Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MARCA DO SELO SOMBRIO / Emilly Amite
A MARCA DO SELO SOMBRIO / Emilly Amite

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Meu nome é Nikella, tenho dezesseis anos, faço aniversário dia quinze de novembro, poucos dias após o início das aulas e moro com meu irmão mais velho, adotivo, na cidade dos Cata-ventos em Ciartes, o nono mundo do círculo dos Doze Mundos.
Há muito tempo atrás, antes mesmo de meus pais nascerem, milhares de humanos foram trazidos para cá pelos antigos reis como escravos para os Salamandras, mas séculos mais tarde, depois de várias invasões de Lobos selvagens de Pollo, o mundo da noite eterna, e Lobisomens de Amantia e de Dartaris por portais instáveis, os humanos foram libertos para se unirem aos Venox, um grupo de caçadores criados pelo Rei Hargas (o filho do rei Gyliar, que o substituiu após sua misteriosa morte) a fim de destruir todos os lobisomens que se instalaram aqui.
A população deles cresceu muito rapidamente, junto com outros monstros vindos dos outros mundos, até que alguém no mundo de número um do círculo finalmente destruiu os portais instáveis e as criaturas pararam de invadir os outros mundos com tanta frequência. Porém Ciartes é um mundo muito, muito grande, dizem ser o terceiro maior do círculo e agora existem muitas populações pequenas de outras raças vivendo em cidades específicas por aqui, os Salamandras ainda são oitenta por cento da população do planeta e são muito preconceituosos com as outras raças exceto com os metamorfos, os queridinhos dos salamandras por causa de seus poderes incríveis, mas nenhuma delas sofrem tanto preconceito quanto nós, humanos, os ex escravos que foram libertos por causa da “boa vontade” do rei Hargas Salomon terceiro. Minha mãe abandonou meu pai e foi embora de Ciartes quando eu tinha apenas alguns dias de vida, levando com ela minha irmã gêmea e deixando-me com meu pai, pois ele havia pedido que ela deixasse uma das duas com ele para que ele não se sentisse tão só. Pouco depois que ela se foi, meu pai se casou novamente com uma metamorfa que conheceu em uma reunião das “raças invasoras e agora livres”. A nova mulher de meu pai trouxe seu filho de dois anos para morar conosco, Violet sempre cuidou de mim com carinho, porém nada bom dura muito em Ciartes.
Quando eu tinha oito anos, ela e meu pai morreram queimados por salamandras num ataque à reunião dos líderes dos povos livres em nossa cidade, os “hostes” como eles se chamavam, meu pai era o líder da Cidade Humana. Até hoje não se sabe o porquê daquele ataque, muitos dizem que foi puramente por crueldade, outros por motivos políticos.
Nossa vizinha humana, Laila, tinha uma filha pequena um ano mais velha que eu, ela sentiu pena de Merian e de mim e vinha todos os dias cuidar de nós já que seu marido, um sereiano mal-humorado não nos queria em sua casa, então assim ficamos, os dois sós num mundo que não nos aceitava.
Meu irmão Merian e eu estamos estudando na Academia de Caçadores Venox, uma espécie de escola para treinar os que querem ser caçadores também, Merian tem dezenove anos e está no V5, idade normal para seu nível, nós entramos pequenos nessa escola, geralmente com dez anos de idade e em dezoito anos na academia, se formos realmente bons, alcançamos o V9 e se passarmos no teste final, nos tornamos caçadores de verdade, mas só os melhores, os mais avançados se juntam a guarda real para serem os guardas pessoais que acompanham o rei e sua família em viagens à outros mundos e fazem sua proteção pessoal.
Eu? Sou a mais nova humana a alcançar o V7! Bem, lá no começo tive dificuldades para aprender a manusear as armas, mas as matérias estudadas eram fáceis demais para mim, do V2 até o V4 passei por cada um deles em um ano, e cheguei ao V7 passando pelas outras turmas em seis meses. Passo facilmente pelos testes de aprovação, sou a melhor no que faço, e quero ser a melhor em toda ACV para poder um dia me tornar uma guarda da família real dos Salamandras, se tudo der certo, me tornarei uma caçadora aos dezoito. O motivo disso? Quero vingar a morte de meus pais, pois foi o príncipe mais velho, Ericko, que matou meu amado pai e o tirou de mim. Só poderei realizar minha vingança sendo uma caçadora, não uma caçadora qualquer, tenho que ser a melhor de todas, assim posso me aproximar o suficiente para conseguir matá-lo, vingar minha família e acabar com a impunidade desses tiranos da família real.

 


 


1


Sonhos inquietos

 

Estava de volta ao primeiro ano na ACV, durante a cerimônia de abertura na fila das turmas do V1, a maioria dos alunos novos eram Salamandras, poucos eram metamorfos e humanos, haviam alguns elfos perdidos também, e apenas dois ou três silfos confusos no meio da multidão de peles vermelhas. Sentia-me desconfortável no meio deles, o calor de seus corpos deixava o ar abafado e tinha dificuldade para respirar. Porém não seria um simples desconforto que me tiraria dali, tinha apenas nove anos, mas já tinha a chama que me consumia, que me fazia estar ali firme e forte. Sabia o que queria e o que tinha que fazer para conquistar o meu objetivo.

Odiava os salamandras a minha volta, então fiquei em silêncio na fila aguardando chamarem o meu nome, minhas roupas estavam amarrotadas e meu cabelo desgrenhado, amarrado para trás num rabo de cavalo apertado e torto que havia feito sozinha, já que não havia ninguém para me ajudar a fazê-lo. O pátio de entrada da ACV tinha longos degraus muito largos onde ficavam enfileirados os alunos e conforme seus níveis aumentavam, eles ficavam nos degraus mais altos.

Uma linda jovem salamandra que também havia acabado de entrar no V1 estava ao meu lado na fila, ela estava tão nervosa que tremia e sua pele brilhava, seus cabelos estavam começando a se transformar em fogo, deixando-me com ainda mais calor, revirei os olhos e segurei sua mão quente, quase queimando minha pele ao fazer isso.

– Fique calma, ou vai me fritar aqui! – Falei dando um sorriso forçado a ela. A menina me olhou espantada voltando ao normal, provavelmente nunca havia sito tocada por um humano “inferior”. Ela ergueu sua sobrancelha e prendeu a mecha de cabelo ruivo ondulado e escovado atrás da orelha.

– Obrigada, me chamo Annie, e você? – Perguntou ela mostrando seus dentes afiados num sorriso para mim.

– Nike. – Falei apenas meu apelido e fiquei em silêncio olhando um dos mestres com a folha de chamada andando entre as filas e chamando os nomes dos novatos.

– Nike? Vai ser minha amiga? – Perguntou Annie olhando curiosa para mim. Sentia-me confusa com aquela pergunta, não tinha amigos, éramos apenas Merian e eu, acenei com a cabeça para que ela parasse de me encarar com aqueles grandes olhos cor de sangue. – Obrigada Nike! – Disse ela sorrindo para mim. Ela ergueu os olhos para a escadaria acima de nós e acenou para alguém, desviei meu olhar por um segundo e vi três degraus acima, não muito longe de nós para quem ela estava acenando, um jovem do V4 acenava para ela de volta, ele era alto, tinha uma trança loira até o meio das costas e o mesmo sorriso com dentes afiados no rosto. Seus olhos vermelhos passaram de Annie para mim, senti-me desconfortável com seu olhar assustador, o sorriso dele sumiu quando ele viu que ela estava de mãos dadas comigo. Tentei soltá-la, mas ela não largou minha mão, tive medo dele, mas sabia que para ser uma caçadora não podia temer nada nem ninguém. Então apenas o encarei e sorri. Seu rosto ficou ainda mais vermelho, ele olhou de volta para frente trincando o maxilar e aguardou silenciosamente seu nome ser chamado. Respondi ao chamado de meu nome, mas o mestre continuou me chamando mesmo assim...


– Nike! Acorde! Vai se atrasar logo no primeiro dia? – Merian estava me sacudindo.

– Tá, tá já acordei, me deixa! – Resmunguei chutando o lençol embolado da beirada de minha cama para o chão. Sonhar com o primeiro dia de aula era comum para mim, não sei porque, mas era um dos únicos sonhos que eu me lembrava claramente ao acordar.


Ciartes é um mundo muito quente, mas já havia sido pior, era apenas um deserto gigante com pouca água e muitos salamandras, porém quando os magos metamorfos vieram para cá, eles usaram seus poderes para mudar o clima aos poucos, agora haviam muitas florestas, a água era muito mais abundante, embora a temperatura ainda fosse muito alta para nós, os dias mais frios em Pergmatis, o continente central em que vivíamos, ficavam em torno de 27 °C, e os mais quentes podiam chegar até 50°C dias que eu evitava sair da sombra.

Levantei-me com preguiça, odiava a primeira semana das aulas, os novatos se perdiam e faziam besteiras pela academia até se adaptarem as regras, os alunos bem mais velhos de minhas turmas ficavam perguntando se eu estava perdida e diziam que entrei na sala errada, quando descobriam que eu era realmente da mesma turma, se irritavam por ter uma “pirralha” junto deles, depois das primeiras semanas eles ignoravam minha presença, me tornava invisível para eles e isso me ajudava a suportar mais facilmente o ano. Entrei no banheiro em silêncio, liguei o chuveiro deixando a água gelada cair sobre minha cabeça, lavei meus cabelos com um shampoo artesanal feito de mel e hortelã, ajudava a manter a cabeça fria durante o dia. Voltei para o quarto e peguei meu novo uniforme e o guardei na bolsa, também peguei o vestido cerimonial cinza e o vesti, haviam três modelos para escolher, acabei optando pelo de linho cinza que era rodado e batia na altura dos joelhos e não tinha mangas, amarrei os cabelos num rabo de cavalo apertado e olhei-me no espelho, sorri satisfeita por estar cada vez mais perto de meu objetivo.

A partir do V7 podia escolher ter aulas à noite, mas isso iria atrapalhar meu trabalho e minhas horas de estudo, então preferi ficar no período da manhã mesmo. Meu irmão havia preparado o café para nós, a cidade dos Cata-ventos tinha todos os tipos de produtos e alimentos para humanos, trazidos semanalmente por comerciantes que vinham de Amantia, Terra, Dartaris e de outros mundos, mas eram caros, então nós dois trabalhávamos e dividíamos as despesas da casa.

– Preparada para seu primeiro dia como uma V7? – Perguntou ele debochando, sabia que meu humor nas primeiras semanas era terrível.

– Nunca estou! – Respondi quase rosnando dando uma mordida no pão de aveia que ele havia feito. Merian era excelente cozinheiro, trabalhava num restaurante simples para turistas na entrada da cidade do Sol.

– Já arrumou suas coisas? – Perguntou ele olhando discretamente a bolsa grande que eu havia colocado no chão ao lado de meus pés.

– hu-hum...

– Acho que só tem armas ai! – Disse ele olhando-me e rindo. Encarei seus olhos amarelos e dei um sorriso.

– Não vai ser por falta delas que eu não vou passar! – Brinquei. Ele só sabia usar as colheres, era horrível com a espada, mas ótimo com adagas de arremesso e venenos, podia matar um dragão d’água com uma gota de veneno ou acertar um elfo correndo com uma única adaga. Eu por outro lado, não sabia cozinhar um ovo, mas sabia usar qualquer arma que colocassem em minhas mãos, podendo sobreviver em qualquer ambiente por dias sem mantimentos, apenas com minhas habilidades de caça.


A ACV ficava a duas horas de distância de nossa cidade, localizada no Vale Cinzento, motivo pelo qual tive que acordar três da manhã para chegar no horário certo e não perder a cerimônia de abertura. Nós passávamos a semana toda na ACV e só voltávamos para casa aos finais de semana, se quiséssemos e é claro, eu sempre queria.

Depois do café, saímos em silêncio para não acordar os vizinhos e caminhamos em direção à plataforma de embarque da cidade, que ficava mais ou menos a dez minutos da nossa casa. O calor ainda estava lá, mesmo com a escuridão, ainda faltavam cinco horas para Apollis aparecer no céu e trazer a luz do dia novamente.

Antigamente só haviam quatro horas de escuridão em Ciartes, porém depois que Sirius e Áries (dois dos três antigos sóis guardiões) desapareceram dos céus quando eu ainda era um bebê, os horários dos sóis mudaram drasticamente, assim Apollis, o sol que os havia substituído, só nascia às oito e se punha as dezenove e Gálatas, o terceiro sol que permaneceu lá, nascia às dez e se punha às vinte e três horas. Isso dava mais horas de noite em Ciartes e por mais que eu gostasse de dormir no escuro, tinha um medo constante pois os lobisomens agora se mantinham transformados por mais tempo e os vampiros podiam ficar soltos e perambular por mais tempo também.


A novidade para os salamandras era algo que eu amava, o clima de Ciartes estava mudando muito, muito rápido, as estações estavam reguladas e o frio era algo que os nativos deste mundo não estavam acostumados, apenas nos locais com clima transformado magicamente que fazia frio e até nevava. Eu nasci numa sala de cura na cidade do sol alguns dias antes dos sóis mudarem, no único dia que nevou em Pergmatis. O continente central tem um clima semiárido, acho que por causa da neve do dia em que nasci, eu não consigo lidar tão bem com o calor quanto os outros humanos daqui.

Esfriava muito em Ciartes quando os sóis não estavam no céu no outono e inverno. Embora nos desertos sempre fizesse frio à noite, nas cidades não costumava esfriar como acontece de dezesseis anos para cá.

Os lugares mais frescos no verão que eu conhecia eram as florestas em volta do Vale Cinzento, porém eram tão perigosas que os alunos só tinham permissão de ir lá até as dezoito horas. Depois deste horário o vale tinha seus imensos portões metálicos fechados e trancados para que ninguém pudesse entrar, se você desrespeitasse o horário, com certeza não sobreviveria a noite toda.


Ficamos de pé na plataforma de embarque principal aguardando o dirigível que partiria para o vale, ele vinha voando quase silenciosamente na madrugada, o único som era o de suas hélices quando se aproximava da plataforma, aquele som sempre me dava calafrios, imaginava que as criaturas da noite poderiam escutá-lo e atacar a cidade. Desviei meu olhar do dirigível para cima, para o céu brilhante e estrelado acima de nós. Ao lado da lua estava Saldazaris, ocupando quase a metade do céu com seu brilho azulado e anéis brancos brilhantes, o quarto maior mundo dos doze mundos, perdendo para Ciartes que era o terceiro maior. Quase todas as noites, depois que escurecia ficava observando os céus, observando aquele mundo gigante que parecia tocar o nosso, Saldazaris, o mundo dos ventos e lar dos Silfos.


A condutora deu um baixo assovio, sinalizando que podíamos embarcar, tirando-me de meus devaneios. Entramos no dirigível, andei até o final do corredor com os assentos mais altos e sentei-me numa das últimas cadeiras, assim poderia ficar de olho nas novas “caras” da ACV. Merian gostava de sentar perto da condutora, Joane uma silfa guerreira muito bonita de cabelos curtos cor de mel que nunca lhe dava bola, mas ele não perdia a esperança.

A cidade dos Cata-ventos era a primeira das seis cidades das redondezas que este dirigível passava para buscar os alunos, as outras eram as cidades que formavam uma espécie de “barreira” para a cidade do sol: cidade do fogo, Irtulim, Soldazaris, Floresta de sal e o deserto dos Oásis. Dessas cidades, três eram de Salamandras, afinal, esse é o mundo deles. Depois de completar minha vingança, meu sonho é desaparecer desse lugar, ir embora de Ciartes, ir para um dos outros mundos, Vegahn, Amantia ou Evenox, gostava bastante do mundo dos Sereianos, embora tivesse bastante medo deles e houvessem poucos deles aqui! A maioria deles viviam em Isoben, a cidade das águas no continente de Silsiron.

Estávamos esperando os outros alunos que viviam na cidade dos Cata-ventos, Merian e eu sempre chegávamos mais cedo para não correr o risco de chegarmos tarde demais e perder o dirigível, não que eu fosse um exemplo de pontualidade, mas se eu perdesse o horário, um grupo de caçadores viriam me buscar em casa, quando você entra na ACV, aquilo passa a ser sua vida até que você termine o curso, caso saísse da linha você era severamente punido. A inspetora era muito ranzinza e brava, Candace, uma salamandra baixinha fazia jus ao ditado “baixinho marrento” ela enfrentava quem fosse que estivesse quebrando as regras, fui pega por ela uma vez fazendo uma armadilha no banheiro dos mestres, ela me fez ficar de vigia a noite inteira nos muros com os caçadores adultos, depois de levar um sacode da diretora, claro. Aquele dia na muralha me deixou marcas profundas e me fez aprender uma valiosa lição: Nenhuma situação é tão ruim, que não possa piorar. Antes de fazer qualquer coisa, sempre me lembrava daquela noite sobre a muralha.


Havíamos acabado de parar na floresta de Sal, penúltima parada antes de chegar a ACV, uma das alunas do V8 que conhecia embarcou junto com um grande grupo no dirigível, Palloma, ela tinha vinte e dois anos, era uma das alunas humanas mais avançadas da ACV, vivia com uma família adotiva élfica na floresta e embora não fosse tão avançada quanto eu, ela estava dois anos adiantada. Palloma sentou perto de mim nos bancos do final e sorriu quando percebeu que era eu ao seu lado, seus olhos cor de chocolate pousaram sobre meu uniforme cinza do V7 e arqueou suas sobrancelhas perfeitas.

– Já no V7, Nike? Nossa! Com sua idade eu estava recém entrando no V4! – Disse ela arrumando seus longos cabelos cacheados para trás.

– Hu-hum, até dezembro vamos estudar juntas! – Falei sorrindo também. Em julho haveria uma prova para quem estava finalizando o V7, os alunos que passassem na prova escrita e física, passariam por um teste de aptidão enfrentando um dos mestres e se o vencesse, seguiria para a fase seguinte. Eu havia passado as férias inteiras treinando para isso.

– Vai ser divertido estudar com você! – Disse ela beliscando minha bochecha com as pontas dos dedos, respirei fundo e sorri forçado, ela era amiga de alguém que eu considerava um inimigo, Kuran, o irmão mais velho de minha amiga Annie. Quando estava no V3, ele ficou encarregado de cuidar da minha equipe num pequeno exercício de treinamento, éramos apenas quatro meninas e estávamos em um passeio para procurar, encontrar e identificar ervas medicinais pela floresta do vale cinzento. Kuran estava distraído demais com Lorena, uma aluna do V5 que estava acompanhando um dos outros grupos e não prestou atenção em nós. Annie e eu caímos em um buraco armadilha de uma planta carnívora e ele não nos viu. Consegui tirar Annie do buraco fazendo uma escadinha para ela subir, porém ele só voltou para me buscar mesmo com a insistência dela duas horas depois e brigou comigo, ameaçando-me caso contasse para os supervisores que ele não havia prestado atenção em nós. Isso apenas aumentou minha raiva pelos salamandras.

Aos poucos o dirigível foi enchendo e o murmúrio foi aumentando, os alunos novos pareciam não entender o motivo de eu ser o centro dos olhares de alunos mais velhos, o uniforme cinzento caía muito bem em mim, mas a minha idade os incomodava. Sorri por dentro evitando provocar ainda mais os outros alunos.


Sobrevoamos a Academia e estávamos indo em direção a área de pouso, do alto deu para ver a organização da cerimônia de abertura do ano letivo no pátio central, lá era realizada uma grande festa ao anoitecer, que eu fazia questão de não participar. O primeiro de novembro foi o dia que a Academia dos Caçadores Venox foi fundada, assim as aulas passaram a iniciar nesse dia. Não eram apenas aulas comuns, na ACV aprendíamos a sobreviver em qualquer tipo de ambiente, estudávamos sobre as raças dos doze mundos, aprendíamos a fazer poções, remédios e venenos que nos ajudariam em qualquer situação e o que eu mais gostava, aprendíamos a lutar! Amava manusear as armas, tinha uma facilidade quase como um dom natural, embora não fosse uma maga, tinha uma força maior do que as outras alunas.

Esperei que a maioria descesse para desembarcar, como sempre Merian havia dado um doce que ele mesmo havia preparado para Joane e desembarcou com um sorriso bobo no rosto.

– Ela vai se impressionar no dia que você trouxer um dragão de Amantia domesticado para ela de presente, mulheres como ela não se impressionam com doces, irmão! – Falei brincando, Merian franziu a testa e me olhou de soslaio.

– Você é má, sabia? Vai acabar sem amigos se ficar falando desse jeito com as pessoas! – Disse ele amarrando a cara para mim.

– Só estava brincando! – Resmunguei, pelo visto eu havia tocado em seu ponto fraco sem querer, Merian odiava o fato de eu ser mais forte que ele, muitos de seus amigos debochavam dele por ser mais fraco que a menina humana que ele tinha como irmã. Merian saiu marchando na frente e desaparecendo de vista no meio dos alunos do V5 que iam em direção aos portões da Academia. Outros nove dirigíveis pousaram na plataforma, um a um deixaram os alunos e voltaram para a base que ficava escondida no vale. Caminhei entre os alunos que se cumprimentavam e conversavam alegremente sobre suas férias, porém nem todos estavam tão felizes assim, a Aldeia dos Sinos havia sofrido um violento ataque de vampiros uma semana antes do começo das aulas, pelo menos vinte alunos que viviam lá foram mortos e outros cinco estavam desaparecidos. Isso acontecia com uma certa frequência, em represália aos caçadores. Os sombrios, como chamávamos as raças hostis, atacavam as cidades e vilas que tinham o maior número de alunos da ACV, eles eram seus alvos.


Em cima dos muros, aparentemente a segurança havia sido dobrada, haviam caçadores de sentinela a cada cinco metros e armados até os dentes, eles pareciam esperar um ataque a qualquer momento. Entrei pelo portão leste da academia com o mar de alunos que iam em direção às escadas de classificação que ficavam em frente ao prédio principal, onde tinha a sala dos professores, a sala da diretoria e o refeitório para a cerimônia de abertura. Os três castelos principais estavam exatamente como da última vez que os vi no final de agosto, a construção majestosa em pedras brancas perfeitamente polidas no final do pátio central, podiam ser vistos da frente da academia e os dois prédios dos dormitórios, femininos à esquerda e os masculinos à direita, separados por uma barreira mágica que se ativava ao anoitecer e impedia que homens invadissem o dormitório feminino e vice-versa (mal sabia a diretora que a barreira só funcionava se entrássemos pelas portas principais, as janelas não tinham essa proteção e os alunos espertos nunca disseram nada disso para ela). O portão leste passava pelo jardim e bem adiante ficava o estábulo.

Era realmente um evento bonito o começo do ano letivo, o pátio central ficava decorado com faixas de seda brilhantes prateadas e azuis e armaduras com as cores de todos os níveis da ACV, a árvore no centro da escola também era decorada com folhas prateadas e linhas vermelhas, representando os laços que uniam as almas, embora não tivesse nada a ver com o evento, eu achava aquilo bonito, pois mostrava que mesmo sendo cruéis, os salamandras tinham amor e respeito as tradições dos outros mundos. Andei devagar até a escada de classificação e entrei na fila dos V7 que ficaram me olhando com as mesmas caras espantadas de sempre, novamente sorri por dentro, não tinha como negar que era divertida essa reação, ainda mais porque a grande maioria dos alunos da minha turma esse ano eram salamandras. Eu era uma das menores da turma, claro, pela minha idade já imaginava que fosse ser menor que os outros alunos, os salamandras mesmo as garotas eram muito altas. Annie em alguns meses havia me superado em tamanho, na última medição para os uniformes ela estava com 1,85 e ainda não havia parado de crescer. Eu com 1,71 perto dos alunos maiores de vinte anos, me sentia um duende.

– Tão linda com esse vestido cinza! – Annie apareceu entre o mar de alunos, segurando meu rosto e beijando minha bochecha. – Parece uma adulta baixinha!

– O que está fazendo aqui? Volte para sua fila antes que a Candace te veja fora do lugar e resolva brigar com nós duas! – Soltei um baixo rosnado em reprovação, um som nada humano, mas já havia me acostumado com ele por causa da frequência que precisava fazê-lo para assustar os rivais. Annie estava ainda mais linda, com seus cabelos ruivos amarrados num coque combinando com o vestido verde esmeralda do V5, ela estava um ano avançada e estudaria junto com meu irmão esse ano.

– Já amanheceu com esse humor? Daqui a pouco conversamos no quarto então! – Respondeu ela rindo e voltando para a fila do V5 dois degraus abaixo de mim, Annie era muito carinhosa e amigável, diferente de mim, nem parecia que havíamos nascido com algumas horas de diferença.

Após os alunos ficarem completamente organizados nas escadas das turmas, os mestres líderes das mesmas se posicionaram em frente a elas com as listas nas mãos. Haviam duas fileiras de cada nível com cerca de duzentos alunos que eram divididos em classes de cinquenta alunos. Esse ano o mestre líder da turma que eu havia ficado era um sereiano, Mestre Siorin, ele era um sereiano vindo de Amantia fazia pouco mais de quinze anos e havia substituído o mestre Dinai nas aulas de artes marciais, até onde eu sabia, ele era mestre em todas as armas também. Siorin não parecia ser uma má pessoa, mas tinha um olhar frio e distante, que combinava com seus cabelos cinzentos e pele azulada, suas marcas safira brilharam conforme ele se movia entre os alunos, verificando a lista e fazendo anotações em um pequeno bloco que carregava consigo.

A diretora, Nyona era uma elfa muito rígida e tradicionalista, mas sabia ser simpática e calorosa pelo menos no primeiro dia, ela estava na direção da escola desde a época de meu pai. Olhei em volta e notei que esse ano a quantidade de alunos novos era muito maior do que nos outros anos e a quantidade de alunos humanos e metamorfos também tinha aumentado consideravelmente. Nós sofríamos mais preconceito por parte dos salamandras por sermos facilmente corrompidos pelas maldições da licantropia e o vampirismo, as outras raças eram mais resistentes a essas transformações, alguns eram imunes a elas, como os Salamandras e os sereianos, porém o que não os transformava, os matava, qualquer sereiano ou salamandra mordido por vampiros ou lobisomens mal tinha tempo de receber um antídoto antes de morrer. Olhei para meu lado direito e senti a mesma angústia que sentia todos os anos no primeiro dia, Kuran estava muito perto agora, ele estava um degrau acima de mim no primeiro grupo do V8, como de costume acenava para Annie, que sorria alegremente e balançava sua mão discretamente. Palloma estava atrás de Kuran e brincava distraída com a longa trança loira dele. Por um momento seus olhos vermelhos pousaram em mim e foi como da primeira vez, senti um medo me tomar, não entendia o porquê desse medo, talvez porque diferente da maioria dos Salamandras que tinham olhos cinzentos ou brancos, ele tinha aqueles olhos vermelhos assustadores. Annie também tinha olhos vermelhos, mas ao contrário dos dele, os de Annie eram doces e gentis, as vezes chegava a duvidar que eram irmãos.

Os mestres das turmas começaram a chamar os nomes das listas e iam marcando a presença de todos, Siorin passou caminhando entre nós e chamando os nomes, ao se aproximar de mim, ele olhou da lista para mim, com certeza espantado pela minha idade.

– Nikella Modjim? – Ele disse meu nome em tom de pergunta e ergueu uma sobrancelha, seus olhos cinzentos encararam os meus por um instante.

– Aqui. – Respondi quebrando o contato visual, apenas olhei para frente, as palmas das minhas mãos ficaram frias e úmidas, tentei espantar o medo, já que ele poderia senti-lo. Siorin deu um sorriso de lado e continuou andando chamando os outros alunos. Imediatamente amarrei a cara ficando irritada, ele com certeza iria pegar no meu pé mais tarde, era isso que todos os outros mestres faziam achando que eu não conseguiria levar suas aulas adiante. Olhei automaticamente na direção de Annie, ela estava olhando para mim também, mordia os lábios e ria descaradamente, depois moveu as sobrancelhas brincando comigo, estava tentando me fazer rir como sempre quando eu estava irritada com algo. Merian estava na fila do V5 parecia ainda estar irritado comigo pelo que eu lhe disse mais cedo, muitas vezes eu não media minhas palavras e machucava as pessoas sem perceber. Virei-me para frente novamente e fiquei esperando o fim das chamadas em silêncio. Os mestres finalizaram as chamadas e posicionaram-se na frente das turmas novamente.

Nyona caminhou lentamente até o degrau mais alto da escadaria e sorriu alegremente para nós, seus cabelos curtos loiros balançavam suavemente contra o vento, ela usava seu uniforme vinho do corpo docente assim como os outros professores, não usava o uniforme dourado como os diretores anteriores, ao contrário deles, ela não se colocava acima dos outros, mas igual a eles e ainda lecionava identificação e preparação de venenos para as turmas do V7 ao V9.


– Aos novos alunos, sejam bem-vindos a Academia de Caçadores Venox, aos alunos mais antigos, bem-vindos de volta! Quero que saibam que estamos muito felizes de ver tantos de vocês aqui novamente mesmo com todas as dificuldades e adversidades que temos encontrando de uns tempos para cá! Peço a vocês que deem seu melhor e sejam fortes, pois nós estamos aqui para nos tornar os melhores, os mais fortes para defender nossos mundos de tudo de ruim que eles possam oferecer! Não importa se são salamandras, humanos, elfos, silfos... aqui é o lar de vocês e sempre será! Se esforcem e sejam o orgulho Venox! – Disse ela para nós, normalmente ela fazia um discurso mais elaborado e explicava as regras da ACV para os novos alunos, regras que eu já sabia de cor, mas ela deve ter ficado abalada com o ataque à Aldeia dos Sinos, era a aldeia natal de Nyona.

– V7, vamos! – Siorin fez um movimento com a mão para o seguirmos. Caminhamos em fila até uma das salas no segundo andar do terceiro castelo, onde estudavam as turmas do V7 ao V9. Alguém passou esbarrando em mim quase tirando-me da fila, era Kuran, ele tinha um sorriso maligno no rosto ao passar por mim.

– Já está aqui? – Perguntou ele rindo de forma provocativa.

– Já sim, antes de o ano acabar estarei com vocês no V8! – Falei tentando espantar a onda de pânico que havia me tomado novamente, meus braços estavam tremendo, os cruzei para evitar que ele notasse meu nervosismo. Desde o “acidente” na floresta do vale ele não falava diretamente comigo. Agora estávamos estudando no mesmo prédio e cruzar com ele algumas vezes parecia inevitável.

– Estou ansiosa por isso! – Disse Palloma rindo e acariciando minha cabeça antes de arrastar Kuran para dentro do salão ao lado do que o mestre Siorin havia acabado de entrar. Estava prestando tanta atenção nos dois que não reparei que havia sido deixada para trás. Entrei rapidamente pela porta que o mestre ainda segurava aberta e me olhava com o cenho franzido. Fiquei na fila com os outros alunos em frente às quatro portas das salas que ficaríamos divididos e aguardamos em silêncio até os outros três mestres chegarem para dividirem as turmas. Pouco depois chegaram, Aeras um mestre salamandra que era considerado o mais irritante de toda a ACV, ele falava sempre gritando e tinha mania de disciplinar os alunos com um chicote com ponteiras de metal. Torci silenciosamente para não ser colocada na turma dele. Moly, uma Silfa gentil que vivia com um sorriso no rosto e Juliet uma maga humana cruel, talvez cruel fosse pouco para descrevê-la.

– Vou chamar os alunos de minha turma e vocês entrarão na primeira sala a esquerda! – Disse Siorin para nós. Torcia para ficar com Moly ou no mínimo com ele. Siorin foi chamando os nomes da lista e um por um os alunos foram até a primeira sala, depois de chamar quarenta e dois alunos, tinha perdido a esperança de ficar na sala dele e agora era torcer para ser escolhida para a turma de Moly.

– Nikella Modjim! – Disse ele por último riscando meu nome na lista e apontando para a turma, agradeci novamente em meus pensamentos e andei em direção a sala.

Sempre entrava primeiro e escolhia um lugar distante e perto das janelas, assim a maioria dos alunos escolhia não sentar perto de mim e eu acabava ficando só, o que era uma coisa que eu gostava muito, mas como fiquei para trás, todos os lugares na janela haviam sido tomados, praguejei em pensamento todos eles antes de escolher um lugar. Fui até uma das carteiras no fundo da sala e me sentei ao lado de um jovem que parecia tão novo quanto eu, só não havia o reparado antes. Quando sentei ao seu lado, ele se levantou e me ofereceu o lugar do canto. O encarei confusa, mas aceitei a troca de lugares e me sentei no lado da janela. Mesmo aparentando ser mais novo, ele também era bem mais alto que eu.

– Como se chama? – Perguntou ele baixinho para mim deixando-me completamente desconfortável, não gostava de conversas.

– Nikella! – Respondi. Ele sorriu e apertou minha mão.

– Susano! – Apresentou-se virando novamente para frente. Ele era humano, mas tinha aparência semelhante à de um elfo negro, era alto, tinha os cabelos longos e castanhos quase negros e olhos verdes de um tom esmeralda com desenhos amarelados no centro, estranhamente parecidos com os meus. – Aqueles ali são Lupinus e Nelin, meus primos! – Disse ele apontando para um casal atrás de nós que pareciam estar escondidos, a jovem olhou para mim e piscou. Ela tinha olhos cor de mel e cabelos castanhos cacheados. O jovem ao lado dela tinha os cabelos quase negros e lisos e não parecia gostar muito de conversa, não havia escutado seus nomes na chamada.

– Desculpe a pergunta, mas que idade vocês têm? – Perguntei encarando-o. ele sorriu novamente e passou a mão nos cabelos, tentando disfarçar que havia ficado sem graça com a minha pergunta.

– Temos dezesseis! – Respondeu ele olhando novamente para frente. Siorin estava dividindo as outras turmas, então todos estavam conversando com o baixinho e olhando para nós quatro, éramos o assunto da sala, os mais novos do V7 na ACV.

– Então é por isso que estão todos olhando nos olhando! – Falei olhando discretamente todos os olhares que se voltavam para nós na sala.

– E você? Que idade tem? – Ele perguntou.

– Tenho dezesseis também! – Ele franziu o cenho e fez uma rápida análise, passando os olhos discretamente por meu corpo.

– Não parece ter apenas dezesseis...

– Sangue de Aswang! – Dei um sorriso sem graça, ele se encolheu um pouco com a menção do remédio que podia curar qualquer coisa. Sangue de Aswang, um remédio, uma última alternativa para alguém à beira da morte mas que aceleraria o tempo do corpo de quem o tomasse.

– Como? – Ele quis saber.

– Sofri um acidente quando tinha treze, os muros da Academia não são feitos para alunos travessos! – Ele assentiu e voltou a olhar o mestre. – Na instalação de cura da cidade do Sol, disseram que era a única maneira de me curar!

– Sinto muito. – Sorri para ele novamente.

– Eu quero acabar logo o treinamento para poder parar de vir para cá! Detesto o calor! – Disse ele mudando o assunto. – Por isso faço as provas e os testes perfeitamente, me irrita ficar enrolando uma coisa que pode ser feita rapidamente. – Disse ele deixando-me boquiaberta. Ele nem sequer se esforçava para passar?

– E eles dois? – Perguntei.

– São meus melhores amigos, então, tentamos ficar sempre juntos! – Respondeu ele para mim. – Eles nem iam vir para a ACV, mas eu pedi que viessem para eu não ficar sozinho!

– Interessante! – Falei, respirei fundo e olhei pela janela. O calor havia começado a aumentar. Não costumava querer conversar com as pessoas, mas sentia uma vontade enorme de ficar conversando com ele. – Susano? De que cidade vocês vieram?

– Da cidade de Cristal.

– Nunca ouvi falar! Fica em qual dos cinco continentes? – Perguntei. Ele riu novamente.

– Em Amantia, o mundo um! – Disse Nelin se metendo na conversa, fazendo-me virar para trás.

– Incrível! Gostaria tanto de conhecer! – Falei.

– Podemos te levar lá um dia desses! – Disse Nelin sorrindo, ela transmitia uma alegria tão grande que me fez querer abraçá-la, parecia ser irmã de Annie, elas tinham a mesma alegria contagiante.

– Nelin! – Lupinus pareceu irritado. – Desculpe, ela é assim mesmo, um pouco doida! – Resmungou ele encarando-me com seus olhos negros.

– Tudo bem! – Falei olhando pela janela novamente, tentando disfarçar meu constrangimento com seu olhar. Susano pegou um livro e começou a escrever, olhei para sua mão e notei que ele escrevia com a mão esquerda, tinha uma marca estranha como raios dourados em volta de seu pulso.

– O que é isso? – Perguntei apontando com o queixo as marcas. Ele me olhou surpreso como se eu tivesse perguntando uma bobagem.

– Minhas marcas de mago! – Ele respondeu mostrando o interior do braço onde mais marcas subiam até a altura de seu ombro, logo em seguida as fez desaparecer, ficando da cor da pele novamente.

– Nunca havia visto isso em mago nenhum! – Falei.

– Ciartes é muito resistente a magia, a maioria dos magos não permanecem nesse mundo, então poucos magos que vivem aqui não deixam suas marcas visíveis. – Disse ele baixinho notando que o mestre já estava retornando.

– Última pergunta, por que você me deixou sentar no canto? – Perguntei, Susano moveu a cabeça discretamente para o lado, olhei para onde ele havia apontado, um aluno que não reconhecia estava olhando para mim, parecia ser um híbrido, tinha a pele avermelhada como a dos salamandras, mas também tinha marcas estranhas nos braços, como cicatrizes finas de cortes longos.

– Um hibrido de Incubo e Salamandra. Ele não parece muito amigável! – Respondeu Susano olhando novamente para mim e sorrindo. – Tenho três irmãs, estou acostumado a protegê-las de pessoas suspeitas!

– Entendi, bom, obrigada! – Queria rir, eu não precisava de proteção, era uma das melhores alunas da ACV e sabia usar todas as armas que me dessem na mão, mas não tinha necessidade de dizer isso, já não tinha muitos amigos e não seria legal da minha parte dispensar esses também.

O Mestre Siorin entrou na sala e fechou a porta atrás dele, caminhou até a mesa e se apoiou nela, seu olhar passou por todos nós e parou em nosso pequeno grupo dos mais jovens.

– Espero que estejam preparados para o pior, a partir daqui a vida de vocês se transformará num inferno! – Disse ele com um meigo sorriso no rosto, ele estava olhando diretamente para nós quando disse essas palavras. – A partir do V7 suas aulas de teóricas de técnicas de sobrevivência, serão substituídas por aulas práticas de sobrevivência! – Disse ele escrevendo a nova grade de aulas no quadro e os nomes dos professores ao lado. – As aulas de preparação de antídotos serão substituídas por preparação e identificação de venenos e as aulas de técnicas de batalha serão conflitos e batalhas simulados e vocês receberão missões que deverão ser feitas após as aulas das sextas! – Quando ele terminou de explicar, um frio passou pela minha espinha. Pela primeira vez achei que pular as turmas cedo demais me prejudicaria agora, Susano, Nelin e Lupinus, mesmo tendo a mesma idade que eu, eram bem maiores e mais fortes.

– Não adianta ficar com medo agora! Tem que se esforçar ainda mais para provar que não é por seu tamanho que você vai ficar para trás! – Parecia que Susano havia lido meus pensamentos, olhei incrédula para ele, mas acenei com a cabeça e respirei fundo.

– Diferente das aulas até o V6 que vocês permaneciam na mesma sala, no V7 vocês irão até as salas dos mestres para terem suas aulas! Aqui será onde terão aulas de línguas e aprenderão as línguas de todos os seres que habitam os doze mundos, não façam essas caras de desespero! É bem fácil! – Disse ele rindo, a maioria dos alunos da sala eram salamandras, para minha sorte, eu trabalhava numa loja de forjas e fabricava armas sob encomenda, sabia falar as línguas dos doze mundos, para mim, esse seria meu descanso!

– Nelin, Lupinus! O que estão fazendo aí? Eu não os chamei para essa turma! – Disse Siorin depois que se deu conta dos dois escondidos atrás de nós.

– Ah, por favor, estamos juntos desde o V1! Não vai nos separar agora, vai? – Nelin estava encarando-o com cara de cachorrinho pidão e piscando, tentando fazê-lo mudar de ideia.

– Já os separei, Nelin! Essas separações fortalecem a amizade! Não se preocupe, ninguém aqui vai comer seu primo! Além do mais, vocês ficaram na mesma turma que Datani e ele está sozinho lá, então, sem reclamar! – Respondeu Siorin apontando a porta. – Vocês estão na turma de Aeras! – Nelin se levantou arrastando a cadeira, ela tinha mudado completamente seu olhar doce e gentil e agora seus olhos e cabelos estavam de um prateado brilhante e em sua testa havia aparecido a marca de um pequeno dragão azul, me encolhi para o lado quando ela passou por mim, Lupinus parecia não ter se importado com o que o mestre falou, ele segurou os ombros de Nelin.

– Se arrumar encrenca com ele, tio Demétrius irá reclamar muito com você! – Disse Lupinus baixinho para ela e a arrastou para fora da sala.

– Cuida do meu primo, está bem? – Disse Nelin colocando a cabeça de volta na sala e deixando-me totalmente sem graça. Acenei com a cabeça para que ela saísse logo da sala.

– Ela tem essas variações de humor sempre? – Perguntei.

– Sempre! – Respondeu ele abafando uma risada.


2


Teste de paciência

 


Depois das primeiras explicações de Siorin, peguei uma folha e anotei tudo que estudaríamos esse ano, com a mudança em três matérias mais as missões, teríamos no total oito matérias.

O primeiro dia de aula era quase como um teste de paciência, Siorin nos deixou à vontade para conversarmos e formarmos os grupos de missões, não existe estudo individual a partir do V6, é tudo feito em grupo para ensinar a todos o poder de trabalhar em equipe, coisa que eu achava completamente desnecessária. Acabamos ficando apenas Susano e eu na mesma equipe, já que os alunos mais velhos se juntaram em equipes entre eles e nos ignoraram.

– Já era de se esperar, eles fizeram isso ano passado comigo também! – Murmurei quando vi todos os alunos juntos em grupos nos deixando de lado.

– Não tem um número de alunos que complete treze equipes de quatro pessoas. Só se Nelin e Lupinus estivessem aqui! – Respondeu Susano olhando feio para o professor.

– Parece que ficaram faltando dois alunos para o grupo de vocês, não é?! – Disse o professor nos encarando com um olhar divertido.

– Acho que sim, espera deixa e contar melhor! – Falei contando nos dedos. – Sim! Um mais um é igual a dois! E dois mais dois... é está mesmo faltando dois! – Alguns alunos riram discretamente, outros me olharam aborrecidos, Susano deu um forte beliscão no próprio braço e mordeu os lábios para não rir. Siorin começou a rir também, tentando disfarçar que ficou sem graça.

– Sua personalidade é um deleite, Nikella! Vou ver nas outras turmas se tem mais gente sem um grupo completo! – Disse ele saindo da sala e batendo a porta com mais força do que seria necessária para fechá-la.

– Não devia fazer isso, ao que parece você já não tem muitos amigos, não deveria arrumar briga com alguém que pode tornar sua vida, como ele mesmo disse, num inferno! – Susano me encarava sério.

– Foi só uma brincadeira.

– Você precisa aprender a brincar, nem todos entenderão sua grosseria como brincadeira! – Disse ele. Fiquei o encarando por um momento e estava prestes a perguntar por que lhe interessava se as pessoas ficariam com raiva de mim, mas resolvi ficar em silêncio, apenas bufei para que ele percebesse que não gostei. – Desculpe, não sou nada seu para chamar sua atenção assim!

– Tudo bem! – Respondi.

– Desculpe perguntar, mas seus pais não te ensinaram que falar assim com as pessoas poderia ser perigoso? – Perguntou ele me encarando novamente com aqueles olhos parecidos com pedras preciosas.

– Não, não tiveram muito tempo para me ensinar isso...

– Trabalham demais?

– Eles morreram! – Falei virando-me para a janela.

– Eu... – o vi corar através do vidro escuro da sala, ele havia ficado completamente sem jeito. – Me desculpe!

– Não se preocupe! Eu quase não me lembro mais deles.

– Você vive com parentes?

– Não tenho parentes nesse mundo, não que eu saiba. Minha mãe nos deixou assim que minha irmã e eu nascemos, ela foi embora de Ciartes com minha irmã e me deixou com meu pai, ele se casou com uma metamorfa e ela trouxe o filho dela para viver conosco, mas eles morreram quando ainda éramos pequenos. – Falei sem querer, era estranho o jeito que Susano me encarava, como se ele me forçasse a dizer a verdade.

– Então são só você e seu irmão? – Ele continuava me encarando e mesmo que eu tentasse desviar o olhar era difícil, no fundo de seus olhos havia um brilho dourado estranho.

– Sim, no começo uma vizinha ia até nossa casa para cuidar de nós, mas quando aprendemos a nos virar ela parou de ir! – Respondi.

– Não gostaria de saber onde sua mãe está?

– Se ela nos deixou e nunca tentou entrar em contato, provavelmente não nos queria, então não vou correr atrás de alguém que não me quis! – Falei.

– Talvez não seja da forma que você pensa!

– Eu nunca abandonaria alguém que eu amo, nem que ficar ao lado dela custasse minha vida! – Retruquei baixinho, mas fui sincera.

– Você tem amigos?

– Tenho uma!

– Então agora tem dois, provavelmente quatro! Essas suas palavras mostram que você é uma ótima pessoa, um pouco rebelde, mas boa pessoa! – Disse ele sorrindo.

– Obrigada... eu tento! – Respondi rindo. A verdade é que eu não me considerava uma boa pessoa, muito menos uma boa amiga, embora estivesse sempre ao lado de Annie, a maioria das vezes eu me irritava com as bobagens dela e nunca me abria, nunca conversava abertamente ou era divertida e espontânea com ela. Na próxima vez que falasse com ela, ia tentar ser uma amiga melhor.

Siorin voltou à sala com um sorriso sinistro no rosto e uma expressão divertidamente maligna, seus olhos encararam os meus e senti com o mundo fosse desabar sobre mim.

– Está vendo a expressão no rosto dele? Você não deveria ter debochado dele! – Disse Susano baixinho sem mover muito os lábios.

– As outras turmas estão com os grupos completos, mas como vocês dois são alunos avançados e muito inteligentes, ficarão com uma dupla do V8 que ficou sem o grupo completo também! Vocês terão as aulas de sobrevivência e as missões em comum, no nível do V8, claro! – Explicou Siorin piscando para nós. Senti um frio na barriga e olhei de lado para Susano, que estava tentando conter um sorriso.

– Fácil demais! – Respondeu ele a Siorin.

– Ficou louco? Não vai ser nada fácil! Estamos mortos! – Resmunguei baixo o suficiente para que o mestre não ouvisse.

– Todas as nossas palavras geram consequências, se não sabe lidar com as consequências de suas palavras grossas, então aprenda a ser mais gentil! – E pela terceira vez em menos de uma hora, Susano chamou minha atenção, aquilo estava me irritando profundamente, ainda mais pois sabia que ele estava certo!

– Com quem vamos ficar? – Perguntei a Siorin depois de respirar fundo para não ser ignorante com Susano também.

– Com Kuran Salomon e Palloma Heliesen, são os únicos que ficaram sem grupo para os testes e missões! – Quando ele disse os nomes, escutei um zumbido e minha visão ficou embaçada, tive que respirar devagar, pois meu coração queria sair pela boca e se esconder em algum lugar do deserto.

– Você não me parece muito bem! – Disse Susano colocando sua mão em meu rosto. – Ficou muito fria! Conhece esses dois que ficarão na nossa equipe?

– Kuran, morro de medo dele... – falei sem querer.

– Medo? – Ele ergueu uma sobrancelha e começou a rir.

– Droga, por que eu falo demais quando estou perto de você? O que você está fazendo comigo? – Esbravejei alto demais, fazendo alguns alunos olharem discretamente para nós.

– Calma! É por causa de um dos meus poderes de mago! Eles induzem as pessoas a minha volta a serem sinceras! – Disse ele em tom de brincadeira. Enrolei a mão na gola de sua camisa e o puxei para perto de mim.

– Então é bom que não faça mais isso comigo, senão eu arranco sua língua fora! Assim não vai me perguntar mais nada! – Gritei e o empurrei contra a cadeira e saí da sala rapidamente ignorando os olhares fixos em mim, estava tão nervosa que mal via o que estava em minha frente, atravessei o salão no centro das torres e fui em direção às escadas. Acabei trombando em outro aluno quando virava o corredor para descer a escadaria em direção ao pátio, ia cair quando alguém se segurou.

– Devia prestar mais atenção por onde anda! – Disse ele ajeitando-me em pé. O calor que emanava dele era desconfortável e estranho, foi então que vi a quem pertencia aquela voz sedosa e agradável. Era Kuran, meu coração disparou ainda mais quando me soltei de suas mãos de forma abrupta.

– A culpa é sua! – Gritei, não me referia a trombada.

– Por você andar como uma louca destrambelhada pelos corredores e me atropelar? Desculpe-me então! – Desculpou-se sarcasticamente afastando-se para o lado com as mãos erguidas em forma de rendição dando-me passagem. Desci as escadas correndo, atravessando o corredor largo todo enfeitado para a festa de boas-vindas e fui me sentar pátio central embaixo da árvore milenar que ficava no meio dele, encostei-me a ela e fiquei olhando em direção à torre, dali podia ver a janela que estive sentada sob ela, Susano estava sentando tranquilamente como se nada tivesse acontecido. Droga! O que estava acontecendo comigo? Por que estava me sentindo tão mal? Não sabia lidar bem com as pessoas, principalmente com pessoas que podiam me manipular como ele havia feito.

– Se tivesse ficado de boca fechada, sem debochar do mestre, não teria acontecido isso! – Disse Susano sentando-se ao meu lado.

– O que, como? – Olhei incrédula de volta para a janela da torre, ele ainda estava lá, e aqui também.

– Summon, uma magia que eu uso para estar em mais de um lugar ao mesmo tempo! – Ele deu um sorriso travesso.

– Não vou te pedir desculpas, se foi para isso que veio atrás de mim, perdeu seu tempo! – Esbravejei novamente sem medir minha grosseria. Susano respirou fundo e me encarou, logo em seguida segurou meu rosto e tocou sua testa na minha, deixando-me em pânico, nunca ninguém havia chegado tão perto assim, apenas Merian, mas ele não era muito de tocar nas pessoas. Depois de alguns segundos ele se afastou e ficou me encarando por um momento, não sabia o que ele estava fazendo ou planejando fazer, mas antes que eu pudesse perguntar ele me abraçou, um abraço apertado e confortável parecido com os que meu pai me dava antes de eu dormir, meu coração acelerou ainda mais, dando-me vontade de chorar.

– Alguém um dia te feriu indiretamente, de tal forma que você escondeu sua verdadeira personalidade para que ninguém pudesse te alcançar e te machucar, mas não precisa ser uma pessoa hostil para ser respeitada, o medo não é respeito, pessoas temidas uma hora são enfrentadas e derrotadas, pessoas respeitadas são apoiadas e tem amigos para as ajudar quando precisarem. Você prefere ser temida, ou respeitada?

– O que...

– Não precisa falar nada! Nem se desculpar se não quiser! Eu sei que você já se arrependeu pela sua grosseria comigo, mas pense bem como vai agir com as pessoas a partir de agora! Olha o que você arrumou sendo grosseira com o mestre e pense se vale a pena ser sempre assim! – Disse ele me dando um beijo na testa e se levantando.

– Por que se importa? Por que me ajudar e por que foi tão gentil comigo mesmo depois de eu ter feito aquilo com você? – Perguntei, ele sorriu e passou a mão em seus cabelos escuros.

– Tenho três irmãs, duas delas são muito temperamentais e brigam o tempo inteiro e meu pai me ensinou a ser o mais gentil possível com uma mulher, não importa como ela seja comigo!

– Seu pai deve ser uma pessoa maravilhosa! – Falei antes que ele se afastasse muito.

– Ele é! – Disse ele acenando para mim e desaparecendo, deixando uma pequena folha vermelha onde ele esteve, peguei a folha e coloquei dentro do livro de antídotos que carregava comigo, um pequeno lembrete de que não deveria mais agir daquela maneira.


Caminhei lentamente até a entrada do dormitório feminino passando pelas portas grandes de mogno e segui até o quinto e último andar, o corredor estava silencioso, já que todas as alunas estavam nas salas. Entrei em nosso quarto em silêncio, ele estava exatamente como da última vez que o vi, as paredes que originalmente eram de um tom pálido amarelado, haviam sido pintadas de um azul escuro e salpicadas com tinta branca e amarela fluorescentes formando constelações, assim, parecia que era sempre noite ali dentro. Dividia o quarto com mais três alunas: Annie, minha amiga desde o V1, Liilac e Sayuri, duas vampiras que também estudavam na ACV. Elas haviam sido admitidas na academia após passarem por testes rigorosos e provarem que não eram uma ameaça aos outros alunos, já que seus pais haviam sido mortos por vampiros e elas haviam sido transformadas por eles contra a vontade delas, as duas foram escravas deles e só conseguiram se libertar depois de muitos anos, elas nunca contaram a história completa para nós. Say e Liilac foram proibidas de se alimentar dos alunos da ACV sem permissão dos mesmos, o que era quase impossível pois quase ninguém queria doar o sangue a elas, então elas seduziam alguns alunos humanos e tomavam seu sangue, tendo cuidado de não deixarem rastros de seus “feitos”, afinal, se elas saíssem para caçar, seriam caçadas também!

As duas estavam em suas camas dormindo, as janelas estavam fechadas por duas camadas de blackouts e o ar condicionado estava ligado, era o que eu mais gostava de permanecer no mesmo quarto que elas, não sofria com o calor!

– Matando aula logo no primeiro dia, Nike? – Perguntou Sayuri levantando a coberta e me encarando com seus olhos prateados.

– O primeiro dia não é tão importante, Say, só serve para conhecer os novos colegas e descobrir quais deles vão tentar me matar esse ano! – Respondi abrindo minha mala e colocando as peças de roupa no armário. Ouvi seu risinho quando ela perguntou:

– A lista cresceu?

– Tem um Incubo na minha turma que aparentemente não foi muito com a minha cara.

– Incubo? Eles provocam paralisia do sono para atacar! Cuidado com ele! – Ela estava preocupada comigo?

– Vou ficar de olho! – Respondi.

– Fez a minha encomenda? – Perguntou pulando para cima de minha cama num movimento suave, parecendo flutuar pelo quarto.

– Fiz sim! – Respondi com um sorriso satisfeito ao pegar a mala maior com as armas, procurando as peças da lança que havia feito para ela. Peguei as duas partes separadas e a ponteira de prata e comecei a montá-la. – Lança com haste de escamas de dragão e empunhadura em couro, lâmina longa de aço damasco e ponteira de prata com cinco dentes. – Expliquei lhe entregando a arma que ela havia me pedido no final do ano passado. Ela olhou a arma com um sorriso no rosto, testou o peso e me entregou uma pequena sacolinha de veludo com algumas peças de ouro. As armas que trouxe comigo eram todas de encomendas, precisava entregá-las antes do fim de semana.

– Ficou perfeita! – Disse ela passando a mão pela lâmina. – O que é esse símbolo? – Perguntou apontando para as marcas que eu havia deixado na base da lâmina. Pressionei o dedo contra ela deixando uma gota de sangue cair sobre a lâmina, a assinatura acendeu na cor fogo e brilhou. – N.M. e um triskle?

– É minha assinatura! Coloco nas minhas armas, assim identifico quais as que eu fiz! – Respondi.

– Mas não é difícil identificar as armas que você faz, Nike! São as mais bonitas! – Ela estava admirando a lança como se alguém tivesse lhe dado um copo cheio de sangue.

– Não são só bonitas, são quase indestrutíveis também! – Falei com orgulho, havia tido o senhor Taures como mestre ferreiro desde que vim para a ACV, sua loja ficava no começo da cidade do Sol, quando saí da Academia nos primeiros dias de aula, busquei nos comerciantes da cidade por algum que me desse um trabalho para que eu pudesse ajudar meu irmão nas despesas da casa, mas na verdade também tinha segundas intenções ao buscar trabalho por lá, queria entender a rotina do castelo e descobrir suas fraquezas, mas não consegui um trabalho em nenhum estabelecimento próximo ao castelo, apenas na segunda cidade, depois dos muros que cercavam a cidade principal. Rodei por todas as lojas, porém ninguém ali queria dar trabalho à uma criança humana. Porém ao passar pela porta de um ferreiro, notei que era um senhor salamandra de muita idade e que fazia bastante força para manusear o fólio. Entrei na loja e o ajudei, pedi que ele me ensinasse a sua profissão. A princípio ele debochou de mim, falando que uma garota não podia ser uma armeira, mas aceitou depois que eu consegui levantar a marreta sem nenhum esforço e fazer uma dobra do aço que ele havia acabado de aquecer, me tornei sua aprendiz desde então. Vinham pessoas de todo o mundo em busca de armas dele, com o tempo acabei o superando e Taures aproveitou meu excelente trabalho para aposentar seus dias em frente a fornalha, cuidando apenas das finanças e da busca pelos melhores materiais, ele sempre me desafiava a criar armas com materiais mais leves e mais resistentes, a Lança de escamas de dragão que fiz para Sayuri foi muito difícil de trabalhar, quebrei duas marretas tentando moldá-la, fora a temperatura para conseguir amolecer as escamas.

Guardei o dinheiro em meu armário e fiquei pensando em como entregaria as outras armas.

Pouco depois, Annie entrou no quarto também, seu rosto estava corado, mais do que o avermelhado natural e seus olhos brilhavam.

– O que foi? – Perguntei quando ela se encostou na porta fechada e literalmente derreteu até o chão, ficando sentada com um sorriso bobo no rosto.

– Ele estava conversando com Kuran na saída da torre do terceiro castelo, aí eu passei por ele, e ele disse “oi, princesa! ” – Ela deu uma risadinha histérica e mordeu os lábios, a segurei pelo braço para colocá-la em cima da cama, seu pulso estava tão acelerado que ela podia ter um ataque a qualquer momento.

– O que está havendo? – Perguntou Liilac colocando a cabeça para fora de sua toca feita com cortinas e soltando um rosnado medonho. – Sossegue o facho, Annie! Já estou com fome e você desse jeito está infestando o quarto! Se não vai deixar eu te morder é melhor que controle sua pressão! – Rosnou ela cobrindo a cabeça novamente deixando um bolinho de cabelos cinzentos para fora da toca.

– Mas diga logo, quem te chamou de princesa? – Perguntei.

– Susano Ascardian! – Disse ela cobrindo a boca e dando outro gritinho, Sayuri revirou os olhos, guardou a lança e voltou para sua cama também.

– Sem muito escândalo, preciso dormir! – Disse ela sumindo em sua toca também. (Digo toca, pois haviam feito cabaninhas em volta de suas camas para evitar a claridade do dia, mesmo num quarto que já estava um breu)

– Esse Susano, está na mesma turma que eu, ele vai estar no meu grupo junto com Palloma e... seu irmão! – Deixei minha voz sumir.

– Ah, meu deus! – Ela segurou as alças do meu vestido de cerimônia e começou a me sacudir. – Me ajuda a me aproximar dele, por favor!

– De onde o conhece? – Perguntei.

– Ele é filho do Rei de Amantia e da Sacerdotisa das águas! É o mago humano mais poderoso de lá, fora que é lindo igualzinho ao pai! – Disse ela dando outra risadinha.

– Desde quando conhece o rei de lá? – Perguntei semicerrando os olhos.

– Já fui lá com minha família uma vez... – disse ela ficando pálida e desviando o olhar.

– Sempre imaginei que vocês fossem nobres mesmo! – Ela ficou ainda mais sem graça e baixou a cabeça.

– É melhor evitar contar sobre algumas coisas, assim evitamos criar falsos amigos, entende?

– Talvez... – ainda a olhei desconfiada.

– Eu sou apaixonada por ele desde que ele entrou na ACV, não sabia quem ele era até o ver quando fui em Amantia!

– Sinceramente, nunca havia reparado nele antes, ele esteve sempre em outras turmas, se não o teria visto, teria notado alunos tão novos quanto eu em minhas turmas! – Respondi frustrada.

– Ele é lindo, não é?

– Ele é muito legal! – Respondi.

– Sim! Um doce de pessoa, mas nunca consegui falar com ele, eu travo!

– Você é mais velha que ele, Annie!

– Eu sei! Mas não ligo pra isso! – Disse ela rindo. – Quando falar com ele de novo, diz que eu mandei um oi? Ou é melhor dizer que mandei um abraço... – ela ficou na tagarelice sem saber se era para eu falar com ele ou não, acabei cochilando enquanto ela falava. Acordei sentada no chão e deitada sobre meu braço, meus olhos estavam ardendo e Annie estava deitada na minha cama lendo minhas anotações sobre forjas e ligas que fiz durante as férias.

– Você anota tudo isso? Nossa, estou tentando decifrar isso aqui faz um bom tempo e não entendo nada! – Disse ela pegando o caderno nas mãos e virando suas páginas distraidamente.

– São símbolos de alquimia e reagentes, quais os metais mais resistentes, quais são mais flexíveis sem quebrar... muitas anotações ai! – Respondi levantando-me com esforço, minhas pernas estavam formigando por causa da pose que adormeci e minha bunda estava dormente.

– Quando vão começar a fazer as missões? – Perguntou ela encarando-me com seus olhos vermelhos e brilhantes.

– Não sei ainda.

– Nossa, imagino como deve ser legal! Você vai ficar dias fora com o Susano, que inveja! – Revirei os olhos, mas minha pele se arrepiou automaticamente ao lembrar que teria que ficar junto com Kuran também.

– Seu irmão me odeia, não é? Me diga logo que aí posso me preparar para o perigo! – Annie ergueu uma sobrancelha ruiva para mim, ela tinha um sorriso nos cantos dos lábios e apoiou o rosto na mão, olhando-me com a cabeça torta.

– Essa pergunta é séria? É isso mesmo que você acha? – Perguntou ela sorrindo ainda mais.

– Dá para ver de longe, ele me olha como se fosse pôr fogo em mim e dançar em volta da fogueira enquanto eu queimo! – Ouvi a gargalhada de Liilac abafada pela colcha. – Viu isso? Ela concorda comigo! – Choraminguei levantando-me e indo até o banheiro verificar minha aparência no espelho, meu cabelo estava longo demais e não tinha tempo para ir cortá-lo, ele me atrapalhava tanto no trabalho quanto me incomodava por causa do calor.

– Acho que não é bem isso, mas se você acha isso, não sou eu que vou discutir! – Disse ela entrando no banheiro também e amarrando o cabelo num rabo de cavalo apertado.

– Já deve ser hora do almoço! – Falei saindo do quarto com Annie agarrada em mim. Descemos os largos degraus de mármore do dormitório até o longo corredor aberto que cortava o pátio principal, passamos pelos postes entalhados a mão nas pedras que imitavam troncos de árvore. Do lado direito as estufas ao lado do prédio central pareciam mais claras do que o normal, a cobertura havia sido mudada durante as férias. O refeitório estava lotado e barulhento, andei ao lado de Annie e peguei uma bandeja, evitando as comidas terríveis dos salamandras, as únicas que conseguia comer eram as dos elfos, porém eram vegetarianas, nunca ficava totalmente satisfeita. Para minha sorte havia um restaurante perto da loja de Taures, então jantava lá antes de voltar para a ACV.

– Estudar de manhã, trabalhar a tarde e fazer missões ao anoitecer, acho que nunca mais vou dormir! – Respirei fundo.

– As missões serão realizadas nas sextas ao anoitecer e nos fins de semana, as que não são concluídas até a segunda de manhã serão dadas como incompletas e perderemos pontos! – Explicou Susano aparecendo por trás de nós, fazendo Annie surtar silenciosamente, sua pele ficou tão quente que tive que me afastar ficando quase na beirada do banco.

– Hmm, boa tarde! – Disse ela de cabeça baixa.

– Vamos nos sentar juntos? – Perguntou ele andando até uma mesa onde estavam Lupinus, Nelin, Kuran e Palloma. Me senti horrível, perdendo totalmente a fome. – Estamos na mesma equipe, S3, então vai ter que superar isso o quanto antes! – Sussurrou Susano para mim reparando em meu olhar de pânico, nos segurando pelos braços e nos guiando até a mesa. Annie parecia que ia explodir de felicidade a qualquer momento, se eu não tivesse certeza da minha humanidade, ia achar que era híbrida de salamandra de tão vermelha que fiquei ao sentar com eles à mesa.

– Então, Nike! Soube que já arrumou encrenca com alguém! Quem foi? – Perguntou Palloma, ela estava com um sorriso simpático no rosto, era a primeira vez que me sentava junto com mais pessoas. Nelin e Lupinus me olharam também.

– Arrumei encrenca debochando do mestre Siorin... – falei.

– E com um hibrido também! – Disse Susano completando minha desgraça.

– Ei! Mas eu não fiz nada com ele para ele ter raiva de mim, dessa vez juro que sou inocente! – Me defendi.

– Não fez nada que você saiba ou se lembre! Talvez ele te odeie por você existir! – Disse Nelin dando uma gargalhada.

– Quem é o híbrido? – Perguntou Kuran olhando para Susano.

– Kilua, acho que é esse o nome dele! – Respondeu Susano pegando uma torrada de centeio do meu prato. Não sei se nossa amizade já se encontrava no nível de pegar comida um do outro, mas senti vontade de lhe morder a mão, eu estava com fome demais para perder qualquer parte da minha refeição.

– Kilua... – Kuran repetiu o nome baixinho, olhando para o outro lado do refeitório, olhando para mesa que o híbrido estava sentado e franziu o cenho. – Ele agora é da vila dos lobos, soube que foi expulso da vila das brasas e não sei o motivo, é melhor tomarem cuidado com ele. – Falou, senti minha pele se arrepiar e disfarcei ajeitando o cabelo de Annie que havia sentado ao meu lado.

– Não se preocupem, sei lidar com gente assim! – Falei. Susano respirou fundo e Kuran me encarou erguendo uma sobrancelha, como sempre, uma onda de pânico me invadiu ao olhar em seus olhos e acabei desviando o olhar.

– Você é sempre arrogante assim? – Perguntou Nelin dando uma risadinha maldosa.

– Não sou arrogante, apenas me garanto! – Falei comendo o resto de minha salada, já que Susano havia comido toda sua comida e agora beliscava a minha também. Annie parecia que ia surtar a qualquer momento, mas aparentemente só ela e Kuran gostavam da comida estranha dos salamandras.

– Você não pode ganhar de todo mundo! Nem mesmo a sacerdotisa das águas de Amantia conseguiu acabar com a maldição dela sozinha! – Respondeu Nelin.

– Sua mãe era amaldiçoada? – Perguntou Annie a Susano.

– Era sim, toda a família dela desde minha tataravó, na verdade. Mas sem ajuda de meu pai e dos pais deles – disse Susano apontando para Nelin e Lupinus com o queixo. – Ela não teria conseguido acabar com a maldição.

– Pode me contar essa história depois? – Perguntou Annie com cara de gato pidão.

– Claro, quando quiser! – Respondeu ele com um sorriso tão lindo no rosto que até eu fiquei corada.

– Preciso ir trabalhar, Taures me obrigou a tirar férias forçadas nos últimos dez dias das férias da academia. Tinha mais de vinte encomendas, deve ter acumulado tudo! – Reclamei deitando a cabeça no braço.

– Onde você trabalha? – Perguntou Lupinus.

– Na Solaris, sou armeira! – Respondi, ele ergueu as sobrancelhas e riu.

– Essa é nova para mim, uma mulher armeira? – Nelin estava olhando-me surpresa.

– São as armas mais fortes e mais bonitas de Ciartes! – Disse Annie apertando minha bochecha. – Todos querem uma arma feita por ela!

– Mas eles não sabem que sou eu que faço aquelas armas, Annie, todos pensam que é o senhor Taures, porém ele não tem mais força para fabricá-las, então ele cuida apenas das finanças e de conseguir os materiais para mim.

– Soube que ele se mudou para a cidade central, agora a loja dele fica mais próxima ao castelo do sol. – disse Kuran depois de um tempo em silêncio olhando para a mesa de Kilua. Não sabia sobre a mudança de lugar na loja, mas isso já me ajudava bastante, estando dentro da segunda muralha, ficaria mais fácil conhecer a rotina do castelo e de seus moradores, poderia estudar o príncipe Ericko e descobrir um modo de me vingar pela morte de meus pais. Susano estava olhando para mim de modo estranho e moveu a cabeça para os lados, novamente parecia estar vendo meus pensamentos.

– Preciso ir, tenho que ir para a loja mais cedo hoje e adiantar meu trabalho! – Falei me levantando e acenando para eles.

– Até mais! – Disseram quando me afastei. Sentia-me estranha, diferente esse ano, como se tudo fosse mudar, só não sabia se isso seria bom ou ruim.


Fui até meu quarto, peguei meu conjunto de adagas de arremesso e os prendi na perna, debaixo do vestido cinza de cerimônia. Sabia que ia me arrepender de sair com ele, o calor já estava começando a me incomodar, mas trocaria de roupa quando chegasse à loja para trabalhar. Antes de ir até a plataforma dos dirigíveis, fui até o prédio principal pegar minha carta para entrar na academia depois do horário, saia às oito da noite da Solaris e chegaria na academia pouco depois das dez, sem permissão não poderia entrar pelos portões depois do horário que eles eram fechados.

Subi as escadas até o quarto andar onde ficava a sala dos professores e a direção, bati na porta e esperei que Nyona chamasse.

– Entre! – Disse uma voz dentro da sala. Siorin estava conversando com Nyona quando entrei, senti um calafrio e uma pontada no estômago ao ver seu olhar frio para mim. A sala estava com nova decoração, a janela da frente que ficava para o pátio central agora tinha longas cortinas de veludo verde musgo em contraste com a madeira brilhosa e polida que contornava a janela, o piso da sala também havia sido trocado, antes era de pedra escura e agora eram tabuões de madeira encerada que pareciam espelhos. Só os móveis ainda eram os mesmos, a mesa de tampo de cristal azulado e pés trançados de galhos de tamariana amarela. Nyona estava sentada em uma poltrona confortável atrás da mesa e tinha um ar tranquilo e uma expressão serena.

– Nikella! Veio buscar sua permissão, não é? – Perguntou.

– Sim senhora! – Respondi. Ela se levantou e foi até uma pequena prateleira com pastas azuis em papel de veludo, mas ao invés de pegar uma das pastas da prateleira mais alta, tirou uma caixinha do mesmo material na prateleira de cima. Ela tirou um cordão de couro com um pingente com o emblema da ACV, duas espadas dentro de uma espiral de metal.

– Mostre esse pingente aos guardas quando chegar, é mais difícil perder um colar do que uma folha de permissão! – Disse ela sorrindo para mim, agradeci com um gesto e o coloquei, saindo da sala em seguida. Quando estava virando o corredor para descer as escadas em espiral, Siorin segurou meu braço, dando-me um susto.

– Ah! Mestre... – devia me desculpar pela grosseria para não ter mais problemas com ele. – Me desculpe por hoje, eu...

– Assim que você chegar do trabalho hoje, vá até o subsolo do prédio central onde os treinamentos de armas acontecem! – Disse ele soltando meu braço e descendo as escadas.

– Sim senhor... – respondi dando um suspiro irritado. Sabia que uma hora ou outra teria que lidar com o que fiz, infelizmente seria antes que pudesse me preparar para isso.


Saí pelo portão leste em direção à plataforma de embarque, o largo caminho cercado por árvores até a plataforma estava fresco e corria uma brisa suave por ali, o clima estava agradável demais, como se estivesse tentando me animar. Embarquei no dirigível menor que saía às treze horas em ponto, as aulas da manhã começavam às seis, então se eu chegasse às dez da noite e o professor não passasse uma hora brigando comigo no salão de treino, daria tempo de chegar e dormir bastante para compensar a noite passada.


Cheguei na cidade do Sol depois de um longo voo. Estava tão acostumada com o trajeto normal até a loja que havia esquecido que Taures havia mudado de lugar. Entrei pelos primeiros portões da cidade e corri até o outro lado, onde ficava a segunda muralha, os guardas bloquearam minha passagem assim que me aproximei.

– Auto aí, senhorita! Onde vai? – Perguntou um deles, bloqueando a passagem com a lança.

– Até a Solaris. – Respondi.

– Mostre sua permissão para entrar na segunda muralha! – Disse ele com tom de deboche.

– Hum, eu não tenho uma, o mestre Taures não me deu, pois mudou a loja de lugar durante minhas férias! – Expliquei.

– Vá embora antes que eu te espante daqui menina! – Disse ele sacudindo a lança para o outro lado.

– Eu preciso ir trabalhar! – Falei tentando manter a calma.

– Sem uma permissão ou um selo, ninguém entra na cidade principal! Ordens do capitão da guarda real! – Disse ele fazendo um gesto obsceno para que eu me afastasse.

– Olha aqui...

– JÁ DISSE PARA SAIR DAQUI! – Gritou soltando a lança e colocando a mão sobre a espada em sua cintura.

– Aqui está a permissão dela! – Disse um salamandra se aproximando do guarda e lhe entregando um papel manchado de marcas de carvão. Era o filho mais velho de Taures, Ariel.

O guarda olhou de má vontade para o papel, depois para mim.

– Confirme seu nome!

– Nikella Modjim! – Falei quase bufando.

– Pode entrar! – Disse ele liberando o caminho de má vontade, ainda com os olhos semicerrados fixos em mim. Depois de nos afastarmos do portão resolvi agradecer.

– Obrigada! – Falei.

– Sem problemas! Vou só te acompanhar até a loja e já vou partir novamente! – Ariel era parecido com seu pai, era grande e corpulento, tinha pouco cabelo e as mãos grossas e com cicatrizes devido ao tempo domesticando dragões, profissão anterior à atual, que era comerciante de metais entre os mundos. Passamos pela avenida principal, a diferença ao passar dos portões era muito menor do que achei que fosse, pensei que ao passar para o lado da muralha que o castelo estava, as lojas seriam muito mais luxuosas e decoradas, mostrando a riqueza do lugar, mas elas eram exatamente iguais as primeiras, apenas com mais produtos para salamandras do que para as outras raças. As lojas de roupas eram bem decoradas e tinham uma maior variedade de cores em relação as outras de fora dessa cidade. Desviei o olhar das lojas e olhei por cima dos altos muros, deviam ter pelo menos vinte metros de altura e mesmo assim podia ver a árvore do fogo dali.


Avistei a nova loja do senhor Taures na esquina da praça central e muito próxima à entrada do castelo de fogo, a placa com um sol dourado e brilhante atravessado por uma espada podia ser vista de longe. A movimentação dos guardas aqui dentro era bem menor do que eu esperava.

– Nike, meu pai não tem se sentido bem ultimamente, então Elister vai ficar responsável pelas entregas dos materiais a partir de agora! Semana passada, pouco depois da mudança ele passou muito mal!

– Mas ele está melhor? – Perguntei.

– Está sim, mas ele é um salamandra muito velho e já não está mais em condições de fazer esforço! Se puder, agradeceria se ensinasse a Elister a fabricar armas, assim quando você não puder vir trabalhar, meu pai pode evitar o trabalho! – Ele estava pedindo para que eu ensinasse seu irmão mais novo a forjar armas, mas Elister era totalmente diferente dos dois, além de ter menos idade que eu, era magro e parecia ser fraco, também não parecia ter nenhum interesse na arte de seu pai, aceitei mesmo assim.

– Muito obrigado! O seu trabalho é o melhor, agradeço também por estar o ajudando tanto! Sei que é difícil estudar e trabalhar com isso, eu mesmo preferi desistir desse serviço pesado! – Disse ele parando na porta e se virando para ir embora. – Ah! Já ia me esquecendo! – Disse ele voltando sua atenção para um embrulho de pano que carregava. –Isso veio de Gither, do continente norte de Vegahn. – Ele desenrolou o pano e me mostrou algo que parecia ser uma grande estalactite de vidro amarelado maciço.

– O que é isso? – Perguntei.

– É vitrino, dizem ser tão duro quanto escama de dragão depois de aquecido e moldado! Mas custa muito caro, eles me deram essa pequena quantidade em troca de um dragão de cauda vermelha que eu tinha.

– Quer que eu faça algo para o senhor com ele? – Perguntei.

– É para você! Um presente de aniversário adiantado. – Ele se virou e acenou enquanto caminhava bamboleando até o portal principal. Entrei na loja, como de costume o senhor Taures estava sentando em uma cadeira de balanço atrás do balcão e cochilava com Gula no colo, seu gato feioso de estimação. Ele havia modificado o estilo da decoração na loja, agora as armas que antes estavam em suportes rústicos de madeira penduradas de qualquer jeito nas paredes, estavam em suportes individuais sobre uma cobertura de veludo que cobria as paredes, dando um ar pesado e ainda mais quente ao local, mas agora dava para ver perfeitamente os detalhes das armas e chamava muito mais atenção. No balcão de pedra e vidro também haviam armas bem arrumadas, não imaginava quem pudesse ter feito uma decoração tão caprichada usando as próprias armas a venda.

– Gostou? – Perguntou Elister cruzando os braços e admirando a loja, ele apareceu de repente, vindo dos fundos da loja.

– Ficou muito bom!

– Arrumei tudo enquanto meu pai dormia essa noite! Ele é muito desorganizado, do outro jeito não parecia uma loja digna da cidade do Sol! – Disse ele rindo e tirando o gato de cima do colo de Taures.

– Você fez isso sozinho? – Perguntei espantada.

– Fiz sim! Se eu deixasse por conta dele, ia ficar como estava antes, assim chama mais atenção.

– Concordo.

– Bom, detesto te incomodar, mas enquanto você esteve fora, além das vinte armas que você tinha de encomenda, chegaram mais dezessete novas! – Disse ele pegando um bolo de folhas e me entregando. – Fora alguns reparos em armas suas.

– Como assim, reparos em armas minhas? – Perguntei olhando-o séria.

– Não sei, venha ver! – Ele passou silenciosamente pelo balcão o segui sem fazer barulho também, fomos até a parte de trás da loja onde ficava a fornalha e os longos balcões de pedra, meus instrumentos e local de trabalho, olhei com ternura a fornalha apagada e quase fui em sua direção para abraçá-la. Em cima do balcão principal haviam três espadas partidas, fui direto naquelas espadas horrorosas e torci o bico para elas. De longe dava para ver que não eram minhas, o aço usado era de baixa qualidade e o acabamento extremamente pobre comparado com as belas armas que eu produzia.

– Não fiz essas armas, Eli! – Falei segurando uma delas na mão.

– O homem disse que comprou com meu pai tem menos de um mês, ele disse que viria hoje conversar sobre elas!

– Ótimo, vou fazer ele engolir esse metal vagabundo se insistir que eu fiz essas porcarias! Isso é quase uma ofensa! – Esbravejei atirando-as de volta ao balcão, Elister começou a rir.

– Acho que você esquenta mais do que essas fornalhas, Nike! Fique calma! – Respirei fundo e revirei os olhos, lembrando-me das broncas de Susano de manhã.

– Bom, melhor adiantar os outros serviços! – Falei pegando as encomendas mais antigas primeiro. Com um pouco de esforço conseguiria colocar todas em dia até o fim de semana. Peguei a barra do material parecido com um vidro que Ariel havia me dado de presente e o guardei em meu armário, meu uniforme estava lá também, troquei de roupa guardando com cuidado o vestido no armário ao lado do vitrino e vestindo a calça e avental de couro de dragão.


Mal havia começado a trabalhar numa lança quando alguém chegou fazendo barulho na frente da loja, revirei os olhos e fui até lá, na certa era o dono das espadas ruins que havia chegado para conversar.

Ao passar pelo arco que dava para trás do balcão, notei um homem alto e gordo que estava reclamando tão alto com Taures que me irritou, como alguém podia falar assim com um idoso? Peguei o machado que estava ao lado da porta e cheguei ao lado de Taures batendo com a haste do machado no balcão de pedra, o som produzido pelo impacto fez o homem pular como um gato assustado e abaixar os olhos em minha direção.

– Boa tarde! – O homem me era estranhamente familiar, ele quase tinha que se curvar para não bater nos arcos pendurados no teto da loja.

– Nikella? – Ele me olhou espantado, analisando-me de cima a baixo.

– Não conheço o senhor! – Respondi grosseiramente.

– Sou Messair! O líder dos metamorfos e do conselho dos hostes! Era grande amigo de seu pai! – Disse ele mostrando os dentes amarelados para mim.

– Ele nunca falou do senhor!

– Estava com ele no dia que foi morto... – ele tirou o cabelo da frente do rosto, mostrando uma cicatriz de queimadura que ia de seu queixo até seu ombro. – Sinto muito sua perda, mas é ótimo saber que está bem! É quase uma adulta agora e vejo que está na ACV! Em que nível está? – Perguntou olhando para o pingente de permissão em meu pescoço.

– no V7. – Respondi amarrando a cara ainda mais, sua aparência não me era estanha, mas me sentia totalmente desconfortável em sua presença. – O senhor não veio até aqui para conversar com os assuntos pessoais, não é?

– Ah, desculpe-me, vim saber sobre as espadas que trouxe para concertar!

– Aquelas porcarias que você chama de espadas não foram feitas por nós! – Respondi rudemente.

– Foram sim! Pedi meu filho que comprasse as três melhores espadas de Solaris! – Esbravejou ele franzindo o cenho. Sem dizer mais nada, dei as costas a ele e fui até os fundos, peguei a espada que ele havia trazido para concertar e voltei até o balcão de atendimento, subi numa pequena escadinha e peguei uma das minhas que estava pendurada no paredão de veludo e que estava à venda.

– Essa é minha, minha assinatura, meu brasão! Aço de qualidade, com punho trabalhado em magnita, detalhes impecáveis e material extremamente resistente. – Mostrei a espada perfeita que eu havia feito. – Esse é o lixo que o senhor trouxe! Sem assinatura, aço misturado com muita liga, punho simples de metal e madeira! Nota a diferença? – Perguntei, ele não tirava os olhos da espada que eu havia feito. Peguei a espada ruim que ele havia trazido e a apoiei conta a pedra do balcão, então segurei a que eu havia feito e a girei com a mão esquerda e acertando a espada ruim com força suficiente para estilhaçar o metal e rachar a pedra do balcão, lhe mostrei a lâmina da espada, nem havia amassado o metal com o golpe. Messair estava com a boca aberta e olhos tão esbugalhados que poderiam acabar caindo do rosto. Taures me encarava com orgulho e fez um leve aceno, aprovando minha atitude.

– Seu filho deve ter comprado em outro lugar, senhor, e usado a diferença do valor em outra coisa! – Falei.

– Eu... sinto muito então! – Ele virou o rosto constrangido e murmurou umas desculpas tão baixo que achei que ele estava apenas resmungando. – Quero levar essa! – Ele pegou a espada da minha mão e a manejou desastradamente, olhei-o torto, aquele homem mal sabia segurar uma espada, então para que precisava de uma? Taures recebeu o alto valor por ela com um sorriso no rosto.

– Pegue a bainha dela, Nike! – Pediu. Quando voltei com a bainha o homem estava do lado de fora da loja esperando, sai pela porta e lhe entreguei a bainha. Ele agradeceu amarrando-a na cintura e guardando a espada.

– Quando for para casa no fim de semana, nos procure na reunião dos conselhos no sábado as vinte horas! Temos assuntos a tratar com você! – Disse ele sério para mim.

– Que assuntos?

– Assuntos que te interessam muito! – Ele apontou com o queixo para o castelo e se virou em direção a saída. Olhei para lá no momento em que o príncipe Ericko chegava com a rainha e entravam no castelo, meu sangue ferveu nas veias, por um momento pensei em fazer uma bobagem, mas sabia que se o fizesse agora, com tantos guardas e testemunhas, não teria como escapar com vida para saborear minha vingança.


3


Sussurros num pesadelo.

 

Havia conseguido adiantar boa parte do trabalho durante a tarde, a loja em nova localidade havia dificultado que os clientes nos encontrassem, então até que todos tivessem noção da nova localização eu teria alguns dias de vantagem para terminar meu trabalho. Agora não trabalharia às sextas, já que as missões seriam feitas a partir desse dia, para compensar teria que me esforçar mais com as forjas.

Ao “anoitecer” depois que Taures fechou a loja, fui até a plataforma do lado de fora da cidade a tempo de pegar o último dirigível até a ACV. Se tivesse um cavalo, iria todos os dias até lá a galope, Gálatas ainda estava descendo o horizonte quando eu saía da loja, então para mim não havia perigo atravessar o deserto nesse horário.

Era pouco mais de nove da noite quando cheguei no vale e caminhei pela estrada das árvores até a ACV, seguida pela mestra Misty que havia se atrasado e perdeu o primeiro dia, queria falar com ela, mas seus olhos violeta estavam brilhando, ela era híbrida de Silfa e Elfa, então fiquei com receio de brincar com ela por seu atraso e levar um fora ou algo pior, ter um braço arrancado a mordidas, por exemplo. Os guardas nas muralhas estavam com armas em punho e apontaram uma luz ofuscante para nós que estávamos protegidas pelas sombras da floresta, levantei o pingente, Misty também mostrou sua permissão, só então liberaram a passagem para nós. A festa da cerimônia de abertura estava acontecendo no pátio central, a música tocando me fez querer ir direto para meu quarto dormir, mas lembrei de Siorin havia mandado que eu fosse até a quadra de treino. Dei a volta no prédio principal e abri a porta que levava a escadaria do subsolo. Desci as escadas planejando um bom pedido de desculpas, caso funcionasse, teria uma coisa a menos para me preocupar.

– Mestre Siorin? – Chamei entrando no salão e notando que estava vazio. As arquibancadas em volta da quadra haviam sido pintadas, cada uma das fileiras com as cores dos níveis da academia, fazendo a quadra parecer estar no centro de um arco-íris, um pouco colorido demais para uma área de treinos. No canto da quadra bem ao meu lado havia uma mesa com várias armas, desde espadas comuns a foices curtas com correntes e algumas lanças.

– Você veio! – Siorin parecia surpreso, na certa não esperava que eu viesse, ele havia saído de dentro da sala de equipamentos com uma espada na mão. Siorin estava sem camisa e com o cabelo amarrado para trás, deixando as vistas as tatuagens azuladas de sua pele a mostra. Não sei exatamente o que eu estava fazendo na ACV, afinal, tinha medo de quase todas as criaturas que aprendíamos a combater, mas sereianos me assustavam até mais que os salamandras, o motivo? Salamandras não comiam humanos, os sereianos sim, e pela forma que ele carregava a espada ao seu lado, me perguntei se eu não seria a próxima refeição!

– O senhor pediu para que eu viesse... queria apenas me desculpar! – Falei me enrolando nas palavras e dando um passo para trás. Ele continuou andando na minha direção fazendo-me recuar até que eu esbarrei na mesa com as armas.

– Pegue qualquer uma! – Disse ele apontando com a espada para a mesa e se afastando um pouco de mim. Olhei para a mesa e peguei a primeira espada que vi. Antes que pudesse perguntar para que ele queria que eu usasse aquela espada, Siorin me atacou, defendi fazendo uma barreira com a espada que quebrou assim que ele me acertou, Siorin parou sua espada a milímetros de meu rosto.

– Pegue outra! – Disse ele virando-se de costas e se afastando mais.

– Mestre...

– Apenas pegue uma arma! – Disse mais alto, então obedeci e peguei uma lança, ele novamente começou a me atacar, ele era muito rápido e seus ataques muito pesados, mesmo sendo uma aluna avançada ainda assim não chegava a seus pés. Novamente sua espada partiu a lança que eu estava usando, mas ao invés de mandar que eu pegasse outra arma ele girou o pé em minha direção, joguei os pedaços da lança no chão e me defendi cruzando os braços e bloqueando seu ataque. Siorin torceu meu braço e segurou meu cabelo dando-me uma rasteira. Não consegui evitar de cair no chão respirando com dificuldade e tossindo, fiquei deitada ali tentando respirar normalmente quando ele se aproximou e ajoelhou-se ao meu lado, tirando o cabelo do meu rosto.

– Nós só desafiamos aqueles que podemos vencer!

– Mestre...

– O que está fazendo no V7 se não consegue passar cinco minutos se defendendo de mim? – Esbravejou ele acertando o chão ao meu lado com a palma aberta. Ele estendeu aquela mão para mim, então pegou minha mão e me levantou num puxão.

– Já pedi desculpas ao senhor! – Falei bufando engolindo as lágrimas.

– Não quero que peça desculpas! Quero que seja capaz de me derrotar! – Disse ele mais calmamente pegando sua espada e me entregando. – O que vê nessa lâmina? – Perguntou ele olhando para a espada em minha mão. Olhei atentamente a lâmina e notei a minha assinatura com meu brasão ali.

– É uma das espadas que fiz. – Respondi.

– Você tem talento não só para forjá-las, mas para manuseá-las também, só não sabe usar essa força, ainda! – Ele pegou a espada e a colocou na bandoleira.

– Não sei onde o senhor quer chegar.

– Eu vou te treinar, todos os dias quando você voltar de seu trabalho, até que fique tão boa quanto eu ou melhor!

– Por que? – Perguntei confusa.

– Essa espada que você fez, salvou minha vida e a vida de um amigo meu a menos de um mês. – Disse ele passando os dedos sobre a espada.

– É meu trabalho fazê-las bem-feitas! Não foi nada demais!

– Ninguém nos doze mundos consegue se proteger do poder de congelamento dos Malvarmos, Nikella! Essa espada que você fez projeta uma barreira! – Ele tirou a espada e a colocou no chão. Ao nosso redor apareceu uma espécie de barreira amarelada.

– Não sei como isso é possível! Mas eu não fiz isso! – Falei.

– No mundo de onde vim, tem um elfo que fabrica armas capazes de impedir que seu portador mágico sofra efeitos da prata...

– Só porque fiz essa arma e ela o salvou o senhor quer me ajudar a treinar?

– Isso não é o suficiente para que eu te ajude? – Perguntou, como não respondi ele continuou: – Alguém importante pediu que eu a ajudasse, eu já queria fazer isso, então não me custa nada! – Explicou por fim tirando a espada do chão e me dando uma tapinha nas costas. – A não ser que você não queira ajuda!

– Não! Eu quero sim! – Falei. – Mas e as turmas da noite? Elas não treinam aqui?

– Só depois que o sol se põe.

– Mestre, é verdade que o senhor participou de uma batalha em Amantia antes de vir para cá? – Perguntei notando que havia uma longa cicatriz em suas costas.

– Sim.

– Poderia me contar? – Ele suspirou mas começou a contar sobre a batalha em Amantia.

– Há quase dezoito anos atrás um mago cruel chamado Fairin estava tentando tomar o controle de Amantia com o poder do sangue das Arbarus, uma família de mulheres amaldiçoadas com um sangue poderoso capaz de conferir um grande aumento de poderes mágicos e até mesmo a imortalidade a quem o consumisse. Depois que Fairin enganou e tomou o sangue de três dessas mulheres, ele conseguiu muito poder e o controle de alguns dos maiores exércitos de lá, alguns exércitos de outros mundos também e marchou contra os exércitos que a sacerdotisa das águas conseguiu para defender Amantia, eu lutei ao lado deles com o exército dos abissais do mar das tormentas. Mas a sacerdotisa desapareceu no meio da batalha, levando o mago com ela para outro lugar. Conseguimos fazer com que eles recuassem já que o líder deles havia desaparecido, depois soubemos que a sacerdotisa havia sacrificado a própria vida para selar aquele mago e acabar com a maldição. O sol Apollis que ilumina os céus dos mundos é esse mago. A sacerdotisa voltou depois de um tempo, ninguém sabe como ela retornou dos mortos, mas ela e o rei estão hoje no poder de Amantia... – Escutei a história até o final, sabia que ele havia perdido os pais nessa batalha por fofocas de outros alunos, mas ele não falou nada sobre isso, talvez fosse por isso que ele preferiu sair de Amantia para vir para cá.

– Então Susano é o filho dessa sacerdotisa? – Perguntei.

– É sim!

– Por isso é tão poderoso... – falei baixinho.

– Você deveria ir dormir! Já escureceu lá fora e a festa da cerimônia está quase no fim! – Disse ele levantando-se do chão e indo em direção à sala de equipamentos.

– Obrigada! Já tinha ouvido falar, mas ninguém me contou sobre essa guerra. Então... até amanhã? – Perguntei.

– Preciso que você faça algo antes, você precisa escolher uma arma com seu perfil, você não lida tão bem com a espada! – Mordi os lábios olhando em dúvida as armas da mesa, sabia usar todas elas, porém nenhuma realmente era cem por cento da forma que eu queria. – Como armeira, talvez possa fazer algo que consiga usar com total precisão!

– Vou pensar em algo! – Falei pegando minha mochila para sair.

– Boa noite! – Disse ele acenando para mim e entrando na sala no final da quadra novamente.


Subi as escadas correndo em direção a saída, estava cansada demais e torcia para que Annie não quisesse passar a maior parte da noite tagarelando sobre a cerimônia de abertura, ainda mais se ela tivesse conseguido que Susano lhe fizesse companhia durante a festa.

O jardim estava numa escuridão total, então já havia passado das onze da noite quando saí da quadra, não entrava luz dos sóis lá embaixo, então não tinha como saber se já havia escurecido ou não. Eram poucos metros até a entrada do salão e até o corredor aberto que para ir até os dormitórios, então fui direto para a entrada do dormitório feminino. Pouco antes de sair do gramado e alcançar o corredor alguém me puxou para o lado do muro.

– O que é isso? – Perguntei puxando o braço e me virando para ver quem era, quem quer que fosse ia levar uns tapas! Ao olhar para ele, meu sangue congelou nas veias.

– Kilua? O que você quer? Ficou louco?

– Escutei vocês falando de mim hoje no almoço! – Disse ele apertando meu braço com força.

– O que você quer? – Havia deixado a cinta com as adagas de arremesso na loja.

– Você não se lembra de mim, não é?

– Não lembro, deveria? – Retruquei com um sorriso debochado no rosto.

– Estava no V6 quando você me venceu em combate para passar do V4 para o V5. – Não fazia ideia que era ele o garoto que eu havia derrotado na prova para passar à próxima fase.

– E daí? Eu precisava te vencer para passar! Foi apenas o que eu fiz!

– Eu fui expulso da minha vila por sua culpa! Já tinha dificuldades por ser híbrido de uma besta, ainda perdi para uma criança magrela! O líder da vila das brasas não me deixou voltar para casa depois disso!

– Sinto muito, mas eu não tenho culpa disso! – Respondi tentando soltar meu braço de seu aperto, ele estava com os olhos negros fixos nos meus.

– Mas você vai pagar! – Disse ele transformando as mãos em sombras negras e as colocando em meus ouvidos. Tentei lutar e me soltar, mas percebi que meu corpo não obedecia mais, estava completamente paralisada. Tentei gritar, mas não conseguia nem ao menos falar, nem sequer um sopro de voz.

– É uma paralisia chata, ela te deixa consciente e te faz viver pesadelos enquanto você ainda está acordada, mas eu vou ser seu pesadelo hoje! – ele deu um sorriso e sentou sobre minha barriga e puxou uma longa adaga colocando-a em meu pescoço. – Talvez eu marque esse seu lindo rostinho antes! – Merda! Merda! Merda! Eu preciso de ajuda! Queria gritar, xingá-lo e quebrar todos os seus dentes, mas não viveria o suficiente para fazer isso. Quando senti a lâmina fria tocar meu pescoço, fechei os olhos em pânico e quase que no mesmo instante um peso foi tirado de cima de mim, escutei um estalo, como som de algo se partindo. Abri os olhos e os virei para o lado, Kilua estava caído a alguns metros de mim cuspindo sangue e tentando respirar.

– Que coisa feia! Usando paralisia para atacar uma garota? Não consegue lutar sem isso, não é? Fracote! Nem acredito que alguém como você tenha alcançado o V7! – A voz que estava falando aquilo me assustou tanto quanto Kilua havia me assustado. – Eu me lembro de hoje mais cedo, ter te falado para ficar longe desse cara! E me lembro de você falando que sabia lidar com gente assim! – Kuran se debruçou sobre mim e pressionou um dedo no meio de minha testa, senti algo desconfortável, mas a paralisia sumiu, ele estendeu a mão para que eu levantasse, porém estava com as pernas moles, então caí de joelhos no chão ainda tremendo.

– Eu vou matar ele! – Falei bufando e pegando a adaga que ele havia deixado cair. Kuran segurou meu braço e deu um tapa na minha mão derrubando-a e me olhando com seus olhos ainda mais vermelhos que o normal.

– Se matar um aluno, vai ser expulsa da academia, mesmo que tenha sido por legítima defesa! - Kuran chutou a arma para longe de mim no exato momento que Siorin apareceu na entrada da quadra.

– O que está havendo aqui? – Perguntou ele se aproximando, olhando de mim para Kuran e de Kuran para Kilua.

– Ele tentou matar uma aluna. – Disse Kuran. – Havia deixado minha irmã e minha amiga na entrada do dormitório e consegui chegar a tempo de impedir.

– É verdade? – Perguntou Siorin me encarando.

– S-sim senhor! – Respondi abaixando a cabeça envergonhada, Siorin agora ia ter um motivo a mais para me fazer treinar a noite.

– Vou levá-lo até Nyona e me encarregar da expulsão dele imediatamente! Leve ela até a enfermaria, Kuran. – Siorin pegou Kilua pelo braço e entrou no prédio principal com o jovem cambaleando ao lado dele.

– Não preciso ir até a enfermaria! – Protestei, mas Kuran me pegou no colo e foi caminhando em direção ao dormitório feminino.

– Me põe no chão! – Pedi tentando sair de seus braços.

– Você está tremendo igual bambu ao vento! – Disse ele de cara amarrada. – O que estava fazendo aqui fora a essa hora, afinal? Sei que não estava na festa, então onde estava? – Perguntou ele.

– Não te interessa! – Respondi, estava apavorada, nervosa e envergonhada demais para tentar ser agradável agora.

– Tudo bem então. – Ele ficou em silêncio e foi atravessando a porta de entrada do dormitório feminino.

– Não pode entrar ai! E a proteção? – Perguntei.

– Eu entro onde eu quiser! Não é um feitiço simples como esse que vai me impedir!

– Você é louco, só pode! – Agora meus braços e pernas estavam tremendo em proporções iguais e meu estômago começou a embrulhar.

Ao passar alguns metros da porta, seu corpo brilhou e mudou de forma, ele havia sido transformado em uma mulher.

– O que? – Quase gritei.

– Não sabia? Se você conseguir passar pelo bloqueio, você muda de aparência! – Ele riu, subindo as escadas rapidamente. – Como se isso realmente mudasse alguma coisa, acho que pode até tornar algumas coisas mais interessantes...

– O quê?

– Nada! – Ele (ela) revirou os olhos e mordeu os lábios.

Kuran abriu a porta de nosso quarto e me colocou sentada na cama, Annie estava sentada em sua cama e saltou para cima de mim como louca.

– Nike! Ah, você está bem? – Perguntou ela olhando-me da cabeça aos pés. – O que houve? Fiquei preocupada! Normalmente você volta do trabalho e vem direto dormir!

– Nada a dizer? – Perguntou Kuran em forma de mulher parado na porta do quarto, naquela forma, ele parecia com uma versão loira de Annie.

– Hum, obrigada... – falei baixinho com o rosto corado e me virando para Annie.

– Nossa, achei que ia morrer sem escutar você sendo educada com alguém! – Disse ele (ela) dando uma gargalhada divertida.

– Ah! Cale a boca! – Gritei.

– Estou indo!

– Não seja por falta de adeus! – Falei franzindo o cenho e me escondendo no colo de Annie. Vi um sorriso quando ele se virou para sair.

– Está com raiva de mim por que eu seria uma mulher mais bonita que você! – Disse ele no corredor, segurei um palavrão pois ele já havia saído do alcance da minha voz e por ter acabado de salvar minha vida.

– O que aconteceu afinal? – Ela perguntou ainda olhando surpresa para a porta.

– Lembra do carinha do refeitório? Não me lembrava que tinha acabado com ele na mudança do V4 para o V5, ele meio que guardou rancor de mim... me paralisou e estava prestes a rasgar minha garganta quando seu irmão – dei um suspiro frustrado – me salvou. – O sorriso de Annie foi de orelha a orelha, não era um sorriso alegre, ela parecia vitoriosa.

– Eu disse que ele não te odiava!

– Talvez só quisesse um motivo para poder implicar comigo depois, ou foi um pedido de desculpas por aquela vez!

– Nossa, você não esquece nada, não é? – Annie tirou os cabelos da frente do rosto e encolheu os ombros.

– Não mesmo!

– Amizade requer um pouco de amnésia às vezes, existem coisas que precisam ser esquecidas para podermos seguir em frente! – Tentou ela encarando-me com aqueles grandes olhos vermelhos.

– Que seja... – fui até o banheiro para tomar um banho, queria dormir, estava exausta e tinha que descobrir uma arma que captasse a minha personalidade, que eu conseguisse usar em qualquer situação. Não era muito fã das espadas, eram pessoais demais, as lanças eram quase perfeitas, mas suas lâminas não podiam ser tão grandes, senão eu perdia o equilibro facilmente, não seria uma boa arqueira já que preferia combate corpo a corpo.

Saí do chuveiro mais irritada do que entrei por não conseguir pensar em nada que pudesse me ajudar a escolher uma arma. Quando estava saindo do banheiro, minha trança ficou presa na maçaneta da porta!

– Ah, porcaria! Esse cabelo só me atrapalha! – Resmunguei lembrando que Siorin também havia me derrubado puxando meu cabelo. Depois de conseguir me soltar da porta, deitei em minha cama, esticando-me e aproveitando o toque macio do lençol geladinho de cetim. Por um lado, gostava da ACV, era como estar em casa e rodeada por uma família emprestada, Sayuri, Liilac e Annie eram muito legais comigo, agora tinha Susano, Nelin e Lupinus também. Pela primeira vez, um dos mestres queria me ajudar e não estava tentando a todo custo me ferrar para que eu não conseguisse passar para o próximo nível. Talvez esse ano poderia ser melhor do que os outros, considerando que eu começasse a contar a partir de amanhã e esquecesse que a menos de uma hora alguém tinha tentando me matar. Annie já estava dormindo toda torta em sua cama, ela estava parecendo um embrulhinho, já que o ar estava ligado e o quarto estava muito frio, eu adorava aquele frio mas sabia que Annie podia acabar incendiando o quarto com seus poderes se não o desligasse, então o fiz e voltei rapidamente para cama antes que o calor voltasse e eu não conseguisse mais dormir.


Percebi que estava dormindo pelo simples fato de tudo ao meu redor estar escuro, haviam grossas nuvens que cobriam o céu. Nunca sonhava com ambientes claros, sempre estava de noite ou nublado em meus sonhos. Estava em um campo com grama vermelha que se estendia até onde a vista podia alcançar, do outro lado havia um penhasco, sentia o cheiro salgado e metálico de água do mar, era estranho eu estar sonhando com o mar, já que só havia o visto uma vez na minha vida quando fui a Agnus com meu pai e Violet, onde passamos por uma praia até chegar a uma vila de sereianos.

Caminhei lentamente até a beira do penhasco, sentia a brisa em meu rosto e os salpicos do mar, havia um cheiro doce no ar também, cheiro que vinha de uma floresta bem atrás de mim. O mar estava muito agitado e se chocava violentamente contra o paredão de pedras do penhasco e parecia que ia destruí-lo a qualquer momento. Ouvi alguém me chamando e virei para olhar quem era, senti um frio na espinha ao ver uma figura alta e encapuzada em minha frente, ela segurava uma foice longa com quase o dobro de seu tamanho, a lâmina curva era negra e parecia estar gravada com as luzes de estrelas, na outra ponta da haste, havia uma ponteira parecida com uma pequena ponta de lança.

– O que quer? – Perguntei me aproximando dela. Sabia que devia me manter afastada, mas era um sonho e não podia me controlar. A figura esticou as mãos para frente, entregando-me sua foice, fiquei relutante mas estiquei as mãos para pegá-la. Então ao meu lado direito apareceram doze espirais brilhantes, tão brilhantes que fizeram meus olhos doerem, dentro de cada espiral tinha uma pessoa adormecida, algumas adultas, outras crianças e algumas pareciam ser bebês que não haviam nascido pois tinham longos cordões que iam em direção ao topo da espiral. Não podia ver seus rostos e também não podia me aproximar. Uma das espirais estava apagada e não tinha ninguém dentro.

A figura então deu um passo para o lado e atrás dela estava o príncipe Ericko, rodeado por uma grande quantidade de salamandras, crianças, adultos e soldados. A foice que a figura havia colocado em minhas mãos havia encolhido e estava pouco maior que eu agora, eu a segurei com as duas mãos e a girei no alto, era fácil de manejá-la e seu peso não me atrapalhava nem um pouco. Andei em direção ao príncipe com um sorriso no rosto, mesmo que fosse apenas um sonho, poderia ter uma prova de como seria matá-lo. Mas antes que pudesse alcançá-lo a figura segurou meu braço e apontou para trás deles, havia um mar de pessoas, eram tantos que não tinha como contar! No meio da multidão vinham homens armados e estavam destacados do resto, eles estavam vindo para matar o príncipe. A figura encapuzada apontou para os homens e acenou para mim.

– Você quer que eu o defenda? – Berrei frustrada.

– Você tem duas opções... – disse a figura me encarando com seus olhos apagados e seu rosto pálido. – Pode fazer o que quer e aplacar essa raiva que está em seu coração, isso te destruirá! Ou pode buscar a verdade e defender a todos, pois esse é o propósito para o qual você veio desta vez. – Disse ela para mim.

– Não estou entendendo! Ele matou meus pais! – Gritei.

– Está vendo aquele lugar? – Ela apontou para a espiral apagada. – você só estará ali quando tomar o caminho correto, quando suas decisões forem tomadas com razão e não com emoção.

– E quem disse que eu quero estar ali? – A figura então tirou o capuz e pude ver sua verdadeira forma, congelei no lugar que estava.

– Você está aqui com um único propósito, se não o respeitar eu a substituirei! – Era a morte em minha frente, ela tomou a foice de mim, quando a puxou de minha mão, uma fina linha prateada saiu de meu corpo em direção à sua mão esquelética.

– Não! Não! – Comecei a gritar, tinha alguém me sacudindo e chamando meu nome.

– Nike! Por tudo que é mais sagrado, pare de gritar ou eu vou te apagar! – Berrava Liilac me sacudindo violentamente.

– Ah, acho que ela despertou agora! – Annie estava tremendo e estava limpando meu rosto com um pano molhado.

– Me desculpem! Tive um pesadelo... – tentei explicar enquanto me sentava na cama e encostava na parede, parecia que o quarto ia desabar em cima de mim, estava tudo rodando, minha cabeça pulsava tanto que tive que abaixá-la e prendê-la entre meus joelhos para tentar fazer aquele mal-estar passar, mas nada adiantava.

– Ela está em choque, Annie! – Disse Liilac segurando-me por baixo dos ombros e me levando até o banheiro, Liilac abriu o chuveiro e me segurou embaixo da água fria, mantendo sua cabeça encostada na minha até que eu parasse de tremer e de sentir tudo rodando.

– Melhor? – Perguntou ela.

– Sim... – consegui falar.

– Nossa, Nike você está terrível! – disse Sayuri sentando em minha cama e me enrolando em uma toalha quando Liilac me colocou junto dela.

– Quer falar sobre isso? – perguntou Annie enrugando a testa e me encarando preocupada.

– Acho que só quero voltar a dormir.

– Já são cinco e dez! – disse ela apontando o relógio na parede.

– Ah! Droga, eu nem sei se dormi direito. – Resmunguei andando até o armário tentando firmar as pernas e pegando o uniforme.

– Tem certeza de que vai para a aula? – Perguntou Liilac subindo para sua cama e me olhando pelos cantos dos olhos.

– Ficar no quarto não vai me fazer passar para o V8! – Respondi tirando a roupa molhada e colocando a calça jeans cinza e a blusa do uniforme. Amarrei o cabelo num coque e suspirei.

– Vamos descer para tomar café, talvez você fique melhor se colocar algo no estômago! – Annie terminou de se arrumar e agarrou meu braço, como se eu pudesse cair a qualquer momento, virei os olhos mas deixei que ela me levasse, isso evitaria que ficasse perguntando se eu estava me sentindo melhor.

Ao chegar no refeitório que estava lotado, mas silencioso devido a festa de ontem, os alunos dormiram tarde e todos estavam com cara de mortos de sono. Eu nunca participava da festa justamente por isso, eles faziam a festa e no dia seguinte davam aulas de sobrevivência, artes marciais, e batalhas simuladas, uma crueldade sem tamanho! Mas isso forçava nossos limites, o que não te mata, te fortalece. Infelizmente hoje estava com sono, cansada e dolorida e sofreria horrores na sobrevivência, a Mestra Misty, que havia chegado tarde ontem, era quem nos daria essas aulas. Para minha alegria agora haviam comidas humanas na ACV devido ao grande aumento de alunos de nossa raça, fui até o meio do refeitório e servi um prato caprichado e uma grande xicara de café. Annie olhava para mim com um sorriso no rosto enquanto eu comia.

– O que foi? – Perguntei.

– Você faz uma cara tão linda e feliz quando está comendo!

– Eu gosto de comer!

– Nota-se! – Ela riu e tomou seu café, que nada mais era que uma xícara de um chá frio de consistência gelatinosa e alguns pedaços de peixes crus.

– Alguém está com cara de que não dormiu! – Disse Susano se aproximando com Nelin e Lupinus, os irmãos estavam com caras piores que a minha.

– Digo o mesmo deles! – Retruquei.

– Ficamos praticando durante a noite! – Nelin bocejou e apoiou os braços na mesa, deitando a cabeça sobre eles.

– Soube de uma briga do lado de fora ontem, vocês ouviram alguma coisa? – Perguntou Lupinus sentando-se ao meu lado.

– Não sei de nada! – Falei rápido demais.

– Nike? – Merian chegou perto da mesa e colocou a mão em minha cabeça. – Você está bem? Kilua te feriu? – Ele parecia realmente preocupado, mas havia acabado de estragar minha mentira.

– Ah, estou bem! Obrigada... – todos na mesa estavam me olhando agora com olhares cortantes e questionadores. – O que é?

– Nike...

– Tá! Tudo bem! O Kilua tentou me matar ontem por que eu fiz ele ser expulso da vila dele ou algo assim! – Respondi.

– Como assim? – Merian sentou ao meu lado e pegou um pedaço de omelete de meu prato, tive que conter o ímpeto de arrancar seus dedos com a faca de pão.

– Eu não me sinto culpada, só fiz o que tinha que fazer para passar! Ele perdeu por que era mais fraco que eu! – Murmurei.

– O que aconteceu então? – Perguntou Susano.

– Ele tentou me matar, mas... – olhei para Annie, seus olhos estavam brilhando e ela tinha um sorriso travesso no rosto, se eu não dissesse, ela com certeza contaria. – Kuran apareceu e me salvou. – Soltei num suspiro tomando o resto de meu café.

– Você não o derrubou sozinha? – Merian estava com um sorriso debochado no rosto. – Nossa, nunca imaginei que você aceitaria a ajuda de alguém ou perderia para alguém como Kilua! – Ele soltou uma risada maléfica e se levantou.

– Falando dessa forma parece até que você queria que ele me matasse! – O olhei estranhando suas palavras duras.

–Claro que não! Não diga besteiras! – Ele beijou o topo de minha cabeça e desapareceu indo sentar-se com colegas de sua turma. Não era só eu que o olhava desconfiada, Susano e Kuran também o olhavam de forma estranha.

– É seu irmão mesmo? – Perguntou Nelin.

– Não exatamente, ele é adotado...não liga não! Nós trocamos carinhos assim sempre! – Falei.

– Bom, não dá para ficar enrolando, temos que ir para a aula, não dá para escapar. – Disse Susano que ainda olhava feio para Merian. Respirei fundo e fui em direção às salas, me despedi de Annie no pátio e segui para o castelo com Susano, Nelin e Lupinus teriam aula de artes marciais no primeiro período, então nós dois fomos juntos até a sala para a aula de línguas. Sentamos na mesma carteira de ontem, a carteira ao lado onde Kilua esteve sentado agora estava vaga, a jovem que estava ao lado dele me olhava com ódio e mordia a boca repetidas vezes como se estivesse se segurando para não falar algo errado.

– Acho que agora a namorada dele quer te matar também! – disse Susano, não tinha nenhum tom e brincadeira em sua voz.

– Deixa ela tentar... – falei apoiando a cabeça no braço. – Para mim essa aula é só um pequeno período de descanso, se tivesse visto que começaríamos por esta, teria continuado na cama.

– Fala todas as línguas dos doze mundos? – Perguntou ele duvidando de mim.

– Até Malvarmo.

– Nossa!

– Você não?

– Sim, mas só por causa de meus poderes, você aprendeu por causa de sua profissão, não é?

– Sim, tive que aprender, era muito difícil entender a o que eles queriam apenas com gestos, grunhidos e desenhos! – Susano começou a rir, mas parou quando eu fechei os olhos e respirei pesadamente.

– Não foi apenas pela briga de ontem, não é? – Ele agora estava olhando de soslaio para a jovem na outra mesa.

– Tive um pesadelo que não me deixou dormir. – Respondi.

– Tem uma hora livre então, por que não dorme?

– Se Dandala me pegar cochilando, ela me mata.

– Não vai pegar você cochilando! – Disse ele com um sorriso encantador no rosto. Já sei por quê Annie gostava tanto dele, até eu senti vontade de abraçá-lo depois daquele sorriso. Uma marca dourada apareceu na testa e nas mãos de Susano, pareciam cristais polidos e brilhantes que se projetavam para fora de sua pele, então ele murmurou algo baixinho e uma fina cortina gelatinosa nos cobriu.

– O que é isso?

– É uma barreira de ilusão, agora ela vai te ver escrevendo em seu caderno e não cochilando! – Ele piscou para mim, sorri e apoiei o rosto no braço.

– Te daria um abraço se não estivesse com tanto sono!

– Pode me agradecer depois! – Respondeu sorrindo novamente de forma encantadora.


Acordei com Susano puxando meu cabelo. Esfreguei os olhos e olhei em volta, estavam todos saindo da sala. Rapidamente me endireitei e levantei para sair também.

– Melhor? – Perguntou ele enquanto descíamos até a aula de artes marciais na quadra do subsolo.

– Parece que dormi uma semana! – Respondi, estava completamente descansada e me sentia absolutamente bem.

– Deve ter dormido umas cinco horas ou mais! – Disse ele rindo. O olhei incrédula, olhei para meu relógio, que marcava apenas sete da manhã.

– Não brinque comigo assim! Quer me matar? – Meu coração estava acelerado.

– Não estou brincando, usei uma técnica que Sirius me ensinou para alterar o tempo dentro de uma área. Dentro daquela barreira o tempo desacelerou.

– O que ficou fazendo enquanto eu dormia? – Perguntei, ele sorriu de um jeito tão assustador que me fez parar o meio do caminho.

– Fiquei vasculhando sua mente a procura de coisas interessantes!

– N-não acredito! – Senti o sangue sumir de meu rosto.

– Estou brincando! Céus! Você deve ter segredos muito obscuros aí para ficar com essa cara!

– Não entre em minha mente nunca ou nossa amizade termina aí! – Falei ainda nervosa.

– Pode deixar! – Ele riu.


A última aula que teríamos era a de sobrevivência, agora que estava descansada seria fácil passar por ela, ou era isso que eu esperava.

Minhas esperanças foram jogadas pela janela ao chegarmos no portão oeste da ACV e Misty nos dispensar.

– Susano e Nikella? – Ela nos olhou com um olhar felino, como se fossemos suas presas. – Vocês estão dispensados de minha aula de hoje! As aulas de sobrevivência de vocês serão junto com as aulas do V8! – Ela afagou minha cabeça e sorriu.

– Mas... – Susano cobriu minha boca antes que eu começasse a reclamar.

– Sim senhora! Quando é a aula de sobrevivência deles? – Perguntou ele.

– Quartas no quinto e sexto período e Quintas, terceiro e quarto período.

– Mas nesses períodos temos aulas de Defesa e Herbologia! – Falei.

– Não se preocupem com isso! Essas aulas são dispensáveis para alunos tão avançados como vocês! – Ela tentou parecer simpática, mas continuei com medo dela.

– O que quer fazer nesse período vago? – Perguntou Susano enquanto andávamos em volta da ACV.

– Acho que vou mais cedo para a loja, quero fazer uma coisa.

– Posso ir com você? – Ele estava com um olhar divertido e curioso.

– Por que?

– Quero ver onde você trabalha.

– Não sei se é boa ideia! – Respondi olhando-o desconfiada.

– Quero ver seu trabalho e fazer uma encomenda também! – Ele sorriu, aquele sorriso fofo e meigo novamente.

– Ah! Tudo bem, mas não me atrapalhe hein! – Falei passando pelo caminho em frente a muralha e indo até a plataforma de embarque. Por sorte o dirigível das onze estava atrasado e não precisaríamos esperar o de meio dia. Embarcamos em silêncio e nos sentamos bem no fundo do dirigível, que partiu quase vazio, aproveitei que os lugares em minha frente estavam vazios e coloquei as pernas em cima do encosto da cadeira.

– Então... O que acha da Annie? – Perguntou Susano depois de um bom tempo em silêncio.

– Ela é uma ótima amiga! – Respondi.

– Só isso?

– Bom, ela é doce, divertida e muito legal... – não sabia descrevê-la melhor que isso. – Por que a pergunta?

– Ela gosta mesmo de mim ou você acha que é só porque sou filho do rei de Amantia? – Perguntou ele encarando-me sério.

– Não acredito que ela seja uma pessoa interesseira! Até onde eu sei ela é de família nobre, acho que se fosse por interesse, já estaria comprometida com alguém, não?

– Pode ser... – ele ergueu uma sobrancelha. – Ela te disse apenas que era de família nobre? Você não conhece os pais de sua melhor amiga? – fiquei constrangida com sua pergunta, ela sabia quase tudo de mim pois vivia perguntando e eu respondia para que ela parasse de perguntar, eu nunca tive interesse em perguntar nada sobre ela.

– Não sei, nunca os vi também, nem nas cerimônias da ACV, eles devem ser pessoas muito ocupadas! – ele acenou com a cabeça e esboçou um sorriso, depois disso ficou em silêncio pelo resto do caminho.


Descemos na plataforma da cidade do Sol, Susano parecia indiferente a movimentação da cidade e das lojas pelas quais passávamos.

– Já esteve aqui antes? – perguntei.

– Muitas vezes, venho aqui sempre com minha mãe e minhas irmãs, elas gostam muito de comprar aqui! – disse ele sorrindo, foi então que reparei que muitas mulheres das lojas acenavam para ele e tinham sorrisos bobos em seus rostos.

– Parece que alguém anda arrasando muitos corações por aqui! – falei, Susano corou levemente e pigarreou.

– Ainda bem que puxei à minha mãe, para a alegria dela! Mas não posso dizer o mesmo de Asahi e Nyumun, elas são dor de cabeça constante para meu pai! – Ele estava balançando a cabeça, parece que a lembrança era divertida mas contive a curiosidade e não perguntei do que se tratava.

O mesmo guarda irritadinho estava no portão da cidade principal novamente, ele já me olhava de longe com cara amarrada, segurei a permissão na mão caso ele me pedisse novamente.

– Arrumou briga com ele também? – perguntou Susano olhando-me de soslaio.

– Ele ficou irritadinho comigo ontem por eu não ter permissão para entrar... – Susano então levantou o queixo, colocou a mão no bolso de sua calça e deu um sorriso de lado. Sua aparência mudou totalmente e tive que estreitar os olhos para olhar para ele. Ele havia ficado com os cabelos e olhos dourados, as marcas em seu braço acenderam. Quando nos aproximamos dos guardas, eles nem sequer tentaram nos impedir, simplesmente saíram do caminho e nos deram passagem fazendo reverências curtas.

– Você é muito exibido! – Falei enrugando a testa, agora ele estava rindo abertamente, não parecia que ele era mais novo que eu, parecia um homem, ou melhor, um elfo adulto mesmo sendo completamente humano.

Entramos na loja, Taures estava acordado, polindo uma espada e tinha um olhar alegre estampado no rosto.

– Ah! Nike, você veio mais cedo! Que ótimo! Tenho uma encomenda muito especial para você, foi feita por um cliente muito importante então peço para que você capriche, use o que tiver de melhor! – disse ele com sua voz rouca e um sorriso no rosto.

– Sim, senhor! Tem o desenho? – perguntei me aproximando do balcão.

– Não, ele deixou apenas as medidas anotadas ali e pediu que você fizesse a espada com detalhes que quando alguém olhar, soubesse que ela pertence a um Guerreiro de Ciartes! – disse ele movendo as mãos animadamente.

– Quando terminar as outras que estão na fila eu farei essa.

– Tudo bem, desde que fique pronta antes do dia quinze! Foi essa data que ele marcou para a entrega!

– Entendi! – falei passando para trás do balcão, Susano o cumprimentou e me seguiu, ficou olhando todas as armas da loja com cara de surpresa.

– Você fez todas elas? – perguntou.

– Sim! – ele pegou uma das maiores espadas e percorreu os dedos pela lâmina.

– São perfeitas! – disse maravilhado, sorri alegremente com seu comentário. – Elas causariam inveja em meu avô!

– Quem é seu avô? – perguntei.

– Farahdox, é um armeiro também, e era da guarda real. – ele agora estava brincando com um machado duplo. Taures começou a tossir o chá que estava tomando ao ouvir o nome do avô de Susano.

– Farahdox Lomérius? – perguntou ele quando conseguiu parar de tossir.

– Esse mesmo.

– Ele foi meu mestre! – disse Taures com um sorriso imenso no rosto. – Fui para Amantia quando jovem aprender com ele! Quando ver seu avô novamente, mande lembranças minhas. – ele sentou novamente em sua cadeira de balanço e ficou com um olhar perdido.

– Mando lembranças sim! – ele me seguiu até as fornalhas. – Eu não gosto de Ciartes por causa do calor, como você passa tanto tempo aqui dentro com esse calor?

– Amor pelo que faço! – respondi dando um sorriso, fui rapidamente até o armário para trocar de roupa e peguei a barra de Vitrino que havia ganho de Ariel.

– Nike, já está ai? – Elister apareceu como mágica atrás de mim dando-me um enorme susto.

– Cheguei mais cedo, quero trabalhar em uma arma especial para mim hoje. – respondi tentando acalmar meu nervosismo.

– Vou sair para almoçar, quer que eu traga algo para você?

– Por favor! não comi nada quando saí da academia! – falei.

– Ótimo! Até mais então! – ele acenou para mim olhando de soslaio para Susano e saiu pelos fundos da loja, voltei até onde Susano estava.

– Vitrino? – ele arregalou os olhos quando viu a peça em minhas mãos.

– Sim, ganhei de presente do filho mais velho do senhor Taures estou pensando em uma arma que poderia fazer usando isso! – falei.

– Pense bem então, vitrino deve ser derretido como alumínio e ser colocado em um molde, mas depois de derretido e moldado, você nunca mais consegue derretê-lo ou parti-lo, vitrino é indestrutível depois de forjado. – explicou. – Fora que ele neutraliza o efeito da prata se você estiver o segurando.

– Ainda bem que você me disse isso, ou eu teria feito uma bobagem testando ele! – falei olhando o material novamente.

– Acho que é melhor eu ir... – ele estava olhando pela pequena janela em direção à praça principal. – Depois eu te passo minha encomenda! – ele estava suando e provavelmente estava se sentindo muito mal ali, comecei a rir.

– Tudo bem! Te vejo no jantar então! – ele acenou com a cabeça e saiu.


4


Lobos na Floresta.

 

Fiquei por um longo tempo admirando e girando o vitrino em minhas mãos, pensando sobre o que Siorin havia me pedido, uma arma que eu me identificasse, porém nada passava em minha cabeça agora, até que me lembrei do sonho com a morte. No susto deixei a barra cair no chão, ela fez um barulho alto, como de um sino quando bateu no chão. Então era isso! Corri até o armário com placas de gesso para fazer os moldes de armas, peguei três peças e comecei a trabalhar primeiro o molde da haste, fiz o molde em formato de uma corrente com quase o meu tamanho, logo em seguida fiz a lâmina da foice como uma meia lua um pouco menos curva e do tamanho de meu braço, perto da base fiz minha assinatura e minha marca com ouro derretido e por último fiz uma ponta de lança e juntei as três peças, já que elas não derreteriam novamente e não se partiriam. Parti a barra e deixei metade de fora, aquela quantidade daria para fazer duas armas grandes e duas pequenas, a coloquei no caldeirão e esperei que derretesse, Alguém chamou no balcão, quando fui olhar quem era, minha trança ficou presa no molde e quase o derrubou.

– Ah como eu te odeio! – gritei com meu cabelo, embora achasse lindo o cabelo longo e quisesse mantê-lo assim, ele me atrapalhava muito. Elister estava atrás de mim olhando-me entristecido.

– Bom, vou fazer o possível para manter a distância então! – disse ele deixando meu almoço sobre a mesa e virando-se de costas. Quase comecei a rir se não fosse a dor de cabeça que sentia agora por causa do puxão.

– Não falei de você seu bobo! E sim desse cabelo que vive prendendo em tudo! – resmunguei.

– Então por que não corta?

– Meu pai gostava de cabelos longos, ele não me deixava cortar para que eu parecesse mais com minha mãe! – respondi.

– Seu pai não está mais com você! Você deveria fazer o que te deixa segura! Você trabalha numa armaria, imagina se numa distração ele pega fogo? – Elister estava rindo agora.

– Você está certo, me ajude aqui! – peguei uma fita e amarrei a trança até onde conseguiria prender o cabelo sem que ele caísse no rosto e pudesse me atrapalhar, então peguei uma faca e o cortei dois dedos abaixo do nó da fita.

– Nossa! Deve ter quase um metro de cabelo ai! – disse ele rindo e pegando a trança da minha mão.

– Vou jogá-lo fora! – falei, mas Elister não deixou que eu pegasse o cabelo, ele o dividiu em quatro partes iguais e começou a trançá-los. Fiquei observando-o em silêncio e vigiando o vitrino ao mesmo tempo, ele fez uma corda com meu cabelo.

– O que vai fazer com isso? – perguntei.

– Você vai fazer uma foice com esse vitrino, não é?

– Sim, mas o que isso tem a ver com o cabelo?

– Então, já vai ver! – ele pegou uma base líquida térmica que impedia os tecidos de incendiarem quando tocados pelos metais em brasa e mergulhou a trança de cabelo nele, em seguida colocou a fina trança dentro do molde em ziguezague pelos elos do que seria a corrente de vitrino, logo em seguida fechou o molde e o pôs de pé prendendo as pontas da trança no local que a lâmina ficaria – Agora, despeje o vitrino! – eu assenti, coloquei as luvas grossas de couro de dragão, peguei o caldeirão e despejei o vitrino no molde até que transbordasse. Sobrou um pouco do metal derretido, então usei para fazer um par de adagas de um molde que já estava pronto, iria fazer adagas de prata naqueles moldes depois, mas essas, ficaria com uma e outra daria de presente para alguém.


Comecei a trabalhar com uma ágata de fogo para o punho da espada “especial” que Taures havia me pedido, entalhei com cuidado o tronco trançado de uma árvore e a folha de sete pontas da arvore do fogo na frente do tronco, a pedra era muito frágil, mas poderia fazer igual Elister fez com a trança, colocá-la no centro de um punho de vitrino. Acho que a espada especial faria toda de vitrino também, talvez o cliente especial fosse alguém muito importante que poderia divulgar meu trabalho se fizesse algo diferente. Ia voltar mais cedo para a ACV e pegar algumas folhas da árvore de fogo que voavam pelo deserto para usá-las no interior da lâmina.


– Sua foice está pronta! – disse Elister abrindo o molde com cuidado para que não se partisse.

Quando tiramos a foice de dentro do molde eu quase chorei de emoção, ela ficou perfeita! Mais do que qualquer arma que eu fiz na vida. Ela estava em um tom amarelado e parecia brilhar suavemente conforme a movimentava na luz, fiz o fio de forma que só de tocar a lâmina, já cortaria alguém ao meio.

– Espero que saiba usar bem isso! – disse Elister olhando assustado para a foice.

– Por que?

– Vitrino é o único metal que pode matar um salamandra em sua forma de fogo! Eles podem derreter qualquer metal que tocar seu corpo, menos o vitrino! – dei um sorriso satisfeito ao escutar essas palavras de Elister.

– Bom saber! – a girei na mão, parecia que eu havia nascido segurando-a. – É muito leve! – falei passando-a para Elister e indo preparar uma capa para ela, trabalhei em um suporte para a adaga também. – Agora só preciso de algumas folhas da árvore do fogo... – murmurei alto, Elister pareceu não perceber, ele ainda olhava cautelosamente a foice em minha mão.

– Só vai ter dificuldade para andar com ela por aí!

– Eu me viro! – respondi. – Vai se chamar Siferath!

– Por que esse nome?

– Significa separadora de almas, em Vegahniano, já que o vitrino vem de Vegahn! – passei os dedos carinhosamente sobre ela.


Avisei ao senhor Taures que faria a espada especial depois e saí da loja. Corri pelas ruas rapidamente, queria chegar na ACV antes do jantar para mostrar a arma para Susano.

Estava tão ansiosa para chegar na ACV e testar a arma com Siorin que acabei esquecendo de pegar as folhas para a espada, as pegaria amanhã na ida então.

Passei correndo pelos portões e segui direto para o refeitório, para minha sorte de hora em hora haviam refeições na ACV. Acabei lembrando que ainda estava com o avental da loja e mudei de rota, indo para o meu quarto para tomar banho primeiro. Tomei um banho rápido, lavei os cabelos agora curtos e fáceis de pentear, coloquei um jeans e uma camiseta vermelha e já ia sando correndo do quarto quando Liilac pulou da cama.

– Nossa, Nike! O que houve com seu cabelo?

– Cortei e o usei de enfeite em minha arma! – respondi sorrindo e lhe mostrando Siferath

– Senta aqui! – disse ela puxando-me para uma cadeira no meio do quarto. – está tudo torto! Cortou isso com os dentes?

– Na verdade foi com uma faca... – ela revirou os olhos, pegou uma tesoura e arrumou o que eu tinha feito. Agora eles ficaram na altura dos meus ombros e estava com um corte legal e desfiado.

– Parece gente agora! – disse ela sorrindo, nossa “amizade” era entranha, poucas palavras e pouco tempo juntas, mas cheia de significado, nem de perto uma amizade comum.

– Obrigada! – agradeci e saí, na metade do corredor ouvi um “Vou cobrar depois!” que Liilac gritou.

Estava morrendo de fome quando entrei no refeitório, logo de cara os vi sentados em uma mesa do canto, Kuran estava com eles, isso me irritou um pouco, mas estava tão satisfeita com meu trabalho que decidi ignorar isso.

– Falando nela... – disse Kuran quando me aproximei.

– Estavam falando de mim? – perguntei surpresa.

– Sim, estávamos conver... – Annie parou de falar quando viu Siferath atrás de mim. – Meu Deus! Nike que raios é isso! – ela ficou incrivelmente pálida, como jamais imaginei que a veria, sua pele avermelhada ficou na cor de uma vela.

– Siferath, uma Foice de vitrino! – respondi sorrindo.

– Meio perigosa, não acha? – disse ela me encarando com os olhos assustados.

– Sou uma caçadora! Quero armas ameaçadoras! – falei brincando.

– Mas por que uma foice? E por que de vitrino? – ela ainda olhava assustada para a arma.

– Ganhei esse material do filho do mestre Taures, então o aproveitei já que ele é inquebrável! – respondi – E uma foice, pois quero que quando meu inimigo me ver, ele saiba que eu não estou ali para brincadeira! – dei um sorrisinho maléfico.

– Ahh! O que houve com aquele cabelo lindo? – perguntou Palloma olhando para mim indignada.

– Está na decoração de Siferath! – a tirei das costas e coloquei ao meu lado quando me sentei. Annie se afastou um pouco da arma.

– Mas era tão lindo... – disse Annie passando a mão em meu novo cabelo curto.

– Eu gostei assim também, mas confesso que do outro jeito você ficava mais assustadora! – disse Kuran encarando-me com seus olhos vermelhos. – Mas ainda assim ficou bem bonita! – meu coração acelerou e senti meu rosto esquentar.

– Vamos comer logo! Estou morrendo de fome e preciso ir treinar depois! – disse alguém que só agora havia notado sentado à mesa.

– Desculpe, mas, quem é você? – perguntei olhando-o com curiosidade.

– Datani, sou primo dele. – disse ele sério apontando para Susano. Fiquei olhando-o por um tempo ele tinha longos cabelos negros e olhos azuis e a pele era cor de oliva, parecia um tanto sombrio. – Estou na outra turma do V7!

– Entendi, Vai treinar também? – perguntei.

– Se vocês andarem logo, vou sim! – Ele parecia irritado, mas olhava discretamente para Palloma, que estava distraída com seu jantar e não pareceu notar o olhar quase faminto dele sobre ela.


Depois do jantar, fui direto para o subsolo seguida por Susano, Nelin e Datani, não entendi porque eles estavam indo atrás de mim, mas resolvi não questionar. Siorin já aguardava na entrada.

– Achei que não fossem vir! – disse ele acenando para nós.

– Desculpe, alguns se empolgaram na conversa! – disse Datani pegando seu colar e o transformando em duas espadas longas. Susano e Nelin fizeram a mesma coisa, porém Susano fez seu pingente se transformar numa lança.

– Também quero! – Susano começou a rir e se aproximou de mim, ele pegou Siferath e a pressionou com as palmas das mãos até que ela começou a brilhar.

– Você é canhota ou destra?

– Ambidestra...mas uso mais a mão direita! – falei.

– Então você vai modifica-la com a direita! – disse ele me entregando a foice. – Só precisa segurá-la com a esquerda e a imaginar se tornando um pingente.

– Só isso? – eu peguei Siferath com a mão esquerda e a pressionei como ele havia dito, ela ficou do tamanho de uma caneta, e a corrente ficou flexível. – Adorei!

– Como ficou um pingente longo, assim ele não te machuca!

– Obrigada! – voltei a atenção para Siorin que aguardava o final da nossa “conversa” de cara feia.

– Vejo que achou uma arma que lhe agradasse! Vamos, agora mostre o que pode fazer com ela! – disse ele sacando a espada. Peguei a foice com a mão direita, da forma que Susano havia dito, ela voltou ao normal em minha mão.

– Uma foice com uma ponta de lança? - Ele se aproximou e a segurou. – E de vitrino, você não gosta mesmo de salamandras, não é? – Ele riu.

– Os detesto, com exceção de Annie! Sonhei que a morte deixou eu brincar com a foice dela, daí achei que pudesse ser uma inspiração e fiz essa arma...

– Ela é louca! – disse Nelin rindo. Siorin foi até o outro lado do salão e fez um sinal para que o seguíssemos.

– Você não, Nike, fique ai! – disse ele quando fiz menção de ir até eles. – O primeiro teste, é ver se você consegue se defender usando a arma que escolheu! – dizendo isso, ele pegou um arco e uma flecha e restesou a corda preparando o tiro.

– Espere ai, o que o senhor pretende fazer? – perguntei olhando-o assustada.

– Vou atirar em você, e você vai ter que defender o tiro com a arma que escolheu! – disse ele com um sorriso perverso no rosto que fez minha alma gelar. – prepare-se, eu nunca erro um tiro! – ele mirou, rapidamente fiquei em posição, segurando o no meio da haste com a mão direita, posicionei a perna direita um pouco para frente preparando uma base e deixei a esquerda um pouco para trás, apoiando de leve as costas da lâmina de Siferath sobre ele. Quando Siorin disparou a flecha eu nem tive tempo de me mover, uma espécie de barreira desintegrou a flecha no momento em que ela iria tocar meu peito. Meu coração acelerou e fiquei olhando-o de olhos arregalados.

– Se Susano não tivesse lhe protegido, você estaria morta agora! – esbravejou ele. – não foi para ajudá-la que os trouxe aqui!

– Mas não fui eu! – Susano estava me encarando espantado.

– Nike, foque na mão de Siorin, não na flecha, você não vai conseguir vê-la se aproximando! – disse Datani andando até mim. – calcule a distância para saber o tempo exato de defender! Aqui dentro não tem vento para alterar a rota do disparo, isso vai te ajudar de início! – ele esticou a mão para que eu lhe desse a foice e ficou na mesma base que eu estava. Não deu tempo para me afastar dele, Siorin disparou e Datani moveu ao mesmo tempo a foice, girando-a rapidamente em frente ao seu corpo, fazendo a flecha se despedaçar observei-o boquiaberta.

– Entendi... – falei quando ele me devolveu a arma. Tentamos aquilo mais dez vezes e a flecha sempre se desintegrava quando ia me acertar.

– Acho que é melhor tentar comigo primeiro! – disse Nelin tomando o arco de Siorin, notando que ele já estava ficando irritado. Quando eles mudaram de lugar e Nelin disparou, consegui finalmente defender um disparo.

– Finalmente! – disse Siorin que estava treinando com Datani, Susano estava apenas sentado olhando. Depois de alguns acertos, ela passou o arco para Susano, que o pegou com o mesmo sorriso maldoso de Siorin, quando ele tocou o arco, os dois mudaram de aparência, Susano ficou igual ao que tinha visto mais cedo no mercado e o arco ficou mais longo e com três cordas. Ele disparou três flechas ao mesmo tempo. Uma consegui parar as outras quase acertaram meu rosto, mas se desmancharam quando passaram por minha tentativa de bloqueio. Continuamos treinando até eu conseguir defender as três flechas que ele disparava.

– Vamos ao teste final então! – Siorin largou a espada e pegou o arco. Respirei fundo, ele disparou antes mesmo que eu me posicionasse, mesmo assim consegui defender, partindo a flecha que ele havia disparado.

– Numa luta de verdade, não vão esperar você estar em posição para tentar te matar, então você até que foi bem! – ele se aproximou sorrindo e afagou minha cabeça. – Amanhã continuamos!

Nos despedimos de Siorin, transformei minha arma no pingente e o coloquei na fina corrente de prata que meu pai havia me dado e que eu nunca tirava do pescoço.

– Amanhã teremos sobrevivência com o V8, não se esqueça! – Lembrou-me Susano quando fomos em caminhos diferentes.

– Não tem como esquecer! – falei sentindo gelo descer por minha garganta. – Boa noite! - Susano deu uns tapinhas em minhas costas antes de desaparecer nas sombras do corredor.


Nelin me acompanhou pelas escadas, tagarelando sobre o treino, mas estava cansada o suficiente para não ouvir nada do que ela disse, ela acenou para mim e desapareceu na entrada do segundo andar, fui até meu quarto e entrei devagar, Annie estava sentada bem próxima a janela e olhava em silêncio a lua cheia brilhante ao lado de Saldazaris, o mundo gigante dos silfos que podia ser visto de Ciartes, seus anéis pareciam brilhar sob a lua azulada.

– Que cara é essa? – perguntei quando ela me fuzilou com o olhar.

– Você é mesmo minha amiga? – perguntou ela, só então notei que haviam lágrimas em seus olhos.

– Claro que sim, Annie! – falei sem pensar com medo da reação se caso eu gaguejasse. – Por que? – perguntei novamente.

– Primeiro eu vi você e Susano saindo antes do almoço, depois vocês saíram juntos logo após o jantar e agora chegaram juntos de novo! – Ela se levantou da cama, seus olhos estavam acesos como brasas e seu cabelo começou a criar vida própria.

– Annie, se acalme! – falei erguendo as mãos, em todos os anos que eu a conhecia, nunca havia ficado com medo dela.

– Você sabe que eu gosto dele! – berrou jogando os braços pro alto.

– E aparentemente ele também gosta de você! – falei criando um minuto de confusão nela, tempo suficiente para derrubá-la no chão e prender seus braços. – fique calma! Eu não tenho interesse nele, Annie! – falei arrumando seus cabelos e nos girando, fazendo com que ela ficasse deitada em meu colo, segurei seu rosto e a encarei.

– Tem certeza? – perguntou limpando as lágrimas.

– Claro, Annie! Eu o vejo quase como um irmão, mais até do que Merian! – não menti. – Ele perguntou de você quando íamos para a cidade do Sol, acho que ele só quis ir comigo para perguntar sobre você.

– Então acha que eu tenho chance?

– Acho que você devia ir falar com ele antes que outra faça! Enquanto andávamos pela cidade, várias garotas se derretiam por ele! – falei lembrando-me da ida até a armaria.

– É o que vou fazer então! – ela sorriu. – Desculpe, ok? Prometo não fazer isso de novo! – ela beijou minha bochecha e pulou para cima da sua cama.

– Bom mesmo! – lhe mostrei o pingente no pescoço.

– Credo Nike! Não sabe brincar não? – ela ficou pálida olhando o pingente e se deitou sem tirar os olhos da arma.

– Brincando igual você brincou agora a pouco! Com um fundinho de verdade! – nós duas rimos. Quando deitei em minha cama, fiquei observando Annie dormir, nem mesmo ela era inofensiva! Naquela noite tive o mesmo pesadelo, a morte estava novamente pedindo que eu protegesse alguém que eu queria matar e isso me incomodava, mas pelo menos dessa vez não acordei gritando.


As aulas do dia seguinte foram tranquilas, consegui prestar atenção nas aulas sem problema algum, de vez em quando Susano me avisava sobre os olhares perversos de Brieli, a namorada de Kilua, ela parecia querer se vingar pelo que houve com ele, mas acho que estava com medo de me enfrentar depois das aulas de artes marciais. Quase nos atrasei pois quis tomar um banho gelado antes de ir para a aula de sobrevivência.

– Você não precisava ter derrubado ela daquela forma, Nike! Foi quase cruel! – disse Susano enquanto saíamos da quadra e íamos em direção a saída sul para a aula de sobrevivência do V8, sacudi meu cabelo ainda molhado e suspirei aliviada.

– Eu disse que estava com preguiça, aquilo não foi crueldade, só usei minhas habilidades de forma que ganhasse dela num único golpe para eu voltar pro fim da fila! – murmurei.

– Acabou que ninguém mais quis treinar com você! Ela vai ficar com uma marca roxa na perna por um bom tempo! – Susano esboçou um sorriso. Durante o treino, não queria lutar, só queria descansar para a aula seguinte, mas Siorin insistiu que eu enfrentasse alguém, ele me colocou logo contra Brieli, ela já tinha o motivo para me dar uma surra, era mais alta e mais forte que eu, então concentrei toda minha força na perna direita e chutei sua coxa, derrubando-a imediatamente. Talvez com isso ela desistisse da ideia de vingar o namorado.

– Acha que ela vai sossegar agora? – perguntei.

– Duvido! Isso deve tê-la irritado muito mais! – talvez ele tivesse razão.

As aulas de sobrevivência com Misty naqueles dois últimos períodos foram até tranquilos, fizemos armadilhas para criaturas mágicas e as testamos com um casal de irmãos metamorfos da turma, eles pareceram não gostar muito da “brincadeira”.

Ao chegar na loja do mestre Taures, adiantei as encomendas antigas, visto que eu não havia pego as folhas da árvore do fogo e não poderia concluir a encomenda especial, resolvi pegar as folhas na sexta quando saíssemos para a primeira missão. Nem jantei naquele dia, fui direto para o treino com Siorin, que aparentemente estava de mal humor e não cansou de me desarmar até que eu conseguisse defender seus ataques sem deixar a foice cair. Os nós dos meus dedos chegaram a doer quando finalmente acabamos.

Subi direto para o quarto, tomei um banho e cai na cama sem nem falar com Annie, ela estava deitada também e não acredito que ela iria se zangar se eu dormisse sem uma longa conversa dessa vez.

O pesadelo me fez acordar e dormir pelo menos duas vezes durante a madrugada, mas no dia seguinte não estava acabada e exausta como imaginei que estaria.

- parece que alguém não come a dias! – disse Annie vendo eu acabar com o terceiro sanduiche de queijo no café da manhã.

- não jantei ontem, acabei dormindo sem comer nada! – resmunguei tomando a xicara de café numa golada só.

- não se esqueça que no terceiro e quarto período vocês têm sobrevivência conosco hoje! – disse Kuran com um sorriso maligno no rosto.

- não vamos esquecer! – respondi saindo da mesa com Susano para os dois períodos de identificação de venenos com Nyona.

- acho que Misty vai pegar pesado hoje, ontem ela estava nos testando! – disse Susano quase no final da aula enquanto terminávamos um antídoto para veneno de Sereiano.

- talvez, mas acho que ela não faria nada perigoso, faria? – perguntei.

- não sei, ela tem cara de quem não mede esforços para ensinar! – respondeu ele olhando sério a mistura cinzenta e gosmenta no fundo do caldeirão de vidro.

- acho que você errou a quantidade de algas, a mistura está espeça demais! – resmunguei.

- consegue concertar antes que ela venha fiscalizar? – perguntou ele olhando-me nervoso, logo percebi que Susano, embora parecesse sempre tranquilo e descontraído, era perfeccionista.

- claro! – respondi com um ar convencido. Alterei a mistura adicionando raiz de valeriana vermelha e pó de taixe. A mistura borbulhou e a cor foi mudando até se tornar esverdeada e mais viscosa.

- agora sim! – disse ele num suspiro aliviado. – sou terrível com venenos e antídotos.

- percebi! – estava rindo da cara de pânico dele. Depois que Nyona as avaliou, ela dispensou mais cedo os alunos que fizeram a poção corretamente. Apenas oito alunos incluindo nós dois conseguiram sair mais cedo. Saímos da sala direto para a sobrevivência, a movimentação perto dos portões indicava que Misty já estava lá com a turma do V8.

Ao chegarmos no início da floresta, na entrada sul da academia, tive uma desagradável sensação de que ia morrer. Meus olhos chegaram a lacrimejar ao ver os caçadores do esquadrão de proteção do castelo, eram doze deles e estavam em fileira, seguravam grossas correntes e nas pontas dessas correntes, lobos selvagens que transmitiam a maldição da licantropia. Eles estavam com focinheiras de couro, que julguei frágeis demais para aqueles focinhos fortes e cheios de dentes afiados e pontiagudos.

– Ah, meus alunos que estavam faltando! – disse Misty, ela também estava segurando um dos lobos, seus pulsos aparentemente finos e delicados seguravam com muita força a pesada corrente. Susano e eu andamos até onde Kuran e Palloma estavam nos esperando, Kuran mantinha uma expressão impecável de tranquilidade e Palloma estava eufórica.

– Parece que você viu uma aparição, Nike! – disse Kuran baixinho, perto demais do meu rosto quando me endireitei na frente dele e de Palloma, igual estavam as outras equipes. Ficamos de frente para os caçadores e aguardamos em silêncio as instruções da mestra. Misty correu seus olhos felinos cor de safira por todos nós e suspirou satisfeita, seu sorriso sádico parecia ainda mais amedrontador hoje.

– Hoje, a nossa brincadeira vai ser um pouco diferente! – disse ela passando os dedos pelos cabelos negros e pousando seus olhos sobre o nosso grupo. – Vamos isolar a área sul da floresta e soltar esses bichinhos. – Ela fez um aceno na direção do lobo. – Vocês serão caçados por eles, mas cada equipe terá que capturar um deles, se ao término de uma hora, alguma equipe não tiver capturado um lobo, a punição será fazer a guarda das muralhas durante toda a noite sem o auxílio dos outros guardas! – Meu estômago pareceu cheio de chumbo quando ela disse aquilo, Candace já havia me deixado de guarda uma vez quando fui pega numa travessura, quase morri durante a noite sobre a muralha, depois disso passei a ter mais cuidado em não ser pega. Misty deixou a corrente deslizar um pouco dando um espaço e deixando o lobo quase do seu tamanho dar um salto em nossa direção, dei um passo para trás, encostando em Kuran sem querer e me afastei rapidamente sentindo minha pele formigar com o calor.

– Mas mestra... Esses lobos só caçam a noite! – disse Palloma com a voz trêmula.

– Verdade... – Misty passou a corrente do lobo ao outro caçador e tirou um pingente do seu colar transformando-o numa espécie de meia lua com um punho, adornada com pedras vermelhas brilhantes, a lâmina muito afiada era diferente de tudo que já tinha visto. A mestra girou aquela estanha lâmina no ar fazendo uma névoa negra sair dela e cobrir toda aquela área da floresta. – Pronto! Agora está escuro o bastante? – Perguntou ela com um olhar divertido para nós. Ao olhar para a floresta, percebi que ela tinha deixado uma parte da noite cair sobre tudo, meu sangue congelou nas veias e nunca me arrependi tanto por ser grosseira com um dos mestres, podíamos estar caçando fadinhas com as turmas do V7!

– Sim, agora está bom! – Palloma devolveu o sorriso.

– Vou ser um pouco mais flexível! Vocês têm duas horas! E ainda vou lhes dar uma vantagem de dez minutos para se afastarem na floresta e logo após, vou soltá-los! – explicou Misty removendo a focinheira do lobo.

– Começar! – Gritou um dos caçadores.


Corremos floresta adentro, Susano ia na frente com um cetro à mão iluminando o caminho, a névoa negra que ela havia espalhado pela floresta era densa e sufocante, dificultando ainda mais o teste.

– Pode criar uma ilusão, Pam? – perguntou Kuran quando paramos em uma pequena gruta.

– Posso! – ela ergueu os braços, o lugar ao nosso redor se tornou um campo aberto e uma lua minguante apareceu ao fundo. – Assim eles serão atraídos pela área aberta! Mai fácil de capturar algum!

– Precisamos ficar vigiando de cima, assim podemos captura-lo sem precisar enfrentar de frente! – falei olhando as árvores ao nosso redor. Havia uma arvore grande de galhos frondosos bem perto de onde Palloma criou a ilusão. Subimos nela, pendurei as pernas para fora do galho e tirei de dentro dos bolsos de minha calça algumas esferas de metal que havia criado com ajuda de Taures.

– O que é isso? – perguntou Kuran observando as bolinhas em minhas mãos.

– São redes com filamentos de prata, ao serem arremessadas elas se abrem e a rede se enrosca em quem for o alvo... – Palloma estava me olhando de boca aberta.

– Você veio preparada!

– Eu estou sempre preparada para me dar mal! – respondi com um sorriso no canto dos lábios.

– Acho que não deveríamos ficar só esperando que eles nos encontrem, outros alunos podem capturar mais de um só para ferrar os outros! – disse Kuran com razão.

– Consegue atraí-los, Nike? – Perguntou Palloma desviando os olhos da ilusão de volta para mim.

– Eu? – a olhei espantada.

– Você tem cara de ser apetitosa! – disse ela numa risadinha cínica.

– Deixa que eu vou! – disse Kuran suspirando e olhando feio para ela.

– Tudo bem, sei como chamar atenção deles. – falei – Susano, fique com essas esferas, você tem que jogá-las com força para ativar a rede está bem? – Saltei da arvore e corri rapidamente em direção ao centro da floresta antes que me arrependesse ou que perdesse o pouco de coragem que tinha conseguido reunir, mesmo com medo, não queria deixar todo o trabalho para eles, tinha que mostrar que também era capaz.

Fui até o meio da floresta andando devagar agora, a escuridão cobria tudo de forma assustadora, a névoa densa e negra era quase palpável, mesmo assim parecia conseguir enxergar bem dentro dela. Tirei o pingente do pescoço e o pressionei com a mão direita, fazendo com que a foice aparecesse em minha mão. Ajoelhei perto de uma árvore e fechei os olhos, assim poderia escutar se havia algum deles próximo a mim. Como não escutei nada, resolvi usar algo que tinha certeza que chamaria atenção não só dos lobos, mas torci para não chamar atenção de outras criaturas escondidas na floresta também. Deslizei a palma de minha mão sobre a lâmina da foice abrindo um corte um pouco profundo demais, mas tinha pó suficiente para fechá-lo. Assim que o sangue começou a pingar da lâmina, usei o pó de dragna para fechar o corte, fiquei de pé e girei a foice, fazendo o sangue se espalhar por aquela região e novamente me escondi atrás da árvore, o ar estava abafado, úmido demais, dando uma desconfortável sensação e falta de ar.

Não demorou muito para ouvir os estalos sobre os galhos secos no chão da floresta, o cheiro de bolor e terra úmida foi substituído por um cheiro de cachorro, saliva e urina. Ele estava aqui! Mas havia algo mais, sentia uma presença maligna na floresta vindo em minha direção, era algo que fez minha pele se arrepiar. Apoiei os cotovelos na raiz exposta da árvore e virei lentamente a cabeça para ver o quão próximo o lobo estava, vi seus olhos amarelos à menos de dez metros de onde eu estava, droga! Assim ficaria difícil correr. Fiquei vigiando-o até que ele virou a cabeça para o lado, como se tivesse sentido a presença de mais alguém, essa era a deixa para que eu corresse em direção a armadilha. O lobo percebeu minha movimentação e começou a correr atrás de mim, ele era rápido demais, mas eu costumava correr no deserto com meu pai quando era criança e isso virou um treinamento constante, correr na areia fofa do deserto de sal. Na floresta era muito mais fácil de correr, em ziguezague entre as árvores atrapalhando a trajetória do lobo. Ao notar a ilusão de Palloma, parei e me virei para o lobo, que veio para cima pronto para atacar. A esfera de metal brilhou diante de mim, dei um pequeno pulo para trás, para não correr o risco de ser atingida por ela, então o lobo caiu sob a rede prateada e brilhante. Ele uivava e gania, debatendo-se tentando se soltar da armadilha.

– Ótimo trabalho, Nike! – disse Susano descendo da árvore. A ilusão desapareceu quando Kuran e Palloma desceram da árvore também.

– Não acabou ainda! – falei girando a foice e a posicionando com a lâmina atrás de minha perna.

– O que foi? – perguntou Palloma olhando em volta sem intender o que eu quis dizer.

– Tem algo vindo... – disse Kuran afastando-se de nós segurando sua espada para o lado de onde vinha um som estranho, como grunhidos e guinchos agudos.

– Está se aproximando rápido demais! – Susano pegou sua lança e mudou de aparência deixando-me boquiaberta, os cabelos e olhos dourados no escuro o faziam parecer um anjo.

Antes que pudéssemos perceber, algo saltou em nossa direção com uma velocidade assombrosa, assim como as flechas de Siorin. Usei a mão esquerda para fazer um efeito catapulta com a foice, o que quer que fosse, foi partido ao meio com um horrível som de carne sendo rasgada. Susano fez uma forte luz aparecer sobre nós para olharmos o que eu tinha acertado.

A criatura partida ao meio tinha forma quase humana, porém era maior que um humano normal e sua pele parecia grossa demais, tinha olhos negros e dentes pontiagudos.

– Um Wendigo? – Palloma se aproximou da criatura com cuidado.

– Parece que sim! – Kuran fez sua mão ficar em brasa e ateou fogo à criatura.

– Mas eles não podem ser feridos assim! – Ela estava olhando espantada para mim.

– É por causa da arma de Vitrino dela... – explicou Susano olhando apreensivo a arma em minha mão. – É o material favorito dos magos, mata qualquer coisa!

– Bom, agora ganharemos um bônus! – Disse Palloma sorrindo.

– Ou uma bronca! Nikella usou o próprio sangue para chamar atenção do lobo, acabou atraindo o Wendigo também. – Susano estava me olhando de cara feia.

– Desculpe, era o jeito mais rápido... – murmurei abaixando a cabeça.

– Ah, está certo, vamos logo antes que o tempo acabe! – Kuran arrastou a rede com o lobo até a entrada da floresta sem nenhuma dificuldade, parecia estar carregando uma bolsa com um cachorrinho de pelúcia. Já havia se passado uma hora e meia quando alcançamos os muros da ACV, Misty riscou algo na prancheta que segurava ao nos ver chegando, ela se aproximou para avaliar o lobo, ao notar que estava vivo ela sorriu.

– Ótimo, conseguiram capturá-lo vivo! Estão de parabéns!

– a senhora não disse para que nós os matássemos, disse para captura-los! – respondi, ela ergueu uma sobrancelha e bufou.

– alguns não prestaram atenção! – disse ela apontando para o lado, uma das equipes que já havia retornado, tinha o lobo morto aos seus pés. Apenas sete equipes haviam retornado com os lobos no final da prova. Misty deu a ordem e os caçadores adentraram a floresta para caçar os lobos restantes. Quando todos os alunos estavam novamente em fila na frente do muro e os caçadores retornaram com os lobos, a mestra começou a falar.

– Essa foi uma tarefa simples, fácil até demais! E quase metade de vocês não conseguiram concluir! Como esperam passar assim? Como acham que vão se tornar verdadeiros caçadores? – gritou ela girando sua roda nas mãos. – Sílice! Quem da sua equipe capturou o lobo? – Perguntou ela a primeira equipe da fila, Sílice era uma jovem silfa alta e magra parecida com uma boneca, tinha cabelos curtos loiros e olhos azuis tão claros que pareciam prateados.

– Foi o Jiaccon... – disse ela sem jeito.

– Você o capturou sem ajuda de seus companheiros? – perguntou Misty andando até o jovem salamandra.

– Não senhora, Sílice o atraiu com seus poderes até nós, Cercia e Gian ajudaram a amarrar o lobo! – explicou ele.

– Bom... – ela andou até a segunda equipe. – Vocês eu nem digo nada! Mataram o lobo mesmo eu mandando capturá-lo! Se estivessem em uma missão, teriam perdido a recompensa e já teriam uma reputação ruim! – gritou com eles.

– Nikella! Quem capturou o lobo? – ela agora me encarava, um calafrio passou por mim, eu não gostava de falar na frente dos outros.

– Foi um trabalho em equipe, Mestra! – gaguejei – Palloma fez uma ilusão para confundir o lobo e eu o atraí para que Susano e Kuran o capturassem! – falei omitindo a parte do sangue.

– Estão vendo? – uma garota de dezesseis anos atraiu um lobo para que a equipe dela o capturasse! – ela gritou isso mais alto do que gritara com a equipe dois, fazendo meu sangue congelar, agora todos me olhavam irritados. – Uma equipe com dois alunos mais jovens foi capaz de fazer rápido o que vocês não conseguiram! – ela começou a anotar os nomes na folha. – As equipes que concluíram a prova, liberadas! – disse ela por fim dando um longo suspiro irritado. A olhei de soslaio quando ia saindo, ela sorriu e piscou para mim.

– Acho que agora todos te odeiam, Nike! – disse Kuran dando uma risada divertida.

– Você acha? Eu tenho certeza! – Respondi frustrada encolhendo-me ao passar pelos outros alunos, indo em direção ao refeitório.


5


Primeira missão

 

A sexta-feira tinha começado chuvosa, por incrível que pareça, estava chovendo muito! Havia dormido muito mal aquela noite, pois o sonho estava se repetindo cada vez mais durante a noite, porém, os rostos ainda estavam apagados nele, apenas o do príncipe Ericko era visível para mim. Aquele sonho estava me deixando inquieta e cada vez mais insegura quanto a realização de minha vingança. Eles tinham que pagar, não só pela morte de meus pais, mas por todos os humanos que sofreram por serem escravos por tanto tempo nesse mundo. Embora o rei Hargas tenha os libertado, ainda assim os humanos eram os que mais sofriam discriminação por essas terras.

Levantei da cama, o clima estava tão maravilhoso com aquela chuva que me deu vontade de ficar na cama mais um pouco, afinal, não era sempre que chovia aqui.

– Vamos, Nike! Hoje vai ser um grande dia! – disse Annie se jogando em cima de mim, derrubando-me novamente na cama.

– Por que grande? – perguntei com a voz ainda arrastada.

– Oras! Sua primeira missão! É emocionante! – ela deu um pulinho tirando-me o ar.

– Estou com fome! – resmunguei quando consegui me levantar novamente indo até o banheiro para tomar banho e escovar os dentes.

– Já já vamos comer! – disse ela do quarto, baixo o suficiente para não acordar Liilac ou Sayuri.

Voltei para o quarto enrolada na toalha e peguei meu uniforme limpo no armário. Em cima da minha cama havia um montinho de tecidos e tiras de couro pretas.

– O que é isso? – perguntei.

– É o uniforme de caçador! – Annie deu um pulinho empolgada pegando a roupa e me mostrando. Era uma calça preta de um couro grosso, um espartilho de um tecido muito resistente com decoração em couro macio e pequenas bolsinhas para colocar antídotos e ervas, um pequeno colete que na parte de trás tinha um suporte para prender armas, duas fitas grossas para colocar adagas e uma bolsa também de couro. Senti meus lábios se torcerem num sorriso ao ver o uniforme.

– Podia ser de outra cor! – disse Annie torcendo o nariz.

– Adoro esse uniforme preto! – falei sentando na cama, pegando as peças e olhando-as de perto.

– Para completar eu comprei isso pra você! – disse ela trazendo dois embrulhos grandes de papel de camurça vermelho e colocando sobre meu colo.

– O que é? – perguntei sentindo meu rosto corar.

– Presentes para combinar com seu uniforme! – Annie tinha um enorme sorriso no rosto. Abri o pacote menor primeiro, com cuidado para não rasgar o papel bonito. O toque suave do veludo negro, macio e brilhante me surpreendeu.

– Uma capa? – Me levantei abrindo-a e admirando a costura impecável e o broche de triskle que servia para fechá-la.

– Vi esse símbolo na arma que você fez para Sayuri e mandei fazer o broche assim!

– É linda Annie! – Respondi, havia um calor incomum em meu peito.

– Abre o outro! – disse ela pegando a capa para que eu abrisse o outro pacote. Era um par de botas longas e pretas de couro também.

– Por que tudo isso? – perguntei enquanto experimentava a bota.

– Por que você é minha amiga! Eu queria te dar algo bem legal, mas não sabia o quê. Então lembrei de que desde o primeiro ano da ACV você sonhava em vestir o uniforme preto dos caçadores! – As memórias de nós duas crianças em frente aos caçadores formados na ACV no nosso primeiro ano vieram à minha mente quando ela falou.

– Obrigada Annie, não sei como te agradecer! – falei abraçando-a sem me importar com o calor sufocante de seu corpo.

– Na verdade eu sei como! – senti o tom travesso em sua voz e gelei.

– O que quer, Annie?

– Que você vá ao meu aniversário dia dezessete! – disse ela sorrindo alegremente. – Vamos fazer uma festa dupla, já que meu irmão mais velho faz aniversário dois dias antes de mim!

– Annie... – ela sabia o quanto eu odiava qualquer tipo de festas e comemorações.

– Por favoooor! – implorou ela fazendo charme e piscando os olhos com seus longos cílios ruivos.

– Nem sei onde é sua casa! – falei.

– Quanto a isso... eu vou pedir a alguns amigos para te buscarem em casa! – disse ela sorrindo, escondendo seu nervosismo.

– Annie...

– Nem vem! Sem essa de Annie... – ela imitou perfeitamente minha voz – Você vai sim! – ela agarrou meus braços e começou a me apertar. – Ou você vai ou vou te cozinhar agora! – o calor dela começou a aumentar, ela sabia ser convincente.

– Tudo bem! Eu vou, mas me solte, por favor! – falei empurrando-a para longe de mim. Annie começou a rir, me deu um beijo na bochecha e correu até o banheiro para se arrumar.


Caminhamos pelo corredor aberto até o refeitório, a chuva gelada estava nos molhando de leve e eu estava rindo muito daquilo.

– Ahh detesto essa chuva! – resmungou Annie afastando-se das colunas para tentar evitar que a chuva a molhasse.

– Pois eu amo a chuva! – falei chegando mais para perto das saídas e me molhando mais. O céu cinzento era simplesmente magnífico, fiquei olhando para ele até ver um raio cruzar o céu, aquilo me fez abrir mais ainda o sorriso. Ao olhar para o centro do pátio, vi Kuran sentando no chão do pátio de pernas cruzadas, seu rosto estava erguido para cima e seus olhos estavam fechados.

– O que ele está fazendo? – Perguntei à Annie, ela olhou para onde seu irmão estava sentado e sorriu.

– Ele sempre faz isso quando chove! Meu pai costuma implicar com ele quando faz isso, dizendo que ele tem alguma parte humana escondida! – Ela riu. Do outro lado do pátio haviam algumas garotas se abrigando da chuva, olhando para Kuran e dando risinhos altos, como se quisessem chamar sua atenção. Não sei porque aquilo me incomodou tanto. Apenas dei de ombros e continuei caminhando até o refeitório para tomar café. Servi um prato bem grande de ovos mexidos e torradas e peguei uma xícara de chocolate e fui até a mesa de sempre, Susano estava sentado ao lado de Nelin, porém Lupinus não estava lá.

– Bom dia!

– Animada hoje? – Perguntou Susano erguendo as sobrancelhas.

– Está chovendo, só falta uma torta de limão ou uma de morango e chocolate para o dia ficar perfeito! – Falei rindo. Annie revirou os olhos e sentou ao meu lado. Susano soprou meu rosto, minhas roupas imediatamente ficaram secas.

– Para ser sincera eu estava gostando da roupa molhada! Mas obrigada mesmo assim!

– De nada! – Ele estava me olhando torto, meu bom humor era tão raro assim para que eles ficassem desconfiados daquele jeito?

– Onde está Lupinus? – Perguntou Annie depois de algum tempo só escutando o som dos talheres nos pratos.

– Meu irmão foi com meus pais à uma missão em Saldazaris, aparentemente está acontecendo algo errado com a passagem do tempo por lá e eles foram tentar descobrir o que era! – Explicou Nelin terminando de comer.

– Vamos? – Susano chamou antes que eu pudesse perguntar o que tinha de errado com o tempo em Saldazaris. Annie bufou quando levantamos para sair, o refeitório estava quase vazio então ela se levantou e ficou de frente para Susano, bloqueando o caminho.

– Annie, está tudo bem? – Perguntou ele encarando-a surpreso. Ela era quase da altura dele, menos de um palmo de diferença, eu batia pouco acima do ombro dos dois e me sentia ofendida quando eles estavam de pé perto de mim assim. Sentei-me e fiquei em silêncio observando-os, Nelin largou sua xícara de chá e ficou os observando com um sorriso malicioso no rosto.

– Quero saber se você gosta de mim! – Disse ela, direto ao ponto fazendo com que eu me esgueirasse até o lado de Nelin e ficasse observando ainda mais quieta.

– Claro que gosto, você é minha amig...

– Não se atreva a dizer que gosta de mim como amigo! – Disse ela levantando um dedo. Houve um longo silêncio quebrado apenas pelo arrastar das cadeiras dos últimos alunos que estavam no fundo do refeitório, na certa eles notaram a tensão no ar e saíram de fininho.

– Acho melhor sairmos também! – Cochichei para Nelin, mesmo falando o mais baixo possível, parecia que eu tinha falado alto, por causa do silêncio absoluto do ambiente.

– Shii! – Ela cobriu minha boca e ficou observando os dois.

– Annie, não sei o que quer que eu diga! – Disse Susano sem graça colocando a mão atrás da cabeça.

– Ahh – Annie gemeu, ela o encarou por um minuto, depois segurou o rosto dele e o beijou. Eu queria sair dali correndo, as Nelin estava me segurando e estava com um sorriso divertido e um olhar quase lunático no rosto.

– Disso que estou falando! – Disse Annie soltando-o. Susano a olhou, ele esboçou um sorriso e suspirou.

– Bom, podemos conversar mais tarde? – Perguntou ele tocando a bochecha dela com o polegar e fazendo um movimento com a mão para que eu o seguisse.

– Tudo bem! Mais tarde então! – Disse ela sorrindo.

Saímos do refeitório em direção ao castelo, meus olhos foram automaticamente para o centro do pátio, mas Kuran não estava mais lá.

– Sabia que ela gostava de mim? – Perguntou ele olhando-me de soslaio.

– Acho que toda a academia sabia, Susano! – Falei tentando não rir. – Você não gosta dela? – Perguntei franzindo o cenho.

– Talvez mais do que imaginava! – Disse ele olhando para trás discretamente.

– E por que não falou nada para ela?

– Queria ter certeza de que ela gostava de mim pelo que sou. Não pelo que meus pais são.

– Não entendi!

– Minha irmã mais velha é noiva do irmão mais velho dela, um casamento arranjado quando Karin ainda era apenas um bebê... – Susano deixou a voz morrer, sua pele parda havia ficado branca e pálida. – Desculpe, são apenas bobagens, mas eu só queria saber se ela não gostava de mim por interesse! – Explicou ele.

– Acho difícil! Annie não é interesseira, ela gosta mesmo de você!

– Bom saber, isso muda muita coisa! – Respondeu ele sorrindo.


As aulas do dia foram muito chatas, ficamos a maior parte do tempo conversando baixinho, pois o que os professores estavam ensinando eu já havia decorado e aprendido durante as férias para não atrapalhar meu treino físico quando voltasse à academia. O dia chuvoso incomodava a maioria dos salamandras, menos um, então todos estavam de mal humor, e eu radiante.


– Parece que ela gosta tanto da chuva como você, irmão! – Disse Annie quando nos reunimos durante o almoço, ela estava com uma cara muito alegre agora, mesmo com a chuva que ela detestava, pois alguém já havia despertado o sol dentro dela. Kuran estava olhando para mim quando meus olhos se cruzaram com os dele.

– Prontos para a primeira missão? – Perguntou ele para nós dois. Susano sorriu:

– Já nasci pronto! – Ele deu um sorriso divertido. – Curioso para saber o que vai ser!

– Eles vão dar o nome do contratante e o endereço, nós vamos até lá e resolvemos o problema, depois recebemos o pagamento, o líder do grupo traz o pagamento até a academia e estamos dispensados! – Explicou Kuran dando um longo suspiro.

– Quem vai ser o líder do grupo? – Palloma que estava sentada escondida depois de Nelin perguntou.

– A Nike! – Responderam Susano e Kuran juntos.

– Ei! Por que eu?

– A Misty pediu para você reportar a prova ontem, então já que ela achou que você tinha que reportar, você fica como líder do grupo! – Disse Susano rindo.

– Ahh...

– Sem reclamar! – Kuran estava de cara amarrada. – Está me devendo um favor, lembra? – Disse ele com um olhar divertido para mim.

– Posso reportar se você quiser, Nike! – Disse Palloma, ela estava com cara de exausta, talvez tenha usado muita energia para fazer a ilusão.

– Tudo bem, Pam! Eu faço isso! – Bufei.

– Vamos sair às oito da noite para receber a missão. – Disse Kuran. – Você deve pegar o contato do cliente com Nyona!

– Entendi. – Acabamos de almoçar, enquanto os outros ficaram lá conversando, eu voltei para o quarto para tirar um cochilo até de tarde. Sayuri e Liilac estavam dormindo ainda e não se incomodaram com minha entrada barulhenta.


Novamente estava naquele campo vermelho à beira do penhasco, as espirais de vidro estavam lá, desta vez a espiral que estava apagada, emanava uma luz suave vindo de dentro e uma sombra com forma quase humana começava a se formar dentro dela.

– Está diferente dessa vez! – Falei, a figura de capa negra estava atrás de mim novamente, ela estava com a foice sobre o ombro e apontava para o grande grupo de pessoas atrás dela no campo. Cada vez que tinha esse sonho, o número de pessoas diminuía, mas Ericko continuava lá, dessa vez ao seu lado haviam mais duas pessoas, uma sombra da mesma altura que ele à sua direita e uma menor a sua esquerda. Os homens vinham por detrás deles como sempre e os atacavam. Como o sonho estava bem diferente desta vez, uma das pessoas armadas se aproximou demais e colocou uma longa faca cintilante na garganta de Ericko. Fiquei observando apreensiva, a faca parecia a que eu tinha feito na Solaris. Me aproximei devagar segurando minha foice nas mãos, só então notei que quem estava prestes a matá-lo era eu! Fiquei observando perplexa, sentia um misto de prazer e ao mesmo tempo estava receosa, como se aquilo não fosse a coisa certa a fazer.

– A destrua antes que ela o mate! – Gritou a morte atrás de mim.

– Mas sou eu! Como posso fazer isso? – Respondi confusa indo em direção a eles. O outro “eu” saiu de trás de Ericko e correu em minha direção para me atacar, ela não lutava bem como eu, na verdade, lutava muito mal! Ela tinha olhos amarelos grandes, um metamorfo! A desarmei facilmente e coloquei a arma em seu pescoço, mas não tive coragem para dar o golpe final. Quando estava prestes a matá-la, ela se transformou em um gato, correu até a sombra a esquerda de Ericko, que se virou e seguiu o gato. Não estava entendendo o que estava acontecendo, até Ericko abrir os olhos azuis e me encarar, ele colocou uma arma em meu peito e os guardas que estavam ao seu redor me prenderam. O rei apareceu entre as pessoas, segurando aquela sombra menor.

– Nikella Modjim, eu te sentencio a morte! – Ele fez um movimento com as mãos.

– Eu não fiz isso! – Respondi chorando. Eu sabia de quem era aquela sombra? Ericko ergueu a espada para mim.


Acordei suando e tremendo, meu rosto estava molhado de lágrimas e meu coração estava acelerado demais. Forcei minhas pernas a me levarem até o banheiro, liguei o chuveiro e fiquei em baixo d’água por um bom tempo até que começasse a me acalmar. Esses sonhos estavam ficando ainda piores, tinha que dar um jeito de acabar com eles! Andei até o quarto devagar, o relógio da cabeceira indicava que eram seis e vinte da tarde, havia dormido mais do que pretendia. Peguei o uniforme preto no armário e o vesti rapidamente, ele era mais leve do que imaginava, parecia estar vestindo uma roupa de tecido fino. Olhei no espelho e sorri com o resultado, fiquei olhando o uniforme preto em mim, aquilo me deu uma motivação ainda maior para concluir o V7 até o meio do ano.

– Eu vou usar esse uniforme depois do V9! – Falei para mim mesma.

– Ficou tão linda! – Annie entrou no quarto me apertando.

– Obrigada Annie, a bota ficou muito boa! – Falei sorrindo ainda olhando meu reflexo no espelho. O cabelo curto estava muito melhor, ele caia em volta de meu rosto deixando-me com aparência mais descontraída. Annie colocou a capa em mim. Peguei as adagas e as coloquei nos suportes das pernas, coloquei algumas esferas de rede nos bolsinhos e um pequeno estojo de antídotos. – Já estou indo! Os outros já devem estar me esperando! – Falei dando um forte abraço em Annie e saindo do quarto.

Desci as escadas do dormitório e corri pelos corredores vazios do prédio principal até a sala de Nyona. Haviam alguns líderes de equipes pegando seus contatos de missão também, eles me ignoraram quando me viram chegar e um a um foram saindo.

– Te colocaram como líder da equipe, Nike? – Perguntou Siorin com um ar descontraído.

– Pois é, acharam que eu daria conta! – Falei brincando.

– Aqui está! – Nyona me entregou um papel cinzento com o selo da Cidade da Sombra Azul, no continente de Agnus.

– Usem o portal na cidade do Sol até Agnus! – Explicou Nyona com um sorriso alegre no rosto.

– Obrigada! – Agradeci virando as costas e deixando a sala dela.

– Ficou assustadora com esse uniforme! – Disse Siorin piscando para mim quando passei por ele.

– Essa é a intenção! – Ri e acenei deixando a sala.


A chuva ainda caía lá fora, porém mais fina agora. Kuran, Palloma e Susano estavam me esperando na saída leste. Susano e Palloma pareciam normais em seus uniformes negros, Kuran estava com o uniforme igual ao de Susano, estava segurando um manto preto, dava para ver o desenho dos músculos de seus braços e peito por baixo do uniforme dele, pela primeira vez o vi com os cabelos loiros soltos, era uma bela visão, sacudi a cabeça espantando esses pensamentos e fui até lá. Ao me aproximar deles, Kuran ergueu as sobrancelhas e esboçou um sorriso.

– O que é? – Perguntei franzindo o cenho.

– Nada! – Respondeu ele mordendo os lábios e contendo um sorriso.

– Vamos logo então! – Falei bufando. – Nyona falou para irmos até a Cidade do Sol e usar o portal! – Fiz menção de ir até a plataforma dos dirigíveis, mas Susano me segurou pelo braço e balançou a cabeça.

– Tem um jeito mais rápido! – Disse ele me soltando e pedindo o papel da missão. Lhe entreguei o papel cinzento e ele quebrou o selo, passou os olhos pela folha e suspirou. – É na Cidade da Sombra Azul! – Susano me devolveu o papel e começou a andar para fora dos muros, o seguimos até o lado de fora, Susano pegou o pingente em seu colar e o transformou em um longo cajado de pedra azul e o bateu no chão, uma esfera brilhante e amarela apareceu diante de nós.

– Um portal? – Perguntei.

– Vamos rápido! É muito difícil manter um desses abertos em Ciartes! – Resmungou ele erguendo o cajado. Palloma entrou primeiro, depois Kuran, eu estava com medo, mas entrei também. Um forte brilho apareceu diante de nós quando pisei do outro lado do portal, Susano veio logo atrás de mim fechando a passagem. Estava chovendo ainda mais nesse continente, porém estava muito frio! Agradeci silenciosamente a Annie pela capa de veludo, mesmo com ela, sentia bastante frio, coloquei o capuz e fechei a capa para me manter aquecida. Susano e Kuran não pareciam estar incomodados com a queda na temperatura. Agnus era um continente dominado por elfos e metamorfos, haviam poucos salamandras por aqui, depois que os magos chegaram a essa região, foi lhes dado permissão para modificar o continente para um clima temperado. Aqui estava no final do outono, por isso o frio já estava tão intenso. As árvores altas da floresta estavam desfolhadas e o chão estava como um tapete em tons de marrom avermelhado, coberto pelas folhas secas das árvores. O vento frio trazia um agradável cheiro dos pinheiros. Sorri inconscientemente com aquele ambiente tão agradável. Nunca havia estado em Agnus, mas tenho certeza de que gostaria de morar ali. A cidade à nossa frente era rodeada por altas muralhas e sobre elas, guardas muito bem armados vigiavam as proximidades. Estávamos descendo uma ladeira até o portão principal, notei que no centro da cidade havia uma espécie de mansão, provavelmente do governante daquelas terras.

– Qual o nome do contratante? – Perguntou Palloma para mim enquanto andávamos em direção a cidade que estava a poucos metros de onde aparecemos.

– Milena Dantras – respondi. – É dona de uma pensão logo no início da cidade.

– Vamos lá então! – Palloma agarrou meu braço e andou ao meu lado até chegarmos aos portões da cidade. Os guardas nem sequer perguntaram nossos nomes quando chegamos aos portões, eles fizeram uma reverência e abriram as portas.


A cidade era bem cuidada, as casas tinham o mesmo estilo da cidade do fogo, porém construídas em madeira e revestidas com um vime escuro para proteger as casas da chuva. A rua de cascalhos grossos era bem estruturada e em cada esquina haviam postes altos com pequenas bolas de vidro com luzes dentro. Aqui estava um pouco mais escuro que em Pergmatis, o continente central onde ficava a ACV. Do outro lado da praça no centro da pequena cidade havia uma pensão de três andares, tive certeza de que era essa pensão. Entramos pela porta, avaliei cuidadosamente os poucos clientes que estavam ali e achei estranho, essa era uma cidade turística, não deveria estar tão vazia assim. Fui até o balcão de atendimento e toquei a pequena campainha, uma senhora de aparência rabugenta veio nos atender.

– Até que enfim vocês chegaram! Não estava mais aguentando esperar! – Resmungou ela fazendo sinal para uma jovem na cozinha.

– Boa tarde senhora, estamos com seu contrato aqui... – mostrei o papel, acenou com a cabeça:

– Sentem-se ali naquela mesa! Já vou lhes explicar o que está acontecendo! – Fomos até a mesa no canto da hospedaria e aguardamos enquanto ela preparava um bule de chá e trazia até nós.

– Aqui, meus queridos! – Disse ela sentando perto de nós e suspirando.

– Como podemos ajudar? – Perguntou Kuran.

– A algumas semanas vem acontecendo algo estanho perto da passagem sul, os viajantes pararam de vir até aqui por causa desse fenômeno... isso está prejudicando os negócios da cidade, não só os turistas pararam de vir como os comerciantes que traziam suprimentos também! – Explicou ela servindo o chá para nós. Uma jovem veio da cozinha trazendo um cesto com rosquinhas fritas cobertas de açúcar e colocou na mesa, ela era bonita, tinha olhos castanhos e cabelos longos loiros presos num coque. Ficou sorrindo e olhando para Kuran, que respondeu com um sorriso simpático mas voltou a atenção para a senhora, não entendi o porquê do gesto dele ter me dado tanta paz.

– Do que se trata esse fenômeno? A senhora já o viu? – Perguntei.

– Não vi, mas minha filha Helin viu! – Disse a senhora gesticulando com as mãos para a jovem que serviu o lanche.

– Não sei exatamente o que era, no começo parecia ser um brilho sem forma, depois de um tempo ficou na forma de um homem e correu para a beira do lago... – explicou a jovem olhando diretamente para Kuran e nos ignorando.

– Um homem? Ele entrou no lago? – Perguntei, ela me olhou de má vontade.

– Sim! Um homem! Ele estava todo molhado e desapareceu no lago, ouvi a voz me chamando, mas quando lembrei dos desaparecimentos fugi imediatamente. – Respondeu rispidamente olhando para mim depois encarando Kuran novamente. – Vocês vão matar a criatura? – Agora ela estava com a voz macia novamente.

– Iremos investigar e ver o que faremos! – Disse ele secamente, outras pessoas entraram na hospedaria e a jovem teve que ir atender

– Sabe nos dizer o horário que os desaparecimentos acontecem com mais frequência? – Perguntei.

– Entre meia noite e três da manhã! – Respondeu.

– Iremos dar um jeito! – Falei.

– Por favor, o lago fica à beira da passagem sul, os viajantes pararam de vir para cá com medo de passar por lá! – Explicou ela se levantando e voltando para o balcão.

– Pode ser um Kelpie... – murmurei. – Kelpies são fracos!

– Nem sempre Kelpies são fracos! Se ele se alimentar de muitas vítimas inocentes, seu poder aumenta e muito! – Disse Susano recostando-se na cadeira – Pode ser um Nukelavee também, não sabemos se o lado é de água doce, ou até mesmo um demônio das águas... – continuou ele tomando aquele chá de gosto horrível.

– Como ela pode servir um chá tão ruim assim? – Perguntei colocando a caneca de volta na mesa e pegando uma rosquinha. Susano e Kuran se entreolharam.

– Gosto ruim? É doce! – Disse Pam olhando-me como se eu fosse louca.

– Não é não! É amargo e picante! – Resmunguei tirando o gosto ruim com a rosquinha.

– Nike, o que você sabe sobre sua mãe? – Perguntou Susano olhando-me com cautela.

– Muito pouco, apenas que ela foi trazida de Amantia quando era criança por um mercador e vendida à família de meu pai. Ela foi criada junto com ele... – Susano enrugou ainda mais a testa. – Por que a pergunta?

– Deixa para lá, bobagem! – Disse ele olhando de lado para Kuran, que esboçou um sorriso e se levantou.

– Vamos! Temos que olhar o local enquanto ainda está claro para ver um bom lugar para ficar de vigia.

Saímos da pensão e andamos em direção a saída sul da cidade, levamos quase uma hora para chegar aos portões de saída, a cidade não era tão pequena quanto parecia vista do alto.

– Cuidado lá fora! – Disse um dos guardas que abriu o portão para nós.


Andamos por mais uma hora e meia até avistar o lago bem próximo a uma passagem entre duas montanhas, não havia outra opção, qualquer um que precisasse visitar essa cidade teria que passar pela beira do lago rodeado por árvores. Descemos até o lago, prestando atenção em volta, talvez algo pudesse aparecer ali a qualquer momento. O céu nublado parecia estar baixo sobre nossas cabeças, as nuvens negras rodopiavam com o vento e as árvores desfolhadas davam um ar ainda mais sinistro ao local.

– Falta uma hora para escurecer totalmente, devíamos encontrar abrigo também, pelo visto vem uma tempestade forte aí! – Disse Susano olhando para o céu.

– Vamos ficar em duplas, vocês dois vão pela direita e nós pela esquerda, nos encontramos do outro lado do lago! Assim, quem achar abrigo avisa os outros! – Disse Kuran pegando o braço de Palloma e indo para a esquerda, o lago era grande, mas conseguiríamos chegar ao outro lado antes da meia noite dando a volta.

– Acho que era melhor eu ter ido com a Pam! – Falei.

– Medo de mim? – Ele sorriu, estava com os olhos dourados e as marcas acesas.

– Não, claro que não! Só acho que a aparição surgiu em forma de homem para Helin por que era uma garota, se nós estivéssemos juntas ela poderia aparecer para nós naquela aparência de novo! – Respondi.

– Nike! Não imaginei que você fosse pervertida assim! Querendo ver uma aparição com forma de um homem todo molhado! – Disse ele rindo.

– Ah! Droga Susano! Não foi isso que quis dizer! – Falei sentindo o rosto esquentar.

– Por que está toda vermelha então?

– Me deixa! – Falei empurrando-o para o lado.

Estávamos na metade do caminho quando notei uma fraca luminosidade azulada entre as arvores, meu coração acelerou e o sangue sumiu de meu rosto.

– Nike, tem uma caverna ali! – Disse Susano indo em direção à claridade, corri atrás dele, não ficaria sozinha naquela escuridão. Havia uma grande fissura nas rochas da montanha que formavam uma grande caverna em forma de um triângulo. O teto da caverna era forrado por pequenos insetos luminosos que se moviam por todos os lados.

– Não são venenosos. – Explicou Susano vendo minha expressão desconfiada.

– Devemos ir até o outro lado buscá-los, não? – Falei, ele assentiu e saiu da caverna, seguindo a trilha da beira do lado até chegarmos ao meio. Pouco depois que chegamos começou a chover novamente, Kuran e Palloma apareceram alguns minutos depois quando a chuva começou a engrossar, Kuran estava com a espada na mão, ela havia se partido ao meio e Palloma estava com o braço ferido.

– O que aconteceu? – Perguntei tirando uma faixa da bolsa e amarrando no braço dela.

– Encontramos um lobo selvagem, aparentemente não tão manso quanto aqueles da prova! – Disse Kuran com a raiva brilhando nos olhos, mostrando sua espada partida. – Ele quebrou minha espada com os dentes!

– Mas vocês o mataram? – Perguntei.

– Sim, fiz churrasquinho de lobo! – Respondeu ele frustrado olhando analisando a espada partida, pensei em me oferecer para consertar, mas ele a atirou no lago antes que eu pudesse falar algo.

– Vamos, achamos uma caverna próxima daqui, dá para ficar lá até a tempestade chegar e passar. – Disse Susano nos guiando de volta a caverna.

Ao entrarmos lá, ele fez aparecer uma fogueira, o que fez os insetos migrarem mais para o fundo da caverna, a chuva engrossou de repente, parecendo que ia inundar o mundo. Palloma sentou ao lado do fogo e Susano começou a limpar seu corte e passou o pó de dragna para fechar o ferimento.

– O lobo que te feriu? – Perguntei olhando preocupada a ferida.

– Não, escorreguei na lama à beira do lago e caí sobre uma pedra e cortei o braço. – Disse ela bufando.

– Encontraram alguma pista da aparição? – Perguntou Susano a eles.

– Muitos ossos humanos do outro lado... também tem muitas pegadas estranhas e marcas de garras nas árvores, não acho que seja um Kelpie, é provável que seja um demônio invocado, talvez alguém esteja lucrando bastante com isso! Mas precisamos achar o altar onde fizeram essa invocação para ter certeza de que é isso! – Kuran estava de pé na porta da caverna, sua pele começou a brilhar como brasas e a água que havia se acumulado em suas roupas começou a evaporar até que ele ficou completamente seco. Dei um passo para longe dele, embora dessa vez quisesse me aproximar já que eu estava toda molhada e morrendo de frio. Susano se aproximou de mim e como da outra vez, assoprou meu rosto fazendo com que eu ficasse seca também.

– Obrigada. – Olhei novamente para Palloma, ela estava quase dormindo. Susano fez aparecer um caldeirão sobre o fogo com algo que parecia ser ensopado dentro, o cheiro estava ótimo.

– Deve ser maravilhoso ter poderes assim! – Falei.

– É sim! – Ele riu. – Minha mãe costuma dizer que eu tenho mais habilidade com meus poderes do que ela tinha, quando era mais nova. Eu duvido muito disso, ela fez um exército de lobisomens perder a maldição pouco mais de um mês depois que descobriu seus poderes! – Eu o olhei de boca aberta.

– Sua mãe deve ser incrível também! – Falei sorrindo para ele. Susano serviu um pouco daquele ensopado para nós, Palloma comeu e acabou pegando no sono.

– Ela não está acostumada a ficar acordada até tão tarde! – Kuran estava olhando ela dormir.

– Vocês são amigos desde quando? – Perguntei.

– Desde sempre, acho! – Respondeu ele com um sorriso amigável. – Quando eu a conheci, ela veio até mim e disse que viu meu futuro... – disse rindo.

– Ela é vidente? – Olhei ainda mais surpresa para ela.

– É sim, mas ela precisa de muita energia para isso, por isso come e dorme como um urso! Não deixei que ela me contasse sobre meu futuro, prefiro as surpresas.

– Vou tirar um cochilo também! Me chamem na hora que a tempestade passar para procurarmos por esse altar! – Susano sentou ao lado de Pam e recostou a cabeça na pedra. Fui até a entrada da caverna e me sentei numa pedra, fiquei em silêncio observando a chuva cair, dava para ver pouca coisa da floresta com a neblina que havia se formado.

– Pode me dizer uma coisa? – Kuran se aproximou e sentou em outra pedra de frente para mim, seus olhos vermelhos e brilhantes como fogo estavam fixos em mim, analisando-me.

– O que quer saber? – O olhei desconfiada.

– Por que tem tanta pressa em se formar na ACV? Por que quer ser a melhor? – Perguntou.

– Gostaria de me tornar uma guarda real, dizem que só os melhores conseguem! – Falei omitindo a verdadeira intenção por trás disso.

– Por que? Tem algum interesse no príncipe? – Perguntou ele com um ar debochado, o encarei como se pudesse fulminá-lo com os olhos.

– Só se fosse em ter a cabeça dele para colocar de enfeite na minha parede! – Falei sem querer, dei um suspiro e virei o rosto para o outro lado, jurava ter visto o rosto de Kuran perder a cor, provavelmente por saber que se eu cismasse, eu faria aquilo.

– O que ele te fez de tão grave para você querer a cabeça dele como prêmio? – Ele agora me encarava sério, não tinha nenhum tom de brincadeira em sua voz. Agora eu já tinha aberto a boca e falado demais, não havia mal em completar minhas palavras.

– Ele tirou alguém que era muito importante para mim!

– Vai se sentir melhor se conseguir se vingar? Normalmente a vingança vem seguida de um imenso vazio, matar a pessoa que tirou esse alguém de você, não vai trazê-lo de volta! – Falou ainda com os olhos fixos em mim.

– Se eu matasse seus pais, você me perdoaria? – Perguntei agora olhando dentro de seus olhos.

– Depende de seus motivos, se você estivesse tentando se defender, se eles a tivessem atacado primeiro... seria muito difícil, mas perdoaria! – Respondeu.

– Acredita mesmo nisso?

– Pessoas fazem coisas ruins, as vezes matam para defenderem aqueles que amam, mas as pessoas que morrem têm pessoas que a amavam também e essas não querem saber o motivo, apenas querem se vingar... – ele olhou para onde Susano e Palloma dormiam. – A mãe dele, a Sacerdotisa das águas, ela matou um lobisomem, o marido de uma feiticeira poderosa para se defender, mesmo estando errada, mesmo sabendo que o marido era um assassino, a feiticeira quis matar a sacerdotisa para se vingar pela morte do marido. Sabe o que o pai de Susano fez quando eles conseguiram capturar essa feiticeira pouco depois dela tentar matar a sacerdotisa?

– O que? – Estava curiosa.

– Ele a perdoou e a mandou embora.

– Não acredito! – Falei.

– Pergunte a ele! – Kuran apontou para Susano. – Essa feiticeira ainda os ajudou numa batalha em Amantia. Seus inimigos podem se tornar amigos quando perdoados! – Disse ele sorrindo para mim. Fiquei um bom tempo olhando aquele sorriso doce.

– Não sou boa em perdoar. – Falei baixinho observando a chuva cair, formando veias d’água no chão.


A chuva começou a estiar aos poucos, já passava de uma da manhã e a neblina ainda estava forte.

– Devemos acordá-los ou vamos procurar o tal altar? – Perguntei.

– Vamos deixá-los dormir! O altar deve estar em algum lugar protegido por magia, acho que deve estar perto dos ossos que encontramos do outro lado! – Disse Kuran saindo da caverna. Fui atrás dele, cruzamos uma pequena ponte que passava por cima de uma fonte de água próxima a borda mais estreita do lago e andamos em silêncio fazendo o mínimo de barulho possível, estava ainda mais frio do que antes. Pisei em algo redondo e alto sem querer que cedeu sob meus pés e despedaçou, era um crânio humano, peguei um pedaço dos ossos que estavam perto daquele crânio e notei que estavam porosos e quebradiços demais, mas não pareciam ser de uma ossada antiga, ainda tinha vestígios de tecido sobre alguns ossos.

– Devemos estar muito perto! – Falei soltando os ossos no chão, senti uma forte presença vindo de uma clareira. – Por ali! – Falei passando a frente dele e indo até lá. No meio da clareira havia uma pedra polida escura com um tecido vermelho e grosso dobrado em cima dela, escorria sangue dali. Kuran se aproximou do altar e virou a cara repugnado com o que viu.

– É pele, uma colcha feita com pele! – Disse ele mandando eu me afastar com as mãos.

– É só destruir que a aparição vai parar, não é? – Perguntei.

– Sim... – quando ele se aproximou da pedra com as mãos em chamas, senti uma mão gelada e úmida tocar em meu pescoço, antes que eu pudesse tocar meu pingente para pegar minha foice, senti algo perfurar entre minhas costelas, a dor foi tão grande que não consegui gritar.

–Estava esperando por vocês. – Sussurrou a criatura – Achei que não viriam, guardiões! – Kuran se virou para trás, sua pele então se acendeu como brasas e seu cabelo virou fogo, ele arremessou uma bola de fogo escura contra o altar que foi completamente destruído em segundos, a criatura que estava me segurando guinchou alto fazendo-me ficar tonta com aquele som horrível e foi consumida imediatamente por um fogo azul.

– Ah, merda! Nikella, você está bem? – Perguntou ele voltando ao normal. Apoiei a mão no chão e me sentei, minha visão estava turva e a dor era tão intensa que não conseguia falar. Kuran se abaixou perto de mim e puxou a lâmina que estava presa entre minhas costelas fazendo o sangue espirrar, dessa vez foi difícil impedir um grito que saiu sem minha permissão de minha garganta. Um par de asas cinzentas pairou sobre nós e desceu, era Susano!

– A aparição a esfaqueou quando nos aproximamos para destruir o altar! – Explicou Kuran ao ver o olhar confuso de Susano, ele me pegou no colo e abriu as asas novamente voando por cima da superfície escura do lago, parecia um espelho negro contra a escuridão, em poucos segundos estávamos de volta a caverna, Susano me colocou no chão ao lado da fogueira, Palloma me olhou assustada.

– Ela está ferida! – Disse Susano procurando por algo em sua bolsa. Palloma me ajudou a tirar o espartilho, por sorte eu usava uma camiseta preta por baixo dele, ela puxou a camiseta para cima e cobriu a boca quando viu o ferimento, com a cara que ela fez, não me atreveria a olhar. Kuran apareceu pouco depois com a lâmina negra ainda na mão, ela tinha pequenos dentes pontiagudos, mas ao invés de olhar o ferimento recente em minhas costelas, ele ficou olhando a marca em minha barriga, parecia ainda mais nervoso.

– É uma lâmina de feita de presas de Naga, Susano, tem veneno nisso aqui! – Disse ele jogando a lâmina no fogo.

– Não temos antídoto para veneno de Naga aqui! – Disse Susano parecendo ainda mais nervoso que antes.

– Ela não está lúcida demais para alguém ferido com veneno de Naga? – Palloma colocou a mão fria e trêmula sobre minha testa e chiou baixinho. – Está com muita febre!

– Temos que levá-la para a ACV. – Disse Susano vindo me pegar novamente.

– Não vai dar tempo, Susano! Veneno de Naga se espalha rápido demais! – Palloma estava olhando para Kuran, ele fechou os olhos e respirou fundo.

– Por favor, não comentem isso com ninguém! – Disse ele se abaixando perto de mim novamente, ele colocou a mão sobre a ferida em minhas costelas, já não sentia nada naquela região, estava tudo dormente. Na testa de Kuran apareceu uma marca estranha, era exatamente do mesmo formato da folha da árvore do fogo e da mesma cor laranja brilhante, não tinha dúvida, era a mesma folha, seus olhos também ficaram brilhantes e laranjas. Senti um intenso calor irradiar da minha barriga para o resto de meu corpo, a dormência começou a passar, então meus olhos começaram a ficar pesados.

– Você é um mago? – Susano o olhava surpreso.

– Por favor, sem comentar isso com ninguém! – Rosnou Kuran em resposta.

– Por quê?

– Meu pai acha que só os fracos nascem com poderes! Ele odeia o fato de minha mãe ser uma maga, ele a proibiu de usar seus poderes e de tanto ignorar seus poderes, ela já não consegue mais usá-los, mas não me deixou ignorar os meus, me faz treinar todos os dias...

– Que bobagem! – Falei, minha voz estava distorcia. – Eu te odiava, mas agora acho que você é legal! Não é o monstro que eu achava que fosse! – Sorri para ele – Acho que até gosto um pouquinho de você! – Segurei uma mecha de seu cabelo que caía por cima de mim e brinquei com ela, ele estava me encarando com os olhos arregalados e surpresos antes de eu fechar os olhos.


6


Descobertas e decepções

 

Acordei quando ainda estava escuro, estava deitada em uma cama macia e tinha alguém ao meu lado, dei um pulo da cama antes de perceber que ela Palloma que estava ao meu lado.

– Nossa! Calma menina! Que susto você me deu! – Disse Pam se levantando e esfregando os olhos.

– Onde estamos? – Perguntei.

– Na hospedaria da senhora que nos passou a missão! – Disse ela amarrando os cabelos.

– Onde estão Susano e Kuran? – Perguntei.

– Desceram para tomar café e estão esperando por nós! – Disse ela se arrumando. – Costurei ele para você! – Disse ela mostrando o espartilho, não dava nem para ver onde havia rasgado.

– Ahhh! – Gemi caindo deitada novamente na cama.

– Nike! O que houve, está doendo ainda? – Ela me virou para olhar a marca rosada em minhas costelas.

– Não... Pam, eu disse mesmo aquilo ontem? – Perguntei ainda com o rosto debaixo do travesseiro.

– Não me assuste assim! – Esbravejou ela revirando os olhos e me dando uma travesseirada. – Disse o que? Que gostava um pouquinho do Kuran? – Ela deu uma gargalhada quando apertei mais o travesseiro em meu rosto.

– Droga! Disse mesmo então, eu estava só pensando...

– Pensou alto, Nike! – Ela deu outra gargalhada. – Ele ficou sorrindo até a hora que dormiu! – Disse ela passando a mão em meus cabelos e me ajudando a vestir o uniforme novamente. A marca em meu lado esquerdo, entre minhas costelas já estava desaparecendo.

Descemos até o restaurante da pensão e fomos até a mesa no canto onde Susano e Kuran estavam, a jovem loira filha da dona do estabelecimento estava ao lado deles conversando e sorrindo, Susano e Kuran estavam sérios e pareciam ignorá-la.

– Bom dia... – Falei sentando ao lado de Susano.

– Olha quem está de pé! – Disse Susano sorrindo e desarrumando meu cabelo.

– Bom dia! – Kuran tinha um sorriso nos cantos dos lábios quando falou comigo, a jovem deixou o café sobre a mesa, me olhou de cara feia e saiu de perto de nós batendo os pés, Palloma sentou ao lado de Kuran e começou a tomar café.

– Então, está finalizado? – Perguntei.

– Sim, mas não era só aquele altar, havia mesmo um kelpie no lago! – Disse Susano estalando os dedos.

– Sério?

– Sim, o matamos quando saímos da caverna, ele estava atraindo mais uma vítima até o lago, uma criança. – Explicou Kuran.

– Mas ainda bem que descobriram aquele demônio também! Se tivéssemos descoberto só o Kelpie, ainda teriam problemas e diriam que não cumprimos a missão! – Falou Susano.

– Você estava mesmo me ajudando no treino, não é? – Perguntei quando Susano ficou em silêncio olhando para o chá.

– Como assim? – Perguntou.

– No treino, quando Siorin estava disparando as flechas, o campo de força...

– Não, Nike, não te ajudei! Por que isso agora?

– Ontem quando o demônio me feriu... ele não foi repelido igual as flechas! – Falei. – Não sabia que salamandras tinham chamas azuis... – olhei para Kuran que agora me observava cautelosamente também.

– Aquilo não fui eu! – Disse ele desviando o olhar para a janela.

– O que não foi você? – Perguntou Susano olhando para nós dois.

– Quando o demônio a feriu, ele incendiou em chamas azuis e se desmanchou.

– Isso é bem estranho! – Susano estava com os olhos semicerrados e me analisando.

– Preciso perguntar mais uma coisa... – Susano ficou tenso, mas assentiu.

– Pergunte!

– Você é humano, não é? – Perguntei, ele franziu o cenho e confirmou.

– Sim, por que isso agora? – Palloma e Kuran também olhavam curiosos para mim, esperando que eu completasse a pergunta.

– As asas... reparei que você tinha asas ontem, ou estava alucinando? – Susano pareceu aliviado e soltou uma gargalhada contida.

– Phoenix Alas! É uma poção que dá asas a portadores de magia, quando você a toma, uma tatuagem da criatura que você escolheu ter as asas aparece em suas costas, assim, quando você concentra sua energia nessa tatuagem, ela projeta as asas como se fossem suas!

– Ahh, entendi, uma ótima ideia! – sorri. – Que tatuagem você tem?

– Uma coruja! – Ele piscou para mim e terminou seu chá.

– É melhor irmos reportar a missão! – Disse Kuran com rispidez.

– Sim, vamos! – Dissemos e nos levantamos para partir.

Estávamos saindo da pensão quando a jovem parou Kuran, segurando seu braço e sorrindo para ele disse:

– Pode voltar sempre que quiser! – Disse ela sorrindo ainda mais para ele.

– Claro que posso! Mas tenho coisas mais importantes a fazer! Espero que os negócios melhorem! – Ele soltou a mão dela de seu braço e saiu pela porta. Não consegui conter um sorriso, ela olhou feio para mim, com tanta raiva que suas narinas estavam dilatando.

Susano abriu um portal do lado de fora da pensão, não esperou saímos da cidade, atravessamos rapidamente sem olhar para trás, só queria reportar logo e missão e ir para casa.


Paramos diante do portão leste quando saímos pelo portal, o silêncio só era quebrado pelo som das árvores na floresta atrás de nós.

– Vou direto para casa, tenho que resolver uns problemas por lá! – Disse Kuran acenando para nós e indo em direção à plataforma de embarque.

– Também vou para a cidade do Sol, tenho que encontrar minhas irmãs lá! – Disse Susano me dando um abraço cuidadoso e acompanhando Kuran.

– Vou lá dentro pegar umas roupas para levar para casa, tenho que lavar algumas delas! – Palloma me acompanhou até o dormitório, ela ficou no segundo andar enquanto subi até meu quarto para pegar as roupas para lavar também. Era muito estranho entrar naquele quarto vazio daquela forma, Liilac e Sayuri não falavam quase nada e nunca estavam acordadas quando Annie e eu bagunçávamos, mas a presença delas dava vida ao local, peguei as roupas e saí do quarto, voltei ao prédio principal com o papel da missão com assinatura da dona da pensão e o dinheiro da recompensa. Eles usavam esse dinheiro para manter a ACV, claro que uma grande parte vinha do palácio, mas o dinheiro das missões ajudava muito também.

– Com licença! – Entrei na sala de Nyona, a porta estava entreaberta então não vi problema em ir entrando, ela estava sentada em sua mesa tomando chá e olhando pela janela, o tempo continuava lindo, nublado e com nuvens pesadas encobrindo os sóis.

– Correu tudo bem? – Perguntou ela virando-se para mim e estendendo a mão para que lhe entregasse o documento e a recompensa.

– Foi tudo bem sim! – Respondi.

– Detalhes, Nikella! Reporte a missão!

– Hmm... Tivemos que caçar um Kelpie que estava assombrando um lago na passagem sul da cidade e espantava os comerciantes e turistas, também encontramos e destruímos o altar de um demônio das águas.

– Um demônio das águas? – Ela ficou surpresa.

– Sim senhora, nada que não conseguimos lidar facilmente! – Lhe dei meu melhor sorriso para provar que correu tudo bem.

– Ótimo então! Está liberada! – Disse ela curvando de leve a cabeça e sorrindo.

– Até segunda!

Saí da sala e fui direto para a plataforma, estava louca para chegar em casa e contar o que houve para Merian. O dirigível estava parado esperando o horário de saída, entrei e sentei na frente, estava ansiosa demais dessa vez.

A viagem até a Cidade dos cata-ventos demorou mais do que o normal, algumas vezes durante a viagem me vi tremendo as pernas e batendo os joelhos querendo que andasse mais rápido. Durante o trajeto, notei as folhas da árvore do Fogo que voavam soltas trazidas pela brisa, elas eram tão lindas, era a primeira vez que as via assim, logo me lembrei do rosto de Kuran e franzi o cenho, não queria vê-lo toda vez que visse a árvore, mas foi automático, afinal não tinha problema, ele era até bem legal!


Desembarquei na plataforma da cidade e fui direto para casa, passei correndo pelas ruas, respondendo apenas com acenos as pessoas que falavam comigo. Esbarrei com Messair ao passar em frente ao prédio central da cidade, onde eram realizadas as reuniões.

– Ah, senhor Messair, me desculpe! – Falei.

– Nikella! Bom dia! Vai aparecer na reunião hoje? – Eu havia me esquecido totalmente da reunião.

– Vou sim! – Respondi.

– Que bom... mas mudamos o horário, será às vinte uma horas desta vez! – Disse ele coçando a barriga, o olhar dele sobre mim me irritou bastante, sentia vontade de dar-lhe um chute naquela pança, mas apenas assenti com a cabeça e voltei a correr em direção à minha casa.
Merian estava na cozinha preparando algo que tinha o cheiro simplesmente delicioso.

– Bom dia! – Falei bem alto jogando a mochila no chão da sala e correndo até ele para lhe abraçar. Merian me olhou com estranheza, segurou meu rosto e olhou em meus olhos, depois me soltou e suspirou.

– Nossa, faz tantos anos que não te vejo com tanto bom humor que achei que alguém estivesse vestindo seu corpo! – Ele riu e voltou a mexer na panela.

– Poxa, eu sou legal com você sempre! – Resmunguei.

– Como foi a primeira missão? – Perguntou ele olhando-me pelos cantos dos olhos.

– Quase morri para um demônio, mas foi tudo bem! – Ele sacudiu a cabeça.

– Você é louca, só pode! – Disse ele me dando a colher que estava mexendo o doce para eu lamber, ele sempre fazia isso.

– E você? Como foi essa primeira semana? – Perguntei.

– A mesma porcaria de sempre! Gente idiota implicando, professores e matérias chatas...

– Por que não sai da ACV então? – Perguntei.

– Não sei, acho que só vou por causa de você! Mas agora você não precisa mais de mim lá! Já conseguiu amigos! – Disse sorrindo, ele segurou meu rosto e beijou minha bochecha limpando o doce que havia ficado em meu rosto. – Não sabe comer sem fazer sujeira, parece uma criança!

– Não precisa ir por mim se não gosta! – Falei ignorando sua implicância.

– Vou pensar! – Disse ele bagunçando meu cabelo e tirando a geleia do fogo. – Ficou lindo esse novo corte! Te deixou com menos cara de chata irritante! – Eu o empurrei e ri. – Não, Sério! Ficou muito bonita, combinou perfeitamente com você! – Ele me olhou de forma diferente, algo que fez meu estômago embrulhar, então tentei forçar a mim mesma acreditar que era algo de minha imaginação.

– Tenho que ir numa reunião hoje, Messair falou que é algo de meu interesse... – vi os olhos de Merian passarem de tranquilos e descontraídos para furiosos em questão de segundos.

– Por que chamaram você e não a mim? – Esbravejou ele esmurrando o balcão onde eu estava sentada.

– N-não sei, Meri! Mas se faz tanta questão, vá você, não tenho interesse no que eles têm a dizer! – Falei assustada saindo do balcão e indo até a sala pegar as roupas para lavar.

– Não... vá você! Depois só me diga o que queriam com você, que assuntos tinham a tratar! – Ele foi até o quarto e bateu a porta. Sua mochila estava no chão da sala, peguei suas roupas e as levei para lavar também. Sabia muito bem que ele se sentia diminuído por eu ser melhor que ele, mas nunca pensei que isso o afetaria assim.

Lavei toda a roupa que havia acumulado durante a semana, o tempo estava chuvoso e úmido demais, assim a roupa não secaria a tempo de ir para a academia na segunda, então as estendi na estufa, assim secariam até a noite. Limpei a poeira dos móveis, acabei limpando a casa toda até a hora do almoço, eu era um desastre na cozinha, mas como Merian não saía do quarto, tive que tentar fazer algo para comer. Acabei fazendo um macarrão grudento com molho salgado e comi com lágrimas nos olhos aquela gororoba horrível. Fui para meu quarto e me joguei na cama, liguei o rádio não muito alto para não incomodar meu irmão e fiquei deitada lendo um livro qualquer apenas para passar o tempo.


Acordei cantando burn it down baixinho, a música ainda estava tocando no rádio quando levantei e o desliguei, Melissa, uma vizinha humana costumava visitar a terra de tempos em tempos e sempre trazia músicas boas para mim.

Fui até a sala e me joguei no sofá, fiquei brincando com o pingente de meu colar distraída enquanto Merian fazia o jantar, aparentemente ele estava lutando para soltar os restos do meu macarrão do fundo da panela.

– O que você fez aqui? Macarrão com cola? – Perguntou ele frustrado batendo a panela na pia.

– Desculpe pela panela, se serve de consolo acho que ainda não digeri o macarrão! – Falei pousando a mão sobre a barriga, estava se revirando ainda, recusando-se a dissolver aquela cola que preparei achando que era macarrão.

– Vamos trocar de habilidades então, você cozinha e eu aprendo a usar armas!

– Prefiro usar as armas! – Falei brincando.

– Eu também preferiria... – ele trouxe um prato com bolo coberto da geleia de framboesa que ele havia feito.

– Está ótimo Meri! – Falei comendo o bolo em poucas mordidas. O relógio em cima da estante de madeira marcava sete e meia da noite, fui até meu quarto e troquei de roupa para ir até a reunião dos hostes, vesti um jeans preto, minhas botas e uma blusa de mangas folgadas cor de canela. Desci as escadas, quando olhei para a sala, alguns dos colegas de turma de Merian estavam lá, eles estavam sentados pelo chão da sala.

– O que estão fazendo? – Perguntei olhando por cima do ombro enquanto pegava minha bolsa de couro no balcão da cozinha.

– Você não tinha que sair, Nike? – Sabia pelo tom de voz de Merian que ele queria que eu saísse.

– Já estou indo! – Sai batendo a porta atrás de mim, ouvi as risadas dos amigos dele quando saí, bando de babacas, não tinha como os chamar de “amigos”.

Não tinha nenhum lugar divertido para passear pela cidade, a praça a essa hora estaria cheia de crianças, só ficava vazia ao escurecer, mas Gálatas ainda estava no céu.

Andei pelas ruas movimentadas da cidade até o centro, onde estava com menos movimento, nos últimos anos nada havia mudado por aqui, tudo estava exatamente do mesmo jeito, não que eu não gostasse assim, mas nunca me senti em casa aqui, ainda mais depois que meu pai se foi. Faltava ainda uma hora para a reunião dos hostes, mas mesmo assim resolvi entrar no prédio e aguardá-los na sala, talvez lá dentro tivesse café.

Havia acompanhado meu pai várias vezes a essas reuniões, ele sempre me levava no colo, eu ficava escondida embaixo da grande mesa redonda de pedra, comendo chocolates escondida e totalmente alheia aos assuntos tratados ali. Subi as longas escadas de mármore em espiral no salão central, cada degrau fazia meu coração apertar, lembrava-me de meu pai e de Violet. No final das escadas haviam duas portas grandes de madeira trabalhadas à mão e envernizadas, agora estavam gastas e sem brilho. Ao me aproximar da porta escutei vozes exaltadas, andei na ponta dos pés até lá e me encostei na parede para que ninguém me percebesse ali, fiquei desejando com todas as minhas forças que eles não tivessem me ouvido chegar.

– ... tem certeza de que é uma boa ideia trazê-la para o conselho, Messair? – A voz que perguntou era conhecida, era a voz de Gillian, o vizinho sereiano emburrado que não gostava de mim e de Merian.

– Ela vai nos ajudar, Gill! Ela era muito apegada aos pais, tenho certeza de que tem sede de vingança! – Respondeu Messair, eles estavam falando de mim!

– Não tenha tanta certeza! Não se pode confiar em magos, muito menos magos humanos! – Respondeu Gillian o que ele queria dizer com “confiar em magos? ”.

– Eu também acho que ela vai nos ajudar, Gill, você viu os olhos dela quando Laila contou como os pais dela morreram? Menos de uma semana depois ela já estava na ACV e hoje é uma das mais avançadas! Ela com certeza deve planejar se vingar! – Disse outra voz que não reconheci, meu coração batia tão forte que podia escutar as batidas, vê-las através de minha blusa.

– Ainda acho que vocês estão se arriscando querendo trazer essa garota aqui, Messair! Se ela descobrir a verdade, ela pode querer te entregar todos nós ao rei! Nós com certeza seríamos mortos por traição ao reino! Lembra-se que tivemos que jurar fidelidade ao rei quando Jacir e Violet foram mortos pelo príncipe? – Gillian falou, estava cada vez mais espremida à parede tentando escutar perfeitamente cada palavra desejando apenas ser parte da sala.

– O rei nos descobriu, descobriu que estávamos tramando matá-lo e tomar a cidade do Sol! – Disse a outra voz. – Vocês se lembram bem como eles morreram? O príncipe mesmo disse “que isso sirva como aprendizado, não desafiem se não podem vencer”.

– Jacir e Violet morreram por que tentaram matar o príncipe, ele veio até nós para negociar a paz, ofereceu abrir os portais para que fossemos para o mundo que quiséssemos, mas a ganância de vocês falou mais alto! Vocês encheram a cabeça de Jacir e o convenceram a se livrar da família real para tomar Ciartes, Jacir não aceitou a oferta do príncipe e o atacou pelas costas! Mesmo o príncipe estando ferido se defendeu dos ataques de Jacir, Violet só morreu por ter entrado na frente para defender o marido! – Disse uma voz trêmula de mulher.

– Cale a boca Dagien! – Esbravejou Messair. – Nikella é uma maga, como a mãe dela era, o pai lhe colocou uma pulseira de prata e pedras da lua que impede que ela use os poderes, se não lhe dissermos nada sobre os pais dela, ela não tem como descobrir sozinha! Se ela encontrar o príncipe, com a raiva que tem dele, ela vai o matar facilmente! Se você tivesse visto a força que ela tem!

– Fora as armas que ela fabrica, com as armas dela poderíamos tomar Ciartes facilmente! – Disse outra voz. Fiquei entorpecida, em silêncio olhando para a pulseira que meu pai havia me dado quando ainda era criança, ele havia dito para eu nunca a tirar que ela me protegeria de tudo, agora sabia que meus pais eram os traidores! E que os membros dos hostes só queriam usar meus poderes tomar a Cidade do Sol. Minha garganta estava trancada, sentia lágrimas quentes escorrendo pelo meu rosto, queria entrar naquela sala e matar todos eles por mentirem para mim, por mentirem sobre meus pais. Ainda tinha raiva do príncipe por tirá-los de mim, mas se eles não o tivessem ferido, talvez eles só tivessem ficado presos ou fossem banidos, Cada um paga o preço por seus atos. Lembrei das palavras de Susano.

– Está quase na hora dela chegar! – Disse Messair.

– Vou lá fora para ver se ela está vindo! – Ouvi os passos de Gillian vindo em direção à porta, não tinha nenhuma saída para mim, o corredor era longo e não haviam portas ali para que eu entrasse e me escondesse, se tentasse descer as escadas ele com certeza me veria. Havia uma única janela aberta bem ao meu lado, que dava para um beco fechado onde havia um restaurante abandonado. Sem pensar duas vezes puxei o pingente do pescoço e me atirei pela janela, usei a foice para fazer um gancho contra a parede do restaurante abandonado, ela rasgou a parede como faca quente na manteiga, mas ficou presa na tubulação de metal, minha mão esquerda escorregou, deslizando na ponteira de lança na extremidade da haste, mesmo assim consegui parar e ficar pendurada nela a alguns centímetros do chão. Soltei a foice da parede e olhei para a janela, vi a sombra de alguém passando e corri para a entrada do beco, pulei o muro alto e saí na rua de trás, notei que todos estavam olhando assustados para mim, logo percebi que os olhares não estavam em mim, mas na foice que tinha um forte brilho branco-azulado. A pressionei com a mão esquerda fazendo-a voltar a ser um pingente e coloquei no pescoço, só então notei que minha mão estava sangrando muito. Peguei uma toalhinha na bolsa e a enrolei na mão enquanto andava de volta para casa evitando a rua principal.


Abri a porta de casa, tinha um nó em minha garganta e não sabia como desmanchá-lo. Tinha que contar para Merian o que havia escutado, porém ao olhar para sala, senti uma vontade enorme de lhe encher a cara de tapas.

– Merian! – Gritei, ele e os amigos estavam destruindo a sala com uma das minhas espadas que ficavam na parede como decoração, eles estavam bêbados e riam da destruição que causavam.

– Ih, chegou a dona da casa! – Um dos idiotas que estavam com ele caiu de cima do sofá apontando para mim e rindo.

– Bem-vinda ao palácio, rainha dos Venox! – Gargalhou outro deles debochando de mim.

– Saiam! Você também Merian! Só volte aqui quando estiver sóbrio! Que vergonha! – Falei apontando para a porta, eles explodiram de rir, Merian olhou-me com raiva dos olhos.

– Você não manda em mim, Nikella! Olhe-se! É uma criança, vá para seu quarto e nos deixe em paz! – Disse ele com a voz enrolada.

– VÃO SAIR DAQUI AGORA! – Gritei esmurrando a porta com a mão ferida, senti um choque de dor, mas o ignorei. Eles continuaram rindo e debochando de mim.

– Você não pode contra todos nós! – Disse um deles se aproximando de mim com um sorriso malicioso no canto da boca, ele puxou uma faca de dentro da bota.

– É esse tipo de amigos que você consegue? Não se importa se eles me fizerem mal? – Perguntei, Merian olhava confuso de mim para o cara que vinha em minha direção com a faca na mão, outros dois fizeram o mesmo. Dei um passo para trás, tocando as costas no balcão que dividia a sala e a cozinha, bati no suporte de madeira, havia escondido armas por toda a casa, desse esconderijo caiu uma besta já armada. A girei em volta da minha cintura apontando para um deles e disparando, a flecha arrancou seu boné da cabeça cravando-o na parede atrás dele.

– A próxima eu não vou errar de propósito! – Falei apontando para eles.

– Ela é louca! – Gritou ele correndo em direção a porta, tropeçando no tapete e caindo para fora da varanda. Os outros correram quando fiz menção de atirar novamente. Merian estava olhando para mim com um ódio animalesco.

– Não bastasse ser melhor que eu em tudo, ainda me fez passar vergonha na frente de meus amigos! – Gritou ele atirando o vaso de flores na parede.

– Amigos? Chama aquilo de amigos? – Gritei em resposta. – Você é meu irmão! Eles queriam me fazer mal e você nem ligou, não ia nem tentar impedir! – Estava chorando mais ainda agora.

– EU não ia impedir, eu ia ajudar eles! – Disse ele andando até mim e apertando meus braços ignorando a besta apontada para sua barriga em minhas mãos.

– Não acredito que disse isso, Merian! Você é meu irmão!

– Você não é nada minha! – Berrou ele de volta tomando a besta de mim e a jogando por cima do balcão. Merian não sabia usar bem arma nenhuma, mas tinha uma força muito grande, afinal era um metamorfo.

– Vá embora, Merian! Essa casa é minha e eu não o quero mais aqui, nunca mais! – Falei tentando me acalmar.

– Não vou... – Ele me deu uma rasteira derrubando-me no chão e me segurando contra o piso frio de madeira.

– Eu não quero te machucar, em respeito a tudo que sua mãe fez por mim, por tudo que você representava para mim, saia e eu não te machuco! – Falei.

– Não seja tão arrogante! Acha que pode me fazer alguma coisa desarmada? – Ele mudou sua aparência, ficando muito maior e mais forte, tão grande a ponto de minhas mãos parecerem patas de gato sob as suas, ele pressionou seu joelho entre minhas pernas, forçando-me a abri-las. – Você ficou tão bonita depois daquele sangue de Aswang... Era uma menininha sem graça e magrela, mas faz um tempo que mudou, um bom tempo que já tenho outros interesses em você... – ele se abaixou sobre mim, pressionando os lábios em meu rosto quando virei para o lado, um ódio ferveu dentro de mim com tanta força que senti um gosto metálico na boca. – Sabe, Nike! Eu contei a Candace que você estava fazendo as armadilhas no banheiro dos professores, eu te entreguei por que queria ver você se dar mal, e lamentei muito por você não ter morrido no muro aquele dia! – Sua voz baixa soou em minha cabeça, fazendo-me enxergar tudo em vermelho.

– Como o destino age de forma estranha! Descobri que não odeio mais uma pessoa que tinha certeza que odiaria para sempre, e agora odeio pessoas que amava! – Falei desvencilhando-me facilmente de suas mãos, puxando minhas pernas para cima e chutando seu rosto com toda força que pude. Merian foi atirado contra os móveis da sala, estilhaçando a mesa de vidro do centro, levantei-me rapidamente e peguei as bolinhas de enfeite do vaso que ele havia quebrado, eram na verdade as redes. Atirei uma contra ele, prendendo-o como uma caça, ele estava desacordado. Andei pela casa recolhendo minhas coisas e arrumei tudo numa mala, tinha acumulado poucas coisas durante esse tempo, peguei apenas minhas roupas, sapatos, músicas...

Entrei no quarto de meus pais, ele estava trancado por todo esse tempo, nunca permiti que Merian entrasse lá. Andei pelo aposento empoeirado e fui até a cômoda, em cima dela tinha uma caixa de madeira trancada à chave, que estava pendurada em minha pulseira de prata. Abri a caixinha com cuidado e tirei de dentro dela uma carta, meu pai nunca deixava que eu lesse aquela carta, se ele soubesse que iria morrer naquele dia, provavelmente a teria destruído. Depois que ele morreu nunca tive coragem de abrir e ler, achei que estaria o ofendendo se o fizesse, mas agora isso não importava mais. Peguei a carta e a coloquei na bolsa de couro que Annie havia me dado e desci as escadas, Merian já havia acordado e estava tentando se soltar da rede, mas a prata o impedia de usar sua força sobre-humana para se soltar.

– Eu vou fazer você se arrepender disso! Vou tirar algo importante de você, e você vai perceber que não é nada! Que não passa de uma inútil! – Berrou Merian, quando me viu ir em direção da porta, voltei até onde ele estava, limpei as lágrimas do rosto e lhe dei um chute embaixo do queixo.

– Experimente... – falei, ele estava desacordado novamente. Segurei uma das adagas de vitrino na mão e pensei em lhe matar, mas não conseguiria fazer isso, então como os antigos clãs de caçadores, marquei seu rosto com um risco da sobrancelha esquerda até a bochecha direita, deixei o sague escorrer e fiquei observando-o até que começou a coagular. Saí pela porta da casa batendo-a com força, agora sentia que nada mais me prendia aquele lugar, foi uma sensação horrível, mas eu precisava fazer isso, precisava sair dali. Deixei meus pés livres e eles me levaram até a plataforma de embarque da cidade, o sol já havia desaparecido quando pisei lá. O último dirigível para a cidade do Sol saía as dez e meia da noite, embarquei e me sentei na última fileira de bancos, deitando sobre eles, a viajem até a cidade do sol levaria pouco mais de três horas, então era melhor dormir ou meus pensamentos fariam minha cabeça explodir.


Abri os olhos e estava de volta ao penhasco da grama vermelha, todas as espirais estavam acesas agora, a última que sempre estivera apagada ou com um fraco brilho, tinha alguém dentro e estava brilhando. Olhei para o campo onde deveria estar o príncipe Ericko, mas quando o vi comecei a gritar com a morte que novamente apontava para o campo.

– Ah por favor, me deixe ter um sonho tranquilo só dessa vez! Eu preciso descansar! – Berrei batendo com a foice no chão. Ela ficou me encarando por um bom tempo antes do sonho mudar, o sol apareceu levando embora as nuvens negras, os homens e as espirais deixando apenas a grama vermelha e o castelo em ruinas. Deitei-me na grama macia e fiquei em paz pela primeira vez observando o céu azul claro coberto por mandalas prateadas e brilhantes.

– Apreciando a paisagem? – Perguntou um homem se aproximando de mim.

– Na verdade estou sim! – Falei sorrindo. Ele era muito bonito, tinha olhos claros e longos cabelos loiros, uma barba clara cobria seu rosto, mas havia algo maligno em seu sorriso, algo que não podia decifrar.

– Não por muito tempo! – Disse ele atravessando uma longa espada em meu peito.


Acordei com a piloto do Dirigível me sacudindo e me chamando.

– Moça! Chegamos, acorde! – Disse ela mexendo em meu ombro. Levantei-me com dificuldade, estava tonta do sonho e de tudo que havia acontecido até ali, meu rosto ainda estava molhado de lágrimas, as sentia escorrendo e esfriando com o vento frio que soprava ali fora. Saí do dirigível em direção aos portões da cidade, todas as lojas estavam fechadas e a cidade dormia em silêncio. Eram quase duas da manhã quando cheguei ao portão da cidade central, o guarda nem pediu para ver minha permissão para me deixar entrar, simplesmente sacudiu as mãos para que eu passasse. A cidade central estava acesa, o palácio também, a movimentação era bem maior aqui, parecia estar acontecendo algum evento, porém só queria achar o hotel da senhora Germinia, irmã mais nova de Taures e pedir um quarto a ela. No meio do caminho até o hotel, encontrei com Susano, Annie, duas jovens gêmeas e Kuran. As gêmeas seguravam os braços de Kuran, uma em cada lado, e Susano estava com o braço pousado de leve na cintura de Annie.

– Nike! – Annie disse meu nome com tanta alegria que fez meu coração se apertar ainda mais, seu sorriso foi substituído por um olhar de pânico ao ver minha mão, havia me esquecido completamente do corte, que agora estava com uma casca e meu braço estava coberto de sangue seco. – Céus! O que houve, você está bem? – Perguntou ela se aproximando, dei um passo para trás, para que ela não se aproximasse.

– Tudo bem, Annie, tive um problema com uma de minhas armas, só isso! – Falei puxando a manga da blusa tentando cobrir as marcas arroxeadas das mãos de Merian.

– Não parece que isso aí foi por um problema com uma arma, parece que foi um problema com alguém armado. – Kuran olhava sério para mim.

– Por que estava chorando? – Perguntou Susano tentando se aproximar também.

– Desculpe, mas se não se importam eu preciso ir! – Falei desviando deles e correndo até o hotel. Entrei rapidamente pela porta lateral e fui até o balcão, uma senhora estava sentada ali tirando um cochilo.

– Com licença, senhora Germinia? – Chamei acariciando de leve sua mão macia com a pele esticada como uma folha de papel de seda.

– Nike, como vai? – Perguntou ela abrindo pouco seus olhos.

– Desculpe incomodá-la tão tarde.

– Você não incomoda, meu bem! Se não fosse por você eu não teria esse hotel na cidade central! – Disse ela com um meigo sorriso em seu rosto repuxado.

– Senhora Gih, tudo bem se eu ficar em um dos quartos essa noite? – Perguntei, só então ela reparou em mim e notou que algo estava errado. Seus olhos pousaram sobre as marcas em meus braços, ela ficou de pé num pulo e seus olhos brilharam em um branco leitoso e sua aparência se alterou até ficar como de uma mulher bem mais jovem. Ela pegou uma chave atrás do balcão e me levou até o segundo andar, abriu a porta do quarto e me deixou andar. Coloquei as malas ao lado da cama e me sentei.

– Conte-me tudo! – Disse ela pegando um pano e água quente na pia do banheiro e vindo limpar minha mão. Sabia que para que ela me deixasse ficar, teria que contar a verdade, porém só contei a parte de Merian, não queria causar problemas a ela, e sabia que ela não poderia ser a primeira a saber sobre os hostes.

– Pode ficar o tempo que quiser, Nike! Sem que sei você esse hotel não existiria, foi graças ao dinheiro de suas armas que o consegui, você é dona disso tudo também! – Disse ela afagando minha cabeça.

– Obrigada, Gih. – Falei.

– Quer que eu te traga algo para comer?

– Só quero dormir agora... – falei.

– Então durma bem, se precisar é só chamar! – Disse ela saindo do quarto e deixando-me sozinha. Por mais que eu não quisesse alguém perto, estava sentindo um vazio, só queria alguém para abraçar agora. Fui até o banheiro e entrei na banheira, fiquei ali na água quente pensando: Com ou sem mim, eles vão tentar matar o rei. O que eu vou fazer agora?


7


Castelo do Sol

 

Mal havia passado das sete da manhã quando acordei, meu corpo estava dolorido e as marcas roxas em meus braços estavam bem mais visíveis agora, o que tirou minha esperança de tudo não ter passado de um pesadelo. Sentei na cama e tateei a mesinha de cabeceira procurando por minha bolsa de couro, tirei de dentro dela a carta de minha mãe, não sabia se estava preparada para ler o conteúdo daquela carta, mas depois de descobrir que meu pai era quase um bandido rebelde, nada podia ser pior do que aquilo. Havia defendido a ideia de me vingar pela sua morte com unhas e dentes, mas se ele agiu errado, mais do que errado e pagou com a própria vida, o que eu poderia fazer? Desdobrei a carta com cuidado, o papel desgastado e fino agora estava amarelado, tinha cheiro de poeira e mofo, as letras desenhadas e leves estavam começando a se apagar. Inspirei profundamente antes de começar a ler.


“Jace,

Eu sinto muito por não ter conseguido te fazer feliz como gostaria, sei que nós crescemos juntos, conhecíamos um ao outro melhor que a nós mesmos e sempre estivemos um ao lado do outro. Mas depois que você se uniu aos hostes, você se tornou frio, amargo e não me tratava mais como alguém que um dia disse me amar tanto e eu sinto tanto por isso! Queria poder ficar, queria ter forças para continuar tentando e poder te afastar deles, mas você não quer partir comigo, você prefere ficar e se arriscar por algo que não está preparado para enfrentar, o que está fazendo é errado e sabe disso, mas você não me escuta mais! Me dói muito deixar você, e se não fosse pelo amor que você demonstra para com suas filhas, nunca deixaria Nikella com você! Peço apenas para que cuide bem dela, a coloque acima de suas ambições e cuide para que ela esteja sempre segura! Eu a amo assim como a Gwynn, mas não posso levá-la para onde vou, a maldição ainda não foi quebrada e Dartaris é muito perigoso, mais do que Ciartes, que é protegido pelos caçadores do rei. Se um dia você achar que algo de ruim vai acontecer, mande-a para mim, estarei sempre no mesmo lugar, no Vale da Lua em Dartaris. Diga a ela o quanto a amo, e nunca a proíba de usar os poderes dela como fez comigo por todo esse tempo, ser um mago é um dom maravilhoso e não algo abominável como você sempre achou. Queria poder mudar seus pensamentos, mas já que não posso, tudo que me resta agora é lhe dizer adeus. ”


Tiena Arbarus.


Passei os olhos pela sua assinatura novamente, os olhos estavam tão cheios de lágrimas que escorreram pelo meu rosto molhando o papel, até hoje não sabia o nome dela, meu pai nunca me falou. Agora desejava ir conhecê-la em Dartaris, mas até onde sabia, o tempo passava muito diferente daqui, mais lentamente, minha irmã deveria ter oito anos e meio agora. Ela não havia nos deixado por que não gostava mais de nós, ela o deixou por ele ter se tornado ruim. Por mais estranho que possa parecer, sentia que não podia ir procura-las agora, mas as encontraria um dia! Dobrei a carta e a coloquei dentro de um estojo onde guardava a primeira adaga que fiz, me vesti da forma que sempre fazia aos fins de semana quando estava em casa, porém estava mais fresco hoje, a chuva ainda caía lá fora, então vesti um moletom e uma camiseta, olhei para meu reflexo no espelho, por sorte meus cabelos eram bem lisos, agora mais curtos podia mantê-los arrumados sem ter que pentear toda hora, mas ao lembrar das palavras de Merian sobre meus cabelos, me senti enojada e desejei poder fazê-los crescer novamente. As marcas roxas em meus braços eram visíveis de longe, então as escondi com braceletes de elástico e desci até o restaurante para tomar café. O hotel de Gih era muito bonito, construído com pedras da Montanha de Garuhi, elas eram de um verde leitoso e foram polidas, fazendo as paredes parecerem espelhos, o chão forrado com um carpete de trama marrom, vermelho e dourado dava um ar sofisticado ao ambiente. O senhor Taures estava sentado próximo à entrada tomando café com Gih.

– Bom dia... – Me aproximei da mesa.

– Nike, sente-se! – Gih se levantou para que eu sentasse ao lado do senhor Taures. – Vou buscar algo bem gostoso para você! – Ela me deu um cafuné na cabeça e foi em direção à cozinha do hotel. Taures pigarreou e virou os olhos para a grande janela adornada por uma cortina vermelha de veludo e deu um suspiro longo e cansado, ele realmente não parecia bem esses dias.

– Germinia me contou o que houve... – disse ele coçando a cabeça. – Se eu tivesse idade, Ahh eu dava uma surra naquele moleque! – Esbravejou ele batendo com a caneca na mesa.

– Não se preocupe, eu estou bem! – Respondi.

– Pode ficar aqui o tempo que quiser! É muito bom ter você por perto! – Disse ele com um sorriso constrangido no rosto enrugado.

– Obrigada, mestre Taures! – Falei, ele sempre gostava quando o chamávamos de mestre.

– O que vai fazer com relação ao Merian? – Perguntou Gih aproximando-se com uma xícara de chá e um prato com ovos mexidos e torradas.

– Não vou fazer nada, Gih, vou fingir que não existe! Sou boa em esquecer pessoas que não me fazem falta! – Falei tentando engolir o caroço em minha garganta com um gole do chá de ervas.

– Tome muito cuidado com seus passos daqui para a frente, o mal está sempre à espreita! – Disse Gih para mim.

– Mestre, o senhor poderia me dar a chave da Solaris? Gostaria de terminar aquela encomenda especial! – Falei. A verdade é que eu não queria ficar ali o dia inteiro, em meu quarto trancada, queria fazer algo que me distraísse, e meu trabalho sempre me distraía.

– Mas é domingo, não prefere descansar? – Perguntou olhando-me surpreso.

– Prefiro me distrair com algo que eu gosto de fazer! Essa espada está me tirando o sono! – Sorri tentando parecer descontraída.

– Tudo bem então, se você insiste! – Ele tirou um molho de chaves do bolso e me entregou, agradeci com um grande sorriso e depois de terminar meu café, saí do hotel.

A loja ficava a menos de uma quadra do hotel, a chuva caia fina e molhava meu rosto, dando a sensação de estar me acariciando, logo em minha mente veio a imagem de Kuran sentado perto da árvore do pátio central na ACV no outro dia e meu rosto esquentou. Ah! Que ótimo, agora toda vez que pegar chuva vou me lembrar dele? Por que uma pessoa estava mexendo tanto comigo assim? Sacudi a cabeça afastando os pensamentos que inundavam minha mente. Não tinha tempo a perder com ele! Falei para mim mesma.


Abri a porta dos fundos da loja que dava direto para o estoque, se entrasse pela frente algum cliente poderia achar que a loja abriria aos domingos e isso poderia causar confusão. Andei com cuidado pelo estoque, passei pela fornalha que estava apagada e fui até o balcão de atendimento, sentei por um momento na cadeira de Taures e fiquei observando as armas nas paredes. Minhas armas nas mãos erradas podiam causar muita destruição.

– Talvez eu devesse parar de forjá-las, não é? – Falei sozinha olhando uma espada com punho de olho de tigre que havia feito a pouco tempo. Em cima do balcão havia um envelope grande com meu nome, não havia reparado nele por que estava embaixo da espada que eu peguei para olhar.

“Nike, você disse que precisava dessas folhas, coletei algumas para você! ” – Elister.

Ri sozinha, ele havia prestado atenção quando eu falei que ia precisar de folhas da arvore do fogo, dentro do envelope tinham sete folhas perfeitas da árvore, já banhadas no gel protetor e secas, pareciam até enfeites de cristal. Fui até os fundos da loja e acendi a fornalha, ao contrário dos metais que eu precisava forjar, dobrar e cortar, o vitrino era fácil de ser trabalhado, só precisava ser derretido e colocado em um molde de gesso, depois afiado e polido.

Fiquei sentada em silêncio enquanto o vitrino derretia, estava rolando a pulseira de prata em meu braço. Era aquele pequeno objeto que eu nunca tirava do pulso que mantinha meus poderes selados, agora a mesma raiva que um dia senti de Ericko, sentia por meu pai e por Merian, eles se transformaram nos monstros para mim, porém um deles já estava morto e o outro recebeu a marca de um traidor. Arranquei a pulseira do braço e a atirei no fogo ardente da fornalha, foi como se eu tivesse tirado um peso de cima de mim, também removi o colar fino de prata e o atirei na fornalha, então peguei Siferath e a movimentei entre os dedos, pensando em como a usaria agora, peguei uma tira fina de couro e fiz um cordão e coloquei o pingente da foice nele. Então a barreira que impedia as flechas de Siorin me acertarem fui eu que a fiz aparecer! E o demônio também se desmanchou por causa que eu desejei que ele queimasse! Mas por que agora meus poderes funcionaram e antes não? Fiquei observando a foice com mais atenção, tentando pensar no que diferente eu havia feito para conseguir usar meus poderes e lembrei das palavras de Susano sobre o vitrino.

O vitrino! Ele neutraliza a prata!


Peguei o molde que havia feito para a tal espada especial, coloquei uma quantidade do vitrino em uma parte para poder colar as folhas ao longo da lâmina, depois o fechei e coloquei o restante do metal, aproveitei a fornalha acesa para fazer a encomenda que havia sido deixada no balcão na sexta, era uma lança de duas pontas, pequena, provavelmente para alguma mulher.

Esperei mais uma hora para ter certeza que a espada estaria pronta e a tirei do molde com cuidado então comecei a trabalhar na finalização. Logo que finalizei o acabamento e fiz o fio da espada, fiz sua bainha também, com fibra de algas vermelhas do mar da presa e detalhes em aço mercílo amarelado. A espada e a bainha ficaram tão bonitas que me deu vontade de ficar com ela para mim, teria ficado e feito outra se o mestre Taures não tivesse dito que era uma encomenda urgente. Apaguei a fornalha, arrumei todos os materiais, limpei as ferramentas e os restos do molde e fechei a loja.

Estava quase na hora do almoço quando saí da Solaris, ia direto para o hotel almoçar e mostrar a espada a Taures, talvez ele precisasse que eu a entregasse hoje, seria maravilhoso se fosse bem longe para que eu pudesse passear um pouco. As nuvens estavam se dissipando aos poucos, trazendo o sol e o calor de volta, ainda faltava um bom tempo para o inverno, então não tinha muita esperança que aquele tempo chuvoso permanecesse, já era estranho demais chover em novembro, isso quase nunca acontecia. Entrei no hotel e fui direto para o restaurante, tinha certeza que Taures estaria almoçando a essa hora, corri os olhos pela sala procurando por ele e o encontrei na mesma mesa de mais cedo, parecia que ele nem havia se levantado dali.

– Mestre? – Chamei me aproximando lentamente da mesa, ele estava quase cochilando sentando com um grande prato de purê de batatas e frango frito. Sua esposa era humana, então sua comida favorita era a comida humana. – Mestre Taures! – Chamei de novo sacudindo seus ombros de leve.

– Ah! Sim sim! Pode voltar hoje ainda! – Murmurou ficando de pé e olhando em volta. – Ah, Nike! Estava tendo um sonho, forjando espadas para o exército real quando era mais jovem! – Ele deu um sorriso constrangido por ser pego cochilando na hora do almoço.

– Desculpe incomodá-lo, terminei a espada especial que o senhor havia me pedido! – Falei colocando a espada sobre a mesa, ele a pegou com um pouco de dificuldade, a tirou da bainha, só o sorriso dele pagou o esforço para fazê-la.

– Você é realmente incrível, Nikella! Em pouco tempo me superou e faz coisas maravilhosas! – Disse girando a espada entre os dedos. – A melhor coisa que fiz depois de meus filhos foi te dar uma oportunidade de trabalhar comigo, ou melhor, foi ter a oportunidade de trabalhar com você, garotinha! Você é a melhor armeira em todos os doze mundos! – Ele recolocou a espada na bainha e me devolveu.

– Obrigada, mestre, é uma honra ser reconhecida pelo senhor! Sou muito agradecida por aquela oportunidade. – Falei, ele voltou a comer, com dificuldade, suas mãos tremiam um pouco e estava com dificuldade para cortar o frango, eu o ajudei e fiquei em silêncio observando aquela pessoa frágil a minha frente.

– Mestre, posso lhe fazer uma pergunta um pouco pessoal? – Pedi olhando-o com pena.

– Claro! Pergunte o que quiser! – Disse ele com o sorriso ainda no rosto.

– Se o senhor é um salamandra e podia viver jovem e forte para sempre, o que fez o senhor escolher envelhecer e morrer como os humanos normais? – Ele parou de comer e dirigiu seu olhar a um banco na praça em frente ao hotel, a princípio pensei que ele não responderia.

– A primeira vez que eu a vi, ela estava bem ali! Naquela praça, ela estava com sua irmã mais nova e a apertava nos braços com força, as duas estavam com muito medo pois seriam vendidas a qualquer momento. Eu a vi e me apaixonei na hora! Tinha que tirá-las dali a qualquer custo, mas não tinha dinheiro suficiente para comprá-las. Então um mestre ferreiro estava de passagem na cidade a procura de materiais exóticos, eu fui atrás dele e implorei para que as comprasse e libertasse, em troca eu iria ajudá-lo em qualquer coisa. Seu nome era Farahdox, ele comprou a jovem, Lizene e a libertou, ela e sua irmã Suzi. – Ele deu um sorriso ainda maior, seus olhos estavam fixos na praça como se ainda pudesse vê-la ali no banco. – Farahdox não me cobrou nada, não pediu que eu o ajudasse, mas falou que me ensinaria a fabricar as melhores armas se eu quisesse. Então eu fui até Lizene e lhe disse que iria partir mas voltaria, abriria uma loja e me casaria com ela se ela aceitasse. Ela aceitou e disse que esperaria eu voltar, ela tinha quinze anos na época, eu a deixei com minha irmã, para que Gih cuidasse delas. Então fui para Amantia e passei alguns anos lá aprendendo a forjar e me aperfeiçoando, porém só voltei depois que ele foi banido para Pollo, passei quase dez anos lá.

– E então? – Perguntei quando ele parou de falar, perdido em lembranças.

– Quando voltei eu cumpri o que havia prometido, abri uma loja e me casei com Lizene! Só que ela sofria muito pois vivia com o pensamento de que iria envelhecer, mesmo que mais devagar do que as humanas na terra por causa da aura mágica de Ciartes, ela não queria me abandonar, então eu decidi que viveria enquanto ela vivesse, iria envelhecer com ela e morrer com ela. Mas ainda assim ela se foi antes de mim, pelo menos pode me ver envelhecer com ela, já fazem dez anos que espero minha vez.

– Entendo... – O olhei com pena.

– A vida eterna não vale a pena se você não tiver alguém que a compartilhe com você, ninguém nasce para viver só! – Disse ele suspirando – Foi Farahdox que me disse isso.

– Susano teve a quem puxar no modo de pensar! – Falei.

– O rei Gyliar era um tirano terrível, por sorte que Hargas o matou e tomou o trono! – Disse Taures de forma tão repentina que me assustou.

– Espera ai! O que? – Perguntei. Pela expressão dele percebi que aquilo foi um pensamento alto e que não deveria ter escapado. Taures deu um longo suspiro e falou novamente:

– É exatamente o que você ouviu! – Sussurrou. – O rei Hargas matou seu pai para tomar o trono, pois ele não suportava as maldades do pai! – Disse Taures olhando em volta, haviam poucas pessoas ali, duvido que alguém estivesse interessado em escutar os assuntos de um velho e uma garota. – Ele matou seu pai, libertou os humanos e criou a ACV, que hoje treina as maiores forças de batalha e os melhores caçadores dos doze mundos! – Disse.

– Sempre achei que Hargas fosse um tirano também! Mas aparentemente estava enganada.

– Ele é bastante supersticioso e um pouco preconceituoso com magos, mas é uma ótima pessoa! – Disse Taures terminando sua refeição.

– O rei acabou de ganhar uns pontos comigo! – Falei brincando. Gih apareceu na porta de acesso a cozinha com um enorme prato de comida nas mãos e veio até nós, o colocou em minha frente, piscou para mim, e saiu apressada para atender os clientes que estavam chegando.

– Se eu tivesse apenas colocado Merian para fora, teria morrido de fome em casa! – Falei inspirando profundamente para sentir o máximo do aroma delicioso da comida de Gih.

– Nike, se não se importar, pode entregar essa espada depois? Eu não estou me sentindo muito bem ultimamente!

– Claro que entrego! Onde encontro o dono? – Perguntei ansiosa pelo passeio que daria. Taures não respondeu, apenas apontou um dedo em direção ao castelo e sorriu, senti meu sangue congelar e paralisei.

– O rei pediu que fizesse uma espada para ele dar de presente ao seu filho mais velho, Ericko. No próximo domingo será aniversário do príncipe e o rei queria dar uma ótima espada a ele, parece que alguém dentro do castelo conhecia suas habilidades e seu capricho com as armas e falou de você! – Ele parecia satisfeito e eu estava começando a ligar alguns pontos que confirmaria em breve.

– Vou terminar de almoçar e irei entregar a espada! – Falei colocando uma quantidade generosa de comida na boca.


Quando terminei de almoçar, ajudei o mestre Taures a ir até seu quarto, que ficava no primeiro andar mesmo, ao lado do quarto de Gih, era um quarto pequeno e simples, repleto de fotos de sua esposa falecida, em uma das fotos os dois estavam em frente à uma cachoeira com os filhos, Taures e Lizene já tinham uma certa idade, eles estavam segurando Elister ainda bebê nos braços, ele era realmente bem mais novo que Ariel. Na foto eles sorriam e pareciam estar se divertindo muito. Taures deitou na cama e seguiu meu olhar até a foto de sua família reunida.

– Queria alguma vez ter sentido a mesma felicidade que vocês estavam sentindo quando tiraram aquela foto... – falei passando os dedos sobre a moldura fina de madeira.

– Você pode senti-la algum dia! Basta encontrar alguém que lhe faça sentir-se especial! – Respondeu ele ajeitando os pés embaixo de uma colcha de retalhos puída.

– Como? Não sei reconhecer pessoas especiais, eu não sei julgar, achei que sabia sobre uma pessoa, mas estava enganada.

– É só achar alguém que você fique alegre só de estar na presença dela, era assim que me sentia em relação a Lizene, ela não tinha pele de fogo, mas era como um sol para mim... – Ele fechou os olhos e virou para o canto. – Nike? Não vá de qualquer jeito ao palácio, se arrume bem, mostre que é você que faz essas armas! – Assenti e saí do quarto, subi até o terceiro andar, no quarto que Gih havia me instalado, nem havia arrumado minhas roupas no armário, virei a mala em cima da cama atrás de algo que pudesse usar para ir ao palácio, não tinha muitas roupas então peguei uma calça de couro comprada nas últimas férias, uma blusa de seda vermelha e as botas que Annie havia me dado, tomei um banho para tirar o pó de vitrino que havia grudado em meus cabelos úmidos pelo suor por causa do calor na fornalha. Escovei os dentes, fui até o quarto vesti a roupa e escovei o cabelo, comecei a olhar no espelho e percebi que gostava mais dele comprido.

– Bom, não custa tentar! – Falei para o reflexo, passei os dedos entre os fios desejando que eles voltassem a crescer, para minha surpresa o cabelo cresceu instantaneamente, parando de crescer quando tirei as mãos da cabeça. Fiquei em pé na frente do espelho de boca aberta, marcas verdes haviam aparecido em meu rosto e em meus dois braços, eram como cipós cheios de folhas e no meio de minha testa havia uma pequena flor verde que desapareceu logo em seguida. Olhei os cabelos pretos e lisos que agora estavam em minha cintura como estavam quando os cortei e sorri pois não teria que lembrar dos comentários de Merian até que o cabelo crescesse novamente. Peguei a espada de vitrino, o selo do mestre Taures e o pingente da ACV para ter certeza que conseguiria entrar no castelo. Na recepção do hotel, Elister estava conversando com Gih, quando me viu e ficou espantado.

– Nike, seu cabelo! Você não o cortou aquele dia? – Perguntou assustado. – Como está assim de novo?

– Vitaminas! – Falei brincando. – Gih, vou passear um pouco depois que entregar a encomenda, antes de escurecer estarei de volta. Elister, vamos tomar um sorvete mais tarde?

– Claro! Por que não! – Respondeu, eu acenei para os dois e saí sem nem lembrar de agradecer a Elister pelas folhas, agradeceria quando voltasse, teria tempo para isso depois.

A distância não era tão grande do hotel até o palácio, a praça de comemorações era muito grande, mas mesmo assim poderia fazer o percurso em menos de dez minutos.

Ao chegar nas escadas do castelo os guardas não tentaram me barrar ou colocaram as armas na frente, um deles simplesmente perguntou meu nome:

– Nikella Modjim, a aprendiz de Taures! – Falei.

– Ah sim! – O guarda mostrou sua espada. – Você que a fez! – Ele mostrou o símbolo em sua espada, era uma das que fiz depois que voltei das férias. – Pode passar! Ignis Aeternum!

– Ignis Aeternum – respondi a saudação dos salamandras e senti um calor no peito, aquela saudação era um juramento de lealdade ao reino. A confiança que o guarda teve em mim foi tanta que ele nem me acompanhou até a sala do trono, como sei que deveria acontecer com visitantes, que deviam ser guiados e anunciados. Estava pensando se devia informar ou não ao rei sobre os planos dos hostes, dependendo do que descobrisse aqui hoje, iria contar ao rei sobre eles. Atravessei o grande salão de mármore e contas negras brilhantes, o chão era tão polido que parecia ser um espelho, as paredes eram douradas e tinham pequenos detalhes como raios de sol, as grandes janelas douradas tinham cortinas de veludo vermelhas com franjas douradas e um bordado impecável. Ao longe vi a estátua dos primeiros salamandras, sabia que a estátua ficava em frente à sala do trono, então estava no caminho certo. Ao chegar em frente à estátua, parei em frente aos arcos, respirei fundo e entrei na sala, minhas mãos estavam geladas e meu nervosismo aumentava a cada passo, o rei estava sentado em seu trono de pedra vermelha que combinava com as paredes vermelhas e lustrosas da sala, eu não fazia som ao caminhar pois o piso era completamente forrado por tapetes em cores vibrantes. Ele parecia estar implicando com a rainha que estava de pé ao seu lado e o olhava carrancuda, pigarreei alto ao me aproximar, o rei quase deu um pulo da cadeira e me olhou surpreso.

– Com licença, vossa majestade! Sou a aprendiz do mestre Taures e vim lhe trazer sua encomenda. – Falei de maneira mais formal que pude enquanto fazia uma reverência.

– Ah, sim! O presente de Ericko! – Ele se levantou da cadeira e veio até mim, o rei era muito alto, o que me deixou um tanto desconfortável vendo que eu batia em seu peito, ele arrumou sua coroa sobre os cabelos vermelhos espetados e coçou a barba, parecia muito mais jovem visto de perto. Ergui a espada para que ele a pegasse, seus olhos azuis que estavam nos meus se moveram na direção da arma, ele a pegou e desembainhou num rápido movimento, quase que instantaneamente um sorriso apareceu em seus lábios.

– É uma bela espada, mas parece ser frágil! – Disse a rainha aproximando-se dele.

– Garanto que é mais forte que qualquer metal que tenho conhecimento, senhora! Isso é Vitrino! – Expliquei.

– Ótimo! Gostaria de testá-la! – O rei me encarou. – Você está em treinamento na ACV, não é? Sei pelo seu pingente de permissão.

– Estou sim senhor. – Respondi temendo suas próximas palavras.

– Então saque sua arma, quero testar essa espada com quem a forjou! – Ele tinha um sorriso indecifrável no rosto.

– Não sei se é uma boa ideia senhor...

– Está com medo? – Ele ergueu uma sobrancelha.

– Hargas, ela é só uma menina! Chame um dos guardas reais para te ajudar! – A rainha revirou os olhos.

– Já que o senhor insiste... – tirei o pingente do pescoço e me posicionei, o pressionei com a mão e a foice cresceu, a rainha deu um passo para trás assustada, o rei também parecia confuso com a escolha de minha arma, porém fingiu não ligar, ele golpeou girando a espada no punho enquanto eu defendia seu golpe com a haste da lança, a lâmina da espada escorregou para baixo quando girei a foice, desarmando-o e fazendo minha lâmina parar a alguns centímetros do pescoço do rei, sorri e fiz a foice voltar a ser um pingente.

– Como você fez isso? – Perguntou ele olhando-me incrédulo.

– Eu treino muito duro, senhor! – Respondi recolocando a bainha na espada e lhe entregando.

– Qual é seu nome? – Perguntou a rainha me encarando com seus olhos vermelhos.

– Nikella Modjim. – O rosto do rei endureceu e a rainha ficou pálida.

– Desculpe por tomar o tempo de vocês, eu tenho algo que preciso falar com o rei... – falei. – Mas antes, gostaria de saber... Annie está?

– Ela está no jardim com o príncipe Susano, vocês são colegas de quarto na ACV, não são? – A rainha parecia desconfiada. Então eu não estava enganada, Annie e Kuran eram irmãos de Ericko, filhos dos soberanos de Ciartes! Ahh eu me acertaria com eles mais tarde!

– Sim senhora, sou muito amiga de Annie, na verdade, até o começo das aulas deste ano era a única amiga que eu tinha.

– E o que você deseja tratar com o rei? – Perguntou ela, o rei havia voltado para seu troo e estava sentando observando-me pensativo.

– A pouco tempo fui chamada pelo líder dos hostes, o grupo dos líderes das raças estrangeiras e ele queria minha ajuda para matar sua família, ele queria se aproveitar do desejo de vingança que eu tinha pela morte de meus pais... – o rei estava segurando a espada com força agora, suas narinas estavam se expandindo. – Por favor, senhor! Se eu quisesse realmente o matar, teria o feito quando ganhei o duelo num único golpe, minha foice ficou a centímetros do pescoço do senhor! – Falei. A rainha me fulminou com os olhos por minha insolência, sua pele parecia que ia incendiar a qualquer momento, mas minha aparente tranquilidade a fez olhar para o rei e assentiu para que ele me escutasse.

– Continue então! – Ele pareceu menos tenso.

– Do mesmo jeito que entrei na sala sem que o senhor me percebesse, eu cheguei perto o suficiente da reunião deles e ouvi algumas verdades sobre meus pais e sobre o que fizeram para serem mortos, gostaria de pedir desculpas pelo transtorno causado pelo meu pai, e afirmo que estou à sua disposição para auxiliar no que for preciso! – Falei de cabeça baixa, aquelas palavras saíram com mais dificuldade do que imaginei.

– Vou enviar espiões para as vilas e pedir que me reportem o mais breve possível. – Disse o rei levantando-se de seu trono.

– Ignis Aeternum – falei curvando-me novamente. O rei acenou e saiu da sala por uma escadaria atrás do trono.

– Eu a acompanho até a saída! – Disse a rainha andando ao meu lado pela sala.

– Obrigada.

– Quero que saiba que sinto muito por seus pais, que nós tentamos de um jeito que não precisássemos usar a força...

– Eu sei, senhora! – Falei, estava nervosa demais e não queria ouvir aquilo da rainha, parecia errado de certa forma, pois sabia que eles não estavam errados. Ela não me guiou até a saída, mas sim até um grande jardim no centro no palácio, o chão era coberto pela fina na areia dos desertos e os cactos que enfeitavam o jardim tinham as flores mais bonitas que eu já havia visto em toda minha vida.

– Annie fala muito de você! – Disse ela com um sorriso tão amável e de forma tão simples e casual que me deixou ainda mais desconfortável.

– Ela é uma amiga maravilhosa. – Falei.

– Você se sentiria mal ou ofendida se eu confirmasse essa sua história? – Perguntou ela encarando-me com os mesmos olhos vermelhos de Kuran, eles tinham a mesma expressão.

– Não senhora, mas não sei como vai fazer isso! – Falei. Ela sorriu segurou meu rosto e tocou sua testa na minha, senti uma estranha sensação e uma angústia ao ver boa parte de minhas lembranças diante de meus olhos, desde a primeira vez que vi Annie na fila da ACV, o olhar de Kuran para mim, até o que havia acontecido a noite passada e também quando passei por eles na rua indo em direção ao hotel.

– Me desculpe, vi mais do que deveria, muito tempo sem usar essas habilidades, acabei perdendo o controle! – Explicou ela olhando dentro de meus olhos.

– Então essas memórias que eu vi...

– Eu as vi também! – Meu rosto queimou quando ela confirmou o que eu achava que ela havia feito, eu me levantei nervosa e constrangida, antes que tentasse me afastar ela se levantou e me abraçou.

– Me desculpe, por favor! Quando minha filha falava de você eu não fazia ideia de que tipo de pessoa você fosse e por vezes pensei em mandar te matar para não oferecer risco a eles, cheguei a mandar ela não te contar quem era para você não sentir raiva deles, mas agora eu sei que você os ama e não faria mal a eles, me desculpe! Parte desse sofrimento que você enfrentou foi culpa nossa por nunca ter dado uma assistência também... – enquanto ela falava e me abraçava em seus braços quentes, sentia como se estivesse sendo confortada por tudo de ruim que havia acontecido comigo até agora, consegui permanecer em silêncio, mas não conseguia evitar que as lágrimas rolassem pelo meu rosto.

– Não fiz mais que minha obrigação.

– Não é sua obrigação ser amiga de ninguém, você escolhe quem quer amar e quem quer odiar, e você escolheu amar! – Disse ela me soltando e limpando minhas lágrimas.

– Eu gosto muito da Annie...

– Não só dela, não é? Sei que eles gostam demais de você também, talvez até mais do que você imagina! – Disse ela com um sorriso no rosto, não consegui entender o que ela queria dizer, mas sorri mesmo assim. Um guarda apareceu circulando no jardim. – Straus, onde estão Susano e Annie? – Perguntou a rainha a ele.

– Eles saíram, vossa alteza! – Respondeu fazendo uma reverência.

– Tudo bem, pode ir! – Ela o dispensou.

– Eu tenho que ir também, mas gostaria de fazer uma pergunta antes.

– Pode perguntar.

– A senhora é descendente da primeira salamandra? – Ela sorriu quando perguntei.

– Como sabe?

– Apenas um palpite, a marca na testa de Kuran é a folha da Arvore do Fogo.

– Somos descendentes de Igahr, a primeira salamandra. – Ela limpou meu rosto novamente. – Pronto, sem marcas de lágrimas agora.

– Imaginei que os soberanos de Ciartes seriam mais duros, formais... – Falei baixinho encarando-a, ela deu uma gargalhada divertida e acariciou minha cabeça novamente.

– Mudamos tudo depois de Gyliar, Nikella. Sem mudanças, as coisas nunca vão para frente!

– Entendo, bom, eu preciso ir!

– Se precisar de algo, estaremos aqui, bem perto agora! – Assenti e me virei para sair do castelo a tempo de ver Kuran e uma jovem andando em nossa direção vindos da parte oeste do castelo.


8


Origens

 


– Por favor! Não seja ruim! Vamos por favooooor! – Pedia a jovem puxando o braço de Kuran, em seus olhos ele parecia a ponto de explodir, mas mantinha a aparência calma.

– Já disse que não, Asahi! Chame seu irmão e Annie, eles adoram essas coisas, com certeza irão com você se pedir! – Respondeu ele irritado tentando soltá-la do seu braço gentilmente.

– Mas eu quero ir com você! – Ela pediu novamente. Era uma elfa muito bonita, tinha cabelos escuros lisos presos atrás das orelhas longas e delicadas, os olhos azuis pareciam dois pedacinhos de céu e em sua testa brilhava uma pequena flor de lis dourada.

– Mas eu não quero ir, sinto muito! – Ele se virou em nossa direção e ficou nervoso ao me ver ali com a mãe dele, esbocei um sorriso maligno no rosto e fiquei mexendo em meu pingente de foice o que o deixou ainda mais nervoso, pálido. Ele andou rapidamente até nós com Asahi em seus calcanhares.

– Nike... o que está fazendo aqui? – Perguntou ele com a voz falhando.

– Olá, príncipe! – Falei encarando-o séria e fazendo uma reverência. Seu rosto ficou num tom vermelho brilhante quando o chamei assim.

– Bom, vou deixá-los conversando! Asahi, me acompanha numa xícara de chá? – A rainha segurou o braço dela, levando-a consigo.

– Mas... – a jovem tentou protestar olhando-nos confusa.

– Sem, mas! É indiscreto recusar um convite para um chá, tenho certeza que sua avó te ensinou isso! – A rainha saiu levando-a sem dar a ela uma chance de ficar.

– O que faz aqui? – Kuran perguntou novamente, seus olhos vermelhos assustados estavam fixos nos meus.

– Vim trazer uma encomenda que seu pai fez a Taures. – Falei.

– Me desculpe...

– Por não dizer quem era? Esconder a verdade? – Completei, ele confirmou com a cabeça, seus olhos estavam sobre o pingente que eu mexia com os dedos, ele deu um sorriso malicioso e voltou a me encarar. – O que foi? – Perguntei olhando para baixo, a blusa de seda havia aberto um botão, deixando um decote a mostra. Ajeitei a blusa tentando manter minha expressão o mais impassível que pude.

– O que houve com você ontem?

– Nada demais! – Falei escondendo os braços, quando levantei as mãos para concertar a blusa, as mangas rolaram deixando as marcas roxas a mostra, se tivesse lembrado, na hora que arrumei meus cabelos teria feito as manchas desaparecerem também.

– Não parece que foi nada demais! – Disse ele puxando meu braço e fazendo as manchas sumirem.

– Então, não foi nada que seja da sua conta! – Respondi puxando as mãos e andando em direção à saída, Kuran segurou minha mão impedindo que eu continuasse.

– Você é muito grossa, sabia?

– A elfa que estava conversando com você parece ser um amor, por que não volta a dar atenção para ela? É a irmã do Susano, não é? – Falei sem querer e acabei mordendo a boca como uma forma de me punir pelo que disse. Kuran sorriu ainda mais.

– Com ciúme, Nike?

– Não confunda as coisas! – Falei soltando minha mão e me afastando. – Preciso mesmo ir, prometi que ia encontrar Elister quando saísse daqui! – Ele estreitou os olhos e olhou em outra direção.

– Quem é esse?

– Filho do mestre Taures, me ajudou com a arma que seu pai pediu!

– Só isso?

– Claro que só! Por que isso te interessa? – Perguntei irritada.

– Você é muito difícil, Nike! – Disse ele sorrindo quando me virei e saí do jardim, indo direto para a saída. – Mas eu adoro um desafio! – O ouvi falar atrás de mim e revirei os olhos e lhe mostrei um dedo. O que estava acontecendo afinal? Por que a mãe dele havia arrastado a irmã de Susano para longe para nos deixar a sós? Saí tão apressada do castelo que esbarrei com Susano e Annie no meio da praça central.

– Ah, Nike! – Annie segurou minhas mãos. – Estávamos te procurando no hotel, quando a senhora Germinia nos disse que você foi ao castelo... – ela estava olhando-me cautelosamente.

– Fui sim, princesa! – Respondi com um sorriso maldoso.

– Nike, por favor, não me odeie! – Ela me abraçou tão apertado que senti meus pulmões esmagados. – Eu nunca disse nada por medo da sua reação, quando falei seu nome para meus pais eles me falaram sobre seu pai... então eu nunca te contei nada, sabia que você odiava meu irmão e não queria que você me odiasse por ser irmã dele!

– Não se preocupe Annie, eu estava completamente errada sobre ele, sobre sua família que não sabia que era sua família! Eu tenho que agradecer por você continuar sendo minha amiga mesmo sabendo sobre mim, sobre minha raiva. Você preferiu ficar ao meu lado e não teve medo de mim! – Falei a abraçando forte também.

– Claro que não teria medo de você, é quase como um gatinho manso! Não conseguiria me fazer mal nem se tentasse com vontade! – Disse ela brincando com meu cabelo, seus olhos então percorreram o comprimento de meu cabelo, sua boca estava semiaberta. – O que é isso? Você não o cortou? – Perguntou ela puxando meu cabelo para ver se ela de verdade.

– Sim, mas cheguei à conclusão que gostava mais assim e o fiz crescer novamente.

– Ela é maga, Annie! – Susano explicou quando viu a expressão assustada dela.

– Você sabia? – Perguntei encarando-o.

– Sim, desconfiei no primeiro treino com Siorin, depois confirmei na missão quando vi que você continuava lúcida mesmo com o veneno de Naga no corpo. No dia seguinte você falou sobre as chamas azuis, aí mesmo que tive certeza.

– Entendi... – Annie continuava me olhando boquiaberta.

– Como nunca usou poderes antes então? – Perguntou ela girando minhas mãos e procurando por algo.

– A pulseira e o colar de prata que eu usava, eles me impediam de usar os poderes, como eu não sabia que os tinha, nunca senti nada de errado, apenas aquele sono constante... – Susano estava me analisando, o que me deixou um pouco sem jeito.

– Posso? – Ele estendeu a mão para pegar a minha, eu estiquei a mão para ele, que a segurou com a palma virada para cima e pressionou o meio de minha mão. As marcas verdes como vidros que eu tinha visto mais cedo no espelho se acenderam novamente em meus dois braços, Susano estava com os olhos em minha testa, ele franziu o cenho e me soltou.

– Agora que estamos em paz, vamos dar uma volta? – Susano perguntou desviando o olhar, pensei em lhe perguntar o motivo da cara feia para as marcas, mas não queria estragar meu repentino bom-humor também.

– Vamos sim, que tal tomar um sorvete? Só preciso passar no hotel para buscar o Elister... – quando falei de Elister as sobrancelhas de Annie se juntaram.

– Por que?

– Por que prometi isso a ele, Elister me ajudou com a espada de seu irmão! – Respondi enquanto caminhava em direção ao hotel. Elister estava sentado conversando com Gih na entrada principal quando me aproximei.

– Eli, vamos? – Chamei, ele pareceu muito contente com o convite e levantou num pulo para nos acompanhar. Susano nos guiou até o outro lado da praça, onde havia uma sorveteria grande com sabores de sorvete de todos os mundos.

– Quero escolher para vocês dois! – Disse Annie para mim e Susano, nos colocando sentados em uma das cadeiras, entrou sozinha na sorveteria e começou a servir bolas de sorvete em casquinhas de biscoito de chocolate.


Deixei que Annie escolhesse os meus só porque sabia que ela não traria nada com gosto de carne crua ou plantas gosmentas. Elister foi escolher o sorvete para ele também, deixando-me a sós com Susano.

– Ele parece uma criança! – Disse ele olhando para Elister.

– Ele não tem muito talento com forja como o pai tinha, acho que ele não vai aprender! – Falei.

– Vai me contar o que aconteceu ontem à noite? Por que mudou de opinião sobre o irmão da Annie? – Perguntou. Olhei para dentro da loja, Annie e Elister estavam distraídos procurando pelos vários de sabores de sorvete, então talvez devesse dar um voto de confiança a Susano e lhe contei sobre a reunião dos hostes e sobre Merian. Ele parecia bastante irritado quando terminei de contar.

– Ele não parecia esse tipo de pessoa! – Disse ele depois de um bom tempo em silêncio.

– Não, mas meu pai também não parecia ser uma pessoa ruim, o problema é que as vezes as pessoas são influenciadas por outras e fazem coisas erradas achando que estão fazendo coisas certas... – suspirei e olhei para a loja, Annie e Elister estavam vindo. – Não diga nada a ela! – Pedi.

– Não direi. – Ele piscou e olhou discretamente para a praça quando os dois trouxeram os sorvetes até onde estávamos do lado de fora da loja, em uma mesa de metal branca toda decorada com sóis metálicos e brilhantes. Tudo na cidade lembrava os sóis que estavam no céu.

– Então, Elister, você é filho do armeiro Taures, não é? – Perguntou Annie o encarando, Elister a olhava nervoso, ele sabia quem ela era, mas nunca tinha estado tão perto de alguém da família real, eu só estava tranquila pois a conhecia desde sempre, mas também fiquei nervosa na presença do rei.

– Sou sim, mas não tenho o dom dele, na verdade não gosto de forja, eu prefiro fazer joias! – Disse ele com um sorriso tímido no rosto. Não fazia ideia que ele não gostava da mesma profissão que o pai, provavelmente o seguia para não deixar o senhor Taures triste.

– Falando em joias, encontrei com sua irmã no castelo agora a pouco! – Susano ergueu uma sobrancelha.

– Karin? Ela estava com Ericko por lá, eles estavam de partida para Amantia quando saímos.

– Não, era outra. Asahi foi o nome que ouvi a rainha falar.

– Ah, sim! Ele estava com Kuran... – ele deixou as palavras morrerem e continuou comendo o sorvete. – Muito bom Annie! – Disse ele sorrindo para ela, que corou e baixou os olhos.

– Ela parece gostar muito dele. – Falei, Annie parou de comer para me olhar.

– Ela tem uma paixonite por ele desde quando eles foram à Amantia pela primeira vez, mas Kuran não parece ter interesse nela! – Respondeu Susano terminando seu sorvete. – Eles até ficaram juntos uma vez, depois de muita insistência de Asahi, mas depois disso ele passou a ignorá-la totalmente.

– Hmm. – Resmunguei sentindo meu rosto esquentar, não sei porque senti tanto alívio quando ele me disse que Kuran a ignorava, mas o fato deles já terem ficado juntos me incomodou muito. Annie ainda estava parada com sua colher no ar e olhava para mim com um sorriso nos cantos dos lábios. – O que foi, Annie? – Perguntei quando percebi que ela não ia comer até eu falar alguma coisa.

– Nada não!

– Te conheço bem o suficiente para saber que não tem essa de “nada não”! – Terminei de comer e deixei a colher dourada repousando sobre o guardanapo bonito de pano bordado que estava sobre a mesa. Ela e Susano ficaram se encarando, Elister estava tão desconfortável com eles à mesa que começou a se remexer, acho que se pudesse, teria saído correndo dali. Pouco depois Ariel apareceu e nos cumprimentou.

– Nikella, Elister! Passeando um pouco? – Ele bagunçou o cabelo do irmão.

– Sim, descansando um pouco! – Respondeu Elister todo sem jeito.

– Veio ver o mestre? – Ele estava com vestes simples, sem as várias sacolas e ferramentas que vivia carregando, não parecia estar a trabalho.

– Vim sim, vou vir todos os fins de semana agora. Elister, me acompanha? – Ariel conhecia bem o irmão e percebeu seu nervosismo, talvez eu devesse ter esperado para estar só para convidá-lo.

– Sim! Quero comprar uns doces e levar para ele! – Elister levantou-se num pulo. – Foi um prazer conhecê-los! – Disse ele fazendo uma reverência para Annie e Susano e afastando-se da mesa rapidamente, Ariel repetiu o gesto e se despediu:

– Te vejo mais tarde então! – Eles foram em direção ao hotel.

– Acho que seu amigo não gostou muito da gente! – Annie ficou olhando eles desaparecerem dentro do hotel.

– Elister é muito reservado! – Falei.

– Então... Nike? Você disse que viu a irmã de Susano no palácio, eles estavam juntos?

– Sim, estavam! Se não estivessem como diria que ela parece gostar dele? – Respondi, Annie mordeu os lábios e virou o corpo completamente em minha direção, mantendo seus olhos vermelhos fixos nos meus.

– Eles estavam falando sobre o que?

– Não sei, ela estava insistindo para que fossem em algum lugar, mas ele não quis, mandou que ela chamasse você e Susano para irem com ela. – Respondi.

– E ela? – Agora foi Susano que perguntou.

– Disse que queria ir com ele! – Annie deu um sorriso.

– E como você se sentiu com isso? – Perguntou Annie brincando com meus dedos.

– Annie, onde você quer chegar?

– Ela é mais devagar do que você, Susano! – Ela revirou os olhos e voltou a atenção para a casquinha do sorvete que agora já havia perdido a crocância.

– Não entendi! Seja clara! – Reclamei, Susano começou a rir e Annie bateu com a mão na testa.

– Annie, temos que ir à Amantia, Áries está nos esperando antes das quatro! – Susano apontou o relógio da torre central, eram três da tarde.

– Ah, sim! Verdade! – Não parecia que eles tinham algo marcado, mas parecia que queriam ficar a sós por algum motivo, não consegui disfarçar meu constrangimento quando pensei no motivo de quererem ficarem a sós.

– Que cara é essa Nike? – Susano perguntou enquanto se levantava para saírem.

– Ah, nada! Estava me lembrando de uma coisa que preciso fazer também! – Levantei da cadeira quase caindo dela. Annie me abraçou e dei um beijo em meu rosto.

– Amanhã nos vemos na ACV, tá?

– Claro! Até amanhã! – Me despedi e fui em direção à segunda cidade, porém ao chegar perto do hotel desisti de passear, ia usar o resto do domingo para estudar herbologia, já que nossas aulas haviam sido substituídas pela sobrevivência do V8. Acenei para Gih que estava na recepção e subi direto para meu quarto, revirei a mala em busca de meu livro e das anotações, o livro antigo com capa de folhas trançadas de crhona (uma flor venenosa) estava debaixo da capa embolada da ACV, antes de pegar o livro, pendurei a capa no armário e acabei ficando incomodada com apenas a capa nele, então peguei todas as roupas, as dobrei e guardei. Me odiei pelo que tinha acabado de fazer, arrumar as roupas em um lugar significava que ali era meu novo lar, talvez um lar adicional e eu não pretendia me apegar ali. Talvez devesse me mudar, alugar uma casa nas vilas próximas, assim não me sentiria mal por estar de favor ali. Quando estava acabando de arrumar minhas coisas no banheiro, alguém bateu na porta do quarto, coloquei a toalha colorida nas garrinhas de metal perto do box e fui abrir a porta.

– Ariel? – Ele estava parado na porta, ele estava com o semblante cansado, as olheiras começavam a aparecer sob os olhos.

– Nikella, tenho um assunto a tratar com você! – Disse ele um pouco baixo demais.

– Tudo bem! O que é?

– Vou levar meu pai para Amantia, para o templo da sacerdotisa do fogo, quando os sóis mudaram o templo do fogo voltou como uma casa de repouso para os idosos de Amantia, mas a sacerdotisa não se importou que eu o levasse!

– Mas, e a loja? Ele não consegue ficar longe dela!

– Ele concordou comigo, vamos passar uns dias lá para ver se ele se adapta, se não aguentar ficar por lá e desejar voltar, o trarei de volta! – Explicou, por mais que soubesse que aquilo era o melhor para o senhor Taures, me senti mal, como se estivesse ficando sozinha.

– Entendi, quando vocês vão? – Perguntei tentando não deixar minha angústia transparecer em minha voz trêmula.

– Hoje mesmo, a filha da rainha de Amantia vai nos levar até lá, e0la está no palácio com a rainha. A loja vai ficar fechada essa semana, então aproveite e estude bastante! Sei que o V7 é bem mais difícil.

– Ah, claro! Entendi... – falei com um sorriso forçado. – Boa viajem então! Espero vê-los em breve! – Ele me deu um meio sorriso tristonho e um breve abraço e seguiu em direção as escadas trocando as pernas quando andava, sempre achei graça nesse jeito de andar, sempre parecendo que ia cair, mas nunca caía. Fechei a porta atrás de mim e caí na cama, fiquei por um tempo olhando os enfeites azulados brilhantes do teto do quarto, parecia que havia sido decorado para uma criança viver ali. Agora não conseguiria mais estudar, havia perdido totalmente a concentração e não conseguia ler uma linha sem me distrair com pensamentos aleatórios. Desci escondida até a cozinha do restaurante, onde Lili, a filha de Gih estava confeitando um bolo.

– Se perdeu? – Perguntou ela olhando-me de soslaio enquanto decorava o bolo com flores amarelas.

– Não, estou só com vontade de comer um doce, aí vim aqui ver se achava algo assim! – Lili soltou a manga de confeitar e foi até a geladeira grande no canto da cozinha e tirou um prato com três tortinhas e me entregou.

– Mamãe fez para você, mas você desapareceu depois do almoço!

– Obrigada! – Eram três tortinhas, uma de chocolate com avelã, outra de morangos com creme e a terceira parecia ser de baunilha com chocolate branco, eram as minhas favoritas. Voltei correndo ao quarto e as comi enquanto pensava sobre o que havia acontecido no palácio. Os treinos com Siorin estavam realmente surtindo um bom efeito, havia derrotado o rei num só golpe, porém ele pode muito bem ter me deixado vencer só para descontrair, será que ele era desse tipo de pessoa? As palavras da rainha também não saíam de minha mente, ela era uma boa pessoa, muito diferente do que sempre imaginei. Lembrei de Kuran aparecendo com Asahi alguns minutos depois, só então entendi por que aquilo havia me incomodado tanto, eu realmente estava com ciúmes!

– Ah, para de bobagem, ciúmes dele? – Falei com meu reflexo no espelho. Só então pensei no que a mãe dele disse depois de ver minhas memórias “Você os ama e não faria mal a eles”, meu reflexo no espelho ficou pálido, comecei a sentir um pânico crescer dentro de mim. – Então é por isso o por que me sentia tão nervosa com aquele olhar? Eu o amava e estava tentando ignorar isso! Ahh, não pode ser! Eu me recuso a aceitar um sentimento desse! – Estava brigando com meu reflexo como uma louca, como se quisesse brigar comigo mesma e não pudesse fazer isso em silêncio. Parei, respirei fundo e comecei a pensar melhor, eu não tinha medo dele, tinha medo de ele não me aceitar por saber que eu era inferior a eles por ser humana, não tinha medo daquele olhar, tinha medo do que aqueles olhos me faziam sentir. Fiquei jogada na cama por algumas horas abraçada no travesseiro e me odiando pelo que sentia, mas ao lembrar de Asahi, o ciúme voltou e senti ainda mais raiva de mim por estar assim, pior é que não podia contar com Annie para me ajudar, depois de tudo que ela havia dito, era óbvio que ela iria rir de mim.


Acabei saindo da cama somente para jantar e ficar de molho na banheira por um longo tempo antes de voltar e dormir, não devia ser nem dez da noite quando peguei no sono. Nessa noite não tive o sonho de sempre, dessa vez sonhava que estava passeando com Susano e Annie por um pátio de um castelo de vidro, que brilhava com várias cores diferentes conforme a luz do sol batia nas altas paredes do castelo, parece que dessa vez tive um descanso e pude sonhar com algo tranquilo para variar.

– Nike? Não vai para a aula hoje? – Perguntou Gih entrando no quarto e acendendo a luz.

– Hu-Hum! Mais cinco minutos! – Puxei o lençol para cima do rosto, mas Gih o tirou de cima de mim num puxão rápido.

– Nike, já são quinze para as cinco! Suas aulas não começam as seis? – Quando ouvi as palavras dela, dei um salto da cama já pousando em frente ao armário e vestindo meu uniforme.

– Droga, vou chegar depois do primeiro período! – Resmunguei correndo até o banheiro, lavando o rosto e escovando os dentes. – Até o fim de semana Gih! – Falei saindo correndo pela porta sem escutar sua resposta. Saltei pelas escadas e passei pela porta do hotel como um furacão, a cidade parecia borrões dourados enquanto corria até a plataforma de embarque, havia um dirigível preparando partida na hora que cheguei, por sorte consegui pegá-lo. Não havia ninguém que eu conhecesse ali, então me sentei no único banco vago perto da entrada. Faltava cinco minutos para começar a segunda aula quando desembarquei do lado de fora da ACV, o segundo período de segunda feira era de técnicas de batalha com Yorshi, e ela era muito severa, se chegasse atrasada provavelmente não me deixaria entrar na sala. Não chegaria a tempo de entrar em sua aula, então andei tranquilamente pelo caminho até os portões. Estava um pouco escuro ainda, embora os borrões vermelhos no horizonte indicassem que logo logo o sol nasceria.

A floresta em volta da academia tinha uma densa neblina essa manhã e o silêncio estava mais estranho do que de costume, me apressei em passar pelos portões e fui direto ao refeitório ver se conseguia tomar um café.

– Está atrasada, moça! – Susano estava sentado perto da porta do refeitório comendo um pedaço de bolo.

– Ah, perdi a hora... – murmurei baixinho indo até o balcão e pegando um pedaço do bolo também e uma xícara de café.

– Yorshi não me deixou assistir a aula pois minha dupla não estava lá! – Ele me olhava pelo canto dos olhos.

– Sinto muito mesmo, Susano!

– Não se preocupe, não estava com vontade de ficar na aula mesmo! – Ele sorriu, me senti menos culpada por chegar tarde.

– Então, como foi ontem? – Perguntei.

– Acho que teremos um problema! – Ele estava com os olhos sérios e parecia um pouco nervoso. – Os mundos estão todos com o mesmo tempo!

– Como assim com o mesmo tempo?

– Sabe que a passagem do tempo é diferente nos doze mundos, não é?

– Sim, sei!

– Então, Lupinus e Hasan, seu pai, foram até Saldazaris e descobriram que o tempo lá estava passando igual aqui, então foram de lá para os outros mundos e descobriram que o tempo ficou igual em todos! – Explicou ainda parecendo preocupado.

– E isso é ruim?

– Por um lado é bom, facilita as viagens entre os mundos, a abertura de portais e o comércio também, mas o motivo pelo qual os tempos se equilibraram é preocupante.

– Acha que pode ser algo ruim? – Perguntei observando que ele não parava de mover as mãos, nervoso.

– Acho que tem uma força maligna por trás disso... esses dias um demônio de fogo tentou atacar minha irmã na entrada da floresta das sombras, em Amantia.

– Como aquele que me atacou? – Perguntei sentindo minha pele se arrepiar.

– Exatamente... acho que tem algo errado e que não querem nos contar, minha avó até tentou falar algo, mas meu pai não permitiu que ela continuasse.

– Quanto tempo faz que a passagem do tempo se igualou?

– Vai fazer cinco anos essa semana! – Respondeu ele olhando algumas anotações em um caderno.

– Então é por isso que Ariel voltou tão rápido de Vegahn com material!

– Bom, já que perdemos essa aula também, queria te mostrar uma coisa! – Disse Susano pegando meu braço e me puxando para fora do refeitório. Corremos até a parte de trás da academia onde havia a estufa de ervas venenosas, mas ele não me levou até lá, paramos em frente a porta e ele pegou um espelho que estava escondido no meio de um monte de folhas secas.

– O que é isso? – Perguntei olhando o grande espelho de cristal com moldura de madeira trançada.

– Um portal fixo! A mestra Lola o usa para andar pelos mundos procurando ervas para cultivar e fazer as poções.

– O que vai fazer? – Perguntei olhando desconfiada o sorriso misterioso em seu rosto.

– Quero que conheça alguém! – Ele pressionou a palma da mão no espelho que começou a brilhar e ficou com a superfície mole, quase líquida. – Vamos! – Quando ia perguntar para onde íamos, Susano puxou meu braço e mergulhamos na superfície do espelho, passando por um largo túnel de luz até ver um céu azul claro do outro lado. Estávamos em queda livre naquele céu azul, um vento gelado soprou forte enquanto caíamos em direção à uma floresta coberta por neve. Era a visão mais bonita que já tinha visto em toda minha vida, a centenas de metros de nós, um castelo brilhante de vidro flutuava sobre uma cidade totalmente coberta de neve, no céu havia um círculo brilhante com palavras e símbolos. Susano deu um assobio alto, começamos a diminuir a velocidade da queda até cairmos em cima de algo quente e azulado com grandes asas cor de pele translúcida.

– Um dragão? – Gritei tentando me afastar, mas Susano me segurou em cima dele para que eu não caísse.

– Sim, Lua, o dragão d’água de minha mãe! – Ele estava rindo da minha cara de pânico.

– Estamos em Amantia? – Perguntei surpresa olhando em volta.

– Aham! Seja bem-vinda! – Ele parecia radiante, eu também me sentia diferente, algo fluía em mim de forma diferente aqui, como se tivesse ficado mais leve.

– Onde vamos?

– Lá! – Ele apontou para o castelo, senti um frio na barriga quando nos aproximamos circulando o grande castelo de vidro.

– O castelo de cristal! – Disse ele sorridente.


O dragão pousou na frente do castelo, em uma espécie de praça, logo em frente tinha um laguinho, mas parecia pequeno e errado ali.

– O que é isso? – Perguntei quando ele me ajudou a descer do dragão.

– Uma passagem para a cidade lá embaixo! – Ele segurou minha mão enquanto andávamos pela passagem de pedra até a entrada do castelo. Os guardas acenaram para ele quando nos aproximamos, Susano entrou pelo castelo de cabeça erguida, como um verdadeiro príncipe, nunca havia o visto dessa forma, talvez por que nunca havia pensado nele como alguém da realeza. Sempre pensei que nobres eram pessoas diferentes, mas ele, Kuran, Annie... eram como pessoas normais e me tratavam como igual!

O castelo era todo feito de cristal, de verdade, parecia um enorme castelo de gelo, porém era quente e confortável por dentro, a decoração variava entre tons vivos de verde, marrom e dourado. Subimos uma escadaria até o terceiro andar do castelo, Susano me levou até uma sala onde parecia ser uma espécie de biblioteca particular, havia uma janela estreita no canto da sala e uma poltrona aconchegante. Achei que Susano ia me mostrar algum livro, mas ele abriu uma porta que eu não havia visto na parede no canto da sala, quando a porta se abriu, um brilho azulado e fraco vinha de dentro dela.

– Vem cá! – Ele me chamou para dentro da sala, o segui, estava um pouco nervosa por estar ali sozinha com ele, mas sabia que ele não iria aprontar nada. Entrei na sala devagar olhando em volta, era uma sala negra e longa, tão longa que meus olhos não enxergavam o fim dela, nas paredes fora a fora haviam árvores coloridas brilhantes das mesmas cores que as marcas que apareciam nos magos, elas eram e gigantes e pareciam desenhadas e escritas à mão.

– Não estou entendendo, o que é isso?

– A sala dos espíritos. Isso são as árvores genealógicas de todas as famílias dos doze mundos, no começo achávamos que não podia ter todos os nomes aqui pois a sala acaba a um quilômetro daqui, mas no fim da sala tem mais uma porta que leva para outra sala! Meu avô entrou lá para ver o que tinha e só voltou depois de cinco dias, e disse que havia desistido de tentar achar o final!

– É uma sala encantada então!

– Sim, era para isso ser um banheiro, mas ele se transformou nessa sala na época do meu tataravô, porém a entrada da sala havia sumido, foi a irmã de minha mãe que descobriu a passagem para essa sala.

– Então, por que me trouxe aqui? – Perguntei, Susano sorriu e caminhou pela sala enquanto eu o seguia até pararmos em frente a uma árvore lilás, ela era grande, maior que todas as árvores dali.

– Essa é a arvore da família Arbarus, os primeiros guardiões dos doze mundos! – Fiquei olhando a quantidade enorme de nomes acesos na árvore, muitos apagados em vermelho, outros fracos de cor rosada e outros de cor azul, esses eram nomes que não podiam ser lidos me afastei o suficiente para ler o primeiro par de nomes da árvore, Yellen e Bremir. – Essa é minha bisavó, Jocelinne. – Susano chamou minha atenção para outro nome quase abaixo da metade da árvore – a primeira a carregar uma maldição sobre seu sangue, até dezessete anos atrás, todas da descendência dela nasceram amaldiçoadas. – Ele percorreu os dedos em dois nomes e desses dois para baixo. – Essa é minha mãe, Leona, essas são minhas irmãs, Asahi, Karin e Nyumun e esse sou eu. – Quando ele me mostrou, notei que o nome de Karin brilhava mais do que das outras duas. – Essa aqui, Pitye é a irmã de minha avó, Mayra. Essas são filhas de Pitye, Emma, Evelyn, Belve e Nieve. – Dos nomes que ele me mostrou, todos estavam vermelhos, mas embaixo do nome de Belve haviam mais dois nomes em vermelho. Senti um caroço na garganta ao ler o nome vermelho debaixo do nome de Belve, era Tiena, o nome de minha mãe, embaixo do nome dela estavam Nikella, Gwendollyn.

– Os nomes em vermelho...

– São de pessoas que já morreram, sinto muito! – Ele passou o braço em meus ombros. Novamente passei os olhos sobre os nomes, foi então que percebi o motivo dele ter me trazido aqui.

– Nós somos parentes! – Falei quase num grito encarando-o, ele sorriu. – Primos, não é? – Perguntei.

– Sim, primos de segundo grau! – Ele me levou até outra árvore, Apollis, apontou o nome de um homem, Fairin. Debaixo desse nome tinha uma longa lista de nomes de mulheres, inclusive o nome da mãe de Susano e da minha avó.

– Isso é meio doentio, não é? – Olhei confusa para a lista de nomes, eram os mesmos nomes das mulheres que Susano disse serem amaldiçoadas.

– Completamente! Mas é uma longa história, posso te contar outra hora.

– Então eu sou uma Arbarus.

– É uma Guardiã! – Ele tinha um sorriso encantador no rosto.

– Uma guardiã... – lembrei das palavras da aparição no lago e do homem no meu sonho me chamando de guardiã.

– Vamos voltar? – Susano me levou para fora da sala e a fechou.

– Achei que ia encontrar minha mãe um dia. – suspirei.

– Mas pelo menos ainda pode encontrar sua irmã! – Disse ele tentando me consolar. – Não fique triste, sei que isso não é o suficiente, mas considere minha família a sua família, posso ser seu irmão se quiser, mas tenha certeza de que se aceitar isso, eu vou cuidar de você como cuido delas! – Apontou para o fim do corredor, onde estavam uma jovem de longos cabelos negros cacheados abraçada com o príncipe Ericko. – KARIN! – O berro que Susano deu me fez pular para a parede como um gato apavorado, se tivesse garras, teria ficado agarrada a parede facilmente. A jovem também saltou para o lado assustada, olhando desconcertada para nós dois, o olhar de Ericko passou de Susano para mim, então eles vieram em nossa direção. Ao se aproximarem, automaticamente fiz a saudação com a mão sobre o peito.

– Ignis Aeternum. – Falei.

– Uma caçadora aqui? – Ele me olhou surpreso, tinha os cabelos ruivos da rainha, mas os olhos como o céu do pai.

– Estamos matando aula! – Disse Susano com um ar divertido.

– Quem é essa? Annie sabe que estão aqui? – Ele estava preocupado com o que eu e Susano estávamos fazendo?

– Relaxa, Ericko, essa é a Nikella, de quem Annie e seu irmão sempre falam! – Quando ele disse isso senti meu rosto pegar fogo, eles sempre falavam de mim?

– Ah, sim! A caçadora mais habilidosa da Academia! É um prazer conhecê-la, Nikella! – Ele apertou minha mão, Karin olhava com os olhos semicerrados para mim.

– Nike, essa é minha irmã mais velha, Karin! – Eu sorri, mas como não sabia como cumprimenta-la, apenas acenei.

– Hum, olá! – Falei sem jeito, ela deu um sorriso um pouco sem graça, ela e Susano eram muito parecidos, eu me parecia mais com ela do que Asahi.

– Nike, temos que voltar, o terceiro período deve estar acabando agora! – Disse ele segurando meu braço, acenamos para os dois e os deixamos para trás, mal tive tempo de murmurar um “até logo”.

– Vamos! – Corremos pelos corredores claros e espaçosos como duas crianças brincando de apostar corrida. – Faltam dez minutos para a terceira aula, Susano! Temos que chegar rápido!

– Não vai dar tempo se formos pelo portal aberto, temos que abrir outro... – ele parou de correr, abriu uma das janelas e me deu a mão.

– O que vai fazer? – Perguntei olhando desconfiada para o jardim abaixo de nós. Sem aviso ele me puxou e saltou pela janela, teria perdido minha voz de tanto gritar se não tivesse congelado com o susto. No chão embaixo de nós apareceram pilhas de travesseiros que caímos sobre elas como dois bonecos atirados de cima de um beliche, Annie e eu costumávamos fazer isso, atirar bonecas de cima da cama se Sayuri em travesseiros quando ela não estava no quarto para se irritar conosco em sua cama.

Saí com dificuldade da pilha de travesseiros macios e cambaleei até cair sentada na sombra de uma árvore. Susano estava com os cabelos bagunçados e de cara feia, comecei a rir dele sem nem entender o porquê daquilo.

– Não era para você estar na aula agora? – A voz de uma mulher interrompeu minha crise de risos.

– Desculpe, mãe! Estamos voltando! – Disse Susano ficando de pé e arrumando o cabelo. Olhei devagar para o lado e vi a mulher que ele chamou de mãe. Ela era linda, tinha cabelos castanhos claros e olhos verdes brilhantes, não parecia ser mais velha que eu.

– Não vai apresentar sua amiga? – Perguntou ela olhando para mim e estendendo a mão para que eu levantasse do chão.

– Essa é Nike, a amiga de Annie! A mesma Nikella que está abaixo do nome da tia Belve... – ela ergueu a sobrancelhas e sorriu, tive vontade de abraçá-la com aquele sorriso.

– É um prazer conhecê-la, sobrinha! – Sua voz era doce e suave, era como se um anjo tivesse falado comigo. Um elfo apareceu atrás dela, ele era muito parecido com Susano, aliás, Susano se parecia com ele, tive certeza que aquele era o rei. Antes que pudesse falar qualquer coisa, Leona abriu os braços segurando um cajado dourado, seus cabelos ficaram prateados, marcas douradas apareceram em sua testa e em seu braço esquerdo e um clarão nos envolveu.

– Vão se atrasar! – Ouvi a voz dela pela última vez, quando o clarão passou, que abri os olhos novamente, estávamos no pátio central da ACV e o sinal do terceiro período tocou, fomos em direção à sala, eu ainda estava sorrindo e Susano parecia alegre consigo mesmo por ter conseguido colocar um sorriso em meu rosto.


9


Vigiada

 

A sexta feira chegou rachando de calor, estava com tanto calor que faltei as últimas duas aulas e fui para o quarto tomar banho frio e ficar no ar condicionado com Sayuri e Liilac.

A semana de aula foi quase tranquila, tirando os treinos com Siorin que ficavam cada vez mais pesados e a sobrevivência, Misty não deixava barato, ela achava que só porque éramos avançados, tinha que pegar mais pesado conosco. Na quinta feira, Misty nos fez lutar contra nossos parceiros em dupla, eu ia lutar com Palloma, mas Susano falou que ia lutar com ela então acabei ficando contra Kuran, eu o estava evitando a semana inteira, porém agora ele estava diante de mim, novamente, era difícil encará-lo agora que sabia sobre meus sentimentos por ele. Por incrível que pareça eu venci Kuran, e Palloma venceu Susano, nós simplesmente não tínhamos chance alguma contra eles e vencemos mesmo assim. Pouco depois soubemos que Misty havia armado para nós, os alunos que perdessem nos duelos ficariam a noite toda de vigia com os caçadores nos muros da ACV. Kuran e Susano sabiam disso e nos deixaram ganhar para não ficarmos de vigia, isso me deixou bastante irritada, na certa Susano contou a Kuran sobre o acidente na Muralha.


A loja do senhor Taures ficou fechada durante toda a semana, Ariel não nos deixou abri-la até ter certeza sobre a saúde de seu pai. Merian também não apareceu mais na ACV, motivo pelo qual fui chamada à uma reunião na sala de Nyona no final da tarde de quarta, não queria contar o que tinha acontecido, mas ela não aceitou um “ele desistiu da academia por ser ruim com armas”, depois que contei a verdade sobre ele e sobre os hostes, ela mandou que a segurança na academia fosse dobrada.

Fiquei o resto da tarde de sexta na biblioteca estudando herbologia, no final da tarde, por volta de umas sete horas e antes dos sóis sumirem, fui até a estufa conferir as ervas e tirar algumas dúvidas com Lola. Entrei na estufa vazia, mas Lola não estava lá, provavelmente estava jantando na sala dos professores, ela não gostava de comer no refeitório, odiava o barulho dos talheres nos pratos de metal. Andei pela estufa conferindo as plantas e fazendo anotações em meu caderno sobre detalhes delas. Quando acabei, Apollis já havia desaparecido, apenas Gálatas estava no céu descendo no horizonte.

– Não foi trabalhar essa semana, aconteceu alguma coisa? – A voz me deu um susto tão grande que derrubei um vaso de plumeria no chão.

– Mestre Siorin?! Chegue fazendo barulho, por favor! Bata os pés, pigarreie, sei lá! – Reclamei olhando feio para ele, usei meus poderes para concertar o vaso e o coloquei no lugar, Susano havia me dito que era só deixar a energia fluir e fazer o que eu estivesse imaginando que conseguiria usar meus poderes facilmente.

– Já está sabendo usar melhor os poderes! – Disse ele olhando eu colocar o vaso no lugar.

– Sim, Susano me ajudou muito! – Ele estava me encarando de forma estranha, não podia ver seu rosto direito, estava escondido pelas sombras.

– Isso vai complicar um pouco meu trabalho aqui... – os olhos dele estavam diferentes, um brilho maligno podia ser visto neles.

– Do que está falando? – Perguntei desconfiada dando um passo para trás. Siorin deu um passo para frente, pude ver uma cicatriz recente cortando seu rosto de fora a fora e gelei.

– O que foi? Com medo?

– Merian! – Peguei meu pingente o fazendo voltar a ser a foice e me posicionei para me defender se fosse necessário. – O que quer? Já não teve sua lição?

– Fique calma, não estou aqui para te matar, ainda não, Guardiã! – ele tinha uma faca negra na mão, a girava entre os dedos e sorria de forma assustadora.

– Do que está falando, por que me chamou assim?

– Você sabe do que estou falando! Estou aqui dessa vez só para te avisar que eu posso estar em qualquer lugar e que posso ser qualquer um! – Havia algo diferente nele, uma aura maligna podia ser sentida nele, a mesma sensação de quando a aparição do lago tentou me matar. Será que ele estava sendo possuído por algo? Sorri de forma debochada para esconder meu medo.

– Com essa marca no rosto? Pode se transformar em quem quiser que eu vou te reconhecer! – Respondi conseguindo fazer com que minha voz saísse normal, a frieza em seu olhar fez um nó voltar à minha garganta.

– Sabe de uma coisa? Eu sempre te odiei, por você ser melhor que eu, mais forte, então alguém ouviu meus pensamentos um dia e me deu o poder que eu precisava para destruir você...

– Quem te deu esse poder?

– Aquele que vai dominar os doze mundos com o poder que tomar dos guardiões, por isso não posso te matar agora, tenho que esperar a ordem dele, aí te levarei até ele e depois que ele tomar seus poderes, eu mesmo te mato! – Dizendo isso ele desapareceu transformando-se numa nuvem de mariposas e saiu pelas portas e frestas das janelas da estufa. – Você está sendo vigiada o tempo todo, não se esqueça! – A voz dele soou alta na estufa antes da última mariposa desaparecer. Minhas pernas tremeram e eu caí de joelhos no chão quando ele saiu, a presença maligna que ele trazia era assustadoramente forte. Saí da estufa andando devagar tentando firmar as pernas, mas elas não pareciam colaborar comigo. Merian assumiu a forma de Siorin pois sabia que todas as sextas depois das aulas da tarde, ele voltava para Amantia para passar o fim de semana.

Hoje nós não receberíamos missões, o que me deixou um pouco aliviada, Merian havia conseguido me deixar com medo, mas se ele podia entrar na ACV disfarçado sem ao menos ser impedido, teria que avisar Nyona sobre a cicatriz no rosto, talvez isso ajudasse a mantê-lo longe. Fui para o refeitório jantar, ainda não me sentia muito bem, mas comer sempre fazia me sentir melhor. Annie, Susano e Kuran estavam na mesa no canto do refeitório, peguei uma tigela com ensopado e alguns pãezinhos e fui até eles. Annie estava no canto de cara feia, sabia que ela ficar de mal humor era algo raro.

– Olá! – Cumprimentei a todos. – Onde estão Nelin, Lupinus e Palloma? – Perguntei tentando parecer o mais normal que pude.

– Eles já foram para casa! – Susano não parecia estar incomodado de ter que ficar a noite toda de vigia nos muros.

– Annie, está tudo bem? – Me debrucei sobre a mesa para ver melhor seu rosto escondido sob o capuz.

– Ela está zangada comigo porque fiquei de ir hoje para o castelo com ela mas acabei na vigia com Kuran.

– Falou para ela que você fez isso porque se não fosse você e Kuran eu e Palloma que estaríamos lá a noite toda? – Falei, ela olhou para os dois e depois para mim.

– Verdade? – Perguntou Annie olhando de um para outro.

– Não sei como ela percebeu, mas é sim! – Respondeu Kuran com um sorriso no canto dos lábios.

– Como não perceberia, Kuran! Você estava com a espada frouxa na mão! – Falei irritada. – Queria ter te vencido eu mesma! – Kuran deu uma gargalhada tão debochada que tive vontade de bater nele.

– No dia que você me vencer sem que eu te deixe ganhar, Ciartes vai virar cinzas! – Disse com uma pontada de malícia na voz.

– Convencido! – Resmunguei.

– Queríamos ficar conversando, mas temos que ir para as guaritas antes das vinte umas horas! – Susano se levantou levando seu prato até a grande pia de metal no fim do refeitório, Kuran se levantou para acompanhá-lo.

– Vai para casa? – Perguntou à Annie.

– Vou sim! – Annie levantou num pulo para ir até o quarto buscar suas coisas. – Você vai para a cidade do sol hoje, Nike?

– Não, só amanhã cedo, tenho que acabar os deveres de herbologia e poções. – Bufei.

– Então não se esqueça, domingo hein! – Ela sorriu, havia me esquecido completamente da festa de aniversário dela e de Ericko.

– Não vou esquecer.

– Até mais! – Disse Kuran piscando para mim, fazendo com que eu quase derrubasse o prato. Vamos, não perca a cabeça agora!

Terminei de jantar e fui direto para a biblioteca na base do castelo central, atravessei o pátio deserto e entrei no castelo passando por alguns alunos que acenaram para mim quando passei, era estranho pois sempre eram caras viradas ou risinhos de deboche quando eu me aproximava. Não entendia o porquê dessa mudança, mas não estava me incomodando em nada. Na porta da biblioteca tinha uma placa de “fechada”, mas sabia que não estava trancada, os outros alunos não costumavam ignorar plaquinhas como essa, menos eu. Entrei na biblioteca em silêncio, pisando tão leve que um fantasma seria mais barulhento que eu. A biblioteca central era muito grande, ocupando todo o primeiro andar do castelo, tinha livros de todos os mundos ali, a mobília em madeira escura polida tinha ainda tinha o suave aroma de sândalo, o chão coberto por carpetes vermelhos ajudava minhas entradas gatunas para pegar livros que não tinha permissão para ler. As paredes tinham bonitos enfeites de sóis entalhados e sobre a lareira no centro da biblioteca havia uma pintura gigante retratando os doze mundos. Costumava pegar os livros que queria ler e me sentava em frente a lareira, o bibliotecário, Wignar, era um mestre boticário de Vegahn, então a biblioteca estava sempre fria de mais, ele nunca deixava a biblioteca, me pergunto se alguma vez desde que pisou em Ciartes pela primeira vez ele viu a luz dos sóis. Apenas perto da lareira que ficava confortável para ler, Wignar estava dormindo na mesa atrás das longas estantes de livros, aproveitei seu sono e fui até a sessão de livros fantásticos, gostava de ler sobre a primeira salamandra mesmo quando ainda os odiava. Peguei o livro com capa gasta feita com folhas da árvore do fogo e me deitei no sofá.


Olhei em volta, estava no mesmo penhasco da grama vermelha novamente e fiquei irritada por ter dormido lendo. Dessa vez a morte não estava lá novamente, era o mesmo homem loiro de olhos perversos, ele estava me encarando sorrindo, segurei minha foice, mas de forma alguma conseguia fazê-la voltar ao tamanho normal. Ele andou até as espirais na beira do penhasco, colocou suas mãos sobre a segunda espiral, que começou a se apagar, o brilho dela foi para o corpo dele, depois que o brilho da espiral se apagou, ele a quebrou e o corpo que estava dentro dela se desmanchou. Tentei correr em sua direção para impedir, porém não conseguia sair do lugar, estava paralisada. Logo em seguida foi até a terceira e fez a mesma coisa, mesmo que eu tentasse gritar com ele, ele não me ouvia, apenas me encarava sorrindo enquanto tomava o brilho delas. Achei que ele ia para a quarta espiral, mas ele andou até a décima primeira e fez o que havia feito com as anteriores, por último deu um passo para trás e começou a apagar a décima, foi quando consegui me soltar da paralisia, porém notei que estava dentro de uma das espirais e o olhava através do vidro fino, ele andou até mim quando destruiu a décima. Sabia que seria a próxima, mas algo o afastou da minha espiral...


Abri os olhos assustada, com o coração martelando fortemente contra as costelas.

– Vamos Nikella! Acorde! – Era Wignar me sacudindo, ele me acordou antes que eu descobrisse quem havia me ajudado, mas se é só um sonho, por que deveria me importar?

– Desculpe senhor Wignar! – Falei com a voz enrolada e me levantei do sofá.

– Na próxima vez que ver a porta fechada, não entre ou chamo Candace! – Ralhou me encarando com seus olhos brancos por baixo das lentes de seus óculos.

– Sim senhor, desculpe! – Olhei para o relógio da parede, já passava das onze e meia, teria que voltar correndo ao quarto antes que Candace acabasse de patrulhar os jardins atrás de casais fujões que não iam para casa nos fins de semana. Do lado de fora da biblioteca estava calor, o suficiente para me causar um choque térmico com a diferença das temperaturas. O pátio estava deserto, do outro lado caminhando pelos corredores abertos estava Candace e mais dois caçadores, eles iam em direção ao dormitório masculino e pareciam bastante zangados. Me escondi atrás da árvore e fiquei encolhida ali até que eles entrassem no prédio, se eu fosse pega do lado de fora naquela hora, teria que fazer companhia a Susano e Kuran nos muros da academia, isso não era nem de longe uma opção. Corri para a entrada do dormitório feminino, Candace não demoraria a encontrar o que procurava e logo voltaria, não podia me arriscar a ser pega por ela novamente, já tinha sido marcada para sempre na primeira vez que me deixei ser castigada por ela e sentia um ódio perturbador ao lembrar que Merian me entregou a ela. Subi as escadas correndo observando atentamente a escuridão nos corredores, estava com medo de algo sair dali, não algo, um alguém! Não tenha medo! Você está prestes a se formar uma caçadora! Caçadores não tem medo de nada!

Entrei no quarto e joguei minhas coisas em cima da cama vazia de Annie, tirei a roupa ficando apenas com as peças íntimas e joguei o uniforme dentro da bolsa, iria lavá-las quando chegasse ao hotel amanhã cedo. Entrei no banheiro para tomar um banho, era bom ter o quarto só para mim as vezes, assim podia ficar embaixo da água fria sem ninguém batendo na porta me mandando sair. A vantagem de ter poderes é que eu podia ter o cabelo grande novamente sem ter que me preocupar em desembaraçá-lo e secá-lo, podia fazer isso magicamente. Depois de vestir minha camisola e escovar os dentes, fui para o quarto, abri as janelas para deixar a brisa entrar e quando fui me jogar na cama, tive uma desagradável surpresa. Kuran estava deitado sobre minha cama com um braço sob a cabeça e minha adaga de vitrino na mão. Levei a mão imediatamente à foice achando que poderia ser Merian novamente. Kuran me encarou com os olhos vermelhos, a luz da lua estava entrando pelas janelas e iluminando seu rosto, não havia nenhuma cicatriz, então não era Merian, recoloquei o pingente no pescoço e o encarei.

– O que está fazendo aqui, não deveria estar na guarda dos muros com Susano?

– Sim, mas colocamos dúplices lá, assim podemos descansar enquanto eles fazem o nosso serviço, Susano foi para o castelo.

– Acho que seu dúplice sumiu, Candace passou furiosa para o dormitório masculino alguns minutos atrás. – Ele sorriu.

– Imaginei que isso pudesse acontecer, por isso me escondi aqui! – Ele tinha um sorriso malicioso nos lábios.

– Desde quando está escondido aqui? – Senti o sangue sumir de meu rosto.

– Faz uma hora, estava escondido na cama de Liilac, ela permitiu que eu viesse para cá! – O sorriso dele aumentou.

– Kuran, saia do meu quarto antes que eu te mate! – Esbravejei enquanto andava até a cama e o puxava de cima dela.

– Tenho permissão de duas das quatro donas do quarto para estar aqui, e a outra delas é minha irmã que não me nega nada! Então posso ficar aqui, seriam três contra uma! – Ele estava rindo e se divertindo as minhas custas, sentia meu rosto queimar.

– Eu não te dou permissão, e você está em minha cama! Saia daqui Kuran, ou vou chamar a Candace! – Vociferei indo em direção à porta, Kuran segurou meu braço e me puxou derrubando-me sobre ele na cama. – AH, me solta ou eu vou te matar! – Gritei tentando me soltar de seu aperto, porém ele passou a perna por cima das minhas e ficou me segurando sobre ele abafando meus gritos com a mão.

– Eu não vou te soltar até que você se acostume com a minha proximidade e pare de se afastar de mim.

– Eu juro que quando me soltar eu vou cortar sua cabeça fora!

– Você não vai fazer isso, você me ama! – Disse ele rindo deixando-me com mais raiva.

– Como pode ser tão convencido? Me solte agora! – Forcei minhas mãos com toda força que pude, mas ele não cedeu nem um pouco.

– Já disse, só vou te soltar quando você ficar quietinha! – Sussurrou em meu ouvido, fazendo um calor percorrer minha espinha. Parei de me mover acreditando que ele iria realmente me soltar.

– Já fiquei quieta! Agora me solta.

– Hmm, ainda está tensa! – Pude ouvir o tom de riso em sua voz, aquilo me deixou furiosa pude sentir a energia fluir através de mim quando desejei poder lhe dar um choque. O brilho verde das marcas em meus braços clareou todo o quarto, de repente Kuran me soltou e pude me afastar.

– Não precisava disso! – Ele parecia frustrado. Fiquei de pé perto da porta olhando-o ainda sentado na beirada da cama

– Você não pode sair entrando no quarto das garotas e agarrar elas! Ou é isso que você faz? Fez isso com Asahi? Por isso ela corre tanto atrás de você? – O sorriso voltou imediatamente ao seu rosto quando falei aquilo.

– Então é isso? Você está assim por causa de Asahi? Está com Ciúme?

– Alguma vez eu demonstrei interesse em você para você pensar que estou com ciúme? – Coloquei as mãos na cintura.

– Já! Na primeira missão, na caverna do lago, esqueceu? – Os olhos dele estavam fixos nos meus.

– Estava fora de mim... – murmurei virando o rosto para o lado, ele se aproximou e segurou minha mão.

– Então diga que não gosta de mim, que não quer nada comigo e eu saio daqui agora, prometo que não vou mais te incomodar, vamos, diga! – Ele virou meu rosto para que eu pudesse encará-lo. Fiquei olhando o vermelho vivo de seus olhos, olhos que tanto me assustaram um dia e que agora eu não queria mais perder de vista, estava completamente frustrada com o quanto ele conseguiu me mudar. – Você não consegue, não é? – Ele sorriu. Meu nervosismo não permitia que eu respondesse nada, tinha que levantar a cabeça para poder encará-lo, então ele segurou meu queixo e tocou seus lábios de leve nos meus, tão macios que não pareciam ser de uma pessoa tão irritante. Pela primeira vez o calor sufocante de seu corpo não me incomodou, ele se afastou um pouco e deslizou seu polegar sobre meus lábios, eu fiquei sem saber como reagir, apenas fiquei em silêncio olhando para ele, tentando pensar em algum motivo de alguém como ele se interessar por alguém como eu.

– Não quero te assustar, só quero que se acostume comigo, sei que ainda fica tensa com a minha presença, mas vou esperar você se acostumar! – Disse ele. – A propósito, por que apontou sua foice para mim? – Ele estava me encarando desconfiado.

– Achei que fosse outra pessoa. – Respondi conseguindo encontrar minha voz novamente e cruzando os braços para parecer mais calma, o que na realidade não estava.

– Quem?

– Merian... – as sobrancelhas de Kuran se estreitaram.

– Como assim, Nikella?

– Mais cedo, antes dos sóis sumirem, ele estava na estufa usando a aparência de Siorin para se aproximar de mim e dizer que pode estar em qualquer lugar.

– Ele é um metamorfo, não é? – Perguntou ele ainda sério.

– Sim, mas agora ele tem uma marca como a dos traidores de Cazarys. Eu marquei o rosto dele com uma cicatriz da testa ao queixo, mesmo quando ele se transforma a cicatriz ainda aparece. – Kuran parecia aliviado.

– Boa garota, fez seu dever de casa! – Ele estendeu a mão, entregando-me a adaga de vitrino.

– Fica pra você! – Falei.

– Está me dando de presente?

– Estou dizendo que pode ficar com ela, se não quiser pode deixar aí em qualquer lugar. – Ele observou a adaga com um meio sorriso e saiu do quarto. Deitei na cama e fiquei com os dedos sobre os lábios. Sabia que teria que aceitar uma hora ou outra os meus sentimentos por ele, e agora tinha certeza do que sentia, senti um sorriso em meus lábios sem meu consentimento, então virei deitando sobre meu braço, a cama ainda estava estranhamente quente, mesmo com calor adormeci com um sorriso irritante no rosto.

Faltava pouco para as seis da manhã quando acordei, ainda sonolenta e pela primeira vez sem o sonho de sempre rodando em minha cabeça, me sentei na cama e esfreguei os olhos. Lá fora estava muito escuro e uma brisa fria entrava pela janela, me levantei para fechá-la, ia trocar de roupa para tomar café e partiria para cidade do sol no dirigível das oito, quando olhei para a beirada de minha cama, tomei um enorme susto.

– O que está fazendo aí? – Havia um gato gordo de pelos cinzentos, quase prateados encarando-me com os olhos azuis com marcas parecidas com as do céu de Amantia dentro deles, ele deve ter entrado no meio da madrugada pela janela aberta. Era um gato muito feioso, de cara achatada e pelos crespos, haviam presas bem afiadas também, mas ele parecia inofensivo. Andei até ele e segurei sua carinha macia e afastei os pelos, traçando os dedos entre eles para ver se não tinha nenhuma cicatriz, ele pareceu feliz com o “carinho” pois começou a ronronar alto. – Já que você não é o meu ex irmão monstruoso, pode ficar aí até eu achar seu dono! – Ele não tinha coleira, seu pelo estava sujo e haviam vários nós em sua cauda. O levei até o banheiro e dei banho nele, aproveitando para tomar logo meu banho também, o gato não resistiu ao banho frio quando o peguei no colo para poder lavá-lo com o shampoo, pareceu até gostar e ficou brincando com a tornozeleira em meu pé enquanto eu lavava meus cabelos também. Usei meus poderes para secá-lo e desembolar seus pelos, logo em seguida ele pulou sobre minha cama novamente e ali ficou, agora sim seus pelos estavam de um prateado brilhante, nunca havia visto um gato assim. Tinha que dar algo para ele comer, então fiz aparecer um pote cheio de carne picadinha, ele saltou da cama em direção ao pote de comida, coloquei um pouco de água, enquanto ele comia, joguei a toalha sobre a cama me vesti rapidamente e fui para o refeitório tomar café. Kuran estava sozinho na mesa de sempre, fiquei na dúvida se pegava meu café e voltava para o quarto ou se ficava ali com ele. Inspirei fundo, peguei meu café e algumas rosquinhas de pão açucaradas e fui me sentar perto dele.

– Dormiu bem? – Perguntou mostrando-me um belo sorriso.

– Fora os pesadelos de sempre, sim! – Respondi.

– Pesadelo? – O tom de curiosidade em sua voz era verdadeiro, ele não estava tentando ser legal comigo, estava sendo sincero.

– Sim, desde o começo das aulas é o mesmo, ou variações do mesmo sonho.

– E como eles são? – Ele ficou me encarando, dei um suspiro, tomei um gole de meu café e contei o pesadelo, enquanto contava sua expressão permaneceu indecifrável. Quando acabei de contar ele ainda ficou em silêncio um bom tempo tomando seu chá.

– E então, o que acha? – Perguntei imaginando que ele deveria estar pensando que eu era louca.

– Nyumun tem o mesmo sonho que você... – disse numa voz um pouco baixa demais.

– Nyumun?

– A gêmea de Asahi. – Quando ele disse quem era, cruzei os braços e fiquei o encarando séria. – Hey, não precisa me olhar assim! Ela é namorada do mestre Siorin se você não sabe! Ela morre de ciúme de seus treinos particulares com ele! – Ele me encarou por um instante e desviou o olhar. – Eu também, para ser sincero...

– Entendi, mas como você sabe que ela tem os mesmos sonhos?

– Ela me contou na última vez que esteve no palácio, ela reclamou que não conseguia dormir direito com medo de ter os pesadelos.

– Isso é bem estranho! – Falei.

– Muito mesmo, talvez a sacerdotisa das águas saiba o que são esses pesadelos.

– Vai para a cidade do Sol agora? – Perguntou ele levantando-se da mesa, quando fiz menção de sair.

– Vou sim, só preciso ir pegar algumas coisas no quarto. – Sai do refeitório e ele me acompanhou pelos corredores e entrou comigo no dormitório feminino, enruguei a testa e fiquei olhando-o de soslaio. – Por que está me seguindo?

– Não estou te seguindo, estou te acompanhando! Quero passar mais tempo perto de você! – Revirei os olhos e abri a porta do quarto, o gato estava sobre minha cama e dormia tranquilamente. Kuran me segurou e puxou a espada, parecia que havia visto um fantasma.

– O que é isso, Kuran? Tem medo de gatos? – Dei um sorriso debochado e peguei o gato no colo apertando-o carinhosamente contra mim.

– Isso não é um gato, Nikella! É um glacio! – Disse ele observando o gato ronronando em meu colo.

– Como assim? – Perguntei esfregando a cabeça do gato.

– Me dá! – Ele foi colocar a mão no gato, mas o gato rosnou e o arranhou, onde o gato arranhou sua pele, apareceu uma marca branca que começou a cristalizar, Kuran acendeu sua pele como brasas, fazendo eu me afastar. O gato também não gostou da transformação de Kuran e se transformou em uma bolinha de pelos em meus braços.

– O que foi isso?

– A mordida ou arranhão desses bichos pode congelar uma pessoa em segundos. – Kuran havia voltado ao normal. – Ponha ele no chão para você ver! – depois de ver o que o gato havia feito eu obedeci, ele ficou sem saber para onde ia e encarava Kuran ainda chiando. – Craiezzaris! – Kuran disse a palavra “liberte-se” em Vegahniano. Para minha surpresa o gato brilhou e cresceu, ficando maior que minha cama, dei um pulo para trás, me escondendo atrás de Kuran, que começou a rir de mim.

– De onde saiu isso? – Perguntei assustada.

– Ele é das montanhas Glaciais de Vegahn, talvez tenha vindo sem querer por algum portal instável. Vai morrer se ficar aqui, eles não se adaptam ao calor!

– O que devo fazer com ele então? – O gato havia encolhido e ficado do tamanho de um bichano normal novamente.

– Amanhã depois da festa, te levo até Vegahn para soltá-lo lá!

– Tudo bem então! Vou levá-lo para o hotel, só deixar o ar ligado e ele deve ficar bem dentro do quarto! – Falei pegando-o no colo novamente. Peguei minhas coisas e saímos juntos em direção à plataforma. O céu estava avermelhado no horizonte e algumas nuvens se acumulavam lá, a floresta em volta de nós parecia ainda mais viva de certa forma, as árvores balançavam suavemente com o vento e traziam o cheiro das flores de milírio que só se abriam de madrugada.

– A loja não vai abrir por enquanto, não é? – Perguntou Kuran quando já estávamos sentados juntos no dirigível.

– Não, Ariel levou o mestre Taures para Amantia, acho que ele não estava muito bem... mas tenho certeza de que ele volta logo! Mestre Taures é um homem muito forte!

– Você vai amanhã à festa de Annie e de Ericko?

– Prometi a Annie que iria, então tenho que ir! – Respondi, pude ver um sorriso se formar em seu rosto. O gato se mexeu inquieto no meu colo, Apollis começava a nascer no céu, seu calor já estava incomodando o bichinho. – Já vamos chegar a um lugar fresquinho para você ficar! – Falei afagando suas orelhas.

– Queria receber todo esse carinho! – Kuran murmurou.

– O que? – Olhei-o de soslaio.

– Nada não! – Ele estava olhando na direção da árvore do fogo.

– Gostaria de ir até lá! – Falei.

– Nunca foi? – Ele estava surpreso. – Achei que você já conhecesse tudo por aqui.

– Evito sair, não gosto muito de ficar ao sol.

– Já viu a árvore depois da meia noite? – Seus olhos estavam com um brilho fascinante.

– Nunca.

– Quando for a próxima Lua de Fogo, eu te levo até lá!

– Sério? – Fiquei animada, sempre quis ir até lá, mas sempre tive medo de ir sozinha, diziam que ainda existiam os lagartos de fogo vivendo dentro da árvore.


Ao chegarmos na cidade central, quando fui na direção do hotel, Kuran segurou minha mão.

– Pode ir até o castelo mais tarde? – Ele perguntou.

– Ah... não posso! Prometi que ajudaria Elister com a limpeza da loja hoje depois do almoço! – Menti, mas poderia realmente chama-lo para ir limpar a loja para quando o mestre Taures voltar, tudo estaria limpo.

– Tudo bem, nos vemos amanhã então! – Disse ele beijando minha mão, tive que segurar o impulso de puxá-la e apenas sorri timidamente. Ao invés dele ir em direção do castelo, ele foi até a joalheria do outro lado da praça, provavelmente foi comprar um presente para sua irmã. O gato estava enrolado em meu pescoço como um cachecol e estava quase me matando de calor, porém deixava minhas mãos livres.

Gih estava cochilando atrás do balcão do hotel com uma fatia de torta parcialmente comida em um prato sobre seu colo, eu a tirei de seu colo e levei até a cozinha onde Lili estava preparando uma massa.

– Vai me ajudar na cozinha hoje? – Perguntou ela quando me aproximei.

– Se eu soubesse cozinhar ficaria feliz em te ajudar, mas confesso que não sei nem cozinhar um ovo!

– Uma mulher que não sabe cozinhar, nunca vai arrumar um marido, sabe disso né? – Disse ela com deboche, Lili e eu nunca nos demos bem.

– Você tem que idade? Trinta e dois? Cadê seu marido, ó cozinheira dos deuses? – Retruquei olhando em volta fingindo procurar por alguém. O rosto de Lili ficou vermelho e pude ouvi-la murmurando incontáveis palavrões enquanto eu saía da cozinha com uma torta inteira, ela nem percebeu eu pegando o doce. Fui para o quarto e fiquei lendo enquanto comia a torta sozinha, o gato dormia tranquilamente sobre minha barriga por causa do frio do ar condicionado.

Por volta das dezessete horas peguei as chaves da loja de forjas e fui até lá para fazer uma limpeza e polir as armas. Ariel e Elister estavam em Amantia com Taures, então talvez não os veria por aqui tão cedo. Em frente ao balcão havia uma caixa de madeira grande com um bilhete sobre ela, porém a deixei por último e fui fazer a limpeza da loja e das armas. Já passava das vinte horas quando acabei e fui ver o que tinha na caixa, peguei o bilhete para ler:

“Nike, sei que não vai respeitar o fechamento da loja e vai vir aqui nem que seja para ficar sentada olhando as armas, então deixei esse material para que você faça algumas armas especiais e as deixe a venda. Abraços, Ariel. ”

Era uma caixa cheia de barras de vitrino azulado, diferentes do amarelado que ele havia trazido primeiro. Lembrei que Annie gostava muito de usar espadas curtas, então peguei uma das barras de vitrino para fazer uma arma de presente para ela. Logo após fazer a arma e sua bainha de couro branco, voltei para o hotel, tomei um banho e coloquei comida para o gato, acabei dormindo sem jantar pois ainda estava cheia da torta, nem fui conversar com Gih.


Acordei com alguém batendo na porta do meu quarto freneticamente e chamando meu nome repetidas vezes.

– Oh, céus! Já vou espera! – Gritei com a voz arrastada, o gato que havia passado a noite inteira colado sobre meu peito e com a cabeça em meu pescoço havia sumido, chutei o lençol de cima de mim e abri a porta, eram Annie e Asahi. As duas me olharam surpresas e começaram a rir.

– Nike! O que é isso, nova moda? – Perguntou Annie tirando o gato de cima de minha cabeça.

– Ah, então era aí que ele estava! – Ri arrumando o bolinho de cabelos embolados que ele havia deixado. – O que estão fazendo aqui? – Perguntei colocando o cabelo para frente tentando me cobrir, o ar estava ligado e o quarto estava tão gelado que minha pele estava arrepiada e azulada.

– Ela tem mesmo dezesseis anos, Annie? – Perguntou Asahi olhando para mim da cabeça aos pés. – É baixinha mas tem mais corpo que minha mãe! – Disse ela jogando meus cabelos para trás, um senhor que estava hospedado no quarto em frente estava nos olhando pela fresta da porta, senti meu rosto corar e puxei as duas para dentro e bati a porta.

– Dezesseis não, dezessete! – Ela estava sorrindo e tinha um pacote grande nas mãos. – Feliz aniversário Nike, sei que estou um dia atrasada mas vale mesmo assim! – Annie pulou em cima de mim, abraçando-me e apertando meu rosto.

– Ainda assim, não parece ter só dezessete! – Resmungou Asahi olhando-me torto, não queria explicar para ela que meu corpo desenvolvido era apenas resultado do sangue de Aswang que tomei para não morrer pelo ataque que sofri nas muralhas.

– Ai, Nyu! Deixa de ser ciumenta! Siorin não tem nenhum interesse nela, te garanto isso! – Annie estava com as mãos na cintura fazendo pose de irritada.

– Nyu? – Perguntei confusa.

– Sim, Nyumun! – Disse a jovem encarando-me séria.

– Ah, desculpe... te confundi com a Asahi! – Falei a jovem elfa soltou um rosnado.

– Não gosta dela? – Perguntou Nyumun enrugando as sobrancelhas.

– Não é que eu não goste...

– É que sua irmã pegou meu irmão e a Nikella tem um ciúme terrível do Kuran! – Annie falou colocando a língua para fora e depois dando uma risadinha.

– Verdade? – Nyumun olhava-me com um ar divertido. – Não vejo motivos para ter ciúmes! Kuran só ficou com ela por que ela insistiu muito, quase implorou! E foi apenas uma noite, ele não tem interesse nenhum nela e por mais que eu odeie dizer isso, você é mais bonita que ela! – Disse Nyumun piscando para mim.

– Então ela também é mais bonita que você, Nyu! – Annie começou a rir e Nyumun amarrou a cara.

– Sou sincera! – Respondeu ela sentando-se na cama com o gato no colo.

– Vamos Nike, abra seu presente! – Annie parecia mais empolgada do que nunca. Desembrulhei o pacote branco de papel acetinado com cuidado, de dentro dele tirei um bolo de tecido preto, que conforme o virava na luz, tinha um brilho azulado como estrelas borrifadas no céu noturno. Annie vendo que eu estava sem jeito para pegar o que quer que fosse, tirou das minhas mãos e o abriu, era um vestido longo tomara que caia. – Vamos experimente! – Disse ela puxando-me de cima da cama e me ajudando a vesti-lo. O vestido ficou no tamanho exato, ele apertava desde o busto até a cintura e se abria numa roda como um sino cheio de gomos. Tenho que admitir, mesmo odiando vestidos fofos eu havia amado aquele.

– Annie, é lindo! Obrigada! – Falei olhando-me no espelho, o decote do vestido não era tão profundo, mas ainda assim me sentiria mais à vontade com uma echarpe, Annie havia pensado nisso também, pois tinha um longo tecido fino azulado no pacote em cima da cama. Nyumun suspirou e olhou para o lado.

– Vai chamar mais atenção que você na festa, Annie! – Disse Nyumun coçando as orelhas o gato.

– Ficou perfeito! Fala sério, eu tenho bom gosto! – Annie sorriu e foi em direção a porta. – Nike, quero vigiar os preparativos da festa, te espero lá mais tarde está bem? – Ela me deu um beijo na bochecha e saiu seguida por Nyumun, que acenou e deu um meio sorriso. Tirei o vestido quando elas saíram, o pendurei no armário com cuidado para não o amassar e voltei a dormir com o gato dormindo também sobre a curva das minhas costas, não tinha completado meu ciclo de sono quando elas me acordaram.


No final da tarde, estava tão nervosa para essa festa quanto costumava ficar para o primeiro dia de aulas na ACV. Me arrumei e usei meus poderes para fazer várias tranças finas nas laterais da cabeça, depois as juntei num pequeno coque atrás da cabeça e deixando uma cachoeira de cabelos pretos soltos atrás, até que havia ficado bonito, não gostava de usar maquiagem, mas peguei um batom que Liilac havia me dado de presente, ele era de cor vinho e não saía sem um produto específico, também não manchava, então o passei, pois combinava perfeitamente com minha roupa. Puxei o vestido para cima e coloquei os cintos com lâminas nas pernas, afinal não sabia o que poderia encontrar, mas deixei o colar com a foice no estojo sob a cama, não sabia se ele poderia ser interpretado mal num castelo lotado de salamandras.


Atravessei a praça central com os sóis deixando meu vestido de um lindo azul escuro e brilhante, me sentia mal com a quantidade de olhares sobre mim, sorte que havia muita gente ali, todos indo ao palácio também. Os guardas me reconheceram do dia que fui levar a espada e permitiram que eu entrasse sem pedir convite igual estavam fazendo com os outros convidados, na entrada havia um tapete vermelho que ia em direção ao salão principal onde provavelmente festa seria realizada, ao chegar perto das escadas, um pânico me tomou, lá embaixo no salão haviam mais pessoas do que no evento de início das aulas na ACV, eu segurei firmemente o embrulho com o presente de Annie e desci até o salão, rezando para não cair das escadas com o salto.


10


Despedida

 

Andei pelo meio do salão procurando por Annie ou Kuran, estava nervosa demais com toda aquela gente, muitas pessoas em trajes belíssimos e de aparência refinada, a única coisa que eu conseguia pensar olhando aquelas pessoas ali, era se alguma delas aguentaria uns tapas meus, esse pensamento me fez sorrir um pouco e esquecer o nervosismo.

– Nunca vi um sorriso tão lindo quanto esse em toda minha vida! – Disse um senhor barbudo de olhos brancos e barriga saliente que estava perto de mim, sua pele branca como leite parecia frágil demais.

– Hmm, obrigada... – falei sem jeito dando olhando em volta ainda procurando por alguém.

– A jovem senhorita quer se juntar a mim num drinque? – Ele ergueu uma taça e para mim, mas eu a recusei educadamente.

– Não senhor, obrigada pela gentileza, mas estou procurando por alguém! – Falei virando-me para sair de perto dele, porém ele segurou meu braço, tinha um sorriso simpático no rosto, mas seu olhar era maldoso.

– Tenho certeza de que seu amigo pode esperar! – Ele estava decidido a me manter ali e eu já estava pensando em lhe arrancar aquela mão insolente, porém alguém soltou meu braço do aperto dele e o afastou.

– Amigo? Não senhor, namorado! E eu não gosto de ficar esperando! – Disse Kuran puxando-me pela cintura para perto dele e encarando o homem de forma ameaçadora.

– Ah! Hum, príncipe Kuran, perdão, eu não sabia... – ele estava tão sem jeito que seus olhos ficaram encarando o chão.

– Tudo bem, Fisher! Só espero que não se repita! Deixe as convidadas em paz! – Kuran estendeu a mão para que eu a pegasse, não o deixaria sem jeito depois de ter me ajudado daquela forma, segurei sua mão e deixei ele me conduzir até o jardim secundário, que ficava do lado do salão de festas. Haviam alguns bancos em volta de uma árvore muito grande com galhos frondosos e folhas que mais pareciam cipós cor de laranja que pendiam dos galhos, elas faziam parecer que a arvore tinha cabelos longos. Kuran estava olhando para mim de forma estanha.

– O que foi? – Perguntei cruzando os braços e franzindo o cenho.

– Você está tão linda que eu fiquei sem reação quando te vi, isso acabou dando brecha para outro se aproximar! – Disse ele deixando-me constrangida.

– Que história é essa de “namorado”? – Perguntei.

– Ah, tecnicamente agora você é minha namorada, existe uma regra, se alguém disser que é seu namorado e você não tiver compromisso e não desmentir dentro de dois minutos, você está automaticamente aceitando compromisso com quem falou! – Disse ele com um sorriso divertido no rosto.

– Você acabou de inventar isso, não é? – Ele começou a rir.

– Mas você não desmentiu, minha casa, minhas regras!

– E o que você espera que eu diga? – Perguntei.

– Nada, você não disse que não aceitava as regras do meu jogo, então você aceitou.

– Você é inacreditável! – Falei balançando a cabeça negativamente.

– Então vai ficar por isso mesmo? Temos um compromisso ou não? – Ele estava me encarando sério, dessa vez não parecia estar brincando.

– Está tudo bem para mim! – O sorriso dele havia voltado ainda mais bonito.

– Então espere um pouquinho aqui, eu já volto! – Ele saiu antes mesmo que eu pudesse pedir para ele chamar Annie. Fui até um dos bancos perto do tronco da árvore e me sentei, fiquei observando o movimento dos convidados, vi ao longe, ao lado do rei Hargas, o rei e a rainha de Amantia, eles pareciam estar conversando entretidos, pareciam já ser da mesma família, Palloma estava na festa também, acompanhada por Datani, o que me deixou um tanto surpresa, eles pareciam muito à vontade juntos. Um movimento de algo brilhante ao meu lado me fez puxar o vestido para pegar uma das facas, porém era só o gato que eu havia deixando no meu quarto no hotel.

– Hey! O que está fazendo aqui? – Perguntei soltando o vestido e pegando-o no colo, ele subiu em meu ombro e começou a ronronar alto.

– Ira! O que está fazendo aí? – um homem se aproximou de mim tão sorrateiramente que quase caí do banco com o susto, ele era branco, realmente branco, sua pele parecia feita de neve, ele tinha os olhos negros e longos cabelos brancos que caiam em volta da cintura em várias tranças finas, não parecia ser frágil, muito pelo contrário, sua aparência me deu certeza de que ele deveria ser um guerreiro muito poderoso ou algo do tipo, era muito alto também, talvez um pouco maior que Susano e Kuran, parecia uma montanha gelada de músculos.

– Hmm, o que? – Perguntei olhando-o confusa, me sentia atraída por ele de forma estranha, como se fosse alguma peça de um quebra-cabeça que estivesse faltando para mim, era como se o conhecesse minha vida inteira, mas nem havia falado com ele ainda.

– Ira, meu glacio de estimação! – Ele ergueu a mão, o gato então pulou de cima de mim e se enroscou no largo pescoço do homem como se fosse um cachecol.

– Um nome bem incomum para um gatinho! – Falei brincando – Você é um Vegahniano? – Perguntei.

– O nome dele tem a ver com sua doce personalidade! – Ele riu – Sou um Malvarmo. – Respondeu estendendo a mão para que eu a apertasse, porém ele a puxou delicadamente para cima e beijou as costas de minha mão, senti um calafrio quando ele me tocou, uma estranha sensação como se queimasse e ao mesmo tempo congelasse o mundo ao meu redor, minha mão foi completamente engolida pela dele. – É um prazer conhecer outra guardiã, senhorita! – Disse ele sério, seus olhos negros pareciam estranhamente familiares, novamente alguém me chamando de guardiã, será que tinha algo a ver com a família dos Arbarus? Ele era um também?

– Hmm, como se chama?

– Caalin, e você? – Ele era muito bonito e embora parecesse um tanto assustador à primeira vista, parecia se uma pessoa incrível.

– Nikella! – Ele deu um passo para trás e sorriu.

– Foi um prazer Nikella, Príncipe Kuran... – ele fez uma breve reverência encarando Kuran com um olhar feroz no rosto, Kuran havia se aproximado sem que eu notasse. – Tenham uma ótima festa, boa noite! – Disse ele me encarando novamente usando uma esfera branca para abrir um portal e desaparecendo dentro dele levando o gato.

– O que foi? – Kuran estava com um olhar estranho onde Caalin havia desaparecido.

– Ele é um espião, um assassino do rei Cahadris de Vegahn, um Malvarmo muito, muito velho e perigoso! – Kuran parecia nervoso com o homem que havia acabado de desaparecer. Olhei novamente para o salão, mais ninguém parecia ter notado o portal, pois se não estariam olhando para cá.

– Achei ele normal! – Respondi, Kuran sacudiu a cabeça de forma que parecia ter evitado falar alguma coisa.

– Feliz aniversário... – sussurrou baixinho para mim colocando algo em meu pescoço, olhei para baixo e vi o colar de veludo com uma pequena réplica de uma árvore dentro de um círculo metálico, suas folhas eram feitas de finas pedras vermelhas e o tronco e galhos em zihina prateada. – É a arvore do Fogo, o símbolo de minha família, assim todos vão saber que você é minha escolhida e faz parte dessa família agora!

– É muito bonito, obrigada! – Tentei não me sentir desconfortável com o presente, Kuran segurou o pingente com a mão, tocando de leve minha pele com as mãos quentes, senti meu rosto queimar.

– Tenho que dar o presente de Annie! – Falei virando-me para ir até o salão, porém ele segurou minhas mãos, impedindo-me de ir até lá e me conduziu até o outro lado da árvore onde seus galhos se fechavam como uma concha e faziam uma sombra, ali havia um pequeno lago com uma fonte, um lugar tranquilo e um pouco escondido demais dos convidados, a música suave ainda podia ser ouvida daqui.

– Eu sei que você odeia festas, Annie deve estar cercada de gente assim como Ericko, então por que não ficamos aqui um pouco mais... – Kuran colocou meus cabelos para trás e deslizou os dedos em meu pescoço deixando-me completamente nervosa.

– Acho melhor não... – minha voz falhou.

– Está com medo de mim? – Senti meu rosto queimar. – Uma caçadora com medo?

– N-não estou com medo! – Gaguejei desviando o olhar para o tronco da árvore, ele apenas sorriu e ergueu meu queixo com a mão.

– Minha caçadora medrosa! – Disse ele tentando me provocar, quando fui responder, ele simplesmente me beijou, segurando minha cintura com uma das mãos e minhas mãos com a outra para evitar alguma reação, parecia ter lido meus pensamentos. Seus lábios eram tão quentes contra os meus, porém tão macios e doces, senti o cheiro do seu perfume amadeirado enquanto ele me apertava mais contra seu corpo, Kuran tirou seus lábios dos meus e beijou meu queixo, depois a curva do meu pescoço e voltou para meus lábios, forçando-os a se abrir e tocando sua língua na minha, ele deve ter percebido que minhas mãos ficaram frouxas e menos tensas que antes e as soltou, foi algo mais forte que eu, era um estranho desejo que estava me queimando, me consumindo, seu calor não me incomodava mais, segurei seu rosto e enrolei minha língua na sua, ele respondeu à minha repentina mudança de atitude e deslizou as mãos pelas minhas costas enquanto eu sentia o sabor adocicado de sua boca. Senti um sorriso em seus lábios antes de soltá-lo e me afastar ofegante.

– Sugiro que não me provoque, Kuran! Talvez não saiba lidar com o que pode vir depois! – Falei apoiando o rosto nas mãos, era para soar mais assustador, mas até eu entendi minhas palavras de forma diferente, queria retirá-las, mas uma palavra dita, permanece solta. Ele se aproximou de mim novamente e colocou um dedo em meu ombro.

– Tem uma marquinha aqui, parece uma folha verde... – ele estava sorrindo. Logo em seguida vi que as minhas marcas estavam acesas sem eu as forçar a aparecer.

– O q... – Ele beijou a marca em meu ombro, fazendo uma onda de calor se mover em meu corpo novamente.

– Aí está você! – Disse uma voz feminina atrás de Kuran. – Te procurei por todo lad... – ela não completou a frase, Kuran a olhou de soslaio com os olhos semicerrados sem tirar os lábios de meu ombro, quando ela me viu junto com ele, Asahi perdeu a voz, ela ficou em silêncio encarando-o e depois passou a me encarar.

– Annie está procurando por você! – Disse ela secamente, logo depois suas marcas douradas acenderam e ela sumiu numa espécie de torre de luz dourada.

– Acho que ela ficou magoada com você! – Falei.

– Eu não dei nenhuma esperança a ela para que agisse assim, eu sempre deixei claro que não haveria nada entre nós! – Ele me olhou sério, eu o encarei e segurei seu queixo com a mão.

– Não se atreva a brincar comigo, a me fazer de idiota ou algo assim, se você fizer algo assim comigo, eu arranco o seu coração e sirvo numa bandeja de ouro para ela! – Ele deu uma gargalhada divertida e se abaixou para que pudesse sussurrar algo para mim.

– Sabe, eu gosto de você desde que você estava no V3, mas nunca tive nenhuma esperança pois tinha certeza que seu único objetivo era nos matar!

– E quando passou a ter esperança? – Perguntei.

– Quando Annie disse para mim que você ia me aceitar um dia como a aceitou.

– Isso é muito inconveniente, ela é minha amiga! – Reclamei afastando-me indo em direção ao salão.

– Não acho... me deu esperanças! – Ele deu aquele sorriso quente e sedutor novamente para mim, deixando-me sem jeito.

– Ah, vocês estão ai! – Annie veio ao nosso encontro saltitando. – Não estou interrompendo nada, não é? – Ela deu um sorriso malicioso e mordeu os lábios.

– Não está! – Falei rápido demais, ela começou a rir. – Aqui, trouxe para você! – Falei entregando-lhe a espada, ela olhou maravilhada, tirou da bainha e sorriu.

– Nike, é perfeita! – Ela girou a espada nas mãos, o vitrino azulado tinha um brilho intenso nas mãos dela.

– Sei que não é um presente ideal para uma princesa...

– É o melhor presente para uma caçadora! – Ela riu. – Não poderia me dar nada que eu gostasse mais! – Falou abraçando-me apertado. – Agora podemos entrar ou vocês querem ficar aqui fora um pouco mais? – Perguntou num tom malicioso, Kuran respondeu que sim, mas eu movi a cabeça negativamente, o ouvi respirar fundo e então entramos no salão.


O rei e a rainha de Amantia estavam no meio do salão dançando ao lado de Ericko e Karin, era uma cena quase fofa de ser vista, o sorriso e olhar de felicidade de Leona me fez querer sorrir também, o rei era muito bonito, era difícil não olhar para ele, aliás, quase todos os olhares estavam voltados para eles. Kuran estendeu a mão para mim, convidando-me para dançar também, franzi o cenho.

– Não sabe dançar? – Ele perguntou.

– Claro que sei! Merian me ensinou... – Deixei minha voz morrer, como uma pessoa tão doce e gentil podia ter se tornado tão má assim?

– Então, vamos? – Ele estava tentando esconder um olhar irritado.

– Posso deixar para outra vez? – Fiz o meu melhor olhar de “por favor”, ele revirou os olhos e continuou de pé ao meu lado enquanto Annie ia dançar com Susano, ela estava radiante, quase explodindo de felicidade. Quando a música parou, o rei Hargas se preparou para falar, ele andou até o centro do salão, Leona estava ao meu lado agora, ela reparou que eu estava olhando para ela e piscou para mim.

– Hoje meu filho completa vinte nove anos, ele se tornou um guerreiro incrível, hábil e é gentil e generoso, porém justo e firme em suas atitudes! Ele já nos provou que será um ótimo rei, e terá uma ótima rainha ao seu lado! – Ele fez um gesto na direção de Ericko e Karin, que responderam levantando as taças. – Um brinde ao futuro de Ciartes! – Disse o rei sorrindo e levantando sua taça. Pouco depois do brinde vi Nyumun saindo para o jardim seguida por Siorin, o rei de Amantia ficou olhando com uma cara tão assustadora na direção que eles haviam saído, imaginei que a qualquer momento ele iria atrás dos dois.

– Parece que o Rei não aprova muito o relacionamento de Nyu e do mestre Siorin! – Falei baixinho.

– Ele não aprova nada! – Disse Leona que ainda estava ao meu lado. – Siorin é muito mais velho que Nyu, mas ele se esquece que é quase dois mil anos mais velho que eu!

– Que idade a senhora tem? – Perguntei.

– Trinta e cinco... – ela estava com a mão no queixo, pensando, na certa tentando se lembrar se havia dito a idade certa. Olhei-a da cabeça aos pés, ela parecia irmã de suas filhas, não tinha nenhuma marca no rosto e possuía um olhar vivo, dos seus filhos os únicos que se pareciam com ela eram Susano e Karin, possuíam o mesmo olhar e até eram fisicamente parecidos.

– Por acaso a senhora tem alguma notícia do mestre Taures, no templo de fogo? – Perguntei a ela.

– Sinto muito, eu vou pouco até lá, mas quando quiser fique à vontade para ir vê-lo!

– Obrigada, irei assim que puder! – Agradeci, iria assim que passassem os testes da terceira semana depois do horário das aulas, Susano não se negaria a me levar lá se eu pedisse.


A festa continuou até o início da madrugada, estavam todos felizes e animados e nem pareciam que tinham problemas, naquela noite só a alegria estava presente, depois de um pouco de insistência, Kuran foi dançar com sua mãe, deixando-me sozinha no salão. Pouco antes de duas da manhã eu já estava com sono e irritada, queria ir para casa dormir, fui até Annie me despedir e acabei esbarrando em Ericko e um outro salamandra no meio do caminho, o outro salamandra era incrivelmente bonito, tinha olhos negros como carvão.

– Ah, príncipe Ericko! Feliz aniversário. – Falei erguendo a mão para cumprimentá-lo.

– Nikella, não é? – Ele sorriu. – Adorei a espada, realmente perfeita! Nunca tinha visto uma arma tão boa! – Disse sorridente.

– Obrigada, o rei havia pedido algo especial e único, fiz o meu melhor! – Falei. – Preciso ir, tenho aula amanhã cedo!

– Você é uma das alunas avançadas, não é? Annie fala muito de suas habilidades!

– Verdade, eu me esforço! – Respondi sinceramente. Ele olhou para o salamandra ao lado dele e deu um sorriso malicioso.

– Quer fazer uma aposta? – O príncipe perguntou, senti um frio na espinha, eu não conseguia dizer não à uma aposta.

– De que tipo de aposta estamos falando? – Perguntei.

– Esse é Hasan, o filho de Sirius e Áries, os antigos guardiões do círculo, marido da irmã da sacerdotisa das águas e governante de Vintro! – O jovem acenou para mim.

– É um prazer conhecê-lo! – Fiz uma pequena saudação com o punho. – O que seria a aposta? – Perguntei começando a ficar impaciente.

– Ele vai participar da seleção do V8 esse ano! Vocês terão que derrotá-lo para passar... – ele deu uma pausa e ficou me encarando como se esperasse alguma reação minha. – Se você o derrotar e passar para o V8, eu te coloco no grupo de caçadores que fazem a guarda pessoal da família real em viagens para fora de Ciartes!

– E se eu perder? – Perguntei.

– Vai ter que ficar no V7 por dois anos, como todos os alunos normais! – Isso era bem preocupante, afinal, eu odiava ficar esperando por tanto tempo por algo simples de fazer. – Então?

– Aceito a aposta! – Respondi séria, Ericko sorriu de forma maldosa.

– Saiba que ele até hoje não perdeu nenhum duelo, nem mesmo contra o rei Ewren! – Quando ele disse isso, senti meu corpo ficar levemente dormente, mesmo assim consegui colocar um sorriso provocante no rosto.

– Interessante, vou ser a primeira a te vencer então? – Me dirigi a Hasan, ele ergueu uma sobrancelha.

– É convencida, hein!

– Não, apenas conheço a minha força! – Pisquei para ele e fui para o lado onde Annie, Nyumun e Kuran estavam vi de canto de olho Datani e Palloma se retirando da festa.

– Ericko estava incomodando você? – Perguntou Kuran baixinho para que Annie não ouvisse.

– Não, apenas fazendo uma aposta! – Respondi.

– Que tipo de aposta? – Kuran estava me olhando preocupado.

– Nada demais, apenas tenho que vencer aquele tal de Hasan na prova do V8.

– Isso eu quero ver! Até onde eu sei ele não perde para ninguém!

– Quer ver eu perdendo? – Franzi o cenho e cruzei os braços.

– Claro que não, quero ver você ganhando dele! Embora você não consiga nem ganhar de mim! – Disse provocando-me.

– Veremos! Agora, se não se importa, príncipe, eu preciso ir dormir! – Falei.

– Eu te acompanho até lá!

– Não preciso de escolta, sei o caminho de casa! – Retruquei.

– Não é assim que funciona um relacionamento, o normal é você deixar que eu te acompanhe e quando chegarmos lá eu te dou um beijo de boa noite e você entra em casa!

– Então nós não teremos um relacionamento normal, está bom assim? Não me dou bem com padrões! – Senti que havia sido grossa novamente, não sabia dizer se ele havia se chateado com isso – Já me conhece muito bem, bem o suficiente para saber que eu não seria o jarro de flores que você esperava, estou mais para um cacto! – Falei tentando amenizar minha grosseria.

– Não se preocupe em medir suas palavras comigo, pode ser quem você é, é assim que gosto de você! Além do mais, cactos sobrevivem no calor do deserto, flores não! – Disse ele acariciando minha bochecha com as costas da mão;

– Boa noite então! Nos vemos amanhã. – Falei virando as costas subindo as escadas do salão e caminhei até a saída. Atravessei a praça silenciosa, as luzes faziam uma bela trilha dourada de luz sobre os ladrilhos da calçada. Haviam alguns convidados da festa espalhados em bancos, escondidos pelas sombras das árvores.

Cheguei no hotel, subi as escadas com os sapatos nas mãos, sentia uma imensa vontade de queimá-los, mas eles ficavam tão bonitos que um pouquinho de sofrimento de vez em quando não faria tão mal. Me joguei na cama sem tirar o vestido, teria que levantar em menos de três horas para ir para a academia, o quarto estava gelado por causa do ar condicionado que havia esquecido ligado, embora não tivesse nenhuma despesa por conta da energia, sabia que o aparelho era caro e daria trabalho para Gih ir até a terra ou pedir que trouxessem outros de lá. Adormeci pensando em frio e acabei sonhando que estava em Vegahn com Caalin e uma jovem que não conhecia, no sonho estávamos indo atrás de alguém.


Até o início de dezembro, as aulas ficaram cada vez mais puxadas, sem falar nas aulas de Misty, ela não tinha um pingo de piedade, nos treinava rigorosamente, parecia uma adestradora com um chicote na mão. Siorin também estava pegando pesado com seus treinos noturnos, estava ficando impossível sair de lá sem algum roxo ou ferimento, Kuran sempre encontrava comigo após o treino e curava os machucados, ele estava irritado querendo reclamar com Siorin, mas se eu não treinasse pesado, perderia para Hasan e ficar dois anos no V7 não era nem de longe uma opção. Estava tentando me adaptar ao meu “relacionamento” com Kuran, meu foco era em concluir o V7 nas provas de julho, ele havia entendido isso e então começou a me ajudar também, nós treinávamos juntos após o almoço e durante as missões que também ficavam cada vez mais difíceis e mais distantes.


Numa segunda feira de manhã da terceira semana de dezembro, Susano chegou à ACV dizendo-me que o mestre Taures queria me ver.

– Onde ele está? Já voltou para a cidade do Sol? – Perguntei enquanto tomava meu café. Algo no olhar de Susano me fez soltar a caneca em cima da mesa e derramar o café, ele fez a sujeira sumir com um simples estalar de dedos.

– Receio que ele não vá voltar, Nike... – ele começou, mas me levantei da mesa e segurei seu braço.

– Pode me levar lá? – Pedi.

– Sim, podemos ir! – Disse ele se levantando e indo em direção à porta comigo, não havia percebido que estava o arrastando até Kuran tocar em meu ombro.

– Calma, Nike! Nós vamos com você também! – Annie estava agarrada em seu braço e sorria de forma carinhosa.

– Vamos! – Estava com pressa, havia dito que iria vê-lo assim que as provas de novembro acabassem, mas não consegui. Corremos até a saída oeste onde Susano abriu um portal para que fossemos até Amantia.

Atravessamos o portal em silêncio, ninguém disse uma única palavra, mas eu não conseguia dizer nada, estava nervosa demais para tentar quebrar o silêncio. O portal nos deixou no centro de uma cidade vermelha, quente e estranha.

– Onde estamos? – Perguntou Annie olhando em volta, eu de cara percebi que devia ser um território Salamandra em Amantia pelo calor extremo, o estilo das construções e as pessoas que estavam ali.

– Na vila das cinzas, um território salamandra, pouco depois da floresta morta. – Explicou Susano nos guiando através da vila. – Vamos sair perto do deserto do Fogo aqui, então seguiremos voando até Rompita.

– Até onde eu sei, é proibido sobrevoar territórios pertencentes a outras raças. – Disse Kuran.

– Meu pai tirou essa lei quando assumiu o trono. – Explicou Susano – isso causava mais problemas do que os evitava. As pessoas tinham que atravessar a pé esses territórios e corriam sérios riscos com isso.

Saímos da cidade pelo portão lateral que ficava mais próximo do local que havíamos chegado. Susano alterou sua aparência, ele agora estava com os cabelos e olhos dourados e as marcas estavam acesas em seu braço e testa, era algo muito interessante de se ver, Annie estava dando risinhos e Kuran revirou os olhos.

– Por que minhas marcas não ficam assim? Nem meu cabelo fica de cor diferente? – Havia pensado alto demais, Susano me encarou surpreso.

– Oras! Que pergunta, Nike! Você é uma maga pura, não tem seus poderes liberados ainda! – Disse ele rindo.

– Não entendi!

– É por que você é virgem! Qualquer mago “puro” mantém a maior parte dos poderes lacrados! – Annie estava rindo também e apertando minhas bochechas. – As marcas de Karin são verdes iguais as suas, as de Nyumun e Asahi são douradas. Não havia reparado nisso? – Ela perguntou, sentia meu rosto queimar demais e não conseguia olhar para eles.

– Vamos logo... – Susano viu que eu estava prestes a ter um infarto de tão constrangida que havia ficado que mudou de assunto rapidamente, o agradeci mentalmente e fiz também uma nota mental de não fazer mais nenhuma pergunta enquanto estivesse aqui.

Susano pegou duas folhas que estavam caídas no chão e as assoprou, elas começaram a vibrar e se transformaram em duas aves enormes, ele saltou sobre uma delas e deu a mão para que Annie subisse com ele. Kuran fez o mesmo, mas acabei subindo sozinha e evitei encará-lo.

– Passe sua energia para o pássaro, assim ele voará mais rápido e chegaremos lá antes do almoço. – Explicou Susano, assenti e toquei as mãos no local onde estava sentada de pernas cruzadas, mentalizei que estava transferindo minha energia, logo em seguida as aves de folha subiram aos céus numa boa velocidade.

– Está fazendo isso errado, não está deixando a energia fluir de forma correta, vê? Eles estão bem à frente! – Disse Kuran apontando com o queixo em direção a Susano e Annie que estavam bem à nossa frente. – Deixa eu mostrar como se faz! – Eu tirei as mãos da ave e deixei que ele passasse a energia, Kuran passou os braços ao meu redor e colocou as mãos em minha frente, estava perto demais tocando o corpo no meu. A marca da árvore do fogo apareceu em sua testa novamente, dessa vez notei que em seu pulso direito também tinham marcas que pareciam pequenos galhos enrolados. O pássaro deu um solavanco para frente e desequilibrei para trás, dessa vez colando no corpo dele, não sei se era certo eu ter me irritado tanto com aquilo, já que tínhamos algum tipo de relacionamento, me afastei um pouco dele para poder encará-lo.

– Vai continuar em silêncio? – Perguntou ele olhando-me com as sobrancelhas erguidas. – Ficou zangada pelo que Susano falou sobre suas marcas, não foi!

– Não...

– Se tem uma coisa que eu detesto, é que mintam para mim, então, seja grosseira, insensível, mas não minta para mim...

– Não estou mentindo, você perguntou se eu fiquei zangada, não fiquei zangada, fiquei sem graça! É diferente. – Respondi.

– Não seja boba! Não tem por que se envergonhar por algo assim! Tem coisas piores, disputar poder com sua irmã, por exemplo!

– Do que está falando?

– Asahi... ela só teve interesse em mim depois que descobriu que Nyumun havia aumentado seus poderes dessa forma.

– Então Nyumun e o mestre Siorin...

– Exatamente! Asahi aparentemente é muito competitiva.

– Então por que ela fica correndo atrás de você? – Ele deu um sorriso malicioso.

– Por que eu sou doce! – Disse mordendo os lábios. Lhe dei um empurrão e ele começou a rir.

Havíamos alcançado o mar, o cheiro da maresia era uma das coisas que eu mais gostava, o vento frio e o som das ondas.

– Em menos de duas horas chegaremos lá! – Gritou Susano do outro pássaro, Annie estava agarrada a ele, ela estava se divertindo muito, Kuran havia me distraído e eu quase havia esquecido o real motivo de estar ali.

Conforme avançávamos pelo mar, a costa ficava cada vez mais próxima. As aves fizeram uma curva para oeste, deixando-nos ver um grande penhasco, ao lado dele uma rocha gigante flutuava e em cima dela havia uma espécie de castelo com duas grandes torres.

– O templo de fogo. – Disse Kuran para mim. – Lar Arcádius, o irmão do sol Apollis, e Jocelinne, a sacerdotisa do fogo, bisavó da rainha de Amantia! – Olhei o templo com ainda mais admiração, duas pessoas muito importantes viviam ali e ainda usavam seus poderes para cuidar de pessoas que já não podiam mais cuidar de si mesmas.

– Minha tataravó então! – Falei rindo.

– É mesmo, você também é uma Arbarus, não é? Você nasceu alguns dias antes de Sirius e Áries serem substituídos por Apollis, então você deve ter nascido amaldiçoada também!

– Não tinha parado para pensar nisso, até por que não conheço a história toda, só as partes que Siorin contou.

– Depois eu conto... se você quiser, claro! – Assenti, mantinha os olhos fixos no templo. Ao se aproximarem mais, quando começamos a descer no campo gramado em frente ao templo, tive uma estranha surpresa.

– Não acredito! É o lugar dos meus sonhos! – Falei inclinando-me para olhar em volta.

– Do que está falando? – Kuran me olhava curioso.

– O sonho, ou seria pesadelo que tenho todos os dias, se passa aqui!

– Isso é bem estranho, Nyumun também tem um sonho estranho que se passa aqui no templo! – Disse Susano quando as aves se desmancharam e caímos na grama macia, agora estava verde e normal, diferente do sonho, mas o lugar era o mesmo, tinha certeza.

Andamos na direção do templo, o vento soprava suavemente fazendo meus cabelos bagunçarem, mas não me importava, amava a sensação do vento com a maresia no rosto. Atravessamos uma ponte de pedra que ligava o templo ao continente, ela era larga e espaçosa, mas me dava uma estranha sensação de que ia cair a qualquer momento, andei agarrada no braço de Kuran, acho que ele entendeu o gesto de maneira diferente, pois estava sorrindo e com os olhos brilhando, revirei os olhos mentalmente. Subimos os poucos degraus largos e longos da entrada do templo, as portas estavam abertas e mostravam o interior aconchegante e bem decorado em cores vibrantes.

Uma mulher veio nos receber logo na entrada, a princípio achei que fosse a mãe de Susano, mas notei que a cor dos cabelos era diferente e ela parecia um pouco mais bronzeada.

– Bem-vindos! – Disse ela com um sorriso caloroso.

– A senhora é irmã da rainha? – Perguntei confusa, ela sorriu ainda mais.

– Ah, obrigada pelo elogio, mas sou bisavó dela! – Disse a mulher ajeitando os cabelos. – Sou Jocelinne, a sacerdotisa do fogo.

– É um prazer conhecê-la! – Cumprimentei boquiaberta.

– Vieram pelo mestre Taures? – Perguntou ela.

– Sim... – Kuran, Susano e Annie se entreolharam.

– Nós vamos dar uma volta ali fora, tem um rio um pouco mais para baixo, voltamos daqui a pouco! – Disse Susano indo em direção à porta seguido pelos irmãos.

– Tudo bem! – Eles sabiam que eu queria ir sozinha falar com Taures.

Jocelinne me guiou através de uma escadaria até o terceiro andar do templo, onde havia um longo corredor. As janelas estavam abertas deixando entrar o sol e a brisa.

– É nesse quarto, vou deixar vocês a vontade, qualquer coisa me chame! – Disse ela abrindo uma porta à direita do corredor, ela era antiga e de madeira com uma pequena guirlanda de flores silvestres na porta. Olhei o interior antes de entrar, o quarto era bonito, bem decorado e parecia confortável, haviam fotos e quadros da família do mestre Taures por todos os lados, mas uma das fotos na mesa de cabeceira fez meus olhos se encherem de lágrimas. Eram mestre Taures, Ariel, Elister e eu num passeio que demos à Danzaria, a cidade dos sereianos rodeada por cachoeiras, nós havíamos tirado aquela foto no centro, dava para ver as cachoeiras em volta, eu estava sentada entre Taures e Ariel, e Elister estava deitado em nossa frente numa pose divertida, todos sorriam alegremente na foto, e no vidro em cima, gravado a fogo haviam os dizeres: “minha bela família”. O mestre estava sentado, quase deitado em uma cadeira na sacada do quarto e olhava o mar que parecia estar por todos os lados olhando daquela sacada. Taures estava cochilando, roncando baixinho quando me aproximei e me ajoelhei ao seu lado, fiz uma leve pressão em suas mãos.

– Mestre? – Chamei, ele parecia ter envelhecido mais ainda nessas últimas semanas, ele abriu os olhos para mim, quando me viu ao seu lado, seus olhos brilharam. – Me desculpe por não ter vindo antes...

– Não se desculpe, sei que estava estudando e se pudesse teria vindo antes! – Disse ele com a voz rouca. – Queria muito te ver, pois acho que está na hora de ir para Mogyin encontrar Lizene! – As palavras dele fizeram um bolo aparecer em minha garganta.

– Claro que não! O senhor tem muito para me ensinar ainda! Ainda não aprendi tudo que precisava! – Falei tentando manter a voz firme enquanto lhe acariciava as mãos grossas e rígidas pelo tempo de trabalho.

– Ora, você já me superou tem muito tempo, não diga uma bobagem dessas! – Ele sorriu.

– Mas eu não quero que o senhor vá! Eu vou ficar sozinha de novo! O senhor foi o único pai que eu tive...

– Ah, minha querida! – Lágrimas brotaram em seus olhos também. – Lizene e eu sempre quisemos uma menina, mas não tivemos uma, então mandaram você para alegrar meus dias depois que ela se foi... – ele fez uma pausa e respirou fundo – Você é como a filha que não tivemos, então espero que não fique triste comigo, vou encontrar minha Lizene agora.

– Mas...

– Como a única dos meus filhos que seguiu minha profissão, eu te deixo a minha loja. – Ele colocou a chave da Solaris em minhas mãos.

– Mas mestre, e seus filhos?

– Já conversei com eles, eles não se importam desde que você não use esse seu dom para ajudar a pessoas que não merecem, e se prometer cuidar de Gih para mim.

– Claro que prometo. – Falei.

– Então, espero que fique bem, e que encontre aquela felicidade que perdeu e que tanto busca, e quando a encontrar, a segure com unhas e dentes! Não dê a chance de ninguém tomar sua felicidade de você! – Disse ele passando a mão sobre minha cabeça.

– Obrigada... Pai. Espero que descanse bem agora! – Falei, ele me encarava ternamente com um sorriso no rosto. Uma forte luz brilhou em suas mãos, e uma fina linha vermelha que estava presa em seu dedo o envolveu. Logo depois, ele deu um suspiro e fechou os olhos, eu não conseguia o soltar, agora estava chorando alto, ele já havia partido e não ia se incomodar se eu derramasse mais algumas lágrimas. Jocelinne apareceu na porta do quarto e me levantou, levando-me em direção a porta, eu queria ficar mais, mas ela não permitiu.

– Me deixe ficar um pouco mais! – Pedi.

– Ele já não está mais ali para desfrutar de sua companhia, minha querida! Deixe os filhos cuidarem dele agora. – Disse ela afagando meus braços carinhosamente. Desci as escadas com ela, mas não fui até a sala onde ela entrou, ao invés disso, corri para fora do templo até o gramado do outro lado da ponte e deitei dele, fiquei ali olhando para o céu e tentando fazer meu coração se controlar, aceitar que ele havia nos deixado. Segurei a chave bem apertada sobre o peito e agradeci mentalmente por tudo que ele fez por mim, por me ensinar que para ser feliz, basta buscar com toda a força. Coloquei os braços cobrindo o rosto, uma hora as lágrimas teriam que parar de rolar, “ele só foi descansar, está feliz agora” disse para mim mesma, tentando de alguma maneira me sentir melhor. Senti o tempo mudar de repente, o vento começou a ficar mais forte, foi então que algo assustador aconteceu, o sol simplesmente desapareceu do céu, deixando tudo em total escuridão, as estrelas apareceram no céu, mas a lua estava escura.

– O que é isso? – Levantei num pulo assustada e tentei olhar em volta, as únicas luzes eram as que estavam sendo acesas no castelo e as que vinham da cidade flutuante acima do templo.

– Nunca pensei que iria conseguir matar você primeiro! Desprotegida e sozinha num lugar desses... – uma voz suave e assustadora falou a poucos metros de mim, mas a escuridão não me permitia ver quem era, peguei o pingente no pescoço, mas não tive tempo de transformá-lo, senti um cheiro doce e enjoativo no ar, que me paralisou imediatamente. Paralisante de raiz de plumeria! Não podia ser desfeita com magia! Covarde!

– Quem é você? – Perguntei fazendo um grande esforço, paralisante de raiz de plumeria tinha um único antídoto e eu não conseguia mover minha mão até o cinto no espartilho para pegar a poção de mandrágora.

– Eu? – Ele deu uma gargalhada. – Pode me chamar até de vovô, se quiser!

– Covarde, medroso! Por que não me enfrenta sem o paralisante?

– Desculpe, a última vez que enfrentei uma mulher ela me enganou, preciso tomar seu poder pouco antes de você morrer, mas não se preocupe, vai ser um golpe só! – Senti o deslocamento de ar causado pelo movimento de uma espada, porém o que esperava ser um golpe certeiro, foi na verdade um choque entre duas armas de metal que soltaram faíscas. Ao meu lado Kuran segurava sua espada com uma mão e com a outra estava me segurando, seus olhos ardiam como chama viva, logo após ele, Susano e Annie apareceram, Kuran deslizou sua espada pela espada do homem loiro de olhos amarelos à nossa frente, fazendo-o recuar. Annie saltou para frente com sua pele em brasas e cabelo de fogo, ela empunhava a espada de vitrino, e por pouco não o partiu no meio, ele desviou do ataque dela transformando-se numa esfera de luz brilhante.

– Quase! – Disse sua voz dissipando-se no céu, logo em seguida o sol voltou a aparecer.

– O que foi isso? – Perguntou Kuran me pondo sentada no chão e encarando-me assustado. – Por que não reagiu?

– Paralisia... – falei. – Antídoto de mandrágora. – Ele abriu a bolsinha de couro presa ao espartilho de treinamento e tirou de dentro o frasquinho com líquido marrom escuro e virou em minha boca, pouco a pouco o efeito da paralisia foi passando e logo consegui me mover novamente.

– Quem era ele? – Perguntei.

– Tenho uma teoria, mas acho bom ir pesquisar antes se estou certo ou não. – Disse Susano olhando para o céu.

– Sonhei com ele duas vezes! – Falei. Todos me olharam surpresos. – Na primeira vez ele me matou, na segunda vez alguém apareceu...

– Isso não pode ser nada bom! – Disse Annie voltando ao normal e guardando a espada.

– Preciso de uma dessas! – Disse Kuran olhando para a espada com inveja. – Ela não derreteu quando você se transformou.

– Desculpe, mas receio que não posso fazer uma agora, não quero entrar na Solaris tão cedo... – olhei em direção ao templo. Joceline e um homem estavam saindo do templo com os filhos do mestre Taures.

– Vai ficar para o funeral? – Perguntou Annie se aproximando e afagando meus braços.

– Não, se eu não o ver mais, posso apenas fingir que ele foi direto para Mogyin encontrar a esposa dele, é melhor assim...

– Então vamos voltar! – Disse Susano abrindo um novo portal, mesmo um pouco fora do que estava realmente acontecendo, o percebi nervoso demais, ele estava com pressa de nos tirar dali.

– Mesmo que não pareça, acho que a ACV no momento é o lugar mais seguro para estarmos. – Disse ele quando o portal se abriu, esse era diferente do que Susano havia usado primeiro, dava para ver os muros da academia do outro lado do portal. Kuran me ajudou a levantar e segurou firmemente minha mão enquanto entrávamos na esfera brilhante e prateada.


11


Preparativos

 

O tempo estava se passando rapidamente ultimamente, já estávamos no final de junho e faltavam poucos dias para as provas do V8 e eu não me sentia preparada ainda, mas tinha que vencer Hasan a qualquer custo, não queria passar mais um ano e meio agarrada no V7.

Mesmo após ter recebido a chave da Solaris das mãos do mestre Taures um pouco antes de sua morte, não consegui reabrir a loja. Ariel e Elister não se importaram com minha decisão, afinal eles sabiam que para mim seria mais difícil, pois era eu quem estava todos os dias ao lado dele e sua ausência na loja não me deixaria trabalhar tranquilamente. Prometi a mim mesma que depois que passasse nos testes de junho, abriria a loja novamente com ajuda de Elister. Merian não voltou a aparecer e estava tudo estranhamente tranquilo, os pesadelos haviam diminuído a frequência, agora só os tinha uma vez na semana. Susano também não havia dito mais nada sobre o homem que me atacou na encosta do templo de fogo, mas como estava totalmente concentrada em treinar, não liguei de perguntar sobre isso agora.

Siorin havia mudado as técnicas do treino comigo, já que na prova principal só eram permitidos duelos com espadas e eu não tinha a mesma habilidade com elas, então Siorin sugeriu que treinássemos apenas com espadas para o dia da prova. Os treinos ficavam cada vez mais pesados e eu cada vez melhor, Kuran aparecia de vez em quando para observar os treinos e ajudar Siorin, era difícil enfrentar os dois ao mesmo tempo, mas nada me assustava mais do que ter que enfrentar Datani e Susano juntos, eles pegavam pesado, sem dó nem piedade e atacavam para valer, um dia que estava com mais dificuldade em me concentrar acabei criando uma barreira que explodiu jogando os dois para longe. Siorin brigou comigo até cansar, pois se fizesse isso no dia da prova seria desclassificada, minha categoria era física e não mágica, não se podia usar magia em provas físicas.

Kuran estava sempre ao meu lado, me ajudando e me incentivando, por mais que estivesse me acostumando aos poucos com nosso relacionamento, às vezes me irritava quando ele queria ficar tempo demais perto de mim e acabava fugindo, me escondendo no quarto ou na biblioteca, ele não se irritava com isso, parecia que realmente me entendia e me conhecia com meu jeito de gato, hora gosta de um colo, hora te arranha se você tentar pegar. Todos os fins de semana eu ia até o castelo a convite de Kuran, mas ao chegar lá treinava com Ericko e Karin, sabia que isso deixava Kuran com ciúme, mas eles eram bons professores também, pegavam pesado nos treinos e não aceitavam que eu falhasse.


Na última sexta feira antes das provas, quando fui receber a missão, notei que Nyona nos deu uma missão mais simples do que de costume, era para livrarmos uma vila próxima de algumas almas carregadoras que estavam circulando aquela região, as crianças tinham muito medo delas, mas os adultos não as temiam pois eram fáceis de espantar.

– Algum problema? – Perguntou Nyona vendo minha expressão de descontentamento.

– Hmm, nada só achei a missão um pouco fraca para nosso nível! – respondi. Ela ergueu as sobrancelhas para mim.

– Amanhã começam os testes de aprovação para os próximos níveis! Dei as missões mais fáceis para todas as equipes que tem alunos participantes das seletivas! – Explicou.

– Ah, O QUE? – Gritei. – Já começam amanhã? Achei que fosse só semana que vem! – Meu coração acelerou de tal forma que achei que iria desmaiar.

– Sim, amanhã! Serão dois dias de provas para os alunos do V7, dois dias para o V8 e três dias para os testes dos V9 que serão testados para serem aprovados como caçadores. – Ela explicou com calma ainda me olhando fixamente. Saí da sala sem dizer mais nada e fui em direção ao refeitório, onde Palloma, Susano e Kuran me esperavam para irmos até o contratante.

– E aí? – Perguntou Susano quando me aproximei em silêncio e sentei.

– Acho que ela está em choque... – disse Palloma sacudindo as mãos na frente do meu rosto.

– Nike, aconteceu alguma coisa? – Perguntou Kuran quando lhe dei o papel do contratante e continuei sentada em silêncio.

– Os testes começam amanhã... – nem sei se minha voz saiu como imaginei, estava começando a suar frio agora.

– Sim, o que tem isso? – Susano estava com o rosto apoiado sobre a mão e olhava pela janela.

– Você sabia? – Perguntei fazendo minha voz soar mais irritada do que pretendia.

– Você não? – Agora os três me olhavam com ar de riso.

– Ah, claro que não! Tinha certeza que eram semana que vem!

– Não Nike! As provas começam no dia primeiro dia de julho! São cinco dias de provas! – Disse Kuran encarando-me preocupado.

– Ah, acho que perdi a noção do tempo... – suspirei. A rotina estava tão apertada que nem vi o tempo passar. – Não vou poder treinar muito até amanhã, Siorin foi para Amantia e agora... – Suspirei.

– Eu te ajudo depois que voltarmos da missão. – Disse Kuran levantando-se da mesa e estendendo a mão para que eu levantasse também.

Fomos em direção à saída norte da academia, a missão foi passada pelo líder da cidade de Irtulim, não muito longe dali. Susano bateu o cajado no chão, fazendo surgir quatro cavalos de terra e grama, montamos neles e partimos para noroeste. Estava distraída demais pensando sobre amanhã, sobre o início das provas, a turma de Siorin, minha turma seria a primeira a ser testada, pelo menos a metade dos alunos incluindo Susano haviam se inscrito para as provas.

– Acalme-se Nike! – Palloma estava sorrindo para mim. – Vai dar tudo certo! Você vai conseguir derrotar Hasan, basta acreditar em si!

– Pam, me ajude a me distrair, por favor! Estou ficando louca com isso! – Falei, ela sorriu e coçou o queixo, pensando em algo que poderia me distrair.

– Estou namorando com Datani! – Disse ela baixinho para mim.

– Sério?

– Sim... Ele disse que vai me levar para conhecer o palácio dos nove dragões na cidade das Tormentas em Amantia, a tia dele é governante de lá!

– Um castelo submerso? Gostaria de conhecer também!

– Ele disse que quando você passa pelas portas principais, o castelo não é inundado por dentro, é seco!

– Foi minha avó que fez aquele castelo ficar seco por dentro! – Disse Susano intrometendo-se na conversa. – Particularmente prefiro o lado de fora.

– Acho que quando acabar a ACV vou me candidatar a guarda da família real de Amantia! – Falei.

– Ia ser bem legal ter você por lá! – Respondeu ele sorrindo, olhei para Kuran, ele estava olhando para frente, sabia que ele não estava ignorando nossa conversa, mas ele havia ficado com um olhar triste, magoado, talvez por ter me oferecido para a guarda de Amantia.


Saímos do Vale Cinzento antes das seis da tarde, a cidade de Irtulim ficava mais próxima do que as outras que faziam a barreira para a cidade do Sol. O líder era um senhor metamorfo que usava a aparência de um lobo velho, ele nunca ficava em sua aparência “humana”, mas o porquê era um mistério assim como sua real aparência.

– Não gosto muito de metamorfos... – disse Palloma quando alcançamos os grandes portões metálicos da cidade. Susano desmanchou os cavalos e entramos na cidade após mostrar os símbolos da ACV, o movimento da cidade estava intenso, já havia vindo nessa cidade muitas vezes buscar metal granduri para o mestre Taures fabricar arcos, mas nunca tinha visto tanto movimento.

– Minha mãe é meio metamorfa. – Disse Susano baixinho, Palloma corou e sorriu sem graça.

– Mas ela usa a aparência real! Não gosto dos que ficam com a aparência alterada sempre, isso me assusta! – Retrucou tentando se consertar. Enquanto caminhávamos pelas ruas estreitas e cobertas de cascalhos esverdeados, os olhos de todos estavam sobre nós, olhando-nos com desconfiança, cheguei a ouvir alguns palavrões.

– O que está havendo? – Cochichei com Kuran.

– Não faço ideia, mas acho que o problema é com você... – ele passou a mão em volta de meus ombros, seus olhos estavam acesos em cor de brasas. Andamos em silêncio até a sede do conselho, um prédio antigo de dois andares que havia sido reformado recentemente, diferente das construções de cores neutras ou em tons terrosos das casas e comércios da cidade, o prédio do conselho de Irtulim era de cor dourada e vermelha e tinha uma bandeira com o sol sobre a bandeira cinza e verde oliva com uma quimera de pé sobre as patas traseiras, símbolo dos metamorfos. Os guardas abriram as portas e permitiram que entrássemos, o interior do prédio era parecido com o exterior, o carpete vermelho que forrava o chão dava uma maior sensação de calor, o que estava me deixando muito desconfortável, já que o espartilho apertado dificultava um pouco a respiração. Fiz um coque nos cabelos e fiquei tentada a usar meus poderes para me cobrir de gelo, a outra ideia era tirar o espartilho e ficar apenas com o top de couro que usava por baixo dele, mas isso poderia provocar reações negativas por parte dos senhores que estariam no gabinete do chefe da cidade.

Entramos na sala, para minha surpresa, havia um lobo sentado na cadeira do líder, um lobo grande de pelos acinzentados e olhos amarelos, ele estava sentado de forma estranha, com as patas traseiras encolhidas sobre a cadeira e as patas dianteiras sobre a mesa e olhava fixamente em nossa direção, ao lado de suas patas sobre a mesa havia uma xícara de café e alguns bolinhos, eu comecei a ter pensamentos descontrolados do lobo pegando a caneca com as patas e comendo os bolinhos e tive que forçar uma crise de tosse para abafar minhas gargalhadas.

– Algum problema, senhorita? – O lobo perguntou.

– Nenhum. – Pigarreei tentando me controlar. – Só uma pequena alergia...

– Eu os chamei aqui pois estamos tendo problemas com almas carregadoras nas estradas principais à noite. – Interrompeu-me ele grosseiramente – isso está atrapalhando os comerciantes a saírem da cidade à noite com as entregas.

– Qual o horário que elas costumam aparecer? – Susano usou um tom de voz mais irritado que o normal, quando olhei para ele, notei que ele estava apertando as mãos com força, devia estar tendo a mesma dificuldade que eu para não rir do lobo velho tomando café.

– Costumam aparecer pouco depois de Gálatas desaparecer.

– Almas carregadoras podem ser espantadas por uma simples invocação de advocus, então por que chamar caçadores para isso? – Perguntei.

– Por que nos manter seguros é um trabalho dos caçadores, se precisássemos que os próprios moradores e comerciantes resolvessem esse tipo de problemas, não faria sentido ter a ACV! – Rebateu ele olhando para mim agora, senti meu rosto esquentar e cheguei a colocar a mão sobre a foice, mas Kuran me impediu de puxá-la.

– Nós entendemos, e faremos o possível para acabar com o grave problema que alguns fantasmas selvagens estão causando a uma cidade de metamorfos repleta de ex alunos e caçadores da ACV que poderiam fazer o serviço de graça..., mas tudo bem, faremos o serviço e voltaremos mais tarde para pegar a recompensa! – Disse ele pegando meu braço e me puxando para fora da sala, Susano e Palloma vinham atrás de nós.

– Sujeitinho grosseiro! – Disse Palloma depois que saímos do prédio do conselho.

– Você não pode matar todo mundo que te responder de forma grosseira, Nike! – Kuran ainda estava apertando meu braço.

– Quer apostar? – Retruquei ainda furiosa.

– Você provocou, se foi contratada para o serviço, apenas o aceite ou rejeite, mas não discuta com o contratante! – Susano tinha um dom natural para ser grosseiro também, um pequeno lembrete que éramos primos, fora que eu era muito, muito parecida com ele.

– O lado bom é que enquanto esperamos a hora, Susano e Nike podem treinar para as provas! – Disse Palloma sorrindo, ela parecia nunca se afetar por nada.


A saída Norte da cidade ficava de frente para o vale Akzarn, ou o vale morto. As árvores petrificadas tinham um aspecto estranho, pareciam que estavam sempre cobertas de cinzas e uma densa névoa cobria aquele local depois da meia noite. Nos afastamos o suficiente da cidade para os guardas dos muros não conseguirem nos ver ali.

– Só eu ou mais alguém notou que as pessoas na cidade estavam olhando de forma estranha para a Nikella? – Palloma falou quebrando o silêncio quando paramos à sombra longa de uma das árvores cinzentas e nos sentamos em suas longas raízes expostas.

– Também notei isso. – Respondi olhando em direção à cidade.

– Será que tem algo a ver com o tal do Fairin? – Perguntei, Susano pareceu tenso com minha pergunta e limpou a garganta.

– Acho melhor aproveitarmos enquanto as almas não aparecem para treinar um pouco! – Era a segunda vez que eu perguntava sobre Fairin e Susano desviava o assunto dessa forma.

– Susano, o que está acontecendo? – Perguntei novamente.

– Nike, você vai perder para o Hasan se não treinar! – Ele puxou sua lança e a girou nas mãos.

– Estou treinando direto, até com Ericko e Karin! Mas se eu ganhar dele amanhã, você me conta? – Pedi.

– Se ganhar dele, sim! – Peguei o pingente o transformando em foice e andei até onde as árvores estavam mais espaçadas, assim poderia lutar com mais facilidade, porém Susano tirou a foice de mim e me entregou uma espada longa.

– Arma principal... não se esqueça que amanhã não será permitido o uso da sua Foice! – Ele jogou minha foice para Kuran, que ficou brincando com ela sob meu olhar de reprovação.

– Cuidado com ela! – Soltei um rosnado assustador.

– Queria que tivesse todo esse ciúme comigo também! – Retrucou ele rindo e jogando a foice para o alto.

– Tenho ciúme apenas do que podem tomar de mim! – Falei voltando a minha atenção para Susano, vi de canto de olho um sorriso no rosto de Kuran, como era fácil deixa-lo feliz com poucas palavras, não conseguia entender isso.


Ficamos treinando até o sol começar a desaparecer por detrás das montanhas nubladas, Palloma havia saído para caçar o jantar enquanto Susano e Kuran se revezavam contra mim. Minha energia parecia estar em cem por cento enquanto os dois já estavam ficando cansados.

– O que está acontecendo com vocês! – Zombei quando eles desistiram de treinar e foram sentar-se nas raízes.

– Amanhã vai ser colocado um bracelete em seu braço que vai te impedir de usar magia, aí quero ver passar a luta inteira com essa disposição! – Acabava por usar os meus poderes sem nem ao menos perceber, nesse caso estava os usando para manter a resistência. – Nós estávamos jogando limpo, você não! – Resmungou Susano esticando as costas, ouvi um barulho estranho como vidro estilhaçando vindo da cidade, mas como ninguém mais pareceu escutar, achei que fosse coisa da minha cabeça ou algo que não merecesse nossa atenção.

Palloma voltou pouco depois com o jantar, ela havia ido até o rio que cortava o vale e trazido vários peixes para assar. Era até divertido fazer isso, parecia que estávamos nos treinos de Misty. Estávamos nos divertindo enquanto esperávamos pelo motivo do serviço aparecer, porém ouvimos vozes e gritos vindos da cidade ao anoitecer, pouco antes da meia noite e as chamas começaram a consumir uma das estalagens que podia ser vista por cima do muro.

– Ah, droga! – Reclamei correndo até a cidade com os outros, os guardas que deveriam abrir os portões estavam ocupados demais ajudando a apagar o incêndio e não abriram as portas, Susano usou seus poderes para destrancar os portões e fomos correndo até o local que estava pegando fogo.

– O que houve aqui? – Perguntou Kuran olhando o prédio queimar.

– Eles quebraram a barreira da cidade e entraram por cima dos muros! – Choramingou a mulher que deveria ser a dona da estalagem. O fogo se espalhou rapidamente, mas Kuran se aproximou e ergueu as mãos em direção ao prédio. Confesso que mesmo durante todo o tempo que vivi em Ciartes, nunca havia visto um salamandra fazer aquilo, Kuran ficou novamente com a pele em brasas e cabelos de fogo e as chamas do prédio começaram a ser absorvidas pelo seu corpo até que desapareceram completamente, deixando o prédio parcialmente destruído ainda de pé, mas frio, como se tivesse sido destruído por qualquer outra coisa, menos por fogo. Ele começou a voltar ao normal, mas antes que ele mudasse por completo, andei até ele ignorando o calor sufocante e toquei em seu ombro. Minha mão não queimou como achei que fosse acontecer, ele olhou para mim surpreso e depois sorriu voltando completamente ao normal.

– O que foi isso? – Perguntei.

– Alguns salamandras nascem com habilidade de manipular as chamas e absorvê-las.

– Achei que todos fossem iguais! – Falei olhando distraída para minha mão.

– Não... são poucos os que podem se tornar como fogo, como Annie e Ericko fazem, a maioria dos Salamandras é apenas imune a fogo e tem as peles quentes e resistentes, mas somos poucos os que podemos usar o elemento. – Explicou ele pegando minha mão e beijando a palma.

– Por que não queimou quando te toquei?

– Por que um protetor nunca fere seu mestre... – disse Susano se aproximando de nós. Antes que eu pudesse perguntar sobre o que ele quis dizer, um metamorfo apareceu com uma espada velha e enferrujada e apontou para mim.

– Foi ela! Ela que começou isso! – Esbravejou ele apontando para mim – Ela destruiu a barreira! Eu vi!

– O que? Como quebrei a barreira, eu nem estava aqui! – Gritei em resposta, várias pessoas estavam se aproximando, gritando e apontando para mim. – Já é a terceira vez que você ataca essa cidade!

– Nós estávamos no lado de fora da cidade, esperando as almas carregadoras! – Disse Susano calmamente trocando a lança de mão e olhando ameaçadoramente para as pessoas que me acusavam.

– É verdade pai! Não foi ela, olhe! Ela não tem a marca feia no rosto! – Disse uma menininha que estava escondida atrás do metamorfo com a espada, ela não devia ter mais que cinco anos e me encarava com os olhos amarelos brilhantes.

– Uma marca? – Perguntei dando um passo à frente e me ajoelhando perto dela. – Como era essa marca? – Perguntei mesmo sabendo qual seria a resposta.

– Ele tinha uma marca vermelha no rosto que ia daqui, até aqui! – Ela fez um risco no rosto com o dedo, mostrando o formato da cicatriz.

– Merian! – Falei. Isso não pareceu suficiente para os ânimos se acalmarem, as pessoas ainda gritavam comigo achando que eu era a culpada, Kuran então sacou a espada e desafiou para que eles se aproximassem, eles acabaram desistindo de ficar contra mim já que eu tinha o príncipe ao meu lado e dispersaram voltando para suas casas.

– Onde estão os magos e protetores da cidade? – Perguntei.

– Hoje é sexta, senhorita! É dia da reunião dos hostes na cidade dos Cata-ventos. – Lancei um olhar significativo a Susano e Kuran, eles tinham a mesma expressão preocupada nos rostos.

– E agora como vou concertar o estrago que fizeram na minha estalagem? – Choramingou a senhora que olhava os destroços.

– Eu faço isso! – Disse Palloma dando um passo à frente e começando a murmurar palavras incompreensíveis com as mãos esticadas em direção à estalagem, que foi coberta por uma névoa clara e se refez em questão de minutos.

– Lhes agradeço a ajuda, se quiserem passar a noite, fiquem à vontade! – Disse a senhora olhando o interior do estabelecimento para ver se estava realmente tudo de volta ao lugar.

– Obrigado, mas temos que reportar o ocorrido imediatamente! – Disse Susano indo em direção ao portão norte novamente. – Vamos ver se vai realmente aparecer alguma alma carregadora...

– Como assim, ver se aparece? – Perguntei confusa.

– Isso está parecendo que foi armado, alguém nessa vila sabia que iríamos vir para essa missão ou solicitou a nossa presença, não foi só por causa dos testes amanhã que nos deram uma missão simples como essa!

– Uma armadilha? Será que foi ele?

– Provavelmente, e pelos olhares da população quando chegamos, ele deve estar aprontando com sua aparência, Nike! Devemos tomar mais cuidado ao sair nas missões! – Quando Susano disse isso, pude ouvir um baixo rosnado vindo de Kuran. Palloma parecia exausta após usar seus poderes para refazer a estalagem da senhora metamorfa que ainda nos olhava enquanto saíamos da cidade.


O ar frio da madrugada trazia junto dele o cheiro amargo das florestas de fruargis, uma planta venenosa que cobria os vales entre Irtulim e Sirfrius, o cheiro fazia minha garganta doer e se contrair incessantemente. Passava das três da manhã e nenhuma alma carregadora apareceu, o único movimento que vimos escondidos entre as arvores petrificadas, foi o da comitiva do líder da vila que havia partido horas antes por uma das entradas secretas das muralhas da cidade. Aquilo além de suspeito, foi muito perturbador, parecia que de certa forma, o líder sabia o que aconteceria ali e não queria ser responsabilizado por nada. Os hostes podiam muito bem ter associado Merian ao grupo, ou ele mesmo poderia ter ido até eles e oferecido seus serviços, ou até mesmo poderia estar se passando por mim, e usando de minha aparência para os hostes, era tudo que ele sempre sonhara e eu ignorara abertamente, ele sonhava em ser o que eu era, ter o que eu tinha.

– Será que se eu tivesse agido diferente, se eu tivesse o ajudado, ele ainda teria ficado assim? – Pensei alto demais, Kuran ergueu as sobrancelhas com minhas palavras e mudou o peso do corpo para o lado esquerdo, estava com os braços cruzados e uma expressão indecifrável.

– Talvez não... – ele não me pouparia da verdade, era uma pessoa extremamente sincera.

– Se você precisa de uma plateia para ser bom, então você não é bom de verdade! São as escolhas que te fazem ser o que é, não os exemplos! – Disse Susano rispidamente. – Todos temos bons e maus exemplos, cabe a nós escolher o que queremos ser.

– Mesmo se tiver um grande poder o influenciando? – Tentei, mas Susano maneou a cabeça.

– O que você achou de meu pai? – Perguntou ele.

– Uma pessoa maravilhosa! – Respondi sem pensar, mesmo não tendo entendido bem a pergunta. Susano deu um sorriso sinistro, que lançou calafrios em minha espinha.

– Ele era bom, depois se tornou um monstro, sanguinário, impiedoso, mas quando foi lhe dada a chance, ele mudou novamente. – Ele suspirou. – Merian era bom e gentil, se ele mudou por algo tão banal quanto ser inferior à própria irmã, isso só o torna um idiota!

– Se você fosse mais fraco que suas irmãs, não ficaria irritado, magoado? – Perguntei. Susano deu uma gargalhada divertida, fiquei o observando sem intender aquela reação.

– Karin é mais forte que ele, ela o venceria num duelo sem usar seus poderes com uma das mãos amarrada nas costas e sem prestar muita atenção na luta! – Disse Kuran quando viu que Susano não ia me explicar o motivo da risada.

– Não precisa exagerar! – Resmungou Susano juntando as sobrancelhas. O olhei boquiaberta, aquela doce menina com sorriso gentil e olhar inocente era mais forte que ele?

– Será que ela aceitaria lutar comigo, e me levar a sério? – Deixei escapar.

– Pense nisso depois que vencer Hasan, afinal, ela foi treinada por ele! – Respondeu ele guardando a lança e abrindo um portal. – Vamos direto para a ACV, Nyona deve ficar ciente do que está acontecendo! – Disse ele nos dando passagem.


Entramos todos juntos no prédio principal da ACV, tinha consciência da hora e sabia que enquanto todas as equipes não retornassem com as missões cumpridas, Nyona não sairia de sua sala. Kuran abriu a porta da sala devagar, lá dentro estavam o líder da cidade de Irtulim falando com Nyona. Quando ele nos viu entrar soltou um rosnado alto e assustador e urrou:

– Foi ela! Ela que incendiou a estalagem e atacou a vila! – Ele parecia furioso, seus pelos estavam eriçados e os olhos ardiam.

– O QUE? – Gritei. – Nós voltamos para a cidade quando vimos o fogo! – Falei tentando me defender. – Foi Merian, ele estava usando minha aparência! – Nyona estava olhando para mim de forma estranha.

– Mentira! – Urrou o velho lobo vindo em nossa direção.

– É verdade, diretora. A missão toda foi uma armação para que Nikella parecesse culpada pelo ataque à cidade! – Protestou Kuran dando um passo à frente com a mão sobre o punho da espada.

– Você nem tem como dizer que foi ela, você não a viu! Não estava na cidade na hora do ataque, estava na reunião dos Hostes! – Disse Susano encarando-o com olhar raivoso.

– Até onde eu sei, o rei ordenou que essas reuniões cessassem! Estão esperando que aconteça o mesmo daquela vez? – Nyona mantinha um olhar tranquilo sobre o velho lobo, poderia jurar que se ele estivesse em forma humana, poderia ver o suor escorrendo em seu rosto.

– Meus guardas a viram atacando a cidade, incendiou a estalagem e teria incendiado o prédio do conselho se eles não tivessem corrido atrás dela para fora da cidade! – Rosnou o velho.

– Pergunte para a dona da estalagem então. – Disse Susano.

– Confio nos meus guardas! – O velho agora estava de frente para Susano e parecia ainda maior que antes.

– Basta! – Nyona se levantou e andou até mim. – Nikella, mostre-nos suas memórias daquele momento! – Ela apontou um grande globo de vidro no canto da sala.

– Não tenho nada a esconder! – Falei andando até ele e tocando as mãos na superfície gelada. As imagens apareceram no centro do globo, desde a hora que recebemos a missão, o treino do lado de fora da cidade, Kuran absorvendo o fogo do prédio e nossa espera do lado de fora pelas almas carregadoras.

– E então? – Nyona agora encarava o velho, que simplesmente bufou e saiu da sala em trotes rápidos e puxou a porta da sala com sua cauda, batendo-a com força atrás de si.

– Vou enviar um pedido de busca, Merian deve ser detido imediatamente, é um crime grave usar aparência de outra pessoa para cometer delitos. Todos os metamorfos sabem e devem seguir essa lei! – Disse ela pegando uma folha timbrada da academia e escrevendo uma carta.

– O que vai acontecer com ele? – Perguntei.

– Será punido como merece e se matar alguém, será condenado a fogueira. – Disse Nyona tranquilamente, aquilo lançou calafrios em mim. Talvez eu devesse tê-lo matado aquele dia, e isso jamais estaria acontecendo.

– Eu preciso descansar... tenho o teste amanhã. – Falei saindo da sala antes que ela terminasse a carta, senti os olhos deles em mim, sabia o que deviam estar pensando, que eu estava com pena de Merian, mas na verdade eu estava me sentindo culpada. Ele seria diferente se eu tivesse o ajudado?

Entrei no quarto e me joguei na cama, sem ao menos tirar a roupa, meu coração estava pesado e não conseguia parar de me sentir culpada por Merian.

Acordei assustada com uma mão quente em meu rosto, Kuran estava sentado na beirada de minha cama.

– O que quer? – Perguntei levantando e arrumando o cabelo todo embolado no rosto.

– Quero que vá comigo até a Solaris, quero uma espada de vitrino.

– Está querendo demais! – Murmurei deitando novamente.

– É meu aniversário! – Resmungou ele fazendo com que eu virasse em sua direção novamente.

– Sério? – Meu coração acelerou, nunca tinha perguntando, não fazia ideia de quando era seu aniversário e isso fez eu me sentir uma péssima namorada.

– Não mentiria para você sobre isso, Annie me desmentiria facilmente! – Disse ele sorrindo.

– Não quer me pedir outra coisa? Qualquer coisa desde que não tenha que ir até a Solaris... – falei.

– Tem outra coisa que poderia pedir... – ele mordeu os lábios e deslizou a mão pelo meu pescoço, minha alma congelou e saltei da cama pegando as chaves da loja, Kuran começou a rir e se levantou.

–Deveria me sentir ofendido com essa reação? – Ele me encarou.

– Vamos logo! – Falei pulando pela janela em direção ao telhado dos corredores, Kuran me seguiu enquanto saíamos da academia pelo portão lateral, ele pegou uma folha no chão e a transformou numa ave, da mesma forma que Susano havia feito no dia em que fomos à Amantia.

Voamos sobre o vale em direção a cidade do Sol, sentia o sorriso de Kuran mesmo sem olhar para ele, isso me dava calafrios.

– Por que está com medo de mim? – Perguntou ele depois de um tempo em silêncio.

– Não tenho medo de você, de onde tirou isso? – Falei tentando manter meus batimentos normais, qualquer mudança em meu comportamento seria percebida por ele.

– Do fato de que sempre que tento tocar em você, você fica nervosa, foge, se esconde! – Ele estava me encarando sério, não consegui responder, apenas desviei o olhar e fiquei observando a cidade se aproximar, depois de alguns minutos ele desistiu de esperar uma resposta e bufou. Fazia seis meses que estávamos juntos, mas eu sabia que estava sendo mais fria do que deveria com ele, e era bem difícil mudar isso.

– Às vezes eu chego a pensar que você é Malvarmo disfarçada um corpo humano. Você tem um coração de gelo, sabia? – Olhei para ele de canto de olho.

– Não diga bobagens! – Falei acariciando seu rosto com as pontas dos dedos. – Sei que não deveria usar isso como desculpa, mas não tive muitos exemplos bons de como ser mais...

– Feminina? – Ele sorriu e amarrei a cara.

– Não era o que eu ia dizer! – Reclamei, ele riu mais uma vez, fazendo com que eu ficasse ainda mais irritada. – Só vou perdoar por que é seu aniversário! – Resmunguei.

A ave não parou quando chegamos nos muros da cidade, ela voou por cima deles e foi em direção a praça central, pude ver os guardas correndo em direção ao local em que Kuran planejava pousar.

– Acho que eles ficaram irritados! – Disse ele ouvindo os protestos e gritos dos guardas para que pousássemos, a ave se desmanchou, haviam bestas apontadas para nós, quando os guardas perceberam que era Kuran, eles abaixaram as armas e fizeram uma reverência.

– Desculpem pela confusão, estávamos com pressa! – Disse ele ao capitão da guarda que estava emburrado olhando feio para nós.

– Tudo bem, vossa majestade! – Disse ele fazendo uma reverência e se afastando, os lábios de Kuran se contorceram com o título, mas ele acenou e andou em direção à Solaris comigo em seu encalço.

– Por que Vossa Majestade não gosta do título? – Perguntei provocando-o, sabia que ele detestava ser chamado assim, só não entendia o porquê.

– Preferia ser tratado como qualquer um! Odeio me livrar de problemas por causa de quem sou! – Disse ele olhando-me de soslaio quando entramos na loja, aquilo subiu o sangue à minha cabeça.

– Não faz ideia de como é ser normal, de como é ser tratado como lixo por não ter uma linhagem bonitinha, ou por ser apenas um humano! – O encarei. – Não seja um idiota mimado que acha que tem problemas por ser tratado diferente, isso me dá nojo! – Meu sangue estava fervendo, tirei o espartilho e arranquei a blusa, ficando apenas com a faixa de proteção sobre os seios e virei de costas para ele, tirando o cabelo da frente, o ouvi sugar o ar e senti sua mão sobre as marcas.

– Quem fez isso? – Perguntou ele depois de um momento de silêncio absoluto. – Por que fizeram isso? – Sua voz saiu como um rosnado, virei para encará-lo.

– O chefe da guarda da Cidade dos cata-ventos... – suspirei e coloquei a blusa novamente. – Estava voltando para casa de madrugada, quando vi um dos soldados tentando arrastar uma jovem a força para fora da cidade. Eu não tinha nada a ver com aquilo, mas afinal, sou uma caçadora Venox, não é? Eu entrei nessa academia para aprender a defender as pessoas dos monstros e naquele momento ele era um monstro e precisava ser caçado. Ela gritou e pediu por socorro, mas era muito tarde e não tinha ninguém do lado de fora e os outros guardas pareciam não se importar, quando tentei me aproximar ele sacou a espada e disse que se eu desse mais um passo, eu seria a próxima... – a lembrança do medo nos olhos da menina aquele dia voltou a minha mente, o brilho assustador dos olhos dele também, ele era um elfo negro e não devia estar na guarda, deviam castigar o idiota que o colocou para guardar uma cidade de humanos.

– O que você fez? – Perguntou Kuran arrancando-me de minhas memórias.

– Atirei uma adaga na mão dele, fazendo com que ele deixasse a espada cair, ele gritou e a empurrou contra o chão e veio para cima de mim, nem precisei de uma arma, apenas saltei por cima dele e quebrei seu pescoço. Ele não me considerou como uma ameaça, então foi fácil. – Bufei. – O chefe da guarda ouviu os gritos do lado de fora e quando nos viu mandou os guardas me prenderem. Mesmo depois da menina contar o que havia acontecido ele não quis me soltar, ele iria me executar, mas Merian apareceu e implorou pela minha vida. O chefe da guarda me amarrou e mandou que me açoitassem para que servisse de lição para os outros, não se pode matar um guarda! – Ri com desprezo. – Não havia feito nada de errado e mesmo assim eu paguei pela inútil vida que eu tirei. Mas eu não dei o gostinho ao capitão, fiquei o encarando, não gritei, não chorei, apenas fiquei olhando para ele e rindo.

– Eu... desculpe, eu não sabia, eu não queria...

– Eu sei! Não se desculpe, vai piorar a situação! – Falei revirando os olhos.

– Como se sentiu?

– Por apanhar? Oras! Foi horrível! Levou dias para que Merian me soltasse da cama, ele me manteve presa com correntes pesadas até o pescoço pois sabia que se me soltasse eu ia arrancar a cabeça do chefe da guarda!

– Não quis dizer isso... por matar ele. – O encarei surpresa.

– Nunca matou ninguém, príncipe? – Ele sacudiu a cabeça negativamente.

– Não sei explicar exatamente como me senti, não me sinto culpada se é isso que quer saber, mas também não me senti bem embora ele tenha merecido.

– Não fazia ideia... – ele estava olhando para o lado, então acendeu a luz da loja e pegou um bilhete no chão que haviam passado por debaixo da porta, ao lado de um saco de moedas.


12


Provação: Teste de força

 

O bilhete estava escrito em letras bem trabalhadas e bonitas, tinha um pouco de poeira em cima, então devia ter sido deixada ali a um bom tempo.

– O que diz ai? – Perguntou Kuran olhando por cima de meu ombro.

– É um pedido, essa cliente quer adagas de arremesso e pontas de flecha feitas de vitrino... – olhei novamente o pagamento, a forma que as moedas estavam espalhadas dentro do saco significava que foram passadas por debaixo da porta. – Tem um endereço de entrega aqui e o nome de uma mulher, acha que deveria fazer?

– Se já pagaram e você está aqui, por que não? – Ele sorriu, não sei porque mas tinha uma estranha sensação quando peguei as barras de vitrino na mão. Olhei a loja e senti um pequeno aperto no peito ao ver tudo no mesmo lugar. Fiquei imaginando aonde o gato de Taures deveria estar a essa altura, para onde havia ido agora que seu dono não estava mais aqui.

– Como quer a espada? – Perguntei.

– Igual à que você fez para o meu irmão, mas ao invés de uma folha da arvore do fogo dentro, quero isso! – Ele tirou do bolso uma orquídea roxa enrolada em uma espécie de cipó fino que formavam vários cachos em volta da flor.

– Por que essa flor? – Perguntei pegando-a de suas mãos.

– Para me lembrar de você toda vez que usá-la! – Respondeu ele ficando de pé e beijando minha testa.

Acendi a fornalha, peguei os moldes e comecei a trabalhar neles após colocar uma barra de vitrino para derreter, o metal tinha um cheiro estranho quando começava a derreter, parecia estranhamente vivo, com a quantidade que coloquei no caldeirão, faria as adagas de arremesso e as pontas das flechas também. Fiz a espada totalmente diferente da que fiz para Ericko, essa era mais longa e trabalhei o cabo de forma que ficasse parecendo as espirais dos meus sonhos, então preparei a flor para que não queimasse e virasse carvão na hora que o vitrino derretido caísse sobre ela.

Kuran observava com curiosidade meu trabalho e sorria toda vez que eu o olhava.

Após acabar o trabalho e posicionar a flor no punho da espada, já que ela era muito grande para ficar dentro da lâmina, fechei o molde e posicionei ao lado dos moldes das adagas e das pontas de flecha e derramei o vitrino com cuidado.

– Parece ser mais fácil que forjar aço. – Disse ele vendo-me bater nos moldes para que não ficassem falhas ou bolhas de ar.

– É muito mais fácil! Passaria muito mais tempo trabalhando uma espada de aço do que uma de vitrino. – Respondi. – Agora é só esperar para tirar do molde... – falei me afastando das fornalhas. Kuran ficou andando pela loja e analisando cada uma das armas que estavam ali.

– São todas realmente lindas, você tem um talento incrível! – Ele estava segurando um par de Adagas de Bremar, uma pedra vinda dos mares do Sul, ela era furta cor e brilhava no escuro, fazendo parecer que tinha um pequeno universo dentro da pedra.


– Está pronto! – Falei depois de algum tempo desfazendo o molde e retirando a espada cuidadosamente, o metal ainda estava morno e tinha um brilho azulado. Limpei as sobras de gesso e as rebarbas, dei o polimento e fiz o fio em questão de minutos. Ao olhar bem para ela, poderia dizer que havia sido meu melhor trabalho. A entreguei para Kuran enquanto fazia a bainha de madeira cinzenta das árvores da floresta branca.

– Kuran, o que Susano quis dizer mais cedo sobre um guardião não pode ferir seu mestre? – Perguntei de repente me lembrando das palavras de Susano e sentindo um frio na barriga, Kuran ergueu uma sobrancelha e sorriu.

– Por que eu sou seu guardião! – Disse ele se aproximando ainda sem tirar os olhos da espada em suas mãos, senti minha visão embaçar e tive que respirar mais lentamente.

– Não pode ser... só tem duas formas de você ter se tornado meu guardião, e uma delas é se eu te desse meu sangue, eu não fiz isso então...

– Eu entro de vez em quando no quarto de vocês à noite para ver se Annie está bem, minha mãe é super protetora, sabe... então um dia eu ouvi você falando enquanto dormia, estava brigando com alguém e pedindo ajuda, eu não podia entrar no seu sonho para espantar o que quer que fosse que estava te fazendo mal, então fiz o juramento de guardião enquanto você dormia! – O sorriso dele aumentou lentamente quando sentei na mesa para não cair.

– O que... por que fez isso? – Perguntei tentando fazer minha voz sair normal.

– Por que se você tiver um guardião, as sombras não podem invadir seu subconsciente, você fica protegida! – Ele veio até mim e passou a mão em meu rosto enquanto o encarava assustada, era por isso que os sonhos haviam diminuído de frequência!

– Não devia ter feito isso... – suspirei.

– Talvez, mas eu queria ter um laço especial que me unisse a você! – Ele apertou a espada nas mãos. – Adorei a espada, ficou perfeita, Obrigado! – Disse ele beijando meu rosto, peguei a espada e a embainhei, então segurei seu rosto e o beijei de verdade, apertando-o contra meu corpo, sentindo seu gosto, seu calor sufocante contra minha pele e não me incomodei com isso.

– Feliz aniversário! – Falei quando o soltei, ele estava sorrindo.

– Obrigado.

– Não vai ter festa?

– Não, não gosto de festas! – Disse mordendo os lábios. – Mas se quiser, podemos ter uma festa particular! – Disse suavemente passando a língua em minha orelha.

– Eu quero vencer Hasan amanhã, preciso dormir! Não posso deixar você me cansar ainda mais! – Murmurei sentindo minha pele se arrepiar e um calor irradiar por todo meu corpo.

– Hmm. – Sabia que minha resposta poderia ser interpretada de forma errada por ele, como se eu não o quisesse.

– Pode ser depois, uma comemoração quando eu vencer? – Falei, ele se afastou o suficiente para me encarar com um brilho em seus olhos vermelhos e sorriu.

– Precisa ganhar para comemorar! – Disse ele provocando-me.

– Então vamos, preciso deixar essas adagas e as ponteiras na casa dessa senhora antes de voltarmos! – Falei pegando as adagas e colocando-as no cinto de couro apropriado e as pontas de flecha numa caixa. O endereço ficava próximo à entrada da cidade do sol, era um pequeno restaurante do lado do portão com uma placa escrita em Ciantris “Giasari”, o mesmo nome da Dona do estabelecimento, Merian havia trabalhado ali por um tempo, o filho de Giasari era do V4, ela deve ter encomendado para ele. A luz no interior do restaurante estava acesa e as portas estavam abertas, passamos pelas mesas até onde havia uma senhora humana sentada de pernas cruzadas e com um livro no colo.

– Hmm, com licença? – Chamei, ela levantou os olhos do livro para nós e sorriu gentilmente.

– Desculpem, estamos fechados! – Ela apoiou o livro no colo enquanto tomava um gole do chá de ervas que estava na mesinha ao lado da cadeira de balanço.

– Ah, só viemos trazer uma encomenda que foi deixada na Solaris, não sei quanto tempo ficou lá, mas peço desculpas pela demora! – Expliquei entregando-lhe a caixa ela.

– Nikella! Nossa como cresceu! Quase não a reconheci! – Disse ela com um sorriso no rosto, algo naquele sorriso fez uma onda de pânico crescer dentro de mim. Ela pegou as adagas no cinto e as analisou, depois recolocou no cinto passando os dedos por cada ponta de flecha especial.

– E então? – Perguntei.

– Ficaram ótimos! Obrigada! – Os olhos dela passaram de mim para Kuran. – Cuide bem dessa jovem talentosa, príncipe! Um dom como o dela pode beneficiar o reino de muitas formas! – Olhei dela para Kuran com espanto, ele apenas acenou e me guiou em direção a saída quando falei um “Tchau” apressado por cima do ombro.

– O que ela quis dizer com “beneficiar o reino? ” – Perguntei sentindo o coração de Kuran acelerar.

– Existem pessoas que só pensam em poder, só isso! – Disse ele ainda nervoso. – Vamos voltar logo, você precisa descansar! – Ele sorriu e me levou de volta para a ACV.


– Nos vemos quando o sol nascer! – Falei quando chegamos em frente à entrada do dormitório feminino, mas ele não parou, simplesmente me puxou para dentro, mudando de forma ao entrar. Quando ele entrava no dormitório pela porta principal, ao se transformar em mulher ficava quase igual à sua mãe.

– Ficou louco? – Falei baixinho olhando em volta com medo de Candace aparecer.

– Claro que não! Só quero garantir que você não perca a hora de se levantar! – Ele piscou para mim. Entramos no quarto, corri para o banheiro e tomei um banho, coloquei a camisola e voltei para o quarto, Kuran estava deitado em minha cama olhando para mim.

– Se você fosse mulher, teria uma longa lista de pretendentes não é! – Falei olhando-o com estranheza.

– Eu tenho uma longa lista de pretendentes mesmo sendo homem, nem assim escolhi alguma delas! Talvez, se eu tivesse nascido mulher ainda assim escolheria você! – Senti meu coração disparar mas dei uma gargalhada divertida.

– Sinto muito informar, mas ia ser um amor impossível! – Falei deitando ao seu lado na cama, ele continuava me encarando com um sorriso nos cantos dos lábios.

– Por que acha isso? Eu ia te conquistar de qualquer jeito! – Ele riu.

– Não ia não! – Resmunguei.

– Ia.

– Tá, não vou discutir isso com você! Agora quero dormir, já vai dar quatro da manhã e as nove começam as competições!

Kuran me puxou mais para perto, o ar estava ligado e a sensação da sua pele quente era agradável contra a minha, deitei a cabeça em seu braço e fechei os olhos.

– Bons sonhos! – Disse ele passando os dedos em meus cabelos, mesmo estando como uma mulher, seu cheiro ainda era o mesmo, inspirei fundo e senti meus lábios se curvarem num sorriso não permitido por mim.

– Você conseguiu me mudar de uma maneira tão surpreendente, a única coisa que eu queria era vingança, matar quem tirou tudo de mim, depois disso iria fugir para algum lugar onde ninguém iria atrás de mim...

– Ia abandonar sua casa?

– Ia, mas agora não... não mais! Fiz minha morada em um lugar que pode ir aonde eu for... – falei num sussurro.

– Onde?

– Em você, você é minha casa agora!

– Mesmo?

– Sim, sua casa é onde está seu coração, não é uma construção de tijolos, nem de madeira... – Adormeci abraçada e pela primeira vez em muito tempo tinha um sonho bom em que estava com Kuran num navio e nos aproximávamos do templo de fogo em Amantia.


Acordei antes de Kuran, já passava das sete horas quando olhei para o relógio sobre a porta do quarto.

– Você não disse que ia dormir aqui para que eu não perdesse a hora? – Falei levantando-me num pulo e correndo até o banheiro.

– Não está na hora ainda! – Murmurou ele virando na cama.

– Levanta daí e vai para o seu quarto! – Gritei. – Não podem ver você saindo daqui! – Ele começou a rir, escutei um barulho estranho e um grunhido, quando voltei para o quarto a janela estava aberta e Kuran não estava mais lá.

Me arrumei rapidamente, no lugar da faixa de proteção, coloquei um bustiê de couro forrado, que era macio e ao mesmo tempo permitiria maior movimentação, já que a faixa apertada incomodava quando me movia, já não bastaria o espartilho apertado de couro de dragão que me tirava o ar, não precisava de mais nada me machucando. Vesti as calças e as botas e amarrei os cabelos num rabo de cavalo bem alto. Não precisava levar arma nenhuma, então deixei a foice no quarto e saí, corri na verdade até o refeitório, teria que comer algo mais leve também para não passar mal durante a luta.


Kuran estava junto com Susano, Palloma e várias outras pessoas na mesa de sempre, ao pegar meu café e me aproximar notei que eram as irmãs de Susano, uma jovem morena de cabelos longos ruivos e olhos cor de mel que não conhecia junto com Datani, Lupinus e Nelin.

– Olá, onde está Annie? – Perguntei.

– Ao lado do rei e da rainha no campo de prova! Eles vieram assistir pois Ericko disse que a nova chefe da guarda real iria competir hoje! – Kuran falou sorrindo para mim, todos os olhos se voltaram para mim, deixando-me ainda mais nervosa.

– Eles vieram por mim? – Minha voz não passou de um sussurro. Susano acenou com a cabeça e riu.

– Não perca, Nikella! – Disse Karin piscando para mim.

Terminamos de tomar café, se é que posso chamar aquilo de café, pois nada tinha sabor quando eu colocava na boca, o pânico era tão grande que eu estava dormente.


O portão oeste estava aberto, caminhamos pela estrada sinalizada até passarmos pela plataforma, depois seguimos um caminho largo até um muro alto feito com troncos de árvores petrificadas, olhando de fora parecia uma fortaleza impenetrável. As guardas abriram os portões quando chegamos, as batalhas eram quase um show, ninguém queria perder, todos os alunos estavam ali quando chegamos, esperando pelo início. Em volta da grande arena de terra fina estavam os bancos dos alunos que aguardariam suas vezes enquanto assistiriam os outros duelarem até a vitória, ou derrota.

– Aparentemente esse ano foram permitidas novas armas no combate! – Disse Kuran apontando para o armário de armas ao lado da entrada da Arena, todos os tipos de armas corpo a corpo estavam ali, até mesmo uma foice, sorri quando a vi, mas depois de todo treino duro com as espadas, seria uma afronta ao treino de Siorin se eu as usasse.


– Com medo? – Perguntou Kuran tão próximo que senti seu hálito quente em meu pescoço.

– Nem faz ideia! – Respondi.

– Então vou te dar um incentivo, se você ganhar, vamos comemorar em um lugar que ninguém além de mim pisou nos últimos dezenove mil anos! – Disse ele sorrindo.

– Como é? – O olhei assustada.

– Segredo! – Ele piscou e acenou para alguém do outro lado, nas arquibancadas. O rei, Ericko e Annie acenavam para nós, ouvimos as ovações dos alunos e seus pais, irmãos, amigos, de todos que estavam ali. Ao lado deles os soberanos de Amantia e suas filhas também nos assistiam, podia sentir o olhar pesado de Asahi sobre mim, não resisti e acabei sorrindo para ela.

Quando o relógio marcou nove em ponto, Nyona entrou na arena seguida por nove pessoas, das quais reconheci quatro mestres da ACV Yorshi, Siorin, Misty e Gerald, Hasan que era convidado de honra por ser filho dos sóis, e os outros deviam ser guardas reais pelos uniformes vermelhos e dourados que vestiam.

– Vai começar! – Disse Kuran ficando de pé, ele deu um beijo em minha bochecha – Boa sorte! – Desejou se afastando e indo sentar com os pais. Todos os Alunos também se ergueram quando Nyona parou no centro da Arena, ela fez uma breve reverência ao rei e a rainha antes de começar a falar:

– Bem-vindos a todos, durante os próximos cinco dias, todos os alunos que se inscreveram para serem testados, se aprovados passarão ao próximo nível, aqueles que não passarem, permanecerão e terão nova oportunidade na última semana de setembro. – Olhei na direção de Ericko, que riu e fez um movimento com as mãos para mim. Sorri ferozmente em resposta, Nyona continuou: – Eis aqui os guerreiros que vão testar vocês, as regras são simples: vocês escolherão uma arma e terão meia hora para acertar três golpes mortais em seus oponentes, lembrando que não valem golpes do pescoço e rosto, e se ferirem gravemente serão desclassificados! Chegou a hora de mostrarem para que se esforçaram, mostrarem pelo que lutam, mostrem o potencial de vocês! – Quando ela falou isso, pude notar seu olhar em mim por um segundo. – Que as provas comecem! – Ela sorriu e se afastou do centro, indo sentar-se ao lado dos soberanos.

O primeiro a entrar na arena foi Siorin, então sabia que não seria uma das primeiras a lutar, era uma média de 30 alunos testados por dia com três mestres diferentes, então pelo menos dez alunos passariam por Siorin agora.

Os alunos eram chamados por quantidade de pontos nas aulas de batalhas simuladas, sobrevivência e quantidade de missões bem-sucedidas.

– Susano Arbarus Ascardian. – Chamou Siorin pegando as espadas e ficando de pé no centro da arena. Susano se levantou e foi em direção ao centro da arena também. Isso fez um nó no meu estômago, pois estávamos empatados na quantidade de pontos.

– Os mestres vão trocar, se revezar para não se cansarem, a próxima será você! – Disse Nelin rindo.

– Como sabe? – Perguntei sentindo meu coração na mão.

– Fiquei de olho nas suas notas e mantive as minhas mais baixo de propósito! – Disse ela soltando uma gargalhada.

– Eu te odeio! – Ralhei baixinho.

Susano pegou uma lança no armário de armas e se posicionou, uma jovem andou até ele e colocou um bracelete de prata em seu braço para que ele não usasse magia. Quando Nyona deu o sinal para que o teste começasse, Susano se moveu numa velocidade surpreendente para quem estava sem magia, ele girou o corpo graciosamente movendo a lança junto com ele, como se fosse uma extensão do seu corpo e num segundo acertou o primeiro golpe em Siorin, que ficou sem entender como aquilo havia acontecido, porém depois disso ficou mais difícil para Susano, pois o mestre agora esperava os ataques rápidos dele. A lança de Susano zunia toda vez que girava no ar e golpeava a espada de Siorin, que a usava principalmente como defesa, mas Susano não permitia que ele o acertasse nenhuma vez, fiquei olhando aquele duelo de boca aberta e coração na mão, ele era simplesmente incrível! Annie tinha o mesmo olhar bobo que eu devia ter agora no rosto, logo vi que Kuran me observava, mudei a postura inquieta e continuei observando.

Antes que completasse dez minutos de teste, Susano deu dois golpes de uma vez, acertando o peito e o quadril de Siorin.

– Vitória de Susano! – Disse Nyona quando ele soltou a lança e acenou para Siorin, que deixou a espada sobre o armário e saiu da Arena. Os alunos gritavam, assoviavam e aplaudiam quando Susano saiu acenando e sorrindo da arena e foi sentar nas cadeiras dos vencedores, um vencedor como esperado do filho dos reis de Amantia. Quando Hasan pisou na Arena, senti uma forte náusea e tive que respirar fundo várias vezes, ou tentar, já que o espartilho impedia que eu respirasse direito.

– Nikella Modjim. – Chamou Hasan pegando duas adagas no armário e andando em direção ao centro da arena. Me levantei com dificuldade, meu coração martelava com força e via borrões em minha frente. Se você perder, vai passar dois anos no V7! Lembrei, respirei fundo uma última vez e forcei minhas pernas a andarem depressa. Ergui a cabeça e entrei na arena, parecia que quilômetros me separavam de Hasan, fui até o armário e ao invés de escolher uma espada mais leve, como deveria ter feito, escolhi uma igual em tamanho a que havia feito para Kuran. Ela era pesada demais, estava acostumada com o vitrino leve e firme sob minhas mãos. A apoiei no ombro e andei até o centro da arena, ficando de frente para Hasan, a jovem entrou na arena e colocou a pulseira em meu braço, fazendo a espada parecer ainda mais pesada sob minhas mãos, ouvi murmúrios e muitos olhares espantados para mim, só então me lembrei que nenhum dos alunos sabia que eu era usuária de magia.

– Pronta? – Sussurrou para mim.

– Não mesmo! – Falei posicionando-me com a espada em punho.

– Comecem! – Disse Nyona fazendo um movimento com as mãos.

Ao contrário de Siorin, Hasan veio para cima com tudo, como um raio, só tive tempo de erguer a espada e defender o primeiro golpe que veio com tanta força que senti minhas pernas cederem e meus joelhos dobrarem com o impacto, o som do metal se chocando fez minha cabeça doer, cada musculo de meus braços arderam com o peso daquele único golpe, se estivesse segurando a espada um pouco mais de leve, ele teria me desarmado e cortado minha garganta. Hasan tinha um sorriso presunçoso no rosto, um sorriso que eu precisava tirar. Movi as pernas rapidamente girando por baixo de seu golpe e movi a espada tentando acertar seu ponto aberto em sua esquerda, mas ele bloqueou meu ataque com uma das adagas e a outra acertou de raspão em minha cintura, o som do metal sobre as escamas de dragão fez meus pelos arrepiarem.

– Ahh! – Resmunguei saltando para longe e girando a espada novamente com apenas uma mão, ele não percebeu o que tinha em mente quando fiz aquilo, descendo a espada rapidamente sobre ele, que protegeu-se do golpe cruzando as adagas e abrindo uma brecha, grande o suficiente para que eu lhe acertasse um soco no peito. Ele riu quando pegou meu braço e me girou com força atirando-me do outro lado da arena, tive sorte de conseguir parar com as pernas na grade de proteção, as usei para me impulsionar de volta e correr até ele. Depois do primeiro golpe ficou quase impossível quebrar sua defesa e cada golpe que ele acertava em minha espada me deixava mais fraca, dolorida e tonta. Quanto tempo havia se passado? Nem fazia ideia. Hasan fez um movimento quando me aproximei com a espada que me desarmou, senti os nós dos dedos queimarem quando a espada caiu de minha mão e ele me golpeou no estômago, tirando-me o fôlego. Caí de joelhos na arena sem conseguir respirar.

– Dois anos no v7! – Disse Hasan encarando-me com os olhos negros. Um pânico me tomou, via pontos brilhantes em minha frente e sentia um gosto metálico na boca.

– Vamos Nike! Você consegue! – Gritou Annie. – Faltam dez minutos! Eu sei que você pode! – Gritou ela, queria arrancar porcaria do bracelete de mim, já teria vencido se não estivesse usando aquilo.

Peguei a espada e levantei, o espartilho não estava deixando que eu retomasse o fôlego, mas Hasan já vinha em minha direção novamente com as adagas erguidas, sabia que a técnica dele era me cansar e cansar meus braços para que não conseguisse golpeá-lo, eu não estava nem de longe machucada como teria ficado se ele estivesse lutando para valer. Então fiz algo que poderia me condenar numa batalha real ou me salvar, usei a lâmina da espada e cortei o laço do espartilho e o atirei ao chão, ficando apenas com o bustiê. Hasan diminuiu a velocidade da corrida quando viu o que fiz, seu rosto ficou corado e ele desviou o olhar para meu corpo por um instante, um milésimo de segundo que me deu a vantagem. Saltei em sua direção acertando-lhe a lateral do corpo com a espada e novamente o peito com o punho. Ele ficou me encarando perplexo e virou o rosto, soltando as adagas no chão.

– Vitória de Nikella! – Falou a voz de Nyona abafada pelos gritos e aplausos. Fui sentar ao lado de Susano, que não me olhava também, apenas sorria.

– O que foi? – Perguntei.

– Se minha tia souber que ele perdeu por que a oponente era uma jovem bonita que tirou parte da roupa no duelo, ela mata ele! – Disse soltando uma gargalhada.

– Ah, droga! Eu não fiz por querer! Eu não conseguia respirar com isso! – Resmunguei mostrando o espartilho.

– O sorriso maldoso que você deu quando ele parou para te olhar sugere outra coisa! – Susano agora me encarava com os olhos semicerrados.

– Aquilo foi por causa da cara de idiota que ele ficou! Mas juro que não foi de maldade! – Tentei me explicar, Susano deu de ombros, porém quando olhei para a arquibancada, Kuran estava me fulminando com o olhar, sabia que ele havia ficado com muito ciúme e que seria uma droga me explicar para ele.


Ficamos assistindo a próxima luta, era de um aluno da turma de Nelin e Lupinus, não o conhecia, mas vi que ele enfrentaria Misty e fiquei com dó dele.

– Pobre coitado! – Falei dando um suspiro.

– Por que? – Susano olhava para os dois no meio da arena, ansiosos aguardando o sinal de Nyona para o início da luta.

– Ela vai acabar com ele! – Senti um sorriso sinistro se formar em meu rosto, agradeci silenciosamente por ter tido Hasan como oponente e não ela. Quando a luta deu início, só vi Susano abrir a boca e os gritos da plateia quando Misty incapacitou o jovem chamado Drezir em dois golpes da espada.

– Drezir foi derrotado! – Disse Nyona levantando a bandeira vermelha para que os curandeiros o retirassem da arena, ele não estava se movendo, estava em choque com a boca aberta no chão Susano olhava assustado para Misty, que sorria de forma divertida.

Dos dez alunos da primeira etapa, apenas quatro conquistaram a vitória, Susano, Nelin, Lupinus e eu.

– Ela é assustadora! – Disse Susano olhando Misty do outro lado da Arena sorrindo, ela era linda, mas mortal como uma força da natureza que não podia ser detida.


Quando o som para o primeiro intervalo soou, nos dirigimos ao salão abaixo das arquibancadas para almoçar, Nyona veio encontrar-se conosco e nos levou a uma sala reservada onde as famílias reais nos aguardavam. Senti um embrulho no estômago ao entrar na sala, Hasan e o rei de Amantia conversavam em um canto da sala e me olharam de soslaio quando entrei. Leona, Ericko e Annie vieram até nós dando parabéns e nos abraçando.

– Parabéns, chefe da guarda! – Disse Ericko dando uma gargalhada divertida. – Nunca pensei que você fosse capaz de um truque tão sujo para vencer! – Disse ele com um sorriso maldoso no rosto, Karin estava mordendo os lábios para não rir e Kuran me fulminava com o olhar, quando fui negar o que eles estavam pensando que eu fiz, Kuran saiu da sala e bateu a porta com tanta força que as janelas da sala vibraram.

– Não fiz de propósito, aquela porcaria estava restringindo meus movimentos! – Resmunguei.

– Você tiraria a armadura em uma batalha? – O rei Hargas olhava com curiosidade para mim.

– Se isso fosse a diferença entre a vitória e a derrota, claro que tiraria! – Falei cruzando os braços irritada. – Se você não consegue se mexer rápido o suficiente, de nada adianta uma armadura forte se você não conseguir correr para evitar os golpes, uma hora ou outra a armadura vai ceder!

– Olha a língua! – Alertou Ericko, estavam todos tão à vontade que esqueci com quem estava falando.

– Deixa a menina, Ericko! – Disse o rei dando tapinhas em meu ombro – Ela vai ter tempo para criar modos! Muito habilidosa, realmente! – Disse ele se virando para sair da sala. – Tenho assuntos importantes a resolver agora, Ewren, me acompanha? – O rei acenou e os dois saíram da sala acompanhados por Ericko e Karin, que piscou para mim e deu-me parabéns. Susano e Annie haviam sumido sem que eu ao menos percebesse. Estava nervosa pois não sabia como conversar com eles, Hasan de vez em quando me encarava e eu acabava sentindo meu rosto corar, o que piorava minha situação, usei magia para fazer aparecer uma camiseta por cima do bustiê e fiquei em silêncio mudando o peso do corpo de vez em quando enquanto os outros conversavam entre si, até que a porta se abriu.

– Nike, parabéns! – Palloma que havia acabado de aparecer na sala estava sorrindo para mim e me abraçou.

– Obrigada! – Agradeci devolvendo-lhe o abraço.

– Você deve ser a Palloma! – Leona se aproximou de nós e estendeu a mão para ela – Susano fala de você para nós, e de seus dons! - Palloma sorriu e apertou a mão dela.

– É um prazer conhece-la pessoalmente, sacerdotisa! – Palloma deu um sorriso que logo sumiu do seu rosto, quando ela sugou o ar e fechou os olhos e caiu de joelhos no chão.


13


Mansão do Fogo

 

Segurei Palloma pela cintura e me ajoelhei para que ela deitasse sobre minhas pernas.

– Chame Kuran, rápido! – Gritei. Nelin correu para fora da sala para busca-lo enquanto os olhos de Palloma mudavam de cor, do castanho dourado para um rosa claro e suas pupilas dilataram.

– O que houve com ela? – Leona se abaixou para ver o pulso de Palloma.

– Acho que ela está tendo uma visão. – Coloquei as mãos no rosto dela, estava quente, tão quente que ela poderia ser facilmente confundida com uma salamandra agora. Os minutos pareciam intermináveis enquanto ela estava sobre meus joelhos e tremia tanto, parecia não ter fim nunca. Kuran e Nelin apareceram depois de alguns minutos, ele mal olhou para mim, apenas a tirou de meu colo e a colocou no sofá da sala. Podia ouvir Palloma falando baixinho com alguém enquanto seus olhos lacrimejavam. Kuran tocou sua testa com as mãos e ficou chamando seu nome até que seus olhos voltaram ao normal.

– Pam, o que viu? – Perguntou Kuran apertando suas mãos.

– Os mundos... os guardiões... e muita, muita dor! – Ela deu um suspiro e desmaiou. Leona olhava para ela assustada, então se aproximou e tocou sua testa na de Palloma, novamente o tempo pareceu estar parado enquanto ela vasculhava as memórias de Palloma atrás de sua visão.

– Precisamos ter uma conversinha com seus pais! – Disse Leona olhando para Hasan que estava no canto da sala em silêncio, ele assentiu e ali mesmo abriu um portal, Kuran pegou Palloma no colo e atravessou seguindo Hasan, antes que eu pudesse sair da sala, Leona pegou meu braço e me levou para o portal também.


O outro lado foi como um choque para mim, estava gelado, tão gelado que cada pedaço da minha pele exposta queimou, a neve branca e brilhante cobria tudo à nossa volta e o vento gelado cortava meu rosto. Nesse momento o que eu mais queria era que Kuran me abraçasse, agora seu calor sufocante seria agradável e maravilhoso, mas ele ainda me olhava com raiva. Bufei e usei meus poderes para me cobrir com uma capa de veludo quente o suficiente para que eu não congelasse. Leona ergueu as mãos para cima e a tempestade de neve cessou, deixando apenas o ar gelado circulando a nossa volta. Em nossa frente havia um grande castelo de pedras vermelhas e portas de gelo, tão grossas que não se podia ver nada do outro lado.
Hasan abriu a porta para que entrássemos e nos guiou pelo salão principal, coberto por tapetes verde-escuros e decorado com objetos dourados e prateados, no centro da sala havia uma lareira grande acesa e uma jovem sentada sobre um dos sofás parecia bastante entretida com a leitura. Ela era simplesmente linda, Hasan andou até ela e a beijou. Então ela era a esposa dele, a tia de Susano!

Um casal entrou na sala assim que chegamos perto do centro, mesmo sem ter visto eles no céu, tinha certeza de quem eram, Sirius e Áries!

– Sirius! Acho que precisamos de algumas respostas, pode nos ajudar? – Leona apontou o sofá para que Kuran colocasse Palloma, Sirius assentiu, seus olhos passaram rapidamente sobre todos da sala e pararam em mim, era um olhar penetrante que me causou ondas de pânico, a mulher Malvarmo baixinha ao seu lado também olhava para mim, ela sibilou e disse algo que não consegui compreender “Yinemí”.

Sirius se aproximou de Palloma e como Leona, ele entrou na mente dela e procurou pelas últimas memórias, as memórias da visão dela, depois de um bom tempo, ele pediu para que nos sentássemos, obedeci sentando ao lado da sacerdotisa, era onde me sentia mais segura, longe dos olhos negros de Áries.

– Eu temia isso, sabia que aconteceria no dia em que você prendeu Fairin no centro do círculo. – Disse ele dando um suspiro e sentando-se.

– O que está acontecendo, Sirius? – A voz de Leona vacilou.

– Higarath despertou e vai se libertar do seu lacre no centro do círculo graças ao poder de Fairin, provavelmente ele pretende dar continuidade aos seus antigos planos, destruir os guardiões que protegem os mundos, os guardiões que você despertou no dia em que cumpriu a profecia de colocar o terceiro guardião no centro do círculo! – Disse Áries encarando Leona, ela engoliu em seco, podia ouvir seu coração acelerado.

– Pode explicar melhor? – Pediu Nyumun sentando-se entre mim e Leona e afagando as costas da mãe, tentando tranquiliza-la.

Sirius andou até a lareira e pegou as chamas nas mãos e ficou brincando com elas, com os olhos fixos no fogo, então começou a falar:

– Há muito tempo atrás, um espírito despertou na terra, um espírito que tinha um grande poder e que vagava por lá em busca de alguém para dividir seus dons, porém vendo o potencial de destruição dos homens, sua crueldade, desonestidade, ele saiu da terra e foi em busca de um mundo que pudesse deixar seus poderes. Como não encontrou nada nem ninguém capaz de receber seus dons, ele mesmo criou outros treze mundos, cada um com aspectos únicos e especiais e em cada um deles um tipo de vida. Permitiu que o tempo passasse diferente em cada um deles para que se desenvolvessem de forma diferente e nunca fossem iguais. Mas o espírito não queria só observar a vida evoluir nos mundos, ele então escolheu o primeiro que criou, Amantia, que significa “Te amei primeiro” e criou um corpo para ele naquele mundo, ele sentia que era um espirito feminino, pois se identificava com as mulheres quando esteve na terra, então assumiu a aparência de uma bela mulher e se deu o nome de Ayrana Arbarus, ela viveu por um tempo nesse mundo interagindo com os seres que criou ali, os elfos, criaturas inteligentes, fortes, puras e sábias, de coração sincero e sem nenhuma maldade. Mas ela ainda queria alguém para dividir aquela vida com ela, então voltou ao primeiro mundo que esteve, o mundo em que percebeu sua existência pela primeira vez, a terra e escolheu um jovem humano para que ficasse com ela, ela escolheu aleatoriamente, julgando apenas aparência e nada mais. Ela lhe ofereceu metade de seu poder se ele fosse com ela, porém ela não o conhecia de verdade, ganancioso e movido pelo desejo do poder ele a seguiu, Higarath foi o nome que ele recebeu de Ayrana. – Sirius suspirou e continuou a contar. – Assim que chegaram lá, eles se casaram e ela dividiu seus poderes com ele e tiveram cinco filhos, três meninas: Antares, Grisena e Shurin e dois meninos, Caalin e Tanarus. Higarath porém gostava de uma jovem humana e ia à terra vê-la com desculpa de matar a saudade de sua família, lá ele traía Ayrana com essa humana. Ayrana descobriu sobre a traição do marido e triste divorciou-se dele, porém ela não sabia que o poder que havia dado a ele foi corrompido pelas suas más intenções. Quando ela pediu o poder de volta, Higarath com raiva de Ayrana não lhe devolveu os poderes e fugiu, ele começou a andar pelos treze mundos que Ayrana havia criado e começou a corromper todas as suas criações, fazendo surgirem as maldições dos vampiros, lobisomens, aswangs entre outros amaldiçoados, os que não podia amaldiçoar transformava em criaturas malignas e espíritos cruéis. Não satisfeito, ele trouxe os homens e mulheres da terra para os outros mundos e os misturando com os não-humanos criados por Ayrana, formando assim híbridos de várias raças e aumentando a quantidade dos amaldiçoados.

Ayrana em desespero vendo a destruição que Higarath estava causando, tentou lhe tomar os poderes à força, Higarath sem nenhuma piedade atravessou uma espada em seu peito. Em seu último suspiro, Ayrana dividiu seus poderes entre seus filhos e os fez guardiões de seus mundos, para que os protegessem de Higarath.

Os filhos de Ayrana, tomados por raiva do pai pela morte dela, tentaram o derrotar, mas o poder maligno dele era grande demais para ser derrotado, então Antares usou um lacre poderoso com ajuda de seus irmãos e prendeu seu pai dentro de uma estrela no centro do universo que abrigava os mundos que sua mãe criou, enquanto o lacre era criado, Higarath jurou que voltaria, ele disse: “Eu vou destruir vocês um a um e um dia, quando o terceiro guardião descer ao centro do círculo dos mundos e morrer o lacre se romperá e eu tomarei o poder desse guardião, assim ele se corromperá e eu voltarei a minha forma física, depois destruirei todos os que tiverem meu sangue, todos os seus descendentes que protegem os mundos e os tomarei e os governarei com minhas sombras”.

– O que houve depois? – Perguntou Kuran, olhando horrorizado para as chamas dançando nas mãos de Sirius, como se estivesse hipnotizado.

– Em seguida, Antares recebeu parte dos poderes de seus irmãos e se transformou em um sol, ela prometeu que impediria Higarath saísse do lacre, porém pediu a seus irmãos que estivessem preparados para proteger os mundos caso ela falhasse. Ela permaneceu no centro entre os mundos para evitar que ele escapasse do lacre da estrela enquanto manteve seus poderes. Dos cinco filhos de Higarath e Ayrana, apenas Shurin continuou em Amantia, os outros partiram para outros mundos. Shurin passou para seus filhos conhecimento sobre os mundos e sobre o poder dos guardiões. Os outros irmãos fizeram o mesmo, tiveram seus filhos e passaram o poder para frente, então o sangue dos guardiões jamais desapareceu. Porém conforme foram passando o poder para frente, ele foi diminuindo, não diminuindo, adormecendo na verdade! Acredito que com o tempo, Antares teve seu poder absorvido por seu pai e acabou morrendo. Assim, como os outros guardiões estavam “adormecidos” e não responderam ao chamado, dois dos mundos que Ayrana criou foram destruídos, creio que Higarath aproveitou que Antares não conseguiu morrer em sua forma verdadeira e usou a morte dela ainda como uma estrela para destruir esses dois mundos. Aries e eu então aceitamos ser os guardiões e impedir que Higarath se libertasse. Nós não protegíamos os mundos do poder que havia neles, mas do poder que tentava tomá-los.

– Então eu devia mesmo ter matado Fairin e subido no lugar de vocês, não é? Cometi um grave erro quando não o matei, dei a brecha que Higarath tomasse Fairin. – Disse Leona num suspiro triste.

– Eu não acho isso, se você tivesse o matado, teríamos que enfrentar você! Fairin já era odioso antes, então matá-lo para valer dessa vez não nos trará pesar algum, agora se fosse você isso seria mais difícil, tente imaginar ter que ser detida, destruída pelas próprias filhas! – Disse Áries depois de um tempo.

– Fora que quando você quase se tornou uma maga negra, seus poderes ficaram maiores do que o de Fairin, seria mais difícil de matar Higarath com o seu poder! – Disse Sirius, se aquilo foi uma forma de fazê-la se sentir melhor, acho que não deu certo.

– Desculpe me intrometer, mas o que a visão de Palloma tem a ver com tudo isso? – Perguntei me arrependendo logo depois quando Sirius me encarou.

– Ela viu os guardiões nos doze mundos que Leona despertou no dia que prendeu Fairin no centro do círculo. Viu os guardiões sendo caçados por Fairin, se ele conseguir matar os guardiões, nada vai poder impedir Higarath de tomar os mundos com as sombras quando ele se libertar totalmente do lacre.

– Mas você disse que esse tal Fairin, que é o terceiro guardião que desceu ao centro do círculo, ele tem que morrer para isso acontecer, não é? – Perguntei.

– Verdade, na hora que isso acontecer Higarath vai se livrar totalmente do lacre que o prende ao círculo e vai poder transitar tranquilamente entre eles. – Explicou Sirius.

– Se não matarmos Fairin, ele vai achar e matar os guardiões antes que os avisemos, por outro lado se o matarmos, Higarath será liberto... – minha voz não passou de um sussurro.

– Mesmo se não destruirmos Fairin, Higarath vai rapidamente absorver seu poder e o matará, Fairin não deve ter percebido o que Higarath é realmente e que está apenas o usando. – Sirius falou.

– De qualquer forma vai ser ruim, mas se Fairin morrer antes de matar os guardiões, melhor para nós, vai levar tempo até Higarath encontrar todos eles! – Não conseguia entender por que Áries me olhava como se quisesse me engolir.

– Quem eram os guardiões que Palloma viu? – Perguntou Kuran tentando espantar o medo dos olhos.

– Acredito que essa pequena Yinemí aí é uma! – Áries falou num chiado.

– Pare de me chamar assim, eu tenho um nome! – Reclamei, Leona apertou minha mão para que eu me acalmasse.

– Você, Nikella, é uma guardiã também, Nyumun é guardiã de Amantia... mas os outros, não podia ver seus rostos, eles estavam dentro de espirais de vidro. – Disse Leona com um olhar de pânico. Queria falar do guardião de Vegahn mas preferi ficar em silêncio, Kuran já estava irritado o suficiente comigo para que eu dissesse mais algo que pudesse me colocar em “risco”.

– Espirais de vidro? Como no sonho de Nyumun e Nikella? – Kuran perguntou.

– Você também sonha com elas? – Nyumun agora estava me encarando.

– Quase todas As noites...

– Naquele dia, era Fairin tentando matá-la do lado de fora do templo de fogo então. – Kuran olhava em minha direção.

– Ele já começou! Ele vai os caçar e os matar! – Palloma havia despertado e tentava se levantar, mas era impedida por Asahi, que só agora percebi estar sentada ao lado de Kuran.

– O que faremos? – Perguntou Leona apertando Nyumun com força em seus braços, quase tirando o ar da jovem.

– Temos que encontrar os guardiões e os proteger, impedir que Fairin os mate e ganhar tempo antes que Higarath se liberte! – Disse Sirius andando até Nyumun. – Foi por isso que o tempo se modificou, para que ele conseguisse os caçar dentro dos mundos sem ter problema por causa da passagem do tempo! O interessante é que ele nem se dá conta de que está sendo usado por Higarath...

– Ela já tem um protetor, Siorin fez o juramento de Guardião a ela. – Disse Asahi fazendo os olhos de Nyumun acenderem num dourado brilhante.

– Por que você não fica quieta? – Nyumun se levantou com a mão no pingente em seu pescoço, Asahi imitou o gesto e mostrou os dentes, Leona revirou os olhos e respirou fundo com as mãos nas têmporas. “Elfas! ”

– Nem pensem em tentar se matar aqui dentro! – Gritou Áries fazendo as duas voltarem aos seus lugares.

– Pode identificar os outros guardiões? – Perguntou Sirius pegando as mãos de Palloma e a levantando.

– Tenho que estar bem perto para identificar, só consigo ter visões limpas se estiver perto da pessoa a quem ela corresponde. No caso dos guardiões, estava perto de Nyumun e Nike, e de quem despertou os guardiões. Acho que se a senhora estiver comigo, posso achá-los mais facilmente. – Palloma lançou um olhar significativo a Kuran, que balançou a cabeça de leve, de forma negativa.

– Não temos muito tempo, se ele começou a agir, precisamos achar os outros o mais rápido possível! – Áries deu um olhar frio para mim e se virou para Palloma. – Poderia vir conosco? Ir até os outros mundos e procurar por eles?

– Acho que sim... – Palloma olhou de Kuran para mim.

– Vou te dar dois dias para que se prepare, iremos viajar! Ir atrás deles antes que seja tarde! – Disse Áries para ela, Palloma assentiu e suspirou.

– Os guardiões, muitos deles não devem ter noção do que são e do poder que tem, eles estarão vulneráveis ao poder de Fairin e podem ser mortos facilmente se não forem avisados!

– Tem razão, eu não fazia ideia dos meus poderes até ler a carta que minha mãe deixou... meu pai mantinha meu poder preso com um colar de prata...

– Vocês devem voltar para Ciartes! – Disse Sirius. – Tente se manter segura, Se Fairin já tentou te atacar, é possível que manipule outras pessoas para conseguir te alcançar!

– Já está fazendo isso, meu próprio irmão já tentou me matar duas vezes – falei. – Mas tenho certeza de que ficarei bem! – Apertei o colar em meu pescoço com a mão, havia esquecido que estava usando a árvore que Kuran me dera e não Siferath. Isso fez ele ficar com a cara menos amarrada para mim.

– Vou pedir a Susano, Lupinus e Datani que fiquem sempre por perto de você! – Disse Leona com um sorriso tristonho.

– Não precisa se preocupar. Agora, se me dão licença... – eu me levantei e saí da sala em que todos estavam, atravessei as grandes portas de gelo e abri um portal, em Amantia era fácil usar meus poderes, os sentia fluir com o triplo da força aqui.


Depois de atravessar a bolha prateada, notei que tinha ido parar em outro lugar, estava na frente da cidade do Sol. Isso era estranho, pois jurava ter mentalizado a entrada sul da ACV. Mesmo assim foi bom, queria ir até o hotel pegar algumas coisas e depois voltaria para a academia, queria assistir as provas do dia seguinte. Atravessei a cidade rapidamente, o movimento estava bem menor do que o de costume, pois muitos deviam estar assistindo as provas na academia. Passei pelos guardas do portão e os cumprimentei com um sorriso, o cheiro de comida que vinha do restaurante era maravilhoso! Acabei encontrando Ariel e Elister almoçando quando entrei.

– Nike! Ei! Venha almoçar com a gente! – Chamou Elister sorrindo e acenando para mim, fiz a capa que estava usando desaparecer e corri até a mesa. Gih estava vindo até eles com uma bandeja cheia de doces quando me viu.

– Já soube das notícias, Nike! Parabéns! – Elister apertou minha mão. – V8 agora! Está quase lá! – Ele sorriu.

– Sim! Logo, logo terminarei e serei da guarda pessoal da família real! – Preferia deixar o clima alegre, não podia falar para ele sobre como os mundos acabariam se eu falhasse em proteger Ciartes, se Palloma, Sirius e Áries falhassem em encontrar os outros guardiões e avisá-los antes que Fairin e Higarath os destruíssem. Será que Caalin já sabia? Ele me chamou de guardiã.

Almocei com eles e comemos pequenos pudins decorados com frutas silvestres de sobremesa, Era a primeira vez que nos reuníamos depois da partida de Taures, eles pareciam tranquilos, era isso que se esperava afinal, que as pessoas superassem o que quer que o tempo trouxesse. “Vou lutar por vocês!” Pensei enquanto os via sorrir e brincar.

Fui até meu quarto, não havia nada que eu quisesse ali pegar ali, a não ser ler a carta de minha mãe novamente. Queria ter ido vê-la, se soubesse da carta antes, talvez tivesse conseguido encontrar com ela pelo menos uma vez.

– Posso entrar? – Perguntou Elister entrando no quarto.

– Claro! – Ele sorriu e sentou na beirada da cama.

– Entrei hoje cedo na Solaris, antes de anoitecer e peguei uma das barras de vitrino... queria fazer um teste, se poderia fazer joias com ele também! – Ele estava com o rosto vermelho e olhava para os pés, em suas mãos havia um pequeno embrulho de tecido azul.

– Tudo bem, Elister! Pode usá-las à vontade! – Respondi jogando algumas peças de roupa na bolsa.

– Testei fazendo isso! – Ele ergueu as mãos, mostrando-me o embrulho, o peguei e abri, dentro havia um colar e par de brincos azulados no formato de flocos de neve, cada floco se juntava formando uma corrente e os brincos eram flocos únicos, maiores pendurados em pérolas brancas, eram tão delicados e perfeitos, com um padrão único e riscos pequenos e suaves como se fossem flocos reais.

– Nossa, Elister! São incríveis! Como conseguiu isso? – Perguntei.

– Passei semanas desenhando e entalhando moldes para eles! – Ele estava ainda mais corado.

– Deveria abrir uma joalheria! Você tem muito talento! – Falei sinceramente.

– Mesmo?

– Claro! – Sorri. – Pode ter certeza que seria sua freguesa! – Estendi a mão para que ele pegasse o conjunto, mas ele acenou negativamente com a cabeça.

– Fique com eles para você, por favor! – Disse ele se levantando e indo em direção à porta. – Um presente por tudo que você representa para mim! – Sorri para ele e coloquei o presente dentro da caixinha com a carta de minha mãe, o brilho azulado mudou para um brilho prateado quando os guardei.

– Obrigada mesmo, Elister! – Ele ficou ainda mais corado e saiu pela porta. Me despedi de Gih e falei que não ficaria no hotel durante esses dias, queria ver as provas, ela me deu um abraço apertado, passei por Ariel e Elister na saída e acenei rapidamente para eles, precisava pedir a Siorin que me treinasse ainda mais duro agora.


Cheguei na ACV e fui direto até a quadra de treinos no subsolo, esperava encontrar Siorin ali e falaria com ele sobre intensificar os treinos, porém ele estava com uma bolsa na mão e vinha em direção à saída quando entrei.

– De saída? – Perguntei tentando recuperar o fôlego.

– Sim... – ele bagunçou meu cabelo com as mãos quando se aproximou de mim.

– Ah, então deixa para semana que vem... – falei virando-me para sair.

– Não vai ter semana que vem para mim, Nikella! – O encarei sem entender o que ele estava querendo dizer.

– Como assim, mestre?

– Leona me convocou de volta à Amantia, ficarei responsável pelo governo da Cidade das Tormentas e pela proteção de Nyu. – Ele sorriu.

– Fico feliz que possa ficar com ela! – Sorri, mas sentia meu coração apertado.

– Mandrai irá ficar em meu lugar a partir de hoje, sinto muito Nike, queria ver você se formar só para dizer que eu ajudei você a chegar lá!

– Pode deixar, vou fazer questão de falar para todo mundo que fui treinada por você!

– Se cuida, menina! Se precisar, sabe onde me encontra! – Ele me abraçou apertado segurou meu queixo e beijou o topo de minha cabeça.

– Obrigada por tudo, Mestre! Espero que fique tudo bem!

– Eu também! – Ele acenou para mim e saiu da quadra. Olhei em volta a tempo de ver de relance alguém saindo pela saída de emergência, um calafrio passou por mim, imaginando que podia ser Merian, então corri até meu quarto.

Estava tudo muito silencioso, Liilac e Sayuri não estavam ali, mas tinha certeza que apareceriam mais cedo ou mais tarde, pois elas fariam o teste para formatura em quatro dias.

Assisti as provas do dia seguinte, e de outro dia também, e durante os dois dias que passaram, Kuran não falou comigo, as duas vezes que tentei me aproximar, ele se afastou sem falar nada. Não conseguia acreditar em no quanto infantil era a atitude dele, eu não havia feito nada de maldade para que ele ficasse com aquele nível ridículo de ciúmes, mesmo assim quando anoiteceu resolvi falar com ele.

Esperei escurecer completamente para ir até seu quarto, ou ele aceitava que eu não havia tentado seduzir Hasan para derrotá-lo, ou podia voltar correndo para Asahi, por mais que fosse doer em mim, não aceitaria ficar com alguém que não confiasse em mim. Saí pela janela do quarto com cuidado, me agarrei às pilastras que sustentavam o telhado pesado da academia e subi facilmente, corri sobre as telhas grossas e ásperas feitas de uma pedra que era porosa de um lado e lisa do outro, aquilo absorvia a agua nas raras vezes que chovia e levava as águas até o reservatório da estufa. O céu estava nublado e quase não podia se ver a lua cheia brilhante por detrás delas, ia começar a chover a qualquer momento, podia sentir o aroma de terra molhada se aproximando cada vez mais. Pelo que Annie havia me dito, o quarto de Kuran era o último do lado esquerdo no quarto andar. A janela do quarto estava aberta, levando para dentro o vento frio da noite.

O maior problema agora é que desse lado não havia um suporte para que eu descesse até a janela, bufei e revirei os olhos, não acreditando o quão boba estava sendo. Movi as mãos fazendo aparecerem degraus desde onde eu estava até a janela, olhei para dentro devagar, não tinha nenhum sinal de Kuran no quarto, ele não tinha colegas de quarto, só havia uma cama ali, uma escrivaninha grande do outro lado do quarto e um guarda roupa. Olhei novamente para ter certeza de que ele não estava e entrei. O quarto tinha o cheiro dele, amadeirado e sutil, espalhado por todos os lados do aposento.

Andei pelo quarto olhando tudo, se Candace me pegasse aqui, com certeza levaria uma surra.

– Se não está aqui para se desculpar, pode ir embora! – A voz melodiosa e firme de Kuran veio de trás da janela, fazendo-me pular de susto como um gato ladrão. Seus olhos vermelhos estavam acesos no escuro do quarto.

– Não vim te pedir desculpas! – Falei me endireitando e erguendo o queixo.

– Então pode sair! – Ele virou o rosto e apontou a janela. Bufei, queria bater nele, acertar aquele rosto lindo com pelo menos um soco já me deixaria completamente feliz, mas resolvi apenas me explicar:

– Eu não fiz nada de errado para ter que te pedir desculpas!

– Só usar o corpo para distrair Hasan e vencê-lo?

– Você se distrairia com uma mulher seminua na sua frente em uma batalha de vida ou morte? – Perguntei.

– Não seja boba, claro que não! – Retrucou ele enrugando as sobrancelhas.

– Pois é, ele também não deveria! Tirei o espartilho pois estava perdendo e não conseguia respirar direito, sou ágil, mas não tenho tanta força, ele estava me ganhando pois eu não conseguia me mover direito com aquele troço! – Reclamei. – E espero que isso te convença, já expliquei a mesma coisa para três pessoas diferentes.

– Mesmo...?

– Não preciso de truques baixos para ganhar ninguém! – Embora tenho certeza que perderia de Hasan naquela luta. Kuran andou até mim e segurou meu rosto com as mãos. – Se tentar entrar em minha mente para saber se estou falando a verdade, juro por tudo que é mais sagrado, Kuran, eu vou cortar essa sua cabeça enquanto você dorme! – Rosnei, ele começou a rir.

– Não ia fazer isso! Acredito em você!

– Então por que não falou comigo antes?

– Estava esperando para ver o quanto você se importava, se viria até mim. Confesso que fiquei um pouco desapontado com a demora! – Resmungou fazendo um bico, segurei em seu pescoço e o beijei.

– Melhor?

– Uh-hum. – Ele segurou minha cintura e me empurrou para a parede, puxando minhas pernas para que eu as colocasse em volta de seu quadril, deslizou as mãos quentes pelas minhas pernas enquanto beijava meu pescoço alterando com pequenas mordidas com os lábios, fazendo minha respiração ficar irregular.

– A academia tem menos de dezenove mil anos, Kuran! – Falei lembrando-me do incentivo que ele me deu para vencer Hasan.

– Verdade, havia me esquecido disso. – Ele foi até a janela e pegou uma folha que estava dobrada em seu bolso, a assoprou, transformando-a numa ave e pulou em cima dela me levando junto. Voamos por cima da ACV e fomos em direção à cidade do Sol, mas ele inclinou para leste, estávamos indo em direção a árvore do Fogo. Era incrível a visão dela a noite, as folhas brilhavam e dançavam como se estivessem pegando fogo, vermelhas e incandescentes e o tronco parecia vivo, os galhos se movimentavam como se dançassem a melodia que o vento fazia ao soprar por entre suas folhas.


Kuran pousou na base da árvore, a ave se desmanchou voltando a ser apenas uma folha de papel, estar na base da árvore me fez sentir como uma formiga perto do pé de alguém, era gigantesca, levaria pelo menos duas horas caminhando para circulá-la completamente. Kuran segurou minha mão e circulou a base da árvore até avistar uma parte lisa no tronco. Ele sorriu para mim e fez um movimento para que eu me aproximasse.

– Venha aqui! – Disse ele mostrando-me uma marca na casca fina daquela parte da árvore.

– O que é isso? – Perguntei olhando curiosa as pequenas fendas entalhadas nela.

– Uma fechadura! – Ele pegou o colar em meu pescoço e encaixou o pingente de cabeça para baixo nas fendas, girou até que o pingente ficasse de pé. Uma marca brilhante apareceu mostrado uma porta secreta.

– Você me deu a chave da árvore sagrada? – Perguntei olhando-o surpresa, Kuran segurou minha mão e abriu a porta. As folhas da árvore também estavam espalhadas por dentro dela, cobrindo as paredes. Elas acenderam brilhantes como lâmpadas revelando uma mansão totalmente esculpida no interior dela. Não tinha poeira apesar de ter um deserto ao seu redor.

– Tem certeza que ninguém vem aqui a mais de dezenove mil anos? – Perguntei passando os dedos nos móveis fixos, esculpidos da árvore também.

– Tenho, só vim aqui no dia que levei a chave para restaurar, para saber se ainda funcionaria e estava do mesmo jeito! Minha ancestral era uma maga, ela provavelmente lançou uma magia para que a casa se mantivesse sempre limpa, minha mãe costumava fazer o mesmo no quarto de Ericko quando ainda tinha seus poderes.

Andamos pelo salão principal, que além de um salão era uma biblioteca imensa.

– O conhecimento de todos os mundos! – Disse ele passando os olhos pela coleção de livros que enchiam as prateleiras e estantes.

– Quantos livros tem aqui? – Perguntei.

– Todos! – Olhei espantada.

– Não tem como ter todos os livros aqui! – Kuran riu.

– Tem sim, é outro feitiço! Todos os novos livros escritos, em qualquer língua e em qualquer lugar dos mundos, uma cópia simplesmente aparece aqui. O salão principal é cheio pois a biblioteca já não pode mais comportar a quantidade de livros.

– Imagino a quantidade de livros com magias antigas e devastadoras que tem aqui! – Pensei alto.

– Deveria me preocupar com esse seu pensamento? – Kuran me olhava com uma sobrancelha erguida.

– Não! Foi só um pensamento equivocado!

– Venha por aqui então! – Ele me guiou por uma escadaria em espiral, cada degrau esculpido tinha um símbolo diferente, símbolos que brilhavam conforme subíamos pela torre e que faziam mais folhas se acenderem.

Parecia uma eternidade, os degraus pareciam não ter fim.

– Aonde quer chegar? – Perguntei ao passar por várias entradas na torre que levavam a longos corredores escuros cheios de portas.

– À copa! – Disse ele sorrindo.

– A arvore é imensa, Kuran! Iremos passar a madrugada toda subindo! – Falei dando um gemido sofrido, não devíamos estar nem na metade do caminho. Kuran revirou os olhos e se virou para mim, pegando-me no colo.

– Esqueço que você é só uma humana fraquinha, Yinemí! – Disse ele debochando de mim.

– Afinal! O que significa esse nome?

– Alma do gelo. – Disse ele inspirando fundo e subindo no corrimão da escada, fazendo com que me agarrasse com força a ele. Kuran deu um sorriso malicioso e saltou para cima, passando praticamente voando pela espiral da escada e aterrissando suavemente sobre uma base no final dela.

– Por que ela me chamou assim? – Perguntei quando ele me colocou no chão.

– Não sei, Áries deve ter visto algo em você que algumas pessoas não podem ver! – Disse ele abrindo a porta da plataforma. Era um quarto, um quarto quase acima das nuvens, entrei no quarto correndo e andei até o meio dele, ao olhar para cima percebi que os galhos formavam uma trama cheia de triângulos, o quarto era coberto por uma redoma de vidro brilhante.

– Ela tinha um bom gosto extraordinário! – Falei olhando a mobília trabalhada em madeira e veludo, tudo tinha o mesmo perfume amadeirado e cítrico de Kuran.

– Você vive aqui, não é? – Perguntei cerrando os olhos para ele.

– Até gostaria, mas iriam sentir falta de mim no castelo! – Kuran riu, andei até a parte mais baixa da redoma e toquei as mãos no vidro frio.

– É muito bonito!

– Durante o dia dá para ver até o deserto de sal no continente Leste. – Ele se aproximou afastando o cabelo de meu pescoço e o acariciou com as pontas dos dedos, fazendo uma linha até meu ombro, meu coração acelerou.

– Não está com medo de ter vindo comigo para um lugar tão longe, em que ninguém sabe onde você está? – Perguntei virando-me para ele e mordendo os lábios, ele ergueu uma sobrancelha e aquele sorriso malicioso voltou aos seus lábios.

– Na verdade não, com você falando assim fica ainda mais interessante... – o empurrei na direção da cama, derrubando-o sobre ela, não sabia como funcionava as folhas incandescentes da arvore, mas ergui minhas mãos e as fiz diminuir o brilho até se apagarem por completo, o céu sobre nós não estava nublado como estava na ACV, mas estava limpo e brilhante e a lua cheia clareava o quarto mais do que o suficiente. Subi em seu colo e o beijei, sentia uma necessidade de tocá-lo, de sentir seu calor mais perto de mim. Ele me segurou com força enquanto sua língua se enrolava na minha, macia e quente demais, mas não me incomodava com isso, não mais. Kuran tirou minha roupa enquanto me puxava mais para perto, deitando-me sobre a colcha macia de veludo da cama, suave demais sob minha pele, fazendo cócegas em mim. Onde suas mãos tocavam, minha pele ardia, parecia queimar, mas de alguma fora estava gostando daquilo. Não pude conter um sorriso contra sua boca quando ele me tomou, quando nossos corpos se uniram de forma que me fez desejar cada vez mais dele.


Acordei sentindo o calor do sol em minhas costas e o de Kuran em meus braços. Ele estava dormindo profundamente com o rosto encostado em meu pescoço, sua respiração fazia cócegas em minha pele. Olhei em volta, a claridade que entrava pela redoma me incomodou, então movi as pontas dos dedos, fazendo o vidro escurecer, soprei o quarto imaginando ventos gelados também e a temperatura caiu, ficando frio o suficiente para que me enroscasse novamente do corpo dele aproveitando ao máximo seu calor e voltasse a dormir, porém Kuran acordou e eu quis aproveitar sua companhia de outra forma.


Sabia que estava sonhando novamente, porém não era com o templo de fogo, mas sim com minha casa, minha antiga casa. Estava parada na sala empoeirada olhando o retrato de meus pais abraçados no porta-retratos sobre a estante, era uma foto que não existia na verdade, mas não consegui evitar de ir até ela e tocá-la, limpando a poeira sobre ele e observando minha mãe na foto. Não fazia ideia de como era seu rosto, mas algo me dizia que era realmente ela. Minha mãe tinha olhos azuis, tão brilhantes e bonitos como nunca havia visto antes, e longos cabelos loiros dourados, não sei por que não havia puxado quase nada dela só os olhos verde esmeralda, o resto herdei de meu pai, os cabelos negros e lisos de e pele cor de mel. Ouvi um barulho vindo do segundo andar e fui devagar até lá, chegando a tempo de ver Merian de pé dentro de meu quarto, segurando Elister pelos cabelos, quando viu que eu estava olhando, ele deslizou a faca cintilante que segurava no pescoço de Elister, que nem conseguiu reagir, pedir por socorro. Queria gritar, mas não conseguia alcançar Merian, ele pegou o sangue de Elister que havia derramado sobre uma vasilha e jogou em mim, gritando “A culpa por ele estar morto é sua, Yinemí! ”


Olhei em volta, estava no quarto da árvore do fogo ao lado de Kuran, que estava deitado de lado alisando minhas costas com as pontas dos dedos e me olhava com semblante preocupado.

– Você está bem? – Perguntou.

– Hu-hum... só com preguiça mesmo! – Respondi tentando afastar os sonhos. – E você? – Perguntei brincando com seus cabelos soltos e enrolando-os nos dedos.

– Confesso que cansado! – Ele riu.

– Ora, ora! Me chamou de humana fraquinha! Não pareceu isso, não é?

– Acho que você falsificou suas marcas verdes! – Disse ele sorrindo passando a mão sobre uma marca lilás em meu pulso esquerdo. Bati com o travesseiro nele e me levantei, ele havia destruído minhas roupas, então fiz aparecer um jeans e uma camiseta e amarrei os cabelos num coque. Ele estava olhando com curiosidade para mim. – O que vai fazer?

– Tenho que fazer uma coisa... – falei, o sonho havia sido real demais, só queria ir até o hotel de Gih e saber se estava tudo bem com Elister.

– Nike, você está bem mesmo? Te machuquei? – Ele se levantou e se aproximou de mim, levantando meu rosto para poder olhar em meus olhos.

– Não seja bobo! Não é nada com você... Só que eu tive um pressentimento ruim, quero ir até o hotel ver como a Germinia está! – Menti, preferia não mencionar Elister, ele com certeza não entenderia.

– Tudo bem então...

– Ah, vamos! Pare com essa cara! Eu prometo que volto mais tarde, só quero ter certeza de que está tudo bem lá! – Falei quando percebi que ele não tirou os olhos dos meus.

– Amanhã é o encerramento das provas do meio do ano, a festa de cerimônia será na praça central da cidade do Sol, então faça o favor de não chegar tarde aqui, quero estar cedo lá! – Disse ele me beijando.

– Te vejo mais tarde! – Fui até a porta do quarto e dei uma olhada para trás, ele estava sentado na beirada da cama e sorrindo para mim.


14


Aprisionada

 

Saltei para fora da janela, não estava com paciência de descer as escadas até a base da árvore, estalei os dedos e fiz uma águia aparecer sob meus pés, voaria até a cidade do sol rapidamente e veria se Elister estava lá e estava bem, se estivesse tudo certo voltaria até a arvore e ficaria ali com Kuran até amanhã, se não... não queria nem pensar nisso.


Voei por cima dos muros e desci em frente ao hotel, ignorando os protestos dos guardas por causa do meu desrespeito às normas de voar por cima da cidade central. Entrei correndo no hotel procurando por Gih ou Ariel, eles não estavam no saguão nem na cozinha, fui até o quarto de Ariel, para meu alívio ele estava lá sentado lendo um livro na cadeira de balanço.

– Ariel? – Chamei, ele levantou os olhos do livro e me encarou.

– Tudo bem, Nike?

– Onde está Elister e Gih? – Perguntei.

– Gih está dormindo no quarto dela, Elister saiu bem cedo e foi até a Cidade dos Cata-ventos entregar uma das suas espadas que encomendaram! – Quando ele disse isso meu coração acelerou e precisei me segurar na porta para não cair, antes que Ariel perguntasse mais algo, bati as palmas das mãos e me teleportei para a frente de minha casa ignorando a tonteira e o enjoo daquele tipo de magia, não havia ninguém na rua, era realmente um bairro tranquilo, mas costumava haver mais movimento por aqui. Subi as escadas da varanda com cuidado e abri a porta. Nada na cozinha nem na sala, por curiosidade, olhei de soslaio para a estante empoeirada da sala e meu estômago afundou, senti um calafrio percorrer a espinha e um pânico crescente me tomar. A fotografia que vi em meus sonhos, estava sobre a estante, me aproximei com cuidado olhando em volta e peguei o porta-retratos, tirei a foto dele e olhei atrás, procurando por alguma marca ou assinatura, só haviam três iniciais. “V.S.M” Tentei uma infinita combinação de nomes, mas nada se encaixava naquelas três letras.

Meu coração iria saltar para fora das costelas a qualquer momento, tentei ao máximo me conter, pois sabia que quaisquer emoções fortes seriam sentidas por Kuran. Não estava com Siferath, havia deixando-a sobre a cômoda na ACV e minhas adagas de arremesso, Kuran as tirou de mim na noite passada. Subi as escadas evitando os pontos nos degraus que a madeira rangia, no alto do corredor, retirando o enfeite metálico do corrimão havia uma adaga longa de fio reto, soltei o metal com um estalo alto demais para o silêncio absoluto que dominava o ambiente e a tirei, por sorte Merian não conhecia todos os esconderijos de armas, talvez no fundo nunca tenha confiado tanto nele. Girei a adaga na mão, colocando-a estrategicamente em posição apoiada em meu antebraço, qualquer movimento em falso e uma cabeça rolaria. Abri a porta do quarto rapidamente fazendo raios de luz irradiarem de mim para os outros cômodos, não havia ninguém ali. Respirei aliviada ao perceber que havia sido apenas um sonho ruim, por via das dúvidas entrei no quarto de Merian também, ali havia algo diferente, um aroma fora do comum, algo com cheiro enjoativo misturado a uma forte essência de sândalo e murtália branca. Procurei pela fonte do incenso e encontrei embaixo da cama um pequeno cilindro de vidro que emanava o vapor com as essências. O peguei para analisar o conteúdo, só então percebi que minhas mãos estavam dormentes e minha boca havia começado a ficar dormente também! “Shuia” sussurrei sentido agora o que era o cheiro enjoativo junto as essências de flores, no fundo do frasco também havia nitrato de prata. Tinha que sair do quarto, pegar ar fresco antes que meu corpo absorvesse mais desse vapor, além de perder temporariamente meus poderes, ficaria completamente imóvel. Impossível! Merian era ótimo com venenos e paralisantes e tinha ótimo arremesso de adagas, mas não havia ninguém ali!

Virei para sair do quarto cobrindo o rosto com as mãos, mas minhas pernas vacilaram e não consegui forçá-las a andar, acabei caindo com o rosto no chão, até respirar se tornou um esforço absurdo. Uma grande quantidade de Shuia podia matar uma pessoa, mas se fosse o caso, já estaria morta agora.

– Olha só o que eu peguei! – Disse uma voz masculina perto de mim. Ouvi o som das botas de couro batendo contra o assoalho, senti o cheiro se almíscar e limo. Alguém agarrou meu cabelo e levantou minha cabeça, quando meus olhos pousaram sobre seu rosto, um misto de pânico e raiva me invadiu, era Kilua.

– Hey! Merian! Vem ver o que achei aqui! – Gritou ele dando uma gargalhada assustadora, a silhueta de Merian apareceu na porta do quarto, em seu olhar frio e apagado não havia nada além de indiferença.

– Apague-a e traga ela conosco, ele pediu que a levássemos sem nenhum arranhão! – Disse Merian virando o rosto para o lado, queria gritar, chingá-los e levantar para dar uma surra neles, mas não podia me mover, a última coisa que vi foi o assoalho se aproximando rápido demais.


Meus olhos estavam pesados demais, não conseguia abri-los totalmente, minha garganta estava seca e ardia conforme tentava respirar com dificuldade, havia algo escorrendo para dentro de minha boca, não sabia o que era, mas o gosto forte metálico fazia meu estomago se revirar. A mordaça que haviam me colocado tinha um gosto forte e metálico e cheiro de ferrugem. O que estava acontecendo? Tentei olhar em volta, mas a luz ofuscante não permitia que eu visse nada a minha volta, fechei os olhos e devagar fiz uma autoanálise, a dormência da Shuia havia passado e aparentemente tudo estava em ordem, exceto por estar presa a uma maca fria e metálica usando apenas a calça e o bustiê, as correntes de prata que me prendiam, deixaram-me fraca, eu havia deixado o conjunto que Elister me dera na caixinha com a carta de minha mãe, se os estivesse usando poderia me soltar dali e Siferath também não estava comigo.

– Ela está acordada e está em pânico! Isso vai atrair ele e não estou com meus poderes completos ainda, teremos problemas se o guardião aparecer com mais alguém. – Disse a voz que reconheci de meses atrás no campo do lado de fora do templo de fogo. Fairin!

– Temos que quebrar o laço, antes que ele apareça! – Disse a voz de Merian, novamente sem demonstrar nenhuma emoção. O que estava acontecendo, o que iriam fazer? Meus braços estavam esticados e presos a fitas prateadas com a parte de dentro dos braços para cima, virei o rosto para o lado novamente tentando ver o que havia ao meu redor. Uma mesa com uma lâmina longa estava ao lado da maca que estava presa, e um conjunto de barras de vitrino de tamanhos variados também estavam lá, elas tinham a aparência de... ossos!

– Mate-a! – Disse Fairin a Merian. – Faça seu coração parar, três minutos é o suficiente para que o elo seja quebrado!

– Mas e quanto à cerimônia? – Perguntou outra voz na sala que não era a de Kilua.

– Garginus já cuidou disso, ele tem ótimas habilidades com armas, semelhantes as dela! Não ouviu o tumulto hoje cedo? – Fairin gargalhou. – Hoje cedo? Quanto tempo havia se passado desde que fui pega em casa? Meu coração voltou a acelerar e sentia um pânico me tomar cada vez mais intenso, meu estômago se revirou, teria vomitado se não estivesse com a boca coberta. A porta se abriu com violência e vi uma silhueta feminina entrar na sala.

– O cortejo será em três dias! – Disse a outra voz, minha voz em outra pessoa! – O rei está morto, como me pediu! – Ela segurava Siferath nas mãos e a girava brincando com ela.

– Ótimo trabalho, Garginus! Certificou-se que ninguém o seguiu até aqui?

– Ninguém me seguiu. – Respondeu ele olhando-me.

Comecei a gritar e tentar me soltar dos grilhões que me prendiam a mesa. Senti uma mão tocar em meu peito e vi o rosto de Merian, implorei com um olhar, mas ele nem sequer me encarou.

– Relaxe, você não vai sentir nada, mas não posso dizer o mesmo do seu guardião! – Disse ele esboçando um sorriso perverso. Uma pancada, um choque e tudo ao meu redor ficou brilhante, mas começou a se apagar junto com a dor que agora parecia sumir, olhei de relance para minha mão esquerda, onde uma linha fina e vermelha estava presa a meus dedos, era parecida com a linha que envolveu Taures na hora em que ele se foi, a linha que prendia duas almas..., mas a linha estava tão fina, tão esticada e indo para tão longe de mim, que quem quer que estivesse do outro lado dela, não estaria em Ciartes, estaria bem longe dali. Então, tudo na sala escureceu.


Despertei sentindo uma dor lacerante em meus braços, percebi que estava gritando, mas meus gritos eram abafados pela mordaça úmida em minha boca. Além dos grilhões que prendiam minhas pernas, parecia que havia alguém sobre elas, impedindo-me de tentar arrebentar as correntes. Movi a cabeça para o lado, tentando descobrir qual era a fonte daquela dor tão terrível e agonizante, gemi e senti meu estômago embrulhar novamente. Meu braço estava aberto, um longo corte ia desde cima do meu cotovelo até o centro da minha mão, lá o corte se dividia em direção as pontas dos dedos que também estavam abertos, repuxados por finos grampos de metal. Estava rouca de tanto gritar, a dor não podia ser real, eu teria desmaiado com o que estava vendo e sentindo, mas alguém estava segurando minha cabeça murmurando palavras estranhas em um idioma tão antigo quanto as estrelas do céu.

– Precisa mesmo mantê-la acordada? – Perguntou minha voz, vi de canto de olho alguém que usava minha aparência estava me observando, ela tinha gravado em seu rosto uma expressão de horror, parecia tão enjoada quanto eu estava.

– Uma arma tem que ser trabalhada em diversas temperaturas para que seja perfeita, estou apenas moldando a minha, agora fique em silêncio! – murmurou Fairin que estava sobre meu braço esquerdo e segurava uma lâmina afiada, ele a colocou em meu cotovelo, senti uma fisgada na articulação do ombro, estava implorando, pedindo que parasse mas minha voz embolada pelas lágrimas e os gritos não podia ser ouvida, ele desviou o olhar do corte aberto em meu braço e olhou dentro de meus olhos, pude ver a diversão e o prazer que ele tinha com aquilo, logo em seguida ainda me encarando ele apertou a lâmina e a dor foi tão intensa desta vez que tudo se escureceu novamente.

– Não a deixe perder a consciência! – Urrou Fairin para o homem que mantinha minha cabeça presa entre seus dedos.

– Difícil! – Suas vozes estavam distantes, mas podia ver claramente o que estava acontecendo, só que pelos olhos de outra pessoa, pelos olhos de quem estava segurando minha cabeça. A dor havia cessado, mas a angústia de ver meus braços abertos era a mesma. Fairin estava trocando meus ossos por ossos de vitrino! Por que ele estava fazendo aquilo?

– Espero que esteja me ouvindo, Nikella! Tenho uma história para te contar! – Disse Ele rindo, girando uma falange entre os dedos, as mãos ensanguentadas estavam brincando com aquele pedaço de vitrino que tinha longas unhas transparentes, ele a colocou em minha mão, retirando outro osso do lugar e passando o osso de vitrino com cuidado por baixo do tecido, ele arrancou minha unha também para que a garra de vitrino ficasse em seu lugar. – Faz bastante tempo, você ainda era um bebê quando fui preso por uma certa sacerdotisa! Mas mesmo preso, descobri que podia influenciar outras pessoas a fazerem minha vontade, podia dominar suas mentes... – ele riu substituindo mais um osso. – Então eu brinquei com a mente de seu papai, e o fiz enfrentar seu príncipe, o futuro rei de Ciartes... agora não está longe disso acontecer, não é? – Ele deu outra gargalhada, dessa vez acompanhado por o outro eu.

Desgraçado, nojento, eu vou te matar! Gritava por dentro.

– Continuando... fiz você matar seu rei, todos viram a protegida do príncipe Kuran assassinar o rei Hargas e fugir por cima dos muros da cidade do Sol, no mesmo momento que o laço entre você e seu guardião se desfez! Que triste, acho que ele pensa que você o usou!

Covarde, imundo, lixo! Eu juro que vou te matar quando me soltar!

– Ela está lançando uma quantidade enorme de palavrões! – Disse o homem que me segurava dando uma risadinha debochada.

– Fique à vontade minha jovem, quando eu acabar com você, vou controlar sua mente com tanta facilidade que você nem vai lembrar o próprio nome! – Fairin começou a dar pontos e fechar os cortes em meus braços, o sangue pingava no chão, podia escutar o som de cada gota caindo sobre o piso frio e o cheiro da mordaça que cobria minha boca estava me deixando ainda mais enjoada.

– Por que estou fazendo isso? – Ele sacudiu meus braços, escurecidos pelo sangue que estava começando a secar. – Para que você não seja pega! O vitrino neutraliza a prata, assim posso te usar facilmente sem que seu poder seja diminuído por nada! – Por que eu?

– Ela quer saber por quê a escolheu!

– Ah! Isso é obvio, Nikella! Além de você ser minha netinha querida, seu coração é mais afetado pela maldade, você é quase cruel, fria, posso te corromper facilmente, fora que seu poder é grande, maior do que de minha filha, podia usá-la, mas há muito que ela se purificou! Você não! Só mais uma, uma gota de raiva, de dor, de ódio... só mais uma gota e a controlarei completamente! – Disse ele rindo. Em seguida minha mente começou a ficar turva novamente. – Vou te dar uma última palavrinha antes que você acorde a caminho das masmorras do palácio do sol! – Fairin se aproximou do meu rosto e sussurrou ao meu ouvido. – O sangue que escorre para dentro de sua boca, é de seu amigo, Elister! Cortei a garganta dele e estou fazendo você tomar seu sangue, para que suas marcas se tornem como as minhas! – Ele sorriu enquanto eu mordia com força a mordaça tentando rasgá-la. Elister! Tentei me soltar inutilmente enquanto as lágrimas quentes lavavam meu rosto e meu corpo tremia com os soluços, Fairin ergueu algo à minha frente, mostrando-me a cabeça decepada de Elister, seu rosto estava contorcido em dor, o pavor de seus últimos momentos de vida gravados em seus olhos agora sem o brilho.

Eu sinto muito, amigo, a culpa foi minha!


A dor nos braços me acordou, cada junta, cada nervo, cada músculo sob minha pele parecia doer, queimar, tentei me levantar, mas o simples gesto de me levantar usando os braços como apoio me fez morder a boca para suprimir um grito de dor, senti as lágrimas se acumulando nos olhos e caí novamente. Aquele lugar tinha um cheiro estranhamente familiar, forcei meus olhos a se abrirem, a dor de cabeça era tão forte que piscar fazia todo meu corpo doer, estava com medo de mover as mãos, de senti-las. Fiz um esforço sobrenatural para fazer meus dedos se moverem, a dor irradiou por meus braços como se tivesse tomado um choque, mas os forcei anda mais. As cicatrizes que cobriam meus braços eram finas e claras, podiam ser facilmente disfarçadas com maquiagem, Fairin se preocupou bastante em deixa-las quase imperceptíveis. Uma arma foi assim que me chamou, fiquei com medo ao lembrar dele dizendo que me controlaria, analisei o quarto em volta e para minha surpresa ou espanto, estava dentro de meu quarto na ACV.

Sentei sobre a cama, o gosto do sangue de Elister ainda estava em minha boca, não consegui controlar a contração involuntária de meu estômago, corri para o banheiro a tempo de vomitar um liquido escuro misturado com bile. Estava chorando de novo, cobrindo o rosto com as mãos, como me explicaria para Taures quando o visse na outra vida? Como diria que mesmo com todo o treinamento, com toda força e com todo meu poder, não fui capaz de salvar seu filho?

Fiquei olhando para minhas mãos, meus braços pareciam tão leves, e ao mesmo tempo pesados pela dor, vomitei de novo até que não houvesse mais nada em meu estomago e voltei para o quarto, caindo no chão perto da cama.

Eles mataram o rei.


Garginus, era o líder da Vila Nakhlans, uma pequena vila de magos metamorfos poderosos, eles eram temidos por seu poder e artes em combate e viviam naquela pequena vila isolada acima das nuvens. Ele matou o rei, usando minha aparência! Fairin havia quebrado o meu laço com Kuran para conseguir me torturar sem que Kuran percebesse, não, não era só isso! Ele havia feito aquilo por outro motivo! Traição!

Será que Kuran sabia que apenas a morte quebrava um laço como aquele? Ou seria tolo o suficiente para acreditar que ele se quebraria caso algum de nós magoasse o outro. Nesse momento era o que devia estar passando pela sua cabeça.

Ela me traiu.


Estava vestida de forma diferente de quando fui torturada por Fairin, estava usando o uniforme de caça, sujo de sangue, meu uniforme sujo com o sangue do rei, Siferath em meu pescoço também estava suja de sangue, Garginus entrou no meu quarto e a pegou, a usou para matar o rei, sabia que era minha assinatura. Quando tentei me levantar do chão do quarto para limpá-la, para tirar aquela roupa, a porta do quarto se escancarou e seis guardas apareceram, vinham guiados por Kuran e Ericko. Encarei Kuran por um momento, aquilo foi como se alguém tivesse chutado meu estômago, senti o ar escapar de mim ao encarar aqueles olhos vermelhos cheios de ódio e mágoa, não era nem de longe os olhos que me assustaram um dia ou os olhos de quem amei sabe-se lá quantas horas, dias atrás. Suas narinas inflaram quando olhou para mim, o ódio transbordando. Ericko era uma máscara de indiferença, mas podia ver mágoa em seus olhos também.

– Mostre-me suas memórias! – Disse Kuran se aproximando de mim. Não tinha nada a esconder, ele veria a tortura, ouviria a voz de Garginus falando que matara o rei, então deixei que segurasse meu rosto com firmeza, o suficiente para machucar meu queixo. Nada. Ele me soltou, empurrando-me para trás e acenando negativamente para Ericko.

– Se não fez nada errado, por que bloqueia a mente?

– O q...

– Nikella Modjim, você está presa por traição, pelo assassinato do rei, e será condenada a queimar até que seu corpo seja consumido pelas chamas. – A voz de Ericko, dura, fria me atingiu como se algo tivesse partido dentro de mim, queria falar, queria dizer que não fui eu, dar o nome do verdadeiro culpado, mas as provas estavam sobre meu corpo.

– Por que raios... eu ficaria aqui, voltaria para a ACV depois de matar o rei? – Falei com a voz falhando, aquelas palavras podiam ser minha condenação.

– Levem-na! – Disse Kuran ainda me encarando com os olhos repletos de ódio, ele segurava a espada, a espada que eu fiz para ele, apontava-a para meu pescoço. Não resisti enquanto os guardas me prendiam com grilhões pesados de prata, prata que não faria a mínima diferença, agora que eu tinha vitrino dentro de mim, senti um sorriso malicioso se formar em meus lábios e congelei. Era Fairin, tentando dominar minha mente, e o primeiro pensamento que tive foi de matar todos eles e fugir. Matar Kuran! Aquele único pensamento fez meu corpo tremer, o pavor que senti, nunca, jamais poderia machucá-lo. Desejei ter morrido naquela mesa quando Merian fez meu coração parar. Seria apenas uma arma nas mãos de Fairin agora? Era a mais simples e pura verdade, qualquer um que você ama, pode ser usado contra você. Elister.


Fui arrastada para as masmorras do castelo do Sol. Kuran abriu a cela e me jogou para dentro, derrubando-me no chão. Apoiei as mãos no chão sentindo a dor, o choque novamente quando minhas palmas bateram no chão frio e úmido. Ele fechou as grades da cela atrás de mim, mas não saiu dali, estava esperando que eu o encarasse novamente, porém o medo de perder o controle sobre minha mente era tão grande, que queria evitar até respirar.

– Olhe para mim! – Gritou ele. Com muito, muito esforço virei para trás e encarei seus olhos vermelhos. – Como você pode? – Ele cuspiu as palavras.

– Não fiz nada.

– Como teve a coragem de me usar assim? Ficar comigo para se aproximar deles, ter a confiança deles e depois nos trair dessa forma, porque!? – Ele gritava as palavras, tão alto que ecoava nas paredes de pedra imundas dos calabouços.

– Não fiz isso.

– Pare de mentir! – Berrou segurando mais firme a espada. – Você me traiu, mentiu para mim, me usou! Você só queria concluir aquele seu plano, não é? Vingar seus pais! Não matou Ericko, matou meu pai! O atacou pelas costas! Covarde! – Kuran estava enfurecido.

– Kuran... – ele ergueu a mão para que eu não continuasse.

– Vossa alteza, para você! – Ele me encarou um momento antes de se virar para sair. – Eu te amei de verdade sabe... quando minha mãe deu a Ericko a missão de matar você, pois tinha pressentimento que você um dia se vingaria por seus pais, eu o impedi, briguei com eles e pedi para que confiassem em mim. No fim, você é apenas um monstro, Yinemí! Como Aries a chamou. Se soubesse que tipo de pessoa você era, nunca a teria tocado, apenas uma humana inferior e rancorosa! – Ele esfregou os braços como se tentasse se limpar.

– Por favor! – Senti minha garganta e meu coração se apertarem.

– Jamais te perdoarei por isso! – Ele voltou até a grade onde eu estava a segurando, tentando de alguma maneira alcançá-lo. Ele segurou minha roupa através da grande, só havia raiva naqueles olhos cor de sangue. – Pode ter certeza, quando forem te colocar na fogueira, farei questão de acender a pira. Vou te fazer queimar de verdade! – Fiquei congelada no lugar sem acreditar que aquelas palavras saíram dele. Kuran entrelaçou os dedos em meu cabelo fazendo meu pescoço arquear para trás e tirou Siferath de meu pescoço com um puxão, desaparecendo pela entrada da cela.

Vou te fazer queimar.

Não pude evitar gritar, o choro subiu a garganta apertada. Sentia o ódio fervilhar em minhas veias. Eu vou acabar com você, Fairin, nem que seja a última coisa que eu faça!

“Tem certeza? Acho que consigo que você acabe com todos por mim primeiro!” – A voz dele veio em minha mente com uma resposta, fazendo meu corpo congelar, não moveria um músculo, não respiraria, mas ele não tomaria o controle sobre mim.


Não fazia ideia de quantas horas se passaram, estava com febre, meu corpo todo doía e minha garganta estava seca. A imagem da cabeça de Elister nas mãos de Fairin não saia de minha cabeça, o que ele havia feito com meu pai, para corrompe-lo e colocá-lo contra Ericko.

Durante duas vezes, Annie tentou se aproximar, me chamou, tentou falar comigo com a voz chorosa, podia ouvir as lágrimas escorrendo pelo seu rosto delicado, sentia a presença de Susano também, mas ele ficara em silêncio, sabia o que devia estar pensando de mim, Assassina. Não queria vê-los, não queria que estivessem ali, senti medo das palavras de Fairin em minha cabeça, por fim, eles saíram, me deixando ali sozinha novamente.

A comida chegou no final da noite, mais uma bandeja no canto da cela, pela quantidade delas, podia supor que estava ali há pelo menos três dias, não estava fazendo greve de fome ou algo assim, teria comido se não tivessem me trazendo aquelas comidas frias e horrorosas de Salamandras.

Ouvi o canto melodioso e suave dos sacerdotes quando o sol se pôs, o cortejo havia começado, aquele canto doce me trouxe um nó na garganta e eu quase me sentia culpada por aquilo também. Um modo de afetar as pessoas que amo, de me transformar na arma que Fairin queria, ele só queria me destruir para que eu fosse consumida e logo em seguida, destruísse tudo para ele.


Talvez mais um dia, ou dois. Estava ali há muito tempo, ou pouco. Ericko voltou seguido pelo chefe da guarda, os dois com armas em punho como se soubessem a ameaça que eu representava naquele momento. Ericko olhou para as bandejas de comida intocada no canto da cela e franziu o cenho.

– O que fez com Misty? – Perguntou ele sem olhar para mim.

– Do que está falando? – Minha voz estrava rouca, distorcida pelo tempo sem tomar nenhum gole de água.

– Ela a seguiu depois que você matou o rei, saltou sobre os muros e começou a te perseguir, conte-me o que fez com ela! – Senti uma pontada de esperança, Misty era uma predadora, uma caçadora nata e nunca perderia um alvo!

– Não matei o rei, não estava fugindo dela, não sei o que aconteceu!

– Nós confiávamos em você...

– Não traí ninguém, droga! Confie em mim, por favor! – Gritei batendo nas grades com tanta força que o aço de algumas grades se partiu e desabaram, Ericko olhou assustado dando alguns passos para trás.

– O que foi isso? – Ele chiou. – Não pode ter essa força, não com prata a prendendo! – Ele viu as grandes garras de vitrino azulado no lugar que deveriam estar minhas unhas e as marcas escuras que as circulavam, seus olhos percorreram as cicatrizes em meus braços. Ele estendeu a mão, baixando a espada, entendi seu gesto e ofereci o braço a ele, ele percorreu as marcas com as pontas dos dedos e olhou apavorado para mim.

– Estava ganhando elas quando o rei foi morto, sinto muito, mas é a verdade que tenho a lhe oferecer. – Falei puxando os braços e sentando no fundo da sela novamente, escondida pelas sombras, o horror estava gravado em seus olhos.

– Como sabe a hora que o rei morreu então? Você estava... acordada quando aconteceu? – Ele perguntou engasgando nas próprias palavras, senti um sorriso maldoso surgir em meus lábios.

– Um mago manteve minha mente em alerta enquanto ele separava meus ossos das juntas e os retirava... – falei tossindo e suspirando. O rosto de Ericko havia ficado branco, completamente branco. – Ele fez meu coração parar para que o laço fosse rompido.

– Eu... – ele continuava me encarando com os olhos vidrados.

– Sinto muito por seu pai. Queria estar solta para ter participado do cortejo, eu queria muito poder estar lá na hora que aconteceu, com certeza eu o teria protegido...

Um estardalhaço fez o contato visual se quebrar, gritos e urros vinham das escadas que levavam a masmorra.

– Já mandei me soltar, vadia dos infernos! – Berrou a voz terrivelmente familiar de Garginus e um frio correu em minha espinha.

– Cale a boca, metamorfo de merda ou vou fazer você engolir essas porcarias que você acha que são dentes! – Era Misty, ela entrou na masmorra arrastando Garginus acorrentado e o atirou aos pés do príncipe, que se sobressaltou dando um passo para longe do metamorfo.

– O segui até uma casa abandonada na vila dos lobos, ele ainda usava a forma de Nikella quando cheguei, mas não consegui entrar na casa por conta de uma barreira espiritual! Não consegui resgatar a Nike de lá, um dos homens que estava dentro da casa correu para fora com ela no colo e desapareceu, o outro virou uma bola de luz dourada e sumiu também! – Disse ela com a voz ríspida chutando o metamorfo ao chão. – O segui quando ele mudou de aparência por um bom tempo até que ele parou no prédio do conselho da Cidade dos Cata-ventos e invadi uma reunião dos Hostes. Ao que parece, por Nikella ter se recusado a participar de uma reunião, por se recusar a entrar no grupo deles, eles decidiram usar a aparência dela para matar o rei! Assim se livrariam dele e da traidora ao mesmo tempo! Capturei esse aqui em uma dessas reuniões! – Misty tinha um sorriso sádico quando pisou no rosto de Garginus caído aos pés dela, quando estava em sua forma verdadeira ela era ainda mais assustadora e impressionante do que me lembrava. Os cabelos pareciam ter criado vida própria e a pele reluzia mesmo na escuridão dos calabouços.

– Acredita em mim agora? – Perguntei com a voz rouca. Misty passou os olhos de Ericko para mim e rosnou alto.

– Tire ela dali, agora! – Gritou Misty para ele, só ela mesmo para falar com tanta autoridade com o novo rei. Ericko se endireitou e abriu as grades partidas, deixando que eu saísse. Misty me abraçou forte quando cambaleei para fora da cela até ela.

– Obrigada... – falei com a voz rouca dando um soluço. Ela afagou minhas costas carinhosamente.

– Como... como você ainda está no controle? – Garginus olhava assustado para mim. – Era para sua mente ser dele agora!

– Ninguém domina minha mente! – Retruquei.


O chefe da guarda prendeu Garginus em uma cela que ainda estava inteira e depois saíram dos calabouços, levando-me com eles.

Ericko mandou que chamassem uma criada para me levar a um dos quartos de hospedes, Misty me acompanhou até lá, ela não parecia querer me deixar sozinha de forma alguma.

Percorremos os corredores do castelo até uma grande porta de madeira trabalhada com belos desenhos de flores, a criada abriu a porta nos dando passagem e se retirou. Misty segurou minhas mãos com uma delicadeza sem tamanho, como se soubesse a dor que eu ainda sentia neles. Ela me levou até o banheiro do quarto e ligou a água quente, a banheira chiou conforme a água a preenchia. Tirei as roupas ainda sujas de sangue seco e as joguei num canto e entrei na água, as cicatrizes arderam, mesmo já curadas, porém meus braços doeram ainda mais e tive que conter um grito quando a agua quente tocou em meus braços.

– Calma, calma! – Disse ela segurando meus braços em baixo da água. – Vai passar! – Solucei segurando os braços com força embaixo d’água. Aos poucos a dor foi cedendo, até que não passava de algumas fisgadas suportáveis, esfreguei o corpo com a esponja até que a senti esfolada, ardendo.

– Mestra Misty.

– Eu vi tudo... – ela suspirou ajudando-me a me levantar e sair da banheira. – Vi tudo e não pude fazer nada para te ajudar! Havia uma barreira espiritual em volta da casa e não consegui quebrá-la, ela só se desfez quando os ouvi falando que iam te deixar na academia para ser pega. Não fui atrás de você pois queria captura-lo, provar que você era inocente.

– Não tenho palavras para te agradecer. – Falei num sussurro. Usar meus poderes agora era tão fácil e simples como respirar, parecia que a resistência de Ciartes à magia havia sumido completamente para mim. Fiz aparecer uma camisola preta, fina e curta, o calor do castelo era pior do que em qualquer outro lugar em Ciartes.

– Fique aqui, durma um pouco, descanse enquanto falo com Ericko! Vossa alteza... – disse ela com certo sarcasmo na voz. – Deve assumir o trono em algumas horas, então temos que fazer algo a respeito dos rebeldes.

– E quanto a Fairin?

– Veremos com a Sacerdotisa das águas. Até onde sei, ela tem planos para ele. – Misty beijou minha testa e saiu do quarto, deixando-me ali para que pudesse descansar.

Coloquei a cabeça sobre os travesseiros, estava exausta, com fome, e muito, muito infeliz.

Vou te queimar de verdade.


Acordei fazendo uma adaga surgir na minha mão e a parei a centímetros do seu rosto, ele estava sentado na lateral da cama olhando para mim, o ódio nos olhos havia sumido, havia sido substituído por remorso, culpa.

– Nike...

– O que deseja, vossa alteza! – Vi o lampejo de dor em seus olhos.

– Eu sinto...

– Não se atreva a dizer que sente muito, já que nem deixou eu me explicar!

– Ela nos contou o que houve. – Ele pegou meu braço e o virou para cima, olhando as marcas finas rosadas. – Se eu tivesse ido com você naquela hora... – antes que ele pudesse terminar a frase, escutei uma gargalhada em minha mente “seria o sangue dele descendo pela sua garganta naquela hora, junto com o de Elister! ” Aquela pequena frase dita por Fairin num canto escuro da minha mente fez minha pele gelar. Soltei as mãos de Kuran dos meus braços e o empurrei para longe.

– Nunca, nunca mais toque em mim! – Falei soltando um rosnado. Kuran arregalou os olhos, mas não se afastou.

– Nike...

– É Yinemí, para você! – Falei movendo as mãos, um forte vento entrou pelas janelas e o arrastou para fora do quarto, batendo a porta com força, tão perto que por mais um milímetro teria quebrado seu nariz perfeito. Uma raiva incontrolável estava agarrada em mim, fiz um esforço para me controlar.

– Minha mente! – Falei alto, como se quisesse que aquelas palavras me ajudassem a me controlar. Olhei as marcas acesas em meus braços, estavam num tom de vinho e não lilás como antes. – Estou ouvindo sua respiração, Vossa Alteza! Quero Siferath de volta antes do amanhecer! – Gritei, ouvi um suspiro pesado e vi os passos se afastando por debaixo da porta.

As lágrimas desceram silenciosas por meu rosto, não conseguia perdoá-lo por dizer que iria me queimar viva, ou por não acreditar em mim, “seria o sangue dele descendo pela sua garganta naquela hora, junto com o de Elister!” Isso foi o suficiente para saber que nunca, nunca mais devia chegar perto dele, o laço que o unia a mim fora quebrado e não tinha nenhuma intenção de ter outro, não quando poderia colocar sua vida em risco, enquanto Fairin estaria em minha mente tentando destruir o meu mundo.


Acordei de manhã e olhei para o lado, sobre a mesa de canto estava o colar-chave que Kuran havia me dado de presente ao lado de Siferath e um pequeno bilhete escrito “Sinto muito”. Prendi o Siferath junto ao pingente da árvore, por mais que quisesse não consegui deixa-lo ali.

– Vai sentir muito mais! – Disse uma voz que não era a minha saindo por meus lábios. O pânico me tomou novamente, você não vai me controlar! Troquei de roupa rapidamente, vestindo um longo vestido preto de seda, com um bordado em contas de vidro, o decote nas costas me incomodou mas sabia que meu cabelo o cobriria, mas mangas longas e abertas nas barras davam a impressão de que eu estava vestindo as asas de alguém. Sabia que devia ser coisa de Annie aquele vestido, mas estava sem forças para discutir sobre o assunto caso encontrasse com ela, e ele combinava com o luto por Elister.

Não sabia como iria contar isso para Gih ou para Ariel, mas sabia que uma hora ou outra eles saberiam e seria melhor se soubessem por mim.

Sai da ala dos quartos, andando em direção à sacada que ficava de frente para o jardim central, me apoiei nas grades douradas e fiquei olhando para baixo, apenas olhando sem fixar meu olhar em nada, na verdade.

Sheriah, a rainha apareceu no centro do jardim, ela andou até uma das arvores desfolhadas e sem aviso, ajoelhou-se diante dela, colocando uma pequena folha vermelha em sua raiz. Algo incrível aconteceu, as mãos da rainha brilharam, e as arvores que estavam desfolhadas se encheram de folhas vermelhas e pequenas flores brancas com um perfume tão suave que me fez querer ir até ela.

Saltei da sacada em direção as árvores, aterrissando no galho e quase perdendo o fôlego quando tive que usar as mãos para me segurar num galho, depois saltei até o chão, ficando alguns passos atrás da rainha.

– Sabia que eu o odiava? – Disse ela para mim, havia um meio sorriso em seu rosto. – Nós nos conhecemos em um jantar político realizado por meu pai, ele queria que eu conhecesse o meu pretendente. Odiei Hargas na hora que o vi, era tão irritante, exibicionista e metido a galã, todas as moças da corte estavam jogando charme para ele, quando ele veio falar comigo, como se já me conhecesse, como se eu fosse sua propriedade, eu lhe dei alguns foras, ele insistiu na grosseria, então usei magia e lhe dei um tapa tão forte no rosto, que demorou alguns dias para a marca finalmente desaparecer! – Ela deu uma risadinha.

– O que houve depois?

– Ele me procurou novamente, me pediu desculpas e se foi. Não o vi depois disso por muito tempo, então resolvi procurá-lo para me desculpar também, vim até o castelo e o encontrei aqui, na frente dessa arvore, ele estava com um livro na mão, meu livro favorito! Então sentei para conversar com ele sobre o livro. Acabei nunca mais voltando para casa... Ele nunca foi mau, era um rei generoso, mantinha a ordem acima de tudo, mas era um bom Salamandra, comparado aos tiranos de nossa raça.

– Eu sinto muito, muito mesmo rainha. Teria feito tudo para impedir se estivesse aqui! – Falei com sinceridade.

– Eu sei... – ela virou o rosto para me olhar, seus olhos estavam tristes, mas ainda assim conseguia sorrir. Ela pegou minhas mãos e as virou para cima, olhando as onde estavam escondidas as marcas dos cortes pelas mangas folgadas do vestido, olhou para minhas garras de vitrino e o sorriso sumiu. Ericko apareceu pouco depois, olhando admirado para as arvores cobertas de folhas vermelhas e alaranjadas.

– Nikella, gostaria de falar com você, tem um minuto? – Ele pediu, assenti, a rainha nos olhou e saiu do jardim em direção à sala do trono.

– O que quer? – Perguntei olhando-o com cautela.

– Você venceu minha aposta, ainda está em tempo de reivindicar o prêmio se quiser.

– Não sei se quero mais ficar perto do palácio.

– Meu irmão sempre foi um idiota, ele não sabe ficar de boca fechada e sempre diz o que vem à cabeça na hora que quer, bem mimado e acostumado a ter tudo!

– Já percebi isso.

– Ele está furioso porque você não aceitou o pedido de desculpas dele.

– Ele disse que ia me queimar viva. – Ericko deu uma risada contida, mas divertida.

– Eu sei, ele me disse, na mesma hora eu perguntei o que ele faria se você não fosse a verdadeira culpada...

– Sinceramente, não quero saber, não aceito muito bem que as pessoas não confiem em mim.

– Então está com raiva de mim também?

– Não exatamente, você estava cumprindo seu dever, já ele... depois de tudo, poderia ao menos ter deixado que eu tentasse explicar, ele nem sequer olhou para as minhas mãos. – Falei olhando as garras, apesar de perigosas, elas eram até bonitas.

– Vai aceitar ser a capitã da guarda?

– Não sei se é uma boa ideia. Afinal, foi o meu rosto que as pessoas viram quando assassinaram o rei, isso não pegaria bem para você, Ericko! – Só conseguia pensar na voz de Fairin em minha cabeça, no que aconteceria se eu ficasse ali, tão perto deles, tão perto de Asahi e Nyumun, de Kuran, estaria colocando a vida de todos em risco caso ele me controlasse.

– Pode deixar que isso vai ser corrigido. Mas pense bem, vai poder ficar por perto e torturar psicologicamente Kuran... – disse ele me olhando de lado, acabei rindo da sua tentativa de me animar, ele tinha perdido o pai e eu que precisava ser animada.

– Vou aceitar então! – Ericko sorriu, um sorriso tão bonito, quente e amigável. – Quando será a cerimônia de coroação?

– Amanhã à noite. – Disse ele ficando sério novamente. – Logo após, enviaremos os caçadores atrás dos líderes hostes...

– Eles serão executados? – Sentia meu estômago embrulhar, por mais que soubesse que mereciam, que queriam me usar e no fim eles cumpriram um de seus objetivos.

– Serão julgados e pagarão por seus crimes, mas só irei executar o que matou meu pai. – Vi uma chama em seus olhos azuis.

– Vai ser um ótimo rei! – Toquei gentilmente em seu ombro e ele sorriu.

– Obrigada, Capitã! – Disse ele estendendo um broche dourado em formato de um sol.

– Quanto a isso, eu não acabei a ACV...

– Não precisa, você já provou para todos nós do que é capaz, Nikella Arbarus. – Ergui uma sobrancelha e bufei.

– Quero terminar mesmo assim, ou vão pensar que ganhei alguma vantagem por causa de seu irmão, e vou odiar se pensarem isso!

– Então vou pedir ao Capitão Claus que te ensine o que precisa para substituí-lo quando chegar a hora! – Estendi o broche de volta para ele, mas ele fechou minha mão sobre o objeto. – É seu, guarde-o como um incentivo. – Assenti e coloquei o broche dourado no bolso, estava prestes a sair quando ele segurou minha mão e sorriu discretamente.

– Se não fosse a Karin, se não a tivesse escolhido primeiro, eu certamente escolheria você! – Disse ele soltando-me, depois se afastou devagar para encontrar com Karin, que vinha pela pequena trilha até o centro do jardim e admirava o que Sheriah tinha feito ali. Karin era realmente linda, muito parecida com Leona mas parecia ser mais séria que ela. Sai do jardim para ir até o hotel, precisava falar com Gih o mais cedo possível, era algo difícil, mas que teria que fazer eu mesma, não sabia como, mas teria que falar.
Misty vinha ao meu encontro quando estava saindo do castelo, ela estava com um ar sério embora parecesse se divertir com algo.

– Estava indo falar com você! – Disse ela ao se aproximar.

– O que houve?

– Fui falar com Ariel e Germinia sobre Elister.

–Você o quê? – Quase gritei.

– Calma, Nikella! Eu não queria que você falasse a verdade, eles não precisavam saber sobre isso dessa forma e sabia que você não mentiria para eles. – Ela suspirou. – Contei para eles que Elister sofreu um acidente com Lobisomens quando voltava da Cidade dos Cata-ventos, seria menos triste do que ouvir que ele foi morto para transformar a garota que ele amava num monstro. – Disse ela olhando fixamente dentro dos meus olhos, senti o ar sair de mim como se tivesse levado um soco no estômago.

– Do que está falando? – Perguntei com a voz tão baixa que mal pude ouvir, Misty me levou para um dos bancos da praça e sentou-se ao meu lado.

– Você não sabia dos sentimentos dele por você?

– Não... como a senhora sabia? – A olhei desconfiada.

– Por que eu a vigiava, eu prestei atenção em todos os seus passos, eu estava sempre perto para ter certeza de que quando a hora chegasse, você se tornaria o mostro para meus planos perfeitos! – Ela sussurrou ao meu ouvido, sua respiração fez cocegas em meu pescoço. – Eu te dei esses ossos de vitrino, para que nenhuma prata pudesse a segurar, pudesse me segurar quando eu estivesse brincando com sua mente... – ela riu, olhei devagar para seus olhos amarelos e coloquei os dedos sobre a foice, mas antes que pudesse fazer qualquer movimento, ela espetou uma unha suja de sangue na palma de minha mão e fugiu, transformando-se num pássaro.

“Agradeça pelo meu gesto de bondade, podia ter dito que você o matou, isso foi apenas um presente para minha pequena Nike” soou a voz em minha cabeça, tão alta que parecia um pensamento meu. O pânico me tomou, levantei e corri em direção aos portões, precisava sair de perto do castelo o quanto antes, precisava me afastar de tudo e de todos antes que ele tomasse o controle e começasse a me usar para ir atrás dos guardiões.

Quebrando as regras de teleportar na cidade principal, bati as mãos com força, sentindo o vitrino dar um choque em meus músculos, uma luz vinho me cobriu no momento que fechei os olhos e imaginei o ponto de Ciartes que ninguém pensaria em me procurar.


15


Yinemí: a alma do gelo

 

A subida da montanha se tornava mais difícil a cada passo, quando imaginei um lugar distante em Ciartes, fui teleportada para Gahural, as montanhas do gelo eterno, era o lugar mais distante e mais frio que poderia imaginar. Subi até o meio da montanha até uma fenda de gelo grande o suficiente para morar um Ymir. Pequei Siferath nas mãos e entrei na caverna, procurando por qualquer indício de que podia viver algum monstro ali.

Depois de não ter achado nada demais, apenas alguns pequenos ratos das neves que viviam em um buraco no fundo da caverna, usei meus poderes para fazer aparecer um sofá e me sentei nele, também teleportei meus livros da ACV e fiquei deitada no sofá em silêncio, lendo um livro sobre detecção de venenos.

“Vir para longe não me impede de tomar o controle sobre você”

– Ah cale a boca seu monte de merda! – Bufei.

“Vamos ver... e se eu trouxer alguém até você?”

– Não se atreva, ou eu vou te caçar e vou fazer o que a idiota da sua filha não teve coragem, vou arrancar sua maldita cabeça e jogar no jardim do rei!

Silêncio.

Duvido muito que ele teria sentido algum medo da ameaça de uma menininha com a metade do poder dele, só esperava que ele não fizesse ninguém aparecer aqui. Andei pela caverna novamente, não por achar que tivesse esquecido de olhar algum canto dela, mas por puro nervosismo, não conseguia ficar parada por muito tempo. Ao passar as mãos pelas paredes congeladas, reparei que o frio dali não permitia que eu sentisse dor nos braços, era como se o frio tivesse tirado completamente a dor dos vitrinos em meus braços, então fiz aparecer uma cama de gelo e deitei sobre ela, a sensação do gelo sob meus braços era tão maravilhosa que me deu vontade de chorar, embora o resto do meu corpo doesse com o frio, os braços não me incomodavam mais.


Os sóis já haviam desaparecido quando acordei sobre a cama de gelo, me estiquei e estalei os dedos encolhendo-me com a dor que o simples movimento costumeiro causou em minhas mãos. A caverna estava tomada pela luz da lua das fadas, linda brilhante e gigantesca no céu, parecia que estava me cumprimentando, um “oi” solitário de alguém que também estava só no céu escuro. Olhei ao longe as luzes da cidade Frezion, na base da montanha, uma cidade bem pequena onde haviam menos de dois mil habitantes Malvarmos. Passei por eles mais cedo sem chamar atenção, pois a montanha era deles, protegida e sagrada e ninguém podia subir até aqui, não pareciam ser um povo pacífico, eles tinham longas presas brancas e brilhantes e olhos negros, suas peles brancas podiam facilmente os camuflar na neve e as garras afiadas podiam rasgar animais de grande porte com facilidade, se tivesse os visto de perto antes duvido que sentiria o mesmo medo dos sereianos e salamandras. Mesmo assim, dei um sorriso malicioso ao lembrar de como foi fácil passar pelos guardas.

– Se escondendo tão longe de casa! – Disse uma voz atrás de mim, tão clara, tão linda que fez meu coração saltar.

– O que está fazendo aqui, Kuran? – Perguntei tentando fazer minha voz soar mais desinteressada possível.

– Você sumiu, Misty disse que você veio para cá! – Disse ele dando um passo mais para perto. Uma gargalhada baixa soou em minha mente “só mais um pouquinho, vai ser a primeira maga negra na linhagem dos guardiões, meu brinquedinho particular, vamos nos divertir muito juntos! ” Queria arrancá-lo de minha mente e quebrar aqueles dentes para que nunca mais ousasse sorrir.

– Vá embora agora! – Gritei apontando para a passagem da caverna, não estava gritando apenas com Kuran.

– Nike, por favor... – ele reduziu o espaço entre nós rapidamente, ficando tão próximo que podia sentir o seu cheiro novamente, tive que resistir a vontade de abraçá-lo e dizer que estava tudo bem, que eu não ligava e que podia perdoá-lo, mas sabia que aquilo era só pelo efeito que ele causava em mim, não era o que sentia realmente. “Vou fazer você queimar” Aquelas palavras continuavam em minha mente, me afetaram mais do que qualquer uma dita por ele naquela noite, também não podia arriscar dar o que Fairin queria, muito menos feri-lo.

– Kuran, você não entende! – Falei tentando me afastar, mas ele me segurou pela cintura, girando-me de frente para ele e me beijou, por mais que soubesse que tinha que me afastar eu não consegui. Enrolei meus dedos em seus cabelos sentindo sua língua deslizar sobre meus lábios, ele era tudo que meu corpo pedia, embora seu calor fizesse meus braços doerem muito, ainda assim o abracei com força. Senti meus dedos se contraírem contra seu corpo, como se a qualquer momento fosse enterrar minhas garras em sua pele, não foi um movimento meu.

– Você precisa ir embora, Kuran! – Falei empurrando-o para longe, minhas mãos tremiam. – Ele vai dominar minha mente para tentar matar os guardiões! – Ele me encarou por um momento, parecia nervoso e deu um passo para trás, mas seus olhos se iluminaram quando ele pegou minha mão novamente.

– Você não precisa se isolar, vamos até a sacerdotisa das águas, ela deve saber como tirar o controle dele! – Disse sorrindo e arrumando meu cabelo atrás da orelha.

– Não sei se é boa ideia! – Falei – Não posso me aproximar de Nyumun, não com o risco dele me controlar.

– É boa ideia, assim eu vou ter você de volta. – Disse ele beijando as marcas em minhas mãos, elas doeram ainda mais quando as tocou, mas não tive coragem de puxar as mãos.

– Não custa tentar... – suspirei, era um pensamento egoísta, ele não se importou com a segurança dela, apenas com o que ele queria. Kuran sorriu, uma forte luz laranja nos envolveu e logo em seguida estávamos diante do castelo de Cristal, vários guardas estavam espalhados por ali, alguns vieram ao nosso encontro com armas nas mãos.


– Identifiquem-se. – uma guarda com uma longa espada afiada veio em nossa direção, ela olhava cautelosamente para nós.

– Príncipe Kuran Salomon de Ciartes e Nikella Arbarus, a guardiã de Ciartes – Kuran ficou sério, com a postura de um verdadeiro príncipe.

– Perdão pela grosseria, vossa alteza, mas gostaria de saber de que assuntos deseja tratar aqui, a Sacerdotisa ordenou que ninguém entrasse sem sua autorização! – Disse a Guarda olhando-nos desconfiada.

– Deixa eles entrarem, Nicole! – Nyumun vinha em nossa direção, Siorin parecia assustador perto dela, ele estava com os dentes como agulhas a mostra e segurava as adagas com firmeza.

– Tem algo errado com ela, Nyumun! – Siorin soltou um baixo rosnado, ele parecia estar farejando o ar, como se pudesse sentir algo errado em mim e ficou entre mim e Nyumun.

– Do que está falando? – Era minha voz, mas eu não havia dito aquilo, meu coração disparou.

– Você está com o cheiro diferente... – A guarda Nicole girou a espada na mão e se colocou entre mim e Nyumun também.

– Precisamos da ajuda de Leona e precisa ser rápido! – Disse Kuran apertando meu braço, fazendo outra onda de dor o percorrer. Nyumun o encarou por um momento e mandou que a seguíssemos. A guarda nos seguia sem se afastar e mantinha a espada muito, muito perto de mim, podia quebrar aquela espada com a ponta dos dedos e ainda rasgar a garganta dela... apertei a cabeça, tentando ignorar esses pensamentos terríveis.

Nyumun dispensou a guarda com um gesto de mão, Siorin veio para meu lado e segurou meu outro braço, olhei para os dois e bufei, tentando com mais força manter os pensamentos de como mataria facilmente os dois, bem longe de minha cabeça.

Subimos pelas escadas até uma sala não muito grande no terceiro piso do castelo, uma lareira de pedras estava acesa na parede do fundo e as janelas abertas deixavam uma brisa suave entrar.

– Vou buscar minha mãe, esperem aqui, por favor! – Nyumun saiu da sala, me desvencilhei das mãos dos dois com cautela, mostrando que eu apenas queria me sentar. Fui o mais longe que pude da lareira, o calor estava fazendo meu coração acelerar e meus braços pareciam vibrar.


Leona entrou na sala ao lado do Rei, seguida por Asahi e Nyumun. O rei estava com uma aparência fantástica, parecia um anjo de olhos e cabelos dourados e trazia uma espada perigosa na mão.

– O que aconteceu com ela? – Perguntou Leona se aproximando, olhando as cicatrizes em meus braços, um ódio cresceu dentro de mim, e novamente tive que fazer um esforço monumental para me manter sentada no pequeno sofá, sem saltar no pescoço dela, uma raiva que não pertencia a mim. “Traidora” a voz de Fairin sussurrou dentro de mim. Quando Kuran viu que eu não ia falar, ele contou tudo que Misty viu, detalhando mais do que eu mesma pude ver da maca, Nyumun e Asahi pareciam que iam vomitar a qualquer momento, Leona me olhava com pena e o rei deu um passo mais para perto, percebendo a ameaça ainda maior que eu representava.

– Pode tentar livrar a mente dela? – Perguntou Kuran depois de um bom tempo de silêncio.

– Deixa eu ver suas marcas, Nike? – Ela pediu gentilmente tocando o dedo indicador em minha testa. Marcas vinho se acenderam em meus dois braços e na minha testa. Leona xingou baixinho e sob claros protestos do rei e de Siorin, segurou meu rosto, ela ia tocar minha testa quando uma gargalhada apavorante saiu de mim, fazendo minha pele se arrepiar.

– Foi a coisa mais idiota que você fez, depois de deixar sua mestra sozinha, príncipe! – Minha voz estava se alterando, ficando num tom baixo assustador parecida com um rosnado. – Trazer uma arma como essa para um mundo em que a magia corre tão solta, tão livremente... me deu controle total sobre a mente que ela lutou tanto para conseguir bloquear! – A minha voz estava cada vez mais distante, eu via aquela sala como se assistisse do fundo de um poço. Vi Ewren e Siorin agarrarem meus braços enquanto Leona dava um salto para trás tentando se afastar de mim, Fairin gritava chamando-a de traidora através de mim, tentando alcança-la, Siorin e Ewren faziam força para me imobilizar, mas os arrastei com tanta facilidade que comecei a rir novamente.

“Devolve a minha mente, desgraçado, covarde! ”

“Fica quietinha aí, e assista esse espetáculo!”

– Precisamos das águas da fonte de Holon! Tentem segurá-la aí o máximo que puderem! – Gritou a voz de Leona, distante demais, baixa demais.

Um assobio alto fez meu corpo encolher enquanto um dragão azul de escamas cintilantes aparecia na sacada da sala e num clarão de luz dourada, Leona e ele desapareceram.

Soltei meus braços do aperto de Ewren e Siorin facilmente e corri até a janela para saltar, mas fui impedida por uma lança que acertou meu peito em cheio, jogando-me para trás. Acertei uma prateleira com alguns livros e enfeites de vidro que se partiram e cortaram minha pele, a dor irradiou por todos os lados, mas bufei e levantei num salto pegando Siferath do pescoço e a girando nas mãos. Ouvi um grunhido vindo de Siorin e sorri, ele sabia o quanto ficava mortal com ela nas mãos.

– Nikella! – Era a voz de Kuran – Por favor, controle-se!

– Vai para o inferno, moleque mimado! Você não queria queimá-la quando ordenei que matassem seu papai com a aparência dela? Por que não tenta agora? – Kuran, não sou eu! Asahi e Ewren o olhavam espantados como se perguntassem se ele realmente disse que ia me queimar.

Virei devagar, Nyumun estava de pé atrás de mim, apoiada contra a parede com um olhar assustado. “A primeira guardiã vai me fazer saborear uma vingança...” Saltei na direção dela com as garras a mostra, rasgaria aquele pescoço e então só faltariam onze guardiões e assim poderia receber o poder de Higarath como ele havia prometido que faria e cobriria os doze mundos com sombras. Siorin entrou no caminho, bloqueando meu ataque com suas adagas que partiram quando as acertei, Ewren e Kuran me enrolaram em correntes de prata, mas as destruí com um simples piscar de olhos, o vitrino não deixava que a prata me afetasse mais.

– Eu não vou deixar! Você não vai me dominar! – Gritei com minha própria voz, fazendo meu corpo parar abruptamente e me ajoelhei no chão. Mesmo com os olhos fechados, apertados com força, pude ver o interior da sala, vi a posição que Kuran estava segurando a espada de vitrino que eu havia feito para ele.

– Nike? Pode me escutar? – Perguntou ele aproximando-se devagar.

– Não chegue mais perto, não sei o quanto posso aguantar... – arfei no momento em que ouvi a voz novamente. “Só mais um, e vai ser a arma que eu preciso, sem mais nenhuma resistência!” Não foi minha ordem, não foi o meu desejo quando virei para Kuran e levantei uma mão em sua direção, como se fosse apenas tocá-lo. “Corra!” Eu mal podia ouvir minha voz quando disse isso.

– Confio em você! Sei que não vai me machucar, Nike! – Ele viu o alerta em meus olhos e o ignorou brincando com a própria sorte, queria pedir para que se afastasse, mas estava novamente naquele fundo do poço quando senti o sangue quente espirrar em meu rosto e escorrer por minha mão.


Tudo ficou escuro ao meu redor, um último pensamento obscuro de Fairin pulsou em minha mente, os rostos de Sheriah e Annie.

Ouvi os gritos de Asahi, o choro desesperado que fez minha alma congelar, era apenas eu em meu corpo novamente. Ouvi a voz de Nyumun dando ordens para Asahi, dizendo a ela para curá-lo. Não conseguia, nem queria olhar o que havia acontecido, mas o sangue esfriando em minhas mãos me fez abrir os olhos.

Kuran estava em minha frente no chão, com um rasgo feito por minhas garras do pescoço até o meio do peito e parecia estar sufocando, afogando-se no próprio sangue. O castelo estremeceu quando o vi daquele jeito, quando vi minhas mãos sujas com seu sangue, o cristal brilhante do castelo não passava de um borrão negro em volta de mim.


Ewren e Siorin vieram para cima de mim, não para me prender, mas para me matar, agora eu era a ameaça. Eu queria deixar que me matassem, queria que minha cabeça rolasse pelo chão. Mas não antes de arrancar a cabeça do desgraçado que havia feito aquilo com Kuran, comigo. As espadas desceram na minha direção, mas as parei com as mãos, partindo-as facilmente, e num único movimento os atirei para trás, derrubando-os sobre o sofá.


Sem olhar para traz e com os olhos ardendo entre lágrimas e puro ódio, saltei pela janela e abri um portal no ar, não era um portal lilás ou vinho, era um portal negro. As sombras negras e brilhantes me engoliram quando fui sugada para dentro dele.


Aterrissei diante da árvore do fogo, a raiva dentro de mim era tão grande quanto aquela arvore sagrada, não acreditava que depois disso estava diante dela, diante da porta que levava ao interior daquela arvore gigante, olhando o lugar em que o pingente-chave que Kuran me deu abrira a porta. “Você é minha casa agora”. Marcas negras cobriam meus braços, mãos e provavelmente estavam por todas as partes do meu corpo, eram as marcas do selo sombrio, as marcas dos magos negros. Aquilo enviou ondas de pânico pelo meu corpo, mas não tinha tempo para me preocupar com elas agora.

– Parece que você gosta de destruição tanto quanto eu! – Disse a voz de Fairin um pouco distante de mim, ele vinha andando acompanhado por Merian e Kilua.

– Eu vou te rasgar no meio, seu monte de bosta! – Cuspi no chão e girei Siferath nas mãos.

– Que coisa! Achei que quando se tornasse uma maga negra, teria totalmente o controle sobre você, mas você me expulsou de sua mente no momento em que virou esse monstro, confesso que estou impressionado! – Ele chegava cada vez mais perto, batendo palmas para mim com um sorriso sádico e debochado no rosto.

– Como você pode? Matá-lo para tentar me usar! – Gritei.

– Eu engravidei minha irmã e todas as minhas filhas para ter uma linhagem de sangue puro só para aumentar meu poder, acha que eu não mataria alguém para poder controlar um poder como o seu?

– Você não vale o ar que respira! – Gritei – Se meu poder é tão grande assim, como vem tão tranquilamente até mim? Não está com medo de morrer? – Girei Siferath nas pontas dos dedos, Merian vinha ao lado dele, seus olhos estavam assustados e ele olhava em volta, como se esperasse mais alguém aparecer ali, só então notei que Kilua havia desaparecido.

– Por que sei que você não vai me matar! – Ele bateu palmas, das sombras apareceram dois salamandras, dois guardas reais, eles traziam Annie desacordada e a rainha, ela estava ferida e seus pulsos presos por correntes de prata, o pavor nos olhos dela, vi meu reflexo naqueles olhos vermelhos, as marcas negras em todo meu corpo brilhavam e meus cabelos voavam prateados e selvagens em volta de mim. – Conte agora, conte para sua rainha como você rasgou a garganta do filho dela! – Fairin deu uma gargalhada. O guarda jogou Sheriah no chão de joelhos, ela me encarava incrédula, tentando ver em alguma parte de mim negação sobre o que Fairin havia acabado de dizer, quando desviei o olhar ela começou a chorar. Os guardas que deviam protege-las agora apontavam armas para elas.

– Você... você vai pagar caro por isso, Fairin! – A sensação do poder puro tomando conta de meu corpo foi algo maravilhoso e ao mesmo tempo assustador, passei a mão sobre a lâmina de Siferath e a girei, espirrando sangue para os lados, onde as gotas caíram sombras negras com minha forma apareceram e se moveram em direção as sombras da árvore. Fairin deu um passo para trás, acenando para os guardas, sabia que era um sinal para que as executassem. Me movi mais rápido que as próprias sombras que nos circulavam, com um único e rápido movimento de Siferath, arranquei as cabeças dos dois guardas que as seguravam, fazendo um chafariz de sangue. Fui atingida nas costas por uma magia de Fairin que queimou como fogo, fazendo meus braços doerem ainda mais, ao virar para ele, notei que minhas sombras o seguravam, ele e Merian que tentava se soltar desesperadamente.

Andei até eles lentamente arrastando Siferath no chão, o vitrino fazia uma melodia hipnótica ao ser arrastado no chão árido, pude sentir um sorriso sombrio se formar em meu rosto.

– Eu posso te dar tudo! Te dar todo o poder que quiser, basta me soltar agora! – A voz de Fairin tinha se tornado uma súplica.

– Ora, ora! O Poder de Higarath parece ter te abandonado! – Ele me encarava com olhos cheios de terror, estava mesmo sem os poderes de Higarath. – Você achou que ia me transformar numa maga negra e controlaria minha mente fácil assim? Idiota, imbecil! Ele só queria te usar assim como você queria me usar!

Ele não respondia, apenas me encarava.

– Você... Era meu irmão mais velho! – Falei virando-me para Merian. – Era tudo que eu tinha! A minha única família!

– Você nunca foi nada para mim! Nada mesmo! Eu te odiava, odiava seu poder, fui eu que dei aquela pulseira para que seu pai colocasse em você! Além de ser mais habilidosa, não era justo ter poderes também! – Merian tremia enquanto falava, a raiva brilhava em seus olhos.

– Não vou arrancar a cabeça de um fraco! – Fiz aparecer uma espada em minha mão e entreguei a ele, Fairin estava imobilizado por minhas sombras e não conseguia se mover. Merian pegou a espada e saltou em minha direção, todo sem jeito, sem postura e com a espada frouxa nas mãos, o desarmei e deixei que ele pegasse a espada, de novo e de novo, até a hora que senti as sombras começarem a se encolher, como se fossem desaparecer. Deixei Siferath no chão e com minhas próprias mãos agarrei a espada derrubando-a da mão de Merian e o joguei no chão, cravando as unhas em seu pescoço.

– Tomara que ele acabe com você! Tomara que te transforme numa boneca quando as sombras tomarem conta dos mundos, então eu vou sair de Mogyin e vou vir atrás de você! – Ele estava com a voz rouca, engasgando no próprio sangue.

– Adeus Merian, tomara que Violet te dê uma boa surra quando você chegar lá! – Quebrei seu pescoço com tanta facilidade, como se tivesse quebrado o pescoço de um frango e mesmo sentindo meu estômago embrulhar e algo rasgando dentro de mim, levantei chutando o corpo para o lado e fui até Fairin, que conseguiu se desvencilhar de minhas sobras e veio até mim com a espada erguida, o choque do metal com Siferath fez meus ossos doerem e meus braços cederem. Estava mais fraca, tinha certeza disso, minha energia estava sumindo tão rapidamente quanto havia aparecido e agora estava a ponto de desmaiar, estava tudo escurecendo ao meu redor, mas não podia morrer, não antes de acabar com ele. Sheriah estava segurando Annie, sabia que ela ainda tinha poder e ficar ali podia ser um risco para elas.

– Pegue Annie e vá embora, rápido! – Consegui gritar, ela me olhou de forma estranha, um misto de mágoa e gratidão estava em seus olhos no momento em que uma coluna de fogo as fez sumir dali.

Continuei lutando, tentando me manter de pé, meus golpes estavam cada vez mais fracos e lentos e os de Fairin mais fortes e precisos.

Quando já não conseguia mais enxergar direito, quando comecei a ficar tonta, percebi uma espécie de fio de energia que me conectava a ele. Aquela energia estava tirando meus poderes, os puxando para ele, Fairin usou Siferath para abrir um corte feio em meu ombro.

– Muito desatenta! – Ele me chutou com tanta força que fui atirada de costas na arvore do fogo, minha cabeça ardeu e comecei a enxergar pontos brilhantes em minha frente. Fairin se aproximou rapidamente, eu mal podia vê-lo agora. Ele ergueu Siferath, ia me matar com minha própria arma. Porém alguém entrou entre nós, desarmando-o tirando Siferath de suas mãos e girando uma lança com tanta velocidade que fez minha cabeça doer ainda mais. Ela o golpeou, uma, duas, três vezes. As marcas verdes em seus braços faziam-na parecer uma fada. Ela lutava tão graciosamente, com tanta força e destreza que me fazia parecer um brutamontes atacando quando lutava. Ela o derrubou e atravessou a ponta da lança em seu peito, depois se virou para mim e começou a me curar.

– Karin... – minha voz saiu embolada, arrastada pelo sangue em minha boca.

– Tudo bem, não se preocupe, vai ficar tudo bem agora! – Senti o calor em meu corpo, o corte começou a se fechar rapidamente e a dor estava sumindo. Karin mantinha o foco em mim e não percebeu Fairin se levantando e pegando a lança, tirando-a da ferida que ela havia feito e partindo para cima dela.

– Karin! – Gritei abrindo um escudo em volta de nós que se despedaçou com o ataque dele.

– Vai ser um prazer matar você também! Já que não consegui fazer isso dezoito anos atrás! – Rosnou ele pegando Karin pelos cabelos e a tirando do chão.

– Não toque nela, desgraçado! – Fechei os punhos com força e me movi tão rápido que o mundo ao meu redor se tornou um borrão. Minhas garras se prenderam em sua garganta, algo escorreu de dentro do vitrino, como um veneno, não, como uma energia que pulsava no ritmo das batidas do meu coração. “Por Kuran, por Hargas e por Elister” Então Fairin arregalou os olhos e deu um último suspiro antes de sua pele ficar escura, cristalizar e explodir em milhares de pedaços de vidro, mas não antes de que fizesse algo passar dele para mim.

– Nike! – Karin me observava de boca aberta, ela deu um passo para trás, afastando-se de mim.

– O que... – minha pele estava branca, realmente branca e em meus braços as marcas negras se misturavam com uma espécie de tatuagem como milhares de flocos de neve brancos que subiam em espiral em volta de meus braços até meus cotovelos, cabelos prateados caiam dos lados de meu rosto e o ar condensava em volta de mim quando eu respirava. Depois de alguns instantes olhando meus braços, minha aparência voltou ao normal. Os pedaços que Fairin havia se transformado estavam derretendo, porém uma estranha energia negra saía dele e subia para o céu espalhando-se até que uma escuridão ainda maior tomou conta ambiente.

Uma sombra começou a tomar forma em nossa frente e um homem apareceu, Karin sugou o ar num curto assobio quando o viu, eu simplesmente fiquei de boca aberta olhando-o se aproximar dos cacos que fora Fairin, ele estendeu a mão sobre ele e começou a recolher aquela energia negra. Ele era tão lindo, tão lindo que meu corpo queria se aproximar e minha mente me alertava para correr. Ele tinha a pele cor de cobre, olhos cor de mel, tinha o maxilar forte e desenhado, as maçãs do rosto combinavam com o nariz perfeito e os cabelos castanhos curtos roçavam em seu queixo conforme ele se movia, ele usava uma calça escura que não parecia ser de nenhum tecido de verdade, eram como sombras que o cobriam e o peitoral musculoso exposto mostrava marcas negras, runas antigas tatuadas em todo seu corpo, eram marcas de um selo que começaram a desaparecer conforme ele absorvia a energia de Fairin. “Agora sabia porque Ayrana havia sido enganada, eu também seria! ”

– Tenho muito a te agradecer, Guardiã. Se você não tivesse o matado, eu não teria sido liberto totalmente! – A voz dele era grave e ao mesmo tempo parecia uma sinfonia, Karin agarrou meu braço com força e deu um passo para trás de mim.

– Quem é você? – Arrisquei perguntar, ele deu um sorriso e me encarou com os olhos cheios de maldade, aquele olhar foi um choque tão grande que me fez erguer Siferath e me posicionar para me defender.

– Higarath, o Herdeiro das Sombras, dominador de mundos – disse ele suavemente terminando de absorver a energia de Fairin e respirando fundo como se estivesse aproveitando a sensação do poder que absorvera.

– Herdeiro das sombras? Dominador de mundos? – Dei uma gargalhada debochada. – Me poupe! É só um humano bonitinho que recebeu o poder de uma deusa que foi iludida pela sua aparência e agora se dá títulos, achando que é alguém! – Karin apertou meu braço com mais força. Higarath arqueou as sobrancelhas, divertindo-se com minha provocação ou talvez com minha ousadia.

– Corajosa ou tola demais! Mesmo assim, como forma de agradecimento, não vou te matar agora, vou deixar que viva e viva o suficiente para me ver tomando os mundos! – Ele se aproximou e pegou meu pulso apertando-o de leve, mas lançando um choque em meu corpo fazendo com que eu derrubasse Siferath, o pavor não permitia que eu me movesse, Karin também estava paralisada ao meu lado e seus olhos fixos na criatura a menos de um palmo de nós.

– Você não vai conseguir o que quer! – Falei conseguindo reunir coragem o suficiente para fazer as palavras saírem aos tropeços.

– Quem vai me impedir, você? Não passa de uma humana, mortal, frágil... – ele apertou meu pulso e senti o vitrino esfriar tanto sob minha pele que ouvi um chiado estranho, ele olhou com surpresa soltando minhas mãos rapidamente e se afastando a palma das mãos dele estavam queimadas e a pele começou a soltar, então ele me encarou e fez uma espada negra aparecer em sua mão.

– É melhor não arriscar não é, Yinemí! – Ele girou e brandiu aquela espada negra contra mim, tão rápido que não pude pegar Siferath no chão, mas novamente fui salva por alguém, alguém com pele de fogo e olhos incandescentes.

Higarath saltou quanto a espada de fogo desceu sobre ele e desviou, girando o corpo graciosamente para a esquerda, mas não conseguiu desviar do segundo golpe da espada flamejante, que o partiu ao meio, um guincho agudo e terrível nos fez encolher cobrindo as orelhas, então ele desapareceu no ar poucos segundos depois numa espessa nuvem de fumaça negra. Karin saltou sobre nosso salvador e o apertou, ignorando as brasas que cobriam seu corpo.

– Vocês estão bem? – Era Ericko, ele passou os olhos azuis analisando-a, vendo se ela estava bem, se estava ferida. – Ah, céus Karin! Nunca mais faça isso, por tudo que é mais sagrado, quando for fazer algo doido assim me avise! – Ele segurava os ombros dela com delicadeza, mas ele tremia. Ao ver a forma dele, a forma verdadeira, me lembrei de Kuran, de como toquei nele assim uma vez sem me queimar, o mesmo Kuran que havia matado algumas horas atrás e agora nunca mais veria.

– Será que ele realmente morreu? – Ericko olhava a fumaça negra se espalhando.

– Ele estava sem os poderes... o lacre ainda estava desaparecendo, talvez sim, talvez não! – Karin respondeu apertando-o ainda mais.

– Nikella... – Ericko olhou para mim, escorreguei pela casca da arvore do fogo, abrindo ainda mais os cortes em minhas costas, mas ignorando completamente aquela dor, pois a que estava em meu peito agora era bem maior.

– Eu sinto muito, Ericko, sinto muito mesmo! Por favor, peça a sua mãe que me perdoe um dia! Mas diga que consegui me vingar, que consegui matar o monstro que tomou conta de mim algumas horas atrás! – Falei entre soluços.

– Do que está falando? – Perguntou ele franzindo o cenho.

Apertei a chave da árvore que estava no bolso de minha calça até agora, não queria entrega-la, era a única coisa que restou dele para mim. Eles ainda não sabiam sobre o que havia acontecido, Sheriah deve ter dito que eu estava no deserto na base da arvore do fogo lutando com Fairin, mas não disse que eu havia matado Kuran no castelo de cristal após ele me levar lá para tentar livrar minha mente de Fairin.

Me levantei com dificuldade e andei até Karin, segurei o rosto dela e toquei meus lábios nos seus, assoprando para ela meus poderes, lhe passei todo meu poder então toquei minha testa na sua, sentindo um pulso de energia escorregar de mim para ela.

– Por quê? – Ela perguntou depois que se afastou de mim.

– Não tem motivo para eu ter esses poderes, se eu nem consegui proteger quem eu amava de mim mesma. – As lágrimas escorriam pelo meu rosto.

– O que você fez? – Ericko agora estava bufando, olhando para mim assustado.

– Eu matei seu irmão. – Minhas mãos ainda estavam sujas do sangue dele e de Merian. – Não peço que me perdoe e se quiser me matar, tudo bem! – Falei caindo de joelhos em sua frente.

– Nike... – Karin tocou em meu ombro, mas Ericko a puxou de perto de mim como se eu fosse um monstro, como se realmente pudesse machucá-la.

– Vá embora, Nike! Saia de Ciartes e nunca mais volte... – a voz dele saiu fraca, trêmula, olhei para ele que ainda estava me encarando, havia mais que tristeza naquele olhar. Talvez pudesse sentir minha própria dor. Me levantei e de dentro do bolso tirei o broche em formato de sol, ele parecia brilhar menos agora, peguei a mão de Ericko e o coloquei ali.

– Eu teria sido muito feliz, adoraria entrar por aquela sala do trono, ver você e seu irmão lá, ver o novo rei e a nova rainha de Ciartes. – Olhei para Karin que estava chorando silenciosamente. – Teria sido divertido ser a capitã da guarda e ainda ter meus melhores amigos comigo! – Falei.

– Eu sei, mas o que está feito, está feito e agora isso não volta mais!

– Adeus...

Ericko fez um rápido aceno com a cabeça, então Karin me deu um Adeus silencioso e os fez sumir numa coluna de luz verde e brilhante.

Encostei a cabeça na árvore do fogo, sentindo seu cheiro e seu calor pela última vez, vendo suas cores pela última vez.

– Adeus, minha casa! – então sorri e acertei a árvore com Siferath, uma forte luz a cobriu e ela ficou branca de repente, coberta por uma névoa densa e clara, as cores da árvore mudaram, o tronco amarelado ficou branco com pequenas manchas acinzentadas e as folhas tornaram-se prateadas e azuis, acima da árvore uma nuvem cinzenta começou a se espalhar então começou a chover, uma chuva gelada e tranquilizante por cima de toda a área que os olhos pudessem alcançar, a imagem de Kuran de braços abertos na chuva voltou a minha mente e um nó subiu a minha garganta, as marcas negras, o selo sombrio em meu corpo agora estavam quase apagadas. Usei a última gota do poder que havia restado, que não passei para Karin e fiz o círculo em volta de mim, entregando-me para aquelas sobras escuras que abriram um caminho para outro lugar e finalmente dei adeus a esse mundo.

 

 

                                                   Emilly Amite         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades