volante. Apercebeu-se de que não era o mesmo homem que lá estivera antes.
Stoltenberg pressionava novamente a arma contra o pescoço de Astrid. - Viste alguma coisa? - perguntou Stoltenberg em árabe. O homem atrás do volante abanou a cabeça.
- Yallah - ordenou Stoltenberg. Vamos embora. Delaroche virou-se e apontou a Beretta ao rosto de Stoltenberg. O alemão ficou demasiado estupefato para reagir. Delaroche disparou três vezes. - Ele podia ter-me matado, Jean-Paul.
Estava deitada na cama no Hotel Imperial, com a sua galabia vestida, a fumar um cigarro atrás do outro na semiobscuridade. Delaroche estava deitado ao lado dela, a desmontar as armas. Ela tinha o cabelo úmido da ducha. Esfregara-se até ficar em carne viva, a tentar lavar o sangue de Stoltenberg. O vento entrava pelas portas abertas. Arrepiou-se. A sanita deixara outra vez de funcionar. Delaroche telefonou para a recepção e pediu que alguém viesse arranjá-la, mas o senhor Fahmy, o guardião do conhecimento secreto, estava de folga nessa noite. - Bokra, inshallah - disse o empregado. Amanhã, se Deus quiser.
Delaroche acatou a afirmação dela. O profissional que havia nele não podia contestá-la. Eric Stoltenberg tivera muito tempo e oportunidade para matá-la. Optara por não o fazer porque precisava de mais informações.
- Ele podia ter matado você - disse Delaroche -, mas não o fez porque se portou com perfeição. Ganhou tempo, não contou nada. Você nunca esteve sozinha. Eu estava atrás de você o tempo todo.
- Se ele quisesse me matar você não teria podido impedir.
- Este trabalho não é isento de riscos. Sabe disso.
As palavras de Stoltenberg ecoavam-lhe na mente.
- É muito desleixado esse seu francês, Astrid. Enviou você a uma situação muito perigosa.
- Não sei se consigo continuar, Jean-Paul.
- Aceitou a missão. Aceitou o dinheiro. Não pode desistir agora.
- Quero voltar para Amsterdam, ao Prinsengracht.
- Essa porta se fechou para você.
Fez mais uma vez o inventário dos ferimentos: lábio rachado, face esmurrada, uma marca de mão no seio direito. Nunca antes se encontrara numa situação em que estivesse impotente e não tinha gostado. - Não quero morrer como um animal no deserto.
- Nem eu - concordou ele. - Não vou deixar que isso aconteça a nenhum de nós.
- Para onde vai, quando esta questão chegar ao fim?
- Para Brélés, se puder. Se não, para as Caraíbas.
- E para onde irei, agora que a porta para Amsterdam foi fechada?
Pousou as armas e colocou-se em cima dela.
- Pode vir comigo para as Caraíbas.
- E o que vou fazer lá?
- O que quiser, ou então nada.
- E o que serei para você? Serei sua mulher?
Delaroche abanou a cabeça. - Não, não será minha mulher.
- Haverá outras mulheres?
Voltou a abanar a cabeça. - Não, não haverá outras mulheres.
- Serei o que quiser que eu seja, mas não pode me humilhar com outras mulheres.
- Nunca te humilharia, Astrid.
Beijou-lhe a boca com suavidade, para não lhe magoar o lábio. Desabotoou-lhe a galabia e beijou-lhe os seios e a feia marca deixada pela mão de Stoltenberg. Deslizou pelo corpo dela e levantou a galabia. O terror que Astrid sentira horas antes desvaneceu-se com a sensação intensa do que ele estava a fazer entre as suas coxas.
- Onde iremos viver? - perguntou baixinho.
- Junto ao mar - respondeu ele, voltando ao que estava a fazer.
- Vais fazer-me isto junto ao mar, Jean-Paul? Sentiu a cabeça dele dizer que sim entre as pernas.
- Vais fazer-me isto muitas vezes junto ao mar, Jean-Paul?
Era uma pergunta tola e ele não respondeu. Astrid agarrou-lhe a cabeça e puxou-a com força de encontro ao corpo. Teve vontade de lhe dizer que o amava, mas sabia que tais coisas jamais seriam ditas em voz alta. Mais tarde, ele deitou-se ao lado dela, respirando suavemente.
- Dormes de noite, Jean-Paul?
- Algumas noites são melhores do que outras. - Vê-los?
Vejo-os durante algum tempo e depois desaparecem.
- Porque mata daquela maneira? Por que três tiros no rosto?
- Porque quero que saibam que eu existo.
Astrid fechou os olhos e sentiu-se a deslizar para o sono.
- Você é a Besta, Jean-Paul?
- Do que está falando?
- A Besta - repetiu ela. - O Diabo. Talvez deixe sua marca nos rostos deles por ser a Besta.
- Os homens que eu mato são maléficos. Se eu não os matar, outra pessoa o fará. É apenas um negócio, nada mais.
- Com você é mais do que apenas um negócio, Jean-Paul. É... - hesitou e, por um instante, Delaroche pensou que ela tivesse finalmente adormecido. - É arte, Jean-Paul. Sua forma de matar é como arte.
- Dorme, Astrid.
- Espere que eu durma antes de você dormir, Jean-Paul.
- Eu espero - prometeu. Ficou em silêncio mais um instante.
- Quando se aposentar, o que será do Arbatov? - perguntou ainda.
- Suponho que terá de se aposentar também - respondeu Delaroche. - Mas ele já tem uma certa idade.
- É o Diabo, Jean-Paul? - perguntou Astrid, mas adormeceu antes que ele pudesse responder.
Momentos antes de o Sol nascer, retirou da mala o pequeno artigo do Le Monde sobre um diplomata reformado russo morto por rufiões de rua em Paris. Delaroche estava a dormir, ou fingia dormir, nunca tinha a certeza.
Levou o recorte até a varanda pouco firme de Fahmy e leu-o mais uma vez à luz bege do despontar do dia. Talvez não tivesse sido Jean-Paul, pensou. Talvez tivesse sido mesmo apenas um assalto.
O Cairo agitava-se lá em baixo. Uma abbaleen surgiu no beco, uma menina, vestida com farrapos, cheia de sono, açoitando um jumento com uma chibata. O muezim fez-se ouvir e outros mil juntaram-se a ele.
Levou um fósforo ao recorte e segurou-o até a chama o engolir. Depois largou-o e viu-o flutuar, até cair em cima de um monte de lixo e transformar-se em pó cinzento. 267
CAIRO
A viagem de táxi desde o aeroporto demorara quase tanto tempo como o voo a partir de Roma. Estava calor, até mesmo para Novembro, e não havia ar condicionado no pequeno Fiat usado. Michael recostou-se e tentou descontrair-se. Sabia que ficar agitado só iria piorar as coisas. O Cairo era como um nó com truque, que quanto mais se tentava desatar mais apertado ficava. O taxista partiu do princípio de que Michael era um egípcio rico de regresso de umas férias em Roma e tagarelou sobre como as coisas tinham ficado más. Envergava a túnica modesta e a barba desalinhada de um islâmico devoto. A rua estava obstruída com todos os tipos concebíveis de meios de transporte: carros, ônibus e camiões a vomitarem fumo pelos escapes, carroças puxadas por burros, bicicletas e peões. Um rapaz magricela espetou com uma galinha viva no rosto de Michael e perguntou se a queria comprar. O taxista gritou-lhe que se fosse embora. Uma imagem colossal do presidente egípcio sorria com benevolência de um painel publicitário à beira da estrada.
- Não estaria rindo se estivesse preso neste trânsito com a gente - murmurou o taxista.
Michael nunca vivera no Cairo, mas passara ali muito tempo. Exercera o cargo de oficial de controle de um agente importante no seio da Mukhabarat, os serviços de segurança egípcios que tudo permeiam. O agente não queria ser interrogado por um oficial da Estação do Cairo, sabia que a embaixada e os residentes da CIA eram bem controlados, por isso Michael viajava até o Egipto ocasionalmente, fingindo ser um homem de negócios, e ele próprio ouvia os relatórios. O agente forneceu informações valiosas sobre o estado do islamismo radical no Egipto, o aliado mais importante dos Estados Unidos no mundo árabe. Por vezes, a informação fluía ao contrário. Quando Michael soube de um plano para assassinar o ministro do interior egípcio, passou a informação a esse agente. O conluio foi gorado e vários elementos da al-Gama'at Ismalyya foram presos. O homem de Michael recebeu uma grande promoção que lhe deu acesso a melhores informações.
O Nile Hilton encontra-se localizado na Praça Tahrir, com vista para o rio. Em árabe, Tahrir significa libertação e Michael sempre achou que era o lugar com o nome mais inadequado da terra. A praça imensa estava com um engarrafamento terrível. O táxi não avançara dois centímetros em cinco minutos. O ruído das buzinas era insuportável. Michael pagou a corrida e percorreu o resto do caminho a pé.
Entrou no quarto, tomou uma ducha, mudou de roupa e voltou a sair. A Mukhabarat tinha uma das operações de vigilância mais dispendiosas da terra. Michael sabia que o telefone do quarto de certeza que estava sob escuta, ainda que viajasse como um homem de negócios italiano, presente na cidade para uma série de reuniões. Dirigiu-se à estação de metro da Praça Tahrir e encontrou uma cabine telefônica. Falou baixinho para o receptor durante dois minutos, levantando a voz uma vez para gritar por cima do troar de um comboio que entrava na estação. Tinha duas horas para gastar. Aproveitaria o tempo. Entrou no metro seguinte, saiu na primeira estação e voltou atrás. Caminhou. Dirigiu-se ao museu egípcio. Foi seduzido por uma loja de turistas especializada em óleos perfumados. Os rapazes da loja empanturraram-no com chá e. cigarros enquanto ele experimentava vários óleos. Michael recompensou a sua hospitalidade comprando um pequeno frasco de um óleo de sândalo abjeto, que atirou para dentro do caixote do lixo mais próximo assim que saiu. Estava à vontade, sem ser vigiado. Fez sinal a um táxi e entrou.
O Cairo é uma cidade de elegância perdida. Outrora existiram cinemas, um teatro de ópera e villas rodeadas de muros que derramavam música de câmara para as noites quentes. Pouco resta, e o que sobreviveu tem a consistência de um jornal deixado muito tempo ao sol. Muitas das villas foram abandonadas, a ópera desapareceu e os teatros tresandam a urina. O restaurante Arabesque tem o toque do velho Cairo, fazendo lembrar um ancião que deambula pela casa o dia inteiro de terno e gravata.
Estava-se a meio da tarde, a altura calma entre o almoço e o jantar, e a sala de jantar estava quase deserta. Michael teve de se esforçar para ouvir o barulho do trânsito, tão bom era o isolamento do restaurante. Yousef Hafez estava sentado a uma mesa de canto, longe de todas as outras pessoas. Quando Michael se aproximou, ergueu o olhar e sorriu, fazendo brilhar duas filas de dentes perfeitos e brancos. Tinha a aparência de uma estrela de cinema egípcia, do tipo corpulento na casa dos cinquenta, com um cabelo farto e a ficar grisalho, que atrai mulheres mais jovens e ultrapassa homens mais jovens. Michael sabia que isso não andava longe da verdade.
Pediram vinho branco fresco. Hafez era muçulmano, mas achava que a fidelidade rígida à lei islâmica era para "os malucos e os camponeses". Brindaram e conversaram sobre os velhos tempos durante uma hora, enquanto os empregados traziam travessa após travessa de aperitivos ao estilo libanês.
Por fim, Michael falou no assunto que ali o levara. Disse a Hafez que estava no Cairo para tratar de um assunto pessoal. Esperava que Hafez o ajudasse por amizade e cortesia profissional. Sob quaisquer circunstâncias poderia discutir o assunto com o seu oficial de controle atual. Seria pago pela ajuda prestada, diretamente do bolso de Michael.
Podes pagar-me um almoço ou outra garrafa deste vinho, mas guarda o dinheiro. Michael fez sinal ao empregado de casaco branco para que trouxesse mais vinho. Enquanto o empregado os servia, Hafez falou sobre uma pisga que comera em Cannes naquele Verão. A Mukhabarat empregava dezenas de milhares de informantes, logo era sempre possível que o empregado fosse um deles. Quando se afastou, Hafez declarou:
- Então, o que posso fazer por ti, meu amigo?
- Quero falar com um homem chamado Eric Stoltenberg. É um antigo elemento da Stasi, que vive no Cairo a trabalhar como freelancer.
- Sei quem ele é.
- Sabes onde encontrá-lo? - Para dizer a verdade, sei.
Hafez pousou o copo de vinho e fez sinal para que trouxessem a conta. O corpo estava numa sala quente com centenas de outros, coberto por um lençol cinzento. O macacão do funcionário estava salpicado de sangue. Hafez ajoelhou-se ao lado do corpo e olhou para Michael, a fim de se certificar de que este estava preparado. Michael acenou com a cabeça e Hafez afastou o lençol para trás. Michael desviou rapidamente o olhar e teve uma ânsia de vômito, o almoço no Arabesque a subir-lhe à garganta.
- Onde o encontrou? - perguntou Michael.
- Perto das pirâmides, na orla do deserto.
- Deixa-me adivinhar: três tiros no rosto.
- Exatamente - confirmou Hafez, acendendo um cigarro para disfarçar o cheiro. - Foi visto pela última vez num clube noturno em Zamalek. Um sítio chamado Break Point.
- Conheço - disse Michael.
- Estava dançando com uma mulher europeia: alta, loura, alemã talvez.
- Chama-se Astrid Vogel. Foi da Facção do Exército Vermelho.
- Foi ela quem fez isto?
- Não, desconfio que recebeu alguma ajuda. Tem imagem de todos os passageiros que chegam ao aeroporto de Cairo?
Hafez fez um esgar, considerando a pergunta algo divertida.
- Importa-se que dê uma olhada?
Hafez levantou-se e disse: - Vamos.
Colocaram Michael numa sala com um leitor de vídeo e um monitor. Dois funcionários entravam e saíam silenciosamente, trazendo novas cassetes numa direção e levando as velhas noutra. Trouxeram-lhe chá, ao estilo russo, num copo com uma pega de metal ornamentado. Trouxeram-lhe tabaco egípcio quando acabaram os Marlboros. Trabalhou para trás no tempo, começando vinte e quatro horas antes do assassinato. Outubro seria meticuloso. Outubro planejaria tudo cuidadosamente.
Encontrou-a depois da meia-noite. Era alta e ereta, com o cabelo puxado para trás, o que acentuava seu nariz comprido. As mãos grandes pareciam debater-se com o passaporte ao entregá-lo ao funcionário da alfândega. Outubro apareceu cinco minutos depois, baixo, com ligeireza nos pés, como um esgrimista. A pala de um boné de basebol, puxada para a testa, obscurecia-lhe grande parte do rosto, mas Michael conseguia ver o suficiente. Imobilizou as duas imagens e chamou Hafez.
- Aqui estão os teus assassinos - anunciou Michael, quando Hafez entrou na sala. - Esta é Astrid Vogel, a alemã com quem Stoltenberg estava dançando no clube noturno.
Hafez apontou para a segunda imagem.
- E aquele?
Michael fitou a tela.
- Quem me dera saber.
AMSTERDAM
Estava uma madrugada muito fria quando Delaroche e Astrid regressaram à casa flutuante no Prisengracht. Delaroche inspecionou o barco cuidadosamente durante vinte minutos, para se certificar de que ninguém estivera a bordo. Verificou os detetores, revistou os armários na cozinha e as gavetas no quarto de Astrid, percorreu o convés gelado. Astrid não lhe foi de grande ajuda. Contente por finalmente estar a bordo do seu adorado Krista, deixou-se cair em cima da cama vestida como estava e observava-o só com um olho, como se estivesse louco.
Delaroche sentia-se alerta e revigorado, apesar da longa viagem. Na manhã anterior tinham apanhado um avião do Cairo para Madrid, tendo primeiro explicado ao senhor Fahmy que iam abreviar a estadia no Hotel Imperial porque a Sra. estava muito doente. Fahmy receava que fosse a sanita que os tivesse afugentado (ofereceu-lhes a melhor suíte do hotel para persuadi-los a ficar), mas Delaroche garantiu-lhe que fora a água, e não a sanita, que os obrigara a partir. Em Madrid, tinham apanhado o comboio para Amsterdam. Delaroche passou a viagem debruçado sobre o computador portátil como um homem de negócios, planeando o assassinato seguinte. Astrid dormia um sono sobressaltado ao lado dele, revivendo os últimos acontecimentos.
O canal congelara novamente e, mais uma vez, o Krista estava repleto dos gritos alegres dos patinadores. Astrid tomou comprimidos para dormir e tapou a cabeça com uma almofada. Delaroche sentia-se demasiado agitado para dormir, por isso, a meio da manhã, quando o sol consumiu as nuvens, foi para a coberta de proa e pintou, agasalhado com uma blusa grossa e luvas sem dedos. A luz era boa, bem como o assunto (patinadores no canal, casas com empenas em pano de fundo) e, quando terminou, pensou que era o melhor trabalho que produzira em Amsterdam.
Tinha um curioso desejo pela aprovação de Astrid mas, quando desceu para tentar acordá-la, ela limitou-se a resmungar que o seu nome era Eva Tebbe, uma designer gráfica de Berlim e para que, por favor, parasse de esbofeteá-la. Deixou-a ao início da tarde, pedalando por Amsterdam, com o computador portátil a tiracolo. Prendeu a bicicleta junto a um centro telefônico perto do Rijksmuseum e entrou. Dirigiu-se a uma cabine, ligou o computador e teclou durante alguns instantes. Tinha uma mensagem de correio eletrônico. Abriu-a e na tela surgiu uma série ininteligível de símbolos. Inseriu o nome de código e a mensagem apareceu num texto claro.
PARABÉNS PELO SUCESSO DA SUA MISSÃO NO CAIRO. O PAGAMENTO FOI ENVIADO PARA O NÚMERO DA SUA CONTA. TEMOS OUTRA MISSÃO. SE ACEITAR, RECEBERÁ UM MILHÃO E MEIO DE DÓLARES, RECEBENDO METADE COMO ADIANTAMENTO. PARA ACEITAR, DÊ ENTER. O PAGAMENTO SERÁ AUTOMATICAMENTE ENVIADO PARA A SUA CONTA E UM DOSSIÊ COM PORMENORES OPERACIONAIS SERÃO BAIXADOS PARA SEU COMPUTADOR. O ARQUIVO ESTARÁ CODIFICADO, CLARO, E O SEU NOME DE CÓDIGO IRÁ DECIFRÁ-LO. SE QUISER RECUSAR, TECLE ESCAPE.
Delaroche desviou o olhar da tela e pensou por um instante. Com aqueles honorários, ficaria com uma quantia extraordinária de dinheiro, mais do que suficiente para garantir o seu conforto e segurança para o resto da vida. Contudo, sabia que envolvia riscos. Os assassínios seriam cada vez mais difíceis (Eric Stoltenberg fora prova disso) e agora estavam a pedir-lhe para levar a cabo outro assassinato. Também se interrogou se Astrid seria capaz de continuar. O confronto com Stoltenberg no Cairo custara-lhe demasiado. No entanto, Delaroche apercebeu-se de que a vida de Astrid se encontrava agora inexoravelmente ligada à sua. Ela faria o que ele quisesse.
Carregou na tecla ENTER. O arquivo foi descarregado para o portátil pelo modem de alta velocidade. Deu uma vista de olhos ao dossiê e desligou o computador.
Conhecia o homem. Já o confrontara uma vez.
Guardou o computador e telefonou para o banco, em Zurique. Herr Becker atendeu. Sim, tinham sido efetuados dois depósitos na sua conta: um de um milhão de dólares e um segundo de três quartos de um milhão há momentos. Delaroche deu instruções a Becker para que transferisse o dinheiro para as contas nas Baamas. Saiu do centro telefônico e foi buscar a bicicleta de Astrid. Um ladrão estava a tentar arrombar o cadeado. Delaroche informou-o delicadamente de que aquela bicicleta lhe pertencia. O ladrão disse a Delaroche para se lixar. Delaroche enfiou-lhe um pé na região dos rins. Enquanto se afastava, montado na bicicleta, o ladrão continuava deitado no chão, contorcendo-se em silêncio.
Astrid dormiu até depois do pôr do Sol. Tomaram café num restaurante perto do Krista e deram um passeio pelos canais até a hora de jantar. Astrid inalou o ar frio e límpido de Amsterdam, tentando limpar os pulmões do pó e do fumo do Cairo. Estava um pouco nervosa devido aos soporíferos e ao café. Um homem com cabelo louro-acinzentado chocou com ela. Astrid estava já a levar a mão à mala para pegar na arma quando Delaroche lhe pousou a mão no braço e lhe segredou que não era nada, apenas um desconhecido com pressa.
Comeram como amantes extenuados no restaurante no Herengracht onde Delaroche a levara na primeira noite. Ela não tinha comido nada no Cairo, por isso devorou o seu prato, bem como grande parte do de Delaroche. A sua pele, branca como a cal devido ao cansaço e ao nervosismo, foi ganhando cor com a comida, o vinho e o ar da noite. Contou-lhe enquanto comiam a sobremesa. O rosto dela não deixou transparecer mais do que uma ligeira irritação, como se Delaroche a tivesse informado de que, naquela noite, ia ficar a trabalhar até mais tarde no escritório.
- Não tem que fazer - disse-lhe. - Não quero ficar sem você.
Fizeram amor sob a claraboia do Krista, ao som dos gritos dos patinadores no Prinsengracht. Em seguida, Delaroche confessou ter abatido o avião em Nova York, bem como o rapaz palestino. Disse-lhe que acreditava que os homens que tinham matado também estavam envolvidos no ataque ou que, de alguma forma, sabiam a verdade.
- Quem são os homens que te contrataram? - perguntou ela, tocando-o nos lábios.
- Sinceramente não sei.
- Tem que saber que eles vão te matar, Jean-Paul. Quando terminar o contrato, eles virão atrás de você. E de mim também.
- Eu sei.
- Para onde iremos?
- Para a nossa casa na praia.
- Estaremos seguros lá?
- Estaremos tão seguros como em outro lugar qualquer.
Astrid acendeu um cigarro e exalou um esguio fio de fumo em direção à claraboia. Delaroche pegou no portátil, ligou-o e carregou em algumas teclas. O disco rígido zumbiu e depois a imagem de um homem de cabelo escuro apareceu no ecrã.
- Por que esse homem tem que morrer?
- Desconfio que sabe demais.
Surgiu outra imagem, a de Elizabeth Osbourne.
- A mulher dele é linda.
- Sim.
- É uma pena.
- Sim - concordou Delaroche, e fechou o notebook.
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Michael apanhou o último ferry da noite. Durante alguns instantes, deixou-se ficar encostado ao parapeito a apanhar o ar frio, mas o vento e os salpicos da água fizeram com que voltasse para dentro do Buick alugado no aeroporto JFK. Telefonara a Adrian Carter a partir da Long Island Expressway e disse-lhe que estava de regresso ao país. Carter quis saber onde diabo estivera metido. Michael respondeu-lhe que iria à sede na tarde do dia seguinte e lhe explicaria tudo. Quando Carter exigiu uma explicação naquele momento, Michael mentiu e disse que a ligação do celular estava má, desligando em seguida. A última coisa que ouviu foi Adrian Carter a gritar obscenidades, o que não era nada típico de sua parte, ao pousar o telefone no gancho.
As vagas rebentavam na proa, encharcando o vidro. Michael ligou o limpa para-brisa. As luzes de Cannon Point brilhavam do outro lado de Shelter Island Sound. As imagens das últimas semanas vieram-lhe à cabeça: o Voo 002, Colin Yardley, Heathrow, Drozdov, Muhammad Awad, Eric Stoltenberg, Astrid Vogel, Outubro. Eram como fragmentos de uma melodia que não era capaz de completar. Tinha a certeza de que a Espada de Gaza não tinha perpetrado o ataque. Acreditava que era obra de outro grupo, ou de um indivíduo, que o levara a cabo em nome da Espada de Gaza. Mas quem? E porquê? Outubro era apenas um assassino contratado. Se estivesse envolvido, seria por mandado de outros. O mesmo se aplicava a Astrid Vogel. A Fação do Exército Vermelho não possuía os recursos nem motivo para realizar o ataque. Michael desconfiava saber a verdade, ou pelo menos parte dela: o homem chamado Outubro fora contratado para eliminar a equipe que levara a cabo o atentado.
O ferry atracou em Shelter Island. Michael ligou o motor e arrancou. Shelter Island Heights estava deserta, as lojas e as casas vitorianas às escuras. Acelerou ao longo de Winthrop Road, através de um túnel de árvores despidas, e contornou Dering Harbor. No Verão, o porto estava repleto de barcos. Agora encontrava-se deserto, exceto pelo Athena, que ondulava nas amarras sobre as ondas encrespadas ao largo de Cannon Point.
Michael também desconfiava que fora ele o alvo no ferry no Canal, não Muhammad Awad. Quem era o homem debaixo da balaclava? Seria Outubro? Já o vira empunhar a arma, em pessoa, na Represa de Chelsea e em vídeo, e não parecia ser o mesmo homem. Tinha de partir do princípio que continuava a ser um alvo e era obrigado a encarar a possibilidade de agora enviarem Outubro, um dos melhores assassinos do mundo, para realizar a tarefa. Teria de contar tudo a Carter e a Monica Tyler, pois precisava da sua proteção. Também diria tudo a Elizabeth, mas por razões muito diferentes. Amava-a mais do que a qualquer outra coisa e desejava ansiosamente recuperar a sua confiança.
Cannon Point surgiu diante dos seus olhos. Michael parou junto ao portão de segurança, baixou o vidro e digitou o código. O portão abriu e viu acenderem-se as luzes na casa do caseiro. Michael conduziu devagar pelo acesso de cascalho. Um grupo de veados de cauda branca, a pastar na erva morta do extenso relvado dos Cannon, olhou para cima e fitou Michael cautelosamente. Viu um raio de luz e ouviu cães a ladrar. Era apenas Charlie, o caseiro, a caminhar na sua direção, com os retrievers a latirem à volta dos seus tornozelos.
Michael desligou o motor e saiu do carro. Acenderam-se luzes na casa principal e a porta abriu de rompante. Viu Elizabeth emoldurada pela luz, envolta num dos velhos casacos do senador. Saiu para a rua, observando-o, com os braços cruzados sob os seios. O vento soprou-lhe o cabelo sobre o rosto. Depois deu alguns passos cuidadosos até junto dele e aninhou-se contra o seu corpo. - Nunca mais volte a me deixar, Michael.
- Não volto - prometeu. - Meu Deus, Elizabeth, lamento tanto.
- Quero conversar. Quero que me conte tudo.
- Eu vou contar tudo, Elizabeth. Há coisas que precisa saber.
Conversaram durante horas. Elizabeth sentou-se na cama, o queixo apoiado nos joelhos, brincando com um Benson Hedges por acender. Michael andava de um lado para o outro, ora sentando-se ao lado dela, ora olhando pela janela, para as águas do Sound. Fiel à sua palavra, contou-lhe tudo. Sentiu a tensão diminuir com a revelação de cada segredo. Desejou nunca lhe ter escondido nada desde o início. Sempre dissera a si próprio que era para proteção de Elizabeth, mas agora apercebia-se de que isso era apenas parte da verdade. Tivera uma vida de segredos e de mentiras durante tanto tempo, que não conhecia outra forma de viver. O sigilo era como uma doença, uma maleita. O pai apanhara-a e dera com a mãe em louca. Michael deveria ter evitado cometer os mesmos erros.
Depois de terminar, Elizabeth ficou calada durante muito tempo.
- O que queres de mim? - perguntou finalmente.
- Perdão - respondeu ele. - Perdão e compreensão.
- Tens isso, Michael. - Voltou a colocar o cigarro por acender dentro do maço.
- O que vai acontecer amanhã em Langley?
- Provavelmente vão pôr-me à frente uma quarenta e cinco carregada.
- De que estás a falar?
- Vou estar metido em grandes sarilhos. Posso não sobreviver.
- Não brinques comigo, Michael.
- Não há muito trabalho por aí para espiões caídos em desgraça.
Não precisamos do dinheiro. Podes tirar uns dias de licença e fazer alguma coisa normal durante o resto da vida. - Viu no rosto dele o impacto das suas palavras e disse: - Meu Deus, Michael, desculpa. Não estava a falar a sério. - Só há uma coisa que tenho de fazer antes de me vir embora. Quero saber o que realmente aconteceu àquele avião. Quero a verdade.
- E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, certo, Michael?
- Qualquer coisa assim.
- Desapareceu?
- Quem é que desapareceu?
- Sarah. Desapareceu?
- Nunca esteve lá, para começar.
- Muito inteligente, Michael, mas responde minha pergunta.
- Às vezes penso no que aconteceu. Mas não a amo, Elizabeth, e não desejo que ela estivesse deitada a meu lado no teu lugar.
Uma lágrima rolou-lhe pelo rosto. Ela limpou-a com força e disse:
- Anda, Michael. Vem para a cama.
Deixou-se ficar nos braços dele durante muito tempo, a chorar. Michael abraçou-a até que ela parou de soluçar. Olhou para o marido, o rosto molhado, e perguntou:
- Importas-te que eu te fale um bocadinho sobre o meu dia agora, querido?
- Adorava ouvir-te falar sobre o teu dia.
- Quatro ovos fertilizados. Implantaram esta manhã. Tenho de descansar uns dias. Depois vão me fazer um teste de gravidez para ver se deu certo.
Colocou a palma da mão na barriga dela. Elizabeth beijou-o nos lábios.
- Michael Osbourne, é a primeira vez que te vejo sorrir em semanas.
- É a primeira boa notícia que tenho em semanas.
Passou-lhe um dedo pelo cabelo.
- Virão atrás de você?
- Não sei. Se for embora, já não represento ameaça para eles.
- Vai sair amanhã? Por mim?
- Não me parece que tenha escolha.
- E a verdade vos libertará - disse ela. - Amém.
CHIPRE
O pequeno jato Gulfstream aterrou na pista isolada, os motores a gemer na escuridão. O piloto chamava-se Roger Stephens, um antigo oficial da Royal Navy's Fleet Air Arm, condecorado na Guerra das Malvinas. Agora trabalhava para a Seção de Transportes da Sociedade. Ao fazer mecanicamente as verificações pré-voo, Stephens não possuía uma informação crucial: o plano de voo. Os passageiros, um homem e uma mulher, deveriam dar-lho a bordo. Contudo, partiu do princípio de que seria um voo longo, pois tinha recebido ordens para atestar o depósito.
Trinta minutos depois, um Range Rover preto entrou na pista e avançou em direção ao Gulfstream a toda a velocidade, com os faróis apagados. Parou junto das escadas, largou duas pessoas e afastou-se rapidamente. Stephens executara várias missões para a Sociedade, pelas quais foi bem compensado, e conhecia as regras. Não devia olhar para os rostos dos passageiros, nem falar com eles. O acordo estava bem para Stephens. A Sociedade e os homens que a ela pertenciam não eram farinha que se cheirasse e ele queria ter o menos possível a ver com eles. Os passageiros entraram no avião e sentaram-se nos seus lugares. Uma mochila de nylon preta fora-lhes deixada a bordo e o frigorífico estava bem abastecido com comida e vinho. Stephens ouviu o som de um fecho de correr, o estalido metálico de um atirador experiente a verificar o funcionamento de uma arma automática, o estouro de uma rolha de champanhe, o murmúrio de uma mulher a falar num francês com sotaque alemão.
Um instante depois, o homem entrou no cockpit e colocou-se atrás de Stephens.
- O plano de voo - disse, simplesmente.
Falou em inglês, com um ligeiro sotaque que Stephens não foi capaz de identificar. O plano de voo foi-lhe atirado para a frente dos olhos, juntamente com uma Beretta com silênciador. Stephens pegou no plano de voo.
- Permaneça no cockpit e não olhe para nenhum de nós - avisou Delaroche. - Se olhar para nós, eu mato-o e aterro eu próprio o avião. Entendeu? Stephens aquiesceu. Sentiu um arrepio pela espinha. Delaroche saiu do cockpit e sentou-se no banco. Stephens estendeu o braço e, sem se virar, fechou a porta do cockpit.
Momentos depois, os motores começaram a funcionar e o Gulfstream descolou para a noite mediterrânica.
SEDE DA CIA, LANGLEY, VIRGÍNIA
Michael sempre pensou que os ambientalistas teriam um dia em cheio no gabinete de Monica Tyler. Situado no sétimo andar era amplo e arejado, com vista para as árvores ao longo do rio. Monica escarnecera da ideia de decorar o seu covil com mobiliário do governo e trouxera o seu do escritório de Nova York: uma grande secretária de mogno, arquivos de mogno, estantes de mogno, e uma mesa de reuniões de mogno, rodeada por confortáveis cadeiras de pele. Viam-se adornos de marfim e de prata por aqui e por ali, e belos tapetes persas cobriam a quase totalidade da feia alcatifa azul-acinzentada do governo. Uma parede era exclusivamente dedicada às fotografias de Monica com pessoas famosas: Monica com James Beckwith, Monica com o Diretor Ronald Clark, Monica com um ator famoso, Monica com a princesa Diana. No mundo da espionagem notoriamente avesso às câmaras, Monica era uma autêntica miúda de capa de revistas. Ao entrar na sala, Michael sentiu o aroma do café acabado de fazer (um requintado love italiano ou francês) e, vinda de algures, ouviu uma calma música sinfônica. Adrian Carter chegou a seguir, parecendo muito ressacado. Farejou o ar, sentiu o odor do café e franziu o cenho. Monica foi a última a chegar, com cinco minutos de atraso, como era seu hábito, seguida por Tweedledee e por Tweedledum, cada um segurando na mão uma pasta de pele.
Sentaram-se à mesa de reuniões, Monica no topo, com os factótuns à sua direita e Michael e Carter à esquerda. Uma secretária trouxe um tabuleiro com café e natas e um prato de bolinhos delicados.
Monica assinalou o início da ordem de trabalhos, batendo com a ponta da caneta de ouro sobre o tampo polido da mesa.
- Onde está o McManus? - perguntou Carter.
- Teve de ir à baixa, ao Edifício Hoover, devido a um assunto urgente - respondeu Monica, com um tom de voz inexpressivo.
- Não lhe parece que o representante do FBI do Centro de Contraterrorismo deveria estar presente nesta reunião?
- Tudo o que o FBI precisar saber será transmitido na altura devida - respondeu. - Este é um assunto da Agência e será tratado como tal. Carter, incapaz de esconder a fúria, roeu a unha do indicador. Monica olhou para Michael.
- Após o incidente no ferry, foram-lhe dadas ordens para que regressasse a Londres de imediato e se apresentasse na sede. O senhor desobedeceu a essa ordem e foi para o Cairo. Por quê?
- Julguei que podia descobrir informações valiosas a respeito de uma investigação em curso - respondeu Michael. - Não fui por ter vontade de ver as pirâmides.
- Não se arme em esperto. Já tem problemas que chegue. O que soube no Cairo? Michael colocou em cima da mesa as fotografias que lhe tinham sido dadas por Muhammad Awad e virou-as para que Monica pudesse vê-las.
- Aqui está Hassan Mahmoud, o homem que foi encontrado morto no navio-baleeiro, num encontro com um homem chamado Eric Stoltenberg, no Cairo, algumas semanas antes do ataque ao avião. Stoltenberg é um antigo elemento da Stasi. Trabalhou no departamento que apoiava a libertação nacional e grupos de guerrilheiros por todo o mundo. Agora é freelancer. Muhammad Awad, antes de ser alvejado no ferry, disse que Mahmoud se aliara a Stoltenberg.
- Dois homens a beber um café no Cairo não é algo que possa ser considerado prova de conspiração, Michael.
Michael controlou-se. Algures durante a ascensão para o topo, Monica aprendera a arte de fazer descarrilar o seu adversário a meio da linha de raciocínio com uma crítica negativa ou uma contradição superficial.
- Fui ao Cairo porque queria falar com Stoltenberg.
- Por que motivo não passou essa informação a Carter no Centro, e deixou que alguém da Estação do Cairo tratasse do assunto?
- Porque queria eu próprio tratar dele.
- Pelo menos é honesto. Continue.
- Quando cheguei ao Cairo, Stoltenberg já estava morto. - Michael deixou cair sobre a mesa uma fotografia do rosto desfeito de Stoltenberg. Carter desviou o olhar e estremeceu. O rosto de Monica permaneceu inalterado. - Foi atingido com três tiros no rosto, tal como Hassan Mahmoud, tal como Colin Yardley.
- E tal como Sarah Randolph.
Michael olhou para as mãos e depois para Monica.
- Sim - disse. - Tal como Sarah Randolph.
- E acredita que estas mortes são obra do mesmo homem?
- Tenho a certeza disso. É um antigo assassino do KGB, com o nome de código Outubro, que foi introduzido no Ocidente em jovem e aqui se arraigou. Agora é um assassino contratado, o assassino mais caro e mais proficiente do mundo.
- E foi Ivan Drozdov quem lhe disse isso?
- Exatamente.
- Qual é a sua teoria, Michael?
- Que Muhammad Awad estava a dizer a verdade: a Espada de Gaza não perpetrou este ataque. Foi obra de qualquer outro grupo ou indivíduo, executado em nome da Espada de Gaza. E agora o Outubro foi contratado por este grupo ou indivíduo para liquidar a equipe que levou a cabo o atentado. - Michael ficou calado por um breve instante e depois continuou: - E vai acabar por vir atrás de mim. - Importa-se de explicar?
- Penso que já tentaram me matar uma vez, a bordo do ferry, durante o encontro com Awad. Fracassaram. Acho que tentarão novamente e desta vez penso que a tarefa será entregue a Outubro.
Houve uma longa pausa. As conversas com Monica eram sempre interrompidas por momentos de silêncio, como se ela estivesse recebendo as deixas seguintes através de um ponto nos bastidores.
- Quem são eles, Michael? O que são? Onde estão? Como?
- Não sei. Alguém explodiu aquele avião e por alguma boa razão. Veja o que aconteceu. O processo de paz no Oriente Médio ruiu. Estão a entrar armas na região como nunca.
E um presidente ferido recuperou e foi reeleito, pensou Michael, e este país está prestes a construir um dispendioso sistema de defesa antimíssil. - Valha-me Deus, Michael! Certamente que não está sugerindo algum tipo de ligação.
- Não sei todas as respostas. Aquilo que estou a sugerir é que consideremos seriamente a possibilidade de outras forças estarem envolvidas no ataque e que alarguemos as nossas investigações.
Adrian Carter falou finalmente.
- Pensei que o Michael andasse longe da verdade quando me falou sobre isto pela primeira vez, mas agora julgo que me enganei. Creio que a Agência deve fazer o que o Michael está a sugerir.
Monica hesitou por um segundo.
- É com relutância que concordo, Michael, mas receio que a investigação vá avançar sem o seu envolvimento. - Concedeu-se um longo gole no café. - Descobriu informações potencialmente valiosas, mas os seus meios e métodos foram imperdoáveis e, sinceramente, impróprios para um agente dos serviços secretos com a sua experiência. Receio bem que não tenha outra alternativa a não ser suspendê-lo, até se conhecer o resultado de um inquérito disciplinar. Lamento, Michael, mas não me deixou outra escolha.
Michael não disse nada. Já estava à espera, mas ainda assim foi atravessado por uma onda de choque ao ouvir as palavras da boca de Monica.
- Em relação às suas preocupações sobre a sua segurança pessoal, pode estar certo de que a Agência tomará todas as providências necessárias para o proteger a si e à sua família.
Obrigado, Monica - agradeceu Michael, arrependendo-se de imediato. As garantias de Monica Tyler tinham a perenidade de um soneto escrito na superfície de um lago. ;
O carro com motorista que transportava Mitchell Elliott chegou à sua casa na cidade, em Califórnia Street, pouco depois das oito horas da noite. Fora um dia muito longo, a maior parte do qual passado em Capitol Hill, a adular. Elliott andava no mundo da política há tempo suficiente para perceber que, em Washington, a euforia tinha a tendência de se desvanecer rapidamente. Regra geral, as promessas feitas por presidentes acabavam por expirar, vítimas de milhares de golpes em comité. Só dali a muitos meses é que a defesa nacional antimíssil iria perante o Congresso para ser votada. Nessa altura, a tragédia do Voo 002 seria uma recordação longínqua e Beckwith um presidente inapto. Caberia a Elliott a tarefa de garantir que o programa não ia por água abaixo. Espalhara milhões de dólares por Capitol Hill. Metade dos membros do Congresso lhe devia. Ainda assim, sabia que seria necessária toda a sua influência e imaginação para se certificar de que o projeto chegava ao fim.
O carro parou junto à beira. Mark Calahan saiu e abriu a porta. Elliott entrou dentro de casa e subiu as escadas, dirigindo-se à biblioteca. Serviu-se de um copo de scotch e foi para o quarto. A porta da casa de banho abriu e uma mulher entrou no quarto, trazendo vestido um roupão de veludo, o cabelo úmido devido ao duche. Elliott ergueu o olhar.
- Olá, Monica, querida, conta-me o teu dia.
- Ele subestima-me - queixou-se, deitada ao lado dele, na cama. - Toma-me por idiota. Acha que é mais esperto do que eu e eu detesto pessoas que pensam que são mais espertas do que eu.
- Deixa-o te subestimar - aconselhou Elliott. - É um erro fatal, neste caso literalmente.
- Fui obrigada a reabrir a investigação hoje. Não tive escolha. Osbourne conseguiu descobrir muito do teu joguinho.
- Só arranhou a superfície, Monica. Sabe disso tão bem quanto eu. E, além disso, ele jamais entenderá tudo. Osbourne está encurralado numa casa de espelhos.
- Ele sabe a identidade dos teus assassinos e acha que sabe por que estão matando.
- Não sabe quem está por trás deles e nunca chegará a saber.
- Tive de lançar um alerta mundial em nome deles, Mitchell.
- Quem controla a distribuição em Langley?
- Sou eu que recebo tudo - disse ela. - Teoricamente, ninguém mais a verá. E mandei McManus dar um recado, por isso a agência está completamente às escuras.
- E Michael Osbourne nem vai ter tempo de dizer ai. Menina bonita, Monica. Acabou de ganhar um belo bônus.
- Na verdade, estava pensar em outra coisa.
DEZEMBRO
NORTE DO CANADÁ
O Gulfstream posicionou-se abaixo do radar sobre o Estreito de Davis e aterrou numa estrada remota, iluminada por foguetes de sinalização, ao longo das praias orientais de Hudson Bay. Astrid e Delaroche desceram as escadas, Delaroche com a mochila de nylon a tiracolo, Astrid com as mãos sobre o rosto para se proteger do ar cruel do Árctico. Stephens não chegou a desligar os motores. Assim que Astrid e Delaroche se afastaram, fez novamente o avião deslizar pela estrada e o Gulfstream descolou em direção à límpida manhã canadiana. Um Range Rover preto aguardava-os na beira da estrada, cheio de equipamento para o tempo frio (calçado de neve, mochilas, parkas e comida desidratada) e um maço de instruções de viagem detalhadas. Entraram e fecharam as portas, deixando o ar frio lá fora. Delaroche deu à chave e o motor roncou, tentou arrancar e depois parou. Delaroche sentiu um aperto no coração. O avião desaparecera. Estavam completamente sozinhos. Se o carro não funcionasse, não conseguiriam sobreviver por muito tempo.
Deu mais uma vez à chave e, dessa vez, o motor pegou. Astrid, tipicamente alemã por um instante, disse:
- Graças a Deus.
- Pensava que eras uma boa ateia comunista - aventou Delaroche.
- Cale-se e liga o aquecimento.
Fez o que ela pediu. Depois abriu o maço e tentou ler as instruções, mas não lhe valeu de nada. Retirou uns óculos de leitura em forma de meia-lua do bolso do peito do casaco e colocou-os.
- Nunca te vi usar isso antes, Jean-Paul.
- Não gosto de usá-los na frente das pessoas, mas às vezes não posso evitar.
- Parece um professor, em vez de um assassino profissional.
- É essa a ideia, meu amor.
- Como é que mata pessoas tão bem, se não consegue ver?
- Porque estou atirando nelas, e não lendo-as. Se tivessem palavras escritas na testa, precisaria dos óculos.
- Por favor, Jean-Paul, dirija o maldito carro. Estou morrendo congelada.
- Tenho que saber para onde vou, antes de começar a viagem.
- Lê sempre as instruções antes?
Delaroche olhou-a com uma expressão zombeteira, como se considerasse a pergunta ligeiramente ofensiva.
- Claro que sim.
- É por isso que você é tão bom em tudo o que faz. Jean-Paul Delaroche, o homem metódico.
- Todos nós temos nossos defeitos - retorquiu, guardando o mapa. - Eu não ridicularizo os seus. - Engrenou a primeira no Range Rover.
- Para onde vamos? - perguntou Astrid.
- Para um lugar chamado Vermont. - É perto da nossa praia?
- Nem por isso.
Bolas - disse ela, fechando os olhos. - Acorda-me quando chegarmos.
WASHINGTON, D. C.
O primeiro dia de exílio de Michael foi terrível. Ao amanhecer, quando o despertador tocou, correu para o chuveiro e abriu a torneira antes de se aperceber de que não tinha sítio nenhum para onde ir. Desceu as escadas e entrou na cozinha, fez torradas e café para Elizabeth e levou-lhos. Ela tomou o pequeno-almoço na cama e leu o Post. Meia hora depois, Elizabeth saía pela porta principal, vestida para ir trabalhar com as suas duas pastas e os seus dois telemóveis. Michael ficou à janela, a acenar como um idiota, à medida que ela se afastava no Mercedes. Tudo o que precisava para completar o quadro era de um casaco de malha e de um cachimbo.
Acabou de ler o jornal. Tentou ler um livro mas não conseguia concentrar-se nas páginas. Tentou aproveitar o tempo verificando todas as fechaduras e substituindo as pilhas do sistema de alarme. Isso demorou vinte minutos. Maria, a empregada peruana, apareceu às dez horas e perseguiu-o de divisão em divisão com o aspirador industrial e o produto tóxico para os móveis.
- Está um dia lindo lá fora, Señor Miguel - disse ela, gritando-Ihe em espanhol sobre o troar do aspirador. Maria só falava com ele na sua língua nativa. - Devia sair e fazer alguma coisa, em vez de ficar enfiado em casa o dia todo. Michael percebeu que a sua própria empregada acabava de o pôr na rua. Subiu as escadas, vestiu roupa de treino de nylon, calçou tênis e voltou para o rés-do-chão. Maria enfiou-lhe um pedaço de papel na mão, uma lista de produtos de limpeza que precisava da loja. Ele meteu a lista no bolso e saiu para a Street.
Estava um dia quente para o início de Dezembro, o tipo de tarde que fazia sempre com que Michael pensasse que não havia bairro mais bonito do que Georgetown em qualquer lugar do mundo. O céu estava limpo, o ar fresco e suave, perfumado com fumo de madeira. A N Street estava coberta por uma camada de folhas outonais vermelhas e amarelas. Estalavam debaixo dos pés de Michael, enquanto ele corria calmamente ao longo do passeio de tijolo. Num gesto reflexo, olhou pelas janelas dos carros estacionados para ver se estava alguém lá dentro. Uma van com o nome de uma loja de produtos de cozinha da Virgínia estava estacionada à esquina. Mike memorizou o nome e o número de telefone.
Telefonaria mais tarde para se certificar de que o sítio era verdadeiro.
Correu encosta abaixo até a M Street e atravessou Key Bridge. O vento soprava forte na ponte, criando pequenas ondulações na superfície do rio, lá em baixo. Era como se fossem dois rios diferentes. À direita de Michael, um rio selvagem estendia-se para norte. À sua esquerda, jazia a zona ribeirinha de Washington: o complexo Harbor Place, o Watergate, o Centro Kennedy, mais adiante. Ao chegar ao lado do rio de Virgínia, olhou por cima do ombro em busca de algum sinal de estar a ser observado. Um homem de constituição débil com um chapéu de basebol de Georgetown encontrava-se cem metros atrás de si.
Michael baixou a cabeça e correu mais depressa, passando por Roosevelt Island, através da relva ao longo da George Washington Parkway. Avançou até a Memorial Bridge e olhou por cima do ombro enquanto descia a alameda. O homem com o chapéu de basebol ainda ali estava. Michael parou e fez alguns exercícios de alongamento, olhando da ponte para o caminho lá em baixo. O homem de chapéu continuou a correr para sul, ao longo do rio, em direção ao National Airport. Michael endireitou-se e continuou a correr.
Durante os vinte minutos seguintes, viu seis homens de boné e três homens que pensou poderem ser Outubro. Sabia que estava nervoso. Correu velozmente durante o resto do caminho de volta a Georgetown. Parou no Booeymongers, uma loja de sanduíches popular entre os alunos universitários e pediu um café para levar. Bebeu-o enquanto percorria a N Street e entrou em casa. Tomou uma ducha, mudou de roupa e saiu. Do carro, telefonou a Elizabeth para o escritório. - Vou a Langley - disse-lhe. - Tenho uns assuntos domésticos para tratar. - Houve alguns segundos de silêncio na linha e Michael continuou: - Não te preocupes, Elizabeth, não perderia esta tarde por nada deste mundo.
- Obrigada, Michael.
- Até daqui a algumas horas.
Michael atravessou mais uma vez Key Bridge e virou para a George Washington Parkway. Fizera aquele percurso milhares de vezes, mas agora, ao dirigir-se a Langley para limpar a sua secretária, viu tudo como se fosse a primeira vez. Havia choupos gigantes, riachos que jorravam das colinas rochosas da Virgínia, precipícios íngremes com vista para o Potomac.
Na entrada principal, o guarda digitou a identificação de Michael, franziu o sobrolho e disse-lhe para passar. Enquanto atravessava os corredores severamente iluminados em direção ao CTC, Michael sentia-se como um leproso. Ninguém lhe dirigiu a palavra, ninguém olhou para ele. Os serviços secretos não são mais do que diques altamente organizadas. Quando um elemento contrai uma doença, os outros permanecem afastados, não vão apanhá-la também. O curral estava sossegado quando Michael entrou pela porta e se dirigiu à secretária. Durante uma hora, selecionou o conteúdo das gavetas, separando o pessoal do oficial. Uma semana antes, fora aplaudido pela sua ação em Heathrow. Agora sentia-se como um avançado que acabara de falhar o golo decisivo. De vez em quando, aparecia alguém que lhe punha a mão no ombro e se afastava rapidamente. Mas ninguém falou com ele.
Quando se preparava para sair, Adrian Carter espreitou e fez sinal a Michael para que entrasse no seu gabinete. Entregou-lhe um embrulho com uma fita. - Pensava que era apenas uma suspensão a aguardar o inquérito - disse Michael, aceitando o presente.
E é, mas de qualquer forma queria dar-te isto - respondeu Carter. Os olhos baixos faziam-no parecer mais taciturno do que nunca. - Abre-o em casa. Algumas pessoas por aqui poderiam não entender a piada.
Michael apertou-lhe a mão.
- Obrigado por tudo, Adrian. Nos vemos por aí.
- Pois - respondeu Carter. - E, Michael, tem cuidado com você. Michael saiu e dirigiu-se ao carro no estacionamento.
Atirou o presente de Carter para o porta-bagagens, entrou e arrancou. Ao passar pelos portões, interrogou-se se alguma vez voltaria.
Michael foi ter com Elizabeth ao Georgetown University Medical Center. Deixou o Jaguar com o arrumador e foi de elevador até o consultório do médico. Quando chegou à sala de espera não havia sinais de Elizabeth. Por um instante receou ter faltado à consulta mas, logo em seguida, ela entrou pela porta, de pastas na mão, e beijou-o na face.
Uma enfermeira acompanhou-os à sala de observação e deixou uma bata em cima da mesa. Elizabeth desabotoou a blusa e a saia. Olhou para cima e viu que Michael a fitava.
- Fecha os olhos.
- Na verdade, estava a pensar trancar a porta.
- Animal.
- Obrigado.
Elizabeth acabou de se despir, enfiou a bata e sentou-se na mesa de observação.
Michael brincava com as saliências da máquina de sonograma.
- Importas-te de parar com isso?
- Desculpa, só estou um pouco nervoso.
O médico entrou na sala. A Michael fazia lembrar Carter: ensonado, desgrenhado, uma expressão de tédio eterno no rosto. Franziu o sobrolho ao ler a ficha de Elizabeth, como que dividido entre mahi mahi e salmão grelhado.
- Os resultados beta estão muito bons - indicou. - Na verdade, estão um pouco altos. Vamos dar uma vista de olhos com a eco grafia.
Levantou a bata de Elizabeth e cobriu-lhe o abdômen com um gel lubrificante. Depois pressionou-lhe a sonda do sonograma contra a pele e começou a movimentá-lo para a frente e para trás.
- Aqui está - declarou, sorrindo pela primeira vez. - Senhoras e senhores, aquilo está com muito bom aspecto.
Elizabeth estava radiante. Estendeu o braço para Michael e agarrou-lhe a mão com força.
O médico manipulou a sonda mais um instante.
- E aqui está um segundo saco com muito bom aspeto.
- Valha-me Deus - exclamou Michael.
O médico desligou a máquina.
- Vista-se e vá para o consultório. Temos de conversar sobre algumas coisas. E, desde já, parabéns.
- Pelo menos não vamos ter que comprar uma casa maior - disse Michael, seguindo Elizabeth até o quarto no primeiro andar. - Sempre achei que uma casa com seis quartos era grande demais só para nós dois.
- Michael, para de falar assim. Tenho quarenta anos. Já estou para lá da fase de risco elevado. Podem acontecer muitas coisas.
Deitou-se na cama. - Estou morrendo de fome.
Michael deitou-se a seu lado.
- Não consigo tirar da cabeça sua imagem cheia de lubrificante.
Beijou-o.
- Vai embora. Ouviu o que o médico disse. Tenho de ficar deitada e descansar por alguns dias. Neste momento, estou na hora mais vulnerável.
Ele retribuiu o beijo. - Não vou discutir isso.
- Vai lá embaixo e me faz uma sanduíche.
Michael levantou-se da cama e foi até a cozinha. Fez-lhe sanduíche de peru e queijo suíço e serviu um copo de suco de laranja. Colocou tudo numa bandeja e levou para ela.
- Acho que me habituaria a isso. - Elizabeth mordeu o sanduíche. - Como correram as coisas no trabalho hoje?
- É óbvio que fui declarado intocável.
- Foi assim tão ruim?
- Pior ainda.
- Quem te deu isso? - perguntou ela, apontando para o embrulho.
- Carter.
- Não vais abrir?
- Achei que podia viver sem outro conjunto de canetas Cross.
- Me dá aqui - pediu ela, rasgando o papel enquanto mastigava um pedaço enorme do sanduíche. Por baixo do papel de embrulho estava uma caixa rectangular e, dentro dela, um maço de documentos com o timbre ULTRASSECRETO.
- Michael, acho que é melhor dares uma vista de olhos nisto avisou Elizabeth. Atirou-o a Michael, que folheou as páginas rapidamente.
- O que é?
Olhou para Elizabeth. - É o dossiê da CIA sobre um assassino da KGB com nome de código de Outubro.
FRONTEIRA ESTADOS UNIDOS-CANADÁ
Delaroche esperou pela luz da alvorada. Encontrara um local isolado na floresta, bastante distante da auto-estrada a sul de Montreal, a cerca de cinco quilômetros da fronteira. Astrid dormia a seu lado, no banco traseiro do Range Rover., tapada com um pesado cobertor de lã, o corpo enroscado para se proteger do frio. Implorara a Delaroche que, de vez em quando, ligasse o aquecimento, mas ele recusou, pois queria silêncio. Tocou-lhe nas mãos enquanto ela dormia. Estavam geladas.
Às seis e meia levantou-se, serviu-se de café de um termo e preparou uma grande tigela de papas de aveia. Astrid surgiu dez minutos depois, envolta numa parka e com um chapéu de lã.
- Serve-me um pouco de café, Jean-Paul - pediu, segurando o mingau de aveia e comendo o que restava.
Delaroche colocou aquilo de que necessitavam em duas pequenas mochilas. Entregou a mais leve a Astrid e pôs a outra ao ombro. Colocou a Beretta na cintura das calças, à frente. Revistou rapidamente o veículo de uma ponta à outra, para se certificar de que não tinham deixado nada que pudesse identificá-los. O Range Rover seria deixado para trás. Estaria outro à espera deles no lado americano da fronteira.
Caminharam durante uma hora pelas arestas montanhosas acima de Lake Champlain. Poderiam ter feito a travessia permanecendo junto à margem gelada do lago, mas Delaroche pensava que ficariam demasiado expostos. Dois pares de sapatos de neve tinham ficado no
Range Rover, mas Delaroche julgou ser melhor usarem apenas botas de caminhada, uma vez que o solo jazia poucos centímetros abaixo da neve congelada. Astrid subia e descia as encostas e atravessava o arvoredo denso com grande esforço. Era ligeiramente desajeitada e inábil na melhor das circunstâncias. O corpo longo era completamente inadequado aos rigores das caminhadas na montanha em pleno Inverno. Chegou a escorregar por uma encosta abaixo e acabou por parar de barriga para cima, com as pernas estateladas de encontro a uma árvore. Delaroche não tinha a certeza de quando exatamente tinham deixado o Canadá e entrado nos Estados Unidos. Não existiam quaisquer delimitações fronteiriças, quaisquer vedações, qualquer vigilância eletrônica visível, fosse de que espécie fosse. Quem o contratara escolhera bem o local. Delaroche recordou-se de uma noite, há muito tempo, era ainda jovem, em que entrara no Ocidente, da Checoslováquia para a Áustria, acompanhado por dois agentes do KGB. Lembrava-se da noite morna, dos arcos voltaicos e do arame farpado, do fedor intenso a estrume no ar. Lembrava-se de erguer a arma e de matar os companheiros. Naquele momento, a caminhar pela manhã gelada do Vermont, fechou os olhos e pensou nisso, nas primeiras mortes.
Agira segundo as ordens de Vladimir. Descrever Vladimir como sendo o seu agente de casos seria um eufemismo. Vladimir era o seu mundo. Vladimir era tudo para Delaroche: professor, padre, algoz, pai. Ensinou-o a ler e a escrever. Ensinou-lhe línguas e história. Ensinou-o a ser espião e a matar. Quando chegou a altura de ir para o Ocidente, Vladimir entregou Delaroche a Arbatov, da mesma forma que um pai confia um filho a um familiar. A última ordem de Vladimir foi que matasse os seus acompanhantes. Esse ato instilou algo muito importante em Delaroche: nunca confiaria em ninguém, sobretudo em alguém do seu próprio serviço. Quando cresceu, acabou por perceber que fora exatamente isso que Vladimir tivera em mente.
O terreno suavizou-se à medida que desceram pela aresta. Delaroche, utilizando um mapa e um compasso, guiou-os até os arredores de uma aldeia chamada Highgate Springs, três quilômetros a sul da fronteira. O segundo Range Rover esperava-os, parado junto a uns pinheiros que orlavam um campo de milho coberto de neve. Delaroche colocou o equipamento na parte de trás e entraram no carro. Desta vez, o motor pegou de primeira.
Delaroche conduziu cuidadosamente ao longo da estrada gelada de duas vias. Astrid, exausta devido à caminhada, entrou de imediato num sono profundo e sem sonhos. Quarenta minutos mais tarde, Delaroche chegou à Interstate 89 e rumou a sul.
WASHINGTON, D. C.
- Por que Adrian te mentiria sobre a existência do Outubro?
A pergunta de Elizabeth soava estranha a Michael. Era como uma criança a fazer perguntas sobre sexo pela primeira vez. A nova abertura entre eles era-lhe estranha e sentia-se constrangido a discutir assuntos da Agência com a esposa. Mesmo assim, gostava. Elizabeth, com o seu inteleto de advogada e natureza reservada, teria dado uma boa agente dos serviços secretos, se não tivesse optado pela advocacia.
- Todos os serviços secretos assentam no conceito de necessidade de saber. Poderia dizer-se que eu não precisava de saber da existência do Outubro e, logo, tal nunca me foi dito.
- Mas, Michael, ele assassinou a Sarah à tua frente. Se devia ser dada autorização a alguém para ver o que a Agência tinha sobre ele, essa pessoa serias tu.
- Bem visto, mas está sempre a ser escondida informação dos agentes dos serviços secretos pelas mais variadíssimas razões.
- A União Soviética está morta e enterrada há séculos. Por que motivo o dossiê dele continua a ser tão restrito?
- Nos serviços secretos, renunciamos devagar aos nossos mortos, Elizabeth. Não há nada de que um serviço secreto mais goste do que de um bom monte de segredos inúteis.
- Talvez alguém quisesse que fosse confidencial.
- Já pensei nessa possibilidade.
Michael parou em frente ao edifício do Washington Post, na 1st Street. Tom Logan, o editor de Susanna Dayton, pedira para se encontrar com Elizabeth. Michael tencionara esperar no carro, mas agora dizia: - Importa-se que vá com você?
- De maneira nenhuma, mas temos que correr. Estamos, atrasados.
- Onde ficaram de se encontrar?
- No escritório dele. Por quê?
- Não sou grande apreciador de espaços fechados, só isso.
- Michael, não estamos em Berlim Leste. Para com isso.
Mas Michael já tinha o celular na mão.
- Qual é o ramal dele?
- Cinquenta e seis oitenta e quatro.
O telefone tocou e a secretária de Logan atendeu.
- Fala Michael Osbourne. Posso falar com o senhor Logan, por favor?
Logan atendeu.
- Olá, Mike - cumprimentou. - Elizabeth e eu estamos aqui embaixo. Importa-se que falemos em outro lugar?
- Claro que não.
- Estamos na Fifteenth Street, Jaguar metalizado.
- Estou aí em cinco minutos.
Michael voltou a guardar o celular.
- Qual é o problema? - quis saber Elizabeth.
- Sabe aquela sensação de que alguém está te observando?
- Claro.
- Estou tendo neste momento. Não consigo vê-lo, mas sei que anda por aí. - Michael fitou o espelho retrovisor por um instante. - Tenho bons instintos - declarou, num tom de voz distante - e confio sempre nos meus instintos.
Cinco minutos depois, Logan saiu do edifício do Post. Era alto e calvo e o vento assolava o contorno de cabelo grisalho demasiado comprido que lhe orlava a cabeça. Não vestia sobretudo, apenas tinha colocado um cachecol vermelho enrolado em volta do pescoço fino, e tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça cinza de flanela amarrotada. Osbourne esticou o braço e abriu a porta traseira. Logan entrou no carro.
- Meu Deus, adoro o tempo nesta cidade. Vinte graus ontem e quatro hoje - queixou-se.
Michael carregou com força no acelerador e o Jaguar mergulhou no trânsito intenso da baixa de Washington. Logan pôs o cinto de segurança e agarrou-se ao apoio para o braço.
- Qual é a sua profissão, Mike?
- Vendo equipamento de informática a grandes clientes no estrangeiro.
- Ah, parece interessante.
Michael virou à esquerda na M Street e acelerou em direção a oeste, atravessando a baixa. Virou à direita em New Hampshire, contornou Dupont Circle e voou para ocidente ao longo da Massachusetts Avenue. Circulou habilmente por entre o trânsito e passou mais tempo a olhar para o espelho retrovisor do que para a estrada à sua frente.
Por essa altura, Logan quase que arrancara o apoio para o braço na porta traseira.
- Não percebi o nome da empresa para a qual trabalha, Mike.
- Isso é porque não lho disse. E prefiro que me chame Michael, tom.
Elizabeth virou-se e olhou demoradamente por cima do ombro.
- Alguma coisa? - perguntou.
- Se lá estava alguém, agora deixou de estar.
Michael abrandou e seguiu o ritmo do resto do trânsito. Logan soltou o apoio para o braço e descontraiu-se.
- Vendedor de computadores, uma ova - reclamou.
Nesse dia, a tarefa de vigiar Elizabeth Osbourne cabia a Henry Rodriguez, mas interrompeu a perseguição na M Street. Michael Osbourne, um antigo agente de campo, fora treinado para reconhecer vigilância física sofisticada. Alguém grosseiramente disfarçado de moço de entregas de comida chinesa podia ser localizado numa questão de minutos. Parou junto ao passeio e telefonou a Mark Calahan, para o posto de comando em Kalorama.
- Não há dúvidas de que ele estava a tentar despistar alguém justificou-se Rodriguez. - Se tentasse não perdê-lo de vista, ia ver-me.
- Boa jogada. Volta para Georgetown. Espera que eles apareçam.
Calahan entrou na biblioteca para dar as notícias a Mitchell Elliott. - O Logan deve precisar de ajuda - supôs Elliott. - Por que motivo iria encontrar-se com ela agora?
- Ela está em posição de causar danos graves. Talvez devamos apertar um pouco o cerco.
- Concordo - anuiu Elliott. - Acho que é altura de o Henry voltar ao trabalho. - Ele não vai gostar de voltar a ser porteiro. Acha que estamos a discriminá-lo por causa da sua origem hispânica.
- Se não gostar, ele que se queixe à comissão de igualdade de oportunidades.
Pago-lhe bem para fazer o que lhe mandam.
Calahan sorriu.
- Sim, senhor, senhor Elliott.
Michael encontrou um sítio para estacionar na East Capitol Street. Desencantou um corta-vento para tom Logan no porta-bagagens e passearam pelo Lincoln Park, sob um céu frio e plúmbeo.
- Quanto do material original de Susanna é que leu? - perguntou Logan.
- O suficiente para ficar a perceber - respondeu Elizabeth.
Deixe-me refrescar-lhe a memória - disse Logan. - No início dos anos 80, Beckwith quis sair da política. Mais especificamente, Anne Beckwith queria sair da política. Ela desejava que o marido voltasse ao setor privado, onde podia ganhar dinheiro à séria, antes que ficasse demasiado velho. Ambos tinham algum dinheiro da família, mas não muito. A Anne gosta de coisas boas. Desejava mais do que aquilo que podiam comprar com o salário do governo. Ele já cumprira dois mandatos no Senado e ela disse-lhe que era a política ou ela.
Dois corredores aproximaram-se deles por trás, cada um com um cão em esforço na ponta da trela. Logan, como um bom homem de campo, esperou que eles passassem antes de continuar a falar.
- Beckwith é muitas coisas, mas é totalmente dedicado a Anne e a última coisa que queria era perdê-la. Mas também gostava da política e não se sentia particularmente entusiasmado com a ideia de voltar a exercer advocacia. Certa noite, reuniu os seus conselheiros e os homens do dinheiro em São Francisco e deu-lhes a notícia. Nem é preciso dizer que Mitchell Elliott quase teve uma apoplexia. Ao longo dos anos, investira muito tempo e dinheiro em Beckwith e não queria que esse investimento fosse um desperdício. Na manhã seguinte telefonou a Anne e pediu-lhe que se encontrasse a sós com ele. Nessa noite, ao jantar, Anne retirou tudo o que disse e encorajou Beckwith a candidatar-se a governador. Ele ganhou, claro está, e o resto, como se diz, é história.
- O que aconteceu durante o encontro entre Anne Beckwith e Mitchell Elliott? - perguntou Michael.
- Elliott garantiu a Anne que se o marido continuasse na política, ambos seriam bem tratados a nível financeiro. A primeira fase era simples e, no esquema global das coisas, foram apenas uns trocos. Elliott fez com que os seus amigos poderosos do mundo dos negócios colocassem Anne em mais de uma dúzia de conselhos de administração. Ganhava dinheiro como consultora, embora tivesse pouca ou nenhuma experiência em negócios. Também investia de forma muito assisada, desconfiamos que com a ajuda de Elliott, e ganhou bom dinheiro nos mercados financeiros.
"No espaço de três anos, Anne conseguiu uma reserva substancial, alguns milhões de dólares. Gastou quase todo esse dinheiro na compra de várias centenas de hectares do que, na altura, era um deserto sem valor, a sul de San Diego. Dois anos mais tarde, um empreiteiro anunciou tencionar construir nos terrenos de Anne uma nova comunidade de condomínios, moradias familiares individuais, e um centro comercial. De repente, a terra sem valor passou a valer muito dinheiro.
- Mitchell Elliott estava por trás de tudo isso? - perguntou Elizabeth.
- Achamos que sim, mas não pudemos prová-lo, logo, não pudemos publicar. Elliott precisava de ajuda para conceber todos estes esquemas. Tinha grandes planos para Beckwith e não queria o nome dele manchado por um escândalo. Precisava de alguém que compreendesse Washington e, acima de tudo, que compreendesse como enganar as leis para o financiamento das campanhas. Assim, recorreu a um poderoso advogado de Washington.
- Samuel Braxton - disse Elizabeth.
- Exatamente - concordou Logan. - E, por fim, depois de anos de espera, o investimento de Elliott compensou. O sistema nacional de defesa antimíssil estava arruinado. Mas vinte e quatro horas depois do Voo Zero-Zero-Dois ter sido abatido, Elliott estava dentro da Casa Branca para uma reunião com Beckwith. A Susanna viu. Também viu Elliott e Vandenberg juntos mais tarde, nessa mesma noite. No dia seguinte, ao final da tarde, Beckwith apresenta-se perante o país, anuncia ataques contra a Espada de Gaza e propõe construir um sistema nacional de defesa antimíssil. De repente, Capitol Hill é todo a favor da defesa antimíssil. Andrew Sterling é encostado à parede porque declarou ser contra. Beckwith promove o concurso e a Alatron Defense Systems de Elliott está prestes a ganhar vários bilhões de dólares.
- Nesse caso, por que não avançou com a história da Susanna? - perguntou Michael.
- Como já disse a sua mulher, numa história como esta revemos, em conjunto com o repórter, cada fato, cada citação, cada pedaço de informação, antes de o artigo ser publicado. Neste caso, a repórter morreu e tivemos de começar do princípio, utilizando o artigo original como guia. Já conseguimos a maior parte, mas falta uma peça fundamental do puzzle. Não sei como, a Susanna conseguiu documentos financeiros e de bens imobiliários originais. Desconfiamos de que tinha uma fonte na Braxton, Allworth & Kettlemen que lhe forneceu os documentos. Já reviramos os arquivos da Susanna e não conseguimos encontrá-los. Tentamos arranjar a nossa própria fonte na firma, mas não fomos bem sucedidos.
Logan arrepiou-se e aconchegou mais o cachecol em volta do pescoço. - Elizabeth, é claro que pode responder a esta pergunta da forma como entender, mas tenho de fazer. Foi você a fonte destes documentos?
- Não - respondeu Elizabeth prontamente. - Susanna pediu e eu disse que não o faria. Disse que não era ético e que se soubessem que tinha sido eu minha carreira ficaria arruinada.
Logan hesitou por um instante e depois indagou:
- Faria isso agora?
- Não, não faria.
- Elizabeth, Samuel Braxton é um advogado desonesto e criminoso que está prestes a ser recompensado com a nomeação para Secretário de Estado. Quanto a si não sei, mas isso irrita-me e, como jornalista, gostaria de fazer alguma coisa. Mas não posso, não sem a sua ajuda. Se está preocupada com a sua proteção, garanto-lhe que não deixaremos que a coloquem em perigo, seja de que maneira for. Pode confiar em mim.
- Tom, vivi em Washington a maior parte da minha vida e aprendi uma coisa. Nesta cidade não se pode confiar em ninguém.
Logan parou de andar e virou-se para enfrentar Michael.
- Você não trabalha para uma empresa de informática que vende a clientes no estrangeiro. Trabalha no Centro de Antiterrorismo da Central Intelligence Agency. Foi o herói naquele ataque no Aeroporto de Heathrow e esteve envolvido no atentado a bomba no ferry do Canal da Mancha. Sei que pode achar difícil de acreditar, Michael, mas até mesmo pessoas na sua organização gostam de falar com jornalistas. Não publicamos a informação porque não queríamos que corresse perigo.
Logan virou-se e olhou para Elizabeth.
- Não farei nada que possa prejudicá-la. Pode confiar em mim, Elizabeth.
BETHESDA, MARYLAND
Delaroche sentiu-se nervoso pela primeira vez quando saiu da Interstate 95 e começou a dirigir-se à Capital Beltway. Percorrera de carro algumas das mais exigentes estradas da Europa (auto-estradas sinuosas em França e Itália, estradas de montanha terríveis nos Alpes e nos Pirenéus), mas nada o tinha preparado para a loucura da hora de ponta ao final da tarde em Washington. A viagem a partir de Vermont decorrera sem incidentes. O tempo estivera bom, exceto por uma breve tempestade de neve a norte do estado de Nova York e uns chuviscos gelados ao longo de New Jersey Turnpike. Quanto mais viajavam para sul, mais a temperatura subia, e a chuva parara em Filadélfia. Agora, o que Delaroche mais temia eram os outros condutores. Carros passavam por eles a cento e quarenta quilômetros por hora, cinquenta quilômetros acima do limite de velocidade, e o caminhão atrás estava a dois metros do seu para-choque.
Delaroche pensou em como seria fácil ter um acidente em circunstâncias como aquelas. Os resultados seriam desastrosos. Como era estrangeiro, a polícia iria querer ver o seu passaporte. Se o agente estivesse atento e soubesse alguma coisa de passaportes, notaria que o de Delaroche não continha qualquer visto de entrada. Provavelmente seria detido e interrogado pelas autoridades de imigração e pelo FBI. A sua identidade ruiria e ele seria preso, tudo por causa de um maluco qualquer que tentava chegar a casa vindo do trabalho.
Os carros à sua frente travaram de repente. O trânsito parou. Delaroche encontrou uma estação de rádio só com notícias e ouviu a atualização do trânsito. Algures à sua frente, um atrelado tinha capotado. O trânsito estava uma confusão ao longo de quilômetros.
Delaroche pensou na casa de Brélés. Pensou no mar a embater nas rochas e em si próprio a pedalar na bicicleta de corrida italiana ao longo das calmas estradas secundárias da Finistère. Devia ter estado a sonhar acordado, pois o homem no caminhão buzinou e agitou freneticamente os braços. O condutor mudou de faixa, colocou-se ao lado de Delaroche e fez um gesto obsceno com a mão.
- Por favor, Jean-Paul - disse Astrid. - Deixa-me ir buscar a minha pistola lá atrás e dar-lhe um tiro.
Trinta minutos depois aproximaram-se da cena do acidente. Um policial de Maryland encontrava-se no meio da estrada, fazendo sinal aos carros para que contornassem o caminhão capotado. Numa reação reflexa, Delaroche ficou tenso na presença de um policial. Os camiões dos bombeiros e as ambulâncias desapareceram atrás de si e o trânsito começou novamente a avançar. Delaroche saiu na Wisconsin Avenue e rumou para sul.
Acelerou através da baixa de Bethesda, passou pelas lojas luxuosas da Mazza Galleria, os pináculos altaneiros da Catedral Nacional. A Wisconsin Avenue ia dar a Georgetown. Pessoas às compras movimentavam-se com rapidez através do ar frio da noite e os bares e restaurantes começavam a encher-se. Virou à esquerda na M Street, avançou alguns quarteirões e virou para a entrada do Four Seasons Hotel.
Delaroche fez o registro e recusou a oferta do porteiro para o ajudar com as malas. Fechou a porta e deixaram-se cair os dois sobre a cama, exaustos pelas duas longas viagens de carro e pela caminhada para atravessar a fronteira. Delaroche acordou passadas duas horas, pediu café ao serviço de quartos e sentou-se em frente ao computador portátil. Enquanto Astrid dormia, abriu o dossiê de Michael Osbourne e começou a planear a sua morte.
WASHINGTON, D. C.
No fim da tarde, Elizabeth telefonou para o escritório de Max Lewis.
Como se sente? - perguntou ele sobre os papéis. Eram cinco da tarde e preparava-se para sair do escritório, razão pela qual Elizabeth telefonara a essa hora.
- Estou ótima, mas o médico diz que tenho que repousar o mais possível na próxima semana. Na verdade, é por isso que estou telefonando. Será que esta noite, quando for para casa, poderia me trazer alguns documentos?
- Claro. Do que precisa?
- Da pasta do caso McGregor. Está em cima da minha mesa.
- Para dizer a verdade, está guardada em seu arquivo. Hoje tomei a liberdade de arrumar sua mesa. Sinceramente, Elizabeth, não sei como você consegue trabalhar ali. Também joguei fora todos os maços de cigarro.
- Não se preocupe, deixei de fumar. Também acabou o Chardonnay na banheira depois do trabalho.
- Assim é que se fala - elogiou Max. - Estarei aí em quinze minutos. Precisa de mais alguma coisa? Quer que vá buscar sua roupa na lavanderia? Que vá comprar algo no Sutton Place? Dê as ordens, minha rainha.
- Só quero que traga o arquivo McGregor. Recompenso com comida e vinho.
- Nesse caso, estarei aí dentro de cinco minutos.
- Estou de papo para o ar na cama, por isso use sua chave.
- Sim, minha rainha.
Max desligou. Michael estava numa poltrona aos pés da cama, ouvindo a conversa no telefone sem fio. Olhou para Elizabeth e disse:
- Fantástico.
Max demorou mais de meia hora no meio do trânsito desde o escritório da firma na Connecticut Avenue até Georgetown. Enfiou a chave na fechadura dos Osbourne, abriu a porta e entrou para o hall de entrada.
- Elizabeth, sou eu - gritou.
- Olá, Max, sobe. Há vinho fresco no frigorífico. Vai buscar um copo e um saca-rolhas.
Fez o que lhe mandaram e subiu as escadas. Foi dar com Elizabeth esticada em cima da cama, rodeada por pilhas de processos e blocos de notas. - Meu Deus - exclamou. - Talvez deva vir trabalhar para aqui, em vez de ir para a baixa.
- Talvez não fosse má ideia.
Colocou os arquivos McGregor sobre a mesa-de-cabeceira e, instintivamente, começou a endireitar papéis e a organizar as coisas dela. Michael entrou no quarto.
- Olá, Michael, como está? - cumprimentou Max.
Michael não respondeu. - O que há? - perguntou Max.
Elizabeth tocou-lhe o braço.
- Max, temos que falar.
- Susanna veio me procurar depois que você disse não - explicou Max.
Estava sentado na cadeira do quarto, as pernas estendidas em cima do pufe. Michael abrira o vinho e Max bebeu metade da garrafa muito depressa. O choque inicial do confronto atenuara-se e agora estava descontraído e falando à vontade. - Ela pediu que a ajudasse. Pensei sobre o assunto e depois concordei em fazê-lo.
- Max, se tivesses sido apanhado, estaria despedido e provavelmente processado. As firmas de advocacia não podem tolerar roubo e violação do privilégio entre cliente e advogado. Deixa mal os clientes e faz com que seja muito difícil atrair novos.
- Estava disposto a correr o risco. Quando se está na minha posição, Elizabeth, há a tendência de não se pensar nas coisas a longo prazo.
- Não quero te julgar, Max, mas devia ter vindo falar comigo primeiro - admoestou-o Elizabeth. - Eu te contratei. Trabalha para mim. A firma teria caído em cima de mim com uma tonelada de tijolos.
- E o que me teria dito?
- Teria dito para não fazer.
- Foi por isso que não falei com você.
- Por que, Max? Por que ir atrás de Braxton daquela maneira?
Max olhou para Elizabeth como se considerasse a pergunta ofensiva.
- Por que Braxton? Porque ele é um idiota sujo e desonesto que está prestes a tornar-se secretário de Estado. Estou surpreso por me perguntar. Já ouvi a forma como ele fala com você nas reuniões dos sócios e ouvi a forma como ele fala de você quando não está presente.
Hesitou um momento, olhou para Michael e disse:
- Posso filar um? - Michael estendeu-lhe o maço e um isqueiro. Max fumou por um instante e bebeu mais vinho.
- Também é pessoal - admitiu, por fim. - Alguém disse a Braxton que eu era seropositivo. Por trás das tuas costas, ele andava a arranjar maneira de eu ser despedido, como uma das suas últimas ações antes de deixar a firma. Quis tornar as suas últimas semanas ali tão lixadas que ele não teria tempo para tratar de mim, e a Susanna deu-me a oportunidade de o fazer.
- Onde conseguiu os documentos? - quis saber Michael.
- Roubei uma das chaves do arquivo dele e fiz uma cópia. Nessa noite, fui ao escritório com a desculpa de ter trabalho para fazer. Entrei no arquivo, peguei os documentos e fui à casa da Susanna. Só lhe impus uma regra: ela não podia copiar os arquivos. Fiquei em casa dela toda a noite enquanto ela trabalhava. Depois fui para o escritório cedo e voltei a guardar os arquivos no mesmo lugar de onde tirei. Na verdade, foi muito fácil.
- Ainda tem a chave? - perguntou Elizabeth.
- Sim, pensei em jogá-la da Memorial Bridge, mas acabei por guardá-la.
- Ótimo.
- Por quê?
- Porque esta noite vamos lá buscar esses arquivos outra vez.
WASHINGTON, D. C.
Oficialmente, na Casa Branca o dia estava dado como encerrado, o que significava que o gabinete de imprensa não esperava mais notícias nesse dia e que o Presidente e a Primeira-dama não tinham quaisquer acontecimentos públicos, nem tencionavam sair da residência. Contudo, às oito horas um único sedan preto esgueirou-se pelo Portão Sul da Casa Branca e entrou no trânsito noturno da baixa de Washington.
Anne Beckwith estava sentada sozinha no banco traseiro. Não havia qualquer limusina presidencial à prova de bala, quaisquer veículos Chevy pretos de perseguição suburbana, qualquer escolta policial. Apenas um motorista da Casa Branca e um único agente dos Serviços Secretos sentado no banco do passageiro. Durante anos, Anne evadia-se desta forma da Casa Branca pelo menos uma vez por semana. Gostava de sair para o mundo real, como apreciava dizer. Para Anne, o mundo real não se encontrava muito distante da opulência da Mansão Oficial. Regra geral, fazia uma pequena viagem de carro até os enclaves abastados de Georgetown, ou Kalorama, ou Spring Valley para tomar uma bebida e jantar com velhos amigos ou aliados políticos importantes.
O carro dirigiu-se a norte, Connecticut Avenue acima, e virou para oeste, para a Massachusetts, depois de deixar o trânsito intenso de Dupont Circle. Momentos depois, virou para Califórnia Street e abrandou à porta da grande mansão de tijolo. A porta da garagem abriu e o sedan preto deslizou em silêncio para o seu interior.
O agente dos Serviços Secretos esperou que a porta da garagem se voltasse a fechar antes de sair do carro. Contornou o veículo por trás e abriu a porta da Primeira-dama. O anfitrião esperava-a quando saiu do carro. Beijou-lhe a face e disse:
- Olá, Mitchell, é um prazer vê-lo novamente.
Anne Beckwith não fora em busca de uma noite de conversa agradável e boa comida. Tratava-se de negócios. Aceitou um copo de vinho mas ignorou a bandeja de queijo e de patê que um dos autômatos de Elliott colocara sobre a mesa de apoio entre eles.
- Quero saber se a situação está sob controle - disse com frieza. - E, se não estiver, quero saber o que diabo anda fazendo para que fique sob controle. - Se a Susanna Dayton tivesse vivido para publicar aquele artigo, os estragos poderiam ter sido graves. O seu assassinato lamentável deu-nos algum tempo, mas não me parece que já estejamos seguros.
- Assassinato lamentável - repetiu Anne, um tom trocista na voz. - Por que o Post não publicou a história dela?
- Porque estão tentando reconfirmar tudo o que escreveu e ainda não conseguiram.
- E vão conseguir?
- Só se eu não puder evitar.
Anne Beckwith acendeu um cigarro e exalou um leve fio de fumaça por entre os lábios tensos.
- O que vai fazer para impedir que isso aconteça?
- Acho que seria imprudente se Anne tomasse conhecimento de tudo isto.
- Não me venha com besteira, Mitchell. Diga o que eu quero saber.
- Achamos que a melhor amiga de Susanna Dayton, uma advogada chamada Elizabeth Osbourne, está ajudando o Post.
- Não é a filha do Douglas Cannon?
- Sim, é.
- Cannon odeia o Jim. Estiveram juntos nas Forças Armadas. Cannon era o diretor e Jim o republicano responsável. No final, já mal se falavam.
Anne terminou o vinho.
- Não vai me oferecer outro copo? Da Califórnia, não é? Meu Deus, fazemos um vinho maravilhoso.
Elliott serviu-lhe mais vinho.
- Mitchell, estamos juntos nisso há muito tempo. Jim e eu lhe devemos muito. Tem sido muito generoso ao longo dos anos. Mas eu não vou permitir que isto prejudique Jim, seja de que maneira for. Ele fez sua última campanha. Agora não tem nada a perder, a não ser o lugar nos livros de história.
- Compreendo.
- Não me parece. Se isto vier a público da pior forma, usarei todo o poder e influência que tenho para me certificar de que é o senhor quem cai. Não vou deixar que Jim saia prejudicado e, neste momento, não quero saber de você para nada. Fiz-me entender?
Elliott bebeu o resto do scotch. Não gostava de ouvir um sermão de Anne Beckwith. Se não fosse a ganância e as inseguranças de Anne, Elliott nunca teria conseguido estabelecer a sua relação financeira especial com o marido dela. Era sempre Anne quem ditava as cartas, mesmo quando se tratava de corrupção. Fitou-a com frieza por um instante, depois assentiu e disse: - Sim, Anne, fez-se entender perfeitamente.
- Se esta coisa explodir, Jim vai sobreviver. Mas seu projeto antimíssil vai por água abaixo. Não será construído, ou então o contrato será concedido a uma empresa menos controvertida. O senhor estará acabado.
- Eu sei o que está em causa.
- Ótimo. - Levantou-se e pegou o casaco.
Mitchell Elliott permaneceu sentado. - Só quero fazer-lhe uma pergunta, Mitchell. As pessoas que mataram a jornalista foram as mesmas que abateram o avião?
Elliott olhou para ela, a perplexidade estampada no rosto. - De que diabos está falando?
- Responde a uma pergunta com outra pergunta. Mau sinal. Boa noite, querido. Oh, não se levante. Sou apenas a Primeira-Dama. Saio sozinha.
Elizabeth representou o papel de uma atarefada advogada de Washington regressando ao escritório para trabalhar até tarde: jeans, botas de cowboy, uma confortável blusa de algodão bege. Max Lewis vivia perto de Dupont Circle e sua roupa diária de trabalho refletia as tendências do bairro: jeans, mocassins de camurça preta, suéter de gola alta preta, casaco cinza-escuro. Os escritórios de advocacia da Braxton, Allworth & Kettlemen ficavam na esquina da Connecticut Avenue com a K Street. Michael esperou no carro. Elizabeth e Max entraram juntos no hall, identificaram-se ao segurança e foram de elevador até o andar.
O escritório de Elizabeth ficava na extremidade norte do piso, com vista para a Connecticut Avenue. Samuel Braxton era quem possuía o maior gabinete da firma, uma série de salas ao longo da esquina da Connecticut Avenue com a K Street, com uma vista magnífica da Casa Branca e do Washington Monument.
Elizabeth destrancou o seu gabinete acendeu as luzes e entrou. Falou com Max numa voz alta e clara. Queria que tudo parecesse normal. Max colocou mais papel na fotocopiadora e fez café. Elizabeth ouvia o zumbido distante de aspiradores vindo de algures no piso.
Pegou nas chaves e atravessou o corredor até o gabinete de Braxton. Deu uma batida suave, não obteve qualquer resposta e destrancou a porta com a chave duplicada. Entrou e fechou rapidamente a porta. Retirou uma pequena lanterna da mala e ligou-a.
Elizabeth estava no gabinete exterior, onde trabalhavam as duas secretárias de Braxton. O arquivo estava na outra ponta, do outro lado de uma porta pesada. Elizabeth trocou de chave e abriu a porta. Fechou-a e acendeu a luz. Max disse-lhe onde encontrar os arquivos de Elliott e Beckwith: na parede em frente, em cima à esquerda. Ela não chegava à prateleira de cima. As secretárias de Braxton guardavam ali um banquinho do gênero que existe nas bibliotecas para estas ocasiões. Levou o banco para o outro lado da sala, subiu para cima dele e começou a inspecionar os arquivos.
Examinou a fila inteira uma vez e não encontrou nada. Começou do princípio, obrigando-se a ir devagar mas, mais uma vez, não encontrou nada. Experimentou ver na prateleira abaixo, mas aconteceu a mesma coisa. Nada. Praguejou baixinho. Braxton retirara dali os arquivos. Elizabeth desceu do banco e dirigiu-se à porta. Ouviu sons no gabinete, do outro lado da porta: uma chave a ser enfiada numa fechadura, o clique de um interruptor, o arranhar de um carrinho de metal. Em seguida, ouviu o estalido de uma chave a ser violentamente empurrada para o interior da fechadura da porta que se encontrava a poucos metros dela. A fechadura cedeu e a porta abriu.
Elizabeth observou atentamente o homem que estava à sua frente e percebeu de imediato que algo de errado se passava. A maior parte do pessoal da limpeza eram indivíduos da América Central de origem índia, pequenos e de pele escura, que quase não falavam inglês. Aquele homem era alto, devia medir cerca de um metro e oitenta, e tinha pele clara. Era evidente que o cabelo escuro fora cortado e penteado por um profissional dispendioso. A bata era nova e não estava suja, e as unhas encontravam-se limpas. Contudo, foi o anel na mão esquerda que chamou a atenção de Elizabeth. Exibia as insígnias das Forças Especiais do Exército, os Green Berets.
- Posso ajudá-lo? - perguntou Elizabeth. Resolvendo tomar a iniciativa.
- Ouvi um barulho - respondeu o homem num inglês de pronúncia carregada. Elizabeth percebeu que ele estava a mentir, pois tivera muito cuidado para não fazer barulho algum.
- Porque não chamou a segurança? - ripostou ela. O homem encolheu os ombros. - Pensei em vir eu próprio dar uma vista de olhos primeiro, - disse. - Sabe, apanhar um ladrão, ser um grande herói, receber uma recompensa ou assim. Elizabeth olhou para a placa com o nome dele no macacão, e fez disso um grande alarde.
- É americano, Carlos?
Ele abanou a cabeça. - Sou do Equador.
- Onde arranjou esse anel?
- Na loja de penhores em Adams Morgan. Muy bonito, não acha?
- É lindo, Carlos. Agora, se me dá licença...
Passou por ele e entrou no escritório.
- Encontrou o procurava? - perguntou o homem, às costas dela.
- Na verdade, estava apenas arrumando uma coisa.
- Está bem. Boa noite, señora.
- Talvez estivesse dizendo a verdade - sugeriu Michael. - Talvez seja mesmo Carlos do Equador e tenha comprado o anel numa loja de penhores em Adams Morgan.
- Besteira - ripostou Elizabeth.
Max levara-os a um restaurante em Dupont Circle chamado The Childe Harold. Era popular entre jornalistas e jovens do pessoal do Congresso. Sentaram-se a uma mesa de canto no bar da cave. Elizabeth ansiava desesperadamente por um cigarro mas, em vez disso, roía as unhas.
- Nunca o vi antes - disse Max. - Mas isso não quer dizer grande coisa. As pessoas nestes empregos estão sempre indo e vindo.
- Nunca o viu antes, Max, porque ele não é merda nenhuma de contínuo nenhum e não é Carlos nenhum da merda do Equador. Eu sei o que vi. - Olhou para Michael. - Lembra do que disse sobre aquela sensação que temos quando alguém nos observa? Bem, estou com essa sensação neste preciso momento.
- Ela não é idiota - relatou Henry Rodriguez pelo telefone. - É uma advogada importante. Tentei me safar. Fiz minha melhor imitação do Freddie Prinze de Chim and the Man, mas sei que ela desconfiou.
- Por que diabos estava usando o anel? - perguntou Calahan.
- Esqueci. Atire em mim.
- Não me dê ideia. Para onde eles foram?
- Para um restaurante chamado The Childe Harold. Twentieth Street, norte de Dupont Circle.
- E você, onde está?
- Na cabine telefônica do outro lado da Connecticut Avenue. Posso me aproximar mais.
- Fique aí. Mando alguém em cinco minutos.
Calahan desligou e olhou para Elliott. - Temos outro pequeno problema, senhor.
WASHINGTON, D. C.
Na manhã seguinte, Delaroche sentou-se num banco em Dupont Circle, de onde observou a multidão de mensageiros de bicicleta a tomar o seu café da manhã. Achava-os vagamente divertidos: a forma como se riam, diziam piadas e atiravam coisas uns aos outros. No entanto, não estava a observá-los simplesmente para passar o tempo. Prestou atenção à forma como se vestiam, os tipos de pastas que transportavam, a forma como falavam. Pouco depois das nove, os mensageiros começaram a receber chamadas pelos rádios e cada um deles montou com relutância uma bicicleta e pedalou para o trabalho.
Delaroche esperou até que o último desaparecesse de vista, depois fez sinal a um táxi e deu uma morada ao motorista.
O táxi levou Delaroche ao longo da M Street até Georgetown e depositou-o na parte inferior da Key Bridge. Entrou na loja. Um empregado perguntou se precisava de ajuda e Delaroche abanou a cabeça. Começou com a roupa. Escolheu as blusas e os calções mais vistosos e mais coloridos que conseguiu encontrar. Em seguida, escolheu sapatos, meias, um capacete e uma mochila. Levou tudo para a parte da frente da loja e empilhou as coisas em cima do balcão. - Mais alguma coisa? - perguntou o empregado. Delaroche apontou para a bicicleta de montanha mais cara da loja. O empregado foi buscá-la e levou-a até o balcão.
- Para onde a leva? - perguntou Delaroche calmamente, consciente do seu inglês carregado.
Temos de verificar a bicicleta. Vai demorar uma hora, mais ou menos.
- Encha os pneus e dê-ma.
- Como queira. Vai pagar em dinheiro ou com cartão? Mas Delaroche já estava a contar notas de cem dólares.
Delaroche passou a hora seguinte às compras na Wisconsin Avenue, em Georgetown. Numa loja de vestuário, comprou uma bandana para a cabeça, numa loja de eletrônica, um pequeno gravador a pilhas com receptores. Numa joalharia adquiriu várias correntes de ouro de mau gosto para o pescoço, furou as duas orelhas e pôs argolas.
Mudou de roupa na casa de banho de uma bomba de gasolina. Despiu a roupa e vestiu os calções de ciclista e a blusa de Inverno. Atou a bandana à cabeça e colocou as correntes de ouro ao pescoço. Prendeu o gravador ao cós dos calções e passou os receptores à volta do pescoço. Enfiou as roupas na mochila, juntamente com a Beretta com silênciador, e viu-se ao espelho. Faltava qualquer coisa. Colocou os óculos de sol Ray-Ban, os mesmos óculos que usara para matar o homem em Paris, e olhou mais uma vez para o reflexo. Agora estava bem. Saiu para a rua. Um homem com um casaco de couro estava prestes a roubar-lhe a bicicleta.
- Canalha - disse Delaroche, imitando o dialeto dos mensageiros em Dupont Circle -, a última coisa que quer é mexer na minha bicicleta.
- Ouve, calma. Estava só olhando - disse o homem, recuando rapidamente. - Paz e amor e essas mentiras todas.
Delaroche subiu na bicicleta e dirigiu-se à casa de Michael Osbourne.
Enquanto pedalava ao longo das ruas cobertas de folhas de East Georgetown, Delaroche reviu uma última vez o plano para matar Osbourne. Seria difícil acabar com ele. Era um homem casado sem quaisquer pontos fracos graves. Não sucumbiria a um avanço sexual da parte de Astrid. Era um agente profissional dos serviços secretos que passara muitos anos em situações perigosas.
Instintivamente, estaria sempre alerta. Delaroche pensou em limitar-se a bater à porta de Osbourne, sob o pretexto de ir entregar uma encomenda, e dar-lhe um tiro quando ele aparecesse. Mas Osbourne poderia reconhecer Delaroche, afinal de contas, ele estivera na Represa de Chelsea, e disparara primeiro. Pensou em tentar entrar na casa de Osbourne pela calada, mas decerto que uma casa grande e opulenta numa cidade assolada pelo crime como Washington se encontrava protegida por um sistema de segurança. Decidiu que teria de matá-lo de surpresa, algures a céu aberto, razão pela qual Delaroche estava vestido como um mensageiro de bicicleta.
A N Street apresentou a Delaroche o seu primeiro problema grave. Não havia lojas, nem cafés, nem cabines telefônicas, nenhum sítio onde Delaroche pudesse matar o tempo de forma discreta. Só se viam grandes casas de tijolo ao estilo federal, firmemente implantadas no passeio.
Delaroche aguardou na esquina da 33rd Street com a N Street, à porta de uma casa enorme com uma imponente sacada assente em pilares, a pensar sobre o que havia de fazer. Só tinha uma opção: andar para a frente e para trás na sua bicicleta pela N Street e esperar conseguir avistar Osbourne a entrar ou a sair de casa. Era uma situação estranha a Delaroche: sempre que possível, preferia matar estando exatamente no sítio certo, exatamente à hora certa. Mas não tinha outra opção.
Montou a bicicleta, pedalou em direção à 35th Street, deu meia volta e pedalou de volta à 33rd Street, observando a casa de Osbourne o mais atentamente possível.
Passados vinte minutos, um homem saiu de casa, vestindo roupa de corrida cinza e branca. Delaroche observou cuidadosamente o rosto. Era o mesmo rosto da imagem no arquivo. Era o mesmo rosto que vira naquela noite na Represa de Chelsea. Era Michael Osbourne.
Osbourne dobrou-se e esticou a parte de trás das pernas. Encostou-se a um poste e alongou os músculos da barriga das pernas. Delaroche, à espera a dois quarteirões de distância, viu os olhos de Osbourne passar em revista a rua e os carros estacionados.
Por fim, Osbourne pôs-se de pé e iniciou uma corrida ligeira. Virou à esquerda na 34th Street, à direita na M Street e dirigiu-se a Key
Bridge, em direção à Virgínia. Delaroche marcou o número de Astrid no Four Seasons e falou com ela, enquanto pedalava a um ritmo regular na esteira de Osbourne.
Michael alcançou o lado da Virgínia do Potomac e dirigiu-se para sul ao longo do Mount Vernon Trail. Tinha os músculos rígidos e doridos e o tempo frio do mês de Dezembro não estava a ajudar, mas estugou o passo e aumentou o ritmo e, passados alguns minutos de corrida rápida, sentiu o suor por baixo a roupa.
Era bom estar fora de casa. Carter telefonara naquela manhã e informara Michael de que Monica Tyler ordenara formalmente ao Departamento de Pessoal que desse início a uma investigação sobre a sua conduta. Elizabeth concordara finalmente em aceder à vontade do médico e estava a trabalhar a partir de casa. O quarto deles transformara-se num escritório de advogados, completado por Max Lewis. As nuvens abriram e um quente sol de Verão brilhou ao longo das margens do rio. Michael passou a entrada para a Roosevelt Island. Uma ponte de madeira estendia-se perante si, sobre vários metros de pântano e juncos. Michael aumentou o ritmo, os pés a martelar as tábuas da ponte. Era dia de semana e estava sozinho no trilho. Jogou um jogo consigo próprio, fazendo uma corrida imaginária. Começou a correr em sprint, impulsionando os braços e erguendo os joelhos. Contornou uma esquina e o final da ponte apareceu, a cerca de duzentos metros de distância.
Michael obrigou-se a correr ainda mais depressa. Os braços ardiam-lhe, as pernas pareciam um peso morto e respirava com dificuldade devido ao ar frio e a demasiados cigarros. Chegou ao fim da ponte, parou e virou-se para ver a extensão que tinha percorrido com a sua pequena corrida de velocidade. Só nessa altura viu o homem a pedalar na sua direção, montado numa bicicleta de montanha.
WASHINGTON, D. C.
Astrid Vogel telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para preparar o Range Rover. Saiu do quarto e foi de elevador até o hall. Trazia consigo uma mala e, no seu interior, estava uma Beretta com silênciador. O Range Rover encontrava-se sob a entrada coberta do hotel. Astrid deu ao camareiro o talão e uma nota de cinco dólares. Entrou para o carro e afastou-se. Delaroche tinha-a obrigado a ficar acordada durante metade da noite a decorar mapas. Cinco minutos depois, estacionava de marcha-atrás a alguns quarteirões de distância, em N Street. Desligou o motor, acendeu um cigarro e esperou pelo telefonema de Delaroche.
Michael retesou-se à medida que a adrenalina disparava pelo seu corpo. De repente, os braços e as pernas já não lhe doíam e a respiração saía-lhe em sopros curtos e rápidos. Fitou o homem que se aproximava de bicicleta. Um capacete cobria-lhe a cabeça e óculos de sol tapavam-lhe os olhos. Michael fitou a parte exposta do rosto. Já o vira antes... no quarto de Colin Yardley, no vídeo do aeroporto do Cairo, na Represa de Chelsea. Era Outubro.
O assassino levava a mão ao interior de um saco de nylon montado no guiador da bicicleta. Michael sabia que ele ia buscar a arma. Se desse meia volta e tentasse fugir, seria fácil para Outubro apanhá-lo e matá-lo. Se ficasse ali parado, o resultado seria o mesmo.
Correu a toda a velocidade em direção à bicicleta que se aproximava.
A jogada apanhou o assassino de surpresa. Encontrava-se a vinte metros de distância e os dois homens aproximavam-se um do outro rapidamente, numa rota de colisão. Outubro revolveu freneticamente o saco de nylon à procura da coronha da arma, tentando colocar o dedo no gatilho. Pegou na pistola, puxou-a de dentro do saco e tentou apontar a Michael.
Michael chegou quando a Beretta com silenciador emitiu um baque surdo. Baixou o ombro e enterrou-o no peito de Outubro. O golpe derrubou Outubro da bicicleta e este foi aterrar com violência na ponte de madeira. Michael conseguiu permanecer de pé. Virou-se e viu Outubro, deitado de costas, ainda de arma na mão.
Michael tinha duas opções: atacar Outubro, tentar desarmá-lo e capturá-lo ou fugir e pedir ajuda. Outubro era um assassino implacável, treinado em artes marciais. Michael recebera um treino rudimentar na Quinta, mas tinha consciência de que não poderia competir com alguém como Outubro. Além disso, ele estava a empunhar uma arma na mão e provavelmente tinha uma segunda escondida algures no corpo.
Michael deu meia volta, correu alguns metros ao longo da ponte e depois saltou para o lado, para dentro da lama e dos juncos na margem do rio. Trepou uma ladeira escorregadia devido às folhas de Outono molhadas e desapareceu num aglomerado de árvores.
Delaroche sentou-se e recuperou. O golpe deixara-o sem fôlego, mas não sofrera ferimentos de maior. Enfiou a Beretta na cintura dos calções e puxou a blusa sobre a coronha. Dois homens de moletom camuflados contornaram a esquina no momento em que Delaroche se baixava para apanhar a bicicleta. Por um instante, pensou em matá-los a ambos. Depois lembrou-se que o pentágono ficava ali perto e que os soldados tinham simplesmente saído para uma corrida inofensiva ao meio-dia. - Está bem? - perguntou um deles.
Foi só um rufião que tentou roubar-me - respondeu Delaroche, deixando vir ao de cima o seu sotaque francês. - Quando expliquei ao homem que não tinha nada de valor, ele empurrou-me da bicicleta.
- Se calhar era melhor ir ao médico - sugeriu o outro.
- Não, uma nódoa negra, talvez, mas nada de grave. Quando encontrar um policial, apresento queixa.
- Está bem, tenha cuidado.
- Obrigado por pararem, cavalheiros.
Delaroche esperou que os soldados desaparecessem de vista. Pegou na bicicleta pelo guiador e endireitou-a. Estava zangado e excitado. Nunca falhara um assassinato e estava zangado consigo próprio por não ter reagido melhor. Osbourne provara ser um adversário de maior respeito do que Delaroche esperara. A sua corrida em direção a Delaroche demonstrava, ao mesmo tempo, coragem e astúcia. A segunda decisão, de fugir em vez de lutar, também demonstrava inteligência, pois Delaroche certamente que o teria matado.
Era por isso que Delaroche se sentia excitado. A maior parte das vítimas nem dava pelo que lhes acontecia. Ele surgia de forma inesperada e matava sem avisar. A maior parte das vezes o seu trabalho nada tinha de estimulante. Era evidente que esse não seria o caso com Osbourne. Delaroche perdera o elemento surpresa. Osbourne sabia da sua presença e nunca mais voltaria a permitir que Delaroche se aproximasse dele. Teria de trazer Osbourne até si.
Delaroche recordou-se da noite na Represa de Chelsea. Recordou ter alvejado três vezes o rosto da mulher chamada Sarah Randolph e de ouvir os gritos angustiados de Michael Osbourne enquanto fugia. Um homem que perdera uma mulher daquela forma faria quase tudo para evitar que tal voltasse a acontecer. Montou-se na bicicleta e pedalou para norte, em direção a Key Bridge. Marcou o número de Astrid, que atendeu ao primeiro toque. Enquanto atravessava a ponte em direção a Georgetown, Delaroche disse-lhe calmamente o que fazer. Michael chegou a George Washington Parkway. Ao meio-dia havia pouco trânsito. Atravessou a alameda e correu por outra encosta acima. Os edifícios de escritórios de vidro e aço da seção Rosslyn de Arlington estavam à sua frente. Encontrou um telefone público em frente a uma loja de conveniência e teclou rapidamente seu próprio número.
Max Lewis atendeu.
- Chame Elizabeth, já!
Segundos mais tarde, Elizabeth atendia.
- Michael, o que há?
- Eles estão aqui, Elizabeth - disse Michael, arquejando. - Outubro acaba de tentar me matar no Mount Vernon Trail. Agora escute com muita atenção e faça exatamente o que vou dizer.
WASHINGTON, D. C.
Elizabeth correu para a sala de Michael e abriu a porta do armário. A pasta estava na última prateleira, uma caixa rectangular castanha tão feia, que só poderia ter sido criada pelo Gabinete de Serviços Técnicos da Agência. Não conseguia chegar à prateleira, por isso empurrou a cadeira de Michael da secretária até o armário. Empoleirou-se em cima dela e pegou na pasta.
Max estava no quarto. Elizabeth sentou-se aos pés da cama e calçou um par de botas de camurça castanhas, de cowboy. Depois foi até o armário e vestiu um casaco de pele, que lhe dava pelas coxas. Sem saber bem porquê, olhou para o reflexo do seu rosto no espelho e passou os dedos pelo cabelo despenteado. Max olhou para ela.
- Raios partam, Elizabeth! Que diabo se está a passar? Elizabeth obrigou-se a permanecer calma.
- Não posso explicar tudo agora, Max, mas um homem acabou de tentar matar o Michael enquanto ele estava a correr. O Michael acha que esse homem está a vir para aqui e quer que saiamos já.
Max olhou para a pasta.
- Que raio é isso?
- Chama-se uma lança - respondeu ela. - Explico logo. Mas agora preciso que me ajude.
- Faço qualquer coisa, Elizabeth, sabe disso.
- Agora ouve com atenção, Max - disse ela, pegando-lhe na mão. - Vamos sair pela porta da frente muito devagar, muito calmamente, e vamos entrar no meu carro.
Dois minutos depois de ter terminado o telefonema para Delaroche, Astrid Vogel viu abrir a porta principal da casa dos Osbourne e duas figuras saíram para a luz do sol de dezembro. A primeira era Elizabeth Osbourne (Astrid reconheceu-a pela fotografia do dossiê de Delaroche) e a segunda era um homem branco de estatura e constituição médias. A mulher trazia na mão uma pequena mala de homem, o homem não levava nada consigo. Entraram para um Mercedes-Benz classe E metalizado, a mulher no banco do passageiro, o homem ao volante, e o motor do carro começou a funcionar.
Astrid pensou no que fazer. Delaroche dissera-lhe para esperar que ele regressasse. Nessa altura, entrariam dentro de casa e tomariam a mulher como refém. Não podia permitir que a mulher fugisse. Decidiu segui-los e dizer a Delaroche para onde se dirigiam.
O Mercedes afastou-se do passeio e entrou na rua sossegada. Astrid ligou o motor do Range Rover e seguiu-os. Ligou para Delaroche e informou-o rapidamente dos últimos acontecimentos.
- Ele está aqui! - gritou Michael no telefone.
- Quem? - perguntou Adrian Carter.
- Outubro está aqui. Acabou de tentar me matar no Mount Vernon Trail.
- Tem certeza?
- Adrian, que raio de pergunta é essa? Claro que tenho certeza!
- Onde você está?
- Rosslyn.
- Diga o endereço. Vou enviar uma equipe para te buscar.
Michael procurou com os olhos uma placa e deu a Carter sua localização.
- Onde está Elizabeth? Vou mandar buscá-la também.
- Estava em casa, mas eu disse para sair de lá.
- Por que raios fez uma coisa dessas?
- Porque Outubro e Astrid Vogel estão juntos nisso. E provável que ela também esteja aqui. Se eu não mandasse a Elizabeth sair, Vogel teria ido lá e a apanharia. Tenho certeza.
- Qual é seu plano?
Michael contou.
- Jesus Cristo! Quem é o motorista?
- O secretário dela. Um garoto chamado Max Lewis.
- Raios me partam, Michael. Sabe o que Outubro vai fazer com ele quando descobrir?
- Cale-se, Adrian. Vem logo me buscar.
Elizabeth baixou a pala e olhou para o pequeno espelho enquanto se dirigiam para sul, pela Wisconsin Avenue. O Range Rover preto estava ali, uma mulher atrás do volante, a falar ao celular.
- Estamos fugindo de quem? - quis saber Max.
- Se eu te dissesse, não ia acreditar.
- A esta altura do campeonato, acredito em qualquer coisa.
- Ela se chama Astrid Vogel e é uma terrorista da Facção do Exército Vermelho.
- Deus do Céu!
- Vire à esquerda e dirija normalmente.
Max virou à esquerda para a M Street. Na 31st Street, o sinal mudou de verde para amarelo quando ele estava a quinze metros do cruzamento.
- Vai - disse Elizabeth.
Max carregou no acelerador. O Mercedes respondeu, reduzindo uma mudança e ganhando velocidade rapidamente. Atravessaram o cruzamento ao som furioso das buzinas. Elizabeth olhou para o espelho e viu que o Range Rover continuava atrás deles.
- Merda!
- O que queres que faça? - Continua a andar.
Na 28th Street, Max não teve alternativa a não ser parar num semáforo vermelho. O Range Rover parou mesmo colado a eles. Elizabeth observou a mulher pelo espelho da pala e Max fez o mesmo pelo espelho retrovisor. - com quem achas que ela está a falar?
- Está a conversar com o sócio.
O sócio dela também pertence à Fação do Exército Vermelho?
- Não, é um antigo assassino do KGB, com o nome de código de Outubro. O semáforo ficou verde. Max carregou tanto no acelerador que os pneus chiaram sobre o asfalto.
- Elizabeth, da próxima vez que me pedires para ir trabalhar na tua casa, acho que vou recusar, se não te importares.
- Cala-te e conduz, Max.
- Para onde?
- Para a baixa.
Max dirigiu-se para leste na L Street, com o Range Rover sempre a segui-los como uma sombra. Elizabeth brincava com a pega da pasta. Recordou-se das palavras de Michael. “Sai do carro e depois aciona o dispositivo. Certifique-se de que a pasta esteja virada para cima. Ande calmamente. Faça o que fizer, não corra.”
O trânsito ia ficando mais intenso à medida em que se aproximavam da baixa de Washington.
- Tem certeza de que essa coisa vai funcionar? - perguntou Max.
- Como quer que eu saiba?
- Talvez esteja dentro do armário há tempo demais. Vê se tem uma data de validade, ou algo do gênero.
Elizabeth olhou para ele e viu que estava rindo.
- Vai correr tudo bem, Elizabeth. Não se preocupes.
Virou à direita na Connecticut Avenue. O trânsito do meio-dia era intenso, os carros avançando a toda a velocidade pela rua larga e grandes camiões estacionados em segunda fila em frente a lojas de luxo. Meia dúzia de carros colocara-se entre eles e Astrid Vogel.
- Acho que é aqui - indicou Elizabeth. - Vira à direita para a K Street. Usa a faixa de serviço.
- É para já.
Carregou no acelerador e virou o volante para a direita.
- Acabaram de virar à direita para a K Street - disse Astrid a Delaroche. - Raios me partam, não consigo vê-los!
Girou o volante e descobriu o Mercedes a sair da beira para o trânsito compacto da K Street.
Já os apanhei. Vão para oeste na K Street. Onde estás?
- Na 23rd Street, a ir para sul. Estamos muito perto.
Astrid seguiu o Mercedes em direção a oeste, pela 20th Street e depois pela 21st Street.
- Estou a aproximar-me, Jean-Paul. Onde estás?
- Na M Street. Espera por mim na 23rd.
Ela atravessou a 23rd Street e parou na esquina noroeste. O Mercedes afastou-se. Olhou para norte e viu Delaroche a pedalar a grande velocidade, as pernas movendo-se como pistões. Parou, encostou a bicicleta num poste e entrou no Range Rover. - Vai!
Elizabeth recostou-se no banco de trás de um táxi, preparando-se para a viagem até a agência de aluguer de automóveis Hertz. A engenhoca de Michael tinha funcionado tal como ele dissera. Max parou o carro, Elizabeth saiu e acionou o dispositivo. Uma figura insuflou depressa, extraordinariamente real. Max afastou-se rapidamente e Elizabeth entrou no hall do seu prédio. Sentiu-se tentada a subir e esconder-se no gabinete, mas lembrou-se do porteiro com o penteado dispendioso e o anel das Forças Especiais e soube que o gabinete já não era seguro. Esperou atrás do vidro até que o Range Rover passasse, depois saiu e fez sinal ao táxi.
O táxi deixou-a na agência Hertz. Entrou apressadamente e dirigiu-se ao balcão.
Cinco minutos depois, um empregado trouxe um Mercury Sable cinzento para a frente da garagem. Elizabeth entrou nele e mergulhou no trânsito da baixa. Avançou para oeste, atravessando Washington, através de Georgetown até a Reservoir Road. Seguiu essa estrada até a Canal Road e continuou para norte, ao longo das margens do C&O Canal. Percorridos dezesseis quilômetros, chegou à Beltway. Seguiu as placas rumo a norte, para Baltimore.
A mala encontrava-se ao seu lado, no banco do passageiro. Pegou no celular e ligou para o Mercedes. Após cinco toques, uma gravação informou-a de que o celular que estava a tentar contatar "não se encontrava disponível de momento".
Max Lewis atravessou a Key Bridge e virou para norte, para a George Washington Parkway. Perdera o Range Rover algures em Georgetown. Olhou para a figura sentada ao seu lado, um homem alto e bastante atraente, com cabelo escuro e bem barbeado. Apercebeu-se de que a figura se assemelhava um pouco a Michael Osbourne. Olhou pelo espelho retrovisor. Continuava a não haver sinais do Range Rover. Por um instante de demência, estava realmente a divertir-se. Depois pensou em Elizabeth e como ela se sentira assustada, e recuperou uma dose saudável de sangue-frio. Elizabeth dissera-lhe para ir diretamente para a entrada principal da CIA. Alguém se encontraria lá com ele e o levaria para dentro. Carregou no acelerador e a agulha do conta-quilômetros saltou para os cento e vinte. O Mercedes deslizava com facilidade sobre as colinas ondeadas e as curvas suaves da alameda. O Potomac brilhava lá em baixo, ao sol brilhante de Dezembro.
Max olhou novamente para o manequim.
- Ouça, senhor Lança, uma vez que vamos passar algum tempo juntos, acho que esta seria uma boa oportunidade para nos ficarmos a conhecer melhor. Chamo-me Max e, sim, sou homossexual. Espero que isso não o incomode.
Olhou para o espelho retrovisor e viu a luz azul intermitente de um carro de polícia da Virgínia. Olhou para o conta-quilômetros e viu que estava a conduzir a quase cento e trinta quilômetros por hora.
- Oh, merda - praguejou Max, carregando com suavidade no travão e parando num refúgio com uma bonita vista para o rio.
O policial saiu do carro e pôs o chapéu. Max baixou o vidro.
- O senhor estava a conduzir a bem mais de cento e vinte, ali atrás - disse o policial -, provavelmente quase a cento e trinta. Posso ver a sua carta de condução, por favor? - Depois reparou no boneco inflável no banco do passageiro. - O que é aquilo?
- É uma história muito comprida, senhor agente.
- A sua carta de condução, por favor.
Max apalpou os bolsos do peito do casaco. Saíra da casa dos Osbourne tão à pressa, que se esquecera da pasta e da carteira. - Lamento, senhor agente, mas não tenho a carta comigo.
- Desligue o motor e saia do carro, por favor - ordenou o policial, num tom de voz monocórdico. Nesse momento, a sua atenção foi desviada para um Range Rover que parava no refúgio.
- Senhor agente, o senhor vai pensar que eu estou maluco, mas é melhor ouvir o que eu tenho a dizer.
Delaroche saiu do Range Rover e encaminhou-se para o policial. Astrid saiu e dirigiu-se para a frente do Mercedes. O policial desapertou o coldre e tentou agarrar na arma.
- Volte a entrar no carro, já!
Delaroche meteu a mão debaixo da blusa de ciclista e agarrou numa Beretta com silênciador. Levantou o braço e disparou duas vezes. O primeiro tiro atingiu o policial no ombro, fazendo-o dar meia volta. O segundo acertou-lhe na nuca e o homem caiu sobre o rebordo do alcatrão.
Astrid estava à frente do Mercedes, os braços esticados e uma arma nas mãos. Olhou primeiro para o homem atrás do volante e depois para o manequim sentado onde estivera Elizabeth Osbourne. Estava lívida de raiva. Caíra num dos truques mais velhos que existia.
O motor foi ligado e o Mercedes meteu a primeira. Astrid disparou calmamente três vezes através do para-brisa. O vidro estilhaçou-se e ficou instantaneamente vermelho com sangue. O corpo caiu para a frente sobre a caixa de direção e a tarde encheu-se com o som da buzina do carro.
Michael mantinha uma vigília tensa no gabinete de Adrian Carter, a andar de um lado para o outro e a fumar cigarros. Carter dava tacadas em bolas de golfe para acalmar os nervos. Um dos factótuns de Monica Tyler esperava à porta do escritório de Carter, como se fosse um aluno de castigo. Michael fechou a porta para poderem conversar.
- Porque é que nunca tive autorização para ver o arquivo sobre o Outubro? - Porque era restrito - explicou Carter num tom de voz inexpressivo, a cabeça curvada em concentração. Deu uma tacada na bola, mas falhou o alvo por quinze centímetros. - Merda - murmurou Carter. - Abusei.
Porque é que era restrito?
- Esta é uma agência de serviços secretos, Michael, não uma sala de leitura de Ciência Cristã. Durante o tempo em que o Outubro foi um agente ativo da KGB, provavelmente não houve necessidade de saberes da sua existência.
Carter deu outra tacada. Esta aterrou no sitio certo.
- Porque era mantida tão em segredo a informação sobre o Outubro? - quis saber Michael.
- Para proteger a identidade da fonte, creio eu. Regra geral, é esse o caso.
- Raios partam, ele matou a Sarah Randolph mesmo à minha frente. Por que é que alguém neste maldito lugar não me mostrou o arquivo e me ajudou a arrumar o assunto?
- Porque essa teria sido a coisa mais sensata a fazer. Mas a sensatez e o trabalho de espionagem raramente andam de mãos dadas. Certamente que, a esta altura, já aprendeste isso. - Como é que o conseguiste?
- Há uns dois anos tivemos provas de que o Outubro estava a trabalhar outra vez como freelance - explicou Carter. - O arquivo foi recuperado e posto novamente em circulação, mas de forma muito limitada. - Tiveste autorização para vê-lo? Carter aquiesceu.
- Raios partam, Adrian! Enquanto eu andava a tentar perceber o assassinato da Sarah com meias pistas e conjecturas, tu tinhas a resposta. Por que não me contaste?
Carter assumiu uma expressão que dizia que, por vezes, o trabalho de espionagem exigia mentir aos amigos.
- Estas são as regras pelas quais vivemos, Michael. Elas protegem as pessoas que arriscam a vida ao traírem o seu próprio país. Protegem pessoas como tu, que trabalham infiltradas no terreno.
Então por que é que quebraste as regras agora e me deste o arquivo do Outubro? - Porque, neste caso, as regras eram uma treta. Não faziam sentido. - Quem queria que o arquivo do Outubro permanecesse restrito? Carter agitou o polegar para o outro lado da porta e segredou:
- Monica Tyler.
Elizabeth finalmente telefonou e o painel de emergência fez a ligação para o gabinete de Carter.
- O que aconteceu? Está bem?
- Estou ótima - respondeu ela. - Fiz tudo o que me disse. Aquela mala funcionou na perfeição. Até se parecia um pouco com você. Agora estou no carro. Indo para onde me disse.
Osbourne sorriu com um alívio extremo.
- Graças a Deus - exclamou. - Já teve notícia do Max?
- Não, ainda não. Deve estar quase chegando.
A secretária de Carter espreitou pela porta e disse que havia outra chamada.
Carter atendeu-a numa extensão lá fora.
- Elizabeth, estou tão orgulhoso de você. Amo tanto você! - disse Osbourne.
- Eu também te amo, Michael. Este pesadelo já terminou?
- Ainda não, mas em breve vai terminar. Continua a dirigir. Vamos pensar em como e quando traremos você para cá.
- Te amo, Michael - repetiu ela e a ligação foi interrompida. Carter entrou no gabinete, o rosto pálido.
- O que se passa? - perguntou Michael.
- Max Lewis e um policial da Virgínia acabaram de ser mortos na George Washington Parkway.
Michael pousou o receptor com força.
WASHINGTON, D. C.
Delaroche atravessou Key Bridge e dirigiu-se de novo para Georgetown.
Percorreu rapidamente a M Street e virou para o acesso do Four Seasons Hotel. Esperou dentro do Rover enquanto Astrid foi ao quarto buscar as coisas deles. Isso deu-lhe um momento para reorganizar os pensamentos e planear o que fazer a seguir.
O mais fácil seria abortar: pedir uma extração e sair do país antes que fossem capturados. Delaroche estava confiante de que os tiros na alameda não tinham sido testemunhados por ninguém. As mortes tinham demorado segundos e, antes que outro carro passasse por ali, já se tinham vindo embora. No entanto, tentara matar Michael Osbourne uma vez e era evidente que este sabia que ele ali estava. O número que a esposa realizara com o boneco insuflável era prova disso. Agora seria muito difícil cumprir os termos do seu contrato: matar Osbourne. Contudo, Delaroche desejava continuar por duas razões. Uma era o dinheiro. Se não conseguisse matar Osbourne, perderia três quartos de um milhão de dólares. Delaroche queria viver os seus dias com Astrid livre de preocupações financeiras e de segurança. Para isso seria necessário muito dinheiro: dinheiro para comprar uma casa grande numa propriedade e sofisticados sistemas de segurança, dinheiro para subornar os oficiais da lei locais para conseguir permanecer escondido dos serviços de segurança do Ocidente. Também queria levar uma existência confortável. Vivera como um monge em Brélés durante anos, impossibilitado de gastar o dinheiro que tinha, com medo de atrair atenções.
Quando trabalhou para o KGB fora ainda pior. Arbatov obrigara-o a viver como um indigente em Paris, sobrevivendo com o pouco dinheiro que ganhava com os seus quadros.
A segunda razão, na verdade o motivo importante, era o orgulho. Osbourne vencera-o no caminho ao longo do rio, derrotara Delaroche no seu próprio jogo. Nunca tinha falhado uma missão e não desejava terminar a sua carreira com um fracasso. Matar era a sua profissão, nascera e fora educado para tal, e o fracasso era inaceitável. Osbourne era o primeiro alvo a ripostar com sucesso e Delaroche atrapalhara-se. Reagira como um amador no primeiro trabalho. Sentia-se envergonhado e zangado consigo próprio, e queria outra oportunidade. Pensou no arquivo de Osbourne. Recordou-se de que o pai de Elizabeth Osbourne, um senador dos Estados Unidos, tinha uma casa numa ilha isolada em Nova York. Pensou: Se eu estivesse assustado, iria para um sítio onde me sentisse seguro. Para um sítio longínquo. Para onde as autoridades me pudessem proporcionar a ilusão de segurança. Sairia de Washington o mais depressa possível e iria para uma ilha isolada.
Astrid saiu do hotel. Assim que entrou no carro, Delaroche ligou o motor. Arrancou e estacionou por baixo de um viaduto ao longo da margem do rio.
Desligou o motor e ligou o computador portátil.
Percorreu os arquivos até encontrar o arquivo de Osbourne. Leu-o rapidamente e encontrou a localização da casa do senador. Sim, pensou. Até o nome era perfeito. Eles irão para lá, pois acreditam que é um local seguro. Saiu do arquivo e clicou na base de dados, onde armazenara mapas de estradas digitais de quase todos os países do planeta. Digitou o ponto de partida e o destino e o software depressa lhe forneceu um itinerário: a Beltway, 1-95, a Verrazano Bridge, a Long Island Expressway.
Voltou a ligar o motor do Range Rover e engrenou a primeira.
- Onde vamos, Jean-Paul? - perguntou Astrid. Ele tocou na telado portátil.
Astrid olhou e leu.
Shelter Island. Ilha, Abrigo.
Delaroche pegou no celular, marcou o número que lhe fora dado pelas pessoas que o tinham contratado e falou calmamente enquanto abandonava Washington. O helicóptero aterrou no aeroporto de Atlantic City. Elizabeth apanhara a 1-95 para norte e depois dirigira-se para a costa de Jersey. Os oficiais de segurança do aeroporto estavam à espera quando parou na zona de devolução da agência de aluguer de automóveis Hertz. Levaram-na sob proteção e fecharam-na durante dez minutos numa pequena sala de detenção dentro do terminal.
Quando os rotores do helicóptero pararam, Elizabeth foi levada numa van do aeroporto desde a sala de detenção até a pista. Chovia com intensidade. A última coisa que lhe apetecia fazer numa noite como aquela era voar de helicóptero. Mas queria ir para casa. Queria sentir-se segura. Queria cheirar os lençóis familiares, ver coisas estimadas da sua infância. Durante algum tempo, queria fingir que nada daquilo tinha acontecido.
A porta da van abriu e um golpe de chuva fria atingiu-a no rosto. Saiu e dirigiu-se ao helicóptero. A porta abriu a ali estava Michael. Correu para os seus braços e abraçou-o com força. Beijou-o e disse:
- Nunca mais te vou perder de vista.
Michael não disse nada, limitando-se a abraçá-la. Por fim, ela perguntou: - Onde está o Max? Algures num local seguro, espero. Michael abraçou-a com mais força. Elizabeth leu algo no seu silêncio e afastou-se, olhando para ele com os olhos muito abertos.
- Raios partam, Michael, responde-me! Onde está o Max? Mas ela sabia a resposta. Não foi preciso ouvi-la.
- Meu Deus, não! - gritou, batendo-lhe com os punhos no peito. - Outra vez não! Meu Deus, não! Outra vez não!
- Parece que o nosso homem arranjou uma bela confusão em Washington - disse o Diretor.
Não foi capaz de matar o Osbourne e no processo conseguiu matar um secretário e um policial da Virgínia - declarou Mitchell Elliott. - Talvez a sua reputação como o melhor assassino do mundo seja imerecida.
- O Osbourne é um adversário de grande valor. Sempre soubemos que seria difícil eliminá-lo.
- Onde está o nosso homem agora?
- Rumo a norte. Acredita que Osbourne e a esposa irão procurar segurança na casa do Senador Cannon, em Shelter Island.
- Bem, tem razão.
- A sua fonte em Langley confirma isto?
- Sim.
- Muito bem. - Então toda esta história lamentável depressa chegará ao fim. O Outubro irá terminar o que começou. Tenho uma equipe de extração a postos. Quando ele acabar, irá contatar-me e eu tiro-o de lá. - O Outubro tinha outro alvo em Washington.
- Sim, eu sei, mas agora ele não será capaz de realizar essa tarefa. Se deseja que esse alvo seja eliminado, creio que teremos de contratar outra pessoa para o trabalho.
- Acho que seria sensato. Não gosto de pontas soltas.
- Concordo plenamente.
- E o Outubro?
- Alguns minutos após a sua extração, o Outubro será morto. Sabe, senhor
Elliott, eu gosto menos de pontas soltas do que o senhor.
- Muito bem, Diretor. - Boa noite, senhor Elliott.
Mitchell Elliott desligou o telefone e sorriu para Monica Tyler. Ela levou a bebida para a cama e deitou-se ao lado dele.
- Amanhã de manhã estará tudo terminado - disse ele. O Osbourne terá desaparecido e tu serás mais rica do que alguma vez imaginaste.
Monica beijou-o.
Serei rica, Mitchell, mas será que estarei viva para desfrutar dessa riqueza? Elliott apagou a luz.
- Ainda bem que o meu pai não está cá para ver isto - disse Elizabeth, enquanto o helicóptero pousava no relvado de Cannon point. - Quando cá está, gosta sempre de agir como se fosse um dos ilhéus. A última coisa que faria seria deixar que um helicóptero aterrasse no relvado.
- Estamos em pleno Inverno - respondeu Michael. - Ninguém vai saber.
Elizabeth olhou-o, incrédula.
- Michael, de cada vez que alguém atropela um veado nesta ilha, o acontecimento é publicado no jornal local. Acredita, as pessoas vão ficar a saber.
- Eu trato do jornal - indicou Adrian Carter.
Os rotores do helicóptero pararam de girar. A porta abriu e os três saíram. Charlie saiu da casa do caseiro, de lanterna na mão, os retrievers aos saltos à volta dos tornozelos. O vento marítimo açoitava com violência as árvores nuas. Uma águia-pesqueira guinchou e voou por cima das suas cabeças. A cinquenta metros da costa, o Athena agarrava-se às amarras nas águas da baía sacudidas pelo vento.
- Onde está o senador? - perguntou Carter enquanto percorriam a pé o acesso de cascalho em direção à casa principal.
- Em Londres - respondeu Michael. - Está a participar num painel de discussão sobre a Irlanda do Norte na London School of Economics.
- Ótimo. Menos uma pessoa com quem nos preocuparmos.
- Não quero transformar este sítio num campo militar - disse Elizabeth. - Não tenciono fazê-lo. Vou colocar dois agentes de segurança no relvado durante toda a noite. De manhã serão rendidos por outros dois da Estação de Nova York. A polícia de Shelter Island concordou em vigiar os ferries de norte e de sul. Têm uma boa descrição de Outubro e de Astrid Vogel. Foi-lhes dito que eram procurados por se encontrarem ligados ao assassinato de duas pessoas na Virgínia, mas nada mais que isso.
Vamos manter as coisas assim - afirmou Elizabeth. - A última coisa que quero é que as pessoas de Shelter Island pensem que trouxemos para cá terroristas.
- A verdade não virá ao de cima - garantiu Carter. - Entrem e vão dormir. Liga-me para Langley de manhã, Michael. E não te preocupes, a esta hora já o Outubro está bem longe.
Carter apertou a mão de Michael e beijou a face de Elizabeth.
- Lamento muito o que aconteceu ao Max - disse. - Quem me dera que pudéssemos ter feito alguma coisa.
- Eu sei, Adrian.
Elizabeth deu meia volta e começou a andar em direção à casa. Carter olhou para Michael.
- Existem armas aqui? - perguntou
Michael abanou a cabeça. - O Cannon detesta armas.
Carter estendeu a Michael uma Browning automática de alta potência e meia dúzia de carregadores de quinze munições. Depois virou-se e entrou no helicóptero. Trinta segundos depois, este levantou de Cannon Point, virou e desapareceu sobre a baía.
- O Carter deu-te uma arma, não deu? - perguntou Elizabeth quando Michael entrou no quarto. Estava de pé em frente a um grande guarda-roupa escolhendo um pijama de flanela. O quarto estava escuro, salvo por um pequeno abajur de leitura na cabeceira. Michael mostrou-lhe a Browning. Enfiou um carregador na coronha e acionou a trava de segurança.
- Meu Deus, detesto esse som - disse ela, despindo-se. Vestiu a camisa de noite e deitou-se na cama. Michael estava de pé, junto à janela, a fumar um cigarro e a observar a baía. A chuva batia contra o vidro. Um dos seguranças inspecionava com uma lanterna a divisória ao longo do pontão.
Elizabeth colocou as mãos no baixo-ventre. Interrogou-se se os bebês estariam bem. Pensou: Ouve bem, Elizabeth. Já lhes estás a chamar bebês quando eles não passam de um aglomerado de células. O médico dissera-lhe para levar as coisas com calma, para descansar. Não fizera nada disso. Passara o dia a fugir de um par de terroristas, a conduzir durante horas e a voar de helicóptero no meio de uma tempestade terrível. Pressionou as mãos com mais força contra o abdômen e pensou: Por favor, meu Deus, faz com que eles estejam bem.
Olhou para Michael, direito como uma sentinela junto à janela.
- Sabes, Michael, acho que tu queres mesmo que ele tente de novo.
- Depois do que ele fez ao Max...
- Ele também tentou te matar hoje, Michael.
- Acredite, não me esqueci.
- E Sarah? - perguntou ela.
Michael permaneceu em silêncio.
- É saudável desejar vingança, Michael. Mas tentar conseguir vingança é uma coisa completamente diferente. E algo perigoso. As pessoas podem se ferir. Neste caso, elas podem morrer. Para bem de todos nós, espero que ele esteja longe daqui.
- Não faz parte do seu temperamento. Não faz parte do seu treino.
- O quê?
- Desistir. Fugir. Li o arquivo sobre ele. Provavelmente sei mais sobre ele do que ele sabe sobre si próprio.
- Acha que ele está por aí, Michael?
- Eu sei que está. Só não sei onde.
NORTH HAVEN, LONG ISLAND
Delaroche saiu do Range Rover e fitou a outra margem do canal estreito em direção a Shelter Island. Era quase meia-noite. A viagem a partir de Washington demorara oito horas, pois Delaroche cumprira meticulosamente o limite de velocidade durante todo o caminho. Ergueu a gola do casaco para se proteger da chuva fria e batida pelo vento. Um ferry sulcou as águas na sua direção, dois carros no convés, vencendo a forte corrente que atravessava Shelter Island Sound em direção às águas abertas de Gardiners Bay. Junto ao pequeno gabinete ao ferry via-se um veículo castanho-claro de tração às quatro rodas com marcas da polícia. Era possível que o agente estivesse apenas a fazer rondas, ou tivesse parado para uma chávena de café. No entanto, Delaroche duvidava que fosse esse o caso. Desconfiava que a polícia vigiasse o ferry por Michael e Elizabeth Osbourne se encontrarem na ilha.
Regressou ao Range Rover, entrou e afastou-se do cais ao ferry. Por duas vezes teve de guinar para evitar pequenas manadas de veados de cauda branca. Virou para uma pequena estrada de terra batida e cascalho que conduzia a um conjunto de árvores. Aí, escondido, pôs os óculos de leitura e desdobrou um mapa de estradas de larga escala de Long Island que comprara pelo caminho num posto de gasolina. Astrid espreitou por cima do seu ombro. North Haven era um pequeno pedaço de terra que se projetava por Shelter Island Sound adentro. A sudeste encontrava-se o histórico porto baleeiro de Sag Harbor.
- A polícia está a vigiar os cais dos Ferrys - explicou Delaroche. .- Isso significa que provavelmente os Osbourne estão na ilha. O Ferry Sul fecha à uma da manhã. Os polícias irão para casa, pois vão chegar à conclusão de que não tentamos fazer a travessia.
- Se os ferries fecham, como é que vamos para a ilha? Delaroche apontou para Sag Harbor no mapa.
- Há barcos no porto e nas docas. Podemos roubar um e fazer a travessia depois dos ferries fecharem.
- O tempo está terrível! - exclamou Astrid. - Não é seguro andar de barco numa noite como esta.
- Não está assim tão mau - contrapôs Delaroche, retirando os óculos e voltando a guardá-los no bolso. - Em Brélés esta seria considerada uma bela noite para pescar.
Delaroche entrou em Sag Harbor e estacionou junto à marina. Saiu do Range Rover, deixando Astrid para trás. A cidade estava silenciosa, as lojas e os restaurantes ao longo da margem fechados. Passados cinco minutos, Delaroche encontrou aquilo que procurava: um navio-baleeiro de oito metros com um grande motor Johnson fora de borda. Voltou rapidamente ao Range Rover e reuniu as coisas de que precisava: os celulares, as Berettas, a roupa à prova de água. Trancou as portas e enfiou as chaves no bolso.
Caminharam ao longo da marina e de uma doca de madeira, escorregadia devido à chuva. Delaroche entrou para o navio e ajudou Astrid a subir para o convés. Havia uma ponte e bancos da popa à proa. Delaroche enfiou uma gazua na ignição e pôs o motor a funcionar.
Saltou para a doca e soltou as amarras, depois voltou a saltar para dentro do barco e saiu de marcha à ré. Avançou lentamente através do porto, o barco a vibrar sob os seus pés. Vinte minutos mais tarde, entravam nas águas de Gardiners Bay.
Cinco minutos após iniciarem a travessia, Delaroche receou que Astrid estivesse certa. Na baía, o vento era feroz, soprando de noroeste a sessenta e cinco quilômetros por hora, com rajadas mais fortes. A temperatura era de quatro graus, mas a chuva e o vento faziam com que parecesse estar muito mais frio. A cabine do navio era aberta e, no espaço de minutos, Delaroche e Astrid estavam encharcados. As mãos de Delaroche estavam geladas ao leme, apesar das luvas. Astrid agarrou-se ao braço dele e enterrou o rosto no seu ombro para se proteger da chuva. A noite estava escura como breu, sem lua, sem luz das estrelas, nada por onde navegar. Delaroche manteve as luzes apagadas para evitar ser localizado a partir de terra. Ondas de um metro a um metro e meio fustigavam o navio a bombordo, sacudindo o pequeno barco.
Delaroche aproximou-se até se encontrar a duzentos metros da costa e seguiu para norte. As águas acalmaram-se ligeiramente. A bombordo, podia distinguir os contornos muito tênues de árvores e de terra. Pelos mapas que tinha, Delaroche sabia que era Mashomack Preserve, uma reserva natural gigantesca.
Continuou em direção a norte, passando por Sachem's Neck e Gibson's Beach. Quase encalhou em Nichols Point, por isso corrigiu a rota em alguns graus e afastou-se mais da costa. Passados alguns minutos, avistou Reel Point, um fino dedo de terra na entrada de Coecles Harbor. Sabia que estava a aproximar-se. Contornaram Ram Head e dirigiram o navio para noroeste, em direção a Cornelius Point. A mudança de rumo colocou-os diretamente no caminho do vento. Abrandaram a velocidade, avançando muito devagar à medida que as ondas iam ficando cada vez maiores. O navio-baleeiro elevava-se em direção ao céu de cada vez que uma onda passava por debaixo do casco. Em seguida, a proa caía violentamente no intervalo entre as duas ondas e a água do mar açoitava os bancos. De uma vez Astrid desequilibrou-se e caiu para a frente, para cima do painel de instrumentos. Voltou a pôr-se de pé, com sangue na testa.
A partir de bombordo, Delaroche conseguia distinguir Cornelius Point: um promontório rochoso, a vaga silhueta de uma grande casa de Verão. Contornou o cabo e virou alguns graus para bombordo. De estibordo, podia ver as luzes de Greenport, indistintas devido à névoa marítima e à chuva. Alguns momentos mais tarde, passou por Hay Beach Point. Delaroche virou para sudoeste e avançou ao longo de Hay Beach durante cerca de um quarto de milha. Depois virou bruscamente para bombordo e reduziu a potência, dirigindo-se para a linha da costa.
Cannon Point encontrava-se cerca de cem metros mais abaixo. Delaroche sabia que podia aproximar-se da costa num silêncio virtual, pois os ventos fortes levariam todos os sons na direção oposta. Desligou o motor e ergueu a hélice. Alguns segundos mais tarde, o barco encalhou num baixio a alguns metros da praia.
Delaroche saltou para a água gelada que lhe dava pelos joelhos e patinhou para terra. Arregaçou a manga do casaco e olhou para o mostrador luminoso do relógio. Eram apenas duas horas. O navio fizera a viagem de Sag Harbor em cerca de noventa minutos mas, enquanto atava a bolina à pernada de uma árvore caída, Delaroche sentia-se como se tivesse estado atrás do leme a combater o mar durante metade da noite. Regressou ao navio, pegou na mochila e ajudou Astrid a descer para a água. Na praia, abriu a mochila, retirou do seu interior as Berettas com silenciador e entregou-lhe uma.
A chuva fustigava-os enquanto Delaroche procurava orientar-se. A praia conduzia diretamente a Cannon Point. Era rochosa e estreita, apenas com alguns metros de largura em certas zonas. Para lá da marca de maré-alta agigantava-se uma falésia íngreme, com cerca de seis metros de altura, repleta de um emaranhado de arbustos e erva.
Delaroche puxou a culatra da Beretta, introduzindo a primeira bala na câmara. Astrid fez a mesma coisa. Em seguida, pegou-lhe na mão e conduziu-a pela praia, em direção à casa.
Matt Cooper e Scott Jacobs tinham ambos trabalhado na segurança da CIA durante quase vinte anos. O seu sedan do governo encontrava-se estacionado mesmo junto ao portão, do lado de dentro do complexo em Shore Road. Faziam turnos para percorrer o perímetro dos terrenos a cada meia hora. Matt Cooper estava encarregue da ronda das duas da manhã.
Delaroche e Astrid deitaram-se na falésia olhando de cima para a água, escondidos atrás dos arbustos espessos e espinhosos. Delaroche assimilou a disposição do complexo: a grande casa principal perto da água, dois anexos para convidados, uma garagem separada para três carros. Viam-se luzes no interior da casa principal e num dos anexos. Delaroche partiu do princípio de que os Osbourne estavam dentro da casa principal e que o agente de segurança ou um caseiro estava no anexo. Analisou a disposição dos terrenos: um relvado plano e bem cuidado salpicado de árvores altas, um acesso de cascalho que ia dos edifícios até o portão de entrada. Mesmo junto a este, Delaroche avistou os contornos de um sedan.
O agente de segurança apareceu alguns minutos depois. Trazia na mão direita uma lanterna poderosa, movimentando-a de um lado para o outro enquanto andava. Quando o homem se aproximou do sitio onde estavam, Delaroche pegou com firmeza no antebraço de Astrid e levou um dedo aos lábios. A mulher aquiesceu. Um raio de luz brilhou sobre as suas cabeças, e depois incidiu sobre o tabique e a praia lá em baixo.
Delaroche pôs-se de pé de repente, fazendo os arbustos restolhar. O raio de luz moveu-se freneticamente durante vários segundos antes de se deter sobre ele. A Beretta estava sacada e apontada. Utilizando a luz como alvo, Delaroche fez pontaria quatro ou cinco centímetros mais à direita a fim de compensar o fato de o homem segurar a lanterna na mão direita.
Disparou rapidamente três vezes.
O segurança caiu sobre a relva encharcada.
Delaroche deslizou para a frente e ajoelhou-se ao lado do homem caído. Os disparos tinham-no atingido no peito. Delaroche baixou-se, tentou sentir a pulsação no pescoço e não encontrou nenhuma. Fez sinal a Astrid para que se lhe juntasse. Caminharam ao longo da orla oriental da propriedade, mantendo-se junto às árvores, até se encontrarem a cerca de trinta metros do portão principal e do carro da segurança. Delaroche viu o segundo homem dentro do carro, sentado ao volante, a água da chuva a escorrer pelos vidros das janelas. Decerto que o homem pouco ou nada conseguia ver. Seria uma morte fácil. O desafio seria matá-lo de uma forma silenciosa. Atravessou o relvado, passando por trás do carro, e aproximou-se por trás, do lado do passageiro.
Cooper estava a demorar-se muito a dar sinal. Por norma, cada um dos homens transmitia via rádio atualizações contínuas do seu progresso. Cooper estabelecera contato a partir do anexo ocidental para convidados e das traseiras da casa principal, mas Jacobs ainda não tivera notícias dele desde que começara a dirigir-se para o tabique e a praia.
Jacobs pegou no rádio e tentou chamar Cooper, mas não obteve qualquer resposta. Estava prestes a sair e ir à procura dele quando ouviu a porta do passageiro abrir. Virou-se e disse: - Que diabo aconteceu?
Depois olhou para o rosto: cabelo cortado rente, pele muito pálida, duas orelhas furadas. Jacobs nem sequer tentou pegar a arma, dizendo apenas baixinho:
- Oh, valha-me Deus.
Delaroche ergueu a Beretta e alvejou-o no rosto três vezes. Em seguida, esticou-se sobre o banco e retirou o rádio da mão do homem morto.
Astrid permaneceu junto às árvores. Delaroche saiu do carro e fechou a porta com suavidade. Voltaram para trás pelo mesmo caminho, ao longo da fronteira oriental da propriedade, mantendo-se mais uma vez sob o refúgio das árvores. Delaroche ejetou o carregador meio gasto e inseriu um cheio.
Havia duas entradas para a casa principal, uma porta de entrada que dava para o acesso de cascalho e um alpendre envidraçado que dava para a água. Delaroche tencionava utilizar a entrada das traseiras.
As árvores curvaram-se sob uma rajada de vento marítimo. Delaroche aproveitou o ruído impetuoso para cobrir o som da sua aproximação. Pegou na mão de Astrid e correu pelos campos traiçoeiros por entre as árvores.
Passaram por trás do anexo, onde se via um abajur aceso. Delaroche pensou em entrar e matar os ocupantes, mas não tinha avistado quaisquer movimentos por ali, não existiam sinais de alguém ter dado pela sua presença, por isso passou por trás do anexo e começou a atravessar o relvado das traseiras.
Um cão ladrou, depois outro. Virou-se e viu um par de golden retrievers enormes a correr na direção deles. Introduziu a primeira bala na câmara da Beretta e fez pontaria aos cães.
Os cães acordaram Michael. Os seus olhos abriram-se e, num ápice, estava alerta. Ouviu o primeiro cão, depois o segundo. Em seguida, ambos ficaram silenciosos. Sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Sobre a mesinha-de-cabeceira estavam a Browning automática, um rádio portátil e um telefone de linha múltipla. Pegou no rádio. - Fala Osbourne. Está alguém aí? Elizabeth mexeu-se.
- Fala Osbourne. Está alguém aí? Ouvi os cães a ladrarem. O rádio crepitou e uma voz respondeu:
- Os cães estão bem. Não há problema. ' Osbourne pousou o rádio, pegou no telefone e marcou o número da casa do caseiro. Deixou o telefone tocar cinco vezes antes de voltar a pousar o receptor com força. Elizabeth sentou-se na cama.
Osbourne marcou rapidamente um número especial de emergência para Langley. Atendeu uma voz calma.
- Fala Osbourne. O agente de segurança em Shelter Island não está na linha. Telefone à polícia local e envie homens para cá! Rápido!
Desligou o telefone.
- Michael, o que se passa? - perguntou Elizabeth.
- Ele está aqui - respondeu Osbourne. - Matou a equipe de segurança e tem o rádio deles. Acabei de falar com o filho da mãe. Veste umas roupas quentes. Despacha-te, Elizabeth.
Charlie Gibbons era o caseiro de Cannon Point há vinte anos. Nascera e crescera em Shelter Island e os seus antepassados eram pescadores de baleias que, três séculos antes, partiam de Greenport. Vivia apenas a cento e quarenta quilômetros de Nova York, mas só lá estivera uma vez.
Charlie ouviu o telefone a tocar na sua casa ao atravessar o relvado de roupão, espingarda numa mão e lanterna na outra. Avistou os cães um instante depois e correu desajeitadamente na sua direção. Ajoelhou-se ao lado do primeiro e viu que o pelo amarelo estava ensopado em sangue. Virou a luz da lanterna para o segundo e viu que se encontrava nas mesmas condições. Pôs-se de pé e apontou a lanterna ao tabique. Movimentou o raio de luz de um lado para o outro durante alguns segundos e avistou algo azul vivo. Os seguranças traziam vestidos impermeáveis azuis. Correu em direção ao corpo caído no chão e ajoelhou-se a seu lado. Era o homem que se chamava Matt Cooper e era evidente que estava morto.
Tinha de acordar Mike e Elizabeth. Tinha de telefonar para a polícia de Shelter Island. Tinha de ir buscar ajuda rapidamente. Pôs-se de pé e virou-se para correr de regresso a casa. Uma mulher alta e loura surgiu de trás de uma árvore, uma arma nas mãos esticadas. Viu o clarão na boca da arma mas não ouviu qualquer som. As balas rasgaram-lhe o peito.
Sentiu uma dor excruciante e viu o fulgor de uma luz branca e brilhante. Depois, a escuridão.
MCLEAN, VIRGÍNIA
- A equipe de segurança está fora de combate - disse o agente de serviço. - Osbourne acredita que o Outubro está no terreno.
Adrian Carter sentou-se na cama.
- Raios me partam!
- Já alertamos a polícia local e está outra equipe a caminho.
- É melhor que se despachem.
- Sim, senhor.
- Estou na sede daqui a cinco minutos. - Sim, senhor.
- Agora ligue-me à Monica Tyler. - Aguarde um momento, senhor.
Michael dormira vestido. Elizabeth enfiou calças de corrida de algodão cinza e uma blusa de lã bege. Michael calçou-se e foi buscar a Browning, o rádio e o celular, bem como o controle do sistema de segurança da casa. O sistema encontrava-se ativado. O alarme far-se-ia ouvir se Outubro tentasse entrar em casa. Surgiria um número no monitor digital do controle, mostrando qual a porta ou -janela pela qual o intruso entrara. Se Outubro tentasse forçar a entrada, Michael saberia instantaneamente onde ele estava. Michael apagou as luzes do quarto e conduziu Elizabeth para o corredor às escuras. Desceram as escadas até o hall de entrada. Ali havia outro abajur aceso. Michael desligou-o rapidamente.
As escadas para a cave eram logo a seguir à cozinha enorme. Michael pegou no braço de Elizabeth e conduziu-a através da escuridão. Abriu a porta que dava acesso às escadas e levou-a até a cave.
Delaroche e Astrid agacharam-se junto à porta do alpendre envidraçado. Delaroche enfiou uma faca no trinco básico e, passados alguns segundos, este cedeu. Atravessaram cuidadosamente a varanda, contornando mobília de palhinha almofadada e mesas baixas, até chegarem a umas portas de correr, em vidro. Experimentou a fechadura. Estava trancada. Agachou-se e manejou a gazua no buraco da fechadura. O mecanismo estalou. Delaroche empurrou as portas para trás e entraram.
Na verdade, a casa possuía três entradas: a porta da frente principal, o alpendre das traseiras e uma pequena porta para a cave no lado norte da casa, escondida atrás de um lance de escadas em vão. Michael e Elizabeth avançaram pelas divisões da cave até chegarem à porta.
O alarme soou na sua mão. Michael rapidamente o silenciou e reiniciou. Outubro entrara na casa através das portas de correr, junto à sala de estar. Segundos mais tarde, o alarme voltou a soar, e depois uma terceira vez. Dois detectores de movimento tinham sido ativados, um na casa de jantar e outro na sala de estar. Os detectores encontravam-se a vários metros de distância. A menos que Outubro se estivesse a movimentar pela casa muito depressa, era improvável que tivesse feito disparar os dois. A casa estava às escuras e não lhe era familiar. Michael partiu do princípio de que Astrid Vogel também ali estava. Virou-se para Elizabeth.
- Vai para a casa de hóspedes e espera aí até que chegue a polícia - indicou.
- Michael, não quero deixar-te...
- Vai, Elizabeth - ordenou Michael. - Se queres viver, faz o que te digo.
Elizabeth assentiu.
- A polícia chega daqui a alguns minutos. Quando chegar, corre para perto deles. É a mim que ele quer, não a você. Compreende?
Anuiu.
- Ótimo - disse Michael.
Digitou o código de desativação e abriu a porta. Elizabeth beijou-lhe a face e começou a subir as escadas. No alto, parou e olhou em todas as direções. A noite estava escura como breu, mal se conseguindo distinguir o contorno tênue da casa de hóspedes com vista para o mar.
Correu pelo relvado, a chuva batida pelo vento a fustigar-lhe o rosto, até chegar à porta da casa. Abriu a porta, entrou, depois virou-se e olhou para Michael uma última vez.
A porta da cave fechou-se e ele desapareceu. Elizabeth fechou a porta atrás de si e trancou-a, deixando as luzes apagadas. Depois foi até a janela e olhou na direção do portão principal.
Foi Astrid Vogel, de pé no meio da sala de estar, quem vislumbrou algo a mover-se pelo relvado em direção à casa de hóspedes: uma blusa de cor clara, uma mulher, a julgar pelas passadas ligeiramente desajeitadas. - Jean-Paul - sussurrou, apontando para o relvado. - A mulher.
- Apanha-a - segredou Delaroche. Depois pousou uma mão sobre o braço dela e disse: - Viva, Astrid. Morta não nos vale de nada. E despacha-te. Não temos muito tempo.
Astrid esgueirou-se pelas portas de correr, atravessou o alpendre e começou a percorrer o relvado.
Michael reativou o sistema de alarme. Encontrou uma lanterna recarregável ligada a uma tomada, uma das muitas posicionadas por toda a casa devido às frequentes falhas de energia da ilha. Michael acendeu a lanterna e apontou o feixe para as paredes, movendo-o para a frente e para trás, até encontrar o quadro elétrico. Abriu-o e iluminou-o. O interruptor principal era o maior. Puxou-o para baixo e cortou a luz na casa inteira. O sistema de alarme funcionava a pilhas, por isso permaneceria funcional. Pôs o alarme em modo silencioso.
Seguiu o raio de luz escadas acima e regressou à cozinha. Na parede, ao lado do telefone, ficava uma caixa de intercomunicação para o portão principal. O intercomunicador funcionava com o sistema telefônico e o portão possuía uma fonte de eletricidade autônoma. Carregou num botão e foi rapidamente para junto de uma janela da sala com vista para o relvado. Lá fora, no topo da propriedade, viu o portão de metal a correr, abrindo-se.
A casa de hóspedes parecia um frigorífico. Elizabeth não se recordava da última vez que alguém ali estivera. O termostato estava regulado no nível mais baixo, para evitar que os canos rebentassem devido ao gelo. O vento açoitava o telhado de ripas e batia de encontro às janelas que davam para Shelter Island Sound. Algo raspou no lado da casa. Elizabeth soltou um pequeno grito e depois percebeu que se tratava apenas do velho carvalho que trepara inúmeras vezes em criança. Não era a casa dos hóspedes. No léxico da família Cannon, era conhecida como a casa de Elizabeth. A casa era confortável e estava modestamente mobilada. O chão era feito de madeira clara e, na sala de estar, mobiliário rústico encontrava-se disposto em redor da grande janela com vista para o porto. A cozinha era minúscula, apenas um pequeno frigorífico e um fogão com dois bicos, e o quarto era simples. Quando era pequena, a casa era dela. Se a casa principal se encontrava repleta com o pessoal do pai, ou com alguma delegação de um país estranho, Elizabeth ia para ali, a fim de se esconder entre os seus haveres. Adorava a casa, cuidava dela, passava nela noites de Verão. Fumou o primeiro charro na casa de banho e perdeu a virgindade no quarto.
Pensou: Se eu pudesse escolher um sítio para morrer, seria aqui.
Soprou as mãos e apertou os braços em redor do corpo para se proteger do frio. Num gesto reflexo, tocou no baixo-ventre.
Mais uma vez, pensou: Será que os bebês estão bem? Meu Deus, faz com que estejam bem!
Foi até a janela e espreitou lá para fora. Uma mulher alta estava a correr em direção à casa, de arma na mão. Distinguiu suficientemente o rosto dela para perceber que era a mesma pessoa que a perseguira em Washington. Afastou-se da janela e quase tombou sobre uma poltrona.
É a mim que ele quer, não a você.
Soube que Michael estava mentindo. Iriam usá-la para chegar a Michael, mas também a matariam. Da mesma forma que tinham matado Max. Da mesma forma que tinham matado Susanna.
Ouviu o raspar de botas nos degraus de madeira que levavam à porta da frente. Ouviu o estalido metálico de Astrid Vogel a experimentar a maçaneta. Escutou um ruído surdo quando Astrid Vogel tentou derrubar a porta com um pontapé e invocou cada réstia do autocontrole que possuía para não gritar. Foi para o quarto e fechou a porta. Ouviu uma série de sons abafados, três ou quatro, não tinha a certeza, e o som de madeira a ser despedaçada: Astrid Vogel a disparar contra a fechadura. Outro pontapé e, desta vez, a porta abriu, indo bater com violência na parede adjacente.
E a mim que ele quer, não a ti.
E tu és um mentiroso, Michael Osbourne, pensou. Eram impiedosos e sádicos. Com eles não haveria qualquer hipótese de argumentação nem, por certo, de negociação.
Recuou até o canto, olhos postos na porta fechada. Meu Deus, quantas vezes tinha estado ali? Em lindas manhãs de Verão. Em tardes frias de Outono. Os livros nas prateleiras eram seus, bem como as roupas no armário. Até o tapete puído aos pés da cama. Pensou na tarde em que ela e a mãe o tinham comprado juntas, num leilão em Bridgehampton.
Pensou: Não posso deixá-la apanhar-me. Vão matar-nos aos dois.
Ouviu a mulher a atravessar a casa, o som das botas no soalho de madeira. Ouviu o vento nas árvores, o grito das gaivotas. Deu um passo em frente e fechou a porta com o gancho.
Esconde-te no armário, pensou. Talvez ela não procure aí.
Não sejas tonta, Elizabeth. Pensa! Depois ouviu a mulher chamá-la.
- Sei que está aqui, Sra. Osbourne. Não quero fazer-lhe mal. Apareça, vá lá.
A voz era baixa e estranhamente agradável, com um sotaque alemão. Não lhe dê ouvidos!
Abriu o armário e esgueirou-se lá para dentro. Deixou a porta entreaberta, pois não conseguia suportar a ideia de estar trancada naquele espaço escuro e minúsculo. Por fim, ouviu o silvo das sirenas, ao longe, trazido pelo vento. Imaginou onde estariam: Winthrop Road, Manhanset Road se viessem do meio da ilha. Fosse como fosse, Elizabeth sabia que estaria morta antes de eles chegarem. Afastou-se da porta. Algo afiado espetou-lhe a omoplata: uma flecha, pousada sobre a prateleira. Tateou ao longo da parede. Sabia que estava por ali algures, o arco que o pai lhe oferecera quando fizera doze anos. Estava pendurado num gancho na parede, ao lado de um velho conjunto de tacos de golfe.
A mulher tentou abrir a porta do quarto e descobriu que estava trancada.
Agora sabe que estou aqui dentro, pensou Elizabeth.
Foi invadida pelo pânico. Obrigou-se a respirar.
Bateu suavemente com as mãos ao longo da parede até tocar em algo frio e duro. Elizabeth pegou no arco. Tinha um metro e sessenta e cinco de comprimento, medida padrão. Estendeu o braço para cima e agarrou na flecha. A haste era de alumínio com penas. Pegou na flecha entre os primeiros dois dedos da mão direita e, com o polegar, a ranhura para o fio atrás das penas. Fizera aquilo vezes sem conta, por isso fazê-lo na escuridão não era problema, mesmo com mãos trémulas.
A mulher deu um pontapé na porta, mas o velho gancho não cedeu. Elizabeth fixou a flecha no fio e apertou a haste contra os dedos da mão esquerda, a qual agarrava o arco. Puxou a flecha para trás a meio caminho e depois respirou fundo. A corda do arco estava velha e quebradiça, podendo simplesmente estalar quando a esticasse à tensão necessária para disparar uma flecha. Por favor, pensou Elizabeth, dedilhando o fio. Preciso de mais um disparo seu.
Seria ela realmente capaz de fazer aquilo? Nunca matara um ser vivo, nunca sonhara em caçar. Fosse como fosse, o pai nem sequer quereria ouvir falar nisso. Certa vez apanhou um dos seus namorados a perseguir um veado com o arco e a flecha dela e baniu-o da casa durante o resto do Verão.
A mulher deu um pontapé na porta. O trinco partiu-se e a porta abriu. 360
O corpo de Elizabeth ficou rígido. Sentia-se como se fosse feita de pedra. Obrigou-se a respirar devagar. Fá-lo: pelo Michael, pensou. Fá-lo pelas crianças dentro de ti.
Puxou a flecha para trás e empurrou a porta com o pé. Viu Astrid Vogel, à porta, a arma nas duas mãos, perto do rosto. Astrid virou-se para o barulho repentino e fez pontaria com os braços esticados.
Elizabeth soltou a flecha.
A ponta da seta atingiu Astrid na base da garganta a atirou-a para trás, encostando-a à porta aberta. Elizabeth gritou. Os olhos de Astrid abriram-se muito e os lábios apartaram-se.
De alguma forma, conseguiu permanecer com a arma nas mãos. Ergueu-a e começou a disparar. O silênciador abafava os disparos, transformando-os num ruído surdo. Elizabeth saltou de novo para dentro do armário. Os disparos lascaram a porta, estilhaçaram a janela do quarto e arrancaram estuque das paredes. Ela caiu no chão e enrolou-se numa bola.
Depois parou. O quarto ficou em silêncio à exceção do vento e dos cliques de Astrid Vogel a tentar disparar uma arma vazia. Elizabeth pôs-se de pé, pegou noutra flecha e saiu do armário.
Astrid ejetara o cartucho gasto e remexia no bolso do casaco à procura de outro carregador. O sangue jorrava da ferida na garganta. Conseguiu retirar o carregador novo do bolso.
- Não, por favor, não faça isso - pediu Elizabeth. - Não me obrigue a voltar a fazer a mesma coisa.
Astrid olhou para ela e depois para a flecha na garganta. O carregador caiu-lhe das mãos. Respirou fundo duas vezes. O sangue gorgolejava-lhe na garganta.
Por fim, o seu olhar ficou inexpressivo.
Elizabeth caiu de joelhos e vomitou violentamente.
Michael, de volta à cave, podia ouvir os passos de Outubro no piso de cima, deslocando-se cuidadosamente por entre os móveis da sala de estar. Michael sabia que Outubro seria metódico e cuidadoso. Revistaria a casa, divisão a divisão, até encontrar o seu alvo. Para sobreviver, Michael teria, mais uma vez, de ser mais inteligente do que
Outubro, tal como o fora no caminho para peões, na Virgínia. Outubro encontrava-se em território desconhecido. Michael seria capaz de andar pela casa de olhos fechados. Utilizaria isso em seu proveito. Outubro saíra da sala de estar para a cozinha.
- Tenho a sua mulher, senhor Osbourne. Se aparecer agora, desarmado, com as mãos no ar, nada de mal lhe acontecerá. Se me obrigar a persegui-lo como a um animal, mato-a também.
Michael não respondeu, limitando-se a escutar o avanço de Outubro através do primeiro piso da casa. . Passado um instante, Outubro disse: >
- Também me lembro daquela noite em Londres, senhor Osbourne. Lembro-me do som dos seus gritos junto ao rio. Ela era uma mulher linda. Deve tê-la amado muito. Foi uma pena ter de morrer. Foi a primeira e única mulher que eu alguma vez matei, mas não hesitarei em matar a sua mulher, caso insista neste disparate. Entregue-se ou ela morrerá com você.
Michael sentiu a fúria crescer dentro de si. O simples fato de ouvir a voz daquele homem passados tantos anos enchia-o de horror. Tentou reprimir o que sentia, pois sabia que essa era exatamente a reação que Outubro estava a tentar instigar. Se perdesse a cabeça, se agisse com emoção em vez de inteligência, morreria. Também sabia que Outubro não tinha qualquer intenção de permitir que Elizabeth vivesse.
- Deve ter sofrido muito, ao perder a sua amante daquela maneira, abatida como um cão, mesmo à frente dos seus olhos - continuou Outubro. - Ouvi dizer que tiveram de o arrancar do campo e enviá-lo de volta à sede. Ouvi dizer que foi a sua desgraça. Imagine só como se irá sentir se eu matar outra das suas mulheres. Não desejará viver depois disso, garanto-lhe. Por isso entregue-se, senhor Osbourne. Facilite-nos a vida aos dois.
Michael ouviu um grito vindo da casa de hóspedes: um grito de Elizabeth.
Parece que as coisas estão ficando interessantes lá fora, senhor Osbourne. Pegue o telefone e ligue para a casa. Diga a sua mulher para se entregar e nada de mal lhe acontecerá. Tem minha palavra.
Michael atravessou a divisão e apertou o botão FALAR do intercomunicador.
Muito calmamente, disse: - Sua palavra nada significa para mim, Nicolai Mikhailovich.
- Do que é que me chamou? - gritou Outubro, após um momento de hesitação.
- Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro, ou as pessoas maravilhosas do KGB esconderam essa informação? Nicolai Mikhailovich Voronstov. Seu pai era o General Mikhail Voronstov, líder do Primeiro Direktorad do KGB. Era seu filho bastardo. Sua mãe era amante dele. Quando teve idade suficiente, seu pai entregou-o ao KGB para que ser educado. Sua mãe acabou num gulag. Quer que continue, Nicolai Mikhailovich?
Michael soltou o botão e esperou a reação de Outubro. Ouviu uma porta sendo aberta com um pontapé, um abajur de cerâmica despedaçando-se no chão, o ruído surdo de uma arma com silenciador sendo descarregada. Michael estava conseguindo perturbá-lo.
- Seu professor foi um homem que conhecia apenas como Vladimir. Tratava-o como a um pai. Na verdade, ele praticamente era seu pai. Com dezesseis anos, foi infiltrado no Ocidente através da Checoslováquia. Recebeu ordens para matar os seus acompanhantes. Um deles era uma mulher, o que faz de si um mentiroso, bem como um assassino. Ocultou-se no Ocidente. Dez anos mais tarde, já um homem, começou a matar. Posso nomear a maioria das suas vítimas se quiser, Nicolai Mikhailovich.
Michael ouviu uma janela a estilhaçar-se e mais balas a cravarem-se na parede. Ouviu um carregador vazio a cair no chão e um novo a ser colocado no sítio.
Depois ouviu sirenas ao longe e mais um grito vindo da casa de hóspedes.
Voltou a carregar no botão do intercomunicador.
- Quem o contratou? - perguntou. Mais disparos.
- Quem o contratou, raios? Responda!
- Não sei quem foi!
- Está mentindo. Toda a sua vida é uma mentira.
- Cale-se!
- Está encurralado aqui dentro. Nunca sairá desta ilha com vida.
- Você também não, nem sua mulher.
- Astrid já saiu daqui há muito tempo.
- O que será que está retardando?
- Telefone para a casa. Diga a sua mulher para se entregar.
Michael pousou o celular e pegou o receptor do telefone. Ouviu Outubro levantar uma extensão. O telefone tocou uma vez e Elizabeth atendeu, sem fôlego.
- Michael! Meu Deus, ela está morta. Eu a matei. Atingi-a com uma flecha. Michael, por Deus, não quero ficar aqui com ela. Oh, Michael, é horrível. Por favor, não quero ficar aqui com ela.
- Vai para o cais. Leva o barco a remo para o Alexandra. Espere até que a polícia chegue.
- Michael, o que é que...
- Faça o que digo. Vai para o Alexandra! Já!
Elizabeth desligou o telefone e dirigiu-se à janela. Conhecia Michael há mais de dez anos. Ele velejara naquele barco inúmeras vezes com o pai dela. Sabia que se chamava Athena e não Alexandra. Era possível que se tivesse enganado devido à pressão da situação, mas duvidava. Era intencional.
Havia um motivo. Ele queria que ela ficasse na casa, mas desejava que Outubro pensasse que estava indo para o barco.
Observou a casa principal pela janela. Ouvia as sirenes a aproximarem-se.
Queria sair dali. Queria um cigarro para disfarçar o cheiro do sangue de Astrid Vogel. Queria que aquele pesadelo acabasse. Segundos mais tarde, viu a porta de correr do alpendre abrir-se e o homem chamado Outubro correr pelo gramado em direção ao cais.
Delaroche precipitou-se para o meio das trevas. O vento açoitava as árvores e quase o levava pelo ar. O cais estendia-se adiante, avançando pela escuridão. A cinquenta metros da costa, o veleiro balançava nas amarras, o mastro oscilando como um pêndulo na crista espumosa das ondas, as adriças gritando ao vento.
A voz de Michael Osbourne, distante e metálica, soava na sua cabeça como as vozes nos alto-falantes de uma estação de trem.
Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro.
Raios me partam! pensou Delaroche. Como ele sabia?
O KGB prometera-lhe uma coisa: a sua existência no Ocidente seria tão secreta que apenas meia dúzia de pessoas da hierarquia saberia a verdade. Tão secreta que lhe fora permitido matar seus acompanhantes até o Ocidente naquela noite, na Áustria. Teriam mentido? Alguém o teria traído? Teria sido Vladimir? Ou Arbatov? Ou o traidor Drozdov? Teria Drozdov descoberto a verdade sepultada nos arquivos no Centro de Moscou e vendido aos seus novos senhores no Ocidente? Delaroche jurou matar Drozdov se chegasse a sair vivo de Shelter Island.
A revelação de que a CIA tinha um dossiê fez Delaroche sentir-se fisicamente doente. Também teriam uma fotografia? Normalmente era Delaroche que utilizava os dossiês, era Delaroche quem folheava as páginas negras da vida de um homem até descobrir a fraqueza que acabaria por se tornar na sua desgraça. Agora, Delaroche sabia que os seus inimigos tinham reunido um dossiê sobre a sua vida e Osbourne utilizara-o contra ele. Chamei-lhe Nicolai Mikhailovich.
De forma reflexa, as mortes passavam por sua mente. Tentou não pensar nelas, mas os rostos apareceram um por um, primeiro vibrantes e vivos, depois estropiados por três buracos de bala. Hassan Mahmoud, o rapaz palestino. Colin Yardley e Eric Stoltenberg. Sarah Randolph...
Podia ouvir os gritos de Michael Osbourne ecoando ao longo da Represa de Chelsea.
E seu nome verdadeiro.
Certas noites, Delaroche tinha um sonho e agora esse sonho desenrolava-se na sua imaginação. Os homens que ele matara iam confrontá-lo, armados com automáticas com silenciador, e ele tentava pegar na sua pistola Glock, ou na Beretta, e só encontrava pincéis. Depois tentava alcançar a sua arma de reserva e encontrava apenas uma paleta. "Sabemos quem és", diziam eles, começando a rir. Delaroche erguia as mãos e protegia o rosto e as balas despedaçavam-lhe a palma das mãos e penetravam-lhe nos olhos. Delaroche sentava-se na cama e dizia a si próprio que não passava de um sonho, era apenas um maldito e estúpido sonho.
Delaroche atravessou a correr o relvado em declive, os pés a voar sobre a relva molhada, até que o som dos seus passos sobre o cais de madeira desfez a imagem de pesadelo da sua própria morte. Ouviu o barco a bater contra os pilares do cais, mas o motor estava silencioso. Alguns segundos depois, chegou ao fim do pontão e olhou para baixo, a arma apontada para a escuridão.
O barco estava vazio.
- Largue a arma! - gritou Michael sobre o barulho do vento.
- Deite-se no cais, de barriga para baixo, e faça-o muito devagar.
Michael estava no início do cais, Outubro no fim, a quinze metros de distância. O braço esquerdo estava pendurado ao lado do corpo, o direito, dobrado pelo cotovelo, a arma perto do rosto. Permanecia imóvel. Pelo som das sirenes, a polícia encontrava-se agora em Shore Road. Chegaria numa questão de segundos.
- Largue a arma agora! - gritou Michael. - Acabou. Faça o que digo.
Outubro baixou o braço direito até este ficar hirto ao lado do corpo. A polícia chegou ao portão principal. Michael ouviu a porta da casa de hóspedes abrir-se. Virou-se na direção do som e avistou a blusa bege de Elizabeth, brilhando na escuridão.
- Fique onde está, Elizabeth - gritou!
Outubro agachou-se e deu meia volta. O braço ergueu-se. Michael disparou vários tiros com a Browning, mas todos eles voaram por cima da cabeça de Outubro. O assassino disparou três vezes através da escuridão. Um dos tiros atingiu o alvo, rasgando o lado direito do peito de Michael.
A Browning caiu-lhe da mão e retiniu ao longo da doca. Michael caiu de costas. Tinha o braço direito dormente e depois sentiu uma dor intensa e excruciante no peito.
A chuva batia-lhe no rosto. Os ramos das árvores contorciam-se sob o vento e, no seu delírio, Michael pensou que eram mãos gigantes rasgando seu corpo. Deslizou para a inconsciência.
Viu Sarah caminhando em sua direção na Represa de Chelsea, a saia comprida dançando sobre as botas de camurça. Viu o rosto desfeito. Ouviu a voz de Elizabeth, chamando-o de muito longe, incompreensível.
Por fim, ela atravessou a névoa do choque.
- Michael! Ele está vindo! Michael, por favor, meu Deus! Michael!
Michael levantou a cabeça e viu Outubro avançando lentamente na sua direção. A Browning estava no cais, a alguns centímetros de distância. Michael tentou alcançá-la com a mão direita, mas esta não obedecia à ordem para que se mexesse. Rolou para o lado direito e estendeu a mão esquerda. Sentiu o metal frio da Browning, a coronha escorregadia devido à chuva. Agarrou-a, colocou o dedo no gatilho e disparou.
Delaroche viu o clarão na boca da arma de Osbourne. Ergueu a Beretta quando a primeira série de disparos passaram por ele zumbindo, inofensivos, e fez pontaria ao corpo de Osbourne, deitado de barriga para baixo. Deu mais um passo. Queria atingi-lo no rosto. Queria vingar a morte de Astrid. Queria deixar sua marca.
Osbourne voltou a disparar. Desta vez, uma bala rasgou a mão direita de Delaroche, estilhaçando osso. A Beretta caiu-lhe da mão e mergulhou nas águas em turbilhão sob o cais. Olhou para baixo e viu fragmentos de osso saindo do golpe feio nas costas da mão.
Quis matar Osbourne com a mão boa, partir-lhe o pescoço ou apertar-lhe a garganta, mas Osbourne ainda tinha sua arma e a polícia entrava no terreno. Deu meia volta, correu velozmente pelo cais e saltou para o barco. Puxou o codão de arranque quatro vezes até que o pequeno motor pegou. Desatou a amarra e dirigiu o barco para longe do cais, em direção a Shelter Island Sound.
Cannon Point estava resplandecente de luzes. As sirenes enchiam o ar. Acima de tudo, Delaroche ouviu uma coisa: os gritos de Elizabeth Osbourne, implorando ao marido que não morresse.
LONDRES
- Osbourne vai sobreviver? - perguntou o Diretor, a partir da biblioteca da sua casa em St John's Wood.
- O estado dele estabilizou esta noite - respondeu Mitchell Elliott. - Sofreu outra hemorragia por volta do meio-dia, por isso os cirurgiões tiveram de entrar novamente em ação. Infelizmente, parece que vai sobreviver.
- Onde está ele?
- Oficialmente, a sua localização é secreta. A minha fonte em Langley confirma que o Osbourne está na unidade de cuidados intensivos no Stonybrook Hospital, em Long Island.
- Espero que compreenda que, neste momento, o Osbourne é intocável. Pelo menos por agora.
- Sim, eu sei, Diretor.
- Ele sobreviveu a dois atentados. Sob quaisquer circunstâncias haverá um terceiro.
- com certeza, Diretor.
- É um adversário digno de respeito, o nosso senhor Osbourne. Tenho de confessar que o admiro muito. Quem me dera que houvesse alguma forma de convencê-lo a trabalhar para mim.
- Ele é um Escoteiro, Diretor, e os Escoteiros não encaixam bem na sua organização.
- Acho que tem razão.
- Qual é o estado do Outubro? - perguntou Elliott.
- Receio que tenha tido uma recepção bem indelicada por parte da equipe de extração.
- E os adiantamentos que depositamos na conta dele, no banco suíço?
- Desapareceu tudo, creio. Parece que Outubro transferiu o dinheiro da conta tão rapidamente quanto entrou.
- É uma pena.
- Sim, mas claro que um homem da sua posição não está preocupado em perder uns trocados aqueles.
- Claro que não, Diretor.
- Ainda há um alvo do qual temos de tratar.
- Já coloquei tudo em andamento.
- Excelente. Mas faça-o com habilidade. Há muito em jogo.
- Será feito de forma muito habilidosa.
- Senhor Elliott, sei que não tenho de lembrar de que, a esta altura, o seu primeiro dever é o de proteger a Sociedade a todo o custo. Não deve fazer nada que coloque a Sociedade em risco, seja ele qual for. Sei que posso contar com o seu auxílio nessa questão.
- Claro, diretor.
- Muito bem. Foi um prazer negociar com você. Só espero que não tenha sido tudo em vão. Será necessária toda a sua notável maestria para garantir a sobrevivência do seu sistema de defesa antimíssil.
- Estou confiante de que esse objetivo pode ser alcançado.
- Ótimo. Boa noite, senhor Elliott.
- Boa noite, Diretor.
O Diretor pousou o receptor sobre o descanso.
- É um mentiroso fantástico - comentou Daphne.
Deixou o robe de seda cair-lhe dos ombros e deslizou para a cama, deitando-se ao lado dele.
- Receio que seja necessário, nesta linha de trabalho.
Beijou-o na boca e pressionou os seios contra o corpo dele. Depois fez deslizar as mãos até entre as pernas dele e agarrou-o.
- Alguma coisa, meu amor? - murmurou. Ele beijou-a e respondeu:
- Talvez se você se esforçar um pouco mais, minha flor.
WASHINGTON, D. C.
Paul Vandenberg estacionou em Ohio Drive, com vista para o Washington Channel, e desligou o motor. Viera sozinho, no seu carro privado, tal como Elliott pedira. O encontro deveria ter lugar às dez da noite, mas Elliott estava atrasado, o que era pouco típico da sua parte. Outro carro parou atrás de si, um veículo de tração às quatro rodas, grande e preto, as janelas opacas pulsando ao som de rap. Vandenberg ligou o carro e deixou-o parado enquanto esperava. O veículo de tração às quatro rodas partiu às dez e um quarto. Cinco minutos depois, um sedan preto parava ao seu lado e o vidro da porta traseira desceu.
Era Mark Calahan, o assistente pessoal de Mitchell Elliott.
- O senhor Elliott pede imensas desculpas, mas tem de haver uma mudança de local - informou Calahan. - Venha comigo e eu o levo ao carro quando o encontro terminar.
Vandenberg saiu do carro e entrou no banco traseiro do sedan preto. Andaram durante dez minutos: contornaram Hains Point, atravessaram a Memorial Bridge para a Virgínia e depois seguiram para o norte, ao longo da alameda. Calahan permaneceu sempre em silêncio. Era uma das regras de Elliott: nada de conversas de ocasião entre seu pessoal e os clientes. Por fim, o carro entrou num estacionamento com vista para a Roosevelt Island.
- O senhor Elliott está a sua espera na ilha, senhor - declarou Calahan educadamente. - Vou levá-lo até ele.
Os dois homens saíram do carro.
O motorista, Henry Rodriguez, ficou à espera ao volante. Dois minutos depois, Rodriguez ouviu o estouro de um único tiro.
Um corredor encontrou o corpo às 7h15 da manhã seguinte. Jazia ao lado de um banco de mármore no memorial a Theodore Roosevelt, o que os órgãos de comunicação social consideraram adequado, uma vez que Paul Vandenberg sempre admirara TR. A arma fora colocada na boca. Uma grande porção da parte de trás da cabeça de Vandenberg desaparecera. A bala estava cravada no tronco de uma árvore a dezoito metros de distância.
O bilhete de suicídio foi encontrado no bolso do peito do sobretudo de lã. Exibia as caraterísticas de todos os bons memorandos de Vandenberg: conciso, econômico, direto. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, pois sabia que o Washington Post preparava um relato devastador de suas atividades de angariação de fundos ao longo dos anos em proveito de James Beckwith. Vandenberg admitia a culpa. Beckwith e Mitchell Elliott não possuíam qualquer responsabilidade. Vandenberg planejara e executara tudo. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, porque era preferível morrer com um tiro do que com um procurador independente.
Um James Beckwith abalado apareceu na sala de imprensa da Casa Branca ao fim da tarde, a tempo dos noticiários da noite. Declarou sentir um choque e pesar profundos pela morte de seu assessor mais próximo. Em seguida anunciou que o Departamento de Justiça daria início de imediato a uma investigação minuciosa de todas as atividades de angariação de fundos de Vandenberg em prol de Beckwith. Abandonou a sala de imprensa sem responder a perguntas e passou uma noite sossegada com Anne nos aposentos da família da Casa Branca. Na manhã seguinte, o Post dedicava grande parte da primeira página ao suicídio aparente de Paul Vandenberg. A reportagem incluía longa explicação sobre a relação financeira entre James Beckwith e Mitchell Elliott. O artigo contestava a afirmação, patente no bilhete suicida de Vandenberg, de que ele, e só ele, fora o arquiteto da rede complexa de acordos financeiros que, ao longo dos anos, tinham enriquecido os Beckwith. Também implicava o advogado de Washington de Mitchell Elliott, Samuel Braxton, o candidato de Beckwith a secretário de Estado.
O artigo tinha autoria dupla: Tom Logan e Susanna Dayton, do Washington Post.
JANEIRO
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Algumas noites eram melhores do que outras. Em certas noites, Elizabeth assistia a tudo outra vez nos seus sonhos e acordava a gritar, esfregando as mãos para tentar tirar as manchas de sangue. Em certas noites, Michael acordava, tendo sonhado que Outubro lhe tinha dado três tiros no rosto, em vez de um no peito. A casa de hóspedes foi restaurada e repintada, mas Elizabeth nunca mais lá voltou. Por vezes, Michael sentava-se na ponta do cais e espreitava as águas em torvelinho. Por vezes, passava uma hora antes que despertasse do seu transe. Por vezes, Elizabeth observava-o do relvado e imaginava exatamente o que ele estava a pensar.
Sobre o que aconteceu a seguir, Michael só sabia o que lia nos jornais ou via na televisão mas, como qualquer membro dos serviços secretos, geralmente considerava as notícias dadas pelos órgãos de comunicação social como música de fundo irritante. Todas as manhãs, o novo caseiro ia até a drogaria em Shelter Island Heights buscar os jornais (The New York Times, The Wall Street Journal, Newsday) e deixava-os sobre a mesa-de-cabeceira de Michael. No dia de Ano Novo, Michael sentia-se forte o suficiente para fazer a viagem também. Sentou-se no banco do passageiro do seu Jaguar e, pela janela, fitou em silêncio a água e as árvores nuas de Inverno. O interesse esmoreceu à medida que Janeiro ia passando e, por altura do Dia da Inauguração, já deixara de ler completamente os jornais.
Beckwith suportou bem os tempos difíceis. O mérito foi atribuído à esposa, Anne. Esta tornara-se a conselheira mais importante do Presidente desde a morte de Paul Vandenberg. Foi capa da News week na edição da semana do Natal e, no interior, podia ler-se um artigo esplendoroso sobre a sua perspicácia política. Anne teria de desempenhar um papel fundamental a partir das sombras para que o segundo mandato de Beckwith fosse bem sucedido. Segundo os mexericos de Washington, foi Anne quem levou o Presidente a insistir numa reforma radical do financiamento das campanhas. Com o fervor dos recém-convertidos, Beckwith pediu a proibição de contribuições irregulares aos partidos (o "dinheiro fácil"), e pressionou as estações de televisão a dar aos candidatos tempo de antena gratuito. Por volta do Dia da Inauguração, a sua taxa de aprovação atingira os sessenta por cento.
Dois dos amigos e apoiantes mais chegados de Beckwith não se saíram tão bem. Samuel Braxton viu-se obrigado a recusar a nomeação para secretário de Estado. Negou ter cometido qualquer crime mas afirmou não querer enlear a política externa americana, envolvendo-se numa longa luta pelo reconhecimento, que iria causar cisões. De acordo com os órgãos de comunicação social, foi Anne quem tirou o tapete a Braxton.
A Alatron Defense Systems retirou-se voluntariamente do projeto nacional de defesa antimíssil depois de Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith e presidente do Comité das Forças Armadas do Senado, prometer levar a cabo "o equivalente congregacional a um exame rectal" a Mitchell Elliott. O contrato foi adjudicado a outro fabricante da Califórnia e Sterling deu o seu apoio relutante, garantindo que o sistema receberia financiamento e seria utilizado.
Dois dias antes da tomada de posse, o FBI e a US Park Police divulgaram os resultados da investigação sobre a morte do Chefe de Gabinete da Casa Branca, Paul Vandenberg. Os investigadores não encontraram qualquer prova que sugerisse que a sua morte não se ficara a dever ao suicídio. A investigação sobre os assassinatos de Max Lewis e do agente da polícia Dale Preston não resultou em detenções. A Polícia Metropolitana de Washington deu discretamente por encerradas as suas investigações sobre o assassínio de
Susanna Dayton. O caso permaneceu tecnicamente aberto.
Elizabeth passava longos fins-de-semana na ilha. Trabalhava três dias por semana a partir do gabinete de Nova York da Braxton, Allworth & Kettlemen, enquanto, pouco a pouco, resolvia os casos pendentes e sondava outras firmas. Graças ao seu currículo e às ligações políticas que mantinha, não lhe faltavam propostas. A venerável firma de Nova York, Titan, Webster & Leech foi quem lhe ofereceu mais dinheiro e, acima de tudo, maior flexibilidade. Aceitou a oferta e, nessa mesma tarde, enviou a Samuel Braxton, por fax, a sua carta de demissão.
Michael recuperou mais depressa do que o previsto pelos médicos. A neve caiu na primeira semana de Janeiro e o tempo ficou gelado. Contudo, na semana seguinte, o tempo aqueceu um pouco e os médicos mandaram-no sair de casa e dar pequenos passeios.
Nos primeiros dois dias, passeou cautelosamente por Cannon Point, o braço direito ao peito, pois a bala de Outubro esmagara-lhe a clavícula e fraturara-lhe a omoplata. No terceiro dia, caminhou ao vento em Shore Road, com um par de seguranças de Adrian Carter a segui-lo lentamente. No espaço de uma semana, de manhã ia até a aldeia a pé e regressava e, ao fim da tarde, percorria as longas praias rochosas de Ram Island.
À noite, escrevia na biblioteca de Douglas Cannon, com vista para Dering Harbor. Passados três dias, mostrou o primeiro esboço ao sogro. Cannon fez a revisão com um lápis vermelho, avivando a prosa formal e burocrática de Michael, aguçando a lógica dos argumentos e das conclusões. Quando terminou, enviou-a de imediato a Adrian Carter, em Langley.
- Não há nada que eu deteste mais do que Washington no Dia da Inauguração - disse Carter na noite seguinte. - Bem que precisava de um pouco de ar do mar e de um vinho dos Cannon. Importas-te que eu vá passar aí uns dias?
- Durante quanto tempo é que vou ter de aturar estes palhaços? - perguntou Michael na tarde seguinte, enquanto andava aos solavancos pelo sexto fainvay do Gardiners Bay Country Club, num carro de golfe. Dois agentes de segurança da CIA, com blusões de penas a condizer, vinham num carro atrás deles, resmungando para os rádios que traziam nas mãos. - Merda, falhei o buraco - disse Carter, parando o carro com um solavanco ao lado da bola e descendo. Retirou um ferro número nove do saco e preparou-se para uma tacada de 140 metros para o green.
- Vai responder minha pergunta? - quis saber Michael.
- Valha-me Deus, Michael, calma. Não quando estou preparando a tacada.
Carter deu a tacada. A bola caiu no bunker esquerdo.
- Raios me partam, Osbourne!
- Tenha calma, Tigre. O frio aqui fora é de três graus.
Carter subiu no carro e dirigiu-se ao green.
- Aqueles palhaços, como você os chama, estão aqui para proteger você e sua família, Michael, e vão ficar até eu ter certeza de que sua vida já não corre perigo.
- Neste momento a minha vida corre perigo porque estou dentro de um carro de golfe aberto em pleno inverno.
- Vou te levar em casa depois das nove e depois venho jogar sozinho.
- Você é doido.
- Devia se dedicar ao jogo.
- Já tenho frustração que chegue em minha vida. Consigo viver sem me autoflagelar. Além disso, terei sorte se algum dia puder levantar um copo de cerveja com este braço, quanto mais manejar um taco de golfe.
- Como vai Elizabeth?
- Tão bem quanto se pode esperar, Adrian. Matar alguém não é fácil, mesmo em legítima defesa. O fato de ter conseguido evitar que chegasse ao conhecimento público tornou as coisas mais fáceis para ela. Não consigo agradecer o suficiente a você.
- Ela é uma joia - afirmou Carter. - Sempre disse que você é o homem mais sortudo que eu conheço. - O chip de Carter passou ao lado do buraco, deixando-o com um putt de três metros. - Porra! - exclamou. - Está frio demais para jogar golfe. Vamos passar a tarde em frente à lareira tomando um porre.
- Leu? - perguntou Michael, enquanto Carter retirava a rolha de uma garrafa de merlot italiano e enchia dois copos.
- Sim, li. Das duas uma: ou jogava fora ou deixava seguir.
- Qual delas tomou?
- Escolhi o caminho dos covardes. Deixei seguir sem comentário.
- Você é um fracote.
- Chama-se subterfúgio burocrático. Salvar a pele.
- Salvar o couro.
- É a mesma coisa. Você podia aprender uma ou duas coisas comigo. Normalmente anda com o couro ao léu.
- Sou um homem de campo, Adrian. Os homens de campo são péssimos em trabalho burocrático. Você mesmo disse muitas vezes.
- É verdade.
- Então como é que ficou tão bom nesse tipo de trabalho?
- Porque queria uma vida e não podia ter uma se corresse de buraco em buraco, tentando me lembrar do meu nome falso da semana.
- A quem deu meu memorando?
- A Monica Tyler, claro.
- Deixe-me adivinhar: ela jogou fora.
- Num instantinho.
- Não esperava outra coisa.
- Então por que escreveu?
- Por achar que é verdade.
- Acredita mesmo que Mitchell Elliott, com a ajuda de um bando secreto de agentes vendidos, abateu aquele avião para poder construir o seu sistema de defesa antimíssil?
Michael assentiu. - Sim, acredito.
- Isso se enquadra na categoria de acusações perigosas demais... pelo menos sem provas conclusivas. Monica reconheceu isso e eu também. Sinceramente, o que me incomoda é por que um agente com sua experiência não seja capaz de perceber isso.
Elizabeth bateu à porta e entrou. O senador convencera-a a sair com ele no Athena até a baía por algumas horas. Tinha o rosto corado devido ao frio.
Colocou-se em frente à lareira e aqueceu o traseiro junto às chamas.
- Pensei que você levaria as coisas com calma - disse Carter.
- Papai é que navegou. Eu só bebi chá de ervas e tentei não morrer congelada.
- Está tudo bem? - perguntou Carter.
- Está tudo ótimo. Os bebês estão fantásticos.
- Meu Deus, isso é maravilhoso - disse, abrindo um largo sorriso no seu rosto normalmente plácido.
- De que estavam a falar, rapazes?
- Assuntos de trabalho. - Tudo bem, vou-me embora. Fica - pediu Michael.
Michael, alguns destes assuntos...
- Ela pode ouvir a conversa em primeira-mão, ou pode ouvi-la mais tarde, na cama. Escolhe, Adrian.
- Fica - disse ele. - Além disso, é tão bom ter algo belo para onde olhar.
Torna-te útil, Michael, e serve-me mais um pouco de vinho. Elizabeth?
Ela abanou a cabeça.
- Nada de álcool nem de tabaco durante algum tempo. Carter bebeu um pouco de vinho e disse:
- Recebemos um relatório dos serviços franceses há dois dias. Acreditam ter descoberto a identidade falsa do Outubro. Estava a viver na costa bretã sob o nome de Jean-Paul Delaroche. Numa aldeia chamada Brélés.
- Meu Deus, nós estivemos lá, Michael.
- Vivia tranquilamente numa casa de campo com vista para o Canal. Parece que era também um pintor talentoso. Os franceses estão a manter as coisas bastante discretas, como só os franceses são capazes de fazer. Temos um alerta mundial em nome dele, mas até agora ninguém o viu. Também ouvimos dizer, de uma série de fontes diferentes, que está morto.
- Morto? Como?
- Parece que quem o contratou para te matar não ficou satisfeito por ele ter fracassado no cumprimento do contrato.
- Espero que o tenham torturado primeiro - disse Elizabeth.
Michael olhava pela janela, em direção ao cais e à baía encrespada mais além.
- No que está pensando, Michael? - perguntou Elizabeth.
- Gostaria apenas de ver o corpo, só isso.
- Todos nós gostaríamos - respondeu Carter. - Mas, regra geral, estas coisas não funcionam assim.
Terminou o vinho e estendeu o copo para que lhe servissem mais. Elizabeth abriu outra garrafa. O senador entrou na sala, o rosto corado e o cabelo desgrenhado. - Já vi que assaltaram a cave - disse. - Serve-me uma boa dose, por favor.
- Tenho outro assunto sério antes de ficarmos embriagados.
- Se tem de ser - retorquiu Michael.
- Monica concordou em desistir de todos os procedimentos disciplinares contra você. Acha que são inadequados nesta altura do campeonato, tendo em conta aquilo que tu e a Elizabeth sofreram. - Ah, que simpatia a da Monica.
- Vai lá, Michael. Ela está falando sério. Ela acha que as coisas se descontrolaram. Quer passar uma esponja em cima de tudo e seguir em frente.
Michael olhou para Elizabeth e depois novamente para Carter.
- Diga que agradeço, mas não, obrigado - disse.
- Quer que os procedimentos disciplinares avancem?
- Não, quero sair - disse Michael. - Decidi deixar a Agência.
- Não está falando sério...
- Sério como nunca - respondeu Michael. - Desculpa, má escolha de palavras. Pronto, agora podemos embebedar-nos.
Elizabeth atravessou a sala, abaixou-se e beijou os lábios de Michael.
- Tem certeza, Michael? Não faça isso por mim.
- Nunca tive tanta certeza de uma coisa em toda a minha vida. E não vou fazer por você. Vou fazer por nós. - Depois tocou a barriga de Elizabeth. - E por eles.
Ela beijou-o outra vez e disse:
- Obrigado, Michael. Amo-te. Espero que saibas isso.
- Eu sei - respondeu. - Se sei. Carter olhou para o relógio e exclamou: Oh, porra!
- O que foi? - perguntaram Michael e Elizabeth em uníssono.
- Perdemos o discurso do Beckwith.
E todos riram às gargalhadas.
EPÍLOGO
MYKONOS, GRÉCIA
Era a villa que ninguém queria. Estava localizada no topo de um penhasco, com vista para o mar, exposta ao vento eterno. Stavros, o agente imobiliário, desistira da ideia de vender a propriedade. Limitava-se a alugá-la todos os anos ao mesmo clã de jovens corretores ingleses que pilhavam a ilha em Agosto para três semanas de bebedeiras.
O francês com a mão ferida passou apenas cinco minutos dentro da casa. Percorreu os quartos e a sala de estar e inspecionou a vista do terraço de pedra. Prestou particular atenção à cozinha, que o fez franzir o cenho.
- Conheço homens que lhe podem fazer o trabalho, se desejar fazer renovações - disse Stavros.
- Isso não será necessário - respondeu o francês. - Eu próprio tratarei disso. - Mas a sua mão - assinalou Stavros, apontando com a cabeça para a ligadura. - Isto não é nada - alegou o francês. - Um acidente na cozinha. Em breve vai sarar.
Stavros franziu o sobrolho, como se achasse a história pouco convincente. - E alugada com frequência - continuou. - Se quiser deixar a ilha na época alta, tenho a certeza de que consigo arranjar um bom preço por ela, sobretudo se fizer reparações.
A villa já não é para alugar. - Muito bem. Quando gostaria de...
- Amanhã - antecipou-se o francês. - Dê-me um número de conta e o dinheiro será depositado esta tarde.
- Mas, monsieur, o senhor não é grego. Não é fácil para um estrangeiro comprar um imóvel. Existem impressos para preencher, documentos legais. Estas coisas levam tempo.
- Trate de tudo, senhor Stavros. Mas amanhã de manhã mudo-me para cá. Passou o resto do Inverno dentro de casa. Quando a mão ficou suficientemente boa, começou a trabalhar, restaurando a villa com a devoção de um monge a copiar livros antigos. Kristos, o homem da loja de artigos para o lar ofereceu-se para encontrar bons homens para o ajudar com o trabalho, mas o francês recusou educadamente. Substituiu os eletrodomésticos da cozinha e colocou um novo balcão de cerâmica. Repintou todo o interior. Retirou a mobília velha (móveis modernos pavorosos) e encheu as divisões com cadeiras e mesas rústicas gregas. Em Março, quando o tempo aqueceu, virou a atenção para o exterior. Disfarçou rachas nas paredes e deu-lhes uma demão de cal reluzente. Substituiu as telhas partidas no telhado e as pedras partidas no terraço. A meio de Abril, a villa que ninguém queria era a mais bonita da aldeia.
A bicicleta de corrida italiana chegou nessa mesma semana. Todas as manhãs, pedalava pelas estradas sinuosas da costa e subia e descia as colinas íngremes no centro da ilha. Gradualmente, à medida que os dias aumentavam, ia passando cada vez mais tempo na aldeia. Regateava o preço das azeitonas, do arroz e do borrego no mercado. Algumas tardes por semana, almoçava na taberna, sempre com um livro como proteção. Às vezes, comprava robalo grelhado aos rapazes na praia e comia o peixe sozinho, numa gruta, onde brincavam focas cinzentas. Aventurou-se a entrar na garrafeira. De início, bebia apenas vinhos franceses e italianos mas, passado algum tempo, desenvolveu um gosto por variedades gregas baratas. Quando o empregado sugeria colheitas mais dispendiosas, o francês abanava a cabeça e devolvia a garrafa. As renovações, explicava ele, tinham-lhe dado um rombo nas finanças.
Ao princípio, o seu grego era limitado, algumas frases desconexas, um sotaque vago, difícil de identificar. Mas extraordinariamente no espaço de dois meses, conseguia tratar dos seus assuntos num grego aceitável com o sotaque de um ilhéu.
As mulheres da aldeia faziam avanços suaves, mas ele não possuía qualquer amante. Só tinha duas visitas: um pequeno inglês com olhos da cor da água do mar invernal e uma deusa mulata que apanhava banhos de sol nua em Maio. O inglês e a deusa ficaram três dias. Todas as noites jantavam no terraço, já a noite ia avançada.
Em maio, começou a pintar. De início, só conseguia segurar nos pincéis durante alguns minutos de cada vez, devido à cicatriz na mão direita. Depois devagar, gradualmente, a cicatriz deixou de repuxar e ele era capaz de trabalhar várias horas de seguida. Durante muitas semanas, pintou os cenários em redor da villa: as paisagens marítimas, os aglomerados de casas caiadas, as flores nas encostas, os anciãos a beber vinho e a comer azeitonas na taberna. A villa refletia as cores em mutação de cada dia que passava: um cor-de-rosa empoeirado da aurora, um castanho-avermelhado filtrado do crepúsculo que levou semanas de pacientes experiências para recriar na sua paleta.
Em agosto, começou a pintar a mulher.
Era loura, com uns admiráveis olhos azuis e uma tez pálida e luminosa. Segundo a empregada de limpeza, trabalhava sem um modelo a partir de uma mancheia de esboços desenhados a lápis.
- É evidente - contou ela às outras moças da aldeia - que o francês trabalha de memória.
Era uma obra grande, cerca de dois metros por um metro. A mulher vestia apenas uma blusa branca, desabotoada até o umbigo, tingida com o castanho-avermelhado do ocaso. O corpo longo encontrava-se disposto sobre uma pequena cadeira de madeira, a olhar para trás. O queixo repousava sobre uma mão. A outra segurava algo que parecia uma arma, embora ninguém colocasse uma arma na mão de uma mulher tão bela, disse a empregada. Nem mesmo um francês recluso.
Terminou a obra em outubro.
Colocou-a numa moldura simples e pendurou-a na parede, de frente para o mar.
CAIRO
- Meu Deus, esta maldita cidade.
Astrid Vogel estava de pé, junto às portas de correr, abertas para o anoitecer frio de Inverno. Havia uma pequena varanda com uma balaustrada de ferro forjado ferrugento, mas o senhor Fahmy, o recepcionista, avisara que as varandas andavam a cair nos últimos tempos, por isso, por favor, é melhor não ir para lá. Estavam no hotel havia dois dias e a sanita deixara de funcionar três vezes. Por três vezes o senhor Fahmy aparecera, de casaco e gravata, munido com um rolo de fita-adesiva castanha e uma bobina de fio de cobre. Todos os bons faz-tudo estavam no Golfo (no Kuwait, na Arábia Saudita ou nos Emirados) a trabalhar para xeques do petróleo. O mesmo acontecia com os professores, os advogados e os contabilistas. Os profissionais e os ricos tinham fugido. O Cairo era uma cidade de camponeses em ruínas e não havia ninguém qualificado para a reparar. Depois o autoclismo começava a funcionar, como o esperado, e ele sorria tristemente e dizia: "Está arranjado, inshallah", embora soubesse que estaria de volta no dia seguinte com o seu elixir de fita-adesiva e fio de cobre.
Teve início a chamada para oração da noite, primeiro um único muezim, muito distante, depois outro e mais outro, até que mil vozes grosseiramente amplificadas gritavam em uníssono. O hotel encontrava-se situado ao lado de uma mesquita e o minarete erguia-se mesmo em frente à janela. Naquela manhã, quando aquela coisa começou a troar pela madrugada, Astrid acordou de tal forma assustada que pegou na arma que estava em cima da mesa-de-cabeceira e correu nua para a varanda. Astrid era uma ateia devota. A religião deixava-a nervosa. No Cairo, havia religião por todo o lado. Envolvia as pessoas, rodeava-as. Não havia forma de lhe escapar. A solução era troçar dela. Naquela tarde, quando a chamada do muezim começou, levou Delaroche para a cama e fez com ele amor desenfreado. Agora' ouvia a chamada como um biólogo marinho poderia estudar os sons de acasalamento das baleias-cinzentas. Apercebeu-se de que era ligeiramente musical, harmoniosa, como uma daquelas fugas em que um violino toca a mesma série de notas depois de outra ter acabado. O Cânone do Cairo, pensou. O chamamento extinguiu-se lentamente até uma única voz pairar no ar, algures na direção de Giza e das pirâmides, e depois também ela desapareceu. Astrid permaneceu junto às portas de correr, os braços cruzados sobre os seios, a fumar um horrível cigarro egípcio, a beber champanhe gelado porque o hotel estava sem água engarrafada e a agua da torneira podia matar um búfalo-da-índia. Tinha vestido uma galabia de homem, as mangas arregaçadas e desabotoada até o umbigo. Delaroche, deitado na cama, observava o contorno indistinto do seu corpo de modelo através do tecido translúcido da túnica branca. Comprara-a naquele dia, num mercado de rua perto do hotel, chamando a atenção de uma forma apenas conseguida por uma loura alemã de um metro e setenta e oito nas ruas sexualmente oprimidas do Cairo. Durante algum tempo, Delaroche pensou que tinha cometido um erro ao deixá-la sair, mas era Inverno e havia milhares de turistas escandinavos na cidade, por isso ninguém se lembraria da alemã alta que insistira em comprar uma túnica de camponês no mercado. Alem disso, Delaroche gostava de andar a pé pelas ruas palpitantes do Cairo. Tinha sempre a sensação de estar a deslocar-se através de outras cidades: agora uma esquina de Paris, agora uma viela de Roma, agora um quarteirão da Londres vitoriana, tudo coberto de pó e entulhos como a Esfinge. Desejou poder pintar, mas naquela viagem não havia tempo para isso.
O vento noturno que entrava pelas portas abertas cheirava ao Deserto Ocidental. Misturava-se com o fedor que é exclusivo do Cairo: pó, lixo em putrefação, madeira a arder, fezes de macaco, urina, escapes de milhões de carros e camiões, fumos tóxicos das fábricas de cimento de Helwan. Mas era fresco e seco, maravilhoso na pele úmida e nua dos seios de Astrid. O pó acumulava-se no seu rosto. Estava por todo o lado, cinzento, fino como farinha. Penetrava-lhe na mala, nos livros e nas revistas. Delaroche estava constantemente a limpar a Beretta que lhe fora deixada no cofre de um banco do Cairo.
- Este pó - resmungava ele, passando com um farrapo oleado sobre o cano. - Este malvado deste pó.
Astrid gostava da janela aberta, pois o ar condicionado estava avariado e nada no saco de truques do senhor Fahmy podia arranjá-lo, mas as criadas fechavam sempre o quarto como um sarcófago.
- O pó - diziam, à laia de explicação, revirando os olhos para a janela aberta de Astrid. - Por favor, o pó.
Aventurou-se a ir à varanda, ignorando o terrível aviso do senhor Fahmy. Lá em baixo, homens empurravam carros silenciosos por uma rua estreita e obstruída. Havia um milhão de carros no Cairo e Astrid não vira um único verdadeiro estacionamento coberto. Os habitantes do Cairo tinham desenvolvido uma medida provisória completamente insana: limitavam-se a deixar os carros no meio da rua. Por uma mancheia de piastras amachucadas, empreendedores astutos tomavam conta de um carro o dia todo, empurrando-o de um lado para o outro, abrindo espaço para outros. Muitas ruas laterais da baixa eram intransitáveis, pois tinham sido transformadas em estacionamentos temporários. Do outro lado da estrada, ao lado da mesquita, um edifício de escritórios ruía lentamente. Em vez de retirarem os móveis de uma forma ordeira, os trabalhadores limitavam-se a atirar as coisas pelas janelas. Vinte soldados, camponeses das aldeias, estavam sentados junto ao prédio condenado, a cozinhar sobre pequenas fogueiras.
- Por que razão destacaram soldados para a porta do edifício, Jean-Paul? - perguntou, observando o espetáculo.
- O quê? - interrogou Delaroche, do interior do quarto.
Astrid repetiu a pergunta, desta vez mais alto. Conversação ao estilo do Cairo. Devido à cacofonia ensurdecedora nas ruas, a maior parte das conversas era conduzida aos gritos. Isto fazia com que fosse difícil planear o assassinato de Stoltenberg. Por razões de segurança,
Delaroche insistia em que falassem na cama, cara a cara, para que pudessem conversar baixinho, diretamente ao ouvido um do outro.
- Destacaram soldados para manter os peões afastados do prédio, para o caso de ruir de repente.
- Mas se o prédio ruir de repente, os soldados vão morrer. É uma loucura.
- Não, é o Cairo.
Uma carroça apareceu na estrada, puxada por um burro coxo. O condutor era um rapazinho, louro e de olhos verdes, vestido com uma túnica andrajosa. Da base da carroça ia caindo lixo. Os soldados insultaram o rapaz e atiraram pedaços de pão ao burro. Por um instante, Astrid pensou em pegar na arma e dar um tiro a um dos soldados.
- Jean-Paul, vem aqui, depressa - pediu.
- Zabbaleen - disse Delaroche, dirigindo-se à varanda.
- O quê?
- Zabbaleen - repetiu ele. - Quer dizer coletores de lixo. O Cairo não tem saneamento básico, nem sistema oficial de coleta de lixo. Durante anos, o lixo era simplesmente jogado nas ruas, ou queimado para aquecer a água do banho. Nos anos 30, os Cristãos Copta migraram para o Cairo vindos do sul. Alguns deles tornaram-se abbaleen. Não ganhavam dinheiro com isso, apenas o lixo que recolhiam. Vivem numa aldeia de lixo nas montanhas de Mokattam, a leste do Cairo.
- Meu Deus - exclamou ela, em voz baixa.
- É hora de nos vestirmos - ordenou Delaroche, mas Astrid permaneceu na varanda, olhando para o rapaz e seu lixo.
- Não gosto dele - disse e, por um momento, Delaroche não teve certeza se ela falava do abbaken ou de Eric Stoltenberg.
- É um sacana cruel, e também é esperto.
- Limite-se a fazer tudo conforme o planejado e as coisas vão correr bem.
- Não deixe que ele me faça mal, Jean-Paul.
Olhou-a. Matou uma dúzia de pessoas, viveu em fuga e, contudo, às vezes ficava tão assustada como uma menina. Acariciou-lhe o rosto e beijou sua testa com suavidade.
- Não vou deixar que ninguém te faça mal - prometeu.
Olharam para cima. Uma grande mesa de madeira balançava na varanda de um andar alto do edifício condenado. Pairou ali por um momento, como um passageiro agarrado ao parapeito de um transatlântico afundando, e depois espatifou-se na rua, despedaçando-se em mil bocados. O burro do abbaleen desatou a correr. Os soldados dispersaram-se. Olharam para cima e começaram a falar num árabe rápido, abanando os punhos na direção dos homens na varanda.
- O Cairo - concluiu Delaroche.
- Meu Deus - disse Astrid. - Que cidade de loucos.
O elevador do hotel era antiquado, abrindo caminho pelo centro de uma escada em espiral. Estava outra vez avariado, por isso Astrid e Delaroche tiveram de fazer a descida desde o sétimo andar. Fahmy, o eterno recepcionista, encolheu os ombros em sinal de desculpas.
- Amanhã, vem o técnico, inshallah - disse.
- Inshallah - repetiu Delaroche com um sotaque do Cairo perfeito, o qual Fahmy acatou com um aceno formal da sua cabeça calva.
O hall estava calmo, a sala de jantar deserta exceto por duas empregadas com aventais que limpavam o pó em silêncio. Delaroche considerava-a deprimente e vagamente russa, com as suas mesas compridas, a carne enrolada e o vinho branco quente. Astrid quisera ficar num dos grandes hotéis ocidentais (o Inter-Com ou o famoso Nile Hilton), mas Delaroche insistiu num sítio mais isolado. O Hotel Imperial era o tipo de lugar que os roteiros de viagens recomendavam a viajantes aventureiros que desejassem provar um pouco do verdadeiro Cairo.
Delaroche roubara uma motorizada: pequena, azul-escura, o tipo de scooter que os jovens italianos usam para fazerem corridas pelas ruas de Roma. Sentiu-se ligeiramente culpado, pois sabia que um rapaz egípcio qualquer tivera três empregos e poupara durante anos para poder comprá-la. Pôs Astrid dentro de um táxi e, num árabe rápido e correto, indicou ao motorista para onde levá-la. Delaroche partiu na sua moto, Astrid atrás dele no táxi.
Zamalek é uma ilha, comprida e estreita, que o Nilo rodeia como se de um fosso se tratasse. É um enclave dos abastados do Cairo: os resíduos da aristocracia, os novos-ricos, um grupo de jornalistas ocidentais. Apartamentos poeirentos elevam-se acima do penhasco e fitam com desaprovação o outro lado do rio, onde se encontra o barulho e o caos da baixa da cidade. Abaixo do penhasco, ao longo da água, existe uma represa onde uma juventude livre de Zamalek faz sexo até de manhã. Na ponta norte da ilha estão localizados os campos de críquete e os campos de tênis do Ghazira Sporting Club, os campos de jogos da velha elite britânica. Nas lojas e boutiques de Zamalek ouve-se o francês trazido para o Cairo por Napoleão. Os habitantes vestem roupas ocidentais, comem comida ocidental nos restaurantes e nos cafés, e dançam ao som de música ocidental nas discotecas. É o outro Cairo.
Eric Stoltenberg morava no último andar, o nono, de um edifício com vista para o rio. Os vizinhos queixavam-se das suas festas barulhentas e dos sons de acasalamento das conquistas frequentes. Todas as noites almoçava num dos restaurantes da moda de Zamalek e depois parava num clube noturno chamado Break Point para os seus copos e caça noturnos.
Tudo isso constava do arquivo de Delaroche.
O Break Point tinha um porteiro e uma ordem de entrada estatutária, como um clube de Nova York. O porteiro selecionava a clientela importante e as moças bonitas para entrarem em primeiro lugar. Eric Stoltenberg encaixava na primeira categoria, Astrid Vogel na segunda. Delaroche, um homem solteiro, atraente, na casa dos quarenta, teve de esperar dez minutos. Logo que entrou, dirigiu-se ao bar. Num árabe com o sotaque do Cairo pediu cerveja Stella, de fabrico egípcio. No clube noturno, com as suas luzes lúgubres e cortina de fumo, poderia passar por um qualquer egípcio da classe alta.
Pagou a cerveja e virou-se para perscrutar a sala. O sítio estava cheio, como era habitual: moças egípcias parcamente vestidas que dormiam com estrangeiros, rapazes que faziam o mesmo, umas quantas cabras da classe alta, alguns turistas aventureiros que não conseguiam suportar mais uma noite no terrível bar do Nile Hilton. Uma moça bonita convidou Delaroche para dançar, convite esse que ele recusou educadamente. Momentos mais tarde, surgiu o seu anjo da guarda, um rapaz grosseiro com um casaco de couro e uma camisa justa para provar que levantava pesos. Delaroche murmurou algo ao ouvido dele, o que fez com que o rapaz deixasse de imediato o bar, com a moça bonita a reboque.
Astrid dançava com Stoltenberg. Vestia uma das saias pretas compradas em Londres e um pulôver justo. Era uma turista chamada Eva Tebbe, nascida no Leste, que falava alemão com um sotaque saxônico. Astrid e Stoltenberg tinham-se conhecido na noite anterior, quando viera ali com Delaroche, o qual fez de turista francês do grupo. Stoltenberg atirou-se a ela de uma forma implacável. Restava-lhe dois dias no Cairo e depois ia para Luxor. Stoltenberg tentara engatá-la, mas ela recusou com tristeza, dizendo que o pequeno francês ficaria furioso. Nessa noite estaria sozinha, motivo pelo qual Delaroche não quis dançar e permanecia no bar, nas sombras.
Stoltenberg já fora um homem atraente, mas engordara devido ao álcool e à comida suculenta. Tinha o cabelo grisalho cortado rente e olhos azuis gelados. Vestia-se de preto: calças de ganga pretas, blusa de gola alta preta, blusão de couro preto. Tocava em Astrid enquanto dançava e, pela expressão dela, estava a gostar muito. Após três canções, dirigiram-se à mesa habitual de Stoltenberg. Conversaram, próximos um do outro.
Passados dez minutos, levantaram-se e abriram caminho pela pista até a porta, Stoltenberg puxando Astrid pela mão. O olhar dela passou por Delaroche mas não se deteve nele. Astrid, a profissional.
Observou atentamente o rosto dela e percebeu que estava assustada.
Era evidente que os negócios corriam bem a Eric Stoltenberg. Possuía um grande Mercedes preto e um motorista. Abriu a porta a Astrid, deu a volta por trás do carro e entrou para o veículo, sentando-se ao lado dela. O carro rugiu pelas ruas estreitas, depois virou para o penhasco e rumou a sul, ao longo do rio. Delaroche seguiu-os de mota, luzes apagadas, a cabeça oculta num capacete. Abrandou quando se aproximaram do apartamento de Stoltenberg, virado para o rio. Tal como em Londres, pensou. Leva-o para dentro, mete-o na cama, deixa uma porta aberta se puderes. Sem problemas. De repente, o Mercedes acelerou, passando pelo edifício a voar. Delaroche praguejou em voz alta e apressou-se atrás deles.
- Não te chamas Eva Tebbe - anunciou Stoltenberg, enquanto o carro acelerava. - O teu nome é Astrid Vogel. És um antigo membro da Fação do Exército Vermelho. - De que raio estás a falar? O meu nome é Eva Tebbe e sou uma turista de Berlim. Leva-me para o clube agora, seu doido varrido, ou vou gritar pela polícia. - Soube que eras tu cinco minutos depois de nos conhecermos. Aquele teu sotaque saxônico maluco não foi bom o suficiente para enganar um profissional.
- Profissional do quê? Leva-me de volta para o clube, já!
- Trabalhei para a Stasi, sua idiota! Lidei com a Red Army Faction. Nunca esteve no Leste, mas muitos camaradas seus estiveram. Tínhamos fotografias e dossiês completos sobre todos os membros da Red Army Faction, incluindo uma tal de Astrid Vogel.
- Meu nome é Eva Tebbe - repetia ela como se fosse um mantra. - Sou uma turista de Berlim.
- Pedi a um velho companheiro meu que me enviasse por fax esta fotografia. Agora está mais velha, seu cabelo está diferente, mas é você.
Meteu a mão no blusão de couro e exibiu a fotografia. Astrid olhava pela janela. Tinham atravessado o rio para o Cairo Ocidental e avançavam em direção a Giza.
- Olhe - gritou -, é você, olhe!
- Não sou eu. Por favor, não sei do que está falando.
Podia ouvir a própria voz a perder a convicção. Aparentemente, Stoltenberg também, pois deu-lhe uma violenta bofetada na boca com as costas da mão. Os olhos dela marejaram-se e sentiu nos lábios o gosto a sangue. Olhou para a fotografia, uma antiga foto de identificação da Alemanha
Ocidental. Era uma magrizela revolucionária, uma expressão no rosto que dizia como se atreveram a tirar-me esta porra desta fotografia. O corte de cabelo espetado de Kurt Vogel, os óculos com lentes de cristal de rocha de Kurt Vogel. Sempre achara que era uma fotografia bastante horrorosa, mas quando a policial a colocou num cartaz a dizer "procura-se", tornou-se o símbolo sexual da Esquerda radical.
As pirâmides estavam à sua frente, recortadas de encontro ao azul profundo da noite do deserto. Uma Lua muito branca a três quartos pairava baixa no céu, brilhante como um archote. Onde diabo estás tu, Jean-Paul? pensou ela. Resistiu ao impulso de se virar para trás e procurá-lo. O que tinha ele dito? Não vou deixar que ninguém te faça mal É bom que faças alguma coisa depressa, querido, pensou, ou este homem vai fazer de ti um mentiroso. Por qualquer razão, ele não lhe revistara o corpo, nem a mala. A arma ainda lá estava, uma pequena Browning automática, mas sabia que jamais conseguiria tirá-la a tempo, no espaço limitado do banco traseiro. Não teve outro remédio a não ser esperar, ganhar tempo e pedir a Deus que Jean-Paul estivesse algures na escuridão. As pirâmides desapareceram. Viraram para um trilho estreito e sem pavimento, que se estendia até o deserto.
- Para onde me estás a levar? - perguntou Astrid. - Se queres dar uma queca, podemos dá-la aqui mesmo. Não tens de me levar para o deserto e pores-te com estes jogos estúpidos. Voltou a esbofeteá-la. - Cala-te - ordenou.
O Mercedes dava solavancos e baloiçava desenfreadamente.
- Quem te contratou?
- Ninguém me contratou. Não sou quem tu dizes. Quero voltar para o meu hotel.
Por favor, não faças isto.
Deu-lhe outra bofetada, desta vez com mais força.
- Responde-me! Quem te contratou?
- Ninguém, por favor.
- Quem é o homem? O teu parceiro, o francês?
- Ele não passa de um idiota do meu grupo de viagem. Não é ninguém.
- Mataste o Colin Yardley em Londres?
- Eu não matei ninguém.
- Mataste o Colin Yardley em Londres? Foi o francês?
Eu não mato pessoas. Trabalho para uma revista em Berlim. Sou designer gráfica. Não me chamo Astrid Vogel. O meu nome é Eva Tebbe. Por favor, isto é coisa de loucos. Para onde me leva?
- Para um lugar onde ninguém vai te ouvir gritar e onde ninguém vai te encontrar depois que eu te matar. - Levou novamente a mão ao blusão e desta vez retirou uma arma. Encostou o cano no pescoço dela e puxou seu cabelo. - Mais uma vez - disse. - Quem é o francês? Quem te contratou?
- Meu nome é Eva Tebbe. Sou designer gráfica em Berlim.
Pensou nas velhas palestras sobre doutrinação na Red Army Faction. Se forem presos, não lhes deem nada. Desafiem, censurem, mas não lhes deem nada. Eles vão provocar, mexer com sua cabeça. É isso que os policiais fazem. Não lhes deem nada. Naquele caso, o conselho tinha uma aplicação muito prática, pois no momento em que dissesse a verdade a Stoltenberg, com certeza ele a mataria.
Puxou-lhe o cabelo com violência e depois soltou-a. A mala dela estava sobre o banco, entre os dois. Abriu-a e revirou o conteúdo até encontrar a Browning. Mostrou-a, como prova da traição, e colocou-a dentro do blusão. - É muito desleixado, esse teu francês, Astrid. Enviou-te para uma situação muito perigosa. Ele sabia que trabalhei para a Stasi. Devia ter percebido que podia reconhecer uma antiga assassina da Fação do Exército Vermelho. E preciso ser-se um sacana muito frio para enviar uma mulher para uma situação destas. O carro parou numa escarpa do deserto com vista para a cidade. Abaixo deles, o Cairo estendia-se como um leque gigante, estreito a sul, amplo a norte, na base do delta do Nilo. Milhares de minaretes erguiam-se em direção ao céu. Interrogou-se qual seria o dela. Queria estar de volta àquele quarto de hotel horroroso, com a sanita que não funcionava, junto ao edifício prestes a ruir. - É evidente que amas esse homem. É por isso que estás disposta a suportar a dor física por ele. Ele não sente o mesmo por ti, garanto-te. Caso contrário, nunca teria permitido que te aproximasses de mim. Está te usando, como aqueles sacanas na Red Army Faction te usaram.
Stoltenberg disse algo ao motorista num árabe rápido que Astrid não compreendeu. O motorista abriu a porta e saiu. Stoltenberg encostou-lhe novamente a arma ao pescoço.
- Muito bem - disse. - Vamos tentar só mais uma vez.
Delaroche desligou o motor da mota quando viu as luzes de travão do Mercedes a acender. Parou em silêncio, retirou a mota do trilho e aproximou-se do carro a pé. A Lua projetava sombras. O Cairo murmurava à distância. Imobilizou-se quando ouviu uma porta do carro abrir e fechar. O veículo permaneceu às escuras; Stoltenberg, como qualquer bom agente, inutilizara a luz interior. Ao luar, Delaroche viu o motorista, de arma na mão, a verificar o perímetro. Delaroche acocorou-se atrás de um aglomerado rochoso e esperou que o homem se aproximasse. Quando o motorista se encontrava a cerca de dez metros de distância, Delaroche pôs-se de pé e apontou a Beretta na escuridão. Stoltenberg estava novamente a esbofeteá-la, no rosto, na nuca, nos seios. Ela sentiu que o homem começava a gostar daquilo. Pensou noutra coisa, qualquer coisa. Pensou na casa flutuante no Prinsengracht e na pequena livraria e desejou que Jean-Paul Delaroche nunca tivesse entrado na sua vida. A porta do motorista abriu e fechou-se. Na escuridão, Astrid mal conseguia distinguir a silhueta de um homem atrás do volante. Apercebeu-se de que não era o mesmo homem que lá estivera antes.
Stoltenberg pressionava novamente a arma contra o pescoço de Astrid. - Viste alguma coisa? - perguntou Stoltenberg em árabe. O homem atrás do volante abanou a cabeça.
- Yallah - ordenou Stoltenberg. Vamos embora. Delaroche virou-se e apontou a Beretta ao rosto de Stoltenberg. O alemão ficou demasiado estupefato para reagir. Delaroche disparou três vezes. - Ele podia ter-me matado, Jean-Paul.
Estava deitada na cama no Hotel Imperial, com a sua galabia vestida, a fumar um cigarro atrás do outro na semiobscuridade. Delaroche estava deitado ao lado dela, a desmontar as armas. Ela tinha o cabelo úmido da ducha. Esfregara-se até ficar em carne viva, a tentar lavar o sangue de Stoltenberg. O vento entrava pelas portas abertas. Arrepiou-se. A sanita deixara outra vez de funcionar. Delaroche telefonou para a recepção e pediu que alguém viesse arranjá-la, mas o senhor Fahmy, o guardião do conhecimento secreto, estava de folga nessa noite. - Bokra, inshallah - disse o empregado. Amanhã, se Deus quiser.
Delaroche acatou a afirmação dela. O profissional que havia nele não podia contestá-la. Eric Stoltenberg tivera muito tempo e oportunidade para matá-la. Optara por não o fazer porque precisava de mais informações.
- Ele podia ter matado você - disse Delaroche -, mas não o fez porque se portou com perfeição. Ganhou tempo, não contou nada. Você nunca esteve sozinha. Eu estava atrás de você o tempo todo.
- Se ele quisesse me matar você não teria podido impedir.
- Este trabalho não é isento de riscos. Sabe disso.
As palavras de Stoltenberg ecoavam-lhe na mente.
- É muito desleixado esse seu francês, Astrid. Enviou você a uma situação muito perigosa.
- Não sei se consigo continuar, Jean-Paul.
- Aceitou a missão. Aceitou o dinheiro. Não pode desistir agora.
- Quero voltar para Amsterdam, ao Prinsengracht.
- Essa porta se fechou para você.
Fez mais uma vez o inventário dos ferimentos: lábio rachado, face esmurrada, uma marca de mão no seio direito. Nunca antes se encontrara numa situação em que estivesse impotente e não tinha gostado. - Não quero morrer como um animal no deserto.
- Nem eu - concordou ele. - Não vou deixar que isso aconteça a nenhum de nós.
- Para onde vai, quando esta questão chegar ao fim?
- Para Brélés, se puder. Se não, para as Caraíbas.
- E para onde irei, agora que a porta para Amsterdam foi fechada?
Pousou as armas e colocou-se em cima dela.
- Pode vir comigo para as Caraíbas.
- E o que vou fazer lá?
- O que quiser, ou então nada.
- E o que serei para você? Serei sua mulher?
Delaroche abanou a cabeça. - Não, não será minha mulher.
- Haverá outras mulheres?
Voltou a abanar a cabeça. - Não, não haverá outras mulheres.
- Serei o que quiser que eu seja, mas não pode me humilhar com outras mulheres.
- Nunca te humilharia, Astrid.
Beijou-lhe a boca com suavidade, para não lhe magoar o lábio. Desabotoou-lhe a galabia e beijou-lhe os seios e a feia marca deixada pela mão de Stoltenberg. Deslizou pelo corpo dela e levantou a galabia. O terror que Astrid sentira horas antes desvaneceu-se com a sensação intensa do que ele estava a fazer entre as suas coxas.
- Onde iremos viver? - perguntou baixinho.
- Junto ao mar - respondeu ele, voltando ao que estava a fazer.
- Vais fazer-me isto junto ao mar, Jean-Paul? Sentiu a cabeça dele dizer que sim entre as pernas.
- Vais fazer-me isto muitas vezes junto ao mar, Jean-Paul?
Era uma pergunta tola e ele não respondeu. Astrid agarrou-lhe a cabeça e puxou-a com força de encontro ao corpo. Teve vontade de lhe dizer que o amava, mas sabia que tais coisas jamais seriam ditas em voz alta. Mais tarde, ele deitou-se ao lado dela, respirando suavemente.
- Dormes de noite, Jean-Paul?
- Algumas noites são melhores do que outras. - Vê-los?
Vejo-os durante algum tempo e depois desaparecem.
- Porque mata daquela maneira? Por que três tiros no rosto?
- Porque quero que saibam que eu existo.
Astrid fechou os olhos e sentiu-se a deslizar para o sono.
- Você é a Besta, Jean-Paul?
- Do que está falando?
- A Besta - repetiu ela. - O Diabo. Talvez deixe sua marca nos rostos deles por ser a Besta.
- Os homens que eu mato são maléficos. Se eu não os matar, outra pessoa o fará. É apenas um negócio, nada mais.
- Com você é mais do que apenas um negócio, Jean-Paul. É... - hesitou e, por um instante, Delaroche pensou que ela tivesse finalmente adormecido. - É arte, Jean-Paul. Sua forma de matar é como arte.
- Dorme, Astrid.
- Espere que eu durma antes de você dormir, Jean-Paul.
- Eu espero - prometeu. Ficou em silêncio mais um instante.
- Quando se aposentar, o que será do Arbatov? - perguntou ainda.
- Suponho que terá de se aposentar também - respondeu Delaroche. - Mas ele já tem uma certa idade.
- É o Diabo, Jean-Paul? - perguntou Astrid, mas adormeceu antes que ele pudesse responder.
Momentos antes de o Sol nascer, retirou da mala o pequeno artigo do Le Monde sobre um diplomata reformado russo morto por rufiões de rua em Paris. Delaroche estava a dormir, ou fingia dormir, nunca tinha a certeza.
Levou o recorte até a varanda pouco firme de Fahmy e leu-o mais uma vez à luz bege do despontar do dia. Talvez não tivesse sido Jean-Paul, pensou. Talvez tivesse sido mesmo apenas um assalto.
O Cairo agitava-se lá em baixo. Uma abbaleen surgiu no beco, uma menina, vestida com farrapos, cheia de sono, açoitando um jumento com uma chibata. O muezim fez-se ouvir e outros mil juntaram-se a ele.
Levou um fósforo ao recorte e segurou-o até a chama o engolir. Depois largou-o e viu-o flutuar, até cair em cima de um monte de lixo e transformar-se em pó cinzento. 267
CAIRO
A viagem de táxi desde o aeroporto demorara quase tanto tempo como o voo a partir de Roma. Estava calor, até mesmo para Novembro, e não havia ar condicionado no pequeno Fiat usado. Michael recostou-se e tentou descontrair-se. Sabia que ficar agitado só iria piorar as coisas. O Cairo era como um nó com truque, que quanto mais se tentava desatar mais apertado ficava. O taxista partiu do princípio de que Michael era um egípcio rico de regresso de umas férias em Roma e tagarelou sobre como as coisas tinham ficado más. Envergava a túnica modesta e a barba desalinhada de um islâmico devoto. A rua estava obstruída com todos os tipos concebíveis de meios de transporte: carros, ônibus e camiões a vomitarem fumo pelos escapes, carroças puxadas por burros, bicicletas e peões. Um rapaz magricela espetou com uma galinha viva no rosto de Michael e perguntou se a queria comprar. O taxista gritou-lhe que se fosse embora. Uma imagem colossal do presidente egípcio sorria com benevolência de um painel publicitário à beira da estrada.
- Não estaria rindo se estivesse preso neste trânsito com a gente - murmurou o taxista.
Michael nunca vivera no Cairo, mas passara ali muito tempo. Exercera o cargo de oficial de controle de um agente importante no seio da Mukhabarat, os serviços de segurança egípcios que tudo permeiam. O agente não queria ser interrogado por um oficial da Estação do Cairo, sabia que a embaixada e os residentes da CIA eram bem controlados, por isso Michael viajava até o Egipto ocasionalmente, fingindo ser um homem de negócios, e ele próprio ouvia os relatórios. O agente forneceu informações valiosas sobre o estado do islamismo radical no Egipto, o aliado mais importante dos Estados Unidos no mundo árabe. Por vezes, a informação fluía ao contrário. Quando Michael soube de um plano para assassinar o ministro do interior egípcio, passou a informação a esse agente. O conluio foi gorado e vários elementos da al-Gama'at Ismalyya foram presos. O homem de Michael recebeu uma grande promoção que lhe deu acesso a melhores informações.
O Nile Hilton encontra-se localizado na Praça Tahrir, com vista para o rio. Em árabe, Tahrir significa libertação e Michael sempre achou que era o lugar com o nome mais inadequado da terra. A praça imensa estava com um engarrafamento terrível. O táxi não avançara dois centímetros em cinco minutos. O ruído das buzinas era insuportável. Michael pagou a corrida e percorreu o resto do caminho a pé.
Entrou no quarto, tomou uma ducha, mudou de roupa e voltou a sair. A Mukhabarat tinha uma das operações de vigilância mais dispendiosas da terra. Michael sabia que o telefone do quarto de certeza que estava sob escuta, ainda que viajasse como um homem de negócios italiano, presente na cidade para uma série de reuniões. Dirigiu-se à estação de metro da Praça Tahrir e encontrou uma cabine telefônica. Falou baixinho para o receptor durante dois minutos, levantando a voz uma vez para gritar por cima do troar de um comboio que entrava na estação. Tinha duas horas para gastar. Aproveitaria o tempo. Entrou no metro seguinte, saiu na primeira estação e voltou atrás. Caminhou. Dirigiu-se ao museu egípcio. Foi seduzido por uma loja de turistas especializada em óleos perfumados. Os rapazes da loja empanturraram-no com chá e. cigarros enquanto ele experimentava vários óleos. Michael recompensou a sua hospitalidade comprando um pequeno frasco de um óleo de sândalo abjeto, que atirou para dentro do caixote do lixo mais próximo assim que saiu. Estava à vontade, sem ser vigiado. Fez sinal a um táxi e entrou.
O Cairo é uma cidade de elegância perdida. Outrora existiram cinemas, um teatro de ópera e villas rodeadas de muros que derramavam música de câmara para as noites quentes. Pouco resta, e o que sobreviveu tem a consistência de um jornal deixado muito tempo ao sol. Muitas das villas foram abandonadas, a ópera desapareceu e os teatros tresandam a urina. O restaurante Arabesque tem o toque do velho Cairo, fazendo lembrar um ancião que deambula pela casa o dia inteiro de terno e gravata.
Estava-se a meio da tarde, a altura calma entre o almoço e o jantar, e a sala de jantar estava quase deserta. Michael teve de se esforçar para ouvir o barulho do trânsito, tão bom era o isolamento do restaurante. Yousef Hafez estava sentado a uma mesa de canto, longe de todas as outras pessoas. Quando Michael se aproximou, ergueu o olhar e sorriu, fazendo brilhar duas filas de dentes perfeitos e brancos. Tinha a aparência de uma estrela de cinema egípcia, do tipo corpulento na casa dos cinquenta, com um cabelo farto e a ficar grisalho, que atrai mulheres mais jovens e ultrapassa homens mais jovens. Michael sabia que isso não andava longe da verdade.
Pediram vinho branco fresco. Hafez era muçulmano, mas achava que a fidelidade rígida à lei islâmica era para "os malucos e os camponeses". Brindaram e conversaram sobre os velhos tempos durante uma hora, enquanto os empregados traziam travessa após travessa de aperitivos ao estilo libanês.
Por fim, Michael falou no assunto que ali o levara. Disse a Hafez que estava no Cairo para tratar de um assunto pessoal. Esperava que Hafez o ajudasse por amizade e cortesia profissional. Sob quaisquer circunstâncias poderia discutir o assunto com o seu oficial de controle atual. Seria pago pela ajuda prestada, diretamente do bolso de Michael.
Podes pagar-me um almoço ou outra garrafa deste vinho, mas guarda o dinheiro. Michael fez sinal ao empregado de casaco branco para que trouxesse mais vinho. Enquanto o empregado os servia, Hafez falou sobre uma pisga que comera em Cannes naquele Verão. A Mukhabarat empregava dezenas de milhares de informantes, logo era sempre possível que o empregado fosse um deles. Quando se afastou, Hafez declarou:
- Então, o que posso fazer por ti, meu amigo?
- Quero falar com um homem chamado Eric Stoltenberg. É um antigo elemento da Stasi, que vive no Cairo a trabalhar como freelancer.
- Sei quem ele é.
- Sabes onde encontrá-lo? - Para dizer a verdade, sei.
Hafez pousou o copo de vinho e fez sinal para que trouxessem a conta. O corpo estava numa sala quente com centenas de outros, coberto por um lençol cinzento. O macacão do funcionário estava salpicado de sangue. Hafez ajoelhou-se ao lado do corpo e olhou para Michael, a fim de se certificar de que este estava preparado. Michael acenou com a cabeça e Hafez afastou o lençol para trás. Michael desviou rapidamente o olhar e teve uma ânsia de vômito, o almoço no Arabesque a subir-lhe à garganta.
- Onde o encontrou? - perguntou Michael.
- Perto das pirâmides, na orla do deserto.
- Deixa-me adivinhar: três tiros no rosto.
- Exatamente - confirmou Hafez, acendendo um cigarro para disfarçar o cheiro. - Foi visto pela última vez num clube noturno em Zamalek. Um sítio chamado Break Point.
- Conheço - disse Michael.
- Estava dançando com uma mulher europeia: alta, loura, alemã talvez.
- Chama-se Astrid Vogel. Foi da Facção do Exército Vermelho.
- Foi ela quem fez isto?
- Não, desconfio que recebeu alguma ajuda. Tem imagem de todos os passageiros que chegam ao aeroporto de Cairo?
Hafez fez um esgar, considerando a pergunta algo divertida.
- Importa-se que dê uma olhada?
Hafez levantou-se e disse: - Vamos.
Colocaram Michael numa sala com um leitor de vídeo e um monitor. Dois funcionários entravam e saíam silenciosamente, trazendo novas cassetes numa direção e levando as velhas noutra. Trouxeram-lhe chá, ao estilo russo, num copo com uma pega de metal ornamentado. Trouxeram-lhe tabaco egípcio quando acabaram os Marlboros. Trabalhou para trás no tempo, começando vinte e quatro horas antes do assassinato. Outubro seria meticuloso. Outubro planejaria tudo cuidadosamente.
Encontrou-a depois da meia-noite. Era alta e ereta, com o cabelo puxado para trás, o que acentuava seu nariz comprido. As mãos grandes pareciam debater-se com o passaporte ao entregá-lo ao funcionário da alfândega. Outubro apareceu cinco minutos depois, baixo, com ligeireza nos pés, como um esgrimista. A pala de um boné de basebol, puxada para a testa, obscurecia-lhe grande parte do rosto, mas Michael conseguia ver o suficiente. Imobilizou as duas imagens e chamou Hafez.
- Aqui estão os teus assassinos - anunciou Michael, quando Hafez entrou na sala. - Esta é Astrid Vogel, a alemã com quem Stoltenberg estava dançando no clube noturno.
Hafez apontou para a segunda imagem.
- E aquele?
Michael fitou a tela.
- Quem me dera saber.
AMSTERDAM
Estava uma madrugada muito fria quando Delaroche e Astrid regressaram à casa flutuante no Prisengracht. Delaroche inspecionou o barco cuidadosamente durante vinte minutos, para se certificar de que ninguém estivera a bordo. Verificou os detetores, revistou os armários na cozinha e as gavetas no quarto de Astrid, percorreu o convés gelado. Astrid não lhe foi de grande ajuda. Contente por finalmente estar a bordo do seu adorado Krista, deixou-se cair em cima da cama vestida como estava e observava-o só com um olho, como se estivesse louco.
Delaroche sentia-se alerta e revigorado, apesar da longa viagem. Na manhã anterior tinham apanhado um avião do Cairo para Madrid, tendo primeiro explicado ao senhor Fahmy que iam abreviar a estadia no Hotel Imperial porque a Sra. estava muito doente. Fahmy receava que fosse a sanita que os tivesse afugentado (ofereceu-lhes a melhor suíte do hotel para persuadi-los a ficar), mas Delaroche garantiu-lhe que fora a água, e não a sanita, que os obrigara a partir. Em Madrid, tinham apanhado o comboio para Amsterdam. Delaroche passou a viagem debruçado sobre o computador portátil como um homem de negócios, planeando o assassinato seguinte. Astrid dormia um sono sobressaltado ao lado dele, revivendo os últimos acontecimentos.
O canal congelara novamente e, mais uma vez, o Krista estava repleto dos gritos alegres dos patinadores. Astrid tomou comprimidos para dormir e tapou a cabeça com uma almofada. Delaroche sentia-se demasiado agitado para dormir, por isso, a meio da manhã, quando o sol consumiu as nuvens, foi para a coberta de proa e pintou, agasalhado com uma blusa grossa e luvas sem dedos. A luz era boa, bem como o assunto (patinadores no canal, casas com empenas em pano de fundo) e, quando terminou, pensou que era o melhor trabalho que produzira em Amsterdam.
Tinha um curioso desejo pela aprovação de Astrid mas, quando desceu para tentar acordá-la, ela limitou-se a resmungar que o seu nome era Eva Tebbe, uma designer gráfica de Berlim e para que, por favor, parasse de esbofeteá-la. Deixou-a ao início da tarde, pedalando por Amsterdam, com o computador portátil a tiracolo. Prendeu a bicicleta junto a um centro telefônico perto do Rijksmuseum e entrou. Dirigiu-se a uma cabine, ligou o computador e teclou durante alguns instantes. Tinha uma mensagem de correio eletrônico. Abriu-a e na tela surgiu uma série ininteligível de símbolos. Inseriu o nome de código e a mensagem apareceu num texto claro.
PARABÉNS PELO SUCESSO DA SUA MISSÃO NO CAIRO. O PAGAMENTO FOI ENVIADO PARA O NÚMERO DA SUA CONTA. TEMOS OUTRA MISSÃO. SE ACEITAR, RECEBERÁ UM MILHÃO E MEIO DE DÓLARES, RECEBENDO METADE COMO ADIANTAMENTO. PARA ACEITAR, DÊ ENTER. O PAGAMENTO SERÁ AUTOMATICAMENTE ENVIADO PARA A SUA CONTA E UM DOSSIÊ COM PORMENORES OPERACIONAIS SERÃO BAIXADOS PARA SEU COMPUTADOR. O ARQUIVO ESTARÁ CODIFICADO, CLARO, E O SEU NOME DE CÓDIGO IRÁ DECIFRÁ-LO. SE QUISER RECUSAR, TECLE ESCAPE.
Delaroche desviou o olhar da tela e pensou por um instante. Com aqueles honorários, ficaria com uma quantia extraordinária de dinheiro, mais do que suficiente para garantir o seu conforto e segurança para o resto da vida. Contudo, sabia que envolvia riscos. Os assassínios seriam cada vez mais difíceis (Eric Stoltenberg fora prova disso) e agora estavam a pedir-lhe para levar a cabo outro assassinato. Também se interrogou se Astrid seria capaz de continuar. O confronto com Stoltenberg no Cairo custara-lhe demasiado. No entanto, Delaroche apercebeu-se de que a vida de Astrid se encontrava agora inexoravelmente ligada à sua. Ela faria o que ele quisesse.
Carregou na tecla ENTER. O arquivo foi descarregado para o portátil pelo modem de alta velocidade. Deu uma vista de olhos ao dossiê e desligou o computador.
Conhecia o homem. Já o confrontara uma vez.
Guardou o computador e telefonou para o banco, em Zurique. Herr Becker atendeu. Sim, tinham sido efetuados dois depósitos na sua conta: um de um milhão de dólares e um segundo de três quartos de um milhão há momentos. Delaroche deu instruções a Becker para que transferisse o dinheiro para as contas nas Baamas. Saiu do centro telefônico e foi buscar a bicicleta de Astrid. Um ladrão estava a tentar arrombar o cadeado. Delaroche informou-o delicadamente de que aquela bicicleta lhe pertencia. O ladrão disse a Delaroche para se lixar. Delaroche enfiou-lhe um pé na região dos rins. Enquanto se afastava, montado na bicicleta, o ladrão continuava deitado no chão, contorcendo-se em silêncio.
Astrid dormiu até depois do pôr do Sol. Tomaram café num restaurante perto do Krista e deram um passeio pelos canais até a hora de jantar. Astrid inalou o ar frio e límpido de Amsterdam, tentando limpar os pulmões do pó e do fumo do Cairo. Estava um pouco nervosa devido aos soporíferos e ao café. Um homem com cabelo louro-acinzentado chocou com ela. Astrid estava já a levar a mão à mala para pegar na arma quando Delaroche lhe pousou a mão no braço e lhe segredou que não era nada, apenas um desconhecido com pressa.
Comeram como amantes extenuados no restaurante no Herengracht onde Delaroche a levara na primeira noite. Ela não tinha comido nada no Cairo, por isso devorou o seu prato, bem como grande parte do de Delaroche. A sua pele, branca como a cal devido ao cansaço e ao nervosismo, foi ganhando cor com a comida, o vinho e o ar da noite. Contou-lhe enquanto comiam a sobremesa. O rosto dela não deixou transparecer mais do que uma ligeira irritação, como se Delaroche a tivesse informado de que, naquela noite, ia ficar a trabalhar até mais tarde no escritório.
- Não tem que fazer - disse-lhe. - Não quero ficar sem você.
Fizeram amor sob a claraboia do Krista, ao som dos gritos dos patinadores no Prinsengracht. Em seguida, Delaroche confessou ter abatido o avião em Nova York, bem como o rapaz palestino. Disse-lhe que acreditava que os homens que tinham matado também estavam envolvidos no ataque ou que, de alguma forma, sabiam a verdade.
- Quem são os homens que te contrataram? - perguntou ela, tocando-o nos lábios.
- Sinceramente não sei.
- Tem que saber que eles vão te matar, Jean-Paul. Quando terminar o contrato, eles virão atrás de você. E de mim também.
- Eu sei.
- Para onde iremos?
- Para a nossa casa na praia.
- Estaremos seguros lá?
- Estaremos tão seguros como em outro lugar qualquer.
Astrid acendeu um cigarro e exalou um esguio fio de fumo em direção à claraboia. Delaroche pegou no portátil, ligou-o e carregou em algumas teclas. O disco rígido zumbiu e depois a imagem de um homem de cabelo escuro apareceu no ecrã.
- Por que esse homem tem que morrer?
- Desconfio que sabe demais.
Surgiu outra imagem, a de Elizabeth Osbourne.
- A mulher dele é linda.
- Sim.
- É uma pena.
- Sim - concordou Delaroche, e fechou o notebook.
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Michael apanhou o último ferry da noite. Durante alguns instantes, deixou-se ficar encostado ao parapeito a apanhar o ar frio, mas o vento e os salpicos da água fizeram com que voltasse para dentro do Buick alugado no aeroporto JFK. Telefonara a Adrian Carter a partir da Long Island Expressway e disse-lhe que estava de regresso ao país. Carter quis saber onde diabo estivera metido. Michael respondeu-lhe que iria à sede na tarde do dia seguinte e lhe explicaria tudo. Quando Carter exigiu uma explicação naquele momento, Michael mentiu e disse que a ligação do celular estava má, desligando em seguida. A última coisa que ouviu foi Adrian Carter a gritar obscenidades, o que não era nada típico de sua parte, ao pousar o telefone no gancho.
As vagas rebentavam na proa, encharcando o vidro. Michael ligou o limpa para-brisa. As luzes de Cannon Point brilhavam do outro lado de Shelter Island Sound. As imagens das últimas semanas vieram-lhe à cabeça: o Voo 002, Colin Yardley, Heathrow, Drozdov, Muhammad Awad, Eric Stoltenberg, Astrid Vogel, Outubro. Eram como fragmentos de uma melodia que não era capaz de completar. Tinha a certeza de que a Espada de Gaza não tinha perpetrado o ataque. Acreditava que era obra de outro grupo, ou de um indivíduo, que o levara a cabo em nome da Espada de Gaza. Mas quem? E porquê? Outubro era apenas um assassino contratado. Se estivesse envolvido, seria por mandado de outros. O mesmo se aplicava a Astrid Vogel. A Fação do Exército Vermelho não possuía os recursos nem motivo para realizar o ataque. Michael desconfiava saber a verdade, ou pelo menos parte dela: o homem chamado Outubro fora contratado para eliminar a equipe que levara a cabo o atentado.
O ferry atracou em Shelter Island. Michael ligou o motor e arrancou. Shelter Island Heights estava deserta, as lojas e as casas vitorianas às escuras. Acelerou ao longo de Winthrop Road, através de um túnel de árvores despidas, e contornou Dering Harbor. No Verão, o porto estava repleto de barcos. Agora encontrava-se deserto, exceto pelo Athena, que ondulava nas amarras sobre as ondas encrespadas ao largo de Cannon Point.
Michael também desconfiava que fora ele o alvo no ferry no Canal, não Muhammad Awad. Quem era o homem debaixo da balaclava? Seria Outubro? Já o vira empunhar a arma, em pessoa, na Represa de Chelsea e em vídeo, e não parecia ser o mesmo homem. Tinha de partir do princípio que continuava a ser um alvo e era obrigado a encarar a possibilidade de agora enviarem Outubro, um dos melhores assassinos do mundo, para realizar a tarefa. Teria de contar tudo a Carter e a Monica Tyler, pois precisava da sua proteção. Também diria tudo a Elizabeth, mas por razões muito diferentes. Amava-a mais do que a qualquer outra coisa e desejava ansiosamente recuperar a sua confiança.
Cannon Point surgiu diante dos seus olhos. Michael parou junto ao portão de segurança, baixou o vidro e digitou o código. O portão abriu e viu acenderem-se as luzes na casa do caseiro. Michael conduziu devagar pelo acesso de cascalho. Um grupo de veados de cauda branca, a pastar na erva morta do extenso relvado dos Cannon, olhou para cima e fitou Michael cautelosamente. Viu um raio de luz e ouviu cães a ladrar. Era apenas Charlie, o caseiro, a caminhar na sua direção, com os retrievers a latirem à volta dos seus tornozelos.
Michael desligou o motor e saiu do carro. Acenderam-se luzes na casa principal e a porta abriu de rompante. Viu Elizabeth emoldurada pela luz, envolta num dos velhos casacos do senador. Saiu para a rua, observando-o, com os braços cruzados sob os seios. O vento soprou-lhe o cabelo sobre o rosto. Depois deu alguns passos cuidadosos até junto dele e aninhou-se contra o seu corpo. - Nunca mais volte a me deixar, Michael.
- Não volto - prometeu. - Meu Deus, Elizabeth, lamento tanto.
- Quero conversar. Quero que me conte tudo.
- Eu vou contar tudo, Elizabeth. Há coisas que precisa saber.
Conversaram durante horas. Elizabeth sentou-se na cama, o queixo apoiado nos joelhos, brincando com um Benson Hedges por acender. Michael andava de um lado para o outro, ora sentando-se ao lado dela, ora olhando pela janela, para as águas do Sound. Fiel à sua palavra, contou-lhe tudo. Sentiu a tensão diminuir com a revelação de cada segredo. Desejou nunca lhe ter escondido nada desde o início. Sempre dissera a si próprio que era para proteção de Elizabeth, mas agora apercebia-se de que isso era apenas parte da verdade. Tivera uma vida de segredos e de mentiras durante tanto tempo, que não conhecia outra forma de viver. O sigilo era como uma doença, uma maleita. O pai apanhara-a e dera com a mãe em louca. Michael deveria ter evitado cometer os mesmos erros.
Depois de terminar, Elizabeth ficou calada durante muito tempo.
- O que queres de mim? - perguntou finalmente.
- Perdão - respondeu ele. - Perdão e compreensão.
- Tens isso, Michael. - Voltou a colocar o cigarro por acender dentro do maço.
- O que vai acontecer amanhã em Langley?
- Provavelmente vão pôr-me à frente uma quarenta e cinco carregada.
- De que estás a falar?
- Vou estar metido em grandes sarilhos. Posso não sobreviver.
- Não brinques comigo, Michael.
- Não há muito trabalho por aí para espiões caídos em desgraça.
Não precisamos do dinheiro. Podes tirar uns dias de licença e fazer alguma coisa normal durante o resto da vida. - Viu no rosto dele o impacto das suas palavras e disse: - Meu Deus, Michael, desculpa. Não estava a falar a sério. - Só há uma coisa que tenho de fazer antes de me vir embora. Quero saber o que realmente aconteceu àquele avião. Quero a verdade.
- E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, certo, Michael?
- Qualquer coisa assim.
- Desapareceu?
- Quem é que desapareceu?
- Sarah. Desapareceu?
- Nunca esteve lá, para começar.
- Muito inteligente, Michael, mas responde minha pergunta.
- Às vezes penso no que aconteceu. Mas não a amo, Elizabeth, e não desejo que ela estivesse deitada a meu lado no teu lugar.
Uma lágrima rolou-lhe pelo rosto. Ela limpou-a com força e disse:
- Anda, Michael. Vem para a cama.
Deixou-se ficar nos braços dele durante muito tempo, a chorar. Michael abraçou-a até que ela parou de soluçar. Olhou para o marido, o rosto molhado, e perguntou:
- Importas-te que eu te fale um bocadinho sobre o meu dia agora, querido?
- Adorava ouvir-te falar sobre o teu dia.
- Quatro ovos fertilizados. Implantaram esta manhã. Tenho de descansar uns dias. Depois vão me fazer um teste de gravidez para ver se deu certo.
Colocou a palma da mão na barriga dela. Elizabeth beijou-o nos lábios.
- Michael Osbourne, é a primeira vez que te vejo sorrir em semanas.
- É a primeira boa notícia que tenho em semanas.
Passou-lhe um dedo pelo cabelo.
- Virão atrás de você?
- Não sei. Se for embora, já não represento ameaça para eles.
- Vai sair amanhã? Por mim?
- Não me parece que tenha escolha.
- E a verdade vos libertará - disse ela. - Amém.
CHIPRE
O pequeno jato Gulfstream aterrou na pista isolada, os motores a gemer na escuridão. O piloto chamava-se Roger Stephens, um antigo oficial da Royal Navy's Fleet Air Arm, condecorado na Guerra das Malvinas. Agora trabalhava para a Seção de Transportes da Sociedade. Ao fazer mecanicamente as verificações pré-voo, Stephens não possuía uma informação crucial: o plano de voo. Os passageiros, um homem e uma mulher, deveriam dar-lho a bordo. Contudo, partiu do princípio de que seria um voo longo, pois tinha recebido ordens para atestar o depósito.
Trinta minutos depois, um Range Rover preto entrou na pista e avançou em direção ao Gulfstream a toda a velocidade, com os faróis apagados. Parou junto das escadas, largou duas pessoas e afastou-se rapidamente. Stephens executara várias missões para a Sociedade, pelas quais foi bem compensado, e conhecia as regras. Não devia olhar para os rostos dos passageiros, nem falar com eles. O acordo estava bem para Stephens. A Sociedade e os homens que a ela pertenciam não eram farinha que se cheirasse e ele queria ter o menos possível a ver com eles. Os passageiros entraram no avião e sentaram-se nos seus lugares. Uma mochila de nylon preta fora-lhes deixada a bordo e o frigorífico estava bem abastecido com comida e vinho. Stephens ouviu o som de um fecho de correr, o estalido metálico de um atirador experiente a verificar o funcionamento de uma arma automática, o estouro de uma rolha de champanhe, o murmúrio de uma mulher a falar num francês com sotaque alemão.
Um instante depois, o homem entrou no cockpit e colocou-se atrás de Stephens.
- O plano de voo - disse, simplesmente.
Falou em inglês, com um ligeiro sotaque que Stephens não foi capaz de identificar. O plano de voo foi-lhe atirado para a frente dos olhos, juntamente com uma Beretta com silênciador. Stephens pegou no plano de voo.
- Permaneça no cockpit e não olhe para nenhum de nós - avisou Delaroche. - Se olhar para nós, eu mato-o e aterro eu próprio o avião. Entendeu? Stephens aquiesceu. Sentiu um arrepio pela espinha. Delaroche saiu do cockpit e sentou-se no banco. Stephens estendeu o braço e, sem se virar, fechou a porta do cockpit.
Momentos depois, os motores começaram a funcionar e o Gulfstream descolou para a noite mediterrânica.
SEDE DA CIA, LANGLEY, VIRGÍNIA
Michael sempre pensou que os ambientalistas teriam um dia em cheio no gabinete de Monica Tyler. Situado no sétimo andar era amplo e arejado, com vista para as árvores ao longo do rio. Monica escarnecera da ideia de decorar o seu covil com mobiliário do governo e trouxera o seu do escritório de Nova York: uma grande secretária de mogno, arquivos de mogno, estantes de mogno, e uma mesa de reuniões de mogno, rodeada por confortáveis cadeiras de pele. Viam-se adornos de marfim e de prata por aqui e por ali, e belos tapetes persas cobriam a quase totalidade da feia alcatifa azul-acinzentada do governo. Uma parede era exclusivamente dedicada às fotografias de Monica com pessoas famosas: Monica com James Beckwith, Monica com o Diretor Ronald Clark, Monica com um ator famoso, Monica com a princesa Diana. No mundo da espionagem notoriamente avesso às câmaras, Monica era uma autêntica miúda de capa de revistas. Ao entrar na sala, Michael sentiu o aroma do café acabado de fazer (um requintado love italiano ou francês) e, vinda de algures, ouviu uma calma música sinfônica. Adrian Carter chegou a seguir, parecendo muito ressacado. Farejou o ar, sentiu o odor do café e franziu o cenho. Monica foi a última a chegar, com cinco minutos de atraso, como era seu hábito, seguida por Tweedledee e por Tweedledum, cada um segurando na mão uma pasta de pele.
Sentaram-se à mesa de reuniões, Monica no topo, com os factótuns à sua direita e Michael e Carter à esquerda. Uma secretária trouxe um tabuleiro com café e natas e um prato de bolinhos delicados.
Monica assinalou o início da ordem de trabalhos, batendo com a ponta da caneta de ouro sobre o tampo polido da mesa.
- Onde está o McManus? - perguntou Carter.
- Teve de ir à baixa, ao Edifício Hoover, devido a um assunto urgente - respondeu Monica, com um tom de voz inexpressivo.
- Não lhe parece que o representante do FBI do Centro de Contraterrorismo deveria estar presente nesta reunião?
- Tudo o que o FBI precisar saber será transmitido na altura devida - respondeu. - Este é um assunto da Agência e será tratado como tal. Carter, incapaz de esconder a fúria, roeu a unha do indicador. Monica olhou para Michael.
- Após o incidente no ferry, foram-lhe dadas ordens para que regressasse a Londres de imediato e se apresentasse na sede. O senhor desobedeceu a essa ordem e foi para o Cairo. Por quê?
- Julguei que podia descobrir informações valiosas a respeito de uma investigação em curso - respondeu Michael. - Não fui por ter vontade de ver as pirâmides.
- Não se arme em esperto. Já tem problemas que chegue. O que soube no Cairo? Michael colocou em cima da mesa as fotografias que lhe tinham sido dadas por Muhammad Awad e virou-as para que Monica pudesse vê-las.
- Aqui está Hassan Mahmoud, o homem que foi encontrado morto no navio-baleeiro, num encontro com um homem chamado Eric Stoltenberg, no Cairo, algumas semanas antes do ataque ao avião. Stoltenberg é um antigo elemento da Stasi. Trabalhou no departamento que apoiava a libertação nacional e grupos de guerrilheiros por todo o mundo. Agora é freelancer. Muhammad Awad, antes de ser alvejado no ferry, disse que Mahmoud se aliara a Stoltenberg.
- Dois homens a beber um café no Cairo não é algo que possa ser considerado prova de conspiração, Michael.
Michael controlou-se. Algures durante a ascensão para o topo, Monica aprendera a arte de fazer descarrilar o seu adversário a meio da linha de raciocínio com uma crítica negativa ou uma contradição superficial.
- Fui ao Cairo porque queria falar com Stoltenberg.
- Por que motivo não passou essa informação a Carter no Centro, e deixou que alguém da Estação do Cairo tratasse do assunto?
- Porque queria eu próprio tratar dele.
- Pelo menos é honesto. Continue.
- Quando cheguei ao Cairo, Stoltenberg já estava morto. - Michael deixou cair sobre a mesa uma fotografia do rosto desfeito de Stoltenberg. Carter desviou o olhar e estremeceu. O rosto de Monica permaneceu inalterado. - Foi atingido com três tiros no rosto, tal como Hassan Mahmoud, tal como Colin Yardley.
- E tal como Sarah Randolph.
Michael olhou para as mãos e depois para Monica.
- Sim - disse. - Tal como Sarah Randolph.
- E acredita que estas mortes são obra do mesmo homem?
- Tenho a certeza disso. É um antigo assassino do KGB, com o nome de código Outubro, que foi introduzido no Ocidente em jovem e aqui se arraigou. Agora é um assassino contratado, o assassino mais caro e mais proficiente do mundo.
- E foi Ivan Drozdov quem lhe disse isso?
- Exatamente.
- Qual é a sua teoria, Michael?
- Que Muhammad Awad estava a dizer a verdade: a Espada de Gaza não perpetrou este ataque. Foi obra de qualquer outro grupo ou indivíduo, executado em nome da Espada de Gaza. E agora o Outubro foi contratado por este grupo ou indivíduo para liquidar a equipe que levou a cabo o atentado. - Michael ficou calado por um breve instante e depois continuou: - E vai acabar por vir atrás de mim. - Importa-se de explicar?
- Penso que já tentaram me matar uma vez, a bordo do ferry, durante o encontro com Awad. Fracassaram. Acho que tentarão novamente e desta vez penso que a tarefa será entregue a Outubro.
Houve uma longa pausa. As conversas com Monica eram sempre interrompidas por momentos de silêncio, como se ela estivesse recebendo as deixas seguintes através de um ponto nos bastidores.
- Quem são eles, Michael? O que são? Onde estão? Como?
- Não sei. Alguém explodiu aquele avião e por alguma boa razão. Veja o que aconteceu. O processo de paz no Oriente Médio ruiu. Estão a entrar armas na região como nunca.
E um presidente ferido recuperou e foi reeleito, pensou Michael, e este país está prestes a construir um dispendioso sistema de defesa antimíssil. - Valha-me Deus, Michael! Certamente que não está sugerindo algum tipo de ligação.
- Não sei todas as respostas. Aquilo que estou a sugerir é que consideremos seriamente a possibilidade de outras forças estarem envolvidas no ataque e que alarguemos as nossas investigações.
Adrian Carter falou finalmente.
- Pensei que o Michael andasse longe da verdade quando me falou sobre isto pela primeira vez, mas agora julgo que me enganei. Creio que a Agência deve fazer o que o Michael está a sugerir.
Monica hesitou por um segundo.
- É com relutância que concordo, Michael, mas receio que a investigação vá avançar sem o seu envolvimento. - Concedeu-se um longo gole no café. - Descobriu informações potencialmente valiosas, mas os seus meios e métodos foram imperdoáveis e, sinceramente, impróprios para um agente dos serviços secretos com a sua experiência. Receio bem que não tenha outra alternativa a não ser suspendê-lo, até se conhecer o resultado de um inquérito disciplinar. Lamento, Michael, mas não me deixou outra escolha.
Michael não disse nada. Já estava à espera, mas ainda assim foi atravessado por uma onda de choque ao ouvir as palavras da boca de Monica.
- Em relação às suas preocupações sobre a sua segurança pessoal, pode estar certo de que a Agência tomará todas as providências necessárias para o proteger a si e à sua família.
Obrigado, Monica - agradeceu Michael, arrependendo-se de imediato. As garantias de Monica Tyler tinham a perenidade de um soneto escrito na superfície de um lago. ;
O carro com motorista que transportava Mitchell Elliott chegou à sua casa na cidade, em Califórnia Street, pouco depois das oito horas da noite. Fora um dia muito longo, a maior parte do qual passado em Capitol Hill, a adular. Elliott andava no mundo da política há tempo suficiente para perceber que, em Washington, a euforia tinha a tendência de se desvanecer rapidamente. Regra geral, as promessas feitas por presidentes acabavam por expirar, vítimas de milhares de golpes em comité. Só dali a muitos meses é que a defesa nacional antimíssil iria perante o Congresso para ser votada. Nessa altura, a tragédia do Voo 002 seria uma recordação longínqua e Beckwith um presidente inapto. Caberia a Elliott a tarefa de garantir que o programa não ia por água abaixo. Espalhara milhões de dólares por Capitol Hill. Metade dos membros do Congresso lhe devia. Ainda assim, sabia que seria necessária toda a sua influência e imaginação para se certificar de que o projeto chegava ao fim.
O carro parou junto à beira. Mark Calahan saiu e abriu a porta. Elliott entrou dentro de casa e subiu as escadas, dirigindo-se à biblioteca. Serviu-se de um copo de scotch e foi para o quarto. A porta da casa de banho abriu e uma mulher entrou no quarto, trazendo vestido um roupão de veludo, o cabelo úmido devido ao duche. Elliott ergueu o olhar.
- Olá, Monica, querida, conta-me o teu dia.
- Ele subestima-me - queixou-se, deitada ao lado dele, na cama. - Toma-me por idiota. Acha que é mais esperto do que eu e eu detesto pessoas que pensam que são mais espertas do que eu.
- Deixa-o te subestimar - aconselhou Elliott. - É um erro fatal, neste caso literalmente.
- Fui obrigada a reabrir a investigação hoje. Não tive escolha. Osbourne conseguiu descobrir muito do teu joguinho.
- Só arranhou a superfície, Monica. Sabe disso tão bem quanto eu. E, além disso, ele jamais entenderá tudo. Osbourne está encurralado numa casa de espelhos.
- Ele sabe a identidade dos teus assassinos e acha que sabe por que estão matando.
- Não sabe quem está por trás deles e nunca chegará a saber.
- Tive de lançar um alerta mundial em nome deles, Mitchell.
- Quem controla a distribuição em Langley?
- Sou eu que recebo tudo - disse ela. - Teoricamente, ninguém mais a verá. E mandei McManus dar um recado, por isso a agência está completamente às escuras.
- E Michael Osbourne nem vai ter tempo de dizer ai. Menina bonita, Monica. Acabou de ganhar um belo bônus.
- Na verdade, estava pensar em outra coisa.
DEZEMBRO
NORTE DO CANADÁ
O Gulfstream posicionou-se abaixo do radar sobre o Estreito de Davis e aterrou numa estrada remota, iluminada por foguetes de sinalização, ao longo das praias orientais de Hudson Bay. Astrid e Delaroche desceram as escadas, Delaroche com a mochila de nylon a tiracolo, Astrid com as mãos sobre o rosto para se proteger do ar cruel do Árctico. Stephens não chegou a desligar os motores. Assim que Astrid e Delaroche se afastaram, fez novamente o avião deslizar pela estrada e o Gulfstream descolou em direção à límpida manhã canadiana. Um Range Rover preto aguardava-os na beira da estrada, cheio de equipamento para o tempo frio (calçado de neve, mochilas, parkas e comida desidratada) e um maço de instruções de viagem detalhadas. Entraram e fecharam as portas, deixando o ar frio lá fora. Delaroche deu à chave e o motor roncou, tentou arrancar e depois parou. Delaroche sentiu um aperto no coração. O avião desaparecera. Estavam completamente sozinhos. Se o carro não funcionasse, não conseguiriam sobreviver por muito tempo.
Deu mais uma vez à chave e, dessa vez, o motor pegou. Astrid, tipicamente alemã por um instante, disse:
- Graças a Deus.
- Pensava que eras uma boa ateia comunista - aventou Delaroche.
- Cale-se e liga o aquecimento.
Fez o que ela pediu. Depois abriu o maço e tentou ler as instruções, mas não lhe valeu de nada. Retirou uns óculos de leitura em forma de meia-lua do bolso do peito do casaco e colocou-os.
- Nunca te vi usar isso antes, Jean-Paul.
- Não gosto de usá-los na frente das pessoas, mas às vezes não posso evitar.
- Parece um professor, em vez de um assassino profissional.
- É essa a ideia, meu amor.
- Como é que mata pessoas tão bem, se não consegue ver?
- Porque estou atirando nelas, e não lendo-as. Se tivessem palavras escritas na testa, precisaria dos óculos.
- Por favor, Jean-Paul, dirija o maldito carro. Estou morrendo congelada.
- Tenho que saber para onde vou, antes de começar a viagem.
- Lê sempre as instruções antes?
Delaroche olhou-a com uma expressão zombeteira, como se considerasse a pergunta ligeiramente ofensiva.
- Claro que sim.
- É por isso que você é tão bom em tudo o que faz. Jean-Paul Delaroche, o homem metódico.
- Todos nós temos nossos defeitos - retorquiu, guardando o mapa. - Eu não ridicularizo os seus. - Engrenou a primeira no Range Rover.
- Para onde vamos? - perguntou Astrid.
- Para um lugar chamado Vermont. - É perto da nossa praia?
- Nem por isso.
Bolas - disse ela, fechando os olhos. - Acorda-me quando chegarmos.
WASHINGTON, D. C.
O primeiro dia de exílio de Michael foi terrível. Ao amanhecer, quando o despertador tocou, correu para o chuveiro e abriu a torneira antes de se aperceber de que não tinha sítio nenhum para onde ir. Desceu as escadas e entrou na cozinha, fez torradas e café para Elizabeth e levou-lhos. Ela tomou o pequeno-almoço na cama e leu o Post. Meia hora depois, Elizabeth saía pela porta principal, vestida para ir trabalhar com as suas duas pastas e os seus dois telemóveis. Michael ficou à janela, a acenar como um idiota, à medida que ela se afastava no Mercedes. Tudo o que precisava para completar o quadro era de um casaco de malha e de um cachimbo.
Acabou de ler o jornal. Tentou ler um livro mas não conseguia concentrar-se nas páginas. Tentou aproveitar o tempo verificando todas as fechaduras e substituindo as pilhas do sistema de alarme. Isso demorou vinte minutos. Maria, a empregada peruana, apareceu às dez horas e perseguiu-o de divisão em divisão com o aspirador industrial e o produto tóxico para os móveis.
- Está um dia lindo lá fora, Señor Miguel - disse ela, gritando-Ihe em espanhol sobre o troar do aspirador. Maria só falava com ele na sua língua nativa. - Devia sair e fazer alguma coisa, em vez de ficar enfiado em casa o dia todo. Michael percebeu que a sua própria empregada acabava de o pôr na rua. Subiu as escadas, vestiu roupa de treino de nylon, calçou tênis e voltou para o rés-do-chão. Maria enfiou-lhe um pedaço de papel na mão, uma lista de produtos de limpeza que precisava da loja. Ele meteu a lista no bolso e saiu para a Street.
Estava um dia quente para o início de Dezembro, o tipo de tarde que fazia sempre com que Michael pensasse que não havia bairro mais bonito do que Georgetown em qualquer lugar do mundo. O céu estava limpo, o ar fresco e suave, perfumado com fumo de madeira. A N Street estava coberta por uma camada de folhas outonais vermelhas e amarelas. Estalavam debaixo dos pés de Michael, enquanto ele corria calmamente ao longo do passeio de tijolo. Num gesto reflexo, olhou pelas janelas dos carros estacionados para ver se estava alguém lá dentro. Uma van com o nome de uma loja de produtos de cozinha da Virgínia estava estacionada à esquina. Mike memorizou o nome e o número de telefone.
Telefonaria mais tarde para se certificar de que o sítio era verdadeiro.
Correu encosta abaixo até a M Street e atravessou Key Bridge. O vento soprava forte na ponte, criando pequenas ondulações na superfície do rio, lá em baixo. Era como se fossem dois rios diferentes. À direita de Michael, um rio selvagem estendia-se para norte. À sua esquerda, jazia a zona ribeirinha de Washington: o complexo Harbor Place, o Watergate, o Centro Kennedy, mais adiante. Ao chegar ao lado do rio de Virgínia, olhou por cima do ombro em busca de algum sinal de estar a ser observado. Um homem de constituição débil com um chapéu de basebol de Georgetown encontrava-se cem metros atrás de si.
Michael baixou a cabeça e correu mais depressa, passando por Roosevelt Island, através da relva ao longo da George Washington Parkway. Avançou até a Memorial Bridge e olhou por cima do ombro enquanto descia a alameda. O homem com o chapéu de basebol ainda ali estava. Michael parou e fez alguns exercícios de alongamento, olhando da ponte para o caminho lá em baixo. O homem de chapéu continuou a correr para sul, ao longo do rio, em direção ao National Airport. Michael endireitou-se e continuou a correr.
Durante os vinte minutos seguintes, viu seis homens de boné e três homens que pensou poderem ser Outubro. Sabia que estava nervoso. Correu velozmente durante o resto do caminho de volta a Georgetown. Parou no Booeymongers, uma loja de sanduíches popular entre os alunos universitários e pediu um café para levar. Bebeu-o enquanto percorria a N Street e entrou em casa. Tomou uma ducha, mudou de roupa e saiu. Do carro, telefonou a Elizabeth para o escritório. - Vou a Langley - disse-lhe. - Tenho uns assuntos domésticos para tratar. - Houve alguns segundos de silêncio na linha e Michael continuou: - Não te preocupes, Elizabeth, não perderia esta tarde por nada deste mundo.
- Obrigada, Michael.
- Até daqui a algumas horas.
Michael atravessou mais uma vez Key Bridge e virou para a George Washington Parkway. Fizera aquele percurso milhares de vezes, mas agora, ao dirigir-se a Langley para limpar a sua secretária, viu tudo como se fosse a primeira vez. Havia choupos gigantes, riachos que jorravam das colinas rochosas da Virgínia, precipícios íngremes com vista para o Potomac.
Na entrada principal, o guarda digitou a identificação de Michael, franziu o sobrolho e disse-lhe para passar. Enquanto atravessava os corredores severamente iluminados em direção ao CTC, Michael sentia-se como um leproso. Ninguém lhe dirigiu a palavra, ninguém olhou para ele. Os serviços secretos não são mais do que diques altamente organizadas. Quando um elemento contrai uma doença, os outros permanecem afastados, não vão apanhá-la também. O curral estava sossegado quando Michael entrou pela porta e se dirigiu à secretária. Durante uma hora, selecionou o conteúdo das gavetas, separando o pessoal do oficial. Uma semana antes, fora aplaudido pela sua ação em Heathrow. Agora sentia-se como um avançado que acabara de falhar o golo decisivo. De vez em quando, aparecia alguém que lhe punha a mão no ombro e se afastava rapidamente. Mas ninguém falou com ele.
Quando se preparava para sair, Adrian Carter espreitou e fez sinal a Michael para que entrasse no seu gabinete. Entregou-lhe um embrulho com uma fita. - Pensava que era apenas uma suspensão a aguardar o inquérito - disse Michael, aceitando o presente.
E é, mas de qualquer forma queria dar-te isto - respondeu Carter. Os olhos baixos faziam-no parecer mais taciturno do que nunca. - Abre-o em casa. Algumas pessoas por aqui poderiam não entender a piada.
Michael apertou-lhe a mão.
- Obrigado por tudo, Adrian. Nos vemos por aí.
- Pois - respondeu Carter. - E, Michael, tem cuidado com você. Michael saiu e dirigiu-se ao carro no estacionamento.
Atirou o presente de Carter para o porta-bagagens, entrou e arrancou. Ao passar pelos portões, interrogou-se se alguma vez voltaria.
Michael foi ter com Elizabeth ao Georgetown University Medical Center. Deixou o Jaguar com o arrumador e foi de elevador até o consultório do médico. Quando chegou à sala de espera não havia sinais de Elizabeth. Por um instante receou ter faltado à consulta mas, logo em seguida, ela entrou pela porta, de pastas na mão, e beijou-o na face.
Uma enfermeira acompanhou-os à sala de observação e deixou uma bata em cima da mesa. Elizabeth desabotoou a blusa e a saia. Olhou para cima e viu que Michael a fitava.
- Fecha os olhos.
- Na verdade, estava a pensar trancar a porta.
- Animal.
- Obrigado.
Elizabeth acabou de se despir, enfiou a bata e sentou-se na mesa de observação.
Michael brincava com as saliências da máquina de sonograma.
- Importas-te de parar com isso?
- Desculpa, só estou um pouco nervoso.
O médico entrou na sala. A Michael fazia lembrar Carter: ensonado, desgrenhado, uma expressão de tédio eterno no rosto. Franziu o sobrolho ao ler a ficha de Elizabeth, como que dividido entre mahi mahi e salmão grelhado.
- Os resultados beta estão muito bons - indicou. - Na verdade, estão um pouco altos. Vamos dar uma vista de olhos com a eco grafia.
Levantou a bata de Elizabeth e cobriu-lhe o abdômen com um gel lubrificante. Depois pressionou-lhe a sonda do sonograma contra a pele e começou a movimentá-lo para a frente e para trás.
- Aqui está - declarou, sorrindo pela primeira vez. - Senhoras e senhores, aquilo está com muito bom aspecto.
Elizabeth estava radiante. Estendeu o braço para Michael e agarrou-lhe a mão com força.
O médico manipulou a sonda mais um instante.
- E aqui está um segundo saco com muito bom aspeto.
- Valha-me Deus - exclamou Michael.
O médico desligou a máquina.
- Vista-se e vá para o consultório. Temos de conversar sobre algumas coisas. E, desde já, parabéns.
- Pelo menos não vamos ter que comprar uma casa maior - disse Michael, seguindo Elizabeth até o quarto no primeiro andar. - Sempre achei que uma casa com seis quartos era grande demais só para nós dois.
- Michael, para de falar assim. Tenho quarenta anos. Já estou para lá da fase de risco elevado. Podem acontecer muitas coisas.
Deitou-se na cama. - Estou morrendo de fome.
Michael deitou-se a seu lado.
- Não consigo tirar da cabeça sua imagem cheia de lubrificante.
Beijou-o.
- Vai embora. Ouviu o que o médico disse. Tenho de ficar deitada e descansar por alguns dias. Neste momento, estou na hora mais vulnerável.
Ele retribuiu o beijo. - Não vou discutir isso.
- Vai lá embaixo e me faz uma sanduíche.
Michael levantou-se da cama e foi até a cozinha. Fez-lhe sanduíche de peru e queijo suíço e serviu um copo de suco de laranja. Colocou tudo numa bandeja e levou para ela.
- Acho que me habituaria a isso. - Elizabeth mordeu o sanduíche. - Como correram as coisas no trabalho hoje?
- É óbvio que fui declarado intocável.
- Foi assim tão ruim?
- Pior ainda.
- Quem te deu isso? - perguntou ela, apontando para o embrulho.
- Carter.
- Não vais abrir?
- Achei que podia viver sem outro conjunto de canetas Cross.
- Me dá aqui - pediu ela, rasgando o papel enquanto mastigava um pedaço enorme do sanduíche. Por baixo do papel de embrulho estava uma caixa rectangular e, dentro dela, um maço de documentos com o timbre ULTRASSECRETO.
- Michael, acho que é melhor dares uma vista de olhos nisto avisou Elizabeth. Atirou-o a Michael, que folheou as páginas rapidamente.
- O que é?
Olhou para Elizabeth. - É o dossiê da CIA sobre um assassino da KGB com nome de código de Outubro.
FRONTEIRA ESTADOS UNIDOS-CANADÁ
Delaroche esperou pela luz da alvorada. Encontrara um local isolado na floresta, bastante distante da auto-estrada a sul de Montreal, a cerca de cinco quilômetros da fronteira. Astrid dormia a seu lado, no banco traseiro do Range Rover., tapada com um pesado cobertor de lã, o corpo enroscado para se proteger do frio. Implorara a Delaroche que, de vez em quando, ligasse o aquecimento, mas ele recusou, pois queria silêncio. Tocou-lhe nas mãos enquanto ela dormia. Estavam geladas.
Às seis e meia levantou-se, serviu-se de café de um termo e preparou uma grande tigela de papas de aveia. Astrid surgiu dez minutos depois, envolta numa parka e com um chapéu de lã.
- Serve-me um pouco de café, Jean-Paul - pediu, segurando o mingau de aveia e comendo o que restava.
Delaroche colocou aquilo de que necessitavam em duas pequenas mochilas. Entregou a mais leve a Astrid e pôs a outra ao ombro. Colocou a Beretta na cintura das calças, à frente. Revistou rapidamente o veículo de uma ponta à outra, para se certificar de que não tinham deixado nada que pudesse identificá-los. O Range Rover seria deixado para trás. Estaria outro à espera deles no lado americano da fronteira.
Caminharam durante uma hora pelas arestas montanhosas acima de Lake Champlain. Poderiam ter feito a travessia permanecendo junto à margem gelada do lago, mas Delaroche pensava que ficariam demasiado expostos. Dois pares de sapatos de neve tinham ficado no
Range Rover, mas Delaroche julgou ser melhor usarem apenas botas de caminhada, uma vez que o solo jazia poucos centímetros abaixo da neve congelada. Astrid subia e descia as encostas e atravessava o arvoredo denso com grande esforço. Era ligeiramente desajeitada e inábil na melhor das circunstâncias. O corpo longo era completamente inadequado aos rigores das caminhadas na montanha em pleno Inverno. Chegou a escorregar por uma encosta abaixo e acabou por parar de barriga para cima, com as pernas estateladas de encontro a uma árvore. Delaroche não tinha a certeza de quando exatamente tinham deixado o Canadá e entrado nos Estados Unidos. Não existiam quaisquer delimitações fronteiriças, quaisquer vedações, qualquer vigilância eletrônica visível, fosse de que espécie fosse. Quem o contratara escolhera bem o local. Delaroche recordou-se de uma noite, há muito tempo, era ainda jovem, em que entrara no Ocidente, da Checoslováquia para a Áustria, acompanhado por dois agentes do KGB. Lembrava-se da noite morna, dos arcos voltaicos e do arame farpado, do fedor intenso a estrume no ar. Lembrava-se de erguer a arma e de matar os companheiros. Naquele momento, a caminhar pela manhã gelada do Vermont, fechou os olhos e pensou nisso, nas primeiras mortes.
Agira segundo as ordens de Vladimir. Descrever Vladimir como sendo o seu agente de casos seria um eufemismo. Vladimir era o seu mundo. Vladimir era tudo para Delaroche: professor, padre, algoz, pai. Ensinou-o a ler e a escrever. Ensinou-lhe línguas e história. Ensinou-o a ser espião e a matar. Quando chegou a altura de ir para o Ocidente, Vladimir entregou Delaroche a Arbatov, da mesma forma que um pai confia um filho a um familiar. A última ordem de Vladimir foi que matasse os seus acompanhantes. Esse ato instilou algo muito importante em Delaroche: nunca confiaria em ninguém, sobretudo em alguém do seu próprio serviço. Quando cresceu, acabou por perceber que fora exatamente isso que Vladimir tivera em mente.
O terreno suavizou-se à medida que desceram pela aresta. Delaroche, utilizando um mapa e um compasso, guiou-os até os arredores de uma aldeia chamada Highgate Springs, três quilômetros a sul da fronteira. O segundo Range Rover esperava-os, parado junto a uns pinheiros que orlavam um campo de milho coberto de neve. Delaroche colocou o equipamento na parte de trás e entraram no carro. Desta vez, o motor pegou de primeira.
Delaroche conduziu cuidadosamente ao longo da estrada gelada de duas vias. Astrid, exausta devido à caminhada, entrou de imediato num sono profundo e sem sonhos. Quarenta minutos mais tarde, Delaroche chegou à Interstate 89 e rumou a sul.
WASHINGTON, D. C.
- Por que Adrian te mentiria sobre a existência do Outubro?
A pergunta de Elizabeth soava estranha a Michael. Era como uma criança a fazer perguntas sobre sexo pela primeira vez. A nova abertura entre eles era-lhe estranha e sentia-se constrangido a discutir assuntos da Agência com a esposa. Mesmo assim, gostava. Elizabeth, com o seu inteleto de advogada e natureza reservada, teria dado uma boa agente dos serviços secretos, se não tivesse optado pela advocacia.
- Todos os serviços secretos assentam no conceito de necessidade de saber. Poderia dizer-se que eu não precisava de saber da existência do Outubro e, logo, tal nunca me foi dito.
- Mas, Michael, ele assassinou a Sarah à tua frente. Se devia ser dada autorização a alguém para ver o que a Agência tinha sobre ele, essa pessoa serias tu.
- Bem visto, mas está sempre a ser escondida informação dos agentes dos serviços secretos pelas mais variadíssimas razões.
- A União Soviética está morta e enterrada há séculos. Por que motivo o dossiê dele continua a ser tão restrito?
- Nos serviços secretos, renunciamos devagar aos nossos mortos, Elizabeth. Não há nada de que um serviço secreto mais goste do que de um bom monte de segredos inúteis.
- Talvez alguém quisesse que fosse confidencial.
- Já pensei nessa possibilidade.
Michael parou em frente ao edifício do Washington Post, na 1st Street. Tom Logan, o editor de Susanna Dayton, pedira para se encontrar com Elizabeth. Michael tencionara esperar no carro, mas agora dizia: - Importa-se que vá com você?
- De maneira nenhuma, mas temos que correr. Estamos, atrasados.
- Onde ficaram de se encontrar?
- No escritório dele. Por quê?
- Não sou grande apreciador de espaços fechados, só isso.
- Michael, não estamos em Berlim Leste. Para com isso.
Mas Michael já tinha o celular na mão.
- Qual é o ramal dele?
- Cinquenta e seis oitenta e quatro.
O telefone tocou e a secretária de Logan atendeu.
- Fala Michael Osbourne. Posso falar com o senhor Logan, por favor?
Logan atendeu.
- Olá, Mike - cumprimentou. - Elizabeth e eu estamos aqui embaixo. Importa-se que falemos em outro lugar?
- Claro que não.
- Estamos na Fifteenth Street, Jaguar metalizado.
- Estou aí em cinco minutos.
Michael voltou a guardar o celular.
- Qual é o problema? - quis saber Elizabeth.
- Sabe aquela sensação de que alguém está te observando?
- Claro.
- Estou tendo neste momento. Não consigo vê-lo, mas sei que anda por aí. - Michael fitou o espelho retrovisor por um instante. - Tenho bons instintos - declarou, num tom de voz distante - e confio sempre nos meus instintos.
Cinco minutos depois, Logan saiu do edifício do Post. Era alto e calvo e o vento assolava o contorno de cabelo grisalho demasiado comprido que lhe orlava a cabeça. Não vestia sobretudo, apenas tinha colocado um cachecol vermelho enrolado em volta do pescoço fino, e tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça cinza de flanela amarrotada. Osbourne esticou o braço e abriu a porta traseira. Logan entrou no carro.
- Meu Deus, adoro o tempo nesta cidade. Vinte graus ontem e quatro hoje - queixou-se.
Michael carregou com força no acelerador e o Jaguar mergulhou no trânsito intenso da baixa de Washington. Logan pôs o cinto de segurança e agarrou-se ao apoio para o braço.
- Qual é a sua profissão, Mike?
- Vendo equipamento de informática a grandes clientes no estrangeiro.
- Ah, parece interessante.
Michael virou à esquerda na M Street e acelerou em direção a oeste, atravessando a baixa. Virou à direita em New Hampshire, contornou Dupont Circle e voou para ocidente ao longo da Massachusetts Avenue. Circulou habilmente por entre o trânsito e passou mais tempo a olhar para o espelho retrovisor do que para a estrada à sua frente.
Por essa altura, Logan quase que arrancara o apoio para o braço na porta traseira.
- Não percebi o nome da empresa para a qual trabalha, Mike.
- Isso é porque não lho disse. E prefiro que me chame Michael, tom.
Elizabeth virou-se e olhou demoradamente por cima do ombro.
- Alguma coisa? - perguntou.
- Se lá estava alguém, agora deixou de estar.
Michael abrandou e seguiu o ritmo do resto do trânsito. Logan soltou o apoio para o braço e descontraiu-se.
- Vendedor de computadores, uma ova - reclamou.
Nesse dia, a tarefa de vigiar Elizabeth Osbourne cabia a Henry Rodriguez, mas interrompeu a perseguição na M Street. Michael Osbourne, um antigo agente de campo, fora treinado para reconhecer vigilância física sofisticada. Alguém grosseiramente disfarçado de moço de entregas de comida chinesa podia ser localizado numa questão de minutos. Parou junto ao passeio e telefonou a Mark Calahan, para o posto de comando em Kalorama.
- Não há dúvidas de que ele estava a tentar despistar alguém justificou-se Rodriguez. - Se tentasse não perdê-lo de vista, ia ver-me.
- Boa jogada. Volta para Georgetown. Espera que eles apareçam.
Calahan entrou na biblioteca para dar as notícias a Mitchell Elliott. - O Logan deve precisar de ajuda - supôs Elliott. - Por que motivo iria encontrar-se com ela agora?
- Ela está em posição de causar danos graves. Talvez devamos apertar um pouco o cerco.
- Concordo - anuiu Elliott. - Acho que é altura de o Henry voltar ao trabalho. - Ele não vai gostar de voltar a ser porteiro. Acha que estamos a discriminá-lo por causa da sua origem hispânica.
- Se não gostar, ele que se queixe à comissão de igualdade de oportunidades.
Pago-lhe bem para fazer o que lhe mandam.
Calahan sorriu.
- Sim, senhor, senhor Elliott.
Michael encontrou um sítio para estacionar na East Capitol Street. Desencantou um corta-vento para tom Logan no porta-bagagens e passearam pelo Lincoln Park, sob um céu frio e plúmbeo.
- Quanto do material original de Susanna é que leu? - perguntou Logan.
- O suficiente para ficar a perceber - respondeu Elizabeth.
Deixe-me refrescar-lhe a memória - disse Logan. - No início dos anos 80, Beckwith quis sair da política. Mais especificamente, Anne Beckwith queria sair da política. Ela desejava que o marido voltasse ao setor privado, onde podia ganhar dinheiro à séria, antes que ficasse demasiado velho. Ambos tinham algum dinheiro da família, mas não muito. A Anne gosta de coisas boas. Desejava mais do que aquilo que podiam comprar com o salário do governo. Ele já cumprira dois mandatos no Senado e ela disse-lhe que era a política ou ela.
Dois corredores aproximaram-se deles por trás, cada um com um cão em esforço na ponta da trela. Logan, como um bom homem de campo, esperou que eles passassem antes de continuar a falar.
- Beckwith é muitas coisas, mas é totalmente dedicado a Anne e a última coisa que queria era perdê-la. Mas também gostava da política e não se sentia particularmente entusiasmado com a ideia de voltar a exercer advocacia. Certa noite, reuniu os seus conselheiros e os homens do dinheiro em São Francisco e deu-lhes a notícia. Nem é preciso dizer que Mitchell Elliott quase teve uma apoplexia. Ao longo dos anos, investira muito tempo e dinheiro em Beckwith e não queria que esse investimento fosse um desperdício. Na manhã seguinte telefonou a Anne e pediu-lhe que se encontrasse a sós com ele. Nessa noite, ao jantar, Anne retirou tudo o que disse e encorajou Beckwith a candidatar-se a governador. Ele ganhou, claro está, e o resto, como se diz, é história.
- O que aconteceu durante o encontro entre Anne Beckwith e Mitchell Elliott? - perguntou Michael.
- Elliott garantiu a Anne que se o marido continuasse na política, ambos seriam bem tratados a nível financeiro. A primeira fase era simples e, no esquema global das coisas, foram apenas uns trocos. Elliott fez com que os seus amigos poderosos do mundo dos negócios colocassem Anne em mais de uma dúzia de conselhos de administração. Ganhava dinheiro como consultora, embora tivesse pouca ou nenhuma experiência em negócios. Também investia de forma muito assisada, desconfiamos que com a ajuda de Elliott, e ganhou bom dinheiro nos mercados financeiros.
"No espaço de três anos, Anne conseguiu uma reserva substancial, alguns milhões de dólares. Gastou quase todo esse dinheiro na compra de várias centenas de hectares do que, na altura, era um deserto sem valor, a sul de San Diego. Dois anos mais tarde, um empreiteiro anunciou tencionar construir nos terrenos de Anne uma nova comunidade de condomínios, moradias familiares individuais, e um centro comercial. De repente, a terra sem valor passou a valer muito dinheiro.
- Mitchell Elliott estava por trás de tudo isso? - perguntou Elizabeth.
- Achamos que sim, mas não pudemos prová-lo, logo, não pudemos publicar. Elliott precisava de ajuda para conceber todos estes esquemas. Tinha grandes planos para Beckwith e não queria o nome dele manchado por um escândalo. Precisava de alguém que compreendesse Washington e, acima de tudo, que compreendesse como enganar as leis para o financiamento das campanhas. Assim, recorreu a um poderoso advogado de Washington.
- Samuel Braxton - disse Elizabeth.
- Exatamente - concordou Logan. - E, por fim, depois de anos de espera, o investimento de Elliott compensou. O sistema nacional de defesa antimíssil estava arruinado. Mas vinte e quatro horas depois do Voo Zero-Zero-Dois ter sido abatido, Elliott estava dentro da Casa Branca para uma reunião com Beckwith. A Susanna viu. Também viu Elliott e Vandenberg juntos mais tarde, nessa mesma noite. No dia seguinte, ao final da tarde, Beckwith apresenta-se perante o país, anuncia ataques contra a Espada de Gaza e propõe construir um sistema nacional de defesa antimíssil. De repente, Capitol Hill é todo a favor da defesa antimíssil. Andrew Sterling é encostado à parede porque declarou ser contra. Beckwith promove o concurso e a Alatron Defense Systems de Elliott está prestes a ganhar vários bilhões de dólares.
- Nesse caso, por que não avançou com a história da Susanna? - perguntou Michael.
- Como já disse a sua mulher, numa história como esta revemos, em conjunto com o repórter, cada fato, cada citação, cada pedaço de informação, antes de o artigo ser publicado. Neste caso, a repórter morreu e tivemos de começar do princípio, utilizando o artigo original como guia. Já conseguimos a maior parte, mas falta uma peça fundamental do puzzle. Não sei como, a Susanna conseguiu documentos financeiros e de bens imobiliários originais. Desconfiamos de que tinha uma fonte na Braxton, Allworth & Kettlemen que lhe forneceu os documentos. Já reviramos os arquivos da Susanna e não conseguimos encontrá-los. Tentamos arranjar a nossa própria fonte na firma, mas não fomos bem sucedidos.
Logan arrepiou-se e aconchegou mais o cachecol em volta do pescoço. - Elizabeth, é claro que pode responder a esta pergunta da forma como entender, mas tenho de fazer. Foi você a fonte destes documentos?
- Não - respondeu Elizabeth prontamente. - Susanna pediu e eu disse que não o faria. Disse que não era ético e que se soubessem que tinha sido eu minha carreira ficaria arruinada.
Logan hesitou por um instante e depois indagou:
- Faria isso agora?
- Não, não faria.
- Elizabeth, Samuel Braxton é um advogado desonesto e criminoso que está prestes a ser recompensado com a nomeação para Secretário de Estado. Quanto a si não sei, mas isso irrita-me e, como jornalista, gostaria de fazer alguma coisa. Mas não posso, não sem a sua ajuda. Se está preocupada com a sua proteção, garanto-lhe que não deixaremos que a coloquem em perigo, seja de que maneira for. Pode confiar em mim.
- Tom, vivi em Washington a maior parte da minha vida e aprendi uma coisa. Nesta cidade não se pode confiar em ninguém.
Logan parou de andar e virou-se para enfrentar Michael.
- Você não trabalha para uma empresa de informática que vende a clientes no estrangeiro. Trabalha no Centro de Antiterrorismo da Central Intelligence Agency. Foi o herói naquele ataque no Aeroporto de Heathrow e esteve envolvido no atentado a bomba no ferry do Canal da Mancha. Sei que pode achar difícil de acreditar, Michael, mas até mesmo pessoas na sua organização gostam de falar com jornalistas. Não publicamos a informação porque não queríamos que corresse perigo.
Logan virou-se e olhou para Elizabeth.
- Não farei nada que possa prejudicá-la. Pode confiar em mim, Elizabeth.
BETHESDA, MARYLAND
Delaroche sentiu-se nervoso pela primeira vez quando saiu da Interstate 95 e começou a dirigir-se à Capital Beltway. Percorrera de carro algumas das mais exigentes estradas da Europa (auto-estradas sinuosas em França e Itália, estradas de montanha terríveis nos Alpes e nos Pirenéus), mas nada o tinha preparado para a loucura da hora de ponta ao final da tarde em Washington. A viagem a partir de Vermont decorrera sem incidentes. O tempo estivera bom, exceto por uma breve tempestade de neve a norte do estado de Nova York e uns chuviscos gelados ao longo de New Jersey Turnpike. Quanto mais viajavam para sul, mais a temperatura subia, e a chuva parara em Filadélfia. Agora, o que Delaroche mais temia eram os outros condutores. Carros passavam por eles a cento e quarenta quilômetros por hora, cinquenta quilômetros acima do limite de velocidade, e o caminhão atrás estava a dois metros do seu para-choque.
Delaroche pensou em como seria fácil ter um acidente em circunstâncias como aquelas. Os resultados seriam desastrosos. Como era estrangeiro, a polícia iria querer ver o seu passaporte. Se o agente estivesse atento e soubesse alguma coisa de passaportes, notaria que o de Delaroche não continha qualquer visto de entrada. Provavelmente seria detido e interrogado pelas autoridades de imigração e pelo FBI. A sua identidade ruiria e ele seria preso, tudo por causa de um maluco qualquer que tentava chegar a casa vindo do trabalho.
Os carros à sua frente travaram de repente. O trânsito parou. Delaroche encontrou uma estação de rádio só com notícias e ouviu a atualização do trânsito. Algures à sua frente, um atrelado tinha capotado. O trânsito estava uma confusão ao longo de quilômetros.
Delaroche pensou na casa de Brélés. Pensou no mar a embater nas rochas e em si próprio a pedalar na bicicleta de corrida italiana ao longo das calmas estradas secundárias da Finistère. Devia ter estado a sonhar acordado, pois o homem no caminhão buzinou e agitou freneticamente os braços. O condutor mudou de faixa, colocou-se ao lado de Delaroche e fez um gesto obsceno com a mão.
- Por favor, Jean-Paul - disse Astrid. - Deixa-me ir buscar a minha pistola lá atrás e dar-lhe um tiro.
Trinta minutos depois aproximaram-se da cena do acidente. Um policial de Maryland encontrava-se no meio da estrada, fazendo sinal aos carros para que contornassem o caminhão capotado. Numa reação reflexa, Delaroche ficou tenso na presença de um policial. Os camiões dos bombeiros e as ambulâncias desapareceram atrás de si e o trânsito começou novamente a avançar. Delaroche saiu na Wisconsin Avenue e rumou para sul.
Acelerou através da baixa de Bethesda, passou pelas lojas luxuosas da Mazza Galleria, os pináculos altaneiros da Catedral Nacional. A Wisconsin Avenue ia dar a Georgetown. Pessoas às compras movimentavam-se com rapidez através do ar frio da noite e os bares e restaurantes começavam a encher-se. Virou à esquerda na M Street, avançou alguns quarteirões e virou para a entrada do Four Seasons Hotel.
Delaroche fez o registro e recusou a oferta do porteiro para o ajudar com as malas. Fechou a porta e deixaram-se cair os dois sobre a cama, exaustos pelas duas longas viagens de carro e pela caminhada para atravessar a fronteira. Delaroche acordou passadas duas horas, pediu café ao serviço de quartos e sentou-se em frente ao computador portátil. Enquanto Astrid dormia, abriu o dossiê de Michael Osbourne e começou a planear a sua morte.
WASHINGTON, D. C.
No fim da tarde, Elizabeth telefonou para o escritório de Max Lewis.
Como se sente? - perguntou ele sobre os papéis. Eram cinco da tarde e preparava-se para sair do escritório, razão pela qual Elizabeth telefonara a essa hora.
- Estou ótima, mas o médico diz que tenho que repousar o mais possível na próxima semana. Na verdade, é por isso que estou telefonando. Será que esta noite, quando for para casa, poderia me trazer alguns documentos?
- Claro. Do que precisa?
- Da pasta do caso McGregor. Está em cima da minha mesa.
- Para dizer a verdade, está guardada em seu arquivo. Hoje tomei a liberdade de arrumar sua mesa. Sinceramente, Elizabeth, não sei como você consegue trabalhar ali. Também joguei fora todos os maços de cigarro.
- Não se preocupe, deixei de fumar. Também acabou o Chardonnay na banheira depois do trabalho.
- Assim é que se fala - elogiou Max. - Estarei aí em quinze minutos. Precisa de mais alguma coisa? Quer que vá buscar sua roupa na lavanderia? Que vá comprar algo no Sutton Place? Dê as ordens, minha rainha.
- Só quero que traga o arquivo McGregor. Recompenso com comida e vinho.
- Nesse caso, estarei aí dentro de cinco minutos.
- Estou de papo para o ar na cama, por isso use sua chave.
- Sim, minha rainha.
Max desligou. Michael estava numa poltrona aos pés da cama, ouvindo a conversa no telefone sem fio. Olhou para Elizabeth e disse:
- Fantástico.
Max demorou mais de meia hora no meio do trânsito desde o escritório da firma na Connecticut Avenue até Georgetown. Enfiou a chave na fechadura dos Osbourne, abriu a porta e entrou para o hall de entrada.
- Elizabeth, sou eu - gritou.
- Olá, Max, sobe. Há vinho fresco no frigorífico. Vai buscar um copo e um saca-rolhas.
Fez o que lhe mandaram e subiu as escadas. Foi dar com Elizabeth esticada em cima da cama, rodeada por pilhas de processos e blocos de notas. - Meu Deus - exclamou. - Talvez deva vir trabalhar para aqui, em vez de ir para a baixa.
- Talvez não fosse má ideia.
Colocou os arquivos McGregor sobre a mesa-de-cabeceira e, instintivamente, começou a endireitar papéis e a organizar as coisas dela. Michael entrou no quarto.
- Olá, Michael, como está? - cumprimentou Max.
Michael não respondeu. - O que há? - perguntou Max.
Elizabeth tocou-lhe o braço.
- Max, temos que falar.
- Susanna veio me procurar depois que você disse não - explicou Max.
Estava sentado na cadeira do quarto, as pernas estendidas em cima do pufe. Michael abrira o vinho e Max bebeu metade da garrafa muito depressa. O choque inicial do confronto atenuara-se e agora estava descontraído e falando à vontade. - Ela pediu que a ajudasse. Pensei sobre o assunto e depois concordei em fazê-lo.
- Max, se tivesses sido apanhado, estaria despedido e provavelmente processado. As firmas de advocacia não podem tolerar roubo e violação do privilégio entre cliente e advogado. Deixa mal os clientes e faz com que seja muito difícil atrair novos.
- Estava disposto a correr o risco. Quando se está na minha posição, Elizabeth, há a tendência de não se pensar nas coisas a longo prazo.
- Não quero te julgar, Max, mas devia ter vindo falar comigo primeiro - admoestou-o Elizabeth. - Eu te contratei. Trabalha para mim. A firma teria caído em cima de mim com uma tonelada de tijolos.
- E o que me teria dito?
- Teria dito para não fazer.
- Foi por isso que não falei com você.
- Por que, Max? Por que ir atrás de Braxton daquela maneira?
Max olhou para Elizabeth como se considerasse a pergunta ofensiva.
- Por que Braxton? Porque ele é um idiota sujo e desonesto que está prestes a tornar-se secretário de Estado. Estou surpreso por me perguntar. Já ouvi a forma como ele fala com você nas reuniões dos sócios e ouvi a forma como ele fala de você quando não está presente.
Hesitou um momento, olhou para Michael e disse:
- Posso filar um? - Michael estendeu-lhe o maço e um isqueiro. Max fumou por um instante e bebeu mais vinho.
- Também é pessoal - admitiu, por fim. - Alguém disse a Braxton que eu era seropositivo. Por trás das tuas costas, ele andava a arranjar maneira de eu ser despedido, como uma das suas últimas ações antes de deixar a firma. Quis tornar as suas últimas semanas ali tão lixadas que ele não teria tempo para tratar de mim, e a Susanna deu-me a oportunidade de o fazer.
- Onde conseguiu os documentos? - quis saber Michael.
- Roubei uma das chaves do arquivo dele e fiz uma cópia. Nessa noite, fui ao escritório com a desculpa de ter trabalho para fazer. Entrei no arquivo, peguei os documentos e fui à casa da Susanna. Só lhe impus uma regra: ela não podia copiar os arquivos. Fiquei em casa dela toda a noite enquanto ela trabalhava. Depois fui para o escritório cedo e voltei a guardar os arquivos no mesmo lugar de onde tirei. Na verdade, foi muito fácil.
- Ainda tem a chave? - perguntou Elizabeth.
- Sim, pensei em jogá-la da Memorial Bridge, mas acabei por guardá-la.
- Ótimo.
- Por quê?
- Porque esta noite vamos lá buscar esses arquivos outra vez.
WASHINGTON, D. C.
Oficialmente, na Casa Branca o dia estava dado como encerrado, o que significava que o gabinete de imprensa não esperava mais notícias nesse dia e que o Presidente e a Primeira-dama não tinham quaisquer acontecimentos públicos, nem tencionavam sair da residência. Contudo, às oito horas um único sedan preto esgueirou-se pelo Portão Sul da Casa Branca e entrou no trânsito noturno da baixa de Washington.
Anne Beckwith estava sentada sozinha no banco traseiro. Não havia qualquer limusina presidencial à prova de bala, quaisquer veículos Chevy pretos de perseguição suburbana, qualquer escolta policial. Apenas um motorista da Casa Branca e um único agente dos Serviços Secretos sentado no banco do passageiro. Durante anos, Anne evadia-se desta forma da Casa Branca pelo menos uma vez por semana. Gostava de sair para o mundo real, como apreciava dizer. Para Anne, o mundo real não se encontrava muito distante da opulência da Mansão Oficial. Regra geral, fazia uma pequena viagem de carro até os enclaves abastados de Georgetown, ou Kalorama, ou Spring Valley para tomar uma bebida e jantar com velhos amigos ou aliados políticos importantes.
O carro dirigiu-se a norte, Connecticut Avenue acima, e virou para oeste, para a Massachusetts, depois de deixar o trânsito intenso de Dupont Circle. Momentos depois, virou para Califórnia Street e abrandou à porta da grande mansão de tijolo. A porta da garagem abriu e o sedan preto deslizou em silêncio para o seu interior.
O agente dos Serviços Secretos esperou que a porta da garagem se voltasse a fechar antes de sair do carro. Contornou o veículo por trás e abriu a porta da Primeira-dama. O anfitrião esperava-a quando saiu do carro. Beijou-lhe a face e disse:
- Olá, Mitchell, é um prazer vê-lo novamente.
Anne Beckwith não fora em busca de uma noite de conversa agradável e boa comida. Tratava-se de negócios. Aceitou um copo de vinho mas ignorou a bandeja de queijo e de patê que um dos autômatos de Elliott colocara sobre a mesa de apoio entre eles.
- Quero saber se a situação está sob controle - disse com frieza. - E, se não estiver, quero saber o que diabo anda fazendo para que fique sob controle. - Se a Susanna Dayton tivesse vivido para publicar aquele artigo, os estragos poderiam ter sido graves. O seu assassinato lamentável deu-nos algum tempo, mas não me parece que já estejamos seguros.
- Assassinato lamentável - repetiu Anne, um tom trocista na voz. - Por que o Post não publicou a história dela?
- Porque estão tentando reconfirmar tudo o que escreveu e ainda não conseguiram.
- E vão conseguir?
- Só se eu não puder evitar.
Anne Beckwith acendeu um cigarro e exalou um leve fio de fumaça por entre os lábios tensos.
- O que vai fazer para impedir que isso aconteça?
- Acho que seria imprudente se Anne tomasse conhecimento de tudo isto.
- Não me venha com besteira, Mitchell. Diga o que eu quero saber.
- Achamos que a melhor amiga de Susanna Dayton, uma advogada chamada Elizabeth Osbourne, está ajudando o Post.
- Não é a filha do Douglas Cannon?
- Sim, é.
- Cannon odeia o Jim. Estiveram juntos nas Forças Armadas. Cannon era o diretor e Jim o republicano responsável. No final, já mal se falavam.
Anne terminou o vinho.
- Não vai me oferecer outro copo? Da Califórnia, não é? Meu Deus, fazemos um vinho maravilhoso.
Elliott serviu-lhe mais vinho.
- Mitchell, estamos juntos nisso há muito tempo. Jim e eu lhe devemos muito. Tem sido muito generoso ao longo dos anos. Mas eu não vou permitir que isto prejudique Jim, seja de que maneira for. Ele fez sua última campanha. Agora não tem nada a perder, a não ser o lugar nos livros de história.
- Compreendo.
- Não me parece. Se isto vier a público da pior forma, usarei todo o poder e influência que tenho para me certificar de que é o senhor quem cai. Não vou deixar que Jim saia prejudicado e, neste momento, não quero saber de você para nada. Fiz-me entender?
Elliott bebeu o resto do scotch. Não gostava de ouvir um sermão de Anne Beckwith. Se não fosse a ganância e as inseguranças de Anne, Elliott nunca teria conseguido estabelecer a sua relação financeira especial com o marido dela. Era sempre Anne quem ditava as cartas, mesmo quando se tratava de corrupção. Fitou-a com frieza por um instante, depois assentiu e disse: - Sim, Anne, fez-se entender perfeitamente.
- Se esta coisa explodir, Jim vai sobreviver. Mas seu projeto antimíssil vai por água abaixo. Não será construído, ou então o contrato será concedido a uma empresa menos controvertida. O senhor estará acabado.
- Eu sei o que está em causa.
- Ótimo. - Levantou-se e pegou o casaco.
Mitchell Elliott permaneceu sentado. - Só quero fazer-lhe uma pergunta, Mitchell. As pessoas que mataram a jornalista foram as mesmas que abateram o avião?
Elliott olhou para ela, a perplexidade estampada no rosto. - De que diabos está falando?
- Responde a uma pergunta com outra pergunta. Mau sinal. Boa noite, querido. Oh, não se levante. Sou apenas a Primeira-Dama. Saio sozinha.
Elizabeth representou o papel de uma atarefada advogada de Washington regressando ao escritório para trabalhar até tarde: jeans, botas de cowboy, uma confortável blusa de algodão bege. Max Lewis vivia perto de Dupont Circle e sua roupa diária de trabalho refletia as tendências do bairro: jeans, mocassins de camurça preta, suéter de gola alta preta, casaco cinza-escuro. Os escritórios de advocacia da Braxton, Allworth & Kettlemen ficavam na esquina da Connecticut Avenue com a K Street. Michael esperou no carro. Elizabeth e Max entraram juntos no hall, identificaram-se ao segurança e foram de elevador até o andar.
O escritório de Elizabeth ficava na extremidade norte do piso, com vista para a Connecticut Avenue. Samuel Braxton era quem possuía o maior gabinete da firma, uma série de salas ao longo da esquina da Connecticut Avenue com a K Street, com uma vista magnífica da Casa Branca e do Washington Monument.
Elizabeth destrancou o seu gabinete acendeu as luzes e entrou. Falou com Max numa voz alta e clara. Queria que tudo parecesse normal. Max colocou mais papel na fotocopiadora e fez café. Elizabeth ouvia o zumbido distante de aspiradores vindo de algures no piso.
Pegou nas chaves e atravessou o corredor até o gabinete de Braxton. Deu uma batida suave, não obteve qualquer resposta e destrancou a porta com a chave duplicada. Entrou e fechou rapidamente a porta. Retirou uma pequena lanterna da mala e ligou-a.
Elizabeth estava no gabinete exterior, onde trabalhavam as duas secretárias de Braxton. O arquivo estava na outra ponta, do outro lado de uma porta pesada. Elizabeth trocou de chave e abriu a porta. Fechou-a e acendeu a luz. Max disse-lhe onde encontrar os arquivos de Elliott e Beckwith: na parede em frente, em cima à esquerda. Ela não chegava à prateleira de cima. As secretárias de Braxton guardavam ali um banquinho do gênero que existe nas bibliotecas para estas ocasiões. Levou o banco para o outro lado da sala, subiu para cima dele e começou a inspecionar os arquivos.
Examinou a fila inteira uma vez e não encontrou nada. Começou do princípio, obrigando-se a ir devagar mas, mais uma vez, não encontrou nada. Experimentou ver na prateleira abaixo, mas aconteceu a mesma coisa. Nada. Praguejou baixinho. Braxton retirara dali os arquivos. Elizabeth desceu do banco e dirigiu-se à porta. Ouviu sons no gabinete, do outro lado da porta: uma chave a ser enfiada numa fechadura, o clique de um interruptor, o arranhar de um carrinho de metal. Em seguida, ouviu o estalido de uma chave a ser violentamente empurrada para o interior da fechadura da porta que se encontrava a poucos metros dela. A fechadura cedeu e a porta abriu.
Elizabeth observou atentamente o homem que estava à sua frente e percebeu de imediato que algo de errado se passava. A maior parte do pessoal da limpeza eram indivíduos da América Central de origem índia, pequenos e de pele escura, que quase não falavam inglês. Aquele homem era alto, devia medir cerca de um metro e oitenta, e tinha pele clara. Era evidente que o cabelo escuro fora cortado e penteado por um profissional dispendioso. A bata era nova e não estava suja, e as unhas encontravam-se limpas. Contudo, foi o anel na mão esquerda que chamou a atenção de Elizabeth. Exibia as insígnias das Forças Especiais do Exército, os Green Berets.
- Posso ajudá-lo? - perguntou Elizabeth. Resolvendo tomar a iniciativa.
- Ouvi um barulho - respondeu o homem num inglês de pronúncia carregada. Elizabeth percebeu que ele estava a mentir, pois tivera muito cuidado para não fazer barulho algum.
- Porque não chamou a segurança? - ripostou ela. O homem encolheu os ombros. - Pensei em vir eu próprio dar uma vista de olhos primeiro, - disse. - Sabe, apanhar um ladrão, ser um grande herói, receber uma recompensa ou assim. Elizabeth olhou para a placa com o nome dele no macacão, e fez disso um grande alarde.
- É americano, Carlos?
Ele abanou a cabeça. - Sou do Equador.
- Onde arranjou esse anel?
- Na loja de penhores em Adams Morgan. Muy bonito, não acha?
- É lindo, Carlos. Agora, se me dá licença...
Passou por ele e entrou no escritório.
- Encontrou o procurava? - perguntou o homem, às costas dela.
- Na verdade, estava apenas arrumando uma coisa.
- Está bem. Boa noite, señora.
- Talvez estivesse dizendo a verdade - sugeriu Michael. - Talvez seja mesmo Carlos do Equador e tenha comprado o anel numa loja de penhores em Adams Morgan.
- Besteira - ripostou Elizabeth.
Max levara-os a um restaurante em Dupont Circle chamado The Childe Harold. Era popular entre jornalistas e jovens do pessoal do Congresso. Sentaram-se a uma mesa de canto no bar da cave. Elizabeth ansiava desesperadamente por um cigarro mas, em vez disso, roía as unhas.
- Nunca o vi antes - disse Max. - Mas isso não quer dizer grande coisa. As pessoas nestes empregos estão sempre indo e vindo.
- Nunca o viu antes, Max, porque ele não é merda nenhuma de contínuo nenhum e não é Carlos nenhum da merda do Equador. Eu sei o que vi. - Olhou para Michael. - Lembra do que disse sobre aquela sensação que temos quando alguém nos observa? Bem, estou com essa sensação neste preciso momento.
- Ela não é idiota - relatou Henry Rodriguez pelo telefone. - É uma advogada importante. Tentei me safar. Fiz minha melhor imitação do Freddie Prinze de Chim and the Man, mas sei que ela desconfiou.
- Por que diabos estava usando o anel? - perguntou Calahan.
- Esqueci. Atire em mim.
- Não me dê ideia. Para onde eles foram?
- Para um restaurante chamado The Childe Harold. Twentieth Street, norte de Dupont Circle.
- E você, onde está?
- Na cabine telefônica do outro lado da Connecticut Avenue. Posso me aproximar mais.
- Fique aí. Mando alguém em cinco minutos.
Calahan desligou e olhou para Elliott. - Temos outro pequeno problema, senhor.
WASHINGTON, D. C.
Na manhã seguinte, Delaroche sentou-se num banco em Dupont Circle, de onde observou a multidão de mensageiros de bicicleta a tomar o seu café da manhã. Achava-os vagamente divertidos: a forma como se riam, diziam piadas e atiravam coisas uns aos outros. No entanto, não estava a observá-los simplesmente para passar o tempo. Prestou atenção à forma como se vestiam, os tipos de pastas que transportavam, a forma como falavam. Pouco depois das nove, os mensageiros começaram a receber chamadas pelos rádios e cada um deles montou com relutância uma bicicleta e pedalou para o trabalho.
Delaroche esperou até que o último desaparecesse de vista, depois fez sinal a um táxi e deu uma morada ao motorista.
O táxi levou Delaroche ao longo da M Street até Georgetown e depositou-o na parte inferior da Key Bridge. Entrou na loja. Um empregado perguntou se precisava de ajuda e Delaroche abanou a cabeça. Começou com a roupa. Escolheu as blusas e os calções mais vistosos e mais coloridos que conseguiu encontrar. Em seguida, escolheu sapatos, meias, um capacete e uma mochila. Levou tudo para a parte da frente da loja e empilhou as coisas em cima do balcão. - Mais alguma coisa? - perguntou o empregado. Delaroche apontou para a bicicleta de montanha mais cara da loja. O empregado foi buscá-la e levou-a até o balcão.
- Para onde a leva? - perguntou Delaroche calmamente, consciente do seu inglês carregado.
Temos de verificar a bicicleta. Vai demorar uma hora, mais ou menos.
- Encha os pneus e dê-ma.
- Como queira. Vai pagar em dinheiro ou com cartão? Mas Delaroche já estava a contar notas de cem dólares.
Delaroche passou a hora seguinte às compras na Wisconsin Avenue, em Georgetown. Numa loja de vestuário, comprou uma bandana para a cabeça, numa loja de eletrônica, um pequeno gravador a pilhas com receptores. Numa joalharia adquiriu várias correntes de ouro de mau gosto para o pescoço, furou as duas orelhas e pôs argolas.
Mudou de roupa na casa de banho de uma bomba de gasolina. Despiu a roupa e vestiu os calções de ciclista e a blusa de Inverno. Atou a bandana à cabeça e colocou as correntes de ouro ao pescoço. Prendeu o gravador ao cós dos calções e passou os receptores à volta do pescoço. Enfiou as roupas na mochila, juntamente com a Beretta com silênciador, e viu-se ao espelho. Faltava qualquer coisa. Colocou os óculos de sol Ray-Ban, os mesmos óculos que usara para matar o homem em Paris, e olhou mais uma vez para o reflexo. Agora estava bem. Saiu para a rua. Um homem com um casaco de couro estava prestes a roubar-lhe a bicicleta.
- Canalha - disse Delaroche, imitando o dialeto dos mensageiros em Dupont Circle -, a última coisa que quer é mexer na minha bicicleta.
- Ouve, calma. Estava só olhando - disse o homem, recuando rapidamente. - Paz e amor e essas mentiras todas.
Delaroche subiu na bicicleta e dirigiu-se à casa de Michael Osbourne.
Enquanto pedalava ao longo das ruas cobertas de folhas de East Georgetown, Delaroche reviu uma última vez o plano para matar Osbourne. Seria difícil acabar com ele. Era um homem casado sem quaisquer pontos fracos graves. Não sucumbiria a um avanço sexual da parte de Astrid. Era um agente profissional dos serviços secretos que passara muitos anos em situações perigosas.
Instintivamente, estaria sempre alerta. Delaroche pensou em limitar-se a bater à porta de Osbourne, sob o pretexto de ir entregar uma encomenda, e dar-lhe um tiro quando ele aparecesse. Mas Osbourne poderia reconhecer Delaroche, afinal de contas, ele estivera na Represa de Chelsea, e disparara primeiro. Pensou em tentar entrar na casa de Osbourne pela calada, mas decerto que uma casa grande e opulenta numa cidade assolada pelo crime como Washington se encontrava protegida por um sistema de segurança. Decidiu que teria de matá-lo de surpresa, algures a céu aberto, razão pela qual Delaroche estava vestido como um mensageiro de bicicleta.
A N Street apresentou a Delaroche o seu primeiro problema grave. Não havia lojas, nem cafés, nem cabines telefônicas, nenhum sítio onde Delaroche pudesse matar o tempo de forma discreta. Só se viam grandes casas de tijolo ao estilo federal, firmemente implantadas no passeio.
Delaroche aguardou na esquina da 33rd Street com a N Street, à porta de uma casa enorme com uma imponente sacada assente em pilares, a pensar sobre o que havia de fazer. Só tinha uma opção: andar para a frente e para trás na sua bicicleta pela N Street e esperar conseguir avistar Osbourne a entrar ou a sair de casa. Era uma situação estranha a Delaroche: sempre que possível, preferia matar estando exatamente no sítio certo, exatamente à hora certa. Mas não tinha outra opção.
Montou a bicicleta, pedalou em direção à 35th Street, deu meia volta e pedalou de volta à 33rd Street, observando a casa de Osbourne o mais atentamente possível.
Passados vinte minutos, um homem saiu de casa, vestindo roupa de corrida cinza e branca. Delaroche observou cuidadosamente o rosto. Era o mesmo rosto da imagem no arquivo. Era o mesmo rosto que vira naquela noite na Represa de Chelsea. Era Michael Osbourne.
Osbourne dobrou-se e esticou a parte de trás das pernas. Encostou-se a um poste e alongou os músculos da barriga das pernas. Delaroche, à espera a dois quarteirões de distância, viu os olhos de Osbourne passar em revista a rua e os carros estacionados.
Por fim, Osbourne pôs-se de pé e iniciou uma corrida ligeira. Virou à esquerda na 34th Street, à direita na M Street e dirigiu-se a Key
Bridge, em direção à Virgínia. Delaroche marcou o número de Astrid no Four Seasons e falou com ela, enquanto pedalava a um ritmo regular na esteira de Osbourne.
Michael alcançou o lado da Virgínia do Potomac e dirigiu-se para sul ao longo do Mount Vernon Trail. Tinha os músculos rígidos e doridos e o tempo frio do mês de Dezembro não estava a ajudar, mas estugou o passo e aumentou o ritmo e, passados alguns minutos de corrida rápida, sentiu o suor por baixo a roupa.
Era bom estar fora de casa. Carter telefonara naquela manhã e informara Michael de que Monica Tyler ordenara formalmente ao Departamento de Pessoal que desse início a uma investigação sobre a sua conduta. Elizabeth concordara finalmente em aceder à vontade do médico e estava a trabalhar a partir de casa. O quarto deles transformara-se num escritório de advogados, completado por Max Lewis. As nuvens abriram e um quente sol de Verão brilhou ao longo das margens do rio. Michael passou a entrada para a Roosevelt Island. Uma ponte de madeira estendia-se perante si, sobre vários metros de pântano e juncos. Michael aumentou o ritmo, os pés a martelar as tábuas da ponte. Era dia de semana e estava sozinho no trilho. Jogou um jogo consigo próprio, fazendo uma corrida imaginária. Começou a correr em sprint, impulsionando os braços e erguendo os joelhos. Contornou uma esquina e o final da ponte apareceu, a cerca de duzentos metros de distância.
Michael obrigou-se a correr ainda mais depressa. Os braços ardiam-lhe, as pernas pareciam um peso morto e respirava com dificuldade devido ao ar frio e a demasiados cigarros. Chegou ao fim da ponte, parou e virou-se para ver a extensão que tinha percorrido com a sua pequena corrida de velocidade. Só nessa altura viu o homem a pedalar na sua direção, montado numa bicicleta de montanha.
WASHINGTON, D. C.
Astrid Vogel telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para preparar o Range Rover. Saiu do quarto e foi de elevador até o hall. Trazia consigo uma mala e, no seu interior, estava uma Beretta com silênciador. O Range Rover encontrava-se sob a entrada coberta do hotel. Astrid deu ao camareiro o talão e uma nota de cinco dólares. Entrou para o carro e afastou-se. Delaroche tinha-a obrigado a ficar acordada durante metade da noite a decorar mapas. Cinco minutos depois, estacionava de marcha-atrás a alguns quarteirões de distância, em N Street. Desligou o motor, acendeu um cigarro e esperou pelo telefonema de Delaroche.
Michael retesou-se à medida que a adrenalina disparava pelo seu corpo. De repente, os braços e as pernas já não lhe doíam e a respiração saía-lhe em sopros curtos e rápidos. Fitou o homem que se aproximava de bicicleta. Um capacete cobria-lhe a cabeça e óculos de sol tapavam-lhe os olhos. Michael fitou a parte exposta do rosto. Já o vira antes... no quarto de Colin Yardley, no vídeo do aeroporto do Cairo, na Represa de Chelsea. Era Outubro.
O assassino levava a mão ao interior de um saco de nylon montado no guiador da bicicleta. Michael sabia que ele ia buscar a arma. Se desse meia volta e tentasse fugir, seria fácil para Outubro apanhá-lo e matá-lo. Se ficasse ali parado, o resultado seria o mesmo.
Correu a toda a velocidade em direção à bicicleta que se aproximava.
A jogada apanhou o assassino de surpresa. Encontrava-se a vinte metros de distância e os dois homens aproximavam-se um do outro rapidamente, numa rota de colisão. Outubro revolveu freneticamente o saco de nylon à procura da coronha da arma, tentando colocar o dedo no gatilho. Pegou na pistola, puxou-a de dentro do saco e tentou apontar a Michael.
Michael chegou quando a Beretta com silenciador emitiu um baque surdo. Baixou o ombro e enterrou-o no peito de Outubro. O golpe derrubou Outubro da bicicleta e este foi aterrar com violência na ponte de madeira. Michael conseguiu permanecer de pé. Virou-se e viu Outubro, deitado de costas, ainda de arma na mão.
Michael tinha duas opções: atacar Outubro, tentar desarmá-lo e capturá-lo ou fugir e pedir ajuda. Outubro era um assassino implacável, treinado em artes marciais. Michael recebera um treino rudimentar na Quinta, mas tinha consciência de que não poderia competir com alguém como Outubro. Além disso, ele estava a empunhar uma arma na mão e provavelmente tinha uma segunda escondida algures no corpo.
Michael deu meia volta, correu alguns metros ao longo da ponte e depois saltou para o lado, para dentro da lama e dos juncos na margem do rio. Trepou uma ladeira escorregadia devido às folhas de Outono molhadas e desapareceu num aglomerado de árvores.
Delaroche sentou-se e recuperou. O golpe deixara-o sem fôlego, mas não sofrera ferimentos de maior. Enfiou a Beretta na cintura dos calções e puxou a blusa sobre a coronha. Dois homens de moletom camuflados contornaram a esquina no momento em que Delaroche se baixava para apanhar a bicicleta. Por um instante, pensou em matá-los a ambos. Depois lembrou-se que o pentágono ficava ali perto e que os soldados tinham simplesmente saído para uma corrida inofensiva ao meio-dia. - Está bem? - perguntou um deles.
Foi só um rufião que tentou roubar-me - respondeu Delaroche, deixando vir ao de cima o seu sotaque francês. - Quando expliquei ao homem que não tinha nada de valor, ele empurrou-me da bicicleta.
- Se calhar era melhor ir ao médico - sugeriu o outro.
- Não, uma nódoa negra, talvez, mas nada de grave. Quando encontrar um policial, apresento queixa.
- Está bem, tenha cuidado.
- Obrigado por pararem, cavalheiros.
Delaroche esperou que os soldados desaparecessem de vista. Pegou na bicicleta pelo guiador e endireitou-a. Estava zangado e excitado. Nunca falhara um assassinato e estava zangado consigo próprio por não ter reagido melhor. Osbourne provara ser um adversário de maior respeito do que Delaroche esperara. A sua corrida em direção a Delaroche demonstrava, ao mesmo tempo, coragem e astúcia. A segunda decisão, de fugir em vez de lutar, também demonstrava inteligência, pois Delaroche certamente que o teria matado.
Era por isso que Delaroche se sentia excitado. A maior parte das vítimas nem dava pelo que lhes acontecia. Ele surgia de forma inesperada e matava sem avisar. A maior parte das vezes o seu trabalho nada tinha de estimulante. Era evidente que esse não seria o caso com Osbourne. Delaroche perdera o elemento surpresa. Osbourne sabia da sua presença e nunca mais voltaria a permitir que Delaroche se aproximasse dele. Teria de trazer Osbourne até si.
Delaroche recordou-se da noite na Represa de Chelsea. Recordou ter alvejado três vezes o rosto da mulher chamada Sarah Randolph e de ouvir os gritos angustiados de Michael Osbourne enquanto fugia. Um homem que perdera uma mulher daquela forma faria quase tudo para evitar que tal voltasse a acontecer. Montou-se na bicicleta e pedalou para norte, em direção a Key Bridge. Marcou o número de Astrid, que atendeu ao primeiro toque. Enquanto atravessava a ponte em direção a Georgetown, Delaroche disse-lhe calmamente o que fazer. Michael chegou a George Washington Parkway. Ao meio-dia havia pouco trânsito. Atravessou a alameda e correu por outra encosta acima. Os edifícios de escritórios de vidro e aço da seção Rosslyn de Arlington estavam à sua frente. Encontrou um telefone público em frente a uma loja de conveniência e teclou rapidamente seu próprio número.
Max Lewis atendeu.
- Chame Elizabeth, já!
Segundos mais tarde, Elizabeth atendia.
- Michael, o que há?
- Eles estão aqui, Elizabeth - disse Michael, arquejando. - Outubro acaba de tentar me matar no Mount Vernon Trail. Agora escute com muita atenção e faça exatamente o que vou dizer.
WASHINGTON, D. C.
Elizabeth correu para a sala de Michael e abriu a porta do armário. A pasta estava na última prateleira, uma caixa rectangular castanha tão feia, que só poderia ter sido criada pelo Gabinete de Serviços Técnicos da Agência. Não conseguia chegar à prateleira, por isso empurrou a cadeira de Michael da secretária até o armário. Empoleirou-se em cima dela e pegou na pasta.
Max estava no quarto. Elizabeth sentou-se aos pés da cama e calçou um par de botas de camurça castanhas, de cowboy. Depois foi até o armário e vestiu um casaco de pele, que lhe dava pelas coxas. Sem saber bem porquê, olhou para o reflexo do seu rosto no espelho e passou os dedos pelo cabelo despenteado. Max olhou para ela.
- Raios partam, Elizabeth! Que diabo se está a passar? Elizabeth obrigou-se a permanecer calma.
- Não posso explicar tudo agora, Max, mas um homem acabou de tentar matar o Michael enquanto ele estava a correr. O Michael acha que esse homem está a vir para aqui e quer que saiamos já.
Max olhou para a pasta.
- Que raio é isso?
- Chama-se uma lança - respondeu ela. - Explico logo. Mas agora preciso que me ajude.
- Faço qualquer coisa, Elizabeth, sabe disso.
- Agora ouve com atenção, Max - disse ela, pegando-lhe na mão. - Vamos sair pela porta da frente muito devagar, muito calmamente, e vamos entrar no meu carro.
Dois minutos depois de ter terminado o telefonema para Delaroche, Astrid Vogel viu abrir a porta principal da casa dos Osbourne e duas figuras saíram para a luz do sol de dezembro. A primeira era Elizabeth Osbourne (Astrid reconheceu-a pela fotografia do dossiê de Delaroche) e a segunda era um homem branco de estatura e constituição médias. A mulher trazia na mão uma pequena mala de homem, o homem não levava nada consigo. Entraram para um Mercedes-Benz classe E metalizado, a mulher no banco do passageiro, o homem ao volante, e o motor do carro começou a funcionar.
Astrid pensou no que fazer. Delaroche dissera-lhe para esperar que ele regressasse. Nessa altura, entrariam dentro de casa e tomariam a mulher como refém. Não podia permitir que a mulher fugisse. Decidiu segui-los e dizer a Delaroche para onde se dirigiam.
O Mercedes afastou-se do passeio e entrou na rua sossegada. Astrid ligou o motor do Range Rover e seguiu-os. Ligou para Delaroche e informou-o rapidamente dos últimos acontecimentos.
- Ele está aqui! - gritou Michael no telefone.
- Quem? - perguntou Adrian Carter.
- Outubro está aqui. Acabou de tentar me matar no Mount Vernon Trail.
- Tem certeza?
- Adrian, que raio de pergunta é essa? Claro que tenho certeza!
- Onde você está?
- Rosslyn.
- Diga o endereço. Vou enviar uma equipe para te buscar.
Michael procurou com os olhos uma placa e deu a Carter sua localização.
- Onde está Elizabeth? Vou mandar buscá-la também.
- Estava em casa, mas eu disse para sair de lá.
- Por que raios fez uma coisa dessas?
- Porque Outubro e Astrid Vogel estão juntos nisso. E provável que ela também esteja aqui. Se eu não mandasse a Elizabeth sair, Vogel teria ido lá e a apanharia. Tenho certeza.
- Qual é seu plano?
Michael contou.
- Jesus Cristo! Quem é o motorista?
- O secretário dela. Um garoto chamado Max Lewis.
- Raios me partam, Michael. Sabe o que Outubro vai fazer com ele quando descobrir?
- Cale-se, Adrian. Vem logo me buscar.
Elizabeth baixou a pala e olhou para o pequeno espelho enquanto se dirigiam para sul, pela Wisconsin Avenue. O Range Rover preto estava ali, uma mulher atrás do volante, a falar ao celular.
- Estamos fugindo de quem? - quis saber Max.
- Se eu te dissesse, não ia acreditar.
- A esta altura do campeonato, acredito em qualquer coisa.
- Ela se chama Astrid Vogel e é uma terrorista da Facção do Exército Vermelho.
- Deus do Céu!
- Vire à esquerda e dirija normalmente.
Max virou à esquerda para a M Street. Na 31st Street, o sinal mudou de verde para amarelo quando ele estava a quinze metros do cruzamento.
- Vai - disse Elizabeth.
Max carregou no acelerador. O Mercedes respondeu, reduzindo uma mudança e ganhando velocidade rapidamente. Atravessaram o cruzamento ao som furioso das buzinas. Elizabeth olhou para o espelho e viu que o Range Rover continuava atrás deles.
- Merda!
- O que queres que faça? - Continua a andar.
Na 28th Street, Max não teve alternativa a não ser parar num semáforo vermelho. O Range Rover parou mesmo colado a eles. Elizabeth observou a mulher pelo espelho da pala e Max fez o mesmo pelo espelho retrovisor. - com quem achas que ela está a falar?
- Está a conversar com o sócio.
O sócio dela também pertence à Fação do Exército Vermelho?
- Não, é um antigo assassino do KGB, com o nome de código de Outubro. O semáforo ficou verde. Max carregou tanto no acelerador que os pneus chiaram sobre o asfalto.
- Elizabeth, da próxima vez que me pedires para ir trabalhar na tua casa, acho que vou recusar, se não te importares.
- Cala-te e conduz, Max.
- Para onde?
- Para a baixa.
Max dirigiu-se para leste na L Street, com o Range Rover sempre a segui-los como uma sombra. Elizabeth brincava com a pega da pasta. Recordou-se das palavras de Michael. “Sai do carro e depois aciona o dispositivo. Certifique-se de que a pasta esteja virada para cima. Ande calmamente. Faça o que fizer, não corra.”
O trânsito ia ficando mais intenso à medida em que se aproximavam da baixa de Washington.
- Tem certeza de que essa coisa vai funcionar? - perguntou Max.
- Como quer que eu saiba?
- Talvez esteja dentro do armário há tempo demais. Vê se tem uma data de validade, ou algo do gênero.
Elizabeth olhou para ele e viu que estava rindo.
- Vai correr tudo bem, Elizabeth. Não se preocupes.
Virou à direita na Connecticut Avenue. O trânsito do meio-dia era intenso, os carros avançando a toda a velocidade pela rua larga e grandes camiões estacionados em segunda fila em frente a lojas de luxo. Meia dúzia de carros colocara-se entre eles e Astrid Vogel.
- Acho que é aqui - indicou Elizabeth. - Vira à direita para a K Street. Usa a faixa de serviço.
- É para já.
Carregou no acelerador e virou o volante para a direita.
- Acabaram de virar à direita para a K Street - disse Astrid a Delaroche. - Raios me partam, não consigo vê-los!
Girou o volante e descobriu o Mercedes a sair da beira para o trânsito compacto da K Street.
Já os apanhei. Vão para oeste na K Street. Onde estás?
- Na 23rd Street, a ir para sul. Estamos muito perto.
Astrid seguiu o Mercedes em direção a oeste, pela 20th Street e depois pela 21st Street.
- Estou a aproximar-me, Jean-Paul. Onde estás?
- Na M Street. Espera por mim na 23rd.
Ela atravessou a 23rd Street e parou na esquina noroeste. O Mercedes afastou-se. Olhou para norte e viu Delaroche a pedalar a grande velocidade, as pernas movendo-se como pistões. Parou, encostou a bicicleta num poste e entrou no Range Rover. - Vai!
Elizabeth recostou-se no banco de trás de um táxi, preparando-se para a viagem até a agência de aluguer de automóveis Hertz. A engenhoca de Michael tinha funcionado tal como ele dissera. Max parou o carro, Elizabeth saiu e acionou o dispositivo. Uma figura insuflou depressa, extraordinariamente real. Max afastou-se rapidamente e Elizabeth entrou no hall do seu prédio. Sentiu-se tentada a subir e esconder-se no gabinete, mas lembrou-se do porteiro com o penteado dispendioso e o anel das Forças Especiais e soube que o gabinete já não era seguro. Esperou atrás do vidro até que o Range Rover passasse, depois saiu e fez sinal ao táxi.
O táxi deixou-a na agência Hertz. Entrou apressadamente e dirigiu-se ao balcão.
Cinco minutos depois, um empregado trouxe um Mercury Sable cinzento para a frente da garagem. Elizabeth entrou nele e mergulhou no trânsito da baixa. Avançou para oeste, atravessando Washington, através de Georgetown até a Reservoir Road. Seguiu essa estrada até a Canal Road e continuou para norte, ao longo das margens do C&O Canal. Percorridos dezesseis quilômetros, chegou à Beltway. Seguiu as placas rumo a norte, para Baltimore.
A mala encontrava-se ao seu lado, no banco do passageiro. Pegou no celular e ligou para o Mercedes. Após cinco toques, uma gravação informou-a de que o celular que estava a tentar contatar "não se encontrava disponível de momento".
Max Lewis atravessou a Key Bridge e virou para norte, para a George Washington Parkway. Perdera o Range Rover algures em Georgetown. Olhou para a figura sentada ao seu lado, um homem alto e bastante atraente, com cabelo escuro e bem barbeado. Apercebeu-se de que a figura se assemelhava um pouco a Michael Osbourne. Olhou pelo espelho retrovisor. Continuava a não haver sinais do Range Rover. Por um instante de demência, estava realmente a divertir-se. Depois pensou em Elizabeth e como ela se sentira assustada, e recuperou uma dose saudável de sangue-frio. Elizabeth dissera-lhe para ir diretamente para a entrada principal da CIA. Alguém se encontraria lá com ele e o levaria para dentro. Carregou no acelerador e a agulha do conta-quilômetros saltou para os cento e vinte. O Mercedes deslizava com facilidade sobre as colinas ondeadas e as curvas suaves da alameda. O Potomac brilhava lá em baixo, ao sol brilhante de Dezembro.
Max olhou novamente para o manequim.
- Ouça, senhor Lança, uma vez que vamos passar algum tempo juntos, acho que esta seria uma boa oportunidade para nos ficarmos a conhecer melhor. Chamo-me Max e, sim, sou homossexual. Espero que isso não o incomode.
Olhou para o espelho retrovisor e viu a luz azul intermitente de um carro de polícia da Virgínia. Olhou para o conta-quilômetros e viu que estava a conduzir a quase cento e trinta quilômetros por hora.
- Oh, merda - praguejou Max, carregando com suavidade no travão e parando num refúgio com uma bonita vista para o rio.
O policial saiu do carro e pôs o chapéu. Max baixou o vidro.
- O senhor estava a conduzir a bem mais de cento e vinte, ali atrás - disse o policial -, provavelmente quase a cento e trinta. Posso ver a sua carta de condução, por favor? - Depois reparou no boneco inflável no banco do passageiro. - O que é aquilo?
- É uma história muito comprida, senhor agente.
- A sua carta de condução, por favor.
Max apalpou os bolsos do peito do casaco. Saíra da casa dos Osbourne tão à pressa, que se esquecera da pasta e da carteira. - Lamento, senhor agente, mas não tenho a carta comigo.
- Desligue o motor e saia do carro, por favor - ordenou o policial, num tom de voz monocórdico. Nesse momento, a sua atenção foi desviada para um Range Rover que parava no refúgio.
- Senhor agente, o senhor vai pensar que eu estou maluco, mas é melhor ouvir o que eu tenho a dizer.
Delaroche saiu do Range Rover e encaminhou-se para o policial. Astrid saiu e dirigiu-se para a frente do Mercedes. O policial desapertou o coldre e tentou agarrar na arma.
- Volte a entrar no carro, já!
Delaroche meteu a mão debaixo da blusa de ciclista e agarrou numa Beretta com silênciador. Levantou o braço e disparou duas vezes. O primeiro tiro atingiu o policial no ombro, fazendo-o dar meia volta. O segundo acertou-lhe na nuca e o homem caiu sobre o rebordo do alcatrão.
Astrid estava à frente do Mercedes, os braços esticados e uma arma nas mãos. Olhou primeiro para o homem atrás do volante e depois para o manequim sentado onde estivera Elizabeth Osbourne. Estava lívida de raiva. Caíra num dos truques mais velhos que existia.
O motor foi ligado e o Mercedes meteu a primeira. Astrid disparou calmamente três vezes através do para-brisa. O vidro estilhaçou-se e ficou instantaneamente vermelho com sangue. O corpo caiu para a frente sobre a caixa de direção e a tarde encheu-se com o som da buzina do carro.
Michael mantinha uma vigília tensa no gabinete de Adrian Carter, a andar de um lado para o outro e a fumar cigarros. Carter dava tacadas em bolas de golfe para acalmar os nervos. Um dos factótuns de Monica Tyler esperava à porta do escritório de Carter, como se fosse um aluno de castigo. Michael fechou a porta para poderem conversar.
- Porque é que nunca tive autorização para ver o arquivo sobre o Outubro? - Porque era restrito - explicou Carter num tom de voz inexpressivo, a cabeça curvada em concentração. Deu uma tacada na bola, mas falhou o alvo por quinze centímetros. - Merda - murmurou Carter. - Abusei.
Porque é que era restrito?
- Esta é uma agência de serviços secretos, Michael, não uma sala de leitura de Ciência Cristã. Durante o tempo em que o Outubro foi um agente ativo da KGB, provavelmente não houve necessidade de saberes da sua existência.
Carter deu outra tacada. Esta aterrou no sitio certo.
- Porque era mantida tão em segredo a informação sobre o Outubro? - quis saber Michael.
- Para proteger a identidade da fonte, creio eu. Regra geral, é esse o caso.
- Raios partam, ele matou a Sarah Randolph mesmo à minha frente. Por que é que alguém neste maldito lugar não me mostrou o arquivo e me ajudou a arrumar o assunto?
- Porque essa teria sido a coisa mais sensata a fazer. Mas a sensatez e o trabalho de espionagem raramente andam de mãos dadas. Certamente que, a esta altura, já aprendeste isso. - Como é que o conseguiste?
- Há uns dois anos tivemos provas de que o Outubro estava a trabalhar outra vez como freelance - explicou Carter. - O arquivo foi recuperado e posto novamente em circulação, mas de forma muito limitada. - Tiveste autorização para vê-lo? Carter aquiesceu.
- Raios partam, Adrian! Enquanto eu andava a tentar perceber o assassinato da Sarah com meias pistas e conjecturas, tu tinhas a resposta. Por que não me contaste?
Carter assumiu uma expressão que dizia que, por vezes, o trabalho de espionagem exigia mentir aos amigos.
- Estas são as regras pelas quais vivemos, Michael. Elas protegem as pessoas que arriscam a vida ao traírem o seu próprio país. Protegem pessoas como tu, que trabalham infiltradas no terreno.
Então por que é que quebraste as regras agora e me deste o arquivo do Outubro? - Porque, neste caso, as regras eram uma treta. Não faziam sentido. - Quem queria que o arquivo do Outubro permanecesse restrito? Carter agitou o polegar para o outro lado da porta e segredou:
- Monica Tyler.
Elizabeth finalmente telefonou e o painel de emergência fez a ligação para o gabinete de Carter.
- O que aconteceu? Está bem?
- Estou ótima - respondeu ela. - Fiz tudo o que me disse. Aquela mala funcionou na perfeição. Até se parecia um pouco com você. Agora estou no carro. Indo para onde me disse.
Osbourne sorriu com um alívio extremo.
- Graças a Deus - exclamou. - Já teve notícia do Max?
- Não, ainda não. Deve estar quase chegando.
A secretária de Carter espreitou pela porta e disse que havia outra chamada.
Carter atendeu-a numa extensão lá fora.
- Elizabeth, estou tão orgulhoso de você. Amo tanto você! - disse Osbourne.
- Eu também te amo, Michael. Este pesadelo já terminou?
- Ainda não, mas em breve vai terminar. Continua a dirigir. Vamos pensar em como e quando traremos você para cá.
- Te amo, Michael - repetiu ela e a ligação foi interrompida. Carter entrou no gabinete, o rosto pálido.
- O que se passa? - perguntou Michael.
- Max Lewis e um policial da Virgínia acabaram de ser mortos na George Washington Parkway.
Michael pousou o receptor com força.
WASHINGTON, D. C.
Delaroche atravessou Key Bridge e dirigiu-se de novo para Georgetown.
Percorreu rapidamente a M Street e virou para o acesso do Four Seasons Hotel. Esperou dentro do Rover enquanto Astrid foi ao quarto buscar as coisas deles. Isso deu-lhe um momento para reorganizar os pensamentos e planear o que fazer a seguir.
O mais fácil seria abortar: pedir uma extração e sair do país antes que fossem capturados. Delaroche estava confiante de que os tiros na alameda não tinham sido testemunhados por ninguém. As mortes tinham demorado segundos e, antes que outro carro passasse por ali, já se tinham vindo embora. No entanto, tentara matar Michael Osbourne uma vez e era evidente que este sabia que ele ali estava. O número que a esposa realizara com o boneco insuflável era prova disso. Agora seria muito difícil cumprir os termos do seu contrato: matar Osbourne. Contudo, Delaroche desejava continuar por duas razões. Uma era o dinheiro. Se não conseguisse matar Osbourne, perderia três quartos de um milhão de dólares. Delaroche queria viver os seus dias com Astrid livre de preocupações financeiras e de segurança. Para isso seria necessário muito dinheiro: dinheiro para comprar uma casa grande numa propriedade e sofisticados sistemas de segurança, dinheiro para subornar os oficiais da lei locais para conseguir permanecer escondido dos serviços de segurança do Ocidente. Também queria levar uma existência confortável. Vivera como um monge em Brélés durante anos, impossibilitado de gastar o dinheiro que tinha, com medo de atrair atenções.
Quando trabalhou para o KGB fora ainda pior. Arbatov obrigara-o a viver como um indigente em Paris, sobrevivendo com o pouco dinheiro que ganhava com os seus quadros.
A segunda razão, na verdade o motivo importante, era o orgulho. Osbourne vencera-o no caminho ao longo do rio, derrotara Delaroche no seu próprio jogo. Nunca tinha falhado uma missão e não desejava terminar a sua carreira com um fracasso. Matar era a sua profissão, nascera e fora educado para tal, e o fracasso era inaceitável. Osbourne era o primeiro alvo a ripostar com sucesso e Delaroche atrapalhara-se. Reagira como um amador no primeiro trabalho. Sentia-se envergonhado e zangado consigo próprio, e queria outra oportunidade. Pensou no arquivo de Osbourne. Recordou-se de que o pai de Elizabeth Osbourne, um senador dos Estados Unidos, tinha uma casa numa ilha isolada em Nova York. Pensou: Se eu estivesse assustado, iria para um sítio onde me sentisse seguro. Para um sítio longínquo. Para onde as autoridades me pudessem proporcionar a ilusão de segurança. Sairia de Washington o mais depressa possível e iria para uma ilha isolada.
Astrid saiu do hotel. Assim que entrou no carro, Delaroche ligou o motor. Arrancou e estacionou por baixo de um viaduto ao longo da margem do rio.
Desligou o motor e ligou o computador portátil.
Percorreu os arquivos até encontrar o arquivo de Osbourne. Leu-o rapidamente e encontrou a localização da casa do senador. Sim, pensou. Até o nome era perfeito. Eles irão para lá, pois acreditam que é um local seguro. Saiu do arquivo e clicou na base de dados, onde armazenara mapas de estradas digitais de quase todos os países do planeta. Digitou o ponto de partida e o destino e o software depressa lhe forneceu um itinerário: a Beltway, 1-95, a Verrazano Bridge, a Long Island Expressway.
Voltou a ligar o motor do Range Rover e engrenou a primeira.
- Onde vamos, Jean-Paul? - perguntou Astrid. Ele tocou na telado portátil.
Astrid olhou e leu.
Shelter Island. Ilha, Abrigo.
Delaroche pegou no celular, marcou o número que lhe fora dado pelas pessoas que o tinham contratado e falou calmamente enquanto abandonava Washington. O helicóptero aterrou no aeroporto de Atlantic City. Elizabeth apanhara a 1-95 para norte e depois dirigira-se para a costa de Jersey. Os oficiais de segurança do aeroporto estavam à espera quando parou na zona de devolução da agência de aluguer de automóveis Hertz. Levaram-na sob proteção e fecharam-na durante dez minutos numa pequena sala de detenção dentro do terminal.
Quando os rotores do helicóptero pararam, Elizabeth foi levada numa van do aeroporto desde a sala de detenção até a pista. Chovia com intensidade. A última coisa que lhe apetecia fazer numa noite como aquela era voar de helicóptero. Mas queria ir para casa. Queria sentir-se segura. Queria cheirar os lençóis familiares, ver coisas estimadas da sua infância. Durante algum tempo, queria fingir que nada daquilo tinha acontecido.
A porta da van abriu e um golpe de chuva fria atingiu-a no rosto. Saiu e dirigiu-se ao helicóptero. A porta abriu a ali estava Michael. Correu para os seus braços e abraçou-o com força. Beijou-o e disse:
- Nunca mais te vou perder de vista.
Michael não disse nada, limitando-se a abraçá-la. Por fim, ela perguntou: - Onde está o Max? Algures num local seguro, espero. Michael abraçou-a com mais força. Elizabeth leu algo no seu silêncio e afastou-se, olhando para ele com os olhos muito abertos.
- Raios partam, Michael, responde-me! Onde está o Max? Mas ela sabia a resposta. Não foi preciso ouvi-la.
- Meu Deus, não! - gritou, batendo-lhe com os punhos no peito. - Outra vez não! Meu Deus, não! Outra vez não!
- Parece que o nosso homem arranjou uma bela confusão em Washington - disse o Diretor.
Não foi capaz de matar o Osbourne e no processo conseguiu matar um secretário e um policial da Virgínia - declarou Mitchell Elliott. - Talvez a sua reputação como o melhor assassino do mundo seja imerecida.
- O Osbourne é um adversário de grande valor. Sempre soubemos que seria difícil eliminá-lo.
- Onde está o nosso homem agora?
- Rumo a norte. Acredita que Osbourne e a esposa irão procurar segurança na casa do Senador Cannon, em Shelter Island.
- Bem, tem razão.
- A sua fonte em Langley confirma isto?
- Sim.
- Muito bem. - Então toda esta história lamentável depressa chegará ao fim. O Outubro irá terminar o que começou. Tenho uma equipe de extração a postos. Quando ele acabar, irá contatar-me e eu tiro-o de lá. - O Outubro tinha outro alvo em Washington.
- Sim, eu sei, mas agora ele não será capaz de realizar essa tarefa. Se deseja que esse alvo seja eliminado, creio que teremos de contratar outra pessoa para o trabalho.
- Acho que seria sensato. Não gosto de pontas soltas.
- Concordo plenamente.
- E o Outubro?
- Alguns minutos após a sua extração, o Outubro será morto. Sabe, senhor
Elliott, eu gosto menos de pontas soltas do que o senhor.
- Muito bem, Diretor. - Boa noite, senhor Elliott.
Mitchell Elliott desligou o telefone e sorriu para Monica Tyler. Ela levou a bebida para a cama e deitou-se ao lado dele.
- Amanhã de manhã estará tudo terminado - disse ele. O Osbourne terá desaparecido e tu serás mais rica do que alguma vez imaginaste.
Monica beijou-o.
Serei rica, Mitchell, mas será que estarei viva para desfrutar dessa riqueza? Elliott apagou a luz.
- Ainda bem que o meu pai não está cá para ver isto - disse Elizabeth, enquanto o helicóptero pousava no relvado de Cannon point. - Quando cá está, gosta sempre de agir como se fosse um dos ilhéus. A última coisa que faria seria deixar que um helicóptero aterrasse no relvado.
- Estamos em pleno Inverno - respondeu Michael. - Ninguém vai saber.
Elizabeth olhou-o, incrédula.
- Michael, de cada vez que alguém atropela um veado nesta ilha, o acontecimento é publicado no jornal local. Acredita, as pessoas vão ficar a saber.
- Eu trato do jornal - indicou Adrian Carter.
Os rotores do helicóptero pararam de girar. A porta abriu e os três saíram. Charlie saiu da casa do caseiro, de lanterna na mão, os retrievers aos saltos à volta dos tornozelos. O vento marítimo açoitava com violência as árvores nuas. Uma águia-pesqueira guinchou e voou por cima das suas cabeças. A cinquenta metros da costa, o Athena agarrava-se às amarras nas águas da baía sacudidas pelo vento.
- Onde está o senador? - perguntou Carter enquanto percorriam a pé o acesso de cascalho em direção à casa principal.
- Em Londres - respondeu Michael. - Está a participar num painel de discussão sobre a Irlanda do Norte na London School of Economics.
- Ótimo. Menos uma pessoa com quem nos preocuparmos.
- Não quero transformar este sítio num campo militar - disse Elizabeth. - Não tenciono fazê-lo. Vou colocar dois agentes de segurança no relvado durante toda a noite. De manhã serão rendidos por outros dois da Estação de Nova York. A polícia de Shelter Island concordou em vigiar os ferries de norte e de sul. Têm uma boa descrição de Outubro e de Astrid Vogel. Foi-lhes dito que eram procurados por se encontrarem ligados ao assassinato de duas pessoas na Virgínia, mas nada mais que isso.
Vamos manter as coisas assim - afirmou Elizabeth. - A última coisa que quero é que as pessoas de Shelter Island pensem que trouxemos para cá terroristas.
- A verdade não virá ao de cima - garantiu Carter. - Entrem e vão dormir. Liga-me para Langley de manhã, Michael. E não te preocupes, a esta hora já o Outubro está bem longe.
Carter apertou a mão de Michael e beijou a face de Elizabeth.
- Lamento muito o que aconteceu ao Max - disse. - Quem me dera que pudéssemos ter feito alguma coisa.
- Eu sei, Adrian.
Elizabeth deu meia volta e começou a andar em direção à casa. Carter olhou para Michael.
- Existem armas aqui? - perguntou
Michael abanou a cabeça. - O Cannon detesta armas.
Carter estendeu a Michael uma Browning automática de alta potência e meia dúzia de carregadores de quinze munições. Depois virou-se e entrou no helicóptero. Trinta segundos depois, este levantou de Cannon Point, virou e desapareceu sobre a baía.
- O Carter deu-te uma arma, não deu? - perguntou Elizabeth quando Michael entrou no quarto. Estava de pé em frente a um grande guarda-roupa escolhendo um pijama de flanela. O quarto estava escuro, salvo por um pequeno abajur de leitura na cabeceira. Michael mostrou-lhe a Browning. Enfiou um carregador na coronha e acionou a trava de segurança.
- Meu Deus, detesto esse som - disse ela, despindo-se. Vestiu a camisa de noite e deitou-se na cama. Michael estava de pé, junto à janela, a fumar um cigarro e a observar a baía. A chuva batia contra o vidro. Um dos seguranças inspecionava com uma lanterna a divisória ao longo do pontão.
Elizabeth colocou as mãos no baixo-ventre. Interrogou-se se os bebês estariam bem. Pensou: Ouve bem, Elizabeth. Já lhes estás a chamar bebês quando eles não passam de um aglomerado de células. O médico dissera-lhe para levar as coisas com calma, para descansar. Não fizera nada disso. Passara o dia a fugir de um par de terroristas, a conduzir durante horas e a voar de helicóptero no meio de uma tempestade terrível. Pressionou as mãos com mais força contra o abdômen e pensou: Por favor, meu Deus, faz com que eles estejam bem.
Olhou para Michael, direito como uma sentinela junto à janela.
- Sabes, Michael, acho que tu queres mesmo que ele tente de novo.
- Depois do que ele fez ao Max...
- Ele também tentou te matar hoje, Michael.
- Acredite, não me esqueci.
- E Sarah? - perguntou ela.
Michael permaneceu em silêncio.
- É saudável desejar vingança, Michael. Mas tentar conseguir vingança é uma coisa completamente diferente. E algo perigoso. As pessoas podem se ferir. Neste caso, elas podem morrer. Para bem de todos nós, espero que ele esteja longe daqui.
- Não faz parte do seu temperamento. Não faz parte do seu treino.
- O quê?
- Desistir. Fugir. Li o arquivo sobre ele. Provavelmente sei mais sobre ele do que ele sabe sobre si próprio.
- Acha que ele está por aí, Michael?
- Eu sei que está. Só não sei onde.
NORTH HAVEN, LONG ISLAND
Delaroche saiu do Range Rover e fitou a outra margem do canal estreito em direção a Shelter Island. Era quase meia-noite. A viagem a partir de Washington demorara oito horas, pois Delaroche cumprira meticulosamente o limite de velocidade durante todo o caminho. Ergueu a gola do casaco para se proteger da chuva fria e batida pelo vento. Um ferry sulcou as águas na sua direção, dois carros no convés, vencendo a forte corrente que atravessava Shelter Island Sound em direção às águas abertas de Gardiners Bay. Junto ao pequeno gabinete ao ferry via-se um veículo castanho-claro de tração às quatro rodas com marcas da polícia. Era possível que o agente estivesse apenas a fazer rondas, ou tivesse parado para uma chávena de café. No entanto, Delaroche duvidava que fosse esse o caso. Desconfiava que a polícia vigiasse o ferry por Michael e Elizabeth Osbourne se encontrarem na ilha.
Regressou ao Range Rover, entrou e afastou-se do cais ao ferry. Por duas vezes teve de guinar para evitar pequenas manadas de veados de cauda branca. Virou para uma pequena estrada de terra batida e cascalho que conduzia a um conjunto de árvores. Aí, escondido, pôs os óculos de leitura e desdobrou um mapa de estradas de larga escala de Long Island que comprara pelo caminho num posto de gasolina. Astrid espreitou por cima do seu ombro. North Haven era um pequeno pedaço de terra que se projetava por Shelter Island Sound adentro. A sudeste encontrava-se o histórico porto baleeiro de Sag Harbor.
- A polícia está a vigiar os cais dos Ferrys - explicou Delaroche. .- Isso significa que provavelmente os Osbourne estão na ilha. O Ferry Sul fecha à uma da manhã. Os polícias irão para casa, pois vão chegar à conclusão de que não tentamos fazer a travessia.
- Se os ferries fecham, como é que vamos para a ilha? Delaroche apontou para Sag Harbor no mapa.
- Há barcos no porto e nas docas. Podemos roubar um e fazer a travessia depois dos ferries fecharem.
- O tempo está terrível! - exclamou Astrid. - Não é seguro andar de barco numa noite como esta.
- Não está assim tão mau - contrapôs Delaroche, retirando os óculos e voltando a guardá-los no bolso. - Em Brélés esta seria considerada uma bela noite para pescar.
Delaroche entrou em Sag Harbor e estacionou junto à marina. Saiu do Range Rover, deixando Astrid para trás. A cidade estava silenciosa, as lojas e os restaurantes ao longo da margem fechados. Passados cinco minutos, Delaroche encontrou aquilo que procurava: um navio-baleeiro de oito metros com um grande motor Johnson fora de borda. Voltou rapidamente ao Range Rover e reuniu as coisas de que precisava: os celulares, as Berettas, a roupa à prova de água. Trancou as portas e enfiou as chaves no bolso.
Caminharam ao longo da marina e de uma doca de madeira, escorregadia devido à chuva. Delaroche entrou para o navio e ajudou Astrid a subir para o convés. Havia uma ponte e bancos da popa à proa. Delaroche enfiou uma gazua na ignição e pôs o motor a funcionar.
Saltou para a doca e soltou as amarras, depois voltou a saltar para dentro do barco e saiu de marcha à ré. Avançou lentamente através do porto, o barco a vibrar sob os seus pés. Vinte minutos mais tarde, entravam nas águas de Gardiners Bay.
Cinco minutos após iniciarem a travessia, Delaroche receou que Astrid estivesse certa. Na baía, o vento era feroz, soprando de noroeste a sessenta e cinco quilômetros por hora, com rajadas mais fortes. A temperatura era de quatro graus, mas a chuva e o vento faziam com que parecesse estar muito mais frio. A cabine do navio era aberta e, no espaço de minutos, Delaroche e Astrid estavam encharcados. As mãos de Delaroche estavam geladas ao leme, apesar das luvas. Astrid agarrou-se ao braço dele e enterrou o rosto no seu ombro para se proteger da chuva. A noite estava escura como breu, sem lua, sem luz das estrelas, nada por onde navegar. Delaroche manteve as luzes apagadas para evitar ser localizado a partir de terra. Ondas de um metro a um metro e meio fustigavam o navio a bombordo, sacudindo o pequeno barco.
Delaroche aproximou-se até se encontrar a duzentos metros da costa e seguiu para norte. As águas acalmaram-se ligeiramente. A bombordo, podia distinguir os contornos muito tênues de árvores e de terra. Pelos mapas que tinha, Delaroche sabia que era Mashomack Preserve, uma reserva natural gigantesca.
Continuou em direção a norte, passando por Sachem's Neck e Gibson's Beach. Quase encalhou em Nichols Point, por isso corrigiu a rota em alguns graus e afastou-se mais da costa. Passados alguns minutos, avistou Reel Point, um fino dedo de terra na entrada de Coecles Harbor. Sabia que estava a aproximar-se. Contornaram Ram Head e dirigiram o navio para noroeste, em direção a Cornelius Point. A mudança de rumo colocou-os diretamente no caminho do vento. Abrandaram a velocidade, avançando muito devagar à medida que as ondas iam ficando cada vez maiores. O navio-baleeiro elevava-se em direção ao céu de cada vez que uma onda passava por debaixo do casco. Em seguida, a proa caía violentamente no intervalo entre as duas ondas e a água do mar açoitava os bancos. De uma vez Astrid desequilibrou-se e caiu para a frente, para cima do painel de instrumentos. Voltou a pôr-se de pé, com sangue na testa.
A partir de bombordo, Delaroche conseguia distinguir Cornelius Point: um promontório rochoso, a vaga silhueta de uma grande casa de Verão. Contornou o cabo e virou alguns graus para bombordo. De estibordo, podia ver as luzes de Greenport, indistintas devido à névoa marítima e à chuva. Alguns momentos mais tarde, passou por Hay Beach Point. Delaroche virou para sudoeste e avançou ao longo de Hay Beach durante cerca de um quarto de milha. Depois virou bruscamente para bombordo e reduziu a potência, dirigindo-se para a linha da costa.
Cannon Point encontrava-se cerca de cem metros mais abaixo. Delaroche sabia que podia aproximar-se da costa num silêncio virtual, pois os ventos fortes levariam todos os sons na direção oposta. Desligou o motor e ergueu a hélice. Alguns segundos mais tarde, o barco encalhou num baixio a alguns metros da praia.
Delaroche saltou para a água gelada que lhe dava pelos joelhos e patinhou para terra. Arregaçou a manga do casaco e olhou para o mostrador luminoso do relógio. Eram apenas duas horas. O navio fizera a viagem de Sag Harbor em cerca de noventa minutos mas, enquanto atava a bolina à pernada de uma árvore caída, Delaroche sentia-se como se tivesse estado atrás do leme a combater o mar durante metade da noite. Regressou ao navio, pegou na mochila e ajudou Astrid a descer para a água. Na praia, abriu a mochila, retirou do seu interior as Berettas com silenciador e entregou-lhe uma.
A chuva fustigava-os enquanto Delaroche procurava orientar-se. A praia conduzia diretamente a Cannon Point. Era rochosa e estreita, apenas com alguns metros de largura em certas zonas. Para lá da marca de maré-alta agigantava-se uma falésia íngreme, com cerca de seis metros de altura, repleta de um emaranhado de arbustos e erva.
Delaroche puxou a culatra da Beretta, introduzindo a primeira bala na câmara. Astrid fez a mesma coisa. Em seguida, pegou-lhe na mão e conduziu-a pela praia, em direção à casa.
Matt Cooper e Scott Jacobs tinham ambos trabalhado na segurança da CIA durante quase vinte anos. O seu sedan do governo encontrava-se estacionado mesmo junto ao portão, do lado de dentro do complexo em Shore Road. Faziam turnos para percorrer o perímetro dos terrenos a cada meia hora. Matt Cooper estava encarregue da ronda das duas da manhã.
Delaroche e Astrid deitaram-se na falésia olhando de cima para a água, escondidos atrás dos arbustos espessos e espinhosos. Delaroche assimilou a disposição do complexo: a grande casa principal perto da água, dois anexos para convidados, uma garagem separada para três carros. Viam-se luzes no interior da casa principal e num dos anexos. Delaroche partiu do princípio de que os Osbourne estavam dentro da casa principal e que o agente de segurança ou um caseiro estava no anexo. Analisou a disposição dos terrenos: um relvado plano e bem cuidado salpicado de árvores altas, um acesso de cascalho que ia dos edifícios até o portão de entrada. Mesmo junto a este, Delaroche avistou os contornos de um sedan.
O agente de segurança apareceu alguns minutos depois. Trazia na mão direita uma lanterna poderosa, movimentando-a de um lado para o outro enquanto andava. Quando o homem se aproximou do sitio onde estavam, Delaroche pegou com firmeza no antebraço de Astrid e levou um dedo aos lábios. A mulher aquiesceu. Um raio de luz brilhou sobre as suas cabeças, e depois incidiu sobre o tabique e a praia lá em baixo.
Delaroche pôs-se de pé de repente, fazendo os arbustos restolhar. O raio de luz moveu-se freneticamente durante vários segundos antes de se deter sobre ele. A Beretta estava sacada e apontada. Utilizando a luz como alvo, Delaroche fez pontaria quatro ou cinco centímetros mais à direita a fim de compensar o fato de o homem segurar a lanterna na mão direita.
Disparou rapidamente três vezes.
O segurança caiu sobre a relva encharcada.
Delaroche deslizou para a frente e ajoelhou-se ao lado do homem caído. Os disparos tinham-no atingido no peito. Delaroche baixou-se, tentou sentir a pulsação no pescoço e não encontrou nenhuma. Fez sinal a Astrid para que se lhe juntasse. Caminharam ao longo da orla oriental da propriedade, mantendo-se junto às árvores, até se encontrarem a cerca de trinta metros do portão principal e do carro da segurança. Delaroche viu o segundo homem dentro do carro, sentado ao volante, a água da chuva a escorrer pelos vidros das janelas. Decerto que o homem pouco ou nada conseguia ver. Seria uma morte fácil. O desafio seria matá-lo de uma forma silenciosa. Atravessou o relvado, passando por trás do carro, e aproximou-se por trás, do lado do passageiro.
Cooper estava a demorar-se muito a dar sinal. Por norma, cada um dos homens transmitia via rádio atualizações contínuas do seu progresso. Cooper estabelecera contato a partir do anexo ocidental para convidados e das traseiras da casa principal, mas Jacobs ainda não tivera notícias dele desde que começara a dirigir-se para o tabique e a praia.
Jacobs pegou no rádio e tentou chamar Cooper, mas não obteve qualquer resposta. Estava prestes a sair e ir à procura dele quando ouviu a porta do passageiro abrir. Virou-se e disse: - Que diabo aconteceu?
Depois olhou para o rosto: cabelo cortado rente, pele muito pálida, duas orelhas furadas. Jacobs nem sequer tentou pegar a arma, dizendo apenas baixinho:
- Oh, valha-me Deus.
Delaroche ergueu a Beretta e alvejou-o no rosto três vezes. Em seguida, esticou-se sobre o banco e retirou o rádio da mão do homem morto.
Astrid permaneceu junto às árvores. Delaroche saiu do carro e fechou a porta com suavidade. Voltaram para trás pelo mesmo caminho, ao longo da fronteira oriental da propriedade, mantendo-se mais uma vez sob o refúgio das árvores. Delaroche ejetou o carregador meio gasto e inseriu um cheio.
Havia duas entradas para a casa principal, uma porta de entrada que dava para o acesso de cascalho e um alpendre envidraçado que dava para a água. Delaroche tencionava utilizar a entrada das traseiras.
As árvores curvaram-se sob uma rajada de vento marítimo. Delaroche aproveitou o ruído impetuoso para cobrir o som da sua aproximação. Pegou na mão de Astrid e correu pelos campos traiçoeiros por entre as árvores.
Passaram por trás do anexo, onde se via um abajur aceso. Delaroche pensou em entrar e matar os ocupantes, mas não tinha avistado quaisquer movimentos por ali, não existiam sinais de alguém ter dado pela sua presença, por isso passou por trás do anexo e começou a atravessar o relvado das traseiras.
Um cão ladrou, depois outro. Virou-se e viu um par de golden retrievers enormes a correr na direção deles. Introduziu a primeira bala na câmara da Beretta e fez pontaria aos cães.
Os cães acordaram Michael. Os seus olhos abriram-se e, num ápice, estava alerta. Ouviu o primeiro cão, depois o segundo. Em seguida, ambos ficaram silenciosos. Sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Sobre a mesinha-de-cabeceira estavam a Browning automática, um rádio portátil e um telefone de linha múltipla. Pegou no rádio. - Fala Osbourne. Está alguém aí? Elizabeth mexeu-se.
- Fala Osbourne. Está alguém aí? Ouvi os cães a ladrarem. O rádio crepitou e uma voz respondeu:
- Os cães estão bem. Não há problema. ' Osbourne pousou o rádio, pegou no telefone e marcou o número da casa do caseiro. Deixou o telefone tocar cinco vezes antes de voltar a pousar o receptor com força. Elizabeth sentou-se na cama.
Osbourne marcou rapidamente um número especial de emergência para Langley. Atendeu uma voz calma.
- Fala Osbourne. O agente de segurança em Shelter Island não está na linha. Telefone à polícia local e envie homens para cá! Rápido!
Desligou o telefone.
- Michael, o que se passa? - perguntou Elizabeth.
- Ele está aqui - respondeu Osbourne. - Matou a equipe de segurança e tem o rádio deles. Acabei de falar com o filho da mãe. Veste umas roupas quentes. Despacha-te, Elizabeth.
Charlie Gibbons era o caseiro de Cannon Point há vinte anos. Nascera e crescera em Shelter Island e os seus antepassados eram pescadores de baleias que, três séculos antes, partiam de Greenport. Vivia apenas a cento e quarenta quilômetros de Nova York, mas só lá estivera uma vez.
Charlie ouviu o telefone a tocar na sua casa ao atravessar o relvado de roupão, espingarda numa mão e lanterna na outra. Avistou os cães um instante depois e correu desajeitadamente na sua direção. Ajoelhou-se ao lado do primeiro e viu que o pelo amarelo estava ensopado em sangue. Virou a luz da lanterna para o segundo e viu que se encontrava nas mesmas condições. Pôs-se de pé e apontou a lanterna ao tabique. Movimentou o raio de luz de um lado para o outro durante alguns segundos e avistou algo azul vivo. Os seguranças traziam vestidos impermeáveis azuis. Correu em direção ao corpo caído no chão e ajoelhou-se a seu lado. Era o homem que se chamava Matt Cooper e era evidente que estava morto.
Tinha de acordar Mike e Elizabeth. Tinha de telefonar para a polícia de Shelter Island. Tinha de ir buscar ajuda rapidamente. Pôs-se de pé e virou-se para correr de regresso a casa. Uma mulher alta e loura surgiu de trás de uma árvore, uma arma nas mãos esticadas. Viu o clarão na boca da arma mas não ouviu qualquer som. As balas rasgaram-lhe o peito.
Sentiu uma dor excruciante e viu o fulgor de uma luz branca e brilhante. Depois, a escuridão.
MCLEAN, VIRGÍNIA
- A equipe de segurança está fora de combate - disse o agente de serviço. - Osbourne acredita que o Outubro está no terreno.
Adrian Carter sentou-se na cama.
- Raios me partam!
- Já alertamos a polícia local e está outra equipe a caminho.
- É melhor que se despachem.
- Sim, senhor.
- Estou na sede daqui a cinco minutos. - Sim, senhor.
- Agora ligue-me à Monica Tyler. - Aguarde um momento, senhor.
Michael dormira vestido. Elizabeth enfiou calças de corrida de algodão cinza e uma blusa de lã bege. Michael calçou-se e foi buscar a Browning, o rádio e o celular, bem como o controle do sistema de segurança da casa. O sistema encontrava-se ativado. O alarme far-se-ia ouvir se Outubro tentasse entrar em casa. Surgiria um número no monitor digital do controle, mostrando qual a porta ou -janela pela qual o intruso entrara. Se Outubro tentasse forçar a entrada, Michael saberia instantaneamente onde ele estava. Michael apagou as luzes do quarto e conduziu Elizabeth para o corredor às escuras. Desceram as escadas até o hall de entrada. Ali havia outro abajur aceso. Michael desligou-o rapidamente.
As escadas para a cave eram logo a seguir à cozinha enorme. Michael pegou no braço de Elizabeth e conduziu-a através da escuridão. Abriu a porta que dava acesso às escadas e levou-a até a cave.
Delaroche e Astrid agacharam-se junto à porta do alpendre envidraçado. Delaroche enfiou uma faca no trinco básico e, passados alguns segundos, este cedeu. Atravessaram cuidadosamente a varanda, contornando mobília de palhinha almofadada e mesas baixas, até chegarem a umas portas de correr, em vidro. Experimentou a fechadura. Estava trancada. Agachou-se e manejou a gazua no buraco da fechadura. O mecanismo estalou. Delaroche empurrou as portas para trás e entraram.
Na verdade, a casa possuía três entradas: a porta da frente principal, o alpendre das traseiras e uma pequena porta para a cave no lado norte da casa, escondida atrás de um lance de escadas em vão. Michael e Elizabeth avançaram pelas divisões da cave até chegarem à porta.
O alarme soou na sua mão. Michael rapidamente o silenciou e reiniciou. Outubro entrara na casa através das portas de correr, junto à sala de estar. Segundos mais tarde, o alarme voltou a soar, e depois uma terceira vez. Dois detectores de movimento tinham sido ativados, um na casa de jantar e outro na sala de estar. Os detectores encontravam-se a vários metros de distância. A menos que Outubro se estivesse a movimentar pela casa muito depressa, era improvável que tivesse feito disparar os dois. A casa estava às escuras e não lhe era familiar. Michael partiu do princípio de que Astrid Vogel também ali estava. Virou-se para Elizabeth.
- Vai para a casa de hóspedes e espera aí até que chegue a polícia - indicou.
- Michael, não quero deixar-te...
- Vai, Elizabeth - ordenou Michael. - Se queres viver, faz o que te digo.
Elizabeth assentiu.
- A polícia chega daqui a alguns minutos. Quando chegar, corre para perto deles. É a mim que ele quer, não a você. Compreende?
Anuiu.
- Ótimo - disse Michael.
Digitou o código de desativação e abriu a porta. Elizabeth beijou-lhe a face e começou a subir as escadas. No alto, parou e olhou em todas as direções. A noite estava escura como breu, mal se conseguindo distinguir o contorno tênue da casa de hóspedes com vista para o mar.
Correu pelo relvado, a chuva batida pelo vento a fustigar-lhe o rosto, até chegar à porta da casa. Abriu a porta, entrou, depois virou-se e olhou para Michael uma última vez.
A porta da cave fechou-se e ele desapareceu. Elizabeth fechou a porta atrás de si e trancou-a, deixando as luzes apagadas. Depois foi até a janela e olhou na direção do portão principal.
Foi Astrid Vogel, de pé no meio da sala de estar, quem vislumbrou algo a mover-se pelo relvado em direção à casa de hóspedes: uma blusa de cor clara, uma mulher, a julgar pelas passadas ligeiramente desajeitadas. - Jean-Paul - sussurrou, apontando para o relvado. - A mulher.
- Apanha-a - segredou Delaroche. Depois pousou uma mão sobre o braço dela e disse: - Viva, Astrid. Morta não nos vale de nada. E despacha-te. Não temos muito tempo.
Astrid esgueirou-se pelas portas de correr, atravessou o alpendre e começou a percorrer o relvado.
Michael reativou o sistema de alarme. Encontrou uma lanterna recarregável ligada a uma tomada, uma das muitas posicionadas por toda a casa devido às frequentes falhas de energia da ilha. Michael acendeu a lanterna e apontou o feixe para as paredes, movendo-o para a frente e para trás, até encontrar o quadro elétrico. Abriu-o e iluminou-o. O interruptor principal era o maior. Puxou-o para baixo e cortou a luz na casa inteira. O sistema de alarme funcionava a pilhas, por isso permaneceria funcional. Pôs o alarme em modo silencioso.
Seguiu o raio de luz escadas acima e regressou à cozinha. Na parede, ao lado do telefone, ficava uma caixa de intercomunicação para o portão principal. O intercomunicador funcionava com o sistema telefônico e o portão possuía uma fonte de eletricidade autônoma. Carregou num botão e foi rapidamente para junto de uma janela da sala com vista para o relvado. Lá fora, no topo da propriedade, viu o portão de metal a correr, abrindo-se.
A casa de hóspedes parecia um frigorífico. Elizabeth não se recordava da última vez que alguém ali estivera. O termostato estava regulado no nível mais baixo, para evitar que os canos rebentassem devido ao gelo. O vento açoitava o telhado de ripas e batia de encontro às janelas que davam para Shelter Island Sound. Algo raspou no lado da casa. Elizabeth soltou um pequeno grito e depois percebeu que se tratava apenas do velho carvalho que trepara inúmeras vezes em criança. Não era a casa dos hóspedes. No léxico da família Cannon, era conhecida como a casa de Elizabeth. A casa era confortável e estava modestamente mobilada. O chão era feito de madeira clara e, na sala de estar, mobiliário rústico encontrava-se disposto em redor da grande janela com vista para o porto. A cozinha era minúscula, apenas um pequeno frigorífico e um fogão com dois bicos, e o quarto era simples. Quando era pequena, a casa era dela. Se a casa principal se encontrava repleta com o pessoal do pai, ou com alguma delegação de um país estranho, Elizabeth ia para ali, a fim de se esconder entre os seus haveres. Adorava a casa, cuidava dela, passava nela noites de Verão. Fumou o primeiro charro na casa de banho e perdeu a virgindade no quarto.
Pensou: Se eu pudesse escolher um sítio para morrer, seria aqui.
Soprou as mãos e apertou os braços em redor do corpo para se proteger do frio. Num gesto reflexo, tocou no baixo-ventre.
Mais uma vez, pensou: Será que os bebês estão bem? Meu Deus, faz com que estejam bem!
Foi até a janela e espreitou lá para fora. Uma mulher alta estava a correr em direção à casa, de arma na mão. Distinguiu suficientemente o rosto dela para perceber que era a mesma pessoa que a perseguira em Washington. Afastou-se da janela e quase tombou sobre uma poltrona.
É a mim que ele quer, não a você.
Soube que Michael estava mentindo. Iriam usá-la para chegar a Michael, mas também a matariam. Da mesma forma que tinham matado Max. Da mesma forma que tinham matado Susanna.
Ouviu o raspar de botas nos degraus de madeira que levavam à porta da frente. Ouviu o estalido metálico de Astrid Vogel a experimentar a maçaneta. Escutou um ruído surdo quando Astrid Vogel tentou derrubar a porta com um pontapé e invocou cada réstia do autocontrole que possuía para não gritar. Foi para o quarto e fechou a porta. Ouviu uma série de sons abafados, três ou quatro, não tinha a certeza, e o som de madeira a ser despedaçada: Astrid Vogel a disparar contra a fechadura. Outro pontapé e, desta vez, a porta abriu, indo bater com violência na parede adjacente.
E a mim que ele quer, não a ti.
E tu és um mentiroso, Michael Osbourne, pensou. Eram impiedosos e sádicos. Com eles não haveria qualquer hipótese de argumentação nem, por certo, de negociação.
Recuou até o canto, olhos postos na porta fechada. Meu Deus, quantas vezes tinha estado ali? Em lindas manhãs de Verão. Em tardes frias de Outono. Os livros nas prateleiras eram seus, bem como as roupas no armário. Até o tapete puído aos pés da cama. Pensou na tarde em que ela e a mãe o tinham comprado juntas, num leilão em Bridgehampton.
Pensou: Não posso deixá-la apanhar-me. Vão matar-nos aos dois.
Ouviu a mulher a atravessar a casa, o som das botas no soalho de madeira. Ouviu o vento nas árvores, o grito das gaivotas. Deu um passo em frente e fechou a porta com o gancho.
Esconde-te no armário, pensou. Talvez ela não procure aí.
Não sejas tonta, Elizabeth. Pensa! Depois ouviu a mulher chamá-la.
- Sei que está aqui, Sra. Osbourne. Não quero fazer-lhe mal. Apareça, vá lá.
A voz era baixa e estranhamente agradável, com um sotaque alemão. Não lhe dê ouvidos!
Abriu o armário e esgueirou-se lá para dentro. Deixou a porta entreaberta, pois não conseguia suportar a ideia de estar trancada naquele espaço escuro e minúsculo. Por fim, ouviu o silvo das sirenas, ao longe, trazido pelo vento. Imaginou onde estariam: Winthrop Road, Manhanset Road se viessem do meio da ilha. Fosse como fosse, Elizabeth sabia que estaria morta antes de eles chegarem. Afastou-se da porta. Algo afiado espetou-lhe a omoplata: uma flecha, pousada sobre a prateleira. Tateou ao longo da parede. Sabia que estava por ali algures, o arco que o pai lhe oferecera quando fizera doze anos. Estava pendurado num gancho na parede, ao lado de um velho conjunto de tacos de golfe.
A mulher tentou abrir a porta do quarto e descobriu que estava trancada.
Agora sabe que estou aqui dentro, pensou Elizabeth.
Foi invadida pelo pânico. Obrigou-se a respirar.
Bateu suavemente com as mãos ao longo da parede até tocar em algo frio e duro. Elizabeth pegou no arco. Tinha um metro e sessenta e cinco de comprimento, medida padrão. Estendeu o braço para cima e agarrou na flecha. A haste era de alumínio com penas. Pegou na flecha entre os primeiros dois dedos da mão direita e, com o polegar, a ranhura para o fio atrás das penas. Fizera aquilo vezes sem conta, por isso fazê-lo na escuridão não era problema, mesmo com mãos trémulas.
A mulher deu um pontapé na porta, mas o velho gancho não cedeu. Elizabeth fixou a flecha no fio e apertou a haste contra os dedos da mão esquerda, a qual agarrava o arco. Puxou a flecha para trás a meio caminho e depois respirou fundo. A corda do arco estava velha e quebradiça, podendo simplesmente estalar quando a esticasse à tensão necessária para disparar uma flecha. Por favor, pensou Elizabeth, dedilhando o fio. Preciso de mais um disparo seu.
Seria ela realmente capaz de fazer aquilo? Nunca matara um ser vivo, nunca sonhara em caçar. Fosse como fosse, o pai nem sequer quereria ouvir falar nisso. Certa vez apanhou um dos seus namorados a perseguir um veado com o arco e a flecha dela e baniu-o da casa durante o resto do Verão.
A mulher deu um pontapé na porta. O trinco partiu-se e a porta abriu. 360
O corpo de Elizabeth ficou rígido. Sentia-se como se fosse feita de pedra. Obrigou-se a respirar devagar. Fá-lo: pelo Michael, pensou. Fá-lo pelas crianças dentro de ti.
Puxou a flecha para trás e empurrou a porta com o pé. Viu Astrid Vogel, à porta, a arma nas duas mãos, perto do rosto. Astrid virou-se para o barulho repentino e fez pontaria com os braços esticados.
Elizabeth soltou a flecha.
A ponta da seta atingiu Astrid na base da garganta a atirou-a para trás, encostando-a à porta aberta. Elizabeth gritou. Os olhos de Astrid abriram-se muito e os lábios apartaram-se.
De alguma forma, conseguiu permanecer com a arma nas mãos. Ergueu-a e começou a disparar. O silênciador abafava os disparos, transformando-os num ruído surdo. Elizabeth saltou de novo para dentro do armário. Os disparos lascaram a porta, estilhaçaram a janela do quarto e arrancaram estuque das paredes. Ela caiu no chão e enrolou-se numa bola.
Depois parou. O quarto ficou em silêncio à exceção do vento e dos cliques de Astrid Vogel a tentar disparar uma arma vazia. Elizabeth pôs-se de pé, pegou noutra flecha e saiu do armário.
Astrid ejetara o cartucho gasto e remexia no bolso do casaco à procura de outro carregador. O sangue jorrava da ferida na garganta. Conseguiu retirar o carregador novo do bolso.
- Não, por favor, não faça isso - pediu Elizabeth. - Não me obrigue a voltar a fazer a mesma coisa.
Astrid olhou para ela e depois para a flecha na garganta. O carregador caiu-lhe das mãos. Respirou fundo duas vezes. O sangue gorgolejava-lhe na garganta.
Por fim, o seu olhar ficou inexpressivo.
Elizabeth caiu de joelhos e vomitou violentamente.
Michael, de volta à cave, podia ouvir os passos de Outubro no piso de cima, deslocando-se cuidadosamente por entre os móveis da sala de estar. Michael sabia que Outubro seria metódico e cuidadoso. Revistaria a casa, divisão a divisão, até encontrar o seu alvo. Para sobreviver, Michael teria, mais uma vez, de ser mais inteligente do que
Outubro, tal como o fora no caminho para peões, na Virgínia. Outubro encontrava-se em território desconhecido. Michael seria capaz de andar pela casa de olhos fechados. Utilizaria isso em seu proveito. Outubro saíra da sala de estar para a cozinha.
- Tenho a sua mulher, senhor Osbourne. Se aparecer agora, desarmado, com as mãos no ar, nada de mal lhe acontecerá. Se me obrigar a persegui-lo como a um animal, mato-a também.
Michael não respondeu, limitando-se a escutar o avanço de Outubro através do primeiro piso da casa. . Passado um instante, Outubro disse: >
- Também me lembro daquela noite em Londres, senhor Osbourne. Lembro-me do som dos seus gritos junto ao rio. Ela era uma mulher linda. Deve tê-la amado muito. Foi uma pena ter de morrer. Foi a primeira e única mulher que eu alguma vez matei, mas não hesitarei em matar a sua mulher, caso insista neste disparate. Entregue-se ou ela morrerá com você.
Michael sentiu a fúria crescer dentro de si. O simples fato de ouvir a voz daquele homem passados tantos anos enchia-o de horror. Tentou reprimir o que sentia, pois sabia que essa era exatamente a reação que Outubro estava a tentar instigar. Se perdesse a cabeça, se agisse com emoção em vez de inteligência, morreria. Também sabia que Outubro não tinha qualquer intenção de permitir que Elizabeth vivesse.
- Deve ter sofrido muito, ao perder a sua amante daquela maneira, abatida como um cão, mesmo à frente dos seus olhos - continuou Outubro. - Ouvi dizer que tiveram de o arrancar do campo e enviá-lo de volta à sede. Ouvi dizer que foi a sua desgraça. Imagine só como se irá sentir se eu matar outra das suas mulheres. Não desejará viver depois disso, garanto-lhe. Por isso entregue-se, senhor Osbourne. Facilite-nos a vida aos dois.
Michael ouviu um grito vindo da casa de hóspedes: um grito de Elizabeth.
Parece que as coisas estão ficando interessantes lá fora, senhor Osbourne. Pegue o telefone e ligue para a casa. Diga a sua mulher para se entregar e nada de mal lhe acontecerá. Tem minha palavra.
Michael atravessou a divisão e apertou o botão FALAR do intercomunicador.
Muito calmamente, disse: - Sua palavra nada significa para mim, Nicolai Mikhailovich.
- Do que é que me chamou? - gritou Outubro, após um momento de hesitação.
- Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro, ou as pessoas maravilhosas do KGB esconderam essa informação? Nicolai Mikhailovich Voronstov. Seu pai era o General Mikhail Voronstov, líder do Primeiro Direktorad do KGB. Era seu filho bastardo. Sua mãe era amante dele. Quando teve idade suficiente, seu pai entregou-o ao KGB para que ser educado. Sua mãe acabou num gulag. Quer que continue, Nicolai Mikhailovich?
Michael soltou o botão e esperou a reação de Outubro. Ouviu uma porta sendo aberta com um pontapé, um abajur de cerâmica despedaçando-se no chão, o ruído surdo de uma arma com silenciador sendo descarregada. Michael estava conseguindo perturbá-lo.
- Seu professor foi um homem que conhecia apenas como Vladimir. Tratava-o como a um pai. Na verdade, ele praticamente era seu pai. Com dezesseis anos, foi infiltrado no Ocidente através da Checoslováquia. Recebeu ordens para matar os seus acompanhantes. Um deles era uma mulher, o que faz de si um mentiroso, bem como um assassino. Ocultou-se no Ocidente. Dez anos mais tarde, já um homem, começou a matar. Posso nomear a maioria das suas vítimas se quiser, Nicolai Mikhailovich.
Michael ouviu uma janela a estilhaçar-se e mais balas a cravarem-se na parede. Ouviu um carregador vazio a cair no chão e um novo a ser colocado no sítio.
Depois ouviu sirenas ao longe e mais um grito vindo da casa de hóspedes.
Voltou a carregar no botão do intercomunicador.
- Quem o contratou? - perguntou. Mais disparos.
- Quem o contratou, raios? Responda!
- Não sei quem foi!
- Está mentindo. Toda a sua vida é uma mentira.
- Cale-se!
- Está encurralado aqui dentro. Nunca sairá desta ilha com vida.
- Você também não, nem sua mulher.
- Astrid já saiu daqui há muito tempo.
- O que será que está retardando?
- Telefone para a casa. Diga a sua mulher para se entregar.
Michael pousou o celular e pegou o receptor do telefone. Ouviu Outubro levantar uma extensão. O telefone tocou uma vez e Elizabeth atendeu, sem fôlego.
- Michael! Meu Deus, ela está morta. Eu a matei. Atingi-a com uma flecha. Michael, por Deus, não quero ficar aqui com ela. Oh, Michael, é horrível. Por favor, não quero ficar aqui com ela.
- Vai para o cais. Leva o barco a remo para o Alexandra. Espere até que a polícia chegue.
- Michael, o que é que...
- Faça o que digo. Vai para o Alexandra! Já!
Elizabeth desligou o telefone e dirigiu-se à janela. Conhecia Michael há mais de dez anos. Ele velejara naquele barco inúmeras vezes com o pai dela. Sabia que se chamava Athena e não Alexandra. Era possível que se tivesse enganado devido à pressão da situação, mas duvidava. Era intencional.
Havia um motivo. Ele queria que ela ficasse na casa, mas desejava que Outubro pensasse que estava indo para o barco.
Observou a casa principal pela janela. Ouvia as sirenes a aproximarem-se.
Queria sair dali. Queria um cigarro para disfarçar o cheiro do sangue de Astrid Vogel. Queria que aquele pesadelo acabasse. Segundos mais tarde, viu a porta de correr do alpendre abrir-se e o homem chamado Outubro correr pelo gramado em direção ao cais.
Delaroche precipitou-se para o meio das trevas. O vento açoitava as árvores e quase o levava pelo ar. O cais estendia-se adiante, avançando pela escuridão. A cinquenta metros da costa, o veleiro balançava nas amarras, o mastro oscilando como um pêndulo na crista espumosa das ondas, as adriças gritando ao vento.
A voz de Michael Osbourne, distante e metálica, soava na sua cabeça como as vozes nos alto-falantes de uma estação de trem.
Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro.
Raios me partam! pensou Delaroche. Como ele sabia?
O KGB prometera-lhe uma coisa: a sua existência no Ocidente seria tão secreta que apenas meia dúzia de pessoas da hierarquia saberia a verdade. Tão secreta que lhe fora permitido matar seus acompanhantes até o Ocidente naquela noite, na Áustria. Teriam mentido? Alguém o teria traído? Teria sido Vladimir? Ou Arbatov? Ou o traidor Drozdov? Teria Drozdov descoberto a verdade sepultada nos arquivos no Centro de Moscou e vendido aos seus novos senhores no Ocidente? Delaroche jurou matar Drozdov se chegasse a sair vivo de Shelter Island.
A revelação de que a CIA tinha um dossiê fez Delaroche sentir-se fisicamente doente. Também teriam uma fotografia? Normalmente era Delaroche que utilizava os dossiês, era Delaroche quem folheava as páginas negras da vida de um homem até descobrir a fraqueza que acabaria por se tornar na sua desgraça. Agora, Delaroche sabia que os seus inimigos tinham reunido um dossiê sobre a sua vida e Osbourne utilizara-o contra ele. Chamei-lhe Nicolai Mikhailovich.
De forma reflexa, as mortes passavam por sua mente. Tentou não pensar nelas, mas os rostos apareceram um por um, primeiro vibrantes e vivos, depois estropiados por três buracos de bala. Hassan Mahmoud, o rapaz palestino. Colin Yardley e Eric Stoltenberg. Sarah Randolph...
Podia ouvir os gritos de Michael Osbourne ecoando ao longo da Represa de Chelsea.
E seu nome verdadeiro.
Certas noites, Delaroche tinha um sonho e agora esse sonho desenrolava-se na sua imaginação. Os homens que ele matara iam confrontá-lo, armados com automáticas com silenciador, e ele tentava pegar na sua pistola Glock, ou na Beretta, e só encontrava pincéis. Depois tentava alcançar a sua arma de reserva e encontrava apenas uma paleta. "Sabemos quem és", diziam eles, começando a rir. Delaroche erguia as mãos e protegia o rosto e as balas despedaçavam-lhe a palma das mãos e penetravam-lhe nos olhos. Delaroche sentava-se na cama e dizia a si próprio que não passava de um sonho, era apenas um maldito e estúpido sonho.
Delaroche atravessou a correr o relvado em declive, os pés a voar sobre a relva molhada, até que o som dos seus passos sobre o cais de madeira desfez a imagem de pesadelo da sua própria morte. Ouviu o barco a bater contra os pilares do cais, mas o motor estava silencioso. Alguns segundos depois, chegou ao fim do pontão e olhou para baixo, a arma apontada para a escuridão.
O barco estava vazio.
- Largue a arma! - gritou Michael sobre o barulho do vento.
- Deite-se no cais, de barriga para baixo, e faça-o muito devagar.
Michael estava no início do cais, Outubro no fim, a quinze metros de distância. O braço esquerdo estava pendurado ao lado do corpo, o direito, dobrado pelo cotovelo, a arma perto do rosto. Permanecia imóvel. Pelo som das sirenes, a polícia encontrava-se agora em Shore Road. Chegaria numa questão de segundos.
- Largue a arma agora! - gritou Michael. - Acabou. Faça o que digo.
Outubro baixou o braço direito até este ficar hirto ao lado do corpo. A polícia chegou ao portão principal. Michael ouviu a porta da casa de hóspedes abrir-se. Virou-se na direção do som e avistou a blusa bege de Elizabeth, brilhando na escuridão.
- Fique onde está, Elizabeth - gritou!
Outubro agachou-se e deu meia volta. O braço ergueu-se. Michael disparou vários tiros com a Browning, mas todos eles voaram por cima da cabeça de Outubro. O assassino disparou três vezes através da escuridão. Um dos tiros atingiu o alvo, rasgando o lado direito do peito de Michael.
A Browning caiu-lhe da mão e retiniu ao longo da doca. Michael caiu de costas. Tinha o braço direito dormente e depois sentiu uma dor intensa e excruciante no peito.
A chuva batia-lhe no rosto. Os ramos das árvores contorciam-se sob o vento e, no seu delírio, Michael pensou que eram mãos gigantes rasgando seu corpo. Deslizou para a inconsciência.
Viu Sarah caminhando em sua direção na Represa de Chelsea, a saia comprida dançando sobre as botas de camurça. Viu o rosto desfeito. Ouviu a voz de Elizabeth, chamando-o de muito longe, incompreensível.
Por fim, ela atravessou a névoa do choque.
- Michael! Ele está vindo! Michael, por favor, meu Deus! Michael!
Michael levantou a cabeça e viu Outubro avançando lentamente na sua direção. A Browning estava no cais, a alguns centímetros de distância. Michael tentou alcançá-la com a mão direita, mas esta não obedecia à ordem para que se mexesse. Rolou para o lado direito e estendeu a mão esquerda. Sentiu o metal frio da Browning, a coronha escorregadia devido à chuva. Agarrou-a, colocou o dedo no gatilho e disparou.
Delaroche viu o clarão na boca da arma de Osbourne. Ergueu a Beretta quando a primeira série de disparos passaram por ele zumbindo, inofensivos, e fez pontaria ao corpo de Osbourne, deitado de barriga para baixo. Deu mais um passo. Queria atingi-lo no rosto. Queria vingar a morte de Astrid. Queria deixar sua marca.
Osbourne voltou a disparar. Desta vez, uma bala rasgou a mão direita de Delaroche, estilhaçando osso. A Beretta caiu-lhe da mão e mergulhou nas águas em turbilhão sob o cais. Olhou para baixo e viu fragmentos de osso saindo do golpe feio nas costas da mão.
Quis matar Osbourne com a mão boa, partir-lhe o pescoço ou apertar-lhe a garganta, mas Osbourne ainda tinha sua arma e a polícia entrava no terreno. Deu meia volta, correu velozmente pelo cais e saltou para o barco. Puxou o codão de arranque quatro vezes até que o pequeno motor pegou. Desatou a amarra e dirigiu o barco para longe do cais, em direção a Shelter Island Sound.
Cannon Point estava resplandecente de luzes. As sirenes enchiam o ar. Acima de tudo, Delaroche ouviu uma coisa: os gritos de Elizabeth Osbourne, implorando ao marido que não morresse.
LONDRES
- Osbourne vai sobreviver? - perguntou o Diretor, a partir da biblioteca da sua casa em St John's Wood.
- O estado dele estabilizou esta noite - respondeu Mitchell Elliott. - Sofreu outra hemorragia por volta do meio-dia, por isso os cirurgiões tiveram de entrar novamente em ação. Infelizmente, parece que vai sobreviver.
- Onde está ele?
- Oficialmente, a sua localização é secreta. A minha fonte em Langley confirma que o Osbourne está na unidade de cuidados intensivos no Stonybrook Hospital, em Long Island.
- Espero que compreenda que, neste momento, o Osbourne é intocável. Pelo menos por agora.
- Sim, eu sei, Diretor.
- Ele sobreviveu a dois atentados. Sob quaisquer circunstâncias haverá um terceiro.
- com certeza, Diretor.
- É um adversário digno de respeito, o nosso senhor Osbourne. Tenho de confessar que o admiro muito. Quem me dera que houvesse alguma forma de convencê-lo a trabalhar para mim.
- Ele é um Escoteiro, Diretor, e os Escoteiros não encaixam bem na sua organização.
- Acho que tem razão.
- Qual é o estado do Outubro? - perguntou Elliott.
- Receio que tenha tido uma recepção bem indelicada por parte da equipe de extração.
- E os adiantamentos que depositamos na conta dele, no banco suíço?
- Desapareceu tudo, creio. Parece que Outubro transferiu o dinheiro da conta tão rapidamente quanto entrou.
- É uma pena.
- Sim, mas claro que um homem da sua posição não está preocupado em perder uns trocados aqueles.
- Claro que não, Diretor.
- Ainda há um alvo do qual temos de tratar.
- Já coloquei tudo em andamento.
- Excelente. Mas faça-o com habilidade. Há muito em jogo.
- Será feito de forma muito habilidosa.
- Senhor Elliott, sei que não tenho de lembrar de que, a esta altura, o seu primeiro dever é o de proteger a Sociedade a todo o custo. Não deve fazer nada que coloque a Sociedade em risco, seja ele qual for. Sei que posso contar com o seu auxílio nessa questão.
- Claro, diretor.
- Muito bem. Foi um prazer negociar com você. Só espero que não tenha sido tudo em vão. Será necessária toda a sua notável maestria para garantir a sobrevivência do seu sistema de defesa antimíssil.
- Estou confiante de que esse objetivo pode ser alcançado.
- Ótimo. Boa noite, senhor Elliott.
- Boa noite, Diretor.
O Diretor pousou o receptor sobre o descanso.
- É um mentiroso fantástico - comentou Daphne.
Deixou o robe de seda cair-lhe dos ombros e deslizou para a cama, deitando-se ao lado dele.
- Receio que seja necessário, nesta linha de trabalho.
Beijou-o na boca e pressionou os seios contra o corpo dele. Depois fez deslizar as mãos até entre as pernas dele e agarrou-o.
- Alguma coisa, meu amor? - murmurou. Ele beijou-a e respondeu:
- Talvez se você se esforçar um pouco mais, minha flor.
WASHINGTON, D. C.
Paul Vandenberg estacionou em Ohio Drive, com vista para o Washington Channel, e desligou o motor. Viera sozinho, no seu carro privado, tal como Elliott pedira. O encontro deveria ter lugar às dez da noite, mas Elliott estava atrasado, o que era pouco típico da sua parte. Outro carro parou atrás de si, um veículo de tração às quatro rodas, grande e preto, as janelas opacas pulsando ao som de rap. Vandenberg ligou o carro e deixou-o parado enquanto esperava. O veículo de tração às quatro rodas partiu às dez e um quarto. Cinco minutos depois, um sedan preto parava ao seu lado e o vidro da porta traseira desceu.
Era Mark Calahan, o assistente pessoal de Mitchell Elliott.
- O senhor Elliott pede imensas desculpas, mas tem de haver uma mudança de local - informou Calahan. - Venha comigo e eu o levo ao carro quando o encontro terminar.
Vandenberg saiu do carro e entrou no banco traseiro do sedan preto. Andaram durante dez minutos: contornaram Hains Point, atravessaram a Memorial Bridge para a Virgínia e depois seguiram para o norte, ao longo da alameda. Calahan permaneceu sempre em silêncio. Era uma das regras de Elliott: nada de conversas de ocasião entre seu pessoal e os clientes. Por fim, o carro entrou num estacionamento com vista para a Roosevelt Island.
- O senhor Elliott está a sua espera na ilha, senhor - declarou Calahan educadamente. - Vou levá-lo até ele.
Os dois homens saíram do carro.
O motorista, Henry Rodriguez, ficou à espera ao volante. Dois minutos depois, Rodriguez ouviu o estouro de um único tiro.
Um corredor encontrou o corpo às 7h15 da manhã seguinte. Jazia ao lado de um banco de mármore no memorial a Theodore Roosevelt, o que os órgãos de comunicação social consideraram adequado, uma vez que Paul Vandenberg sempre admirara TR. A arma fora colocada na boca. Uma grande porção da parte de trás da cabeça de Vandenberg desaparecera. A bala estava cravada no tronco de uma árvore a dezoito metros de distância.
O bilhete de suicídio foi encontrado no bolso do peito do sobretudo de lã. Exibia as caraterísticas de todos os bons memorandos de Vandenberg: conciso, econômico, direto. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, pois sabia que o Washington Post preparava um relato devastador de suas atividades de angariação de fundos ao longo dos anos em proveito de James Beckwith. Vandenberg admitia a culpa. Beckwith e Mitchell Elliott não possuíam qualquer responsabilidade. Vandenberg planejara e executara tudo. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, porque era preferível morrer com um tiro do que com um procurador independente.
Um James Beckwith abalado apareceu na sala de imprensa da Casa Branca ao fim da tarde, a tempo dos noticiários da noite. Declarou sentir um choque e pesar profundos pela morte de seu assessor mais próximo. Em seguida anunciou que o Departamento de Justiça daria início de imediato a uma investigação minuciosa de todas as atividades de angariação de fundos de Vandenberg em prol de Beckwith. Abandonou a sala de imprensa sem responder a perguntas e passou uma noite sossegada com Anne nos aposentos da família da Casa Branca. Na manhã seguinte, o Post dedicava grande parte da primeira página ao suicídio aparente de Paul Vandenberg. A reportagem incluía longa explicação sobre a relação financeira entre James Beckwith e Mitchell Elliott. O artigo contestava a afirmação, patente no bilhete suicida de Vandenberg, de que ele, e só ele, fora o arquiteto da rede complexa de acordos financeiros que, ao longo dos anos, tinham enriquecido os Beckwith. Também implicava o advogado de Washington de Mitchell Elliott, Samuel Braxton, o candidato de Beckwith a secretário de Estado.
O artigo tinha autoria dupla: Tom Logan e Susanna Dayton, do Washington Post.
JANEIRO
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Algumas noites eram melhores do que outras. Em certas noites, Elizabeth assistia a tudo outra vez nos seus sonhos e acordava a gritar, esfregando as mãos para tentar tirar as manchas de sangue. Em certas noites, Michael acordava, tendo sonhado que Outubro lhe tinha dado três tiros no rosto, em vez de um no peito. A casa de hóspedes foi restaurada e repintada, mas Elizabeth nunca mais lá voltou. Por vezes, Michael sentava-se na ponta do cais e espreitava as águas em torvelinho. Por vezes, passava uma hora antes que despertasse do seu transe. Por vezes, Elizabeth observava-o do relvado e imaginava exatamente o que ele estava a pensar.
Sobre o que aconteceu a seguir, Michael só sabia o que lia nos jornais ou via na televisão mas, como qualquer membro dos serviços secretos, geralmente considerava as notícias dadas pelos órgãos de comunicação social como música de fundo irritante. Todas as manhãs, o novo caseiro ia até a drogaria em Shelter Island Heights buscar os jornais (The New York Times, The Wall Street Journal, Newsday) e deixava-os sobre a mesa-de-cabeceira de Michael. No dia de Ano Novo, Michael sentia-se forte o suficiente para fazer a viagem também. Sentou-se no banco do passageiro do seu Jaguar e, pela janela, fitou em silêncio a água e as árvores nuas de Inverno. O interesse esmoreceu à medida que Janeiro ia passando e, por altura do Dia da Inauguração, já deixara de ler completamente os jornais.
Beckwith suportou bem os tempos difíceis. O mérito foi atribuído à esposa, Anne. Esta tornara-se a conselheira mais importante do Presidente desde a morte de Paul Vandenberg. Foi capa da News week na edição da semana do Natal e, no interior, podia ler-se um artigo esplendoroso sobre a sua perspicácia política. Anne teria de desempenhar um papel fundamental a partir das sombras para que o segundo mandato de Beckwith fosse bem sucedido. Segundo os mexericos de Washington, foi Anne quem levou o Presidente a insistir numa reforma radical do financiamento das campanhas. Com o fervor dos recém-convertidos, Beckwith pediu a proibição de contribuições irregulares aos partidos (o "dinheiro fácil"), e pressionou as estações de televisão a dar aos candidatos tempo de antena gratuito. Por volta do Dia da Inauguração, a sua taxa de aprovação atingira os sessenta por cento.
Dois dos amigos e apoiantes mais chegados de Beckwith não se saíram tão bem. Samuel Braxton viu-se obrigado a recusar a nomeação para secretário de Estado. Negou ter cometido qualquer crime mas afirmou não querer enlear a política externa americana, envolvendo-se numa longa luta pelo reconhecimento, que iria causar cisões. De acordo com os órgãos de comunicação social, foi Anne quem tirou o tapete a Braxton.
A Alatron Defense Systems retirou-se voluntariamente do projeto nacional de defesa antimíssil depois de Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith e presidente do Comité das Forças Armadas do Senado, prometer levar a cabo "o equivalente congregacional a um exame rectal" a Mitchell Elliott. O contrato foi adjudicado a outro fabricante da Califórnia e Sterling deu o seu apoio relutante, garantindo que o sistema receberia financiamento e seria utilizado.
Dois dias antes da tomada de posse, o FBI e a US Park Police divulgaram os resultados da investigação sobre a morte do Chefe de Gabinete da Casa Branca, Paul Vandenberg. Os investigadores não encontraram qualquer prova que sugerisse que a sua morte não se ficara a dever ao suicídio. A investigação sobre os assassinatos de Max Lewis e do agente da polícia Dale Preston não resultou em detenções. A Polícia Metropolitana de Washington deu discretamente por encerradas as suas investigações sobre o assassínio de
Susanna Dayton. O caso permaneceu tecnicamente aberto.
Elizabeth passava longos fins-de-semana na ilha. Trabalhava três dias por semana a partir do gabinete de Nova York da Braxton, Allworth & Kettlemen, enquanto, pouco a pouco, resolvia os casos pendentes e sondava outras firmas. Graças ao seu currículo e às ligações políticas que mantinha, não lhe faltavam propostas. A venerável firma de Nova York, Titan, Webster & Leech foi quem lhe ofereceu mais dinheiro e, acima de tudo, maior flexibilidade. Aceitou a oferta e, nessa mesma tarde, enviou a Samuel Braxton, por fax, a sua carta de demissão.
Michael recuperou mais depressa do que o previsto pelos médicos. A neve caiu na primeira semana de Janeiro e o tempo ficou gelado. Contudo, na semana seguinte, o tempo aqueceu um pouco e os médicos mandaram-no sair de casa e dar pequenos passeios.
Nos primeiros dois dias, passeou cautelosamente por Cannon Point, o braço direito ao peito, pois a bala de Outubro esmagara-lhe a clavícula e fraturara-lhe a omoplata. No terceiro dia, caminhou ao vento em Shore Road, com um par de seguranças de Adrian Carter a segui-lo lentamente. No espaço de uma semana, de manhã ia até a aldeia a pé e regressava e, ao fim da tarde, percorria as longas praias rochosas de Ram Island.
À noite, escrevia na biblioteca de Douglas Cannon, com vista para Dering Harbor. Passados três dias, mostrou o primeiro esboço ao sogro. Cannon fez a revisão com um lápis vermelho, avivando a prosa formal e burocrática de Michael, aguçando a lógica dos argumentos e das conclusões. Quando terminou, enviou-a de imediato a Adrian Carter, em Langley.
- Não há nada que eu deteste mais do que Washington no Dia da Inauguração - disse Carter na noite seguinte. - Bem que precisava de um pouco de ar do mar e de um vinho dos Cannon. Importas-te que eu vá passar aí uns dias?
- Durante quanto tempo é que vou ter de aturar estes palhaços? - perguntou Michael na tarde seguinte, enquanto andava aos solavancos pelo sexto fainvay do Gardiners Bay Country Club, num carro de golfe. Dois agentes de segurança da CIA, com blusões de penas a condizer, vinham num carro atrás deles, resmungando para os rádios que traziam nas mãos. - Merda, falhei o buraco - disse Carter, parando o carro com um solavanco ao lado da bola e descendo. Retirou um ferro número nove do saco e preparou-se para uma tacada de 140 metros para o green.
- Vai responder minha pergunta? - quis saber Michael.
- Valha-me Deus, Michael, calma. Não quando estou preparando a tacada.
Carter deu a tacada. A bola caiu no bunker esquerdo.
- Raios me partam, Osbourne!
- Tenha calma, Tigre. O frio aqui fora é de três graus.
Carter subiu no carro e dirigiu-se ao green.
- Aqueles palhaços, como você os chama, estão aqui para proteger você e sua família, Michael, e vão ficar até eu ter certeza de que sua vida já não corre perigo.
- Neste momento a minha vida corre perigo porque estou dentro de um carro de golfe aberto em pleno inverno.
- Vou te levar em casa depois das nove e depois venho jogar sozinho.
- Você é doido.
- Devia se dedicar ao jogo.
- Já tenho frustração que chegue em minha vida. Consigo viver sem me autoflagelar. Além disso, terei sorte se algum dia puder levantar um copo de cerveja com este braço, quanto mais manejar um taco de golfe.
- Como vai Elizabeth?
- Tão bem quanto se pode esperar, Adrian. Matar alguém não é fácil, mesmo em legítima defesa. O fato de ter conseguido evitar que chegasse ao conhecimento público tornou as coisas mais fáceis para ela. Não consigo agradecer o suficiente a você.
- Ela é uma joia - afirmou Carter. - Sempre disse que você é o homem mais sortudo que eu conheço. - O chip de Carter passou ao lado do buraco, deixando-o com um putt de três metros. - Porra! - exclamou. - Está frio demais para jogar golfe. Vamos passar a tarde em frente à lareira tomando um porre.
- Leu? - perguntou Michael, enquanto Carter retirava a rolha de uma garrafa de merlot italiano e enchia dois copos.
- Sim, li. Das duas uma: ou jogava fora ou deixava seguir.
- Qual delas tomou?
- Escolhi o caminho dos covardes. Deixei seguir sem comentário.
- Você é um fracote.
- Chama-se subterfúgio burocrático. Salvar a pele.
- Salvar o couro.
- É a mesma coisa. Você podia aprender uma ou duas coisas comigo. Normalmente anda com o couro ao léu.
- Sou um homem de campo, Adrian. Os homens de campo são péssimos em trabalho burocrático. Você mesmo disse muitas vezes.
- É verdade.
- Então como é que ficou tão bom nesse tipo de trabalho?
- Porque queria uma vida e não podia ter uma se corresse de buraco em buraco, tentando me lembrar do meu nome falso da semana.
- A quem deu meu memorando?
- A Monica Tyler, claro.
- Deixe-me adivinhar: ela jogou fora.
- Num instantinho.
- Não esperava outra coisa.
- Então por que escreveu?
- Por achar que é verdade.
- Acredita mesmo que Mitchell Elliott, com a ajuda de um bando secreto de agentes vendidos, abateu aquele avião para poder construir o seu sistema de defesa antimíssil?
Michael assentiu. - Sim, acredito.
- Isso se enquadra na categoria de acusações perigosas demais... pelo menos sem provas conclusivas. Monica reconheceu isso e eu também. Sinceramente, o que me incomoda é por que um agente com sua experiência não seja capaz de perceber isso.
Elizabeth bateu à porta e entrou. O senador convencera-a a sair com ele no Athena até a baía por algumas horas. Tinha o rosto corado devido ao frio.
Colocou-se em frente à lareira e aqueceu o traseiro junto às chamas.
- Pensei que você levaria as coisas com calma - disse Carter.
- Papai é que navegou. Eu só bebi chá de ervas e tentei não morrer congelada.
- Está tudo bem? - perguntou Carter.
- Está tudo ótimo. Os bebês estão fantásticos.
- Meu Deus, isso é maravilhoso - disse, abrindo um largo sorriso no seu rosto normalmente plácido.
- De que estavam a falar, rapazes?
- Assuntos de trabalho. - Tudo bem, vou-me embora. Fica - pediu Michael.
Michael, alguns destes assuntos...
- Ela pode ouvir a conversa em primeira-mão, ou pode ouvi-la mais tarde, na cama. Escolhe, Adrian.
- Fica - disse ele. - Além disso, é tão bom ter algo belo para onde olhar.
Torna-te útil, Michael, e serve-me mais um pouco de vinho. Elizabeth?
Ela abanou a cabeça.
- Nada de álcool nem de tabaco durante algum tempo. Carter bebeu um pouco de vinho e disse:
- Recebemos um relatório dos serviços franceses há dois dias. Acreditam ter descoberto a identidade falsa do Outubro. Estava a viver na costa bretã sob o nome de Jean-Paul Delaroche. Numa aldeia chamada Brélés.
- Meu Deus, nós estivemos lá, Michael.
- Vivia tranquilamente numa casa de campo com vista para o Canal. Parece que era também um pintor talentoso. Os franceses estão a manter as coisas bastante discretas, como só os franceses são capazes de fazer. Temos um alerta mundial em nome dele, mas até agora ninguém o viu. Também ouvimos dizer, de uma série de fontes diferentes, que está morto.
- Morto? Como?
- Parece que quem o contratou para te matar não ficou satisfeito por ele ter fracassado no cumprimento do contrato.
- Espero que o tenham torturado primeiro - disse Elizabeth.
Michael olhava pela janela, em direção ao cais e à baía encrespada mais além.
- No que está pensando, Michael? - perguntou Elizabeth.
- Gostaria apenas de ver o corpo, só isso.
- Todos nós gostaríamos - respondeu Carter. - Mas, regra geral, estas coisas não funcionam assim.
Terminou o vinho e estendeu o copo para que lhe servissem mais. Elizabeth abriu outra garrafa. O senador entrou na sala, o rosto corado e o cabelo desgrenhado. - Já vi que assaltaram a cave - disse. - Serve-me uma boa dose, por favor.
- Tenho outro assunto sério antes de ficarmos embriagados.
- Se tem de ser - retorquiu Michael.
- Monica concordou em desistir de todos os procedimentos disciplinares contra você. Acha que são inadequados nesta altura do campeonato, tendo em conta aquilo que tu e a Elizabeth sofreram. - Ah, que simpatia a da Monica.
- Vai lá, Michael. Ela está falando sério. Ela acha que as coisas se descontrolaram. Quer passar uma esponja em cima de tudo e seguir em frente.
Michael olhou para Elizabeth e depois novamente para Carter.
- Diga que agradeço, mas não, obrigado - disse.
- Quer que os procedimentos disciplinares avancem?
- Não, quero sair - disse Michael. - Decidi deixar a Agência.
- Não está falando sério...
- Sério como nunca - respondeu Michael. - Desculpa, má escolha de palavras. Pronto, agora podemos embebedar-nos.
Elizabeth atravessou a sala, abaixou-se e beijou os lábios de Michael.
- Tem certeza, Michael? Não faça isso por mim.
- Nunca tive tanta certeza de uma coisa em toda a minha vida. E não vou fazer por você. Vou fazer por nós. - Depois tocou a barriga de Elizabeth. - E por eles.
Ela beijou-o outra vez e disse:
- Obrigado, Michael. Amo-te. Espero que saibas isso.
- Eu sei - respondeu. - Se sei. Carter olhou para o relógio e exclamou: Oh, porra!
- O que foi? - perguntaram Michael e Elizabeth em uníssono.
- Perdemos o discurso do Beckwith.
E todos riram às gargalhadas.
EPÍLOGO
MYKONOS, GRÉCIA
Era a villa que ninguém queria. Estava localizada no topo de um penhasco, com vista para o mar, exposta ao vento eterno. Stavros, o agente imobiliário, desistira da ideia de vender a propriedade. Limitava-se a alugá-la todos os anos ao mesmo clã de jovens corretores ingleses que pilhavam a ilha em Agosto para três semanas de bebedeiras.
O francês com a mão ferida passou apenas cinco minutos dentro da casa. Percorreu os quartos e a sala de estar e inspecionou a vista do terraço de pedra. Prestou particular atenção à cozinha, que o fez franzir o cenho.
- Conheço homens que lhe podem fazer o trabalho, se desejar fazer renovações - disse Stavros.
- Isso não será necessário - respondeu o francês. - Eu próprio tratarei disso. - Mas a sua mão - assinalou Stavros, apontando com a cabeça para a ligadura. - Isto não é nada - alegou o francês. - Um acidente na cozinha. Em breve vai sarar.
Stavros franziu o sobrolho, como se achasse a história pouco convincente. - E alugada com frequência - continuou. - Se quiser deixar a ilha na época alta, tenho a certeza de que consigo arranjar um bom preço por ela, sobretudo se fizer reparações.
A villa já não é para alugar. - Muito bem. Quando gostaria de...
- Amanhã - antecipou-se o francês. - Dê-me um número de conta e o dinheiro será depositado esta tarde.
- Mas, monsieur, o senhor não é grego. Não é fácil para um estrangeiro comprar um imóvel. Existem impressos para preencher, documentos legais. Estas coisas levam tempo.
- Trate de tudo, senhor Stavros. Mas amanhã de manhã mudo-me para cá. Passou o resto do Inverno dentro de casa. Quando a mão ficou suficientemente boa, começou a trabalhar, restaurando a villa com a devoção de um monge a copiar livros antigos. Kristos, o homem da loja de artigos para o lar ofereceu-se para encontrar bons homens para o ajudar com o trabalho, mas o francês recusou educadamente. Substituiu os eletrodomésticos da cozinha e colocou um novo balcão de cerâmica. Repintou todo o interior. Retirou a mobília velha (móveis modernos pavorosos) e encheu as divisões com cadeiras e mesas rústicas gregas. Em Março, quando o tempo aqueceu, virou a atenção para o exterior. Disfarçou rachas nas paredes e deu-lhes uma demão de cal reluzente. Substituiu as telhas partidas no telhado e as pedras partidas no terraço. A meio de Abril, a villa que ninguém queria era a mais bonita da aldeia.
A bicicleta de corrida italiana chegou nessa mesma semana. Todas as manhãs, pedalava pelas estradas sinuosas da costa e subia e descia as colinas íngremes no centro da ilha. Gradualmente, à medida que os dias aumentavam, ia passando cada vez mais tempo na aldeia. Regateava o preço das azeitonas, do arroz e do borrego no mercado. Algumas tardes por semana, almoçava na taberna, sempre com um livro como proteção. Às vezes, comprava robalo grelhado aos rapazes na praia e comia o peixe sozinho, numa gruta, onde brincavam focas cinzentas. Aventurou-se a entrar na garrafeira. De início, bebia apenas vinhos franceses e italianos mas, passado algum tempo, desenvolveu um gosto por variedades gregas baratas. Quando o empregado sugeria colheitas mais dispendiosas, o francês abanava a cabeça e devolvia a garrafa. As renovações, explicava ele, tinham-lhe dado um rombo nas finanças.
Ao princípio, o seu grego era limitado, algumas frases desconexas, um sotaque vago, difícil de identificar. Mas extraordinariamente no espaço de dois meses, conseguia tratar dos seus assuntos num grego aceitável com o sotaque de um ilhéu.
As mulheres da aldeia faziam avanços suaves, mas ele não possuía qualquer amante. Só tinha duas visitas: um pequeno inglês com olhos da cor da água do mar invernal e uma deusa mulata que apanhava banhos de sol nua em Maio. O inglês e a deusa ficaram três dias. Todas as noites jantavam no terraço, já a noite ia avançada.
Em maio, começou a pintar. De início, só conseguia segurar nos pincéis durante alguns minutos de cada vez, devido à cicatriz na mão direita. Depois devagar, gradualmente, a cicatriz deixou de repuxar e ele era capaz de trabalhar várias horas de seguida. Durante muitas semanas, pintou os cenários em redor da villa: as paisagens marítimas, os aglomerados de casas caiadas, as flores nas encostas, os anciãos a beber vinho e a comer azeitonas na taberna. A villa refletia as cores em mutação de cada dia que passava: um cor-de-rosa empoeirado da aurora, um castanho-avermelhado filtrado do crepúsculo que levou semanas de pacientes experiências para recriar na sua paleta.
Em agosto, começou a pintar a mulher.
Era loura, com uns admiráveis olhos azuis e uma tez pálida e luminosa. Segundo a empregada de limpeza, trabalhava sem um modelo a partir de uma mancheia de esboços desenhados a lápis.
- É evidente - contou ela às outras moças da aldeia - que o francês trabalha de memória.
Era uma obra grande, cerca de dois metros por um metro. A mulher vestia apenas uma blusa branca, desabotoada até o umbigo, tingida com o castanho-avermelhado do ocaso. O corpo longo encontrava-se disposto sobre uma pequena cadeira de madeira, a olhar para trás. O queixo repousava sobre uma mão. A outra segurava algo que parecia uma arma, embora ninguém colocasse uma arma na mão de uma mulher tão bela, disse a empregada. Nem mesmo um francês recluso.
Terminou a obra em outubro.
Colocou-a numa moldura simples e pendurou-a na parede, de frente para o mar.
CAIRO
- Meu Deus, esta maldita cidade.
Astrid Vogel estava de pé, junto às portas de correr, abertas para o anoitecer frio de Inverno. Havia uma pequena varanda com uma balaustrada de ferro forjado ferrugento, mas o senhor Fahmy, o recepcionista, avisara que as varandas andavam a cair nos últimos tempos, por isso, por favor, é melhor não ir para lá. Estavam no hotel havia dois dias e a sanita deixara de funcionar três vezes. Por três vezes o senhor Fahmy aparecera, de casaco e gravata, munido com um rolo de fita-adesiva castanha e uma bobina de fio de cobre. Todos os bons faz-tudo estavam no Golfo (no Kuwait, na Arábia Saudita ou nos Emirados) a trabalhar para xeques do petróleo. O mesmo acontecia com os professores, os advogados e os contabilistas. Os profissionais e os ricos tinham fugido. O Cairo era uma cidade de camponeses em ruínas e não havia ninguém qualificado para a reparar. Depois o autoclismo começava a funcionar, como o esperado, e ele sorria tristemente e dizia: "Está arranjado, inshallah", embora soubesse que estaria de volta no dia seguinte com o seu elixir de fita-adesiva e fio de cobre.
Teve início a chamada para oração da noite, primeiro um único muezim, muito distante, depois outro e mais outro, até que mil vozes grosseiramente amplificadas gritavam em uníssono. O hotel encontrava-se situado ao lado de uma mesquita e o minarete erguia-se mesmo em frente à janela. Naquela manhã, quando aquela coisa começou a troar pela madrugada, Astrid acordou de tal forma assustada que pegou na arma que estava em cima da mesa-de-cabeceira e correu nua para a varanda. Astrid era uma ateia devota. A religião deixava-a nervosa. No Cairo, havia religião por todo o lado. Envolvia as pessoas, rodeava-as. Não havia forma de lhe escapar. A solução era troçar dela. Naquela tarde, quando a chamada do muezim começou, levou Delaroche para a cama e fez com ele amor desenfreado. Agora' ouvia a chamada como um biólogo marinho poderia estudar os sons de acasalamento das baleias-cinzentas. Apercebeu-se de que era ligeiramente musical, harmoniosa, como uma daquelas fugas em que um violino toca a mesma série de notas depois de outra ter acabado. O Cânone do Cairo, pensou. O chamamento extinguiu-se lentamente até uma única voz pairar no ar, algures na direção de Giza e das pirâmides, e depois também ela desapareceu. Astrid permaneceu junto às portas de correr, os braços cruzados sobre os seios, a fumar um horrível cigarro egípcio, a beber champanhe gelado porque o hotel estava sem água engarrafada e a agua da torneira podia matar um búfalo-da-índia. Tinha vestido uma galabia de homem, as mangas arregaçadas e desabotoada até o umbigo. Delaroche, deitado na cama, observava o contorno indistinto do seu corpo de modelo através do tecido translúcido da túnica branca. Comprara-a naquele dia, num mercado de rua perto do hotel, chamando a atenção de uma forma apenas conseguida por uma loura alemã de um metro e setenta e oito nas ruas sexualmente oprimidas do Cairo. Durante algum tempo, Delaroche pensou que tinha cometido um erro ao deixá-la sair, mas era Inverno e havia milhares de turistas escandinavos na cidade, por isso ninguém se lembraria da alemã alta que insistira em comprar uma túnica de camponês no mercado. Alem disso, Delaroche gostava de andar a pé pelas ruas palpitantes do Cairo. Tinha sempre a sensação de estar a deslocar-se através de outras cidades: agora uma esquina de Paris, agora uma viela de Roma, agora um quarteirão da Londres vitoriana, tudo coberto de pó e entulhos como a Esfinge. Desejou poder pintar, mas naquela viagem não havia tempo para isso.
O vento noturno que entrava pelas portas abertas cheirava ao Deserto Ocidental. Misturava-se com o fedor que é exclusivo do Cairo: pó, lixo em putrefação, madeira a arder, fezes de macaco, urina, escapes de milhões de carros e camiões, fumos tóxicos das fábricas de cimento de Helwan. Mas era fresco e seco, maravilhoso na pele úmida e nua dos seios de Astrid. O pó acumulava-se no seu rosto. Estava por todo o lado, cinzento, fino como farinha. Penetrava-lhe na mala, nos livros e nas revistas. Delaroche estava constantemente a limpar a Beretta que lhe fora deixada no cofre de um banco do Cairo.
- Este pó - resmungava ele, passando com um farrapo oleado sobre o cano. - Este malvado deste pó.
Astrid gostava da janela aberta, pois o ar condicionado estava avariado e nada no saco de truques do senhor Fahmy podia arranjá-lo, mas as criadas fechavam sempre o quarto como um sarcófago.
- O pó - diziam, à laia de explicação, revirando os olhos para a janela aberta de Astrid. - Por favor, o pó.
Aventurou-se a ir à varanda, ignorando o terrível aviso do senhor Fahmy. Lá em baixo, homens empurravam carros silenciosos por uma rua estreita e obstruída. Havia um milhão de carros no Cairo e Astrid não vira um único verdadeiro estacionamento coberto. Os habitantes do Cairo tinham desenvolvido uma medida provisória completamente insana: limitavam-se a deixar os carros no meio da rua. Por uma mancheia de piastras amachucadas, empreendedores astutos tomavam conta de um carro o dia todo, empurrando-o de um lado para o outro, abrindo espaço para outros. Muitas ruas laterais da baixa eram intransitáveis, pois tinham sido transformadas em estacionamentos temporários. Do outro lado da estrada, ao lado da mesquita, um edifício de escritórios ruía lentamente. Em vez de retirarem os móveis de uma forma ordeira, os trabalhadores limitavam-se a atirar as coisas pelas janelas. Vinte soldados, camponeses das aldeias, estavam sentados junto ao prédio condenado, a cozinhar sobre pequenas fogueiras.
- Por que razão destacaram soldados para a porta do edifício, Jean-Paul? - perguntou, observando o espetáculo.
- O quê? - interrogou Delaroche, do interior do quarto.
Astrid repetiu a pergunta, desta vez mais alto. Conversação ao estilo do Cairo. Devido à cacofonia ensurdecedora nas ruas, a maior parte das conversas era conduzida aos gritos. Isto fazia com que fosse difícil planear o assassinato de Stoltenberg. Por razões de segurança,
Delaroche insistia em que falassem na cama, cara a cara, para que pudessem conversar baixinho, diretamente ao ouvido um do outro.
- Destacaram soldados para manter os peões afastados do prédio, para o caso de ruir de repente.
- Mas se o prédio ruir de repente, os soldados vão morrer. É uma loucura.
- Não, é o Cairo.
Uma carroça apareceu na estrada, puxada por um burro coxo. O condutor era um rapazinho, louro e de olhos verdes, vestido com uma túnica andrajosa. Da base da carroça ia caindo lixo. Os soldados insultaram o rapaz e atiraram pedaços de pão ao burro. Por um instante, Astrid pensou em pegar na arma e dar um tiro a um dos soldados.
- Jean-Paul, vem aqui, depressa - pediu.
- Zabbaleen - disse Delaroche, dirigindo-se à varanda.
- O quê?
- Zabbaleen - repetiu ele. - Quer dizer coletores de lixo. O Cairo não tem saneamento básico, nem sistema oficial de coleta de lixo. Durante anos, o lixo era simplesmente jogado nas ruas, ou queimado para aquecer a água do banho. Nos anos 30, os Cristãos Copta migraram para o Cairo vindos do sul. Alguns deles tornaram-se abbaleen. Não ganhavam dinheiro com isso, apenas o lixo que recolhiam. Vivem numa aldeia de lixo nas montanhas de Mokattam, a leste do Cairo.
- Meu Deus - exclamou ela, em voz baixa.
- É hora de nos vestirmos - ordenou Delaroche, mas Astrid permaneceu na varanda, olhando para o rapaz e seu lixo.
- Não gosto dele - disse e, por um momento, Delaroche não teve certeza se ela falava do abbaken ou de Eric Stoltenberg.
- É um sacana cruel, e também é esperto.
- Limite-se a fazer tudo conforme o planejado e as coisas vão correr bem.
- Não deixe que ele me faça mal, Jean-Paul.
Olhou-a. Matou uma dúzia de pessoas, viveu em fuga e, contudo, às vezes ficava tão assustada como uma menina. Acariciou-lhe o rosto e beijou sua testa com suavidade.
- Não vou deixar que ninguém te faça mal - prometeu.
Olharam para cima. Uma grande mesa de madeira balançava na varanda de um andar alto do edifício condenado. Pairou ali por um momento, como um passageiro agarrado ao parapeito de um transatlântico afundando, e depois espatifou-se na rua, despedaçando-se em mil bocados. O burro do abbaleen desatou a correr. Os soldados dispersaram-se. Olharam para cima e começaram a falar num árabe rápido, abanando os punhos na direção dos homens na varanda.
- O Cairo - concluiu Delaroche.
- Meu Deus - disse Astrid. - Que cidade de loucos.
O elevador do hotel era antiquado, abrindo caminho pelo centro de uma escada em espiral. Estava outra vez avariado, por isso Astrid e Delaroche tiveram de fazer a descida desde o sétimo andar. Fahmy, o eterno recepcionista, encolheu os ombros em sinal de desculpas.
- Amanhã, vem o técnico, inshallah - disse.
- Inshallah - repetiu Delaroche com um sotaque do Cairo perfeito, o qual Fahmy acatou com um aceno formal da sua cabeça calva.
O hall estava calmo, a sala de jantar deserta exceto por duas empregadas com aventais que limpavam o pó em silêncio. Delaroche considerava-a deprimente e vagamente russa, com as suas mesas compridas, a carne enrolada e o vinho branco quente. Astrid quisera ficar num dos grandes hotéis ocidentais (o Inter-Com ou o famoso Nile Hilton), mas Delaroche insistiu num sítio mais isolado. O Hotel Imperial era o tipo de lugar que os roteiros de viagens recomendavam a viajantes aventureiros que desejassem provar um pouco do verdadeiro Cairo.
Delaroche roubara uma motorizada: pequena, azul-escura, o tipo de scooter que os jovens italianos usam para fazerem corridas pelas ruas de Roma. Sentiu-se ligeiramente culpado, pois sabia que um rapaz egípcio qualquer tivera três empregos e poupara durante anos para poder comprá-la. Pôs Astrid dentro de um táxi e, num árabe rápido e correto, indicou ao motorista para onde levá-la. Delaroche partiu na sua moto, Astrid atrás dele no táxi.
Zamalek é uma ilha, comprida e estreita, que o Nilo rodeia como se de um fosso se tratasse. É um enclave dos abastados do Cairo: os resíduos da aristocracia, os novos-ricos, um grupo de jornalistas ocidentais. Apartamentos poeirentos elevam-se acima do penhasco e fitam com desaprovação o outro lado do rio, onde se encontra o barulho e o caos da baixa da cidade. Abaixo do penhasco, ao longo da água, existe uma represa onde uma juventude livre de Zamalek faz sexo até de manhã. Na ponta norte da ilha estão localizados os campos de críquete e os campos de tênis do Ghazira Sporting Club, os campos de jogos da velha elite britânica. Nas lojas e boutiques de Zamalek ouve-se o francês trazido para o Cairo por Napoleão. Os habitantes vestem roupas ocidentais, comem comida ocidental nos restaurantes e nos cafés, e dançam ao som de música ocidental nas discotecas. É o outro Cairo.
Eric Stoltenberg morava no último andar, o nono, de um edifício com vista para o rio. Os vizinhos queixavam-se das suas festas barulhentas e dos sons de acasalamento das conquistas frequentes. Todas as noites almoçava num dos restaurantes da moda de Zamalek e depois parava num clube noturno chamado Break Point para os seus copos e caça noturnos.
Tudo isso constava do arquivo de Delaroche.
O Break Point tinha um porteiro e uma ordem de entrada estatutária, como um clube de Nova York. O porteiro selecionava a clientela importante e as moças bonitas para entrarem em primeiro lugar. Eric Stoltenberg encaixava na primeira categoria, Astrid Vogel na segunda. Delaroche, um homem solteiro, atraente, na casa dos quarenta, teve de esperar dez minutos. Logo que entrou, dirigiu-se ao bar. Num árabe com o sotaque do Cairo pediu cerveja Stella, de fabrico egípcio. No clube noturno, com as suas luzes lúgubres e cortina de fumo, poderia passar por um qualquer egípcio da classe alta.
Pagou a cerveja e virou-se para perscrutar a sala. O sítio estava cheio, como era habitual: moças egípcias parcamente vestidas que dormiam com estrangeiros, rapazes que faziam o mesmo, umas quantas cabras da classe alta, alguns turistas aventureiros que não conseguiam suportar mais uma noite no terrível bar do Nile Hilton. Uma moça bonita convidou Delaroche para dançar, convite esse que ele recusou educadamente. Momentos mais tarde, surgiu o seu anjo da guarda, um rapaz grosseiro com um casaco de couro e uma camisa justa para provar que levantava pesos. Delaroche murmurou algo ao ouvido dele, o que fez com que o rapaz deixasse de imediato o bar, com a moça bonita a reboque.
Astrid dançava com Stoltenberg. Vestia uma das saias pretas compradas em Londres e um pulôver justo. Era uma turista chamada Eva Tebbe, nascida no Leste, que falava alemão com um sotaque saxônico. Astrid e Stoltenberg tinham-se conhecido na noite anterior, quando viera ali com Delaroche, o qual fez de turista francês do grupo. Stoltenberg atirou-se a ela de uma forma implacável. Restava-lhe dois dias no Cairo e depois ia para Luxor. Stoltenberg tentara engatá-la, mas ela recusou com tristeza, dizendo que o pequeno francês ficaria furioso. Nessa noite estaria sozinha, motivo pelo qual Delaroche não quis dançar e permanecia no bar, nas sombras.
Stoltenberg já fora um homem atraente, mas engordara devido ao álcool e à comida suculenta. Tinha o cabelo grisalho cortado rente e olhos azuis gelados. Vestia-se de preto: calças de ganga pretas, blusa de gola alta preta, blusão de couro preto. Tocava em Astrid enquanto dançava e, pela expressão dela, estava a gostar muito. Após três canções, dirigiram-se à mesa habitual de Stoltenberg. Conversaram, próximos um do outro.
Passados dez minutos, levantaram-se e abriram caminho pela pista até a porta, Stoltenberg puxando Astrid pela mão. O olhar dela passou por Delaroche mas não se deteve nele. Astrid, a profissional.
Observou atentamente o rosto dela e percebeu que estava assustada.
Era evidente que os negócios corriam bem a Eric Stoltenberg. Possuía um grande Mercedes preto e um motorista. Abriu a porta a Astrid, deu a volta por trás do carro e entrou para o veículo, sentando-se ao lado dela. O carro rugiu pelas ruas estreitas, depois virou para o penhasco e rumou a sul, ao longo do rio. Delaroche seguiu-os de mota, luzes apagadas, a cabeça oculta num capacete. Abrandou quando se aproximaram do apartamento de Stoltenberg, virado para o rio. Tal como em Londres, pensou. Leva-o para dentro, mete-o na cama, deixa uma porta aberta se puderes. Sem problemas. De repente, o Mercedes acelerou, passando pelo edifício a voar. Delaroche praguejou em voz alta e apressou-se atrás deles.
- Não te chamas Eva Tebbe - anunciou Stoltenberg, enquanto o carro acelerava. - O teu nome é Astrid Vogel. És um antigo membro da Fação do Exército Vermelho. - De que raio estás a falar? O meu nome é Eva Tebbe e sou uma turista de Berlim. Leva-me para o clube agora, seu doido varrido, ou vou gritar pela polícia. - Soube que eras tu cinco minutos depois de nos conhecermos. Aquele teu sotaque saxônico maluco não foi bom o suficiente para enganar um profissional.
- Profissional do quê? Leva-me de volta para o clube, já!
- Trabalhei para a Stasi, sua idiota! Lidei com a Red Army Faction. Nunca esteve no Leste, mas muitos camaradas seus estiveram. Tínhamos fotografias e dossiês completos sobre todos os membros da Red Army Faction, incluindo uma tal de Astrid Vogel.
- Meu nome é Eva Tebbe - repetia ela como se fosse um mantra. - Sou uma turista de Berlim.
- Pedi a um velho companheiro meu que me enviasse por fax esta fotografia. Agora está mais velha, seu cabelo está diferente, mas é você.
Meteu a mão no blusão de couro e exibiu a fotografia. Astrid olhava pela janela. Tinham atravessado o rio para o Cairo Ocidental e avançavam em direção a Giza.
- Olhe - gritou -, é você, olhe!
- Não sou eu. Por favor, não sei do que está falando.
Podia ouvir a própria voz a perder a convicção. Aparentemente, Stoltenberg também, pois deu-lhe uma violenta bofetada na boca com as costas da mão. Os olhos dela marejaram-se e sentiu nos lábios o gosto a sangue. Olhou para a fotografia, uma antiga foto de identificação da Alemanha
Ocidental. Era uma magrizela revolucionária, uma expressão no rosto que dizia como se atreveram a tirar-me esta porra desta fotografia. O corte de cabelo espetado de Kurt Vogel, os óculos com lentes de cristal de rocha de Kurt Vogel. Sempre achara que era uma fotografia bastante horrorosa, mas quando a policial a colocou num cartaz a dizer "procura-se", tornou-se o símbolo sexual da Esquerda radical.
As pirâmides estavam à sua frente, recortadas de encontro ao azul profundo da noite do deserto. Uma Lua muito branca a três quartos pairava baixa no céu, brilhante como um archote. Onde diabo estás tu, Jean-Paul? pensou ela. Resistiu ao impulso de se virar para trás e procurá-lo. O que tinha ele dito? Não vou deixar que ninguém te faça mal É bom que faças alguma coisa depressa, querido, pensou, ou este homem vai fazer de ti um mentiroso. Por qualquer razão, ele não lhe revistara o corpo, nem a mala. A arma ainda lá estava, uma pequena Browning automática, mas sabia que jamais conseguiria tirá-la a tempo, no espaço limitado do banco traseiro. Não teve outro remédio a não ser esperar, ganhar tempo e pedir a Deus que Jean-Paul estivesse algures na escuridão. As pirâmides desapareceram. Viraram para um trilho estreito e sem pavimento, que se estendia até o deserto.
- Para onde me estás a levar? - perguntou Astrid. - Se queres dar uma queca, podemos dá-la aqui mesmo. Não tens de me levar para o deserto e pores-te com estes jogos estúpidos. Voltou a esbofeteá-la. - Cala-te - ordenou.
O Mercedes dava solavancos e baloiçava desenfreadamente.
- Quem te contratou?
- Ninguém me contratou. Não sou quem tu dizes. Quero voltar para o meu hotel.
Por favor, não faças isto.
Deu-lhe outra bofetada, desta vez com mais força.
- Responde-me! Quem te contratou?
- Ninguém, por favor.
- Quem é o homem? O teu parceiro, o francês?
- Ele não passa de um idiota do meu grupo de viagem. Não é ninguém.
- Mataste o Colin Yardley em Londres?
- Eu não matei ninguém.
- Mataste o Colin Yardley em Londres? Foi o francês?
Eu não mato pessoas. Trabalho para uma revista em Berlim. Sou designer gráfica. Não me chamo Astrid Vogel. O meu nome é Eva Tebbe. Por favor, isto é coisa de loucos. Para onde me leva?
- Para um lugar onde ninguém vai te ouvir gritar e onde ninguém vai te encontrar depois que eu te matar. - Levou novamente a mão ao blusão e desta vez retirou uma arma. Encostou o cano no pescoço dela e puxou seu cabelo. - Mais uma vez - disse. - Quem é o francês? Quem te contratou?
- Meu nome é Eva Tebbe. Sou designer gráfica em Berlim.
Pensou nas velhas palestras sobre doutrinação na Red Army Faction. Se forem presos, não lhes deem nada. Desafiem, censurem, mas não lhes deem nada. Eles vão provocar, mexer com sua cabeça. É isso que os policiais fazem. Não lhes deem nada. Naquele caso, o conselho tinha uma aplicação muito prática, pois no momento em que dissesse a verdade a Stoltenberg, com certeza ele a mataria.
Puxou-lhe o cabelo com violência e depois soltou-a. A mala dela estava sobre o banco, entre os dois. Abriu-a e revirou o conteúdo até encontrar a Browning. Mostrou-a, como prova da traição, e colocou-a dentro do blusão. - É muito desleixado, esse teu francês, Astrid. Enviou-te para uma situação muito perigosa. Ele sabia que trabalhei para a Stasi. Devia ter percebido que podia reconhecer uma antiga assassina da Fação do Exército Vermelho. E preciso ser-se um sacana muito frio para enviar uma mulher para uma situação destas. O carro parou numa escarpa do deserto com vista para a cidade. Abaixo deles, o Cairo estendia-se como um leque gigante, estreito a sul, amplo a norte, na base do delta do Nilo. Milhares de minaretes erguiam-se em direção ao céu. Interrogou-se qual seria o dela. Queria estar de volta àquele quarto de hotel horroroso, com a sanita que não funcionava, junto ao edifício prestes a ruir. - É evidente que amas esse homem. É por isso que estás disposta a suportar a dor física por ele. Ele não sente o mesmo por ti, garanto-te. Caso contrário, nunca teria permitido que te aproximasses de mim. Está te usando, como aqueles sacanas na Red Army Faction te usaram.
Stoltenberg disse algo ao motorista num árabe rápido que Astrid não compreendeu. O motorista abriu a porta e saiu. Stoltenberg encostou-lhe novamente a arma ao pescoço.
- Muito bem - disse. - Vamos tentar só mais uma vez.
Delaroche desligou o motor da mota quando viu as luzes de travão do Mercedes a acender. Parou em silêncio, retirou a mota do trilho e aproximou-se do carro a pé. A Lua projetava sombras. O Cairo murmurava à distância. Imobilizou-se quando ouviu uma porta do carro abrir e fechar. O veículo permaneceu às escuras; Stoltenberg, como qualquer bom agente, inutilizara a luz interior. Ao luar, Delaroche viu o motorista, de arma na mão, a verificar o perímetro. Delaroche acocorou-se atrás de um aglomerado rochoso e esperou que o homem se aproximasse. Quando o motorista se encontrava a cerca de dez metros de distância, Delaroche pôs-se de pé e apontou a Beretta na escuridão. Stoltenberg estava novamente a esbofeteá-la, no rosto, na nuca, nos seios. Ela sentiu que o homem começava a gostar daquilo. Pensou noutra coisa, qualquer coisa. Pensou na casa flutuante no Prinsengracht e na pequena livraria e desejou que Jean-Paul Delaroche nunca tivesse entrado na sua vida. A porta do motorista abriu e fechou-se. Na escuridão, Astrid mal conseguia distinguir a silhueta de um homem atrás do volante. Apercebeu-se de que não era o mesmo homem que lá estivera antes.
Stoltenberg pressionava novamente a arma contra o pescoço de Astrid. - Viste alguma coisa? - perguntou Stoltenberg em árabe. O homem atrás do volante abanou a cabeça.
- Yallah - ordenou Stoltenberg. Vamos embora. Delaroche virou-se e apontou a Beretta ao rosto de Stoltenberg. O alemão ficou demasiado estupefato para reagir. Delaroche disparou três vezes. - Ele podia ter-me matado, Jean-Paul.
Estava deitada na cama no Hotel Imperial, com a sua galabia vestida, a fumar um cigarro atrás do outro na semiobscuridade. Delaroche estava deitado ao lado dela, a desmontar as armas. Ela tinha o cabelo úmido da ducha. Esfregara-se até ficar em carne viva, a tentar lavar o sangue de Stoltenberg. O vento entrava pelas portas abertas. Arrepiou-se. A sanita deixara outra vez de funcionar. Delaroche telefonou para a recepção e pediu que alguém viesse arranjá-la, mas o senhor Fahmy, o guardião do conhecimento secreto, estava de folga nessa noite. - Bokra, inshallah - disse o empregado. Amanhã, se Deus quiser.
Delaroche acatou a afirmação dela. O profissional que havia nele não podia contestá-la. Eric Stoltenberg tivera muito tempo e oportunidade para matá-la. Optara por não o fazer porque precisava de mais informações.
- Ele podia ter matado você - disse Delaroche -, mas não o fez porque se portou com perfeição. Ganhou tempo, não contou nada. Você nunca esteve sozinha. Eu estava atrás de você o tempo todo.
- Se ele quisesse me matar você não teria podido impedir.
- Este trabalho não é isento de riscos. Sabe disso.
As palavras de Stoltenberg ecoavam-lhe na mente.
- É muito desleixado esse seu francês, Astrid. Enviou você a uma situação muito perigosa.
- Não sei se consigo continuar, Jean-Paul.
- Aceitou a missão. Aceitou o dinheiro. Não pode desistir agora.
- Quero voltar para Amsterdam, ao Prinsengracht.
- Essa porta se fechou para você.
Fez mais uma vez o inventário dos ferimentos: lábio rachado, face esmurrada, uma marca de mão no seio direito. Nunca antes se encontrara numa situação em que estivesse impotente e não tinha gostado. - Não quero morrer como um animal no deserto.
- Nem eu - concordou ele. - Não vou deixar que isso aconteça a nenhum de nós.
- Para onde vai, quando esta questão chegar ao fim?
- Para Brélés, se puder. Se não, para as Caraíbas.
- E para onde irei, agora que a porta para Amsterdam foi fechada?
Pousou as armas e colocou-se em cima dela.
- Pode vir comigo para as Caraíbas.
- E o que vou fazer lá?
- O que quiser, ou então nada.
- E o que serei para você? Serei sua mulher?
Delaroche abanou a cabeça. - Não, não será minha mulher.
- Haverá outras mulheres?
Voltou a abanar a cabeça. - Não, não haverá outras mulheres.
- Serei o que quiser que eu seja, mas não pode me humilhar com outras mulheres.
- Nunca te humilharia, Astrid.
Beijou-lhe a boca com suavidade, para não lhe magoar o lábio. Desabotoou-lhe a galabia e beijou-lhe os seios e a feia marca deixada pela mão de Stoltenberg. Deslizou pelo corpo dela e levantou a galabia. O terror que Astrid sentira horas antes desvaneceu-se com a sensação intensa do que ele estava a fazer entre as suas coxas.
- Onde iremos viver? - perguntou baixinho.
- Junto ao mar - respondeu ele, voltando ao que estava a fazer.
- Vais fazer-me isto junto ao mar, Jean-Paul? Sentiu a cabeça dele dizer que sim entre as pernas.
- Vais fazer-me isto muitas vezes junto ao mar, Jean-Paul?
Era uma pergunta tola e ele não respondeu. Astrid agarrou-lhe a cabeça e puxou-a com força de encontro ao corpo. Teve vontade de lhe dizer que o amava, mas sabia que tais coisas jamais seriam ditas em voz alta. Mais tarde, ele deitou-se ao lado dela, respirando suavemente.
- Dormes de noite, Jean-Paul?
- Algumas noites são melhores do que outras. - Vê-los?
Vejo-os durante algum tempo e depois desaparecem.
- Porque mata daquela maneira? Por que três tiros no rosto?
- Porque quero que saibam que eu existo.
Astrid fechou os olhos e sentiu-se a deslizar para o sono.
- Você é a Besta, Jean-Paul?
- Do que está falando?
- A Besta - repetiu ela. - O Diabo. Talvez deixe sua marca nos rostos deles por ser a Besta.
- Os homens que eu mato são maléficos. Se eu não os matar, outra pessoa o fará. É apenas um negócio, nada mais.
- Com você é mais do que apenas um negócio, Jean-Paul. É... - hesitou e, por um instante, Delaroche pensou que ela tivesse finalmente adormecido. - É arte, Jean-Paul. Sua forma de matar é como arte.
- Dorme, Astrid.
- Espere que eu durma antes de você dormir, Jean-Paul.
- Eu espero - prometeu. Ficou em silêncio mais um instante.
- Quando se aposentar, o que será do Arbatov? - perguntou ainda.
- Suponho que terá de se aposentar também - respondeu Delaroche. - Mas ele já tem uma certa idade.
- É o Diabo, Jean-Paul? - perguntou Astrid, mas adormeceu antes que ele pudesse responder.
Momentos antes de o Sol nascer, retirou da mala o pequeno artigo do Le Monde sobre um diplomata reformado russo morto por rufiões de rua em Paris. Delaroche estava a dormir, ou fingia dormir, nunca tinha a certeza.
Levou o recorte até a varanda pouco firme de Fahmy e leu-o mais uma vez à luz bege do despontar do dia. Talvez não tivesse sido Jean-Paul, pensou. Talvez tivesse sido mesmo apenas um assalto.
O Cairo agitava-se lá em baixo. Uma abbaleen surgiu no beco, uma menina, vestida com farrapos, cheia de sono, açoitando um jumento com uma chibata. O muezim fez-se ouvir e outros mil juntaram-se a ele.
Levou um fósforo ao recorte e segurou-o até a chama o engolir. Depois largou-o e viu-o flutuar, até cair em cima de um monte de lixo e transformar-se em pó cinzento. 267
CAIRO
A viagem de táxi desde o aeroporto demorara quase tanto tempo como o voo a partir de Roma. Estava calor, até mesmo para Novembro, e não havia ar condicionado no pequeno Fiat usado. Michael recostou-se e tentou descontrair-se. Sabia que ficar agitado só iria piorar as coisas. O Cairo era como um nó com truque, que quanto mais se tentava desatar mais apertado ficava. O taxista partiu do princípio de que Michael era um egípcio rico de regresso de umas férias em Roma e tagarelou sobre como as coisas tinham ficado más. Envergava a túnica modesta e a barba desalinhada de um islâmico devoto. A rua estava obstruída com todos os tipos concebíveis de meios de transporte: carros, ônibus e camiões a vomitarem fumo pelos escapes, carroças puxadas por burros, bicicletas e peões. Um rapaz magricela espetou com uma galinha viva no rosto de Michael e perguntou se a queria comprar. O taxista gritou-lhe que se fosse embora. Uma imagem colossal do presidente egípcio sorria com benevolência de um painel publicitário à beira da estrada.
- Não estaria rindo se estivesse preso neste trânsito com a gente - murmurou o taxista.
Michael nunca vivera no Cairo, mas passara ali muito tempo. Exercera o cargo de oficial de controle de um agente importante no seio da Mukhabarat, os serviços de segurança egípcios que tudo permeiam. O agente não queria ser interrogado por um oficial da Estação do Cairo, sabia que a embaixada e os residentes da CIA eram bem controlados, por isso Michael viajava até o Egipto ocasionalmente, fingindo ser um homem de negócios, e ele próprio ouvia os relatórios. O agente forneceu informações valiosas sobre o estado do islamismo radical no Egipto, o aliado mais importante dos Estados Unidos no mundo árabe. Por vezes, a informação fluía ao contrário. Quando Michael soube de um plano para assassinar o ministro do interior egípcio, passou a informação a esse agente. O conluio foi gorado e vários elementos da al-Gama'at Ismalyya foram presos. O homem de Michael recebeu uma grande promoção que lhe deu acesso a melhores informações.
O Nile Hilton encontra-se localizado na Praça Tahrir, com vista para o rio. Em árabe, Tahrir significa libertação e Michael sempre achou que era o lugar com o nome mais inadequado da terra. A praça imensa estava com um engarrafamento terrível. O táxi não avançara dois centímetros em cinco minutos. O ruído das buzinas era insuportável. Michael pagou a corrida e percorreu o resto do caminho a pé.
Entrou no quarto, tomou uma ducha, mudou de roupa e voltou a sair. A Mukhabarat tinha uma das operações de vigilância mais dispendiosas da terra. Michael sabia que o telefone do quarto de certeza que estava sob escuta, ainda que viajasse como um homem de negócios italiano, presente na cidade para uma série de reuniões. Dirigiu-se à estação de metro da Praça Tahrir e encontrou uma cabine telefônica. Falou baixinho para o receptor durante dois minutos, levantando a voz uma vez para gritar por cima do troar de um comboio que entrava na estação. Tinha duas horas para gastar. Aproveitaria o tempo. Entrou no metro seguinte, saiu na primeira estação e voltou atrás. Caminhou. Dirigiu-se ao museu egípcio. Foi seduzido por uma loja de turistas especializada em óleos perfumados. Os rapazes da loja empanturraram-no com chá e. cigarros enquanto ele experimentava vários óleos. Michael recompensou a sua hospitalidade comprando um pequeno frasco de um óleo de sândalo abjeto, que atirou para dentro do caixote do lixo mais próximo assim que saiu. Estava à vontade, sem ser vigiado. Fez sinal a um táxi e entrou.
O Cairo é uma cidade de elegância perdida. Outrora existiram cinemas, um teatro de ópera e villas rodeadas de muros que derramavam música de câmara para as noites quentes. Pouco resta, e o que sobreviveu tem a consistência de um jornal deixado muito tempo ao sol. Muitas das villas foram abandonadas, a ópera desapareceu e os teatros tresandam a urina. O restaurante Arabesque tem o toque do velho Cairo, fazendo lembrar um ancião que deambula pela casa o dia inteiro de terno e gravata.
Estava-se a meio da tarde, a altura calma entre o almoço e o jantar, e a sala de jantar estava quase deserta. Michael teve de se esforçar para ouvir o barulho do trânsito, tão bom era o isolamento do restaurante. Yousef Hafez estava sentado a uma mesa de canto, longe de todas as outras pessoas. Quando Michael se aproximou, ergueu o olhar e sorriu, fazendo brilhar duas filas de dentes perfeitos e brancos. Tinha a aparência de uma estrela de cinema egípcia, do tipo corpulento na casa dos cinquenta, com um cabelo farto e a ficar grisalho, que atrai mulheres mais jovens e ultrapassa homens mais jovens. Michael sabia que isso não andava longe da verdade.
Pediram vinho branco fresco. Hafez era muçulmano, mas achava que a fidelidade rígida à lei islâmica era para "os malucos e os camponeses". Brindaram e conversaram sobre os velhos tempos durante uma hora, enquanto os empregados traziam travessa após travessa de aperitivos ao estilo libanês.
Por fim, Michael falou no assunto que ali o levara. Disse a Hafez que estava no Cairo para tratar de um assunto pessoal. Esperava que Hafez o ajudasse por amizade e cortesia profissional. Sob quaisquer circunstâncias poderia discutir o assunto com o seu oficial de controle atual. Seria pago pela ajuda prestada, diretamente do bolso de Michael.
Podes pagar-me um almoço ou outra garrafa deste vinho, mas guarda o dinheiro. Michael fez sinal ao empregado de casaco branco para que trouxesse mais vinho. Enquanto o empregado os servia, Hafez falou sobre uma pisga que comera em Cannes naquele Verão. A Mukhabarat empregava dezenas de milhares de informantes, logo era sempre possível que o empregado fosse um deles. Quando se afastou, Hafez declarou:
- Então, o que posso fazer por ti, meu amigo?
- Quero falar com um homem chamado Eric Stoltenberg. É um antigo elemento da Stasi, que vive no Cairo a trabalhar como freelancer.
- Sei quem ele é.
- Sabes onde encontrá-lo? - Para dizer a verdade, sei.
Hafez pousou o copo de vinho e fez sinal para que trouxessem a conta. O corpo estava numa sala quente com centenas de outros, coberto por um lençol cinzento. O macacão do funcionário estava salpicado de sangue. Hafez ajoelhou-se ao lado do corpo e olhou para Michael, a fim de se certificar de que este estava preparado. Michael acenou com a cabeça e Hafez afastou o lençol para trás. Michael desviou rapidamente o olhar e teve uma ânsia de vômito, o almoço no Arabesque a subir-lhe à garganta.
- Onde o encontrou? - perguntou Michael.
- Perto das pirâmides, na orla do deserto.
- Deixa-me adivinhar: três tiros no rosto.
- Exatamente - confirmou Hafez, acendendo um cigarro para disfarçar o cheiro. - Foi visto pela última vez num clube noturno em Zamalek. Um sítio chamado Break Point.
- Conheço - disse Michael.
- Estava dançando com uma mulher europeia: alta, loura, alemã talvez.
- Chama-se Astrid Vogel. Foi da Facção do Exército Vermelho.
- Foi ela quem fez isto?
- Não, desconfio que recebeu alguma ajuda. Tem imagem de todos os passageiros que chegam ao aeroporto de Cairo?
Hafez fez um esgar, considerando a pergunta algo divertida.
- Importa-se que dê uma olhada?
Hafez levantou-se e disse: - Vamos.
Colocaram Michael numa sala com um leitor de vídeo e um monitor. Dois funcionários entravam e saíam silenciosamente, trazendo novas cassetes numa direção e levando as velhas noutra. Trouxeram-lhe chá, ao estilo russo, num copo com uma pega de metal ornamentado. Trouxeram-lhe tabaco egípcio quando acabaram os Marlboros. Trabalhou para trás no tempo, começando vinte e quatro horas antes do assassinato. Outubro seria meticuloso. Outubro planejaria tudo cuidadosamente.
Encontrou-a depois da meia-noite. Era alta e ereta, com o cabelo puxado para trás, o que acentuava seu nariz comprido. As mãos grandes pareciam debater-se com o passaporte ao entregá-lo ao funcionário da alfândega. Outubro apareceu cinco minutos depois, baixo, com ligeireza nos pés, como um esgrimista. A pala de um boné de basebol, puxada para a testa, obscurecia-lhe grande parte do rosto, mas Michael conseguia ver o suficiente. Imobilizou as duas imagens e chamou Hafez.
- Aqui estão os teus assassinos - anunciou Michael, quando Hafez entrou na sala. - Esta é Astrid Vogel, a alemã com quem Stoltenberg estava dançando no clube noturno.
Hafez apontou para a segunda imagem.
- E aquele?
Michael fitou a tela.
- Quem me dera saber.
AMSTERDAM
Estava uma madrugada muito fria quando Delaroche e Astrid regressaram à casa flutuante no Prisengracht. Delaroche inspecionou o barco cuidadosamente durante vinte minutos, para se certificar de que ninguém estivera a bordo. Verificou os detetores, revistou os armários na cozinha e as gavetas no quarto de Astrid, percorreu o convés gelado. Astrid não lhe foi de grande ajuda. Contente por finalmente estar a bordo do seu adorado Krista, deixou-se cair em cima da cama vestida como estava e observava-o só com um olho, como se estivesse louco.
Delaroche sentia-se alerta e revigorado, apesar da longa viagem. Na manhã anterior tinham apanhado um avião do Cairo para Madrid, tendo primeiro explicado ao senhor Fahmy que iam abreviar a estadia no Hotel Imperial porque a Sra. estava muito doente. Fahmy receava que fosse a sanita que os tivesse afugentado (ofereceu-lhes a melhor suíte do hotel para persuadi-los a ficar), mas Delaroche garantiu-lhe que fora a água, e não a sanita, que os obrigara a partir. Em Madrid, tinham apanhado o comboio para Amsterdam. Delaroche passou a viagem debruçado sobre o computador portátil como um homem de negócios, planeando o assassinato seguinte. Astrid dormia um sono sobressaltado ao lado dele, revivendo os últimos acontecimentos.
O canal congelara novamente e, mais uma vez, o Krista estava repleto dos gritos alegres dos patinadores. Astrid tomou comprimidos para dormir e tapou a cabeça com uma almofada. Delaroche sentia-se demasiado agitado para dormir, por isso, a meio da manhã, quando o sol consumiu as nuvens, foi para a coberta de proa e pintou, agasalhado com uma blusa grossa e luvas sem dedos. A luz era boa, bem como o assunto (patinadores no canal, casas com empenas em pano de fundo) e, quando terminou, pensou que era o melhor trabalho que produzira em Amsterdam.
Tinha um curioso desejo pela aprovação de Astrid mas, quando desceu para tentar acordá-la, ela limitou-se a resmungar que o seu nome era Eva Tebbe, uma designer gráfica de Berlim e para que, por favor, parasse de esbofeteá-la. Deixou-a ao início da tarde, pedalando por Amsterdam, com o computador portátil a tiracolo. Prendeu a bicicleta junto a um centro telefônico perto do Rijksmuseum e entrou. Dirigiu-se a uma cabine, ligou o computador e teclou durante alguns instantes. Tinha uma mensagem de correio eletrônico. Abriu-a e na tela surgiu uma série ininteligível de símbolos. Inseriu o nome de código e a mensagem apareceu num texto claro.
PARABÉNS PELO SUCESSO DA SUA MISSÃO NO CAIRO. O PAGAMENTO FOI ENVIADO PARA O NÚMERO DA SUA CONTA. TEMOS OUTRA MISSÃO. SE ACEITAR, RECEBERÁ UM MILHÃO E MEIO DE DÓLARES, RECEBENDO METADE COMO ADIANTAMENTO. PARA ACEITAR, DÊ ENTER. O PAGAMENTO SERÁ AUTOMATICAMENTE ENVIADO PARA A SUA CONTA E UM DOSSIÊ COM PORMENORES OPERACIONAIS SERÃO BAIXADOS PARA SEU COMPUTADOR. O ARQUIVO ESTARÁ CODIFICADO, CLARO, E O SEU NOME DE CÓDIGO IRÁ DECIFRÁ-LO. SE QUISER RECUSAR, TECLE ESCAPE.
Delaroche desviou o olhar da tela e pensou por um instante. Com aqueles honorários, ficaria com uma quantia extraordinária de dinheiro, mais do que suficiente para garantir o seu conforto e segurança para o resto da vida. Contudo, sabia que envolvia riscos. Os assassínios seriam cada vez mais difíceis (Eric Stoltenberg fora prova disso) e agora estavam a pedir-lhe para levar a cabo outro assassinato. Também se interrogou se Astrid seria capaz de continuar. O confronto com Stoltenberg no Cairo custara-lhe demasiado. No entanto, Delaroche apercebeu-se de que a vida de Astrid se encontrava agora inexoravelmente ligada à sua. Ela faria o que ele quisesse.
Carregou na tecla ENTER. O arquivo foi descarregado para o portátil pelo modem de alta velocidade. Deu uma vista de olhos ao dossiê e desligou o computador.
Conhecia o homem. Já o confrontara uma vez.
Guardou o computador e telefonou para o banco, em Zurique. Herr Becker atendeu. Sim, tinham sido efetuados dois depósitos na sua conta: um de um milhão de dólares e um segundo de três quartos de um milhão há momentos. Delaroche deu instruções a Becker para que transferisse o dinheiro para as contas nas Baamas. Saiu do centro telefônico e foi buscar a bicicleta de Astrid. Um ladrão estava a tentar arrombar o cadeado. Delaroche informou-o delicadamente de que aquela bicicleta lhe pertencia. O ladrão disse a Delaroche para se lixar. Delaroche enfiou-lhe um pé na região dos rins. Enquanto se afastava, montado na bicicleta, o ladrão continuava deitado no chão, contorcendo-se em silêncio.
Astrid dormiu até depois do pôr do Sol. Tomaram café num restaurante perto do Krista e deram um passeio pelos canais até a hora de jantar. Astrid inalou o ar frio e límpido de Amsterdam, tentando limpar os pulmões do pó e do fumo do Cairo. Estava um pouco nervosa devido aos soporíferos e ao café. Um homem com cabelo louro-acinzentado chocou com ela. Astrid estava já a levar a mão à mala para pegar na arma quando Delaroche lhe pousou a mão no braço e lhe segredou que não era nada, apenas um desconhecido com pressa.
Comeram como amantes extenuados no restaurante no Herengracht onde Delaroche a levara na primeira noite. Ela não tinha comido nada no Cairo, por isso devorou o seu prato, bem como grande parte do de Delaroche. A sua pele, branca como a cal devido ao cansaço e ao nervosismo, foi ganhando cor com a comida, o vinho e o ar da noite. Contou-lhe enquanto comiam a sobremesa. O rosto dela não deixou transparecer mais do que uma ligeira irritação, como se Delaroche a tivesse informado de que, naquela noite, ia ficar a trabalhar até mais tarde no escritório.
- Não tem que fazer - disse-lhe. - Não quero ficar sem você.
Fizeram amor sob a claraboia do Krista, ao som dos gritos dos patinadores no Prinsengracht. Em seguida, Delaroche confessou ter abatido o avião em Nova York, bem como o rapaz palestino. Disse-lhe que acreditava que os homens que tinham matado também estavam envolvidos no ataque ou que, de alguma forma, sabiam a verdade.
- Quem são os homens que te contrataram? - perguntou ela, tocando-o nos lábios.
- Sinceramente não sei.
- Tem que saber que eles vão te matar, Jean-Paul. Quando terminar o contrato, eles virão atrás de você. E de mim também.
- Eu sei.
- Para onde iremos?
- Para a nossa casa na praia.
- Estaremos seguros lá?
- Estaremos tão seguros como em outro lugar qualquer.
Astrid acendeu um cigarro e exalou um esguio fio de fumo em direção à claraboia. Delaroche pegou no portátil, ligou-o e carregou em algumas teclas. O disco rígido zumbiu e depois a imagem de um homem de cabelo escuro apareceu no ecrã.
- Por que esse homem tem que morrer?
- Desconfio que sabe demais.
Surgiu outra imagem, a de Elizabeth Osbourne.
- A mulher dele é linda.
- Sim.
- É uma pena.
- Sim - concordou Delaroche, e fechou o notebook.
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Michael apanhou o último ferry da noite. Durante alguns instantes, deixou-se ficar encostado ao parapeito a apanhar o ar frio, mas o vento e os salpicos da água fizeram com que voltasse para dentro do Buick alugado no aeroporto JFK. Telefonara a Adrian Carter a partir da Long Island Expressway e disse-lhe que estava de regresso ao país. Carter quis saber onde diabo estivera metido. Michael respondeu-lhe que iria à sede na tarde do dia seguinte e lhe explicaria tudo. Quando Carter exigiu uma explicação naquele momento, Michael mentiu e disse que a ligação do celular estava má, desligando em seguida. A última coisa que ouviu foi Adrian Carter a gritar obscenidades, o que não era nada típico de sua parte, ao pousar o telefone no gancho.
As vagas rebentavam na proa, encharcando o vidro. Michael ligou o limpa para-brisa. As luzes de Cannon Point brilhavam do outro lado de Shelter Island Sound. As imagens das últimas semanas vieram-lhe à cabeça: o Voo 002, Colin Yardley, Heathrow, Drozdov, Muhammad Awad, Eric Stoltenberg, Astrid Vogel, Outubro. Eram como fragmentos de uma melodia que não era capaz de completar. Tinha a certeza de que a Espada de Gaza não tinha perpetrado o ataque. Acreditava que era obra de outro grupo, ou de um indivíduo, que o levara a cabo em nome da Espada de Gaza. Mas quem? E porquê? Outubro era apenas um assassino contratado. Se estivesse envolvido, seria por mandado de outros. O mesmo se aplicava a Astrid Vogel. A Fação do Exército Vermelho não possuía os recursos nem motivo para realizar o ataque. Michael desconfiava saber a verdade, ou pelo menos parte dela: o homem chamado Outubro fora contratado para eliminar a equipe que levara a cabo o atentado.
O ferry atracou em Shelter Island. Michael ligou o motor e arrancou. Shelter Island Heights estava deserta, as lojas e as casas vitorianas às escuras. Acelerou ao longo de Winthrop Road, através de um túnel de árvores despidas, e contornou Dering Harbor. No Verão, o porto estava repleto de barcos. Agora encontrava-se deserto, exceto pelo Athena, que ondulava nas amarras sobre as ondas encrespadas ao largo de Cannon Point.
Michael também desconfiava que fora ele o alvo no ferry no Canal, não Muhammad Awad. Quem era o homem debaixo da balaclava? Seria Outubro? Já o vira empunhar a arma, em pessoa, na Represa de Chelsea e em vídeo, e não parecia ser o mesmo homem. Tinha de partir do princípio que continuava a ser um alvo e era obrigado a encarar a possibilidade de agora enviarem Outubro, um dos melhores assassinos do mundo, para realizar a tarefa. Teria de contar tudo a Carter e a Monica Tyler, pois precisava da sua proteção. Também diria tudo a Elizabeth, mas por razões muito diferentes. Amava-a mais do que a qualquer outra coisa e desejava ansiosamente recuperar a sua confiança.
Cannon Point surgiu diante dos seus olhos. Michael parou junto ao portão de segurança, baixou o vidro e digitou o código. O portão abriu e viu acenderem-se as luzes na casa do caseiro. Michael conduziu devagar pelo acesso de cascalho. Um grupo de veados de cauda branca, a pastar na erva morta do extenso relvado dos Cannon, olhou para cima e fitou Michael cautelosamente. Viu um raio de luz e ouviu cães a ladrar. Era apenas Charlie, o caseiro, a caminhar na sua direção, com os retrievers a latirem à volta dos seus tornozelos.
Michael desligou o motor e saiu do carro. Acenderam-se luzes na casa principal e a porta abriu de rompante. Viu Elizabeth emoldurada pela luz, envolta num dos velhos casacos do senador. Saiu para a rua, observando-o, com os braços cruzados sob os seios. O vento soprou-lhe o cabelo sobre o rosto. Depois deu alguns passos cuidadosos até junto dele e aninhou-se contra o seu corpo. - Nunca mais volte a me deixar, Michael.
- Não volto - prometeu. - Meu Deus, Elizabeth, lamento tanto.
- Quero conversar. Quero que me conte tudo.
- Eu vou contar tudo, Elizabeth. Há coisas que precisa saber.
Conversaram durante horas. Elizabeth sentou-se na cama, o queixo apoiado nos joelhos, brincando com um Benson Hedges por acender. Michael andava de um lado para o outro, ora sentando-se ao lado dela, ora olhando pela janela, para as águas do Sound. Fiel à sua palavra, contou-lhe tudo. Sentiu a tensão diminuir com a revelação de cada segredo. Desejou nunca lhe ter escondido nada desde o início. Sempre dissera a si próprio que era para proteção de Elizabeth, mas agora apercebia-se de que isso era apenas parte da verdade. Tivera uma vida de segredos e de mentiras durante tanto tempo, que não conhecia outra forma de viver. O sigilo era como uma doença, uma maleita. O pai apanhara-a e dera com a mãe em louca. Michael deveria ter evitado cometer os mesmos erros.
Depois de terminar, Elizabeth ficou calada durante muito tempo.
- O que queres de mim? - perguntou finalmente.
- Perdão - respondeu ele. - Perdão e compreensão.
- Tens isso, Michael. - Voltou a colocar o cigarro por acender dentro do maço.
- O que vai acontecer amanhã em Langley?
- Provavelmente vão pôr-me à frente uma quarenta e cinco carregada.
- De que estás a falar?
- Vou estar metido em grandes sarilhos. Posso não sobreviver.
- Não brinques comigo, Michael.
- Não há muito trabalho por aí para espiões caídos em desgraça.
Não precisamos do dinheiro. Podes tirar uns dias de licença e fazer alguma coisa normal durante o resto da vida. - Viu no rosto dele o impacto das suas palavras e disse: - Meu Deus, Michael, desculpa. Não estava a falar a sério. - Só há uma coisa que tenho de fazer antes de me vir embora. Quero saber o que realmente aconteceu àquele avião. Quero a verdade.
- E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, certo, Michael?
- Qualquer coisa assim.
- Desapareceu?
- Quem é que desapareceu?
- Sarah. Desapareceu?
- Nunca esteve lá, para começar.
- Muito inteligente, Michael, mas responde minha pergunta.
- Às vezes penso no que aconteceu. Mas não a amo, Elizabeth, e não desejo que ela estivesse deitada a meu lado no teu lugar.
Uma lágrima rolou-lhe pelo rosto. Ela limpou-a com força e disse:
- Anda, Michael. Vem para a cama.
Deixou-se ficar nos braços dele durante muito tempo, a chorar. Michael abraçou-a até que ela parou de soluçar. Olhou para o marido, o rosto molhado, e perguntou:
- Importas-te que eu te fale um bocadinho sobre o meu dia agora, querido?
- Adorava ouvir-te falar sobre o teu dia.
- Quatro ovos fertilizados. Implantaram esta manhã. Tenho de descansar uns dias. Depois vão me fazer um teste de gravidez para ver se deu certo.
Colocou a palma da mão na barriga dela. Elizabeth beijou-o nos lábios.
- Michael Osbourne, é a primeira vez que te vejo sorrir em semanas.
- É a primeira boa notícia que tenho em semanas.
Passou-lhe um dedo pelo cabelo.
- Virão atrás de você?
- Não sei. Se for embora, já não represento ameaça para eles.
- Vai sair amanhã? Por mim?
- Não me parece que tenha escolha.
- E a verdade vos libertará - disse ela. - Amém.
CHIPRE
O pequeno jato Gulfstream aterrou na pista isolada, os motores a gemer na escuridão. O piloto chamava-se Roger Stephens, um antigo oficial da Royal Navy's Fleet Air Arm, condecorado na Guerra das Malvinas. Agora trabalhava para a Seção de Transportes da Sociedade. Ao fazer mecanicamente as verificações pré-voo, Stephens não possuía uma informação crucial: o plano de voo. Os passageiros, um homem e uma mulher, deveriam dar-lho a bordo. Contudo, partiu do princípio de que seria um voo longo, pois tinha recebido ordens para atestar o depósito.
Trinta minutos depois, um Range Rover preto entrou na pista e avançou em direção ao Gulfstream a toda a velocidade, com os faróis apagados. Parou junto das escadas, largou duas pessoas e afastou-se rapidamente. Stephens executara várias missões para a Sociedade, pelas quais foi bem compensado, e conhecia as regras. Não devia olhar para os rostos dos passageiros, nem falar com eles. O acordo estava bem para Stephens. A Sociedade e os homens que a ela pertenciam não eram farinha que se cheirasse e ele queria ter o menos possível a ver com eles. Os passageiros entraram no avião e sentaram-se nos seus lugares. Uma mochila de nylon preta fora-lhes deixada a bordo e o frigorífico estava bem abastecido com comida e vinho. Stephens ouviu o som de um fecho de correr, o estalido metálico de um atirador experiente a verificar o funcionamento de uma arma automática, o estouro de uma rolha de champanhe, o murmúrio de uma mulher a falar num francês com sotaque alemão.
Um instante depois, o homem entrou no cockpit e colocou-se atrás de Stephens.
- O plano de voo - disse, simplesmente.
Falou em inglês, com um ligeiro sotaque que Stephens não foi capaz de identificar. O plano de voo foi-lhe atirado para a frente dos olhos, juntamente com uma Beretta com silênciador. Stephens pegou no plano de voo.
- Permaneça no cockpit e não olhe para nenhum de nós - avisou Delaroche. - Se olhar para nós, eu mato-o e aterro eu próprio o avião. Entendeu? Stephens aquiesceu. Sentiu um arrepio pela espinha. Delaroche saiu do cockpit e sentou-se no banco. Stephens estendeu o braço e, sem se virar, fechou a porta do cockpit.
Momentos depois, os motores começaram a funcionar e o Gulfstream descolou para a noite mediterrânica.
SEDE DA CIA, LANGLEY, VIRGÍNIA
Michael sempre pensou que os ambientalistas teriam um dia em cheio no gabinete de Monica Tyler. Situado no sétimo andar era amplo e arejado, com vista para as árvores ao longo do rio. Monica escarnecera da ideia de decorar o seu covil com mobiliário do governo e trouxera o seu do escritório de Nova York: uma grande secretária de mogno, arquivos de mogno, estantes de mogno, e uma mesa de reuniões de mogno, rodeada por confortáveis cadeiras de pele. Viam-se adornos de marfim e de prata por aqui e por ali, e belos tapetes persas cobriam a quase totalidade da feia alcatifa azul-acinzentada do governo. Uma parede era exclusivamente dedicada às fotografias de Monica com pessoas famosas: Monica com James Beckwith, Monica com o Diretor Ronald Clark, Monica com um ator famoso, Monica com a princesa Diana. No mundo da espionagem notoriamente avesso às câmaras, Monica era uma autêntica miúda de capa de revistas. Ao entrar na sala, Michael sentiu o aroma do café acabado de fazer (um requintado love italiano ou francês) e, vinda de algures, ouviu uma calma música sinfônica. Adrian Carter chegou a seguir, parecendo muito ressacado. Farejou o ar, sentiu o odor do café e franziu o cenho. Monica foi a última a chegar, com cinco minutos de atraso, como era seu hábito, seguida por Tweedledee e por Tweedledum, cada um segurando na mão uma pasta de pele.
Sentaram-se à mesa de reuniões, Monica no topo, com os factótuns à sua direita e Michael e Carter à esquerda. Uma secretária trouxe um tabuleiro com café e natas e um prato de bolinhos delicados.
Monica assinalou o início da ordem de trabalhos, batendo com a ponta da caneta de ouro sobre o tampo polido da mesa.
- Onde está o McManus? - perguntou Carter.
- Teve de ir à baixa, ao Edifício Hoover, devido a um assunto urgente - respondeu Monica, com um tom de voz inexpressivo.
- Não lhe parece que o representante do FBI do Centro de Contraterrorismo deveria estar presente nesta reunião?
- Tudo o que o FBI precisar saber será transmitido na altura devida - respondeu. - Este é um assunto da Agência e será tratado como tal. Carter, incapaz de esconder a fúria, roeu a unha do indicador. Monica olhou para Michael.
- Após o incidente no ferry, foram-lhe dadas ordens para que regressasse a Londres de imediato e se apresentasse na sede. O senhor desobedeceu a essa ordem e foi para o Cairo. Por quê?
- Julguei que podia descobrir informações valiosas a respeito de uma investigação em curso - respondeu Michael. - Não fui por ter vontade de ver as pirâmides.
- Não se arme em esperto. Já tem problemas que chegue. O que soube no Cairo? Michael colocou em cima da mesa as fotografias que lhe tinham sido dadas por Muhammad Awad e virou-as para que Monica pudesse vê-las.
- Aqui está Hassan Mahmoud, o homem que foi encontrado morto no navio-baleeiro, num encontro com um homem chamado Eric Stoltenberg, no Cairo, algumas semanas antes do ataque ao avião. Stoltenberg é um antigo elemento da Stasi. Trabalhou no departamento que apoiava a libertação nacional e grupos de guerrilheiros por todo o mundo. Agora é freelancer. Muhammad Awad, antes de ser alvejado no ferry, disse que Mahmoud se aliara a Stoltenberg.
- Dois homens a beber um café no Cairo não é algo que possa ser considerado prova de conspiração, Michael.
Michael controlou-se. Algures durante a ascensão para o topo, Monica aprendera a arte de fazer descarrilar o seu adversário a meio da linha de raciocínio com uma crítica negativa ou uma contradição superficial.
- Fui ao Cairo porque queria falar com Stoltenberg.
- Por que motivo não passou essa informação a Carter no Centro, e deixou que alguém da Estação do Cairo tratasse do assunto?
- Porque queria eu próprio tratar dele.
- Pelo menos é honesto. Continue.
- Quando cheguei ao Cairo, Stoltenberg já estava morto. - Michael deixou cair sobre a mesa uma fotografia do rosto desfeito de Stoltenberg. Carter desviou o olhar e estremeceu. O rosto de Monica permaneceu inalterado. - Foi atingido com três tiros no rosto, tal como Hassan Mahmoud, tal como Colin Yardley.
- E tal como Sarah Randolph.
Michael olhou para as mãos e depois para Monica.
- Sim - disse. - Tal como Sarah Randolph.
- E acredita que estas mortes são obra do mesmo homem?
- Tenho a certeza disso. É um antigo assassino do KGB, com o nome de código Outubro, que foi introduzido no Ocidente em jovem e aqui se arraigou. Agora é um assassino contratado, o assassino mais caro e mais proficiente do mundo.
- E foi Ivan Drozdov quem lhe disse isso?
- Exatamente.
- Qual é a sua teoria, Michael?
- Que Muhammad Awad estava a dizer a verdade: a Espada de Gaza não perpetrou este ataque. Foi obra de qualquer outro grupo ou indivíduo, executado em nome da Espada de Gaza. E agora o Outubro foi contratado por este grupo ou indivíduo para liquidar a equipe que levou a cabo o atentado. - Michael ficou calado por um breve instante e depois continuou: - E vai acabar por vir atrás de mim. - Importa-se de explicar?
- Penso que já tentaram me matar uma vez, a bordo do ferry, durante o encontro com Awad. Fracassaram. Acho que tentarão novamente e desta vez penso que a tarefa será entregue a Outubro.
Houve uma longa pausa. As conversas com Monica eram sempre interrompidas por momentos de silêncio, como se ela estivesse recebendo as deixas seguintes através de um ponto nos bastidores.
- Quem são eles, Michael? O que são? Onde estão? Como?
- Não sei. Alguém explodiu aquele avião e por alguma boa razão. Veja o que aconteceu. O processo de paz no Oriente Médio ruiu. Estão a entrar armas na região como nunca.
E um presidente ferido recuperou e foi reeleito, pensou Michael, e este país está prestes a construir um dispendioso sistema de defesa antimíssil. - Valha-me Deus, Michael! Certamente que não está sugerindo algum tipo de ligação.
- Não sei todas as respostas. Aquilo que estou a sugerir é que consideremos seriamente a possibilidade de outras forças estarem envolvidas no ataque e que alarguemos as nossas investigações.
Adrian Carter falou finalmente.
- Pensei que o Michael andasse longe da verdade quando me falou sobre isto pela primeira vez, mas agora julgo que me enganei. Creio que a Agência deve fazer o que o Michael está a sugerir.
Monica hesitou por um segundo.
- É com relutância que concordo, Michael, mas receio que a investigação vá avançar sem o seu envolvimento. - Concedeu-se um longo gole no café. - Descobriu informações potencialmente valiosas, mas os seus meios e métodos foram imperdoáveis e, sinceramente, impróprios para um agente dos serviços secretos com a sua experiência. Receio bem que não tenha outra alternativa a não ser suspendê-lo, até se conhecer o resultado de um inquérito disciplinar. Lamento, Michael, mas não me deixou outra escolha.
Michael não disse nada. Já estava à espera, mas ainda assim foi atravessado por uma onda de choque ao ouvir as palavras da boca de Monica.
- Em relação às suas preocupações sobre a sua segurança pessoal, pode estar certo de que a Agência tomará todas as providências necessárias para o proteger a si e à sua família.
Obrigado, Monica - agradeceu Michael, arrependendo-se de imediato. As garantias de Monica Tyler tinham a perenidade de um soneto escrito na superfície de um lago. ;
O carro com motorista que transportava Mitchell Elliott chegou à sua casa na cidade, em Califórnia Street, pouco depois das oito horas da noite. Fora um dia muito longo, a maior parte do qual passado em Capitol Hill, a adular. Elliott andava no mundo da política há tempo suficiente para perceber que, em Washington, a euforia tinha a tendência de se desvanecer rapidamente. Regra geral, as promessas feitas por presidentes acabavam por expirar, vítimas de milhares de golpes em comité. Só dali a muitos meses é que a defesa nacional antimíssil iria perante o Congresso para ser votada. Nessa altura, a tragédia do Voo 002 seria uma recordação longínqua e Beckwith um presidente inapto. Caberia a Elliott a tarefa de garantir que o programa não ia por água abaixo. Espalhara milhões de dólares por Capitol Hill. Metade dos membros do Congresso lhe devia. Ainda assim, sabia que seria necessária toda a sua influência e imaginação para se certificar de que o projeto chegava ao fim.
O carro parou junto à beira. Mark Calahan saiu e abriu a porta. Elliott entrou dentro de casa e subiu as escadas, dirigindo-se à biblioteca. Serviu-se de um copo de scotch e foi para o quarto. A porta da casa de banho abriu e uma mulher entrou no quarto, trazendo vestido um roupão de veludo, o cabelo úmido devido ao duche. Elliott ergueu o olhar.
- Olá, Monica, querida, conta-me o teu dia.
- Ele subestima-me - queixou-se, deitada ao lado dele, na cama. - Toma-me por idiota. Acha que é mais esperto do que eu e eu detesto pessoas que pensam que são mais espertas do que eu.
- Deixa-o te subestimar - aconselhou Elliott. - É um erro fatal, neste caso literalmente.
- Fui obrigada a reabrir a investigação hoje. Não tive escolha. Osbourne conseguiu descobrir muito do teu joguinho.
- Só arranhou a superfície, Monica. Sabe disso tão bem quanto eu. E, além disso, ele jamais entenderá tudo. Osbourne está encurralado numa casa de espelhos.
- Ele sabe a identidade dos teus assassinos e acha que sabe por que estão matando.
- Não sabe quem está por trás deles e nunca chegará a saber.
- Tive de lançar um alerta mundial em nome deles, Mitchell.
- Quem controla a distribuição em Langley?
- Sou eu que recebo tudo - disse ela. - Teoricamente, ninguém mais a verá. E mandei McManus dar um recado, por isso a agência está completamente às escuras.
- E Michael Osbourne nem vai ter tempo de dizer ai. Menina bonita, Monica. Acabou de ganhar um belo bônus.
- Na verdade, estava pensar em outra coisa.
DEZEMBRO
NORTE DO CANADÁ
O Gulfstream posicionou-se abaixo do radar sobre o Estreito de Davis e aterrou numa estrada remota, iluminada por foguetes de sinalização, ao longo das praias orientais de Hudson Bay. Astrid e Delaroche desceram as escadas, Delaroche com a mochila de nylon a tiracolo, Astrid com as mãos sobre o rosto para se proteger do ar cruel do Árctico. Stephens não chegou a desligar os motores. Assim que Astrid e Delaroche se afastaram, fez novamente o avião deslizar pela estrada e o Gulfstream descolou em direção à límpida manhã canadiana. Um Range Rover preto aguardava-os na beira da estrada, cheio de equipamento para o tempo frio (calçado de neve, mochilas, parkas e comida desidratada) e um maço de instruções de viagem detalhadas. Entraram e fecharam as portas, deixando o ar frio lá fora. Delaroche deu à chave e o motor roncou, tentou arrancar e depois parou. Delaroche sentiu um aperto no coração. O avião desaparecera. Estavam completamente sozinhos. Se o carro não funcionasse, não conseguiriam sobreviver por muito tempo.
Deu mais uma vez à chave e, dessa vez, o motor pegou. Astrid, tipicamente alemã por um instante, disse:
- Graças a Deus.
- Pensava que eras uma boa ateia comunista - aventou Delaroche.
- Cale-se e liga o aquecimento.
Fez o que ela pediu. Depois abriu o maço e tentou ler as instruções, mas não lhe valeu de nada. Retirou uns óculos de leitura em forma de meia-lua do bolso do peito do casaco e colocou-os.
- Nunca te vi usar isso antes, Jean-Paul.
- Não gosto de usá-los na frente das pessoas, mas às vezes não posso evitar.
- Parece um professor, em vez de um assassino profissional.
- É essa a ideia, meu amor.
- Como é que mata pessoas tão bem, se não consegue ver?
- Porque estou atirando nelas, e não lendo-as. Se tivessem palavras escritas na testa, precisaria dos óculos.
- Por favor, Jean-Paul, dirija o maldito carro. Estou morrendo congelada.
- Tenho que saber para onde vou, antes de começar a viagem.
- Lê sempre as instruções antes?
Delaroche olhou-a com uma expressão zombeteira, como se considerasse a pergunta ligeiramente ofensiva.
- Claro que sim.
- É por isso que você é tão bom em tudo o que faz. Jean-Paul Delaroche, o homem metódico.
- Todos nós temos nossos defeitos - retorquiu, guardando o mapa. - Eu não ridicularizo os seus. - Engrenou a primeira no Range Rover.
- Para onde vamos? - perguntou Astrid.
- Para um lugar chamado Vermont. - É perto da nossa praia?
- Nem por isso.
Bolas - disse ela, fechando os olhos. - Acorda-me quando chegarmos.
WASHINGTON, D. C.
O primeiro dia de exílio de Michael foi terrível. Ao amanhecer, quando o despertador tocou, correu para o chuveiro e abriu a torneira antes de se aperceber de que não tinha sítio nenhum para onde ir. Desceu as escadas e entrou na cozinha, fez torradas e café para Elizabeth e levou-lhos. Ela tomou o pequeno-almoço na cama e leu o Post. Meia hora depois, Elizabeth saía pela porta principal, vestida para ir trabalhar com as suas duas pastas e os seus dois telemóveis. Michael ficou à janela, a acenar como um idiota, à medida que ela se afastava no Mercedes. Tudo o que precisava para completar o quadro era de um casaco de malha e de um cachimbo.
Acabou de ler o jornal. Tentou ler um livro mas não conseguia concentrar-se nas páginas. Tentou aproveitar o tempo verificando todas as fechaduras e substituindo as pilhas do sistema de alarme. Isso demorou vinte minutos. Maria, a empregada peruana, apareceu às dez horas e perseguiu-o de divisão em divisão com o aspirador industrial e o produto tóxico para os móveis.
- Está um dia lindo lá fora, Señor Miguel - disse ela, gritando-Ihe em espanhol sobre o troar do aspirador. Maria só falava com ele na sua língua nativa. - Devia sair e fazer alguma coisa, em vez de ficar enfiado em casa o dia todo. Michael percebeu que a sua própria empregada acabava de o pôr na rua. Subiu as escadas, vestiu roupa de treino de nylon, calçou tênis e voltou para o rés-do-chão. Maria enfiou-lhe um pedaço de papel na mão, uma lista de produtos de limpeza que precisava da loja. Ele meteu a lista no bolso e saiu para a Street.
Estava um dia quente para o início de Dezembro, o tipo de tarde que fazia sempre com que Michael pensasse que não havia bairro mais bonito do que Georgetown em qualquer lugar do mundo. O céu estava limpo, o ar fresco e suave, perfumado com fumo de madeira. A N Street estava coberta por uma camada de folhas outonais vermelhas e amarelas. Estalavam debaixo dos pés de Michael, enquanto ele corria calmamente ao longo do passeio de tijolo. Num gesto reflexo, olhou pelas janelas dos carros estacionados para ver se estava alguém lá dentro. Uma van com o nome de uma loja de produtos de cozinha da Virgínia estava estacionada à esquina. Mike memorizou o nome e o número de telefone.
Telefonaria mais tarde para se certificar de que o sítio era verdadeiro.
Correu encosta abaixo até a M Street e atravessou Key Bridge. O vento soprava forte na ponte, criando pequenas ondulações na superfície do rio, lá em baixo. Era como se fossem dois rios diferentes. À direita de Michael, um rio selvagem estendia-se para norte. À sua esquerda, jazia a zona ribeirinha de Washington: o complexo Harbor Place, o Watergate, o Centro Kennedy, mais adiante. Ao chegar ao lado do rio de Virgínia, olhou por cima do ombro em busca de algum sinal de estar a ser observado. Um homem de constituição débil com um chapéu de basebol de Georgetown encontrava-se cem metros atrás de si.
Michael baixou a cabeça e correu mais depressa, passando por Roosevelt Island, através da relva ao longo da George Washington Parkway. Avançou até a Memorial Bridge e olhou por cima do ombro enquanto descia a alameda. O homem com o chapéu de basebol ainda ali estava. Michael parou e fez alguns exercícios de alongamento, olhando da ponte para o caminho lá em baixo. O homem de chapéu continuou a correr para sul, ao longo do rio, em direção ao National Airport. Michael endireitou-se e continuou a correr.
Durante os vinte minutos seguintes, viu seis homens de boné e três homens que pensou poderem ser Outubro. Sabia que estava nervoso. Correu velozmente durante o resto do caminho de volta a Georgetown. Parou no Booeymongers, uma loja de sanduíches popular entre os alunos universitários e pediu um café para levar. Bebeu-o enquanto percorria a N Street e entrou em casa. Tomou uma ducha, mudou de roupa e saiu. Do carro, telefonou a Elizabeth para o escritório. - Vou a Langley - disse-lhe. - Tenho uns assuntos domésticos para tratar. - Houve alguns segundos de silêncio na linha e Michael continuou: - Não te preocupes, Elizabeth, não perderia esta tarde por nada deste mundo.
- Obrigada, Michael.
- Até daqui a algumas horas.
Michael atravessou mais uma vez Key Bridge e virou para a George Washington Parkway. Fizera aquele percurso milhares de vezes, mas agora, ao dirigir-se a Langley para limpar a sua secretária, viu tudo como se fosse a primeira vez. Havia choupos gigantes, riachos que jorravam das colinas rochosas da Virgínia, precipícios íngremes com vista para o Potomac.
Na entrada principal, o guarda digitou a identificação de Michael, franziu o sobrolho e disse-lhe para passar. Enquanto atravessava os corredores severamente iluminados em direção ao CTC, Michael sentia-se como um leproso. Ninguém lhe dirigiu a palavra, ninguém olhou para ele. Os serviços secretos não são mais do que diques altamente organizadas. Quando um elemento contrai uma doença, os outros permanecem afastados, não vão apanhá-la também. O curral estava sossegado quando Michael entrou pela porta e se dirigiu à secretária. Durante uma hora, selecionou o conteúdo das gavetas, separando o pessoal do oficial. Uma semana antes, fora aplaudido pela sua ação em Heathrow. Agora sentia-se como um avançado que acabara de falhar o golo decisivo. De vez em quando, aparecia alguém que lhe punha a mão no ombro e se afastava rapidamente. Mas ninguém falou com ele.
Quando se preparava para sair, Adrian Carter espreitou e fez sinal a Michael para que entrasse no seu gabinete. Entregou-lhe um embrulho com uma fita. - Pensava que era apenas uma suspensão a aguardar o inquérito - disse Michael, aceitando o presente.
E é, mas de qualquer forma queria dar-te isto - respondeu Carter. Os olhos baixos faziam-no parecer mais taciturno do que nunca. - Abre-o em casa. Algumas pessoas por aqui poderiam não entender a piada.
Michael apertou-lhe a mão.
- Obrigado por tudo, Adrian. Nos vemos por aí.
- Pois - respondeu Carter. - E, Michael, tem cuidado com você. Michael saiu e dirigiu-se ao carro no estacionamento.
Atirou o presente de Carter para o porta-bagagens, entrou e arrancou. Ao passar pelos portões, interrogou-se se alguma vez voltaria.
Michael foi ter com Elizabeth ao Georgetown University Medical Center. Deixou o Jaguar com o arrumador e foi de elevador até o consultório do médico. Quando chegou à sala de espera não havia sinais de Elizabeth. Por um instante receou ter faltado à consulta mas, logo em seguida, ela entrou pela porta, de pastas na mão, e beijou-o na face.
Uma enfermeira acompanhou-os à sala de observação e deixou uma bata em cima da mesa. Elizabeth desabotoou a blusa e a saia. Olhou para cima e viu que Michael a fitava.
- Fecha os olhos.
- Na verdade, estava a pensar trancar a porta.
- Animal.
- Obrigado.
Elizabeth acabou de se despir, enfiou a bata e sentou-se na mesa de observação.
Michael brincava com as saliências da máquina de sonograma.
- Importas-te de parar com isso?
- Desculpa, só estou um pouco nervoso.
O médico entrou na sala. A Michael fazia lembrar Carter: ensonado, desgrenhado, uma expressão de tédio eterno no rosto. Franziu o sobrolho ao ler a ficha de Elizabeth, como que dividido entre mahi mahi e salmão grelhado.
- Os resultados beta estão muito bons - indicou. - Na verdade, estão um pouco altos. Vamos dar uma vista de olhos com a eco grafia.
Levantou a bata de Elizabeth e cobriu-lhe o abdômen com um gel lubrificante. Depois pressionou-lhe a sonda do sonograma contra a pele e começou a movimentá-lo para a frente e para trás.
- Aqui está - declarou, sorrindo pela primeira vez. - Senhoras e senhores, aquilo está com muito bom aspecto.
Elizabeth estava radiante. Estendeu o braço para Michael e agarrou-lhe a mão com força.
O médico manipulou a sonda mais um instante.
- E aqui está um segundo saco com muito bom aspeto.
- Valha-me Deus - exclamou Michael.
O médico desligou a máquina.
- Vista-se e vá para o consultório. Temos de conversar sobre algumas coisas. E, desde já, parabéns.
- Pelo menos não vamos ter que comprar uma casa maior - disse Michael, seguindo Elizabeth até o quarto no primeiro andar. - Sempre achei que uma casa com seis quartos era grande demais só para nós dois.
- Michael, para de falar assim. Tenho quarenta anos. Já estou para lá da fase de risco elevado. Podem acontecer muitas coisas.
Deitou-se na cama. - Estou morrendo de fome.
Michael deitou-se a seu lado.
- Não consigo tirar da cabeça sua imagem cheia de lubrificante.
Beijou-o.
- Vai embora. Ouviu o que o médico disse. Tenho de ficar deitada e descansar por alguns dias. Neste momento, estou na hora mais vulnerável.
Ele retribuiu o beijo. - Não vou discutir isso.
- Vai lá embaixo e me faz uma sanduíche.
Michael levantou-se da cama e foi até a cozinha. Fez-lhe sanduíche de peru e queijo suíço e serviu um copo de suco de laranja. Colocou tudo numa bandeja e levou para ela.
- Acho que me habituaria a isso. - Elizabeth mordeu o sanduíche. - Como correram as coisas no trabalho hoje?
- É óbvio que fui declarado intocável.
- Foi assim tão ruim?
- Pior ainda.
- Quem te deu isso? - perguntou ela, apontando para o embrulho.
- Carter.
- Não vais abrir?
- Achei que podia viver sem outro conjunto de canetas Cross.
- Me dá aqui - pediu ela, rasgando o papel enquanto mastigava um pedaço enorme do sanduíche. Por baixo do papel de embrulho estava uma caixa rectangular e, dentro dela, um maço de documentos com o timbre ULTRASSECRETO.
- Michael, acho que é melhor dares uma vista de olhos nisto avisou Elizabeth. Atirou-o a Michael, que folheou as páginas rapidamente.
- O que é?
Olhou para Elizabeth. - É o dossiê da CIA sobre um assassino da KGB com nome de código de Outubro.
FRONTEIRA ESTADOS UNIDOS-CANADÁ
Delaroche esperou pela luz da alvorada. Encontrara um local isolado na floresta, bastante distante da auto-estrada a sul de Montreal, a cerca de cinco quilômetros da fronteira. Astrid dormia a seu lado, no banco traseiro do Range Rover., tapada com um pesado cobertor de lã, o corpo enroscado para se proteger do frio. Implorara a Delaroche que, de vez em quando, ligasse o aquecimento, mas ele recusou, pois queria silêncio. Tocou-lhe nas mãos enquanto ela dormia. Estavam geladas.
Às seis e meia levantou-se, serviu-se de café de um termo e preparou uma grande tigela de papas de aveia. Astrid surgiu dez minutos depois, envolta numa parka e com um chapéu de lã.
- Serve-me um pouco de café, Jean-Paul - pediu, segurando o mingau de aveia e comendo o que restava.
Delaroche colocou aquilo de que necessitavam em duas pequenas mochilas. Entregou a mais leve a Astrid e pôs a outra ao ombro. Colocou a Beretta na cintura das calças, à frente. Revistou rapidamente o veículo de uma ponta à outra, para se certificar de que não tinham deixado nada que pudesse identificá-los. O Range Rover seria deixado para trás. Estaria outro à espera deles no lado americano da fronteira.
Caminharam durante uma hora pelas arestas montanhosas acima de Lake Champlain. Poderiam ter feito a travessia permanecendo junto à margem gelada do lago, mas Delaroche pensava que ficariam demasiado expostos. Dois pares de sapatos de neve tinham ficado no
Range Rover, mas Delaroche julgou ser melhor usarem apenas botas de caminhada, uma vez que o solo jazia poucos centímetros abaixo da neve congelada. Astrid subia e descia as encostas e atravessava o arvoredo denso com grande esforço. Era ligeiramente desajeitada e inábil na melhor das circunstâncias. O corpo longo era completamente inadequado aos rigores das caminhadas na montanha em pleno Inverno. Chegou a escorregar por uma encosta abaixo e acabou por parar de barriga para cima, com as pernas estateladas de encontro a uma árvore. Delaroche não tinha a certeza de quando exatamente tinham deixado o Canadá e entrado nos Estados Unidos. Não existiam quaisquer delimitações fronteiriças, quaisquer vedações, qualquer vigilância eletrônica visível, fosse de que espécie fosse. Quem o contratara escolhera bem o local. Delaroche recordou-se de uma noite, há muito tempo, era ainda jovem, em que entrara no Ocidente, da Checoslováquia para a Áustria, acompanhado por dois agentes do KGB. Lembrava-se da noite morna, dos arcos voltaicos e do arame farpado, do fedor intenso a estrume no ar. Lembrava-se de erguer a arma e de matar os companheiros. Naquele momento, a caminhar pela manhã gelada do Vermont, fechou os olhos e pensou nisso, nas primeiras mortes.
Agira segundo as ordens de Vladimir. Descrever Vladimir como sendo o seu agente de casos seria um eufemismo. Vladimir era o seu mundo. Vladimir era tudo para Delaroche: professor, padre, algoz, pai. Ensinou-o a ler e a escrever. Ensinou-lhe línguas e história. Ensinou-o a ser espião e a matar. Quando chegou a altura de ir para o Ocidente, Vladimir entregou Delaroche a Arbatov, da mesma forma que um pai confia um filho a um familiar. A última ordem de Vladimir foi que matasse os seus acompanhantes. Esse ato instilou algo muito importante em Delaroche: nunca confiaria em ninguém, sobretudo em alguém do seu próprio serviço. Quando cresceu, acabou por perceber que fora exatamente isso que Vladimir tivera em mente.
O terreno suavizou-se à medida que desceram pela aresta. Delaroche, utilizando um mapa e um compasso, guiou-os até os arredores de uma aldeia chamada Highgate Springs, três quilômetros a sul da fronteira. O segundo Range Rover esperava-os, parado junto a uns pinheiros que orlavam um campo de milho coberto de neve. Delaroche colocou o equipamento na parte de trás e entraram no carro. Desta vez, o motor pegou de primeira.
Delaroche conduziu cuidadosamente ao longo da estrada gelada de duas vias. Astrid, exausta devido à caminhada, entrou de imediato num sono profundo e sem sonhos. Quarenta minutos mais tarde, Delaroche chegou à Interstate 89 e rumou a sul.
WASHINGTON, D. C.
- Por que Adrian te mentiria sobre a existência do Outubro?
A pergunta de Elizabeth soava estranha a Michael. Era como uma criança a fazer perguntas sobre sexo pela primeira vez. A nova abertura entre eles era-lhe estranha e sentia-se constrangido a discutir assuntos da Agência com a esposa. Mesmo assim, gostava. Elizabeth, com o seu inteleto de advogada e natureza reservada, teria dado uma boa agente dos serviços secretos, se não tivesse optado pela advocacia.
- Todos os serviços secretos assentam no conceito de necessidade de saber. Poderia dizer-se que eu não precisava de saber da existência do Outubro e, logo, tal nunca me foi dito.
- Mas, Michael, ele assassinou a Sarah à tua frente. Se devia ser dada autorização a alguém para ver o que a Agência tinha sobre ele, essa pessoa serias tu.
- Bem visto, mas está sempre a ser escondida informação dos agentes dos serviços secretos pelas mais variadíssimas razões.
- A União Soviética está morta e enterrada há séculos. Por que motivo o dossiê dele continua a ser tão restrito?
- Nos serviços secretos, renunciamos devagar aos nossos mortos, Elizabeth. Não há nada de que um serviço secreto mais goste do que de um bom monte de segredos inúteis.
- Talvez alguém quisesse que fosse confidencial.
- Já pensei nessa possibilidade.
Michael parou em frente ao edifício do Washington Post, na 1st Street. Tom Logan, o editor de Susanna Dayton, pedira para se encontrar com Elizabeth. Michael tencionara esperar no carro, mas agora dizia: - Importa-se que vá com você?
- De maneira nenhuma, mas temos que correr. Estamos, atrasados.
- Onde ficaram de se encontrar?
- No escritório dele. Por quê?
- Não sou grande apreciador de espaços fechados, só isso.
- Michael, não estamos em Berlim Leste. Para com isso.
Mas Michael já tinha o celular na mão.
- Qual é o ramal dele?
- Cinquenta e seis oitenta e quatro.
O telefone tocou e a secretária de Logan atendeu.
- Fala Michael Osbourne. Posso falar com o senhor Logan, por favor?
Logan atendeu.
- Olá, Mike - cumprimentou. - Elizabeth e eu estamos aqui embaixo. Importa-se que falemos em outro lugar?
- Claro que não.
- Estamos na Fifteenth Street, Jaguar metalizado.
- Estou aí em cinco minutos.
Michael voltou a guardar o celular.
- Qual é o problema? - quis saber Elizabeth.
- Sabe aquela sensação de que alguém está te observando?
- Claro.
- Estou tendo neste momento. Não consigo vê-lo, mas sei que anda por aí. - Michael fitou o espelho retrovisor por um instante. - Tenho bons instintos - declarou, num tom de voz distante - e confio sempre nos meus instintos.
Cinco minutos depois, Logan saiu do edifício do Post. Era alto e calvo e o vento assolava o contorno de cabelo grisalho demasiado comprido que lhe orlava a cabeça. Não vestia sobretudo, apenas tinha colocado um cachecol vermelho enrolado em volta do pescoço fino, e tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça cinza de flanela amarrotada. Osbourne esticou o braço e abriu a porta traseira. Logan entrou no carro.
- Meu Deus, adoro o tempo nesta cidade. Vinte graus ontem e quatro hoje - queixou-se.
Michael carregou com força no acelerador e o Jaguar mergulhou no trânsito intenso da baixa de Washington. Logan pôs o cinto de segurança e agarrou-se ao apoio para o braço.
- Qual é a sua profissão, Mike?
- Vendo equipamento de informática a grandes clientes no estrangeiro.
- Ah, parece interessante.
Michael virou à esquerda na M Street e acelerou em direção a oeste, atravessando a baixa. Virou à direita em New Hampshire, contornou Dupont Circle e voou para ocidente ao longo da Massachusetts Avenue. Circulou habilmente por entre o trânsito e passou mais tempo a olhar para o espelho retrovisor do que para a estrada à sua frente.
Por essa altura, Logan quase que arrancara o apoio para o braço na porta traseira.
- Não percebi o nome da empresa para a qual trabalha, Mike.
- Isso é porque não lho disse. E prefiro que me chame Michael, tom.
Elizabeth virou-se e olhou demoradamente por cima do ombro.
- Alguma coisa? - perguntou.
- Se lá estava alguém, agora deixou de estar.
Michael abrandou e seguiu o ritmo do resto do trânsito. Logan soltou o apoio para o braço e descontraiu-se.
- Vendedor de computadores, uma ova - reclamou.
Nesse dia, a tarefa de vigiar Elizabeth Osbourne cabia a Henry Rodriguez, mas interrompeu a perseguição na M Street. Michael Osbourne, um antigo agente de campo, fora treinado para reconhecer vigilância física sofisticada. Alguém grosseiramente disfarçado de moço de entregas de comida chinesa podia ser localizado numa questão de minutos. Parou junto ao passeio e telefonou a Mark Calahan, para o posto de comando em Kalorama.
- Não há dúvidas de que ele estava a tentar despistar alguém justificou-se Rodriguez. - Se tentasse não perdê-lo de vista, ia ver-me.
- Boa jogada. Volta para Georgetown. Espera que eles apareçam.
Calahan entrou na biblioteca para dar as notícias a Mitchell Elliott. - O Logan deve precisar de ajuda - supôs Elliott. - Por que motivo iria encontrar-se com ela agora?
- Ela está em posição de causar danos graves. Talvez devamos apertar um pouco o cerco.
- Concordo - anuiu Elliott. - Acho que é altura de o Henry voltar ao trabalho. - Ele não vai gostar de voltar a ser porteiro. Acha que estamos a discriminá-lo por causa da sua origem hispânica.
- Se não gostar, ele que se queixe à comissão de igualdade de oportunidades.
Pago-lhe bem para fazer o que lhe mandam.
Calahan sorriu.
- Sim, senhor, senhor Elliott.
Michael encontrou um sítio para estacionar na East Capitol Street. Desencantou um corta-vento para tom Logan no porta-bagagens e passearam pelo Lincoln Park, sob um céu frio e plúmbeo.
- Quanto do material original de Susanna é que leu? - perguntou Logan.
- O suficiente para ficar a perceber - respondeu Elizabeth.
Deixe-me refrescar-lhe a memória - disse Logan. - No início dos anos 80, Beckwith quis sair da política. Mais especificamente, Anne Beckwith queria sair da política. Ela desejava que o marido voltasse ao setor privado, onde podia ganhar dinheiro à séria, antes que ficasse demasiado velho. Ambos tinham algum dinheiro da família, mas não muito. A Anne gosta de coisas boas. Desejava mais do que aquilo que podiam comprar com o salário do governo. Ele já cumprira dois mandatos no Senado e ela disse-lhe que era a política ou ela.
Dois corredores aproximaram-se deles por trás, cada um com um cão em esforço na ponta da trela. Logan, como um bom homem de campo, esperou que eles passassem antes de continuar a falar.
- Beckwith é muitas coisas, mas é totalmente dedicado a Anne e a última coisa que queria era perdê-la. Mas também gostava da política e não se sentia particularmente entusiasmado com a ideia de voltar a exercer advocacia. Certa noite, reuniu os seus conselheiros e os homens do dinheiro em São Francisco e deu-lhes a notícia. Nem é preciso dizer que Mitchell Elliott quase teve uma apoplexia. Ao longo dos anos, investira muito tempo e dinheiro em Beckwith e não queria que esse investimento fosse um desperdício. Na manhã seguinte telefonou a Anne e pediu-lhe que se encontrasse a sós com ele. Nessa noite, ao jantar, Anne retirou tudo o que disse e encorajou Beckwith a candidatar-se a governador. Ele ganhou, claro está, e o resto, como se diz, é história.
- O que aconteceu durante o encontro entre Anne Beckwith e Mitchell Elliott? - perguntou Michael.
- Elliott garantiu a Anne que se o marido continuasse na política, ambos seriam bem tratados a nível financeiro. A primeira fase era simples e, no esquema global das coisas, foram apenas uns trocos. Elliott fez com que os seus amigos poderosos do mundo dos negócios colocassem Anne em mais de uma dúzia de conselhos de administração. Ganhava dinheiro como consultora, embora tivesse pouca ou nenhuma experiência em negócios. Também investia de forma muito assisada, desconfiamos que com a ajuda de Elliott, e ganhou bom dinheiro nos mercados financeiros.
"No espaço de três anos, Anne conseguiu uma reserva substancial, alguns milhões de dólares. Gastou quase todo esse dinheiro na compra de várias centenas de hectares do que, na altura, era um deserto sem valor, a sul de San Diego. Dois anos mais tarde, um empreiteiro anunciou tencionar construir nos terrenos de Anne uma nova comunidade de condomínios, moradias familiares individuais, e um centro comercial. De repente, a terra sem valor passou a valer muito dinheiro.
- Mitchell Elliott estava por trás de tudo isso? - perguntou Elizabeth.
- Achamos que sim, mas não pudemos prová-lo, logo, não pudemos publicar. Elliott precisava de ajuda para conceber todos estes esquemas. Tinha grandes planos para Beckwith e não queria o nome dele manchado por um escândalo. Precisava de alguém que compreendesse Washington e, acima de tudo, que compreendesse como enganar as leis para o financiamento das campanhas. Assim, recorreu a um poderoso advogado de Washington.
- Samuel Braxton - disse Elizabeth.
- Exatamente - concordou Logan. - E, por fim, depois de anos de espera, o investimento de Elliott compensou. O sistema nacional de defesa antimíssil estava arruinado. Mas vinte e quatro horas depois do Voo Zero-Zero-Dois ter sido abatido, Elliott estava dentro da Casa Branca para uma reunião com Beckwith. A Susanna viu. Também viu Elliott e Vandenberg juntos mais tarde, nessa mesma noite. No dia seguinte, ao final da tarde, Beckwith apresenta-se perante o país, anuncia ataques contra a Espada de Gaza e propõe construir um sistema nacional de defesa antimíssil. De repente, Capitol Hill é todo a favor da defesa antimíssil. Andrew Sterling é encostado à parede porque declarou ser contra. Beckwith promove o concurso e a Alatron Defense Systems de Elliott está prestes a ganhar vários bilhões de dólares.
- Nesse caso, por que não avançou com a história da Susanna? - perguntou Michael.
- Como já disse a sua mulher, numa história como esta revemos, em conjunto com o repórter, cada fato, cada citação, cada pedaço de informação, antes de o artigo ser publicado. Neste caso, a repórter morreu e tivemos de começar do princípio, utilizando o artigo original como guia. Já conseguimos a maior parte, mas falta uma peça fundamental do puzzle. Não sei como, a Susanna conseguiu documentos financeiros e de bens imobiliários originais. Desconfiamos de que tinha uma fonte na Braxton, Allworth & Kettlemen que lhe forneceu os documentos. Já reviramos os arquivos da Susanna e não conseguimos encontrá-los. Tentamos arranjar a nossa própria fonte na firma, mas não fomos bem sucedidos.
Logan arrepiou-se e aconchegou mais o cachecol em volta do pescoço. - Elizabeth, é claro que pode responder a esta pergunta da forma como entender, mas tenho de fazer. Foi você a fonte destes documentos?
- Não - respondeu Elizabeth prontamente. - Susanna pediu e eu disse que não o faria. Disse que não era ético e que se soubessem que tinha sido eu minha carreira ficaria arruinada.
Logan hesitou por um instante e depois indagou:
- Faria isso agora?
- Não, não faria.
- Elizabeth, Samuel Braxton é um advogado desonesto e criminoso que está prestes a ser recompensado com a nomeação para Secretário de Estado. Quanto a si não sei, mas isso irrita-me e, como jornalista, gostaria de fazer alguma coisa. Mas não posso, não sem a sua ajuda. Se está preocupada com a sua proteção, garanto-lhe que não deixaremos que a coloquem em perigo, seja de que maneira for. Pode confiar em mim.
- Tom, vivi em Washington a maior parte da minha vida e aprendi uma coisa. Nesta cidade não se pode confiar em ninguém.
Logan parou de andar e virou-se para enfrentar Michael.
- Você não trabalha para uma empresa de informática que vende a clientes no estrangeiro. Trabalha no Centro de Antiterrorismo da Central Intelligence Agency. Foi o herói naquele ataque no Aeroporto de Heathrow e esteve envolvido no atentado a bomba no ferry do Canal da Mancha. Sei que pode achar difícil de acreditar, Michael, mas até mesmo pessoas na sua organização gostam de falar com jornalistas. Não publicamos a informação porque não queríamos que corresse perigo.
Logan virou-se e olhou para Elizabeth.
- Não farei nada que possa prejudicá-la. Pode confiar em mim, Elizabeth.
BETHESDA, MARYLAND
Delaroche sentiu-se nervoso pela primeira vez quando saiu da Interstate 95 e começou a dirigir-se à Capital Beltway. Percorrera de carro algumas das mais exigentes estradas da Europa (auto-estradas sinuosas em França e Itália, estradas de montanha terríveis nos Alpes e nos Pirenéus), mas nada o tinha preparado para a loucura da hora de ponta ao final da tarde em Washington. A viagem a partir de Vermont decorrera sem incidentes. O tempo estivera bom, exceto por uma breve tempestade de neve a norte do estado de Nova York e uns chuviscos gelados ao longo de New Jersey Turnpike. Quanto mais viajavam para sul, mais a temperatura subia, e a chuva parara em Filadélfia. Agora, o que Delaroche mais temia eram os outros condutores. Carros passavam por eles a cento e quarenta quilômetros por hora, cinquenta quilômetros acima do limite de velocidade, e o caminhão atrás estava a dois metros do seu para-choque.
Delaroche pensou em como seria fácil ter um acidente em circunstâncias como aquelas. Os resultados seriam desastrosos. Como era estrangeiro, a polícia iria querer ver o seu passaporte. Se o agente estivesse atento e soubesse alguma coisa de passaportes, notaria que o de Delaroche não continha qualquer visto de entrada. Provavelmente seria detido e interrogado pelas autoridades de imigração e pelo FBI. A sua identidade ruiria e ele seria preso, tudo por causa de um maluco qualquer que tentava chegar a casa vindo do trabalho.
Os carros à sua frente travaram de repente. O trânsito parou. Delaroche encontrou uma estação de rádio só com notícias e ouviu a atualização do trânsito. Algures à sua frente, um atrelado tinha capotado. O trânsito estava uma confusão ao longo de quilômetros.
Delaroche pensou na casa de Brélés. Pensou no mar a embater nas rochas e em si próprio a pedalar na bicicleta de corrida italiana ao longo das calmas estradas secundárias da Finistère. Devia ter estado a sonhar acordado, pois o homem no caminhão buzinou e agitou freneticamente os braços. O condutor mudou de faixa, colocou-se ao lado de Delaroche e fez um gesto obsceno com a mão.
- Por favor, Jean-Paul - disse Astrid. - Deixa-me ir buscar a minha pistola lá atrás e dar-lhe um tiro.
Trinta minutos depois aproximaram-se da cena do acidente. Um policial de Maryland encontrava-se no meio da estrada, fazendo sinal aos carros para que contornassem o caminhão capotado. Numa reação reflexa, Delaroche ficou tenso na presença de um policial. Os camiões dos bombeiros e as ambulâncias desapareceram atrás de si e o trânsito começou novamente a avançar. Delaroche saiu na Wisconsin Avenue e rumou para sul.
Acelerou através da baixa de Bethesda, passou pelas lojas luxuosas da Mazza Galleria, os pináculos altaneiros da Catedral Nacional. A Wisconsin Avenue ia dar a Georgetown. Pessoas às compras movimentavam-se com rapidez através do ar frio da noite e os bares e restaurantes começavam a encher-se. Virou à esquerda na M Street, avançou alguns quarteirões e virou para a entrada do Four Seasons Hotel.
Delaroche fez o registro e recusou a oferta do porteiro para o ajudar com as malas. Fechou a porta e deixaram-se cair os dois sobre a cama, exaustos pelas duas longas viagens de carro e pela caminhada para atravessar a fronteira. Delaroche acordou passadas duas horas, pediu café ao serviço de quartos e sentou-se em frente ao computador portátil. Enquanto Astrid dormia, abriu o dossiê de Michael Osbourne e começou a planear a sua morte.
WASHINGTON, D. C.
No fim da tarde, Elizabeth telefonou para o escritório de Max Lewis.
Como se sente? - perguntou ele sobre os papéis. Eram cinco da tarde e preparava-se para sair do escritório, razão pela qual Elizabeth telefonara a essa hora.
- Estou ótima, mas o médico diz que tenho que repousar o mais possível na próxima semana. Na verdade, é por isso que estou telefonando. Será que esta noite, quando for para casa, poderia me trazer alguns documentos?
- Claro. Do que precisa?
- Da pasta do caso McGregor. Está em cima da minha mesa.
- Para dizer a verdade, está guardada em seu arquivo. Hoje tomei a liberdade de arrumar sua mesa. Sinceramente, Elizabeth, não sei como você consegue trabalhar ali. Também joguei fora todos os maços de cigarro.
- Não se preocupe, deixei de fumar. Também acabou o Chardonnay na banheira depois do trabalho.
- Assim é que se fala - elogiou Max. - Estarei aí em quinze minutos. Precisa de mais alguma coisa? Quer que vá buscar sua roupa na lavanderia? Que vá comprar algo no Sutton Place? Dê as ordens, minha rainha.
- Só quero que traga o arquivo McGregor. Recompenso com comida e vinho.
- Nesse caso, estarei aí dentro de cinco minutos.
- Estou de papo para o ar na cama, por isso use sua chave.
- Sim, minha rainha.
Max desligou. Michael estava numa poltrona aos pés da cama, ouvindo a conversa no telefone sem fio. Olhou para Elizabeth e disse:
- Fantástico.
Max demorou mais de meia hora no meio do trânsito desde o escritório da firma na Connecticut Avenue até Georgetown. Enfiou a chave na fechadura dos Osbourne, abriu a porta e entrou para o hall de entrada.
- Elizabeth, sou eu - gritou.
- Olá, Max, sobe. Há vinho fresco no frigorífico. Vai buscar um copo e um saca-rolhas.
Fez o que lhe mandaram e subiu as escadas. Foi dar com Elizabeth esticada em cima da cama, rodeada por pilhas de processos e blocos de notas. - Meu Deus - exclamou. - Talvez deva vir trabalhar para aqui, em vez de ir para a baixa.
- Talvez não fosse má ideia.
Colocou os arquivos McGregor sobre a mesa-de-cabeceira e, instintivamente, começou a endireitar papéis e a organizar as coisas dela. Michael entrou no quarto.
- Olá, Michael, como está? - cumprimentou Max.
Michael não respondeu. - O que há? - perguntou Max.
Elizabeth tocou-lhe o braço.
- Max, temos que falar.
- Susanna veio me procurar depois que você disse não - explicou Max.
Estava sentado na cadeira do quarto, as pernas estendidas em cima do pufe. Michael abrira o vinho e Max bebeu metade da garrafa muito depressa. O choque inicial do confronto atenuara-se e agora estava descontraído e falando à vontade. - Ela pediu que a ajudasse. Pensei sobre o assunto e depois concordei em fazê-lo.
- Max, se tivesses sido apanhado, estaria despedido e provavelmente processado. As firmas de advocacia não podem tolerar roubo e violação do privilégio entre cliente e advogado. Deixa mal os clientes e faz com que seja muito difícil atrair novos.
- Estava disposto a correr o risco. Quando se está na minha posição, Elizabeth, há a tendência de não se pensar nas coisas a longo prazo.
- Não quero te julgar, Max, mas devia ter vindo falar comigo primeiro - admoestou-o Elizabeth. - Eu te contratei. Trabalha para mim. A firma teria caído em cima de mim com uma tonelada de tijolos.
- E o que me teria dito?
- Teria dito para não fazer.
- Foi por isso que não falei com você.
- Por que, Max? Por que ir atrás de Braxton daquela maneira?
Max olhou para Elizabeth como se considerasse a pergunta ofensiva.
- Por que Braxton? Porque ele é um idiota sujo e desonesto que está prestes a tornar-se secretário de Estado. Estou surpreso por me perguntar. Já ouvi a forma como ele fala com você nas reuniões dos sócios e ouvi a forma como ele fala de você quando não está presente.
Hesitou um momento, olhou para Michael e disse:
- Posso filar um? - Michael estendeu-lhe o maço e um isqueiro. Max fumou por um instante e bebeu mais vinho.
- Também é pessoal - admitiu, por fim. - Alguém disse a Braxton que eu era seropositivo. Por trás das tuas costas, ele andava a arranjar maneira de eu ser despedido, como uma das suas últimas ações antes de deixar a firma. Quis tornar as suas últimas semanas ali tão lixadas que ele não teria tempo para tratar de mim, e a Susanna deu-me a oportunidade de o fazer.
- Onde conseguiu os documentos? - quis saber Michael.
- Roubei uma das chaves do arquivo dele e fiz uma cópia. Nessa noite, fui ao escritório com a desculpa de ter trabalho para fazer. Entrei no arquivo, peguei os documentos e fui à casa da Susanna. Só lhe impus uma regra: ela não podia copiar os arquivos. Fiquei em casa dela toda a noite enquanto ela trabalhava. Depois fui para o escritório cedo e voltei a guardar os arquivos no mesmo lugar de onde tirei. Na verdade, foi muito fácil.
- Ainda tem a chave? - perguntou Elizabeth.
- Sim, pensei em jogá-la da Memorial Bridge, mas acabei por guardá-la.
- Ótimo.
- Por quê?
- Porque esta noite vamos lá buscar esses arquivos outra vez.
WASHINGTON, D. C.
Oficialmente, na Casa Branca o dia estava dado como encerrado, o que significava que o gabinete de imprensa não esperava mais notícias nesse dia e que o Presidente e a Primeira-dama não tinham quaisquer acontecimentos públicos, nem tencionavam sair da residência. Contudo, às oito horas um único sedan preto esgueirou-se pelo Portão Sul da Casa Branca e entrou no trânsito noturno da baixa de Washington.
Anne Beckwith estava sentada sozinha no banco traseiro. Não havia qualquer limusina presidencial à prova de bala, quaisquer veículos Chevy pretos de perseguição suburbana, qualquer escolta policial. Apenas um motorista da Casa Branca e um único agente dos Serviços Secretos sentado no banco do passageiro. Durante anos, Anne evadia-se desta forma da Casa Branca pelo menos uma vez por semana. Gostava de sair para o mundo real, como apreciava dizer. Para Anne, o mundo real não se encontrava muito distante da opulência da Mansão Oficial. Regra geral, fazia uma pequena viagem de carro até os enclaves abastados de Georgetown, ou Kalorama, ou Spring Valley para tomar uma bebida e jantar com velhos amigos ou aliados políticos importantes.
O carro dirigiu-se a norte, Connecticut Avenue acima, e virou para oeste, para a Massachusetts, depois de deixar o trânsito intenso de Dupont Circle. Momentos depois, virou para Califórnia Street e abrandou à porta da grande mansão de tijolo. A porta da garagem abriu e o sedan preto deslizou em silêncio para o seu interior.
O agente dos Serviços Secretos esperou que a porta da garagem se voltasse a fechar antes de sair do carro. Contornou o veículo por trás e abriu a porta da Primeira-dama. O anfitrião esperava-a quando saiu do carro. Beijou-lhe a face e disse:
- Olá, Mitchell, é um prazer vê-lo novamente.
Anne Beckwith não fora em busca de uma noite de conversa agradável e boa comida. Tratava-se de negócios. Aceitou um copo de vinho mas ignorou a bandeja de queijo e de patê que um dos autômatos de Elliott colocara sobre a mesa de apoio entre eles.
- Quero saber se a situação está sob controle - disse com frieza. - E, se não estiver, quero saber o que diabo anda fazendo para que fique sob controle. - Se a Susanna Dayton tivesse vivido para publicar aquele artigo, os estragos poderiam ter sido graves. O seu assassinato lamentável deu-nos algum tempo, mas não me parece que já estejamos seguros.
- Assassinato lamentável - repetiu Anne, um tom trocista na voz. - Por que o Post não publicou a história dela?
- Porque estão tentando reconfirmar tudo o que escreveu e ainda não conseguiram.
- E vão conseguir?
- Só se eu não puder evitar.
Anne Beckwith acendeu um cigarro e exalou um leve fio de fumaça por entre os lábios tensos.
- O que vai fazer para impedir que isso aconteça?
- Acho que seria imprudente se Anne tomasse conhecimento de tudo isto.
- Não me venha com besteira, Mitchell. Diga o que eu quero saber.
- Achamos que a melhor amiga de Susanna Dayton, uma advogada chamada Elizabeth Osbourne, está ajudando o Post.
- Não é a filha do Douglas Cannon?
- Sim, é.
- Cannon odeia o Jim. Estiveram juntos nas Forças Armadas. Cannon era o diretor e Jim o republicano responsável. No final, já mal se falavam.
Anne terminou o vinho.
- Não vai me oferecer outro copo? Da Califórnia, não é? Meu Deus, fazemos um vinho maravilhoso.
Elliott serviu-lhe mais vinho.
- Mitchell, estamos juntos nisso há muito tempo. Jim e eu lhe devemos muito. Tem sido muito generoso ao longo dos anos. Mas eu não vou permitir que isto prejudique Jim, seja de que maneira for. Ele fez sua última campanha. Agora não tem nada a perder, a não ser o lugar nos livros de história.
- Compreendo.
- Não me parece. Se isto vier a público da pior forma, usarei todo o poder e influência que tenho para me certificar de que é o senhor quem cai. Não vou deixar que Jim saia prejudicado e, neste momento, não quero saber de você para nada. Fiz-me entender?
Elliott bebeu o resto do scotch. Não gostava de ouvir um sermão de Anne Beckwith. Se não fosse a ganância e as inseguranças de Anne, Elliott nunca teria conseguido estabelecer a sua relação financeira especial com o marido dela. Era sempre Anne quem ditava as cartas, mesmo quando se tratava de corrupção. Fitou-a com frieza por um instante, depois assentiu e disse: - Sim, Anne, fez-se entender perfeitamente.
- Se esta coisa explodir, Jim vai sobreviver. Mas seu projeto antimíssil vai por água abaixo. Não será construído, ou então o contrato será concedido a uma empresa menos controvertida. O senhor estará acabado.
- Eu sei o que está em causa.
- Ótimo. - Levantou-se e pegou o casaco.
Mitchell Elliott permaneceu sentado. - Só quero fazer-lhe uma pergunta, Mitchell. As pessoas que mataram a jornalista foram as mesmas que abateram o avião?
Elliott olhou para ela, a perplexidade estampada no rosto. - De que diabos está falando?
- Responde a uma pergunta com outra pergunta. Mau sinal. Boa noite, querido. Oh, não se levante. Sou apenas a Primeira-Dama. Saio sozinha.
Elizabeth representou o papel de uma atarefada advogada de Washington regressando ao escritório para trabalhar até tarde: jeans, botas de cowboy, uma confortável blusa de algodão bege. Max Lewis vivia perto de Dupont Circle e sua roupa diária de trabalho refletia as tendências do bairro: jeans, mocassins de camurça preta, suéter de gola alta preta, casaco cinza-escuro. Os escritórios de advocacia da Braxton, Allworth & Kettlemen ficavam na esquina da Connecticut Avenue com a K Street. Michael esperou no carro. Elizabeth e Max entraram juntos no hall, identificaram-se ao segurança e foram de elevador até o andar.
O escritório de Elizabeth ficava na extremidade norte do piso, com vista para a Connecticut Avenue. Samuel Braxton era quem possuía o maior gabinete da firma, uma série de salas ao longo da esquina da Connecticut Avenue com a K Street, com uma vista magnífica da Casa Branca e do Washington Monument.
Elizabeth destrancou o seu gabinete acendeu as luzes e entrou. Falou com Max numa voz alta e clara. Queria que tudo parecesse normal. Max colocou mais papel na fotocopiadora e fez café. Elizabeth ouvia o zumbido distante de aspiradores vindo de algures no piso.
Pegou nas chaves e atravessou o corredor até o gabinete de Braxton. Deu uma batida suave, não obteve qualquer resposta e destrancou a porta com a chave duplicada. Entrou e fechou rapidamente a porta. Retirou uma pequena lanterna da mala e ligou-a.
Elizabeth estava no gabinete exterior, onde trabalhavam as duas secretárias de Braxton. O arquivo estava na outra ponta, do outro lado de uma porta pesada. Elizabeth trocou de chave e abriu a porta. Fechou-a e acendeu a luz. Max disse-lhe onde encontrar os arquivos de Elliott e Beckwith: na parede em frente, em cima à esquerda. Ela não chegava à prateleira de cima. As secretárias de Braxton guardavam ali um banquinho do gênero que existe nas bibliotecas para estas ocasiões. Levou o banco para o outro lado da sala, subiu para cima dele e começou a inspecionar os arquivos.
Examinou a fila inteira uma vez e não encontrou nada. Começou do princípio, obrigando-se a ir devagar mas, mais uma vez, não encontrou nada. Experimentou ver na prateleira abaixo, mas aconteceu a mesma coisa. Nada. Praguejou baixinho. Braxton retirara dali os arquivos. Elizabeth desceu do banco e dirigiu-se à porta. Ouviu sons no gabinete, do outro lado da porta: uma chave a ser enfiada numa fechadura, o clique de um interruptor, o arranhar de um carrinho de metal. Em seguida, ouviu o estalido de uma chave a ser violentamente empurrada para o interior da fechadura da porta que se encontrava a poucos metros dela. A fechadura cedeu e a porta abriu.
Elizabeth observou atentamente o homem que estava à sua frente e percebeu de imediato que algo de errado se passava. A maior parte do pessoal da limpeza eram indivíduos da América Central de origem índia, pequenos e de pele escura, que quase não falavam inglês. Aquele homem era alto, devia medir cerca de um metro e oitenta, e tinha pele clara. Era evidente que o cabelo escuro fora cortado e penteado por um profissional dispendioso. A bata era nova e não estava suja, e as unhas encontravam-se limpas. Contudo, foi o anel na mão esquerda que chamou a atenção de Elizabeth. Exibia as insígnias das Forças Especiais do Exército, os Green Berets.
- Posso ajudá-lo? - perguntou Elizabeth. Resolvendo tomar a iniciativa.
- Ouvi um barulho - respondeu o homem num inglês de pronúncia carregada. Elizabeth percebeu que ele estava a mentir, pois tivera muito cuidado para não fazer barulho algum.
- Porque não chamou a segurança? - ripostou ela. O homem encolheu os ombros. - Pensei em vir eu próprio dar uma vista de olhos primeiro, - disse. - Sabe, apanhar um ladrão, ser um grande herói, receber uma recompensa ou assim. Elizabeth olhou para a placa com o nome dele no macacão, e fez disso um grande alarde.
- É americano, Carlos?
Ele abanou a cabeça. - Sou do Equador.
- Onde arranjou esse anel?
- Na loja de penhores em Adams Morgan. Muy bonito, não acha?
- É lindo, Carlos. Agora, se me dá licença...
Passou por ele e entrou no escritório.
- Encontrou o procurava? - perguntou o homem, às costas dela.
- Na verdade, estava apenas arrumando uma coisa.
- Está bem. Boa noite, señora.
- Talvez estivesse dizendo a verdade - sugeriu Michael. - Talvez seja mesmo Carlos do Equador e tenha comprado o anel numa loja de penhores em Adams Morgan.
- Besteira - ripostou Elizabeth.
Max levara-os a um restaurante em Dupont Circle chamado The Childe Harold. Era popular entre jornalistas e jovens do pessoal do Congresso. Sentaram-se a uma mesa de canto no bar da cave. Elizabeth ansiava desesperadamente por um cigarro mas, em vez disso, roía as unhas.
- Nunca o vi antes - disse Max. - Mas isso não quer dizer grande coisa. As pessoas nestes empregos estão sempre indo e vindo.
- Nunca o viu antes, Max, porque ele não é merda nenhuma de contínuo nenhum e não é Carlos nenhum da merda do Equador. Eu sei o que vi. - Olhou para Michael. - Lembra do que disse sobre aquela sensação que temos quando alguém nos observa? Bem, estou com essa sensação neste preciso momento.
- Ela não é idiota - relatou Henry Rodriguez pelo telefone. - É uma advogada importante. Tentei me safar. Fiz minha melhor imitação do Freddie Prinze de Chim and the Man, mas sei que ela desconfiou.
- Por que diabos estava usando o anel? - perguntou Calahan.
- Esqueci. Atire em mim.
- Não me dê ideia. Para onde eles foram?
- Para um restaurante chamado The Childe Harold. Twentieth Street, norte de Dupont Circle.
- E você, onde está?
- Na cabine telefônica do outro lado da Connecticut Avenue. Posso me aproximar mais.
- Fique aí. Mando alguém em cinco minutos.
Calahan desligou e olhou para Elliott. - Temos outro pequeno problema, senhor.
WASHINGTON, D. C.
Na manhã seguinte, Delaroche sentou-se num banco em Dupont Circle, de onde observou a multidão de mensageiros de bicicleta a tomar o seu café da manhã. Achava-os vagamente divertidos: a forma como se riam, diziam piadas e atiravam coisas uns aos outros. No entanto, não estava a observá-los simplesmente para passar o tempo. Prestou atenção à forma como se vestiam, os tipos de pastas que transportavam, a forma como falavam. Pouco depois das nove, os mensageiros começaram a receber chamadas pelos rádios e cada um deles montou com relutância uma bicicleta e pedalou para o trabalho.
Delaroche esperou até que o último desaparecesse de vista, depois fez sinal a um táxi e deu uma morada ao motorista.
O táxi levou Delaroche ao longo da M Street até Georgetown e depositou-o na parte inferior da Key Bridge. Entrou na loja. Um empregado perguntou se precisava de ajuda e Delaroche abanou a cabeça. Começou com a roupa. Escolheu as blusas e os calções mais vistosos e mais coloridos que conseguiu encontrar. Em seguida, escolheu sapatos, meias, um capacete e uma mochila. Levou tudo para a parte da frente da loja e empilhou as coisas em cima do balcão. - Mais alguma coisa? - perguntou o empregado. Delaroche apontou para a bicicleta de montanha mais cara da loja. O empregado foi buscá-la e levou-a até o balcão.
- Para onde a leva? - perguntou Delaroche calmamente, consciente do seu inglês carregado.
Temos de verificar a bicicleta. Vai demorar uma hora, mais ou menos.
- Encha os pneus e dê-ma.
- Como queira. Vai pagar em dinheiro ou com cartão? Mas Delaroche já estava a contar notas de cem dólares.
Delaroche passou a hora seguinte às compras na Wisconsin Avenue, em Georgetown. Numa loja de vestuário, comprou uma bandana para a cabeça, numa loja de eletrônica, um pequeno gravador a pilhas com receptores. Numa joalharia adquiriu várias correntes de ouro de mau gosto para o pescoço, furou as duas orelhas e pôs argolas.
Mudou de roupa na casa de banho de uma bomba de gasolina. Despiu a roupa e vestiu os calções de ciclista e a blusa de Inverno. Atou a bandana à cabeça e colocou as correntes de ouro ao pescoço. Prendeu o gravador ao cós dos calções e passou os receptores à volta do pescoço. Enfiou as roupas na mochila, juntamente com a Beretta com silênciador, e viu-se ao espelho. Faltava qualquer coisa. Colocou os óculos de sol Ray-Ban, os mesmos óculos que usara para matar o homem em Paris, e olhou mais uma vez para o reflexo. Agora estava bem. Saiu para a rua. Um homem com um casaco de couro estava prestes a roubar-lhe a bicicleta.
- Canalha - disse Delaroche, imitando o dialeto dos mensageiros em Dupont Circle -, a última coisa que quer é mexer na minha bicicleta.
- Ouve, calma. Estava só olhando - disse o homem, recuando rapidamente. - Paz e amor e essas mentiras todas.
Delaroche subiu na bicicleta e dirigiu-se à casa de Michael Osbourne.
Enquanto pedalava ao longo das ruas cobertas de folhas de East Georgetown, Delaroche reviu uma última vez o plano para matar Osbourne. Seria difícil acabar com ele. Era um homem casado sem quaisquer pontos fracos graves. Não sucumbiria a um avanço sexual da parte de Astrid. Era um agente profissional dos serviços secretos que passara muitos anos em situações perigosas.
Instintivamente, estaria sempre alerta. Delaroche pensou em limitar-se a bater à porta de Osbourne, sob o pretexto de ir entregar uma encomenda, e dar-lhe um tiro quando ele aparecesse. Mas Osbourne poderia reconhecer Delaroche, afinal de contas, ele estivera na Represa de Chelsea, e disparara primeiro. Pensou em tentar entrar na casa de Osbourne pela calada, mas decerto que uma casa grande e opulenta numa cidade assolada pelo crime como Washington se encontrava protegida por um sistema de segurança. Decidiu que teria de matá-lo de surpresa, algures a céu aberto, razão pela qual Delaroche estava vestido como um mensageiro de bicicleta.
A N Street apresentou a Delaroche o seu primeiro problema grave. Não havia lojas, nem cafés, nem cabines telefônicas, nenhum sítio onde Delaroche pudesse matar o tempo de forma discreta. Só se viam grandes casas de tijolo ao estilo federal, firmemente implantadas no passeio.
Delaroche aguardou na esquina da 33rd Street com a N Street, à porta de uma casa enorme com uma imponente sacada assente em pilares, a pensar sobre o que havia de fazer. Só tinha uma opção: andar para a frente e para trás na sua bicicleta pela N Street e esperar conseguir avistar Osbourne a entrar ou a sair de casa. Era uma situação estranha a Delaroche: sempre que possível, preferia matar estando exatamente no sítio certo, exatamente à hora certa. Mas não tinha outra opção.
Montou a bicicleta, pedalou em direção à 35th Street, deu meia volta e pedalou de volta à 33rd Street, observando a casa de Osbourne o mais atentamente possível.
Passados vinte minutos, um homem saiu de casa, vestindo roupa de corrida cinza e branca. Delaroche observou cuidadosamente o rosto. Era o mesmo rosto da imagem no arquivo. Era o mesmo rosto que vira naquela noite na Represa de Chelsea. Era Michael Osbourne.
Osbourne dobrou-se e esticou a parte de trás das pernas. Encostou-se a um poste e alongou os músculos da barriga das pernas. Delaroche, à espera a dois quarteirões de distância, viu os olhos de Osbourne passar em revista a rua e os carros estacionados.
Por fim, Osbourne pôs-se de pé e iniciou uma corrida ligeira. Virou à esquerda na 34th Street, à direita na M Street e dirigiu-se a Key
Bridge, em direção à Virgínia. Delaroche marcou o número de Astrid no Four Seasons e falou com ela, enquanto pedalava a um ritmo regular na esteira de Osbourne.
Michael alcançou o lado da Virgínia do Potomac e dirigiu-se para sul ao longo do Mount Vernon Trail. Tinha os músculos rígidos e doridos e o tempo frio do mês de Dezembro não estava a ajudar, mas estugou o passo e aumentou o ritmo e, passados alguns minutos de corrida rápida, sentiu o suor por baixo a roupa.
Era bom estar fora de casa. Carter telefonara naquela manhã e informara Michael de que Monica Tyler ordenara formalmente ao Departamento de Pessoal que desse início a uma investigação sobre a sua conduta. Elizabeth concordara finalmente em aceder à vontade do médico e estava a trabalhar a partir de casa. O quarto deles transformara-se num escritório de advogados, completado por Max Lewis. As nuvens abriram e um quente sol de Verão brilhou ao longo das margens do rio. Michael passou a entrada para a Roosevelt Island. Uma ponte de madeira estendia-se perante si, sobre vários metros de pântano e juncos. Michael aumentou o ritmo, os pés a martelar as tábuas da ponte. Era dia de semana e estava sozinho no trilho. Jogou um jogo consigo próprio, fazendo uma corrida imaginária. Começou a correr em sprint, impulsionando os braços e erguendo os joelhos. Contornou uma esquina e o final da ponte apareceu, a cerca de duzentos metros de distância.
Michael obrigou-se a correr ainda mais depressa. Os braços ardiam-lhe, as pernas pareciam um peso morto e respirava com dificuldade devido ao ar frio e a demasiados cigarros. Chegou ao fim da ponte, parou e virou-se para ver a extensão que tinha percorrido com a sua pequena corrida de velocidade. Só nessa altura viu o homem a pedalar na sua direção, montado numa bicicleta de montanha.
WASHINGTON, D. C.
Astrid Vogel telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para preparar o Range Rover. Saiu do quarto e foi de elevador até o hall. Trazia consigo uma mala e, no seu interior, estava uma Beretta com silênciador. O Range Rover encontrava-se sob a entrada coberta do hotel. Astrid deu ao camareiro o talão e uma nota de cinco dólares. Entrou para o carro e afastou-se. Delaroche tinha-a obrigado a ficar acordada durante metade da noite a decorar mapas. Cinco minutos depois, estacionava de marcha-atrás a alguns quarteirões de distância, em N Street. Desligou o motor, acendeu um cigarro e esperou pelo telefonema de Delaroche.
Michael retesou-se à medida que a adrenalina disparava pelo seu corpo. De repente, os braços e as pernas já não lhe doíam e a respiração saía-lhe em sopros curtos e rápidos. Fitou o homem que se aproximava de bicicleta. Um capacete cobria-lhe a cabeça e óculos de sol tapavam-lhe os olhos. Michael fitou a parte exposta do rosto. Já o vira antes... no quarto de Colin Yardley, no vídeo do aeroporto do Cairo, na Represa de Chelsea. Era Outubro.
O assassino levava a mão ao interior de um saco de nylon montado no guiador da bicicleta. Michael sabia que ele ia buscar a arma. Se desse meia volta e tentasse fugir, seria fácil para Outubro apanhá-lo e matá-lo. Se ficasse ali parado, o resultado seria o mesmo.
Correu a toda a velocidade em direção à bicicleta que se aproximava.
A jogada apanhou o assassino de surpresa. Encontrava-se a vinte metros de distância e os dois homens aproximavam-se um do outro rapidamente, numa rota de colisão. Outubro revolveu freneticamente o saco de nylon à procura da coronha da arma, tentando colocar o dedo no gatilho. Pegou na pistola, puxou-a de dentro do saco e tentou apontar a Michael.
Michael chegou quando a Beretta com silenciador emitiu um baque surdo. Baixou o ombro e enterrou-o no peito de Outubro. O golpe derrubou Outubro da bicicleta e este foi aterrar com violência na ponte de madeira. Michael conseguiu permanecer de pé. Virou-se e viu Outubro, deitado de costas, ainda de arma na mão.
Michael tinha duas opções: atacar Outubro, tentar desarmá-lo e capturá-lo ou fugir e pedir ajuda. Outubro era um assassino implacável, treinado em artes marciais. Michael recebera um treino rudimentar na Quinta, mas tinha consciência de que não poderia competir com alguém como Outubro. Além disso, ele estava a empunhar uma arma na mão e provavelmente tinha uma segunda escondida algures no corpo.
Michael deu meia volta, correu alguns metros ao longo da ponte e depois saltou para o lado, para dentro da lama e dos juncos na margem do rio. Trepou uma ladeira escorregadia devido às folhas de Outono molhadas e desapareceu num aglomerado de árvores.
Delaroche sentou-se e recuperou. O golpe deixara-o sem fôlego, mas não sofrera ferimentos de maior. Enfiou a Beretta na cintura dos calções e puxou a blusa sobre a coronha. Dois homens de moletom camuflados contornaram a esquina no momento em que Delaroche se baixava para apanhar a bicicleta. Por um instante, pensou em matá-los a ambos. Depois lembrou-se que o pentágono ficava ali perto e que os soldados tinham simplesmente saído para uma corrida inofensiva ao meio-dia. - Está bem? - perguntou um deles.
Foi só um rufião que tentou roubar-me - respondeu Delaroche, deixando vir ao de cima o seu sotaque francês. - Quando expliquei ao homem que não tinha nada de valor, ele empurrou-me da bicicleta.
- Se calhar era melhor ir ao médico - sugeriu o outro.
- Não, uma nódoa negra, talvez, mas nada de grave. Quando encontrar um policial, apresento queixa.
- Está bem, tenha cuidado.
- Obrigado por pararem, cavalheiros.
Delaroche esperou que os soldados desaparecessem de vista. Pegou na bicicleta pelo guiador e endireitou-a. Estava zangado e excitado. Nunca falhara um assassinato e estava zangado consigo próprio por não ter reagido melhor. Osbourne provara ser um adversário de maior respeito do que Delaroche esperara. A sua corrida em direção a Delaroche demonstrava, ao mesmo tempo, coragem e astúcia. A segunda decisão, de fugir em vez de lutar, também demonstrava inteligência, pois Delaroche certamente que o teria matado.
Era por isso que Delaroche se sentia excitado. A maior parte das vítimas nem dava pelo que lhes acontecia. Ele surgia de forma inesperada e matava sem avisar. A maior parte das vezes o seu trabalho nada tinha de estimulante. Era evidente que esse não seria o caso com Osbourne. Delaroche perdera o elemento surpresa. Osbourne sabia da sua presença e nunca mais voltaria a permitir que Delaroche se aproximasse dele. Teria de trazer Osbourne até si.
Delaroche recordou-se da noite na Represa de Chelsea. Recordou ter alvejado três vezes o rosto da mulher chamada Sarah Randolph e de ouvir os gritos angustiados de Michael Osbourne enquanto fugia. Um homem que perdera uma mulher daquela forma faria quase tudo para evitar que tal voltasse a acontecer. Montou-se na bicicleta e pedalou para norte, em direção a Key Bridge. Marcou o número de Astrid, que atendeu ao primeiro toque. Enquanto atravessava a ponte em direção a Georgetown, Delaroche disse-lhe calmamente o que fazer. Michael chegou a George Washington Parkway. Ao meio-dia havia pouco trânsito. Atravessou a alameda e correu por outra encosta acima. Os edifícios de escritórios de vidro e aço da seção Rosslyn de Arlington estavam à sua frente. Encontrou um telefone público em frente a uma loja de conveniência e teclou rapidamente seu próprio número.
Max Lewis atendeu.
- Chame Elizabeth, já!
Segundos mais tarde, Elizabeth atendia.
- Michael, o que há?
- Eles estão aqui, Elizabeth - disse Michael, arquejando. - Outubro acaba de tentar me matar no Mount Vernon Trail. Agora escute com muita atenção e faça exatamente o que vou dizer.
WASHINGTON, D. C.
Elizabeth correu para a sala de Michael e abriu a porta do armário. A pasta estava na última prateleira, uma caixa rectangular castanha tão feia, que só poderia ter sido criada pelo Gabinete de Serviços Técnicos da Agência. Não conseguia chegar à prateleira, por isso empurrou a cadeira de Michael da secretária até o armário. Empoleirou-se em cima dela e pegou na pasta.
Max estava no quarto. Elizabeth sentou-se aos pés da cama e calçou um par de botas de camurça castanhas, de cowboy. Depois foi até o armário e vestiu um casaco de pele, que lhe dava pelas coxas. Sem saber bem porquê, olhou para o reflexo do seu rosto no espelho e passou os dedos pelo cabelo despenteado. Max olhou para ela.
- Raios partam, Elizabeth! Que diabo se está a passar? Elizabeth obrigou-se a permanecer calma.
- Não posso explicar tudo agora, Max, mas um homem acabou de tentar matar o Michael enquanto ele estava a correr. O Michael acha que esse homem está a vir para aqui e quer que saiamos já.
Max olhou para a pasta.
- Que raio é isso?
- Chama-se uma lança - respondeu ela. - Explico logo. Mas agora preciso que me ajude.
- Faço qualquer coisa, Elizabeth, sabe disso.
- Agora ouve com atenção, Max - disse ela, pegando-lhe na mão. - Vamos sair pela porta da frente muito devagar, muito calmamente, e vamos entrar no meu carro.
Dois minutos depois de ter terminado o telefonema para Delaroche, Astrid Vogel viu abrir a porta principal da casa dos Osbourne e duas figuras saíram para a luz do sol de dezembro. A primeira era Elizabeth Osbourne (Astrid reconheceu-a pela fotografia do dossiê de Delaroche) e a segunda era um homem branco de estatura e constituição médias. A mulher trazia na mão uma pequena mala de homem, o homem não levava nada consigo. Entraram para um Mercedes-Benz classe E metalizado, a mulher no banco do passageiro, o homem ao volante, e o motor do carro começou a funcionar.
Astrid pensou no que fazer. Delaroche dissera-lhe para esperar que ele regressasse. Nessa altura, entrariam dentro de casa e tomariam a mulher como refém. Não podia permitir que a mulher fugisse. Decidiu segui-los e dizer a Delaroche para onde se dirigiam.
O Mercedes afastou-se do passeio e entrou na rua sossegada. Astrid ligou o motor do Range Rover e seguiu-os. Ligou para Delaroche e informou-o rapidamente dos últimos acontecimentos.
- Ele está aqui! - gritou Michael no telefone.
- Quem? - perguntou Adrian Carter.
- Outubro está aqui. Acabou de tentar me matar no Mount Vernon Trail.
- Tem certeza?
- Adrian, que raio de pergunta é essa? Claro que tenho certeza!
- Onde você está?
- Rosslyn.
- Diga o endereço. Vou enviar uma equipe para te buscar.
Michael procurou com os olhos uma placa e deu a Carter sua localização.
- Onde está Elizabeth? Vou mandar buscá-la também.
- Estava em casa, mas eu disse para sair de lá.
- Por que raios fez uma coisa dessas?
- Porque Outubro e Astrid Vogel estão juntos nisso. E provável que ela também esteja aqui. Se eu não mandasse a Elizabeth sair, Vogel teria ido lá e a apanharia. Tenho certeza.
- Qual é seu plano?
Michael contou.
- Jesus Cristo! Quem é o motorista?
- O secretário dela. Um garoto chamado Max Lewis.
- Raios me partam, Michael. Sabe o que Outubro vai fazer com ele quando descobrir?
- Cale-se, Adrian. Vem logo me buscar.
Elizabeth baixou a pala e olhou para o pequeno espelho enquanto se dirigiam para sul, pela Wisconsin Avenue. O Range Rover preto estava ali, uma mulher atrás do volante, a falar ao celular.
- Estamos fugindo de quem? - quis saber Max.
- Se eu te dissesse, não ia acreditar.
- A esta altura do campeonato, acredito em qualquer coisa.
- Ela se chama Astrid Vogel e é uma terrorista da Facção do Exército Vermelho.
- Deus do Céu!
- Vire à esquerda e dirija normalmente.
Max virou à esquerda para a M Street. Na 31st Street, o sinal mudou de verde para amarelo quando ele estava a quinze metros do cruzamento.
- Vai - disse Elizabeth.
Max carregou no acelerador. O Mercedes respondeu, reduzindo uma mudança e ganhando velocidade rapidamente. Atravessaram o cruzamento ao som furioso das buzinas. Elizabeth olhou para o espelho e viu que o Range Rover continuava atrás deles.
- Merda!
- O que queres que faça? - Continua a andar.
Na 28th Street, Max não teve alternativa a não ser parar num semáforo vermelho. O Range Rover parou mesmo colado a eles. Elizabeth observou a mulher pelo espelho da pala e Max fez o mesmo pelo espelho retrovisor. - com quem achas que ela está a falar?
- Está a conversar com o sócio.
O sócio dela também pertence à Fação do Exército Vermelho?
- Não, é um antigo assassino do KGB, com o nome de código de Outubro. O semáforo ficou verde. Max carregou tanto no acelerador que os pneus chiaram sobre o asfalto.
- Elizabeth, da próxima vez que me pedires para ir trabalhar na tua casa, acho que vou recusar, se não te importares.
- Cala-te e conduz, Max.
- Para onde?
- Para a baixa.
Max dirigiu-se para leste na L Street, com o Range Rover sempre a segui-los como uma sombra. Elizabeth brincava com a pega da pasta. Recordou-se das palavras de Michael. “Sai do carro e depois aciona o dispositivo. Certifique-se de que a pasta esteja virada para cima. Ande calmamente. Faça o que fizer, não corra.”
O trânsito ia ficando mais intenso à medida em que se aproximavam da baixa de Washington.
- Tem certeza de que essa coisa vai funcionar? - perguntou Max.
- Como quer que eu saiba?
- Talvez esteja dentro do armário há tempo demais. Vê se tem uma data de validade, ou algo do gênero.
Elizabeth olhou para ele e viu que estava rindo.
- Vai correr tudo bem, Elizabeth. Não se preocupes.
Virou à direita na Connecticut Avenue. O trânsito do meio-dia era intenso, os carros avançando a toda a velocidade pela rua larga e grandes camiões estacionados em segunda fila em frente a lojas de luxo. Meia dúzia de carros colocara-se entre eles e Astrid Vogel.
- Acho que é aqui - indicou Elizabeth. - Vira à direita para a K Street. Usa a faixa de serviço.
- É para já.
Carregou no acelerador e virou o volante para a direita.
- Acabaram de virar à direita para a K Street - disse Astrid a Delaroche. - Raios me partam, não consigo vê-los!
Girou o volante e descobriu o Mercedes a sair da beira para o trânsito compacto da K Street.
Já os apanhei. Vão para oeste na K Street. Onde estás?
- Na 23rd Street, a ir para sul. Estamos muito perto.
Astrid seguiu o Mercedes em direção a oeste, pela 20th Street e depois pela 21st Street.
- Estou a aproximar-me, Jean-Paul. Onde estás?
- Na M Street. Espera por mim na 23rd.
Ela atravessou a 23rd Street e parou na esquina noroeste. O Mercedes afastou-se. Olhou para norte e viu Delaroche a pedalar a grande velocidade, as pernas movendo-se como pistões. Parou, encostou a bicicleta num poste e entrou no Range Rover. - Vai!
Elizabeth recostou-se no banco de trás de um táxi, preparando-se para a viagem até a agência de aluguer de automóveis Hertz. A engenhoca de Michael tinha funcionado tal como ele dissera. Max parou o carro, Elizabeth saiu e acionou o dispositivo. Uma figura insuflou depressa, extraordinariamente real. Max afastou-se rapidamente e Elizabeth entrou no hall do seu prédio. Sentiu-se tentada a subir e esconder-se no gabinete, mas lembrou-se do porteiro com o penteado dispendioso e o anel das Forças Especiais e soube que o gabinete já não era seguro. Esperou atrás do vidro até que o Range Rover passasse, depois saiu e fez sinal ao táxi.
O táxi deixou-a na agência Hertz. Entrou apressadamente e dirigiu-se ao balcão.
Cinco minutos depois, um empregado trouxe um Mercury Sable cinzento para a frente da garagem. Elizabeth entrou nele e mergulhou no trânsito da baixa. Avançou para oeste, atravessando Washington, através de Georgetown até a Reservoir Road. Seguiu essa estrada até a Canal Road e continuou para norte, ao longo das margens do C&O Canal. Percorridos dezesseis quilômetros, chegou à Beltway. Seguiu as placas rumo a norte, para Baltimore.
A mala encontrava-se ao seu lado, no banco do passageiro. Pegou no celular e ligou para o Mercedes. Após cinco toques, uma gravação informou-a de que o celular que estava a tentar contatar "não se encontrava disponível de momento".
Max Lewis atravessou a Key Bridge e virou para norte, para a George Washington Parkway. Perdera o Range Rover algures em Georgetown. Olhou para a figura sentada ao seu lado, um homem alto e bastante atraente, com cabelo escuro e bem barbeado. Apercebeu-se de que a figura se assemelhava um pouco a Michael Osbourne. Olhou pelo espelho retrovisor. Continuava a não haver sinais do Range Rover. Por um instante de demência, estava realmente a divertir-se. Depois pensou em Elizabeth e como ela se sentira assustada, e recuperou uma dose saudável de sangue-frio. Elizabeth dissera-lhe para ir diretamente para a entrada principal da CIA. Alguém se encontraria lá com ele e o levaria para dentro. Carregou no acelerador e a agulha do conta-quilômetros saltou para os cento e vinte. O Mercedes deslizava com facilidade sobre as colinas ondeadas e as curvas suaves da alameda. O Potomac brilhava lá em baixo, ao sol brilhante de Dezembro.
Max olhou novamente para o manequim.
- Ouça, senhor Lança, uma vez que vamos passar algum tempo juntos, acho que esta seria uma boa oportunidade para nos ficarmos a conhecer melhor. Chamo-me Max e, sim, sou homossexual. Espero que isso não o incomode.
Olhou para o espelho retrovisor e viu a luz azul intermitente de um carro de polícia da Virgínia. Olhou para o conta-quilômetros e viu que estava a conduzir a quase cento e trinta quilômetros por hora.
- Oh, merda - praguejou Max, carregando com suavidade no travão e parando num refúgio com uma bonita vista para o rio.
O policial saiu do carro e pôs o chapéu. Max baixou o vidro.
- O senhor estava a conduzir a bem mais de cento e vinte, ali atrás - disse o policial -, provavelmente quase a cento e trinta. Posso ver a sua carta de condução, por favor? - Depois reparou no boneco inflável no banco do passageiro. - O que é aquilo?
- É uma história muito comprida, senhor agente.
- A sua carta de condução, por favor.
Max apalpou os bolsos do peito do casaco. Saíra da casa dos Osbourne tão à pressa, que se esquecera da pasta e da carteira. - Lamento, senhor agente, mas não tenho a carta comigo.
- Desligue o motor e saia do carro, por favor - ordenou o policial, num tom de voz monocórdico. Nesse momento, a sua atenção foi desviada para um Range Rover que parava no refúgio.
- Senhor agente, o senhor vai pensar que eu estou maluco, mas é melhor ouvir o que eu tenho a dizer.
Delaroche saiu do Range Rover e encaminhou-se para o policial. Astrid saiu e dirigiu-se para a frente do Mercedes. O policial desapertou o coldre e tentou agarrar na arma.
- Volte a entrar no carro, já!
Delaroche meteu a mão debaixo da blusa de ciclista e agarrou numa Beretta com silênciador. Levantou o braço e disparou duas vezes. O primeiro tiro atingiu o policial no ombro, fazendo-o dar meia volta. O segundo acertou-lhe na nuca e o homem caiu sobre o rebordo do alcatrão.
Astrid estava à frente do Mercedes, os braços esticados e uma arma nas mãos. Olhou primeiro para o homem atrás do volante e depois para o manequim sentado onde estivera Elizabeth Osbourne. Estava lívida de raiva. Caíra num dos truques mais velhos que existia.
O motor foi ligado e o Mercedes meteu a primeira. Astrid disparou calmamente três vezes através do para-brisa. O vidro estilhaçou-se e ficou instantaneamente vermelho com sangue. O corpo caiu para a frente sobre a caixa de direção e a tarde encheu-se com o som da buzina do carro.
Michael mantinha uma vigília tensa no gabinete de Adrian Carter, a andar de um lado para o outro e a fumar cigarros. Carter dava tacadas em bolas de golfe para acalmar os nervos. Um dos factótuns de Monica Tyler esperava à porta do escritório de Carter, como se fosse um aluno de castigo. Michael fechou a porta para poderem conversar.
- Porque é que nunca tive autorização para ver o arquivo sobre o Outubro? - Porque era restrito - explicou Carter num tom de voz inexpressivo, a cabeça curvada em concentração. Deu uma tacada na bola, mas falhou o alvo por quinze centímetros. - Merda - murmurou Carter. - Abusei.
Porque é que era restrito?
- Esta é uma agência de serviços secretos, Michael, não uma sala de leitura de Ciência Cristã. Durante o tempo em que o Outubro foi um agente ativo da KGB, provavelmente não houve necessidade de saberes da sua existência.
Carter deu outra tacada. Esta aterrou no sitio certo.
- Porque era mantida tão em segredo a informação sobre o Outubro? - quis saber Michael.
- Para proteger a identidade da fonte, creio eu. Regra geral, é esse o caso.
- Raios partam, ele matou a Sarah Randolph mesmo à minha frente. Por que é que alguém neste maldito lugar não me mostrou o arquivo e me ajudou a arrumar o assunto?
- Porque essa teria sido a coisa mais sensata a fazer. Mas a sensatez e o trabalho de espionagem raramente andam de mãos dadas. Certamente que, a esta altura, já aprendeste isso. - Como é que o conseguiste?
- Há uns dois anos tivemos provas de que o Outubro estava a trabalhar outra vez como freelance - explicou Carter. - O arquivo foi recuperado e posto novamente em circulação, mas de forma muito limitada. - Tiveste autorização para vê-lo? Carter aquiesceu.
- Raios partam, Adrian! Enquanto eu andava a tentar perceber o assassinato da Sarah com meias pistas e conjecturas, tu tinhas a resposta. Por que não me contaste?
Carter assumiu uma expressão que dizia que, por vezes, o trabalho de espionagem exigia mentir aos amigos.
- Estas são as regras pelas quais vivemos, Michael. Elas protegem as pessoas que arriscam a vida ao traírem o seu próprio país. Protegem pessoas como tu, que trabalham infiltradas no terreno.
Então por que é que quebraste as regras agora e me deste o arquivo do Outubro? - Porque, neste caso, as regras eram uma treta. Não faziam sentido. - Quem queria que o arquivo do Outubro permanecesse restrito? Carter agitou o polegar para o outro lado da porta e segredou:
- Monica Tyler.
Elizabeth finalmente telefonou e o painel de emergência fez a ligação para o gabinete de Carter.
- O que aconteceu? Está bem?
- Estou ótima - respondeu ela. - Fiz tudo o que me disse. Aquela mala funcionou na perfeição. Até se parecia um pouco com você. Agora estou no carro. Indo para onde me disse.
Osbourne sorriu com um alívio extremo.
- Graças a Deus - exclamou. - Já teve notícia do Max?
- Não, ainda não. Deve estar quase chegando.
A secretária de Carter espreitou pela porta e disse que havia outra chamada.
Carter atendeu-a numa extensão lá fora.
- Elizabeth, estou tão orgulhoso de você. Amo tanto você! - disse Osbourne.
- Eu também te amo, Michael. Este pesadelo já terminou?
- Ainda não, mas em breve vai terminar. Continua a dirigir. Vamos pensar em como e quando traremos você para cá.
- Te amo, Michael - repetiu ela e a ligação foi interrompida. Carter entrou no gabinete, o rosto pálido.
- O que se passa? - perguntou Michael.
- Max Lewis e um policial da Virgínia acabaram de ser mortos na George Washington Parkway.
Michael pousou o receptor com força.
WASHINGTON, D. C.
Delaroche atravessou Key Bridge e dirigiu-se de novo para Georgetown.
Percorreu rapidamente a M Street e virou para o acesso do Four Seasons Hotel. Esperou dentro do Rover enquanto Astrid foi ao quarto buscar as coisas deles. Isso deu-lhe um momento para reorganizar os pensamentos e planear o que fazer a seguir.
O mais fácil seria abortar: pedir uma extração e sair do país antes que fossem capturados. Delaroche estava confiante de que os tiros na alameda não tinham sido testemunhados por ninguém. As mortes tinham demorado segundos e, antes que outro carro passasse por ali, já se tinham vindo embora. No entanto, tentara matar Michael Osbourne uma vez e era evidente que este sabia que ele ali estava. O número que a esposa realizara com o boneco insuflável era prova disso. Agora seria muito difícil cumprir os termos do seu contrato: matar Osbourne. Contudo, Delaroche desejava continuar por duas razões. Uma era o dinheiro. Se não conseguisse matar Osbourne, perderia três quartos de um milhão de dólares. Delaroche queria viver os seus dias com Astrid livre de preocupações financeiras e de segurança. Para isso seria necessário muito dinheiro: dinheiro para comprar uma casa grande numa propriedade e sofisticados sistemas de segurança, dinheiro para subornar os oficiais da lei locais para conseguir permanecer escondido dos serviços de segurança do Ocidente. Também queria levar uma existência confortável. Vivera como um monge em Brélés durante anos, impossibilitado de gastar o dinheiro que tinha, com medo de atrair atenções.
Quando trabalhou para o KGB fora ainda pior. Arbatov obrigara-o a viver como um indigente em Paris, sobrevivendo com o pouco dinheiro que ganhava com os seus quadros.
A segunda razão, na verdade o motivo importante, era o orgulho. Osbourne vencera-o no caminho ao longo do rio, derrotara Delaroche no seu próprio jogo. Nunca tinha falhado uma missão e não desejava terminar a sua carreira com um fracasso. Matar era a sua profissão, nascera e fora educado para tal, e o fracasso era inaceitável. Osbourne era o primeiro alvo a ripostar com sucesso e Delaroche atrapalhara-se. Reagira como um amador no primeiro trabalho. Sentia-se envergonhado e zangado consigo próprio, e queria outra oportunidade. Pensou no arquivo de Osbourne. Recordou-se de que o pai de Elizabeth Osbourne, um senador dos Estados Unidos, tinha uma casa numa ilha isolada em Nova York. Pensou: Se eu estivesse assustado, iria para um sítio onde me sentisse seguro. Para um sítio longínquo. Para onde as autoridades me pudessem proporcionar a ilusão de segurança. Sairia de Washington o mais depressa possível e iria para uma ilha isolada.
Astrid saiu do hotel. Assim que entrou no carro, Delaroche ligou o motor. Arrancou e estacionou por baixo de um viaduto ao longo da margem do rio.
Desligou o motor e ligou o computador portátil.
Percorreu os arquivos até encontrar o arquivo de Osbourne. Leu-o rapidamente e encontrou a localização da casa do senador. Sim, pensou. Até o nome era perfeito. Eles irão para lá, pois acreditam que é um local seguro. Saiu do arquivo e clicou na base de dados, onde armazenara mapas de estradas digitais de quase todos os países do planeta. Digitou o ponto de partida e o destino e o software depressa lhe forneceu um itinerário: a Beltway, 1-95, a Verrazano Bridge, a Long Island Expressway.
Voltou a ligar o motor do Range Rover e engrenou a primeira.
- Onde vamos, Jean-Paul? - perguntou Astrid. Ele tocou na telado portátil.
Astrid olhou e leu.
Shelter Island. Ilha, Abrigo.
Delaroche pegou no celular, marcou o número que lhe fora dado pelas pessoas que o tinham contratado e falou calmamente enquanto abandonava Washington. O helicóptero aterrou no aeroporto de Atlantic City. Elizabeth apanhara a 1-95 para norte e depois dirigira-se para a costa de Jersey. Os oficiais de segurança do aeroporto estavam à espera quando parou na zona de devolução da agência de aluguer de automóveis Hertz. Levaram-na sob proteção e fecharam-na durante dez minutos numa pequena sala de detenção dentro do terminal.
Quando os rotores do helicóptero pararam, Elizabeth foi levada numa van do aeroporto desde a sala de detenção até a pista. Chovia com intensidade. A última coisa que lhe apetecia fazer numa noite como aquela era voar de helicóptero. Mas queria ir para casa. Queria sentir-se segura. Queria cheirar os lençóis familiares, ver coisas estimadas da sua infância. Durante algum tempo, queria fingir que nada daquilo tinha acontecido.
A porta da van abriu e um golpe de chuva fria atingiu-a no rosto. Saiu e dirigiu-se ao helicóptero. A porta abriu a ali estava Michael. Correu para os seus braços e abraçou-o com força. Beijou-o e disse:
- Nunca mais te vou perder de vista.
Michael não disse nada, limitando-se a abraçá-la. Por fim, ela perguntou: - Onde está o Max? Algures num local seguro, espero. Michael abraçou-a com mais força. Elizabeth leu algo no seu silêncio e afastou-se, olhando para ele com os olhos muito abertos.
- Raios partam, Michael, responde-me! Onde está o Max? Mas ela sabia a resposta. Não foi preciso ouvi-la.
- Meu Deus, não! - gritou, batendo-lhe com os punhos no peito. - Outra vez não! Meu Deus, não! Outra vez não!
- Parece que o nosso homem arranjou uma bela confusão em Washington - disse o Diretor.
Não foi capaz de matar o Osbourne e no processo conseguiu matar um secretário e um policial da Virgínia - declarou Mitchell Elliott. - Talvez a sua reputação como o melhor assassino do mundo seja imerecida.
- O Osbourne é um adversário de grande valor. Sempre soubemos que seria difícil eliminá-lo.
- Onde está o nosso homem agora?
- Rumo a norte. Acredita que Osbourne e a esposa irão procurar segurança na casa do Senador Cannon, em Shelter Island.
- Bem, tem razão.
- A sua fonte em Langley confirma isto?
- Sim.
- Muito bem. - Então toda esta história lamentável depressa chegará ao fim. O Outubro irá terminar o que começou. Tenho uma equipe de extração a postos. Quando ele acabar, irá contatar-me e eu tiro-o de lá. - O Outubro tinha outro alvo em Washington.
- Sim, eu sei, mas agora ele não será capaz de realizar essa tarefa. Se deseja que esse alvo seja eliminado, creio que teremos de contratar outra pessoa para o trabalho.
- Acho que seria sensato. Não gosto de pontas soltas.
- Concordo plenamente.
- E o Outubro?
- Alguns minutos após a sua extração, o Outubro será morto. Sabe, senhor
Elliott, eu gosto menos de pontas soltas do que o senhor.
- Muito bem, Diretor. - Boa noite, senhor Elliott.
Mitchell Elliott desligou o telefone e sorriu para Monica Tyler. Ela levou a bebida para a cama e deitou-se ao lado dele.
- Amanhã de manhã estará tudo terminado - disse ele. O Osbourne terá desaparecido e tu serás mais rica do que alguma vez imaginaste.
Monica beijou-o.
Serei rica, Mitchell, mas será que estarei viva para desfrutar dessa riqueza? Elliott apagou a luz.
- Ainda bem que o meu pai não está cá para ver isto - disse Elizabeth, enquanto o helicóptero pousava no relvado de Cannon point. - Quando cá está, gosta sempre de agir como se fosse um dos ilhéus. A última coisa que faria seria deixar que um helicóptero aterrasse no relvado.
- Estamos em pleno Inverno - respondeu Michael. - Ninguém vai saber.
Elizabeth olhou-o, incrédula.
- Michael, de cada vez que alguém atropela um veado nesta ilha, o acontecimento é publicado no jornal local. Acredita, as pessoas vão ficar a saber.
- Eu trato do jornal - indicou Adrian Carter.
Os rotores do helicóptero pararam de girar. A porta abriu e os três saíram. Charlie saiu da casa do caseiro, de lanterna na mão, os retrievers aos saltos à volta dos tornozelos. O vento marítimo açoitava com violência as árvores nuas. Uma águia-pesqueira guinchou e voou por cima das suas cabeças. A cinquenta metros da costa, o Athena agarrava-se às amarras nas águas da baía sacudidas pelo vento.
- Onde está o senador? - perguntou Carter enquanto percorriam a pé o acesso de cascalho em direção à casa principal.
- Em Londres - respondeu Michael. - Está a participar num painel de discussão sobre a Irlanda do Norte na London School of Economics.
- Ótimo. Menos uma pessoa com quem nos preocuparmos.
- Não quero transformar este sítio num campo militar - disse Elizabeth. - Não tenciono fazê-lo. Vou colocar dois agentes de segurança no relvado durante toda a noite. De manhã serão rendidos por outros dois da Estação de Nova York. A polícia de Shelter Island concordou em vigiar os ferries de norte e de sul. Têm uma boa descrição de Outubro e de Astrid Vogel. Foi-lhes dito que eram procurados por se encontrarem ligados ao assassinato de duas pessoas na Virgínia, mas nada mais que isso.
Vamos manter as coisas assim - afirmou Elizabeth. - A última coisa que quero é que as pessoas de Shelter Island pensem que trouxemos para cá terroristas.
- A verdade não virá ao de cima - garantiu Carter. - Entrem e vão dormir. Liga-me para Langley de manhã, Michael. E não te preocupes, a esta hora já o Outubro está bem longe.
Carter apertou a mão de Michael e beijou a face de Elizabeth.
- Lamento muito o que aconteceu ao Max - disse. - Quem me dera que pudéssemos ter feito alguma coisa.
- Eu sei, Adrian.
Elizabeth deu meia volta e começou a andar em direção à casa. Carter olhou para Michael.
- Existem armas aqui? - perguntou
Michael abanou a cabeça. - O Cannon detesta armas.
Carter estendeu a Michael uma Browning automática de alta potência e meia dúzia de carregadores de quinze munições. Depois virou-se e entrou no helicóptero. Trinta segundos depois, este levantou de Cannon Point, virou e desapareceu sobre a baía.
- O Carter deu-te uma arma, não deu? - perguntou Elizabeth quando Michael entrou no quarto. Estava de pé em frente a um grande guarda-roupa escolhendo um pijama de flanela. O quarto estava escuro, salvo por um pequeno abajur de leitura na cabeceira. Michael mostrou-lhe a Browning. Enfiou um carregador na coronha e acionou a trava de segurança.
- Meu Deus, detesto esse som - disse ela, despindo-se. Vestiu a camisa de noite e deitou-se na cama. Michael estava de pé, junto à janela, a fumar um cigarro e a observar a baía. A chuva batia contra o vidro. Um dos seguranças inspecionava com uma lanterna a divisória ao longo do pontão.
Elizabeth colocou as mãos no baixo-ventre. Interrogou-se se os bebês estariam bem. Pensou: Ouve bem, Elizabeth. Já lhes estás a chamar bebês quando eles não passam de um aglomerado de células. O médico dissera-lhe para levar as coisas com calma, para descansar. Não fizera nada disso. Passara o dia a fugir de um par de terroristas, a conduzir durante horas e a voar de helicóptero no meio de uma tempestade terrível. Pressionou as mãos com mais força contra o abdômen e pensou: Por favor, meu Deus, faz com que eles estejam bem.
Olhou para Michael, direito como uma sentinela junto à janela.
- Sabes, Michael, acho que tu queres mesmo que ele tente de novo.
- Depois do que ele fez ao Max...
- Ele também tentou te matar hoje, Michael.
- Acredite, não me esqueci.
- E Sarah? - perguntou ela.
Michael permaneceu em silêncio.
- É saudável desejar vingança, Michael. Mas tentar conseguir vingança é uma coisa completamente diferente. E algo perigoso. As pessoas podem se ferir. Neste caso, elas podem morrer. Para bem de todos nós, espero que ele esteja longe daqui.
- Não faz parte do seu temperamento. Não faz parte do seu treino.
- O quê?
- Desistir. Fugir. Li o arquivo sobre ele. Provavelmente sei mais sobre ele do que ele sabe sobre si próprio.
- Acha que ele está por aí, Michael?
- Eu sei que está. Só não sei onde.
NORTH HAVEN, LONG ISLAND
Delaroche saiu do Range Rover e fitou a outra margem do canal estreito em direção a Shelter Island. Era quase meia-noite. A viagem a partir de Washington demorara oito horas, pois Delaroche cumprira meticulosamente o limite de velocidade durante todo o caminho. Ergueu a gola do casaco para se proteger da chuva fria e batida pelo vento. Um ferry sulcou as águas na sua direção, dois carros no convés, vencendo a forte corrente que atravessava Shelter Island Sound em direção às águas abertas de Gardiners Bay. Junto ao pequeno gabinete ao ferry via-se um veículo castanho-claro de tração às quatro rodas com marcas da polícia. Era possível que o agente estivesse apenas a fazer rondas, ou tivesse parado para uma chávena de café. No entanto, Delaroche duvidava que fosse esse o caso. Desconfiava que a polícia vigiasse o ferry por Michael e Elizabeth Osbourne se encontrarem na ilha.
Regressou ao Range Rover, entrou e afastou-se do cais ao ferry. Por duas vezes teve de guinar para evitar pequenas manadas de veados de cauda branca. Virou para uma pequena estrada de terra batida e cascalho que conduzia a um conjunto de árvores. Aí, escondido, pôs os óculos de leitura e desdobrou um mapa de estradas de larga escala de Long Island que comprara pelo caminho num posto de gasolina. Astrid espreitou por cima do seu ombro. North Haven era um pequeno pedaço de terra que se projetava por Shelter Island Sound adentro. A sudeste encontrava-se o histórico porto baleeiro de Sag Harbor.
- A polícia está a vigiar os cais dos Ferrys - explicou Delaroche. .- Isso significa que provavelmente os Osbourne estão na ilha. O Ferry Sul fecha à uma da manhã. Os polícias irão para casa, pois vão chegar à conclusão de que não tentamos fazer a travessia.
- Se os ferries fecham, como é que vamos para a ilha? Delaroche apontou para Sag Harbor no mapa.
- Há barcos no porto e nas docas. Podemos roubar um e fazer a travessia depois dos ferries fecharem.
- O tempo está terrível! - exclamou Astrid. - Não é seguro andar de barco numa noite como esta.
- Não está assim tão mau - contrapôs Delaroche, retirando os óculos e voltando a guardá-los no bolso. - Em Brélés esta seria considerada uma bela noite para pescar.
Delaroche entrou em Sag Harbor e estacionou junto à marina. Saiu do Range Rover, deixando Astrid para trás. A cidade estava silenciosa, as lojas e os restaurantes ao longo da margem fechados. Passados cinco minutos, Delaroche encontrou aquilo que procurava: um navio-baleeiro de oito metros com um grande motor Johnson fora de borda. Voltou rapidamente ao Range Rover e reuniu as coisas de que precisava: os celulares, as Berettas, a roupa à prova de água. Trancou as portas e enfiou as chaves no bolso.
Caminharam ao longo da marina e de uma doca de madeira, escorregadia devido à chuva. Delaroche entrou para o navio e ajudou Astrid a subir para o convés. Havia uma ponte e bancos da popa à proa. Delaroche enfiou uma gazua na ignição e pôs o motor a funcionar.
Saltou para a doca e soltou as amarras, depois voltou a saltar para dentro do barco e saiu de marcha à ré. Avançou lentamente através do porto, o barco a vibrar sob os seus pés. Vinte minutos mais tarde, entravam nas águas de Gardiners Bay.
Cinco minutos após iniciarem a travessia, Delaroche receou que Astrid estivesse certa. Na baía, o vento era feroz, soprando de noroeste a sessenta e cinco quilômetros por hora, com rajadas mais fortes. A temperatura era de quatro graus, mas a chuva e o vento faziam com que parecesse estar muito mais frio. A cabine do navio era aberta e, no espaço de minutos, Delaroche e Astrid estavam encharcados. As mãos de Delaroche estavam geladas ao leme, apesar das luvas. Astrid agarrou-se ao braço dele e enterrou o rosto no seu ombro para se proteger da chuva. A noite estava escura como breu, sem lua, sem luz das estrelas, nada por onde navegar. Delaroche manteve as luzes apagadas para evitar ser localizado a partir de terra. Ondas de um metro a um metro e meio fustigavam o navio a bombordo, sacudindo o pequeno barco.
Delaroche aproximou-se até se encontrar a duzentos metros da costa e seguiu para norte. As águas acalmaram-se ligeiramente. A bombordo, podia distinguir os contornos muito tênues de árvores e de terra. Pelos mapas que tinha, Delaroche sabia que era Mashomack Preserve, uma reserva natural gigantesca.
Continuou em direção a norte, passando por Sachem's Neck e Gibson's Beach. Quase encalhou em Nichols Point, por isso corrigiu a rota em alguns graus e afastou-se mais da costa. Passados alguns minutos, avistou Reel Point, um fino dedo de terra na entrada de Coecles Harbor. Sabia que estava a aproximar-se. Contornaram Ram Head e dirigiram o navio para noroeste, em direção a Cornelius Point. A mudança de rumo colocou-os diretamente no caminho do vento. Abrandaram a velocidade, avançando muito devagar à medida que as ondas iam ficando cada vez maiores. O navio-baleeiro elevava-se em direção ao céu de cada vez que uma onda passava por debaixo do casco. Em seguida, a proa caía violentamente no intervalo entre as duas ondas e a água do mar açoitava os bancos. De uma vez Astrid desequilibrou-se e caiu para a frente, para cima do painel de instrumentos. Voltou a pôr-se de pé, com sangue na testa.
A partir de bombordo, Delaroche conseguia distinguir Cornelius Point: um promontório rochoso, a vaga silhueta de uma grande casa de Verão. Contornou o cabo e virou alguns graus para bombordo. De estibordo, podia ver as luzes de Greenport, indistintas devido à névoa marítima e à chuva. Alguns momentos mais tarde, passou por Hay Beach Point. Delaroche virou para sudoeste e avançou ao longo de Hay Beach durante cerca de um quarto de milha. Depois virou bruscamente para bombordo e reduziu a potência, dirigindo-se para a linha da costa.
Cannon Point encontrava-se cerca de cem metros mais abaixo. Delaroche sabia que podia aproximar-se da costa num silêncio virtual, pois os ventos fortes levariam todos os sons na direção oposta. Desligou o motor e ergueu a hélice. Alguns segundos mais tarde, o barco encalhou num baixio a alguns metros da praia.
Delaroche saltou para a água gelada que lhe dava pelos joelhos e patinhou para terra. Arregaçou a manga do casaco e olhou para o mostrador luminoso do relógio. Eram apenas duas horas. O navio fizera a viagem de Sag Harbor em cerca de noventa minutos mas, enquanto atava a bolina à pernada de uma árvore caída, Delaroche sentia-se como se tivesse estado atrás do leme a combater o mar durante metade da noite. Regressou ao navio, pegou na mochila e ajudou Astrid a descer para a água. Na praia, abriu a mochila, retirou do seu interior as Berettas com silenciador e entregou-lhe uma.
A chuva fustigava-os enquanto Delaroche procurava orientar-se. A praia conduzia diretamente a Cannon Point. Era rochosa e estreita, apenas com alguns metros de largura em certas zonas. Para lá da marca de maré-alta agigantava-se uma falésia íngreme, com cerca de seis metros de altura, repleta de um emaranhado de arbustos e erva.
Delaroche puxou a culatra da Beretta, introduzindo a primeira bala na câmara. Astrid fez a mesma coisa. Em seguida, pegou-lhe na mão e conduziu-a pela praia, em direção à casa.
Matt Cooper e Scott Jacobs tinham ambos trabalhado na segurança da CIA durante quase vinte anos. O seu sedan do governo encontrava-se estacionado mesmo junto ao portão, do lado de dentro do complexo em Shore Road. Faziam turnos para percorrer o perímetro dos terrenos a cada meia hora. Matt Cooper estava encarregue da ronda das duas da manhã.
Delaroche e Astrid deitaram-se na falésia olhando de cima para a água, escondidos atrás dos arbustos espessos e espinhosos. Delaroche assimilou a disposição do complexo: a grande casa principal perto da água, dois anexos para convidados, uma garagem separada para três carros. Viam-se luzes no interior da casa principal e num dos anexos. Delaroche partiu do princípio de que os Osbourne estavam dentro da casa principal e que o agente de segurança ou um caseiro estava no anexo. Analisou a disposição dos terrenos: um relvado plano e bem cuidado salpicado de árvores altas, um acesso de cascalho que ia dos edifícios até o portão de entrada. Mesmo junto a este, Delaroche avistou os contornos de um sedan.
O agente de segurança apareceu alguns minutos depois. Trazia na mão direita uma lanterna poderosa, movimentando-a de um lado para o outro enquanto andava. Quando o homem se aproximou do sitio onde estavam, Delaroche pegou com firmeza no antebraço de Astrid e levou um dedo aos lábios. A mulher aquiesceu. Um raio de luz brilhou sobre as suas cabeças, e depois incidiu sobre o tabique e a praia lá em baixo.
Delaroche pôs-se de pé de repente, fazendo os arbustos restolhar. O raio de luz moveu-se freneticamente durante vários segundos antes de se deter sobre ele. A Beretta estava sacada e apontada. Utilizando a luz como alvo, Delaroche fez pontaria quatro ou cinco centímetros mais à direita a fim de compensar o fato de o homem segurar a lanterna na mão direita.
Disparou rapidamente três vezes.
O segurança caiu sobre a relva encharcada.
Delaroche deslizou para a frente e ajoelhou-se ao lado do homem caído. Os disparos tinham-no atingido no peito. Delaroche baixou-se, tentou sentir a pulsação no pescoço e não encontrou nenhuma. Fez sinal a Astrid para que se lhe juntasse. Caminharam ao longo da orla oriental da propriedade, mantendo-se junto às árvores, até se encontrarem a cerca de trinta metros do portão principal e do carro da segurança. Delaroche viu o segundo homem dentro do carro, sentado ao volante, a água da chuva a escorrer pelos vidros das janelas. Decerto que o homem pouco ou nada conseguia ver. Seria uma morte fácil. O desafio seria matá-lo de uma forma silenciosa. Atravessou o relvado, passando por trás do carro, e aproximou-se por trás, do lado do passageiro.
Cooper estava a demorar-se muito a dar sinal. Por norma, cada um dos homens transmitia via rádio atualizações contínuas do seu progresso. Cooper estabelecera contato a partir do anexo ocidental para convidados e das traseiras da casa principal, mas Jacobs ainda não tivera notícias dele desde que começara a dirigir-se para o tabique e a praia.
Jacobs pegou no rádio e tentou chamar Cooper, mas não obteve qualquer resposta. Estava prestes a sair e ir à procura dele quando ouviu a porta do passageiro abrir. Virou-se e disse: - Que diabo aconteceu?
Depois olhou para o rosto: cabelo cortado rente, pele muito pálida, duas orelhas furadas. Jacobs nem sequer tentou pegar a arma, dizendo apenas baixinho:
- Oh, valha-me Deus.
Delaroche ergueu a Beretta e alvejou-o no rosto três vezes. Em seguida, esticou-se sobre o banco e retirou o rádio da mão do homem morto.
Astrid permaneceu junto às árvores. Delaroche saiu do carro e fechou a porta com suavidade. Voltaram para trás pelo mesmo caminho, ao longo da fronteira oriental da propriedade, mantendo-se mais uma vez sob o refúgio das árvores. Delaroche ejetou o carregador meio gasto e inseriu um cheio.
Havia duas entradas para a casa principal, uma porta de entrada que dava para o acesso de cascalho e um alpendre envidraçado que dava para a água. Delaroche tencionava utilizar a entrada das traseiras.
As árvores curvaram-se sob uma rajada de vento marítimo. Delaroche aproveitou o ruído impetuoso para cobrir o som da sua aproximação. Pegou na mão de Astrid e correu pelos campos traiçoeiros por entre as árvores.
Passaram por trás do anexo, onde se via um abajur aceso. Delaroche pensou em entrar e matar os ocupantes, mas não tinha avistado quaisquer movimentos por ali, não existiam sinais de alguém ter dado pela sua presença, por isso passou por trás do anexo e começou a atravessar o relvado das traseiras.
Um cão ladrou, depois outro. Virou-se e viu um par de golden retrievers enormes a correr na direção deles. Introduziu a primeira bala na câmara da Beretta e fez pontaria aos cães.
Os cães acordaram Michael. Os seus olhos abriram-se e, num ápice, estava alerta. Ouviu o primeiro cão, depois o segundo. Em seguida, ambos ficaram silenciosos. Sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Sobre a mesinha-de-cabeceira estavam a Browning automática, um rádio portátil e um telefone de linha múltipla. Pegou no rádio. - Fala Osbourne. Está alguém aí? Elizabeth mexeu-se.
- Fala Osbourne. Está alguém aí? Ouvi os cães a ladrarem. O rádio crepitou e uma voz respondeu:
- Os cães estão bem. Não há problema. ' Osbourne pousou o rádio, pegou no telefone e marcou o número da casa do caseiro. Deixou o telefone tocar cinco vezes antes de voltar a pousar o receptor com força. Elizabeth sentou-se na cama.
Osbourne marcou rapidamente um número especial de emergência para Langley. Atendeu uma voz calma.
- Fala Osbourne. O agente de segurança em Shelter Island não está na linha. Telefone à polícia local e envie homens para cá! Rápido!
Desligou o telefone.
- Michael, o que se passa? - perguntou Elizabeth.
- Ele está aqui - respondeu Osbourne. - Matou a equipe de segurança e tem o rádio deles. Acabei de falar com o filho da mãe. Veste umas roupas quentes. Despacha-te, Elizabeth.
Charlie Gibbons era o caseiro de Cannon Point há vinte anos. Nascera e crescera em Shelter Island e os seus antepassados eram pescadores de baleias que, três séculos antes, partiam de Greenport. Vivia apenas a cento e quarenta quilômetros de Nova York, mas só lá estivera uma vez.
Charlie ouviu o telefone a tocar na sua casa ao atravessar o relvado de roupão, espingarda numa mão e lanterna na outra. Avistou os cães um instante depois e correu desajeitadamente na sua direção. Ajoelhou-se ao lado do primeiro e viu que o pelo amarelo estava ensopado em sangue. Virou a luz da lanterna para o segundo e viu que se encontrava nas mesmas condições. Pôs-se de pé e apontou a lanterna ao tabique. Movimentou o raio de luz de um lado para o outro durante alguns segundos e avistou algo azul vivo. Os seguranças traziam vestidos impermeáveis azuis. Correu em direção ao corpo caído no chão e ajoelhou-se a seu lado. Era o homem que se chamava Matt Cooper e era evidente que estava morto.
Tinha de acordar Mike e Elizabeth. Tinha de telefonar para a polícia de Shelter Island. Tinha de ir buscar ajuda rapidamente. Pôs-se de pé e virou-se para correr de regresso a casa. Uma mulher alta e loura surgiu de trás de uma árvore, uma arma nas mãos esticadas. Viu o clarão na boca da arma mas não ouviu qualquer som. As balas rasgaram-lhe o peito.
Sentiu uma dor excruciante e viu o fulgor de uma luz branca e brilhante. Depois, a escuridão.
MCLEAN, VIRGÍNIA
- A equipe de segurança está fora de combate - disse o agente de serviço. - Osbourne acredita que o Outubro está no terreno.
Adrian Carter sentou-se na cama.
- Raios me partam!
- Já alertamos a polícia local e está outra equipe a caminho.
- É melhor que se despachem.
- Sim, senhor.
- Estou na sede daqui a cinco minutos. - Sim, senhor.
- Agora ligue-me à Monica Tyler. - Aguarde um momento, senhor.
Michael dormira vestido. Elizabeth enfiou calças de corrida de algodão cinza e uma blusa de lã bege. Michael calçou-se e foi buscar a Browning, o rádio e o celular, bem como o controle do sistema de segurança da casa. O sistema encontrava-se ativado. O alarme far-se-ia ouvir se Outubro tentasse entrar em casa. Surgiria um número no monitor digital do controle, mostrando qual a porta ou -janela pela qual o intruso entrara. Se Outubro tentasse forçar a entrada, Michael saberia instantaneamente onde ele estava. Michael apagou as luzes do quarto e conduziu Elizabeth para o corredor às escuras. Desceram as escadas até o hall de entrada. Ali havia outro abajur aceso. Michael desligou-o rapidamente.
As escadas para a cave eram logo a seguir à cozinha enorme. Michael pegou no braço de Elizabeth e conduziu-a através da escuridão. Abriu a porta que dava acesso às escadas e levou-a até a cave.
Delaroche e Astrid agacharam-se junto à porta do alpendre envidraçado. Delaroche enfiou uma faca no trinco básico e, passados alguns segundos, este cedeu. Atravessaram cuidadosamente a varanda, contornando mobília de palhinha almofadada e mesas baixas, até chegarem a umas portas de correr, em vidro. Experimentou a fechadura. Estava trancada. Agachou-se e manejou a gazua no buraco da fechadura. O mecanismo estalou. Delaroche empurrou as portas para trás e entraram.
Na verdade, a casa possuía três entradas: a porta da frente principal, o alpendre das traseiras e uma pequena porta para a cave no lado norte da casa, escondida atrás de um lance de escadas em vão. Michael e Elizabeth avançaram pelas divisões da cave até chegarem à porta.
O alarme soou na sua mão. Michael rapidamente o silenciou e reiniciou. Outubro entrara na casa através das portas de correr, junto à sala de estar. Segundos mais tarde, o alarme voltou a soar, e depois uma terceira vez. Dois detectores de movimento tinham sido ativados, um na casa de jantar e outro na sala de estar. Os detectores encontravam-se a vários metros de distância. A menos que Outubro se estivesse a movimentar pela casa muito depressa, era improvável que tivesse feito disparar os dois. A casa estava às escuras e não lhe era familiar. Michael partiu do princípio de que Astrid Vogel também ali estava. Virou-se para Elizabeth.
- Vai para a casa de hóspedes e espera aí até que chegue a polícia - indicou.
- Michael, não quero deixar-te...
- Vai, Elizabeth - ordenou Michael. - Se queres viver, faz o que te digo.
Elizabeth assentiu.
- A polícia chega daqui a alguns minutos. Quando chegar, corre para perto deles. É a mim que ele quer, não a você. Compreende?
Anuiu.
- Ótimo - disse Michael.
Digitou o código de desativação e abriu a porta. Elizabeth beijou-lhe a face e começou a subir as escadas. No alto, parou e olhou em todas as direções. A noite estava escura como breu, mal se conseguindo distinguir o contorno tênue da casa de hóspedes com vista para o mar.
Correu pelo relvado, a chuva batida pelo vento a fustigar-lhe o rosto, até chegar à porta da casa. Abriu a porta, entrou, depois virou-se e olhou para Michael uma última vez.
A porta da cave fechou-se e ele desapareceu. Elizabeth fechou a porta atrás de si e trancou-a, deixando as luzes apagadas. Depois foi até a janela e olhou na direção do portão principal.
Foi Astrid Vogel, de pé no meio da sala de estar, quem vislumbrou algo a mover-se pelo relvado em direção à casa de hóspedes: uma blusa de cor clara, uma mulher, a julgar pelas passadas ligeiramente desajeitadas. - Jean-Paul - sussurrou, apontando para o relvado. - A mulher.
- Apanha-a - segredou Delaroche. Depois pousou uma mão sobre o braço dela e disse: - Viva, Astrid. Morta não nos vale de nada. E despacha-te. Não temos muito tempo.
Astrid esgueirou-se pelas portas de correr, atravessou o alpendre e começou a percorrer o relvado.
Michael reativou o sistema de alarme. Encontrou uma lanterna recarregável ligada a uma tomada, uma das muitas posicionadas por toda a casa devido às frequentes falhas de energia da ilha. Michael acendeu a lanterna e apontou o feixe para as paredes, movendo-o para a frente e para trás, até encontrar o quadro elétrico. Abriu-o e iluminou-o. O interruptor principal era o maior. Puxou-o para baixo e cortou a luz na casa inteira. O sistema de alarme funcionava a pilhas, por isso permaneceria funcional. Pôs o alarme em modo silencioso.
Seguiu o raio de luz escadas acima e regressou à cozinha. Na parede, ao lado do telefone, ficava uma caixa de intercomunicação para o portão principal. O intercomunicador funcionava com o sistema telefônico e o portão possuía uma fonte de eletricidade autônoma. Carregou num botão e foi rapidamente para junto de uma janela da sala com vista para o relvado. Lá fora, no topo da propriedade, viu o portão de metal a correr, abrindo-se.
A casa de hóspedes parecia um frigorífico. Elizabeth não se recordava da última vez que alguém ali estivera. O termostato estava regulado no nível mais baixo, para evitar que os canos rebentassem devido ao gelo. O vento açoitava o telhado de ripas e batia de encontro às janelas que davam para Shelter Island Sound. Algo raspou no lado da casa. Elizabeth soltou um pequeno grito e depois percebeu que se tratava apenas do velho carvalho que trepara inúmeras vezes em criança. Não era a casa dos hóspedes. No léxico da família Cannon, era conhecida como a casa de Elizabeth. A casa era confortável e estava modestamente mobilada. O chão era feito de madeira clara e, na sala de estar, mobiliário rústico encontrava-se disposto em redor da grande janela com vista para o porto. A cozinha era minúscula, apenas um pequeno frigorífico e um fogão com dois bicos, e o quarto era simples. Quando era pequena, a casa era dela. Se a casa principal se encontrava repleta com o pessoal do pai, ou com alguma delegação de um país estranho, Elizabeth ia para ali, a fim de se esconder entre os seus haveres. Adorava a casa, cuidava dela, passava nela noites de Verão. Fumou o primeiro charro na casa de banho e perdeu a virgindade no quarto.
Pensou: Se eu pudesse escolher um sítio para morrer, seria aqui.
Soprou as mãos e apertou os braços em redor do corpo para se proteger do frio. Num gesto reflexo, tocou no baixo-ventre.
Mais uma vez, pensou: Será que os bebês estão bem? Meu Deus, faz com que estejam bem!
Foi até a janela e espreitou lá para fora. Uma mulher alta estava a correr em direção à casa, de arma na mão. Distinguiu suficientemente o rosto dela para perceber que era a mesma pessoa que a perseguira em Washington. Afastou-se da janela e quase tombou sobre uma poltrona.
É a mim que ele quer, não a você.
Soube que Michael estava mentindo. Iriam usá-la para chegar a Michael, mas também a matariam. Da mesma forma que tinham matado Max. Da mesma forma que tinham matado Susanna.
Ouviu o raspar de botas nos degraus de madeira que levavam à porta da frente. Ouviu o estalido metálico de Astrid Vogel a experimentar a maçaneta. Escutou um ruído surdo quando Astrid Vogel tentou derrubar a porta com um pontapé e invocou cada réstia do autocontrole que possuía para não gritar. Foi para o quarto e fechou a porta. Ouviu uma série de sons abafados, três ou quatro, não tinha a certeza, e o som de madeira a ser despedaçada: Astrid Vogel a disparar contra a fechadura. Outro pontapé e, desta vez, a porta abriu, indo bater com violência na parede adjacente.
E a mim que ele quer, não a ti.
E tu és um mentiroso, Michael Osbourne, pensou. Eram impiedosos e sádicos. Com eles não haveria qualquer hipótese de argumentação nem, por certo, de negociação.
Recuou até o canto, olhos postos na porta fechada. Meu Deus, quantas vezes tinha estado ali? Em lindas manhãs de Verão. Em tardes frias de Outono. Os livros nas prateleiras eram seus, bem como as roupas no armário. Até o tapete puído aos pés da cama. Pensou na tarde em que ela e a mãe o tinham comprado juntas, num leilão em Bridgehampton.
Pensou: Não posso deixá-la apanhar-me. Vão matar-nos aos dois.
Ouviu a mulher a atravessar a casa, o som das botas no soalho de madeira. Ouviu o vento nas árvores, o grito das gaivotas. Deu um passo em frente e fechou a porta com o gancho.
Esconde-te no armário, pensou. Talvez ela não procure aí.
Não sejas tonta, Elizabeth. Pensa! Depois ouviu a mulher chamá-la.
- Sei que está aqui, Sra. Osbourne. Não quero fazer-lhe mal. Apareça, vá lá.
A voz era baixa e estranhamente agradável, com um sotaque alemão. Não lhe dê ouvidos!
Abriu o armário e esgueirou-se lá para dentro. Deixou a porta entreaberta, pois não conseguia suportar a ideia de estar trancada naquele espaço escuro e minúsculo. Por fim, ouviu o silvo das sirenas, ao longe, trazido pelo vento. Imaginou onde estariam: Winthrop Road, Manhanset Road se viessem do meio da ilha. Fosse como fosse, Elizabeth sabia que estaria morta antes de eles chegarem. Afastou-se da porta. Algo afiado espetou-lhe a omoplata: uma flecha, pousada sobre a prateleira. Tateou ao longo da parede. Sabia que estava por ali algures, o arco que o pai lhe oferecera quando fizera doze anos. Estava pendurado num gancho na parede, ao lado de um velho conjunto de tacos de golfe.
A mulher tentou abrir a porta do quarto e descobriu que estava trancada.
Agora sabe que estou aqui dentro, pensou Elizabeth.
Foi invadida pelo pânico. Obrigou-se a respirar.
Bateu suavemente com as mãos ao longo da parede até tocar em algo frio e duro. Elizabeth pegou no arco. Tinha um metro e sessenta e cinco de comprimento, medida padrão. Estendeu o braço para cima e agarrou na flecha. A haste era de alumínio com penas. Pegou na flecha entre os primeiros dois dedos da mão direita e, com o polegar, a ranhura para o fio atrás das penas. Fizera aquilo vezes sem conta, por isso fazê-lo na escuridão não era problema, mesmo com mãos trémulas.
A mulher deu um pontapé na porta, mas o velho gancho não cedeu. Elizabeth fixou a flecha no fio e apertou a haste contra os dedos da mão esquerda, a qual agarrava o arco. Puxou a flecha para trás a meio caminho e depois respirou fundo. A corda do arco estava velha e quebradiça, podendo simplesmente estalar quando a esticasse à tensão necessária para disparar uma flecha. Por favor, pensou Elizabeth, dedilhando o fio. Preciso de mais um disparo seu.
Seria ela realmente capaz de fazer aquilo? Nunca matara um ser vivo, nunca sonhara em caçar. Fosse como fosse, o pai nem sequer quereria ouvir falar nisso. Certa vez apanhou um dos seus namorados a perseguir um veado com o arco e a flecha dela e baniu-o da casa durante o resto do Verão.
A mulher deu um pontapé na porta. O trinco partiu-se e a porta abriu. 360
O corpo de Elizabeth ficou rígido. Sentia-se como se fosse feita de pedra. Obrigou-se a respirar devagar. Fá-lo: pelo Michael, pensou. Fá-lo pelas crianças dentro de ti.
Puxou a flecha para trás e empurrou a porta com o pé. Viu Astrid Vogel, à porta, a arma nas duas mãos, perto do rosto. Astrid virou-se para o barulho repentino e fez pontaria com os braços esticados.
Elizabeth soltou a flecha.
A ponta da seta atingiu Astrid na base da garganta a atirou-a para trás, encostando-a à porta aberta. Elizabeth gritou. Os olhos de Astrid abriram-se muito e os lábios apartaram-se.
De alguma forma, conseguiu permanecer com a arma nas mãos. Ergueu-a e começou a disparar. O silênciador abafava os disparos, transformando-os num ruído surdo. Elizabeth saltou de novo para dentro do armário. Os disparos lascaram a porta, estilhaçaram a janela do quarto e arrancaram estuque das paredes. Ela caiu no chão e enrolou-se numa bola.
Depois parou. O quarto ficou em silêncio à exceção do vento e dos cliques de Astrid Vogel a tentar disparar uma arma vazia. Elizabeth pôs-se de pé, pegou noutra flecha e saiu do armário.
Astrid ejetara o cartucho gasto e remexia no bolso do casaco à procura de outro carregador. O sangue jorrava da ferida na garganta. Conseguiu retirar o carregador novo do bolso.
- Não, por favor, não faça isso - pediu Elizabeth. - Não me obrigue a voltar a fazer a mesma coisa.
Astrid olhou para ela e depois para a flecha na garganta. O carregador caiu-lhe das mãos. Respirou fundo duas vezes. O sangue gorgolejava-lhe na garganta.
Por fim, o seu olhar ficou inexpressivo.
Elizabeth caiu de joelhos e vomitou violentamente.
Michael, de volta à cave, podia ouvir os passos de Outubro no piso de cima, deslocando-se cuidadosamente por entre os móveis da sala de estar. Michael sabia que Outubro seria metódico e cuidadoso. Revistaria a casa, divisão a divisão, até encontrar o seu alvo. Para sobreviver, Michael teria, mais uma vez, de ser mais inteligente do que
Outubro, tal como o fora no caminho para peões, na Virgínia. Outubro encontrava-se em território desconhecido. Michael seria capaz de andar pela casa de olhos fechados. Utilizaria isso em seu proveito. Outubro saíra da sala de estar para a cozinha.
- Tenho a sua mulher, senhor Osbourne. Se aparecer agora, desarmado, com as mãos no ar, nada de mal lhe acontecerá. Se me obrigar a persegui-lo como a um animal, mato-a também.
Michael não respondeu, limitando-se a escutar o avanço de Outubro através do primeiro piso da casa. . Passado um instante, Outubro disse: >
- Também me lembro daquela noite em Londres, senhor Osbourne. Lembro-me do som dos seus gritos junto ao rio. Ela era uma mulher linda. Deve tê-la amado muito. Foi uma pena ter de morrer. Foi a primeira e única mulher que eu alguma vez matei, mas não hesitarei em matar a sua mulher, caso insista neste disparate. Entregue-se ou ela morrerá com você.
Michael sentiu a fúria crescer dentro de si. O simples fato de ouvir a voz daquele homem passados tantos anos enchia-o de horror. Tentou reprimir o que sentia, pois sabia que essa era exatamente a reação que Outubro estava a tentar instigar. Se perdesse a cabeça, se agisse com emoção em vez de inteligência, morreria. Também sabia que Outubro não tinha qualquer intenção de permitir que Elizabeth vivesse.
- Deve ter sofrido muito, ao perder a sua amante daquela maneira, abatida como um cão, mesmo à frente dos seus olhos - continuou Outubro. - Ouvi dizer que tiveram de o arrancar do campo e enviá-lo de volta à sede. Ouvi dizer que foi a sua desgraça. Imagine só como se irá sentir se eu matar outra das suas mulheres. Não desejará viver depois disso, garanto-lhe. Por isso entregue-se, senhor Osbourne. Facilite-nos a vida aos dois.
Michael ouviu um grito vindo da casa de hóspedes: um grito de Elizabeth.
Parece que as coisas estão ficando interessantes lá fora, senhor Osbourne. Pegue o telefone e ligue para a casa. Diga a sua mulher para se entregar e nada de mal lhe acontecerá. Tem minha palavra.
Michael atravessou a divisão e apertou o botão FALAR do intercomunicador.
Muito calmamente, disse: - Sua palavra nada significa para mim, Nicolai Mikhailovich.
- Do que é que me chamou? - gritou Outubro, após um momento de hesitação.
- Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro, ou as pessoas maravilhosas do KGB esconderam essa informação? Nicolai Mikhailovich Voronstov. Seu pai era o General Mikhail Voronstov, líder do Primeiro Direktorad do KGB. Era seu filho bastardo. Sua mãe era amante dele. Quando teve idade suficiente, seu pai entregou-o ao KGB para que ser educado. Sua mãe acabou num gulag. Quer que continue, Nicolai Mikhailovich?
Michael soltou o botão e esperou a reação de Outubro. Ouviu uma porta sendo aberta com um pontapé, um abajur de cerâmica despedaçando-se no chão, o ruído surdo de uma arma com silenciador sendo descarregada. Michael estava conseguindo perturbá-lo.
- Seu professor foi um homem que conhecia apenas como Vladimir. Tratava-o como a um pai. Na verdade, ele praticamente era seu pai. Com dezesseis anos, foi infiltrado no Ocidente através da Checoslováquia. Recebeu ordens para matar os seus acompanhantes. Um deles era uma mulher, o que faz de si um mentiroso, bem como um assassino. Ocultou-se no Ocidente. Dez anos mais tarde, já um homem, começou a matar. Posso nomear a maioria das suas vítimas se quiser, Nicolai Mikhailovich.
Michael ouviu uma janela a estilhaçar-se e mais balas a cravarem-se na parede. Ouviu um carregador vazio a cair no chão e um novo a ser colocado no sítio.
Depois ouviu sirenas ao longe e mais um grito vindo da casa de hóspedes.
Voltou a carregar no botão do intercomunicador.
- Quem o contratou? - perguntou. Mais disparos.
- Quem o contratou, raios? Responda!
- Não sei quem foi!
- Está mentindo. Toda a sua vida é uma mentira.
- Cale-se!
- Está encurralado aqui dentro. Nunca sairá desta ilha com vida.
- Você também não, nem sua mulher.
- Astrid já saiu daqui há muito tempo.
- O que será que está retardando?
- Telefone para a casa. Diga a sua mulher para se entregar.
Michael pousou o celular e pegou o receptor do telefone. Ouviu Outubro levantar uma extensão. O telefone tocou uma vez e Elizabeth atendeu, sem fôlego.
- Michael! Meu Deus, ela está morta. Eu a matei. Atingi-a com uma flecha. Michael, por Deus, não quero ficar aqui com ela. Oh, Michael, é horrível. Por favor, não quero ficar aqui com ela.
- Vai para o cais. Leva o barco a remo para o Alexandra. Espere até que a polícia chegue.
- Michael, o que é que...
- Faça o que digo. Vai para o Alexandra! Já!
Elizabeth desligou o telefone e dirigiu-se à janela. Conhecia Michael há mais de dez anos. Ele velejara naquele barco inúmeras vezes com o pai dela. Sabia que se chamava Athena e não Alexandra. Era possível que se tivesse enganado devido à pressão da situação, mas duvidava. Era intencional.
Havia um motivo. Ele queria que ela ficasse na casa, mas desejava que Outubro pensasse que estava indo para o barco.
Observou a casa principal pela janela. Ouvia as sirenes a aproximarem-se.
Queria sair dali. Queria um cigarro para disfarçar o cheiro do sangue de Astrid Vogel. Queria que aquele pesadelo acabasse. Segundos mais tarde, viu a porta de correr do alpendre abrir-se e o homem chamado Outubro correr pelo gramado em direção ao cais.
Delaroche precipitou-se para o meio das trevas. O vento açoitava as árvores e quase o levava pelo ar. O cais estendia-se adiante, avançando pela escuridão. A cinquenta metros da costa, o veleiro balançava nas amarras, o mastro oscilando como um pêndulo na crista espumosa das ondas, as adriças gritando ao vento.
A voz de Michael Osbourne, distante e metálica, soava na sua cabeça como as vozes nos alto-falantes de uma estação de trem.
Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro.
Raios me partam! pensou Delaroche. Como ele sabia?
O KGB prometera-lhe uma coisa: a sua existência no Ocidente seria tão secreta que apenas meia dúzia de pessoas da hierarquia saberia a verdade. Tão secreta que lhe fora permitido matar seus acompanhantes até o Ocidente naquela noite, na Áustria. Teriam mentido? Alguém o teria traído? Teria sido Vladimir? Ou Arbatov? Ou o traidor Drozdov? Teria Drozdov descoberto a verdade sepultada nos arquivos no Centro de Moscou e vendido aos seus novos senhores no Ocidente? Delaroche jurou matar Drozdov se chegasse a sair vivo de Shelter Island.
A revelação de que a CIA tinha um dossiê fez Delaroche sentir-se fisicamente doente. Também teriam uma fotografia? Normalmente era Delaroche que utilizava os dossiês, era Delaroche quem folheava as páginas negras da vida de um homem até descobrir a fraqueza que acabaria por se tornar na sua desgraça. Agora, Delaroche sabia que os seus inimigos tinham reunido um dossiê sobre a sua vida e Osbourne utilizara-o contra ele. Chamei-lhe Nicolai Mikhailovich.
De forma reflexa, as mortes passavam por sua mente. Tentou não pensar nelas, mas os rostos apareceram um por um, primeiro vibrantes e vivos, depois estropiados por três buracos de bala. Hassan Mahmoud, o rapaz palestino. Colin Yardley e Eric Stoltenberg. Sarah Randolph...
Podia ouvir os gritos de Michael Osbourne ecoando ao longo da Represa de Chelsea.
E seu nome verdadeiro.
Certas noites, Delaroche tinha um sonho e agora esse sonho desenrolava-se na sua imaginação. Os homens que ele matara iam confrontá-lo, armados com automáticas com silenciador, e ele tentava pegar na sua pistola Glock, ou na Beretta, e só encontrava pincéis. Depois tentava alcançar a sua arma de reserva e encontrava apenas uma paleta. "Sabemos quem és", diziam eles, começando a rir. Delaroche erguia as mãos e protegia o rosto e as balas despedaçavam-lhe a palma das mãos e penetravam-lhe nos olhos. Delaroche sentava-se na cama e dizia a si próprio que não passava de um sonho, era apenas um maldito e estúpido sonho.
Delaroche atravessou a correr o relvado em declive, os pés a voar sobre a relva molhada, até que o som dos seus passos sobre o cais de madeira desfez a imagem de pesadelo da sua própria morte. Ouviu o barco a bater contra os pilares do cais, mas o motor estava silencioso. Alguns segundos depois, chegou ao fim do pontão e olhou para baixo, a arma apontada para a escuridão.
O barco estava vazio.
- Largue a arma! - gritou Michael sobre o barulho do vento.
- Deite-se no cais, de barriga para baixo, e faça-o muito devagar.
Michael estava no início do cais, Outubro no fim, a quinze metros de distância. O braço esquerdo estava pendurado ao lado do corpo, o direito, dobrado pelo cotovelo, a arma perto do rosto. Permanecia imóvel. Pelo som das sirenes, a polícia encontrava-se agora em Shore Road. Chegaria numa questão de segundos.
- Largue a arma agora! - gritou Michael. - Acabou. Faça o que digo.
Outubro baixou o braço direito até este ficar hirto ao lado do corpo. A polícia chegou ao portão principal. Michael ouviu a porta da casa de hóspedes abrir-se. Virou-se na direção do som e avistou a blusa bege de Elizabeth, brilhando na escuridão.
- Fique onde está, Elizabeth - gritou!
Outubro agachou-se e deu meia volta. O braço ergueu-se. Michael disparou vários tiros com a Browning, mas todos eles voaram por cima da cabeça de Outubro. O assassino disparou três vezes através da escuridão. Um dos tiros atingiu o alvo, rasgando o lado direito do peito de Michael.
A Browning caiu-lhe da mão e retiniu ao longo da doca. Michael caiu de costas. Tinha o braço direito dormente e depois sentiu uma dor intensa e excruciante no peito.
A chuva batia-lhe no rosto. Os ramos das árvores contorciam-se sob o vento e, no seu delírio, Michael pensou que eram mãos gigantes rasgando seu corpo. Deslizou para a inconsciência.
Viu Sarah caminhando em sua direção na Represa de Chelsea, a saia comprida dançando sobre as botas de camurça. Viu o rosto desfeito. Ouviu a voz de Elizabeth, chamando-o de muito longe, incompreensível.
Por fim, ela atravessou a névoa do choque.
- Michael! Ele está vindo! Michael, por favor, meu Deus! Michael!
Michael levantou a cabeça e viu Outubro avançando lentamente na sua direção. A Browning estava no cais, a alguns centímetros de distância. Michael tentou alcançá-la com a mão direita, mas esta não obedecia à ordem para que se mexesse. Rolou para o lado direito e estendeu a mão esquerda. Sentiu o metal frio da Browning, a coronha escorregadia devido à chuva. Agarrou-a, colocou o dedo no gatilho e disparou.
Delaroche viu o clarão na boca da arma de Osbourne. Ergueu a Beretta quando a primeira série de disparos passaram por ele zumbindo, inofensivos, e fez pontaria ao corpo de Osbourne, deitado de barriga para baixo. Deu mais um passo. Queria atingi-lo no rosto. Queria vingar a morte de Astrid. Queria deixar sua marca.
Osbourne voltou a disparar. Desta vez, uma bala rasgou a mão direita de Delaroche, estilhaçando osso. A Beretta caiu-lhe da mão e mergulhou nas águas em turbilhão sob o cais. Olhou para baixo e viu fragmentos de osso saindo do golpe feio nas costas da mão.
Quis matar Osbourne com a mão boa, partir-lhe o pescoço ou apertar-lhe a garganta, mas Osbourne ainda tinha sua arma e a polícia entrava no terreno. Deu meia volta, correu velozmente pelo cais e saltou para o barco. Puxou o codão de arranque quatro vezes até que o pequeno motor pegou. Desatou a amarra e dirigiu o barco para longe do cais, em direção a Shelter Island Sound.
Cannon Point estava resplandecente de luzes. As sirenes enchiam o ar. Acima de tudo, Delaroche ouviu uma coisa: os gritos de Elizabeth Osbourne, implorando ao marido que não morresse.
LONDRES
- Osbourne vai sobreviver? - perguntou o Diretor, a partir da biblioteca da sua casa em St John's Wood.
- O estado dele estabilizou esta noite - respondeu Mitchell Elliott. - Sofreu outra hemorragia por volta do meio-dia, por isso os cirurgiões tiveram de entrar novamente em ação. Infelizmente, parece que vai sobreviver.
- Onde está ele?
- Oficialmente, a sua localização é secreta. A minha fonte em Langley confirma que o Osbourne está na unidade de cuidados intensivos no Stonybrook Hospital, em Long Island.
- Espero que compreenda que, neste momento, o Osbourne é intocável. Pelo menos por agora.
- Sim, eu sei, Diretor.
- Ele sobreviveu a dois atentados. Sob quaisquer circunstâncias haverá um terceiro.
- com certeza, Diretor.
- É um adversário digno de respeito, o nosso senhor Osbourne. Tenho de confessar que o admiro muito. Quem me dera que houvesse alguma forma de convencê-lo a trabalhar para mim.
- Ele é um Escoteiro, Diretor, e os Escoteiros não encaixam bem na sua organização.
- Acho que tem razão.
- Qual é o estado do Outubro? - perguntou Elliott.
- Receio que tenha tido uma recepção bem indelicada por parte da equipe de extração.
- E os adiantamentos que depositamos na conta dele, no banco suíço?
- Desapareceu tudo, creio. Parece que Outubro transferiu o dinheiro da conta tão rapidamente quanto entrou.
- É uma pena.
- Sim, mas claro que um homem da sua posição não está preocupado em perder uns trocados aqueles.
- Claro que não, Diretor.
- Ainda há um alvo do qual temos de tratar.
- Já coloquei tudo em andamento.
- Excelente. Mas faça-o com habilidade. Há muito em jogo.
- Será feito de forma muito habilidosa.
- Senhor Elliott, sei que não tenho de lembrar de que, a esta altura, o seu primeiro dever é o de proteger a Sociedade a todo o custo. Não deve fazer nada que coloque a Sociedade em risco, seja ele qual for. Sei que posso contar com o seu auxílio nessa questão.
- Claro, diretor.
- Muito bem. Foi um prazer negociar com você. Só espero que não tenha sido tudo em vão. Será necessária toda a sua notável maestria para garantir a sobrevivência do seu sistema de defesa antimíssil.
- Estou confiante de que esse objetivo pode ser alcançado.
- Ótimo. Boa noite, senhor Elliott.
- Boa noite, Diretor.
O Diretor pousou o receptor sobre o descanso.
- É um mentiroso fantástico - comentou Daphne.
Deixou o robe de seda cair-lhe dos ombros e deslizou para a cama, deitando-se ao lado dele.
- Receio que seja necessário, nesta linha de trabalho.
Beijou-o na boca e pressionou os seios contra o corpo dele. Depois fez deslizar as mãos até entre as pernas dele e agarrou-o.
- Alguma coisa, meu amor? - murmurou. Ele beijou-a e respondeu:
- Talvez se você se esforçar um pouco mais, minha flor.
WASHINGTON, D. C.
Paul Vandenberg estacionou em Ohio Drive, com vista para o Washington Channel, e desligou o motor. Viera sozinho, no seu carro privado, tal como Elliott pedira. O encontro deveria ter lugar às dez da noite, mas Elliott estava atrasado, o que era pouco típico da sua parte. Outro carro parou atrás de si, um veículo de tração às quatro rodas, grande e preto, as janelas opacas pulsando ao som de rap. Vandenberg ligou o carro e deixou-o parado enquanto esperava. O veículo de tração às quatro rodas partiu às dez e um quarto. Cinco minutos depois, um sedan preto parava ao seu lado e o vidro da porta traseira desceu.
Era Mark Calahan, o assistente pessoal de Mitchell Elliott.
- O senhor Elliott pede imensas desculpas, mas tem de haver uma mudança de local - informou Calahan. - Venha comigo e eu o levo ao carro quando o encontro terminar.
Vandenberg saiu do carro e entrou no banco traseiro do sedan preto. Andaram durante dez minutos: contornaram Hains Point, atravessaram a Memorial Bridge para a Virgínia e depois seguiram para o norte, ao longo da alameda. Calahan permaneceu sempre em silêncio. Era uma das regras de Elliott: nada de conversas de ocasião entre seu pessoal e os clientes. Por fim, o carro entrou num estacionamento com vista para a Roosevelt Island.
- O senhor Elliott está a sua espera na ilha, senhor - declarou Calahan educadamente. - Vou levá-lo até ele.
Os dois homens saíram do carro.
O motorista, Henry Rodriguez, ficou à espera ao volante. Dois minutos depois, Rodriguez ouviu o estouro de um único tiro.
Um corredor encontrou o corpo às 7h15 da manhã seguinte. Jazia ao lado de um banco de mármore no memorial a Theodore Roosevelt, o que os órgãos de comunicação social consideraram adequado, uma vez que Paul Vandenberg sempre admirara TR. A arma fora colocada na boca. Uma grande porção da parte de trás da cabeça de Vandenberg desaparecera. A bala estava cravada no tronco de uma árvore a dezoito metros de distância.
O bilhete de suicídio foi encontrado no bolso do peito do sobretudo de lã. Exibia as caraterísticas de todos os bons memorandos de Vandenberg: conciso, econômico, direto. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, pois sabia que o Washington Post preparava um relato devastador de suas atividades de angariação de fundos ao longo dos anos em proveito de James Beckwith. Vandenberg admitia a culpa. Beckwith e Mitchell Elliott não possuíam qualquer responsabilidade. Vandenberg planejara e executara tudo. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, porque era preferível morrer com um tiro do que com um procurador independente.
Um James Beckwith abalado apareceu na sala de imprensa da Casa Branca ao fim da tarde, a tempo dos noticiários da noite. Declarou sentir um choque e pesar profundos pela morte de seu assessor mais próximo. Em seguida anunciou que o Departamento de Justiça daria início de imediato a uma investigação minuciosa de todas as atividades de angariação de fundos de Vandenberg em prol de Beckwith. Abandonou a sala de imprensa sem responder a perguntas e passou uma noite sossegada com Anne nos aposentos da família da Casa Branca. Na manhã seguinte, o Post dedicava grande parte da primeira página ao suicídio aparente de Paul Vandenberg. A reportagem incluía longa explicação sobre a relação financeira entre James Beckwith e Mitchell Elliott. O artigo contestava a afirmação, patente no bilhete suicida de Vandenberg, de que ele, e só ele, fora o arquiteto da rede complexa de acordos financeiros que, ao longo dos anos, tinham enriquecido os Beckwith. Também implicava o advogado de Washington de Mitchell Elliott, Samuel Braxton, o candidato de Beckwith a secretário de Estado.
O artigo tinha autoria dupla: Tom Logan e Susanna Dayton, do Washington Post.
JANEIRO
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Algumas noites eram melhores do que outras. Em certas noites, Elizabeth assistia a tudo outra vez nos seus sonhos e acordava a gritar, esfregando as mãos para tentar tirar as manchas de sangue. Em certas noites, Michael acordava, tendo sonhado que Outubro lhe tinha dado três tiros no rosto, em vez de um no peito. A casa de hóspedes foi restaurada e repintada, mas Elizabeth nunca mais lá voltou. Por vezes, Michael sentava-se na ponta do cais e espreitava as águas em torvelinho. Por vezes, passava uma hora antes que despertasse do seu transe. Por vezes, Elizabeth observava-o do relvado e imaginava exatamente o que ele estava a pensar.
Sobre o que aconteceu a seguir, Michael só sabia o que lia nos jornais ou via na televisão mas, como qualquer membro dos serviços secretos, geralmente considerava as notícias dadas pelos órgãos de comunicação social como música de fundo irritante. Todas as manhãs, o novo caseiro ia até a drogaria em Shelter Island Heights buscar os jornais (The New York Times, The Wall Street Journal, Newsday) e deixava-os sobre a mesa-de-cabeceira de Michael. No dia de Ano Novo, Michael sentia-se forte o suficiente para fazer a viagem também. Sentou-se no banco do passageiro do seu Jaguar e, pela janela, fitou em silêncio a água e as árvores nuas de Inverno. O interesse esmoreceu à medida que Janeiro ia passando e, por altura do Dia da Inauguração, já deixara de ler completamente os jornais.
Beckwith suportou bem os tempos difíceis. O mérito foi atribuído à esposa, Anne. Esta tornara-se a conselheira mais importante do Presidente desde a morte de Paul Vandenberg. Foi capa da News week na edição da semana do Natal e, no interior, podia ler-se um artigo esplendoroso sobre a sua perspicácia política. Anne teria de desempenhar um papel fundamental a partir das sombras para que o segundo mandato de Beckwith fosse bem sucedido. Segundo os mexericos de Washington, foi Anne quem levou o Presidente a insistir numa reforma radical do financiamento das campanhas. Com o fervor dos recém-convertidos, Beckwith pediu a proibição de contribuições irregulares aos partidos (o "dinheiro fácil"), e pressionou as estações de televisão a dar aos candidatos tempo de antena gratuito. Por volta do Dia da Inauguração, a sua taxa de aprovação atingira os sessenta por cento.
Dois dos amigos e apoiantes mais chegados de Beckwith não se saíram tão bem. Samuel Braxton viu-se obrigado a recusar a nomeação para secretário de Estado. Negou ter cometido qualquer crime mas afirmou não querer enlear a política externa americana, envolvendo-se numa longa luta pelo reconhecimento, que iria causar cisões. De acordo com os órgãos de comunicação social, foi Anne quem tirou o tapete a Braxton.
A Alatron Defense Systems retirou-se voluntariamente do projeto nacional de defesa antimíssil depois de Andrew Sterling, o adversário derrotado de Beckwith e presidente do Comité das Forças Armadas do Senado, prometer levar a cabo "o equivalente congregacional a um exame rectal" a Mitchell Elliott. O contrato foi adjudicado a outro fabricante da Califórnia e Sterling deu o seu apoio relutante, garantindo que o sistema receberia financiamento e seria utilizado.
Dois dias antes da tomada de posse, o FBI e a US Park Police divulgaram os resultados da investigação sobre a morte do Chefe de Gabinete da Casa Branca, Paul Vandenberg. Os investigadores não encontraram qualquer prova que sugerisse que a sua morte não se ficara a dever ao suicídio. A investigação sobre os assassinatos de Max Lewis e do agente da polícia Dale Preston não resultou em detenções. A Polícia Metropolitana de Washington deu discretamente por encerradas as suas investigações sobre o assassínio de
Susanna Dayton. O caso permaneceu tecnicamente aberto.
Elizabeth passava longos fins-de-semana na ilha. Trabalhava três dias por semana a partir do gabinete de Nova York da Braxton, Allworth & Kettlemen, enquanto, pouco a pouco, resolvia os casos pendentes e sondava outras firmas. Graças ao seu currículo e às ligações políticas que mantinha, não lhe faltavam propostas. A venerável firma de Nova York, Titan, Webster & Leech foi quem lhe ofereceu mais dinheiro e, acima de tudo, maior flexibilidade. Aceitou a oferta e, nessa mesma tarde, enviou a Samuel Braxton, por fax, a sua carta de demissão.
Michael recuperou mais depressa do que o previsto pelos médicos. A neve caiu na primeira semana de Janeiro e o tempo ficou gelado. Contudo, na semana seguinte, o tempo aqueceu um pouco e os médicos mandaram-no sair de casa e dar pequenos passeios.
Nos primeiros dois dias, passeou cautelosamente por Cannon Point, o braço direito ao peito, pois a bala de Outubro esmagara-lhe a clavícula e fraturara-lhe a omoplata. No terceiro dia, caminhou ao vento em Shore Road, com um par de seguranças de Adrian Carter a segui-lo lentamente. No espaço de uma semana, de manhã ia até a aldeia a pé e regressava e, ao fim da tarde, percorria as longas praias rochosas de Ram Island.
À noite, escrevia na biblioteca de Douglas Cannon, com vista para Dering Harbor. Passados três dias, mostrou o primeiro esboço ao sogro. Cannon fez a revisão com um lápis vermelho, avivando a prosa formal e burocrática de Michael, aguçando a lógica dos argumentos e das conclusões. Quando terminou, enviou-a de imediato a Adrian Carter, em Langley.
- Não há nada que eu deteste mais do que Washington no Dia da Inauguração - disse Carter na noite seguinte. - Bem que precisava de um pouco de ar do mar e de um vinho dos Cannon. Importas-te que eu vá passar aí uns dias?
- Durante quanto tempo é que vou ter de aturar estes palhaços? - perguntou Michael na tarde seguinte, enquanto andava aos solavancos pelo sexto fainvay do Gardiners Bay Country Club, num carro de golfe. Dois agentes de segurança da CIA, com blusões de penas a condizer, vinham num carro atrás deles, resmungando para os rádios que traziam nas mãos. - Merda, falhei o buraco - disse Carter, parando o carro com um solavanco ao lado da bola e descendo. Retirou um ferro número nove do saco e preparou-se para uma tacada de 140 metros para o green.
- Vai responder minha pergunta? - quis saber Michael.
- Valha-me Deus, Michael, calma. Não quando estou preparando a tacada.
Carter deu a tacada. A bola caiu no bunker esquerdo.
- Raios me partam, Osbourne!
- Tenha calma, Tigre. O frio aqui fora é de três graus.
Carter subiu no carro e dirigiu-se ao green.
- Aqueles palhaços, como você os chama, estão aqui para proteger você e sua família, Michael, e vão ficar até eu ter certeza de que sua vida já não corre perigo.
- Neste momento a minha vida corre perigo porque estou dentro de um carro de golfe aberto em pleno inverno.
- Vou te levar em casa depois das nove e depois venho jogar sozinho.
- Você é doido.
- Devia se dedicar ao jogo.
- Já tenho frustração que chegue em minha vida. Consigo viver sem me autoflagelar. Além disso, terei sorte se algum dia puder levantar um copo de cerveja com este braço, quanto mais manejar um taco de golfe.
- Como vai Elizabeth?
- Tão bem quanto se pode esperar, Adrian. Matar alguém não é fácil, mesmo em legítima defesa. O fato de ter conseguido evitar que chegasse ao conhecimento público tornou as coisas mais fáceis para ela. Não consigo agradecer o suficiente a você.
- Ela é uma joia - afirmou Carter. - Sempre disse que você é o homem mais sortudo que eu conheço. - O chip de Carter passou ao lado do buraco, deixando-o com um putt de três metros. - Porra! - exclamou. - Está frio demais para jogar golfe. Vamos passar a tarde em frente à lareira tomando um porre.
- Leu? - perguntou Michael, enquanto Carter retirava a rolha de uma garrafa de merlot italiano e enchia dois copos.
- Sim, li. Das duas uma: ou jogava fora ou deixava seguir.
- Qual delas tomou?
- Escolhi o caminho dos covardes. Deixei seguir sem comentário.
- Você é um fracote.
- Chama-se subterfúgio burocrático. Salvar a pele.
- Salvar o couro.
- É a mesma coisa. Você podia aprender uma ou duas coisas comigo. Normalmente anda com o couro ao léu.
- Sou um homem de campo, Adrian. Os homens de campo são péssimos em trabalho burocrático. Você mesmo disse muitas vezes.
- É verdade.
- Então como é que ficou tão bom nesse tipo de trabalho?
- Porque queria uma vida e não podia ter uma se corresse de buraco em buraco, tentando me lembrar do meu nome falso da semana.
- A quem deu meu memorando?
- A Monica Tyler, claro.
- Deixe-me adivinhar: ela jogou fora.
- Num instantinho.
- Não esperava outra coisa.
- Então por que escreveu?
- Por achar que é verdade.
- Acredita mesmo que Mitchell Elliott, com a ajuda de um bando secreto de agentes vendidos, abateu aquele avião para poder construir o seu sistema de defesa antimíssil?
Michael assentiu. - Sim, acredito.
- Isso se enquadra na categoria de acusações perigosas demais... pelo menos sem provas conclusivas. Monica reconheceu isso e eu também. Sinceramente, o que me incomoda é por que um agente com sua experiência não seja capaz de perceber isso.
Elizabeth bateu à porta e entrou. O senador convencera-a a sair com ele no Athena até a baía por algumas horas. Tinha o rosto corado devido ao frio.
Colocou-se em frente à lareira e aqueceu o traseiro junto às chamas.
- Pensei que você levaria as coisas com calma - disse Carter.
- Papai é que navegou. Eu só bebi chá de ervas e tentei não morrer congelada.
- Está tudo bem? - perguntou Carter.
- Está tudo ótimo. Os bebês estão fantásticos.
- Meu Deus, isso é maravilhoso - disse, abrindo um largo sorriso no seu rosto normalmente plácido.
- De que estavam a falar, rapazes?
- Assuntos de trabalho. - Tudo bem, vou-me embora. Fica - pediu Michael.
Michael, alguns destes assuntos...
- Ela pode ouvir a conversa em primeira-mão, ou pode ouvi-la mais tarde, na cama. Escolhe, Adrian.
- Fica - disse ele. - Além disso, é tão bom ter algo belo para onde olhar.
Torna-te útil, Michael, e serve-me mais um pouco de vinho. Elizabeth?
Ela abanou a cabeça.
- Nada de álcool nem de tabaco durante algum tempo. Carter bebeu um pouco de vinho e disse:
- Recebemos um relatório dos serviços franceses há dois dias. Acreditam ter descoberto a identidade falsa do Outubro. Estava a viver na costa bretã sob o nome de Jean-Paul Delaroche. Numa aldeia chamada Brélés.
- Meu Deus, nós estivemos lá, Michael.
- Vivia tranquilamente numa casa de campo com vista para o Canal. Parece que era também um pintor talentoso. Os franceses estão a manter as coisas bastante discretas, como só os franceses são capazes de fazer. Temos um alerta mundial em nome dele, mas até agora ninguém o viu. Também ouvimos dizer, de uma série de fontes diferentes, que está morto.
- Morto? Como?
- Parece que quem o contratou para te matar não ficou satisfeito por ele ter fracassado no cumprimento do contrato.
- Espero que o tenham torturado primeiro - disse Elizabeth.
Michael olhava pela janela, em direção ao cais e à baía encrespada mais além.
- No que está pensando, Michael? - perguntou Elizabeth.
- Gostaria apenas de ver o corpo, só isso.
- Todos nós gostaríamos - respondeu Carter. - Mas, regra geral, estas coisas não funcionam assim.
Terminou o vinho e estendeu o copo para que lhe servissem mais. Elizabeth abriu outra garrafa. O senador entrou na sala, o rosto corado e o cabelo desgrenhado. - Já vi que assaltaram a cave - disse. - Serve-me uma boa dose, por favor.
- Tenho outro assunto sério antes de ficarmos embriagados.
- Se tem de ser - retorquiu Michael.
- Monica concordou em desistir de todos os procedimentos disciplinares contra você. Acha que são inadequados nesta altura do campeonato, tendo em conta aquilo que tu e a Elizabeth sofreram. - Ah, que simpatia a da Monica.
- Vai lá, Michael. Ela está falando sério. Ela acha que as coisas se descontrolaram. Quer passar uma esponja em cima de tudo e seguir em frente.
Michael olhou para Elizabeth e depois novamente para Carter.
- Diga que agradeço, mas não, obrigado - disse.
- Quer que os procedimentos disciplinares avancem?
- Não, quero sair - disse Michael. - Decidi deixar a Agência.
- Não está falando sério...
- Sério como nunca - respondeu Michael. - Desculpa, má escolha de palavras. Pronto, agora podemos embebedar-nos.
Elizabeth atravessou a sala, abaixou-se e beijou os lábios de Michael.
- Tem certeza, Michael? Não faça isso por mim.
- Nunca tive tanta certeza de uma coisa em toda a minha vida. E não vou fazer por você. Vou fazer por nós. - Depois tocou a barriga de Elizabeth. - E por eles.
Ela beijou-o outra vez e disse:
- Obrigado, Michael. Amo-te. Espero que saibas isso.
- Eu sei - respondeu. - Se sei. Carter olhou para o relógio e exclamou: Oh, porra!
- O que foi? - perguntaram Michael e Elizabeth em uníssono.
- Perdemos o discurso do Beckwith.
E todos riram às gargalhadas.
EPÍLOGO
MYKONOS, GRÉCIA
Era a villa que ninguém queria. Estava localizada no topo de um penhasco, com vista para o mar, exposta ao vento eterno. Stavros, o agente imobiliário, desistira da ideia de vender a propriedade. Limitava-se a alugá-la todos os anos ao mesmo clã de jovens corretores ingleses que pilhavam a ilha em Agosto para três semanas de bebedeiras.
O francês com a mão ferida passou apenas cinco minutos dentro da casa. Percorreu os quartos e a sala de estar e inspecionou a vista do terraço de pedra. Prestou particular atenção à cozinha, que o fez franzir o cenho.
- Conheço homens que lhe podem fazer o trabalho, se desejar fazer renovações - disse Stavros.
- Isso não será necessário - respondeu o francês. - Eu próprio tratarei disso. - Mas a sua mão - assinalou Stavros, apontando com a cabeça para a ligadura. - Isto não é nada - alegou o francês. - Um acidente na cozinha. Em breve vai sarar.
Stavros franziu o sobrolho, como se achasse a história pouco convincente. - E alugada com frequência - continuou. - Se quiser deixar a ilha na época alta, tenho a certeza de que consigo arranjar um bom preço por ela, sobretudo se fizer reparações.
A villa já não é para alugar. - Muito bem. Quando gostaria de...
- Amanhã - antecipou-se o francês. - Dê-me um número de conta e o dinheiro será depositado esta tarde.
- Mas, monsieur, o senhor não é grego. Não é fácil para um estrangeiro comprar um imóvel. Existem impressos para preencher, documentos legais. Estas coisas levam tempo.
- Trate de tudo, senhor Stavros. Mas amanhã de manhã mudo-me para cá. Passou o resto do Inverno dentro de casa. Quando a mão ficou suficientemente boa, começou a trabalhar, restaurando a villa com a devoção de um monge a copiar livros antigos. Kristos, o homem da loja de artigos para o lar ofereceu-se para encontrar bons homens para o ajudar com o trabalho, mas o francês recusou educadamente. Substituiu os eletrodomésticos da cozinha e colocou um novo balcão de cerâmica. Repintou todo o interior. Retirou a mobília velha (móveis modernos pavorosos) e encheu as divisões com cadeiras e mesas rústicas gregas. Em Março, quando o tempo aqueceu, virou a atenção para o exterior. Disfarçou rachas nas paredes e deu-lhes uma demão de cal reluzente. Substituiu as telhas partidas no telhado e as pedras partidas no terraço. A meio de Abril, a villa que ninguém queria era a mais bonita da aldeia.
A bicicleta de corrida italiana chegou nessa mesma semana. Todas as manhãs, pedalava pelas estradas sinuosas da costa e subia e descia as colinas íngremes no centro da ilha. Gradualmente, à medida que os dias aumentavam, ia passando cada vez mais tempo na aldeia. Regateava o preço das azeitonas, do arroz e do borrego no mercado. Algumas tardes por semana, almoçava na taberna, sempre com um livro como proteção. Às vezes, comprava robalo grelhado aos rapazes na praia e comia o peixe sozinho, numa gruta, onde brincavam focas cinzentas. Aventurou-se a entrar na garrafeira. De início, bebia apenas vinhos franceses e italianos mas, passado algum tempo, desenvolveu um gosto por variedades gregas baratas. Quando o empregado sugeria colheitas mais dispendiosas, o francês abanava a cabeça e devolvia a garrafa. As renovações, explicava ele, tinham-lhe dado um rombo nas finanças.
Ao princípio, o seu grego era limitado, algumas frases desconexas, um sotaque vago, difícil de identificar. Mas extraordinariamente no espaço de dois meses, conseguia tratar dos seus assuntos num grego aceitável com o sotaque de um ilhéu.
As mulheres da aldeia faziam avanços suaves, mas ele não possuía qualquer amante. Só tinha duas visitas: um pequeno inglês com olhos da cor da água do mar invernal e uma deusa mulata que apanhava banhos de sol nua em Maio. O inglês e a deusa ficaram três dias. Todas as noites jantavam no terraço, já a noite ia avançada.
Em maio, começou a pintar. De início, só conseguia segurar nos pincéis durante alguns minutos de cada vez, devido à cicatriz na mão direita. Depois devagar, gradualmente, a cicatriz deixou de repuxar e ele era capaz de trabalhar várias horas de seguida. Durante muitas semanas, pintou os cenários em redor da villa: as paisagens marítimas, os aglomerados de casas caiadas, as flores nas encostas, os anciãos a beber vinho e a comer azeitonas na taberna. A villa refletia as cores em mutação de cada dia que passava: um cor-de-rosa empoeirado da aurora, um castanho-avermelhado filtrado do crepúsculo que levou semanas de pacientes experiências para recriar na sua paleta.
Em agosto, começou a pintar a mulher.
Era loura, com uns admiráveis olhos azuis e uma tez pálida e luminosa. Segundo a empregada de limpeza, trabalhava sem um modelo a partir de uma mancheia de esboços desenhados a lápis.
- É evidente - contou ela às outras moças da aldeia - que o francês trabalha de memória.
Era uma obra grande, cerca de dois metros por um metro. A mulher vestia apenas uma blusa branca, desabotoada até o umbigo, tingida com o castanho-avermelhado do ocaso. O corpo longo encontrava-se disposto sobre uma pequena cadeira de madeira, a olhar para trás. O queixo repousava sobre uma mão. A outra segurava algo que parecia uma arma, embora ninguém colocasse uma arma na mão de uma mulher tão bela, disse a empregada. Nem mesmo um francês recluso.
Terminou a obra em outubro.
Colocou-a numa moldura simples e pendurou-a na parede, de frente para o mar.
Daniel Silva
O melhor da literatura para todos os gostos e idades