Biblio VT
Em boa verdade, amigo, tenho dificuldade em reconhecer em ti o Verdier que corajosamente me arrancou, na Quine, das garras de uma pantera, o valente que expôs a sua vida para me proteger contra uma tríbu fanática nas Molucas... Terias deixado de ser o mesmo, ou terias esquecido os teus amigos mais queridos?...
Máximo apressava-se em responder, mas, Serbannes estendendo a mão apontou-lhe o mato que os cercava:
- Tu vês, a aventura espera-nos! Não queres corresponder ao seu apelo? Os seus olhos são límpidos como a água dos regatos que serpeiam através do mato e cujo murmúrio é para o viajante fatigado a mais doce de todas as músicas... A sua cabeleira ondula, como ao sabor da brisa o verde tapete de verdura que nos cerca... O seu hálito é mais doce e mais fresco que o vento que faz sussurrar as folhas das palmeiras... Ela não é esquiva e deixa prender-se por aqueles que a amam... Recusou-nos, alguma vez, o que esperávamos dela?
As palavras de Serbannes evocavam em Máximo a recordação de tempos idos e faziam esbater, cada vez mais, no seu espírito, a imagem de Sadie Quaynes, da Qlaukôpis Atenêa, que o obsidiava desde que abandonara a aldeia ogni.
######
- Ouro! Ouro, Preston!... Ouro! Desta vez é a fortuna!... Escusamos de correr em busca dos hipotéticos elefantes. Diabos levem o marfim, que tanto trabalho nos deu,
sem resultado de maior, e viva o precioso metal que o Tanga acaba de descobrir, justamente na altura em que começávamos a desesperar!
Alguns dos pretos chafurdavam na água lodosa, braços cheios de lama até para cima dos cotovelos, pernas cobertas de areia molhada.
Máximo Verdier, seguindo o leito do rio, correu ao encontro do seu companheiro de aventuras, que o tinha deixado alguns dias antes; o homem acabava de emergir do
mato com a carabina a tiracolo; o seu rosto escaveirado dizia as fadigas sem número suportadas em plena floresta virgem procurando o rasto de elefantes.
O Caçador estacara, surpreso; durante alguns instantes, fitou o francês, preguntando a si mesmo se ele não teria endoidecido, subitamente. A animação que reinava
em redor, a alegria infantil que os pretos da caravana ruidosamente manifestavam, fizeram-no compreender que qualquer coisa de anormal se tinha passado durante a
sua ausência; depois de enxugar às costas da mão o suor que lhe inundava o rosto, deu alguns passos sem dizer palavra.
- Mas, sim, meu caro Preston, prosseguiu Verdier, subindo para um banco de areia cheio de raízes, e estendendo ao recém-chegado a sua mão molhada: escusamos de continuar
a bater a floresta... Não adivinha o que se passa?...
"Descobri um jazigo de ouro aluvionar a cinquenta passos do acampamento onde me tinha instalado com os carregadores indígenas, emquanto esperava por si...
"Que me diz a esta pepita, Preston? Magnífica, heim!? Na verdade muito me teria rido se à nossa partida de Séguéla, me tivessem dito que acabaria em prospector.
Tínhamos obtido - e com que dificuldade - autorização para caçar elefantes e, afinal de contas, bem diversa foi a caça que hoje apanhei. Como a que esperava encontrar
não aparecia entretive-me, à falta de melhor passa-tempo,
a explorar o leito do rio com os nossos homens: as investigações não foram infrutíferas...
"Ao fim de algumas horas verifiquei que o rio carreava o precioso metal amarelo... E repare como o terreno se presta à exploração... Encontramo-nos na presença de
um soberbo Eldorado.
Depois de ter manifestado um vivo espanto, a fisionomia do caçador tornou-se impenetrável; sem proferir palavra, mirava e remirava nos seus dedos rugosos a pepita
que o companheiro lhe acabara de mostrar.
Os olhos azues deste último cintilaram, e deixou escapar um grunhido de aprovação.
- Diabos me levem! Não há dúvida... É na verdade ouro!
"Nunca pensei que pudesse existir um jazigo aurífero nestas regiões perdidas da Costa de Marfim, vizinhas da grande floresta!...
"E, eu, feito parvo em busca de elefantes, emquanto o senhor, sem sair daqui, fazia esta magnífica descoberta!... Se eu tivesse sabido...
- Não vale a pena ralar-se! Os elefantes e o marfim que vão passear!...?
"Precisamos de localizar exactamente o jazigo; depois, dentro de três ou quatro dias, pôr-nos-emos a caminho de Séguéla, ou da sede da circunscrição mais próxima,
a-fim-de obter a concessão para
podermos executar em seguida as pesquisas necessárias, com uma equipe mais numerosa de trabalhadores... Uma vez na posse do jazigo, e em regra os papéis indispensáveis,
teremos todo o tempo para trabalhar utilmente.
Gritos agudos de alegria vieram interromper o francês; abandonando o curso do rio, junto do qual tinham trabalhado durante algumas horas, sob o sol plúmbeo, os indígenas
acorriam por sua vez ao encontro do caçador; alguns brandiam pás e bateas improvisadas, que, à pressa, haviam confeccionado; outros mostravam pepitas de vários tamanhos,
que tinham acabado de encontrar.
O entusiasmo dos indígenas teve o condão de irritar o caçador.
- Daqui para fora! resmungou ele. Sei muito bem o que é ouro! Deixem-me passar!... Preciso de descansar... Valeu bem a pena andar a estafar-me para não descobrir
nada.
O mau humor do recém-chegado parecia surpreender Máximo Verdier.
- Que tem, Preston?... Por que está tão zangado? Dir-se-ia que a minha descoberta o indispôs?... Espero que não duvide que lhe reservo a sua parte!... Companheiros
dos perigos, partilharemos, também, dos bons resultados das pesquisas!... E creio que a descoberta de um placer(1) da riqueza deste se não faz duas vezes na vida!... Quantos invejariam a nossa sorte!...
Um sorriso iluminou o rosto rude do caçador.
- Perdoar-me-á, sr. Verdier... Sabe que me limito a ser um velho caçador de elefantes... Sinto uma certa amargura ao verificar que foi tão feliz emquanto eu me esfalfava,
em vão, por descobrir esses malditos paquidermes... Quando veio ter comigo, a vista desse pedaço de ouro nativo deixou-me estupefacto!... Agora, estou um pouco refeito
da comoção!... Se não vê nisso inconveniente contar-me-á as suas aventuras, mais logo, ao pé do fogo...
"Os meus víveres estão esgotados... Estou cheio de fome... O raid que acabo de realizar arrasou-me...
Preston transportou-se rapidamente ao local em que a pequena caravana tinha estabelecido o acampamento, no próprio dia em que ele se separara do francês; Máximo
Verdier caminhava a seu lado sem dizer palavra.
O recém-chegado aproximava-se de uma barraca de bambu, aberta a todas as intempéries, que os
(1) Placer: terreno de aluvião aurífera.
indígenas tinham construído, havia pouco tempo, para o seu chefe.
Preston curvou-se e entrou no reduto, soltando um suspiro de alívio. Desembaraçando-se da carabina e da bolsa, deixou-se cair sobre uma esteira.
- Julguei que nunca mais voltava, disse ele ao companheiro que o tinha seguido até à barraca. Caminhava sempre na esperança de encontrar uma manada. Mas, que quer?
Os Qouros e os Baulés, que povoam estas paragens, atacaram tanto os paquidermes que estes se devem ter refugiado no interior da selva...
"Como os havia eu de ir descobrir em pontos onde nem os próprios negros se aventuram a entrar!
Vociferando sempre contra a sua pouca sorte, Preston arrancava os espinhos que se tinham prendido ao calção e ao casaco durante a marcha pela floresta virgem...
As suas mãos tisnadas estavam arranhadas pelos espinhos da vegetação bravia... com um piparote afastou uma formiga vermelha que se lhe queria meter pela manga da camisa...
- Diabos levem tanto bicho!... Pululam em torno de nós!... Escolopendras, escorpiões, matacanhas, miriápodos venenosos fazem tudo por nos complicar a existência
nesta maldita terra.
O caçador pôs emfim termo às suas recriminações;
conservara em seu poder a pepita que o companheiro lhe mostrara.
Agarrando-a entre o polegar e o indicador levantou-a à altura dos olhos e examinou-a.
- Macacos me mordam! Mas nunca vi uma pepita tão linda. É do tamanho de um ovo de pombal...
- Temos ainda mais; e Máximo Verdier mostrou várias outras ao companheiro. Estou convencido de que se trata de um jazigo da maior importância.
O caçador examinou com a maior atenção todos os fragmentos que Máximo lhe apresentou. Não dizia nada, mas o brilho estranho das suas pupilas demonstrava que a descoberta
do seu companheiro e dos indígenas excitava prodigiosamente o seu interesse.
- E o que diz o senhor a tudo isto?
- Que não perdeu o seu tempo emquanto eu andei para aí armado em parvo... Mas, como diabo lhe veio a idea de se fazer prospector?
- Olhe, foi graças a Tanga. Se este não tivesse a idea de se ir banhar no rio, eu nada teria descoberto...
E Máximo explicou ao companheiro como tinha adquirido a convicção de que o rio carreava ouro. Um ponto brilhante atraíra a atenção do moleque emquanto este se banhava
com alguns companheiros; e feita esta observação, rapidamente
precipitara-se para a barraca onde repousava o francês> soltando exclamações de entusiasmo:
- Tanga encontrou bom gri-gri. Tanga encontrou bom gri-gri!...
Máximo imediatamente verificou a importância da descoberta de Tanga. Foi também ao rio e, em menos de um quarto de hora, esse recanto do mato, até então tão tranquilo,
era teatro de uma actividade febril: animados com a promessa da boa gorgeta que Máximo lhes fizera, os indígenas recolhiam em pratos a areia do leito do rio, e,
alguns mesmo, atacavam à picareta o terreno rochoso da margem.
Sem demonstrar a menor fadiga, por tal forma se sentia preso da febre do ouro, o francês dirigira as pesquisas dos seus devotados auxiliares; mas,. não resultaram
vãos os seus esforços; agora, tinha a certeza que se encontrava em presença de um bom placer.
Tendo vindo a estas longínquas paragens para caçar elefantes, ia poder dedicar-se a uma outra ocupação, muito mais lucrativa e infinitamente menos perigosa.
Preston ouviu, sem fazer a menor interrupção"o relato do seu companheiro de aventuras. A importância da descoberta parecia-lhe tal que esquecera mesmo a fome, que
há longas horas o atormentava.
Quando Máximo terminou a sua narrativa, Preston bateu as palmas, e gritou:
- Vamos, Tanga... O jantar!... Tenho a barriga pegada às costas...
Separando-se dos camaradas, o interpelado tratou de servir Preston; sabia, por experiência própria, que o inglês era bem menos paciente de que o francês, seu chefe;
a correr foi buscar o jantar que se compunha de um pedaço de macaco assado e algumas bananas cozidas.
- O menu não me agrada, resmungou Preston. Não há mais nada?
- Não! Esquecemo-nos de renovar as nossas provisões de caça, respondeu Máximo Verdier... Os frutos abundam nos arredores... A febre do ouro apossou-se de nós...
Mas, amanhã de manhã, faremos novo abastecimento.
O caçador abanou a cabeça e atirou-se, cheio de apetite, ao quarto de macaco; Tanga eclipsou-se em bicos de pés, emquanto o francês assistia ao jantar do companheiro.
Máximo conhecia o inglês, havia apenas dois meses; tinham-se encontrado em Bingerville no momento em que preparava uma expedição para caçar elefantes, nas regiões
setentrionais da Costa de Marfim. Numerosos colonos lhe asseguraram que não poderia encontrar melhor guia do que Preston.
No decurso do longo e extenuante raid através do mato, Verdier não tivera que se arrepender da escolha feita: Preston conhecia admiravelmente as cercanias da grande
floresta; falava os diferentes dialectos dos indígenas; além disso, especializado no comércio do marfim, tinha sido de uma grande utilidade para o viajante; habituado
a todos os perigos e fadigas do mato, era inexcedível para descobrir as pistas dos animais e lia no solo como num livro aberto.
À medida que observava o inglês, devorando com excelente apetite o seu frugal repasto, Máximo rememorava, um a um, os principais episódios que tinham precedido a
sua viagem a este inóspito ponto da África Ocidental. Contava vinte-e-oito anos apenas mas, desde muito novo, levara vida aventurosa; órfão, alistara-se no exército
colonial e aí começara a dar largas à sua paixão favorita; terminado o serviço militar, como possuía uma fortuna considerável, empreendera várias expedições cinegéticas
na Nova-Quiné, no Senegal e na Uganda; infatigável dirigira-se, finalmente, para a Costa de Marfim, onde contava numerosos amigos.
Durante algumas semanas, Máximo detivera-se no litoral, convidado quer por uns, quer por outros, mas esta existência inactiva não tardou em se lhe tornar enfadonha.
Ouvira alusões aos numerosos bandos de elefantes que se escondiam no âmago das florestas, na parte norte da colónia, e assim se decidiu a ir dar caçada a estes temíveis
animais, esperando trazer da sua expedição um importante carregamento de marfim. Até esta altura, porém, as pesquisas de Máximo não tinham sido coroadas de êxito.
Tinha conseguido abater alguns búfalos, uma pantera, antílopes, mas fora em vão que tentara descobrir qualquer pista de elefantes; muitas vezes por ocasião dos altos
das suas marchas, interrogando os indígenas, estes afirmavam a existência de um bando de paquidermes na região atravessada, mas, parece que os mastodontes, suspeitosos
da presença dos caçadores, se punham imediatamente em fuga. O certo é que, por mais voltas que dessem, de elefantes nem o rasto. Havia quinze dias que tinham acampado
naquele local e Preston não tinha pressa em se deslocar. Êle, que conhecia a fundo a região e os hábitos dos paquidermes, não podia explicar a sua ausência num ponto
que eles sempre tinham frequentado.
Máximo Verdier, antes de Preston terminar a refeição, saiu da barraca e dirigiu-se para junto dos Indígenas.
Durante alguns instantes Máximo inspeccionou os seus fiéis auxiliares, que o tinham acompanhado até àquele ponto, partilhando das mesmas fadigas
e perigos. Não faltava nenhum. O primeiro que viu foi Tanga; encontrava-se nas vizinhanças da barraca; nos seus olhos tão expressivos, podia ler-se a profunda fidelidade
ao seu tubabo (1), a quem não abandonara, nem um instante, desde que tinham partido de Bingerville.
Um pouco mais longe o francês viu Balango. Era um preto de estatura colossal, rosto imberbe e anguloso. A forte mandíbula, os lábios grossos, os olhos rasgados,
as numerosas tatuagens no tronco e nos braços davam a este indígena um aspecto inquietante; Verdier contratara-o, a conselho de Preston, que o conhecia de longa
data e o considerava um magnífico auxiliar.
Balango não desmentira, até àquela altura, as qualidades por que fora inculcado ao seu novo patrão; o seu aspecto, que metia respeito, impusera-se, mais do que uma
vez, aos indígenas teimosos em deixar avançar a caravana dos caçadores de elefantes.
- Quarenta-e-um!... Quarenta-e-dois!... Quarenta-e-três!...
Máximo Verdier acabava de contar os indígenas alinhados na sua frente; o grupo estava completo.
(1) Tubabo: patrão; em geral, o que usa calças.
O mais afastado de todos, Angosso, sorria-lhe, deixando ver duas fileiras de dentes de uma inexcedível brancura.
- Vão-se deitar! comandou o tubabo.
Os indígenas quebraram então o silêncio que observavam desde a chegada do chefe; empurrando-se uns aos outros, como colegiais no recreio, correram a deitar-se na
areia indiferentes já às fadigas do dia.
Depois de se ter afastado alguns passos, Máximo, satisfeito com a sua inspecção, pousou o olhar em torno de si; tendo verificado que dois dos seus auxiliares haviam
tomado os seus postos de guarda para o primeiro quarto da noite, dirigiu-se, com passo firme, para a barraca onde Preston, que acabava de jantar, enxugava maquinalmente
às polainas a lâmina da faca, trauteando uma velha canção inglesa.
O inglês interrompeu a cantiga e preguntou, emquanto dispunha meticulosamente o mosquiteiro:
- Não faltava nenhum dos indígenas?
- Não... Todos responderam à chamada e estão prontos a recomeçar a marcha, amanhã, logo após o nascer do sol...
- Diabo! se não fossem as suas ideas vagabundas ficaríamos ainda aqui alguns dias! olhe que nem sempre se tem o privilégio de acampar junto do Eldorado!
- Mas, já lhe expliquei, Preston: não podemos desinteressar-nos do jazigo que tivemos a felicidade de descobrir... É preciso que, quanto antes, nos dirijamos à repartição
do cadastro e que nos asseguremos da posse legal de todo este terreno... Ninguém sabe o que poderá vir a acontecer, mais tarde... Prefiro ter sempre em ordem todas
as minhas coisas... Assim, de futuro, ninguém nos poderá contestar a concessão... Depois de arrumado isto trataremos da exploração...
com uma das botas, Preston esmagou uma barata que passeava na esteira.
- O senhor é um homem prático, sr. Verdier, limitou-se, ele a responder. Far-se-ão as coisas como o deseja... Desviamo-nos um pouco, mas, creio que não será difícil
descobrir o caminho de regresso...
- Parece-me que a minha decisão o contraria, Preston?
- Mas, porquê? Não estou eu ao seu serviço? E, além disso, a sua proposta é de uma grande generosidade!... Afinal de contas eu não tinha quaisquer direitos sobre
o placer... Não estava eu ausente no momento em que o senhor o descobriu?...
- Repito-lhe, mais uma vez, Preston, se corremos juntos os perigos é de justiça que os resultados dos nossos esforços sejam também divididos entre os dois... Abandonado
às minhas próprias forças que teria eu feito? Não conheço a região, e certas tríbus manifestam para com os brancos uma atitude bastante inquietadora... Temos escapado
ao massacre graças à sua colaboração!... Estou, por tudo isto, cada vez mais decidido a não o
abandonar; tínhamos combinado que eu lhe daria a sua parte no marfim... O marfim ficou em pura hipótese. Terá em vez dele o ouro. Creio que estes pedaços de ouro
nativo substituirão vantajosamente as defesas dos elefantes, que não conseguimos caçar...
O inglês soltou um grunhido de aprovação, e depois, tomando o cantil de rum que lhe pendia da cintura, bebeu três grandes goladas.
- Estou consolado! Isto ressuscita um homem. Agora, se não vê inconveniente nisso, sr. Verdier, vou ver se consigo dormir... Se a riqueza, graças ao senhor, me sorri,
isso não me impede de me sentir horrivelmente fatigado, depois de ter andado estupidamente por essa floresta em busca dos elefantes...
E, estendendo os seus membros fatigados, Preston deitou-se na esteira; alguns segundos depois, vencido pelo cansaço, ressonava com grande estrépito.
O francês saiu da barraca.
Agora já o sol desaparecia por detrás do denso arvoredo. Agrupados em círculo, à roda do fogo, os indígenas preparavam a ceia, cozendo bananas num caldeirão, sem
se inquietarem com as picadas dos mosquitos, que voavam aos milhares à sua volta.
No céu luziam já as primeiras estrelas. Os morcegos zig-zagueavam nos palmares em redor.
Tanga jogava os dados com Angosso e os dois indígenas acusavam-se, mutuamente, de batoteiros. Durante curtos instantes Máximo divertiu-se vendo-os discutir. A alguns
passos, um outro indígena cantava uma melopeia regional, acompanhado em coro pelos outros. Bateas, picaretas, pás, aglomeravam-se, em desordem, junto à beira do
rio; a pouca distância, na margem oposta, Verdier adivinhava os veios avermelhados que faziam suspeitar a presença do ouro.
Máximo, imóvel, de braços cruzados, contemplava o cenário da exploração em início, que se ia tornando cada vez mais confuso à medida que caía a escuridão; dentro
em pouco, as trevas envolviam-no, sem que ele se apercebesse do facto. com o olhar perdido no vago sonhava o futuro e imaginava o jazigo tal como ele seria mais
tarde, quando o Eldorado se encontrasse em plena actividade.
Por emquanto, os indígenas da caravana, apenas preparados para uma expedição venatòria e não dispondo dos meios indispensáveis, tinham-se limitado a esmagar à martelada
o minério e a lavar à batea o quartzo pulverizado. Que maravilhosos resultados não poderiam obter quando, reforçado o grupo com mais cem indígenas, e munidos de
cartuchos de dinamite, pudessem cavar as primeiras
galerias e arrancar à terra o tesouro que ela, até então, tão ciosamente guardara!...
E o francês esquecia todas as fadigas e dissabores por que passara antes de chegar a este Eldorado. O seu amor da aventura encorajava-o a levar até ao fim o trabalho
empreendido.
Perspectivas maravilhosas deslisavam ante o espírito de Máximo Verdier. As dificuldades longe de o importunarem, mais o estimulavam, ainda. Esta região, outrora
desconhecida, seria célebre dentro de pouco tempo; a própria solidão que a envolvia desapareceria. Quem poderia mesmo dizer se, dentro de alguns meses, uma cidade-cogumelo,
semelhante às que se tinham, subitamente, construído na Califórnia, na época da febre do ouro, não estaria instalada naquele local?
A região era, sem dúvida, bastante insalubre; não só a terrível mosca tsé-tsé fazia todos os dias novas vítimas, como também os mosquitos dizimavam as populações
das tríbus, que habitavam aquelas regiões perdidas da Costa de Marfim. A doença do sono, o béri-béri, a febre amarela, as febres palustres, eis a sorte que esperava
os brancos que se aventuravam por aqueles lugares. No entanto, por mais temíveis que fossem os obstáculos, Máximo estava convencido de que a febre do ouro os dominaria
a todos. Ao seu entusiasmo seguia-se
agora um sentimento indefinível. A sua descoberta faria a felicidade de alguns mas também quantas calamidades iriam abater-se sobre os pioneiros antes que conseguissem
obter quaisquer resultados?...
O miar sinistro de uma pantera, que rondava as vizinhanças, veio arrancar o francês às suas reflexões; bruscamente levou a mão à pistola, procurando penetrar a escuridão.
Máximo estremeceu quando viu uma silhueta perto de si. Mas, depressa uma voz se fez ouvir:
- Tanga, aqui... Tubabo não ter medo... Pantera não vir...
Era, com efeito, o moleque que se aproximava do patrão; apontou para o fogo que os indígenas tinham acendido no acampamento; as silhuetas de Angosso e dos seus companheiros
distinguiam-se, nitidamente, à luz vacilante das chamas; o colosso, desconfiado, agarrara no seu machete que lhe permitia abrir caminho através da vegetação intrincada
da floresta virgem.
Mas, o indígena não teve necessidade de utilizar a sua arma temível: a pantera miou, de novo, mas desta vez mais longe.
Apavorada pelo fogo, a fera afastava-se, prudentemente, através dos altos arbustos. Agora só se ouviam, guinchando em coro, os macacos ruços, e o vozear dos chimpanzés, chamando uns pelos outros.
Então, o francês, fazendo sinal a Tanga para ir ter com os companheiros, aproximou-se da barraca, morto de fadiga. A temperatura era tão elevada que lhe parecia
estar dentro de uma estufa. Acendeu uma lanterna e verificou que as duas sentinelas continuavam a postos, e que não havia a temer qualquer surpresa; depois, tranquilizado,
deslisou para o interior da barraca.
Protegido pelo mosquiteiro, Preston continuava a ressonar, tendo a seu lado a carabina.
O inglês tinha apenas quarenta anos; a-pesar-disso a sua fronte estava sulcada de rugas profundas; tinha uma cicatriz na região temporal direita, recordação de um
ferimento recebido durante a Grande Guerra, em La Bassée; pela camisa de kaki, entreaberta, via-se-lhe o peito cabeludo.
O francês continuou entregue às suas meditações. Preguntava a si mesmo qual poderia ser a verdadeira identidade daquele tipo tão corajoso, que o tinha acompanhado
com absoluta dedicação; até então não tinha tido senão que se felicitar por o ter contratado em Bingerville, no entanto, por várias vezes, sempre que o interrogara
sobre o seu passado, o inglês mudava de conversa.
A indiferença quási total que manifestara ao ser-lhe comunicada a descoberta do placer não deixava, também, de intrigar Verdier.
- Diabos levem a minha curiosidade!... murmurou. Que me importam os antecedentes de Preston? Não é um companheiro leal e destemido?...
O bater de asas de uma borboleta noturna veio quebrar o fio dos raciocínios de Verdier; com um gesto brusco afastou a borboleta, acabando, para se livrar dela, por
apagar a luz.
Às apalpadelas, enfiou um mosquiteiro e estendeu-se numa esteira, o rosto e o corpo banhados em suor, e procurou o merecido repouso.
O francês levou muito tempo a adormecer; os menores ruídos, vindos do mato, sobressaltavam-no; estava habituado a surpreender todos estes ruídos, mas, naquela noite
sentia-se extraordinariamente ennervado. A febre do ouro obsidiava-o. Miragens maravilhosas apresentavam-se ao seu espírito; imaginava as possibilidades de exploração
deste placer e do jazigo que, por acaso, descobrira e a cuja exploração deveria agora dedicar a sua actividade.
Quanto tempo terá Máximo permanecido, assim, em estado de semi-vigília? Ele mesmo nem o saberia dizer: lá fora, há muito que os indígenas tinham cessado de cantar;
imóveis, apoiadas as espingardas, as sentinelas continuavam alerta; de vez em quando, uma delas apanhava um pedaço de lenha e ia avivar o fogo da fogueira.
Tanga e os camaradas, estendidos junto ao fogo
dormiam a sono solto; estavam, há muito, habituados aos ruídos do mato.
Era ainda bastante escuro quando, bruscamente, Máximo e o seu companheiro acordaram sobressaltados.
Por seu lado os indígenas, também, se levantaram apavorados: rompendo o silêncio, um grito horrível, que nada tinha de humano, fizera-se ouvir, vindo dos lados do rio.
O francês sentado na esteira e empunhando a carabina, gritou:
- Que é isto?... Ouviu, Preston?
O caçador ajoelhara, agarrando também na sua arma.
Durante alguns segundos, ficou sem dar resposta, de ouvido à escuta, o dedo no gatilho da arma, pronto a repelir qualquer ataque.
- Não sei, murmurou, afinal. Pareceu-me surpreender um grito a distância... Talvez alguma fera rondando nas trevas?
Mal o inglês acabava de pronunciar estas palavras, ouviu-se um segundo uivo, mais horrível ainda que o primeiro.
- Não, não foi nenhuma alucinação, balbuciou Máximo...
- Vamos, depressa... Toca a sair! respondeu Preston. Passa-se qualquer coisa de anormal.
- Porque diabo as sentinelas não terão dado o sinal de alerta?
Os dois homens saíram da barraca; tinham dado.
apenas uns passos, quando notaram algumas silhuetas junto do fogo, ainda aceso.
Máximo e Preston avançaram para o grupo.
- O que há? interrogou Máximo, dirigindo-se a um dos indígenas, que o fitava apavorado.
O interpelado respondeu:
- É o espírito mau, balbuciou. Nós, perdidos!... Não ouviste o grito do leopardo, tubabo?
- O grito do leopardo? Que diabo é isso? Nada de graças, heim?
Assim que deram pela presença de Máximo, os indígenas, que se tinham agrupado à roda da fogueira e a quem os gritos misteriosos tinham enchido de espanto, aproximaram-se
dele; Balango agarrou-o pela manga da camisa.
- Nós todos condenados a morte, gemeu o colosso. Mau leopardo anda à nossa roda...
- Vai para o diabo mais o leopardo! replicou Máximo, que não compreendia o terror dos negros. Ao princípio da noite ouviram a pantera e ao que me parece não se assustaram...
Julgava-te valente, Balango... Mas, agora, vejo que não. Quando voltarmos direi à tua mulher que te faça uma saia!...
- Pantera e leopardo não é a mesma coisa!
respondeu Balango, olhando cheio de angústia na direcção de onde tinha partido o grito.
- Não é a mesma coisa?... Se o teu famoso leopardo estivesse ao alcance da minha carabina, demonstrar-te-ia que não é mais perigoso que os outros animais selvagens,
que temos encontrado no nosso caminho... Tu não temes a morte, Balango?... Provaste-o, no outro dia, afrontando, com toda a coragem, um búfalo...
- O leopardo não é como os outros animais, interrompeu o negro, o leopardo é um mau espírito, que vem à noite sugar o sangue dos pobres pretos. Não o podes matar
com a tua carabina, tubabo... Ele é enfeitiçado...
Todos os indígenas acenavam significativamente com as cabeças.
- Leopardo mau... Leopardo todo-poderoso, afirmavam eles... Quando leopardo uiva de noite, sina! de morte!
- Pode explicar-me, Preston, o motivo do pavor desta gente? preguntou Máximo.
O caçador encolheu os ombros.
- Perde o seu tempo a tentar convencê-los, sr. Verdier!... Eles consideram os gritos que acabamos de ouvir como um mau presságio!... Estão persuadidos que os soltam
vampiros sequiosos de sangue humano...
- Mas isso é uma fantasia!... Vejamos, Preston, o senhor, um homem desempoeirado, não acredita nesses disparates?... Um felino qualquer aproximou-se do acampamento
e uivou um pouco mais forte do que o costume... E, o caso não deve passar disso. O inglês mostrava-se um tanto embaraçado.
- Estou longe de partilhar da sua opinião, sr. Verdier... declarou ele.
"A experiência, que tenho das coisas do mato, diz-me que isto é de mau augúrio para o prosseguimento de uma viagem... Conheço admiravelmente os gribos e os nanuas,
que são os contos de fadas das tríbus do norte da Costa de Marfim... Muitos deles aludem a estes famosos leopardos sugadores de sangue...
- Mas o senhor não admite, com certeza, a existência desses seres sobrenaturais... O senhor não me parece feiticista?
- Não creio que se trate de espíritos malfazejos, mas sei, de ciência certa, que existe, nestas paragens, uma poderosa seita intitulada os "homens-leopardos", By
jove! Sou rijo mas não desejaria encontrar um desses demónios no meu caminho! Eles espalham o terror nestas regiões...
- Contudo, esses malfeitores devem ter o interêsse ou a vingança por móbil... Não matam as suas vítimas pelo simples prazer de matar?...
- Pregunta-me mais do que eu sei, sr. Verdier; o mais que lhe posso dizer é que precisamos de estar alerta...
- Não compreendo em que poderemos incorrer nas fúrias da famosa seita.
O inglês estendeu o braço para o local onde os indígenas tinham andado a trabalhar durante o dia.
- Quem sabe? Talvez que os "homens-leopardos>, que se consideram como senhores destas regiões, e a quem os chefes das tríbus vizinhas obedecem servilmente, por temor
das represálias, tivessem dado por que um branco tinha referenciado a posição do jazigo aurífero!... Se eles se opõem ao seu projecto de exploração vão dar-lhe água
pela barba!... Se assim for, nunca conseguirá reunir uma equipe de trabalhadores para a exploração!...
A fronte de Preston estava mais enrugada ao que de costume.
O francês inquietava-se ao ver o estado de preocupação do seu companheiro, habitualmente tão corajoso. Até aí nenhum obstáculo fora suficiente para lhes deter a
marcha. Ia pedir-lhe novas explicações, quando um grito lancinante se fez ouvir, a curta distância.
- Desta vez não é um animal!... Gritam por socorro! exclamou Máximo, saltando por sobre os arbustos e largando a correr.
- Depressa! agarra num archote e segue-nos, ordenou Preston, dirigindo-se a Tanga.
Não sem manifestar uma profunda apreensão, o moleque agarrou num brandão aceso, que retirou do lume; a alguns passos dêle os outros indígenas, em grupo, cheios de
pavor, encostavam-se uns aos outros. Os seus olhos, desmedidamente abertos, fixavam-se na direcção de onde partira o grito horrível soltado por qualquer desgraçado
nas vascas da agonia.
- Angosso! acompanha-nos tu, também... O colosso, a-pesar-da sua força hercúlea, preferia ficar junto dos seus camaradas; resignou-se, no entanto, a seguir o caçador,
que acabava de o chamar.
Máximo ia à frente, seguido pelo inglês e por Tanga, cuja mão tremia ao segurar o archote; ] com a carabina debaixo do braço, prestes a fazer fogo sobre qualquer
sombra suspeita, o francês olhava cheio de ansiedade o negrume da noite.
A lua, que aparecera sobre os palmares, iluminava-lhes tènuemente a marcha. Preston e Angosso seguiram-nos. Ofegantes, prontos para toda a eventualidade, paravam,
de vez em quando, de ouvido à escuta, procurando surpreender um novo apêlo mas, só o monótono concerto das rãs e dos sapos gigantes se fazia ouvir. Alguns macacos
fugiam, precipitadamente, saltando de árvore para árvore.
Emfim, Máximo Verdier topou com um corpo estendido, o rosto contra o chão, entre o mato.
- Atenção! gritou ele. Está aqui alguém caído.
À luz do archote Máximo assegurou-se de que não havia nenhuma silhueta suspeita na vizinhança; depois, ajoelhou-se e dobrou-se sobre o desgraçado que acabava de
descobrir: era um indígena. Picou estupefacto quando verificou tratar-se do cadáver de uma das sentinelas.
- É o Gabão! gritou Angosso, cujo rosto se
tornou cor de cinza.
Da espádua do pobre preto jorrava sangue em
abundância.
- Este pobre diabo foi apunhalado, murmurou, em surdina, Máximo. Foi ele quem gritou por socorro, há pouco; o corpo está ainda quente... O assassino não deve estar
longe...
Verdier calou-se: acabara de notar, na base do pescoço da vítima, uma ferida enorme. A carne estava horrivelmente lacerada, nesse ponto.
Máximo confiou a Preston o seu espanto pelos dois ferimentos que apresentava o morto: um produzido por uma punhalada, e outro pelas garras de
uma fera.
- Maldição!... A marca do leopardo! balbuciou ele com os olhos dilatados pelo terror. Estamos perdidos!...
A emoção do caçador comunicou-se ao francês. Ordinariamente Preston sabia dominar-se, mas, desta vez, a comoção fora muito forte; a sua mão estendida tremia ligeiramente
ao apontar o horrível ferimento que o assassino misterioso fizera no cadáver.
Máximo sentia-se, simultaneamente, intrigado e profundamente impressionado pelas palavras que o inglês acabara de pronunciar.
Perto dele, Angosso e Tanga estavam apavorados: conheciam sem dúvida o significado do sinal horrível que a vítima tinha no pescoço.
- A marca do leopardo? repetiu Máximo. Que diabo quere isso dizer?...
- Infelizmente, não tardará em sabê-lo. Por agora, sr. Verdier, o que precisamos é recolher o corpo desse pobre rapaz... Tratemos de lhe arranjar uma sepultura decente...
Receio bem que não
tenha sido ele o único a perecer às garras desses demónios... Temos de voltar para trás, a toda a pressa, e proceder à contagem dos nossos auxiliares.
E, sem esperar resposta, Preston fez sinal a Angosso e ambos levantaram o cadáver: o carregador segurava o seu camarada morto, por debaixo dos braços, emquanto o
inglês lhe passava as mãos em torno dos joelhos.
- Vamos... Regresso ao campo e a toda a velocidade! ordenou o caçador de elefantes ao indígena.
Máximo, de carabina a tiracolo, seguia atrás deles. Tanga, junto do francês, todo encolhido pelo temor de poder ver de novo surgir os assassinos do pobre Gabão,
era o derradeiro comparsa deste cortejo macabro.
Os três homens e o moleque abriram caminho através do mato; o francês, disposto para qualquer eventualidade, levava a arma engatilhada.
Os indígenas não se tinham movido do lugar onde estavam; encostados uns contra os outros, tal como fazem os animais quando o perigo os ameaça, não largando de mão
os seus pequenos machetes, estavam atentos ao menor ruído, vindo do mato; os seus rostos contraídos pelo medo acalmaram-se à vista dos dois brancos.
A alegria, que os indígenas manifestavam, por se
sentirem de novo sob a protecção dos tubabos e das suas terríveis armas de fogo, foi de curta duração; a seus olhos aparecia-lhes, agora, o corpo lacerado do Gabão.
- Vamos... abram espaço!... Carregadores e auxiliares apressaram-se em obedecer; eles bem sabiam que Preston não era homem para repetir uma ordem, e não lhes agradava
nada receberem no lombo umas boas chicotadas do cavalo marinho, que ele trazia sempre à cinta,. A angústia dos indígenas cresceu ao ouvirem Angosso, que dizia, apontando
o cadáver do Gabão.
- Isto tem leopardo!
O cadáver foi colocado perto do lume. Vinte rostos se inclinaram para o contemplar. Um frémito percorreu o grupo: com os olhos vítreos, desmedidamente abertos, o
rosto do infortunado Gabão exprimia um indizível terror. Distinguiam-se-lhe, nitidamente, à roda do pescoço, os sinais das garras que lhe laceraram as carnes. O
pobre rapaz deveria ter lutado desesperadamente: as suas mãos, crispadas e hirtas, pareciam querer ainda afastar o adversário.
Os indígenas, interrogavam-se uns aos outros mas, a voz rude de Preston veio interrompê-los:
- Para a forma!... Vamos proceder à chamada.
Empurrando-se uns aos outros, os indígenas entraram na forma; então, dando ordem a Tanga para levantar um pouco mais alto o archote, por forma a que pudesse ler,
o caçador rapou de um canhenho bastante sujo, que trazia no bolso, e no qual estavam inscritos os nomes de todos os indígenas da expedição.
- Balango!... Baruni!... Cazonga!.,. Mahiri!.... Ao ouvir o seu nome, cada um dos negros avançava um passo. Imóvel, conservando ainda a carabina aperrada, o francês
assistia à operação; viu, assim, os dezasseis primeiros carregadores responderem à chamada; o seu sobrecenho, porém, franziu-se ao verificar que o décimo sétimo
chamado, um de nome Omar, não respondia.
O inglês repetiu por três vezes o nome deste
carregador.
O mesmo silêncio! Os outros olhavam uns para os outros, interditos, sem saber o que significava aquela ausência. Tão aflitos estavam que não se tinham lembrado de
verificar, antes, se faltava algum.
Preston teve um gesto de desespero; depois, na sua voz brusca, prosseguiu a chamada dos auxiliares. Destes estavam todos.
- Estão quarenta e um em lugar de quarenta e três, declarou ele, dirigindo-se a Máximo. Gabão
não respondeu, está visto... Emquanto a Omar, quem nos poderá informar do seu destino?...
O francês encolheu os ombros; depois, dirigindo-se aos indígenas, que acabavam de sair da forma:
- Qual foi de vocês o último que viu Omar?
A angústia dos negros era tal que as suas respostas foram de medíocre valor.
O desaparecido tinha estado, ao princípio da noite, estendido ao pé da fogueira; ainda ali se via a sua manta; mas, depois de ter sido dado o alarme, ninguém se
lembrava de o ter tornado a ver.
Não sabendo o que havia de pensar, Máximo olhou para o caçador que se não mexera do sítio de onde procedera à chamada.
- Praza a Deus que o desgraçado não tenha tido a sorte do Gabão!
- Eu estou como o senhor, respondeu Preston, não posso senão formular hipóteses. Há com certeza magia e feitiçaria em tudo isto!... Desta vez, confesso-lho sem vergonha,
sinto um certo receio. A-pesar-da minha experiência, este é um dos momentos em que me sinto desorientado!...
O inglês pronunciara esta última frase em voz baixa, de maneira a não ser ouvido pelos negros, reunidos em torno do cadáver do Gabão; com um gesto maquinal metera
o canhenho no bolso.
Máximo, por seu lado, esforçava-se por varrer
do pensamento a má impressão que lhe causavam as palavras do seu interlocutor.
- Santo Deus!... não deve tratar-se senão de quaisquer bandidos que tentam assustar-nos...
Além disso, que significa aquele horrível ferimento no cadáver do Gabão e porque é que quando o senhor o notou, fez alusão ao leopardo?
O caçador hesitou antes de dar uma resposta
ao francês.
- Há assuntos que não gosto de abordar, sr. Verdier, acabou ele por dizer. Os uivos que precederam a morte do negro, e que nada tinham de humano, dão-me muito que
pensar... Lembro-me do que ouvi a alguns feiticeiros nas minhas expedições através do mato, na Costa de Marfim... Durante muito tempo duvidei da existência dessa
famosa sociedade secreta dos homens-leopardos que, durante a noite, vêm sugar o sangue das suas vítimas, degolando-as, primeiro, barbaramente; julguei que tudo isso
era do domínio da lenda e da fantasia... Os acontecimentos que acabam de se desenrolar provam-me, porém, que eram verdadeiras as lendas de que me ria.
- Mas, porque diabo se convence o senhor de que estamos em presença de uma investida dessa famosa seita do Leopardo? Até agora, e já não
temos andado pouco pelo mato, nunca encontramos no nosso caminho qualquer dos seus membros!
- Há indícios que não enganam! Primeiro o uivo horrível e depois a marca característica...
- O senhor já viu algum cadáver com essa marca?
- Felizmente, até à data, nunca tive de me defrontar com os homens-leopardos, sr. Verdier; mas, desde que ando por estas regiões perdidas, tenho-me documentado sobre
a sua existência e hábitos. Segundo o que me afirmaram alguns feiticeiros, estes demónios gostam de se rodear de mistério, aterrorizando as populações que lhes atribuem
poderes sobrenaturais.
- Mas, poderíamos ir em busca dos assassinos... talvez que conseguíssemos encontrar Omar, são e salvo!
Preston apressou-se em dissuadir o seu interlocutor.
- Reflita um pouco, sr. Verdier! Que resultado poderíamos nós obter? É noite ainda, o atentado produziu-se há pelo menos meia hora... Nestas condições tudo nos leva
a crer que os criminosos, conhecedores, com certeza, destas paragens, tiveram tempo de se pôr a bom recato... Depois do nascer do sol talvez que nos seja possível
descobrir qualquer pista: mas não nos servia de nada! Um simples
atraso nos nossos projectos... quando muito! Além disso, como queria o senhor achar a solução deste trágico enigma? Estamos na orla da grande floresta; esta constitue
um refúgio ideal para os criminosos, além disso, julgo ser da maior imprudência dividir a caravana, em dois ou mais grupos, nas circunstâncias actuais... Devemos
velar e evitar que se produzam deserções nos nossos quadros, que nos seriam muito prejudiciais... Dentro de duas horas, é dia; então retomaremos a nossa marcha para
o Sul...
- Mas, não deixamos alguns indígenas de guarda a este ponto?
- Iríamos expor os desgraçados a uma morte certa... Cada vez me convenço mais que a agressão desta noite deve relacionar-se com os vários projectos de exploração
do jazigo aurífero...
- Essa, também, não está má! Em que é que a descoberta do Eldorado pode prejudicar os seus famosos homens-leopardos?...
- Sabe-se lá!?... Talvez que o senhor tivesse incorrido na cólera da seita e se encontre instalado num território que eles considerem sua propriedade?
Máximo não insistiu mais.
- Depressa! abram uma cova para enterrar esse desgraçado! ordenou ele.
Os indígenas cumpriram imediatamente as ordens do patrão.
O francês, por mais que fizesse, não conseguiu pregar olho o resto da noite.
A cada momento acorria-lhe ao espírito o episódio sinistro, que acabara de se desenrolar próximo do acampamento; parecia-lhe que via ainda essa horrível marca do
leopardo no corpo do negro; as palavras inquietadoras de Preston vinham-lhe constantemente à memória; por mais de que uma vez levou a mão à carabina e pôs-se de
ouvido à escuta procurando surpreender qualquer ruído suspeito.
Começava a clarear a aurora. O inglês, que se estirara ao lado do seu companheiro, sem dizer palavra, foi o primeiro a erguer-se. Durante algunsinstantes, meio-adormecido,
espreguiçou-se, depois voltando-se para o vizinho disse:
- A pé, sr. Verdier!
Máximo não esperou novo aviso. A luz do dia começou a penetrar através dos numerosos interstícios, que se abriam no tecto da barraca, e, a-pesar-do sol não estar
ainda descoberto, a temperatura era já elevada.
- Que raio de dia! resmungou o caçador. Contanto que não chova, pois estamos a entrar na estação das chuvas.
O francês não respondeu, examinando o céu com
insistência; flutuavam nele pequenas nuvens frangeadas de vermelho pálido. Um verdadeiro torpor parecia ter-se apoderado da selva.
Por toda a parte o mesmo silêncio. Nem mesmo se ouvia o grito penetrante do calau nem o cacarejar habitual dos turacos.
Os próprios macacos negros e os chimpanzés, nem esses mesmos se atreviam, como era seu costume, a vir às furtadelas, até ao acampamento, roubar quaisquer restos
de comida, seu acepipe favorito. Os negros apressavam-se no seu trabalho sob a direcção de Balango e de Angosso. Estes dois invectivavam sem cessar os menos corajosos
e, de vez em quando, viam-se obrigados a fazer estalar os chicotes.
Mas, os indígenas manifestavam naquele dia mais ardor no trabalho do que era costume. Tinham pressa de deixar aquelas malditas paragens, onde um dos seus tinha encontrado
a morte, e morte horrível. Desviavam, de vez em quando, os olhares para o pequeno outeiro onde o infortunado Gabão jazia enterrado. Perscrutavam, também, volta e
meia, o mato, na esperança de verem aparecer, de um momento para o outro, Omar, cuja ausência se ia prolongando assustadoramente. Máximo não tinha a mais pequena
esperança acerca dele; o negro, levado para longe do acampamento pelos bárbaros e misteriosos agressores, devia ter sido assassinado,
ele também, e o seu corpo ensanguentado, com a marca terrível, não deveria estar muito longe.
À medida que ia embalando víveres e provisões, Tanga - o moleque - examinava o céu que se toldava cada vez mais. Procurava descobrir certos pontos negros esvoaçando
nas proximidades. Os abutres, coveiros do mato, não podiam deixar de se abater sobre o ponto onde Omar tinha sucumbido; a presença daquelas aves de rapina permitiria
descobrir o ponto onde estava o cadáver de Omar.
Contudo Tanga, por mais que fizesse, não avistava as agoirentas aves.
De pé, à porta da barraca, Máximo observava, em silêncio, o trabalho dos negros, quando uma apóstrofe de Preston lhe chamou a atenção.
- O que há?
O francês verificara, logo à primeira vista, que o seu companheiro estava muito exaltado.
- Não é possível! resmungava o inglês, passeando de um lado para o outro na barraca, e examinando, com insistência, o solo de terra batida. Até parece bruxedo!
- Mas, afinal de contas, o que aconteceu? preguntou Máximo, pela segunda vez, não sabendo o que pensar da estranha atitude do caçador.
O inglês endireitou-se bruscamente e disse com voz cava:
- Parece-me que endoideço!... As cartas e a bússola desapareceram!...
Um raio que tivesse caído aos pés de Máximo não o assombraria mais do que esta estranha notícia.
- Que diz o senhor?... As cartas?... A bússola?...
- Voaram! Desapareceram!... Eu bem lhe dizia esta noite: aqui anda bruxedo...
O francês foi ao bornal, onde guardava preciosamente as cartas e os instrumentos que lhes eram indispensáveis para se orientarem no mato.
- Vazio!... Está vazio, continuou Preston, que não escondia o seu desapontamento... Parece que tudo conspira contra nós e que até a própria Providência nos abandona!
- Contudo, objectou Máximo, eu não vejo quem possa ter interesse em se apoderar das cartas e da bússola...
- Tudo nos leva a pensar que o assassino ou assassinos do Gabão não serão estranhos ao seu desaparecimento...
- Mas, como é que eles puderam penetrar aqui?
- Como? Nós estivemos afastados daqui mais de meia hora. Emquanto descobríamos o cadáver do Gabão, o gatuno entrou aqui na barraca...
- Nessas condições os negros, que estavam
reunidos em torno do lume, não podiam deixar de dar por ele... Vamos interrogá-los imediatamente.
- Duvido muito que chegue a qualquer conclusão. Se os negros tivessem notado algum vulto suspeito não deixariam de nos dizer qualquer coisa, no nosso regresso...
Além disso, eles estavam cheios de pavor e, ao menor ruído, com certeza que gritavam...
- Que importa! Preciso de descobrir a causa do desaparecimento da bússola e das cartas e o mais pequeno esclarecimento pode pôr-nos na boa pista...
Preston encolheu os ombros, manifestando, assim, o seu convencimento de que seriam infrutíferas as démarches de Máximo. Este chamou Angosso e encarregou-o de reunir
todos os indígenas.
Tudo se passou como o inglês previra. Os indígenas, chamados a capítulo, nada disseram que pudesse esclarecer o misterioso desaparecimento daqueles preciosos elementos
de orientação. Estava tão escuro que não tinham podido ver coisa alguma; parecia-lhes que o caso era obra do espírito mau irritado com a presença dos brancos naquele
local.
- Bem lhe dizia que não tiraria qualquer coisa a limpo destes imbecis. Não percamos tempo!... Fomos roubados quando trazíamos o cadáver do Gabão para o acampamento...
- É pena que não tivéssemos dado por isso, logo nessa altura...
- Por quê? Nada ganhávamos. Ou julga que seríamos capazes de descobrir o criminoso, àquela hora?... Mais vale mas é tratarmos de preparar a nossa partida.
- Como poderemos passar sem carta, nem bússola, num sítio destes?... Estamos longe de qualquer povoação, ignoramos as disposições dos indígenas... O drama, que há
poucas horas se desenrolou, obriga-nos a cuidar bem desse ponto...
Preston interrompeu o seu interlocutor e, pondo-lhe a mão no ombro:
- Lá por isso não se incomode, sr. Verdier. Não me tem a seu lado?
"Conheço o mato como os meus dedos... Se os homens-leopardos quiserem opor-se aos nossos projectos terão de se entender comigo, dou-lhe a minha palavra!... À falta
de bússola orientar-nos-emos pela posição do sol e das estrelas.
Estas palavras, pronunciadas em tom enérgico, tranquilizaram Máximo.
- Tem razão, Preston. Provaremos a esses bandidos que nos não metem medo.
O moral da caravana, uma vez terminada a refeição e dada a ordem de partir, era já outro; os carregadores equilibravam à cabeça os seus fardos.
Angosso, como de costume, caminhava na testa da coluna. Preston ia imediatamente atrás dele, em companhia do francês, que nunca se separava da sua carabina. Os negros
vinham a seguir, em fila indiana. Armado com o seu longo chicote, que fazia estalar de vez em quando, para encorajar os retardatários, Balango fechava a coluna.
Quando os dois brancos e a sua escolta entraram no mato a temperatura pesada continuava a fazer-se sentir.
Durante quatro horas marcharam, a passo lento, sempre sob o peso daquela atmosfera asfixiante.
Os viajantes tinham constantemente de lutar com a Natureza que lhes opunha, sem cessar, novos obstáculos, mas estavam habituados a triunfar daquela emaranhada vegetação.
Semelhantes a reptis, os sarmentos de acerados colchetes das palmeiras lianas enrolavam-se-lhes nas pernas arranhando o couro das polainas e chegando mesmo a rasgar-lhes
o fato; caminhavam, porém, sempre para a frente, abrindo caminho através daquela vegetação luxuriante.
Às vezes, Angosso e os companheiros aventuravam-se por entre os formigueiros cheios de Rinsectos; com uma patada, esmagavam gigantescas aranhas de pilosos palpos,
cuja picada jamais perdoa.
Apareciam, também, enroladas em torno dos troncos das árvores, serpentes de mais de dez metros de comprido. com os machetes os negros decapitaram três destes nojentos
e perigosos reptis. O suor fazia reluzir o torso dos carregadores negros. Erguendo os olhos perscrutavam o céu por entre os ramos dos palmares, que nem o mais ligeiro
sopro de vento agitava.
Máximo sentia-se como se caminhasse dentro de um forno; o fato colava-se-lhe ao corpo; enxugava sem cessar o rosto, todo ele banhado em suor. A atmosfera pesada,
e as nuvens que se acumulavam no horizonte, faziam-no pensar que a tempestade não devia andar longe. De um momento para o outro iria desencadear-se com violência.
Ao redor, os animais sentiam aproximar-se a tormenta: turacos, tucanos, aves de todas as espécies tinham emmudecido; macacos negros e ruços, e chimpanzés escondiam-se
sob a folhagem das grandes árvores e cosiam-se uns com os outros. Só" as moscas e as vespas, aos miríades, continuavam a zumbir e os mosquitos fustigavam os carregadores
que prosseguiam, em silêncio, a sua marcha, encorajados pela voz rude de Balango que, como sempre, fazia estralejar o seu inseparável chicote.
Por fim, desencadeou-se a tempestade. Trovões ensurdecedores quebraram o inquietante silêncio. Os indígenas, aterrorizados, estacaram levando as mãos aos amuletos
para se protegerem contra os espíritos maus. Por mais que Balango gritasse e os chicoteasse, não arredavam pé. Largando os fardos no chão, os carregadores, assombrados
pelos constantes relâmpagos, escondiam o rosto nas mãos, parecendo insensíveis às chicotadas de Balango.
Foi preciso que Máximo interviesse e mandasse fazer alto. A chuva caía, agora, em torrentes, alagando o solo e tornando a marcha impossível.
Cada um se abou conforme pôde.
Ao princípio, encostando-se aos troncos das grandes árvores, ainda conseguiram evitar a chuva, mas esta acabou por se infiltrar nas ramadas,
onde os quadrúmanos e as aves permaneciam imóveis. Verdadeiras cascatas se despejavam, agora, sobre os brancos e sobre os seus auxiliares.
Durante um quarto de hora se manteve a tempestade perante o grande pavor dos indígenas.
Mesmo ao pé de Angosso, que tremia como varas verdes, um raio abateu uma palmeira.
Pouco a pouco, o ribombar do trovão foi-se tornando mais espaçado e menos violento, até que se desvaneceu; só a chuva persistia em cair. A gente da caravana sentia
dissiparem-se as suas apreensões. A água, que corria em torrentes, parecia-lhes, agora, uma delícia; estendendo-se ao comprido no solo os indígenas refrescavam os
corpos escandecidos; alguns mesmo abriam a boca, sentindo nisso um grande bem-estar e matando a sêde que os devorava desde que se tinham posto em marcha. O próprio
Balango se espojava no chão lamacento, esfregando o rosto com a água da chuva. Encostados, um ao lado do outro, a um chincho, Máximo e Preston assistiam às manifestações
alegres e ruidosas dos seus auxiliares; esqueciam-se já dos terríveis homens-leopardos, cuja existência tanto os inquietara naquela madrugada.
Levantou-se um vento ligeiro e fresco; a tempestade afastou-se e a chuva diminuiu de violência; em menos de vinte minutos tinha cessado por completo.
Então, o mato apareceu arrancado à letargia em que estivera mergulhado durante perto de uma hora.
Os macacos atreveram-se a sair dos seus refúgios dando a volta ao tronco das palmeiras. Sacudindo a sua plumagem os turacos apareciam, também, por sua vez, e o seu
cacarejar dominava o murmúrio dos milhares de riachos, que serpenteavam através do mato.
Um raio de sol, infiltrando-se sob a folhagem, veio iluminar uma grinalda de lianas em flor, fazendo cintilar as inumeráveis gotas de água suspensas, tornando-as
quais diamantes. O cenário tinha um vago ar de mágica. Um javali passou a correr, como uma tromba, por entre o mato. Preston tentou ainda fazer fogo, mas era já
tarde: o animal conseguiu safar-se a tempo.
- Raios o partam! resmungou o inglês, desapontado. Dava-nos para um bom almoço.
- Console-se, lembrando-se do que temos, que não é nada mau, foi a resposta de Verdier. E as bananeiras são um manancial farto e precioso!... Também, com a terra
assim molhada, não poderíamos acender uma fogueira... Emquanto esperamos que a acção do sol produza os seus efeitos contentar-nos-emos com frutos e conservas.
- Tem razão, sr. Verdier. O ponto onde nos
detivemos parece-me bem escolhido. Balango aproximava-se para receber ordens.
- Ficamos aqui ainda uma hora! disse Máximo.
Esta decisão do tubabo foi acolhida com a maior alegria pelos indígenas, a quem um alto, depois da longa marcha, não deixava de seduzir.
Em volta do grupo, o terreno parecia transformado num enorme pântano. Lentamente, a água ia-se evaporando, sob os raios do sol; o coaxar das rãs fazia, de novo,
ouvir-se.
- Decididamente estávamos já a sentir a falta da orquestra! disse o francês dirigindo-se a Preston, que limpava a carabina.
- Mais vale este concerto, a que já estamos habituados, que os uivos sinistros desta noite.
Em que fora falar! Máximo tinha deixado de pensar na trágica aventura daquela noite. Sem responder, afastou-se amaldiçoando no seu íntimo o caçador pela sua triste
lembrança de ter vindo falar no assunto. Angosso, mais o moleque e uma dezena de indígenas procediam a uma ampla colheita de bananas, que vinham depor aos pés do
tubabo.
- Vamos, para a mesa! exclamou o francês. A ementa não é variada...
Preston veio acocorar-se junto do seu companheiro. Mantinha o seu ar preocupado.
- Porque está tão triste, camarada aventurou Máximo. Esqueceu-se já da descoberta do jazigo?
O semblante do caçador ficou ainda mais carregado.
- Não me esqueço mas é da marca do Leopardo! respondeu ele, abanando a cabeça.
- Ah! Ele é isso, Preston?... Que mosca lhe mordeu? Você, se calhar, lembra-se agora de ter medo? De facto julgava-o mais valente!
O interpelado não respondeu logo. Um sorriso subtil iluminou-lhe o rosto.
- Deus bem sabe que não temo a morte; tenho-a afrontado muitas vezes; mas, uma ameaça terrível paira sobre as nossas cabeças. Assim nos possamos escapar aos ataques
dos nossos inimigos, tanto mais para temer porque são invisíveis... Quem sabe? Talvez neste mesmo momento nos estejam espreitando?
As apreensões de Preston surpreendiam Máximo. Nunca, desde que tinham partido de Bingerville, lhe notara semelhante abatimento.
O seu rosto crispado exprimia a mais profunda inquietação. A ferida horrível que descobrira no corpo do Gabão parecia decididamente ter produzido sobre ele a mais
viva impressão. Máximo ia responder, mas de-repente, deteve-se.
- Ouviu? disse ele, pondo a mão no ombro do
seu companheiro. Parece-me ter surpreendido um toque de trompa, ao longe!
Angosso e os outros carregadores escutavam, também, inquietos. De facto, o francês não estava sendo joguete de nenhuma alucinação; todos acabaram por ouvir um som
lúgubre, a alguma distância.
- Alguém faz soar uma trompa, asseverou Preston, cujas pupilas se tinham iluminado, subitamente.
- Talvez estejamos perto de qualquer aldeia, disse Máximo.
O caçador fez que não, com a cabeça.
- Se estivéssemos próximo de uma aldeia não era uma trompa mas o tatn-tam que nós ouviríamos.
- Então, quem será que quere dar notícias da sua presença nesta terra desconhecida?
- Sobre esse ponto não estou mais informado do que o senhor... Talvez alguma caravana perdida no caminho. Deve encontrar-se neste momento cerca de uma milha à nossa
esquerda.
- Então, é irmos ter com ela e dar-lhe, também,! sinal da nossa presença. Desde que perdemos as cartas e a bússola estamos um pouco na situação de náufragos perdidos
no meio do oceano.
- Sr. Verdier, nunca será demais aconselhar-lhe toda a prudência... A região não é das mais seguras e poderia muito bem acontecer irmos cair
num grupo animado de más intenções... Não se esqueça nunca da horrível aventura da noite passada...
Estas palavras forçaram o francês a uma certa reserva. Durante um curto momento, pensativo e absorto, Máximo não sabia por que decidir-se. Os apelos da trompa de
caça continuavam a fazer-se ouvir, cada vez mais espaçados, mas parecendo sempre aproximar-se.
A certa altura, o francês não se pôde conter.
- Aconteça o que acontecer... Temos, também, de dar sinal da nossa presença... Estou com interesse em conhecer a identidade destes misteriosos viajantes.
- Como o senhor quiser! respondeu, imediatamente, Preston.
E, juntando o gesto à palavra, o caçador, apoiando o dedo no gatilho da carabina, deu um tiro para o ar; a detonação repercutiu-se através do mato.
Os indígenas, assustados, agarravam os seus amuletos e olhavam, pouco seguros, para os dois brancos.
A resposta ao tiro não se fez esperar: de novo a trompa tocou e agora repetidas vezes. O coro das rãs calara-se e apenas se ouvia o gotejar da água caindo das ramadas
das árvores. Durante uns cinco minutos o francês e os seus companheiros estiveram de ouvido à escuta. Angosso deitou-se
no chão e, encostando o ouvido ao solo, tentava surpreender o menor ruído denunciador do avanço dos desconhecidos.
O seu rosto iluminou-se. com as mãos e o corpo todo cheio de lama ergueu-se e, dirigindo-se a Máximo, disse:
- Vem gente, tobabo... Caravana grande.
- Dirigem-se para este lado?
O indígena agitou afirmativamente a cabeça.
- Talvez que fosse mais conveniente irmos ter com eles, alvitrou Verdier.
- Que idea... Sem sabermos se se trata ou não de inimigos... Aqui, estamos muito bem para repelir um ataque... Que diabo, é preciso não perder a paciência!... Agora,
também, já não falta muito...
Ainda mal o inglês tinha acabado de pronunciar estas palavras, Angosso, erguendo-se bruscamente, puxava pela manga de Máximo, e exclamava:
- Vê, tubabo, eles aí vêm... O francês olhou na direcção que o indígena lhe indicava.
A menos de duzentos metros, à esquerda do local onde o grupo chefiado por Máximo Verdier estacionara, notava-se uma longa fila de pretos avançando por entre o matagal.
Dois deles, armados de machetes, abriam caminho. Detiveram-se, porém, ao avistar os capacetes brancos de Máximo e Preston.
Os dois europeus, empunhando as carabinas mantinham-se em guarda, para a emergência de um ataque.
Os pretos acenaram aos dois brancos fazendo-lhe sinais de amizade e boa paz.
Máximo soltou um suspiro de alívio.
O moleque Tanga e os outros indígenas bateram palmas de satisfação. Desde que tinham ouvido o som da trompa que se apoderara deles o receio de serem atacados; agora
sentiam-se tranquilos pela atitude amigável dos desconhecidos.
Os dois indígenas armados de machetes e os carregadores que os seguiam dirigiram-se ao inglês.
Máximo não abandonara o seu pouso; encostado à palmeira olhava os indígenas, que iam surgindo por entre o matagal.
Eram tantos que não tardou em convencer-se que se tratava de uma caravana importante.
Radiantes, os recém-chegados juntavam-se aos indígenas da caravana de Máximo confraternizando com eles.
A seguir aos carregadores, um outro grupo despontava por entre o mato, e para ele se desviaram as atenções de Máximo. Dois baulés, de estatura gigantesca, avançavam
levando à cabeça uma comprida cana de bambu da qual estava suspensa uma tipida.
Um ligeiro véu, estendido por cima deste estranho palanquim, agitava-se ao vento, deixando adivinhar um corpo humano deitado.
Devia ser o chefe da caravana. Preston dirigiu-se para a tipóia e o francês apressou-se em ir ter com ele a-fim-de cumprimentar o recém-chegado.
Assim que chegou ao pé do caçador, deteve-se, soltando uma exclamação. O véu ligeiro, que tapava a rede, afastou-se bruscamente, deixando ver um rosto de um contorno
clássico onde brilhavam dois olhos verdes de uma extraordinária limpidez.
- Ora esta!... Uma mulher!
O francês julgou-se vítima de uma ilusão, mas depressa se rendeu à evidência dos factos.
A recém-chegada ergueu-se um pouco na rede e tirou o capacete, desprendendo-se então os seus cabelos, de um louro fulvo; sorridente, deixava ver os seus lindos dentes,
e, dirigindo-se a Máximo, disse-lhe, na sua voz cantante:
- Good afternoon, Sir... How are you? (1)
O francês, tão estupefacto estava, que não respondeu logo.
- Do you speak English? (2) continuou a desconhecida,
(1) Boa tarde; como está?
(2) Fala inglês?
que parecia muito divertida perante o pasmo do seu interlocutor.
- Oh! sim... falo inglês, balbuciou Máximo... Quere dizer...
- Quere dizer que o senhor é francês... Pouco importa! Falo muito bem a sua língua...
"Na verdade, este encontro no mato é tudo quanto há de mais imprevisto... Há cerca de uma hora não me passava pela cabeça que pudesse encontrar dois europeus...
- Eu, também, até agora, reputava impossível que uma senhora, e jovem de mais a mais, se atrevesse a penetrar sozinha nestas desconhecidas regiões.
Um vago ar de ironia pairou nos olhos verdes da desconhecida.
- Deixe-me que me apresente: sou Sadie Quaynes! De nacionalidade inglesa. Viajo para me divertir e proponho-me, depois de ter visitado esta parte da Costa de Marfim,
seguir para a Libéria... Meu marido foi administrador na Serra Leoa... morreu de febres, há já dois anos.
O francês parecia intrigado no mais alto grau com o que ouvia à inglesa e ia a fazer-lhe uma pregunta, quando esta, antecipando-se, lhe disse:
- Já sabe o meu nome, agora... Qual é o seu? Máximo apresentou-se; em poucas palavras
explicou à sua misteriosa interlocutora os motivos da sua expedição.
- E aquele homem? É um amigo seu? preguntou ela, a meia voz, apontando para o caçador...
- Preston é o meu guia e o meu companheiro de aventuras.
O inglês permanecia imóvel; nada indicava na sua fisionomia qualquer admiração pela presença daquela mulher.
Fez uma ligeira inclinação de cabeça e observou com atenção a recém-chegada.
Sadie Quaynes encarou um pouco com Preston, e, depois, estendendo ao francês a sua mão de dedos afilados:
- Shake-hand? (1)
- Shake-hand! respondeu o interpelado trocando com Mrs. Quaynes um aperto de mão.
O inglês veio também apertar a mão da estranha dama; depois esta, endireitando-se um pouco, gritou:
- Buasso!
O moleque que estava a dois passos deles acorreu pressuroso.
- Buasso, ajuda-me a levantar! ordenou, em tom de comando, a mulher.
(1) Um aperto de mão?
Máximo afastando o indígena, disse:
- Eu ajudo-a, Mrs. Quaynes... Ela agradeceu-lhe, num sorriso.
- De facto os franceses são sempre muito galantes! declarou a inglesa aceitando a mão que Máximo lhe estendia.
Sadie Quaynes tomou enfim contacto com o chão. A princípio, um pouco atordoada pela prolongada imobilidade a que se vira forçada, apoiou-se ligeiramente ao ombro
do seu amável companheiro.
Imóvel, Máximo sentiu o hálito quente e perfumado daquela mulher acariciando-lhe a nuca.
O que se estava passando era incrível. A presença daquela perturbante criatura naquele local parecia-lhe ser do domínio da fantasia. Os grandes olhos verdes da viajante
pousaram, de novo, nele e a sua voz melodiosa veio arrancá-lo às suas reflexões.
- Em que está pensando, sr. Verdier?
O francês estremeceu, procurando dissimular a sua perturbação.
- Deve ter feito uma longa étape, esta manhã, Mrs. Quaynes? Os seus homens parecem-me fatigados...
- Sem a maldita tempestade não nos teríamos atrasado tanto... Mas, não devo revoltar-me contra os elementos... Se não fosse o alto, a que fui obrigada,
não teria tido o grande prazer de encontrar um francês no meu caminho.
- E, eu, também - retorquiu Máximo - não teria tido esta inesperada e grande alegria.
Sadie Quaynes vestia um trajo masculino de pique branco; calçava botas altas, amarelas, até ao joelho; à roda da cintura um cinturão do qual pendia um revólver.
Angosso e os carregadores do francês, acocorados perto daquele local, olhavam pasmados, de boca aberta, aquela branca que ali surdira, quási misteriosamente.
Sadie Quaynes parecia indiferente às admirações que despertava. com um olhar circunvagou o horizonte.
- Este sítio não parece dos mais propícios para acampar, opinou ela dirigindo-se a Máximo.
- Ora essa!... se não vê nisso inconveniente poderemos pôr-nos, de novo, a caminho... Perto deve haver um sítio melhor. Paramos aqui apenas para tomar fôlego e não
tencionávamos demorar-nos muito.
A inglesa estendeu o braço apontando para a direita.
- O guia declarou-me esta manhã que há uma clareira ali para aqueles lados... Era para lá que nos dirigíamos quando ouvimos o tiro... Então, não hesitei...
Dei ordem aos carregadores para acelerarem a marcha... julguei que se tratava de alguém em perigo. Ainda bem que assim não era...
Emquanto a inglesa ia falando, o francês não cessava de a contemplar; tão absorvido estava que nem notou, que o rosto de Preston se contraíra num sorriso sarcástico.
Ao caçador, que estacionava perto deles, não escapara a impressão profunda provocada pela estranjeira no seu companheiro de aventuras.
- Foi Preston quem fez fogo; e apenas para responder ao apelo da trompa.
- Calembi, o meu capataz, tocara a trompa para chamar três dos indígenas que se tinham afastado em busca de comestíveis; eu estava com receio de que eles se tivessem
perdido, desorientados pela tempestade... Estes pobres pretos têm um medo horrível dos trovões!...
- É melhor, então, pôrmo-nos a caminho da tal clareira, disse Máximo.
- Mas... eu não queria que alterassem a vossa rota por minha causa, repetiu Sadie Quaynes. Demais a mais devem já ir atrasados por causa da tempestade.
- Que importa?... Há muito que vagabundeio por montes e vales e nunca tive o prazer de um tão agradável encontro...
- Por amor de Deus, sr. Verdier... Lembre-se
de que não estamos numa sala... Poupe-me aos cumprimentos do protocolo.
- Peço-lhe que não veja nas minhas palavras uma simples formalidade, atalhou o francês. Digo-lhe muito sinceramente o que sinto, nada mais.
Sadie Quaynes sorriu, lisonjeada, depois, com um gesto, pôs termo à conversa.
- O seu amigo está impaciente.
O francês não pôde reprimir um gesto de irritação e, voltando-se para Preston, preguntou-lhe, de mau modo:
- O que há?
- Os indígenas esperam as suas ordens... replicou o inglês. Pômo-nos de novo em marcha?
- Sim, vamos já partir... O guia de Mrs. Quaynes indicar-nos-á o caminho... Viajamos juntos até nova ordem...
Esta decisão parecia não agradar muito a Preston, mas Máximo falara num tom que não admitia réplica. Encolhendo os ombros, o caçador dirigiu-se para junto de Angosso
e de Balango que aguardavam a decisão do tubabo.
- Preparem-se... Vamos partir! disse Preston.
Os indígenas, ainda com a boca cheia das bananas que estavam a comer, correram para o ponto onde tinham deixado os fardos, e, um a um, em silêncio, carregaram-nos
à cabeça.
Entretanto Sadie Quaynes, sempre apoiada ao braço de Máximo, ia instalar-se na sua tipóia.
Um apito e a seguir a nota grave e monocórdica da trompa, fizeram-se ouvir.
Os indígenas das duas caravanas, em fila indiana, punham-se em marcha.
com a carabina a tiracolo, Máximo, acompanhado de três indígenas, armados com os seus machetes, ia de guarda à tipóia, seguindo Preston, sozinho, na vanguarda da
coluna.
De vez em quando, e mesmo um pouco insistentemente, o francês olhava para a sua nova companheira de viagem, que, de olhos fechados, abandonando-se ao lânguido balancear
da tipóia conduzida por dois possantes carregadores, deixava pender para fora do mosquiteiro a sua mão muito branca, em cujo dedo anular brilhava um anel de grande
preço.
- Bonasso!... Matacanha!
O moleque, que todo atarefado procedia à arrumação de vários fardos, apressou-se em acorrer ao chamamento da senhora. Sadie esperava, recostada preguiçosamente num
leito de campanha, que os carregadores tinham montado à pressa. O pretalhão ajoelhou-se aos pés da inglesa, e a seguir, com todas as precauções, tirou-lhe uma das
botas toda cheia de lama.
- Vamos, Buasso... Tira-me a meia!... Anda, mais depressa!
O moleque descalçou a senhora; o pé de Sadie, de uma alvura de jaspe, destacava-se na mancha negra da coxa de Buasso; com a palma da mão o preto matou um mosquito
que esvoaçava ao redor do tornozelo da inglesa.
- Buasso! Magoaste-me!
O preto mordeu os beiços. A inglesa tinha mau génio.
Estava sempre à espera de nova reprimenda. Tirou de um estojo pequeno um canivete cuja folha era extremamente afilada, assentou bem o pé da sua patroa sobre o joelho,
e começou a extirpar as matacanhas que se tinham alojado na epiderme fina dos dedos dos pés.
Sadie puxara por uma cigarreira de prata, e acendeu, voluptuosamente, um cigarro de tabaco amarelo. Imóvel, passeava o seu olhar pelo céu onde começavam a luzir
as primeiras estrelas. À roda, os indígenas dos dois grupos preparavam, afanosamente, a ceia. Kalembi, e os carregadores da tipóia, montavam uma tenda onde a inglesa
pudesse passar a noite, bem abrigada dos mosquitos.
O sol, que dardejara violentamente, durante a maior parte do dia, tinha feito evaporar, em poucas horas, as poças de água e os riachos que inundavam o mato a seguir
à tempestade; os indígenas podiam, assim, agora, instalar-se em terreno seco.
Do seu poiso, a inglesa observava os vultos dos indígenas. Alguns carregavam para o centro da clareira com braçadas de ramos de árvores secas; outros acendiam o
lume, e, estendidos de barriga para baixo ateavam-no soprando com toda a força dos seus pulmões.
com o peito e os braços cheios de sangue, Balango e dois dos auxiliares esfolavam um javali abatido por Preston. A brisa que se levantara levava até à pituitária
de Sadie o cheiro acre e nauseabundo do animal. A inglesa fez uma careta e para afastar o cheiro, que tanto a incomodava, puxou umas fumaças mais enérgicas.
- Cuidado, Buasso!... Lá me magoaste outra vez... Hoje tens a mão mais pesada que de costume!
O moleque, vexado por esta nova reprimenda, prosseguiu na tarefa de extrair os parasitas dos pés da viajante.
Sadie acabava de acender novo cigarro e levantou, subitamente, a cabeça. Uma voz fazia-se ouvir, perto dela, que preguntava:
- Dá licença, Mrs. Quaynes?
Era Máximo que se aproximava, mangas arregaçadas até cima dos cotovelos, cabelos em desalinho, um ar radiante.
A inglesa respondeu, languidamente, por entre as espirais de fumo:
- A sua companhia é sempre muito agradável, sr. Verdier... olhe... Buasso está a ver se caça as matacanhas... Que estopada!
- Ah! isso é uma precaução indispensável, Mrs. Quaynes. É um mal a que todos estamos sujeitos e de que é preciso libertarmo-nos a tempo.
Sei de alguns colonos estropiados por não terem querido tomar a tempo as precauções convenientes...
Um perfume de acácia, o perfume predilecto de Sadie, vinha acariciar o olfacto de Máximo. Ele esquecia-se de tudo, do ponto onde se encontrava, dos incidentes trágicos
que tinham custado a vida a dois dos seus auxiliares, do perturbante mistério da marca do leopardo e até mesmo da descoberta maravilhosa do jazigo de ouro, para
não pensar senão naquela mulher que, inopinadamente, encontrara no seu caminho.
Desde que Máximo a vira, nunca mais pudera pensar senão nela. O dia parecia-lhe correr com vertiginosa velocidade. Por várias vezes Preston dirigira-lhe a palavra;
apenas respondia por vagos monossílabos.
O caçador, tendo compreendido o estado de espírito do francês, não insistira; um brilho irónico iluminava as suas pupilas.
"Decididamente o homem está apaixonado, ou então eu não me chame Preston!" tinha ele murmurado.
Verdier ouvira a reflexão do seu guia; não se dera, porém, ao trabalho de protestar. Era inútil mascarar a verdade. O encontro que acabara de ter, naquele recanto
perdido do mato,
contaria certamente entre os acontecimentos mais memoráveis da sua existência. Até ali só conhecera uma paixão: a Aventura...
No decurso da sua juventude tivera alguns namoricos, mas jamais encontrara uma mulher capaz de o prender.
Há meses que Máximo mergulhara, cada vez mais profundamente, no Continente Negro.
Os representantes do belo sexo que encontrara no seu caminho não o tinham, por forma alguma, seduzido.
- Agora, vamos ao outro pé, Buasso!...
O indígena deslocou-se e foi-se ajoelhar do outro lado da cama de campanha. À luz indecisa do foco mais próximo, Sadie surpreendeu o olhar que Máximo lançava ao
moleque.
- Que tem, sr. Verdier?... Parece-me... como direi?... parece-me que está um pouco fora de si...
- Mas, não... por forma alguma... nunca me senti tão bem disposto, respondeu Verdier, arrancando-se à sua contemplação. Apenas pregunto, a mim mesmo, se estarei
a sonhar?... A sua presença nestas regiões parece-me inexplicável... Poderia esperar tudo, combater canibais, descobrir tríbus selvagens na grande floresta, mas
nunca pudera pensar que me encontraria
com uma mulher tão bela... tão encantadora... em plena floresta...
- Decididamente sr. Verdier, o senhor não perde tempo em justificar a reputação dos seus compatriotas... Não é verdade que eles se não podem encontrar, em frente
de uma mulher, sem lhe dirigir um madrigal?
- Não faça troça, Mrs. Quaynes... Olhe que estou a falar a sério...
Sadie soltou uma risada cristalina, mostrando os seus lindos dentes.
- Evidentemente que não é o senhor o primeiro que me dirige galanteios... mas aqui, longe da civilização, é que eu os não esperava.
com os seus lindos olhos verdes ela fitava-o insistentemente. com um gesto lânguido, a inglesa deitou fora o cigarro ainda em meio.
- Para que olha para mim assim, dessa maneira, sr. Verdier?
Máximo respondeu pronto:
- Acho que os seus olhos são perturbantes, Mrs. Quaynes... Quando olho para si não posso deixar de me recordar de certas passagens da Ilíada que o meu professor
de grego, nos tempos que já vão longe, em que frequentava o Liceu Carnot, nos obrigava a traduzir...
- Evoco-lhe então coisas tão velhas?...
- Mas, por que graceja dessa forma? Quando olho para si, penso na soberba Minerva, na Palas Atenêa que intervinha sempre nos combates. Homero descreve-a com olhos
tão verdes, tão límpidos, tão estranhos como os seus. Não lhe chamou, ele, Qlaukôpis Atenêa?...
- Cuidado, Buasso!... Olha que me cortas!... Desastrado!...
- Mim estar pronto, "Missus", respondeu o interpelado, que acabava de esmagar, triunfalmente, uma matacanha entre os dedos.
- Vamos!... Avia-te!. Hoje não há maneira de acabares com isso...
Máximo atreveu-se ainda a olhar furtivamente para o pé, classicamente torneado e de uma brancura alabastrina, da inglesa, mas, verificando que ela o fitava com insistência,
baixou a cabeça como um colegial apanhado em falta. Uma pregunta de Sadie pôs termo ao seu embaraço:
- Santo Deus!... O senhor também se tornou feiticista?
- Feiticista, eu?... Que idea a sua!...
- Então para que traz esse amuleto ao pescoço? E a inglesa apontava para um saquinho que Máximo trazia pendurado ao pescoço e que continha as pepitas encontradas
no placer.
Máximo ficou um momento interdito. Não sabia
se devia revelar o seu segredo àquela mulher, a esta estranjeira, apenas de passagem, mas cujos olhos verdes o fitavam com uma tal expressão de súplica e de curiosidade,
que não pôde resistir-lhes. Desatando o saco do cordão onde este pendia passou-o para a mão da sua interlocutora.
- Veja à sua vontade Mrs. Quaynes.
A inglesa apoderou-se do saquinho e, com todas as precauções, esvasiou o seu conteúdo na palma da mão. Deixou escapar uma ligeira exclamação ao ver as pepitas.
- Ouro?... Mas... como é possível?
A surpresa que a dominava era tão grande que a fez saltar da cama abaixo, obrigando Buasso a interromper o seu trabalho. Passando as pepitas da mão direita para
a mão esquerda, e desta para aquela, examinava-as com a maior meticulosidade, mas a luz do bivaque era insuficientemente forte para as poder apreciar convenientemente.
- Buasso! acende uma lanterna! Imediatamente o moleque se afastou deixando Sadie a sós com o francês. Pondo de parte o ar indiferente que adoptara para com Verdier,
a inglesa disse-lhe, em tom aliciante:
- Ora, vamos lá... Conte-me as suas aventuras! Eu sabia que vários prospectores tinham batido as regiões do norte, mas tinha ouvido dizer
que coisa alguma haviam descoberto... Pensando bem nos perigos e dificuldades que há que afrontar para atingir a orla da grande floresta compreende-se o seu fracasso.
É que há que vencer as agruras do clima, os animais ferozes, e os embustes dos homens, mais temíveis que as próprias feras. Mas, conte-me, onde é que descobriu este
filão?...
- A Providência favoreceu-me... Mrs. Quaynes!... Quando os indígenas encontraram a primeira amostra de minério estava bem longe de imaginar a importância dessa descoberta...
- Então o senhor não é prospector?
- Não! Vim aqui apenas para caçar elefantes. Mrs. Quaynes... Sou um aventureiro incorrigível... Percorria esta região pelo simples prazer da exploração e na esperança
de recolher algum marfim... Adoro o imprevisto e o perigo...
Buasso voltara com a lanterna; Sadie virou e revirou entre os dedos as amostras do precioso minério. Imóvel, Verdier não se cansava de admirar o rosto da inglesa,
a cujos traços esculturais o clarão indeciso da lanterna dava um estranho realce; a brisa fazia ondular a sua cabeleira; nas longas pestanas esbatia-se em lânguido
sombreado o brilho perturbante dos seus olhos verdes.
Então, a pedido da inglesa, Máximo relatou-lhe
as circunstâncias em que fizera a descoberta do placer; evitou contudo fazer a menor alusão aos acontecimentos trágicos da noite antecedente. Sadie escutava-o sem
a mais ligeira interrupção. Quando o francês terminou o seu relato ela bateu as mãos, de entusiasmo.
- Admirável! Não se poderá dizer que o senhor não tenha sorte. Quantos perderam a vida em trabalhos de prospecção sem encontrarem sequer vestígios de ouro! O que
me admira é que o senhor se dirigisse para o Sul... Porque não ficou explorando o jazigo?
- Porque carecia de obter legalmente a concessão!... Antes de iniciar os trabalhos preciso de declarar a minha descoberta às autoridades competentes, a-fim-de que
ninguém me possa contestar os meus direitos à concessão. Procurava chegar a Séguéla, ou a qualquer outra sede de circunscrição, o mais rapidamente possível para
adquirir os meus direitos. Negócios são negócios! Gosto sempre de ter todas as minhas coisas em ordem...
Sadie sorria-se...
- O senhor é uma criatura extraordinariamente metódica. A sua esposa deve orgulhar-se em ter um marido tão escrupuloso!
- A minha mulher?... Mas eu não sou casado, protestou o francês.
- Não é casado?!... Não acredito que ainda não tenha encontrado uma alma gémea da sua...
- Não, ainda não tinha encontrado... Mas, não desespero... Deve com certeza existir... em qualquer parte do-planeta...
- É, assim mesmo, sr. Verdier! Nunca se deve desesperar. Emquanto espera por ela tome cuidado não vá perder os seus amuletos. E, passando-lhe para a mão o saco com
as pepitas, Sadie sublinhou, com uma risada cristalina, as suas considerações.
- Santo Deus, não representam para mim um grande valor. Ontem, ainda, talvez... mas, hoje...
E, ao pronunciar estas palavras, Máximo olhava fixamente para Sadie... Ardia em desejos de lhe confessar qualquer coisa, mas não se atrevia. Na presença daquela
mulher esquecia tudo. Sentia-se extraordinariamente perturbado. Estendendo uma das mãos agarrou-a pelo pulso:
- Qlaukôpis Atenêa! murmurou em voz suplicante.
Teria desejado que aquele momento se prolongasse indefinidamente. Sadie não tentara repeli-lo; acariciava com a ponta do pé a lona rugosa da cama de campanha. Buasso
afastara-se para a tenda que os outros indígenas acabavam de montar.
com a outra mão o francês afagou os cabelos
louros e encaracolados da inglesa. Os olhos verdes fitavam-se nele numa atitude de desafio. Sentia junto a si aquela soberba mulher, que, imóvel e calada, não esboçava
um gesto sequer de resistência. Bruscamente apertou-a de encontro ao peito. Os lábios de Máximo iam pousar nos de Mrs. Quaynes, quando, de-repente, deu um sobressalto:
alguém lhe batia no ombro.
- Que há? resmungou ele de mau modo.
E, à luz indecisa da lanterna, apercebeu o vulto de Preston. O caçador estava a seu lado e, impassível, estendia-lhe uma carta.
Assim que deu pela caligrafia, tão sua conhecida, do sobrescrito, todo salpicado de lama, que Preston lhe entregava, Máximo estremeceu. Estava quebrado o encanto.
Esquecia-se, já, de Sadie, que, sem manifestar a mais pequena perturbação, olhava para Preston, como quem quere preguntar qualquer coisa.
- Uma carta de Jacques Serbannes! exclamou Verdier. Que diabo haverá?
E, febrilmente, rasgou o sobrescrito, emquanto Preston, lhe ia explicando:
- Trouxe-a um portador, que acaba de chegar de Séguéla... Encontrava-se num estado de esgotamento extraordinário; não sabendo lá muito bem onde nos havia de encontrar,
fartou-se de bater o mato à nossa procura. Conseguiu descobrir-nos esta noite porque viu as nossas fogueiras...
Vinha tão estafado que foi com grande dificuldade que conseguiu pronunciar o seu nome...
Máximo pouca atenção prestava às palavras do inglês, ocupado como estava em ler a carta, à luz mortiça do fotóforo.
- Más notícias? inquiriu Preston, ao verificar a emoção do seu companheiro.
Máximo fez que não, com a cabeça.
- Esplêndidas, pelo contrário!... São do meu velho amigo Jacques Serbannes, que deixei em Bingerville... Deseja vir caçar elefantes connosco... Aguarda notícias
minhas, em Séguéla, e pede-me para lhe marcar um ponto de encontro, antes de nos internarmos na floresta...
O inglês não compartilhava da alegria do seu interlocutor.
- Esse sr. Serbannes teria feito melhor em ter vindo logo connosco, quando partimos de Bingerville. Agora, pelo visto, já se não pensa em caçar elefantes...
- Mas, eu tenho de dar uma resposta a Jacques!... Estava doente, quando partimos, senão teria vindo connosco... Somos amigos do tempo do liceu... Andamos juntos
pela Nova-Guiné, pela Síria e por Angola!...
Máximo passeava, de um lado para o outro, com a carta na mão. Perto da cama de campanha
onde Sadie se encontrava, agora sentada, Preston aguardava.
- Que vai, então, decidir, sr. Verdier? atreveu-se ele a preguntar.
Máximo releu ainda a carta mais uma vez.
- Olhe, quando o portador estiver em condições de seguir caminho leva-me a resposta... De duas, uma: ou encontramos Serbannes em Séguéla, quando formos tratar da
concessão, ou, então, ele vem ter connosco ao caminho...
- A primeira solução parece-me a melhor, observou Preston... O sr. Serbannes terá de ter paciência...
- Dir-se-ia, Preston, que a decisão do meu amigo o contraria?
- É que, sr. Verdier, encontramo-nos, agora, em circunstâncias relativamente especiais... A exploração do jazigo nada tem de comum com a caça ao elefante...
- Conheço bastante bem Serbannes; ele só nos poderá ser útil...
O inglês ia a falar; Máximo interrompeu-o.
- Onde está o portador que trouxe a carta de Serbannes?
- Está deitado ao pé do lume... Bebeu um pouco de vinho de palma, mas o seu estado de esgotamento é extremo...
- Leve-me aonde ele está...
Preston não insistiu, e, seguido pelo francês, dirigiu-se para o centro do acampamento... Durante um momento, Sadie pareceu indecisa, mas, enfiando o capacete, com
um gesto brusco, foi atrás deles.
A chegada do portador de Serbannes tinha provocado uma certa sensação no bivaque. Os carregadores e os auxiliares, que compunham a escolta dos dois grupos, cercavam
o pobre preto, estendido no meio do chão, e suando por todos os poros. A sua respiração era ofegante. Não podia falar e tinha os olhos cerrados.
Máximo teve de empurrar os indígenas para chegar junto do portador da carta. Mal se debruçara sobre ele sentiu que alguém lhe puxava pela manga da camisa. Irritado,
voltou-se. Angosso estava a seu lado.
- Este é Abdallah! disse o preto, apontando para o outro estendido no meio do chão, e que respirava com grande dificuldade. Eu sou amigo dele... Eu também servir
tubabo Serbannes. Abdallah, com certesa, mandado pelo tubabo Serbannes...
Em poucas palavras, Máximo explicou ao indígena o conteúdo da carta do seu velho amigo. Sabia que Angosso fora, durante bastante tempo, um dos mais fiéis servos
de Serbannes, e que este, quando
Verdier tinha partido de Bingerville lhe recomendara que o tomasse ao seu serviço.
Angosso bateu as mãos, de contente, quando soube das intenções de Serbannes.
- Tubabo Serbannes vem... Mim, muito alegre! afirmou, cheio de entusiasmo.
Máximo desejaria interrogar o emissário do seu amigo, mas verificou que só daí a umas horas ele poderia estar em condições de falar.
- Vamos daqui para fora! disse ele aos indígenas, e tratem de preparar o jantar.
A passo lento Máximo dirigiu-se para a sua tenda, não muito longe da que os indígenas tinham montado para a inglesa; depois de ter dado ordens a Tanga para lhe acender
o fotóforo, releu, mais uma vez, a carta de Serbannes... Evocava recordações do passado, a velha camaradagem que sempre os unira.
Eram, a bem dizer, companheiros dignos um do outro, tendo ambos uma paixão em comum: a aventura.
De-repente, uma nuvem sombreou a fronte do francês. Outra imagem acorria ao seu espírito, mais recente e mais perturbante.
Viera-lhe à idea a cena com Sadie.
- Teria eu endoidecido? murmurou... Onde tinha a cabeça? para me deixar, assim, prender
por uma mulher? Ainda bem que a carta de Serbannes me veio chamar à ordem. Eu sei lá quem é Sadie Quaynes?... e ia lançar-me, assim, nos braços da primeira aventureira...
Máximo passou a mão pela testa, encharcada em suor. A carta de Serbannes viera interromper o idílio com Sadie.
A razão impunha-lhe que não pensasse na inglesa, mas a fascinação daqueles olhos verdes enleava-lhe os sentidos. Evocava os momentos passados junto da estranha criatura.
Surpreendeu-se a murmurar o cognome que lhe pusera: Qlaukôpis Atenêa. A voz rude de Preston veio arrancá-lo ao seu devaneio.
- Estamos à sua espera para jantar, disse o inglês. Está tudo a postos...
- Ainda bem!... vou já... Máximo escondeu a carta no bolso, e lá seguiu atrás de Preston. Sentou-se junto de Sadie que, de perna traçada, se instalara perto de uma
das fogueiras.
- Ora, até que emfim!... Onde é que se tinha metido?
- Estava na minha tenda, respondeu o francês, e, puxando pela sua faca atirou-se, com grande apetite, a um pedaço de javali assado.
Durante um certo tempo apenas se ouviam as exclamações dos indígenas, repartindo entre si, junto às outras fogueiras, pedaços de carne assada.
Os olhos de Sadie fixavam-se com grande insistência sobre Máximo, como se lhe quisessem adivinhar o pensamento.
Impassível, Preston, acocorado junto deles, não cessava de os observar.
A perturbação de Máximo não escapara ao inglês, mas aquele não se preocupava com o seu guia.
Passaram bem cinco minutos, e os três europeus continuaram a comer sem trocar palavra; os olhares de Sadie e de Máximo cruzavam-se, de vez em quando.
Finalmente foi Preston quem quebrou o silêncio.
- Temos de tomar uma deliberação, sr. Verdier. Continua decidido a prosseguir viagem para o Sul?... Se é essa a sua intenção, só poderá encontrar o seu amigo em
Séguéla...
- Nesse caso vejo-me obrigada a dizer-lhes adeus, interrompeu Sadie Quaynes... Pela minha parte, sigo para o Norte, na direcção da Libéria... Dou um salto até à
floresta virgem...
- Mas, Creio que não é forçada a viajar por essas regiões perdidas? inquiriu Máximo. Já calculou os perigos que pode correr? Mesmo os homens mais enérgicos têm recuado
perante um projecto dessa natureza... Que loucura, aventurar-se sozinha por essas paragens!... Creio que
será a primeira vez que por lá passa uma europeia!...
Um sorriso irónico iluminou o rosto da inglesa.
- Ora, essa nem parece sua! Não me disse o senhor que andava por estas regiões só pelo prazer da aventura?... Eu, também, adoro afrontar o perigo... Bemdigo as circunstâncias
que me deram a oportunidade de o encontrar e de travar conhecimento com um verdadeiro gentleman. Os nossos caminhos cruzaram-se, mas, agora, temos de nos separar...
O francês não conseguiu reprimir um gesto de contrariedade. Custava-lhe ter de abandonar, assim, aquela mulher, que tanto o impressionara logo no primeiro momento
em que a viu.
- Então, preguntou, novamente, Preston, a quem a indecisão do companheiro fazia perder a paciência. Estou às suas ordens, sr. Verdier...
Sadie Quaynes permanecia imóvel, não tirando os olhos de cima do francês.
- Mas, afinal, pensando melhor, prosseguiu Preston, a carta do sr. Serbannes pode simplificar as coisas e evitar-nos a maçada de uma viagem até Séguéla... Quem o
impede de enviar um emissário ao seu amigo?... Passava-lhe procuração, e o sr. Serbannes, lá em Séguéla, poderia registar o jazigo em seu nome.
Máximo abriu muito os olhos, A sugestão de Preston resolvia a dificuldade e permitia-lhe ficar ainda mais algum tempo junto da inglesa.
- Indicarei a Serbannes um local para nos encontrarmos.
- Tubabo Serbannes, vir?.
Máximo voltou-se, franzindo o sobrolho, e viu Angosso acocorado junto dele. Tendo-se afastado dos camaradas, para surpreender a conversa dos brancos, ouvira as últimas
palavras do francês.
Preston teve um gesto de impaciência.
- Daqui para fora, maldito escarumba!... Mas, Angosso parecia não se importar com a atitude do inglês; agarrando na mão de Máximo suplicou-lhe:
- Tubabo, manda Angosso avisar tababo Serbannes. Surpreso, Máximo Verdier hesitava; Serbannes falara-lhe, por várias vezes, da dedicação e da fidelidade do preto
que, por três vezes, lhe tinha salvado a vida; não era de admirar, por isso, que insistisse tanto por ir a Séguéla.
A-pesar-disso, depois de muito reflectir, o francês recusou o oferecimento do indígena. Angosso era um magnífico elemento e por esse facto não o poderia dispensar.
- Preciso aqui de ti, Angosso, respondeu ele. Como o emissário de Serbannes não pode
seguir viagem, vou mandar Samba, o estafeta sudanês.
- Que mosca terá mordido ao Angosso, para insistir tanto em ir a Séguéla? resmungou Preston, depois do indígena, cabisbaixo, se ter ido juntar aos camaradas.
- É que está habituado a acompanhar Serbannes nas suas viagens e, naturalmente, gostaria de ir ter com ele... Custa-me, não lhe fazer a vontade, mas, como é um bom
elemento, é indispensável aqui...
O jantar prosseguia. Tanga e Buasso serviam,
agora, aos três europeus, fruta e vinho de palma. Falou-se de várias coisas e quando se abordou
a questão do momento da partida, Sadie preguntou
a Máximo:
- Mas, não me poderia mostrar o seu placer? Gostaria de avaliar, por mim mesma, a importância da sua magnífica descoberta.
- Não vejo nisso qualquer inconveniente, antes pelo contrário, replicou Máximo, encantado com a idea.
- Assim, temos de voltar para trás, disse Preston, mal humorado.
Este irritava-se com as ordens e contra-ordens do chefe.
- Iremos para o placer e aguardaremos ali a chegada de Serbannes, respondeu Máximo. A carta,
que há pouco recebi, veio simplificar, bastante, os meus planos... vou mandar o Samba, a Séguéla... É um magnífico estafeta e, num instante, dará conta do recado...
Entretanto, se Mrs. Quaynes dá licença, rou escrever a carta para o tal meu amigo.
- Olhe, não se esqueça de lhe recomendar o maior sigílio sobre a descoberta do jazigo, aconselhou o caçador... Se suspeitam, em Séguéla, da descoberta do placer
vem por aí meio-mundo... Então, bem podíamos desistir!...
- Não se assuste, Preston... Serbannes é a discreção personificada... Limitar-se-á a cumprir as formalidades indispensáveis, e isso representará, para nós, uma preciosa
economia de tempo. E, a seguir, virá ter connosco.
- O que lhe vai ser mais difícil é indicar ao seu amigo um ponto de encontro... Sem carta, nem bússola!...
- Sim, ontem, que as cartas e a bússola nos foram misteriosamente surripiadas, isso representaria para nós uma dificuldade, se não mesmo uma impossibilidade, mas,
desde que tivemos a boa fortuna de encontrar Mrs. Quaynes? Estou certo de que terá a bondade de nos ceder, por um instante, as suas cartas e assim já poderemos,
aproximadamente, indicar a Serbannes a posição do nosso placer...
- Estou às vossas ordens, replicou a inglesa, que assistia à discussão... Já lhe mando as cartas itinerárias, pelo Buasso... E, agora, vou ver se descanso... Estou
morta de sono e de fadiga.
Sadie, depois de trocar um cordial aperto de mão com os dois homens, dirigiu-se para a sua tenda.
- Boa-noite, sr. Verdier...
- Boa-noite, Ql...
Máximo ia a dizer, Qlaukôpis Atenêa: mas, conteve-se.
- Boa-noite, Mrs. Quaynes...
com o seu passo ligeiro, que nem parecia tocar o chão, Sadie chegou junto da sua tenda. Máximo viu-a penetrar no seu frágil refúgio. O interesse que aquela mulher
novamente lhe inspirava absorvia-o a tal ponto, que nem deu pelo ar irónico com que Preston olhava para ele; quando se voltou, soltando um longo suspiro, e enxugando
o suor que lhe escorria pela testa, a fisionomia do inglês retomara já a sua habitual impassibilidade.
- Vamos ao trabalho... diga ao Samba que se prepare. Logo que o Buasso me traga as cartas, vou escrever a Serbannes...
A brisa que, durante um certo tempo, refrescara um pouco a atmosfera, agora, nem já agitava, sequer, as folhas dos palmares; a temperatura era
asfixiante. Ouvia-se o concerto monótono das rãs e dos sapos, dominado, de vez em quando, pelos gritos lúgubres dos calaus.
Em redor das fogueiras esvoaçavam mosquitos, aos miríades. Os indígenas jogavam os dados, e entoavam melopeias regionais.
Deixando Preston, que ia avisar o Samba, Máximo entrou na sua tenda; mal lá tinha chegado apareceu-lhe o moleque de Sadie com as cartas itinerárias. O francês estudou-as,
cuidadosamente, antes de escrever a Serbannes.
Uma hora depois, saía do seu refúgio. Estava pronta a carta para Serbannes.
Preston, que o aguardava, a poucos passos de distância, levantou-se quando o viu chegar.
- Então?
- com as indicações que mando a Serbannes, ele não poderá deixar de nos descobrir... Foi providencial este encontro com Mrs. Quaynes... Se não fosse ela. E, o Samba
está pronto?
- Samba espera as suas ordens.
Máximo chamou-o. Vestido com uma simples tanga, o inevitável colar de amuletos ao pescoço, Samba nem se dava ao trabalho de levar de comer para a viagem, a-fim-de
poder correr mais à-vontade. Alimentar-se-ia de frutos, que eram abundantes naquela região.
Samba ergueu-se, assim que avistou o francês. Agarrou na carta que o tubabo lhe estendia e escondeu-a numa bolsa, dissimulada sob a tanga.
- Preston já te disse o que tinhas a fazer? Tens boas pernas, Samba, e fama de seres um dos melhores estafetas da Costa de Marfim.
Os olhos do sudanês brilharam, envaidecido pelo elogio do tubabo.
- Samba correr até Bingerville e Sassandra se o tubabo mandar, respondeu o indígena, todo solícito.
- Não deve ser preciso ir tão longe... Conheces o tubabo Serbannes?
Samba meneou a cabeça afirmativamente.
- O tubabo Serbannes está em Séguéla, prosseguiu o francês. Tens de ir ter com ele e entregar-lhe esta carta... Percebeste?
O sudanês repetiu, uma a uma, as palavras que o branco acabara de proferir, e, levantando uma das mãos, disse:
- Samba ir muito de-pressa... Samba em quatro dias verá tubabo Serbannes, em Séguéla.
- Agora, boa viagem.
O indígena levou a mão aos lábios, e, logo a seguir ao coração, para demonstrar a Máximo a sua fidelidade. E, largou a correr, como um foguete. Daí a poucos minutos
já se não avistava.
Imóveis, iluminados pelos pálidos raios do luar, que despontava por sobre as nuvens, Máximo e Preston assistiram à partida do seu auxiliar.
- É um tipo decidido, este Samba! murmurou o francês acenando com a cabeça. Não haveria muitos, com certeza, assim, sem se importar de partir, mesmo de noite.
- By Jove! não faltava quem quisesse levar o recado, replicou o inglês. Olhe, emquanto o senhor estava a escrever a carta, Angosso voltou a insistir para ser ele
a levar a carta, em vez do Samba... Até se me tornou suspeita a sua insistência.
- Creio que já lhe disse, Preston, o rapaz tinha saudades de Serbannes. Sabendo que este ia partir para o Norte queria ir ter com ele.
Esta explicação não satisfez lá muito bem o inglês, que, soltando um grunhido e não estando disposto a recolher à tenda, se estendeu, entre os indígenas, perto de
uma fogueira.
Máximo, embora não tivesse andado muito durante o dia, sentia-se extenuado. Acorriam-lhe ao espírito os pensamentos mais desencontrados. Pensava em Serbannes, no
drama que se seguira ao regresso de Preston ao placer, em Qlaukôpis Atenêa, etc. Mas, era, acima de tudo, aquela mulher estranha, que lhe absorvia os pensamentos.
Olhou para o lado onde ficava a tenda de Sadie.
As palavras que tinham trocado, o colóquio que a chegada de Preston com a carta de Serbannes viera interromper, a sua presença naquelas paragens longínquas, tudo
aquilo era muito extraordinário. A atmosfera de mistério que cercava Sadie Quaynes intrigava-o, mais, mesmo, do que ele ousaria confessar.
A inesperada carta de Serbannes, a partida do Samba tinham, momentaneamente, desviado a sua atenção, mas, agora, os seus pensamentos retomavam a órbita, quási constante,
das últimas horas. Parecia-lhe sentir o perfume ennervante da acácia, ou fitar o pé descalço de que o Buasso extirpava as matacanhas.
- Decididamente, perdi o juízo! murmurou. Serbannes se soubesse disto tudo muito se haveria de rir...
Máximo esforçava-se, sem o conseguir, por se libertar da sua obcessão. Sentia-se incapaz de afastar de si a imagem daquela mulher de olhos verdes.
Um macaco guinchou numa árvore, perto da clareira, arrancando Máximo às suas reflexões.
Dominado pela graciosa imagem, que o absorvia, resignou-se a regressar à tenda. Os indígenas estavam já deitados; as sentinelas, vigilantes nos seus postos.
O francês deu volta às fogueiras. Reconheceu o corpo imóvel de Preston, deitado no chão, ao ar livre, enrolado numa manta; a seu lado, ao alcance da mão, a sua inseparável
carabina. Ressonava, vencido pelo sono.
Prosseguindo, em silêncio, a sua marcha, Máximo aproximou-se da tenda de Sadie. Passeando, em redor, um olhar perscrutador, certificou-se de que não era observado,
depois, já mais descansado, encostou o ouvido a um dos panos da tenda. E... preparou-se para entrar. Quando ia a erguer o pano que dissimulava a entrada da tenda,
procurando, na obscuridade o sítio onde Sadie estava deitada, deu um salto... Alguém, de força hercúlea, lhe apertava o pulso como que para lho esmagar.
A sua surpresa foi tal que teve que se conter para não soltar um grito; e, lutando, conseguiu soltar-se do seu desconhecido adversário.
Na sua frente, em atitude ameaçadora, e acabando de emergir da tenda, estava um dos carregadores de Sadie. Atravessado na frente da entrada do refúgio, o colosso
surpreendera o intruso no momento em que este ia a penetrar na tenda de Sadie. Durante alguns instantes, os dois homens fitaram-se. Iam atirar-se um ao outro quando,
quebrando o silêncio da noite, um uivo horrível se fez ouvir, vindo da extremidade da clareira.
E, por duas vezes, aquele grito horrível ecoou na calada da noite. O moleque de Sadie, tranzido de pavor, levou a mão ao amuleto que trazia ao > pescoço.
A entrada da tenda de campanha assomava, agora, a inglesa, despertada em sobressalto, sem fazer a mínima idea do trágico espectáculo que, ali, a dois passos dela,
se acabava de desenrolar.
- For goodness sake!... (1) O que há? Ou viu, também?... preguntou ela, dirigindo-se a
Máximo.
- Sim... mas não posso saber o que seja, balbuciou o francês, desorientado. À roda deles, os indígenas, acordados, também, por aqueles gritos de pavor, aglomeravam-se.
(1) For goodness sake: Por amor de Deus.
olhando, cheios de ansiedade, na direcção de onde eles haviam partido.
O terror era geral. Os auxiliares do francês reconheciam os mesmos gritos que tinham precedido a descoberta do corpo lacerado do pobre Gabão. Um pensamento lancinante
lhes ocorria ao espírito:
- São com certeza os homens-leopardos!... Sadie Quaynes ia fazer nova pregunta a Máximo
quando apareceu Preston... O rosto do caçador denunciava uma profunda angústia; empunhava a carabina e levava atrás de si Balango e uma dezena de indígenas armados
de machetes.
- Depressa, sr. Verdier!... Angosso desapareceu!... Deve ter sido vítima desses demónios! Temos que nos pôr em campo, quanto antes!...
O francês, e a própria Sadie, meio-vestida, incorporaram-se naquela estranha patrulha.
Balango, que ia à direita do caçador, munira-se de um archote, que iluminava a marcha do pequeno grupo.
Avistaram um vulto, no meio do mato, a pouco mais de uma dezena de passos do francês; este estacou bruscamente, e, metendo a arma à cara, ia a disparar, quando uma
voz lhe gritou:
- Não atire, tubabo... Sou eu, o Tambraoré! Máximo reconheceu, imediatamente, um dos indígenas
por ele mesmo ali postado como sentinela... Tambraoré, assim que chegou perto do grupo, balbuciou, ofegante:
- Tubabo!... lá em baixo... mau espírito!
O indígena, estendendo o braço, apontava para a esquerda. Máximo, compreendendo que o estado de atarantação do indígena era de tal ordem que não conseguia tirar
mais nada dele, dirigiu-se para o local indicado, seguido de Preston, Sadie, e Balango.
Tinham apenas andado alguns passos quando o francês topou com um corpo estendido ao pé de uma palmeira.
- Maldição! Esses malandros fizeram nova vítima! murmurou ele, baixando-se para examinar o desgraçado.
- Deve ser Angosso, disse Preston, emquanto Balango se aproximava com o archote e a inglesa estacava, ofegante, tendo estampado no rosto um indizível pavor.
O pobre indígena jazia estendido, de bruços, no solo; de entre as espáduas saía-lhe o sangue aos borbotões; na base do pescoço, a mesma ferida, horrível, que apresentava
o cadáver do Gabão.
- A marca do Leopardo! exclamou o caçador.
O francês não respondeu, e, passando o seu
braço por sob o tronco da vítima, levantou-a ligeiramente. Viu-se-lhe então o rosto, à luz indecisa do archote.
- Não é o Angosso! exclamou Preston. É o Samba, o estafeta que tínhamos enviado a Séguéla!
com efeito tratava-se do Samba. O sudanês fora traiçoeiramente apunhalado pelas costas, quando, no desempenho da sua missão, corria pelo mato.
- É singular! disse Máximo por entre dentes, o cadáver está já frio! Iria jurar que este desgraçado foi apunhalado muito antes de termos ouvido aqueles gritos sinistros.
- Reparem!... gritou Sadie. O pobre indígena segura qualquer coisa. A inglesa não se enganara: Samba agarrava, entre os seus dedos crispados, a pele de um animal,
que parecia ter sido convenientemente preparada.
- Uma pele de leopardo! O sudanês não sucumbira, logo, à punhalada; lutara, sem dúvida, desesperadamente, com os seus agressores.
No decorrer da luta, arrancara aquela pele com que se cobria um dos seus antagonistas.
Não restavam quaisquer dúvidas sobre a identidade dos criminosos; o estafeta fora abatido pelos mesmos que tinham apunhalado o Gabão e feito desaparecer o Omar.
Tudo levava a pensar que pertenciam à terrível sociedade secreta.
Balango e os demais indígenas, apavorados perante aquela descoberta macabra, olhavam silenciosos para o cadáver do seu camarada, cujos traços, contraídos num horrível
esgare, diziam o atroz sofrimento dos seus últimos momentos de vida.
- O que me espanta, no meio de tudo isto, opinou Máximo, é que o sudanês não tenha gritado por socorro!... Deve ter sido atacado pouco depois de partir.
- By jove. Só se o senhor é surdo, para não ter ouvido nada, sr. Verdier! Todo o acampamento foi despertado aos gritos desesperados deste pobre diabo... Eu mesmo
acordei sobressaltado... Mrs. Quains...
- Mas, Preston, ouvi perfeitamente o grito a que você alude; não foi, porém, soltado pelo nosso estafeta porque esse estava já morto desde o princípio da noite.
- Explique-se, sr. Verdier... Não o compreendo...
- O corpo está frio: Samba está morto, pelo menos, há uma hora... e, como os gritos só atraíram a nossa atenção há menos de um quarto de hora, tudo nos leva a crer
que foram soltados para nos desorientar.
Esta argumentação não sofria réplica; o caçador
continuou a fitar o francês, que, ainda de joelhos, as mãos cobertas do sangue da vítima, prosseguia no seu inquérito. Deslocando ligeiramente o corpo, procurou
o saco, escondido por debaixo do pano, dentro do qual ia a carta para Jacques Serbannes.
- Era, agora, o que faltava! O saco está vazio, resmungou ele. Os assassinos roubaram a carta! Decididamente, começo a acreditar que a descoberta do jazigo interessa
muito os tais cavalheiros...
Preston fez um gesto evasivo.
- Tudo isso nos dá muito que pensar!... E, o Angosso?... Que será feito dele?... De princípio julguei que seria ele a vítima. Mas, agora, vistas bem as coisas, talvez
não seja difícil explicar as causas da sua ausência.
- Ora, vamos lá! Quererá o senhor insinuar que foi o Angosso quem matou o camarada?... julgo-o incapaz disso!
- Sabe-se lá! Estes indígenas!... Vejamos sr. Verdier, reflita um poucochinho: a insistência de Angosso em levar a carta a Séguéla não lhe pareceu suspeita?
- Ora! Angosso estava morto por se encontrar com Serbannes, e isso explica tudo. Daí, também, a imaginar que se decidiu a assassinar Samba só para o substituir vai
uma enorme distância.
- E, o desaparecimento da carta?
- E, a presença desta pele de leopardo? Julga que será um elemento comprovativo da culpabilidade do Angosso? Ora, Preston, considere bem e verá que a sua hipótese
é insustentável... Estaremos mais perto da verdade voltando à nossa primitiva idea: Angosso pode, da mesma forma, ter sido, também, assassinado...
- Mas, nós não lhe encontramos o cadáver...
- Porventura, se descobriu, também, o cadáver do Omar, depois do assassínio do Gabão? Angosso deve ter desaparecido nas mesmas circunstâncias... Mas, nós não terminamos,
ainda, o nosso inquérito... Estou convencido de que tudo se esclarecerá dentro de pouco...
com o auxílio dos indígenas, o francês e o seu companheiro prosseguiram nas investigações, mas sem qualquer resultado.
Angosso desaparecera, de facto, mas, do seu desaparecimento, nem rastos. Os indígenas chamavam por ele, mas ninguém respondia.
Preston esquadrinhava o mato por todos os cantos, baixava-se, examinava o solo para ver se descobria qualquer pista, mas... nada. Todos os seus esforços resultavam
estéreis.
- Não chegamos a nenhuma conclusão; o melhor é voltarmos para trás, pois, todos nós, o que precisamos é de descansar! acabou ele por dizer.
O francês, desconcertado, deu, por fim, a ordem de regresso ao acampamento. Os indígenas transportaram, em silêncio, o cadáver do sudanês e, depois de o cobrirem
com um pano, estenderam-o no chão, junto a uma das fogueiras.
Este segundo atentado acabara por lançar, definitivamente, o terror entre os indígenas. Sem trocarem palavra, olhavam, cheios de temor, para todos os lados, receando
ver surgir, de entre à escuridão, qualquer espírito mau. Excessivamente-; supersticiosos, os indígenas estavam persuadidos que as mortes e os desaparecimentos eram
consequência de vingança dos maus espíritos contra os quais eram impotentes as armas dos próprios tubabos.
Sadie regressara já à sua tenda. Quando Máximo, por sua vez, chegou ao acampamento, a inglesa dirigiu-se a ele, com os cabelos em desalinho, e, no rosto, uma expressão
de profunda ansiedade.
- Então? preguntou ela.
- Nada! Não conseguimos descobrir nada! respondeu o francês, desapontado. Também, que poderíamos nós descobrir de interessante, em plena noite, com os indígenas
cheios de medo e esperando, a cada momento, ser assaltados por esses demónios?
- com certeza que, a estas horas, correm, ainda, em fuga por esse mato fora. Quem lhes pudesse deitar a mão! comentou Preston, aparecendo, subitamente, por detrás
de Máximo.
Durante curtos momentos o trio permaneceu imóvel e silencioso. Foi Sadie quem rompeu o silêncio.
- Por que me tinham ocultado os estranhos acontecimentos das últimas horas? preguntou ela. Que significa essa marca do Leopardo a que, há pouco, aludiram, quando
acharam o cadáver daquele desgraçado?
Máximo e Preston entreolharam-se, embaraçados. Desde que tinham encontrado a viajante nunca mais haviam voltado a tocar no assunto do enigmático atentado, que vitimara
já dois dos seus auxiliares.
- Hoje é já muito tarde, Mrs. Quaynes... Tem necessidade de reparar as suas forças, objectou o francês. Amanhã lhe contarei tudo...
- Mas, é que eu quero saber tudo, agora mesmo!
Para demonstrar aos dois homens que estava decidida a não se retirar para a sua tenda sem que lhe contassem tudo, a inglesa sentou-se perto de uma das fogueiras,
cujo fogo os indígenas activavam lançando-lhe achas de lenha. Máximo estava
hesitante, mas, os olhos verdes, que sobre ele se fixavam, eram tão imperativos, que acabou por se
decidir:
- Espero que compreenderá a causa da nossa discreção, Mrs. Quaynes. Antes de a termos encontrado havíamos perdido dois indígenas, em circunstâncias semelhantes às
que acompanharam a morte do Samba e o desaparecimento do Angosso...
- Toma-me por uma criança medrosa?
- Não, nunca duvidei da sua coragem; Mrs. Quaynes... Apesar disso, o caso era tão extraordinário, tão difícil de explicar, que não a queríamos alarmar, talvez inutilmente.
Sadie sorriu, com ironia.
- Alarmar-me!... Ora, essa é boa!... Julga, então, que me teria atrevido por estas inhóspitas regiões se fosse pessoa sujeita a alarmes?... Então, vamos!... Conte
lá o que se passou!... Quem sabe?... Talvez eu lhes possa ser de alguma utilidade... Conheço os costumes das tríbus que nos cercam!... Essa tal marca do leopardo
a que, há bocado, fizeram alusão, faz-me pensar numa sociedade secreta indígena de que já ouvi falar, mas da qual não foi ainda possível capturar qualquer membro...
Supõem, então, essa gente responsável pelos crimes que vitimaram os seus auxiliares?
A inglesa falara muito senhora de si e os dois
homens, que não despregavam os olhos de cima dela, ficaram admirados com as palavras que lhe ouviram. Iria, ela, revelar-lhes quaisquer pormenores por eles ignorados?
Os olhos de Sadie cintilaram com um brilho estranho.
- Vamos... Devem já estar convencidos de que me podem contar o que se passou, sem receio de que eu caia para aí desmaiada... Os senhores não devem deixar impunes
esses crimes... Estou pronta a ajudá-los no que for preciso... Debatem-se em pleno mistério... Mas, quem sabe?... Às vezes, um pormenor mínimo permite descobrir
uma boa pista... Afaste de si as suas últimas hesitações, sr. Verdier, sou toda ouvidos...
Máximo, então, pôs Sadie ao corrente dos estranhos acontecimentos que sucederam à descoberta do placer.
- E o senhor diz que o cadáver do Gabão tinha na base da região cervical um ferimento igual ao do Sudanês?
- A mesma marca, Mrs. Quaynes!... Se a vítima não tivesse levado uma punhalada entre as espáduas, tudo nos levaria a crer que tinha sido atacado por uma fera. A
chaga é profunda. Dir-se-ia que as garras agudas laceraram profundamente a carne da vítima.
- Gostaria de examinar de perto o cadáver de um desses infelizes.
Máximo manifestou uma certa hesitação. O pedido da sua interlocutora desconcertava-o.
- Na verdade, sr. Verdier, parece que não está lá muito convencido de que eu lhe possa servir para alguma coisa. Ora, escute: vivi alguns meses nos Camarões, junto
dos vossos admiráveis compatriotas, os médicos franceses, que, denodadamente, combatem o flagelo que devasta a África Equatorial: a doença do sono!... Ah! sr. Verdier,
quando se está habituada a ver todos esses pobres indígenas atacados pela tsé-tsé, já só com a pele e o osso, verdadeiras múmias que apenas anima um sopro de vida,
não há receio de examinar um cadáver...
Sabe-se, bem, o que é a morte!...
Máximo descobria uma outra Sadie; perto deles, Preston parecia, também, profundamente admirado.
- Então, desta vez, consegui convencê-lo? insistiu a inglesa. Que lhe hei-de dizer mais?
O francês, vencidos os seus últimos escrúpulos, pela atitude corajosa de Sadie, levantou-se, e disse-lhe:
- Se sempre quere ver o cadáver do Samba, venha daí comigo.
Máximo conduziu-a, a seguir, ao sítio onde tinha sido depositado o corpo do pobre indígena.
Sem uma hesitação, a inglesa levantou o pano que cobria o cadáver. Os indígenas tão assustados estavam que nem se tinham atrevido a lavar as feridas do morto; o
sangue, coagulado, cobria parte do dorso da vítima cujos olhos, muito abertos, tinham uma expressão de estranho pavor. Sadie Quaynes não manifestava a mais ligeira
repugnância; o francês, que a observava de perto, surpreendia-se da sua coragem. Ela ajoelhara, sem dizer palavra, e procedia a um exame minucioso do cadáver. O
seu olhar deteve-se, especialmente, na chaga horrível, que não tinha sido a causa da morte do Sudanês, mas, que era como que uma rubrica deixada pelos assassinos.
- Não há dúvida, disse a inglesa; o desgraçado foi morto por membros de qualquer sociedade secreta semelhante às da "Pantera" e da "Serpente".
Os indígenas não perdiam nenhum dos movimentos de Sadie; alguns dirigiam ao tubabo olhares inquisitoriais, mas, Máximo tão ocupado estava que nem lhes prestava atenção.
Não cessava de contemplar a inglesa, que nunca julgara capaz de um tal sangue frio.
- Não ganhamos nada em nos demorarmos aqui; precisamos de conversar e, para isso, ficamos melhor ao pé da minha tenda, propôs Sadie.
E, dito isto, cobriu de novo, com o pano, o cadáver
do Samba.
Sentaram-se os três à porta da tenda da inglesa. Sadie, como de costume, era quem dirigia a conversa.
- Os senhores têm ambos uma grande experiência do mato, começou ela por declarar; mas, têm-se aplicado mais à caça e ao estudo do habitat dos animais do que aos
usos e costumes das populações da Costa de Marfim, da Costa de Ouro e da República da Libéria... Se assim não fosse saberiam que as sociedades secretas pululam,
ainda mesmo nos nossos dias, entre os indígenas...
Temos-lhes trazido alguns benefícios da civilização; mas, ser-nos-á mais fácil libertar estes indígenas dos malefícios da tsé-tsé, do que das sociedades secretas
que lutam, na sombra, protegidas pela impenetrabilidade da floresta e favorecidos pelos tubardji (1) que têm todo o interesse em acautelar a sua influência sempre
contra-batida pela ciência maravilhosa dos tubabos.
Máximo escutava interessadíssimo a inglesa que parecia ter estudado minuciosamente a perturbante
(1) Tubardji: feiticeiros, mêzinheiros. De tuba = calça + ardji = mezinha.
(Nota do Tradutor).
questão das sociedades secretas da África Equatorial. Pasmava do interesse de Sadie por esses assuntos.
- Há pouco tempo, prosseguiu ela, as autoridades de uma pequena cidade, próximo da costa, ficaram muito surpreendidas por terem descoberto restos humanos... Uma
pele de pantera, encontrada a pouca distância dos restos sangrentos e lacerados de um indígena, permitiu que a polícia chegasse à conclusão de que estava colocada
perante um crime cometido pelos adeptos de uma associação de canibais, os homens-panteras, que devem, sem dúvida, ser próximos parentes dos homens-leopardos... Falou-se
muito do caso nos jornais da Costa de Marfim... Um inquérito rápido permitiu deitar a luva, em pouco tempo, aos culpados... Tratava-se de um grupo de antropófagos
que, para poderem prosseguir impunemente nos seus ritos macabros, faziam crer tratar-se de ataques de feras, e, por isso, se dissimulavam sob as peles das panteras
e atacavam, de noite, os indígenas isolados. Tinham assassinado já uns vinte quando a polícia conseguiu capturar o chefe da sociedade secreta... Foram condenados
à morte e degolados.
- Conheço bem esse caso, interrompeu Preston. Falou-se muito dele; contudo não vejo qualquer analogia entre ele e os acontecimentos que nos preocupam... Os assassinos
do Gabão e do Samba
não eram antropófagos, visto terem abandonado os cadáveres.
Além disso, o facto que a senhora relatou, constitue uma excepção; os canibais eram bastante numerosos, noutros tempos, mas, desde que, há trinta anos a esta parte,
as tropas francesas efectuaram expedições de represálias, desapareceram quási por completo. Os indígenas estão mais civilizados... Os sacrifícios humanos passaram
de moda e, agora, os feiticeiros do mato contentam-se, para aplacar a cólera das suas divindades, e dos seus feitiços, em decapitar frangos...
- Evidentemente que a mentalidade dos indígenas se elevou, disse Sadie. Entretanto, quem sabe se os sacrifícios sangrentos se não continuarão a consumar, ainda hoje,
em certas regiões da floresta, de onde, neste momento, nos não encontramos muito afastados?... Não se esqueça disto: há pontos onde os brancos ainda não chegaram...
Protegidos pela selva impenetrável, essas tríbus poden> ainda entregar-se às suas práticas criminosas...
Máximo não pôde conter um protesto:
- Exagera Mrs. Quaynes... Não vivo há muito na Costa de Marfim, mas tenho aqui numerosos amigos, colonos e administradores... Todos me garantiram que a calma era
completa e que as tríbus estavam todas submetidas... Além disso,
eu também não vejo nenhuma espécie de correlação entre o assassínio dos nossos dois auxiliares e o caso a que fez alusão... Nós descobrimos os cadáveres das vítimas,
e, também, a pele de leopardo que encontramos nas mãos do Sudanês, leva-nos a pensar que os assassinos devem pertencer a qualquer sociedade secreta. Contudo, lembro-lhe
que os agressores não procuraram apoderar-se do cadáver para se entregarem a qualquer prática de canibalismo.
- Muito bem... mas, encontraram, também, os corpos do Omar e do Angosso? Quem sabe se nunca chegaremos a conhecer o misterioso destino que levaram? Talvez que, ambos,
tenham sido vítimas de um odioso sacrifício humano... Os seus enigmáticos agressores levaram-nos para o interior da floresta para os torturarem ou para os degolarem
à vontade.
O francês empalideceu ao ouvir estas palavras.
- É certo que tudo isso é verosímil, mas, bem entendido, estamos no campo da pura hipótese... Não encontramos ainda provas formais indicando-nos que os dois desaparecidos
tenham sido sacrificados ou devorados.
- Mas, também, nada nos garante o contrário... As tríbus de Goros e Baulés, que nos cercam, não são lá muito seguras...
- Até agora, não temos de nos lastimar da sua atitude... Também distribuímos-lhes cauris (1) à farta. Em cada aldeia onde entramos somos acolhidos de braços abertos...
- Os indígenas não têm interesse em nos mostrar má cara; contudo os seus sorrisos e as suas caretas não os impedem de planear a nossa morte,
observava Sadie.
- Mas, enfim, que móbil poderão ter os indígenas com estas agressões?
- Oh! sr. Verdier!... sempre é muito esquecido. Não se lembra que descobriu um placer de um valor incalculável? Olhe que só começou a ser atacado depois disso. Tudo
me leva a pensar que foi a descoberta do jazigo que atraiu sobre a sua caravana a cólera dos indígenas...
- Mas, em que pode a descoberta do ouro afectar os indígenas?... Se eles conhecessem o valor do terreno já outros exploradores nos teriam antecedido...
- Pode lá saber-se?... O terreno que os senhores
(1) Cauri pequena concha de um molusco gasterópodo Ciprea moneta) que serve como moeda em alguns pontos do Oriente e da África Equatorial.
(Nota do tradutor).
ocuparam é sem dúvida considerado sagrado por qualquer feiticeiro... Podemos, também, emitir a hipótese de que nos encontremos no território desses famosos homens-leopardos.
- Se, assim fosse, não vejo por que os indígenas tivessem atacado o Gabão e o Samba, que eram dois homens da sua raça, em vez de me atacarem a mim ou ao Preston,
a quem devem considerar intrusos e invasores...
Preston interveio, de novo, na conversa:
- Tudo é possível. No entanto, há um facto insofismável: o Sudanês foi assassinado pela mesma gente que matou o Gabão. A marca que se vê no cadáver demonstra-o de
maneira irrefutável. Esses demónios têm-nos seguido...
Aterrorizaram os pretos das nossas escoltas e receio que voltem a dar sinal de si, aproveitando-se do estado de espírito que reina entre os indígenas das caravanas...
- Tratamos-lhes da saúde, Preston. Temos munições à farta, para nos defendermos e, em caso de necessidade, para lhes darmos uma boa lição...
O caçador meneou a cabeça, num gesto de dúvida:
- Sr. Verdier, os nossos adversários utilizarão os mais terríveis processos para atingirem os seus fins. Não pense que se atreverão a combater-nos
frente a frente; devem, mas é, preparar um assalto quando todo o acampamento esteja adormecido. Repito-lhe, mais uma vez: o desaparecimento do Angosso enche-me das
mais terríveis apreensões. É muito mau sinal... Interroguei os nossos homens, e, cinco deles, afirmaram-me tê-lo visto tomar o mesmo caminho que o Samba. Não se
esqueça da insistência que ele nos mostrava em ser mandado a Séguela, em lugar do Sudanês...
- O Angosso era incapaz de assassinar o Samba, um dos seus melhores amigos... Ele o que queria era ir ter com Serbannes... Um motivo bem simples e bem mais verosímil
do que as suas especiosas congeminações, meu caro Preston... De resto, como explica você a presença da pele do leopardo junto do cadáver?... Não era, com certeza,
do Samba... A chegada de Sadie veio pôr termo à discussão dos dois homens.
- Não vale a pena estarmos a perder tempo em suposições... É preciso pôr de parte, momentaneamente, todos os nossos projectos e não descançar emquanto não descobrirmos
este enigma... Contava dirigir-me para o Norte, esperava mesmo chegar à Libéria antes do fim da próxima semana. Os trágicos incidentes desta noite obrigam-me, porém,
a mudar de planos... Ficarei com os senhores para os auxiliar na descoberta dos criminosos...
Máximo parecia-lhe que sonhava; os olhos fitavam-no com perturbante insistência. Aos lábios finos da inglesa aflorava um ligeiro sorriso.
- Não concorda comigo, sr. Verdier? ou tem medo de ficar por aqui?
- Bem se vê que me não conhece, Mrs. Quaynes. Pensava apenas que seria preferível avisar as autoridades antes de nos ocuparmos do Assunto...
- Sr. Verdier, conte comigo. Lembre-se de que precisa pelo menos de uma semana para chegar a Séguéla e outro tanto para regressar aqui... Nesse meio tempo os criminosos
onde estarão?... Há um provérbio, na minha terra, que diz: "É preciso malhar o ferro emquanto está quente". Nunca, como agora, terá tanta ocasião de o pôr em prática...
Máximo ouvia, muito admirado. Sadie continuava:
- Tudo nos leva a pensar que os famosos homens-leopardos continuarão a rondar em torno de nós... Por isso será menos difícil surpreendê-los...
Sadie aproximou-se do francês e agarrou-lhe uma das mãos... Cada vez mais surpreendido, Máximo não procurava retirá-la. A atitude daquela mulher era incompreensível.
A maneira sorridente como ela olhava para ele acabou por vencê-lo.
- Na verdade, Mrs. Quaynes, a sua companhia dá-me o maior prazer, mas, confesso, custa-me
muito vê-la arriscar-se nesta aventura. Preston e eu somos homens...
- E, naturalmente, eu, como sou uma mulher, fraca, portanto, não é este o meu lugar... Mas, tomei esta decisão em plena liberdade, ninguém poderá torná-lo responsável
pelos perigos que eu possa correr. Fui eu quem lhe pedi para me deixar arrostar com este perigo... Além disso, eu gosto do perigo... Não foi por isso que me aventurei
através do mato?
Os cabelos louros de Sadie tocavam, agora, o
rosto de Máximo.
O perfume de acácia fazia-o reviver aquele doce colóquio que a chegada de Preston, com a carta de Serbannes, viera interromper... Depois da descoberta do cadáver
do Sudanês, a inglesa manifestara, para com ele, uma indiferença total,; Dir-se-ia que não era a mesma mulher, aquela que, momentos antes, tivera nos seus braços
prestes a aceitar o seu beijo. Os seus belos olhos verdes, agora, pareciam prometer-lhe qualquer coisa.
- Vamos! sr. Verdier, o que queria recusar a Sadie Quaynes, não o irá negar, com certeza, à Qlaukôpis Atenêa?
Se Preston ali não estivesse, Máximo, indubitàvelmente, não teria resistido à tentação de lhe dar
um beijo. Mas, surpreendeu os olhos cor de aço do caçador, que o fitavam ironicamente; então, de mau modo, e um tanto vexado, disse:
- Os seus desejos são ordens, Mrs. Quaynes. Agruparemos as duas caravanas numa só, durante o tempo que quiser...
- E, não descansará emquanto não descobrir os culpados?
- Não descansarei sem descobrir e punir os criminosos.
- Promete-me?
- Decididamente, Mrs. Quaynes, além do seu amor pela Aventura tem, também, uma certa predilecção pelo Capricho...
- O Capricho é um amável companheiro... mas, entretanto, não se esquive, lembre-se que ainda me não prometeu nada, seu maroto...
- Sim! prometo-lhe... Ou melhor, juro-lhe mesmo...
- Mas, por quê?
- Ora... pelos lindos olhos verdes de Qlaukôpis Atenêa, respondeu Máximo, tomando a mão que a inglesa lhe estendia.
O francês desejaria que aquele momento se tivesse prolongado, mas um grito penetrante ecoou pelos ares, fazendo-o estremecer.
- Que há? interrogou Sadie.
- Oh! nada de grave! informou Preston. Deve ser uma rixa de macacos.
Mais uma vez se quebrava o encantamento amoroso.
- É extraordinário! exclamou, sorrindo, a inglesa, como todos ficamos nervosos depois dessa história dos homens-leopardos... Precisamos de repousar para descansar
os nervos... O seu amigo Preston vai, com certeza, pôr-se em campo, logo ao romper da manhã. Talvez que ele consiga descobrir uma boa pista... Por agora, a escuridão
tornava inútil qualquer tentativa.
Sadie levantou-se. Máximo preparava-se para a acompanhar até à tenda quando o caçador o deteve.
- E a carta para o sr. Serbannes? Não a quere escrever, agora? preguntou ele... É que tencionava mandar amanhã, logo de manhã, um estafeta a Séguéla...
- Não, só escreverei a Serbannes quando este caso dos homens-leopardos estiver arrumado, e nos possamos entregar, tranquilamente, à exploração do jazigo... Pensei
bem, e acho melhor adiar, por agora, o nosso encontro!
Esta decisão pareceu agradar ao inglês. Tirando o cachimbo do bolso atafulhou-o de tabaco. Máximo dirigiu-se, então, ao encontro de Sadie. Que lhe importava Serbannes,
agora que tinha Sadie junto de si,
e, por muito tempo? A inglesa entrara já na sua tenda.
Depois de uma ligeira hesitação, Máximo tomou a deliberação de penetrar no refúgio de Sadie.
Mas, o colosso negro lá estava, como um cão de guarda, atravessado à entrada da tenda. Então, Máximo estacou um pouco, e decidiu retroceder, regressando, assim,
à sua tenda.
Enrolado na coberta, protegido pelo mosquiteiro, tentou conciliar o sono. Mas, em vão. Não cessava de evocar o vulto esbelto de Qlaukôpis Atenêa, criatura de capricho
e de mistério, que o destino colocara no seu caminho e cuja imagem parecia indelevelmente estampada no seu espírito e no seu coração.
- Quinino, sr. Verdier?
- Quinino!
O trabalho fora bastante duro, desde o nascer do sol. A caravana avançara até à floresta. Preston não estivera inactivo, e Máximo verificara, mais uma vez, como
ele conhecia bem o mato. Apenas nascera o sol, o caçador acordara os indígenas e dera o sinal de partida; tinha conseguido descobrir um rastro de pegadas que, partindo
do local onde o Sudanês tinha sido atacado, se dirigiam para a selva.
Foi fácil a Preston verificar que as pegadas eram dos pés descalços de três ou quatro indígenas; uma ruga profunda sulcou-lhe a fronte e reprimiu uma praga quando
notou que uma outra pista, menos aparente, se orientava para o Sul.
O caçador contou o resultado das suas investigações aos seus dois companheiros, e o trio deliberou
dirigir-se para a floresta virgem. Máximo, como já é sabido, transferira para depois o seu encontro com Serbannes.
A marcha iniciara-se sob uma atmosfera carregada. Preston desejava a continuação daquele tempo seco que lhe permitiria seguir, facilmente, a pista dos assassinos.
Estes não tinham tomado a precaução de fazer desaparecer os rastos dos seus passos; tinham feito alguns altos, o que se verificava pela existência de montículos
de cinza; haviam aberto, também, caminho a machete por entre a selva, o que facilitava, agora, o avanço das caravanas de Máximo e de Sadie Quaynes.
A caravana dos europeus marchava agora já em plena floresta. Sob as grandes árvores, as conversas tinham cessado. Apenas se ouvia o ruído metálico dos machetes cortando
os altos arbustos que dificultavam a marcha. Impassíveis, infatigáveis, com os seus torsos cobertos de suor, os dois carregadores de Sadie marchavam, sempre no mesmo
passo, segurando à cabeça as extremidades da longa vara de onde pendia a tipóia da inglesa, até que Preston deu ordem de fazer alto.
- Quinino?
- Quinino!
Máximo tirou dois comprimidos do frasco que a inglesa lhe estendia; a marcha através da selva
tinha-o arrazado. Desejoso de cumprir a sua promessa e de encontrar, quanto antes, os misteriosos assassinos, abusara das suas forças. Sentia zumbidos nos ouvidos,
e os seus membros estavam extenuados; Sadie parecia muito mais resistente.
Estavam perto um do outro, mas, não diziam palavra; a inglesa olhava indiferentemente para os indígenas atarefados de um lado para o outro.
- Buasso!... Matacanhas!
O moleque deu-se pressa em ir ter com a patroa e procedeu, como era uso todas as noites, ao exame dos pés da inglesa, sempre atacados pelos minúsculos parasitas
que se introduziam sob a epiderme, provocando pequenas escaras, que se ulceravam e chegavam a provocar gangrena quando não eram extirpados a tempo.
As aves e os quadrúmanos tinham reatado o seu concerto, interrompido apenas um momento, à chegada dos homens; as moscas, as borboletas e os mosquitos começavam a
turbilhonar em redor das fogueiras. Um cheiro forte a madeira queimada veio ferir a pituitária sensível de Sadie e do seu companheiro, que permanecia em muda contemplação.
Máximo esquecia, pouco a pouco, as peripécias da marcha difícil daquele dia. O mal-estar, que sentira, ia-se dissipando e a sua atenção concentrava-se na companheira de viagem, que acendia, agora, um cigarro. Máximo estava embevecido na sua contemplação. A paixão e o desejo liam-se no seu olhar. Admirava a silhueta
grácil da inglesa, as suas formas harmoniosas, o seu perfil clássico, que parecia esculpido por um Fídias. Um tanto fatigada pela posição a que fora forçada durante
a viagem, Sadie levantou-se para desentorpecer as pernas; ajoelhado junto dela, o pretalhão aguardava o momento de começar o seu trabalho. Tornando a sentar-se soltou
um profundo suspiro, e, dirigindo-se ao francês, preguntou-lhe:
- Sabe onde estamos?
O interpelado encolheu os ombros. Desde que tinham saído da clareira não voltara a fazer qualquer pregunta a Preston; o caçador, que lhe declarara seguir a pista
dos criminosos, avançava à frente do grupo e não lhe dera quaisquer informações durante a marcha; além disso, a Máximo, contanto que seguisse com Sadie, tanto lhe
fazia ir para o norte como para o sul. A inglesa levava-o preso pelo beiço. Máximo passava a maioria do tempo junto da tipóia de Sadie, conversando com ela. Era
fora de dúvida que ele tinha o maior interesse em descobrir os criminosos e saber o móbil que os animara ao assassinarem o Gabão e o Samba, mas, isso eram para ele
preocupações de
ordem secundária; Qlaukôpis Atenêa dominava por completo o seu espírito.
Sadie, que percebera o estado de alma do francês, fazia de conta que não dava por isso. Os seus grandes olhos verdes passeavam distraidamente pela mágica decoração
que os envolvia. Fetos gigantescos, plantas das mais variadas espécies lutavam a ver qual a que atingia maior altura, em busca da carícia dos raios solares. A complicada
rede de lianas, coroadas de grinaldas de flores, multiplicava-se indefinidamente, ligando uns aos outros os gigantes da floresta. Os macacos aventuravam-se ao longo
dessas frágeis pontes, que balouçavam à sua passagem; com uma agilidade prodigiosa deixavam-se escorregar por aqueles cabos vegetais e vinham observar, bastante
de perto, os movimentos daqueles intrusos que tinham chegado, para tão desagradàvelmente, perturbar a quietação da floresta. Uma gargalhada argentina pôs em fuga
um bando de quadrumanos. Sadie quebrava, emfim, o silêncio; estendendo o braço, imitava o gesto de quem apontava uma arma contra a macacaria. Não foi preciso mais
para provocar o pânico entre a malta simiesca.
- São muito engraçados!... Penso que são mais inteligentes que a maioria dos nossos carregadores!
"Não acha esta floresta deslumbrante?
prosseguiu ela, dirigindo-se ao seu admirador. A atmosfera é pesada para os nossos pulmões de europeus, e o cheiro activo do húmus vegetal em constante decomposição
maça-nos, mas como isto é diferente da agitação das nossas grandes cidades europeias! Sentimo-nos tão perto da natureza... Nunca admirei tanto, como neste momento,
a obra do Criador.
O francês não respondeu; a voz de Sadie parecia-lhe adorável. Como escutá-la o deliciava, pelo contraste com as vozes rudes de Preston e dos carregadores indígenas!
Aproximou-se e tentou agarrar uma das mãos da inglesa, mas esta esboçou um sorriso malicioso e afastou-se ligeiramente.
- Está zangada? preguntou Máximo, desconcertado por esta atitude.
Sadie carregou um pouco o sobrolho.
- Por que havia de estar zangada?
- Não sei bem como me hei-de explicar, Mrs. Quaynes, mas não compreendo a sua atitude... Não me parece a mesma pessoa. Às vezes parece encorajar-me a permanecer
junto de si, outras, pelo contrário, nem mesmo esconde que me considera impertinente...
- Goodness! Que mosca lhe mordeu? Em que é que eu mudei?... Afinal de contas, para si sou uma estranha!... Que espera de mim?
toma-me por alguma dessas mulheres do Bassanv ou de Bingervilhe que caem nos braços do primeiro que aparece?
Os seus olhos verdes fixavam-se em Máximo com uma tal expressão de dureza que o francês protestou:
- A sua fereza e a sua indiferença fazem-me mal!... Lembre-se... a outra noite...
- Se quere que fiquemos bons amigos, sr. Verdier, não me volte a falar na outra noite... os senhores... os franceses são extraordinários!... Assim que vêem uma mulher,
atiram-se! Lembre-se que nada sabe do meu passado... Que posso eu representar para si? Uma mulher que passa e que o deixará com a mesma facilidade com que o encontrou...
Não sou das que se prendem e não poderia ser para si mais do que um capricho...
Máximo interrompeu a sua interlocutora.
- Mas, não compreende que a amo!... Desde que a encontrei não sou o mesmo homem... Não penso senão em si... Parece-me que sou vítima de um estranho sortilégio. Antes
de a encontrar havia uma força irresistível que me dominava: o gosto da aventura. O risco e o perigo entusiasmavam-me... Parecia-me que a vida era apenas acção e
só me sentia bem no cenário maravilhoso das terras longínquas. Você apareceu e, imediatamente, em si
se concentraram todas as minhas aspirações. Muitas vezes me ri dos meus amigos, quando eles se me
confessavam apaixonados... Eles tinham razão...
Alguns segundos bastaram para me transformar.
Emquanto o francês fazia a sua declaração,
Sadie observava distraidamente o moleque que lhe tirava as matacanhas dos dedos dos pés. Buasso procedia com as maiores precauções para não deixar enterrados na
carne, nem o abdómen, nem a cabeça da matacanha, pois poderiam provocar a formação de abcessos.
- Cuidado, Buasso... Olha que me cortas... Máximo estava desconcertado pela indiferença de Sadie. Esperava, ainda, que a fisionomia da inglesa se abrisse num sorriso
indulgente, e que os olhos verdes de Qlaukôpis Atenêa o fitassem com um pouco de interesse, e talvez mesmo de amor. Foi para ele uma decepção ouvir Sadie dizer-lhe
em tom de censura.
- Sempre é muito romântico, sr. Verdier... Engana-se comigo... Talvez me tenha tomado por uma vamp, por uma dessas mulheres fúteis com que o familiarizaram, certamente,
a literatura, o teatra e o cinema anglo-saxões... Acredite-me... não tenho nada de uma heroína de Ridder Haggard ou de Pierre Benoít. Não sou a mulher que se encontra
no mato e por quem se morre de amores.
Um riso agudo sublinhou a última frase. Máximo quis dizer qualquer coisa; os olhos verdes fitaram-no, mas, desta vez, pareciam sorrir-lhe. Dir-se-ia que os olhos
desmentiam as palavras que acabavam de ser pronunciadas.
- Na verdade, não a compreendo!... Por que procede assim?... Duvida do meu amor?... Juro-lhe... nunca... no decurso das minhas viagens...
- Buasso!... As meias. As minhas botas!
Sadie falava com o moleque que se apressava em calçá-la.
Durante alguns instantes, Máximo permaneceu atónito, sem compreender a sua companheira de viagem.
com um gesto aborrecido, a inglesa mandou embora o Buasso, e pôs-se a examinar a abóbada de verdura onde cabriolavam os macacos.
O francês dirigiu-lhe novamente a palavra:
- Sente-se mal?... Em que está a pensar?
- Nos homens-panteras... Não acha que eles levavam o canibalismo a um grau requintado, para assumirem a aparência de feras e fazerem assim crer às autoridades que
as suas vítimas tinham sido devoradas por animais ferozes?
Máximo sentia-se irritado com a atitude calma da inglesa.
- Quero que os homens-panteras vão para o diabo! resmungou ele.
Um relâmpago de cólera atravessou os olhos verdes de Sadie.
- Qual é o nosso fito, neste momento, sr. Verdier? Procuramos descobrir os assassinos dos pobres indígenas, não é assim?... É, por isso, muito natural que eu procure
elucidá-lo sobre os costumes desses criminosos... Gostaria de descobrir a chave do mistério... Não imagina quanto esta caça ao homem me apaixona!...
Máximo não dizia palavra; a inglesa prosseguiu:
- Esses homens-leopardos não me são completamente desconhecidos... Em Bassam contaram-me histórias extraordinárias a respeito deles. Parece que, dissimulados no
âmago das florestas, praticam ritos estranhos; adoram o leopardo, a quem prestam um culto de divindade; algumas pessoas asseguraram-me que lhe sacrificam, em determinados
períodos de cada ano, várias mulheres... Nota-se, de vez em quando, o desaparecimento de raparigas indígenas nas aldeias vizinhas da grande floresta e muitos me
têm dito que são raptadas por membros dessa temível associação, que as entregam como pasto aos felinos...
- Contam-se muitas histórias, interrompeu Máximo.
Mas bom seria que os que as ouvem se dessem ao trabalho de as controlar!...
- Tenho esperança de que não tardaremos em decifrar o enigma... Os costumes destes povos selvagens interessam-me imenso, sr. Verdier. Li e reli as obras de Seabrook
que viajou muito por estas regiões e que foi testemunha de cenas verdadeiramente desconcertantes...
Sadie Quaynes foi interrompida pela voz de Preston que os chamava para o jantar.
- Tubabo!... Vem cá!... Olha tanta formiga!...
Máximo levantou-se para ir ver. Havia várias noites que dormia enrolado numa manta, encostado ao tronco de um chincho.
Por mais que fizesse não conseguia esquecer a última cena com Sadie: aquela estranha criatura, que ele cognominara Glaukôpis Atenêa dominava-o, em absoluto.
Alagado em suor virava-se, constantemente, de um lado para o outro no leito que o seu moleque lhe improvisara. Milhares de insectos zuniam em torno das fogueiras
que os indígenas tinham acendido para afastar os animais ferozes.
Não muito longe dele encontrava-se a tenda de Sadie; dormia, naturalmente, abrigada no seu frágil refúgio. Um dos carregadores estava, como de costume, atravessado
em frente da porta, e o francês ouvia-o ressonar.
- Tobabo!... Depressa!... Aqui há formigas!... repetiu o Tanga.
Todo o acampamento se erguera. À luz de numerosos archotes brandidos pelos indígenas, Máximo reconheceu o vulto de Preston. O caçador dirigia-se, também, para junto
dele.
- Venha daí, sr. Verdier... Há urgência!... Vamos ser atacados pelas formigas... Temos que nos despachar se não queremos que os malditos insectos dêem cabo de tudo...
O francês seguiu o caçador. Conhecia, de longa data, a reputação dos temíveis insectos... Deslocando-se em grandes bandos, destruíam tudo à sua passagem. Ainda,
recentemente, tinham invadido um posto da Costa de Marfim: o colmo das cabanas, os víveres e as provisões dos indígenas, as árvores, as culturas, tudo fora destruído
pelas mandíbulas dos invasores; os jornais tinham referido, até, o seguinte incidente, bastante macabro: um salteador indígena amarrado, na cubata que lhe servia
de prisão, e de que os habitantes se tinham esquecido, na sua fuga precipitada, fora completamente devorado pelos insectos. No dia seguinte, quando a população regressou
à aldeia, completamente devastada, encontrou o esqueleto do desgraçado, que fora comido pelas terríveis formigas.
Máximo compreendeu, imediatamente, o perigo
em que se encontravam; Preston explicou-lhe que o alarme fora dado por uma das sentinelas: notara esta, à luz indecisa das fogueiras, uma longa fileira negra marchando
para o acampamento; ao mesmo tempo, surpreendera o cheiro característico, que se espalhava na atmosfera.
O indígena dera sinal, imediatamente. Em poucos segundos todo o acampamento estava a pé. Agora, cada um, por seu lado, tratava de conjurar o perigo. A primeira idea
que acorreu ao inglês foi levantar, imediatamente, o acampamento, mas, depressa se convenceu de que não havia tempo de porem tudo ao abrigo do invasor.
A guarda-avançada do exército de formigas estava já a vinte metros do acampamento. Máximo, que avançara para ele na companhia de Preston, compreendeu a gravidade
da situação; os viajantes nada tinham que recear em matéria de segurança pessoal, mas, as suas bagagens estavam votadas à destruição se não conseguissem pôr um dique
ao avanço das formigas.
Já os indígenas esmagavam, com os pés, as formigas, sem conseguirem mais que irritar os horríveis animais, que acorriam em número cada vez mais avultado; na escuridão
da noite ouvia-se o ruído das miríades de patas: os ramos roídos estalavam, arrastando na queda verdadeiros cachos de formigas.
Preston e o francês não perdiam tempo; o caçador gritou:
- Depressa!... Vão buscar lenha à fogueira!... Amassem a cinza quente...
Os indígenas retiraram das fogueiras alguns troncos incandescentes que atiravam para cima das filas cerradas de insectos.
Formavam-se grandes clareiras entre a horda invasora retardando-lhe, ligeiramente, a marcha, mas, isso não bastava para as obrigar a retroceder; a toda a pressa,
estimulados pelos dois brancos que lhes prestavam um auxílio eficaz, carregadores e homens da escolta erguiam uma barragem de cinza fumegante em torno do acampamento,
recolhendo as bagagens a-fim-de as protegerem mais facilmente.
Sadie, que se erguera apressadamente, calçava as botas; julgando que se tratava de um ataque, a inglesa, de revólver em punho, saiu do seu abrigo.
- Que há?... preguntou ela a Langano que, alagado em suor, redobrava de esforços na extremidade mais ameaçada do acampamento.
- São as formigas!... explicou o indígena. Abrindo caminho entre os carregadores, Sadie
depressa avistou o tapete movediço das formigas avançando por entre as árvores. Cobriam tudo,
o solo, os caules dos arbustos, as lianas, e o seu cheiro repugnante empestava a atmosfera.
Preston e Máximo continuavam a dirigir os seus auxiliares que alargavam a muralha de cinza quente e de brasas.
Os primeiros grupos de formigas atingiam já a barreira de fogo. Sem hesitar, avançaram, mas, sentindo-se queimadas pela cinza ainda fumegante, retrocediam, rapidamente,
espalhando uma grande confusão na sua guarda-avançada. Atropelando-se umas às outras, as intrusas procuravam, baldadamente, franquear a barragem.
A voz rude de Preston estimulava os indígenas que tinham parado o seu trabalho.
- Vamos!... O perigo ainda não passou!... O acampamento não está ainda bem protegido... Vá, coragem rapazes, ou estamos perdidos!...
As formigas rondavam, agora, o reduto procurando uma brecha por onde pudessem penetrar no acampamento.
Mas, a tenacidade e a perseverança dos homens acabou por vencer a fúria invasora das formigas.
A barreira de cinza envolvia, ininterruptamente, as tendas e as bagagens. Derreados, os indígenas agrupavam-se em redor dos três europeus, sem dizer palavra, e não
deixando de olhar para as legiões de formigas que, depois de terem contornado o reduto,
os cercavam por todos os lados; ansiosos, ouviam o trabalho regular das mandíbulas cortando os fetos gigantes, que os insectos iam devorando. Assustados, os pássaros
esvoaçavam de árvore para árvore, fugindo à invasão e procurando novo refúgio mais para o interior da floresta. Pirilampos e borboletas nocturnas prosseguiam em
seus voos caprichosos. Os morcegos, em grande quantidade, descreviam caprichosos zigue-zagues e as suas asas roçavam, de vez em quando, o rosto dos indígenas.
Durante mais de meia hora a horda buliçosa continuou a passar. Os europeus, e os seus auxiliares, assistiam imóveis à marcha dos insectos, arrancando-se, de vez
em quando, à sua contemplação para renovarem, apressadamente, a provisão de cinza ou para lançarem um fogacho para cima das formigas. Ofegante, Sadie assistia a
tudo aquilo.
Máximo sentiu a mão dela pousar-lhe no ombro:
- Que bichos tão repelentes... murmurou ela, com um certo tremor na voz. Quando penso que nos poderiam ter levado tudo!...
O francês olhava para a sua companheira de viagem sem dizer palavra. Admirava-se do tom em que ela, agora, lhe falava, depois do que se havia passado, algumas horas
antes. Sentia a mão de Sadie que deslisava ao longo do seu braço até que
os dedos afusados da inglesa se vieram refugiar na palma da sua mão suja de cinza.
- Não tenha receio! O perigo está passado!... Preston vinha, mais uma vez, interromper os
dois jovens. Máximo ficou fulo; Sadie fitava-o, agora, demoradamente.
- Podem ir deitar-se, tanto um, como o outro... Não há nada a recear... No entanto, antes disso, sr. Verdier, parece me que haveria vantagem em arrumarmos melhor
as bagagens... Amontoamo-las todas no centro do acampamento com receio das formigas...
Viu-se, assim, forçado a separar-se da inglesa. Durante mais de dez minutos estiveram a arrumar as caixas e os fardos, enquanto os indígenas renovavam as provisões
de combustível.
Quando Máximo terminou o trabalho já a inglesa repousava na sua tenda, sempre com o Buasso atravessado em frente da porta, como um cão de fila; cansado, o francês
voltou para o seu pouso. Na manhã seguinte, quando Máximo acordou parecia-lhe que tinha sido transportado para uma outra região. Nada subsistia da vegetação pujante
que na véspera tanto o deslumbrara. Árvores e arbustos tudo tinha sido despojado da folhagem, das flores e dos frutos. Na atmosfera sentia-se ainda o cheiro nauseabundo
das formigas.
Preston já equipado para a partida veio ter com Máximo.
- Tenho pressa de sair daqui, sr. Verdier!... Assim que acabemos de almoçar, temos de nos pôr a caminho. Vamos a ver se as formigas não me fizeram perder a pista...
Emquanto se arranjam, vou efectuar um pequeno reconhecimento...
Sadie apareceu, também; parecia imensamente fatigada, e foi quási com dificuldade que respondeu aos cumprimentos do francês.
- Passei muito mal a noite... Parecia-me que as formigas andavam dentro da tenda... Chamei por si, várias vezes... Por que não respondeu?
- É de crer que estivesse a dormir profundamente, replicou o francês. Não sei nada...
- E, assim abandonou a sua Qlaukôpis Atenêa! Os olhos verdes dirigiam agora um olhar de censura para Máximo que não conseguia compreender a súbita mudança daquela
estranha criatura.
- vou arranjar-me, disse Sadie. E, espero que o próximo alto seja num sítio mais conveniente... Já venho, terminou ela, esboçando um sorriso adorável.
Máximo seguiu com o olhar a inglesa emquanto esta regressava à tenda.
"Decididamente, não percebo nada!... Que significará toda esta comédia?
- Anda, tubabo!... Almoço pronto!...
Tanga viera interromper o curso dos seus pensamentos. Emquanto Sadie fazia o chá, Máximo trocou com ela algumas palavras sem importância; mas o seu rosto iluminou-se
assim que viu Preston, que caminhava para eles de carabina às costas, com o ar de quem está muito satisfeito com o resultado do reconhecimento.
- Então? que descobriu, Mr. Preston? preguntou Sadie.
- Eureka! Eureka! descobri a pista dos assassinos. Mas, mais do que isso, Trago-uma coisa muito interessante para lhes mostrar. E, à medida que pronunciava estas
palavras, o caçador ia tirando de sob o colete de malha qualquer coisa cuidadosamente dobrada...
- Olhem, disse ele. Creio que desta vez acertei!... Sadie agarrou no objecto. Assim que o desdobrou não pôde conter uma exclamação:
- Uma pele de leopardo!...
Era, de facto, uma pele de leopardo o que a inglesa tinha estendido em cima dos joelhos. Durante alguns segundos, atónita, não tirava os olhos de cima do macabro
objecto trazido pelo caçador. Junto dela o francês manifestava idêntica estupefacção.
- Onde diabo foi descobrir isto, Preston?... É uma pele semelhante à que o pobre Samba amarfanhava
numa das mãos quando descobrimos o seu cadáver...
- Foi aqui perto, na floresta, a dois passos de nós... É sinal de que estamos na boa pista... Eles não devem andar longe... Dentro de um ou dois dias havemos de
dar com eles...
Máximo parecia não compartilhar do optimismo do caçador.
- Não acha extraordinário, Preston, objectou ele, que esses patifes tenham cometido a imprudência de deixar atrás de si uma prova da sua passagem? Receio, mas é
que tudo isso seja, ou um estratagema para nos despistar, ou uma armadilha...
- Já pensei nisso, comentou a inglesa, mas estamos prevenidos... Não há possibilidade de quaisquer surpresas dadas as precauções que tomamos...
Máximo continuava a olhar com desconfiança para a pele de leopardo.
- Olhe, Preston... começo a temer uma emboscada! Quem nos diz a nós que os homens-leopardos não tenham interesse em que nos internemos, cada vez mais, na floresta,
para mais facilmente poderem vencer a nossa resistência?... Os brancos não costumam aventurar-se por estas regiões e ignoramos o estado de espírito das tríbus...
Quanto
- Já pensei nisso, estamos prevenidos...
mais avançarmos tanto mais nos arriscaremos a perigos desconhecidos. Não se admire, pois, que lhe recomende as maiores cautelas...
Preston abanou a cabeça. Sadie observava o francês.
- Se assim é, declarou ela, por fim, nada o impede sr. Verdier de dar ordem de retirada ao seu grupo... Eu, pela minha parte, estou cada vez mais disposta a perseguir
os criminosos... Partirei sozinha com os meus homens...
Máximo protestou:
- Mas, é uma loucura!... Mrs. Quaynes! Julga-me capaz de a abandonar? Não tenciono nem recuar, nem, tampouco, evadir-me à promessa que lhe fiz... Mas, nem por isso
julgo desnecessário ser prudente. Repito-lhe, mais uma vez: aqui na floresta apenas podemos contar com as nossas próprias forças...
- E, nem eu pensava outra coisa... Não esperava ir encontrar um destacamento de tropas auxiliares para colaborar connosco!...
- Não troce, Mrs. Quaynes! Isso não lhe fica bem. Sabe, com certeza, que apenas tenho em vista o seu interesse e a sua segurança. Conheço a reputação de crueldade
destas tríbus selvagens e apavora-me a idea de que possa vir a cair nas mãos deles...
- Julgará que eles me ofereceriam em holocausto ao deus-leopardo?
E, Sadie soltou uma gargalhada estridente, emquanto dizia a Buasso que lhe desse outra chávena de chá. Então, Preston, interveio por sua vez, reforçando os argumentos
da inglesa. Máximo não insistiu mais e continuou a almoçar, furioso, sem dar mostras de notar os olhares que Sadie e Preston trocavam entre si.
O grupo marchava há seis dias em plena floresta virgem. Apesar de todos os esforços não tinham conseguido obter o mínimo resultado. Preston, que avançava sempre
na testa da coluna, acompanhado por três indígenas que abriam caminho com os seus machetes, continuava a assegurar que seguia a pista dos enigmáticos criminosos;
no quarto dia de manhã, a descoberta de uma fogueira, ainda mal extinta, dera ao francês algumas esperanças de que não tardaria em terminar-se, finalmente, esta
caça ao homem, que ameaçava já eternizar-se, e cuja conclusão se anunciava, cada vez menos favorável, dado que a caravana atravessava um território que lhes era
absolutamente desconhecido.
Não tinham encontrado ainda nenhuma aldeia. Todas as manhãs, Preston e Máximo iam à caça, acompanhados de alguns indígenas, para abastecimento
da coluna. Tinham conseguido abater belas peças de caça: três antílopes, um javali, e numerosos pombos verdes. Por três vezes Sadie teimara em acompanhar os dois
europeus, e sempre se mostrara uma exímia caçadora.
Contudo, a inglesa começava a manifestar alguns sinais de fadiga. O clima húmido e a atmosfera da floresta pareciam minar-lhe as forças. Em redor dos lindos olhos
verdes cavavam-se profundas olheiras, o seu rosto, dias antes tão fresco e rosado, estava profundamente pálido. O quinino não dava já nenhum resultado.
Fora em vão que o francês tentara dissuadir a sua companheira de viagem a abandonar os seus projectos e a regressar para regiões civilizadas. Opunha-lhe sempre a
mais obstinada recusa. Sadie preferiria sucumbir a confessar-se vencida. E, lá continuava a avançar, sempre deitada na sua tipóia. À noite, a caravana acampava:
Preston e Balango tomavam todas as disposições necessárias para repelir os ataques dos homens e das feras; os primeiros nem sequer se avistavam: só sinais da sua
passagem, e mais nada; emquanto aos animais ferozes rondavam, em grande número, a pouca distância das fogueiras; cintilações inquietadoras luziam por entre as trevas;
as sentinelas indígenas estavam sempre alerta. Algumas vezes Máximo foi despertado
pelos lúgubres uivos de uma hiena, ou pelo miar sinistro de uma pantera; receava sempre que algum dos auxiliares fosse atacado pelas feras, mas, felizmente, as chamas
das fogueiras afastavam os animais ferozes.
No entanto, como a caravana marchava com lentidão, Sadie e os seus companheiros podiam admirar à vontade a maravilhosa decoração da floresta virgem. Orquídeas, bromeliáceas,
grinaldas de flores dos mais variegados matizes exibiam-se a seus olhos. Quando o grupo acampava junto de um dos numerosos cursos de água que sulcavam a selva, Sadie
não deixava de admirar as belas flores dos nenúfares e dos narcisos.
Preston demonstrava uma coragem e uma resistência física espantosas.
Máximo entregara-lhe a direcção da caravana, e a prática que o caçador tinha do mato era francamente admirável. Dir-se-ia que conhecia, palmo a palmo, aquela região
misteriosa e selvagem, tal a maneira como sabia escolher os locais para bivaque, estabelecendo-os sempre perto de sítios onde havia água que permitisse aos viajantes
desalterarem-se.
À medida que a marcha se ia prolongando, o francês manifestava uma maior impaciência. As suas apreensões aumentavam devido ao estado de saúde
de Sadie. Todas as manhãs Preston se mostrava convencido de que ia, emfim, deitar a mão aos invisíveis fugitivos, mas, chegados à noite, nova desilusão os esperava.
Os indígenas avançavam sempre sem um queixume dando provas de um admirável espírito de disciplina; afrontavam, estoicamente, os perigos, cada vez mais ameaçadores,
da floresta... Dois deles foram mordidos por- serpentes e só a intervenção dos tubabos os salvou de uma morte certa; marchavam em fila indiana, com os fardos à cabeça,
e esforçavam-se por evitar os insectos venenosos que pululavam pelo caminho: escorpiões, escolopendras, miriápodos e horríveis aranhas.
Numa das manhãs, Preston, que seguira em reconhecimento, voltou, pouco depois, para trás, muito animado.
- Que há? preguntou o francês... Descobriu os assassinos?...
O inglês abanou a cabeça.
- Não se trata dos homens-leopardos! Se quiser saber o que é venha daí comigo, sr. Verdier! Descobri uma pista que há longas semanas procurávamos...
Profundamente intrigado, Máximo foi atrás do inglês, acompanhado por Balango e mais três indígenas. Os outros ficaram a fazer companhia a Sadie.
O francês examinava com atenção o solo preguntando, a si mesmo, se o seu companheiro não teria de facto descoberto os assassinos do Gabão e do Samba, quando reparou
que os indígenas, que, até então, abriam caminho a machete, abandonavam as suas armas pondo-as à cinta. É que já não havia necessidade de abrir caminho; este era
agora bastante amplo.
Máximo compreendeu então que espécie de animais tinha por ali passado, calcando o terreno e abrindo aqueles buracos cilíndricos que se viam por todos os lados. Só
elefantes podiam fazer daqueles estragos na vegetação; desde que frequentava a África Equatorial e especialmente a Costa de Marfim o francês habituara-se a conhecer
a pista de elefantes.
Preston ia na frente.
Uma expressão de contentamento inundava-lhe o rosto. Decidiu-se, emfim, a parar e, voltando-se para Máximo, disse-lhe:
- Há quanto tempo procurávamos estes malditos elefantes e, afinal de contas, não estavam tão longe como isso!... Mais vale tarde do que nunca!...
O caçador parecia ter esquecido os homens-leopardos; os indígenas, esses, olhavam para todos os lados, cheios de desconfiança.
Não era preciso ser muito conhecedor dos costumes dos elefantes para se ficar convencido de que, por ali, tinham passado, recentemente, muitos desses paquidermes.
Preston chamou de parte Máximo Verdier e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Máximo conteve-se para não soltar um brado de entusiasmo: a dois passos deles, junto
a uma clareira, avistavam-se várias massas cinzentas de grande altura; ouvia-se mesmo o ruído que faziam os paquidermes arrancando com as trombas os ramos das árvores.
O francês pôde contar trinta elefantes adultos e uns três elefantes ainda pequenos, junto das mais. Espantados pela chegada daqueles mastodontes, os macacos tinham-se
posto em fuga.
Preston preparava-se já para meter a arma à cara, para fazer fogo sobre um dos maiores elefantes-um macho- que se encontrava a uns trinta passos, quando um ruído
surdo se fez ouvir. Era como que o rufar de um tambor não muito longe dali. Os elefantes davam sinal de grande agitação soltando gritos agudos: agrupavam-se mesmo,
como se estivessem na iminência de um perigo. Hesitaram um instante mas, como continuasse a ouvir-se aquele rufar surdo, agora mais próximo, largaram em debandada.
Máximo apurava o ouvido, para ver se caracterizava
melhor o estranho ruído; junto dele, Balango que auscultava o solo, murmurava-lhe:
- Tubabo, é um tam-tam!
Não havia dúvida; o ruído surdo, que provocara a fuga dos elefantes, era o rufar do tambor de guerra de uma aldeia indígena, que não poderia estar distante.
O francês, dirigindo se a Preston, que continuava de joelho em terra, mas, já sem se importar com os elefantes, preguntou-lhe:
- Que será melhor fazer?
O inglês teve um gesto evasivo e, aproximando-se do companheiro, disse-lhe:
- Estamos, com certeza, próximo de uma aldeia indígena... Não me atrevo a fazer fogo e a dar, assim, sinal da nossa presença aos indígenas cujas disposições, a nosso
respeito, desconheço.
- Então... se assim é, o melhor é batermos em retirada.
- Sim, sim, é mais conveniente, respondeu, com um ar bastante preocupado, Preston.
Os indígenas, que estavam varados de medo, acolheram com júbilo, a decisão do tubabo. E, aquela guarda-avançada arrepiou caminho.
Entretanto o ruído cessara. Preston e o francês ouviam, agora, o concerto dos tucanos, dos papagaios e dos turacos, mas, nem por isso estavam mais tranquilos.
Felizmente a agressão, que esperavam, não se produziu. Apenas um incidente, que podia ter tido consequências graves, fez acelerar a marcha do pequeno grupo. Um dos
indígenas, que caminhava perto de Máximo, deu um pulo soltando um urro de pavor.
Desorientados, os dois brancos levaram a mão aos revólveres prontos a defender-se resolutamente, quando ouviram o preto:
- Moscas de fogo! Moscas de fogo!
Estas palavras bastaram para elucidar Preston e Máximo. Na precipitação com que caminhava, o indígena dera um safanão num enxame dos perigosos insectos, e corria,
agora, apavorado, para lhes escapar às mordeduras.
Todos os outros lhe imitaram o exemplo; as picadas das moscas de fogo são tão dolorosas como as queimaduras de carvões incandescentes, e, algumas vezes, mortais.
No decurso das suas viagens já tinham visto morrer alguns indígenas em virtude da picada desses temíveis insectos.
Finalmente, correndo a bom correr, lá conseguiram pôr-se ao abrigo das suas investidas.
- Escapamos de boa!... respondeu o francês... Malditos bichos!
Os indígenas, vendo-se safos daquele perigo, riam-se, agora, todos contentes.
- Vamos! toca a andar! ordenou Preston. Não há tempo a perder.
O pequeno grupo pôs-se, de novo, em marcha; daí a um quarto de hora chegavam ao local do acampamento... Ouviram-se gritos de alegria quando eles chegaram. Tanga
foi o primeiro a ir ter com o seu tubabo.
- O que foi que lhes aconteceu? Estava cheia de receio, disse Sadie, que saltara abaixo da sua tipóia. Pensei que tivessem sido atacados.
- Atacados?... Por que razão?
- Pois, não ouviram, há bocado?... Um tambor de guerra indígena?
Máximo fez que sim com a cabeça.
- Esse maldito tam-tam impediu-nos de fazer uma bela caçada... Mas, tivemos de nos safar...
E, o francês contou-lhe, resumidamente, o que lhes tinha acontecido. O rosto de Sadie exprimia, agora, uma grande inquietação.
- É preciso estar de olho aberto, murmurou ela. Quem sabe? Talvez que os indígenas, cuja presença nos acaba de ser revelada, pertençam à mesma tríbu que os homens-leopardos.
- Não tenha receio, Mrs. Quaynes, assegurou Preston: esses diabos não nos apanham desprevenidos... Além de tudo o mais, logo que façamos alto, vou preparar um reconhecimento...
Quero saber as intenções desses escarumbas a nosso respeito...
- Acompanhá-lo-ei, disse Máximo.
- Não; a sua presença é indispensável junto de Mrs. Quaynes. Eu posso bem ir sozinho!... Antes de anoitecer estarei de regresso.
O francês parecia não compartilhar da segurança do seu companheiro.
- Se se demorar muito irei à sua procura.
- Não faça tal!... Não há-de haver novidade... Mas, a minha ausência pode ter de prolongar-se. Contudo, não se esqueça de que não deve abandonar Mrs. Quaynes: está
entendido?
- Mas, parece que você, Preston, me quere dar ordens? protestou Máximo.
- O senhor contratou-me para lhe servir de guia... Um reconhecimento dessa natureza, creio que está nas minhas atribuições... Entendo, também, como homem, que o
senhor não deve abandonar a nossa companheira aos piores perigos...
O francês rendeu-se às razões de Preston, depois da intervenção de Sadie.
E, a coluna, após este pequeno incidente, prosseguiu na sua marcha, sem que, até ao anoitecer, tivessem qualquer encontro.
Um pouco antes do pôr do sol, Preston escolheu local para o bivaque, junto de um ribeiro, onde
(os indígenas, gritando, numa alegria verdadeiramente pueril, mergulharam os seus corpos escandecidos. Foi preciso que Balango interviesse com o chicote para os
constranger a uma maior prudência.
Conforme ficara decidido, o caçador despediu-se de Máximo e da sua compatriota, e, a seguir, entranhou-se pela floresta.
Passaram-se duas horas que pareciam intermináveis, tanto ao francês como à sua companheira. Máximo consultava constantemente o relógio receoso de que tivesse acontecido
qualquer coisa ao inglês.
Mal tocou no prato de bananas cozidas que o Tanga lhe trouxe para o jantar. Imóvel, estendida Hnerto dele, Sadie não mostrava uma tão febril inquietação, mas, nem
por isso deixava de dar sinais de estar bastante preocupada.
Por seu lado os indígenas olhavam para todas as bandas e, ao menor ruído, seguravam, com mão trémula, os amuletos.
Finalmente, Máximo sentiu dissipar-se a apreensão que o oprimia, quando avistou um vulto familiar a uns trinta passos do acampamento.
- Então, Preston, descobriu alguma coisa de interessante? bradou ele, assim que reconheceu o recém-chegado.
- Nada! Segui para além do ponto onde encontramos os elefantes, na direcção de onde vinha
o ruído do tam-tam e nada encontrei que nos pudesse inquietar... Como já fosse noite fechada, resolvi-me a voltar para trás... Creio que poderemos dormir descansados...
No entanto vou colocar sentinelas dobradas.
Sadie, tranquilizada pelas declarações do seu compatriota, deu as boas noites e, cheia de sono, recolheu à sua tenda, que Buasso acabara de montar.
Preston e Máximo conservaram-se ainda algum tempo a conversar e, pouco depois, Máximo recolhia também ao seu refúgio.
Cobriu-se, cuidadosamente, com o mosquiteiro, enrolou-se numa coberta e adormeceu, vencido pela fadiga.
Quanto tempo teria passado, quando acordou, despertado, em sobressalto, por um ruído estranho, como de um corpo que deslisasse perto dele? Não o poderia dizer. Num
gesto maquinal levou a mão à carabina, que, como de costume, deixara ao seu alcance, e ficou espantado de a não encontrar.
- Que diabo é isto? Tanga! Tanga!
Por mais que chamasse, o moleque não lhe respondia. Aquele silêncio parecia-lhe estranho. Tanga dormia sempre estendido à entrada da tenda. Pressentindo qualquer
acontecimento grave, quis puxar pelo revólver antes de sair cá para fora. Mas... também o revólver desaparecera.
Inquieto, bradou por Preston; mas, o caçador não respondia. Todo o acampamento parecia mergulhado na mais profunda letargia.
- Mas, não percebo nada!
O desaparecimento das armas exasperava-o. Acendeu um fotóforo e pôs-se a procurar a carabina e o revólver. Não apareciam. Alguém se introduzira na tenda e lhe roubara
as armas, emquanto ele dormia.
- Preston!... Tanga!... gritou, de novo, agora já fora da tenda... Onde estão vocês?... Que há?... Mas, nem Preston, nem Tanga, nem Sadie, nem os indígenas, nem
ninguém respondia!... Apenas a lenha continuava a crepitar nas fogueiras. Todo o acampamento parecia deserto.
Deu alguns passos, mas, de-repente, pareceu-lhe ouvir alguém atrás dele. Ia a voltar-se para se pôr em guarda; mas, não teve tempo. Sentiu uma dor violentíssima
na nuca e caiu de bruços. Parecia-lhe que a floresta dançava, agora, em volta dele.
Num derradeiro esforço, Máximo tentou reagir... Mas, a pancada que lhe tinham vibrado fora muito forte. E, soltando um gemido, perdeu os sentidos.
- Onde diabo estarei eu?
Máximo levou a mão à nuca. Sentia uma dor violentíssima. Meio atordoado, abriu os olhos e olhou em redor.
- Que é isto? Parece que me deitaram em cima de uma esteira?... Onde estarei eu metido?
O francês encontrava-se numa palhota de grandes dimensões, mobilada com três cadeiras e uma mesa bastante toscas. Perto dele, ao alcance da sua mão, encontrava-se
uma cabaça, contendo um líquido qualquer. Cheio de sede levou o gargalo da cabaça à boca e sorveu um grande gole. Era vinho de palma. Bebeu ainda mais uns goles
e, soltando um profundo suspiro, enxugou os lábios às costas da mão.
- Preston!... Tanga!... Onde estão vocês?
No limiar da palhota o prisioneiro avistou um vulto. Reconhecendo-o, soltou uma exclamação:
- Mrs. Quaynes!...
A inglesa aproximou-se da esteira de Máximo. Este preparava-se para fazer nova pregunta, mas, ela fez lhe sinal que não falasse tão alto.
- Mais baixo, murmurou ela. É preciso que eles não suspeitem de que recuperou os sentidos... senão não me deixam estar aqui.
E, ao pronunciar estas palavras, Sadie olhava para trás, cheia de ansiedade. Dir-se-ia que receava que aparecesse alguém.
Sentando-se na esteira, Máximo procurou as
suas armas.
Tinham-lhe tirado, também, a cartucheira e o saquinho com as pepitas; apenas o capacete ali estava, no meio do chão de terra batida.
- Agora me lembro, murmurou ele. Despertei, durante a noite, e verifiquei que me tinham roubado a carabina e o revólver. Saí da tenda de campanha à procura das armas...
Depois fui atacado pelas costas... Suplico-lhe, Mrs. Quaynes, diga-me, onde estamos? E, porque está, também, desarmada? Explique-me...
- Fale mais baixo! Podem ouvir-nos!
O pavor de Sadie comunicava-se a Máximo. Imóvel, sem saber o que havia de pensar,
o francês apalpava a nuca dorida. A ligeira equimose fora pensada.
A inglesa saiu da palhota para ver se vinha alguém; depois, já um pouco mais tranquila, tornou a entrar.
- Mas, onde estamos? voltou a preguntar Máximo, agora, em voz muito baixa, mas cada vez mais impaciente.
- Estamos numa aldeia da floresta... Fomos assaltados durante a noite e trouxeram-nos como prisioneiros para aqui. Os indígenas, que nos atacaram, devem pertencer
à mesma tríbu dos homens-leopardos e parecem animados das piores intenções a nosso respeito...
"Dormia profundamente na minha barraca quando fui acordada por gritos horríveis vindos de todos os lados da floresta... Buasso apareceu-me, todo trémulo e exclamando:
"Homens-leopardos, homens-leopardos!"
"Tirei o mosquiteiro e, ia a deitar a mão ao revólver quando verifiquei que ele tinha desaparecido. O mesmo acontecera à carabina...
- Também a mim me tiraram a carabina e o revólver. Fomos, com certeza, atraiçoados por algum dos indígenas!
- Num instante saí da barraca, prosseguiu Sadie, sem prestar atenção ao comentário do seu companheiro
de infortúnio, e à luz da fogueira avistei vultos de indígenas dirigindo-se para mim em atitude ameaçadora.
"Gritando por si, dirigi-me para a sua tenda. E foi, então, que o vi, estendido no chão, a pouca distância do seu refúgio... Ia socorrê-lo quando um grupo de indígenas
de estatura gigantesca se precipitou sobre mim... Tentei libertar-me deles, mordi-os, arranhei-os, mas eles acabaram por me amarrar com uma corda. Não lhes foi muito
difícil.
As cordas retalhavam-me as carnes cada vez que tentava quebrá-las.
- Mas, Preston?... Não correu em sua defesa?...
- O desgraçado fez tudo quanto pôde para repelir o ataque desses demónios... Bateu-se como um leão... Agarrando na carabina pelo cano, servia-se dela como se fosse
uma matraca e, emquanto pôde, ninguém se aproximou dele... Mas, a sua resistência acabou por ser dominada... A força numérica dos agressores era esmagadora... Onde
estará ele a estas horas?... Só desejo que o não tenham assassinado!
- Pobre Preston! Que pena não ter eu podido socorrê-lo.
- Desarmado, o que poderia fazer o senhor?... Deve agradecer à Providência tê-lo poupado...
- Poupado? Isso era um grande negócio... Os bandidos que nos aprisionaram são, com certeza, gente sem escrúpulos... Quem sabe, se não teria sido melhor, para nós
dois, termos sucumbido como Preston?
Sadie encolheu os ombros e olhou, mais uma vez, para a porta... Um silêncio absoluto pairava em redor da palhota. A inglesa explicou:
- Durante o resto da noite, os nossos agressores, senhores do terreno, entregaram-se à pilhagem. Só a intervenção enérgica do chefe, que comandara o ataque, impediu
os vencedores de arrombarem os nossos barris de rum e de aguardente. Ao amanhecer, fomos transportados às costas de indígenas... Durante mais de três horas atravessamos
assim a floresta... Finalmente chegamos a esta aldeia... Estamos guardados com sentinela à vista e deixaram-me ficar aqui para o
tratar.
- Mas, os nossos auxiliares?... Tanga?... Buasso? Balango? inquiriu o francês. Que foi feito deles?
- Buasso acompanhou-me como um cão fiel a-pesar-dos maus tratos que lhe infligiram os nossos captores... Quanto aos outros fugiram... Só Deus sabe onde param a estas
horas... Não poderemos esperar que nos sirvam para qualquer coisa...
Será mesmo muito provável que tenham sido massacrados.
Ouviu-se um ruído lá fora, a inglesa suspendeu o seu relato e murmurou ao ouvido de Máximo:
- Depressa!... Feche os olhos... Faça de
conta que está a dormir.
O francês estendeu-se ao comprido na esteira
e fingiu que dormia.
" A cortina de folhas de palma, que tapava a entrada da palhota afastou-se, dando passagem a um indígena alto, espadaúdo, coberto apenas com um pano, que trazia
na mão um prato de madeira contendo um frango assado no espeto temperado com óleo de mendobi.
Fitou com um olhar desconfiado os dois prisioneiros e verificando que o francês ainda dormia,
colocou o prato em cima da mesa; olhando para Sadie, apontou com o dedo para a cabaça, que
continha o vinho de palma e, depois, sempre sem dizer palavra, saiu.
A prisioneira pôs-se à escuta e ouviu o ruído dos passos perder-se ao longe; então, agarrando no prato, que lhe era destinado, levou-o ao francês que se sentara
na esteira.
- Vamos lá a comer isto! O senhor precisa de se alimentar...
- Não tenho fome, Mrs. Quaynes... O que tenho é sede. Sinto a garganta em fogo...
- Mas, é preciso comer. Quem sabe? Talvez que mais cedo do que julgamos tenha de se servir das suas forças... E, demais a mais, são já cinco horas da tarde...
- Cinco horas da tarde! Mas, então... dormi cerca de vinte horas!...
- Talvez não fosse tanto, mas, quando esta manhã me meteram aqui, depois de me desamarrarem, custou-me imenso a fazê-lo recuperar os sentidos...
Amparando-o, Sadie ajudou-o a sentar-se à mesa. Antes de tocar na comida, Máximo bebeu um bom trago de vinho de palma.
- Parece-me que ressuscito! disse ele, emquanto Sadie trinchava o frango, mesmo com as mãos.
- Excuseme! (1) Mas, não tenho um garfo para lhe oferecer, sr. Verdier.
- Em tempo de guerra não se limpam armas... A prisioneira sorriu, e, depois de ter provado o cozinhado indígena, comentou:
- Está um pouco apetitoso! Não me agrada este chefe de cozinha!...
(1) Desculpe!
Durante os minutos que se seguiram, os dois companheiros de cárcere, comeram em silêncio. De vez em quando punham-se à escuta, com receio de que qualquer importuno
os viesse surpreender, mas, apenas se ouvia o cacarejar das galinhas esgravatando no terreno à roda da palhota.
Máximo terminara a sua refeição quando um ruído de passos se fez ouvir, cada vez mais próximo. Afastando-se, rapidamente, da mesa, o francês preparava-se para se
estender na esteira, mas, deteve-se, subitamente: um indígena entrava na palhota.
- Faz favor de se não incomodar...
O recém-chegado exprimia-se num óptimo francês: Máximo, boquiaberto, preguntava a si mesmo se não estaria sonhando. Os seus olhos fixavam-se no indivíduo que lhe
dirigira a palavra num francês correctíssimo, embora um pouco nasalado. Vestia à europeia: calção e camisa branca de gola larga, através da qual se lhe via o torso
bronzeado, e calçava alpergatas. Ao canto da boca, de lábios grossos, fumegava um cigarro. Quem o visse, assim, sorridente, não diria que ele pertencia a uma tríbu
selvagem. Nos pulsos usava braceletes de ouro e tinha os dedos cheios de anéis.
O espanto do francês parecia diverti-lo imenso; um sorriso largo escancarava-lhe a boca e os seus
olhos pequenos, mas brilhantes, fitavam, com insistência, o prisioneiro. Que idade poderia ter? Talvez ainda não tivesse chegado aos trinta. A-pesar-disso a sua
atitude, o seu sorriso pouco franco que, bem observado, era um verdadeiro esgar de ódio, inspiravam uma irresistível antipatia. Era com dificuldade que Máximo dissimulava
a péssima impressão que lhe causava aquela visita.
- Poderia dizer-me o que representa...
O indígena interrompeu-o com um gesto e, deitando fora o cigarro, disse-lhe:
- Não tenho que lhe dar explicações, sr. Verdier; contudo tenho o prazer de lhe anunciar que está na presença de Ngoko, filho do grande chefe dos Ognis, da tríbu
do Dens-Leopardo...
O francês estremeceu ao ouvir estas últimas palavras... Lançou um olhar a Sadie, mas, a inglesa parecia alheada de tudo; os seus olhos verdes examinavam atentamente
o visitante cuja atitude e linguagem pareciam desconcertá-la, tanto como ao seu companheiro. Ngoko prosseguiu:
- Teria preferido travar conhecimento consigo em condições menos agitadas, sr. Verdier... A sua incursão no território sagrado dos homens-leopardos forçou-me, porém,
infelizmente, a recorrer aos meios violentos... Dei-lhe dois avisos mas, o senhor não ligou importância e não quis compreender
que não tinha nada a fazer nestas paragens, não se queixe, portanto, do que se está passando consigo e com a sua companheira.
Recalcando o desejo de se atirar sobre o seu interlocutor, Máximo ripostou:
- A polícia é bastante eficiente na Costa de Marfim e os esforços da administração francesa multiplicam-se para reprimir o banditismo... A-pesar-de toda a sua audácia,
descanse que não escapará à acção da justiça.
O chefe indígena encolheu os ombros, desdenhosamente:
- Que me importam os rigores da administração francesa?... Os tubabos são os senhores dos territórios dos Krous, dos Qouros e dos Baulés; aqui, porém, não lhes reconhecemos
nenhuma espécie de autoridade.
"Ainda mais, justamente por que não queremos deixar os nossos territórios à mercê dos brancos é que eu e meu pai nos defendemos com tanta ferocidade... De resto
é sobre este assunto que preciso de me entender consigo, sr. Verdier...
"Vai preguntar-me, naturalmente, como é que sei o seu nome. Há muitos dias, sr. Verdier, que conheço as razões que o trouxeram até estas paragens; quis reagir e
evitar o irreparável.
À medida que ia falando, o indígena tirara do bolso um saquinho e o francês não pôde reprimir um protesto indignado ao reconhecer as pepitas que recolhera no placer.
- Não vale a pena exaltar-se, sr. Verdier! Falemos de negócios, e compreenderá os motivos que me levaram a intervir.
- Celerado! Negócios, os seus crimes abomináveis?
- Deixemo-nos de retórica!... Jogo franco, cartas na mesa!... Não queira obrigar-me a servir-me de meios violentos para o chamar à razão. Só de si dependerá o ser
considerado como meu prisioneiro ou como meu hóspede.
Ngoko sentou-se na cadeira mais próxima. Puxando pela cigarreira ofereceu um cigarro a Máximo que repeliu, indignado, a oferta.
- Como quiser, sr. Verdier!... compreendo o seu espanto e a sua desconfiança. Em primeiro lugar admirar-se-á de que um habitante destas regiões fale, tão correctamente,
a sua língua... Deixe-me que lhe diga que conheço Paris, como os meus dedos, e que estudei lá durante oito anos... Pode parecer-lhe extraordinário, mas, é assim
mesmo... Paris, Montparnasse, o Dome, a Rotonde, a Coupole são meus velhos conhecimentos. Vivi entre a sua gente sem que disso me ufane...
Emquanto Máximo o olhava com uma curiosidade que nem sequer tentava dissimular, Ngoko prosseguia, deixando escapar, de vez em quando, baforadas de fumo:
- Sabe o que me impressionou mais na sua famosa civilização, sr. Verdier? A insistência grotesca de muitos dos seus compatriotas em imitarem aqueles que pretendem
civilizar... Os senhores têm a pretensão de nos inculcar os princípios da sua civilização: então, porque tentam adoptar costumes que consideram bárbaros?... Os senhores
querem provar-nos que são os únicos que conhecem a verdade e que dirigem a marcha do progresso: para que aprendem, então, a dançar as mesmas danças que os indígenas
da África Equatorial? Não, quando consegui assimilar suficientemente a cultura do seu país, não hesitei em regressar para a tríbu de meu pai, preferindo ser aqui
um chefe do que arrastar na Europa uma vida de pária ou de inútil... Contudo, ao regressar aqui, jurei, a mim mesmo, defender, ferozmente, a integridade do nosso
torrão... Sempre que um intruso pretenda instalar-se nos nossos domínios não hesito em o suprimir...
- Se assim é, não vejo necessidade de continuarmos a conversar. Assassine-me como assassinou os meus dois auxiliares!... Não temo a morte...
- Não se exalte, sr. Verdier!... Assassiná-lo?... Nunca pensei nisso!... Em primeiro lugar, sei que o senhor é procurado pelos seus amigos, e, além disso, estou
convencido de que nos poderemos entender muito bem...
- Não percebo lá como, retorquiu Máximo...
- Já vai compreender! ripostou Ngoko... Há coisas que eu desejava ver esquecidas: por exemplo, o senhor acaba de fazer a descoberta de um jazigo cuja exploração
poderia suscitar-nos as piores dificuldades e expor-nos aos maiores perigos.
O chefe indígena, emquanto ia falando, tirava do bolso o saco com as pepitas, que espalhou em cima da mesa:
- Sr. Verdier, embirro muito com pessoas abelhudas, que se metem onde não são chamadas. Os Ognis, longe dos tubabos, conservaram os seus usos e costumes... Por isso
ninguém se intromete com eles, quando, em certos períodos do ano, celebram os seus sacrifícios em honra do Deus-Leopardo... Além disso mantemos com alguns notáveis
da vizinha República da Libéria relações comerciais que não são para desprezar... Eu sei que os senhores chamam a isso negócio de ébano-vivo... Mas, essas transacções
dão-nos, a meu pai e a mim, lucros muito importantes... compreende, portanto, que não possamos tolerar
a presença de brancos, por mais simpáticos que sejam, nas proximidades dos nossos territórios...
"Se os tubabos sabem da descoberta do jazigo aurífero estamos perdidos.
O chefe indígena prosseguia na sua exposição com a maior tranquilidade; por várias vezes Máximo esteve para o interromper, mas, não o fez. Não estava ainda refeito
de ter encontrado uma personagem tão singular em plena floresta da África Equatorial.
Ngoko falava admiravelmente francês, e era pessoa a quem os escrúpulos não embaraçavam. Um leve sorriso iluminava-lhe a fisionomia. De vez em quando olhava para
Sadie, mas, a prisioneira permanecia imóvel. Estampava-se-lhe no rosto uma expressão, bem britânica, de desprezo altivo. Manifestava, assim, a mais profunda aversão
por este cínico mercador de carne humana.
O chefe Ogni fitava agora, com um sorriso perverso, o francês. Mas, a resposta deste não se fez esperar.
- Não compreendo por que me fala assim... Ou julga que guardarei para mim as suas confidências?... Se assim é, engana-se, redondamente... Cumprirei o dever de o
denunciar logo que chegue aos territórios do Sul. Esquece, por ventura,
os crimes que cometeu nas pessoas dos meus auxiliares?
- O senhor anda há muito por estes sítios mas, bem se vê que não compreende a nossa psicologia... Pouco nos importa a vida de alguns miseráveis quando é a própria
existência da nossa tríbu que se encontra em jogo. Mais do que nunca, estamos decididos a impedir aos estranhos o acesso ao nosso território.
- Não o compreendo... Há pouco afirmava-me que se recusava a assassinar-me... Para que me põe, então, ao facto dos seus feitos criminosos?... Ou pensará que estarei
disposto a ser seu cúmplice?
Ngoko abanou a cabeça.
- Sr. Verdierl o senhor seria para mim um péssimo colaborador. Vejo que não quere dar-se ao trabalho de compreender as minhas intenções...
"Tanto o senhor, como a sua encantadora companheira estão, neste momento, à mercê dos meus desejos. Contudo, se o senhor se mostrar razoável, nada lhe acontecerá
e a vossa reclusão será curta...
- Basta de divagações, disse o francês, cortando-lhe a palavra. Quere pôr-nos condições, não é assim? Pois bem, diga-me quais são elas?
O indígena ria-se da irritação de Máximo.
- Sr. Verdier, o senhor descobriu um jazigo aurífero, explicou ele. Peço-lhe, apenas, que assine uma declaração,pela qual desiste de todos os seus direitos à referida
concessão... Comprometer-se-á, também, sob palavra de honra, a não lhe fazer a mínima alusão quando regressar ao Sul... Exijo, finalmente, a mais absoluta discreção
acerca da existência dos Ognis, do nosso tráfico de escravos, e das confidências que, há pouco, lhe fiz... Se aceitar estas condições, será, imediatamente, posto
em liberdade e poderá ir ter com o seu amigo que o julga entretido a caçar elefantes...
Máximo ouviu aquela proposta, sem pestanejar...
- E, se eu recusar? insinuou ele.
- Se recusar, ver-me-ei obrigado a usar de meios que o constranjam, rapidamente, a obedecer-me.
- Bem se vê que me não conhece! Acabemos com esta comédia! Nunca nos poderemos entender!
- Já lhe disse, sr. Verdier, que muito me repugnaria ter de abandonar os meios suasórios... A sua existência é preciosa... Se o senhor desaparecer virá uma expedição
à sua procura... Podiam descobrir a pista da sua caravana e vir-me
pedir contas... Ora, eu tenho horror às complicações...
O francês estava disposto a opor a Ngoko uma recusa formal, não tanto para conservar a propriedade de um jazigo de ouro, que só por acaso descobrira, mas para se
não curvar às exigências daquele miserável.
- Por mais convincentes que os seus argumentos pretendam ser, a minha resposta é negativa... Emquanto à discreção que tenta exigir de mim, nem pense nisso... Se
recuperar a liberdade não descansarei emquanto o não entregar à justiça!...
Ngoko não se mostrou impressionado com a enérgica resposta de Máximo.
- À sua vontade, sr. Verdier... A culpa do que puder acontecer-lhe, só ao senhor caberá. Repito-lhe: estou resolvido a forçá-lo a assinar a referida declaração.
"O preto no branco fala como gente! Além disso tenho a certeza de que acabará por ceder. Daqui a cinco dias é Lua Nova... Daqui a cinco dias celebramos a festa do
Deus-Leopardo... Se até lá não tiver mudado de tenções, não hesitará, então, em assinar, com a maior docilidade, a declaração que pretendo... Já lhe disse: disponho
de argumentos irresistíveis!
- Nem a morte, nem a tortura me metem medo...
- Engana-se sr. Verdier... Conseguirei convencê-lo sem lhe tocar!... Será o senhor o primeiro a pedir-me para assinar o compromisso...
- Não cederei a nenhuma intimidação, seja ela qual for!... Considero o placer minha legítima propriedade e recuso-me, formalmente, a vergar-me às suas ameaças...
- Isso, veremos, depois... Por agora escusa de se estar a ennervar a esse ponto... Compreendo que lhe custe confessar-se vencido... Mas, quando chegar a Lua Nova!
O indígena continuava a sorrir. Máximo sentia ganas de se lhe atirar ao pescoço; um olhar suplicante de Sadie deteve-o.
- Posso provar-lhe que não é impunemente que se me resiste, prosseguiu o Ogni. Um homem que o senhor conhece muito bem quis-se-me atravessar no caminho. Foi um pouco
graças a ele que o senhor é hoje meu hóspede... Vai ver o que lhe aconteceu...
Afastando-se, a passo lento, da mesa, Ngoko dirigiu-se para a porta. Uma vez lá fora, bateu as palmas.
Intrigados, o francês e a sua companheira viram aparecer dois indígenas, que transportavam uma maca, feita de ramos de árvores, sobre a qual estava
estendida uma forma humana, imóvel, coberta com
um pano.
A um sinal de Ngoko os indígenas depuseram a maca no chão, a poucos passos de Máximo. Sadie, toda trémula, aproximara-se do prisioneiro e agarrara-se a ele.
- O indivíduo que vão ver, explicou então o Ogni, cometeu a imprudência de atrair estranhos para o território dos homens-leopardos...
Ao pronunciar estas palavras, Ngoko avançara para a maca; lentamente ergueu o pano que a cobria. Sadie e o francês não puderam suster um grito de pavor. Reconheciam
o corpo que jazia, inerte, naquele leito de morte.
- Preston! balbuciou a inglesa... Não é possível...
Máximo não articulava palavra. Foi-lhe fácil identificar o seu guia. O desgraçado tinha o rosto horrivelmente pálido, os olhos fechados, e, junto à garganta uma
ferida ainda ensanguentada. Sadie sempre agarrada ao seu companheiro murmurou, cheia de terror:
- A marca do leopardo!
Ngoko soltou uma gargalhada e olhou fixamente para a inglesa:
- Já conhecia a marca, Mrs. Quaynes!... Deveria ter-lhe inspirado mais salutares reflexões!...
Preston sabia no que se metia! Ai daquele que afronta a seita terrível dos homens-leopardos... i Sem responder, a inglesa escondeu o rosto nos braços de Máximo...
Os seus olhos desviavam-se daquele espectáculo macabro.
- O seu guia morreu em combate com os meus
? homens... O mesmo aconteceu a todos os auxiliares, afirmou Ngoko. De maneira que, agora, só o senhor e Mrs. Quaynes é que sabem da existência do jazigo... Basta-me
a sua palavra de honra... Abandone os seus projectos. Só terá de se felicitar por ter dado ouvidos aos meus conselhos.
Por mais que insistisse, o indígena não conseguia demover Máximo da sua decisão... Agora, mais do que nunca, estava inabalàvelmente decidido a não ceder àquele miserável.
Apesar-da sua atitude ameaçadora, Ngoko receava as possíveis represálias. Estava, sem dúvida, ao corrente da chegada de Serbannes a Séguéla. Ngoko tornou a cobrir
o cadáver; Sadie encontrava-se completamente desorientada. O chefe Ogni deu ordem para retirarem dali o cadáver de Preston.
- Agora, o sr. Verdier já não tem necessidade dos seus cuidados, disse ele, dirigindo-se à inglesa. Tenha a bondade de seguir na minha frente até à palhota que lhe
está designada, e donde, sob nenhum pretexto, poderá sair antes da Lua Nova...
Sadie não respondeu, mas agarrou-se, com mais força, a Máximo. Então o indígena perdeu a paciência:
- Repito-lhe, Mrs. Quaynes, faça favor de seguir na minha frente! Não me obrigue a usar de violência...
A estas palavras, Máximo cobriu com o seu o corpo da inglesa:
- Proíbo-lhe que toque em Mrs. Quaynes!...
- Aqui, quem manda sou eu, sr. Verdier!... Está na sua mão fazer com que deixe de os tratar como prisioneiros para os passar a tratar como hóspedes. Uma simples
assinatura sua... e é tudo... Tivemos até o cuidado de lhe deixar a sua caneta de tinta permanente... Basta que redija a sua renúncia e imediatamente o reconduzirei,
são e salvo, mais à sua companheira, até aos limites da floresta.
Um silêncio glacial acolheu estas palavras; chegando à porta, Ngoko chamou quatro indígenas...
- Por amor de Deus, não deixe que me levem para longe de si, suplicou a inglesa, agarrando-se desesperadamente a Máximo, e fixando nele os seus lindos olhos marejados
de lágrimas... Vão matar-me! Tenho a certeza disso!... Acuda-me, sr. Verdier...
O francês lutou desesperadamente, mas seis pulsos vigorosos agarraram-no... Fraco como estava
e abatido pelo traumatismo da véspera caiu no solo, emquanto a inglesa, agarrada por Ngoko e um outro indígena, suplicava:
- Máximo!... salve-me!
E, num último arranco, a carícia de um beijo roçou pelos lábios do francês. Era Sadie quem o beijava. Mas, os ognis com um brusco puxão arrastavam-na, agora, soluçante,
para fora da palhota.
- Até à vista, sr. Verdier, gritou a voz irónica de Ngoko... Estou certo de que, com o tempo, há-de acabar por concordar comigo... Até à Lua Nova... Lembro-lhe que
tenho todos os trunfos...
E, exprimindo-se assim, o miserável dirigiu a Sadie um olhar por tal forma ameaçador que Máximo, a-pesar-de manietado por três possantes indígenas, não pôde deixar
de estremecer.
Passaram cinco dias, cinco dias que pareciam uma eternidade. Máximo encerrado na palhota tentara, em vão, evadir-se, ir ter com Sadie.
Mas, a vigilância daqueles energúmenos era muito apertada e por coisa alguma lhe era permitido comunicar com o exterior.
Naquela prisão apenas penetravam os indígenas que lhe traziam a comida.
Ngoko tratava opiparamente o seu prisioneiro, todos os alimentos que lhe fornecia eram excelentes e cuidadosamente confeccionados. Máximo, para não perder forças,
alimentava-se bem, a-pesar-da falta de apetite.
Permanecia longas horas deitado na esteira, que lhe servia de cama, durante as quais evocava os episódios que tinham precedido o massacre das duas caravanas. Sentia
ainda nos seus lábios o perfume
do beijo de Sadie. A sua angústia era tremenda por não saber do paradeiro da sua adorável companheira: imaginava o pior.
Estava convencido de que Ngoko se serviria dela para lhe impor, a ele, a sua vontade; por isso a conservava em reféns.
Máximo esperou sempre que o chefe ogni voltasse a aparecer na palhota que lhe servia de prisão e que, por ele, pudesse saber o que tinha acontecido a Sadie; mas,
o patife, para aumentar a tortura do branco, nunca mais lá pôs os pés. Que andaria ele a maquinar? O assassínio do Gabão e do Samba, o ataque ao acampamento, a morte
de Preston demonstravam-lhe que Ngoko não recuaria diante de nenhuma infâmia. Só a aproximação, possível, dos amigos de Máximo o forçavam a observar uma certa prudência.
E, a imaginação do pobre cativo continuava a vagabundear. Serbannes? Onde estaria ele, naquele momento?
Após as suas crises de desespero, permanecia horas infindas num grande abatimento. Onde estaria Sadie?...
Durante a noite toda a aldeia se encontrava mergulhada no mais profundo silêncio. Apenas se ouviam, de vez em quando, os uivos das hienas e o zunir dos morcegos.
Por várias vezes o prisioneiro
pretendera aproveitar-se da escuridão da noite para se evadir, mas os seus guardas estavam sempre vigilantes...
Chegou, finalmente, o dia de Lua Nova. Máximo, sempre condenado àquela ennervante reclusão, pôde verificar que uma actividade anormal reinava na aldeia, desde as
primeiras horas da manhã.
Os guerreiros da tríbu estavam muito ocupados em pintar de branco os corpos e os rostos; alguns deles limpavam, cuidadosamente, as suas azagaias; emquanto às mulheres,
acocoradas durante horas inteiras, penteavam-se umas às outras, o que era uma coisa complicada. Untavam os cabelos com uma espécie de greda avermelhada e davam aos
penteados a forma de um capacete aguçado, de onde saíam várias pontas afiladas e dirigidas para cima.
Emquanto se entregavam a esta tão laboriosa operação, aquelas beldades iam admirando as numerosas jóias, braceletes, colares e anéis de ouro, de que se tinham ataviado
para a festa...
Os guardas ognis vieram, como de costume, trazer ao prisioneiro as suas duas refeições. Profundamente intrigado, Máximo verificou que os guerreiros indígenas ostentavam,
naquele dia, em torno da cintura, peles de leopardo semelhantes à que fora descoberta junto do cadáver do Samba.
Os indígenas, cá fora no terreiro, formavam grupos, onde se conversava com grande animação, e olhavam com uma insistência inquietante na direcção da palhota que
servia de cárcere ao francês.
"Que raio de manigâncias estão estes escarumbas a fazer?... Dir-se-ia que se aprestam, também, para o encontro que me marcou o canalha do Ngoko!...
Máximo não tardou em saber a razão de todo aquele aparato. Apenas se pôs o sol ouviu-se um rufar de tambores, verdadeiramente ensurdecedor.
"Parece que a festa vai começar! murmurou o francês... Raio de concerto, rebenta-nos com os tímpanos... Estes escarumbas vão pôr doidos todos os hóspedes da floresta virgem..."
A chegada de uma dezena de guerreiros, interrompeu o solilóquio do prisioneiro.
Um deles fez-lhe sinal de que se levantasse e os seguisse; obedeceu, sem protestar, e, no meio daquela escolta, lá foi até ao centro da aldeia a uns vinte passos
de um fosso em torno do qual os indígenas se aglomeravam cheios de curiosidade. Ouvia-se um cântico monótono. Um homemzito, de pequena estatura, levando na cabeça
um grande chapéu de forma cónica, ornamentado com guizos e campainhas, avançava, aos pulinhos; pelo número inverosímil de amuletos que lhe pendiam do pescoço,
o francês não teve grande dificuldade em adivinhar que se tratava de um feiticeiro. Homens, mulheres e crianças agrupados, em grande número, no centro da aldeia,
assistiam às evoluções do feiticeiro, a quem lançavam olhares de pavor, com receio dos seus sortilégios.
Novas personagens apareciam, agora. Eis que chega Ngoko vestido, não à europeia, mas coberto com uma esplêndida pele de leopardo; um pano de cor púrpura cingia-lhe
os rins; da cintura pendia-lhe um enorme e rico machete.
Apesar de ostentar as insígnias da tríbu, o chefe não se despojara das suas numerosas jóias. Avançava a passo lento dando o braço a um velho cujo rosto encarquilhado
se emmoldurava numa barbicha branca: era o pai de Ngoko. com o maior cuidado Ngoko conduziu seu pai até junto de Máximo: o prisioneiro pôde então verificar que o
velho régulo era cego.
- Tenho muito prazer em o cumprimentar, sr. Verdier, declarou Ngoko, dirigindo-se ao francês. Estou convencido de que estes cinco dias de meditação lhe devem ter
feito muito bem.
Separando-se do velho, o indígena aproximou-se do seu prisioneiro e estendeu-lhe um papel.
- Faça favor de ler... É uma renúncia em forma ao jazigo aurífero e a promessa escrita de
não revelar nunca a ninguém a sua situação nem a natureza da nossa actividade comercial... Máximo encolheu os ombros.
- A minha decisão está tomada. Não me deixo intimidar. Vim para caçar elefantes: o acaso - ou melhor, a Providência - fez com que eu descobrisse o jazigo, não estou
disposto a abandoná-lo!...
- Como quiser, sr. Verdier!... Vai, então, assistir à festa do Deus-Leopardo... Se, por acaso, algumas das cenas lhe parecerem desagradáveis, está na sua mão conseguir
alterar o programa. Basta-lhe assinar este papel... Tome-o lá!...
Depois, como Máximo se recusasse a aceitá-lo, o ogni insistiu:
- Sim!... Sim!... Fique com ele!... não se arrependerá de me ter escutado.
Um brilho irónico fazia cintilar as pupilas do energúmeno; maquinalmente, o francês agarrou no papel e meteu-o no bolso.
- Agora, se quiser vir daí, sr. Verdier, dar-lhe-ei algumas explicações que lhe são indispensáveis para compreender o que se vai passar, disse Ngoko.
O francês estacou, receando uma cilada, mas a sua hesitação foi curta; a curiosidade venceu a desconfiança. E, lá seguiu, vigiado, a pequena distância, por uma dezena
de guerreiros indígenas, prontos a intervir em caso de necessidade.
- Então... vamos, sr. Verdier. Dou-lhe a minha palavra de honra que ninguém lhe tocará!... Repito-lhe, mais uma vez, a sua pessoa é para nós sagrada... Mas, por
outro lado, a menor veleidade de resistência da sua parte poderá custar-lhe cara.
Sem responder, o prisioneiro acompanhou Ngoko até ao fosso, à roda do qual crescia a concorrência de indígenas.
Cheio de curiosidade Máximo aproximou-se e olhou para o fundo. A obscuridade era tão grande que apenas distinguiu vagamente alguns vultos que se moviam. Contudo,
o cheiro que o fosso exalava, o miar sinistro, que de vez em quando se fazia ouvir, convenceram-no de que ali estavam animais ferozes.
Erguendo o braço, Ngoko fez sinal a alguns dos guerreiros, que estavam perto dele.
Abriram passagem através da multidão de indígenas e voltaram, daí a pouco, brandindo archotes. À luz dos clarões fumegantes mas indecisos dos archotes, o francês
pôde distinguir uma dezena de leopardos. Longe de parecerem assustados pela presença daquela multidão de indígenas, os temíveis animais preparavam o salto, mas os
ognis tinham sabido tomar as suas precauções. Os felinos vinham esmurrar-se de encontro às paredes da jaula,
sob os sarcasmos dos espectadores, que os açulavam o melhor que podiam.
- Há uma semana que não comem! disse Ngoko,. ao ouvido do francês. Tome cuidado em não escorregar porque, então, não posso responder pela sua pele... Os animais
sagrados fá-lo-iam em pedaços!...
Máximo permanecia imperturbável, e o indígena, que o observava com a maior atenção, admirava-se do seu extraordinário sangue frio.
- Todos os anos, nesta época, pela Lua Nova, os Ognis sacrificam ao Deus-Leopardo duas das mais belas virgens raptadas às tríbus.
O francês comentou, fulo de indignação:
- Um dia há-de pagar caro todas essas práticas monstruosas. Assim que os administradores da colónia saibam o que aqui se passa hão-de pôr termo a isto tudo.
- Não se assuste, sr. Verdier, ninguém virá meter-se connosco; em primeiro lugar as autoridades desconhecem as nossas práticas e ninguém se aventurará até estas
paragens. Já houve alguns que experimentaram: mas, nunca mais voltaram para o Sul. Emquanto ao senhor, que vai assistir a uma das nossas festas sagradas, não nos
denunciará, pois há-de comprometer-se, assinando o papel que aí tem no bolso, a guardar a mais rigorosa discreção sôbre tudo o que vir e ouvir.
O ruído dos tam-tans, agora cada vez mais forte, dominava, por completo, o murmúrio da multidão.
Ngoko convidou o seu prisioneiro a sentar-se. A parte central daquele aglomerado de gente apresentava um aspecto impressionante. Os guerreiros, revestidos com as
peles de leopardo, o rosto e o corpo pintados de branco, agrupavam-se, em silêncio, emquanto uma centena de mulheres, em fila indiana, se aproximava daquele local.
Só o feiticeiro continuava a dar pulos, soltando gritos agudos que apavoravam as crianças, espectadores, também, desta cerimónia nocturna.
Assim que o francês se sentou, próximo do cego, Ngoko, erguendo os braços, arengou à multidão, numa língua que Máximo não compreendia. A seguir, de todos os lados,
partiram exclamações de aplauso: guerreiros e dançarinas puseram-se em movimento, emquanto os tam-tans prosseguiam no seu rufar diabólico. Homens e mulheres alinhavam-se,
frente a frente, formando duas fileiras, depois, rapidamente, passavam de um lado para o outro, como se estivessem dançando uma quadrilha. Dançarinos e dançarinas
moviam-se, sacudindo as ancas, e atirando para a frente ora com um braço ora com o outro; depois, a um sinal do feiticeiro, encetavam uma farândula infernal, girando
em torno ao fosso, onde os leopardos esfaimados uivavam,
ao avistar, no alto das paredes da jaula, as sombras em movimento a que a luz dos archotes dava um aspecto macabro.
Mais de duas horas durou esta sarabanda. Os ognis não tinham parado nem um instante, e, no entanto, não davam sinais de cansaço. O suor escorria-lhes pelo tronco
e as pernas tinham grevas de poeira. Ngoko dirigia a dança. A certa altura, os guerreiros agarrando em cabaças cheias de perfume, que lhes entregavam os espectadores,
despejavam-nas sobre as costas e busto das dançarinas. Os gritos e as gargalhadas dominavam, então, o rufar dos tambores de guerra, mas, ninguém parava.
Meio entontecido, Máximo assistia, cheio de náuseas, àquele espectáculo. Daquela multidão em delírio exalava-se um cheiro nauseabundo.
Finalmente, a um sinal do feiticeiro, a dança parou. Todos se acocoraram no chão. Ngoko e o feiticeiro tinham desaparecido.
O francês que tentara, em vão, descobrir Sadie entre a assistência, estava cada vez mais inquieto.
De-repente, porém, ergueu a cabeça. Ngoko e o feiticeiro acabavam de aparecer, escoltados por uma dezena de guerreiros, conduzindo duas mulheres, que marchavam junto
deles, como dois autómatos, levando na cabeça uma grinalda de flores e, em redor do busto, uma pele de leopardo.
O regresso do feiticeiro foi acolhido com gritos de entusiasmo. Imóvel, Máximo não tirava os olhos do grupo que acabava de aparecer, e, subitamente, soltou uma exclamação
de surpresa: a primeira das mulheres era uma indígena de cerca de quinze anos de idade, e tinha o corpo todo pintado de branco; na segunda, muito mais alta, o prisioneiro
reconheceu Sadie, uma Sadie com a fisionomia contorcida num esgar de pavor, muito pálida, e emmagrecida pelas privações e maus tratos, que aparecia, quási nua, aos
olhares curiosos e ávidos daquele populacho.
O francês empalideceu. Compreendeu logo o que significava tudo aquilo; recordava, agora, as explicações de Ngoko; a cativa branca ia, também, tal como a outra, ser
sacrificada aos leopardos.
Máximo ergueu-se, num pulo. Quis lançar-se em socorro da desgraçada, mas, quatro punhos bem sólidos obrigaram-no a sentar-se.
Sadie dera já por ele; abandonando a atitude resignada, que tinha adoptado até então, soltou um grito lancinante que dominou o murmúrio da multidão:
- Máximo!... suplico-lhe! salve-me!... Não me abandone!... Se me ama, salve-me!... Socorro!... Socorro!...
A mão brutal de um dos indígenas da escolta tapou a boca a Sadie, e impediu-a de continuar.
Quis defender-se, escapar-se aos que a seguravam... mas, em vão.
A um sinal de Ngoko juntaram-na à companheira de infortúnio, e aquela tropa fandanga retomava o caminho do fosso.
Do seu lugar, Máximo, muito bem agarrado por quatro indígenas de força hercúlea, pôde ver o pequeno grupo deter-se a alguns passos do local onde as feras aguardavam
as duas vítimas. O feiticeiro, que precedia Ngoko, afastou-se durante alguns segundos e regressou depois trazendo uma cabaça que ergueu acima da cabeça, pronunciando
umas tantas encantações. A virgem negra permanecia imóvel; emquanto a Sadie, pareceu ao prisioneiro que ela estava prestes a desmaiar. Os seus lindos olhos não se
desprendiam dele.
Nunca Máximo, mesmo nos transes mais arriscados da sua vida aventurosa, sentira uma angústia tão grande como naquele momento.
Quereria precipitar-se em socorro da desgraçada, arrancá-la aos seus algozes... Exasperado, compreendeu que ia assistir ao sacrifício sem poder intervir a favor
da sua companheira, condenada pelos ognis a uma morte horrível. Um sorriso iluminava a fisionomia de Ngoko. O bandido avaliava o suplício que estava infligindo a
Máximo. Aguardou alguns segundos, e, depois, fez um sinal
ao feiticeiro, que esperava, segurando na mão a cabaça ritual.
Imediatamente o feiticeiro avançou; depois de ter humedecido ligeiramente os dedos com o líquido contido na cabaça colocou as mãos sobre a cabeça das duas mulheres;
a indígena não esboçou o mais ligeiro protesto, mas não se pode dizer o mesmo de Sadie... Compreendendo a sorte horrível que lhe estava reservada, implorou, protestou,
tentando mesmo arranhar e morder os guardas da escolta.
Mas, esgotada, a prisioneira acabou por se resignar com a sua sorte. Foi preciso ampará-la para não cair, pois os últimos esforços que fizera, tinham-na aniquilado.
O feiticeiro não parecia inquietar-se com a resistência da inglesa nem com o seu abatimento; fazendo sinal a um ogni que estava perto dele, este trouxe-lhe dois
galos pretos. As aves esvoaçavam tentando, também, escapar-se ao indígena que as agarrara, mas o feiticeiro agarrando numa delas cortou-lhe a cabeça, de um só" golpe,
com o machete que trazia à cintura.
Esta execução foi acolhida com brados de entusiasmo; então, brandindo o corpo decapitado do galo preto, que batia ainda as asas, num turbilhonar de penas, o feiticeiro
aspergiu com o sangue que
dele escorria a jovem indígena. Resignada, a rapariga tinha os cabelos, o rosto e o corpo manchados de sangue emquanto o galo se torcia nas últimas convulsões da
agonia.
Cumprida esta cerimónia daquele rito atroz, o feiticeiro agarrou na rapariga, pela mão, e levou-a até à beira do fosso... com os olhos fechados, como que alheia
a tudo quanto se passava em redor, a vítima avançava... com um empurrão o feiticeiro lançou-a ao fosso. Ouviu-se, então, um grito horripilante que fez estremecer
Máximo...
Sucederam-se-lhe os uivos dos leopardos esfaimados, rasgando com as suas garras as carnes da rapariga... Os indígenas ávidos de sangue, aglomeravam-se ao redor do
fosso para assistirem aos últimos momentos da vítima.
Do sítio onde estava, manietado pelos seus guardas, o francês podia ver Sadie, quási nua, de pé junto ao fosso onde acabara de ser lançada a jovem indígena. Já o
feiticeiro pedia um segundo galo preto para aspergir a nova vítima...
Máximo via tudo andar à roda. Quis gritar, invectivar aqueles energúmenos, ameaçá-los com as represálias dos tubabos, mas a voz estrangulava-se-lhe na garganta.
- Então, sr. Verdier, que tal acha isto?
Máximo voltou-se bruscamente; Ngoko estava
junto dele. Tão preocupado o francês estava com a sorte de Sadie que nem dera pela aproximação do patife.
- Miserável!... Miserável! A justiça há-de ser informada de tudo...
- Agora não se trata de justiça... sr. Verdier... Está na sua mão evitar que Mrs. Quaynes vá parar ao fosso dos leopardos...
Os olhitos penetrantes do indígena fitavam Máximo com uma ironia perversa.
- Repito-lhe: só de si depende a sorte de Mrs. Quaynes!... Se assinar o papel que lhe dei, o Deus-Leopardo e os seus adoradores ognis contentar-se-ão apenas com
uma vítima! Vamos, seja generoso?
O prisioneiro hesitava... Custava-lhe ter de se confessar vencido. Mas, a vida de Sadie não era mais importante para ele do que todos os tesouros do mundo?
com o rosto cheio do sangue do galo, com que o feiticeiro acabara de lhe aspergir a cabeça, Sadie gritava desesperadamente, esforçando-se ainda mais uma vez por
se libertar dos seus algozes.
- Máximo!... Máximo!... Por amor de Deus!... Salva-me!...
Então, o francês não hesitou mais; agarrando na caneta que Ngoko lhe estendia assinou o compromisso.
Um sorriso de triunfo aflorou aos lábios do ogni. Levantando os dois braços ao alto fez compreender ao feiticeiro que o sacrifício estava suspenso. Máximo quis erguer-se
e ir ao encontro de Sadie que acabara de cair desmaiada, mas, Ngoko reteve-o e, estendendo-lhe uma cabaça, disse-lhe:
- Tem necessidade de recuperar as forças sr. Verdier. Está morto de fadiga... Beba! Isto faz-lhe bem. Depois, levá-lo-emos até junto de Mrs. Quaynes!
Apressadamente, para se livrar do importuno, o francês agarrou no recipiente e bebeu alguns goles. Sentiu um torpor invadir-lhe os membros; tentou reagir. A cabeça
andava-lhe à roda; e caiu no chão, sem sentidos.
- Então, Verdier, vamos! não te estejas a inquietar!... Não, não é nenhuma alucinação... Sim, sou eu mesmo, o Jacques Serbannes!
- Serbannes?... Ah!... Então, o que aconteceu?
Ainda atordoado, Máximo lançou um olhar em redor. Ajoelhados, junto dele, dois homens, que não tardou em reconhecer, um, o seu velho amigo Jacques Serbannes, o outro,
Angosso, o servo dedicado e fiel, que tinha desaparecido misteriosamente, por ocasião do assassínio do Samba.
O francês passou a mão pela fronte procurando com dificuldade recordar-se do que se tinha passado. Lembrava-se agora do sacrifício em honra do Deus-Leopardo e da
assinatura que Ngoko lhe arrancara para livrar Sadie de ser devorada pelas feras... Mas, pasmava de se encontrar em plena floresta
virgem, longe da aldeia ogni onde estivera prisioneiro. A pouca distância avistava os vultos de alguns indígenas que vestiam o uniforme das tropas auxiliares; parecia-lhe
reconhecer, também, Tanga, o moleque, que julgara uma das vítimas do massacre da caravana.
- Mas, não é possível!... Estou com certeza, a sonhar!... E, ela!... Sadie?... Onde está?... Não a mataram, não?...
- Não penses mais nela, Verdier...
- Morreu?
- Mais valia talvez que tivesse morrido antes de teres tido a pouca sorte de a encontrar... Mas, agora
que nós aqui estamos, vamos vingar-te... Há algumas semanas, desde que o Angosso me apareceu dizendo-me que estavas em perigo, que andamos à tua procura, eu, o tenente
Sabattier, que vês ali em baixo, e uns cinquenta homens das tropas auxiliares indígenas. À pista da caravana não foi difícil de encontrar... A umas dez léguas daqui
encontramos o Tanga e um grupo dos teus carregadores que, há cinco dias, andavam perdidos na floresta. Estes pobres diabos tinham conseguido escapar ao massacre...
Marchávamos em direcção à aldeia, onde te julgávamos prisioneiro, quando o Angosso te descobriu, estendido no meio do mato... Procuramos, por todos os meios, ver
se voltavas a ti...
Mas parecias mergulhado num sono profundíssimo. Resignamo-nos, então, a esperar que acordasses... Agora, vamos tomar a ofensiva... Os ognis passaram a noite a embriagar-se
com vinho de palma, a ocasião é esplêndida...
- Isso mesmo! aplaudiu Máximo, conseguindo erguer-se um pouco e, dominando o torpor que o dominava, sentou-se no meio do chão... Temos que dar liberdade a essa pobre
desgraçada, que os bandidos conservam prisioneira contra a sua palavra!...
Serbannes encolheu os ombros.
- Por que diabo te preocupas tanto com a tua inglesa!... Estou certo de que ela, neste momento, se rirá dos teus escrúpulos...
- Mas, Serbannes... tu não sabes de nada... são muito capazes de a terem sacrificado em holocausto ao Deus-Leopardo.
- Está descansado, homem!... O Ngoko, apesar de ser um bandido, há-de ter uma certa consideração pela mulher do seu cúmplice...
- O que dizes?... Estás doido, Serbannes!...
- Nunca estive tão lúcido!... Mas, não percamos tempo... Temos de pôr cobro à maquinação de que foste vítima, como tantos desgraçados que pagaram com a vida a sua
imprudência... esperava por ti, em Séguéla, quando soube que lhes tinhas caído nas garras!
- É uma infâmia!... Não te permito!...
- Não tardará uma hora, e tu terás a prova, Verdier. Julgas-te com forças para nos seguir?
Amparado pelo Angosso, o francês levantou-se; doía-lhe ainda bastante a cabeça, em consequência da beberagem que Ngoko lhe houvera propinado.
- Mas, para onde vão?
- As tropas auxiliares e os atiradores do tenente Sabattier estão cercando a aldeia ogni. Nenhum desses miseráveis nos escapará. A maioria deles estão a cair de
bêbados. A vitória não deve ser difícil.
- Que horas são?
- O sol levantou-se há já uma hora... Depressa, não podemos demorar-nos...
Máximo não insistiu; não querendo acreditar no que Serbannes lhe acabara de dizer, amparado pelo Angosso e pelo Tanga, lá seguiu na companhia do seu amigo.
De todos os lados apareciam numerosos vultos; de baioneta calada, os soldados que tinham acompanhado o grupo de Serbannes avançaram sobre a aldeia, a que tinham
posto cerco, durante a noite.
O francês e os seus companheiros seguiam, também, com eles; de vez em quando, paravam e punham-se à escuta. Mas, o silêncio era absoluto.
O tenente Sabattier foi o primeiro a transpor a paliçada que cercava a aldeia; os homens-leopardos não tinham colocado ali quaisquer sentinelas; atiradores e auxiliares
puderam, pois, penetrar facilmente no recinto fechado. Já próximo do primeiro renque de palhotas tropeçaram em corpos humanos estiraçados ao comprido. Os ognis,
homens, mulheres e crianças tinham andado em fartas libações após o sacrifício sangrento ao Deus-Leopardo; o vinho de palma correra a jorros, e, agora, coziam a
bebedeira; apenas um pretinho, solidamente amarrado às costas da mãe, que dormia profundamente, berrava como um vitelo.
Máximo estava armado de um revólver da ordem, que lhe emprestara Serbannes; sentindo-se mais forte, agora, e deixando que o tenente e os seus homens procedecem à
ocupação da aldeia, dirigira-se, quási cosido com o solo, na companhia do seu amigo, para uma habitação construída à europeia e que ficava perto do fosso dos leopardos.
Devia ser ali a residência do chefe ogni; Ngoko não fora encontrado entre os indígenas que dormiam ao ar livre, de maneira que era mais que provável estar ali.
Acompanhados apenas do Tanga e do Angosso e fazendo sinal aos outros indígenas que os esperassem cá fora, os dois franceses avançaram até à casa.
Ouviram um ruído de vozes; agacharam-se cautelosamente e, rastejando, atingiram a entrada da porta da casa, que apenas estava protegida por uma cortina de folhas
de palmeira. Máximo e Serbannes encostaram-se à parede, de cada um dos lados da porta, e tentaram ver o que se passava lá dentro da casa; ao primeiro pareceu-lhe
ouvir Sadie, a que respondia a voz rude de um homem, muito sua conhecida.
- Preston! murmurou ele, quási imperceptivelmente... É lá possível!
Mas, Máximo tinha de se render perante as realidades. Era, de facto, Preston, o mesmo Preston cujo cadáver > ele vira, cinco dias antes, com a marca do leopardo
e tudo, quem ali estava a conversar. Incapaz de conter a sua curiosidade, aventurou-se até à porta da casa, e, com risco de ser descoberto, estendeu a mão e afastou,
ligeiramente, a cortina de folhas que dissimulava a entrada da casa. Ao princípio teve uma certa dificuldade em reconhecer as pessoas que ali se encontravam, mas,
distinguia-lhes nitidamente a voz:
- Está descansado Preston, declarava uma voz, que ele não teve dificuldade em identificar como sendo a de Ngoko, nada teremos a recear de Verdier... A tua mulher
conhece-o tão bem como nós, e diz-nos que é um perfeito gentleman!
Não faltará à sua palavra! Tenho aqui o compromisso assinado por ele! Não há perigo!
- Tudo isso será muito bonito, mas, se nós nos tivéssemos desembaraçado dele, então é que nada teríamos a temer para o futuro...
- Sabes, Preston, era perigoso desfazermo-nos do teu companheiro... Tem numerosos amigos que não deixariam de vir em busca dele... Sabiam que ele te tinha contratado,
e no teu regresso preguntavam-te o que lhe tinha acontecido e não sei bem o que lhes havias de responder. Agora, assim, deve correr tudo pelo melhor. O francês julga-te
morto; podes ter a certeza que não volta a pôr aqui os pés e tu poderás explorar o jazigo à tua vontade.
Máximo permanecia imóvel; dir-se-ia que um raio o assombrara. Os seus olhos, habituados já à meia-obscuridade que reinava no interior da casa, podiam reconhecer,
reunidos à volta de uma mesa) quatro vultos que lhe eram familiares: primeiro, o velho cego ogni, ao lado dele Ngoko, e depois Preston, o seu antigo guia, e Sadie
que, fresca, e bem disposta, parecia ter esquecido por completo os trágicos acontecimentos da noite antecedente.
Indignado, Máximo compreendia, agora, que tinha sido intrujado por aqueles miseráveis; mas, continuou a escutar:
- Devemos confessar que a tua mulher se
portou à altura, declarou Ngoko soltando uma gargalhada. Eu, no teu lugar, teria tido ciúmes!... É verdade que já estás habituado a essa comédia! Não é a primeira
vez que a levamos à cena!...
Sadie que vestia, agora, o seu fato branco, puxara por um cigarro que Preston se apressava em acender.
O francês não despregava os olhos do casal! A Qlaukôpis Atenêa era a mulher de Preston!... Que grande comediante! Conseguira atraí-lo para a floresta virgem, levando-o
assim a abandonar o seu projecto de regresso a Séguéla e a renunciar até mesmo aos seus direitos ao jazigo!
- Não foi difícil, desta vez; não precisei de muita habilidade, dizia Sadie. O Frenchie (1) caiu que nem um patinho.
"Todos estes exploradores são umas verdadeiras crianças... Lembram-se de Blink e de Lardsen, os dois suecos que perderam a vida pelos meus lindos olhos, no Alto
Sassandra?
- Boa manobra que permetiu que nos apoderássemos do seu carregamento de marfim! interrompeu Preston. E, os dois tipos eram magníficos caçadores, palavra de honra.
(1) Francês.
- E Martens, o flamengo!... E, Blackson, aquele norte-americano todo desengonçado que me chamava a sua sweetheart!(1)
- O esqueleto desse deve ter sido roído pelas formigas! Dessa vez fizemos outra esplêndida colheita de marfim...
- E Pietro Sardini, o italiano? com esse não íamos levando a melhor... Também teve a sorte dos outros.
- O francês era um bocado mais duro de roer, observou Ngoko... Os nossos primeiros clientes tinham partido para o norte sem avisar as autoridades dos seus projectos...
Viajavam clandestinamente, nenhum deles tinha conseguido autorização para caçar elefantes, autorização que não é fácil de obter... Verdier, esse, estava em regra,
e os numerosos amigos que deixara no sul sabiam do seu destino... A sua morte poderia ter-nos trazido as maiores sensaborias...
- Não foi feliz na caça, interrompeu Preston, e pensei que regressaríamos com as mãos a abanar, quando teve a sorte de descobrir o jazigo. Durante anos, muitos prospectores
se cançaram por estes sítios sem conseguirem apanhar mais de que
(1) Sweetheart: namorada.
umas reles pepitas, e acabara por me convencer de que não havia aqui nenhum jazigo... Mas, a descoberta do francês animou-me. Para o desorientar, roubei-lhe as cartas
e a bússola, sem que ele desse por isso... Mandei, depois, Balango avisar Sadie, que esperava no mato a oportunidade de entrar em acção; a seguir montou-se a comédia,
com êxito devo confessá-lo... O Gabão, que começara a desconfiar, mandamo-lo apunhalar pelo Omar, que se refugiou na tua aldeia... O Sudanês, que levava a carta
para o amigo do Verdier, enviamo-lo ad paires... (1) A famosa marca do leopardo iludiu o nosso amigo Verdier. Na verdade procedemos como uns artistas. Contudo, há
Um pormenor que me preocupa: não sei o que é feito do maldito Angosso... Porque diabo se terá ele evadido na mesma noite em que o Samba foi assassinado?... A sua
insistência em levar a carta a Séguéla faz-me recear que ele tenha conseguido chegar à fala com o tal Serbannes...
- Vai para o diabo com as tuas apreensões! disse Ngoko. Tu mesmo, com a coronha do revólver, deste aquela pancada na nuca de Verdier, que o fez perder os sentidos
e o trouxeste depois até à
(1) Ad paires: desta para melhor.
aldeia, assim que ouvistes os nossos sinais. Agora estás para aí com escrúpulos. A declaração assinada pelo francês coloca-nos ao abrigo de qualquer ameaça. Se se
lembrar de nos acusar defendemo-nos com ela... Descansa que, quando acordar, não pensa em voltar aqui...
- Aposto que se põe a suspirar pela sua Glaukôpis Atenêa!... gracejou Sadie, indo sentar-se nos joelhos de Preston, que a beijou.
Máximo sentia o coração apertar-se-lhe.
- Que grande desavergonhada! murmurou ele. Serbannes agarrou-o.
- Nada de imprudências. Estão-nos na mão!... Os patifes, que nem sequer podiam suspeitar que os dois franceses estavam perto deles, prosseguiram na sua conversa.
Ngoko propôs:
- É melhor guardarem as efusões amorosas para mais tarde... Por agora temos de tratar de negócios... Bem entendido que, tendo em linha de conta o auxílio que lhes
prestei, com a minha tríbu, vocês me devem reservar dois terços dos lucros da vossa exploração.
Preston repeliu Sadie que lhe passara o braço à roda do pescoço...
- Estás doido!... Dois terços? Vê lá se não queres tudo? Já agora era melhor! E, para isso tive de fazer de morto?... Dois terços!... Julgas
que sou o Verdier?... Fifty-fifty (1) ou nada feito...
E, ao pronunciar estas palavras, o inglês levava a mão ao bolso, mas o ogni tinha sido mais rápido. Sorridente apontava um revólver ao seu interlocutor.
- Vamos, Preston, não faças má cara!... Lembra-te de que tenho todos os trunfos na mão... De resto, se eu quisesse, bastava-me chamar os meus guerreiros e o fosso
dos leopardos, Mrs. Preston, desta vez podia ser uma realidade.
O inglês, recuperando a serenidade, largou a rir.
- Essa não está má!... Ameaçares-me com os teus guerreiros... Estás doido, meu escarumba!... Os teus guerreiros estão a cair de bêbados e não podem com uma gata
pelo rabo!... Além disso, olha, alguém nos espreita.
E, dizendo estas palavras Preston apontava para a porta. Máximo julgou que o tinham surpreendido, mas, de facto, tratava-se apenas de um truque. Aproveitando-se
da distracção do indígena, que olhava para a porta, Sadíe deu um salto, com a agilidade de uma pantera; antes que o ogni desse por isso, apoderou-se da arma, e apontando-lha
disse:
- Vá de brincadeiras, Ngoko... Podes chamar
(1) Cinquenta por cento.
à vontade os teus guerreiros... Ao menor gesto suspeito queimo-te os miolos. Percebes? Então, vale mais resolver o assunto como bons amigos... Não te faças mau...
Entendido por fifty-fifty? O rosto do indígena fêz-se da cor da cinza; tinham-lhe pregado uma boa partida.
- Tem vontade de rir, Mrs. Preston!... já sabe que estamos sempre de acordo!
- Fifty-fifty? repetiu a inglesa, sem perder a calma, e pronta a desfechar.
A atitude enérgica de Sadie fez compreender ao ogni que era inútil tergiversar. Vexado, retorquiu:
- Entendido por fifty-fifty!... Mas, todos os riscos são do meu lado... Se as autoridades viessem a suspeitar...
- As autoridades estão longe! replicou o inglês... Podes dormir descansado que não te vêm cá incomodar.
- Está enganado, Mr. Preston... As autoridade são senhoras da aldeia... vão proceder a uma grande liquidação de contas... Deve ficar satisfeito: prometo-lhe que
lhes concederão sem hesitar fifty-fifty.
Sadie soltou um grito de pavor ao reconhecer a voz da pessoa que falava à porta da casa. O francês, que se decidira, finalmente, a entrar em cena, estava no limiar
da porta apontando-lhes o seu revólver. Atrás dele, Serbannes, Angosso e Tanga...
Sadie e os companheiros, que estavam tão longe de tornar a ver, naquele momento, a sua vítima, ficaram por tal forma estupefactos que não conseguiram articular palavra.
Ngoko tremia como varas verdes. Preston tinha uma palidez cadavérica. Emquanto à inglesa, os seus olhos dardejavam de cólera sobre o intruso que lhe apontava, ainda,
o revólver.
- Admirável atitude para um gentleman! disse, por fim, a aventureira, medindo o francês de alto a baixo.
- Caluda!... Angosso desarma esta gente!... O indígena avançou para o grupo executando, rapidamente, a ordem de Serbannes. Imóvel, Máximo continuava de revólver
assestado sobre a mulher de Preston. A sua irritação era tal que não teria hesitado em abatê-la como um animal perigoso
se ela se tivesse lembrado de opor a mais pequena resistência ao indígena.
Sadie fez entrega do revólver; Preston e o seu aliado preto, ainda não refeitos da surpresa, deixaram-se revistar sem qualquer espécie de resistência.
Impassível, sem sair do seu lugar, o velho chefe cego dava mostras de não compreender o que se estava passando. Balbuciava palavras sem nexo fazendo preguntas ao
filho, que tinha mais em que pensar do que em responder-lhe.
Angosso, estacando em frente do inglês, depois de o ter revistado, e apontando para ele afirmou:
- Mitn, escondido na erva, viu este assassinar Samba.
Na sua linguagem pitoresca o indígena explicou a maneira como tinha abandonado o acampamento na noite em que o Samba partira, com a carta, a caminho de Séguéla.
Oculto na vegetação circundante Angosso assistira à agressão de que o Samba fora vítima.
Apenas o estafeta se tinha afastado uns cinquenta metros do francês e do seu companheiro, surgiram três homens de entre o mato; antes que pudesse pôr-se na defensiva
o sudanês caía, mortalmente ferido.
O primeiro pensamento de Angosso fora ir
prevenir Máximo, mas grande foi a sua surpresa quando viu aparecer Preston, daí a alguns minutos, no local do crime. O caçador avançara até ali, de rastos, e conversava
amigavelmente com os assassinos. Estes traziam, cada um deles a sua pele de leopardo e parecia que conheciam há muito tempo o caçador. Demoraram-se, ainda, junto
do cadáver da vítima, e depois Preston organizou cuidadosamente o cenário; apoderou-se da carta de que o Samba era portador, tirou a pele de leopardo a um dos seus
cúmplices e colocou-a entre as mãos do cadáver. Tomada esta precaução os assassinos largaram a correr em direcção ao norte depois de terem recebido instruções do
inglês.
Angosso pensou em ir avisar Máximo da cumplicidade do seu guia, mas receou que aquele o não acreditasse. Preston havia de defender-se e ser-lhe-ia fácil confundir
o indígena. Mais valia, então, partir, quanto antes, para Séguéla e prevenir o tubabo Serbannes, em quem ele tinha uma absoluta confiança, do perigo que ameaçava
o seu amigo.
Por isso Angosso seguiu para o Sul, sem parar nem de dia nem de noite, arrostando com todos os perigos, apenas armado do seu machete. E assim foi que uma bela manhã
Serbannes, que começava a sentir-se inquieto acerca do seu amigo viu o Angosso entrar-lhe pela porta dentro. Rapidamente
o indígena pô-lo ao facto dos inquietantes incidentes que se tinham desenrolado no campo; Serbannes preparou-se para partir ao encontro de Máximo, tanto mais que
acabara de descobrir ser Preston um perigoso aventureiro e não um guia competente e honesto, como muitos julgavam.
Alguns viajantes, que o inglês acompanhara até aos territórios do Norte, tinham desaparecido misteriosamente, sem que ninguém tivesse conseguidosaber a sua sorte.
Serbannes obtivera o concurso das autoridades que lhe forneceram atiradores senegaleses e tropas auxiliares. O francês assumira o comando da expedição levando como
guia o Angosso, que, nesta emergência, deu provas de uma extraordinária energia.
Depois de alguns dias de marcha conseguiram descobrir a pista de Máximo e do seu grupo, que se havia internado na floresta virgem.
É já sabido como Serbannes encontrou o seu amigo.
Emquanto aquele e Angosso punham Máximoao corrente das suas aventuras, Preston e os seus acólitos não procuravam negar os factos cuja responsabilidade lhes era assacada.
- Não se preocupem muito com a sorte que os espera, ela é bem clara: a forca...
Ngoko, que até então tinha permanecido silencioso,
lançou-se aos pés dos dois franceses, suplicando-lhes que o poupassem, e atirando com todas as culpas para cima do inglês e da mulher. Contou como os conhecera em
Paris, alguns anos atrás e por que tinha regressado à sua terra a-fim-de os secundar nas suas façanhas. Na sua qualidade de filho do chefe da tríbu dos ognis, que
quási não tinha relações com os brancos, podia ser-lhes útil e, associando-se, conseguiriam auferir grossos proventos.
Desde então, instalados na Costa de Marfim, os três tinham unido os seus esforços para assaltarem e roubarem os viajantes e caçadores isolados que levassem consigo
grandes quantidades de marfim. A maioria desses caçadores viajava clandestinamente e procurava fazer contrabando visto que as autoridades francesas tinham regulamentado
a caça ao elefante nos territórios da colónia. Ngoko e Preston aproveitavam-se da situação irregular destes infelizes para lhes oferecerem os seus serviços e para
os suprimirem sem dó nem piedade, convencidos de que nunca ninguém lhes pediria contas. A presença de Sadie, que desempenhava maravilhosamente o seu papel e que
aparecia sempre à frente do seu grupo de indígenas, fazia afastar quaisquer suspeitas. Intrigados pela presença daquela mulher, subjugados pelos seus encantos,
envaidecidos no seu donjuanismo, deixavam levar-se através de regiões que não conheciam e onde Ngoko e os seus homens-leopardos prestavam um auxílio precioso aos
famigerados esposos Preston. A-pesar-de tudo, o trio tivera maior dificuldade em se desembaraçar de Máximo.
Preston, que lhe tinha oferecido os seus serviços, viera a saber que, ao contrário das suas vítimas precedentes, o francês dispunha de valiosas relações entre os
membros da colónia. Fazê-lo desaparecer seria perigoso; apesar de tudo, o miserável não desesperava de levar a bom termo o seu plano tenebroso, persuadido como estava
de que viria a apoderar-se de um bom carregamento de marfim. Após algumas semanas de caça, as esperanças do aventureiro tinham fracassado quási por completo. Não
apareciam elefantes e tudo levava a crer que a expedição regressasse com as mãos a abanar quando, subitamente, tinha surgido um acontecimento inesperado; emquanto
Preston se afastara para se avistar com Sadie, que se preparava para entrar em cena, o francês descobrira o jazigo aurífero.
Quando regressou, e depois de verificar a riqueza do terreno referenciado, o inglês decidira-se a jogar uma cartada; afastando de si os receios iniciais, estava
disposto a desembaraçar-se de Máximo,
como já fizera ao infortunado Gabão, se não tem aparecido a carta de Serbannes. Assim modificara os seus planos e propusera-se arrancar-lhe pela astúcia uma renúncia
ao jazigo em boa e devida forma.
Agora a famosa carta que Ngoko tinha arrancado ao seu prisioneiro, pondo em cena uma odiosa comédia, a que se prestara complacentemente a inglesa, encontrava-se
de novo em poder de Máximo que iria, com certeza, destruí-la.
Emquanto o chefe ogni prosseguia na sua confissão, Preston e a companheira observavam um silêncio de desprezo. O caçador, lívido e com os punhos cerrados, compreendia
que jogara a sua derradeira cartada e perdera a partida. Agora tinha de prestar contas à justiça.
O miserável não se iludia sobre a sorte que lhe estava destinada. Os numerosos assassínios que perpetrara, os massacres do Gabão e do Samba, o horrível suplício
da jovem indígena sacrificada aos leopardos, tudo agravava irremediavelmente o seu caso... Fulo de raiva por se ver desmascarado, invectivava o seu antigo cúmplice...
Se Angosso e Serbannes não o vigiassem com as maiores cautelas, ter-se-ia atirado ao ogni que não hesitara em traí-lo para salvar a sua miserável existência.
Sadie, porém, permanecia imóvel como uma estátua. Não se descobria no seu rosto o menor sinal de inquietação ou de desfalecimento. Altiva, enfrentava os dois franceses
recusando-se a pronunciar palavra e a responder ao interrogatório.
A chegada do tenente Sabattier e de quatro atiradores veio interromper as confissões de Ngoko que, chorando, suplicava a Máximo e o seu companheiro que lhe salvassem
a vida intervindo por ele junto das autoridades.
- Ocupamos a aldeia sem encontrar a menor resistência, comunicou o oficial. Agarrei o feiticeiro no momento em que se preparava para se pôr em fuga. Os auxiliares
apanharam também uma dezena de indígenas... Estão tão embriagados, que podemos fazer deles o que quisermos.
Dirigindo-se a Máximo o recém-chegado preguntou:
- Encontra-se em estado de nos acompanhar?... Pode, sem dúvida, reconhecer alguns destes patifes, não é assim?
Deixando Preston, Sadie, Ngoko e o velho chefe cego entregues à guarda dos quatro atiradores senegaleses, os dois franceses, Angosso e Tanga apressaram-se em acompanhar
o tenente.
As forças militares e militarizadas tinham ocupado todos os pontos estratégicos de importância,
tornando, assim, impossível um retorno ofensivo dos ognis.
O centro da aglomeração apresentava, de resto, o mesmo espectáculo de desordem. Homens, mulheres e crianças jaziam misturados no meio da poeira; cabaças contendo
ainda vinho espalhadas, aqui, acolá... Entre os indígenas aprisionados pelos soldados do tenente Sabattier, Máximo reconheceu Balango, Omar e Buasso. Os três pretos,
cúmplices dos esposos Preston, estavam a tremer de medo, e tentaram, por sua vez, suplicar aos franceses, mas as comprometedoras declarações do Angosso confundiram-os...
E lá foram algemados pelos auxiliares...
Daí a pouco o francês e mais os seus companheiros dirigiram-se para o fosso dos leopardos... os felinos estavam tranquilos, alguns, mesmo, dormitavam, outros roíam
ainda os ossos da pobre preta que lhes fora sacrificada.
- Que vamos fazer a estes bichos? preguntou Serbannes.
- vou dar ordem aos meus atiradores para os abaterem... São horríveis de ferocidade depois de terem comido carne humana.
Alguém chamava pelo oficial. Era um dos atiradores senegaleses que ficara de guarda à casa de Ngoko:
- Depressa, tinente... a tubaba morre!... Máximo e os seus dois companheiros largaram a correr.
Apenas chegados ao limiar da porta viram um corpo estendido no meio do chão.
- Santo Deus!... É a mulher de Preston! Que aconteceu?
- Foi o anel... comeu o anel, comeu a caixa amarela do anel! explicou um dos senegaleses.
- Maldição!... Envenenou-se!...
Máximo ajoelhou apressadamente junto do cadáver. Sadie estava horrivelmente pálida; o francês agarrou-lhe na mão, estava gelada...
A fisionomia da aventureira iluminou-se num sorriso fugaz: os seus olhos fixaram-se no francês com uma expressão indizível.
- É muito tarde! murmurou ela num suspiro... Não há nada a fazer!...
Serbannes ajoelhou também. Sadie, aproveitando-se de um momento em que os guardas não olhavam para ela, absorvera um veneno violento, contido numa pequena empola
engastada no anel. Agora o seu corpo estendido na esteira todo se inteiriçava como se quisesse desafiar a morte.
Preston nem pronunciou palavra, baixou-se e agarrou-lhe na outra mão.
Os lindos olhos daquela mulher perversa, que
iam para sempre fechar-se, erravam do seu cúmplice para a sua vítima.
Um sorriso amargo iluminava-lhe o rosto.
Eram remorsos ou o despeito de se ver vencida? Ninguém o poderia dizer e o seu estado de fraqueza era tão grande que ela mesma o não poderia significar.
Sem dúvida revia neste momento os diferentes episódios da sua existência movimentada.
Máximo sentia uma força desconhecida, inexplicável, que o retinha junto daquela moribunda. Ela troçara dele indignamente, enganara-o da maneira mais infame, mas,
contudo, Máximo não podia desviar os olhos da opulenta cabeleira dourada e apertava entre os seus dedos a mão gelada já pela morte e a que ele se esforçava em vão
por dar calor. Parecia-lhe que os dois grandes olhos glaucos da inglesa imploravam perdão... Finalmente, os lábios da moribunda entreabriram-se ligeiramente, e ela
pôde balbuciar:
- Qlaukôpis Atenêa...
E, mais nada!... O corpo da aventureira teve um último espasmo e ficou hirto. A luz das suas pupilas apagou-se.
Preston e Máximo seguravam, agora, um cadáver.
- Então!... meu velho! que diabo!... Não teria sido melhor assim?... Que podias tu esperar de uma mulher daquele género?
- Tens razão, Serbannes, mas que queres? sofro muito, a ferida não está ainda cicatrizada.
- Ferida de amor-próprio?... Sara depressa!... O tenente vai separar-se de nós depois de ter deixado uns cinquenta homens de guarda à aldeia ogni. Acompanhou-nos
até à orla da floresta, a dois dias de marcha do teu famoso placer. Agora vai conduzir, debaixo de uma boa escolta, Preston, Ngoko, Omar e os seus principais cúmplices
até Séguéla, de onde depois seguem para Bingerville a-fim-de serem julgados. Caiu o pano sobre esta tragédia, podemos proceder à exploração do teu jazigo... Sabattier
prometeu-me que se encarregaria das formalidades legais.
O oficial veio despedir-se de Máximo e de Serbannes. A sua voz de comando, seca e breve, fazia ouvir-se, agora, sob a copa das grandes árvores. E ao som de um clarim
a escolta pôs-se em marcha. Dentro de poucos minutos desaparecia por entre o mato.
- Vamos, coragem!... Deixa de pensar em Sadie Quaynes!... Parece que ela te enfeitiçou! disse Serbannes.
Ao ouvir pronunciar o nome da aventureira, Máximo levantou os olhos para o seu amigo.
- Ora ainda bem! o teu olhar já é outro!... Estás salvo, meu velho!...
E, Serbannes abraçou o amigo, com um ar paternal, como que a protegê-lo de possíveis perigos.
- Vejamos, disse ele, lembras-te dos nossos tempos de liceu? Chamavam-nos até os "aprendizes de celibatários". À futilidade e a leviandade das raparigas de cabelos
cortados, dançarinas ardentes, mas medíocres donas de casa, fazia-nos repetir o velho aforismo latino: Quid levius vento? Pulver... Quid pulvere? Mulier!... Quid
muliere? Niliil!..." (1).
"E, era por uma das mulheres mais canalhas que me tem sido dado conhecer que tu ias perder o
(1) o que é mais leve que o vento? A poeira!... E, do que a poeira? A mulher!... E do que a mulher? Nada!...
apetite e esquecer o móbil principal da tua vida?... Em boa verdade, amigo, tenho dificuldade em reconhecer em ti o Verdier que corajosamente me arrancou, na Quine,
das garras de uma pantera, o valente que expôs a sua vida para me proteger contra uma tríbu fanática nas Molucas... Terias deixado de ser o mesmo, ou terias esquecido
os teus amigos mais queridos?...
Máximo apressava-se em responder, mas, Serbannes estendendo a mão apontou-lhe o mato que os cercava:
- Tu vês, a aventura espera-nos! Não queres corresponder ao seu apelo? Os seus olhos são límpidos como a água dos regatos que serpeiam através do mato e cujo murmúrio
é para o viajante fatigado a mais doce de todas as músicas... A sua cabeleira ondula, como ao sabor da brisa o verde tapete de verdura que nos cerca... O seu hálito
é mais doce e mais fresco que o vento que faz sussurrar as folhas das palmeiras... Ela não é esquiva e deixa prender-se por aqueles que a amam... Recusou-nos, alguma
vez, o que esperávamos dela?
As palavras de Serbannes evocavam em Máximo a recordação de tempos idos e faziam esbater, cada vez mais, no seu espírito, a imagem de Sadie Quaynes, da Qlaukôpis
Atenêa, que o obsidiava desde que abandonara a aldeia ogni.
- És um privilegiado, camarada, e devias agradecer a Deus ter-te assim protegido, continuou Serbannes. Quantos não estouraram sem descobrir uma pepita? E tu descobres
um jazigo esplêndido... por acaso!... Que querias mais?... Que campo imenso se não oferece à nossa actividade!
"A presença do precioso elemento vai atrair inúmeros colonos a estas paragens e a notícia da tua descoberta vai correr veloz pelo mundo... Logo que Sabattier chegue
a Séguéla, a T. S. F. anunciará ao mundo a boa nova...
"A tua descoberta não deve permanecer infrutífera, dizia Serbannes, certo, agora, de conseguir curar o seu amigo. É preciso que ela aproveite ao nosso país... Vamos
transformar estas regiões selvagens... A civilização acabará com as práticas criminosas das tríbus. Faremos trabalho de colonos e de apóstolos... Caíste?... Que
admira!... Quem não cai, uma vez na vida? Limpa a lama que te salpicou e olha para a frente... O futuro pertence-te!... Tens o caminho aberto!... Se os primeiros
passos te custarem, ajudar-te-ei!
E Serbannes calou-se durante um momento a olhar, com o seu companheiro, os indígenas fiéis que esperavam por eles. Alguns atavam os fardos que tinham de transportar
à cabeça durante a próxima etapa; outros acabavam de engulir os restos
de um antílope que o amigo de Máximo abatera na véspera; um pouco mais afastado Tanga, o moleque, divertia-se a atirar bananas cozidas aos macacos, que, cada vez
mais numerosos, se atreviam a aproximar-se dele. Sempre alerta, Angosso vigiava os movimentos dos outros indígenas.
Lentamente Serbannes afastava-se do seu amigo. Ago Máximo parecia reviver. Impertigando-se, sem dizer palavra, estendia as pernas e os braços, respirando a plenos
pulmões. O seu rosto tinha um aspecto sereno.
Angosso, com o seu riso franco, olhava para os tubabos como quem lhes quere dizer que o grupo está pronto para se pôr em marcha.
Máximo sorria, satisfeito. Era a primeira vez que isso acontecia desde que tinham saído da aldeia ogni.
Serbannes bateu as palmas. Em fila indiana os indígenas puseram-se a caminho seguindo a pista traçada pelos soldados de Sabattier.
Então Serbannes, de carabina a tiracolo, voltou-se para o amigo e preguntou-lhe:
- Estás pronto, Máximo?
- Vamos! respondeu o interpelado com firmeza.
Albert Bonneau
Voltar à “Página do Autor"
O melhor da literatura para todos os gostos e idades