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Capítulo 32
PARIS
Rebecca Wells estava a viver em Montparnasse, num prédio de apartamentos desinteressante a poucos quarteirões do terminal ferroviário. Desde que fugira de Norfolk, tinha passado a maior parte do tempo no apartamento horroroso, a olhar para programas de televisão franceses que não conseguia compreender. Às vezes, ouvia notícias do seu país na rádio. A brigada tinha sido esmagada e a culpa era dela.
Precisava de sair. Levantou-se do sofá e foi até à janela. Cinzento, como de costume: frio, desolador. Até o Ulster era melhor do que Paris em Março. Foi à casa de banho e olhou para o espelho. Uma desconhecida retribuiu-lhe o olhar. O seu esplêndido cabelo preto tinha sido destruído pelo peróxido que utilizara em Norwich para o oxigenar. Tinha a pele amarela da falta de ar e dos cigarros em demasia. A pele debaixo dos olhos parecia ter nódoas negras.
Vestiu um casaco de cabedal e parou à entrada do quarto, ouvindo o som metálico de halteres. Bateu à porta e o barulho parou. Ro-derick Campbell abriu a porta e ficou ali à sua frente, sem camisa e com o corpo esguio a brilhar do suor. Campbell era um escocês que tinha servido no exército britânico e que, a seguir, oferecera os seus serviços como mercenário e traficante de armas em África e na América do Sul. Tinha cabelo preto cortado à escovinha, uma pêra e tatuagens no peito e nos braços. Estava uma prostituta nua deitada na cama, a brincar com uma das armas dele.
— Vou sair — disse ela. — Preciso de apanhar ar.
— Tem cuidado — respondeu ele, no sotaque suave das suas Terras Altas de origem. — Queres companhia?
— Não, obrigada. Estendeu-lhe uma arma.
— Leva isto.
O elevador estava outra vez avariado, pelo que desceu para a rua pelas escadas. Meu Deus, como estava feliz por sair daquele sítio! Estava zangada com Kyle Blake por este a ter enviado para junto de um homem como Campbell. Mas as coisas podiam ser piores, pensou. Podia estar na prisão ou morta como os outros. O frio sabia-lhe bem e andou durante muito tempo. De vez em quando, parava à frente da montra de uma loja e olhava de soslaio para trás. Tinha a certeza de que não estava a ser seguida.
Pela primeira vez em muitos dias, sentiu realmente fome. Entrou num pequeno café e, servindo-se do seu francês catastrófico, pediu uma omeleta com queijo e um café creme. Acendeu um cigarro e olhou pela janela. Interrogou-se se iria ser sempre assim — viver em cidades estranhas, rodeada de pessoas que não conhecia.
Queria terminar o que tinham começado; queria o embaixador Douglas Cannon morto. Sabia que a Brigada para a Libertação do Uls-ter já não se encontrava em condições para dar conta do trabalho; na realidade, já não havia uma Brigada para a Libertação do Ulster. Para que o embaixador fosse morto, teria de haver alguém que não eles a fazê-lo. Tinha recorrido a Roderick Campbell para que a ajudasse. Ele conhecia o tipo de homens de que ela precisava: homens que ganhavam a vida a matar, homens que matavam apenas por uma razão: dinheiro.
Quando o empregado trouxe a comida, Rebecca devorou-a rapidamente. Não conseguia lembrar-se da última vez em que tinha comido verdadeira comida. Acabou a omeleta e engoliu um pedaço de baguete com a ajuda do café. O empregado voltou a aparecer e pareceu assombrado por o prato dela estar vazio.
— Tinha muita fome — disse ela, constrangida.
Pagou a conta e foi-se embora. Apertando o casaco contra a garganta com força, percorreu as ruas sossegadas de Montparnasse. Passado um momento, ouviu um carro atrás de si. Parou num telefone público e fingiu que estava a ligar para um número enquanto olhava para o carro: um grande Citroen preto, com dois homens à frente e um atrás. Talvez a polícia francesa. Talvez os serviços secretos franceses, pensou. Talvez amigos de Roderick. Talvez nada.
Começou a andar mais depressa. De repente, estava a transpirar apesar do frio. O condutor do Citroen carregou no acelerador e o barulho do motor tornou-se mais forte.
"Meu Deus", pensou ela, "vão atropelar-me!" Virou a cabeça no instante em que o carro passou por ela a toda a velocidade para depois travar a fundo e parar poucos metros à sua frente.
A porta traseira do lado do passageiro abriu-se. O homem que se encontrava no banco de trás inclinou-se para fora e disse:
— Boa tarde, menina Wells.
Ficou estupefacta. Parou de andar e olhou para ele. Tinha cabelo louro oleoso, todo puxado para trás a partir da testa, e pele clara e queimada do sol.
— Entre no carro, por favor. Receio que não seja seguro estarmos a falar na rua.
Tinha o sotaque de um inglês de boas famílias.
— Quem é o senhor? — perguntou ela.
— Nós não pertencemos às autoridades, se é isso que está a pensar — respondeu ele. — Na verdade, somos bem o contrário.
— E o que é que querem?
— Na verdade, isto tem a ver com o que a senhora quer. Ela hesitou.
— Por favor, não temos muito tempo — disse o homem louro, estendendo uma mão clara. — E não se preocupe, menina Wells. Se a quiséssemos matar, já estaria morta.
De Montparnasse, atravessaram a cidade de Paris até a um prédio de apartamentos no quinto arrondissement, na Rue Tournefort, com vista para a Place de la Contrescarpe.
O homem louro desapareceu no Citroen. Um homem a ficar careca, com uma cara rosada, ficou-lhe com a arma de Roderick e conduziu-a para um apartamento que tinha o ar de um pied-à-terre raramente utilizado. A mobília era masculina e confortável: sofás pretos informais e cadeiras agrupadas à volta de uma mesa de café de vidro; estantes para livros em madeira de teca amarelada, com relatos históricos, biografias e thrillers de autores americanos e ingleses. O que sobrava das paredes estava desocupado, com contornos esbatidos nos sítios onde antes tinham estado pendurados quadros emoldurados. O homem fechou a porta e introduziu um código de seis dígitos num teclado, presumivelmente activando o sistema de segurança. Sem dizer uma palavra, estendeu a mão e levou-a para dentro do quarto.
O quarto estava escuro, com a excepção de um pedaço junto à janela, que se encontrava iluminado por uma luz chuvosa que entrava pela persiana parcialmente aberta.
Um instante depois de a porta se fechar, um homem falou algures na escuridão. A voz era seca e precisa, a voz de um homem que não gostava de se repetir.
— Chegou-nos aos ouvidos que anda à procura de alguém que seja capaz de assassinar o embaixador americano em Londres — disse o homem. — Acho que a podemos ajudar.
— E quem é que são vocês?
— Não tem nada a ver com isso. Posso assegurar-lhe que somos perfeitamente capazes de desempenhar uma tarefa como a que tem em mente. E com muito menos trapalhada do que aquele episódio em Hartley Hall.
Rebecca tremeu de raiva, que o homem nas sombras pareceu detectar.
— Lamento informá-la, mas foram enganados em Norfolk, menina Wells — disse ele. — Caíram direitinhos numa armadilha engendrada pela CIA e o MI5. O homem que conduziu a operação foi o genro do embaixador, que por acaso trabalha para a CIA. O nome dele é Michael Osbourne. Quer que eu continue?
Ela anuiu com a cabeça.
— Se aceitar a nossa oferta de ajuda, prescindiremos dos nossos honorários habituais. E deixe-me assegurar-lhe que são normalmente bastante exorbitantes para um trabalho deste género... suspeito que bem acima das possibilidades de uma organização como a Brigada para a Libertação do Ulster.
— Estão dispostos a fazê-lo de graça? — perguntou Rebecca, incrédula.
— Exactamente.
— E o que é que querem de mim?
— Na altura indicada, irá reivindicar a responsabilidade pelo acto.
— Mais nada?
— Mais nada.
— E quando tiver terminado tudo?
— Não terá mais nenhuma obrigação, excepto a de nunca falar, sob quaisquer circunstâncias, sobre a nossa parceria consigo. E, se de facto falar das nossas combinações, reservamo-nos o direito de aplicar medidas punitivas.
Parou por um momento para permitir que o seu aviso fizesse efeito.
— É capaz de vir a encontrar dificuldades para se deslocar de um lado para o outro quando tudo isto tiver terminado — continuou. — Se quiser, podemos disponibilizar-lhe serviços que a ajudarão a manter-se a monte. Podemos providenciar-lhe documentos de viagem falsos. Podemos ajudá-la a alterar a sua aparência. Temos contactos com determinados governos que estão dispostos a proteger fugitivos a troco de dinheiro ou favores. Mais uma vez, estaríamos dispostos a disponibilizar-lhe estes serviços sem qualquer custo.
— Porquê? — perguntou ela. — Porque é que estão dispostos a fazer isso a troco de nada?
— Nós não somos uma organização filantrópica, menina Wells. Estamos dispostos a trabalhar consigo porque temos interesses comuns.
Um isqueiro acendeu-se, deixando ver uma parte da cara dele por um instante, antes de o quarto mergulhar novamente na escuridão: cabelo cor de prata, pele clara, uma boca dura, olhos frios.
— Receio que já não seja seguro para si permanecer em Paris —disse. — As autoridades francesas têm conhecimento da sua existência aqui.
Ela sentiu-se como se lhe tivessem despejado água gelada em cima da nuca. A ideia de ser presa, de ter de voltar para a Grã-Bretanha acorrentada, fê-la ficar fisicamente doente.
— Precisa de sair de França imediatamente — disse ele. — Proponho-lhe o Barém. O chefe das forças de segurança é um velho amigo meu. Estará segura e há piores sítios para se estar do que o golfo Pérsico em Março. O tempo é esplêndido nesta altura do ano.
— Não estou interessada em passar o resto dos dias deitada junto a uma piscina no Barém.
— O que é que está a querer dizer, menina Wells?
— Que quero participar na operação — respondeu ela. — Aceito a vossa oferta, mas quero estar lá para ver o homem a morrer.
— Tem treino?
— Sim — respondeu.
— E já matou alguém? Lembrou-se da noite dois meses antes — o celeiro no condado de Armagh —, quando tinha matado Charlie Bates com um tiro.
— Sim — respondeu calmamente —, já matei.
— O homem que tenho em mente para a missão prefere trabalhar sozinho — disse ele —, mas suspeito que verá que é uma opção sensata aceitar um parceiro para este contrato.
— Quando é que parto?
— Hoje à noite.
— Gostava de voltar ao apartamento para ir buscar umas quantas coisas.
— Lamento, mas isso não é possível.
— Então e o Roderick? O que vai ele pensar se eu desaparecer sem nenhuma explicação?
— Deixe que nos preocupemos nós com o Roderick Campbell.
O homem louro regressou no Citroen a Montparnasse e estacionou à porta do prédio de apartamentos de Roderick Campbell. Saiu do carro e atravessou a rua. Tinha roubado as chaves da mulher. Abriu a porta principal do rés-do-chão e subiu as escadas até ao apartamento. Tirando a Herstal automática de alta potência do cós das calças de ganga, abriu a porta e entrou sorrateiramente.
Capítulo 33
AMESTERDÃO
A previsão meteorológica para a costa holandesa era agradável para Março, pelo que Delaroche subiu para a sua bicicleta italiana de estrada ao início dessa manhã e pedalou para sul. Usava longos calções pretos de ciclismo e uma camisola de gola alta branca e de algodão por baixo da camisola de malha de um amarelo-vivo, suficientemente justa para evitar que enfolasse com o vento, mas suficientemente folgada para esconder a Beretta automática que tinha debaixo da axila esquerda. Seguiu para sul, em direcção a Leiden, atravessando Bloembollenstreek, a maior região produtora de flores da Holanda, com as suas pernas poderosas a pedalarem sem esforço pelos campos a brilharem já coloridos.
Durante algum tempo, os olhos dele foram absorvendo o campo holandês — os diques e os canais, os moinhos de vento e os campos de flores —, mas, passado um bocado, o rosto de Maurice Leroux apareceu-lhe nos pensamentos. Tinha-lhe surgido num sonho durante a noite anterior, parado à frente dele, branco como um monte de neve, com dois buracos no peito e trazendo ainda na cabeça a ridícula boina.
Eu sou de confiança. Já me ocupei de muitos homens como você.
Delaroche entrou em Leiden e almoçou num café ao ar livre na margem do Reno. Naquele ponto, apenas a poucos quilómetros da sua desembocadura no mar do Norte, o rio era estreito e corria lentamente, bem diferente da montanha de água espumosa perto da nascente, no alto dos Alpes, ou do largo gigante industrial da planície alemã. Delaroche pediu um café e uma sanduíche de queijo e fiambre.
A incapacidade de purgar o subconsciente da imagem de Leroux enervou-o. Normalmente, passava apenas por um curto período de desconforto depois de matar alguém. Mas já tinha passado uma semana desde que matara Leroux e continuava a ver a cara dele a flutuar-lhe na mente.
Lembrou-se do homem chamado Vladimir. Delaroche tinha sido separado da mãe à nascença e dado ao KGB para ser aí educado. Vladimir fora todo o seu mundo. Tinha-o treinado em línguas e nas artes do ofício. Tinha tentado ensinar-lhe alguma coisa sobre a vida antes de lhe ensinar como matar. Vladimir avisara-o que iria acabar por acontecer. Um dia, vais tirar uma vida e esse homem irá seguir-te, dissera-lhe Vladimir. Vai tomar as refeições contigo, partilhar a tua cama. Quando isso acontecer, está na altura de abandonares este ofício, porque um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional.
Delaroche pagou a conta e saiu do café. O tempo ia piorando à medida que avançava em direcção ao mar do Norte. O céu foi ficando mais carregado e o ar tornou-se mais frio. Lutou contra um forte vento de frente durante todo o caminho até Haarlem.
Talvez Vladimir tivesse razão. Talvez estivesse na altura de abandonar o jogo antes que o jogo desse conta dele. Podia voltar para o Mediterrâneo e passar os dias a andar nas suas bicicletas e a pintar os seus quadros e a beber o seu vinho no terraço com vista para o mar, e que se lixasse o Vladimir e que se lixasse o pai, e que se lixasse o Director e todas as outras pessoas que lhe tinham imposto aquela vida. Talvez pudesse encontrar uma mulher — uma mulher como Astrid Vogel, uma mulher que tivesse suficientes segredos próprios para que ele lhe pudesse confiar os seus.
Já tinha querido abandonar tudo antes, mas, com Astrid morta, isso já não fazia sentido e o Director tinha-lhe feito uma generosa proposta que era demasiado boa para recusar. Pagava-lhe uma quantidade tremenda de dinheiro e providenciava-lhe protecção contra os seus inimigos. Se deixasse a Sociedade, Delaroche estaria por sua própria conta. Teria de tratar da sua própria segurança ou encontrar um novo Protector.
Entrou em Haarlem e atravessou o rio Spaarne. Amesterdão ficava a vinte e cinco quilómetros de distância, uma bela viagem pelas margens do Noordzeekanaal. Delaroche tinha o vento nas costas e a estrada era suave e plana, pelo que demorou pouco mais de meia hora a chegar à cidade.
Levou o seu tempo até atingir o Herengracht. Entrou no apartamento e verificou os sinais que deixara para se certificar de que ninguém lá tinha estado durante a sua ausência. Havia outro bilhete escrevinhado à pressa pela rapariga alemã. Quero ver-te outra vez meu cabrão! Eva.
Ligou o computador e conectou-se à Internet. Tinha uma mensagem de e-mail nova. Abriu-a e digitou o seu nome de código. A mensagem era do Director; queria encontrar-se com ele no dia seguinte em Amesterdão, no Vondelpark.
Delaroche enviou uma resposta a dizer que lá estaria.
Na manhã seguinte, deambulou pelas barracas do Albert Cuyp-markt no anel de canais oriental. Meticulosamente, foi controlando se estava a ser seguido à medida que passava com descontracção por cestos pejados de fruta, peixe do mar do Norte, queijos holandeses e flores acabadas de cortar. Convencido de que não estava a ser seguido, foi do mercado até ao Vondelpark, o extenso parque próximo do quarteirão dos museus de Amesterdão. Avistou o Director, sentado num banco do parque que dava para um lago de patos, com a alta rapariga jamaicana ao seu lado.
O Director ainda não tinha visto Delaroche desde a cirurgia plástica em Atenas. Delaroche não gostava de jogos ou de outros divertimentos — o isolamento e o secretismo da sua vida tinham-lhe roubado qualquer oportunidade para desenvolver um verdadeiro sentido de humor —, mas resolveu pregar uma partida para testar a eficácia do trabalho que Maurice Leroux tinha feito na sua cara.
Pôs um cigarro na boca e colocou os óculos de sol. Aproximou-se do Director e, falando holandês, pediu-lhe lume. O Director passou-lhe um pesado isqueiro de prata.
Delaroche acendeu o cigarro e devolveu o isqueiro. "Dank u", disse. O Director acenou com a cabeça friamente ao voltar a enfiar o isqueiro no bolso do casaco.
Delaroche afastou-se pelo caminho. Regressou alguns momentos depois e sentou-se ao lado do Director, a comer uma pêra que tinha comprado no Albert Cuypmarkt, sem dizer nada. O Director e a rapariga afastaram-se e sentaram-se noutro banco. Delaroche observou-os com curiosidade durante um momento; a seguir, levantou-se também e juntou-se a eles no banco do lado.
O Director fez uma carranca.
— Desculpe, importava-se de...
— Penso que queria falar comigo — interrompeu Delaroche, tirando os óculos de sol.
— Deus do Céu — murmurou o Director. — És mesmo tu?
— Receio bem que sim.
— Estás bastante horrendo. Não admira que tenhas matado aquele pobre desgraçado.
— Tenho um contrato para ti.
Os olhos do Director mexiam-se de um lado para o outro rapidamente enquanto os dois homens seguiam um atrás do outro pelo caminho que atravessava o Vondelpark. Tinha começado como agente operacional — saltara de pára-quedas sobre França com o SOE[35] durante a Segunda Guerra Mundial e orientara agentes em Berlim contra os russos — e os seus instintos de sobrevivência continuavam aguçados.
— Tens andado a acompanhar a situação na Irlanda do Norte? — perguntou o Director.
— Leio os jornais.
— Então, sabes que um grupo terrorista protestante intitulado Brigada para a Libertação do Ulster tentou e não conseguiu assassinar o embaixador americano enviado para o Palácio de St. James, Douglas Cannon.
Delaroche assentiu com a cabeça.
— Li qualquer coisa acerca disso, sim.
— Mas o que tu não sabes é que a equipa de assassinos caiu direitinha numa armadilha engendrada pelo MI5 e a CIA. E o agente da CIA responsável pela parte americana da coisa era um velho amigo teu.
Delaroche olhou furiosamente para o Director.
— O Osbourne?
O Director assentiu com a cabeça.
— Escusado será dizer que a Brigada para a Libertação do Ulster gostaria de ver tanto o embaixador como o genro mortos, e nós concordámos em fazer-lhes esse trabalho.
— Com que objectivo?
— A brigada gostaria de destruir o processo de paz e, sinceramente, nós também. É mau para o negócio. Daqui a menos de duas semanas, no Dia de São Patrício, o presidente Beckwith vai presidir a um encontro entre dirigentes norte-irlandeses na Casa Branca. O Douglas Cannon vai lá estar.
— Tem a certeza disso?
— Tenho uma fonte seguríssima. Os americanos são bons a protegerem os embaixadores deles no estrangeiro, mas em casa a história é bem diferente. O Cannon não vai ter grande guarda, se a tiver sequer. Um profissional com o teu talento não deverá ter dificuldades em cumprir os termos do contrato.
— E tenho alguma escolha?
— Deixa-me recordar-te que te pago uma quantidade tremenda de dinheiro e te providencio protecção — respondeu o Director com frieza. — Em troca, tu matas para mim.
É um acordo simples.
Sempre se tinha comportado como um velho e confuso fidalgo na presença de Delaroche, mas era evidente que se tratava de um homem que utilizaria quaisquer meios ao seu dispor para atingir os seus fins.
— Na verdade, até tinha pensado que ficarias encantado com a oportunidade de enfrentar o teu velho inimigo — prosseguiu ele.
— E porque é que partiu desse princípio?
— Por causa da Astrid Vogel. Fico espantado que não tenhas já matado o Osbourne por tua conta.
— Não o matei porque não fui contratado para o matar — respondeu Delaroche. — Sou um assassino profissional, não um homicida.
— Algumas pessoas seriam capazes de ver nisso uma distinção inquestionável, mas compreendo o teu ponto de vista e respeito-te por isso. No entanto, o Osbourne continua a ser uma ameaça séria à nossa segurança. Eu dormiria melhor se ele já não estivesse entre nós.
Delaroche deteve-se e virou-se para ficar cara a cara com o Director.
— Duas semanas não são muito tempo... especialmente para um trabalho nos Estados Unidos.
— É com certeza tempo suficiente para ti. Delaroche assentiu.
— Vou fazê-lo.
— Óptimo — disse o Director. — E agora que concordaste em aceitar o contrato, há um senão. Gostava que trabalhasses com um parceiro.
— Eu não trabalho com pessoas que não conheço.
— Compreendo, mas estou a pedir-te que abras uma excepção neste caso.
— E quem é ele?
— Ela, na verdade. Chama-se Rebecca Wells. É a mulher que sobreviveu à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de assassinar o Douglas Cannon em Inglaterra.
— É uma amadora — afirmou Delaroche.
— É uma agente experimentada e já teve o seu baptismo de sangue. Por razões políticas, achamos ser importante que ela faça parte da operação. Tenho a certeza de que vais apreciar a oportunidade de trabalhar com ela.
— E se eu recusar?
— Então, lamento dizê-lo, mas perdes o direito ao teu salário e à protecção que eu te disponibilizo.
— Onde é que ela está?
O Director apontou com o dedo mais para a frente no caminho de gravilha.
— Segue naquela direcção mais ou menos uns cem metros. Hás-de encontrá-la sentada num banco: cabelos louros, a ler o Die Welt. Vou começar a preparar os dossiês e a tratar do teu transporte para a América. Fica aqui em Amesterdão até eu te contactar.
Dito isto, o Director deu meia-volta e desapareceu no nevoeiro que se espalhava pelo Vondelpark.
Delaroche comprou um pequeno mapa do centro de Amesterdão num posto de turismo no parque. Sentou-se no banco ao lado daquele em que Rebecca Wells se encontrava, fingindo obedientemente que lia a edição da véspera do Die Welt. Estava menos interessado na mulher do que no que se estava a passar à volta dela. Durante vinte minutos, sondou caras, à procura de sinais físicos de vigilância. Parecia estar sozinha, mas ele queria ter a certeza. Marcou um ponto no mapa com um círculo e foi ter com ela.
— Vai ter comigo a este sítio daqui a duas horas em ponto — disse, passando-lhe o mapa dobrado. — Não pares de andar e não chegues um minuto antes.
O ponto que Delaroche tinha assinalado no mapa era o Monumento Nacional na Dam Platz. Rebecca Wells deixou-se ficar no Vondelpark por mais meia hora, vagueando pelos jardins e passando pelos lagos sinuosos. A determinada altura, deu meia-volta e voltou para trás agilmente, obrigando Delaroche a enfiar-se numa casa de banho pública para se esconder.
Do parque foi até ao Museu Van Gogh. Comprou um livre-trânsito na bilheteira, na porta principal, e entrou. Delaroche seguiu-a com facilidade pelo museu apinhado.
Van Gogh fora uma das suas primeiras influências; distraiu-se com uma das suas obras preferidas, Campo de Trigo com Corvos, e perdeu-a de vista. Reencontrou-a passado um momento, a olhar demoradamente para o Quarto em Aries. Havia qualquer coisa no quadro colorido, uma celebração da paz doméstica por Van Gogh, que parecia intrigá-la.
Saiu do museu, deambulou pelo Albert Cuypmarkt e passeou pelo Singel até chegar ao rio Amstel. Foi aí que saltou de repente para dentro de um eléctrico que ia a passar. Delaroche fez sinal a um táxi para parar e seguiu-a.
Ela foi de eléctrico até à Leidseplein e continuou a pé até um café ao ar livre, próximo do American Hotel, onde bebeu café e comeu um bolo. Delaroche observou-a de um café do outro lado do canal. Ela pagou a conta e levantou-se, mas em vez de seguir o seu caminho pelo passeio refugiou-se dentro do café.
Delaroche atravessou o canal rapidamente. Em holandês, perguntou ao empregado se tinha visto a sua namorada — uma irlandesa, loura oxigenada. O empregado apontou para a casa de banho com a cabeça. Delaroche bateu à porta. Como ninguém respondeu, abriu-a; a mulher tinha desaparecido. Espreitou pela cozinha e viu que havia uma entrada de serviço que dava para uma viela estreita. Atravessou a cozinha, ignorando os protestos dos chefes que lá estavam a trabalhar, e entrou na viela. Não havia sinais dela.
Apanhou o eléctrico para a Dam Platz e encontrou-a sentada junto a um dos leões à frente do Monumento Nacional. Olhou para o relógio e sorriu.
— Onde é que estiveste? — perguntou. — Estava preocupada contigo.
— Não estás a ser seguida — respondeu Delaroche, sentando-se ao lado dela —, mas mexes-te como uma amadora.
— Despistei-te... não foi?
— Sou um homem a pé. Qualquer pessoa consegue despistar um homem a pé.
— Ouve-me bem, meu sacana. Eu sou de Portadown, na Irlanda do Norte. Não me fodas. Tenho frio, estou cansada e já estou farta desta merda. O velho disse que ias dar-me um sítio onde ficar. Vamos embora.
Caminharam em silêncio pelo Prinsengracht até chegarem ao Krista. Delaroche saltou para o convés da popa e estendeu a mão para que Rebecca fizesse o mesmo. Ela deixou-se ficar onde estava, olhando-o fixamente como se ele fosse louco.
— Se pensas que vou viver na merda de uma barcaça...
— Não é uma barcaça — interrompeu ele. — Agarra a minha mão. Eu mostro-te.
Subiu a bordo da casa flutuante sem a ajuda dele e observou-o a abrir o cadeado da escotilha por cima da escada. Seguiu-o até lá abaixo, ao salão, e olhou em redor, para a mobília confortável.
— Este barco é teu? — perguntou.
— É de um amigo meu.
Ela tentou acender um dos candeeiros, mas quando carregou no interruptor não aconteceu nada. Delaroche voltou a subir para o convés, desligou o cabo de alimentação do barco e ligou-a outra vez a uma tomada pública na calçada. Passado um instante, o salão do Krista irradiou com uma luz quente.
— Tens dinheiro? — perguntou Delaroche, ao descer novamente a escada.
— O velho deu-me algum — respondeu ela. — Quem é ele, já agora?
— Chama-se o Director.
— Director do quê?
— O director da organização que está a ajudar-te a matar o embaixador.
— E como é que ela se chama? Delaroche ficou calado.
— Não sabes como é que se chama?
— Sei — respondeu.
— Sabes quem é que faz parte dela?
— Estou resolvido a descobrir.
Ela atravessou o salão e sentou-se na borda da cama de Astrid. Delaroche acendeu o pequeno aquecedor.
— E tu tens nome? — perguntou ela.
— Às vezes — respondeu ele.
— Como é que te devo chamar?
— Podes ficar aqui até partirmos para a América — disse Delaroche, ignorando a pergunta. — Vais precisar de roupa lavada e de comida. Vou trazer-te umas coisas mais para a tarde. Fumas?
Ela acenou com a cabeça.
Delaroche atirou-lhe um maço de tabaco.
— Trago-te mais.
— Obrigada.
— Sabes mais alguma língua?
— Não — respondeu ela.
Delaroche soltou um longo suspiro e abanou a cabeça.
— Não precisava de outras línguas para actuar na Irlanda do Norte.
— Isto não é a Irlanda do Norte — respondeu ele. — E consegues fazer alguma coisa em relação a esse sotaque?
— O que é que o meu sotaque tem de mal?
— Mais valia pendurares uma faixa da Ordem de Orange ao peito.
— Consigo falar como uma inglesa.
— Faz isso, por favor — disse ele, subindo depois a escada pesadamente e fechando a escotilha ao sair.
Capítulo 34
SEDE DA CIA, WASHINGTON
Uma semana após o encontro de Delaroche com o Director em Amesterdão, Michael Osbourne regressou ao Centro de Contraterrorismo pela primeira vez desde que saíra de Londres. Introduziu o seu código na porta de segurança e entrou. Cárter estava sentado à secretária, debruçado sobre uma pilha de memorandos, claramente irritado.
Levantou os olhos e fixou-os em Michael, franzindo o sobrolho.
— Ora vejam bem, Sir Michael resolveu honrar-nos com a sua presença — disse Cárter.
— É um título de cavaleiro honorário. Vossa Majestade chega perfeitamente.
Cárter sorriu.
— Bem-vindo a casa. Sentimos a tua falta. Está tudo bem?
— Não podia estar melhor.
— Tens dez minutos para te pores ao corrente da situação. Depois preciso de te ver a ti e à Cynthia no meu gabinete.
— Óptimo. Vemo-nos daqui a meia hora.
Michael percorreu a Avenida Abu Nidal até ao seu cubículo. Um dos espirituosos do centro tinha pendurado uma grande bandeira do Reino Unido sobre a parede do cubículo e ouvia-se o God Save the Queen a sair baixinho de um pequeno leitor de cassetes.
— Muito engraçado — disse Michael em voz alta, para ninguém em especial.
Blaze e Eurotrash apareceram, seguidos por Cynthia Martin e Gigabyte.
.- Nós só queríamos arranjar um bocadinho o sítio para ti, Sir Michael — disse Blaze. — Sabes, fazer com que se parecesse um bocadinho menos com Langley e um bocadinho mais com a tua pátria.
— Foi muito atencioso da vossa parte.
Blaze, Eurotrash e Gigabyte afastaram-se, cantando uma versão gutural de "He Is an Englishman"[36]. Cynthia deixou-se ficar e sentou-se na cadeira em frente à secretária de Michael.
— Parabéns, Michael. Conseguiste sacar uma bela jogada.
— Obrigado. Fico grato por isso.
— Secretamente, acho que estava com esperanças de que te estampasses por completo. Nada pessoal, compreendes.
— Pelo menos, isso é sincero.
— A honestidade sempre foi uma fonte de angústia para mim. Michael sorriu.
— O meu sogro vem a Washington uns dias antes do início da conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca. Quer passar algum tempo com os netos e ver alguns dos velhos amigos do Congresso. Vamos dar um pequeno jantar na véspera da conferência. Porque é que não te juntas a nós? Eu sei que o Douglas iria dar grande valor à tua opinião.
— Adoraria ir.
Michael escrevinhou a morada numa folha de papel e entregou-lha.
— As sete em ponto — disse.
— Lá estarei — respondeu Cynthia, dobrando o papel. — Vemo-nos no gabinete do Cárter.
Michael sentou-se, ligou o computador e leu os telegramas da noite anterior. Uma patrulha da RUC tinha descoberto um carro carregado com noventa quilos de Semtex no condado de Antrim, à saída de Belfast. Pensava-se que um grupo separatista republicano intitulado Verdadeiro IRA era o responsável. Michael fechou o telegrama e abriu outro. Um católico tinha sido morto a tiro perto de Banbridge, no condado de Down. A RUC suspeitava que a Força de Voluntários Lealistas, um grupo extremista protestante ultraviolento, era a responsável. Michael abriu o telegrama seguinte. A loja de Portadown da Ordem de Orange tinha entregado o percurso que propunha para a sua parada anual. Uma vez mais, reivindicava o direito de se manifestar na Garvaghy Road. A temporada das marchas daquele Verão prometia ser tão pródiga em confrontos como a anterior.
Desligou o computador e entrou no gabinete de Cárter. Cynthia já lá estava.
— Espero que vocês os dois não estejam a pensar ter vida própria durante as próximas quarenta e oito horas — atirou Cárter.
— A nossa vida é a CIA, Adrian — respondeu Michael.
— Acabei de falar ao telefone com o Bill Bristol.
— E nós devemos ficar impressionados por teres falado com o conselheiro do presidente para a segurança nacional?
— És capaz de te calar por um minuto, porra, e de me deixares terminar?
Cynthia Martin sorriu e olhou para o seu bloco de notas. Cárter disse:
— O Beckwith anda todo stressado com a conferência sobre a Irlanda do Norte. Parece que os números dele nas sondagens andam a baixar e quer utilizar o processo de paz para fazer aumentar os seus índices de aprovação.
— Mas que bem — soltou Michael. — E como é que nós podemos ser úteis?
— Garantindo que ele está totalmente preparado para a conferência. Ele precisa de ter um quadro completo da situação no terreno no Ulster. Precisa de documentação e de informação para saber até onde é que pode pressionar os lealistas e os nacionalistas para fazer com que as coisas avancem. Precisa de saber se nós achamos que uma viagem presidencial à Irlanda do Norte é ou não uma boa ideia, dado o clima que se vive.
— Quando?
— Tu e a Cynthia vão fazer um relatório ao Bristol na Casa Branca depois de amanhã.
— Oh, que bom, pensei que ia ser uma coisa descabida.
— Se acharem que não conseguem dar conta do recado...
— Nós conseguimos dar conta do recado.
— Bem me parecia.
Michael e Cynthia levantaram-se. Cárter disse:
— Espera um minuto, Michael.
— Querem falar de mim nas minhas costas? — perguntou Cynthia.
— Como é que adivinhaste? — respondeu Adrian.
Cynthia lançou um olhar carrancudo a Cárter e saiu do gabinete. Cárter disse:
— Não faças planos para o almoço.
A sala de jantar da CIA fica no sétimo andar, por trás de uma pesada porta de metal com aspecto de poder ir dar à casa das máquinas. Dantes chamavam-lhe sala de jantar executiva, até que o Departamento de Recursos Humanos descobriu que os quadros subalternos achavam o nome ofensivo. A CIA desembaraçou-se da palavra "executiva" e abriu o restaurante a todos os empregados. Tecnicamente, os trabalhadores da doca de carga e descarga podiam ir até ao sétimo andar para almoçar com os directores-adjuntos e os chefes de divisão. Ainda assim, a maior parte dos quadros preferia a enorme cafetaria na cave, afectuosamente conhecida como "o fosso da mistela", onde podiam trocar mexericos à vontade sem medo de serem ouvidos pelos superiores.
Mónica Tyler estava sentada a uma mesa junto à janela, com vista para as árvores grossas dispostas ao longo do rio Potomac. Os seus dois sempre presentes factótuns, conhecidos de forma jocosa como Tweedledum e Tweedledee, estavam sentados ao lado dela, cada um agarrando com força uma pasta de couro como se estas contivessem os segredos perdidos do mundo antigo. As mesas à volta estavam vazias; Mónica Tyler possuía um talento para criar espaço vazio em seu redor, de forma bastante semelhante a um psicopata com um punhado de dinamite.
Continuou sentada quando Michael e Cárter entraram na sala e se sentaram. Uma empregada trouxe os menus e as outras cartas. Na sala de jantar, os convidados não faziam os seus pedidos oralmente; em vez disso, tinham de preencher um pequeno formulário meticulosamente e fazer o somatório da própria conta. Os espirituosos da agência afirmavam na brincadeira que os formulários eram recolhidos ao final de cada dia e enviados para o Departamento de Recursos Humanos para uma avaliação psicológica. Cárter procurou em vão que Mónica se deixasse envolver numa conversa de circunstância enquanto se debatia com o complexo formulário de pedidos. Michael sabia que a refeição iria ser cobrada ao gabinete da Directora e, por isso, escolheu os artigos mais caros do menu: cocktail de camarão, bolos de caranguejo grelhado e creme brâlée para a sobremesa. Tweedledee preencheu o formulário de Mónica por ela.
— Agora que conseguiste neutralizar a Brigada para a Libertação do Ulster — começou por dizer de repente Mónica —, nós achamos que está na altura de saíres do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e passares para uma coisa mais produtiva.
Michael olhou para Cárter, que encolheu os ombros.
— E quem são esses nós? — perguntou Michael.
Mónica levantou os olhos da salada como se tivesse achado a pergunta impertinente.
— O sétimo andar, claro.
— Por acaso, estava com esperanças de poder passar mais tempo a trabalhar no caso Outubro — disse Michael.
— Por acaso, tenciono retirar-te por completo do caso Outubro. Michael afastou o prato de camarão meio comido e pousou o guardanapo em cima da mesa.
— Uma parte do nosso acordo em relação ao meu regresso à CIA era que me seria permitido passar parte do meu tempo à procura dele. Porque é que estás a tentar fugir ao nosso acordo?
— Para ser sincera contigo, Michael, o Adrian achou que deixar-te ir atrás do Outubro poderia ser suficiente para te atrair de volta ao centro. Mas eu nunca achei grande coisa da ideia e continuo a não achar. Mais uma vez, provaste ser um agente eficaz, e seria negligente da minha parte se permitisse que continuasses a trabalhar num caso que é pouco provável que produza frutos.
— Mas já produziu frutos, Mónica. Provei que o Outubro ainda está vivo e que continua em actividade como assassino e terrorista.
— Não, Michael, tu não provaste que ele está vivo. Tu lançaste a teoria de que ele ainda está vivo, com base na ampliação da fotografia de uma mão. Isso está muito longe de ser uma prova irrefutável.
— Nós raramente lidamos com provas irrefutáveis neste ramo, Mónica.
— Não me pregues sermões, Michael.
Calaram-se quando a empregada apareceu e levantou a mesa depois do primeiro prato.
— Enviámos um alerta à Interpol — recomeçou Mónica. — Avisámos os nossos aliados. Não há muito mais que possa ser feito. Neste momento, trata-se de uma questão de polícia e isto não é uma agência policial.
— Não concordo — respondeu Michael.
— Com que ponto?
— Tu sabes com que ponto.
Os acólitos de Mónica agitaram-se nos seus lugares com inquietação. Cárter começou a catar um fio solto da toalha de mesa. Nada enfurecia mais Mónica Tyler do que ser desafiada por alguém que se encontrasse abaixo dela na cadeia alimentar da agência.
— Alguém contratou o Outubro para assassinar o Ahmed Hus-sein — prosseguiu Michael. — Alguém está a disponibilizar-lhe protecção, documentos para viajar e dinheiro.
Precisamos de descobrir quem está a patrociná-lo. E isso é um trabalho de espionagem, Mónica, não de polícia.
— Mais uma vez, Michael, estás a partir do princípio de que o Outubro era o homem que estava no Cairo. Pode ter sido um agente dos serviços secretos israelitas.
Pode ter sido um membro do Hamas que fosse rival dele. Pode ter sido um assassino da OLP.
— Pode ter sido um pato à Pequim, mas não era. Era o Outubro.
— Não concordo.
Sorriu, demonstrando que se tinha servido das palavras de Michael intencionalmente. Os olhos dela vasculhavam-no sem parar, de um lado para o outro, como se estivessem à procura do melhor sítio para lhe inserir um punhal.
Michael rendeu-se.
— E o que é que tens em mente para mim?
— O processo de paz no Médio Oriente está a dar as últimas — respondeu ela. — O Hamas anda a colocar bombas em Jerusalém e nós recebemos indicações de que a Espada de Gaza está prestes a entrar em acção na Europa. Com toda a probabilidade, isso significa que irão visar americanos. Quero que termines os preparativos para a conferência na Casa Branca sobre a Irlanda do Norte e, a seguir, quero-te outra vez a tratar da Espada de Gaza.
— E se eu não estiver interessado?
— Então, receio que o teu regresso à CIA, embora altamente bem-sucedido, vá ser bastante breve.
Morton Dunne era para a CIA aquilo que "Q" era para os serviços secretos de James Bond. Chefe-adjunto da divisão dos Serviços Técnicos, Dunne era o criador de canetas que explodiam e de microfones transmissores de alta frequência que podiam ser escondidos na fivela de um cinto. Era um engenheiro electrotécnico formado no MIT que podia estar a ganhar cinco vezes mais no sector privado do que o salário que auferia a trabalhar para o Estado. Escolheu a CIA porque a parafernália de espionagem sempre o havia intrigado. No seu tempo livre, fazia a manutenção das antigas câmaras e armas de espionagem instaladas no museu improvisado da agência. E também era um dos principais criadores, em todo o mundo, de papagaios experimentais. Ao fim-de-semana, podia ser encontrado na Ellipse, a fazer voar as suas criações em redor do Monumento de Washington. Uma vez, colocou uma câmara em miniatura de alta resolução num papagaio e fotografou cada centímetro quadrado do relvado sul da Casa Branca.
— Tens autorização para isto, suponho — disse Dunne, sentado diante de um grande ecrã de computador.
Era o protótipo de um licenciado do MIT — magro, pálido como um habitante das cavernas, com óculos de armações de metal que estavam sempre a escorregar-lhe pela cana do nariz estreito.
— Não posso fazer isto sem autorização do teu chefe.
— Eu trago-ta mais logo, mas preciso das fotos agora.
Dunne colocou as mãos no teclado.
— Como é que era o nome dele?
— Outubro. Aquele que fizemos o mês passado para o alerta para a Interpol.
— Oh, sim, já me lembro — disse Dunne, com os dedos a matraquearem no teclado.
Passado um momento, a cara de Outubro surgiu no ecrã.
— E que queres que eu faça?
— Acho que ele é capaz de ter feito uma operação plástica para mudar de cara — disse Michael. — Tenho quase a certeza de que o trabalho foi feito por um francês chamado Maurice Leroux.
— O doutor Leroux pode ter feito todo o tipo de coisas para lhe alterar a aparência.
— Podes mostrar-me umas quantas? — pediu Michael. — Podes fazer uma série completa? Mudar-lhe o cabelo, pôr-lhe uma barba, tudo.
— Vai demorar um bocado.
— Eu espero.
— Senta-te ali — disse Dunne. — E, por amor de Deus, Osbourne, não mexas em nada.
Foi logo a seguir à meia-noite que o carro com motorista de Mónica Tyler chegou ao complexo de Harbor Place, na zona costeira de Georgetown. O guarda-costas abriu-lhe a porta e seguiu-a pelo átrio de entrada até ao elevador. Acompanhou-a à porta do apartamento e deixou-se ficar ali quando ela entrou.
Mónica pôs a água a correr na banheira gigante e despiu-se. Já era quase manhã em Londres. O Director era conhecido por se levantar muito cedo; ela sabia que ele estaria sentado à secretária dali a poucos minutos. Enfiou-se na banheira e deixou-se descontrair na água quente. Depois de terminar, embrulhou-se num grosso roupão branco.
Foi até à sala de estar e sentou-se atrás da secretária de mogno. Havia aí três telefones: um telefone normal com oito linhas, um telefone interno para Langley e um telefone especial seguro que lhe permitia ter conversas sem medo de haver alguém à escuta. Olhou para o relógio de ouro de antiquário que tinha sobre a secretária, um presente da sua antiga firma na Wall Street: 0h45.
Mónica lembrou-se das circunstâncias — as coincidências, as alianças políticas e os acasos felizes — que a tinham conduzido até ao topo da CIA. Terminara o curso na Faculdade de Direito de Yale em segundo lugar, mas, em vez de partir para uma grande firma, acrescentou ao currículo um MBA em Harvard e foi para a Wall Street ganhar dinheiro. Foi lá que conheceu Ronald Clark, angariador de fundos republicano e um homem astuto que entrava e saía de Washington consoante os republicanos controlavam ou não a Casa Branca. Mónica seguiu Clark para o Tesouro, Comércio, Negócios Estrangeiros e Defesa. Quando o presidente Beckwith o nomeou como director da CIA, Mónica tornou-se a directora executiva, o segundo cargo mais poderoso na agência. Quando Clark decidiu reformar-se, Mónica fez lóbi no sentido de ser escolhida para o cargo principal e Beckwith concedeu-lho.
Ronald Clark deixou-lhe uma CIA num estado de desordem. Uma série de outros casos de espionagem, incluindo o caso Aldrich Ames, tinha devastado o moral. A agência não tinha conseguido prever que tanto a índia como o Paquistão se encontravam prestes a fazer explodir engenhos nucleares ou que o Irão e a Coreia do Norte estavam prestes a testar mísseis balísticos capazes de atingirem os seus vizinhos. Durante as audiências para a sua homologação, vários senadores insistiram com ela para que justificasse o tamanho e o custo da CIA; um deles interrogou-se alto e bom som se os Estados Unidos precisariam realmente de uma CIA numa altura em que a guerra fria tinha terminado.
Supostamente, ela deveria ser uma espécie de mera caseira, alguém que mantivesse a cadeira no gabinete do director da CIA quente durante um par de anos, até o sucessor de Beckwith poder nomear o seu chefe dos serviços secretos. Mas ela revelou-se incapaz de desempenhar o papel de caseira e deu início à missão de se tornar indispensável a quem quer que se sentasse na Sala Oval depois de Beckwith; republicano ou democrata.
Achava-se a única pessoa em Langley com a visão para conduzir a CIA pelo terreno instável do período pós-guerra fria. E também tinha estudado a história da espionagem. Sabia que por vezes era necessário sacrificar alguns de maneira a garantir a sobrevivência de muitos. Sentia uma afinidade com os agentes especialistas em logro durante a Segunda Guerra Mundial, que enviavam homens e mulheres para a morte de modo a enganar a Alemanha nazi. Nunca iria permitir que a CIA fosse castrada. Nunca iria permitir que os Estados Unidos ficassem sem um serviço de informações conveniente. E iria fazer tudo para se assegurar de que era ela quem comandava as operações. E era por isso que tinha aderido à Sociedade e que seguia o seu código.
A uma da manhã, levantou o auscultador do telefone seguro e marcou um número. Passados alguns segundos, ouviu a voz agradável e educada da assistente do Director, Daphne. A seguir, o Director veio ao telefone.
— Já não precisa de se preocupar com o Osbourne — disse ela. — Foi-lhe atribuído um novo caso e o processo referente ao caso Outubro foi efectivamente arquivado.
No que à CIA diz respeito, o Outubro está morto e enterrado.
— Muito bem — disse o Director.
— E onde é que está a encomenda?
— A caminho das Caraíbas — respondeu ele. — Deve estar a chegar aos Estados Unidos durante as próximas trinta e seis a quarenta e oito horas. E depois estará tudo terminado.
— Excelente — disse ela.
— Confio que transmitirás quaisquer informações que possam ajudar a encomenda a chegar a tempo ao seu destino.
— Claro, Director.
— Eu sabia que podia contar contigo. Bom dia, Picasso — disse o Director, e a ligação foi interrompida.
Capítulo 35
BAÍA DE CHESAPEAKE, MARYLAND
O Boston Whaler ia ressaltando nas águas agitadas da baía de Chesapeake. O céu estava limpo e a noite, fria de rachar; uma brilhante lua de quarto crescente flutuava lá no alto, acima do horizonte a leste. Delaroche tinha apagado as luzes de presença pouco depois de entrar na embocadura da baía. Esticou o braço e carregou num botão da unidade de navegação instalada no painel de instrumentos. O sistema GPS calculou automaticamente a longitude e a latitude exactas a que se encontrava; estavam no centro das movimentadas rotas de navegação do canal de Chesapeake.
Rebecca Wells estava ao seu lado, segurando com força o leme da segunda consola do Whaler. Sem falar, apontou para o lado de lá da proa. A frente deles, talvez a um quilómetro e meio, brilhavam os faróis de um navio de carga. Delaroche virou alguns graus a bombordo e avançou a toda a velocidade pelas águas pouco fundas da margem ocidental.
Tinha planeado meticulosamente o seu percurso pela baía de Chesapeake durante a longa viagem de Nassau até à costa leste. Tinham efectuado essa etapa da viagem a bordo de um grande iate a caminho do oceano, pilotado por um par de antigos homens da SAS pertencentes à Sociedade. Ele e Rebecca ficaram em camarotes de luxo contíguos.
De dia, estudavam mapas de Chesapeake, analisavam os dossiês de Michael Osbourne e Douglas Cannon e memorizavam as ruas de Washington. A noite, iam até ao convés da popa e treinavam a pontaria com as Beretta de Delaroche. Rebecca pressionou-o para que lhe dissesse o nome dele, mas, de cada vez que perguntava, Delaroche limitava-se a abanar a cabeça e mudava de assunto. Sentindo-se frustrada, baptizou-o de "Pierre", o que Delaroche detestou. Na última noite a bordo do iate, admitiu que não tinha um nome verdadeiro mas que, se ela achava que era necessário referir-se a ele como qualquer coisa, então devia chamar-lhe Jean-Paul.
Delaroche continuava furioso por ser obrigado a trabalhar com a mulher, mas o Director tinha tido razão numa coisa: ela não era amadora nenhuma. O conflito na Irlanda do Norte tinha-lhe aguçado ao máximo as capacidades. Possuía uma memória soberba e instintos operacionais perfeitos. Era alta e bastante forte para uma mulher, e, após três noites de treino com a Beretta, já era uma atiradora mais do que razoável. Delaroche estava preocupado apenas com uma coisa — o idealismo dela. Ele só acreditava na sua arte. Os fanáticos enervavam-no. Em tempos, Astrid Vogel tinha sido uma crente como Rebecca — quando fazia parte do grupo terrorista comunista da Alemanha Ocidental, a Facção Exército Vermelho —, mas, quando ela e Delaroche trabalharam juntos, já tinha descartado os seus ideais e estava naquilo apenas pelo dinheiro.
Delaroche tinha decorado todos os pormenores de Chesapeake — os bancos de areia, os rios e as baías, os terrenos planos e os promontórios. Tudo o que necessitava era de uma indicação do GPS para saber exactamente onde se encontrava em relação a terra. Tinha passado Sandy Point, Cherry Point e Windmill Point. Quando chegou a Bluff Point, já se sentia hirto e dorido do frio. Desligou os motores e beberam café quente de um termos.
Verificou a unidade de navegação GPS: 38,50 graus de latitude por 76,31 graus de longitude. Sabia que estava a aproximar-se de Curtis Point, um promontório na embocadura do West River. O seu destino era o South River, o rio seguinte por onde entrava o mar e que ia desembocar na baía, vindo de Maryland, mais ou menos a cinco quilómetros e meio a norte. Ao passar Saunders Point, viu a primeira luz do dia surgir a leste, a estibordo do Whaler. Contornou Turkey Point e sentiu o empurrão ligeiro da maré vinda do South River.
Acelerou a fundo, subindo o rio para nordeste. Queria chegar a costa e estar na estrada antes de amanhecer. Passou a grande velocidade por Mayo Point e Brewer Point, Glebe Bay e Crab Creek. Passou por baixo de uma ponte e depois de outra. Chegou à desembocadura de um ribeiro e verificou a unidade de navegação para ter a certeza de que se tratava do Broad Creek. A maré estava a baixar e tinha deixado o ribeiro com menos água do que os mapas haviam prometido; por duas vezes, Delaroche saltou para dentro da água gélida e empurrou o Whaler, desencalhando-o do fundo.
Por fim, atingiu a nascente do ribeiro. Encalhou o Whaler num. pedaço de relva pantanosa, desligou o motor, pulou para terra e, puxando pela corda da proa, arrastou o barco mais para dentro do pântano.
Rebecca trepou para o compartimento da frente e pegou num grande saco de lona repleto de material: roupa, dinheiro e equipamento electrónico. Entregou o saco a Delaroche e, a seguir, desceu do barco para o pântano encharcado. O carro estava estacionado num caminho de terra batida, exactamente onde o Director tinha dito que estaria: um grande Volvo preto, com matrícula do Quebeque.
Delaroche tinha uma chave. Abriu o porta-bagagens e atirou o saco lá para dentro. Seguiu por uma série de estradas com duas faixas durante vários quilómetros, passando por terras de cultivo e pastagens iluminadas pelo sol, até chegar à Route 50. Virou para a auto-estrada e seguiu para leste, em direcção a Washington.
Uma hora depois de irem buscar o Volvo, entraram em Washington pela New York Avenue, um corredor de passagem imundo utilizado por quem entrava e saía da cidade diariamente, que se estendia da secção nordeste da cidade até aos subúrbios de Maryland. Delaroche tinha parado uma vez numa estação de serviço à beira da estrada para que ele e Rebecca pudessem mudar-se e vestir roupas mais apropriadas. Atravessou a cidade pela Massachusetts Avenue e parou junto ao caminho de acesso ao hotel em Embassy Row, perto de Dupont Circle. Tinham uma reserva à espera deles, em nome do senhor Clau-de Duras e esposa, de Montreal.
As exigências da história que lhes servia de disfarce obrigaram-nos a partilhar o mesmo quarto. Dormiram até meio da tarde, Rebecca na cama de casal e Delaroche no chão, com a coberta da cama a fazer as vezes de colchão. Acordou de repente, às quatro da tarde, surpreendido pelo que o rodeava, e deu-se conta de que tinha estado a sonhar outra vez com Maurice Leroux.
Pediu, que lhe trouxessem café ao quarto e bebeu-o enquanto guardava vários artigos numa mochila de nylon azul: duas peças de equipamento electrónico sofisticado, dois telemóveis, uma lanterna, várias ferramentas pequenas e uma Beretta de nove milímetros. Rebecca saiu da casa de banho, trazendo calças de ganga azuis, ténis e uma camisola de mangas compridas com as palavras Washington, d. c. e uma imagem da Casa Branca bordadas.
— Como é que estou? — perguntou.
— O teu cabelo está demasiado louro — respondeu Delaroche, enfiando a mão no saco de lona e atirando-lhe um boné de basebol. — Põe isso.
Telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para ter o Volvo à espera deles. Seguiu para oeste no carro, percorrendo a P Street. Havia um mapa turístico no tabliê, que Delaroche não se deu ao trabalho de abrir; as ruas de Washington, tal como as águas de Chesapeake, estavam-lhe gravadas na memória.
Entrou em Georgetown e foi avançando pelas ruas sossegadas e repletas de folhas. Era considerado o bairro mais chique de Washington, com passeios em tijoleira e grandes casas no estilo de arquitectura federal, mas para Delaroche, cujo olhar estava habituado aos canais e às casas com empenas de Amesterdão, tudo parecia bastante prosaico.
Continuou para oeste, pela P Street, até chegar à Wisconsin Avenue. Aí, seguiu para sul, acompanhado pelo ritmo pulsante da música rap que vibrava do BMW dourado atrás de si. Virou para a N Street e a loucura da Wisconsin Avenue dissipou-se lentamente, ficando para trás.
A casa estava vazia, exactamente como Delaroche sabia que estaria. O embaixador Cannon chegaria de Londres na tarde do dia seguinte. Ia dar um jantar privado para amigos e família nessa noite. Um dia depois, participaria numa conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca e, a seguir, estaria presente num conjunto de recepções nocturnas, da responsabilidade das partes participantes nas conversações. Estava tudo no dossiê do Director.
Delaroche estacionou à esquina da casa, na Thirty-third Street. Colocou uma máquina fotográfica ao pescoço e passeou-se pelo quarteirão sossegado, de braço dado com Rebecca, parando aqui e ali para admirar as grandes casas citadinas de tijolo com a luz a jorrar das janelas. Era bastante parecido com Amesterdão, pensou, a maneira como as pessoas deixavam as cortinas abertas e permitiam que quem passasse lhes olhasse para dentro de casa e avaliasse as suas posses.
Já lá tinha estado antes; sabia os desafios que a N Street colocava a um homem como ele. Não havia cafés onde pudesse demorar-se a beber um café, não havia lojas para fazer compras como medida de diversão, não havia praças nem parques para passar o tempo sem atrair atenção — apenas grandes e dispendiosas casas, com vizinhos metediços e sistemas de segurança.
Passaram à frente da casa dos Osbourne. Um grande carro preto estava estacionado do outro lado da rua. Sentado ao volante, estava um homem com uma gabardina castanho-clara, a ler a secção desportiva do The Washington Post. Lá se ia a teoria do Director de que seria fácil matar o embaixador Cannon enquanto ele estivesse em Washington, pensou Delaroche. O homem ainda nem sequer tinha posto os pés na cidade e a casa já se encontrava sob vigilância.
Parou a um quarteirão de distância e tirou fotografias à casa onde John Kennedy tinha vivido quando era um senador do Massachusetts. Alguns secretários ministeriais viviam em Georgetown; as suas casas estavam sob vigilância constante. Se o funcionário em questão estivesse envolvido em matérias de segurança nacional, como o secretário de Estado ou o secretário da Defesa, os seus guarda-costas poderiam até manter um posto permanente num apartamento vizinho. Mas Delaroche estava convicto de que as medidas de segurança para Douglas Cannon consistiam inteiramente no homem com a gabardina castanho-clara — pelo menos, até àquele momento.
Seguiu, com Rebecca atrás, para sul pela Thirty-first Street, cerca de meio quarteirão, até chegarem a uma viela que se estendia por trás da casa dos Osbourne. Espreitou para a quase escuridão; tal como suspeitava, parecia que as traseiras da casa não se encontravam vigiadas.
Delaroche entregou um telemóvel a Rebecca.
— Fica aqui. Liga se houver algum problema. Se eu não regressar daqui a cinco minutos, vai-te embora e volta para o hotel. Se eu não der notícias durante a próxima meia hora, entra em contacto com o Director e faz um pedido de extracção.
Rebecca assentiu com um aceno de cabeça. Delaroche deu meia-volta e começou a avançar pela viela. Parou atrás da casa dos Osbourne e, a seguir, trepou a vedação habilmente e deixou-se cair num jardim bem arranjado que rodeava uma pequena piscina. Olhou para cima e seguiu as linhas que vinham do posto telefónico na viela até ao ponto em que se ligavam à casa. Atravessou o jardim e ajoelhou-se em frente à caixa do telefone nas traseiras da casa. Abriu o fecho da mochila e tirou as ferramentas e uma lanterna. Segurando a lanterna entre os dentes, desatarraxou os parafusos que seguravam a tampa da caixa e estudou a configuração das linhas durante um momento.
Havia duas linhas com ligação à casa, mas Delaroche apenas possuía o equipamento para pôr uma delas sob escuta. Suspeitou que uma das linhas estava provavelmente reservada para as chamadas e a outra para um fax ou modem. Voltou a enfiar a mão na mochila e tirou um pequeno aparelho electrónico. Ligado à linha telefónica dos Osbourne, iria transmitir um sinal de rádio de alta frequência para o telemóvel de Delaroche, permitindo-lhe monitorizar as chamadas do casal. Delaroche demorou apenas dois minutos a instalar o aparelho na linha principal dos Osbourne e a atarraxar novamente a tampa da caixa do telefone.
O segundo aparelho seria muito mais fácil de instalar, uma vez que necessitava apenas de uma janela. Era um mecanismo de escuta que, quando ligado ao exterior de uma janela, iria detectar a vibração das ondas sonoras no interior da estrutura e convertê-las em áudio simulado. Delaroche prendeu o sensor à parte inferior de uma janela )unto à sala de estar principal. Estava escondido por um arbusto, no exterior, e pela aba de uma mesa, no interior da casa. Enterrou a unidade de conversão e transmissão numa zona de adubo vegetal no jardim.
Voltou para trás, seguindo pelo relvado pelo mesmo caminho que tinha feito. Atirou a mochila para o outro lado da vedação e, a seguir trepou-a e deixou-se cair na viela. As duas unidades que tinha acabado de colocar na casa dos Osbourne possuíam um alcance efectivo de três quilómetros, o que lhe possibilitaria monitorizá-los a partir da segurança do seu quarto de hotel em Dupont Circle.
Rebecca estava à espera dele no final da viela.
— Vamos embora — disse ele. Pegou-lhe na mão e regressaram ao Volvo.
Delaroche estava sentado diante de um auscultador do tamanho de uma caixa de sapatos, a testar o sinal do transmissor que tinha colocado na janela dos Osbourne.
Rebecca encontrava-se na casa de banho. Conseguia ouvir o som da água a correr no lavatório. Já estava lá dentro há mais de uma hora. Por fim, a água parou de correr e ela saiu, num roupão de banho do hotel, com o cabelo enrolado numa toalha branca como um xeque. Acendeu um dos cigarros dele e perguntou:
— Funciona?
— O transmissor está a enviar um sinal, mas só vou poder ter a certeza quando estiver alguém dentro de casa.
— Tenho fome — disse ela.
— Pede qualquer coisa para comer ao serviço de quartos.
— Quero sair.
— É melhor ficarmos aqui.
— Andei dez dias enfiada em barcos. Quero sair.
— Veste-te e eu levo-te a qualquer lado.
— Fecha os olhos — disse ela.
Em vez disso, Delaroche voltou-se e ficou de frente para ela. Esticou o braço e puxou-lhe a toalha que tinha à volta da cabeça. O cabelo dela já não possuía um tom louro abrasivo; estava quase preto e brilhava da humidade. De repente, encontrava-se em sintonia com o resto do seu aspecto — os olhos cinzentos, a pele branca e luminosa, o rosto oval. Apercebeu-se de que era uma mulher formidavelmente bonita. Depois ficou zangado; desejou poder esconder-se numa casa de banho com uma garrafa de elixir e sair de lá, passada uma hora, com a sua cara antiga.
Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Tens cicatrizes — disse, passando-lhe com um dedo pela linha do maxilar. — O que é que aconteceu?
— A minha cara não era esta. Se nos mantivermos muito tempo neste ramo, uma cara pode tornar-se uma fonte de risco.
O dedo dela já tinha passado da linha do maxilar para a maçã do rosto e tocava agora nos implantes de colagénio logo por baixo da pele.
— Como é que eras antes?
Delaroche arqueou as sobrancelhas e reflectiu sobre a pergunta dela por um instante. Pensou: como descreveria uma pessoa a sua própria aparência? Se dissesse que em tempos tinha sido belo, antes de Maurice Leroux lhe ter destruído a cara, ela poderia achar que era um mentiroso. Sentou-se à secretária e pegou numa folha de papel do hotel e num lápis.
— Afasta-te por uns minutos — disse.
Ela foi outra vez para a casa de banho, fechou a porta e ligou o secador de cabelo. Ele trabalhou depressa, com o lápis a rabiscar na folha. Depois de terminar, avaliou as suas feições de uma forma bastante desapaixonada, como se pertencessem a uma criatura por ele imaginada.
Enfiou o auto-retrato por baixo da porta da casa de banho. O secador parou de fazer barulho. Rebecca saiu, com a antiga cara de Delaroche nas mãos. Olhou para ele e, a seguir, para a imagem na folha. Beijou o retrato e deixou-o cair no chão. A seguir, beijou Delaroche.
— Quem era ela, Jean-Paul?
— Quem?
— A mulher em que estavas a pensar enquanto fazias amor.
— Eu estava a pensar em ti.
— Não o tempo todo. Eu não estou zangada, Jean-Paul. Não é como se...
Deteve-se antes de poder acabar de dizer aquilo em que estava a pensar. Delaroche interrogou-se sobre o que poderia ela ter dito. Ficou deitada de costas, com a cabeça pousada no abdómen dele e o cabelo escuro espalhado pelo peito. A luz da rua entrava pelas cortinas abertas e caía-lhe sobre o corpo comprido. Tinha a cara ruborizada e arranhada de ter feito amor, mas o resto do corpo era branco-marfim à luz do candeeiro. Era a pele de uma pessoa que raramente tinha visto o sol; Delaroche duvidava que ela alguma vez tivesse posto os pés fora das Ilhas Britânicas antes de ter sido forçada a andar escondida.
— Ela era bonita? E não me mintas mais.
— Sim — respondeu.
— E como é que se chamava?
— Chamava-se Astrid.
— Astrid quê?
— Astrid Vogel.
— Lembro-me de uma mulher chamada Astrid Vogel que fazia parte da Facção Exército Vermelho — disse Rebecca. — Abandonou a Alemanha e andou escondida depois de assassinar um polícia alemão.
— Essa era a minha Astrid — confirmou Delaroche, passando com o dedo por cima da borda do seio de Rebecca. — Mas a Astrid não matou o polícia alemão. Eu é que o matei. Ela limitou-se a pagar o preço.
— Então, és alemão? Delaroche abanou a cabeça.
— Então, és o quê? Qual é o teu nome verdadeiro?
Mas ele ignorou a pergunta. Os dedos passaram do seio dela para a parte de fora da caixa torácica. O abdómen de Rebecca reagiu involuntariamente ao toque dele, retraindo-se repentinamente. Delaroche acariciou-lhe a pele branca do estômago e a parte de cima das coxas. Por fim, ela pegou-lhe na mão e colocou-a entre as pernas. Os olhos fecharam-se-lhe. Uma rajada de vento agitou as cortinas e ela ficou com pele de galinha do calafrio. Tentou tapar o corpo com a coberta, mas Delaroche afastou-a.
— Havia coisas na casa flutuante de Amesterdão que pertenciam a uma mulher — disse ela baixinho, de olhos fechados. — A Astrid vivia naquele barco, não vivia?
— Sim, vivia.
— E tu vivias lá com ela?
— Durante um tempo.
— E fizeram amor na cama por baixo da clarabóia?
— Rebecca...
— Não há problema — interrompeu ela. — Não vais ferir-me os sentimentos.
— Sim, fizemos.
— E o que é que lhe aconteceu?
— Foi morta.
— Quando?
— No ano passado.
Rebecca afastou a mão dele e sentou-se na cama.
— O que é que aconteceu?
— Estávamos a trabalhar juntos numa coisa aqui na América e deu tudo para o torto.
— Quem a matou?
Delaroche hesitou por um momento; tudo aquilo já tinha ido longe de mais. Sabia que devia acabar com a conversa, mas, por alguma razão, queria contar-lhe mais coisas.
Talvez Vladimir tivesse razão. Um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional...
— O Michael Osbourne — atirou. — Na verdade, a mulher dele é que a matou.
— Porquê?
— Porque nós fomos enviados para cá para matar o Michael Osbourne — respondeu e, a seguir, parou por uns instantes, com os olhos a percorrerem-na rapidamente. — Às vezes, neste ramo, as coisas não correm como planeado.
— E porque é que foram contratados para matar o Osbourne?
— Porque ele sabia demasiado acerca de uma das operações da Sociedade.
— Qual operação?
— O abate do Voo 002 da TransAdantic no ano passado.
— Julgava que tinha sido abatido por aquele grupo árabe, a Espada de Gaza.
— Foi abatido a mando de um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott. A Sociedade fez com que parecesse que a Espada de Gaza estava envolvida para que a empresa do Elliott pudesse vender um sistema de defesa antimíssil ao governo americano. O Osbourne suspeitava disso e, por isso, eu fui contratado pelo Director para eliminar toda a gente envolvida na operação, bem como o Osbourne.
— E quem é que abateu de facto o avião?
— Um palestiniano chamado Hassan Mahmoud.
— Como é que sabes?
— Sei porque estava lá nessa noite. E porque o matei quando já estava tudo terminado.
Ela afastou-se dele. Delaroche conseguia ver um medo real na cara dela e sentir a cama a abanar ligeiramente por ela estar a tremer. Rebecca puxou o cobertor para o peito para esconder o corpo dele. Ele olhou-a fixamente, sem a mínima expressão no rosto.
— Meu Deus — soltou ela. — Tu és um monstro.
— Porque é que dizes isso?
— Havia mais de duzentas pessoas inocentes naquele avião.
— Então e as pessoas inocentes que os vossos bombistas mataram em Londres e Dublin?
— Nós não o fizemos por dinheiro — rosnou ela.
— Vocês tinham uma causa — disse ele, com desprezo.
— Exactamente.
— Uma causa que tu achas que é justa.
— Uma causa que eu sei que é justa — respondeu ela. — Enquanto tu és capaz de matar qualquer pessoa desde que o preço seja o certo.
— Meu Deus, mas tu és mesmo uma mulher estúpida, não és? Ela tentou esbofeteá-lo, mas ele agarrou-lhe a mão e segurou-a firmemente, resistindo com facilidade às tentativas dela para se soltar.
— Porque é que julgas que a Sociedade está disposta a ajudar-te? — perguntou Delaroche. — Porque acreditam nos direitos sagrados dos protestantes na Irlanda do Norte?
Claro que não. Porque acham que isso vai beneficiar os seus próprios interesses. Porque acham que isso os fará ganhar dinheiro. A história passou-vos ao lado, Rebecca.
Os protestantes já tiveram o seu tempo na Irlanda do Norte e agora acabou. Por mais bombas, por mais assassínios que haja, não há nada que vá fazer o relógio voltar para trás.
— Se acreditas nisso, porque é que estás a fazer isto?
— Eu não acredito em nada. Isto é o que eu faço. Já matei em nome de todas as causas fracassadas na Europa. A tua é só a mais recente —: respondeu, largando-a e vendo-a afastar-se, a esfregar a mão como se tivesse tocado em alguma coisa perversa — e espero que a última.
— Eu devia ter continuado a andar naquele dia em Amesterdão.
— Provavelmente, tens razão. Mas agora estás aqui e não tens outro remédio senão ficar comigo, e se fizeres precisamente o que eu te disser até pode ser que sobrevivas.
Nunca mais verás a Irlanda do Norte, mas pelo menos estarás viva.
— Não sei bem porquê, mas duvido — respondeu ela. — Vais matar-me quando isto terminar tudo, não vais?
— Não, não te vou matar.
— Provavelmente, também mataste a Astrid Vogel.
— Eu não matei a Astrid e não te vou matar, Rebecca.
Puxou pelo cobertor e deixou-lhe o corpo à luz. Estendeu-lhe a mão, mas ela continuou parada.
— Pega na minha mão — disse Delaroche. — Eu não vou fazer-te mal. Dou-te a minha palavra.
Rebecca pegou-lhe na mão. Ele puxou-a para junto de si e deu-lhe um beijo na boca. Ela resistiu durante um momento; a seguir, rendeu-se, beijando-o e arranhando-lhe a pele como se estivesse a afogar-se nos seus braços. Quando o conduziu para dentro do corpo dela, ficou subitamente muito quieta, olhando para Delaroche de uma forma tão directa como um animal, enervando-o.
— Gosto mais da tua outra cara — disse ela.
— Eu também.
— Quando tudo isto tiver terminado, talvez possamos ir ter outra vez com o médico que fez isto e ele consiga pôr a tua cara como estava antes.
— Receio que isso não seja possível — respondeu.
Ela pareceu compreender exactamente o que ele estava a dizer.
— Se não me vais matar — disse ela —, então porque é que me contaste os teus segredos?
— Não sei bem.
— Quem és tu, Jean-Paul?
Capítulo 36
WASHINGTON
Na manhã seguinte, Michael e Elizabeth viajaram de avião de Nova Iorque para Washington, acompanhados pelas crianças e Maggie. Separaram-se no National Airport.
Michael seguiu para a Casa Branca num carro grande do governo com motorista, para efectuar o relatório sobre a Irlanda do Norte ao conselheiro para a Segurança Nacional, William Bristol; Elizabeth, Maggie e os filhos entraram todos num carro de serviço, um luxuoso Ford, que os levaria até Georgetown.
Elizabeth já não vinha ao grande prédio de tijolo vermelho, no estilo de arquitectura federal, da N Street há mais de um ano. Adorava a antiga casa, mas, ao subir os degraus de tijolo encurvados, sentiu-se subitamente assaltada por más recordações. Lembrou-se da longa luta com o seu próprio corpo para ter filhos. Lembrou-se da tarde em que Astrid Vogel lá tinha ido para a fazer refém para que o assassino chamado Outubro pudesse assassinar o seu marido.
— Está tudo bem, Elizabeth? — perguntou Maggie. Elizabeth interrogou-se quanto tempo teria estado parada daquela forma, com a chave na mão, incapaz de abrir a porta.
— Sim, está tudo óptimo, Maggie. Só estava a pensar numa coisa.
O alarme chilreou quando ela empurrou a porta da frente. Marcou o código de desactivação e o alarme calou-se. Michael tinha transformado o sítio numa fortaleza, mas ela nunca iria sentir-se completamente segura ali.
Ajudou Maggie a instalar as crianças e depois levou a mala para o quarto, no andar de cima. Estava a abri-la quando a campainha tocou. Desceu para o andar de baixo e espreitou pela vigia da porta. Lá fora, estava um homem de cabelo castanho com um fato azul e uma gabardina castanho-clara.
— O que deseja? — perguntou ela, sem abrir a porta.
— O meu nome é Brad Heyworth, senhora Osbourne. Sou o agente dos Serviços de Segurança do Corpo Diplomático encarregado de vigiar a sua casa.
Elizabeth abriu a porta.
— Da DSS[37]? Mas o meu pai só chega de Londres daqui a seis horas.
— Na verdade, há já um par de dias que andamos a vigiar a casa, senhora Osbourne.
— Porquê?
— Depois do incidente no Reino Unido, decidimos que seria provavelmente melhor pecarmos por excesso de prudência.
— E está sozinho?
— Por enquanto, mas quando o embaixador chegar acrescentaremos um segundo homem à equipa.
— Isso é tranquilizador — afirmou ela. — Não quer entrar?
— Não, obrigado, senhora Osbourne, eu preciso de ficar cá fora.
— E não quer que lhe traga nada?
— Estou óptimo — respondeu ele. — Só queria que a senhora soubesse que estamos por perto.
— Obrigada, agente Heyworth.
Elizabeth fechou a porta e ficou a ver o homem da DSS a descer os degraus da frente da casa e voltar a entrar no carro. Sentiu-se contente por ele ali estar. Foi para o andar de cima e sentou-se à secretária no antigo escritório de Michael. Fez uma série de telefonemas curtos: para o serviço de fornecimento de comida RidgewelTs, para o serviço de empregados particulares, para o seu escritório em Nova Iorque a fim de saber se havia mensagens. A seguir, passou mais uma hora a responder a chamadas.
Maria, a empregada doméstica, chegou ao meio-dia. Elizabeth vestiu um fato de treino de nylon e saiu para a rua. Desceu os degraus da frente aos saltos, acenou com a mão a Brad Heyworth e começou a correr pelo passeio em tijoleira da N Street.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tinha pendurado o aviso de não incomodar na maçaneta da porta do quarto e trancou-a com duas voltas. Durante a última hora, tinha estado a ouvir Elizabeth Osbourne: a falar ao telefone, a falar com a ama e os filhos, a falar com o agente da DSS que estava a guardar-lhe a casa. Agora, Delaroche sabia exactamente quando Douglas Cannon chegaria de Londres e quando sairia para a Casa Branca na manhã seguinte para estar presente na conferência sobre a Irlanda do Norte. E também sabia que o agente da DSS estacionado à porta da casa se chamava Brad Heyworth e que um segundo agente se iria juntar à equipa de segurança depois de o embaixador chegar.
Ouviu a chegada de uma empregada doméstica chamada Maria, que falava com um sotaque espanhol carregado: sul-americana, calculou Delaroche — Peru, ou talvez Bolívia.
Ouviu Elizabeth Osbourne anunciar que ia correr e que regressaria dentro de uma hora. Deu um salto quando ela bateu com força com a porta da frente ao sair de casa.
Cinco minutos mais tarde, foi apanhado de sobressalto por um ruído estrondoso que parecia o roncar de um motor a jacto. O barulho era tanto, que teve de arrancar os auscultadores dos ouvidos. Por um momento, pensou que tivesse acontecido alguma calamidade à casa dos Osbourne. Depois, percebeu que era apenas Maria a passar com o aspirador perto da janela onde Delaroche tinha colocado o microfone.
O jantar dado por Douglas Cannon começou por ser pensado como uma celebração íntima para oito pessoas, mas, no rescaldo dos acontecimentos em Hartley Hall, tinha-se metamorfoseado numa grande festa para cinquenta convidados, com serviço de fornecimento de comida, mesas e cadeiras alugadas e um conjunto de rapazes universitários vestidos com casacos azuis e tendo por missão estacionar os carros nas ruas atafulhadas de viaturas de Georgetown. Era assim que funcionava a natureza da fama em Washington. Douglas tinha vivido e trabalhado na cidade durante mais de vinte anos, mas alguém tentara matá-lo e isso fazia dele uma estrela. A CIA e os serviços secretos britânicos tinham contribuído para a notoriedade repentina do embaixador ao porem a circular uma história sobre a calma de Douglas debaixo de fogo em Hartley Hall, ainda que ele estivesse aconchegado com toda a segurança na cama, em Winfield House, na altura em que o ataque se iniciou. Douglas tinha colaborado de boa vontade na intrincada ruse de guerre[38]. Afinal, retirava um certo prazer adolescente em enganar os barões dos media de Washington.
Os convidados começaram a chegar poucos minutos depois das sete da tarde. Estavam presentes dois velhos amigos de Douglas do Senado e um punhado de congressistas.
A chefe do departamento de Washington da NBC News compareceu, acompanhada pelo marido, que era o chefe de departamento da CNN. Cynthia Martin veio sozinha; Adrian Cárter trouxe a mulher, Christine. Para proteger Michael, que ainda era um membro clandestino da CIA, Cárter e Cynthia disseram que trabalhavam para o Departamento de Estado em matérias relacionadas com a Irlanda do Norte. Cárter quis falar a sós com Michael por um momento e, por isso, deslocaram-se até ao jardim e ficaram junto à piscina.
— Como é que as coisas correram com o Bristol hoje de manhã? — perguntou Cárter.
— Ele pareceu impressionado com o produto — respondeu Michael. — O Beckwith também lá apareceu um bocadinho.
— A sério?
— Disse que estava contente com o resultado da Operação Timbale e que o processo de paz tinha encarrilado outra vez. Tinhas razão, Adrian, ele quer mesmo muito que aquilo aconteça. — Michael hesitou e, a seguir, perguntou: — Então, quer dizer que a minha ligação à Irlanda do Norte terminou oficialmente?
— Quando as delegações abandonarem Washington, vamos passar tudo para a Cynthia e transferir-te de novo para a divisão do Médio Oriente.
— Se há alguma coisa que é constante na CIA, é a mudança — respondeu Michael. — Mas gostava de saber à mesma porque é que a Mónica resolveu baralhar as cartas nesta altura e porque é que quer que eu saia do caso Outubro.
— Para a Mónica, o processo Outubro está fechado. Ela acha que, mesmo que o Outubro continue vivo e a trabalhar, não constitui uma ameaça para cidadãos ou interesses americanos e que, por isso, não entra na esfera de actuação do centro.
— E tu concordas?
— Claro que não e já lhe disse isso mesmo. Mas ela é a directora e, em última análise, é ela que decide quais são os nossos alvos.
— Na tua posição, um homem a sério demitir-se-ia.
— Nem todos têm a flexibilidade financeira para poder assumir posições morais de coragem, Michael.
Elizabeth apareceu junto às portas envidraçadas.
— Vocês os dois importam-se de entrar, por favor? — disse. — Até parece que nunca têm uma oportunidade para conversar.
— Já aparecemos daqui a um minuto — respondeu Michael.
— Só mais outra coisa — disse Adrian depois de Elizabeth se ir embora. — Soube da tua sessãozinha de retratos com o Morton Dunne na OTS no outro dia. Mas que raio se passou?
— Um cirurgião plástico chamado Maurice Leroux foi assassinado em Paris há um par de semanas.
— E?
— Estava a pensar que o Outubro pode ter mudado de cara.
— E depois teria matado o médico que lhe fez isso?
— Passou-me pela cabeça, sim.
— Ouve, Michael... a Mónica retirou-te do caso. Não quero que te armes mais em freelancer. Nada de andar a vasculhar processos, nada de operações privadas. No que te diz respeito, o Outubro está morto.
— Não estás a ameaçar-me, pois não, Adrian?
— Por acaso, até estou.
Delaroche tirou os auscultadores e acendeu um cigarro. Os imensos convidados do jantar tinham-lhe inundado o microfone de repente, de tal forma que a única coisa que ouvia era um zumbido constante, interrompido por pedaços incompreensíveis de conversas e gargalhadas ocasionais.
Desligou o gravador e tirou a Beretta de nove milímetros do estojo de aço inoxidável. Desmontou a pistola e limpou cada uma das peças meticulosamente com um pano macio, enquanto decidia como iria matar o embaixador e Michael Osbourne.
Capítulo 37
WASHINGTON
— Feliz Dia de São Patrício — declarou o presidente James Beckwith, ao subir ao pódio no Jardim das Rosas, na manhã seguinte.
Ao seu lado, tinha o primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern, e o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Robin Cook. Atrás do presidente, encontravam-se os líderes dos partidos nacionalistas e unionistas da região, incluindo Gerry Adams, do Sinn Fein, e David Trimble, do Partido Unionista do Ulster, que naquele momento era efectivamente o primeiro-ministro da Irlanda do Norte.
— Estamos hoje aqui reunidos não em crise mas sim em comemoração — prosseguiu Beckwith. — Comemoramos o legado comum que nos une e iremos renovar o nosso compromisso com uma mudança pacífica na Irlanda do Norte.
Douglas Cannon estava sentado mais à ponta, com um grupo de importantes assessores da Casa Branca e do Departamento de Estado que iriam participar nas conversações.
Juntou-se aos aplausos bem-educados.
— No mês passado, um grupo de bandidos lealistas, a auto-intitulada Brigada para a Libertação do Ulster, tentou assassinar o embaixador americano no Reino Unido, o meu velho amigo e colega, Douglas Cannon — continuou Beckwith. — Tratou-se verdadeiramente do último suspiro para aqueles que querem resolver os problemas da Irlanda do Norte com violência e não com cedências. Se alguém duvidar do nosso compromisso com a paz, peço-lhe que tenha em consideração isto: o embaixador Douglas Cannon está hoje aqui e a Brigada para a Libertação do Ulster não passa de uma má recordação.
Beckwith virou-se, sorriu para Douglas e começou a aplaudir. Gerry Adams, David Trimble, Bertie Ahern e Robin Cook fizeram o mesmo, tal como o resto da multidão ali reunida.
— Agora, se nos dão licença, temos trabalho a fazer — rematou Beckwith.
Virou as costas, afastando-se do pódio, e, com os braços abertos, conduziu os políticos até à Sala Oval, ignorando as perguntas gritadas pelo corpo de imprensa destacado para a Casa Branca.
Quando Douglas voltou para a casa na N Street ao final da tarde, Michael e Elizabeth estavam à espera dele.
— Como é que correu? — perguntou Michael.
— Melhor do que o esperado. Agora que a Brigada para a Libertação do Ulster foi neutralizada, o Gerry Adams acha que o IRA vai pensar seriamente na hipótese de desmobilizar.
— E o que quer dizer "desmobilizar"? — perguntou Elizabeth.
— Quer dizer entregar as armas e desmantelar as células terroristas e a estrutura de comando.
Michael disse:
— A CIA calcula que só o IRA tenha acumuladas centenas de toneladas de metralhadoras e duas toneladas e meia de Semtex. E depois há os grupos terroristas protestantes.
É por isso que é tão importante manter o ímpeto do processo de paz a avançar na direcção certa.
— Os protestantes e os católicos conseguiram fazer progressos assinaláveis num curto período de tempo, mas o processo de paz pode cair por terra muito facilmente.
E se isso acontecer, a violência atingirá níveis inauditos — acrescentou Douglas, olhando para o relógio. — Agora começa o divertimento. A recepção do Sinn Fein no Mayflower, a recepção do Partido Unionista do Ulster no Four Seasons e a recepção dos britânicos na embaixada.
— Mas que raio é isso? — perguntou Elizabeth enquanto troe vam de roupa para as recepções.
— É uma Browning automática de alta potência com um carregador de quinze balas.
Michael enfiou a pistola num coldre de ombro e vestiu o casaco do fato.
— E porque é que vais levar uma arma?
— Porque isso me faz sentir bem.
— O papá vai ter um agente da DSS com ele o tempo todo hoje à noite.
— Nunca se pode ser demasiado cauteloso.
— Há alguma coisa que não estejas a dizer-me?
— Só me sentirei melhor quando o teu pai estiver outra vez em Londres, rodeado por um bando de marines e agentes da Divisão Especial, que são capazes de acertar num assassino no meio dos olhos a uma distância de cem passos.
Alisou a parte da frente do casaco.
— Como é que estou?
— Encantador — respondeu ela, enfiando-se no vestido e virando-se de costas para ele. — Aperta-me o fecho. Estamos atrasados.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tirou os auscultadores. Desmontou rapidamente os monitores e os receptores e guardou-os no saco de lona. Enfiou a Beretta de nove milímetros num coldre de ombro e pôs-se à frente do espelho, examinando a sua aparência. Trazia um fato de negócios cinzento de fabrico americano, uma camisa branca e uma gravata às riscas. Preso à orelha direita, estava um fio de plástico transparente do género dos que eram utilizados pelos agentes de segurança no mundo inteiro.
Estudou a sua cara, olhando para os seus olhos, e disse: "Segurança diplomática, minha senhora. Temos uma emergência." Era o sotaque americano monótono do actor das cassetes de inglês que Delaroche tinha estudado enquanto estava no mar. Repetiu as frases mais uma série de vezes, até se sentir completamente à vontade.
Rebecca saiu da casa de banho. Trazia um fato de duas peças feito por medida e meias pretas. Delaroche passou-lhe uma Beretta carregada e dois carregadores extra, que ela enfiou numa mala preta a tiracolo.
Ele tinha deixado o Volvo na Twenty-second Street, logo a seguir à Massachusetts Avenue. Havia uma multa de estacionamento debaixo do limpa-pára-brisas. Delaroche deitou a multa para a sarjeta e pôs-se ao volante.
A limusina parou à frente do Hotel Mayflower, na Connecticut Avenue. Um porteiro de uniforme abriu a porta e Douglas, Michael, Elizabeth e um agente da DSS saíram da limusina. Entraram no hotel e seguiram pelo átrio central decorado até ao grande salão de baile. Gerry Adams avistou Douglas quando este entrou no salão e desembaraçou-se de um emaranhado de americanos de origem irlandesa, fascinados por gente famosa, que lhe desejavam felicidades.
— Obrigado por ter vindo, senhor embaixador — disse Adams no sotaque cerrado de Belfast Ocidental.
Era alto, com barba preta completa e óculos com armações de metal finas. E embora aparentasse ser robusto, sofria os efeitos duradouros de anos de prisão e de uma tentativa de assassínio pela UVF que quase lhe tinha tirado a vida.
— É uma grande honra tê-lo aqui connosco esta noite.
— Obrigado por nos receberem — respondeu Douglas educadamente, apertando a mão a Adams. — Permita-me apresentar-lhe a minha filha, Elizabeth Osbourne, e o marido, Michael Osbourne.
Adams olhou para Michael por breves instantes e apertou-lhe a mão sem entusiasmo. Quando ele e Douglas se puseram a falar por uns momentos da sessão do dia na Casa Branca, Elizabeth e Michael deram alguns passos e afastaram-se para lhes dar privacidade.
A seguir, sem aviso, Gerry Adams pousou a mão no ombro de Michael e disse:
— Importa-se que lhe dê uma palavrinha, senhor Osbourne? Lamento, mas é bastante importante.
Delaroche estacionou na esquina da Prospect Street com a Potomac Street, em Georgetown, e saiu do carro. Rebecca passou para o volante e desceu o vidro. Delaroche inclinou-se e perguntou:
— Alguma questão?
Rebecca abanou a cabeça. Delaroche entregou-lhe um envelope.
— Se alguma coisa correr mal, se me acontecer alguma coisa ou se nos separarmos, vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Virou as costas, afastando-se e entrando numa loja de sandes cheia de estudantes de Georgetown. Pediu um café e comprou um jornal, sentando-se a uma mesa junto à janela.
Um momento depois, viu Rebecca a passar a grande velocidade, seguindo para leste, em direcção à baixa de Washington.
— Por favor, sente-se, senhor Osbourne — disse Gerry Adams.
Tinha levado Michael até uma ampla sala, contígua ao grande salão de baile. O seu par de guarda-costas sempre presente afastou-se para deixar de poder ouvi-los.
Adams serviu duas chávenas de chá.
— Leite, senhor Osbourne?
— Obrigado.
— Tenho uma mensagem do seu amigo Seamus Devlin.
— O Seamus Devlin não é meu amigo — respondeu Michael de forma áspera.
Os guarda-costas olharam de soslaio para a mesa para terem a certeza de que não havia nenhum problema. Gerry Adams fez-lhes sinal com a mão para se irem embora.
— Eu sei o que aconteceu naquela noite em Belfast — disse ele. — E sei porque é que aconteceu. Nós nunca estaríamos na posição em que nos encontramos hoje, à beira de uma paz duradoura na Irlanda do Norte, se não fosse o IRA. É uma força altamente profissional, que não deve ser menosprezada. Tenha isso em conta da próxima vez que o senhor e os seus amigos britânicos tentarem colocar um informador clandestino no nosso seio.
— Pensei que tivesse uma mensagem para mim.
— Tem a ver com aquela cabra que tramou o Eamonn Dillon na Falis Road, a Rebecca Wells.
— O que é que ela tem?
— Foi para Paris depois dos acontecimentos em Hartley Hall. Adams ergueu a chávena de chá, como se estivesse a fazer um brinde, e disse:
— Que bela jogada que aquilo foi, senhor Osbourne. Michael manteve-se calado.
— Ela estava a viver em Montparnasse com um mercenário escocês chamado Roderick Campbell. Segundo o Devlin, ela e o Campbell andavam à procura de um assassino freelancer para terminar o serviço e acabar com o seu sogro.
Michael endireitou-se na cadeira.
— E a fonte é mesmo boa?
— Eu não entrei nesse tipo de pormenores com o Devlin, senhor Osbourne. Mas o senhor já viu o trabalho dele em primeira mão. Não é o tipo de homem que trate das coisas de forma ligeira.
— E onde é que está a Rebecca Wells agora?
— Foi-se embora de Paris de repente, há um par de semanas. O Devlin ainda não conseguiu apanhar-lhe o rasto outra vez.
— E o Roderick Campbell?
— Também se foi... permanentemente, lamento dizê-lo. Foi morto a tiro no seu apartamento, juntamente com uma rapariga — respondeu Adams, divertindo-se claramente por estar a dizer a Michael uma coisa que este não sabia. — Provavelmente, não apareceu nos vossos ecrãs de computador sofisticados do Centro de Contraterrorismo.
— E a Wells e o Campbell chegaram a conseguir contratar algum atirador?
— O Devlin não sabe, mas eu não baixaria já a guarda em relação ao embaixador, se é que me entende. Seria mau para toda a gente envolvida no processo de paz se um atirador ao serviço da Brigada para a Libertação do Ulster conseguisse matar o seu sogro nesta altura — afirmou Adams, pousando a chávena de chá, num sinal de que a reunião estava a chegar ao fim. — O Devlin espera que isto compense algum ressentimento que o senhor possa ter em relação ao Kevin Maguire.
— Pode dizer ao Devlin que se vá foder. Adams sorriu.
— Eu dou-lhe a mensagem.
Rebecca Wells estava sentada ao volante do Volvo, a meio quarteirão da entrada do Mayflower. Ficou a observar o embaixador Cannon e os Osbourne a saírem do hotel, seguidos pelo agente da DSS. Pôs o motor a trabalhar e depois marcou um número no telemóvel.
— Sim.
— Eles estão a sair agora do primeiro ponto de paragem e a seguirem para o segundo.
A ligação foi interrompida.
Rebecca pôs o Volvo em primeira e enfiou-se no meio do trânsito do início da noite, na Connecticut Avenue.
— E quando é que tu e o Gerry se tornaram tão bons amigos? — perguntou Elizabeth.
— Movemo-nos em círculos semelhantes.
— O que é que ele queria?
— Pediu desculpa pelo que me aconteceu em Belfast.
— E tu aceitaste?
— Nem por isso.
— E foi tudo?
— Foi tudo. Douglas disse:
— Muito bem, está na hora de atravessar o fosso religioso. Para o Four Seasons, para tomarmos bebidas com os protestantes.
— Acham que esta gente alguma vez dará recepções em conjunto? — perguntou Elizabeth.
— Se fosse a ti, não contava muito com isso — respondeu Michael.
Noventa minutos mais tarde, Rebecca Wells encontrava-se estacionada numa zona da Massachusetts Avenue revestida de árvores, em Upper Northwest Washington. Do outro lado da rua, estava o amplo complexo da embaixada britânica. Da posição privilegiada em que se encontrava, conseguia ver o pátio de entrada da residência do embaixador.
Os primeiros convidados começavam a ir-se embora.
Rebecca abriu a carta que Delaroche lhe tinha dado e leu-a à meia-luz dos candeeiros de rua. Dobrou a carta e voltou a enfiá-la no bolso. Lembrou-se daquela tarde gelada na praia, em Norfolk, a tarde em que tinha partido para a Escócia para ir buscar Gavin Spencer e as armas. Era difícil imaginar que tinha sido apenas um mês antes, tanta coisa acontecera desde então. Recordou-se da estranha sensação de serenidade que se tinha instalado nela nesse dia, ao caminhar pela praia plana e solitária.
Tinha querido ficar lá para sempre. E agora aquele homem sem passado — aquele assassino contratado que fazia amor com ela como se o corpo dela fosse feito de vidro — estava a oferecer-lhe um refúgio à beira-mar.
Levantou os olhos a tempo de ver Douglas Cannon e os Osbourne a saírem da residência do embaixador britânico. Uma vez mais, marcou o número no telemóvel e esperou pela voz do homem que conhecia apenas como Jean-Paul.
Delaroche interrompeu a ligação com Rebecca Wells e saiu da loja de sandes. Caminhou rapidamente para norte, ao longo da Potomac Street, até chegar à N Street. A casa dos Osbourne ficava a dois quarteirões dali. Passou a andar mais devagar, passeando-se pela rua sossegada, procurando instintivamente sinais de medidas de segurança extra.
Tinha de cronometrar a sua chegada de forma perfeita. O agente da DSS que acompanhava Douglas Cannon iria contactar a equipa dele via rádio, alertando-os em relação à chegada iminente do embaixador. Se não recebesse resposta, iria suspeitar que houvesse algum problema. E era por isso que Delaroche se demorava a avançar pela N Street.
Avistou a equipa de agentes da DSS, sentados num carro estacionado em frente à casa dos Osbourne, com os vidros da frente abertos. Um deles, o que se encontrava ao volante, estava a falar por um rádio portátil. Delaroche partiu do princípio de que estaria a falar com o agente na limusina do embaixador.
Delaroche aproximou-se do carro e parou junto à janela do lado do condutor.
— Peço desculpa — disse ele —, para que lado é que fica a Wis-consin Avenue?
O agente ao volante apontou para leste sem dizer uma palavra.
— Obrigado — disse Delaroche.
A seguir, enfiou a mão por baixo da gabardina, sacou da Beretta com silenciador e atingiu cada um dos agentes com vários tiros no peito. Abriu a porta e empurrou os corpos para baixo. Subiu os vidros automáticos, tirou as chaves da ignição, fechou a porta e trancou-a.
Tudo aquilo tinha demorado menos de trinta segundos. Atirou as chaves do carro para o meio da escuridão e atravessou a rua, em direcção à casa dos Osbourne. Subiu os degraus da frente e tocou à campainha, respirando fundo para acalmar os nervos. Passado um momento, ouviu o som de passos a aproximarem-se da porta.
— Quem está aí?
Era a voz com sotaque inglês de Maggie, a ama.
— Segurança diplomática, minha senhora. Receio que tenhamos uma emergência.
A porta abriu-se e Maggie ficou ali parada, com a desorientação estampada no rosto.
— Que aconteceu?
Delaroche entrou na casa e fechou a porta. Tapou a boca a Maggie com uma mão de ferro, abafando o seu grito, e puxou-lhe a cara para junto da sua. Com a mão que tinha livre, tirou a Beretta de dentro do casaco do fato e encostou-lhe a ponta do silenciador com força à bochecha.
— Eu sei que há crianças nesta casa e não quero fazer-lhes mal — sussurrou no seu inglês com sotaque. — Mas se tu não fizeres exactamente o que eu disser, dou-te um tiro na cara. Estás a perceber?
Maggie assentiu com a cabeça, com os olhos esbugalhados de terror.
— Muito bem, vem comigo lá para cima.
A noite tinha decorrido sem incidentes, tal como Michael esperara, mas à medida que a limusina avançava a alta velocidade pela Massachusetts Avenue, o aviso de Gerry Adams ecoou-lhe nos ouvidos. No caso de Rebecca Wells ter conseguido contratar um assassino, isso constituía um novo e diferente tipo de ameaça à segurança de Douglas.
Um assassino a trabalhar sozinho seria muito mais difícil de identificar e travar do que um membro de uma organização paramilitar conhecida. Michael decidiu dar a notícia a Douglas quando chegassem a casa. As actividades e aparições dele em Londres teriam de ser restringidas até que a ameaça se esfumasse — ou até que Rebecca Wells fosse presa.
A limusina virou para a Wisconsin Avenue e eles seguiram para sul, a caminho de Georgetown. Elizabeth encostou a cabeça ao ombro de Michael e fechou os olhos.
Douglas pousou a mão no antebraço de Michael e disse:
— Sabes, Michael, há uma coisa que eu nunca fiz e que preciso de fazer agora. Nunca te agradeci.
— Do que é que está a falar?
— Nunca te agradeci por me teres salvo a vida. Se não tivesses aceitado o caso, ido até à Irlanda do Norte e arriscado a vida, eu era bem capaz de estar neste momento morto. Evidentemente, nunca tinha tido uma oportunidade para te ver a fazer o teu trabalho. És um agente secreto soberbo.
— Obrigado, Douglas. Vindo de um velho liberal antiespiões, isso significa muito para mim.
— E vais continuar na CIA, agora que a questão da Irlanda do Norte está terminada?
— Se a minha mulher prometer não se divorciar de mim — respondeu Michael. — A Mónica Tyler quer que eu me ocupe novamente do caso Espada de Gaza. A CIA anda a apanhar alguns indícios de que o grupo pode estar a planear novos ataques.
— Que tipo de indícios?
— Movimentações de agentes activos conhecidos, intercepções de comunicações. Esse tipo de coisas.
— Alguma coisa na Grã-Bretanha?
— O Reino Unido é sempre uma possibilidade. Eles gostam de actuar lá.
— Eu lembro-me do ataque em Heathrow.
— Eu também — disse Michael.
Douglas recostou-se e fechou os olhos no momento em que a limusina saiu da Wisconsin Avenue e começou a atravessar as sossegadas ruas residenciais de Georgetown.
— Quando é que isto vai acabar? — perguntou ele.
— Quando é que vai acabar o quê?
— O terrorismo. O roubo de vidas inocentes para a tomada de posições políticas. Quando é que isso vai acabar?
— Quando já não houver mais pessoas no mundo que se sintam suficientemente oprimidas para pegarem numa pistola ou numa bomba. Quando já não houver mais fanáticos religiosos ou étnicos. Quando já não houver mais maníacos que se divirtam a derramar sangue.
— Então, suponho que a resposta à minha pergunta seja nunca. Nunca vai acabar.
— O senhor é que é o historiador. No século i, os zelotes serviram-se do terrorismo para combater a ocupação romana da Terra Prometida. No século XII, um grupo de muçulmanos xiitas chamado os Assassinos serviu-se do terrorismo contra os líderes sunitas do Irão. Não se pode propriamente dizer que seja um fenómeno novo.
— E agora chegou à América: o World Trade Center, Oklahoma City, o Olympic Park.
— É barato, relativamente fácil e só é preciso um punhado de pessoas dedicadas. Dois homens chamados Timothy McVeigh e Terry Nichols[39] provaram isso.
— Continua a ser incompreensível para mim — respondeu Douglas. — Cento e sessenta e oito pessoas mortas num abrir e fechar de olhos.
— Muito bem, vocês os dois — interrompeu Elizabeth, abrindo os olhos quando a limusina travou e parou à frente da casa. — Já chega dessa conversa. Estão a deprimir-me.
Delaroche estava no segundo andar da casa, junto a uma janela com vista para a N Street, quando ouviu o barulho de um carro. Afastou a cortina com o silenciador da Beretta e espreitou para a rua. Era Cannon e os Osbourne que estavam a chegar a casa.
Largou a cortina e atravessou o corredor até às escadas, olhando de relance para o quarto principal ao passar pela porta. A ama estava deitada no chão, com as mãos e os pés amarrados e a boca tapada com fita adesiva.
Delaroche desceu as escadas rapidamente e ficou parado no átrio central às escuras. Iria ser tão fácil, pensou — como um jogo de tiro ao alvo numa feira popular — e depois estaria terminado. Tudo aquilo.
Capítulo 38
WASHINGTON
Rebecca Wells virou para a N Street e seguiu a limusina ao longo de dois quarteirões até ela parar. Não havia lugar em frente à casa dos Osbourne, pelo que o motorista estacionou pura e simplesmente no meio da rua e ligou os quatro piscas. Rebecca enfiou a mão na mala a tiracolo e tirou a Beretta de nove milímetros com silenciador.
As ordens de Jean-Paul ecoaram-lhe pela cabeça. Eu trato dos dois homens que estão no carro e depois entro na casa, tinha-lhe dito na noite anterior, a falar baixinho no quarto de hotel de ambos, com a televisão aos altos berros. Espera até que eles saiam todos da limusina. Matas o último homem da DSS e eu trato do embaixador e do Michael Osbourne.
Interrogou-se se teria ou não a força para o fazer. E depois pensou em Gavin Spencer e em Kyle Blake, e em todos os homens que tinham morrido em Hartley Hall por Michael Osbourne e o sogro a terem enganado. Verificou o mecanismo do gatilho da Beretta e enfiou a primeira bala na câmara.
Uma das portas da limusina abriu-se e o agente da DSS saiu do carro. Deu a volta à limusina e abriu a porta de trás que dava para a casa dos Osbourne. Michael Osbourne foi o primeiro a sair. Deu uma vista de olhos à rua, fixando-se no Volvo por um instante, antes de avançar. O embaixador saiu da limusina, seguido por Elizabeth Osbourne.
Rebecca abriu a porta do Volvo.
Michael virou-se para o homem da DSS e perguntou:
— Onde é que estão os outros agentes?
O agente da DSS levou a mão à boca e murmurou umas quantas palavras. Quando não recebeu resposta, gritou:
— Voltem para dentro do carro! Já!
Foi então que Rebecca Wells saiu do Volvo. Levantou-se e, com os braços apoiados no tejadilho do carro, começou a disparar contra o agente da DSS — um tiro a seguir ao outro, tal como Jean-Paul lhe tinha dito.
Michael não ouviu os tiros, apenas o vidro da janela de trás da limusina a estilhaçar-se e as balas de nove milímetros a perfurarem a bagageira com um baque. Em vez de obedecer às instruções do agente e de entrarem no carro, Michael, Elizabeth e Douglas tinham-se atirado instintivamente para o chão da N Street.
Michael suspeitara que pudesse haver alguma coisa de errado em relação à mulher na carrinha Volvo, mas tinha demorado demasiado tempo até colocar a hipótese de poder ser de facto Rebecca Wells. Naquele momento, debruçado sobre Elizabeth e Douglas, os últimos segundos de vida do agente da DSS, que agora se encontrava morto, passaram-lhe a correr pela mente. O agente tinha tentado comunicar com os outros homens mas não tinha conseguido. E isso acontecera porque alguém já os tinha matado, pensou Michael.
A seguir, lembrou-se das informações que Gerry Adams lhe tinha dado nessa mesma noite. Rebecca Wells andara à procura de um assassino profissional para matar Douglas.
O seu assassino contratado estava provavelmente algures perto dali.
Michael sacou da Browning automática. O motorista continuava ao volante da limusina, agachado por baixo do banco para se proteger. Michael agarrou em Elizabeth e Douglas e gritou:
— Enfiem-se no carro!
Elizabeth rastejou até ao banco de trás. Um dos disparos atingiu o homem da DSS na cabeça, fazendo uma torrente de sangue e tecido cerebral atravessar a janela traseira estilhaçada. Elizabeth olhou para Michael com uma expressão de impotência e tentou limpar o sangue que tinha na cara.
Foi então que os olhos dela se esbugalharam repentinamente e gritou:
— Michael! Atrás de ti!
Michael virou-se e viu uma figura, parada no cimo dos degraus encurvados que davam para a entrada da casa. O homem levantou o braço direito, balançando-o, e disparou com uma só mão duas vezes, sem que a arma com silenciador emitisse qualquer som, apenas uma língua de fogo saída da ponta do cano da pistola.
Mesmo com a luz ténue de Georgetown, Michael sabia que já tinha visto aquela maneira muito característica de manejar uma arma.
O homem que se encontrava nos degraus da frente da sua casa era Outubro.
O primeiro tiro fez ricochete no tejadilho do carro e o segundo acertou nas costas de Douglas quando este se atirava para dentro do carro, caindo em cima de Elizabeth, gemendo de dor.
Michael apontou a arma a Outubro e disparou vários tiros, forçando-o a recuar para dentro de casa. Na rua sossegada, a Browning de alta potência soava a artilharia.
— Avance! Avance! — gritou ao motorista. — Tire-os daqui para fora!
O motorista sentou-se no banco e ligou o motor, acelerando a fundo.
A última coisa que Michael viu foi Elizabeth, a gritar pela janela traseira estilhaçada.
— As crianças, Michael! — berrou. — As crianças!
Michael mergulhou entre dois carros estacionados, num sítio em que se encontrava protegido tanto de Rebecca Wells como de Outubro, pelo menos por alguns segundos.
Espreitou para cima, na direcção da entrada da casa, e viu Outubro a sair. Michael apontou a Browning e disparou vários tiros. Outubro voltou a refugiar-se no interior.
Foi então que os vidros das janelas dos carros à sua volta começaram a estilhaçar-se. A mulher estava a disparar contra ele.
Tinham-se acendido luzes por toda a rua. Michael virou-se e viu Rebecca Wells, de pé atrás da porta aberta da carrinha Volvo, a disparar sobre o tejadilho. Rodopiou e pensou em retribuir o fogo. Mas apercebeu-se de que, se falhasse, uma bala perdida poderia entrar numa das casas em redor e matar uma pessoa inocente que tivesse saído à rua para ver o que se passava.
Apontou para a própria casa. Pensou: "Meu Deus, faz com que as crianças estejam lá em cima, no quarto delas!" E, a seguir, disparou contra Outubro até ficar sem munições na arma.
Michael ouviu a primeira sirene no momento em que estava a mudar de carregador. Talvez tivesse sido o tiroteio, pensou. Ou talvez o homem da DSS tivesse conseguido enviar um alerta antes de ser morto. Fosse qual fosse o caso, Michael conseguia ouvir agora o uivar de várias sirenes que se aproximavam, progressivamente mais forte a cada segundo que passava.
Outubro surgiu à entrada da casa, acenando a Rebecca.
— Vai! — gritou. — Vai-te embora daqui!
O primeiro carro da polícia apareceu na N Street.
Outubro disparou dois tiros contra o carro sem fazer pontaria.
— Agora, Rebecca! Sai daqui!
Michael enfiou a primeira bala do seu novo carregador na câmara e disparou quatro tiros contra Outubro.
Quando isso aconteceu, Rebecca Wells entrou no Volvo e ligou o motor, acelerando a fundo e passando a toda a velocidade pelo local onde Michael se tinha abrigado.
Outubro avançou para a entrada uma última vez e disparou vários tiros na direcção de Michael, dando depois meia-volta e fugindo para dentro da casa.
Michael levantou-se e foi atrás dele, subindo os degraus pesadamente, com a Browning nas mãos esticadas. Quando chegou à entrada, espreitou pelo átrio central às escuras e viu Outubro a erguer uma cadeira e a lançá-la pelas portas envidraçadas.
Outubro virou-se uma última vez e levantou a arma. Michael não ouviu nada, mas viu a boca do cano a expelir fogo. Encostou-se à parte exterior da casa; do outro lado da parede, conseguia sentir as balas a baterem com toda a força no estuque. Quando os disparos pararam, avançou para a entrada e disparou mais três tiros ao mesmo tempo que Outubro corria pelo jardim e trepava a vedação.
Michael correu para o andar de cima, em direcção ao quarto das crianças, e deu com elas a chorarem nos berços, ilesas.
— Maggie!
Ouviu ruídos surdos vindos do quarto principal, bem como gritos abafados. Correu pelo corredor e acendeu as luzes do quarto. Maggie estava deitada no chão, amarrada e amordaçada.
— Só havia um, Maggie? Só um atirador? Ela confirmou com a cabeça.
— Eu volto já.
Correu pelas escadas abaixo precisamente na altura em que um agente da polícia metropolitana entrava na casa, de arma em riste. Apontou a arma na direcção de Michael e gritou:
— Pare imediatamente e largue a arma!
— O meu nome é Michael Osbourne e esta é a minha casa.
— Eu não quero saber quem você é, foda-se! Largue mas é a arma! Já!
— Porra, sou o genro do embaixador Cannon e trabalho para a CIA! Baixe a merda da arma!
O polícia manteve a arma apontada à cabeça de Michael.
— O meu sogro foi atingido — disse Michael. — Os dois atiradores fugiram: um homem, a pé, e uma mulher, numa carrinha Volvo preta. Os meus filhos estão lá em cima com a ama. Vá ajudá-la. Eu volto já.
— Eh, volte aqui! — gritou o polícia quando Michael desatou a correr pelo átrio central e desapareceu ao passar pelas portas envidraçadas estilhaçadas.
Delaroche não tinha vindo até Washington para se envolver num tiroteio com Michael Osbourne. Qualquer um podia ser atingido quando havia balas a voar por um espaço pequeno e Delaroche não estava disposto a trocar a sua vida pela de Osbourne. Além disso, tinha atingido o alvo principal, o embaixador Cannon, com um bom tiro nas costas. Com um bocadinho de sorte, o ferimento iria revelar-se fatal. Ainda assim, sentia-se zangado por não ter sido capaz de matar Osbourne mais uma vez.
Despiu a gabardina castanho-clara enquanto corria pela viela. Quando chegou à Thirty-fourth Street, atravessou-se imediatamente no caminho de um carro que avançava pela rua, um Saab cinzento-claro com um estudante universitário ao volante. Delaroche levantou a Beretta e apontou-a ao pára-brisas.
— Sai do carro, caralho!
O estudante saiu com as mãos no ar e afastou-se.
— Leva-o, cabrão. É teu.
— Corre — disse Delaroche, agitando a Beretta, e o estudante começou a correr.
Delaroche pôs-se ao volante. O estudante universitário gritou:
— Vai-te foder, minha besta de merda!
Delaroche arrancou. Sabia que tinha de sair de Georgetown depressa. Seguiu a grande velocidade pela Thirty-fourth Street, em direcção à M Street. Se conseguisse atravessar a Francis Scott Key Bridge e passar para Arlington, as suas hipóteses de escapar aumentariam exponencialmente. Dali, poderia enfiar-se na George Washington Memorial Parkway, na 1-395, ou na 1-66, e pôr-se a quilómetros de Washington numa questão de minutos.
Na M Street, o semáforo passou de verde para vermelho quando Delaroche se aproximava. Um sinal avisava que era proibido virar À direita com o sinal vermelho. Pensou em passar à mesma com o sinal vermelho, mas manter a calma durante as fugas tinha-lhe sido proveitoso no passado e, por isso, resolveu não agir de forma precipitada naquele momento.
Pisou o travão a fundo até parar.
Olhou para o relógio de pulso e contou os segundos.
Quando Michael Osbourne saltou a vedação e foi dar à viela, ouviu um homem a gritar obscenidades. Uma fracção de segundo depois, ouviu o som de pneus a chiarem e o motor de um pequeno carro a trabalhar. Pelo barulho, calculou que o carro estivesse a dirigir-se para a M Street. E também calculou que era Outubro a tentar escapar.
Correu pela Thirty-third Street até à M Street, virou à direita e continuou a correr.
Delaroche avistou Osbourne a correr pela M Street com a arma na mão, pondo em fuga os assustados peões. Virou-se lentamente e olhou em frente, aguardando que o sinal ficasse verde.
A Beretta estava pousada no banco do passageiro. Delaroche apertou a coronha com a mão direita e pôs o dedo no gatilho. Pensou: "Afinal de contas, talvez até tenha oportunidade de cumprir os termos do contrato."
Osbourne chegou ao cruzamento. Ficou parado na passadeira, mesmo à frente do Saab, com a arma na mão, a olhar fixamente pela Thirty-fourth Street acima. Estava a respirar com dificuldade, com os olhos a moverem-se rapidamente para um lado e para o outro.
Delaroche levantou a Beretta devagar e pousou-a no colo. Pensou em disparar contra Osbourne através do pára-brisas mas resolveu não o fazer. Mesmo que conseguisse acertar, ficaria com um carro danificado para a sua fuga. Esticou a mão esquerda e carregou num botão no apoio de braço, fazendo com que o vidro da sua janela descesse no momento em que o sinal ficou verde.
Vários carros tinham parado atrás de si e os condutores começaram a buzinar, sem se aperceberem de que havia um homem com uma arma parado no meio do cruzamento.
Delaroche não se mexeu, à espera que Osbourne fizesse alguma coisa.
Michael ficou parado no cruzamento, com o coração aos saltos, ignorando a cacofonia de buzinas. Inspeccionou as caras que se encontravam dentro de cada carro: um homem com quarenta e tal anos, de fato e gravata, num Saab cinzento-claro, um par de estudantes ricos num BMW vermelho, dois aristocratas de Georgetown num espectacular Mercedes a diesel e um moço de entregas da Pizza Hut.
Estava toda a gente a buzinar menos o homem do Saab. Michael olhou para ele com atenção. Era bastante feio: bochechas pesadas, um queixo rombo, um nariz largo e achatado. Michael já tinha visto aquela cara algures, mas não conseguia perceber onde. Olhou fixamente para ele enquanto os rostos do seu passado lhe surgiam na cabeça, um por um, como imagens num ecrã, algumas nítidas e definidas, outras desfocadas e cheias de riscos.
Foi então que percebeu onde já tinha visto aquele homem — no ecrã do computador de Morton Dunne, na OTS.
Michael apontou a Browning à cara de Outubro.
— Sai do carro! Já!
Capítulo 50
WASHINGTON
O amplo cruzamento no início da Key Bridge é um dos mais congestionados e caóticos em toda a Washington. Os carros que vêm da imponente ponte, da M Street e da Whitehurst Freeway convergem todos no mesmo ponto. Durante as horas de ponta, de manhã e à tarde, o cruzamento fica entupido de trânsito. A noite, fica cheio de carros que afluem em catadupa para os restaurantes e clubes nocturnos de Georgetown. E, por cima de tudo isso, encontram-se os degraus de pedra pretos tornados célebres por O Exorcista — tristes, cobertos de graffiti e a tresandarem a urina por causa dos estudantes de Georgetown embriagados que acham que urinar ali é um ritual de passagem.
No entanto, nada disso passou pela cabeça de Delaroche enquanto se encontrava sentado ao volante do Saab, a olhar fixamente para o cano da Brouming automática de Michael Osbourne. Quando este o mandou sair do carro, Delaroche carregou a fundo no acelerador e inclinou-se para baixo.
Michael disparou vários tiros no momento em que o carro avançou de rompante.
Desviou-se do caminho, atirando-se para o chão, com o Saab a deslocar-se para o cruzamento com grande rapidez. Delaroche sentou-se direito, readquiriu o controlo da viatura e avançou a toda a velocidade, a caminho da entrada da Key Bridge.
Michael desviou-se, rebolando, do carro que vinha na sua direcção e levantou-se, apoiado num joelho. Fez pontaria para a traseira do Saab enquanto este se afastava velozmente, abstraindo-se do buzinar ensurdecedor dos carros.
Sobravam-lhe oito balas na Browning e nenhum carregador extra.
Disparou todos os oito tiros antes que Delaroche pudesse virar para a ponte.
Sete atravessaram a bagageira e alojaram-se no banco de trás.
O oitavo acertou no depósito de gasolina e o Saab explodiu.
Delaroche ouviu a explosão e sentiu instantaneamente o calor da gasolina a incendiar-se. Os carros travaram a fundo à sua volta. Um rapaz com uma camisola dos Redskins correu para ajudar Delaroche. Delaroche apontou-lhe a Beretta à cabeça e o rapaz da camisola fugiu na direcção do Francis Scott Key Park.
Delaroche saltou para fora do carro e viu Michael Osbourne a correr em direcção a si.
Levantou a Beretta e disparou três vezes.
Michael Osbourne atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um carro estacionado.
Delaroche começou a correr para a Key Bridge, mas um carro, aparentemente sem consciência do veículo em chamas no meio do cruzamento, avançou na sua direcção a grande velocidade. Delaroche saltou mesmo antes de ser atingido e rebolou pelo pára-brisas.
Largou a Beretta e esta foi cair com estrépito no meio dos carros que se aproximavam.
Olhou para cima e viu Michael Osbourne a correr para si. Levantou-se e tentou correr, mas o tornozelo direito cedeu e ele caiu desamparado no asfalto.
Conseguiu erguer-se com grande custo e obrigou-se a avançar. O tornozelo doía-lhe tanto que parecia ter vidro partido por baixo da pele. Conseguiu chegar ao passeio da Key Bridge.
Um homem estava lá especado, a observar a cena, segurando o guiador de uma bicicleta de montanha de má qualidade.
Delaroche deu um murro na garganta do homem e ficou-lhe com a bicicleta.
Subiu para o selim e tentou pedalar, mas quando fez força com a perna direita a dor fê-lo gritar. Pedalou com uma perna, a perna esquerda, enquanto a direita se limitava a subir e descer com a rotação dos pedais.
Virou-se e olhou por cima do ombro. Michael Osbourne ia a correr na sua direcção. Delaroche pedalou mais depressa, mas, entre o tornozelo partido e a fraca qualidade da bicicleta, Osbourne estava a ganhar-lhe terreno. Delaroche sentiu-se completamente indefeso. Não tinha nenhuma arma e apenas uma bicicleta manhosa como transporte.
E, para piorar as coisas, estava magoado.
Mais do que qualquer outra coisa, sentiu uma raiva súbita — raiva do pai e de Vladimir, e de todos os outros do KGB que o tinham condenado a uma vida de assassínios.
Raiva de si próprio, por ter permitido que o Director o forçasse a aceitar aquela missão. Raiva de si próprio, por não ter sido capaz de matar Michael Osbourne uma vez mais. Pôs-se a pensar como teria Osbourne percebido que era ele que se encontrava ao volante do Saab. Teria sido atraiçoado por Maurice Leroux antes de o matar naquela noite em Paris? Teria sido atraiçoado pelo Director? Ou teria subestimado uma vez mais a inteligência e o engenho do homem da CIA, o homem que tinha jurado destruí-lo? Que tudo fosse acabar assim — com Delaroche numa bicicleta a ranger e Osbourne a persegui-lo a pé — era quase risível. Apercebeu-se de que, mesmo que fosse capaz de escapar a Osbourne naquele momento, as suas hipóteses de conseguir ir muito longe iam diminuindo a cada minuto.
Virou-se e olhou uma vez mais por cima do ombro, vendo que Osbourne tinha ganho mais terreno. Forçou-se a pedalar com ambas as pernas, ignorando a dor no tornozelo, enquanto decidia aquilo que estava disposto a fazer para sair daquela ponte vivo.
Michael voltou a enfiar a Browning no coldre de ombro e correu a toda a velocidade pela ponte fora, impulsionando os braços para trás e para a frente com o máximo de força. Por um instante, foi transportado de regresso à final da milha urbana do estado da Virgínia. Michael tinha feito uma jogada táctica brilhante durante a última volta, colocando-se numa posição perfeita para ultrapassar o líder da corrida nos últimos cem metros, mas quando chegaram à recta final não tivera a coragem para aguentar a dor necessária para vencer. Tinha ficado literalmente hipnotizado com as costas do outro rapaz — o esvoaçar da camisola ao vento, os músculos robustos dos ombros —, à medida que este se afastava cada vez mais até cortar a meta. E recordou-se do pai, tão furioso por ele ter perdido que nem sequer o tinha querido consolar a seguir à corrida.
Já só estava a dez metros de Outubro.
Tinha corrido praticamente um quilómetro e meio desde que saíra disparado de casa. Sentia as pernas pesadas e os músculos retesados do sprint prolongado. Os braços ardiam-lhe e a garganta sabia a ferrugem e a sangue por abrir a boca para tentar respirar. Andava a perseguir Outubro há anos, socorrendo-se de todos os recursos e serviços técnicos que a CIA tinha para oferecer, mas tudo se tinha resumido àquilo, uma corrida desenfreada pela Key Bridge. Desta vez, não iria ter medo da dor.
Desta vez, não iria ficar hipnotizado com as costas do adversário, a afastar-se cada vez mais. Inclinou a cabeça para trás e rugiu como um animal ferido, esbracejando com o máximo de força no ar, como se estivesse a tentar empurrar-se para a frente.
Outubro já se encontrava apenas a um ou dois metros de distância.
Michael deu um salto e atirou-o ao chão com toda a força.
Outubro aterrou de costas, com Michael em cima dele, sentado no seu abdómen.
Deu-lhe dois murros na cara, com o segundo soco a deixar uma ferida bem no alto da maçã do rosto de Delaroche, e depois agarrou-se à garganta dele com as duas mãos e começou a estrangulá-lo.
Tinha perdido toda a noção de razão e sanidade. Estava a apertar o pescoço a Delaroche, esmagando-lhe a traqueia, gritando com ele selvaticamente, e, no entanto, uma estranha calma tinha invadido o rosto do assassino. Os olhos azuis percorriam rapidamente Michael e um meio sorriso vago despontou-lhe nos lábios.
Michael percebeu que Outubro estava a decidir qual seria a melhor maneira de o matar. Apertou com mais força.
Outubro esticou-se repentinamente e agarrou o cabelo de Michael com a mão esquerda. Puxou a cabeça de Michael para si e enfiou-lhe o polegar da mão direita na órbita do olho.
Michael gritou de dor e afrouxou a pressão no pescoço de Outubro. O assassino transformou as mãos em machados e atingiu-o duas vezes seguidas nas têmporas.
Michael quase perdeu os sentidos. Abanou a cabeça, tentando aclarar a visão, e depois apercebeu-se de que estava deitado de costas e que o assassino lhe tinha escapado.
Esforçou-se para se levantar. Outubro já estava em pé, com os pés afastados, as mãos junto à cara e os olhos fixados nos de Michael. Rodou e acertou-lhe com um violento pontapé rotativo na cabeça, atingindo-a de lado.
Michael cambaleou do passeio até à estrada na ponte, atravessando-se no caminho de um autocarro que seguia a alta velocidade. O motorista buzinou com toda a força.
Michael afastou-se com um pulo, caindo directamente nos braços de Outubro.
O assassino agachou-se e, servindo-se do ímpeto de Michael, atirou-o por cima do parapeito da ponte.
Delaroche esperou pelo som do corpo de Michael a bater na água a uns cem metros de distância, mas não se ouviu nada. Deu um passo em frente e olhou para baixo. Ao cair, Michael tinha conseguido agarrar-se à parte de baixo do parapeito com uma mão e encontrava-se naquele momento a balançar sobre a água. Olhou para cima, com sangue na boca, e fitou Delaroche.
O mais fácil de fazer seria pisar-lhe a mão até ele ter de largar o parapeito, mas, por alguma razão, a ideia parecia repugnante a Delaroche. Tinha matado sempre silenciosa e rapidamente, surgindo do nada e desaparecendo outra vez. Matar um homem daquela maneira parecia-lhe, de alguma forma, bárbaro.
Inclinou-se e disse:
— Deixa-me ir e eu ajudo-te.
— Vai-te foder — respondeu-lhe Michael, com um esgar de dor.
— Isso não é lá muito sensato da tua parte — lançou Delaroche, esticando-se pelo parapeito e agarrando no pulso esquerdo de Michael. — Estica-te e agarra-te à minha mão.
A mão de Michael estava a começar a escorregar da ponte.
— Tu acabaste de matar o meu sogro — respondeu. — Tentaste matar-me a mim e à minha mulher. Mataste a Sarah.
— Eu não os matei, Michael. Foram outras pessoas que os mataram. Eu fui só a arma. Sou tão responsável pelas mortes deles como tu és pela morte da Astrid Vogel.
— Quem é que te contratou? — perguntou Michael asperamente.
— Não interessa.
— Interessa-me a mim! Quem é que te contratou?
Mas a mão de Michael começava a soltar-se cada vez mais.
Delaroche agarrou-lhe o braço esquerdo com as duas mãos.
Michael enfiou a mão direita dentro do casaco, sacou a Bronming e apontou-a à cabeça de Delaroche. Delaroche continuou a segurar a mão de Michael, olhando fixamente para a pistola. A seguir, sorriu e perguntou:
— Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo? Michael conhecia a parábola; qualquer pessoa que já tivesse vivido ou trabalhado no Médio Oriente conhecia-a. Uma rã e um escorpião encontram-se numa das margens do Nilo e o escorpião pede à rã para o transportar até à outra margem.
A rã recusa-se, pois tem medo que o escorpião lhe dê uma ferroada. O escorpião assegura à rã que não lhe dará uma ferroada; fazê-lo seria uma tolice, já que assim ambos se afogariam. A rã reconhece a lógica dessa afirmação e aceita levar o escorpião até à outra margem. Quando chegam a meio do rio, o escorpião dá uma ferroada à rã. "Mas agora vamos os dois afogar-nos", grita a rã, com o corpo a ficar dormente devido ao veneno do escorpião. "Porque é que fizeste isso?" O escorpião sorri e responde: "Porque isto é o Médio Oriente."
— Eu conheço a história — respondeu Michael.
— Nós andamos os dois embrenhados neste conflito há demasiados anos. Talvez possamos ajudar-nos um ao outro. Afinal de contas, a vingança é para os selvagens. Sei que estiveste há pouco tempo na Irlanda do Norte. Vê só o que é que a vingança fez por esse sítio.
— O que é que tu queres?
— Digo-te aquilo que tu mais queres saber: quem é que me contratou para matar o Douglas Cannon, quem é que me contratou para matar os conspiradores do caso da TransAtlantic, quem é que me contratou para te matar a ti por saberes demasiado. — Fez uma pausa. — E também te digo quem é a pessoa dentro da tua organização que está envolvida com essa gente. Em troca, tu forneces-me protecção e permites que eu tenha acesso às minhas contas bancárias.
— Eu não tenho a autoridade para fazer um acordo desses.
— Talvez não a autoridade, mas tens a capacidade. Michael ficou calado.
Delaroche perguntou:
— Não queres morrer sem saber a verdade, pois não, Michael?
— Vai-te foder!
— Temos um acordo?
— E como é que tu sabes que eu não te prendo assim que me puxares para cima?
— Porque, infelizmente, tu és um homem honrado, o que te torna estranhamente inadequado para uma actividade destas.
Delaroche sacudiu Michael e repetiu:
— Temos um acordo?
— Temos um acordo, meu grandessíssimo cabrão.
— Então, pronto. Deita a pistola para o rio e agarra a minha mão antes que faças com que morramos os dois.
Capítulo 40
WASHINGTON
AEROPORTO INTERNACIONAL DE DULLES
— A bala partiu várias costelas do embaixador Cannon e fez com que o pulmão esquerdo parasse de funcionar — disse o médico do George Washington University Hospital, um cirurgião de aspecto absurdamente jovem chamado Carlisle. — Mas, a não ser que sofra quaisquer complicações graves, penso que vai ficar bom.
— Posso vê-lo? — perguntou Elizabeth. Carlisle abanou a cabeça.
— Ele agora está no recobro e, sinceramente, não está com grande aspecto. Porque é que não fica aqui e tenta pôr-se o mais confortável possível? Nós deixamo-la vê-lo assim que ele acordar.
O médico foi-se embora. Elizabeth tentou sentar-se, mas, passados poucos minutos, já se encontrava outra vez a percorrer de um lado para o outro a pequena sala de espera privada. Dois agentes da polícia metropolitana estavam de guarda do lado de fora da sala. Ela trazia um conjunto azul de roupa de bloco operatório, pois tinha ficado com o vestido manchado com o sangue do pai e do agente da DSS. Maggie e as crianças estavam numa sala à parte. Maggie era formidável, pensou Elizabeth. Tinha sido ameaçada por um assassino e amarrada com fita adesiva, mas recusara-se a deixar que as enfermeiras tomassem conta de Liza e Jake. Agora, Elizabeth precisava apenas de uma coisa. Precisava de ouvir a voz do marido.
Tinha passado mais de uma hora desde a arrepiante fuga de Elizabeth da N Street. A polícia informara-a do que sabia. Quando as primeiras viaturas chegaram ao local, os terroristas tinham fugido e Mi-chael estava vivo. Depois, desapareceu pelo jardim das traseiras e ninguém o tinha visto desde então. Dois minutos mais tarde, ocorreu um tiroteio na Key Bridge, do lado de Georgetown, e um carro explodiu. O carro, um Saab castanho-claro, fora roubado momentos antes por um homem com uma pistola com silenciador. E também tinha havido relatos de dois homens a lutarem na ponte. Um homem pendurado na ponte, a balançar-se sobre a água... Elizabeth fechou os olhos e estremeceu. Pensou: "Michael, se estás vivo, diz-me, por favor."
Eram onze da noite. Ligou a televisão e fez apping pelos vários canais. A história estava por todo o lado — nas estações televisivas locais e em todos os canais de informação por cabo. Ninguém tinha qualquer notícia sobre Michael. Ela enfiou a mão na mala e tirou um cigarro, acendendo-o e fumando-o enquanto andava de um lado para o outro.
Uma enfermeira apareceu e espetou a cabeça pela porta.
— Peço desculpa, minha senhora, mas não se pode fumar aqui dentro.
Elizabeth procurou um sítio para deitar o cigarro fora.
— Deixe estar que eu trato disso, senhora Osbourne — disse a enfermeira suavemente. — Precisa que lhe traga alguma coisa?
Elizabeth abanou a cabeça.
No momento em que a enfermeira saiu da sala, o seu telemóvel tocou.
Pegou no telemóvel que tinha dentro da mala e atendeu:
— Sim?
— Sou eu, Elizabeht. Não digas nada, ouve só.
— Michael — sussurrou ela.
— Estou óptimo — disse ele. — Não fui ferido.
— Graças a Deus — desabafou ela.
— Como é que está o Douglas?
— Já saiu do bloco operatório. O médico acha que ele vai ficar bom.
— E onde estão as crianças?
— Estão aqui no hospital — respondeu Elizabeth. — Quando é que eu te vou ver?
— Talvez amanhã. Tenho uma coisa que preciso de fazer primeiro. Amo-te, Elizabeth.
— Michael, onde é que estás? — perguntou ela, mas a ligação já tinha sido interrompida.
Rebecca Wells deixou o Volvo no parque de estacionamento de longa duração do Aeroporto de Dulles e apanhou um autocarro de ligação até ao terminal. Largou as chaves num caixote do lixo e entrou numa casa de banho. Mudou de roupa num dos compartimentos, trocando o fato de duas peças por calças de ganga ruças, uma camisola de lã e botas de cowboy de camurça. Para terminar, prendeu o cabelo e colocou uma peruca loura. Olhou-se ao espelho; a transformação tinha demorado menos de cinco minutos.
Agora, era Sally Burke, de Los Angeles, com um passaporte e uma carta de condução da Califórnia para comprová-lo.
Percorreu o terminal até ao balcão da Air México e fez o check-in para o último voo da noite para a Cidade do México. As setenta e duas horas seguintes iriam ser difíceis. Do México, atravessaria depois a América Central e do Sul, trocando de passaporte e de identidade a cada dia. A seguir, embarcaria num avião em Buenos Aires e regressaria à Europa.
Sentou-se na sala de espera junto à porta de embarque e aguardou que chamassem os passageiros para o voo. Tentou fechar os olhos, mas, de cada vez que o fazia, via a cabeça do agente da DSS a explodir num jorro de sangue.
O CNN Airport Channel estava a passar um serviço noticioso sobre a tentativa de assassínio.
A Brigada para a Libertação do Ulster acaba de reivindicar a responsabilidade pela tentativa de assassínio do embaixador Douglas Cannon. Os dois agressores, um homem e uma mulher, ainda estão a monte. Os médicos do George Washington University Hospital, em Washington, dizem que Cannon se encontra em estado crítico, mas que os ferimentos sofridos não põem em risco a sua vida...
Rebecca desviou o olhar. Pensou: "Onde raio é que tu estás, Jean-Paul" Tirou do envelope a carta que ele lhe tinha dado quatro horas antes' e leu-a uma vez mais.
Vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Começaram a chamar os passageiros para o voo. Ela atirou a carta para um caixote de lixo e dirigiu-se para a porta de embarque.
Capítulo 41
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
— Tens nome?
— Eu utilizo muito nomes, mas chamei-me Jean-Paul Delaroche mais tempo do que todos os outros e, por isso, penso em mim como sendo ele.
— Então, devo chamar-te Delaroche?
— Se quiseres — respondeu Delaroche, franzindo os lábios de uma forma muito francesa.
Apesar da hora tardia, continuava a haver bastante trânsito na Capital Beltway, os resquícios da eterna confusão de Washington ao anoitecer. Michael virou para a Interstate 95 e seguiu para norte, na direcção de Baltimore. O carro era um Ford alugado, que Michael tinha levantado no National Airport depois de fugir da Key Bridge num táxi. De início, o taxista recusara-se a abrir a porta a um par de homens de fato com ar de quem tinha acabado de levar uma carga de pancada. A seguir, Delaroche mostrou-lhe um molho de notas de vinte e o taxista disse que, se quisessem ir até à Lua, ele conseguiria fazê-los estar lá de manhã.
Delaroche ia sentado à frente, no banco do passageiro, com os pés apoiados no painel de instrumentos. Estava a esfregar o tornozelo e a ralhar com ele, como se este o tivesse traído. De forma despreocupada, acendeu outro cigarro. Se se sentia ansioso ou com medo, não mostrava qualquer indício disso. Desceu o vidro da janela, libertando a nuvem de fumo. De repente, o interior do carro tresandava a terra de cultivo húmida.
Ao longo dos vários anos que se seguiram ao assassínio de Sarah, Michael tinha tentado retratar o assassino dela na sua mente. Concluiu que tinha imaginado que ele fosse maior do que de facto era. Na verdade, Delaroche era bastante pequeno e compacto, com os músculos bem retesados de um pugilista de peso médio. Michael já tinha ouvido a voz dele uma vez — em Cannon Point, na noite em que ele o tentara matar —, mas ao ouvi-lo a falar naquele momento compreendeu que ele não era um só homem mas sim vários. O sotaque corria o mapa da Europa. Às vezes, era francês, às vezes, alemão e, outras vezes, holandês ou grego. Nunca falou como um russo; Michael interrogou-se se, chegado àquele ponto, conseguiria sequer falar a sua língua materna.
— Já agora, a arma estava descarregada.
Delaroche soltou um suspiro profundo, como se estivesse aborrecido com um programa televisivo entediante.
— A pistola de uso corrente para os agentes da CIA é uma Browning automática de alta potência, com um carregador de vinte tiros — continuou. — Depois de recarregares, disparaste quatro tiros contra mim pela porta da frente, três pela porta das traseiras, mais três pelo pára-brisas e cinco para a bagageira do Saab.
— Se sabias que a arma estava descarregada, porque é que não me atiraste simplesmente da ponte abaixo?
— Porque, mesmo que te tivesse matado, não tinha praticamente hipóteses de escapar. Estava ferido. Não tinha pistola, não tinha carro, não tinha meio de comunicar.
Tu eras a única arma que me restava.
— Do que é que estás para aí a falar, porra?
— Eu tenho uma coisa que tu queres e tu tens uma coisa que eu quero. Tu queres saber quem é me contratou para te matar e eu quero protecção contra os meus inimigos para poder viver descansado.
— E o que é que te leva a crer que eu pretendo cumprir esse acordo?
— Um homem não abandona a CIA se não tiver princípios. E um homem não regressa à CIA quando o presidente lhe pede para o fazer se não acreditar em honra. A tua honra é o teu ponto fraco. Mas, afinal de contas, porque é que escolheste esta vida, Michael? Foi o teu pai que te levou a isso?
Michael pensou: "Então, o Delaroche passou tanto tempo a analisar-me como eu a ele."
— Não me parece que tivesse tomado a mesma decisão se os papéis estivessem invertidos — disse Michael. — Acho que te teria deixado cair da ponte e apreciado ver o teu corpo a flutuar pelo rio abaixo.
— Isso não é uma coisa de que te devas gabar. És virtuoso, mas também és altamente emotivo e isso torna-te facilmente manipulável. O KGB percebeu isso quando te colocou a Sarah Randolph no caminho e quando me mandou matá-la à frente dos teus olhos.
— Vai-te foder! — exclamou Michael.
Sentiu-se tentado a parar o carro e dar um enxerto de pancada em Delaroche. Depois lembrou-se da luta na ponte e da facilidade com que Delaroche o tinha quase matado com as próprias mãos.
— Michael, por favor, abranda antes que nos mates aos dois. Para onde é que estamos a ir, já agora?
— O que é que te aconteceu à cara? — perguntou por seu turno Michael, ignorando a pergunta de Delaroche.
— Tu enviaste um alerta à Interpol, bem como um esboço por computador da minha cara, e por isso fiz uma cirurgia plástica.
— E como é que soubeste do alerta?
— Uma coisa de cada vez, Michael.
— O cirurgião plástico era um homem chamado Maurice Leroux?
— Sim — respondeu Delaroche. — Como é que sabias?
— Soube porque os serviços secretos britânicos tinham conhecimento do facto de Leroux trabalhar realmente de tempos em tempos para pessoas como tu. Foste tu que o mataste?
Delaroche não disse nada.
— Ele não te fez nenhum favor — disse Michael. — Estás hediondo.
— Tenho noção disso — respondeu Delaroche friamente — e culpo-te a ti.
— És um homicida. Não sinto pena de ti por teres tido uma má experiência com um cirurgião plástico.
— Eu não sou um homicida, sou um assassino profissional. Há uma diferença. Dantes, matava pessoas pelo meu país, mas agora o meu país já não existe e por isso mato por dinheiro.
— Isso faz de ti um homicida, pelas minhas contas.
— Estás a dizer-me que não há homens assim a trabalhar para a tua organização? Vocês também têm os vossos assassinos, Michael. Por isso, por favor... não tentes vir com superioridades morais.
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon?
— Para onde estás a levar-me?
— Para um sítio seguro.
— Espero que não estejas a levar-me para uma casa segura da CIA, pois não?
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon? Delaroche pôs-se a olhar pela janela durante bastante tempo e, a seguir, inspirou fundo, como se estivesse prestes a mergulhar e a ficar submerso durante muito tempo.
— Talvez o melhor seja eu começar pelo princípio — disse ele por fim, desviando o olhar da janela e fitando Michael. — Sê paciente e eu conto-te tudo aquilo que queres saber.
Delaroche falou como se estivesse a narrar a história de vida de outra pessoa e não a sua própria. Quando sentia dificuldades com o inglês, passava para uma das outras línguas que ele e Michael tinham em comum: espanhol, ou italiano, ou árabe. Ainda nem duas horas antes, tinha assassinado a sangue frio dois agentes da DSS, mas, pelo que Michael conseguia detectar, não sofria quaisquer problemas de efeitos colaterais pelo facto de matar. Ele matara apenas uma vez — um terrorista da Espada de Gaza, no Aeroporto de Heathrow — e tinha sido perseguido por pesadelos durante semanas.
Falou a Michael do homem que conhecia apenas como Vladimir. Tinham vivido num grande apartamento do KGB em Moscovo e possuíam uma agradável datcha não muito longe da cidade, para os fins-de-semana e as férias. Nessa altura, Delaroche era conhecido pelo seu nome de baptismo, que era Nicolai, e pelo patronímico, que era Mikhailovich. Não lhe era permitido ter contacto com outras crianças. Não frequentou as normais escolas do Estado, não pertenceu a qualquer clube desportivo ou a organizações juvenis do Partido Comunista. Nunca o deixavam sair do apartamento ou da ãatcha sem Vladimir ao seu lado. Por vezes, quando Vladimir se encontrava doente ou demasiado cansado, mandava um gorila carrancudo chamado Boris acompanhar a criança.
A determinada altura, Vladimir começou a ensinar-lhe línguas. Ter uma outra língua é ter outra alma, dizia Vladimir. E para a vida que estás prestes a levar, Nicolai Mikhailovich, vais precisar realmente de muitas almas. Delaroche franziu a cara como se fosse um velho e curvou os ombros. Ao observá-lo, Michael ficou assombrado com a capacidade que ele tinha para se transformar noutra pessoa. Quando falou com a voz de Vladimir, soou como um russo pela primeira vez.
De vez em quando, um homem alto e severo, com fatos ocidentais e cigarros ocidentais, vinha visitá-lo, continuou Delaroche a contar. Estudava o rapaz como um escultor seria capaz de estudar uma obra em execução. Muitos anos mais tarde, Delaroche ficaria a conhecer a identidade do homem alto. Era Mikhail Voronstov, o chefe da Primeira Direcção Principal[40] do KGB — o seu pai.
Em Agosto de 1968, com dezasseis anos, foi enviado para o Ocidente. Atravessou a fronteira da Checoslováquia com a Áustria, fazendo passar-se por filho de dissidentes checos a fugir dos russos. Ficou na Áustria durante algum tempo e depois mudou-se para Paris, onde viveu como um miúdo da rua até a igreja o acolher.
Foi em Paris que descobriu que sabia pintar. Vladimir nunca o tinha deixado dedicar-se a mais nada além das línguas e das artes do ofício. Não há tempo para actividades frívolas, Nicolai Mikhailovich, dizia. Estamos numa corrida contra o tempo. Passava tardes a deambular pelos museus, estudando grandes obras. Frequentou a escola de arte durante um certo tempo e até conseguiu vender alguns dos seus trabalhos na rua.
A seguir, apareceu o homem chamado Mikhail Arbatov e os assassínios começaram.
— O Arbatov era o agente responsável por mim — explicou De-laroche. — No começo, eu tratava de assuntos internos: dissidentes, potenciais desertores, esse tipo de coisas. A seguir, embarquei num tipo de missão diferente.
Michael passou em revista uma série de assassínios que sabia terem sido levados a cabo por Delaroche: o ministro espanhol, em Madrid, o representante da polícia francesa, em Paris, o executivo da BMW, em Frankfurt, o representante da OLP, em Tunes, o empresário israelita, em Londres.
— O KGB queria tirar partido dos movimentos terroristas e nacionalistas existentes no interior das fronteiras da NATO e dos seus aliados — prosseguiu Delaroche.
— O IRA, a Facção Exército Vermelho, as Brigadas Vermelhas de Itália, os bascos, em Espanha, a Acção Directa, em França, e por aí fora. Matei em ambos os lados do espectro, pura e simplesmente de maneira a criar a desordem. Houve muitos mais assassínios do que aqueles que referiste, claro.
— E quando a União Soviética se desmoronou?
— Eu e o Arbatov ficámos à deriva.
— E então passaram a trabalhar por conta própria? Delaroche confirmou com a cabeça, esfregando o tornozelo.
— O Arbatov tinha excelentes contactos e era um negociador talentoso. Actuava como meu agente, recebendo propostas, negociando honorários... esse tipo de coisas.
Dividíamos as receitas do meu trabalho.
— E depois veio o caso da TransAdantic.
— Foi o dia de trabalho mais bem pago da minha vida, um milhão de dólares. Mas não fui eu que abati aquele avião a jacto. Foi aquele psicopata palestiniano, o Hassan Mahmoud, quem abateu o avião.
— Tu limitaste-te a liquidar o Mahmoud.
— Exactamente.
— E o corpo foi deixado lá ficar para nós deduzirmos que tinha sido a Espada de Gaza a levar a cabo o atentado.
— Sim.
— E- depois foste contratado pelos homens que abateram de facto o avião para eliminar as outras pessoas envolvidas na operação, como o Colin Yardley, em Londres, e o Eric Stoltenberg, no Cairo.
— E depois tu.
— Quem é que te contratou? — perguntou de novo Michael. — Quem é que te contratou para me matar?
— Eles chamam-se a si mesmos Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais — começou por dizer Delaroche. — São um grupo de agentes dos serviços secretos, homens de negócios, comerciantes de armas e criminosos que tentam influenciar os acontecimentos mundiais de modo a ganharem dinheiro e a protegerem os seus próprios interesses.
— Não acredito que uma organização dessas exista realmente.
— Abateram o avião para que um dos seus membros, um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott, pudesse convencer o presidente Beckwith a construir um sistema de defesa antimíssil.
Michael tinha suspeitado que Elliott estivesse envolvido naquela tragédia; na verdade, até tinha posto as suas suspeitas por escrito no relatório que fizera à CIA.
Ainda assim, ouvir Delaroche confirmar-lhe essas suspeitas fê-lo sentir-se enojado. Começou a escorrer-lhe suor pelas costelas.
— Eles sabiam que tu estavas a aproximar-te demasiado da verdade — continuou Delaroche. — Decidiram que o melhor seria que morresses e, por isso, contrataram-me para te matar.
— Como é que eles souberam das minhas suspeitas?
— Têm uma fonte dentro de Langley.
— E o que é que aconteceu a seguir a Shelter Island? — perguntou Michael.
— Passei a trabalhar em exclusivo para a Sociedade.
— E a Sociedade tem algum líder?
— Chamam-lhe o Director. É o único nome pelo qual é conhecido. É inglês. Tem uma rapariga nova chamada Daphne. É tudo o que eu sei sobre ele.
— Foste tu que mataste o Ahmed Hussein no Cairo. Delaroche virou-se de repente e lançou um olhar furioso a Michael.
— A Sociedade executou o assassínio a mando da Mossad. Como é que soubeste que tinha sido eu?
— O Hussein estava sob vigilância dos egípcios. Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio e reparei na cicatriz que o assassino tinha na mão direita. Foi aí que soube que estavas vivo e outra vez em acção. Foi aí que enviámos o alerta à Interpol.
— Soubemos do alerta imediatamente — revelou Delaroche, olhando para as costas da mão direita. — O Director tem excelentes contactos no mundo dos serviços secretos e de segurança ocidentais, mas disse que a informação sobre o alerta à Interpol veio da fonte dele em Langley.
— E porque é que a Sociedade se envolveu na questão da Irlanda do Norte?
— Porque achou que o acordo de paz na Irlanda do Norte era mau para o negócio. Houve uma reunião do Conselho Executivo da Sociedade no mês passado, em Míconos. Nessa reunião, decidiram matar-te a ti e ao teu sogro, e foi-me dada essa missão.
— E a mulher que ia no Volvo era a Rebecca Wells?
— Era.
— Onde é que ela está agora?
— Isso não fazia parte do nosso acordo, Michael.
— E porquê matarem-me a mim?
— O Director investiu uma grande quantidade de dinheiro em mim e quis proteger o seu investimento. Viu-te como uma ameaça.
— E a fonte de Langley estava na reunião em Míconos?
— Estava toda a gente em Míconos.
Já passava das cinco da manhã quando Michael e Delaroche chegaram à aldeia de Greenport, em Long Island. Seguiram pelas ruas desertas e estacionaram no cais dos ferries. O barco estava tranquilamente parado no seu estaleiro; só iria fazer a primeira travessia até Shelter Island, do outro lado do estreito, dali a uma hora. Michael fez uma chamada pelo telefone público junto ao pequeno barracão revestido de ripas que havia no terminal.
— Onde é que tu estás, foda-se? — perguntou Adrian Cárter. — Tens toda a cidade à tua procura.
— Liga-me para este número de um telefone público.
O número de dez dígitos que indicou a Cárter não tinha qualquer semelhança com o verdadeiro número do telefone público. Tinha dado o número a Cárter num código rudimentar que os dois tinham utilizado em operações muitos anos antes — na ordem inversa, com o primeiro dígito mais um do que o número verdadeiro, o segundo dígito menos dois, o terceiro dígito mais três e por aí fora. Não precisou de repetir. Cárter, tal como Michael, era atormentado por uma memória perfeita.
Michael desligou e fumou um cigarro enquanto esperava que Cárter se vestisse, entrasse no carro e se dirigisse a um telefone público. A imagem de Cárter a vestir um casaco por cima do pijama fez Michael sorrir. O telefone tocou passados cinco minutos.
— Importas-te de me dizer que raio se está a passar?
— Digo-te quando tu aqui chegares.
— E onde é que tu estás?
— Em Shelter Island.
— E que raio estás a fazer aí? Estiveste envolvido naquele tiroteio na Key Bridge?
— Apanha mas é o primeiro avião para aqui, Adrian. Preciso de ti. Cárter hesitou um momento e depois disse:
— Estou aí assim que puder, mas porque é que eu já sei que não vai sair daqui nada de bom?
Quando Michael voltou para o carro, Delaroche tinha desaparecido. Encontrou-o uns instantes depois, encostado a uma vedação com rede metálica a enferrujar, a olhar fixamente para o outro lado do estreito, na direcção da silhueta baixa e escura de Shelter Island.
— Conta-me os teus planos — disse Delaroche.
— Se queres o teu dinheiro e a tua felicidade, vais ter de fazer por merecer.
— E que queres tu que eu faça?
— Ajuda-me a destruir a fonte dentro de Langley.
— Sabes quem ele é?
— Sei — respondeu Michael. — E não é um ele. É a Mónica Tyler.
— Eu não sei o suficiente para destruir a Mónica Tyler.
— Sabes, sim, senhor.
Delaroche continuava a olhar fixamente para a água negra.
— De certeza que podíamos ter feito isto noutro sítio que não este, Michael. Porque é que me trouxeste outra vez para este sítio?
Mas Delaroche não estava verdadeiramente à espera de uma resposta e Michael não lhe deu uma.
— Eu preciso de saber uma coisa. Preciso de saber como é que a Astrid morreu.
— A Elizabeth matou-a.
— Como?
Quando Michael lhe contou, ele fechou os olhos. Ficaram ali parados, lado a lado, ambos agarrados à vedação, à medida que os primeiros trabalhadores dos ferries foram começando a chegar. Passados poucos minutos, o barco começou a ressoar no seu estaleiro.
— Nunca foi nada pessoal — disse Delaroche, por fim. — Foram só negócios. Compreendes o que te estou a dizer, Michael? Foram só negócios.
— Tu fizeste-nos passar um inferno, a mim e à minha família, e nunca te perdoarei isso. Mas compreendo. Agora, compreendo tudo.
Capítulo 42
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Quando chegaram ao portão de Cannon Point, um segurança chamado Tom Moore saiu do abrigo para os guardas. Era um antigo comando do exército, com ombros grossos e quadrados e cabelo louro cortado à escovinha.
— Peço desculpa por não ter ligado primeiro para te avisar que estava a caminho, Tom.
— Não há problema, senhor Osbourne — respondeu Moore. — Já ouvimos o que aconteceu ao senhor embaixador. Como é óbvio, estamos todos a torcer por ele. Só espero que apanhem os sacanas que fizeram isto. Na rádio, disseram que eles desapareceram sem deixar rasto.
— Parece que sim. Este é um amigo meu — disse Michael, apontando para Delaroche. — Vai ficar cá um dia ou dois.
— Sim, senhor.
— Aparece lá em casa para almoçar, Tom. Precisamos de falar.
— Eu não quero ter nada a ver com isso — afirmou Adrian Cárter. — Passa isso à Divisão de Contra-Espionagem. Meu Deus, por mim, até podes dar isso aos palhaços do FBI. Mas livra-te disso, porque essa coisa vai destruir quem quer que toque nela.
Cárter e Michael estavam a andar ao longo da divisória com vista para o estreito, de cabeça para baixo e mãos nos bolsos, como uma equipa de busca à procura de um corpo. Naquela manhã, não havia vento e estava frio. Cárter estava com o mesmo anoraque almofadado que trazia vestido naquela tarde no Central Park, em que tinha pedido a Michael para regressar à CIA. Era um fumador regenerado, mas, a meio da história, cravou um cigarro a Michael e devorou-o.
— Ela é a directora da CIA — disse Michael. — Ela controla a Divisão de Contra-Espionagem. E, quanto ao FBI, quem é que vai querer envolvê-los? Isto é um assunto nosso. O FBI só nos vai lembrar isso mesmo.
— E estás a esquecer-te de que ali o Jack, o "Estripador, é a tua única testemunha? — retorquiu Cárter, apontando com a cabeça para a casa. — Tens de admitir que ele tem de facto um problemazinho em termos de credibilidade. Já pensaste pelo menos na possibilidade de ele ter inventado esta coisa toda para impedir que o prendesses?
— Ele não está a inventar.
— Como podes ter tanta certeza? Toda esta coisa de uma ordem secreta chamada Sociedade soa-me a um belo monte de treta.
— Alguém contratou aquele homem para me matar no ano passado porque eu estava a aproximar-me demasiado da verdade acerca do caso da TransAtlantic. Revelei as minhas suspeitas a duas pessoas dentro da CIA. Uma foste tu e a outra foi a Mónica Tyler.
— E então?
— Para começar, porque é que a Mónica fez com que eu me fosse embora da CIA no ano passado? E porque é que me retirou do caso Outubro uma semana antes de ele tentar matar o Douglas? E há mais uma coisa. O Delaroche disse que houve uma reunião da Sociedade em Míconos, no início deste mês. A Mónica esteve na Europa a participar numa conferência regional sobre segurança. E, depois disso, tirou dois dias de folga e desapareceu por completo.
— Meu Deus, Michael, eu também estive na Europa no início do mês.
— Eu acredito na história, Adrian. E tu também.
Saíram do recinto de Cannon Point e caminharam pela Shore Road, no limite de Dering Harbor.
— Se isto for tornado público, vai ser desastroso para a CIA.
— Concordo — disse Michael. — Seriam necessários anos para recuperar de um golpe desses. Destruiria a reputação da CIA em Washington e, em boa verdade, pelo mundo inteiro.
— Então, o que é que fazemos?
— Apresentamos-lhe as provas e acabamos com ela antes que possa causar mais estragos. Ela tem sangue nas mãos, mas se fizermos isto em público a agência vai ficar em ruínas.
— A única maneira de alguma vez conseguires desalojar a Mónica do sétimo andar é com dinamite.
— Eu próprio subo até lá com uma pasta cheia dele, se for preciso.
— E porque é que me envolveste?
— Porque tu és a única pessoa em quem confio. Foste o agente responsável por mim, Adrian. Serás sempre o agente responsável por mim.
Pararam numa ponte que percorria toda a desembocadura de um ribeiro por onde entrava o mar, à frente de Dering Harbor. Para lá da ponte, havia uma vasta planície com relva pantanosa e árvores despidas. Um homem bastante pequeno e esguio estava diante de um cavalete na ponte, a pintar. Tinha luvas de lã sem dedos e uma camisola de pescador já coçada e vários tamanhos acima do seu.
— Encantador — disse Cárter, olhando para o trabalho. — O senhor é muito talentoso.
— Obrigado — respondeu o pintor, num inglês com sotaque carregado.
Cárter virou-se para Michael e soltou:
— Só podes estar a brincar comigo.
— Adrian Cárter, gostaria de te apresentar o Jean-Paul Delaroche. És capaz de o conhecer melhor como Outubro.
Tom Moore apareceu na casa ao meio-dia.
— Queria ver-me, senhor Osbourne?
— Entra, Tom. Há café acabado de fazer na cozinha.
Michael serviu o café e sentaram-se um em frente do outro, à mesa pequena na cozinha.
— O que é que posso fazer por si, senhor Osbourne?
— Vai haver aqui um encontro hoje à noite que eu preciso de gravar, em áudio e vídeo — começou por dizer Michael. — As câmaras de vigilância podem ser reposicionadas?
— Sim, senhor — respondeu Moore sem emoção.
— E consegues gravar através do dispositivo de saída?
— Sim, senhor.
Adrian Cárter entrou na cozinha, seguido por Delaroche.
— Temos algum equipamento áudio na propriedade?
— Não, senhor. O seu sogro não permitiu que houvesse quaisquer microfones. Achou que isso seria uma invasão da sua privacidade — explicou Moore, com a sua cara grande a deixar despontar um sorriso agradável. — Ele já mal tolera as câmaras. Antes de partir para Londres, apanhei-o a tentar desligar uma.
— E quanto tempo é que demoraria para se arranjarem uns microfones e um gravador?
Moore encolheu os ombros.
— Um par de horas, no máximo.
— E consegues instalá-las de maneira a que não possam ser vistas?
— Os microfones são fáceis porque são relativamente pequenos. As câmaras é que põem um problema. São câmaras de segurança normais, mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos.
Michael praguejou baixinho.
— Mas tenho uma ideia.
— Sim?
— As câmaras têm uma lente razoavelmente longa. Se realizassem o encontro na sala de estar, eu podia posicionar câmaras lá fora, no relvado, e filmar através das janelas.
Michael sorriu e disse:
— Tu és bom, Tom.
— Fiz um pouco de espionagem quando estava nos comandos. Só têm de se certificar de que as cortinas ficam sempre abertas.
— Não posso garantir isso.
— Na pior das hipóteses, terão o áudio como apoio. Delaroche perguntou:
— Tem mais alguma arma além dessa peça de museu com que anda?
Moore trazia um revólver Smith & Wesson de calibre 38.
— Eu gosto destas peças de museu porque elas não encravam — respondeu Moore, batendo com a mão grossa no coldre. — Mas sou capaz de conseguir deitar a mão a umas quantas automáticas.
— De que tipo?
— Colt, de calibre quarenta e cinco.
— Nada de Glock nem de Beretta?
— Lamento — soltou Moore, com o espanto estampado no rosto.
— Uma ou duas Colt serviriam muito bem — disse Cárter.
— Sim, senhor — respondeu Moore. — E pode dizer-me do que é que isto tudo se trata?
— De maneira nenhuma.
Delaroche subiu as escadas e seguiu Michael até ao quarto no andar de cima. Este dirigiu-se ao armário, abriu a porta e tirou uma pequena caixa da gaveta de cima.
Abriu-a e tirou de lá a Beretta.
— Creio que deixaste cair isto da última vez que aqui estiveste — disse Michael, entregando a pistola a Delaroche.
A mão direita de Delaroche, com a sua cicatriz, apertou a coronha e, num movimento reflexo, o dedo enfiou-se na protecção do gatilho. Havia qualquer coisa na facilidade com que Delaroche manejava a arma que fez Michael sentir um arrepio.
— Onde é que arranjaste isto? — perguntou Delaroche.
— Saquei-a da água, no final da doca.
— E quem é que a restaurou?
— Fui eu.
Delaroche desviou os olhos da pistola e fitou Michael com um ar intrigado.
— E por que raio foste fazer uma coisa dessas?
— Não sei bem. Acho que queria poder lembrar-me de qual era realmente o aspecto dela.
Delaroche ainda tinha um carregador para uma Beretta de nove milímetros dentro do bolso. Enfiou-o na arma e engatilhou-a, introduzindo a primeira bala na câmara.
— Se quisesses, suponho que podias cumprir os termos do teu contrato neste momento.
Delaroche sorriu e devolveu a Beretta a Michael.
Às quatro da tarde, Michael entrou no escritório de Douglas e ligou para o gabinete de Mónica Tyler na sede da CIA. Cárter estava à escuta noutra extensão, com a mão a tapar o auscultador. A secretária de Mónica informou que a directora Tyler se encontrava numa reunião dos quadros superiores e que não podia ser interrompida.
Michael respondeu que era uma emergência e puseram-no a falar com Tweedledee ou Tweedledum, Michael nunca sabia ao certo qual era qual. Fizeram-no esperar os dez minutos da praxe enquanto Mónica era arrancada da reunião.
— Eu sei tudo — disse Michael, no momento em que ela veio finalmente ao telefone. — Sei da Sociedade e sei do Director. Sei do Mitchell Elliott e do caso da TransAdantic.
E sei que tu tentaste mandar matar-me.
— Michael, estás a delirar completamente? Do que raio é que estás para aí a falar?
— Estou a dar-te uma maneira de saíres disto discretamente.
— Michael, eu não...
— Vem ter à casa do meu sogro em Shelter Island. Vem sozinha: nada de segurança, nada de funcionários. Está cá às dez da noite. Se a essa hora ainda não tiveres chegado, ou se eu vir alguma coisa de que não goste, vou ter com o FBI e o The New York Times e conto-lhes tudo o que sei.
Desligou sem esperar que ela respondesse.
Trinta minutos mais tarde, o telefone seguro tocou no escritório da mansão londrina do Director. Estava sentado numa poltrona de orelhas, junto à lareira, com os pés apoiados numa otomana, a despachar um monte de papelada. Daphne entrou no escritório silenciosamente e atendeu o telefone.
— É o Picasso — disse Daphne. — Diz que é urgente.
O Director pegou no auscultador e disse:
— Sim, Picasso?
Com calma, Mónica Tyler informou-o do telefonema que tinha acabado de receber de Michael Osbourne.
— Suspeito que o Outubro seja a fonte das informações de que ele dispõe — disse o Director. — Se isso for verdade, parece-me que o Osbourne não tem muito por onde pegar. O Outubro sabe muito pouco acerca da estrutura global da nossa organização e não é propriamente uma testemunha credível. É um homem que mata por dinheiro, um homem sem princípios morais e sem lealdade.
— Concordo, Director, mas não me parece que devamos simplesmente desconsiderar a ameaça.
— Não estou a sugerir isso.
— E possui os recursos necessários para os eliminar?
— Não assim com tão pouca antecedência.
— E se eu prender pura e simplesmente o Outubro?
— Então, ele e o Outubro irão contar ao mundo a história deles.
— Estou aberta a sugestões.
— Sabes jogar póquer? — perguntou o Director.
— Em sentido figurado ou literalmente?
— Um bocadinho das duas coisas, na verdade.
— Penso que compreendo a sua ideia.
— Ouve o que o Osbourne tem para dizer e avalia as tuas opções. Eu sei que não preciso de te lembrar que fizeste um juramento de fidelidade para com a Sociedade.
A tua primeira preocupação deve ser o cumprimento desse juramento.
— Compreendo, Director.
— E talvez se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
— Eu nunca fiz esse tipo de coisas, Director.
— Não é assim tão difícil, Picasso. Fico à espera de notícias tuas. Desligou o telefone e olhou para Daphne.
— Começa a ligar para os membros do Conselho Executivo e para os chefes de divisão. Preciso de falar com todos eles urgentemente. Receio que possamos ser forçados a parar com as nossas actividades durante algum tempo.
Mónica Tyler desligou o telefone e olhou para o rio Potomac através da janela. Atravessou a sala e parou diante de um Rembrandt, uma paisagem que tinha comprado por uma pequena fortuna num leilão em Nova Iorque. Percorreu o quadro com os olhos: as nuvens, a luz a espalhar-se do chalé, a charrete sem cavalo no meio da erva do prado. Agarrou na moldura e puxou. O Rembrandt girou nas dobradiças, revelando um pequeno cofre na parede.
Os dedos dela giraram a fechadura automaticamente, sem que os olhos olhassem praticamente para os números; passados uns segundos, o cofre estava aberto. Começou a tirar de lá alguns artigos: um envelope com cem mil dólares em dinheiro, três passaportes falsos com nomes diferentes e de países diferentes e cartões de crédito correspondentes aos nomes.
A seguir, tirou um último artigo, uma Browning automática.
E take se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
Mudou de roupa, trocando o fato Chanel de corte justo por umas calças de ganga e uma grande mala de mão de couro preta. Depois, guardou uma muda de roupa numa pequena mala de fim-de-semana.
Pôs a mala de mão ao ombro e enfiou a mão lá dentro, apertando a coronha da Browning tinha sido treinada pela CIA para manejar uma arma. Um dos membros da equipa de segurança dela estava à espera no corredor.
— Boa tarde, Directora Tyler.
— Boa tarde, Ted.
— É para voltar para a sede, Directora?
— Por acaso, não, é para heliporto.
— O heliporto? Ninguém nos disse nada sobre...
— Não há problema, Ted — disse ela calmamente. — É um assunto privado.
O segurança olhou para ela atentamente.
— Passa-se alguma coisa, Directora Tyler?
— Não, Ted, vai correr tudo lindamente.
Capítulo 43
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Michael mantinha-se ansiosamente vigilante no relvado de Cannon Point. Estava a beber o café horrível de Adrian Cárter, a fumar os seus próprios cigarros horríveis e a andar de um lado para o outro na relva gelada, com os binóculos que Douglas utilizava para observar aves colocados ao pescoço. Meu Deus, como a noite estava fria, pensou. Olhou uma vez mais para o céu a ocidente, na direcção em que Mónica viria, mas viu apenas uma chuva de estrelas molhadas, espalhadas pelo tapete negro do espaço, e uma nesga de lua, de um branco-amarelado.
Olhou para o relógio — 21h58. Mónica nunca chega a horas, pensou. "A Mónica há-de chegar dez minutos atrasada ao próprio funeral", gracejou uma vez Cárter, especado na deprimente antessala de Mónica, à espera que esta aparecesse. Talvez ela não vá aparecer, pensou Michael, ou talvez eu simplesmente espere que ela não o faça.
Talvez Adrian tivesse razão. Talvez ele devesse simplesmente esquecer tudo aquilo, deixar a CIA — para sempre, desta vez — e ficar em Shelter Island com Elizabeth e as crianças. E depois? Viver o resto da minha vida a olhar por áma do ombro, à espera que a Mónica ou os amigos dela enviem outro assassino, outro Delaroche?
Viu as horas uma vez mais. Era o velho relógio do pai: fabricado na Alemanha, grande como um dólar de prata, à prova de água, à prova de pó, à prova de choque, seguro para crianças, ligeiramente luminoso. Perfeito para um espião. Tinha sido a única coisa do pai com que Michael ficara depois de ele morrer. Nem tinha tirado a correia removível que lhe deixava um padrão de buracos rectangulares estampado na pele do pulso. Às vezes, olhava para o relógio e pensava no pai — em Moscovo, ou Roma, ou Viena, ou Beirute — à espera de um agente. Interrogou-se sobre o que o pai acharia daquilo tudo.
Na altura, ele nunca me diizia o que pensava, pensou Michael. Porque é que agora haveria de ser diferente?
Ouviu um baque surdo que poderia ter sido provocado por um helicóptero à distância mas que era apenas o som proveniente do clube nocturno que ficava na outra margem, em Greenport — a banda residente a preparar-se para mais um concerto tenebroso. Michael pensou na sua heterogénea equipa de operações. Delaroche, o seu inimigo, a prova acabada da traição perpetrada por Mónica, à espera para ser posto no palco e depois tirado de lá. Tom Moore, parado diante dos seus monitores no chalé dos convidados, prestes a apanhar o choque da sua vida. Adrian Cárter, atrás dele, a andar de um lado para o outro, a fumar os cigarros de Michael sem parar e a desejar estar em qualquer outro lugar que não aquele.
Michael ouviu o bater das hélices do helicóptero muito antes de o conseguir ver. Por um instante, pensou que até pudessem ser dois, ou três, ou mesmo quatro. Instintivamente, esticou o braço para agarrar na Colt automática que Tom Moore lhe fornecera, mas, passado um momento, viu as luzes de um único helicóptero a aproximar-se, sobrevoando Nassau Point e Great Hog Neck, e percebeu que tinha sido apenas o vento nocturno a pregar-lhe uma partida aos ouvidos.
Lembrou-se da manhã, dois meses antes, em que o helicóptero que transportava o presidente James Beckwith fizera o mesmo percurso até Shelter Island, desencadeando a sucessão de acontecimentos que o tinha levado até àquele sítio.
As imagens desenrolaram-se na sua mente à medida que o helicóptero se ia aproximando.
Adrian Cárter no dique da represa no Central Park, a seduzir Michael a regressar.
Kevin Maguire amarrado a uma cadeira e Seamus Devlin a sorrir. Eu não matei o Kevin Maguire, Michael. Você é que o matou.
Preston McDaniels a ser esmagado pelas rodas do comboio da Linha do Sofrimento.
Delaroche, a sorrir por cima do parapeito da Key Bridge. Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo?
Às vezes, o trabalho de espionagem é assim, costumava dizer o pai — como a teoria do caos. Um sopro de vento agita a superfície de um lago, fazendo um tufo de juncos deslocar-se, o que origina o voo de uma libélula, que assusta uma rã, e sempre por aí adiante até que, a dezenas de milhares de quilómetros de distância e muitas semanas depois, um tufão destrói uma ilha nas Filipinas.
O helicóptero sobrevoou baixinho a baía de Southold. Michael olhou para o relógio do pai: um minuto depois das dez. O helicóptero começou a descer sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, aterrando a seguir no extenso relvado de Cannon Point. Os motores desligaram-se e as hélices foram parando de girar gradualmente.
A porta abriu-se e uma pequena escada estendeu-se até ao chão. Mónica saiu do helicóptero, com uma mala de mão preta ao ombro, e avançou de forma decidida em direcção à casa.
— Vamos lá a despachar este disparate — disse ela, passando depressa por Michael. — Sou uma mulher muito ocupada.
Mónica Tyler não era uma pessoa que caminhasse sem pressas, mas estava a fazê-lo naquele momento. Percorreu a sala de estar de Douglas Cannon como um político a inspeccionar um parque de caravanas a seguir a um tornado — com calma, estoicismo e empatia, mas com o cuidado de não pisar nada que fosse revoltante. Foi fazendo pequenas pausas de tempos a tempos, ora franzindo o sobrolho à coberta com motivos florais por cima do sofá, ora fazendo uma careta perante o pequeno tapete rústico diante da lareira.
— Tens câmaras em algum sítio, não tens, Michael — disse ela, fazendo uma afirmação e não uma pergunta. — E microfones.
Prosseguiu a sua agitada travessia pela sala.
— Não te importas que eu corra estas cortinas, pois não, Michael? E que, sabes, eu também passei por aquele cursozinho na quinta. Posso não ser uma agente operacional experiente como tu, mas sei uma coisinha ou outra sobre as artes clandestinas.
Fez questão de mostrar bem que estava a fechar as cortinas.
— Pronto — rematou. — Assim está muito melhor. Sentou-se, como uma testemunha relutante e arrogante a sentar-se para depor. Os pedaços de tronco na lareira começaram a crepitar. Ela cruzou uma perna sobre a outra, pousando as mãos compridas em cima do tecido desbotado das calças de ganga, e fitou Michael com um olhar gelado. O cenário prosaico à sua volta tinha-lhe retirado a intimidação física. Não havia caneta de ouro para esgrimir como um punhal, não havia secretária para interromper uma reunião que se tinha tornado inesperadamente desagradável, não havia Tweedledum nem Tweedledee, vigilantes como dobermans, agarrados às suas pastas de couro e telemóveis seguros.
Delaroche entrou na sala. Estava a fumar um cigarro. Mónica lançou-lhe um olhar feroz de desprezo, já que o tabaco, como a falta de lealdade, era um dos seus ódios de estimação.
— Este homem chama-se Jean-Paul Delaroche — disse Michael. — Sabes quem é?
— Suspeito que seja um antigo assassino do KGB com o nome de código Outubro e que agora actua como assassino internacional a soldo.
— E sabes porque é que ele cá está?
— Provavelmente, porque quase matou o teu sogro ontem à noite, em Georgetown, apesar de todos os nossos esforços para o determos.
— Que jogo andas tu a jogar, Mónica? — perguntou Michael rispidamente.
— Ia precisamente perguntar-te a mesma coisa.
— Eu sei tudo — disse ele, agora mais calmo.
— Acredita em mim, Michael, tu não sabes tudo. Na verdade, não sabes praticamente nada. É que a tua brincadeirazinha pôs gravemente em risco uma das operações mais importantes que a CIA tem neste momento em execução.
A sala tinha ficado em silêncio, à excepção da lareira, que se encontrava de novo em actividade, a crepitar como pequenas armas. La fora, o vento abanava as árvores despidas e uma delas arranhava a fachada lateral da casa. Um camião roncou pela Shore Road e um cão ladrava algures.
— Se queres ouvir o resto, vais ter de desligar os teus microfones — avisou Mónica.
Michael não se mexeu. Mónica esticou o braço na direcção da mala, como se estivesse prestes a levantar-se para se ir embora.
— Está bem — disse Michael.
Pôs-se em pé, foi até à secretária de Douglas e abriu uma gaveta. Lá dentro, estava um microfone, mais ou menos do tamanho de um dedo. Michael levantou-o para que Mónica o pudesse ver.
— Desliga-o — disse ela.
Ele arrancou o microfone do cabo.
— E agora o de apoio — continuou ela. — Tu és demasiado paranóico para fazeres uma coisa destas sem um apoio.
Michael dirigiu-se para as prateleiras dos livros, tirou um volume de Proust e puxou do segundo microfone.
— Acaba com ele — ordenou Mónica. Delaroche olhou para Michael.
— Ela tem uma pistola na mala.
Michael aproximou-se da cadeira onde Mónica Tyler estava sentada, enfiou a mão na mala e tirou de lá a Browning.
— Desde quando é que os directores da CIA andam com armas?
— Quando se sentem ameaçados — respondeu Mónica. Michael travou a patilha de segurança e atirou a Browning para Delaroche.
— Muito bem, Mónica, vamos lá começar.
Adrian Cárter era ansioso por natureza, o que o tornava estranhamente inadequado para a actividade de enviar agentes para o terreno e ficar à espera que eles regressassem.
Ao longo dos anos, tinha aguentado muitas vigílias plenas de ansiedade por causa de Michael Osbourne. Lembrou-se das duas noites intermináveis que tinha passado em Beirute, em 1985, à espera que Michael regressasse de um encontro com um agente no vale de Bekaa. Cárter temia que Michael tivesse sido sequestrado ou morto.
Estava prestes a desistir quando Michael apareceu em Beirute aos tropeções, coberto de poeira e a cheirar a cabras.
Ainda assim, nada se comparava ao desconforto que sentia naquele momento, ao ouvir o seu agente a confrontar a directora da CIA. Quando esta exigiu que Michael inutilizasse o primeiro microfone Cárter não ficou especialmente preocupado — havia dois na sala e um agente operacional experiente como Michael nunca abriria mão do seu ás de trunfo.
Depois, ouviu Mónica a exigir que o segundo fosse igualmente desligado, seguido de uma série de ruídos surdos e estática, no momento em que Michael o arrancou da prateleira. Quando a ligação à sala foi interrompida, fez a única coisa que um bom orientador de agentes pode fazer.
Acendeu outro dos cigarros de Michael e esperou.
— Pouco tempo depois de ter sido nomeada directora da CIA, fui abordada por um homem que dava apenas pelo nome de Director — começou por dizer ela, falando como uma mãe exausta, a contar com relutância um conto de fadas a uma criança que não quer ir deitar-se. — Perguntou-me se eu estaria disposta a fazer parte de um clube de elite, um grupo internacional de agentes dos serviços secretos, especialistas financeiros e homens de negócios dedicado à preservação da segurança mundial. Suspeitei que havia ali qualquer coisa de errado e, por isso, informei a Divisão de Contra-Espionagem do incidente, relatando-o como um potencial recrutamento por parte de uma organização inimiga. A Divisão de Contra-Espionagem achou que poderia ser produtivo, em termos operacionais, aceitar o convite do Director e eu concordei. Pedi a aprovação do próprio presidente para dar início à operação. Encontrei-me com o homem chamado Director mais três vezes, duas na Europa do Norte e uma no Mediterrâneo.
No final do nosso terceiro encontro, chegámos a um acordo e eu entrei para a Sociedade.
"A Sociedade tem tentáculos muito compridos. Está envolvida em operações secretas a uma escala mundial. Comecei a recolher imediatamente informações sobre os membros e as operações. Algumas informações passaram por uma lavagem efectuada pela agência e nós tomámos contramedidas. Por vezes, considerámos ser necessário permitir que as operações da Sociedade prosseguissem, pois desmantelá-las poderia pôr em risco a minha posição dentro da hierarquia da organização.
Michael observou-a enquanto ela falava. Estava calma e serena e completamente lúcida, como se estivesse a ler um discurso preparado numa reunião de accionistas.
Sentiu-se tremendamente impressionado com ela; era uma mentirosa formidável.
— E quem é o Director?
— Não sei, e suspeito que o Delaroche também não saiba.
— E tu sabias que ele tinha sido contratado para matar o meu sogro?
— Claro, Michael — respondeu ela, semicerrando os olhos em sinal de desprezo.
— Então, para que é que foi toda aquela fantochada na sala de jantar executiva? Porque é que me retiraste do caso?
— Porque o Director mo pediu — respondeu ela secamente. A seguir, acrescentou: — Deixa-me explicar. Ele achou que o Delaroche conseguiria desempenhar a missão com maior facilidade se tu já não te encontrasses à frente do caso. Por isso, afastei-te e tomei discretamente medidas para assegurar a segurança do teu sogro. Infelizmente, essas medidas não foram bem-sucedidas.
— Se foi esse o caso, então porque é que ele estava desprotegido em Washington?
— Porque o Director me garantiu que o Delaroche não iria actuar em solo americano.
— E porque é que não me disseste?
— Porque nós não queríamos que tu fizesses nada de precipitado que pudesse pôr em risco a segurança da operação. O objectivo era atrair o Delaroche e fazer com que ele se mostrasse para poder ser eliminado... retirado do mercado, por assim dizer. Não queríamos que o afugentasses trancando o teu sogro numa caixa-forte e deitando a chave fora.
Michael olhou para Delaroche, que estava a abanar a cabeça.
— Ela está a mentir — disse ele. — O Director tratou de tudo o que eu precisava aqui: transportes, armas, tudo. Decidiu levar a cabo o assassínio especificamente em Washington porque sabia que o embaixador estaria mais vulnerável aqui do que em Londres. Foi programado para coincidir com a conferência sobre a Irlanda do Norte de modo a aumentar o impacto no processo de paz.
Parou por uns instantes, com os olhos a deslocarem-se de Michael para Mónica e vice-versa.
— Ela é muito boa, mas está a mentir.
Mónica ignorou-o, continuando a olhar para Michael.
— Era por causa disto que nós não queríamos que o Delaroche fosse preso, Michael. Porque ele iria mentir. Porque ele iria inventar. Seria capaz de dizer qualquer coisa para salvar a pele. E o problema é que tu acreditas nele. Nós queríamos vê-lo eliminado porque, se ele fosse preso, suspeitávamos que pudesse sair-se com uma jogada destas.
— Não é uma jogada — disse Delaroche. — É a verdade.
— Devias ter desempenhado melhor o teu papel, Michael. Devias ter-te limitado a levar a cabo a tua vingança pela Sarah Randolph e matá-lo. Mas agora arranjaste uma bela trapalhada... para a CIA e para ti mesmo.
Mónica levantou-se, indicando que o encontro tinha chegado ao fim.
Michael disse:
— Se insistes em fazer a coisa assim, não me deixas outra escolha a não ser ir ter com a Divisão de Contra-Espionagem e o FBI e reve-lar-lhes as minhas suspeitas sobre ti. Vais passar os próximos dois anos a aguentar o equivalente à tortura chinesa da água. A seguir, o Senado há-de querer atirar-se a ti. Só as contas que terás de pagar em termos jurídicos vão deixar-te falida. Nunca mais voltarás a trabalhar no governo e ninguém na Wall Street vai querer ter alguma coisa a ver contigo.
Vais ser destruída, Mónica.
— Tu não tens provas que cheguem, e ninguém vai acreditar em ti.
— O genro do embaixador Douglas Cannon afirma que a directora da CIA esteve envolvida na tentativa de assassínio contra ele.
É uma história do caneco. Não há um único jornalista em Washington que não se atirasse a ela como gato a bofe.
— E tu vais ser posto em tribunal por teres revelado segredos da CIA. •
— Estou disposto a arriscar.
Adrian Cárter entrou na sala. Mónica olhou para ele; depois voltou a fixar os olhos em Michael.
— Uma caça às bruxas destruirá a agência, Michael. Devias saber isso. O teu pai foi apanhado na caça à toupeira levada a cabo pelo Angleton[41], não foi? Isso quase lhe destruiu a carreira. Esta é a tua maneira de te vingares da CIA pelo que aconteceu ao teu pai? Ou ainda sentes rancor por mim por eu ter tido a lata de te suspender em tempos?
— Não estás em posição de me irritar neste preciso momento, Mónica.
— Então, o que é que eu tenho de fazer para impedir que faças essa alegação imprudente contra mim?
— Terás de te demitir na altura apropriada. E, até lá, vais fazer exactamente aquilo que eu e o Adrian te dissermos. E vais ajudar-me a acabar com a Sociedade.
— Meu Deus, tu és mesmo um tonto ingénuo! Acabar com a Sociedade é impossível. A única forma de os controlar é fazendo parte deles. — Olhou para Delaroche. — E o que é que pensas fazer com ele?
Michael respondeu:
— Eu trato do Delaroche. — Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá uma cassete áudio. — Fiz isto ontem à noite, com umas cópias à mistura — disse. — Inclui um relato completo do teu papel na Sociedade, no caso da TransAtlantic e na tentativa de matar o meu sogro. Vou montar uma espécie de mecanismo de disparo. Se acontecer alguma coisa ao Adrian, ao Delaroche ou a mim, serão enviadas cópias disto para o The New York Times e o FBI.
Michael voltou a guardar a cassete no bolso.
— A decisão é tua, Mónica.
— Eu dei seis anos da minha vida à agência — disse ela. — Fiz tudo o que estava ao meu alcance para assegurar a sua sobrevivência e protegê-la de homens como tu: dinossauros sem a visão necessária para compreender que a CIA possui um papel neste nosso novo mundo. O jogo deixou-te para trás, Michael, e tu és demasiado estúpido para reparar sequer nisso.
— Tu usaste a CIA como um joguete privado para promover os teus próprios interesses e eu agora estou a recuperá-la.
Ela colocou a mala ao ombro, deu meia-volta e começou a ir-se embora.
— A decisão é tua, Mónica — repetiu Michael, mas ela limitou-se a continuar a andar.
Um momento depois, ouviram o gemido do motor do helicóptero a regressar à vida. Michael avançou para a varanda a tempo de ver o helicóptero de Mónica levantar voo do relvado e desaparecer sobre as águas do estreito.
Passaram o resto do dia à espera. Cárter ficou especado na varanda, de binóculos pendurados ao pescoço, olhando fixamente na direcção do estreito, como um guarda fronteiriço no Muro de Berlim. Michael contornou a casa, caminhando decidido por praias cheias de pedras e no meio dos bosques, à procura de sinais de que o inimigo estivesse a reunir as tropas. E, durante todo esse tempo, Delaroche limitou-se a observá-los, um espectador, ligeiramente perplexo, da destruição por si causada.
Cárter manteve-se em contacto com a sede. Alguém tinha tido notícias de Mónica?, perguntava ele inocentemente no final de cada conversa. As respostas foram-se tornando cada vez mais intrigantes à medida que o dia avançava. Mónica cancelou todas as reuniões que tinha. Mónica está enfiada no gabinete. Mónica não está a receber chamadas.
Mónica passou à clandestinidade. Mónica não quer comer nem beber nada. Michael e Cárter discutiram o significado dessas informações, como é próprio dos espiões fazerem.
Estaria a redigir os seus termos de rendição ou a preparar um contra-ataque?
À tarde, Cárter foi à aldeia comprar comida. Delaroche cozinhou omeletas para todos, apoiado num banco porque não conseguia ter o tornozelo inchado no chão durante muito tempo. Beberam uma garrafa de vinho, e depois outra. Delaroche providenciou o entretenimento. Ao longo de duas horas, deu uma palestra: treino, artes do ofício, missões, identidades secretas, armamento e tácticas. Não lhes contou nada que pudessem utilizar contra ele, mas pareceu retirar prazer desse mínimo desvelar de segredos.
Não disse nada acerca de Sarah Randolph ou de Astrid Vogel, ou da noite em Cannon Point um ano antes, quando ele e Michael se tinham ferido a tiro mutuamente. Permaneceu completamente imóvel enquanto falava, de mãos cruzadas sobre a mesa, com a esquerda a tapar a direita de maneira a esconder a cicatriz enrugada que tinha conduzido Michael até ele.
Foi Cárter quem fez as perguntas, pois Michael já estava com a cabeça noutro sítio. Oh, ele estava a ouvir, pensou Cárter — Michael, o dictafone humano, capaz de monitorizar três conversas e de recitar cada uma delas a outra pessoa passada uma semana —, mas já tinha um recanto da mente a voltar-se para outro problema. Por fim, Cárter começou a falar em russo, uma língua que Michael não falava, e os dois homens terminaram a conversa em privado.
Ao cair da noite, Michael e Delaroche foram caminhar. Michael, a antiga estrela das pistas, tinha enrolado uma grande quantidade de fita adesiva branca à volta do tornozelo de Delaroche. Cárter deixou-se ficar na casa; seria como estar a escutar uma conversa entre amantes desavindos e não queria tomar parte nisso. Ainda assim, não conseguiu resistir ao impulso de ir para a varanda para os observar. Não era um voyeur, apenas um agente de controlo, tomando conta do seu agente e velho amigo.
Seguiram ao longo da divisória em direcção à doca, com Delaroche a coxear ligeiramente. Quando a luz começou a enfraquecer, Cárter deixou de ser capaz de distinguir um do outro, tão semelhantes eram os dois homens em altura e constituição. Foi então que se apercebeu de que eram como duas metades do mesmo homem. Cada um possuía traços, presentes, embora reprimidos com êxito, no outro. Se não fosse pelo património e direitos adquiridos pelo nascimento, a aleatória roleta russa do tempo e espaço, tanto um como o outro poderiam muito bem ter seguido o caminho contrário: Jean-Paul De-laroche, virtuoso agente secreto; Michael Osbourne, assassino.
Passado bastante tempo — uma hora, calculou Cárter, já que, de forma nada característica, se tinha esquecido de registar a hora a que a conversa tinha começado —,
Michael e Delaroche começaram a fazer o caminho de regresso à casa.
Pararam junto ao carro alugado de Michael e ficaram defronte um do outro, cada um no seu lado do capô. Cárter continuava a não ser capaz de dizer qual era qual.
Um deles parecia estar a falar de maneira intensa e outro a bater indolentemente com a biqueira do sapato no chão. Quando a conversa terminou, aquele que tinha estado a dar pontapés no chão estendeu a mão por cima do capô do carro, mas o outro não a quis apertar.
Delaroche retirou a mão e entrou no carro. Passou pelo portão de segurança e avançou a alta velocidade pela Shore Road, embrenhando-se na escuridão. Michael Osbourne aproximou-se da casa lentamente.
ABRIL
Capítulo 44
WASHINGTON
VIENA
SOUTH ISLAND, NOVA ZELÂNDIA
O embaixador Douglas Cannon recebeu alta do George Washington University Hospital numa manhã invulgarmente quente da segunda semana de Abril. Tinha chovido durante a noite, mas a meio da manhã as poças já resplandeciam sob um sol intenso. Havia apenas um pequeno grupo de jornalistas e operadores de câmara à espera junto ao caminho de acesso, já que os media de Washington sofrem de uma espécie de síndroma de défice de atenção colectivo e ninguém estava realmente interessado em ver um velho a sair do hospital. Ainda assim, Douglas conseguiu "ser notícia", como se costuma dizer nessa profissão, quando exigiu ruidosamente sair pelo próprio pé e não com a ajuda da obrigatória cadeira de rodas — tão ruidosamente, de facto, que os jornalistas o conseguiram ouvir lá fora. "Deram-me um tiro nas costas, que raios, não nas pernas", resmungou Cannon. Os comentários foram relatados mais tarde nas notícias da noite, para grande gáudio do embaixador.
Ficou na casa da N Street, em Georgetown, durante as primeiras duas semanas de recuperação, e depois voltou para casa, para a sua adorada Cannon Point. Uma pequena multidão que se tinha reunido para lhe dar as boas-vindas acenou e gritou quando o carro de Douglas passou por Shelter Island Heights. Permaneceu em Cannon Point durante o resto da Primavera. Os seguranças acompanhavam-no quando ia passear à beira de água, cheia de pedras, na Upper Beach, e quando percorria os trilhos da reserva de Mashomack. Por altura de Junho, já se sentia com força suficiente para ir velejar no Athena. De forma nada habitual nele, tinha entregado o leme a Michael, mas foi vociferando ordens e criticando tão energicamente os conhecimentos náuticos do genro, que Michael ameaçou atirá-lo pela borda fora junto à costa de Plum Island.
Amigos de longa data insistiram com Douglas para que se demitisse do cargo em Londres; até o presidente Beckwith considerou que essa seria a melhor opção. Mas, no final de Junho, ele regressou a Londres e instalou-se no seu gabinete na Grosvenor Square. A 4 de Julho, no Dia da Independência, compareceu perante o Parlamento a título especial e, a seguir, viajou para Belfast, onde foi recebido como um herói.
Para coincidir com a sua visita, os serviços secretos e de segurança britânicos e americanos divulgaram os resultados da sua investigação conjunta à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de matar Cannon em Washington. No comunicado, concluía-se que havia dois terroristas envolvidos, uma mulher chamada Rebecca Wells, que também estava implicada no caso de Hartley Hall, e um homem não identificado que se supunha ser um assassino profissional contratado pelo grupo.
Apesar de uma busca à escala global, os dois terroristas continuavam a monte.
Horas depois da visita de Cannon à Irlanda do Norte, um grande carro-bomba explodiu à porta de um mercado, junto à esquina da Whiterock Road com a Falis Road. Morreram cinco pessoas e foram feridas outras dezasseis. A Brigada para a Libertação do Ulster reivindicou a responsabilidade. Nessa noite, um grupo republicano extremista, dando pelo nome de Célula de Libertação Irlandesa, vingou esse atentado através da explosão de um gigantesco camião-bomba que arrasou grande parte do centro de Portadown.
O grupo prometeu prosseguir com os seus atentados até que o acordo de paz de Sexta-Feira Santa estivesse morto.
Durante várias semanas, os corredores sem fim de Langley palpitaram com os rumores acerca de uma reorganização drástica no sétimo andar. Mónica ia-se embora, segundo um rumor. Ia ficar para sempre, segundo outro. Mónica tinha caído em desgraça junto do presidente. Mónica estava prestes a tornar-se secretária de Estado. O rumor mais popular entre os seus detractores era a história de que ela tinha sofrido um esgotamento nervoso; que tinha entrado em delírio; que, num acesso de raiva psicótica, tinha tentado destruir por completo a mobília de mogno do seu gabinete.
Inevitavelmente, os rumores difundidos acerca de Mónica chegaram aos ouvidos do The Washington Post. O correspondente do jornal para as questões de espionagem preferiu excluir as coisas mais picantes que tinha ouvido, mas, numa extensa notícia de primeira página, acabou mesmo por relatar que Mónica tinha perdido a confiança dos quadros inferiores da CIA, dos barões da comunidade dos serviços secretos e até do próprio presidente. Nessa tarde, durante uma iniciativa destinada à obtenção de publicidade positiva, com miúdos da escola no Jardim das Rosas, o presidente Beckwith afirmou que Mónica Tyler continuava a ter a sua "total e absoluta confiança".
Traduzido do vocabulário de Washington para uma linguagem simples, o comentário significava que a queda de Mónica Tyler estava a ser ponderada.
Foi assolada por pedidos de entrevistas. O Meet the Press[42] queria que ela participasse no programa. Ted Koppel telefonou-lhe pessoalmente para a convidar para o Nightline[43]. Um membro dos quadros do Larry King Tive[44] tentou mesmo convencer os guardas que se encontravam no portão da frente a deixá-lo passar. Mónica recusou-os a todos. Preferiu antes emitir um comunicado escrito no qual afirmava estar à completa disposição do presidente, e se o presidente quisesse que ela permanecesse ao seu serviço assim o faria.
Mas já não havia nada a fazer. O Inverno abateu-se sobre o sétimo andar. As portas mantiveram-se fechadas a sete chaves. A papelada deixou de circular. A paralisia começava a instalar-se. Mónica estava isolada, dizia a fábrica dos rumores. Mónica estava menos acessível do que nunca. Mónica estava acabada. Tweedledee e Tweedledum só muito raramente eram vistos; e, quando acabavam por aparecer, moviam-se pelos corredores como lobos cinzentos assustadiços. Alguma coisa tinha de ser feita, diziam os rumores. As coisas não podiam continuar daquela maneira.
Por fim, em Julho, Mónica convocou uma reunião dos quadros para o auditório e anunciou a sua demissão, com efeitos a partir do dia 1 de Setembro. Estava a fazer o anúncio atempadamente para que o presidente Beckwith — que ela admirava profundamente e tinha a honra de ter servido — tivesse tempo de sobra para escolher um sucessor apropriado. Entretanto, dar-se-iam mudanças nos quadros superiores. Adrian Cárter iria passar a ser o novo director executivo. Cynthia Martin iria substituir Cárter enquanto chefe do Centro de Contraterrorismo. E Michael Osbourne iria passar a ser o novo director-adjunto de operações.
No Outono, Mónica desapareceu por completo. A sua antiga firma queria tê-la de volta, mas ela disse que precisava de algum tempo para si própria antes de regressar à labuta da Wall Street. Começou a viajar; no sétimo andar de Langley, iam chegando regularmente a Cárter e a Michael informações sobre o seu paradeiro. Mónica estava sempre sozinha, de acordo com os relatórios. Nada de amigos, família, amantes, cães — nada de contactos suspeitos de qualquer espécie. Tinha sido vista em Buenos Aires. Tinha sido avistada em Paris. Tinha ido fazer um safari na África do Sul. Foi fazer mergulho submarino no mar Vermelho, para grande surpresa de todos na sede, já que não havia lá ninguém que tivesse descoberto o facto de ela ser uma mergulhadora de grandes predicados. No final de Novembro, um perito em vigilância do posto de Viena da CIA fotografou Mónica sentada sozinha num café frio na Stephansplatz.
Nessa mesma noite, Mónica Tyler estava a regressar ao hotel a pé a seguir ao jantar, atravessando uma passagem estreita para peões na sombra da Catedral de Santo Estêvão, quando um homem lhe surgiu à frente. Era de estatura média, constituição compacta e passo ágil. Havia qualquer coisa na forma como ele se mexia, o ritmo decidido do seu andar, que fez com que disparassem alarmes na cabeça dela.
Olhou de soslaio por cima do ombro e apercebeu-se de que estava sozinha. Parou de andar, deu meia-volta e começou a voltar para a praça. O homem, agora atrás dela, limitou-se a acelerar o passo. Mónica não correu — percebeu que isso seria inútil —, fechou apenas os olhos e continuou a andar.
O homem foi-se aproximando, mas não aconteceu nada. Ela parou e voltou-se para o enfrentar. Ao virar-se, o homem tirou uma pistola do casaco. Havia um silenciador comprido e esguio instalado na ponta do cano.
— Meu Deus, não — disse ela, mas o homem levantou o braço e disparou rapidamente três vezes.
Mónica Tyler caiu para trás, ficando a olhar fixamente para os pináculos da catedral. Ouviu o seu assassino a afastar-se e sentiu o seu próprio sangue a escorrer-lhe do corpo para as frias pedras arredondadas da calçada.
A seguir, os pináculos de Santo Estêvão transformaram-se em água e ela morreu.
Em Georgetown, Elizabeth Osbourne ouviu o telefone a tocar. Agora que Michael era o director-adjunto, os telefonemas às quatro da manhã não eram invulgares. Tinha uma reunião importante com um cliente de manhã — transferira-se para o escritório da firma em Washington quando Michael foi promovido — e precisava de dormir. Fechou os olhos e tentou não ouvir Michael a murmurar às escuras.
— Alguma coisa importante? — perguntou ela quando o ouviu a pousar o auscultador.
— A Mónica Tyler foi assassinada hoje à noite em Viena.
— Assassinada? O que é que aconteceu?
— Foi morta a tiro.
— Mas quem é que iria querer matar a Mónica Tyler?
— A Mónica tinha muitos inimigos.
— Vais entrar ao serviço?
— Não — respondeu ele. — Trato disso de manhã.
Ela fechou os olhos e tentou adormecer, mas era escusado. Havia qualquer coisa na voz de Michael que a tinha deixado perturbada. A Mónica tinha muitos inimigos.
Incluindo tu, Michael", pensou.
Antes de amanhecer, ele saiu da cama. Elizabeth levantou-se e foi até ao andar de baixo. Deu com ele na sala de estar, parado diante das portas envidraçadas, a olhar fixamente para o jardim meio iluminado.
— Michael — perguntou ela baixinho —, estás bem?
— Estou óptimo — respondeu ele, sem se virar.
— Queres falar de alguma coisa?
— Não, Elizabeth — respondeu. — Só preciso de pensar.
— Michael, se há...
— Já disse que não posso falar disso, Elizabeth. Por isso, não insistas.
Deu meia-volta e afastou-se das portas envidraçadas, passando por ela sem falar.
Elizabeth reparou que a cara dele estava branca como a cal.
A Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais reuniu para a sua conferência anual de Verão num château à beira do lago, no cimo das montanhas de South Island, na Nova Zelândia. O local tinha sido escolhido com grande antecedência, e o lago gelado e os nevoeiros cerrados do Inverno da Nova Zelândia revelaram-se uma alegoria adequada para o terrível estado da Sociedade após a morte de Picasso. O passado do Director no MI6 tinha-o preparado para a ocasional operação falhada, mas nada nos serviços secretos se poderia comparar ao cessar de actividades global que ocorreu nas horas que se seguiram ao desmascarar de Picasso. De um dia para o outro, todas as operações terminaram. Os planos para novos empreendimentos foram discretamente arrumados. As comunicações conheceram um fim abrupto. O dinheiro deixou de circular. O Director encerrou-se na sua mansão em St. John's Wood, apenas com a companhia de Daphne, e fez aquilo que qualquer bom agente operacional faz a seguir a uma autêntica asneira da grossa — avaliou os estragos. E quando achou que estava na altura, pôs-se a coser discretamente os fragmentos dispersos da sua confraria secreta.
Supostamente, a conferência em South Island deveria ser uma espécie de festa de debutante. Mas a reabilitação da Sociedade revelava-se, na melhor das hipóteses, titubeante. Dois dos membros do Conselho Executivo não se deram sequer ao trabalho de comparecer. Um tentou enviar um substituto, uma sugestão que o Director considerou risível. Pouco depois de dar início à reunião, o Director, num raro acesso de cólera motivado pelo orgulho ferido, apresentou uma moção com vista a expulsá-los a ambos. A moção foi aprovada por uma votação de viva voz, registada por Daphne no seu bloco de estenografia com grande prontidão.
— O segundo ponto na ordem de trabalhos é o falecimento de Picasso — anunciou o Director, aclarando depois ligeiramente a garganta. — Estou certo de que a morte dela terá sido um choque terrível para todos vocês, mas pelo menos ela já não se encontra em posição de prejudicar a Sociedade.
— Felicito-o por lidar com o problema de uma forma tão profissional — disse Rodin.
— Mas não estás a perceber — respondeu o Director. — A morte dela foi mesmo um choque, já que a Sociedade não teve absolutamente nada a ver com isso.
— Mas e em relação ao Outubro? Ele ainda está vivo, não está?
— Parto do princípio de que seja esse o caso, mas não tenho a certeza. Talvez a CIA o tenha escondido. Talvez o Michael Osbourne o tenha matado e encoberto isso.
A única coisa que posso afirmar com certeza é que todas as nossas tentativas para o localizar fracassaram.
— Talvez eu possa ajudar — interrompeu Monet, o chefe de operações da Mossad israelita. — Os nossos homens já se mostraram capazes de encontrar fugitivos no passado.
Encontrar um homem como o Outubro não deve revelar-se demasiado difícil.
Mas o Director abanou a cabeça lentamente.
— Não — afirmou ele. — Mesmo que o Outubro continue vivo, duvido que alguma vez venha a ser um problema para nós no futuro. Na minha opinião, é melhor deixar cair o assunto. — Baixou os olhos e remexeu nos papéis. — O que me leva ao terceiro ponto na nossa ordem de trabalhos, a situação na antiga Jugoslávia. A Frente de Libertação do Kosovo gostaria de contar com a nossa ajuda. Meus senhores, estamos de volta ao activo.
EPÍLOGO
LISBOA
BRÉLÉS, FRANÇA
Jean-Paul Delaroche tinha arrendado um pequeno apartamento num prédio cor de âmbar a ruir com vista para o porto de Lisboa. Estivera em Lisboa apenas uma vez, e só de passagem, e a mudança de ares trouxe nova vida ao seu trabalho. Com efeito, atravessava o seu período mais produtivo em muitos anos. Trabalhava aplicadamente de manhã até meio da tarde, produzindo óptimas obras a partir das igrejas, das praças e dos barcos ao longo da zona ribeirinha. O dono de uma eminente galeria lisboeta viu-o a pintar uma tarde e propôs-lhe entusiasticamente expor os seus quadros. Delaroche aceitou o cartão dele com os seus dedos esborratados de tinta e disse que iria pensar nisso.
A noite, ia caçar. Ia para a varanda e punha-se à procura de sinais de vigilância. Caminhava durante horas, tentando fazer com que eles se mostrassem. Ia andar de bicicleta para o campo e desafiava-os a seguirem-no. Colocou escutas no seu próprio apartamento para ver se alguém lá entrava quando estava fora. No último dia de Novembro, aceitou o facto de que ninguém andava a vigiá-lo.
Ao final dessa tarde, saiu do apartamento e dirigiu-se para um bom café para jantar.
Pela primeira vez em trinta anos, não levou a pistola consigo.
Em Dezembro, alugou um grande Fiat e conduziu até França. Tinha deixado Brélés, a velha aldeia piscatória na costa da Bretanha, há mais de um ano e não pusera lá os pés desde então. Chegou ao meio-dia, um dia depois de partir de Lisboa, tendo passado a noite em Biarritz.
Estacionou na aldeia e foi passear a pé. Ninguém o reconheceu. Na boulangerie, Mademoiselle Trevaunce serviu-lhe o pão sem praticamente um bonjour. Mademoiselle Plauché, da charcuterie, costumava meter-se descaradamente com ele; naquele dia, foi sem alegria que lhe cortou o presunto e a fatia de queijo de cabra, despachando-o logo de seguida.
Delaroche entrou no café onde os velhos passavam as tardes. Perguntou se algum deles tinha visto uma irlandesa pela aldeia: cabelos pretos, ancas jeitosas, bonita.
— Está uma irlandesa a viver no velho chalé, no pontão — respondeu Didier, o dono de cara vermelha do armazém da aldeia. — Onde o louco vivia dantes: le Solitaire.
Quando Delaroche fez de conta que não percebia o que ele queria dizer com aquele último comentário, Didier limitou-se a rir e explicou a Delaroche o caminho até ao chalé. A seguir, perguntou-lhe se não queria acompanhá-los num pouco de vinho e azeitonas. Delaroche abanou simplesmente a cabeça e respondeu:
— Non, merci.
Delaroche seguiu de carro pela estrada da costa e estacionou a cerca de duzentos metros do chalé, numa área de descanso com vista para a água. Viu fumo a sair da chaminé, cortado logo de seguida pelo vento. Limitou-se a ficar ali sentado, a petiscar o pão e o queijo, a fumar, a observar o chalé e as ondas a baterem nas rochas.
A dada altura, teve um vislumbre do cabelo preto dela, a passar diante de uma janela aberta.
Pensou na última coisa que Michael Osbourne lhe tinha dito na véspera de partirem de Shelter Island. Ela merece pior, dissera ele nessa noite. Ela merece morrer.
Osbourne era um homem demasiado decente — demasiado virtuoso — para condenar Mónica à morte, mas Delaroche julgava saber aquilo que lhe ia no coração naquele momento. Era um pequeno preço a pagar para retribuir a Osbourne o facto de este lhe ter concedido a liberdade.
Na verdade, aquilo até lhe deu um certo prazer; ela era uma das pessoas mais desagradáveis que ele já tinha conhecido. E havia mais uma coisa — ela tinha visto a cara dele.
Rebecca surgiu no terraço, de braços cruzados por baixo do peito, a contemplar o Sol a pôr-se. Delaroche pensou: "Será que ela me quer ver? Ou será que quer que eu fique longe para poder esquecer todo este assunto?" O mais fácil para ele seria dar meia-volta e esquecê-la. Voltar para Lisboa e para o seu trabalho. Aceitar a proposta do dono da galeria e expor os quadros.
Ligou o motor. Bastou esse som distante para que ela se virasse de repente e enfiasse a mão debaixo da camisola. Era por andar escondida, pensou Delaroche. Anda a saltar ao mínimo barulho, sempre à procura de uma pistola. Ele conhecia muito bem essa sensação.
Rebecca olhou fixamente para o carro durante bastante tempo e, passado um bocado, os seus lábios ergueram-se em qualquer coisa parecida com um sorriso. A seguir, voltou as costas, contemplando o mar novamente e ficando à espera que ele viesse ter com ela. Delaroche meteu a primeira e começou a avançar pela estrada, em direcção ao chalé.
NOTAS
[1]Siglas de Ulster Volunteer Force (Força de Voluntários do Ulster), Ulster Defence Association (Associação de Defesa do Ulster) e Ulster Freedom Fighters (Combatentes para a Liberdade do Ulster). (N. do T.)
[2]Força policial da República da Irlanda. (N. do T.)
[3]Sigla de Royal Ulster Constabulary (Polícia Real do Ulster). (N. do T.)
[4]Independem Television News, fornecedor internacional de notícias e conteúdos com sede no Reino Unido. (N. do T.)
[5]Termo pejorativo para os católicos irlandeses, utilizado sobretudo na Irlanda do Norte e na Escócia. (N. do T.)
[6]Termo pejorativo para os cidadãos protestantes. (N. do T.)
[7]Theobald Wolfe Tone (1763-1798), uma das figuras principais do movimento pela independência irlandesa United Irishmen, considerado o pai do republicanismo irlandês;
Eamon de Valera (1882-1975), uma das figuras políticas dominantes do século XX na Irlanda e um importante líder da luta pela independência irlandesa em relação ao Reino Unido;
Michael John ("Mick") Collins (1890-1922), líder revolucionário irlandês que foi ministro das Finanças da República Irlandesa, director dos serviços secretos do IRA e membro da delegação irlandesa que negociou o Tratado Anglo-Irlandês de 1921, tendo sido também presidente do Governo Provisório da Irlanda do Sul e comandante-chefe do Exército Nacional. (N. do T.)
[8]No original, National Organization for Women, organização feminista norte-americana (também conhecida pela sigla NOW) fundada em 1966. (N. do T.)
[9]Ou bocha: jogo que consiste em lançar bolas e situá-las o mais perto possível de uma bola mais pequena, o bolim, lançada anteriormente. (N. do T.)
[10]Acrónimo para Grand Old Party, outra designação para o Partido Republicano dos Estados Unidos. (N. do T.)
[11]Sigla de Special Air Service (Serviços Aéreos Especiais), força especial das forças armadas do Reino Unido. (N. do T.)
[12]Marcha associada em primeiro lugar ao presidente dos Estados Unidos da América. (N. do T.)
[13]No original, "A Mighty Fortress Is Our God", o mais conhecido dos hinos compostos por Martinho Lutero. (N. do T.)
[14]Bebida espirituosa grega tradicional, com sabor a anis e um aspecto leitoso quando se lhe adiciona água. (N. do T.)
[15]Abreviatura para non-official cover, termo utilizado em espionagem para os agentes ou operacionais que adoptam disfarces em organizações sem ligações ao governo para o qual trabalham. (N. do T.)
[16]Sigla de Office of Strategic Services (Agência de Serviços Estratégicos), os serviços secretos dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[17]No original, Doubk Cross. (N. do T.)
[18]Serviços secretos do alto-comando militar alemão, activos de 1925 a 1944. (N. do T.)
[19]No original, Loyalist Volunteer Force. (N. do T.)
[20]Em francês, no original. (N. do T.)
[21]Sigla para Ulster Unionist Party (Partido Unionista do Ulster). (N. do T.)
[22]Expressão que significa "autonomia política" ou "autogoverno autónomo". (N. do T.)
[23]Rua no bairro de Westminster, no centro de Londres. (N. do T.)
[24]Sigla para Counterterrorist Center (Centro de Contraterrorismo). (N. do T.)
[25]Pancada leve dada numa bola de golfe para a introduzir no buraco. (N. do T.)
[26]Sigla para Office of Technical Services (Divisão dos Serviços Técnicos). (N. do T.)
[27]Abreviatura de Chief Of Station. (N. do T.)
[28]Em português, "brochista". (N. do T.)
[29]Canção patriótica do musical da Broadway Uttle Johnny Jones, escrita por George M. Cohan. (N. do T.)
[30]No original, "active service unit" (ou ASU), células do IRA compostas por cinco a oito membros com a missão de levar a cabo ataques armados. (N. do T.)
[31]Termo pejorativo para um cidadão de origem irlandesa. (N. do T.)
[32]Personagem do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, caracterizada pelo seu sorriso pronunciado, que levou à expressão "sorrir como um gato de Cheshire", para descrever alguém que sorri maliciosamente. (N. do T.)
[33]Em alemão, Rote Armee Fraktion ou RAF, organização guerrilheira e terrorista alemã de extrema-esquerda, também conhecida como Baader-Meinhof, fundada em 1970, na antiga Alemanha Ocidental, e dissolvida em 1998. (N. do T.)
[34]Divisão administrativa utilizada em Paris. (N. do T.)
[35]Sigla para Special Operations Executive, uma organização secreta militar britânica em actividade durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[36]canção patriótica satírica da autoria de W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, parte integrante da ópera H.M.S. Pinalore, estreada em 1878. (N. do T.)
[37]Abreviatura para Diplomatic Security Service (Serviços de Segurança do Corpo Diplomático). (N. do T.)
[38]Acção levada a cabo com o objectivo de enganar o inimigo, de maneira a obter informações ou qualquer tipo de vantagem militar. (N. do T.)
[39]Os principais responsáveis pelo atentado à bomba em Oklahoma City, a 19 de Abril de 1995. (N. do T.)
[40]Divisão de espionagem internacional do KGB. (N. do T.)
[41]James Jesus Angleton (1917-1987), antigo chefe da Divisão de Contra-Espionagem da CIA. (N. do T.)
[42]Programa semanal televisivo de informação produzido pela estação norte-americana NBC, no ar desde 1947. (N. do T.)
[43]Programa televisivo de informação nocturna produzido pela estação norte-americana ABC, iniciado em 1979. (N. do T.)
[44]Talk-show diário apresentado por Larry King na estação televisiva norte-americana CNN, no ar desde 1985. (N. do T.)
Capítulo 32
PARIS
Rebecca Wells estava a viver em Montparnasse, num prédio de apartamentos desinteressante a poucos quarteirões do terminal ferroviário. Desde que fugira de Norfolk, tinha passado a maior parte do tempo no apartamento horroroso, a olhar para programas de televisão franceses que não conseguia compreender. Às vezes, ouvia notícias do seu país na rádio. A brigada tinha sido esmagada e a culpa era dela.
Precisava de sair. Levantou-se do sofá e foi até à janela. Cinzento, como de costume: frio, desolador. Até o Ulster era melhor do que Paris em Março. Foi à casa de banho e olhou para o espelho. Uma desconhecida retribuiu-lhe o olhar. O seu esplêndido cabelo preto tinha sido destruído pelo peróxido que utilizara em Norwich para o oxigenar. Tinha a pele amarela da falta de ar e dos cigarros em demasia. A pele debaixo dos olhos parecia ter nódoas negras.
Vestiu um casaco de cabedal e parou à entrada do quarto, ouvindo o som metálico de halteres. Bateu à porta e o barulho parou. Ro-derick Campbell abriu a porta e ficou ali à sua frente, sem camisa e com o corpo esguio a brilhar do suor. Campbell era um escocês que tinha servido no exército britânico e que, a seguir, oferecera os seus serviços como mercenário e traficante de armas em África e na América do Sul. Tinha cabelo preto cortado à escovinha, uma pêra e tatuagens no peito e nos braços. Estava uma prostituta nua deitada na cama, a brincar com uma das armas dele.
— Vou sair — disse ela. — Preciso de apanhar ar.
— Tem cuidado — respondeu ele, no sotaque suave das suas Terras Altas de origem. — Queres companhia?
— Não, obrigada. Estendeu-lhe uma arma.
— Leva isto.
O elevador estava outra vez avariado, pelo que desceu para a rua pelas escadas. Meu Deus, como estava feliz por sair daquele sítio! Estava zangada com Kyle Blake por este a ter enviado para junto de um homem como Campbell. Mas as coisas podiam ser piores, pensou. Podia estar na prisão ou morta como os outros. O frio sabia-lhe bem e andou durante muito tempo. De vez em quando, parava à frente da montra de uma loja e olhava de soslaio para trás. Tinha a certeza de que não estava a ser seguida.
Pela primeira vez em muitos dias, sentiu realmente fome. Entrou num pequeno café e, servindo-se do seu francês catastrófico, pediu uma omeleta com queijo e um café creme. Acendeu um cigarro e olhou pela janela. Interrogou-se se iria ser sempre assim — viver em cidades estranhas, rodeada de pessoas que não conhecia.
Queria terminar o que tinham começado; queria o embaixador Douglas Cannon morto. Sabia que a Brigada para a Libertação do Uls-ter já não se encontrava em condições para dar conta do trabalho; na realidade, já não havia uma Brigada para a Libertação do Ulster. Para que o embaixador fosse morto, teria de haver alguém que não eles a fazê-lo. Tinha recorrido a Roderick Campbell para que a ajudasse. Ele conhecia o tipo de homens de que ela precisava: homens que ganhavam a vida a matar, homens que matavam apenas por uma razão: dinheiro.
Quando o empregado trouxe a comida, Rebecca devorou-a rapidamente. Não conseguia lembrar-se da última vez em que tinha comido verdadeira comida. Acabou a omeleta e engoliu um pedaço de baguete com a ajuda do café. O empregado voltou a aparecer e pareceu assombrado por o prato dela estar vazio.
— Tinha muita fome — disse ela, constrangida.
Pagou a conta e foi-se embora. Apertando o casaco contra a garganta com força, percorreu as ruas sossegadas de Montparnasse. Passado um momento, ouviu um carro atrás de si. Parou num telefone público e fingiu que estava a ligar para um número enquanto olhava para o carro: um grande Citroen preto, com dois homens à frente e um atrás. Talvez a polícia francesa. Talvez os serviços secretos franceses, pensou. Talvez amigos de Roderick. Talvez nada.
Começou a andar mais depressa. De repente, estava a transpirar apesar do frio. O condutor do Citroen carregou no acelerador e o barulho do motor tornou-se mais forte.
"Meu Deus", pensou ela, "vão atropelar-me!" Virou a cabeça no instante em que o carro passou por ela a toda a velocidade para depois travar a fundo e parar poucos metros à sua frente.
A porta traseira do lado do passageiro abriu-se. O homem que se encontrava no banco de trás inclinou-se para fora e disse:
— Boa tarde, menina Wells.
Ficou estupefacta. Parou de andar e olhou para ele. Tinha cabelo louro oleoso, todo puxado para trás a partir da testa, e pele clara e queimada do sol.
— Entre no carro, por favor. Receio que não seja seguro estarmos a falar na rua.
Tinha o sotaque de um inglês de boas famílias.
— Quem é o senhor? — perguntou ela.
— Nós não pertencemos às autoridades, se é isso que está a pensar — respondeu ele. — Na verdade, somos bem o contrário.
— E o que é que querem?
— Na verdade, isto tem a ver com o que a senhora quer. Ela hesitou.
— Por favor, não temos muito tempo — disse o homem louro, estendendo uma mão clara. — E não se preocupe, menina Wells. Se a quiséssemos matar, já estaria morta.
De Montparnasse, atravessaram a cidade de Paris até a um prédio de apartamentos no quinto arrondissement, na Rue Tournefort, com vista para a Place de la Contrescarpe.
O homem louro desapareceu no Citroen. Um homem a ficar careca, com uma cara rosada, ficou-lhe com a arma de Roderick e conduziu-a para um apartamento que tinha o ar de um pied-à-terre raramente utilizado. A mobília era masculina e confortável: sofás pretos informais e cadeiras agrupadas à volta de uma mesa de café de vidro; estantes para livros em madeira de teca amarelada, com relatos históricos, biografias e thrillers de autores americanos e ingleses. O que sobrava das paredes estava desocupado, com contornos esbatidos nos sítios onde antes tinham estado pendurados quadros emoldurados. O homem fechou a porta e introduziu um código de seis dígitos num teclado, presumivelmente activando o sistema de segurança. Sem dizer uma palavra, estendeu a mão e levou-a para dentro do quarto.
O quarto estava escuro, com a excepção de um pedaço junto à janela, que se encontrava iluminado por uma luz chuvosa que entrava pela persiana parcialmente aberta.
Um instante depois de a porta se fechar, um homem falou algures na escuridão. A voz era seca e precisa, a voz de um homem que não gostava de se repetir.
— Chegou-nos aos ouvidos que anda à procura de alguém que seja capaz de assassinar o embaixador americano em Londres — disse o homem. — Acho que a podemos ajudar.
— E quem é que são vocês?
— Não tem nada a ver com isso. Posso assegurar-lhe que somos perfeitamente capazes de desempenhar uma tarefa como a que tem em mente. E com muito menos trapalhada do que aquele episódio em Hartley Hall.
Rebecca tremeu de raiva, que o homem nas sombras pareceu detectar.
— Lamento informá-la, mas foram enganados em Norfolk, menina Wells — disse ele. — Caíram direitinhos numa armadilha engendrada pela CIA e o MI5. O homem que conduziu a operação foi o genro do embaixador, que por acaso trabalha para a CIA. O nome dele é Michael Osbourne. Quer que eu continue?
Ela anuiu com a cabeça.
— Se aceitar a nossa oferta de ajuda, prescindiremos dos nossos honorários habituais. E deixe-me assegurar-lhe que são normalmente bastante exorbitantes para um trabalho deste género... suspeito que bem acima das possibilidades de uma organização como a Brigada para a Libertação do Ulster.
— Estão dispostos a fazê-lo de graça? — perguntou Rebecca, incrédula.
— Exactamente.
— E o que é que querem de mim?
— Na altura indicada, irá reivindicar a responsabilidade pelo acto.
— Mais nada?
— Mais nada.
— E quando tiver terminado tudo?
— Não terá mais nenhuma obrigação, excepto a de nunca falar, sob quaisquer circunstâncias, sobre a nossa parceria consigo. E, se de facto falar das nossas combinações, reservamo-nos o direito de aplicar medidas punitivas.
Parou por um momento para permitir que o seu aviso fizesse efeito.
— É capaz de vir a encontrar dificuldades para se deslocar de um lado para o outro quando tudo isto tiver terminado — continuou. — Se quiser, podemos disponibilizar-lhe serviços que a ajudarão a manter-se a monte. Podemos providenciar-lhe documentos de viagem falsos. Podemos ajudá-la a alterar a sua aparência. Temos contactos com determinados governos que estão dispostos a proteger fugitivos a troco de dinheiro ou favores. Mais uma vez, estaríamos dispostos a disponibilizar-lhe estes serviços sem qualquer custo.
— Porquê? — perguntou ela. — Porque é que estão dispostos a fazer isso a troco de nada?
— Nós não somos uma organização filantrópica, menina Wells. Estamos dispostos a trabalhar consigo porque temos interesses comuns.
Um isqueiro acendeu-se, deixando ver uma parte da cara dele por um instante, antes de o quarto mergulhar novamente na escuridão: cabelo cor de prata, pele clara, uma boca dura, olhos frios.
— Receio que já não seja seguro para si permanecer em Paris —disse. — As autoridades francesas têm conhecimento da sua existência aqui.
Ela sentiu-se como se lhe tivessem despejado água gelada em cima da nuca. A ideia de ser presa, de ter de voltar para a Grã-Bretanha acorrentada, fê-la ficar fisicamente doente.
— Precisa de sair de França imediatamente — disse ele. — Proponho-lhe o Barém. O chefe das forças de segurança é um velho amigo meu. Estará segura e há piores sítios para se estar do que o golfo Pérsico em Março. O tempo é esplêndido nesta altura do ano.
— Não estou interessada em passar o resto dos dias deitada junto a uma piscina no Barém.
— O que é que está a querer dizer, menina Wells?
— Que quero participar na operação — respondeu ela. — Aceito a vossa oferta, mas quero estar lá para ver o homem a morrer.
— Tem treino?
— Sim — respondeu.
— E já matou alguém? Lembrou-se da noite dois meses antes — o celeiro no condado de Armagh —, quando tinha matado Charlie Bates com um tiro.
— Sim — respondeu calmamente —, já matei.
— O homem que tenho em mente para a missão prefere trabalhar sozinho — disse ele —, mas suspeito que verá que é uma opção sensata aceitar um parceiro para este contrato.
— Quando é que parto?
— Hoje à noite.
— Gostava de voltar ao apartamento para ir buscar umas quantas coisas.
— Lamento, mas isso não é possível.
— Então e o Roderick? O que vai ele pensar se eu desaparecer sem nenhuma explicação?
— Deixe que nos preocupemos nós com o Roderick Campbell.
O homem louro regressou no Citroen a Montparnasse e estacionou à porta do prédio de apartamentos de Roderick Campbell. Saiu do carro e atravessou a rua. Tinha roubado as chaves da mulher. Abriu a porta principal do rés-do-chão e subiu as escadas até ao apartamento. Tirando a Herstal automática de alta potência do cós das calças de ganga, abriu a porta e entrou sorrateiramente.
Capítulo 33
AMESTERDÃO
A previsão meteorológica para a costa holandesa era agradável para Março, pelo que Delaroche subiu para a sua bicicleta italiana de estrada ao início dessa manhã e pedalou para sul. Usava longos calções pretos de ciclismo e uma camisola de gola alta branca e de algodão por baixo da camisola de malha de um amarelo-vivo, suficientemente justa para evitar que enfolasse com o vento, mas suficientemente folgada para esconder a Beretta automática que tinha debaixo da axila esquerda. Seguiu para sul, em direcção a Leiden, atravessando Bloembollenstreek, a maior região produtora de flores da Holanda, com as suas pernas poderosas a pedalarem sem esforço pelos campos a brilharem já coloridos.
Durante algum tempo, os olhos dele foram absorvendo o campo holandês — os diques e os canais, os moinhos de vento e os campos de flores —, mas, passado um bocado, o rosto de Maurice Leroux apareceu-lhe nos pensamentos. Tinha-lhe surgido num sonho durante a noite anterior, parado à frente dele, branco como um monte de neve, com dois buracos no peito e trazendo ainda na cabeça a ridícula boina.
Eu sou de confiança. Já me ocupei de muitos homens como você.
Delaroche entrou em Leiden e almoçou num café ao ar livre na margem do Reno. Naquele ponto, apenas a poucos quilómetros da sua desembocadura no mar do Norte, o rio era estreito e corria lentamente, bem diferente da montanha de água espumosa perto da nascente, no alto dos Alpes, ou do largo gigante industrial da planície alemã. Delaroche pediu um café e uma sanduíche de queijo e fiambre.
A incapacidade de purgar o subconsciente da imagem de Leroux enervou-o. Normalmente, passava apenas por um curto período de desconforto depois de matar alguém. Mas já tinha passado uma semana desde que matara Leroux e continuava a ver a cara dele a flutuar-lhe na mente.
Lembrou-se do homem chamado Vladimir. Delaroche tinha sido separado da mãe à nascença e dado ao KGB para ser aí educado. Vladimir fora todo o seu mundo. Tinha-o treinado em línguas e nas artes do ofício. Tinha tentado ensinar-lhe alguma coisa sobre a vida antes de lhe ensinar como matar. Vladimir avisara-o que iria acabar por acontecer. Um dia, vais tirar uma vida e esse homem irá seguir-te, dissera-lhe Vladimir. Vai tomar as refeições contigo, partilhar a tua cama. Quando isso acontecer, está na altura de abandonares este ofício, porque um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional.
Delaroche pagou a conta e saiu do café. O tempo ia piorando à medida que avançava em direcção ao mar do Norte. O céu foi ficando mais carregado e o ar tornou-se mais frio. Lutou contra um forte vento de frente durante todo o caminho até Haarlem.
Talvez Vladimir tivesse razão. Talvez estivesse na altura de abandonar o jogo antes que o jogo desse conta dele. Podia voltar para o Mediterrâneo e passar os dias a andar nas suas bicicletas e a pintar os seus quadros e a beber o seu vinho no terraço com vista para o mar, e que se lixasse o Vladimir e que se lixasse o pai, e que se lixasse o Director e todas as outras pessoas que lhe tinham imposto aquela vida. Talvez pudesse encontrar uma mulher — uma mulher como Astrid Vogel, uma mulher que tivesse suficientes segredos próprios para que ele lhe pudesse confiar os seus.
Já tinha querido abandonar tudo antes, mas, com Astrid morta, isso já não fazia sentido e o Director tinha-lhe feito uma generosa proposta que era demasiado boa para recusar. Pagava-lhe uma quantidade tremenda de dinheiro e providenciava-lhe protecção contra os seus inimigos. Se deixasse a Sociedade, Delaroche estaria por sua própria conta. Teria de tratar da sua própria segurança ou encontrar um novo Protector.
Entrou em Haarlem e atravessou o rio Spaarne. Amesterdão ficava a vinte e cinco quilómetros de distância, uma bela viagem pelas margens do Noordzeekanaal. Delaroche tinha o vento nas costas e a estrada era suave e plana, pelo que demorou pouco mais de meia hora a chegar à cidade.
Levou o seu tempo até atingir o Herengracht. Entrou no apartamento e verificou os sinais que deixara para se certificar de que ninguém lá tinha estado durante a sua ausência. Havia outro bilhete escrevinhado à pressa pela rapariga alemã. Quero ver-te outra vez meu cabrão! Eva.
Ligou o computador e conectou-se à Internet. Tinha uma mensagem de e-mail nova. Abriu-a e digitou o seu nome de código. A mensagem era do Director; queria encontrar-se com ele no dia seguinte em Amesterdão, no Vondelpark.
Delaroche enviou uma resposta a dizer que lá estaria.
Na manhã seguinte, deambulou pelas barracas do Albert Cuyp-markt no anel de canais oriental. Meticulosamente, foi controlando se estava a ser seguido à medida que passava com descontracção por cestos pejados de fruta, peixe do mar do Norte, queijos holandeses e flores acabadas de cortar. Convencido de que não estava a ser seguido, foi do mercado até ao Vondelpark, o extenso parque próximo do quarteirão dos museus de Amesterdão. Avistou o Director, sentado num banco do parque que dava para um lago de patos, com a alta rapariga jamaicana ao seu lado.
O Director ainda não tinha visto Delaroche desde a cirurgia plástica em Atenas. Delaroche não gostava de jogos ou de outros divertimentos — o isolamento e o secretismo da sua vida tinham-lhe roubado qualquer oportunidade para desenvolver um verdadeiro sentido de humor —, mas resolveu pregar uma partida para testar a eficácia do trabalho que Maurice Leroux tinha feito na sua cara.
Pôs um cigarro na boca e colocou os óculos de sol. Aproximou-se do Director e, falando holandês, pediu-lhe lume. O Director passou-lhe um pesado isqueiro de prata.
Delaroche acendeu o cigarro e devolveu o isqueiro. "Dank u", disse. O Director acenou com a cabeça friamente ao voltar a enfiar o isqueiro no bolso do casaco.
Delaroche afastou-se pelo caminho. Regressou alguns momentos depois e sentou-se ao lado do Director, a comer uma pêra que tinha comprado no Albert Cuypmarkt, sem dizer nada. O Director e a rapariga afastaram-se e sentaram-se noutro banco. Delaroche observou-os com curiosidade durante um momento; a seguir, levantou-se também e juntou-se a eles no banco do lado.
O Director fez uma carranca.
— Desculpe, importava-se de...
— Penso que queria falar comigo — interrompeu Delaroche, tirando os óculos de sol.
— Deus do Céu — murmurou o Director. — És mesmo tu?
— Receio bem que sim.
— Estás bastante horrendo. Não admira que tenhas matado aquele pobre desgraçado.
— Tenho um contrato para ti.
Os olhos do Director mexiam-se de um lado para o outro rapidamente enquanto os dois homens seguiam um atrás do outro pelo caminho que atravessava o Vondelpark. Tinha começado como agente operacional — saltara de pára-quedas sobre França com o SOE[35] durante a Segunda Guerra Mundial e orientara agentes em Berlim contra os russos — e os seus instintos de sobrevivência continuavam aguçados.
— Tens andado a acompanhar a situação na Irlanda do Norte? — perguntou o Director.
— Leio os jornais.
— Então, sabes que um grupo terrorista protestante intitulado Brigada para a Libertação do Ulster tentou e não conseguiu assassinar o embaixador americano enviado para o Palácio de St. James, Douglas Cannon.
Delaroche assentiu com a cabeça.
— Li qualquer coisa acerca disso, sim.
— Mas o que tu não sabes é que a equipa de assassinos caiu direitinha numa armadilha engendrada pelo MI5 e a CIA. E o agente da CIA responsável pela parte americana da coisa era um velho amigo teu.
Delaroche olhou furiosamente para o Director.
— O Osbourne?
O Director assentiu com a cabeça.
— Escusado será dizer que a Brigada para a Libertação do Ulster gostaria de ver tanto o embaixador como o genro mortos, e nós concordámos em fazer-lhes esse trabalho.
— Com que objectivo?
— A brigada gostaria de destruir o processo de paz e, sinceramente, nós também. É mau para o negócio. Daqui a menos de duas semanas, no Dia de São Patrício, o presidente Beckwith vai presidir a um encontro entre dirigentes norte-irlandeses na Casa Branca. O Douglas Cannon vai lá estar.
— Tem a certeza disso?
— Tenho uma fonte seguríssima. Os americanos são bons a protegerem os embaixadores deles no estrangeiro, mas em casa a história é bem diferente. O Cannon não vai ter grande guarda, se a tiver sequer. Um profissional com o teu talento não deverá ter dificuldades em cumprir os termos do contrato.
— E tenho alguma escolha?
— Deixa-me recordar-te que te pago uma quantidade tremenda de dinheiro e te providencio protecção — respondeu o Director com frieza. — Em troca, tu matas para mim.
É um acordo simples.
Sempre se tinha comportado como um velho e confuso fidalgo na presença de Delaroche, mas era evidente que se tratava de um homem que utilizaria quaisquer meios ao seu dispor para atingir os seus fins.
— Na verdade, até tinha pensado que ficarias encantado com a oportunidade de enfrentar o teu velho inimigo — prosseguiu ele.
— E porque é que partiu desse princípio?
— Por causa da Astrid Vogel. Fico espantado que não tenhas já matado o Osbourne por tua conta.
— Não o matei porque não fui contratado para o matar — respondeu Delaroche. — Sou um assassino profissional, não um homicida.
— Algumas pessoas seriam capazes de ver nisso uma distinção inquestionável, mas compreendo o teu ponto de vista e respeito-te por isso. No entanto, o Osbourne continua a ser uma ameaça séria à nossa segurança. Eu dormiria melhor se ele já não estivesse entre nós.
Delaroche deteve-se e virou-se para ficar cara a cara com o Director.
— Duas semanas não são muito tempo... especialmente para um trabalho nos Estados Unidos.
— É com certeza tempo suficiente para ti. Delaroche assentiu.
— Vou fazê-lo.
— Óptimo — disse o Director. — E agora que concordaste em aceitar o contrato, há um senão. Gostava que trabalhasses com um parceiro.
— Eu não trabalho com pessoas que não conheço.
— Compreendo, mas estou a pedir-te que abras uma excepção neste caso.
— E quem é ele?
— Ela, na verdade. Chama-se Rebecca Wells. É a mulher que sobreviveu à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de assassinar o Douglas Cannon em Inglaterra.
— É uma amadora — afirmou Delaroche.
— É uma agente experimentada e já teve o seu baptismo de sangue. Por razões políticas, achamos ser importante que ela faça parte da operação. Tenho a certeza de que vais apreciar a oportunidade de trabalhar com ela.
— E se eu recusar?
— Então, lamento dizê-lo, mas perdes o direito ao teu salário e à protecção que eu te disponibilizo.
— Onde é que ela está?
O Director apontou com o dedo mais para a frente no caminho de gravilha.
— Segue naquela direcção mais ou menos uns cem metros. Hás-de encontrá-la sentada num banco: cabelos louros, a ler o Die Welt. Vou começar a preparar os dossiês e a tratar do teu transporte para a América. Fica aqui em Amesterdão até eu te contactar.
Dito isto, o Director deu meia-volta e desapareceu no nevoeiro que se espalhava pelo Vondelpark.
Delaroche comprou um pequeno mapa do centro de Amesterdão num posto de turismo no parque. Sentou-se no banco ao lado daquele em que Rebecca Wells se encontrava, fingindo obedientemente que lia a edição da véspera do Die Welt. Estava menos interessado na mulher do que no que se estava a passar à volta dela. Durante vinte minutos, sondou caras, à procura de sinais físicos de vigilância. Parecia estar sozinha, mas ele queria ter a certeza. Marcou um ponto no mapa com um círculo e foi ter com ela.
— Vai ter comigo a este sítio daqui a duas horas em ponto — disse, passando-lhe o mapa dobrado. — Não pares de andar e não chegues um minuto antes.
O ponto que Delaroche tinha assinalado no mapa era o Monumento Nacional na Dam Platz. Rebecca Wells deixou-se ficar no Vondelpark por mais meia hora, vagueando pelos jardins e passando pelos lagos sinuosos. A determinada altura, deu meia-volta e voltou para trás agilmente, obrigando Delaroche a enfiar-se numa casa de banho pública para se esconder.
Do parque foi até ao Museu Van Gogh. Comprou um livre-trânsito na bilheteira, na porta principal, e entrou. Delaroche seguiu-a com facilidade pelo museu apinhado.
Van Gogh fora uma das suas primeiras influências; distraiu-se com uma das suas obras preferidas, Campo de Trigo com Corvos, e perdeu-a de vista. Reencontrou-a passado um momento, a olhar demoradamente para o Quarto em Aries. Havia qualquer coisa no quadro colorido, uma celebração da paz doméstica por Van Gogh, que parecia intrigá-la.
Saiu do museu, deambulou pelo Albert Cuypmarkt e passeou pelo Singel até chegar ao rio Amstel. Foi aí que saltou de repente para dentro de um eléctrico que ia a passar. Delaroche fez sinal a um táxi para parar e seguiu-a.
Ela foi de eléctrico até à Leidseplein e continuou a pé até um café ao ar livre, próximo do American Hotel, onde bebeu café e comeu um bolo. Delaroche observou-a de um café do outro lado do canal. Ela pagou a conta e levantou-se, mas em vez de seguir o seu caminho pelo passeio refugiou-se dentro do café.
Delaroche atravessou o canal rapidamente. Em holandês, perguntou ao empregado se tinha visto a sua namorada — uma irlandesa, loura oxigenada. O empregado apontou para a casa de banho com a cabeça. Delaroche bateu à porta. Como ninguém respondeu, abriu-a; a mulher tinha desaparecido. Espreitou pela cozinha e viu que havia uma entrada de serviço que dava para uma viela estreita. Atravessou a cozinha, ignorando os protestos dos chefes que lá estavam a trabalhar, e entrou na viela. Não havia sinais dela.
Apanhou o eléctrico para a Dam Platz e encontrou-a sentada junto a um dos leões à frente do Monumento Nacional. Olhou para o relógio e sorriu.
— Onde é que estiveste? — perguntou. — Estava preocupada contigo.
— Não estás a ser seguida — respondeu Delaroche, sentando-se ao lado dela —, mas mexes-te como uma amadora.
— Despistei-te... não foi?
— Sou um homem a pé. Qualquer pessoa consegue despistar um homem a pé.
— Ouve-me bem, meu sacana. Eu sou de Portadown, na Irlanda do Norte. Não me fodas. Tenho frio, estou cansada e já estou farta desta merda. O velho disse que ias dar-me um sítio onde ficar. Vamos embora.
Caminharam em silêncio pelo Prinsengracht até chegarem ao Krista. Delaroche saltou para o convés da popa e estendeu a mão para que Rebecca fizesse o mesmo. Ela deixou-se ficar onde estava, olhando-o fixamente como se ele fosse louco.
— Se pensas que vou viver na merda de uma barcaça...
— Não é uma barcaça — interrompeu ele. — Agarra a minha mão. Eu mostro-te.
Subiu a bordo da casa flutuante sem a ajuda dele e observou-o a abrir o cadeado da escotilha por cima da escada. Seguiu-o até lá abaixo, ao salão, e olhou em redor, para a mobília confortável.
— Este barco é teu? — perguntou.
— É de um amigo meu.
Ela tentou acender um dos candeeiros, mas quando carregou no interruptor não aconteceu nada. Delaroche voltou a subir para o convés, desligou o cabo de alimentação do barco e ligou-a outra vez a uma tomada pública na calçada. Passado um instante, o salão do Krista irradiou com uma luz quente.
— Tens dinheiro? — perguntou Delaroche, ao descer novamente a escada.
— O velho deu-me algum — respondeu ela. — Quem é ele, já agora?
— Chama-se o Director.
— Director do quê?
— O director da organização que está a ajudar-te a matar o embaixador.
— E como é que ela se chama? Delaroche ficou calado.
— Não sabes como é que se chama?
— Sei — respondeu.
— Sabes quem é que faz parte dela?
— Estou resolvido a descobrir.
Ela atravessou o salão e sentou-se na borda da cama de Astrid. Delaroche acendeu o pequeno aquecedor.
— E tu tens nome? — perguntou ela.
— Às vezes — respondeu ele.
— Como é que te devo chamar?
— Podes ficar aqui até partirmos para a América — disse Delaroche, ignorando a pergunta. — Vais precisar de roupa lavada e de comida. Vou trazer-te umas coisas mais para a tarde. Fumas?
Ela acenou com a cabeça.
Delaroche atirou-lhe um maço de tabaco.
— Trago-te mais.
— Obrigada.
— Sabes mais alguma língua?
— Não — respondeu ela.
Delaroche soltou um longo suspiro e abanou a cabeça.
— Não precisava de outras línguas para actuar na Irlanda do Norte.
— Isto não é a Irlanda do Norte — respondeu ele. — E consegues fazer alguma coisa em relação a esse sotaque?
— O que é que o meu sotaque tem de mal?
— Mais valia pendurares uma faixa da Ordem de Orange ao peito.
— Consigo falar como uma inglesa.
— Faz isso, por favor — disse ele, subindo depois a escada pesadamente e fechando a escotilha ao sair.
Capítulo 34
SEDE DA CIA, WASHINGTON
Uma semana após o encontro de Delaroche com o Director em Amesterdão, Michael Osbourne regressou ao Centro de Contraterrorismo pela primeira vez desde que saíra de Londres. Introduziu o seu código na porta de segurança e entrou. Cárter estava sentado à secretária, debruçado sobre uma pilha de memorandos, claramente irritado.
Levantou os olhos e fixou-os em Michael, franzindo o sobrolho.
— Ora vejam bem, Sir Michael resolveu honrar-nos com a sua presença — disse Cárter.
— É um título de cavaleiro honorário. Vossa Majestade chega perfeitamente.
Cárter sorriu.
— Bem-vindo a casa. Sentimos a tua falta. Está tudo bem?
— Não podia estar melhor.
— Tens dez minutos para te pores ao corrente da situação. Depois preciso de te ver a ti e à Cynthia no meu gabinete.
— Óptimo. Vemo-nos daqui a meia hora.
Michael percorreu a Avenida Abu Nidal até ao seu cubículo. Um dos espirituosos do centro tinha pendurado uma grande bandeira do Reino Unido sobre a parede do cubículo e ouvia-se o God Save the Queen a sair baixinho de um pequeno leitor de cassetes.
— Muito engraçado — disse Michael em voz alta, para ninguém em especial.
Blaze e Eurotrash apareceram, seguidos por Cynthia Martin e Gigabyte.
.- Nós só queríamos arranjar um bocadinho o sítio para ti, Sir Michael — disse Blaze. — Sabes, fazer com que se parecesse um bocadinho menos com Langley e um bocadinho mais com a tua pátria.
— Foi muito atencioso da vossa parte.
Blaze, Eurotrash e Gigabyte afastaram-se, cantando uma versão gutural de "He Is an Englishman"[36]. Cynthia deixou-se ficar e sentou-se na cadeira em frente à secretária de Michael.
— Parabéns, Michael. Conseguiste sacar uma bela jogada.
— Obrigado. Fico grato por isso.
— Secretamente, acho que estava com esperanças de que te estampasses por completo. Nada pessoal, compreendes.
— Pelo menos, isso é sincero.
— A honestidade sempre foi uma fonte de angústia para mim. Michael sorriu.
— O meu sogro vem a Washington uns dias antes do início da conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca. Quer passar algum tempo com os netos e ver alguns dos velhos amigos do Congresso. Vamos dar um pequeno jantar na véspera da conferência. Porque é que não te juntas a nós? Eu sei que o Douglas iria dar grande valor à tua opinião.
— Adoraria ir.
Michael escrevinhou a morada numa folha de papel e entregou-lha.
— As sete em ponto — disse.
— Lá estarei — respondeu Cynthia, dobrando o papel. — Vemo-nos no gabinete do Cárter.
Michael sentou-se, ligou o computador e leu os telegramas da noite anterior. Uma patrulha da RUC tinha descoberto um carro carregado com noventa quilos de Semtex no condado de Antrim, à saída de Belfast. Pensava-se que um grupo separatista republicano intitulado Verdadeiro IRA era o responsável. Michael fechou o telegrama e abriu outro. Um católico tinha sido morto a tiro perto de Banbridge, no condado de Down. A RUC suspeitava que a Força de Voluntários Lealistas, um grupo extremista protestante ultraviolento, era a responsável. Michael abriu o telegrama seguinte. A loja de Portadown da Ordem de Orange tinha entregado o percurso que propunha para a sua parada anual. Uma vez mais, reivindicava o direito de se manifestar na Garvaghy Road. A temporada das marchas daquele Verão prometia ser tão pródiga em confrontos como a anterior.
Desligou o computador e entrou no gabinete de Cárter. Cynthia já lá estava.
— Espero que vocês os dois não estejam a pensar ter vida própria durante as próximas quarenta e oito horas — atirou Cárter.
— A nossa vida é a CIA, Adrian — respondeu Michael.
— Acabei de falar ao telefone com o Bill Bristol.
— E nós devemos ficar impressionados por teres falado com o conselheiro do presidente para a segurança nacional?
— És capaz de te calar por um minuto, porra, e de me deixares terminar?
Cynthia Martin sorriu e olhou para o seu bloco de notas. Cárter disse:
— O Beckwith anda todo stressado com a conferência sobre a Irlanda do Norte. Parece que os números dele nas sondagens andam a baixar e quer utilizar o processo de paz para fazer aumentar os seus índices de aprovação.
— Mas que bem — soltou Michael. — E como é que nós podemos ser úteis?
— Garantindo que ele está totalmente preparado para a conferência. Ele precisa de ter um quadro completo da situação no terreno no Ulster. Precisa de documentação e de informação para saber até onde é que pode pressionar os lealistas e os nacionalistas para fazer com que as coisas avancem. Precisa de saber se nós achamos que uma viagem presidencial à Irlanda do Norte é ou não uma boa ideia, dado o clima que se vive.
— Quando?
— Tu e a Cynthia vão fazer um relatório ao Bristol na Casa Branca depois de amanhã.
— Oh, que bom, pensei que ia ser uma coisa descabida.
— Se acharem que não conseguem dar conta do recado...
— Nós conseguimos dar conta do recado.
— Bem me parecia.
Michael e Cynthia levantaram-se. Cárter disse:
— Espera um minuto, Michael.
— Querem falar de mim nas minhas costas? — perguntou Cynthia.
— Como é que adivinhaste? — respondeu Adrian.
Cynthia lançou um olhar carrancudo a Cárter e saiu do gabinete. Cárter disse:
— Não faças planos para o almoço.
A sala de jantar da CIA fica no sétimo andar, por trás de uma pesada porta de metal com aspecto de poder ir dar à casa das máquinas. Dantes chamavam-lhe sala de jantar executiva, até que o Departamento de Recursos Humanos descobriu que os quadros subalternos achavam o nome ofensivo. A CIA desembaraçou-se da palavra "executiva" e abriu o restaurante a todos os empregados. Tecnicamente, os trabalhadores da doca de carga e descarga podiam ir até ao sétimo andar para almoçar com os directores-adjuntos e os chefes de divisão. Ainda assim, a maior parte dos quadros preferia a enorme cafetaria na cave, afectuosamente conhecida como "o fosso da mistela", onde podiam trocar mexericos à vontade sem medo de serem ouvidos pelos superiores.
Mónica Tyler estava sentada a uma mesa junto à janela, com vista para as árvores grossas dispostas ao longo do rio Potomac. Os seus dois sempre presentes factótuns, conhecidos de forma jocosa como Tweedledum e Tweedledee, estavam sentados ao lado dela, cada um agarrando com força uma pasta de couro como se estas contivessem os segredos perdidos do mundo antigo. As mesas à volta estavam vazias; Mónica Tyler possuía um talento para criar espaço vazio em seu redor, de forma bastante semelhante a um psicopata com um punhado de dinamite.
Continuou sentada quando Michael e Cárter entraram na sala e se sentaram. Uma empregada trouxe os menus e as outras cartas. Na sala de jantar, os convidados não faziam os seus pedidos oralmente; em vez disso, tinham de preencher um pequeno formulário meticulosamente e fazer o somatório da própria conta. Os espirituosos da agência afirmavam na brincadeira que os formulários eram recolhidos ao final de cada dia e enviados para o Departamento de Recursos Humanos para uma avaliação psicológica. Cárter procurou em vão que Mónica se deixasse envolver numa conversa de circunstância enquanto se debatia com o complexo formulário de pedidos. Michael sabia que a refeição iria ser cobrada ao gabinete da Directora e, por isso, escolheu os artigos mais caros do menu: cocktail de camarão, bolos de caranguejo grelhado e creme brâlée para a sobremesa. Tweedledee preencheu o formulário de Mónica por ela.
— Agora que conseguiste neutralizar a Brigada para a Libertação do Ulster — começou por dizer de repente Mónica —, nós achamos que está na altura de saíres do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e passares para uma coisa mais produtiva.
Michael olhou para Cárter, que encolheu os ombros.
— E quem são esses nós? — perguntou Michael.
Mónica levantou os olhos da salada como se tivesse achado a pergunta impertinente.
— O sétimo andar, claro.
— Por acaso, estava com esperanças de poder passar mais tempo a trabalhar no caso Outubro — disse Michael.
— Por acaso, tenciono retirar-te por completo do caso Outubro. Michael afastou o prato de camarão meio comido e pousou o guardanapo em cima da mesa.
— Uma parte do nosso acordo em relação ao meu regresso à CIA era que me seria permitido passar parte do meu tempo à procura dele. Porque é que estás a tentar fugir ao nosso acordo?
— Para ser sincera contigo, Michael, o Adrian achou que deixar-te ir atrás do Outubro poderia ser suficiente para te atrair de volta ao centro. Mas eu nunca achei grande coisa da ideia e continuo a não achar. Mais uma vez, provaste ser um agente eficaz, e seria negligente da minha parte se permitisse que continuasses a trabalhar num caso que é pouco provável que produza frutos.
— Mas já produziu frutos, Mónica. Provei que o Outubro ainda está vivo e que continua em actividade como assassino e terrorista.
— Não, Michael, tu não provaste que ele está vivo. Tu lançaste a teoria de que ele ainda está vivo, com base na ampliação da fotografia de uma mão. Isso está muito longe de ser uma prova irrefutável.
— Nós raramente lidamos com provas irrefutáveis neste ramo, Mónica.
— Não me pregues sermões, Michael.
Calaram-se quando a empregada apareceu e levantou a mesa depois do primeiro prato.
— Enviámos um alerta à Interpol — recomeçou Mónica. — Avisámos os nossos aliados. Não há muito mais que possa ser feito. Neste momento, trata-se de uma questão de polícia e isto não é uma agência policial.
— Não concordo — respondeu Michael.
— Com que ponto?
— Tu sabes com que ponto.
Os acólitos de Mónica agitaram-se nos seus lugares com inquietação. Cárter começou a catar um fio solto da toalha de mesa. Nada enfurecia mais Mónica Tyler do que ser desafiada por alguém que se encontrasse abaixo dela na cadeia alimentar da agência.
— Alguém contratou o Outubro para assassinar o Ahmed Hus-sein — prosseguiu Michael. — Alguém está a disponibilizar-lhe protecção, documentos para viajar e dinheiro.
Precisamos de descobrir quem está a patrociná-lo. E isso é um trabalho de espionagem, Mónica, não de polícia.
— Mais uma vez, Michael, estás a partir do princípio de que o Outubro era o homem que estava no Cairo. Pode ter sido um agente dos serviços secretos israelitas.
Pode ter sido um membro do Hamas que fosse rival dele. Pode ter sido um assassino da OLP.
— Pode ter sido um pato à Pequim, mas não era. Era o Outubro.
— Não concordo.
Sorriu, demonstrando que se tinha servido das palavras de Michael intencionalmente. Os olhos dela vasculhavam-no sem parar, de um lado para o outro, como se estivessem à procura do melhor sítio para lhe inserir um punhal.
Michael rendeu-se.
— E o que é que tens em mente para mim?
— O processo de paz no Médio Oriente está a dar as últimas — respondeu ela. — O Hamas anda a colocar bombas em Jerusalém e nós recebemos indicações de que a Espada de Gaza está prestes a entrar em acção na Europa. Com toda a probabilidade, isso significa que irão visar americanos. Quero que termines os preparativos para a conferência na Casa Branca sobre a Irlanda do Norte e, a seguir, quero-te outra vez a tratar da Espada de Gaza.
— E se eu não estiver interessado?
— Então, receio que o teu regresso à CIA, embora altamente bem-sucedido, vá ser bastante breve.
Morton Dunne era para a CIA aquilo que "Q" era para os serviços secretos de James Bond. Chefe-adjunto da divisão dos Serviços Técnicos, Dunne era o criador de canetas que explodiam e de microfones transmissores de alta frequência que podiam ser escondidos na fivela de um cinto. Era um engenheiro electrotécnico formado no MIT que podia estar a ganhar cinco vezes mais no sector privado do que o salário que auferia a trabalhar para o Estado. Escolheu a CIA porque a parafernália de espionagem sempre o havia intrigado. No seu tempo livre, fazia a manutenção das antigas câmaras e armas de espionagem instaladas no museu improvisado da agência. E também era um dos principais criadores, em todo o mundo, de papagaios experimentais. Ao fim-de-semana, podia ser encontrado na Ellipse, a fazer voar as suas criações em redor do Monumento de Washington. Uma vez, colocou uma câmara em miniatura de alta resolução num papagaio e fotografou cada centímetro quadrado do relvado sul da Casa Branca.
— Tens autorização para isto, suponho — disse Dunne, sentado diante de um grande ecrã de computador.
Era o protótipo de um licenciado do MIT — magro, pálido como um habitante das cavernas, com óculos de armações de metal que estavam sempre a escorregar-lhe pela cana do nariz estreito.
— Não posso fazer isto sem autorização do teu chefe.
— Eu trago-ta mais logo, mas preciso das fotos agora.
Dunne colocou as mãos no teclado.
— Como é que era o nome dele?
— Outubro. Aquele que fizemos o mês passado para o alerta para a Interpol.
— Oh, sim, já me lembro — disse Dunne, com os dedos a matraquearem no teclado.
Passado um momento, a cara de Outubro surgiu no ecrã.
— E que queres que eu faça?
— Acho que ele é capaz de ter feito uma operação plástica para mudar de cara — disse Michael. — Tenho quase a certeza de que o trabalho foi feito por um francês chamado Maurice Leroux.
— O doutor Leroux pode ter feito todo o tipo de coisas para lhe alterar a aparência.
— Podes mostrar-me umas quantas? — pediu Michael. — Podes fazer uma série completa? Mudar-lhe o cabelo, pôr-lhe uma barba, tudo.
— Vai demorar um bocado.
— Eu espero.
— Senta-te ali — disse Dunne. — E, por amor de Deus, Osbourne, não mexas em nada.
Foi logo a seguir à meia-noite que o carro com motorista de Mónica Tyler chegou ao complexo de Harbor Place, na zona costeira de Georgetown. O guarda-costas abriu-lhe a porta e seguiu-a pelo átrio de entrada até ao elevador. Acompanhou-a à porta do apartamento e deixou-se ficar ali quando ela entrou.
Mónica pôs a água a correr na banheira gigante e despiu-se. Já era quase manhã em Londres. O Director era conhecido por se levantar muito cedo; ela sabia que ele estaria sentado à secretária dali a poucos minutos. Enfiou-se na banheira e deixou-se descontrair na água quente. Depois de terminar, embrulhou-se num grosso roupão branco.
Foi até à sala de estar e sentou-se atrás da secretária de mogno. Havia aí três telefones: um telefone normal com oito linhas, um telefone interno para Langley e um telefone especial seguro que lhe permitia ter conversas sem medo de haver alguém à escuta. Olhou para o relógio de ouro de antiquário que tinha sobre a secretária, um presente da sua antiga firma na Wall Street: 0h45.
Mónica lembrou-se das circunstâncias — as coincidências, as alianças políticas e os acasos felizes — que a tinham conduzido até ao topo da CIA. Terminara o curso na Faculdade de Direito de Yale em segundo lugar, mas, em vez de partir para uma grande firma, acrescentou ao currículo um MBA em Harvard e foi para a Wall Street ganhar dinheiro. Foi lá que conheceu Ronald Clark, angariador de fundos republicano e um homem astuto que entrava e saía de Washington consoante os republicanos controlavam ou não a Casa Branca. Mónica seguiu Clark para o Tesouro, Comércio, Negócios Estrangeiros e Defesa. Quando o presidente Beckwith o nomeou como director da CIA, Mónica tornou-se a directora executiva, o segundo cargo mais poderoso na agência. Quando Clark decidiu reformar-se, Mónica fez lóbi no sentido de ser escolhida para o cargo principal e Beckwith concedeu-lho.
Ronald Clark deixou-lhe uma CIA num estado de desordem. Uma série de outros casos de espionagem, incluindo o caso Aldrich Ames, tinha devastado o moral. A agência não tinha conseguido prever que tanto a índia como o Paquistão se encontravam prestes a fazer explodir engenhos nucleares ou que o Irão e a Coreia do Norte estavam prestes a testar mísseis balísticos capazes de atingirem os seus vizinhos. Durante as audiências para a sua homologação, vários senadores insistiram com ela para que justificasse o tamanho e o custo da CIA; um deles interrogou-se alto e bom som se os Estados Unidos precisariam realmente de uma CIA numa altura em que a guerra fria tinha terminado.
Supostamente, ela deveria ser uma espécie de mera caseira, alguém que mantivesse a cadeira no gabinete do director da CIA quente durante um par de anos, até o sucessor de Beckwith poder nomear o seu chefe dos serviços secretos. Mas ela revelou-se incapaz de desempenhar o papel de caseira e deu início à missão de se tornar indispensável a quem quer que se sentasse na Sala Oval depois de Beckwith; republicano ou democrata.
Achava-se a única pessoa em Langley com a visão para conduzir a CIA pelo terreno instável do período pós-guerra fria. E também tinha estudado a história da espionagem. Sabia que por vezes era necessário sacrificar alguns de maneira a garantir a sobrevivência de muitos. Sentia uma afinidade com os agentes especialistas em logro durante a Segunda Guerra Mundial, que enviavam homens e mulheres para a morte de modo a enganar a Alemanha nazi. Nunca iria permitir que a CIA fosse castrada. Nunca iria permitir que os Estados Unidos ficassem sem um serviço de informações conveniente. E iria fazer tudo para se assegurar de que era ela quem comandava as operações. E era por isso que tinha aderido à Sociedade e que seguia o seu código.
A uma da manhã, levantou o auscultador do telefone seguro e marcou um número. Passados alguns segundos, ouviu a voz agradável e educada da assistente do Director, Daphne. A seguir, o Director veio ao telefone.
— Já não precisa de se preocupar com o Osbourne — disse ela. — Foi-lhe atribuído um novo caso e o processo referente ao caso Outubro foi efectivamente arquivado.
No que à CIA diz respeito, o Outubro está morto e enterrado.
— Muito bem — disse o Director.
— E onde é que está a encomenda?
— A caminho das Caraíbas — respondeu ele. — Deve estar a chegar aos Estados Unidos durante as próximas trinta e seis a quarenta e oito horas. E depois estará tudo terminado.
— Excelente — disse ela.
— Confio que transmitirás quaisquer informações que possam ajudar a encomenda a chegar a tempo ao seu destino.
— Claro, Director.
— Eu sabia que podia contar contigo. Bom dia, Picasso — disse o Director, e a ligação foi interrompida.
Capítulo 35
BAÍA DE CHESAPEAKE, MARYLAND
O Boston Whaler ia ressaltando nas águas agitadas da baía de Chesapeake. O céu estava limpo e a noite, fria de rachar; uma brilhante lua de quarto crescente flutuava lá no alto, acima do horizonte a leste. Delaroche tinha apagado as luzes de presença pouco depois de entrar na embocadura da baía. Esticou o braço e carregou num botão da unidade de navegação instalada no painel de instrumentos. O sistema GPS calculou automaticamente a longitude e a latitude exactas a que se encontrava; estavam no centro das movimentadas rotas de navegação do canal de Chesapeake.
Rebecca Wells estava ao seu lado, segurando com força o leme da segunda consola do Whaler. Sem falar, apontou para o lado de lá da proa. A frente deles, talvez a um quilómetro e meio, brilhavam os faróis de um navio de carga. Delaroche virou alguns graus a bombordo e avançou a toda a velocidade pelas águas pouco fundas da margem ocidental.
Tinha planeado meticulosamente o seu percurso pela baía de Chesapeake durante a longa viagem de Nassau até à costa leste. Tinham efectuado essa etapa da viagem a bordo de um grande iate a caminho do oceano, pilotado por um par de antigos homens da SAS pertencentes à Sociedade. Ele e Rebecca ficaram em camarotes de luxo contíguos.
De dia, estudavam mapas de Chesapeake, analisavam os dossiês de Michael Osbourne e Douglas Cannon e memorizavam as ruas de Washington. A noite, iam até ao convés da popa e treinavam a pontaria com as Beretta de Delaroche. Rebecca pressionou-o para que lhe dissesse o nome dele, mas, de cada vez que perguntava, Delaroche limitava-se a abanar a cabeça e mudava de assunto. Sentindo-se frustrada, baptizou-o de "Pierre", o que Delaroche detestou. Na última noite a bordo do iate, admitiu que não tinha um nome verdadeiro mas que, se ela achava que era necessário referir-se a ele como qualquer coisa, então devia chamar-lhe Jean-Paul.
Delaroche continuava furioso por ser obrigado a trabalhar com a mulher, mas o Director tinha tido razão numa coisa: ela não era amadora nenhuma. O conflito na Irlanda do Norte tinha-lhe aguçado ao máximo as capacidades. Possuía uma memória soberba e instintos operacionais perfeitos. Era alta e bastante forte para uma mulher, e, após três noites de treino com a Beretta, já era uma atiradora mais do que razoável. Delaroche estava preocupado apenas com uma coisa — o idealismo dela. Ele só acreditava na sua arte. Os fanáticos enervavam-no. Em tempos, Astrid Vogel tinha sido uma crente como Rebecca — quando fazia parte do grupo terrorista comunista da Alemanha Ocidental, a Facção Exército Vermelho —, mas, quando ela e Delaroche trabalharam juntos, já tinha descartado os seus ideais e estava naquilo apenas pelo dinheiro.
Delaroche tinha decorado todos os pormenores de Chesapeake — os bancos de areia, os rios e as baías, os terrenos planos e os promontórios. Tudo o que necessitava era de uma indicação do GPS para saber exactamente onde se encontrava em relação a terra. Tinha passado Sandy Point, Cherry Point e Windmill Point. Quando chegou a Bluff Point, já se sentia hirto e dorido do frio. Desligou os motores e beberam café quente de um termos.
Verificou a unidade de navegação GPS: 38,50 graus de latitude por 76,31 graus de longitude. Sabia que estava a aproximar-se de Curtis Point, um promontório na embocadura do West River. O seu destino era o South River, o rio seguinte por onde entrava o mar e que ia desembocar na baía, vindo de Maryland, mais ou menos a cinco quilómetros e meio a norte. Ao passar Saunders Point, viu a primeira luz do dia surgir a leste, a estibordo do Whaler. Contornou Turkey Point e sentiu o empurrão ligeiro da maré vinda do South River.
Acelerou a fundo, subindo o rio para nordeste. Queria chegar a costa e estar na estrada antes de amanhecer. Passou a grande velocidade por Mayo Point e Brewer Point, Glebe Bay e Crab Creek. Passou por baixo de uma ponte e depois de outra. Chegou à desembocadura de um ribeiro e verificou a unidade de navegação para ter a certeza de que se tratava do Broad Creek. A maré estava a baixar e tinha deixado o ribeiro com menos água do que os mapas haviam prometido; por duas vezes, Delaroche saltou para dentro da água gélida e empurrou o Whaler, desencalhando-o do fundo.
Por fim, atingiu a nascente do ribeiro. Encalhou o Whaler num. pedaço de relva pantanosa, desligou o motor, pulou para terra e, puxando pela corda da proa, arrastou o barco mais para dentro do pântano.
Rebecca trepou para o compartimento da frente e pegou num grande saco de lona repleto de material: roupa, dinheiro e equipamento electrónico. Entregou o saco a Delaroche e, a seguir, desceu do barco para o pântano encharcado. O carro estava estacionado num caminho de terra batida, exactamente onde o Director tinha dito que estaria: um grande Volvo preto, com matrícula do Quebeque.
Delaroche tinha uma chave. Abriu o porta-bagagens e atirou o saco lá para dentro. Seguiu por uma série de estradas com duas faixas durante vários quilómetros, passando por terras de cultivo e pastagens iluminadas pelo sol, até chegar à Route 50. Virou para a auto-estrada e seguiu para leste, em direcção a Washington.
Uma hora depois de irem buscar o Volvo, entraram em Washington pela New York Avenue, um corredor de passagem imundo utilizado por quem entrava e saía da cidade diariamente, que se estendia da secção nordeste da cidade até aos subúrbios de Maryland. Delaroche tinha parado uma vez numa estação de serviço à beira da estrada para que ele e Rebecca pudessem mudar-se e vestir roupas mais apropriadas. Atravessou a cidade pela Massachusetts Avenue e parou junto ao caminho de acesso ao hotel em Embassy Row, perto de Dupont Circle. Tinham uma reserva à espera deles, em nome do senhor Clau-de Duras e esposa, de Montreal.
As exigências da história que lhes servia de disfarce obrigaram-nos a partilhar o mesmo quarto. Dormiram até meio da tarde, Rebecca na cama de casal e Delaroche no chão, com a coberta da cama a fazer as vezes de colchão. Acordou de repente, às quatro da tarde, surpreendido pelo que o rodeava, e deu-se conta de que tinha estado a sonhar outra vez com Maurice Leroux.
Pediu, que lhe trouxessem café ao quarto e bebeu-o enquanto guardava vários artigos numa mochila de nylon azul: duas peças de equipamento electrónico sofisticado, dois telemóveis, uma lanterna, várias ferramentas pequenas e uma Beretta de nove milímetros. Rebecca saiu da casa de banho, trazendo calças de ganga azuis, ténis e uma camisola de mangas compridas com as palavras Washington, d. c. e uma imagem da Casa Branca bordadas.
— Como é que estou? — perguntou.
— O teu cabelo está demasiado louro — respondeu Delaroche, enfiando a mão no saco de lona e atirando-lhe um boné de basebol. — Põe isso.
Telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para ter o Volvo à espera deles. Seguiu para oeste no carro, percorrendo a P Street. Havia um mapa turístico no tabliê, que Delaroche não se deu ao trabalho de abrir; as ruas de Washington, tal como as águas de Chesapeake, estavam-lhe gravadas na memória.
Entrou em Georgetown e foi avançando pelas ruas sossegadas e repletas de folhas. Era considerado o bairro mais chique de Washington, com passeios em tijoleira e grandes casas no estilo de arquitectura federal, mas para Delaroche, cujo olhar estava habituado aos canais e às casas com empenas de Amesterdão, tudo parecia bastante prosaico.
Continuou para oeste, pela P Street, até chegar à Wisconsin Avenue. Aí, seguiu para sul, acompanhado pelo ritmo pulsante da música rap que vibrava do BMW dourado atrás de si. Virou para a N Street e a loucura da Wisconsin Avenue dissipou-se lentamente, ficando para trás.
A casa estava vazia, exactamente como Delaroche sabia que estaria. O embaixador Cannon chegaria de Londres na tarde do dia seguinte. Ia dar um jantar privado para amigos e família nessa noite. Um dia depois, participaria numa conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca e, a seguir, estaria presente num conjunto de recepções nocturnas, da responsabilidade das partes participantes nas conversações. Estava tudo no dossiê do Director.
Delaroche estacionou à esquina da casa, na Thirty-third Street. Colocou uma máquina fotográfica ao pescoço e passeou-se pelo quarteirão sossegado, de braço dado com Rebecca, parando aqui e ali para admirar as grandes casas citadinas de tijolo com a luz a jorrar das janelas. Era bastante parecido com Amesterdão, pensou, a maneira como as pessoas deixavam as cortinas abertas e permitiam que quem passasse lhes olhasse para dentro de casa e avaliasse as suas posses.
Já lá tinha estado antes; sabia os desafios que a N Street colocava a um homem como ele. Não havia cafés onde pudesse demorar-se a beber um café, não havia lojas para fazer compras como medida de diversão, não havia praças nem parques para passar o tempo sem atrair atenção — apenas grandes e dispendiosas casas, com vizinhos metediços e sistemas de segurança.
Passaram à frente da casa dos Osbourne. Um grande carro preto estava estacionado do outro lado da rua. Sentado ao volante, estava um homem com uma gabardina castanho-clara, a ler a secção desportiva do The Washington Post. Lá se ia a teoria do Director de que seria fácil matar o embaixador Cannon enquanto ele estivesse em Washington, pensou Delaroche. O homem ainda nem sequer tinha posto os pés na cidade e a casa já se encontrava sob vigilância.
Parou a um quarteirão de distância e tirou fotografias à casa onde John Kennedy tinha vivido quando era um senador do Massachusetts. Alguns secretários ministeriais viviam em Georgetown; as suas casas estavam sob vigilância constante. Se o funcionário em questão estivesse envolvido em matérias de segurança nacional, como o secretário de Estado ou o secretário da Defesa, os seus guarda-costas poderiam até manter um posto permanente num apartamento vizinho. Mas Delaroche estava convicto de que as medidas de segurança para Douglas Cannon consistiam inteiramente no homem com a gabardina castanho-clara — pelo menos, até àquele momento.
Seguiu, com Rebecca atrás, para sul pela Thirty-first Street, cerca de meio quarteirão, até chegarem a uma viela que se estendia por trás da casa dos Osbourne. Espreitou para a quase escuridão; tal como suspeitava, parecia que as traseiras da casa não se encontravam vigiadas.
Delaroche entregou um telemóvel a Rebecca.
— Fica aqui. Liga se houver algum problema. Se eu não regressar daqui a cinco minutos, vai-te embora e volta para o hotel. Se eu não der notícias durante a próxima meia hora, entra em contacto com o Director e faz um pedido de extracção.
Rebecca assentiu com um aceno de cabeça. Delaroche deu meia-volta e começou a avançar pela viela. Parou atrás da casa dos Osbourne e, a seguir, trepou a vedação habilmente e deixou-se cair num jardim bem arranjado que rodeava uma pequena piscina. Olhou para cima e seguiu as linhas que vinham do posto telefónico na viela até ao ponto em que se ligavam à casa. Atravessou o jardim e ajoelhou-se em frente à caixa do telefone nas traseiras da casa. Abriu o fecho da mochila e tirou as ferramentas e uma lanterna. Segurando a lanterna entre os dentes, desatarraxou os parafusos que seguravam a tampa da caixa e estudou a configuração das linhas durante um momento.
Havia duas linhas com ligação à casa, mas Delaroche apenas possuía o equipamento para pôr uma delas sob escuta. Suspeitou que uma das linhas estava provavelmente reservada para as chamadas e a outra para um fax ou modem. Voltou a enfiar a mão na mochila e tirou um pequeno aparelho electrónico. Ligado à linha telefónica dos Osbourne, iria transmitir um sinal de rádio de alta frequência para o telemóvel de Delaroche, permitindo-lhe monitorizar as chamadas do casal. Delaroche demorou apenas dois minutos a instalar o aparelho na linha principal dos Osbourne e a atarraxar novamente a tampa da caixa do telefone.
O segundo aparelho seria muito mais fácil de instalar, uma vez que necessitava apenas de uma janela. Era um mecanismo de escuta que, quando ligado ao exterior de uma janela, iria detectar a vibração das ondas sonoras no interior da estrutura e convertê-las em áudio simulado. Delaroche prendeu o sensor à parte inferior de uma janela )unto à sala de estar principal. Estava escondido por um arbusto, no exterior, e pela aba de uma mesa, no interior da casa. Enterrou a unidade de conversão e transmissão numa zona de adubo vegetal no jardim.
Voltou para trás, seguindo pelo relvado pelo mesmo caminho que tinha feito. Atirou a mochila para o outro lado da vedação e, a seguir trepou-a e deixou-se cair na viela. As duas unidades que tinha acabado de colocar na casa dos Osbourne possuíam um alcance efectivo de três quilómetros, o que lhe possibilitaria monitorizá-los a partir da segurança do seu quarto de hotel em Dupont Circle.
Rebecca estava à espera dele no final da viela.
— Vamos embora — disse ele. Pegou-lhe na mão e regressaram ao Volvo.
Delaroche estava sentado diante de um auscultador do tamanho de uma caixa de sapatos, a testar o sinal do transmissor que tinha colocado na janela dos Osbourne.
Rebecca encontrava-se na casa de banho. Conseguia ouvir o som da água a correr no lavatório. Já estava lá dentro há mais de uma hora. Por fim, a água parou de correr e ela saiu, num roupão de banho do hotel, com o cabelo enrolado numa toalha branca como um xeque. Acendeu um dos cigarros dele e perguntou:
— Funciona?
— O transmissor está a enviar um sinal, mas só vou poder ter a certeza quando estiver alguém dentro de casa.
— Tenho fome — disse ela.
— Pede qualquer coisa para comer ao serviço de quartos.
— Quero sair.
— É melhor ficarmos aqui.
— Andei dez dias enfiada em barcos. Quero sair.
— Veste-te e eu levo-te a qualquer lado.
— Fecha os olhos — disse ela.
Em vez disso, Delaroche voltou-se e ficou de frente para ela. Esticou o braço e puxou-lhe a toalha que tinha à volta da cabeça. O cabelo dela já não possuía um tom louro abrasivo; estava quase preto e brilhava da humidade. De repente, encontrava-se em sintonia com o resto do seu aspecto — os olhos cinzentos, a pele branca e luminosa, o rosto oval. Apercebeu-se de que era uma mulher formidavelmente bonita. Depois ficou zangado; desejou poder esconder-se numa casa de banho com uma garrafa de elixir e sair de lá, passada uma hora, com a sua cara antiga.
Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Tens cicatrizes — disse, passando-lhe com um dedo pela linha do maxilar. — O que é que aconteceu?
— A minha cara não era esta. Se nos mantivermos muito tempo neste ramo, uma cara pode tornar-se uma fonte de risco.
O dedo dela já tinha passado da linha do maxilar para a maçã do rosto e tocava agora nos implantes de colagénio logo por baixo da pele.
— Como é que eras antes?
Delaroche arqueou as sobrancelhas e reflectiu sobre a pergunta dela por um instante. Pensou: como descreveria uma pessoa a sua própria aparência? Se dissesse que em tempos tinha sido belo, antes de Maurice Leroux lhe ter destruído a cara, ela poderia achar que era um mentiroso. Sentou-se à secretária e pegou numa folha de papel do hotel e num lápis.
— Afasta-te por uns minutos — disse.
Ela foi outra vez para a casa de banho, fechou a porta e ligou o secador de cabelo. Ele trabalhou depressa, com o lápis a rabiscar na folha. Depois de terminar, avaliou as suas feições de uma forma bastante desapaixonada, como se pertencessem a uma criatura por ele imaginada.
Enfiou o auto-retrato por baixo da porta da casa de banho. O secador parou de fazer barulho. Rebecca saiu, com a antiga cara de Delaroche nas mãos. Olhou para ele e, a seguir, para a imagem na folha. Beijou o retrato e deixou-o cair no chão. A seguir, beijou Delaroche.
— Quem era ela, Jean-Paul?
— Quem?
— A mulher em que estavas a pensar enquanto fazias amor.
— Eu estava a pensar em ti.
— Não o tempo todo. Eu não estou zangada, Jean-Paul. Não é como se...
Deteve-se antes de poder acabar de dizer aquilo em que estava a pensar. Delaroche interrogou-se sobre o que poderia ela ter dito. Ficou deitada de costas, com a cabeça pousada no abdómen dele e o cabelo escuro espalhado pelo peito. A luz da rua entrava pelas cortinas abertas e caía-lhe sobre o corpo comprido. Tinha a cara ruborizada e arranhada de ter feito amor, mas o resto do corpo era branco-marfim à luz do candeeiro. Era a pele de uma pessoa que raramente tinha visto o sol; Delaroche duvidava que ela alguma vez tivesse posto os pés fora das Ilhas Britânicas antes de ter sido forçada a andar escondida.
— Ela era bonita? E não me mintas mais.
— Sim — respondeu.
— E como é que se chamava?
— Chamava-se Astrid.
— Astrid quê?
— Astrid Vogel.
— Lembro-me de uma mulher chamada Astrid Vogel que fazia parte da Facção Exército Vermelho — disse Rebecca. — Abandonou a Alemanha e andou escondida depois de assassinar um polícia alemão.
— Essa era a minha Astrid — confirmou Delaroche, passando com o dedo por cima da borda do seio de Rebecca. — Mas a Astrid não matou o polícia alemão. Eu é que o matei. Ela limitou-se a pagar o preço.
— Então, és alemão? Delaroche abanou a cabeça.
— Então, és o quê? Qual é o teu nome verdadeiro?
Mas ele ignorou a pergunta. Os dedos passaram do seio dela para a parte de fora da caixa torácica. O abdómen de Rebecca reagiu involuntariamente ao toque dele, retraindo-se repentinamente. Delaroche acariciou-lhe a pele branca do estômago e a parte de cima das coxas. Por fim, ela pegou-lhe na mão e colocou-a entre as pernas. Os olhos fecharam-se-lhe. Uma rajada de vento agitou as cortinas e ela ficou com pele de galinha do calafrio. Tentou tapar o corpo com a coberta, mas Delaroche afastou-a.
— Havia coisas na casa flutuante de Amesterdão que pertenciam a uma mulher — disse ela baixinho, de olhos fechados. — A Astrid vivia naquele barco, não vivia?
— Sim, vivia.
— E tu vivias lá com ela?
— Durante um tempo.
— E fizeram amor na cama por baixo da clarabóia?
— Rebecca...
— Não há problema — interrompeu ela. — Não vais ferir-me os sentimentos.
— Sim, fizemos.
— E o que é que lhe aconteceu?
— Foi morta.
— Quando?
— No ano passado.
Rebecca afastou a mão dele e sentou-se na cama.
— O que é que aconteceu?
— Estávamos a trabalhar juntos numa coisa aqui na América e deu tudo para o torto.
— Quem a matou?
Delaroche hesitou por um momento; tudo aquilo já tinha ido longe de mais. Sabia que devia acabar com a conversa, mas, por alguma razão, queria contar-lhe mais coisas.
Talvez Vladimir tivesse razão. Um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional...
— O Michael Osbourne — atirou. — Na verdade, a mulher dele é que a matou.
— Porquê?
— Porque nós fomos enviados para cá para matar o Michael Osbourne — respondeu e, a seguir, parou por uns instantes, com os olhos a percorrerem-na rapidamente. — Às vezes, neste ramo, as coisas não correm como planeado.
— E porque é que foram contratados para matar o Osbourne?
— Porque ele sabia demasiado acerca de uma das operações da Sociedade.
— Qual operação?
— O abate do Voo 002 da TransAdantic no ano passado.
— Julgava que tinha sido abatido por aquele grupo árabe, a Espada de Gaza.
— Foi abatido a mando de um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott. A Sociedade fez com que parecesse que a Espada de Gaza estava envolvida para que a empresa do Elliott pudesse vender um sistema de defesa antimíssil ao governo americano. O Osbourne suspeitava disso e, por isso, eu fui contratado pelo Director para eliminar toda a gente envolvida na operação, bem como o Osbourne.
— E quem é que abateu de facto o avião?
— Um palestiniano chamado Hassan Mahmoud.
— Como é que sabes?
— Sei porque estava lá nessa noite. E porque o matei quando já estava tudo terminado.
Ela afastou-se dele. Delaroche conseguia ver um medo real na cara dela e sentir a cama a abanar ligeiramente por ela estar a tremer. Rebecca puxou o cobertor para o peito para esconder o corpo dele. Ele olhou-a fixamente, sem a mínima expressão no rosto.
— Meu Deus — soltou ela. — Tu és um monstro.
— Porque é que dizes isso?
— Havia mais de duzentas pessoas inocentes naquele avião.
— Então e as pessoas inocentes que os vossos bombistas mataram em Londres e Dublin?
— Nós não o fizemos por dinheiro — rosnou ela.
— Vocês tinham uma causa — disse ele, com desprezo.
— Exactamente.
— Uma causa que tu achas que é justa.
— Uma causa que eu sei que é justa — respondeu ela. — Enquanto tu és capaz de matar qualquer pessoa desde que o preço seja o certo.
— Meu Deus, mas tu és mesmo uma mulher estúpida, não és? Ela tentou esbofeteá-lo, mas ele agarrou-lhe a mão e segurou-a firmemente, resistindo com facilidade às tentativas dela para se soltar.
— Porque é que julgas que a Sociedade está disposta a ajudar-te? — perguntou Delaroche. — Porque acreditam nos direitos sagrados dos protestantes na Irlanda do Norte?
Claro que não. Porque acham que isso vai beneficiar os seus próprios interesses. Porque acham que isso os fará ganhar dinheiro. A história passou-vos ao lado, Rebecca.
Os protestantes já tiveram o seu tempo na Irlanda do Norte e agora acabou. Por mais bombas, por mais assassínios que haja, não há nada que vá fazer o relógio voltar para trás.
— Se acreditas nisso, porque é que estás a fazer isto?
— Eu não acredito em nada. Isto é o que eu faço. Já matei em nome de todas as causas fracassadas na Europa. A tua é só a mais recente —: respondeu, largando-a e vendo-a afastar-se, a esfregar a mão como se tivesse tocado em alguma coisa perversa — e espero que a última.
— Eu devia ter continuado a andar naquele dia em Amesterdão.
— Provavelmente, tens razão. Mas agora estás aqui e não tens outro remédio senão ficar comigo, e se fizeres precisamente o que eu te disser até pode ser que sobrevivas.
Nunca mais verás a Irlanda do Norte, mas pelo menos estarás viva.
— Não sei bem porquê, mas duvido — respondeu ela. — Vais matar-me quando isto terminar tudo, não vais?
— Não, não te vou matar.
— Provavelmente, também mataste a Astrid Vogel.
— Eu não matei a Astrid e não te vou matar, Rebecca.
Puxou pelo cobertor e deixou-lhe o corpo à luz. Estendeu-lhe a mão, mas ela continuou parada.
— Pega na minha mão — disse Delaroche. — Eu não vou fazer-te mal. Dou-te a minha palavra.
Rebecca pegou-lhe na mão. Ele puxou-a para junto de si e deu-lhe um beijo na boca. Ela resistiu durante um momento; a seguir, rendeu-se, beijando-o e arranhando-lhe a pele como se estivesse a afogar-se nos seus braços. Quando o conduziu para dentro do corpo dela, ficou subitamente muito quieta, olhando para Delaroche de uma forma tão directa como um animal, enervando-o.
— Gosto mais da tua outra cara — disse ela.
— Eu também.
— Quando tudo isto tiver terminado, talvez possamos ir ter outra vez com o médico que fez isto e ele consiga pôr a tua cara como estava antes.
— Receio que isso não seja possível — respondeu.
Ela pareceu compreender exactamente o que ele estava a dizer.
— Se não me vais matar — disse ela —, então porque é que me contaste os teus segredos?
— Não sei bem.
— Quem és tu, Jean-Paul?
Capítulo 36
WASHINGTON
Na manhã seguinte, Michael e Elizabeth viajaram de avião de Nova Iorque para Washington, acompanhados pelas crianças e Maggie. Separaram-se no National Airport.
Michael seguiu para a Casa Branca num carro grande do governo com motorista, para efectuar o relatório sobre a Irlanda do Norte ao conselheiro para a Segurança Nacional, William Bristol; Elizabeth, Maggie e os filhos entraram todos num carro de serviço, um luxuoso Ford, que os levaria até Georgetown.
Elizabeth já não vinha ao grande prédio de tijolo vermelho, no estilo de arquitectura federal, da N Street há mais de um ano. Adorava a antiga casa, mas, ao subir os degraus de tijolo encurvados, sentiu-se subitamente assaltada por más recordações. Lembrou-se da longa luta com o seu próprio corpo para ter filhos. Lembrou-se da tarde em que Astrid Vogel lá tinha ido para a fazer refém para que o assassino chamado Outubro pudesse assassinar o seu marido.
— Está tudo bem, Elizabeth? — perguntou Maggie. Elizabeth interrogou-se quanto tempo teria estado parada daquela forma, com a chave na mão, incapaz de abrir a porta.
— Sim, está tudo óptimo, Maggie. Só estava a pensar numa coisa.
O alarme chilreou quando ela empurrou a porta da frente. Marcou o código de desactivação e o alarme calou-se. Michael tinha transformado o sítio numa fortaleza, mas ela nunca iria sentir-se completamente segura ali.
Ajudou Maggie a instalar as crianças e depois levou a mala para o quarto, no andar de cima. Estava a abri-la quando a campainha tocou. Desceu para o andar de baixo e espreitou pela vigia da porta. Lá fora, estava um homem de cabelo castanho com um fato azul e uma gabardina castanho-clara.
— O que deseja? — perguntou ela, sem abrir a porta.
— O meu nome é Brad Heyworth, senhora Osbourne. Sou o agente dos Serviços de Segurança do Corpo Diplomático encarregado de vigiar a sua casa.
Elizabeth abriu a porta.
— Da DSS[37]? Mas o meu pai só chega de Londres daqui a seis horas.
— Na verdade, há já um par de dias que andamos a vigiar a casa, senhora Osbourne.
— Porquê?
— Depois do incidente no Reino Unido, decidimos que seria provavelmente melhor pecarmos por excesso de prudência.
— E está sozinho?
— Por enquanto, mas quando o embaixador chegar acrescentaremos um segundo homem à equipa.
— Isso é tranquilizador — afirmou ela. — Não quer entrar?
— Não, obrigado, senhora Osbourne, eu preciso de ficar cá fora.
— E não quer que lhe traga nada?
— Estou óptimo — respondeu ele. — Só queria que a senhora soubesse que estamos por perto.
— Obrigada, agente Heyworth.
Elizabeth fechou a porta e ficou a ver o homem da DSS a descer os degraus da frente da casa e voltar a entrar no carro. Sentiu-se contente por ele ali estar. Foi para o andar de cima e sentou-se à secretária no antigo escritório de Michael. Fez uma série de telefonemas curtos: para o serviço de fornecimento de comida RidgewelTs, para o serviço de empregados particulares, para o seu escritório em Nova Iorque a fim de saber se havia mensagens. A seguir, passou mais uma hora a responder a chamadas.
Maria, a empregada doméstica, chegou ao meio-dia. Elizabeth vestiu um fato de treino de nylon e saiu para a rua. Desceu os degraus da frente aos saltos, acenou com a mão a Brad Heyworth e começou a correr pelo passeio em tijoleira da N Street.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tinha pendurado o aviso de não incomodar na maçaneta da porta do quarto e trancou-a com duas voltas. Durante a última hora, tinha estado a ouvir Elizabeth Osbourne: a falar ao telefone, a falar com a ama e os filhos, a falar com o agente da DSS que estava a guardar-lhe a casa. Agora, Delaroche sabia exactamente quando Douglas Cannon chegaria de Londres e quando sairia para a Casa Branca na manhã seguinte para estar presente na conferência sobre a Irlanda do Norte. E também sabia que o agente da DSS estacionado à porta da casa se chamava Brad Heyworth e que um segundo agente se iria juntar à equipa de segurança depois de o embaixador chegar.
Ouviu a chegada de uma empregada doméstica chamada Maria, que falava com um sotaque espanhol carregado: sul-americana, calculou Delaroche — Peru, ou talvez Bolívia.
Ouviu Elizabeth Osbourne anunciar que ia correr e que regressaria dentro de uma hora. Deu um salto quando ela bateu com força com a porta da frente ao sair de casa.
Cinco minutos mais tarde, foi apanhado de sobressalto por um ruído estrondoso que parecia o roncar de um motor a jacto. O barulho era tanto, que teve de arrancar os auscultadores dos ouvidos. Por um momento, pensou que tivesse acontecido alguma calamidade à casa dos Osbourne. Depois, percebeu que era apenas Maria a passar com o aspirador perto da janela onde Delaroche tinha colocado o microfone.
O jantar dado por Douglas Cannon começou por ser pensado como uma celebração íntima para oito pessoas, mas, no rescaldo dos acontecimentos em Hartley Hall, tinha-se metamorfoseado numa grande festa para cinquenta convidados, com serviço de fornecimento de comida, mesas e cadeiras alugadas e um conjunto de rapazes universitários vestidos com casacos azuis e tendo por missão estacionar os carros nas ruas atafulhadas de viaturas de Georgetown. Era assim que funcionava a natureza da fama em Washington. Douglas tinha vivido e trabalhado na cidade durante mais de vinte anos, mas alguém tentara matá-lo e isso fazia dele uma estrela. A CIA e os serviços secretos britânicos tinham contribuído para a notoriedade repentina do embaixador ao porem a circular uma história sobre a calma de Douglas debaixo de fogo em Hartley Hall, ainda que ele estivesse aconchegado com toda a segurança na cama, em Winfield House, na altura em que o ataque se iniciou. Douglas tinha colaborado de boa vontade na intrincada ruse de guerre[38]. Afinal, retirava um certo prazer adolescente em enganar os barões dos media de Washington.
Os convidados começaram a chegar poucos minutos depois das sete da tarde. Estavam presentes dois velhos amigos de Douglas do Senado e um punhado de congressistas.
A chefe do departamento de Washington da NBC News compareceu, acompanhada pelo marido, que era o chefe de departamento da CNN. Cynthia Martin veio sozinha; Adrian Cárter trouxe a mulher, Christine. Para proteger Michael, que ainda era um membro clandestino da CIA, Cárter e Cynthia disseram que trabalhavam para o Departamento de Estado em matérias relacionadas com a Irlanda do Norte. Cárter quis falar a sós com Michael por um momento e, por isso, deslocaram-se até ao jardim e ficaram junto à piscina.
— Como é que as coisas correram com o Bristol hoje de manhã? — perguntou Cárter.
— Ele pareceu impressionado com o produto — respondeu Michael. — O Beckwith também lá apareceu um bocadinho.
— A sério?
— Disse que estava contente com o resultado da Operação Timbale e que o processo de paz tinha encarrilado outra vez. Tinhas razão, Adrian, ele quer mesmo muito que aquilo aconteça. — Michael hesitou e, a seguir, perguntou: — Então, quer dizer que a minha ligação à Irlanda do Norte terminou oficialmente?
— Quando as delegações abandonarem Washington, vamos passar tudo para a Cynthia e transferir-te de novo para a divisão do Médio Oriente.
— Se há alguma coisa que é constante na CIA, é a mudança — respondeu Michael. — Mas gostava de saber à mesma porque é que a Mónica resolveu baralhar as cartas nesta altura e porque é que quer que eu saia do caso Outubro.
— Para a Mónica, o processo Outubro está fechado. Ela acha que, mesmo que o Outubro continue vivo e a trabalhar, não constitui uma ameaça para cidadãos ou interesses americanos e que, por isso, não entra na esfera de actuação do centro.
— E tu concordas?
— Claro que não e já lhe disse isso mesmo. Mas ela é a directora e, em última análise, é ela que decide quais são os nossos alvos.
— Na tua posição, um homem a sério demitir-se-ia.
— Nem todos têm a flexibilidade financeira para poder assumir posições morais de coragem, Michael.
Elizabeth apareceu junto às portas envidraçadas.
— Vocês os dois importam-se de entrar, por favor? — disse. — Até parece que nunca têm uma oportunidade para conversar.
— Já aparecemos daqui a um minuto — respondeu Michael.
— Só mais outra coisa — disse Adrian depois de Elizabeth se ir embora. — Soube da tua sessãozinha de retratos com o Morton Dunne na OTS no outro dia. Mas que raio se passou?
— Um cirurgião plástico chamado Maurice Leroux foi assassinado em Paris há um par de semanas.
— E?
— Estava a pensar que o Outubro pode ter mudado de cara.
— E depois teria matado o médico que lhe fez isso?
— Passou-me pela cabeça, sim.
— Ouve, Michael... a Mónica retirou-te do caso. Não quero que te armes mais em freelancer. Nada de andar a vasculhar processos, nada de operações privadas. No que te diz respeito, o Outubro está morto.
— Não estás a ameaçar-me, pois não, Adrian?
— Por acaso, até estou.
Delaroche tirou os auscultadores e acendeu um cigarro. Os imensos convidados do jantar tinham-lhe inundado o microfone de repente, de tal forma que a única coisa que ouvia era um zumbido constante, interrompido por pedaços incompreensíveis de conversas e gargalhadas ocasionais.
Desligou o gravador e tirou a Beretta de nove milímetros do estojo de aço inoxidável. Desmontou a pistola e limpou cada uma das peças meticulosamente com um pano macio, enquanto decidia como iria matar o embaixador e Michael Osbourne.
Capítulo 37
WASHINGTON
— Feliz Dia de São Patrício — declarou o presidente James Beckwith, ao subir ao pódio no Jardim das Rosas, na manhã seguinte.
Ao seu lado, tinha o primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern, e o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Robin Cook. Atrás do presidente, encontravam-se os líderes dos partidos nacionalistas e unionistas da região, incluindo Gerry Adams, do Sinn Fein, e David Trimble, do Partido Unionista do Ulster, que naquele momento era efectivamente o primeiro-ministro da Irlanda do Norte.
— Estamos hoje aqui reunidos não em crise mas sim em comemoração — prosseguiu Beckwith. — Comemoramos o legado comum que nos une e iremos renovar o nosso compromisso com uma mudança pacífica na Irlanda do Norte.
Douglas Cannon estava sentado mais à ponta, com um grupo de importantes assessores da Casa Branca e do Departamento de Estado que iriam participar nas conversações.
Juntou-se aos aplausos bem-educados.
— No mês passado, um grupo de bandidos lealistas, a auto-intitulada Brigada para a Libertação do Ulster, tentou assassinar o embaixador americano no Reino Unido, o meu velho amigo e colega, Douglas Cannon — continuou Beckwith. — Tratou-se verdadeiramente do último suspiro para aqueles que querem resolver os problemas da Irlanda do Norte com violência e não com cedências. Se alguém duvidar do nosso compromisso com a paz, peço-lhe que tenha em consideração isto: o embaixador Douglas Cannon está hoje aqui e a Brigada para a Libertação do Ulster não passa de uma má recordação.
Beckwith virou-se, sorriu para Douglas e começou a aplaudir. Gerry Adams, David Trimble, Bertie Ahern e Robin Cook fizeram o mesmo, tal como o resto da multidão ali reunida.
— Agora, se nos dão licença, temos trabalho a fazer — rematou Beckwith.
Virou as costas, afastando-se do pódio, e, com os braços abertos, conduziu os políticos até à Sala Oval, ignorando as perguntas gritadas pelo corpo de imprensa destacado para a Casa Branca.
Quando Douglas voltou para a casa na N Street ao final da tarde, Michael e Elizabeth estavam à espera dele.
— Como é que correu? — perguntou Michael.
— Melhor do que o esperado. Agora que a Brigada para a Libertação do Ulster foi neutralizada, o Gerry Adams acha que o IRA vai pensar seriamente na hipótese de desmobilizar.
— E o que quer dizer "desmobilizar"? — perguntou Elizabeth.
— Quer dizer entregar as armas e desmantelar as células terroristas e a estrutura de comando.
Michael disse:
— A CIA calcula que só o IRA tenha acumuladas centenas de toneladas de metralhadoras e duas toneladas e meia de Semtex. E depois há os grupos terroristas protestantes.
É por isso que é tão importante manter o ímpeto do processo de paz a avançar na direcção certa.
— Os protestantes e os católicos conseguiram fazer progressos assinaláveis num curto período de tempo, mas o processo de paz pode cair por terra muito facilmente.
E se isso acontecer, a violência atingirá níveis inauditos — acrescentou Douglas, olhando para o relógio. — Agora começa o divertimento. A recepção do Sinn Fein no Mayflower, a recepção do Partido Unionista do Ulster no Four Seasons e a recepção dos britânicos na embaixada.
— Mas que raio é isso? — perguntou Elizabeth enquanto troe vam de roupa para as recepções.
— É uma Browning automática de alta potência com um carregador de quinze balas.
Michael enfiou a pistola num coldre de ombro e vestiu o casaco do fato.
— E porque é que vais levar uma arma?
— Porque isso me faz sentir bem.
— O papá vai ter um agente da DSS com ele o tempo todo hoje à noite.
— Nunca se pode ser demasiado cauteloso.
— Há alguma coisa que não estejas a dizer-me?
— Só me sentirei melhor quando o teu pai estiver outra vez em Londres, rodeado por um bando de marines e agentes da Divisão Especial, que são capazes de acertar num assassino no meio dos olhos a uma distância de cem passos.
Alisou a parte da frente do casaco.
— Como é que estou?
— Encantador — respondeu ela, enfiando-se no vestido e virando-se de costas para ele. — Aperta-me o fecho. Estamos atrasados.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tirou os auscultadores. Desmontou rapidamente os monitores e os receptores e guardou-os no saco de lona. Enfiou a Beretta de nove milímetros num coldre de ombro e pôs-se à frente do espelho, examinando a sua aparência. Trazia um fato de negócios cinzento de fabrico americano, uma camisa branca e uma gravata às riscas. Preso à orelha direita, estava um fio de plástico transparente do género dos que eram utilizados pelos agentes de segurança no mundo inteiro.
Estudou a sua cara, olhando para os seus olhos, e disse: "Segurança diplomática, minha senhora. Temos uma emergência." Era o sotaque americano monótono do actor das cassetes de inglês que Delaroche tinha estudado enquanto estava no mar. Repetiu as frases mais uma série de vezes, até se sentir completamente à vontade.
Rebecca saiu da casa de banho. Trazia um fato de duas peças feito por medida e meias pretas. Delaroche passou-lhe uma Beretta carregada e dois carregadores extra, que ela enfiou numa mala preta a tiracolo.
Ele tinha deixado o Volvo na Twenty-second Street, logo a seguir à Massachusetts Avenue. Havia uma multa de estacionamento debaixo do limpa-pára-brisas. Delaroche deitou a multa para a sarjeta e pôs-se ao volante.
A limusina parou à frente do Hotel Mayflower, na Connecticut Avenue. Um porteiro de uniforme abriu a porta e Douglas, Michael, Elizabeth e um agente da DSS saíram da limusina. Entraram no hotel e seguiram pelo átrio central decorado até ao grande salão de baile. Gerry Adams avistou Douglas quando este entrou no salão e desembaraçou-se de um emaranhado de americanos de origem irlandesa, fascinados por gente famosa, que lhe desejavam felicidades.
— Obrigado por ter vindo, senhor embaixador — disse Adams no sotaque cerrado de Belfast Ocidental.
Era alto, com barba preta completa e óculos com armações de metal finas. E embora aparentasse ser robusto, sofria os efeitos duradouros de anos de prisão e de uma tentativa de assassínio pela UVF que quase lhe tinha tirado a vida.
— É uma grande honra tê-lo aqui connosco esta noite.
— Obrigado por nos receberem — respondeu Douglas educadamente, apertando a mão a Adams. — Permita-me apresentar-lhe a minha filha, Elizabeth Osbourne, e o marido, Michael Osbourne.
Adams olhou para Michael por breves instantes e apertou-lhe a mão sem entusiasmo. Quando ele e Douglas se puseram a falar por uns momentos da sessão do dia na Casa Branca, Elizabeth e Michael deram alguns passos e afastaram-se para lhes dar privacidade.
A seguir, sem aviso, Gerry Adams pousou a mão no ombro de Michael e disse:
— Importa-se que lhe dê uma palavrinha, senhor Osbourne? Lamento, mas é bastante importante.
Delaroche estacionou na esquina da Prospect Street com a Potomac Street, em Georgetown, e saiu do carro. Rebecca passou para o volante e desceu o vidro. Delaroche inclinou-se e perguntou:
— Alguma questão?
Rebecca abanou a cabeça. Delaroche entregou-lhe um envelope.
— Se alguma coisa correr mal, se me acontecer alguma coisa ou se nos separarmos, vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Virou as costas, afastando-se e entrando numa loja de sandes cheia de estudantes de Georgetown. Pediu um café e comprou um jornal, sentando-se a uma mesa junto à janela.
Um momento depois, viu Rebecca a passar a grande velocidade, seguindo para leste, em direcção à baixa de Washington.
— Por favor, sente-se, senhor Osbourne — disse Gerry Adams.
Tinha levado Michael até uma ampla sala, contígua ao grande salão de baile. O seu par de guarda-costas sempre presente afastou-se para deixar de poder ouvi-los.
Adams serviu duas chávenas de chá.
— Leite, senhor Osbourne?
— Obrigado.
— Tenho uma mensagem do seu amigo Seamus Devlin.
— O Seamus Devlin não é meu amigo — respondeu Michael de forma áspera.
Os guarda-costas olharam de soslaio para a mesa para terem a certeza de que não havia nenhum problema. Gerry Adams fez-lhes sinal com a mão para se irem embora.
— Eu sei o que aconteceu naquela noite em Belfast — disse ele. — E sei porque é que aconteceu. Nós nunca estaríamos na posição em que nos encontramos hoje, à beira de uma paz duradoura na Irlanda do Norte, se não fosse o IRA. É uma força altamente profissional, que não deve ser menosprezada. Tenha isso em conta da próxima vez que o senhor e os seus amigos britânicos tentarem colocar um informador clandestino no nosso seio.
— Pensei que tivesse uma mensagem para mim.
— Tem a ver com aquela cabra que tramou o Eamonn Dillon na Falis Road, a Rebecca Wells.
— O que é que ela tem?
— Foi para Paris depois dos acontecimentos em Hartley Hall. Adams ergueu a chávena de chá, como se estivesse a fazer um brinde, e disse:
— Que bela jogada que aquilo foi, senhor Osbourne. Michael manteve-se calado.
— Ela estava a viver em Montparnasse com um mercenário escocês chamado Roderick Campbell. Segundo o Devlin, ela e o Campbell andavam à procura de um assassino freelancer para terminar o serviço e acabar com o seu sogro.
Michael endireitou-se na cadeira.
— E a fonte é mesmo boa?
— Eu não entrei nesse tipo de pormenores com o Devlin, senhor Osbourne. Mas o senhor já viu o trabalho dele em primeira mão. Não é o tipo de homem que trate das coisas de forma ligeira.
— E onde é que está a Rebecca Wells agora?
— Foi-se embora de Paris de repente, há um par de semanas. O Devlin ainda não conseguiu apanhar-lhe o rasto outra vez.
— E o Roderick Campbell?
— Também se foi... permanentemente, lamento dizê-lo. Foi morto a tiro no seu apartamento, juntamente com uma rapariga — respondeu Adams, divertindo-se claramente por estar a dizer a Michael uma coisa que este não sabia. — Provavelmente, não apareceu nos vossos ecrãs de computador sofisticados do Centro de Contraterrorismo.
— E a Wells e o Campbell chegaram a conseguir contratar algum atirador?
— O Devlin não sabe, mas eu não baixaria já a guarda em relação ao embaixador, se é que me entende. Seria mau para toda a gente envolvida no processo de paz se um atirador ao serviço da Brigada para a Libertação do Ulster conseguisse matar o seu sogro nesta altura — afirmou Adams, pousando a chávena de chá, num sinal de que a reunião estava a chegar ao fim. — O Devlin espera que isto compense algum ressentimento que o senhor possa ter em relação ao Kevin Maguire.
— Pode dizer ao Devlin que se vá foder. Adams sorriu.
— Eu dou-lhe a mensagem.
Rebecca Wells estava sentada ao volante do Volvo, a meio quarteirão da entrada do Mayflower. Ficou a observar o embaixador Cannon e os Osbourne a saírem do hotel, seguidos pelo agente da DSS. Pôs o motor a trabalhar e depois marcou um número no telemóvel.
— Sim.
— Eles estão a sair agora do primeiro ponto de paragem e a seguirem para o segundo.
A ligação foi interrompida.
Rebecca pôs o Volvo em primeira e enfiou-se no meio do trânsito do início da noite, na Connecticut Avenue.
— E quando é que tu e o Gerry se tornaram tão bons amigos? — perguntou Elizabeth.
— Movemo-nos em círculos semelhantes.
— O que é que ele queria?
— Pediu desculpa pelo que me aconteceu em Belfast.
— E tu aceitaste?
— Nem por isso.
— E foi tudo?
— Foi tudo. Douglas disse:
— Muito bem, está na hora de atravessar o fosso religioso. Para o Four Seasons, para tomarmos bebidas com os protestantes.
— Acham que esta gente alguma vez dará recepções em conjunto? — perguntou Elizabeth.
— Se fosse a ti, não contava muito com isso — respondeu Michael.
Noventa minutos mais tarde, Rebecca Wells encontrava-se estacionada numa zona da Massachusetts Avenue revestida de árvores, em Upper Northwest Washington. Do outro lado da rua, estava o amplo complexo da embaixada britânica. Da posição privilegiada em que se encontrava, conseguia ver o pátio de entrada da residência do embaixador.
Os primeiros convidados começavam a ir-se embora.
Rebecca abriu a carta que Delaroche lhe tinha dado e leu-a à meia-luz dos candeeiros de rua. Dobrou a carta e voltou a enfiá-la no bolso. Lembrou-se daquela tarde gelada na praia, em Norfolk, a tarde em que tinha partido para a Escócia para ir buscar Gavin Spencer e as armas. Era difícil imaginar que tinha sido apenas um mês antes, tanta coisa acontecera desde então. Recordou-se da estranha sensação de serenidade que se tinha instalado nela nesse dia, ao caminhar pela praia plana e solitária.
Tinha querido ficar lá para sempre. E agora aquele homem sem passado — aquele assassino contratado que fazia amor com ela como se o corpo dela fosse feito de vidro — estava a oferecer-lhe um refúgio à beira-mar.
Levantou os olhos a tempo de ver Douglas Cannon e os Osbourne a saírem da residência do embaixador britânico. Uma vez mais, marcou o número no telemóvel e esperou pela voz do homem que conhecia apenas como Jean-Paul.
Delaroche interrompeu a ligação com Rebecca Wells e saiu da loja de sandes. Caminhou rapidamente para norte, ao longo da Potomac Street, até chegar à N Street. A casa dos Osbourne ficava a dois quarteirões dali. Passou a andar mais devagar, passeando-se pela rua sossegada, procurando instintivamente sinais de medidas de segurança extra.
Tinha de cronometrar a sua chegada de forma perfeita. O agente da DSS que acompanhava Douglas Cannon iria contactar a equipa dele via rádio, alertando-os em relação à chegada iminente do embaixador. Se não recebesse resposta, iria suspeitar que houvesse algum problema. E era por isso que Delaroche se demorava a avançar pela N Street.
Avistou a equipa de agentes da DSS, sentados num carro estacionado em frente à casa dos Osbourne, com os vidros da frente abertos. Um deles, o que se encontrava ao volante, estava a falar por um rádio portátil. Delaroche partiu do princípio de que estaria a falar com o agente na limusina do embaixador.
Delaroche aproximou-se do carro e parou junto à janela do lado do condutor.
— Peço desculpa — disse ele —, para que lado é que fica a Wis-consin Avenue?
O agente ao volante apontou para leste sem dizer uma palavra.
— Obrigado — disse Delaroche.
A seguir, enfiou a mão por baixo da gabardina, sacou da Beretta com silenciador e atingiu cada um dos agentes com vários tiros no peito. Abriu a porta e empurrou os corpos para baixo. Subiu os vidros automáticos, tirou as chaves da ignição, fechou a porta e trancou-a.
Tudo aquilo tinha demorado menos de trinta segundos. Atirou as chaves do carro para o meio da escuridão e atravessou a rua, em direcção à casa dos Osbourne. Subiu os degraus da frente e tocou à campainha, respirando fundo para acalmar os nervos. Passado um momento, ouviu o som de passos a aproximarem-se da porta.
— Quem está aí?
Era a voz com sotaque inglês de Maggie, a ama.
— Segurança diplomática, minha senhora. Receio que tenhamos uma emergência.
A porta abriu-se e Maggie ficou ali parada, com a desorientação estampada no rosto.
— Que aconteceu?
Delaroche entrou na casa e fechou a porta. Tapou a boca a Maggie com uma mão de ferro, abafando o seu grito, e puxou-lhe a cara para junto da sua. Com a mão que tinha livre, tirou a Beretta de dentro do casaco do fato e encostou-lhe a ponta do silenciador com força à bochecha.
— Eu sei que há crianças nesta casa e não quero fazer-lhes mal — sussurrou no seu inglês com sotaque. — Mas se tu não fizeres exactamente o que eu disser, dou-te um tiro na cara. Estás a perceber?
Maggie assentiu com a cabeça, com os olhos esbugalhados de terror.
— Muito bem, vem comigo lá para cima.
A noite tinha decorrido sem incidentes, tal como Michael esperara, mas à medida que a limusina avançava a alta velocidade pela Massachusetts Avenue, o aviso de Gerry Adams ecoou-lhe nos ouvidos. No caso de Rebecca Wells ter conseguido contratar um assassino, isso constituía um novo e diferente tipo de ameaça à segurança de Douglas.
Um assassino a trabalhar sozinho seria muito mais difícil de identificar e travar do que um membro de uma organização paramilitar conhecida. Michael decidiu dar a notícia a Douglas quando chegassem a casa. As actividades e aparições dele em Londres teriam de ser restringidas até que a ameaça se esfumasse — ou até que Rebecca Wells fosse presa.
A limusina virou para a Wisconsin Avenue e eles seguiram para sul, a caminho de Georgetown. Elizabeth encostou a cabeça ao ombro de Michael e fechou os olhos.
Douglas pousou a mão no antebraço de Michael e disse:
— Sabes, Michael, há uma coisa que eu nunca fiz e que preciso de fazer agora. Nunca te agradeci.
— Do que é que está a falar?
— Nunca te agradeci por me teres salvo a vida. Se não tivesses aceitado o caso, ido até à Irlanda do Norte e arriscado a vida, eu era bem capaz de estar neste momento morto. Evidentemente, nunca tinha tido uma oportunidade para te ver a fazer o teu trabalho. És um agente secreto soberbo.
— Obrigado, Douglas. Vindo de um velho liberal antiespiões, isso significa muito para mim.
— E vais continuar na CIA, agora que a questão da Irlanda do Norte está terminada?
— Se a minha mulher prometer não se divorciar de mim — respondeu Michael. — A Mónica Tyler quer que eu me ocupe novamente do caso Espada de Gaza. A CIA anda a apanhar alguns indícios de que o grupo pode estar a planear novos ataques.
— Que tipo de indícios?
— Movimentações de agentes activos conhecidos, intercepções de comunicações. Esse tipo de coisas.
— Alguma coisa na Grã-Bretanha?
— O Reino Unido é sempre uma possibilidade. Eles gostam de actuar lá.
— Eu lembro-me do ataque em Heathrow.
— Eu também — disse Michael.
Douglas recostou-se e fechou os olhos no momento em que a limusina saiu da Wisconsin Avenue e começou a atravessar as sossegadas ruas residenciais de Georgetown.
— Quando é que isto vai acabar? — perguntou ele.
— Quando é que vai acabar o quê?
— O terrorismo. O roubo de vidas inocentes para a tomada de posições políticas. Quando é que isso vai acabar?
— Quando já não houver mais pessoas no mundo que se sintam suficientemente oprimidas para pegarem numa pistola ou numa bomba. Quando já não houver mais fanáticos religiosos ou étnicos. Quando já não houver mais maníacos que se divirtam a derramar sangue.
— Então, suponho que a resposta à minha pergunta seja nunca. Nunca vai acabar.
— O senhor é que é o historiador. No século i, os zelotes serviram-se do terrorismo para combater a ocupação romana da Terra Prometida. No século XII, um grupo de muçulmanos xiitas chamado os Assassinos serviu-se do terrorismo contra os líderes sunitas do Irão. Não se pode propriamente dizer que seja um fenómeno novo.
— E agora chegou à América: o World Trade Center, Oklahoma City, o Olympic Park.
— É barato, relativamente fácil e só é preciso um punhado de pessoas dedicadas. Dois homens chamados Timothy McVeigh e Terry Nichols[39] provaram isso.
— Continua a ser incompreensível para mim — respondeu Douglas. — Cento e sessenta e oito pessoas mortas num abrir e fechar de olhos.
— Muito bem, vocês os dois — interrompeu Elizabeth, abrindo os olhos quando a limusina travou e parou à frente da casa. — Já chega dessa conversa. Estão a deprimir-me.
Delaroche estava no segundo andar da casa, junto a uma janela com vista para a N Street, quando ouviu o barulho de um carro. Afastou a cortina com o silenciador da Beretta e espreitou para a rua. Era Cannon e os Osbourne que estavam a chegar a casa.
Largou a cortina e atravessou o corredor até às escadas, olhando de relance para o quarto principal ao passar pela porta. A ama estava deitada no chão, com as mãos e os pés amarrados e a boca tapada com fita adesiva.
Delaroche desceu as escadas rapidamente e ficou parado no átrio central às escuras. Iria ser tão fácil, pensou — como um jogo de tiro ao alvo numa feira popular — e depois estaria terminado. Tudo aquilo.
Capítulo 38
WASHINGTON
Rebecca Wells virou para a N Street e seguiu a limusina ao longo de dois quarteirões até ela parar. Não havia lugar em frente à casa dos Osbourne, pelo que o motorista estacionou pura e simplesmente no meio da rua e ligou os quatro piscas. Rebecca enfiou a mão na mala a tiracolo e tirou a Beretta de nove milímetros com silenciador.
As ordens de Jean-Paul ecoaram-lhe pela cabeça. Eu trato dos dois homens que estão no carro e depois entro na casa, tinha-lhe dito na noite anterior, a falar baixinho no quarto de hotel de ambos, com a televisão aos altos berros. Espera até que eles saiam todos da limusina. Matas o último homem da DSS e eu trato do embaixador e do Michael Osbourne.
Interrogou-se se teria ou não a força para o fazer. E depois pensou em Gavin Spencer e em Kyle Blake, e em todos os homens que tinham morrido em Hartley Hall por Michael Osbourne e o sogro a terem enganado. Verificou o mecanismo do gatilho da Beretta e enfiou a primeira bala na câmara.
Uma das portas da limusina abriu-se e o agente da DSS saiu do carro. Deu a volta à limusina e abriu a porta de trás que dava para a casa dos Osbourne. Michael Osbourne foi o primeiro a sair. Deu uma vista de olhos à rua, fixando-se no Volvo por um instante, antes de avançar. O embaixador saiu da limusina, seguido por Elizabeth Osbourne.
Rebecca abriu a porta do Volvo.
Michael virou-se para o homem da DSS e perguntou:
— Onde é que estão os outros agentes?
O agente da DSS levou a mão à boca e murmurou umas quantas palavras. Quando não recebeu resposta, gritou:
— Voltem para dentro do carro! Já!
Foi então que Rebecca Wells saiu do Volvo. Levantou-se e, com os braços apoiados no tejadilho do carro, começou a disparar contra o agente da DSS — um tiro a seguir ao outro, tal como Jean-Paul lhe tinha dito.
Michael não ouviu os tiros, apenas o vidro da janela de trás da limusina a estilhaçar-se e as balas de nove milímetros a perfurarem a bagageira com um baque. Em vez de obedecer às instruções do agente e de entrarem no carro, Michael, Elizabeth e Douglas tinham-se atirado instintivamente para o chão da N Street.
Michael suspeitara que pudesse haver alguma coisa de errado em relação à mulher na carrinha Volvo, mas tinha demorado demasiado tempo até colocar a hipótese de poder ser de facto Rebecca Wells. Naquele momento, debruçado sobre Elizabeth e Douglas, os últimos segundos de vida do agente da DSS, que agora se encontrava morto, passaram-lhe a correr pela mente. O agente tinha tentado comunicar com os outros homens mas não tinha conseguido. E isso acontecera porque alguém já os tinha matado, pensou Michael.
A seguir, lembrou-se das informações que Gerry Adams lhe tinha dado nessa mesma noite. Rebecca Wells andara à procura de um assassino profissional para matar Douglas.
O seu assassino contratado estava provavelmente algures perto dali.
Michael sacou da Browning automática. O motorista continuava ao volante da limusina, agachado por baixo do banco para se proteger. Michael agarrou em Elizabeth e Douglas e gritou:
— Enfiem-se no carro!
Elizabeth rastejou até ao banco de trás. Um dos disparos atingiu o homem da DSS na cabeça, fazendo uma torrente de sangue e tecido cerebral atravessar a janela traseira estilhaçada. Elizabeth olhou para Michael com uma expressão de impotência e tentou limpar o sangue que tinha na cara.
Foi então que os olhos dela se esbugalharam repentinamente e gritou:
— Michael! Atrás de ti!
Michael virou-se e viu uma figura, parada no cimo dos degraus encurvados que davam para a entrada da casa. O homem levantou o braço direito, balançando-o, e disparou com uma só mão duas vezes, sem que a arma com silenciador emitisse qualquer som, apenas uma língua de fogo saída da ponta do cano da pistola.
Mesmo com a luz ténue de Georgetown, Michael sabia que já tinha visto aquela maneira muito característica de manejar uma arma.
O homem que se encontrava nos degraus da frente da sua casa era Outubro.
O primeiro tiro fez ricochete no tejadilho do carro e o segundo acertou nas costas de Douglas quando este se atirava para dentro do carro, caindo em cima de Elizabeth, gemendo de dor.
Michael apontou a arma a Outubro e disparou vários tiros, forçando-o a recuar para dentro de casa. Na rua sossegada, a Browning de alta potência soava a artilharia.
— Avance! Avance! — gritou ao motorista. — Tire-os daqui para fora!
O motorista sentou-se no banco e ligou o motor, acelerando a fundo.
A última coisa que Michael viu foi Elizabeth, a gritar pela janela traseira estilhaçada.
— As crianças, Michael! — berrou. — As crianças!
Michael mergulhou entre dois carros estacionados, num sítio em que se encontrava protegido tanto de Rebecca Wells como de Outubro, pelo menos por alguns segundos.
Espreitou para cima, na direcção da entrada da casa, e viu Outubro a sair. Michael apontou a Browning e disparou vários tiros. Outubro voltou a refugiar-se no interior.
Foi então que os vidros das janelas dos carros à sua volta começaram a estilhaçar-se. A mulher estava a disparar contra ele.
Tinham-se acendido luzes por toda a rua. Michael virou-se e viu Rebecca Wells, de pé atrás da porta aberta da carrinha Volvo, a disparar sobre o tejadilho. Rodopiou e pensou em retribuir o fogo. Mas apercebeu-se de que, se falhasse, uma bala perdida poderia entrar numa das casas em redor e matar uma pessoa inocente que tivesse saído à rua para ver o que se passava.
Apontou para a própria casa. Pensou: "Meu Deus, faz com que as crianças estejam lá em cima, no quarto delas!" E, a seguir, disparou contra Outubro até ficar sem munições na arma.
Michael ouviu a primeira sirene no momento em que estava a mudar de carregador. Talvez tivesse sido o tiroteio, pensou. Ou talvez o homem da DSS tivesse conseguido enviar um alerta antes de ser morto. Fosse qual fosse o caso, Michael conseguia ouvir agora o uivar de várias sirenes que se aproximavam, progressivamente mais forte a cada segundo que passava.
Outubro surgiu à entrada da casa, acenando a Rebecca.
— Vai! — gritou. — Vai-te embora daqui!
O primeiro carro da polícia apareceu na N Street.
Outubro disparou dois tiros contra o carro sem fazer pontaria.
— Agora, Rebecca! Sai daqui!
Michael enfiou a primeira bala do seu novo carregador na câmara e disparou quatro tiros contra Outubro.
Quando isso aconteceu, Rebecca Wells entrou no Volvo e ligou o motor, acelerando a fundo e passando a toda a velocidade pelo local onde Michael se tinha abrigado.
Outubro avançou para a entrada uma última vez e disparou vários tiros na direcção de Michael, dando depois meia-volta e fugindo para dentro da casa.
Michael levantou-se e foi atrás dele, subindo os degraus pesadamente, com a Browning nas mãos esticadas. Quando chegou à entrada, espreitou pelo átrio central às escuras e viu Outubro a erguer uma cadeira e a lançá-la pelas portas envidraçadas.
Outubro virou-se uma última vez e levantou a arma. Michael não ouviu nada, mas viu a boca do cano a expelir fogo. Encostou-se à parte exterior da casa; do outro lado da parede, conseguia sentir as balas a baterem com toda a força no estuque. Quando os disparos pararam, avançou para a entrada e disparou mais três tiros ao mesmo tempo que Outubro corria pelo jardim e trepava a vedação.
Michael correu para o andar de cima, em direcção ao quarto das crianças, e deu com elas a chorarem nos berços, ilesas.
— Maggie!
Ouviu ruídos surdos vindos do quarto principal, bem como gritos abafados. Correu pelo corredor e acendeu as luzes do quarto. Maggie estava deitada no chão, amarrada e amordaçada.
— Só havia um, Maggie? Só um atirador? Ela confirmou com a cabeça.
— Eu volto já.
Correu pelas escadas abaixo precisamente na altura em que um agente da polícia metropolitana entrava na casa, de arma em riste. Apontou a arma na direcção de Michael e gritou:
— Pare imediatamente e largue a arma!
— O meu nome é Michael Osbourne e esta é a minha casa.
— Eu não quero saber quem você é, foda-se! Largue mas é a arma! Já!
— Porra, sou o genro do embaixador Cannon e trabalho para a CIA! Baixe a merda da arma!
O polícia manteve a arma apontada à cabeça de Michael.
— O meu sogro foi atingido — disse Michael. — Os dois atiradores fugiram: um homem, a pé, e uma mulher, numa carrinha Volvo preta. Os meus filhos estão lá em cima com a ama. Vá ajudá-la. Eu volto já.
— Eh, volte aqui! — gritou o polícia quando Michael desatou a correr pelo átrio central e desapareceu ao passar pelas portas envidraçadas estilhaçadas.
Delaroche não tinha vindo até Washington para se envolver num tiroteio com Michael Osbourne. Qualquer um podia ser atingido quando havia balas a voar por um espaço pequeno e Delaroche não estava disposto a trocar a sua vida pela de Osbourne. Além disso, tinha atingido o alvo principal, o embaixador Cannon, com um bom tiro nas costas. Com um bocadinho de sorte, o ferimento iria revelar-se fatal. Ainda assim, sentia-se zangado por não ter sido capaz de matar Osbourne mais uma vez.
Despiu a gabardina castanho-clara enquanto corria pela viela. Quando chegou à Thirty-fourth Street, atravessou-se imediatamente no caminho de um carro que avançava pela rua, um Saab cinzento-claro com um estudante universitário ao volante. Delaroche levantou a Beretta e apontou-a ao pára-brisas.
— Sai do carro, caralho!
O estudante saiu com as mãos no ar e afastou-se.
— Leva-o, cabrão. É teu.
— Corre — disse Delaroche, agitando a Beretta, e o estudante começou a correr.
Delaroche pôs-se ao volante. O estudante universitário gritou:
— Vai-te foder, minha besta de merda!
Delaroche arrancou. Sabia que tinha de sair de Georgetown depressa. Seguiu a grande velocidade pela Thirty-fourth Street, em direcção à M Street. Se conseguisse atravessar a Francis Scott Key Bridge e passar para Arlington, as suas hipóteses de escapar aumentariam exponencialmente. Dali, poderia enfiar-se na George Washington Memorial Parkway, na 1-395, ou na 1-66, e pôr-se a quilómetros de Washington numa questão de minutos.
Na M Street, o semáforo passou de verde para vermelho quando Delaroche se aproximava. Um sinal avisava que era proibido virar À direita com o sinal vermelho. Pensou em passar à mesma com o sinal vermelho, mas manter a calma durante as fugas tinha-lhe sido proveitoso no passado e, por isso, resolveu não agir de forma precipitada naquele momento.
Pisou o travão a fundo até parar.
Olhou para o relógio de pulso e contou os segundos.
Quando Michael Osbourne saltou a vedação e foi dar à viela, ouviu um homem a gritar obscenidades. Uma fracção de segundo depois, ouviu o som de pneus a chiarem e o motor de um pequeno carro a trabalhar. Pelo barulho, calculou que o carro estivesse a dirigir-se para a M Street. E também calculou que era Outubro a tentar escapar.
Correu pela Thirty-third Street até à M Street, virou à direita e continuou a correr.
Delaroche avistou Osbourne a correr pela M Street com a arma na mão, pondo em fuga os assustados peões. Virou-se lentamente e olhou em frente, aguardando que o sinal ficasse verde.
A Beretta estava pousada no banco do passageiro. Delaroche apertou a coronha com a mão direita e pôs o dedo no gatilho. Pensou: "Afinal de contas, talvez até tenha oportunidade de cumprir os termos do contrato."
Osbourne chegou ao cruzamento. Ficou parado na passadeira, mesmo à frente do Saab, com a arma na mão, a olhar fixamente pela Thirty-fourth Street acima. Estava a respirar com dificuldade, com os olhos a moverem-se rapidamente para um lado e para o outro.
Delaroche levantou a Beretta devagar e pousou-a no colo. Pensou em disparar contra Osbourne através do pára-brisas mas resolveu não o fazer. Mesmo que conseguisse acertar, ficaria com um carro danificado para a sua fuga. Esticou a mão esquerda e carregou num botão no apoio de braço, fazendo com que o vidro da sua janela descesse no momento em que o sinal ficou verde.
Vários carros tinham parado atrás de si e os condutores começaram a buzinar, sem se aperceberem de que havia um homem com uma arma parado no meio do cruzamento.
Delaroche não se mexeu, à espera que Osbourne fizesse alguma coisa.
Michael ficou parado no cruzamento, com o coração aos saltos, ignorando a cacofonia de buzinas. Inspeccionou as caras que se encontravam dentro de cada carro: um homem com quarenta e tal anos, de fato e gravata, num Saab cinzento-claro, um par de estudantes ricos num BMW vermelho, dois aristocratas de Georgetown num espectacular Mercedes a diesel e um moço de entregas da Pizza Hut.
Estava toda a gente a buzinar menos o homem do Saab. Michael olhou para ele com atenção. Era bastante feio: bochechas pesadas, um queixo rombo, um nariz largo e achatado. Michael já tinha visto aquela cara algures, mas não conseguia perceber onde. Olhou fixamente para ele enquanto os rostos do seu passado lhe surgiam na cabeça, um por um, como imagens num ecrã, algumas nítidas e definidas, outras desfocadas e cheias de riscos.
Foi então que percebeu onde já tinha visto aquele homem — no ecrã do computador de Morton Dunne, na OTS.
Michael apontou a Browning à cara de Outubro.
— Sai do carro! Já!
Capítulo 50
WASHINGTON
O amplo cruzamento no início da Key Bridge é um dos mais congestionados e caóticos em toda a Washington. Os carros que vêm da imponente ponte, da M Street e da Whitehurst Freeway convergem todos no mesmo ponto. Durante as horas de ponta, de manhã e à tarde, o cruzamento fica entupido de trânsito. A noite, fica cheio de carros que afluem em catadupa para os restaurantes e clubes nocturnos de Georgetown. E, por cima de tudo isso, encontram-se os degraus de pedra pretos tornados célebres por O Exorcista — tristes, cobertos de graffiti e a tresandarem a urina por causa dos estudantes de Georgetown embriagados que acham que urinar ali é um ritual de passagem.
No entanto, nada disso passou pela cabeça de Delaroche enquanto se encontrava sentado ao volante do Saab, a olhar fixamente para o cano da Brouming automática de Michael Osbourne. Quando este o mandou sair do carro, Delaroche carregou a fundo no acelerador e inclinou-se para baixo.
Michael disparou vários tiros no momento em que o carro avançou de rompante.
Desviou-se do caminho, atirando-se para o chão, com o Saab a deslocar-se para o cruzamento com grande rapidez. Delaroche sentou-se direito, readquiriu o controlo da viatura e avançou a toda a velocidade, a caminho da entrada da Key Bridge.
Michael desviou-se, rebolando, do carro que vinha na sua direcção e levantou-se, apoiado num joelho. Fez pontaria para a traseira do Saab enquanto este se afastava velozmente, abstraindo-se do buzinar ensurdecedor dos carros.
Sobravam-lhe oito balas na Browning e nenhum carregador extra.
Disparou todos os oito tiros antes que Delaroche pudesse virar para a ponte.
Sete atravessaram a bagageira e alojaram-se no banco de trás.
O oitavo acertou no depósito de gasolina e o Saab explodiu.
Delaroche ouviu a explosão e sentiu instantaneamente o calor da gasolina a incendiar-se. Os carros travaram a fundo à sua volta. Um rapaz com uma camisola dos Redskins correu para ajudar Delaroche. Delaroche apontou-lhe a Beretta à cabeça e o rapaz da camisola fugiu na direcção do Francis Scott Key Park.
Delaroche saltou para fora do carro e viu Michael Osbourne a correr em direcção a si.
Levantou a Beretta e disparou três vezes.
Michael Osbourne atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um carro estacionado.
Delaroche começou a correr para a Key Bridge, mas um carro, aparentemente sem consciência do veículo em chamas no meio do cruzamento, avançou na sua direcção a grande velocidade. Delaroche saltou mesmo antes de ser atingido e rebolou pelo pára-brisas.
Largou a Beretta e esta foi cair com estrépito no meio dos carros que se aproximavam.
Olhou para cima e viu Michael Osbourne a correr para si. Levantou-se e tentou correr, mas o tornozelo direito cedeu e ele caiu desamparado no asfalto.
Conseguiu erguer-se com grande custo e obrigou-se a avançar. O tornozelo doía-lhe tanto que parecia ter vidro partido por baixo da pele. Conseguiu chegar ao passeio da Key Bridge.
Um homem estava lá especado, a observar a cena, segurando o guiador de uma bicicleta de montanha de má qualidade.
Delaroche deu um murro na garganta do homem e ficou-lhe com a bicicleta.
Subiu para o selim e tentou pedalar, mas quando fez força com a perna direita a dor fê-lo gritar. Pedalou com uma perna, a perna esquerda, enquanto a direita se limitava a subir e descer com a rotação dos pedais.
Virou-se e olhou por cima do ombro. Michael Osbourne ia a correr na sua direcção. Delaroche pedalou mais depressa, mas, entre o tornozelo partido e a fraca qualidade da bicicleta, Osbourne estava a ganhar-lhe terreno. Delaroche sentiu-se completamente indefeso. Não tinha nenhuma arma e apenas uma bicicleta manhosa como transporte.
E, para piorar as coisas, estava magoado.
Mais do que qualquer outra coisa, sentiu uma raiva súbita — raiva do pai e de Vladimir, e de todos os outros do KGB que o tinham condenado a uma vida de assassínios.
Raiva de si próprio, por ter permitido que o Director o forçasse a aceitar aquela missão. Raiva de si próprio, por não ter sido capaz de matar Michael Osbourne uma vez mais. Pôs-se a pensar como teria Osbourne percebido que era ele que se encontrava ao volante do Saab. Teria sido atraiçoado por Maurice Leroux antes de o matar naquela noite em Paris? Teria sido atraiçoado pelo Director? Ou teria subestimado uma vez mais a inteligência e o engenho do homem da CIA, o homem que tinha jurado destruí-lo? Que tudo fosse acabar assim — com Delaroche numa bicicleta a ranger e Osbourne a persegui-lo a pé — era quase risível. Apercebeu-se de que, mesmo que fosse capaz de escapar a Osbourne naquele momento, as suas hipóteses de conseguir ir muito longe iam diminuindo a cada minuto.
Virou-se e olhou uma vez mais por cima do ombro, vendo que Osbourne tinha ganho mais terreno. Forçou-se a pedalar com ambas as pernas, ignorando a dor no tornozelo, enquanto decidia aquilo que estava disposto a fazer para sair daquela ponte vivo.
Michael voltou a enfiar a Browning no coldre de ombro e correu a toda a velocidade pela ponte fora, impulsionando os braços para trás e para a frente com o máximo de força. Por um instante, foi transportado de regresso à final da milha urbana do estado da Virgínia. Michael tinha feito uma jogada táctica brilhante durante a última volta, colocando-se numa posição perfeita para ultrapassar o líder da corrida nos últimos cem metros, mas quando chegaram à recta final não tivera a coragem para aguentar a dor necessária para vencer. Tinha ficado literalmente hipnotizado com as costas do outro rapaz — o esvoaçar da camisola ao vento, os músculos robustos dos ombros —, à medida que este se afastava cada vez mais até cortar a meta. E recordou-se do pai, tão furioso por ele ter perdido que nem sequer o tinha querido consolar a seguir à corrida.
Já só estava a dez metros de Outubro.
Tinha corrido praticamente um quilómetro e meio desde que saíra disparado de casa. Sentia as pernas pesadas e os músculos retesados do sprint prolongado. Os braços ardiam-lhe e a garganta sabia a ferrugem e a sangue por abrir a boca para tentar respirar. Andava a perseguir Outubro há anos, socorrendo-se de todos os recursos e serviços técnicos que a CIA tinha para oferecer, mas tudo se tinha resumido àquilo, uma corrida desenfreada pela Key Bridge. Desta vez, não iria ter medo da dor.
Desta vez, não iria ficar hipnotizado com as costas do adversário, a afastar-se cada vez mais. Inclinou a cabeça para trás e rugiu como um animal ferido, esbracejando com o máximo de força no ar, como se estivesse a tentar empurrar-se para a frente.
Outubro já se encontrava apenas a um ou dois metros de distância.
Michael deu um salto e atirou-o ao chão com toda a força.
Outubro aterrou de costas, com Michael em cima dele, sentado no seu abdómen.
Deu-lhe dois murros na cara, com o segundo soco a deixar uma ferida bem no alto da maçã do rosto de Delaroche, e depois agarrou-se à garganta dele com as duas mãos e começou a estrangulá-lo.
Tinha perdido toda a noção de razão e sanidade. Estava a apertar o pescoço a Delaroche, esmagando-lhe a traqueia, gritando com ele selvaticamente, e, no entanto, uma estranha calma tinha invadido o rosto do assassino. Os olhos azuis percorriam rapidamente Michael e um meio sorriso vago despontou-lhe nos lábios.
Michael percebeu que Outubro estava a decidir qual seria a melhor maneira de o matar. Apertou com mais força.
Outubro esticou-se repentinamente e agarrou o cabelo de Michael com a mão esquerda. Puxou a cabeça de Michael para si e enfiou-lhe o polegar da mão direita na órbita do olho.
Michael gritou de dor e afrouxou a pressão no pescoço de Outubro. O assassino transformou as mãos em machados e atingiu-o duas vezes seguidas nas têmporas.
Michael quase perdeu os sentidos. Abanou a cabeça, tentando aclarar a visão, e depois apercebeu-se de que estava deitado de costas e que o assassino lhe tinha escapado.
Esforçou-se para se levantar. Outubro já estava em pé, com os pés afastados, as mãos junto à cara e os olhos fixados nos de Michael. Rodou e acertou-lhe com um violento pontapé rotativo na cabeça, atingindo-a de lado.
Michael cambaleou do passeio até à estrada na ponte, atravessando-se no caminho de um autocarro que seguia a alta velocidade. O motorista buzinou com toda a força.
Michael afastou-se com um pulo, caindo directamente nos braços de Outubro.
O assassino agachou-se e, servindo-se do ímpeto de Michael, atirou-o por cima do parapeito da ponte.
Delaroche esperou pelo som do corpo de Michael a bater na água a uns cem metros de distância, mas não se ouviu nada. Deu um passo em frente e olhou para baixo. Ao cair, Michael tinha conseguido agarrar-se à parte de baixo do parapeito com uma mão e encontrava-se naquele momento a balançar sobre a água. Olhou para cima, com sangue na boca, e fitou Delaroche.
O mais fácil de fazer seria pisar-lhe a mão até ele ter de largar o parapeito, mas, por alguma razão, a ideia parecia repugnante a Delaroche. Tinha matado sempre silenciosa e rapidamente, surgindo do nada e desaparecendo outra vez. Matar um homem daquela maneira parecia-lhe, de alguma forma, bárbaro.
Inclinou-se e disse:
— Deixa-me ir e eu ajudo-te.
— Vai-te foder — respondeu-lhe Michael, com um esgar de dor.
— Isso não é lá muito sensato da tua parte — lançou Delaroche, esticando-se pelo parapeito e agarrando no pulso esquerdo de Michael. — Estica-te e agarra-te à minha mão.
A mão de Michael estava a começar a escorregar da ponte.
— Tu acabaste de matar o meu sogro — respondeu. — Tentaste matar-me a mim e à minha mulher. Mataste a Sarah.
— Eu não os matei, Michael. Foram outras pessoas que os mataram. Eu fui só a arma. Sou tão responsável pelas mortes deles como tu és pela morte da Astrid Vogel.
— Quem é que te contratou? — perguntou Michael asperamente.
— Não interessa.
— Interessa-me a mim! Quem é que te contratou?
Mas a mão de Michael começava a soltar-se cada vez mais.
Delaroche agarrou-lhe o braço esquerdo com as duas mãos.
Michael enfiou a mão direita dentro do casaco, sacou a Bronming e apontou-a à cabeça de Delaroche. Delaroche continuou a segurar a mão de Michael, olhando fixamente para a pistola. A seguir, sorriu e perguntou:
— Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo? Michael conhecia a parábola; qualquer pessoa que já tivesse vivido ou trabalhado no Médio Oriente conhecia-a. Uma rã e um escorpião encontram-se numa das margens do Nilo e o escorpião pede à rã para o transportar até à outra margem.
A rã recusa-se, pois tem medo que o escorpião lhe dê uma ferroada. O escorpião assegura à rã que não lhe dará uma ferroada; fazê-lo seria uma tolice, já que assim ambos se afogariam. A rã reconhece a lógica dessa afirmação e aceita levar o escorpião até à outra margem. Quando chegam a meio do rio, o escorpião dá uma ferroada à rã. "Mas agora vamos os dois afogar-nos", grita a rã, com o corpo a ficar dormente devido ao veneno do escorpião. "Porque é que fizeste isso?" O escorpião sorri e responde: "Porque isto é o Médio Oriente."
— Eu conheço a história — respondeu Michael.
— Nós andamos os dois embrenhados neste conflito há demasiados anos. Talvez possamos ajudar-nos um ao outro. Afinal de contas, a vingança é para os selvagens. Sei que estiveste há pouco tempo na Irlanda do Norte. Vê só o que é que a vingança fez por esse sítio.
— O que é que tu queres?
— Digo-te aquilo que tu mais queres saber: quem é que me contratou para matar o Douglas Cannon, quem é que me contratou para matar os conspiradores do caso da TransAtlantic, quem é que me contratou para te matar a ti por saberes demasiado. — Fez uma pausa. — E também te digo quem é a pessoa dentro da tua organização que está envolvida com essa gente. Em troca, tu forneces-me protecção e permites que eu tenha acesso às minhas contas bancárias.
— Eu não tenho a autoridade para fazer um acordo desses.
— Talvez não a autoridade, mas tens a capacidade. Michael ficou calado.
Delaroche perguntou:
— Não queres morrer sem saber a verdade, pois não, Michael?
— Vai-te foder!
— Temos um acordo?
— E como é que tu sabes que eu não te prendo assim que me puxares para cima?
— Porque, infelizmente, tu és um homem honrado, o que te torna estranhamente inadequado para uma actividade destas.
Delaroche sacudiu Michael e repetiu:
— Temos um acordo?
— Temos um acordo, meu grandessíssimo cabrão.
— Então, pronto. Deita a pistola para o rio e agarra a minha mão antes que faças com que morramos os dois.
Capítulo 40
WASHINGTON
AEROPORTO INTERNACIONAL DE DULLES
— A bala partiu várias costelas do embaixador Cannon e fez com que o pulmão esquerdo parasse de funcionar — disse o médico do George Washington University Hospital, um cirurgião de aspecto absurdamente jovem chamado Carlisle. — Mas, a não ser que sofra quaisquer complicações graves, penso que vai ficar bom.
— Posso vê-lo? — perguntou Elizabeth. Carlisle abanou a cabeça.
— Ele agora está no recobro e, sinceramente, não está com grande aspecto. Porque é que não fica aqui e tenta pôr-se o mais confortável possível? Nós deixamo-la vê-lo assim que ele acordar.
O médico foi-se embora. Elizabeth tentou sentar-se, mas, passados poucos minutos, já se encontrava outra vez a percorrer de um lado para o outro a pequena sala de espera privada. Dois agentes da polícia metropolitana estavam de guarda do lado de fora da sala. Ela trazia um conjunto azul de roupa de bloco operatório, pois tinha ficado com o vestido manchado com o sangue do pai e do agente da DSS. Maggie e as crianças estavam numa sala à parte. Maggie era formidável, pensou Elizabeth. Tinha sido ameaçada por um assassino e amarrada com fita adesiva, mas recusara-se a deixar que as enfermeiras tomassem conta de Liza e Jake. Agora, Elizabeth precisava apenas de uma coisa. Precisava de ouvir a voz do marido.
Tinha passado mais de uma hora desde a arrepiante fuga de Elizabeth da N Street. A polícia informara-a do que sabia. Quando as primeiras viaturas chegaram ao local, os terroristas tinham fugido e Mi-chael estava vivo. Depois, desapareceu pelo jardim das traseiras e ninguém o tinha visto desde então. Dois minutos mais tarde, ocorreu um tiroteio na Key Bridge, do lado de Georgetown, e um carro explodiu. O carro, um Saab castanho-claro, fora roubado momentos antes por um homem com uma pistola com silenciador. E também tinha havido relatos de dois homens a lutarem na ponte. Um homem pendurado na ponte, a balançar-se sobre a água... Elizabeth fechou os olhos e estremeceu. Pensou: "Michael, se estás vivo, diz-me, por favor."
Eram onze da noite. Ligou a televisão e fez apping pelos vários canais. A história estava por todo o lado — nas estações televisivas locais e em todos os canais de informação por cabo. Ninguém tinha qualquer notícia sobre Michael. Ela enfiou a mão na mala e tirou um cigarro, acendendo-o e fumando-o enquanto andava de um lado para o outro.
Uma enfermeira apareceu e espetou a cabeça pela porta.
— Peço desculpa, minha senhora, mas não se pode fumar aqui dentro.
Elizabeth procurou um sítio para deitar o cigarro fora.
— Deixe estar que eu trato disso, senhora Osbourne — disse a enfermeira suavemente. — Precisa que lhe traga alguma coisa?
Elizabeth abanou a cabeça.
No momento em que a enfermeira saiu da sala, o seu telemóvel tocou.
Pegou no telemóvel que tinha dentro da mala e atendeu:
— Sim?
— Sou eu, Elizabeht. Não digas nada, ouve só.
— Michael — sussurrou ela.
— Estou óptimo — disse ele. — Não fui ferido.
— Graças a Deus — desabafou ela.
— Como é que está o Douglas?
— Já saiu do bloco operatório. O médico acha que ele vai ficar bom.
— E onde estão as crianças?
— Estão aqui no hospital — respondeu Elizabeth. — Quando é que eu te vou ver?
— Talvez amanhã. Tenho uma coisa que preciso de fazer primeiro. Amo-te, Elizabeth.
— Michael, onde é que estás? — perguntou ela, mas a ligação já tinha sido interrompida.
Rebecca Wells deixou o Volvo no parque de estacionamento de longa duração do Aeroporto de Dulles e apanhou um autocarro de ligação até ao terminal. Largou as chaves num caixote do lixo e entrou numa casa de banho. Mudou de roupa num dos compartimentos, trocando o fato de duas peças por calças de ganga ruças, uma camisola de lã e botas de cowboy de camurça. Para terminar, prendeu o cabelo e colocou uma peruca loura. Olhou-se ao espelho; a transformação tinha demorado menos de cinco minutos.
Agora, era Sally Burke, de Los Angeles, com um passaporte e uma carta de condução da Califórnia para comprová-lo.
Percorreu o terminal até ao balcão da Air México e fez o check-in para o último voo da noite para a Cidade do México. As setenta e duas horas seguintes iriam ser difíceis. Do México, atravessaria depois a América Central e do Sul, trocando de passaporte e de identidade a cada dia. A seguir, embarcaria num avião em Buenos Aires e regressaria à Europa.
Sentou-se na sala de espera junto à porta de embarque e aguardou que chamassem os passageiros para o voo. Tentou fechar os olhos, mas, de cada vez que o fazia, via a cabeça do agente da DSS a explodir num jorro de sangue.
O CNN Airport Channel estava a passar um serviço noticioso sobre a tentativa de assassínio.
A Brigada para a Libertação do Ulster acaba de reivindicar a responsabilidade pela tentativa de assassínio do embaixador Douglas Cannon. Os dois agressores, um homem e uma mulher, ainda estão a monte. Os médicos do George Washington University Hospital, em Washington, dizem que Cannon se encontra em estado crítico, mas que os ferimentos sofridos não põem em risco a sua vida...
Rebecca desviou o olhar. Pensou: "Onde raio é que tu estás, Jean-Paul" Tirou do envelope a carta que ele lhe tinha dado quatro horas antes' e leu-a uma vez mais.
Vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Começaram a chamar os passageiros para o voo. Ela atirou a carta para um caixote de lixo e dirigiu-se para a porta de embarque.
Capítulo 41
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
— Tens nome?
— Eu utilizo muito nomes, mas chamei-me Jean-Paul Delaroche mais tempo do que todos os outros e, por isso, penso em mim como sendo ele.
— Então, devo chamar-te Delaroche?
— Se quiseres — respondeu Delaroche, franzindo os lábios de uma forma muito francesa.
Apesar da hora tardia, continuava a haver bastante trânsito na Capital Beltway, os resquícios da eterna confusão de Washington ao anoitecer. Michael virou para a Interstate 95 e seguiu para norte, na direcção de Baltimore. O carro era um Ford alugado, que Michael tinha levantado no National Airport depois de fugir da Key Bridge num táxi. De início, o taxista recusara-se a abrir a porta a um par de homens de fato com ar de quem tinha acabado de levar uma carga de pancada. A seguir, Delaroche mostrou-lhe um molho de notas de vinte e o taxista disse que, se quisessem ir até à Lua, ele conseguiria fazê-los estar lá de manhã.
Delaroche ia sentado à frente, no banco do passageiro, com os pés apoiados no painel de instrumentos. Estava a esfregar o tornozelo e a ralhar com ele, como se este o tivesse traído. De forma despreocupada, acendeu outro cigarro. Se se sentia ansioso ou com medo, não mostrava qualquer indício disso. Desceu o vidro da janela, libertando a nuvem de fumo. De repente, o interior do carro tresandava a terra de cultivo húmida.
Ao longo dos vários anos que se seguiram ao assassínio de Sarah, Michael tinha tentado retratar o assassino dela na sua mente. Concluiu que tinha imaginado que ele fosse maior do que de facto era. Na verdade, Delaroche era bastante pequeno e compacto, com os músculos bem retesados de um pugilista de peso médio. Michael já tinha ouvido a voz dele uma vez — em Cannon Point, na noite em que ele o tentara matar —, mas ao ouvi-lo a falar naquele momento compreendeu que ele não era um só homem mas sim vários. O sotaque corria o mapa da Europa. Às vezes, era francês, às vezes, alemão e, outras vezes, holandês ou grego. Nunca falou como um russo; Michael interrogou-se se, chegado àquele ponto, conseguiria sequer falar a sua língua materna.
— Já agora, a arma estava descarregada.
Delaroche soltou um suspiro profundo, como se estivesse aborrecido com um programa televisivo entediante.
— A pistola de uso corrente para os agentes da CIA é uma Browning automática de alta potência, com um carregador de vinte tiros — continuou. — Depois de recarregares, disparaste quatro tiros contra mim pela porta da frente, três pela porta das traseiras, mais três pelo pára-brisas e cinco para a bagageira do Saab.
— Se sabias que a arma estava descarregada, porque é que não me atiraste simplesmente da ponte abaixo?
— Porque, mesmo que te tivesse matado, não tinha praticamente hipóteses de escapar. Estava ferido. Não tinha pistola, não tinha carro, não tinha meio de comunicar.
Tu eras a única arma que me restava.
— Do que é que estás para aí a falar, porra?
— Eu tenho uma coisa que tu queres e tu tens uma coisa que eu quero. Tu queres saber quem é me contratou para te matar e eu quero protecção contra os meus inimigos para poder viver descansado.
— E o que é que te leva a crer que eu pretendo cumprir esse acordo?
— Um homem não abandona a CIA se não tiver princípios. E um homem não regressa à CIA quando o presidente lhe pede para o fazer se não acreditar em honra. A tua honra é o teu ponto fraco. Mas, afinal de contas, porque é que escolheste esta vida, Michael? Foi o teu pai que te levou a isso?
Michael pensou: "Então, o Delaroche passou tanto tempo a analisar-me como eu a ele."
— Não me parece que tivesse tomado a mesma decisão se os papéis estivessem invertidos — disse Michael. — Acho que te teria deixado cair da ponte e apreciado ver o teu corpo a flutuar pelo rio abaixo.
— Isso não é uma coisa de que te devas gabar. És virtuoso, mas também és altamente emotivo e isso torna-te facilmente manipulável. O KGB percebeu isso quando te colocou a Sarah Randolph no caminho e quando me mandou matá-la à frente dos teus olhos.
— Vai-te foder! — exclamou Michael.
Sentiu-se tentado a parar o carro e dar um enxerto de pancada em Delaroche. Depois lembrou-se da luta na ponte e da facilidade com que Delaroche o tinha quase matado com as próprias mãos.
— Michael, por favor, abranda antes que nos mates aos dois. Para onde é que estamos a ir, já agora?
— O que é que te aconteceu à cara? — perguntou por seu turno Michael, ignorando a pergunta de Delaroche.
— Tu enviaste um alerta à Interpol, bem como um esboço por computador da minha cara, e por isso fiz uma cirurgia plástica.
— E como é que soubeste do alerta?
— Uma coisa de cada vez, Michael.
— O cirurgião plástico era um homem chamado Maurice Leroux?
— Sim — respondeu Delaroche. — Como é que sabias?
— Soube porque os serviços secretos britânicos tinham conhecimento do facto de Leroux trabalhar realmente de tempos em tempos para pessoas como tu. Foste tu que o mataste?
Delaroche não disse nada.
— Ele não te fez nenhum favor — disse Michael. — Estás hediondo.
— Tenho noção disso — respondeu Delaroche friamente — e culpo-te a ti.
— És um homicida. Não sinto pena de ti por teres tido uma má experiência com um cirurgião plástico.
— Eu não sou um homicida, sou um assassino profissional. Há uma diferença. Dantes, matava pessoas pelo meu país, mas agora o meu país já não existe e por isso mato por dinheiro.
— Isso faz de ti um homicida, pelas minhas contas.
— Estás a dizer-me que não há homens assim a trabalhar para a tua organização? Vocês também têm os vossos assassinos, Michael. Por isso, por favor... não tentes vir com superioridades morais.
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon?
— Para onde estás a levar-me?
— Para um sítio seguro.
— Espero que não estejas a levar-me para uma casa segura da CIA, pois não?
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon? Delaroche pôs-se a olhar pela janela durante bastante tempo e, a seguir, inspirou fundo, como se estivesse prestes a mergulhar e a ficar submerso durante muito tempo.
— Talvez o melhor seja eu começar pelo princípio — disse ele por fim, desviando o olhar da janela e fitando Michael. — Sê paciente e eu conto-te tudo aquilo que queres saber.
Delaroche falou como se estivesse a narrar a história de vida de outra pessoa e não a sua própria. Quando sentia dificuldades com o inglês, passava para uma das outras línguas que ele e Michael tinham em comum: espanhol, ou italiano, ou árabe. Ainda nem duas horas antes, tinha assassinado a sangue frio dois agentes da DSS, mas, pelo que Michael conseguia detectar, não sofria quaisquer problemas de efeitos colaterais pelo facto de matar. Ele matara apenas uma vez — um terrorista da Espada de Gaza, no Aeroporto de Heathrow — e tinha sido perseguido por pesadelos durante semanas.
Falou a Michael do homem que conhecia apenas como Vladimir. Tinham vivido num grande apartamento do KGB em Moscovo e possuíam uma agradável datcha não muito longe da cidade, para os fins-de-semana e as férias. Nessa altura, Delaroche era conhecido pelo seu nome de baptismo, que era Nicolai, e pelo patronímico, que era Mikhailovich. Não lhe era permitido ter contacto com outras crianças. Não frequentou as normais escolas do Estado, não pertenceu a qualquer clube desportivo ou a organizações juvenis do Partido Comunista. Nunca o deixavam sair do apartamento ou da ãatcha sem Vladimir ao seu lado. Por vezes, quando Vladimir se encontrava doente ou demasiado cansado, mandava um gorila carrancudo chamado Boris acompanhar a criança.
A determinada altura, Vladimir começou a ensinar-lhe línguas. Ter uma outra língua é ter outra alma, dizia Vladimir. E para a vida que estás prestes a levar, Nicolai Mikhailovich, vais precisar realmente de muitas almas. Delaroche franziu a cara como se fosse um velho e curvou os ombros. Ao observá-lo, Michael ficou assombrado com a capacidade que ele tinha para se transformar noutra pessoa. Quando falou com a voz de Vladimir, soou como um russo pela primeira vez.
De vez em quando, um homem alto e severo, com fatos ocidentais e cigarros ocidentais, vinha visitá-lo, continuou Delaroche a contar. Estudava o rapaz como um escultor seria capaz de estudar uma obra em execução. Muitos anos mais tarde, Delaroche ficaria a conhecer a identidade do homem alto. Era Mikhail Voronstov, o chefe da Primeira Direcção Principal[40] do KGB — o seu pai.
Em Agosto de 1968, com dezasseis anos, foi enviado para o Ocidente. Atravessou a fronteira da Checoslováquia com a Áustria, fazendo passar-se por filho de dissidentes checos a fugir dos russos. Ficou na Áustria durante algum tempo e depois mudou-se para Paris, onde viveu como um miúdo da rua até a igreja o acolher.
Foi em Paris que descobriu que sabia pintar. Vladimir nunca o tinha deixado dedicar-se a mais nada além das línguas e das artes do ofício. Não há tempo para actividades frívolas, Nicolai Mikhailovich, dizia. Estamos numa corrida contra o tempo. Passava tardes a deambular pelos museus, estudando grandes obras. Frequentou a escola de arte durante um certo tempo e até conseguiu vender alguns dos seus trabalhos na rua.
A seguir, apareceu o homem chamado Mikhail Arbatov e os assassínios começaram.
— O Arbatov era o agente responsável por mim — explicou De-laroche. — No começo, eu tratava de assuntos internos: dissidentes, potenciais desertores, esse tipo de coisas. A seguir, embarquei num tipo de missão diferente.
Michael passou em revista uma série de assassínios que sabia terem sido levados a cabo por Delaroche: o ministro espanhol, em Madrid, o representante da polícia francesa, em Paris, o executivo da BMW, em Frankfurt, o representante da OLP, em Tunes, o empresário israelita, em Londres.
— O KGB queria tirar partido dos movimentos terroristas e nacionalistas existentes no interior das fronteiras da NATO e dos seus aliados — prosseguiu Delaroche.
— O IRA, a Facção Exército Vermelho, as Brigadas Vermelhas de Itália, os bascos, em Espanha, a Acção Directa, em França, e por aí fora. Matei em ambos os lados do espectro, pura e simplesmente de maneira a criar a desordem. Houve muitos mais assassínios do que aqueles que referiste, claro.
— E quando a União Soviética se desmoronou?
— Eu e o Arbatov ficámos à deriva.
— E então passaram a trabalhar por conta própria? Delaroche confirmou com a cabeça, esfregando o tornozelo.
— O Arbatov tinha excelentes contactos e era um negociador talentoso. Actuava como meu agente, recebendo propostas, negociando honorários... esse tipo de coisas.
Dividíamos as receitas do meu trabalho.
— E depois veio o caso da TransAdantic.
— Foi o dia de trabalho mais bem pago da minha vida, um milhão de dólares. Mas não fui eu que abati aquele avião a jacto. Foi aquele psicopata palestiniano, o Hassan Mahmoud, quem abateu o avião.
— Tu limitaste-te a liquidar o Mahmoud.
— Exactamente.
— E o corpo foi deixado lá ficar para nós deduzirmos que tinha sido a Espada de Gaza a levar a cabo o atentado.
— Sim.
— E- depois foste contratado pelos homens que abateram de facto o avião para eliminar as outras pessoas envolvidas na operação, como o Colin Yardley, em Londres, e o Eric Stoltenberg, no Cairo.
— E depois tu.
— Quem é que te contratou? — perguntou de novo Michael. — Quem é que te contratou para me matar?
— Eles chamam-se a si mesmos Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais — começou por dizer Delaroche. — São um grupo de agentes dos serviços secretos, homens de negócios, comerciantes de armas e criminosos que tentam influenciar os acontecimentos mundiais de modo a ganharem dinheiro e a protegerem os seus próprios interesses.
— Não acredito que uma organização dessas exista realmente.
— Abateram o avião para que um dos seus membros, um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott, pudesse convencer o presidente Beckwith a construir um sistema de defesa antimíssil.
Michael tinha suspeitado que Elliott estivesse envolvido naquela tragédia; na verdade, até tinha posto as suas suspeitas por escrito no relatório que fizera à CIA.
Ainda assim, ouvir Delaroche confirmar-lhe essas suspeitas fê-lo sentir-se enojado. Começou a escorrer-lhe suor pelas costelas.
— Eles sabiam que tu estavas a aproximar-te demasiado da verdade — continuou Delaroche. — Decidiram que o melhor seria que morresses e, por isso, contrataram-me para te matar.
— Como é que eles souberam das minhas suspeitas?
— Têm uma fonte dentro de Langley.
— E o que é que aconteceu a seguir a Shelter Island? — perguntou Michael.
— Passei a trabalhar em exclusivo para a Sociedade.
— E a Sociedade tem algum líder?
— Chamam-lhe o Director. É o único nome pelo qual é conhecido. É inglês. Tem uma rapariga nova chamada Daphne. É tudo o que eu sei sobre ele.
— Foste tu que mataste o Ahmed Hussein no Cairo. Delaroche virou-se de repente e lançou um olhar furioso a Michael.
— A Sociedade executou o assassínio a mando da Mossad. Como é que soubeste que tinha sido eu?
— O Hussein estava sob vigilância dos egípcios. Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio e reparei na cicatriz que o assassino tinha na mão direita. Foi aí que soube que estavas vivo e outra vez em acção. Foi aí que enviámos o alerta à Interpol.
— Soubemos do alerta imediatamente — revelou Delaroche, olhando para as costas da mão direita. — O Director tem excelentes contactos no mundo dos serviços secretos e de segurança ocidentais, mas disse que a informação sobre o alerta à Interpol veio da fonte dele em Langley.
— E porque é que a Sociedade se envolveu na questão da Irlanda do Norte?
— Porque achou que o acordo de paz na Irlanda do Norte era mau para o negócio. Houve uma reunião do Conselho Executivo da Sociedade no mês passado, em Míconos. Nessa reunião, decidiram matar-te a ti e ao teu sogro, e foi-me dada essa missão.
— E a mulher que ia no Volvo era a Rebecca Wells?
— Era.
— Onde é que ela está agora?
— Isso não fazia parte do nosso acordo, Michael.
— E porquê matarem-me a mim?
— O Director investiu uma grande quantidade de dinheiro em mim e quis proteger o seu investimento. Viu-te como uma ameaça.
— E a fonte de Langley estava na reunião em Míconos?
— Estava toda a gente em Míconos.
Já passava das cinco da manhã quando Michael e Delaroche chegaram à aldeia de Greenport, em Long Island. Seguiram pelas ruas desertas e estacionaram no cais dos ferries. O barco estava tranquilamente parado no seu estaleiro; só iria fazer a primeira travessia até Shelter Island, do outro lado do estreito, dali a uma hora. Michael fez uma chamada pelo telefone público junto ao pequeno barracão revestido de ripas que havia no terminal.
— Onde é que tu estás, foda-se? — perguntou Adrian Cárter. — Tens toda a cidade à tua procura.
— Liga-me para este número de um telefone público.
O número de dez dígitos que indicou a Cárter não tinha qualquer semelhança com o verdadeiro número do telefone público. Tinha dado o número a Cárter num código rudimentar que os dois tinham utilizado em operações muitos anos antes — na ordem inversa, com o primeiro dígito mais um do que o número verdadeiro, o segundo dígito menos dois, o terceiro dígito mais três e por aí fora. Não precisou de repetir. Cárter, tal como Michael, era atormentado por uma memória perfeita.
Michael desligou e fumou um cigarro enquanto esperava que Cárter se vestisse, entrasse no carro e se dirigisse a um telefone público. A imagem de Cárter a vestir um casaco por cima do pijama fez Michael sorrir. O telefone tocou passados cinco minutos.
— Importas-te de me dizer que raio se está a passar?
— Digo-te quando tu aqui chegares.
— E onde é que tu estás?
— Em Shelter Island.
— E que raio estás a fazer aí? Estiveste envolvido naquele tiroteio na Key Bridge?
— Apanha mas é o primeiro avião para aqui, Adrian. Preciso de ti. Cárter hesitou um momento e depois disse:
— Estou aí assim que puder, mas porque é que eu já sei que não vai sair daqui nada de bom?
Quando Michael voltou para o carro, Delaroche tinha desaparecido. Encontrou-o uns instantes depois, encostado a uma vedação com rede metálica a enferrujar, a olhar fixamente para o outro lado do estreito, na direcção da silhueta baixa e escura de Shelter Island.
— Conta-me os teus planos — disse Delaroche.
— Se queres o teu dinheiro e a tua felicidade, vais ter de fazer por merecer.
— E que queres tu que eu faça?
— Ajuda-me a destruir a fonte dentro de Langley.
— Sabes quem ele é?
— Sei — respondeu Michael. — E não é um ele. É a Mónica Tyler.
— Eu não sei o suficiente para destruir a Mónica Tyler.
— Sabes, sim, senhor.
Delaroche continuava a olhar fixamente para a água negra.
— De certeza que podíamos ter feito isto noutro sítio que não este, Michael. Porque é que me trouxeste outra vez para este sítio?
Mas Delaroche não estava verdadeiramente à espera de uma resposta e Michael não lhe deu uma.
— Eu preciso de saber uma coisa. Preciso de saber como é que a Astrid morreu.
— A Elizabeth matou-a.
— Como?
Quando Michael lhe contou, ele fechou os olhos. Ficaram ali parados, lado a lado, ambos agarrados à vedação, à medida que os primeiros trabalhadores dos ferries foram começando a chegar. Passados poucos minutos, o barco começou a ressoar no seu estaleiro.
— Nunca foi nada pessoal — disse Delaroche, por fim. — Foram só negócios. Compreendes o que te estou a dizer, Michael? Foram só negócios.
— Tu fizeste-nos passar um inferno, a mim e à minha família, e nunca te perdoarei isso. Mas compreendo. Agora, compreendo tudo.
Capítulo 42
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Quando chegaram ao portão de Cannon Point, um segurança chamado Tom Moore saiu do abrigo para os guardas. Era um antigo comando do exército, com ombros grossos e quadrados e cabelo louro cortado à escovinha.
— Peço desculpa por não ter ligado primeiro para te avisar que estava a caminho, Tom.
— Não há problema, senhor Osbourne — respondeu Moore. — Já ouvimos o que aconteceu ao senhor embaixador. Como é óbvio, estamos todos a torcer por ele. Só espero que apanhem os sacanas que fizeram isto. Na rádio, disseram que eles desapareceram sem deixar rasto.
— Parece que sim. Este é um amigo meu — disse Michael, apontando para Delaroche. — Vai ficar cá um dia ou dois.
— Sim, senhor.
— Aparece lá em casa para almoçar, Tom. Precisamos de falar.
— Eu não quero ter nada a ver com isso — afirmou Adrian Cárter. — Passa isso à Divisão de Contra-Espionagem. Meu Deus, por mim, até podes dar isso aos palhaços do FBI. Mas livra-te disso, porque essa coisa vai destruir quem quer que toque nela.
Cárter e Michael estavam a andar ao longo da divisória com vista para o estreito, de cabeça para baixo e mãos nos bolsos, como uma equipa de busca à procura de um corpo. Naquela manhã, não havia vento e estava frio. Cárter estava com o mesmo anoraque almofadado que trazia vestido naquela tarde no Central Park, em que tinha pedido a Michael para regressar à CIA. Era um fumador regenerado, mas, a meio da história, cravou um cigarro a Michael e devorou-o.
— Ela é a directora da CIA — disse Michael. — Ela controla a Divisão de Contra-Espionagem. E, quanto ao FBI, quem é que vai querer envolvê-los? Isto é um assunto nosso. O FBI só nos vai lembrar isso mesmo.
— E estás a esquecer-te de que ali o Jack, o "Estripador, é a tua única testemunha? — retorquiu Cárter, apontando com a cabeça para a casa. — Tens de admitir que ele tem de facto um problemazinho em termos de credibilidade. Já pensaste pelo menos na possibilidade de ele ter inventado esta coisa toda para impedir que o prendesses?
— Ele não está a inventar.
— Como podes ter tanta certeza? Toda esta coisa de uma ordem secreta chamada Sociedade soa-me a um belo monte de treta.
— Alguém contratou aquele homem para me matar no ano passado porque eu estava a aproximar-me demasiado da verdade acerca do caso da TransAtlantic. Revelei as minhas suspeitas a duas pessoas dentro da CIA. Uma foste tu e a outra foi a Mónica Tyler.
— E então?
— Para começar, porque é que a Mónica fez com que eu me fosse embora da CIA no ano passado? E porque é que me retirou do caso Outubro uma semana antes de ele tentar matar o Douglas? E há mais uma coisa. O Delaroche disse que houve uma reunião da Sociedade em Míconos, no início deste mês. A Mónica esteve na Europa a participar numa conferência regional sobre segurança. E, depois disso, tirou dois dias de folga e desapareceu por completo.
— Meu Deus, Michael, eu também estive na Europa no início do mês.
— Eu acredito na história, Adrian. E tu também.
Saíram do recinto de Cannon Point e caminharam pela Shore Road, no limite de Dering Harbor.
— Se isto for tornado público, vai ser desastroso para a CIA.
— Concordo — disse Michael. — Seriam necessários anos para recuperar de um golpe desses. Destruiria a reputação da CIA em Washington e, em boa verdade, pelo mundo inteiro.
— Então, o que é que fazemos?
— Apresentamos-lhe as provas e acabamos com ela antes que possa causar mais estragos. Ela tem sangue nas mãos, mas se fizermos isto em público a agência vai ficar em ruínas.
— A única maneira de alguma vez conseguires desalojar a Mónica do sétimo andar é com dinamite.
— Eu próprio subo até lá com uma pasta cheia dele, se for preciso.
— E porque é que me envolveste?
— Porque tu és a única pessoa em quem confio. Foste o agente responsável por mim, Adrian. Serás sempre o agente responsável por mim.
Pararam numa ponte que percorria toda a desembocadura de um ribeiro por onde entrava o mar, à frente de Dering Harbor. Para lá da ponte, havia uma vasta planície com relva pantanosa e árvores despidas. Um homem bastante pequeno e esguio estava diante de um cavalete na ponte, a pintar. Tinha luvas de lã sem dedos e uma camisola de pescador já coçada e vários tamanhos acima do seu.
— Encantador — disse Cárter, olhando para o trabalho. — O senhor é muito talentoso.
— Obrigado — respondeu o pintor, num inglês com sotaque carregado.
Cárter virou-se para Michael e soltou:
— Só podes estar a brincar comigo.
— Adrian Cárter, gostaria de te apresentar o Jean-Paul Delaroche. És capaz de o conhecer melhor como Outubro.
Tom Moore apareceu na casa ao meio-dia.
— Queria ver-me, senhor Osbourne?
— Entra, Tom. Há café acabado de fazer na cozinha.
Michael serviu o café e sentaram-se um em frente do outro, à mesa pequena na cozinha.
— O que é que posso fazer por si, senhor Osbourne?
— Vai haver aqui um encontro hoje à noite que eu preciso de gravar, em áudio e vídeo — começou por dizer Michael. — As câmaras de vigilância podem ser reposicionadas?
— Sim, senhor — respondeu Moore sem emoção.
— E consegues gravar através do dispositivo de saída?
— Sim, senhor.
Adrian Cárter entrou na cozinha, seguido por Delaroche.
— Temos algum equipamento áudio na propriedade?
— Não, senhor. O seu sogro não permitiu que houvesse quaisquer microfones. Achou que isso seria uma invasão da sua privacidade — explicou Moore, com a sua cara grande a deixar despontar um sorriso agradável. — Ele já mal tolera as câmaras. Antes de partir para Londres, apanhei-o a tentar desligar uma.
— E quanto tempo é que demoraria para se arranjarem uns microfones e um gravador?
Moore encolheu os ombros.
— Um par de horas, no máximo.
— E consegues instalá-las de maneira a que não possam ser vistas?
— Os microfones são fáceis porque são relativamente pequenos. As câmaras é que põem um problema. São câmaras de segurança normais, mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos.
Michael praguejou baixinho.
— Mas tenho uma ideia.
— Sim?
— As câmaras têm uma lente razoavelmente longa. Se realizassem o encontro na sala de estar, eu podia posicionar câmaras lá fora, no relvado, e filmar através das janelas.
Michael sorriu e disse:
— Tu és bom, Tom.
— Fiz um pouco de espionagem quando estava nos comandos. Só têm de se certificar de que as cortinas ficam sempre abertas.
— Não posso garantir isso.
— Na pior das hipóteses, terão o áudio como apoio. Delaroche perguntou:
— Tem mais alguma arma além dessa peça de museu com que anda?
Moore trazia um revólver Smith & Wesson de calibre 38.
— Eu gosto destas peças de museu porque elas não encravam — respondeu Moore, batendo com a mão grossa no coldre. — Mas sou capaz de conseguir deitar a mão a umas quantas automáticas.
— De que tipo?
— Colt, de calibre quarenta e cinco.
— Nada de Glock nem de Beretta?
— Lamento — soltou Moore, com o espanto estampado no rosto.
— Uma ou duas Colt serviriam muito bem — disse Cárter.
— Sim, senhor — respondeu Moore. — E pode dizer-me do que é que isto tudo se trata?
— De maneira nenhuma.
Delaroche subiu as escadas e seguiu Michael até ao quarto no andar de cima. Este dirigiu-se ao armário, abriu a porta e tirou uma pequena caixa da gaveta de cima.
Abriu-a e tirou de lá a Beretta.
— Creio que deixaste cair isto da última vez que aqui estiveste — disse Michael, entregando a pistola a Delaroche.
A mão direita de Delaroche, com a sua cicatriz, apertou a coronha e, num movimento reflexo, o dedo enfiou-se na protecção do gatilho. Havia qualquer coisa na facilidade com que Delaroche manejava a arma que fez Michael sentir um arrepio.
— Onde é que arranjaste isto? — perguntou Delaroche.
— Saquei-a da água, no final da doca.
— E quem é que a restaurou?
— Fui eu.
Delaroche desviou os olhos da pistola e fitou Michael com um ar intrigado.
— E por que raio foste fazer uma coisa dessas?
— Não sei bem. Acho que queria poder lembrar-me de qual era realmente o aspecto dela.
Delaroche ainda tinha um carregador para uma Beretta de nove milímetros dentro do bolso. Enfiou-o na arma e engatilhou-a, introduzindo a primeira bala na câmara.
— Se quisesses, suponho que podias cumprir os termos do teu contrato neste momento.
Delaroche sorriu e devolveu a Beretta a Michael.
Às quatro da tarde, Michael entrou no escritório de Douglas e ligou para o gabinete de Mónica Tyler na sede da CIA. Cárter estava à escuta noutra extensão, com a mão a tapar o auscultador. A secretária de Mónica informou que a directora Tyler se encontrava numa reunião dos quadros superiores e que não podia ser interrompida.
Michael respondeu que era uma emergência e puseram-no a falar com Tweedledee ou Tweedledum, Michael nunca sabia ao certo qual era qual. Fizeram-no esperar os dez minutos da praxe enquanto Mónica era arrancada da reunião.
— Eu sei tudo — disse Michael, no momento em que ela veio finalmente ao telefone. — Sei da Sociedade e sei do Director. Sei do Mitchell Elliott e do caso da TransAdantic.
E sei que tu tentaste mandar matar-me.
— Michael, estás a delirar completamente? Do que raio é que estás para aí a falar?
— Estou a dar-te uma maneira de saíres disto discretamente.
— Michael, eu não...
— Vem ter à casa do meu sogro em Shelter Island. Vem sozinha: nada de segurança, nada de funcionários. Está cá às dez da noite. Se a essa hora ainda não tiveres chegado, ou se eu vir alguma coisa de que não goste, vou ter com o FBI e o The New York Times e conto-lhes tudo o que sei.
Desligou sem esperar que ela respondesse.
Trinta minutos mais tarde, o telefone seguro tocou no escritório da mansão londrina do Director. Estava sentado numa poltrona de orelhas, junto à lareira, com os pés apoiados numa otomana, a despachar um monte de papelada. Daphne entrou no escritório silenciosamente e atendeu o telefone.
— É o Picasso — disse Daphne. — Diz que é urgente.
O Director pegou no auscultador e disse:
— Sim, Picasso?
Com calma, Mónica Tyler informou-o do telefonema que tinha acabado de receber de Michael Osbourne.
— Suspeito que o Outubro seja a fonte das informações de que ele dispõe — disse o Director. — Se isso for verdade, parece-me que o Osbourne não tem muito por onde pegar. O Outubro sabe muito pouco acerca da estrutura global da nossa organização e não é propriamente uma testemunha credível. É um homem que mata por dinheiro, um homem sem princípios morais e sem lealdade.
— Concordo, Director, mas não me parece que devamos simplesmente desconsiderar a ameaça.
— Não estou a sugerir isso.
— E possui os recursos necessários para os eliminar?
— Não assim com tão pouca antecedência.
— E se eu prender pura e simplesmente o Outubro?
— Então, ele e o Outubro irão contar ao mundo a história deles.
— Estou aberta a sugestões.
— Sabes jogar póquer? — perguntou o Director.
— Em sentido figurado ou literalmente?
— Um bocadinho das duas coisas, na verdade.
— Penso que compreendo a sua ideia.
— Ouve o que o Osbourne tem para dizer e avalia as tuas opções. Eu sei que não preciso de te lembrar que fizeste um juramento de fidelidade para com a Sociedade.
A tua primeira preocupação deve ser o cumprimento desse juramento.
— Compreendo, Director.
— E talvez se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
— Eu nunca fiz esse tipo de coisas, Director.
— Não é assim tão difícil, Picasso. Fico à espera de notícias tuas. Desligou o telefone e olhou para Daphne.
— Começa a ligar para os membros do Conselho Executivo e para os chefes de divisão. Preciso de falar com todos eles urgentemente. Receio que possamos ser forçados a parar com as nossas actividades durante algum tempo.
Mónica Tyler desligou o telefone e olhou para o rio Potomac através da janela. Atravessou a sala e parou diante de um Rembrandt, uma paisagem que tinha comprado por uma pequena fortuna num leilão em Nova Iorque. Percorreu o quadro com os olhos: as nuvens, a luz a espalhar-se do chalé, a charrete sem cavalo no meio da erva do prado. Agarrou na moldura e puxou. O Rembrandt girou nas dobradiças, revelando um pequeno cofre na parede.
Os dedos dela giraram a fechadura automaticamente, sem que os olhos olhassem praticamente para os números; passados uns segundos, o cofre estava aberto. Começou a tirar de lá alguns artigos: um envelope com cem mil dólares em dinheiro, três passaportes falsos com nomes diferentes e de países diferentes e cartões de crédito correspondentes aos nomes.
A seguir, tirou um último artigo, uma Browning automática.
E take se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
Mudou de roupa, trocando o fato Chanel de corte justo por umas calças de ganga e uma grande mala de mão de couro preta. Depois, guardou uma muda de roupa numa pequena mala de fim-de-semana.
Pôs a mala de mão ao ombro e enfiou a mão lá dentro, apertando a coronha da Browning tinha sido treinada pela CIA para manejar uma arma. Um dos membros da equipa de segurança dela estava à espera no corredor.
— Boa tarde, Directora Tyler.
— Boa tarde, Ted.
— É para voltar para a sede, Directora?
— Por acaso, não, é para heliporto.
— O heliporto? Ninguém nos disse nada sobre...
— Não há problema, Ted — disse ela calmamente. — É um assunto privado.
O segurança olhou para ela atentamente.
— Passa-se alguma coisa, Directora Tyler?
— Não, Ted, vai correr tudo lindamente.
Capítulo 43
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Michael mantinha-se ansiosamente vigilante no relvado de Cannon Point. Estava a beber o café horrível de Adrian Cárter, a fumar os seus próprios cigarros horríveis e a andar de um lado para o outro na relva gelada, com os binóculos que Douglas utilizava para observar aves colocados ao pescoço. Meu Deus, como a noite estava fria, pensou. Olhou uma vez mais para o céu a ocidente, na direcção em que Mónica viria, mas viu apenas uma chuva de estrelas molhadas, espalhadas pelo tapete negro do espaço, e uma nesga de lua, de um branco-amarelado.
Olhou para o relógio — 21h58. Mónica nunca chega a horas, pensou. "A Mónica há-de chegar dez minutos atrasada ao próprio funeral", gracejou uma vez Cárter, especado na deprimente antessala de Mónica, à espera que esta aparecesse. Talvez ela não vá aparecer, pensou Michael, ou talvez eu simplesmente espere que ela não o faça.
Talvez Adrian tivesse razão. Talvez ele devesse simplesmente esquecer tudo aquilo, deixar a CIA — para sempre, desta vez — e ficar em Shelter Island com Elizabeth e as crianças. E depois? Viver o resto da minha vida a olhar por áma do ombro, à espera que a Mónica ou os amigos dela enviem outro assassino, outro Delaroche?
Viu as horas uma vez mais. Era o velho relógio do pai: fabricado na Alemanha, grande como um dólar de prata, à prova de água, à prova de pó, à prova de choque, seguro para crianças, ligeiramente luminoso. Perfeito para um espião. Tinha sido a única coisa do pai com que Michael ficara depois de ele morrer. Nem tinha tirado a correia removível que lhe deixava um padrão de buracos rectangulares estampado na pele do pulso. Às vezes, olhava para o relógio e pensava no pai — em Moscovo, ou Roma, ou Viena, ou Beirute — à espera de um agente. Interrogou-se sobre o que o pai acharia daquilo tudo.
Na altura, ele nunca me diizia o que pensava, pensou Michael. Porque é que agora haveria de ser diferente?
Ouviu um baque surdo que poderia ter sido provocado por um helicóptero à distância mas que era apenas o som proveniente do clube nocturno que ficava na outra margem, em Greenport — a banda residente a preparar-se para mais um concerto tenebroso. Michael pensou na sua heterogénea equipa de operações. Delaroche, o seu inimigo, a prova acabada da traição perpetrada por Mónica, à espera para ser posto no palco e depois tirado de lá. Tom Moore, parado diante dos seus monitores no chalé dos convidados, prestes a apanhar o choque da sua vida. Adrian Cárter, atrás dele, a andar de um lado para o outro, a fumar os cigarros de Michael sem parar e a desejar estar em qualquer outro lugar que não aquele.
Michael ouviu o bater das hélices do helicóptero muito antes de o conseguir ver. Por um instante, pensou que até pudessem ser dois, ou três, ou mesmo quatro. Instintivamente, esticou o braço para agarrar na Colt automática que Tom Moore lhe fornecera, mas, passado um momento, viu as luzes de um único helicóptero a aproximar-se, sobrevoando Nassau Point e Great Hog Neck, e percebeu que tinha sido apenas o vento nocturno a pregar-lhe uma partida aos ouvidos.
Lembrou-se da manhã, dois meses antes, em que o helicóptero que transportava o presidente James Beckwith fizera o mesmo percurso até Shelter Island, desencadeando a sucessão de acontecimentos que o tinha levado até àquele sítio.
As imagens desenrolaram-se na sua mente à medida que o helicóptero se ia aproximando.
Adrian Cárter no dique da represa no Central Park, a seduzir Michael a regressar.
Kevin Maguire amarrado a uma cadeira e Seamus Devlin a sorrir. Eu não matei o Kevin Maguire, Michael. Você é que o matou.
Preston McDaniels a ser esmagado pelas rodas do comboio da Linha do Sofrimento.
Delaroche, a sorrir por cima do parapeito da Key Bridge. Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo?
Às vezes, o trabalho de espionagem é assim, costumava dizer o pai — como a teoria do caos. Um sopro de vento agita a superfície de um lago, fazendo um tufo de juncos deslocar-se, o que origina o voo de uma libélula, que assusta uma rã, e sempre por aí adiante até que, a dezenas de milhares de quilómetros de distância e muitas semanas depois, um tufão destrói uma ilha nas Filipinas.
O helicóptero sobrevoou baixinho a baía de Southold. Michael olhou para o relógio do pai: um minuto depois das dez. O helicóptero começou a descer sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, aterrando a seguir no extenso relvado de Cannon Point. Os motores desligaram-se e as hélices foram parando de girar gradualmente.
A porta abriu-se e uma pequena escada estendeu-se até ao chão. Mónica saiu do helicóptero, com uma mala de mão preta ao ombro, e avançou de forma decidida em direcção à casa.
— Vamos lá a despachar este disparate — disse ela, passando depressa por Michael. — Sou uma mulher muito ocupada.
Mónica Tyler não era uma pessoa que caminhasse sem pressas, mas estava a fazê-lo naquele momento. Percorreu a sala de estar de Douglas Cannon como um político a inspeccionar um parque de caravanas a seguir a um tornado — com calma, estoicismo e empatia, mas com o cuidado de não pisar nada que fosse revoltante. Foi fazendo pequenas pausas de tempos a tempos, ora franzindo o sobrolho à coberta com motivos florais por cima do sofá, ora fazendo uma careta perante o pequeno tapete rústico diante da lareira.
— Tens câmaras em algum sítio, não tens, Michael — disse ela, fazendo uma afirmação e não uma pergunta. — E microfones.
Prosseguiu a sua agitada travessia pela sala.
— Não te importas que eu corra estas cortinas, pois não, Michael? E que, sabes, eu também passei por aquele cursozinho na quinta. Posso não ser uma agente operacional experiente como tu, mas sei uma coisinha ou outra sobre as artes clandestinas.
Fez questão de mostrar bem que estava a fechar as cortinas.
— Pronto — rematou. — Assim está muito melhor. Sentou-se, como uma testemunha relutante e arrogante a sentar-se para depor. Os pedaços de tronco na lareira começaram a crepitar. Ela cruzou uma perna sobre a outra, pousando as mãos compridas em cima do tecido desbotado das calças de ganga, e fitou Michael com um olhar gelado. O cenário prosaico à sua volta tinha-lhe retirado a intimidação física. Não havia caneta de ouro para esgrimir como um punhal, não havia secretária para interromper uma reunião que se tinha tornado inesperadamente desagradável, não havia Tweedledum nem Tweedledee, vigilantes como dobermans, agarrados às suas pastas de couro e telemóveis seguros.
Delaroche entrou na sala. Estava a fumar um cigarro. Mónica lançou-lhe um olhar feroz de desprezo, já que o tabaco, como a falta de lealdade, era um dos seus ódios de estimação.
— Este homem chama-se Jean-Paul Delaroche — disse Michael. — Sabes quem é?
— Suspeito que seja um antigo assassino do KGB com o nome de código Outubro e que agora actua como assassino internacional a soldo.
— E sabes porque é que ele cá está?
— Provavelmente, porque quase matou o teu sogro ontem à noite, em Georgetown, apesar de todos os nossos esforços para o determos.
— Que jogo andas tu a jogar, Mónica? — perguntou Michael rispidamente.
— Ia precisamente perguntar-te a mesma coisa.
— Eu sei tudo — disse ele, agora mais calmo.
— Acredita em mim, Michael, tu não sabes tudo. Na verdade, não sabes praticamente nada. É que a tua brincadeirazinha pôs gravemente em risco uma das operações mais importantes que a CIA tem neste momento em execução.
A sala tinha ficado em silêncio, à excepção da lareira, que se encontrava de novo em actividade, a crepitar como pequenas armas. La fora, o vento abanava as árvores despidas e uma delas arranhava a fachada lateral da casa. Um camião roncou pela Shore Road e um cão ladrava algures.
— Se queres ouvir o resto, vais ter de desligar os teus microfones — avisou Mónica.
Michael não se mexeu. Mónica esticou o braço na direcção da mala, como se estivesse prestes a levantar-se para se ir embora.
— Está bem — disse Michael.
Pôs-se em pé, foi até à secretária de Douglas e abriu uma gaveta. Lá dentro, estava um microfone, mais ou menos do tamanho de um dedo. Michael levantou-o para que Mónica o pudesse ver.
— Desliga-o — disse ela.
Ele arrancou o microfone do cabo.
— E agora o de apoio — continuou ela. — Tu és demasiado paranóico para fazeres uma coisa destas sem um apoio.
Michael dirigiu-se para as prateleiras dos livros, tirou um volume de Proust e puxou do segundo microfone.
— Acaba com ele — ordenou Mónica. Delaroche olhou para Michael.
— Ela tem uma pistola na mala.
Michael aproximou-se da cadeira onde Mónica Tyler estava sentada, enfiou a mão na mala e tirou de lá a Browning.
— Desde quando é que os directores da CIA andam com armas?
— Quando se sentem ameaçados — respondeu Mónica. Michael travou a patilha de segurança e atirou a Browning para Delaroche.
— Muito bem, Mónica, vamos lá começar.
Adrian Cárter era ansioso por natureza, o que o tornava estranhamente inadequado para a actividade de enviar agentes para o terreno e ficar à espera que eles regressassem.
Ao longo dos anos, tinha aguentado muitas vigílias plenas de ansiedade por causa de Michael Osbourne. Lembrou-se das duas noites intermináveis que tinha passado em Beirute, em 1985, à espera que Michael regressasse de um encontro com um agente no vale de Bekaa. Cárter temia que Michael tivesse sido sequestrado ou morto.
Estava prestes a desistir quando Michael apareceu em Beirute aos tropeções, coberto de poeira e a cheirar a cabras.
Ainda assim, nada se comparava ao desconforto que sentia naquele momento, ao ouvir o seu agente a confrontar a directora da CIA. Quando esta exigiu que Michael inutilizasse o primeiro microfone Cárter não ficou especialmente preocupado — havia dois na sala e um agente operacional experiente como Michael nunca abriria mão do seu ás de trunfo.
Depois, ouviu Mónica a exigir que o segundo fosse igualmente desligado, seguido de uma série de ruídos surdos e estática, no momento em que Michael o arrancou da prateleira. Quando a ligação à sala foi interrompida, fez a única coisa que um bom orientador de agentes pode fazer.
Acendeu outro dos cigarros de Michael e esperou.
— Pouco tempo depois de ter sido nomeada directora da CIA, fui abordada por um homem que dava apenas pelo nome de Director — começou por dizer ela, falando como uma mãe exausta, a contar com relutância um conto de fadas a uma criança que não quer ir deitar-se. — Perguntou-me se eu estaria disposta a fazer parte de um clube de elite, um grupo internacional de agentes dos serviços secretos, especialistas financeiros e homens de negócios dedicado à preservação da segurança mundial. Suspeitei que havia ali qualquer coisa de errado e, por isso, informei a Divisão de Contra-Espionagem do incidente, relatando-o como um potencial recrutamento por parte de uma organização inimiga. A Divisão de Contra-Espionagem achou que poderia ser produtivo, em termos operacionais, aceitar o convite do Director e eu concordei. Pedi a aprovação do próprio presidente para dar início à operação. Encontrei-me com o homem chamado Director mais três vezes, duas na Europa do Norte e uma no Mediterrâneo.
No final do nosso terceiro encontro, chegámos a um acordo e eu entrei para a Sociedade.
"A Sociedade tem tentáculos muito compridos. Está envolvida em operações secretas a uma escala mundial. Comecei a recolher imediatamente informações sobre os membros e as operações. Algumas informações passaram por uma lavagem efectuada pela agência e nós tomámos contramedidas. Por vezes, considerámos ser necessário permitir que as operações da Sociedade prosseguissem, pois desmantelá-las poderia pôr em risco a minha posição dentro da hierarquia da organização.
Michael observou-a enquanto ela falava. Estava calma e serena e completamente lúcida, como se estivesse a ler um discurso preparado numa reunião de accionistas.
Sentiu-se tremendamente impressionado com ela; era uma mentirosa formidável.
— E quem é o Director?
— Não sei, e suspeito que o Delaroche também não saiba.
— E tu sabias que ele tinha sido contratado para matar o meu sogro?
— Claro, Michael — respondeu ela, semicerrando os olhos em sinal de desprezo.
— Então, para que é que foi toda aquela fantochada na sala de jantar executiva? Porque é que me retiraste do caso?
— Porque o Director mo pediu — respondeu ela secamente. A seguir, acrescentou: — Deixa-me explicar. Ele achou que o Delaroche conseguiria desempenhar a missão com maior facilidade se tu já não te encontrasses à frente do caso. Por isso, afastei-te e tomei discretamente medidas para assegurar a segurança do teu sogro. Infelizmente, essas medidas não foram bem-sucedidas.
— Se foi esse o caso, então porque é que ele estava desprotegido em Washington?
— Porque o Director me garantiu que o Delaroche não iria actuar em solo americano.
— E porque é que não me disseste?
— Porque nós não queríamos que tu fizesses nada de precipitado que pudesse pôr em risco a segurança da operação. O objectivo era atrair o Delaroche e fazer com que ele se mostrasse para poder ser eliminado... retirado do mercado, por assim dizer. Não queríamos que o afugentasses trancando o teu sogro numa caixa-forte e deitando a chave fora.
Michael olhou para Delaroche, que estava a abanar a cabeça.
— Ela está a mentir — disse ele. — O Director tratou de tudo o que eu precisava aqui: transportes, armas, tudo. Decidiu levar a cabo o assassínio especificamente em Washington porque sabia que o embaixador estaria mais vulnerável aqui do que em Londres. Foi programado para coincidir com a conferência sobre a Irlanda do Norte de modo a aumentar o impacto no processo de paz.
Parou por uns instantes, com os olhos a deslocarem-se de Michael para Mónica e vice-versa.
— Ela é muito boa, mas está a mentir.
Mónica ignorou-o, continuando a olhar para Michael.
— Era por causa disto que nós não queríamos que o Delaroche fosse preso, Michael. Porque ele iria mentir. Porque ele iria inventar. Seria capaz de dizer qualquer coisa para salvar a pele. E o problema é que tu acreditas nele. Nós queríamos vê-lo eliminado porque, se ele fosse preso, suspeitávamos que pudesse sair-se com uma jogada destas.
— Não é uma jogada — disse Delaroche. — É a verdade.
— Devias ter desempenhado melhor o teu papel, Michael. Devias ter-te limitado a levar a cabo a tua vingança pela Sarah Randolph e matá-lo. Mas agora arranjaste uma bela trapalhada... para a CIA e para ti mesmo.
Mónica levantou-se, indicando que o encontro tinha chegado ao fim.
Michael disse:
— Se insistes em fazer a coisa assim, não me deixas outra escolha a não ser ir ter com a Divisão de Contra-Espionagem e o FBI e reve-lar-lhes as minhas suspeitas sobre ti. Vais passar os próximos dois anos a aguentar o equivalente à tortura chinesa da água. A seguir, o Senado há-de querer atirar-se a ti. Só as contas que terás de pagar em termos jurídicos vão deixar-te falida. Nunca mais voltarás a trabalhar no governo e ninguém na Wall Street vai querer ter alguma coisa a ver contigo.
Vais ser destruída, Mónica.
— Tu não tens provas que cheguem, e ninguém vai acreditar em ti.
— O genro do embaixador Douglas Cannon afirma que a directora da CIA esteve envolvida na tentativa de assassínio contra ele.
É uma história do caneco. Não há um único jornalista em Washington que não se atirasse a ela como gato a bofe.
— E tu vais ser posto em tribunal por teres revelado segredos da CIA. •
— Estou disposto a arriscar.
Adrian Cárter entrou na sala. Mónica olhou para ele; depois voltou a fixar os olhos em Michael.
— Uma caça às bruxas destruirá a agência, Michael. Devias saber isso. O teu pai foi apanhado na caça à toupeira levada a cabo pelo Angleton[41], não foi? Isso quase lhe destruiu a carreira. Esta é a tua maneira de te vingares da CIA pelo que aconteceu ao teu pai? Ou ainda sentes rancor por mim por eu ter tido a lata de te suspender em tempos?
— Não estás em posição de me irritar neste preciso momento, Mónica.
— Então, o que é que eu tenho de fazer para impedir que faças essa alegação imprudente contra mim?
— Terás de te demitir na altura apropriada. E, até lá, vais fazer exactamente aquilo que eu e o Adrian te dissermos. E vais ajudar-me a acabar com a Sociedade.
— Meu Deus, tu és mesmo um tonto ingénuo! Acabar com a Sociedade é impossível. A única forma de os controlar é fazendo parte deles. — Olhou para Delaroche. — E o que é que pensas fazer com ele?
Michael respondeu:
— Eu trato do Delaroche. — Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá uma cassete áudio. — Fiz isto ontem à noite, com umas cópias à mistura — disse. — Inclui um relato completo do teu papel na Sociedade, no caso da TransAtlantic e na tentativa de matar o meu sogro. Vou montar uma espécie de mecanismo de disparo. Se acontecer alguma coisa ao Adrian, ao Delaroche ou a mim, serão enviadas cópias disto para o The New York Times e o FBI.
Michael voltou a guardar a cassete no bolso.
— A decisão é tua, Mónica.
— Eu dei seis anos da minha vida à agência — disse ela. — Fiz tudo o que estava ao meu alcance para assegurar a sua sobrevivência e protegê-la de homens como tu: dinossauros sem a visão necessária para compreender que a CIA possui um papel neste nosso novo mundo. O jogo deixou-te para trás, Michael, e tu és demasiado estúpido para reparar sequer nisso.
— Tu usaste a CIA como um joguete privado para promover os teus próprios interesses e eu agora estou a recuperá-la.
Ela colocou a mala ao ombro, deu meia-volta e começou a ir-se embora.
— A decisão é tua, Mónica — repetiu Michael, mas ela limitou-se a continuar a andar.
Um momento depois, ouviram o gemido do motor do helicóptero a regressar à vida. Michael avançou para a varanda a tempo de ver o helicóptero de Mónica levantar voo do relvado e desaparecer sobre as águas do estreito.
Passaram o resto do dia à espera. Cárter ficou especado na varanda, de binóculos pendurados ao pescoço, olhando fixamente na direcção do estreito, como um guarda fronteiriço no Muro de Berlim. Michael contornou a casa, caminhando decidido por praias cheias de pedras e no meio dos bosques, à procura de sinais de que o inimigo estivesse a reunir as tropas. E, durante todo esse tempo, Delaroche limitou-se a observá-los, um espectador, ligeiramente perplexo, da destruição por si causada.
Cárter manteve-se em contacto com a sede. Alguém tinha tido notícias de Mónica?, perguntava ele inocentemente no final de cada conversa. As respostas foram-se tornando cada vez mais intrigantes à medida que o dia avançava. Mónica cancelou todas as reuniões que tinha. Mónica está enfiada no gabinete. Mónica não está a receber chamadas.
Mónica passou à clandestinidade. Mónica não quer comer nem beber nada. Michael e Cárter discutiram o significado dessas informações, como é próprio dos espiões fazerem.
Estaria a redigir os seus termos de rendição ou a preparar um contra-ataque?
À tarde, Cárter foi à aldeia comprar comida. Delaroche cozinhou omeletas para todos, apoiado num banco porque não conseguia ter o tornozelo inchado no chão durante muito tempo. Beberam uma garrafa de vinho, e depois outra. Delaroche providenciou o entretenimento. Ao longo de duas horas, deu uma palestra: treino, artes do ofício, missões, identidades secretas, armamento e tácticas. Não lhes contou nada que pudessem utilizar contra ele, mas pareceu retirar prazer desse mínimo desvelar de segredos.
Não disse nada acerca de Sarah Randolph ou de Astrid Vogel, ou da noite em Cannon Point um ano antes, quando ele e Michael se tinham ferido a tiro mutuamente. Permaneceu completamente imóvel enquanto falava, de mãos cruzadas sobre a mesa, com a esquerda a tapar a direita de maneira a esconder a cicatriz enrugada que tinha conduzido Michael até ele.
Foi Cárter quem fez as perguntas, pois Michael já estava com a cabeça noutro sítio. Oh, ele estava a ouvir, pensou Cárter — Michael, o dictafone humano, capaz de monitorizar três conversas e de recitar cada uma delas a outra pessoa passada uma semana —, mas já tinha um recanto da mente a voltar-se para outro problema. Por fim, Cárter começou a falar em russo, uma língua que Michael não falava, e os dois homens terminaram a conversa em privado.
Ao cair da noite, Michael e Delaroche foram caminhar. Michael, a antiga estrela das pistas, tinha enrolado uma grande quantidade de fita adesiva branca à volta do tornozelo de Delaroche. Cárter deixou-se ficar na casa; seria como estar a escutar uma conversa entre amantes desavindos e não queria tomar parte nisso. Ainda assim, não conseguiu resistir ao impulso de ir para a varanda para os observar. Não era um voyeur, apenas um agente de controlo, tomando conta do seu agente e velho amigo.
Seguiram ao longo da divisória em direcção à doca, com Delaroche a coxear ligeiramente. Quando a luz começou a enfraquecer, Cárter deixou de ser capaz de distinguir um do outro, tão semelhantes eram os dois homens em altura e constituição. Foi então que se apercebeu de que eram como duas metades do mesmo homem. Cada um possuía traços, presentes, embora reprimidos com êxito, no outro. Se não fosse pelo património e direitos adquiridos pelo nascimento, a aleatória roleta russa do tempo e espaço, tanto um como o outro poderiam muito bem ter seguido o caminho contrário: Jean-Paul De-laroche, virtuoso agente secreto; Michael Osbourne, assassino.
Passado bastante tempo — uma hora, calculou Cárter, já que, de forma nada característica, se tinha esquecido de registar a hora a que a conversa tinha começado —,
Michael e Delaroche começaram a fazer o caminho de regresso à casa.
Pararam junto ao carro alugado de Michael e ficaram defronte um do outro, cada um no seu lado do capô. Cárter continuava a não ser capaz de dizer qual era qual.
Um deles parecia estar a falar de maneira intensa e outro a bater indolentemente com a biqueira do sapato no chão. Quando a conversa terminou, aquele que tinha estado a dar pontapés no chão estendeu a mão por cima do capô do carro, mas o outro não a quis apertar.
Delaroche retirou a mão e entrou no carro. Passou pelo portão de segurança e avançou a alta velocidade pela Shore Road, embrenhando-se na escuridão. Michael Osbourne aproximou-se da casa lentamente.
ABRIL
Capítulo 44
WASHINGTON
VIENA
SOUTH ISLAND, NOVA ZELÂNDIA
O embaixador Douglas Cannon recebeu alta do George Washington University Hospital numa manhã invulgarmente quente da segunda semana de Abril. Tinha chovido durante a noite, mas a meio da manhã as poças já resplandeciam sob um sol intenso. Havia apenas um pequeno grupo de jornalistas e operadores de câmara à espera junto ao caminho de acesso, já que os media de Washington sofrem de uma espécie de síndroma de défice de atenção colectivo e ninguém estava realmente interessado em ver um velho a sair do hospital. Ainda assim, Douglas conseguiu "ser notícia", como se costuma dizer nessa profissão, quando exigiu ruidosamente sair pelo próprio pé e não com a ajuda da obrigatória cadeira de rodas — tão ruidosamente, de facto, que os jornalistas o conseguiram ouvir lá fora. "Deram-me um tiro nas costas, que raios, não nas pernas", resmungou Cannon. Os comentários foram relatados mais tarde nas notícias da noite, para grande gáudio do embaixador.
Ficou na casa da N Street, em Georgetown, durante as primeiras duas semanas de recuperação, e depois voltou para casa, para a sua adorada Cannon Point. Uma pequena multidão que se tinha reunido para lhe dar as boas-vindas acenou e gritou quando o carro de Douglas passou por Shelter Island Heights. Permaneceu em Cannon Point durante o resto da Primavera. Os seguranças acompanhavam-no quando ia passear à beira de água, cheia de pedras, na Upper Beach, e quando percorria os trilhos da reserva de Mashomack. Por altura de Junho, já se sentia com força suficiente para ir velejar no Athena. De forma nada habitual nele, tinha entregado o leme a Michael, mas foi vociferando ordens e criticando tão energicamente os conhecimentos náuticos do genro, que Michael ameaçou atirá-lo pela borda fora junto à costa de Plum Island.
Amigos de longa data insistiram com Douglas para que se demitisse do cargo em Londres; até o presidente Beckwith considerou que essa seria a melhor opção. Mas, no final de Junho, ele regressou a Londres e instalou-se no seu gabinete na Grosvenor Square. A 4 de Julho, no Dia da Independência, compareceu perante o Parlamento a título especial e, a seguir, viajou para Belfast, onde foi recebido como um herói.
Para coincidir com a sua visita, os serviços secretos e de segurança britânicos e americanos divulgaram os resultados da sua investigação conjunta à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de matar Cannon em Washington. No comunicado, concluía-se que havia dois terroristas envolvidos, uma mulher chamada Rebecca Wells, que também estava implicada no caso de Hartley Hall, e um homem não identificado que se supunha ser um assassino profissional contratado pelo grupo.
Apesar de uma busca à escala global, os dois terroristas continuavam a monte.
Horas depois da visita de Cannon à Irlanda do Norte, um grande carro-bomba explodiu à porta de um mercado, junto à esquina da Whiterock Road com a Falis Road. Morreram cinco pessoas e foram feridas outras dezasseis. A Brigada para a Libertação do Ulster reivindicou a responsabilidade. Nessa noite, um grupo republicano extremista, dando pelo nome de Célula de Libertação Irlandesa, vingou esse atentado através da explosão de um gigantesco camião-bomba que arrasou grande parte do centro de Portadown.
O grupo prometeu prosseguir com os seus atentados até que o acordo de paz de Sexta-Feira Santa estivesse morto.
Durante várias semanas, os corredores sem fim de Langley palpitaram com os rumores acerca de uma reorganização drástica no sétimo andar. Mónica ia-se embora, segundo um rumor. Ia ficar para sempre, segundo outro. Mónica tinha caído em desgraça junto do presidente. Mónica estava prestes a tornar-se secretária de Estado. O rumor mais popular entre os seus detractores era a história de que ela tinha sofrido um esgotamento nervoso; que tinha entrado em delírio; que, num acesso de raiva psicótica, tinha tentado destruir por completo a mobília de mogno do seu gabinete.
Inevitavelmente, os rumores difundidos acerca de Mónica chegaram aos ouvidos do The Washington Post. O correspondente do jornal para as questões de espionagem preferiu excluir as coisas mais picantes que tinha ouvido, mas, numa extensa notícia de primeira página, acabou mesmo por relatar que Mónica tinha perdido a confiança dos quadros inferiores da CIA, dos barões da comunidade dos serviços secretos e até do próprio presidente. Nessa tarde, durante uma iniciativa destinada à obtenção de publicidade positiva, com miúdos da escola no Jardim das Rosas, o presidente Beckwith afirmou que Mónica Tyler continuava a ter a sua "total e absoluta confiança".
Traduzido do vocabulário de Washington para uma linguagem simples, o comentário significava que a queda de Mónica Tyler estava a ser ponderada.
Foi assolada por pedidos de entrevistas. O Meet the Press[42] queria que ela participasse no programa. Ted Koppel telefonou-lhe pessoalmente para a convidar para o Nightline[43]. Um membro dos quadros do Larry King Tive[44] tentou mesmo convencer os guardas que se encontravam no portão da frente a deixá-lo passar. Mónica recusou-os a todos. Preferiu antes emitir um comunicado escrito no qual afirmava estar à completa disposição do presidente, e se o presidente quisesse que ela permanecesse ao seu serviço assim o faria.
Mas já não havia nada a fazer. O Inverno abateu-se sobre o sétimo andar. As portas mantiveram-se fechadas a sete chaves. A papelada deixou de circular. A paralisia começava a instalar-se. Mónica estava isolada, dizia a fábrica dos rumores. Mónica estava menos acessível do que nunca. Mónica estava acabada. Tweedledee e Tweedledum só muito raramente eram vistos; e, quando acabavam por aparecer, moviam-se pelos corredores como lobos cinzentos assustadiços. Alguma coisa tinha de ser feita, diziam os rumores. As coisas não podiam continuar daquela maneira.
Por fim, em Julho, Mónica convocou uma reunião dos quadros para o auditório e anunciou a sua demissão, com efeitos a partir do dia 1 de Setembro. Estava a fazer o anúncio atempadamente para que o presidente Beckwith — que ela admirava profundamente e tinha a honra de ter servido — tivesse tempo de sobra para escolher um sucessor apropriado. Entretanto, dar-se-iam mudanças nos quadros superiores. Adrian Cárter iria passar a ser o novo director executivo. Cynthia Martin iria substituir Cárter enquanto chefe do Centro de Contraterrorismo. E Michael Osbourne iria passar a ser o novo director-adjunto de operações.
No Outono, Mónica desapareceu por completo. A sua antiga firma queria tê-la de volta, mas ela disse que precisava de algum tempo para si própria antes de regressar à labuta da Wall Street. Começou a viajar; no sétimo andar de Langley, iam chegando regularmente a Cárter e a Michael informações sobre o seu paradeiro. Mónica estava sempre sozinha, de acordo com os relatórios. Nada de amigos, família, amantes, cães — nada de contactos suspeitos de qualquer espécie. Tinha sido vista em Buenos Aires. Tinha sido avistada em Paris. Tinha ido fazer um safari na África do Sul. Foi fazer mergulho submarino no mar Vermelho, para grande surpresa de todos na sede, já que não havia lá ninguém que tivesse descoberto o facto de ela ser uma mergulhadora de grandes predicados. No final de Novembro, um perito em vigilância do posto de Viena da CIA fotografou Mónica sentada sozinha num café frio na Stephansplatz.
Nessa mesma noite, Mónica Tyler estava a regressar ao hotel a pé a seguir ao jantar, atravessando uma passagem estreita para peões na sombra da Catedral de Santo Estêvão, quando um homem lhe surgiu à frente. Era de estatura média, constituição compacta e passo ágil. Havia qualquer coisa na forma como ele se mexia, o ritmo decidido do seu andar, que fez com que disparassem alarmes na cabeça dela.
Olhou de soslaio por cima do ombro e apercebeu-se de que estava sozinha. Parou de andar, deu meia-volta e começou a voltar para a praça. O homem, agora atrás dela, limitou-se a acelerar o passo. Mónica não correu — percebeu que isso seria inútil —, fechou apenas os olhos e continuou a andar.
O homem foi-se aproximando, mas não aconteceu nada. Ela parou e voltou-se para o enfrentar. Ao virar-se, o homem tirou uma pistola do casaco. Havia um silenciador comprido e esguio instalado na ponta do cano.
— Meu Deus, não — disse ela, mas o homem levantou o braço e disparou rapidamente três vezes.
Mónica Tyler caiu para trás, ficando a olhar fixamente para os pináculos da catedral. Ouviu o seu assassino a afastar-se e sentiu o seu próprio sangue a escorrer-lhe do corpo para as frias pedras arredondadas da calçada.
A seguir, os pináculos de Santo Estêvão transformaram-se em água e ela morreu.
Em Georgetown, Elizabeth Osbourne ouviu o telefone a tocar. Agora que Michael era o director-adjunto, os telefonemas às quatro da manhã não eram invulgares. Tinha uma reunião importante com um cliente de manhã — transferira-se para o escritório da firma em Washington quando Michael foi promovido — e precisava de dormir. Fechou os olhos e tentou não ouvir Michael a murmurar às escuras.
— Alguma coisa importante? — perguntou ela quando o ouviu a pousar o auscultador.
— A Mónica Tyler foi assassinada hoje à noite em Viena.
— Assassinada? O que é que aconteceu?
— Foi morta a tiro.
— Mas quem é que iria querer matar a Mónica Tyler?
— A Mónica tinha muitos inimigos.
— Vais entrar ao serviço?
— Não — respondeu ele. — Trato disso de manhã.
Ela fechou os olhos e tentou adormecer, mas era escusado. Havia qualquer coisa na voz de Michael que a tinha deixado perturbada. A Mónica tinha muitos inimigos.
Incluindo tu, Michael", pensou.
Antes de amanhecer, ele saiu da cama. Elizabeth levantou-se e foi até ao andar de baixo. Deu com ele na sala de estar, parado diante das portas envidraçadas, a olhar fixamente para o jardim meio iluminado.
— Michael — perguntou ela baixinho —, estás bem?
— Estou óptimo — respondeu ele, sem se virar.
— Queres falar de alguma coisa?
— Não, Elizabeth — respondeu. — Só preciso de pensar.
— Michael, se há...
— Já disse que não posso falar disso, Elizabeth. Por isso, não insistas.
Deu meia-volta e afastou-se das portas envidraçadas, passando por ela sem falar.
Elizabeth reparou que a cara dele estava branca como a cal.
A Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais reuniu para a sua conferência anual de Verão num château à beira do lago, no cimo das montanhas de South Island, na Nova Zelândia. O local tinha sido escolhido com grande antecedência, e o lago gelado e os nevoeiros cerrados do Inverno da Nova Zelândia revelaram-se uma alegoria adequada para o terrível estado da Sociedade após a morte de Picasso. O passado do Director no MI6 tinha-o preparado para a ocasional operação falhada, mas nada nos serviços secretos se poderia comparar ao cessar de actividades global que ocorreu nas horas que se seguiram ao desmascarar de Picasso. De um dia para o outro, todas as operações terminaram. Os planos para novos empreendimentos foram discretamente arrumados. As comunicações conheceram um fim abrupto. O dinheiro deixou de circular. O Director encerrou-se na sua mansão em St. John's Wood, apenas com a companhia de Daphne, e fez aquilo que qualquer bom agente operacional faz a seguir a uma autêntica asneira da grossa — avaliou os estragos. E quando achou que estava na altura, pôs-se a coser discretamente os fragmentos dispersos da sua confraria secreta.
Supostamente, a conferência em South Island deveria ser uma espécie de festa de debutante. Mas a reabilitação da Sociedade revelava-se, na melhor das hipóteses, titubeante. Dois dos membros do Conselho Executivo não se deram sequer ao trabalho de comparecer. Um tentou enviar um substituto, uma sugestão que o Director considerou risível. Pouco depois de dar início à reunião, o Director, num raro acesso de cólera motivado pelo orgulho ferido, apresentou uma moção com vista a expulsá-los a ambos. A moção foi aprovada por uma votação de viva voz, registada por Daphne no seu bloco de estenografia com grande prontidão.
— O segundo ponto na ordem de trabalhos é o falecimento de Picasso — anunciou o Director, aclarando depois ligeiramente a garganta. — Estou certo de que a morte dela terá sido um choque terrível para todos vocês, mas pelo menos ela já não se encontra em posição de prejudicar a Sociedade.
— Felicito-o por lidar com o problema de uma forma tão profissional — disse Rodin.
— Mas não estás a perceber — respondeu o Director. — A morte dela foi mesmo um choque, já que a Sociedade não teve absolutamente nada a ver com isso.
— Mas e em relação ao Outubro? Ele ainda está vivo, não está?
— Parto do princípio de que seja esse o caso, mas não tenho a certeza. Talvez a CIA o tenha escondido. Talvez o Michael Osbourne o tenha matado e encoberto isso.
A única coisa que posso afirmar com certeza é que todas as nossas tentativas para o localizar fracassaram.
— Talvez eu possa ajudar — interrompeu Monet, o chefe de operações da Mossad israelita. — Os nossos homens já se mostraram capazes de encontrar fugitivos no passado.
Encontrar um homem como o Outubro não deve revelar-se demasiado difícil.
Mas o Director abanou a cabeça lentamente.
— Não — afirmou ele. — Mesmo que o Outubro continue vivo, duvido que alguma vez venha a ser um problema para nós no futuro. Na minha opinião, é melhor deixar cair o assunto. — Baixou os olhos e remexeu nos papéis. — O que me leva ao terceiro ponto na nossa ordem de trabalhos, a situação na antiga Jugoslávia. A Frente de Libertação do Kosovo gostaria de contar com a nossa ajuda. Meus senhores, estamos de volta ao activo.
EPÍLOGO
LISBOA
BRÉLÉS, FRANÇA
Jean-Paul Delaroche tinha arrendado um pequeno apartamento num prédio cor de âmbar a ruir com vista para o porto de Lisboa. Estivera em Lisboa apenas uma vez, e só de passagem, e a mudança de ares trouxe nova vida ao seu trabalho. Com efeito, atravessava o seu período mais produtivo em muitos anos. Trabalhava aplicadamente de manhã até meio da tarde, produzindo óptimas obras a partir das igrejas, das praças e dos barcos ao longo da zona ribeirinha. O dono de uma eminente galeria lisboeta viu-o a pintar uma tarde e propôs-lhe entusiasticamente expor os seus quadros. Delaroche aceitou o cartão dele com os seus dedos esborratados de tinta e disse que iria pensar nisso.
A noite, ia caçar. Ia para a varanda e punha-se à procura de sinais de vigilância. Caminhava durante horas, tentando fazer com que eles se mostrassem. Ia andar de bicicleta para o campo e desafiava-os a seguirem-no. Colocou escutas no seu próprio apartamento para ver se alguém lá entrava quando estava fora. No último dia de Novembro, aceitou o facto de que ninguém andava a vigiá-lo.
Ao final dessa tarde, saiu do apartamento e dirigiu-se para um bom café para jantar.
Pela primeira vez em trinta anos, não levou a pistola consigo.
Em Dezembro, alugou um grande Fiat e conduziu até França. Tinha deixado Brélés, a velha aldeia piscatória na costa da Bretanha, há mais de um ano e não pusera lá os pés desde então. Chegou ao meio-dia, um dia depois de partir de Lisboa, tendo passado a noite em Biarritz.
Estacionou na aldeia e foi passear a pé. Ninguém o reconheceu. Na boulangerie, Mademoiselle Trevaunce serviu-lhe o pão sem praticamente um bonjour. Mademoiselle Plauché, da charcuterie, costumava meter-se descaradamente com ele; naquele dia, foi sem alegria que lhe cortou o presunto e a fatia de queijo de cabra, despachando-o logo de seguida.
Delaroche entrou no café onde os velhos passavam as tardes. Perguntou se algum deles tinha visto uma irlandesa pela aldeia: cabelos pretos, ancas jeitosas, bonita.
— Está uma irlandesa a viver no velho chalé, no pontão — respondeu Didier, o dono de cara vermelha do armazém da aldeia. — Onde o louco vivia dantes: le Solitaire.
Quando Delaroche fez de conta que não percebia o que ele queria dizer com aquele último comentário, Didier limitou-se a rir e explicou a Delaroche o caminho até ao chalé. A seguir, perguntou-lhe se não queria acompanhá-los num pouco de vinho e azeitonas. Delaroche abanou simplesmente a cabeça e respondeu:
— Non, merci.
Delaroche seguiu de carro pela estrada da costa e estacionou a cerca de duzentos metros do chalé, numa área de descanso com vista para a água. Viu fumo a sair da chaminé, cortado logo de seguida pelo vento. Limitou-se a ficar ali sentado, a petiscar o pão e o queijo, a fumar, a observar o chalé e as ondas a baterem nas rochas.
A dada altura, teve um vislumbre do cabelo preto dela, a passar diante de uma janela aberta.
Pensou na última coisa que Michael Osbourne lhe tinha dito na véspera de partirem de Shelter Island. Ela merece pior, dissera ele nessa noite. Ela merece morrer.
Osbourne era um homem demasiado decente — demasiado virtuoso — para condenar Mónica à morte, mas Delaroche julgava saber aquilo que lhe ia no coração naquele momento. Era um pequeno preço a pagar para retribuir a Osbourne o facto de este lhe ter concedido a liberdade.
Na verdade, aquilo até lhe deu um certo prazer; ela era uma das pessoas mais desagradáveis que ele já tinha conhecido. E havia mais uma coisa — ela tinha visto a cara dele.
Rebecca surgiu no terraço, de braços cruzados por baixo do peito, a contemplar o Sol a pôr-se. Delaroche pensou: "Será que ela me quer ver? Ou será que quer que eu fique longe para poder esquecer todo este assunto?" O mais fácil para ele seria dar meia-volta e esquecê-la. Voltar para Lisboa e para o seu trabalho. Aceitar a proposta do dono da galeria e expor os quadros.
Ligou o motor. Bastou esse som distante para que ela se virasse de repente e enfiasse a mão debaixo da camisola. Era por andar escondida, pensou Delaroche. Anda a saltar ao mínimo barulho, sempre à procura de uma pistola. Ele conhecia muito bem essa sensação.
Rebecca olhou fixamente para o carro durante bastante tempo e, passado um bocado, os seus lábios ergueram-se em qualquer coisa parecida com um sorriso. A seguir, voltou as costas, contemplando o mar novamente e ficando à espera que ele viesse ter com ela. Delaroche meteu a primeira e começou a avançar pela estrada, em direcção ao chalé.
NOTAS
[1]Siglas de Ulster Volunteer Force (Força de Voluntários do Ulster), Ulster Defence Association (Associação de Defesa do Ulster) e Ulster Freedom Fighters (Combatentes para a Liberdade do Ulster). (N. do T.)
[2]Força policial da República da Irlanda. (N. do T.)
[3]Sigla de Royal Ulster Constabulary (Polícia Real do Ulster). (N. do T.)
[4]Independem Television News, fornecedor internacional de notícias e conteúdos com sede no Reino Unido. (N. do T.)
[5]Termo pejorativo para os católicos irlandeses, utilizado sobretudo na Irlanda do Norte e na Escócia. (N. do T.)
[6]Termo pejorativo para os cidadãos protestantes. (N. do T.)
[7]Theobald Wolfe Tone (1763-1798), uma das figuras principais do movimento pela independência irlandesa United Irishmen, considerado o pai do republicanismo irlandês;
Eamon de Valera (1882-1975), uma das figuras políticas dominantes do século XX na Irlanda e um importante líder da luta pela independência irlandesa em relação ao Reino Unido;
Michael John ("Mick") Collins (1890-1922), líder revolucionário irlandês que foi ministro das Finanças da República Irlandesa, director dos serviços secretos do IRA e membro da delegação irlandesa que negociou o Tratado Anglo-Irlandês de 1921, tendo sido também presidente do Governo Provisório da Irlanda do Sul e comandante-chefe do Exército Nacional. (N. do T.)
[8]No original, National Organization for Women, organização feminista norte-americana (também conhecida pela sigla NOW) fundada em 1966. (N. do T.)
[9]Ou bocha: jogo que consiste em lançar bolas e situá-las o mais perto possível de uma bola mais pequena, o bolim, lançada anteriormente. (N. do T.)
[10]Acrónimo para Grand Old Party, outra designação para o Partido Republicano dos Estados Unidos. (N. do T.)
[11]Sigla de Special Air Service (Serviços Aéreos Especiais), força especial das forças armadas do Reino Unido. (N. do T.)
[12]Marcha associada em primeiro lugar ao presidente dos Estados Unidos da América. (N. do T.)
[13]No original, "A Mighty Fortress Is Our God", o mais conhecido dos hinos compostos por Martinho Lutero. (N. do T.)
[14]Bebida espirituosa grega tradicional, com sabor a anis e um aspecto leitoso quando se lhe adiciona água. (N. do T.)
[15]Abreviatura para non-official cover, termo utilizado em espionagem para os agentes ou operacionais que adoptam disfarces em organizações sem ligações ao governo para o qual trabalham. (N. do T.)
[16]Sigla de Office of Strategic Services (Agência de Serviços Estratégicos), os serviços secretos dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[17]No original, Doubk Cross. (N. do T.)
[18]Serviços secretos do alto-comando militar alemão, activos de 1925 a 1944. (N. do T.)
[19]No original, Loyalist Volunteer Force. (N. do T.)
[20]Em francês, no original. (N. do T.)
[21]Sigla para Ulster Unionist Party (Partido Unionista do Ulster). (N. do T.)
[22]Expressão que significa "autonomia política" ou "autogoverno autónomo". (N. do T.)
[23]Rua no bairro de Westminster, no centro de Londres. (N. do T.)
[24]Sigla para Counterterrorist Center (Centro de Contraterrorismo). (N. do T.)
[25]Pancada leve dada numa bola de golfe para a introduzir no buraco. (N. do T.)
[26]Sigla para Office of Technical Services (Divisão dos Serviços Técnicos). (N. do T.)
[27]Abreviatura de Chief Of Station. (N. do T.)
[28]Em português, "brochista". (N. do T.)
[29]Canção patriótica do musical da Broadway Uttle Johnny Jones, escrita por George M. Cohan. (N. do T.)
[30]No original, "active service unit" (ou ASU), células do IRA compostas por cinco a oito membros com a missão de levar a cabo ataques armados. (N. do T.)
[31]Termo pejorativo para um cidadão de origem irlandesa. (N. do T.)
[32]Personagem do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, caracterizada pelo seu sorriso pronunciado, que levou à expressão "sorrir como um gato de Cheshire", para descrever alguém que sorri maliciosamente. (N. do T.)
[33]Em alemão, Rote Armee Fraktion ou RAF, organização guerrilheira e terrorista alemã de extrema-esquerda, também conhecida como Baader-Meinhof, fundada em 1970, na antiga Alemanha Ocidental, e dissolvida em 1998. (N. do T.)
[34]Divisão administrativa utilizada em Paris. (N. do T.)
[35]Sigla para Special Operations Executive, uma organização secreta militar britânica em actividade durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[36]canção patriótica satírica da autoria de W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, parte integrante da ópera H.M.S. Pinalore, estreada em 1878. (N. do T.)
[37]Abreviatura para Diplomatic Security Service (Serviços de Segurança do Corpo Diplomático). (N. do T.)
[38]Acção levada a cabo com o objectivo de enganar o inimigo, de maneira a obter informações ou qualquer tipo de vantagem militar. (N. do T.)
[39]Os principais responsáveis pelo atentado à bomba em Oklahoma City, a 19 de Abril de 1995. (N. do T.)
[40]Divisão de espionagem internacional do KGB. (N. do T.)
[41]James Jesus Angleton (1917-1987), antigo chefe da Divisão de Contra-Espionagem da CIA. (N. do T.)
[42]Programa semanal televisivo de informação produzido pela estação norte-americana NBC, no ar desde 1947. (N. do T.)
[43]Programa televisivo de informação nocturna produzido pela estação norte-americana ABC, iniciado em 1979. (N. do T.)
[44]Talk-show diário apresentado por Larry King na estação televisiva norte-americana CNN, no ar desde 1985. (N. do T.)
Capítulo 32
PARIS
Rebecca Wells estava a viver em Montparnasse, num prédio de apartamentos desinteressante a poucos quarteirões do terminal ferroviário. Desde que fugira de Norfolk, tinha passado a maior parte do tempo no apartamento horroroso, a olhar para programas de televisão franceses que não conseguia compreender. Às vezes, ouvia notícias do seu país na rádio. A brigada tinha sido esmagada e a culpa era dela.
Precisava de sair. Levantou-se do sofá e foi até à janela. Cinzento, como de costume: frio, desolador. Até o Ulster era melhor do que Paris em Março. Foi à casa de banho e olhou para o espelho. Uma desconhecida retribuiu-lhe o olhar. O seu esplêndido cabelo preto tinha sido destruído pelo peróxido que utilizara em Norwich para o oxigenar. Tinha a pele amarela da falta de ar e dos cigarros em demasia. A pele debaixo dos olhos parecia ter nódoas negras.
Vestiu um casaco de cabedal e parou à entrada do quarto, ouvindo o som metálico de halteres. Bateu à porta e o barulho parou. Ro-derick Campbell abriu a porta e ficou ali à sua frente, sem camisa e com o corpo esguio a brilhar do suor. Campbell era um escocês que tinha servido no exército britânico e que, a seguir, oferecera os seus serviços como mercenário e traficante de armas em África e na América do Sul. Tinha cabelo preto cortado à escovinha, uma pêra e tatuagens no peito e nos braços. Estava uma prostituta nua deitada na cama, a brincar com uma das armas dele.
— Vou sair — disse ela. — Preciso de apanhar ar.
— Tem cuidado — respondeu ele, no sotaque suave das suas Terras Altas de origem. — Queres companhia?
— Não, obrigada. Estendeu-lhe uma arma.
— Leva isto.
O elevador estava outra vez avariado, pelo que desceu para a rua pelas escadas. Meu Deus, como estava feliz por sair daquele sítio! Estava zangada com Kyle Blake por este a ter enviado para junto de um homem como Campbell. Mas as coisas podiam ser piores, pensou. Podia estar na prisão ou morta como os outros. O frio sabia-lhe bem e andou durante muito tempo. De vez em quando, parava à frente da montra de uma loja e olhava de soslaio para trás. Tinha a certeza de que não estava a ser seguida.
Pela primeira vez em muitos dias, sentiu realmente fome. Entrou num pequeno café e, servindo-se do seu francês catastrófico, pediu uma omeleta com queijo e um café creme. Acendeu um cigarro e olhou pela janela. Interrogou-se se iria ser sempre assim — viver em cidades estranhas, rodeada de pessoas que não conhecia.
Queria terminar o que tinham começado; queria o embaixador Douglas Cannon morto. Sabia que a Brigada para a Libertação do Uls-ter já não se encontrava em condições para dar conta do trabalho; na realidade, já não havia uma Brigada para a Libertação do Ulster. Para que o embaixador fosse morto, teria de haver alguém que não eles a fazê-lo. Tinha recorrido a Roderick Campbell para que a ajudasse. Ele conhecia o tipo de homens de que ela precisava: homens que ganhavam a vida a matar, homens que matavam apenas por uma razão: dinheiro.
Quando o empregado trouxe a comida, Rebecca devorou-a rapidamente. Não conseguia lembrar-se da última vez em que tinha comido verdadeira comida. Acabou a omeleta e engoliu um pedaço de baguete com a ajuda do café. O empregado voltou a aparecer e pareceu assombrado por o prato dela estar vazio.
— Tinha muita fome — disse ela, constrangida.
Pagou a conta e foi-se embora. Apertando o casaco contra a garganta com força, percorreu as ruas sossegadas de Montparnasse. Passado um momento, ouviu um carro atrás de si. Parou num telefone público e fingiu que estava a ligar para um número enquanto olhava para o carro: um grande Citroen preto, com dois homens à frente e um atrás. Talvez a polícia francesa. Talvez os serviços secretos franceses, pensou. Talvez amigos de Roderick. Talvez nada.
Começou a andar mais depressa. De repente, estava a transpirar apesar do frio. O condutor do Citroen carregou no acelerador e o barulho do motor tornou-se mais forte.
"Meu Deus", pensou ela, "vão atropelar-me!" Virou a cabeça no instante em que o carro passou por ela a toda a velocidade para depois travar a fundo e parar poucos metros à sua frente.
A porta traseira do lado do passageiro abriu-se. O homem que se encontrava no banco de trás inclinou-se para fora e disse:
— Boa tarde, menina Wells.
Ficou estupefacta. Parou de andar e olhou para ele. Tinha cabelo louro oleoso, todo puxado para trás a partir da testa, e pele clara e queimada do sol.
— Entre no carro, por favor. Receio que não seja seguro estarmos a falar na rua.
Tinha o sotaque de um inglês de boas famílias.
— Quem é o senhor? — perguntou ela.
— Nós não pertencemos às autoridades, se é isso que está a pensar — respondeu ele. — Na verdade, somos bem o contrário.
— E o que é que querem?
— Na verdade, isto tem a ver com o que a senhora quer. Ela hesitou.
— Por favor, não temos muito tempo — disse o homem louro, estendendo uma mão clara. — E não se preocupe, menina Wells. Se a quiséssemos matar, já estaria morta.
De Montparnasse, atravessaram a cidade de Paris até a um prédio de apartamentos no quinto arrondissement, na Rue Tournefort, com vista para a Place de la Contrescarpe.
O homem louro desapareceu no Citroen. Um homem a ficar careca, com uma cara rosada, ficou-lhe com a arma de Roderick e conduziu-a para um apartamento que tinha o ar de um pied-à-terre raramente utilizado. A mobília era masculina e confortável: sofás pretos informais e cadeiras agrupadas à volta de uma mesa de café de vidro; estantes para livros em madeira de teca amarelada, com relatos históricos, biografias e thrillers de autores americanos e ingleses. O que sobrava das paredes estava desocupado, com contornos esbatidos nos sítios onde antes tinham estado pendurados quadros emoldurados. O homem fechou a porta e introduziu um código de seis dígitos num teclado, presumivelmente activando o sistema de segurança. Sem dizer uma palavra, estendeu a mão e levou-a para dentro do quarto.
O quarto estava escuro, com a excepção de um pedaço junto à janela, que se encontrava iluminado por uma luz chuvosa que entrava pela persiana parcialmente aberta.
Um instante depois de a porta se fechar, um homem falou algures na escuridão. A voz era seca e precisa, a voz de um homem que não gostava de se repetir.
— Chegou-nos aos ouvidos que anda à procura de alguém que seja capaz de assassinar o embaixador americano em Londres — disse o homem. — Acho que a podemos ajudar.
— E quem é que são vocês?
— Não tem nada a ver com isso. Posso assegurar-lhe que somos perfeitamente capazes de desempenhar uma tarefa como a que tem em mente. E com muito menos trapalhada do que aquele episódio em Hartley Hall.
Rebecca tremeu de raiva, que o homem nas sombras pareceu detectar.
— Lamento informá-la, mas foram enganados em Norfolk, menina Wells — disse ele. — Caíram direitinhos numa armadilha engendrada pela CIA e o MI5. O homem que conduziu a operação foi o genro do embaixador, que por acaso trabalha para a CIA. O nome dele é Michael Osbourne. Quer que eu continue?
Ela anuiu com a cabeça.
— Se aceitar a nossa oferta de ajuda, prescindiremos dos nossos honorários habituais. E deixe-me assegurar-lhe que são normalmente bastante exorbitantes para um trabalho deste género... suspeito que bem acima das possibilidades de uma organização como a Brigada para a Libertação do Ulster.
— Estão dispostos a fazê-lo de graça? — perguntou Rebecca, incrédula.
— Exactamente.
— E o que é que querem de mim?
— Na altura indicada, irá reivindicar a responsabilidade pelo acto.
— Mais nada?
— Mais nada.
— E quando tiver terminado tudo?
— Não terá mais nenhuma obrigação, excepto a de nunca falar, sob quaisquer circunstâncias, sobre a nossa parceria consigo. E, se de facto falar das nossas combinações, reservamo-nos o direito de aplicar medidas punitivas.
Parou por um momento para permitir que o seu aviso fizesse efeito.
— É capaz de vir a encontrar dificuldades para se deslocar de um lado para o outro quando tudo isto tiver terminado — continuou. — Se quiser, podemos disponibilizar-lhe serviços que a ajudarão a manter-se a monte. Podemos providenciar-lhe documentos de viagem falsos. Podemos ajudá-la a alterar a sua aparência. Temos contactos com determinados governos que estão dispostos a proteger fugitivos a troco de dinheiro ou favores. Mais uma vez, estaríamos dispostos a disponibilizar-lhe estes serviços sem qualquer custo.
— Porquê? — perguntou ela. — Porque é que estão dispostos a fazer isso a troco de nada?
— Nós não somos uma organização filantrópica, menina Wells. Estamos dispostos a trabalhar consigo porque temos interesses comuns.
Um isqueiro acendeu-se, deixando ver uma parte da cara dele por um instante, antes de o quarto mergulhar novamente na escuridão: cabelo cor de prata, pele clara, uma boca dura, olhos frios.
— Receio que já não seja seguro para si permanecer em Paris —disse. — As autoridades francesas têm conhecimento da sua existência aqui.
Ela sentiu-se como se lhe tivessem despejado água gelada em cima da nuca. A ideia de ser presa, de ter de voltar para a Grã-Bretanha acorrentada, fê-la ficar fisicamente doente.
— Precisa de sair de França imediatamente — disse ele. — Proponho-lhe o Barém. O chefe das forças de segurança é um velho amigo meu. Estará segura e há piores sítios para se estar do que o golfo Pérsico em Março. O tempo é esplêndido nesta altura do ano.
— Não estou interessada em passar o resto dos dias deitada junto a uma piscina no Barém.
— O que é que está a querer dizer, menina Wells?
— Que quero participar na operação — respondeu ela. — Aceito a vossa oferta, mas quero estar lá para ver o homem a morrer.
— Tem treino?
— Sim — respondeu.
— E já matou alguém? Lembrou-se da noite dois meses antes — o celeiro no condado de Armagh —, quando tinha matado Charlie Bates com um tiro.
— Sim — respondeu calmamente —, já matei.
— O homem que tenho em mente para a missão prefere trabalhar sozinho — disse ele —, mas suspeito que verá que é uma opção sensata aceitar um parceiro para este contrato.
— Quando é que parto?
— Hoje à noite.
— Gostava de voltar ao apartamento para ir buscar umas quantas coisas.
— Lamento, mas isso não é possível.
— Então e o Roderick? O que vai ele pensar se eu desaparecer sem nenhuma explicação?
— Deixe que nos preocupemos nós com o Roderick Campbell.
O homem louro regressou no Citroen a Montparnasse e estacionou à porta do prédio de apartamentos de Roderick Campbell. Saiu do carro e atravessou a rua. Tinha roubado as chaves da mulher. Abriu a porta principal do rés-do-chão e subiu as escadas até ao apartamento. Tirando a Herstal automática de alta potência do cós das calças de ganga, abriu a porta e entrou sorrateiramente.
Capítulo 33
AMESTERDÃO
A previsão meteorológica para a costa holandesa era agradável para Março, pelo que Delaroche subiu para a sua bicicleta italiana de estrada ao início dessa manhã e pedalou para sul. Usava longos calções pretos de ciclismo e uma camisola de gola alta branca e de algodão por baixo da camisola de malha de um amarelo-vivo, suficientemente justa para evitar que enfolasse com o vento, mas suficientemente folgada para esconder a Beretta automática que tinha debaixo da axila esquerda. Seguiu para sul, em direcção a Leiden, atravessando Bloembollenstreek, a maior região produtora de flores da Holanda, com as suas pernas poderosas a pedalarem sem esforço pelos campos a brilharem já coloridos.
Durante algum tempo, os olhos dele foram absorvendo o campo holandês — os diques e os canais, os moinhos de vento e os campos de flores —, mas, passado um bocado, o rosto de Maurice Leroux apareceu-lhe nos pensamentos. Tinha-lhe surgido num sonho durante a noite anterior, parado à frente dele, branco como um monte de neve, com dois buracos no peito e trazendo ainda na cabeça a ridícula boina.
Eu sou de confiança. Já me ocupei de muitos homens como você.
Delaroche entrou em Leiden e almoçou num café ao ar livre na margem do Reno. Naquele ponto, apenas a poucos quilómetros da sua desembocadura no mar do Norte, o rio era estreito e corria lentamente, bem diferente da montanha de água espumosa perto da nascente, no alto dos Alpes, ou do largo gigante industrial da planície alemã. Delaroche pediu um café e uma sanduíche de queijo e fiambre.
A incapacidade de purgar o subconsciente da imagem de Leroux enervou-o. Normalmente, passava apenas por um curto período de desconforto depois de matar alguém. Mas já tinha passado uma semana desde que matara Leroux e continuava a ver a cara dele a flutuar-lhe na mente.
Lembrou-se do homem chamado Vladimir. Delaroche tinha sido separado da mãe à nascença e dado ao KGB para ser aí educado. Vladimir fora todo o seu mundo. Tinha-o treinado em línguas e nas artes do ofício. Tinha tentado ensinar-lhe alguma coisa sobre a vida antes de lhe ensinar como matar. Vladimir avisara-o que iria acabar por acontecer. Um dia, vais tirar uma vida e esse homem irá seguir-te, dissera-lhe Vladimir. Vai tomar as refeições contigo, partilhar a tua cama. Quando isso acontecer, está na altura de abandonares este ofício, porque um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional.
Delaroche pagou a conta e saiu do café. O tempo ia piorando à medida que avançava em direcção ao mar do Norte. O céu foi ficando mais carregado e o ar tornou-se mais frio. Lutou contra um forte vento de frente durante todo o caminho até Haarlem.
Talvez Vladimir tivesse razão. Talvez estivesse na altura de abandonar o jogo antes que o jogo desse conta dele. Podia voltar para o Mediterrâneo e passar os dias a andar nas suas bicicletas e a pintar os seus quadros e a beber o seu vinho no terraço com vista para o mar, e que se lixasse o Vladimir e que se lixasse o pai, e que se lixasse o Director e todas as outras pessoas que lhe tinham imposto aquela vida. Talvez pudesse encontrar uma mulher — uma mulher como Astrid Vogel, uma mulher que tivesse suficientes segredos próprios para que ele lhe pudesse confiar os seus.
Já tinha querido abandonar tudo antes, mas, com Astrid morta, isso já não fazia sentido e o Director tinha-lhe feito uma generosa proposta que era demasiado boa para recusar. Pagava-lhe uma quantidade tremenda de dinheiro e providenciava-lhe protecção contra os seus inimigos. Se deixasse a Sociedade, Delaroche estaria por sua própria conta. Teria de tratar da sua própria segurança ou encontrar um novo Protector.
Entrou em Haarlem e atravessou o rio Spaarne. Amesterdão ficava a vinte e cinco quilómetros de distância, uma bela viagem pelas margens do Noordzeekanaal. Delaroche tinha o vento nas costas e a estrada era suave e plana, pelo que demorou pouco mais de meia hora a chegar à cidade.
Levou o seu tempo até atingir o Herengracht. Entrou no apartamento e verificou os sinais que deixara para se certificar de que ninguém lá tinha estado durante a sua ausência. Havia outro bilhete escrevinhado à pressa pela rapariga alemã. Quero ver-te outra vez meu cabrão! Eva.
Ligou o computador e conectou-se à Internet. Tinha uma mensagem de e-mail nova. Abriu-a e digitou o seu nome de código. A mensagem era do Director; queria encontrar-se com ele no dia seguinte em Amesterdão, no Vondelpark.
Delaroche enviou uma resposta a dizer que lá estaria.
Na manhã seguinte, deambulou pelas barracas do Albert Cuyp-markt no anel de canais oriental. Meticulosamente, foi controlando se estava a ser seguido à medida que passava com descontracção por cestos pejados de fruta, peixe do mar do Norte, queijos holandeses e flores acabadas de cortar. Convencido de que não estava a ser seguido, foi do mercado até ao Vondelpark, o extenso parque próximo do quarteirão dos museus de Amesterdão. Avistou o Director, sentado num banco do parque que dava para um lago de patos, com a alta rapariga jamaicana ao seu lado.
O Director ainda não tinha visto Delaroche desde a cirurgia plástica em Atenas. Delaroche não gostava de jogos ou de outros divertimentos — o isolamento e o secretismo da sua vida tinham-lhe roubado qualquer oportunidade para desenvolver um verdadeiro sentido de humor —, mas resolveu pregar uma partida para testar a eficácia do trabalho que Maurice Leroux tinha feito na sua cara.
Pôs um cigarro na boca e colocou os óculos de sol. Aproximou-se do Director e, falando holandês, pediu-lhe lume. O Director passou-lhe um pesado isqueiro de prata.
Delaroche acendeu o cigarro e devolveu o isqueiro. "Dank u", disse. O Director acenou com a cabeça friamente ao voltar a enfiar o isqueiro no bolso do casaco.
Delaroche afastou-se pelo caminho. Regressou alguns momentos depois e sentou-se ao lado do Director, a comer uma pêra que tinha comprado no Albert Cuypmarkt, sem dizer nada. O Director e a rapariga afastaram-se e sentaram-se noutro banco. Delaroche observou-os com curiosidade durante um momento; a seguir, levantou-se também e juntou-se a eles no banco do lado.
O Director fez uma carranca.
— Desculpe, importava-se de...
— Penso que queria falar comigo — interrompeu Delaroche, tirando os óculos de sol.
— Deus do Céu — murmurou o Director. — És mesmo tu?
— Receio bem que sim.
— Estás bastante horrendo. Não admira que tenhas matado aquele pobre desgraçado.
— Tenho um contrato para ti.
Os olhos do Director mexiam-se de um lado para o outro rapidamente enquanto os dois homens seguiam um atrás do outro pelo caminho que atravessava o Vondelpark. Tinha começado como agente operacional — saltara de pára-quedas sobre França com o SOE[35] durante a Segunda Guerra Mundial e orientara agentes em Berlim contra os russos — e os seus instintos de sobrevivência continuavam aguçados.
— Tens andado a acompanhar a situação na Irlanda do Norte? — perguntou o Director.
— Leio os jornais.
— Então, sabes que um grupo terrorista protestante intitulado Brigada para a Libertação do Ulster tentou e não conseguiu assassinar o embaixador americano enviado para o Palácio de St. James, Douglas Cannon.
Delaroche assentiu com a cabeça.
— Li qualquer coisa acerca disso, sim.
— Mas o que tu não sabes é que a equipa de assassinos caiu direitinha numa armadilha engendrada pelo MI5 e a CIA. E o agente da CIA responsável pela parte americana da coisa era um velho amigo teu.
Delaroche olhou furiosamente para o Director.
— O Osbourne?
O Director assentiu com a cabeça.
— Escusado será dizer que a Brigada para a Libertação do Ulster gostaria de ver tanto o embaixador como o genro mortos, e nós concordámos em fazer-lhes esse trabalho.
— Com que objectivo?
— A brigada gostaria de destruir o processo de paz e, sinceramente, nós também. É mau para o negócio. Daqui a menos de duas semanas, no Dia de São Patrício, o presidente Beckwith vai presidir a um encontro entre dirigentes norte-irlandeses na Casa Branca. O Douglas Cannon vai lá estar.
— Tem a certeza disso?
— Tenho uma fonte seguríssima. Os americanos são bons a protegerem os embaixadores deles no estrangeiro, mas em casa a história é bem diferente. O Cannon não vai ter grande guarda, se a tiver sequer. Um profissional com o teu talento não deverá ter dificuldades em cumprir os termos do contrato.
— E tenho alguma escolha?
— Deixa-me recordar-te que te pago uma quantidade tremenda de dinheiro e te providencio protecção — respondeu o Director com frieza. — Em troca, tu matas para mim.
É um acordo simples.
Sempre se tinha comportado como um velho e confuso fidalgo na presença de Delaroche, mas era evidente que se tratava de um homem que utilizaria quaisquer meios ao seu dispor para atingir os seus fins.
— Na verdade, até tinha pensado que ficarias encantado com a oportunidade de enfrentar o teu velho inimigo — prosseguiu ele.
— E porque é que partiu desse princípio?
— Por causa da Astrid Vogel. Fico espantado que não tenhas já matado o Osbourne por tua conta.
— Não o matei porque não fui contratado para o matar — respondeu Delaroche. — Sou um assassino profissional, não um homicida.
— Algumas pessoas seriam capazes de ver nisso uma distinção inquestionável, mas compreendo o teu ponto de vista e respeito-te por isso. No entanto, o Osbourne continua a ser uma ameaça séria à nossa segurança. Eu dormiria melhor se ele já não estivesse entre nós.
Delaroche deteve-se e virou-se para ficar cara a cara com o Director.
— Duas semanas não são muito tempo... especialmente para um trabalho nos Estados Unidos.
— É com certeza tempo suficiente para ti. Delaroche assentiu.
— Vou fazê-lo.
— Óptimo — disse o Director. — E agora que concordaste em aceitar o contrato, há um senão. Gostava que trabalhasses com um parceiro.
— Eu não trabalho com pessoas que não conheço.
— Compreendo, mas estou a pedir-te que abras uma excepção neste caso.
— E quem é ele?
— Ela, na verdade. Chama-se Rebecca Wells. É a mulher que sobreviveu à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de assassinar o Douglas Cannon em Inglaterra.
— É uma amadora — afirmou Delaroche.
— É uma agente experimentada e já teve o seu baptismo de sangue. Por razões políticas, achamos ser importante que ela faça parte da operação. Tenho a certeza de que vais apreciar a oportunidade de trabalhar com ela.
— E se eu recusar?
— Então, lamento dizê-lo, mas perdes o direito ao teu salário e à protecção que eu te disponibilizo.
— Onde é que ela está?
O Director apontou com o dedo mais para a frente no caminho de gravilha.
— Segue naquela direcção mais ou menos uns cem metros. Hás-de encontrá-la sentada num banco: cabelos louros, a ler o Die Welt. Vou começar a preparar os dossiês e a tratar do teu transporte para a América. Fica aqui em Amesterdão até eu te contactar.
Dito isto, o Director deu meia-volta e desapareceu no nevoeiro que se espalhava pelo Vondelpark.
Delaroche comprou um pequeno mapa do centro de Amesterdão num posto de turismo no parque. Sentou-se no banco ao lado daquele em que Rebecca Wells se encontrava, fingindo obedientemente que lia a edição da véspera do Die Welt. Estava menos interessado na mulher do que no que se estava a passar à volta dela. Durante vinte minutos, sondou caras, à procura de sinais físicos de vigilância. Parecia estar sozinha, mas ele queria ter a certeza. Marcou um ponto no mapa com um círculo e foi ter com ela.
— Vai ter comigo a este sítio daqui a duas horas em ponto — disse, passando-lhe o mapa dobrado. — Não pares de andar e não chegues um minuto antes.
O ponto que Delaroche tinha assinalado no mapa era o Monumento Nacional na Dam Platz. Rebecca Wells deixou-se ficar no Vondelpark por mais meia hora, vagueando pelos jardins e passando pelos lagos sinuosos. A determinada altura, deu meia-volta e voltou para trás agilmente, obrigando Delaroche a enfiar-se numa casa de banho pública para se esconder.
Do parque foi até ao Museu Van Gogh. Comprou um livre-trânsito na bilheteira, na porta principal, e entrou. Delaroche seguiu-a com facilidade pelo museu apinhado.
Van Gogh fora uma das suas primeiras influências; distraiu-se com uma das suas obras preferidas, Campo de Trigo com Corvos, e perdeu-a de vista. Reencontrou-a passado um momento, a olhar demoradamente para o Quarto em Aries. Havia qualquer coisa no quadro colorido, uma celebração da paz doméstica por Van Gogh, que parecia intrigá-la.
Saiu do museu, deambulou pelo Albert Cuypmarkt e passeou pelo Singel até chegar ao rio Amstel. Foi aí que saltou de repente para dentro de um eléctrico que ia a passar. Delaroche fez sinal a um táxi para parar e seguiu-a.
Ela foi de eléctrico até à Leidseplein e continuou a pé até um café ao ar livre, próximo do American Hotel, onde bebeu café e comeu um bolo. Delaroche observou-a de um café do outro lado do canal. Ela pagou a conta e levantou-se, mas em vez de seguir o seu caminho pelo passeio refugiou-se dentro do café.
Delaroche atravessou o canal rapidamente. Em holandês, perguntou ao empregado se tinha visto a sua namorada — uma irlandesa, loura oxigenada. O empregado apontou para a casa de banho com a cabeça. Delaroche bateu à porta. Como ninguém respondeu, abriu-a; a mulher tinha desaparecido. Espreitou pela cozinha e viu que havia uma entrada de serviço que dava para uma viela estreita. Atravessou a cozinha, ignorando os protestos dos chefes que lá estavam a trabalhar, e entrou na viela. Não havia sinais dela.
Apanhou o eléctrico para a Dam Platz e encontrou-a sentada junto a um dos leões à frente do Monumento Nacional. Olhou para o relógio e sorriu.
— Onde é que estiveste? — perguntou. — Estava preocupada contigo.
— Não estás a ser seguida — respondeu Delaroche, sentando-se ao lado dela —, mas mexes-te como uma amadora.
— Despistei-te... não foi?
— Sou um homem a pé. Qualquer pessoa consegue despistar um homem a pé.
— Ouve-me bem, meu sacana. Eu sou de Portadown, na Irlanda do Norte. Não me fodas. Tenho frio, estou cansada e já estou farta desta merda. O velho disse que ias dar-me um sítio onde ficar. Vamos embora.
Caminharam em silêncio pelo Prinsengracht até chegarem ao Krista. Delaroche saltou para o convés da popa e estendeu a mão para que Rebecca fizesse o mesmo. Ela deixou-se ficar onde estava, olhando-o fixamente como se ele fosse louco.
— Se pensas que vou viver na merda de uma barcaça...
— Não é uma barcaça — interrompeu ele. — Agarra a minha mão. Eu mostro-te.
Subiu a bordo da casa flutuante sem a ajuda dele e observou-o a abrir o cadeado da escotilha por cima da escada. Seguiu-o até lá abaixo, ao salão, e olhou em redor, para a mobília confortável.
— Este barco é teu? — perguntou.
— É de um amigo meu.
Ela tentou acender um dos candeeiros, mas quando carregou no interruptor não aconteceu nada. Delaroche voltou a subir para o convés, desligou o cabo de alimentação do barco e ligou-a outra vez a uma tomada pública na calçada. Passado um instante, o salão do Krista irradiou com uma luz quente.
— Tens dinheiro? — perguntou Delaroche, ao descer novamente a escada.
— O velho deu-me algum — respondeu ela. — Quem é ele, já agora?
— Chama-se o Director.
— Director do quê?
— O director da organização que está a ajudar-te a matar o embaixador.
— E como é que ela se chama? Delaroche ficou calado.
— Não sabes como é que se chama?
— Sei — respondeu.
— Sabes quem é que faz parte dela?
— Estou resolvido a descobrir.
Ela atravessou o salão e sentou-se na borda da cama de Astrid. Delaroche acendeu o pequeno aquecedor.
— E tu tens nome? — perguntou ela.
— Às vezes — respondeu ele.
— Como é que te devo chamar?
— Podes ficar aqui até partirmos para a América — disse Delaroche, ignorando a pergunta. — Vais precisar de roupa lavada e de comida. Vou trazer-te umas coisas mais para a tarde. Fumas?
Ela acenou com a cabeça.
Delaroche atirou-lhe um maço de tabaco.
— Trago-te mais.
— Obrigada.
— Sabes mais alguma língua?
— Não — respondeu ela.
Delaroche soltou um longo suspiro e abanou a cabeça.
— Não precisava de outras línguas para actuar na Irlanda do Norte.
— Isto não é a Irlanda do Norte — respondeu ele. — E consegues fazer alguma coisa em relação a esse sotaque?
— O que é que o meu sotaque tem de mal?
— Mais valia pendurares uma faixa da Ordem de Orange ao peito.
— Consigo falar como uma inglesa.
— Faz isso, por favor — disse ele, subindo depois a escada pesadamente e fechando a escotilha ao sair.
Capítulo 34
SEDE DA CIA, WASHINGTON
Uma semana após o encontro de Delaroche com o Director em Amesterdão, Michael Osbourne regressou ao Centro de Contraterrorismo pela primeira vez desde que saíra de Londres. Introduziu o seu código na porta de segurança e entrou. Cárter estava sentado à secretária, debruçado sobre uma pilha de memorandos, claramente irritado.
Levantou os olhos e fixou-os em Michael, franzindo o sobrolho.
— Ora vejam bem, Sir Michael resolveu honrar-nos com a sua presença — disse Cárter.
— É um título de cavaleiro honorário. Vossa Majestade chega perfeitamente.
Cárter sorriu.
— Bem-vindo a casa. Sentimos a tua falta. Está tudo bem?
— Não podia estar melhor.
— Tens dez minutos para te pores ao corrente da situação. Depois preciso de te ver a ti e à Cynthia no meu gabinete.
— Óptimo. Vemo-nos daqui a meia hora.
Michael percorreu a Avenida Abu Nidal até ao seu cubículo. Um dos espirituosos do centro tinha pendurado uma grande bandeira do Reino Unido sobre a parede do cubículo e ouvia-se o God Save the Queen a sair baixinho de um pequeno leitor de cassetes.
— Muito engraçado — disse Michael em voz alta, para ninguém em especial.
Blaze e Eurotrash apareceram, seguidos por Cynthia Martin e Gigabyte.
.- Nós só queríamos arranjar um bocadinho o sítio para ti, Sir Michael — disse Blaze. — Sabes, fazer com que se parecesse um bocadinho menos com Langley e um bocadinho mais com a tua pátria.
— Foi muito atencioso da vossa parte.
Blaze, Eurotrash e Gigabyte afastaram-se, cantando uma versão gutural de "He Is an Englishman"[36]. Cynthia deixou-se ficar e sentou-se na cadeira em frente à secretária de Michael.
— Parabéns, Michael. Conseguiste sacar uma bela jogada.
— Obrigado. Fico grato por isso.
— Secretamente, acho que estava com esperanças de que te estampasses por completo. Nada pessoal, compreendes.
— Pelo menos, isso é sincero.
— A honestidade sempre foi uma fonte de angústia para mim. Michael sorriu.
— O meu sogro vem a Washington uns dias antes do início da conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca. Quer passar algum tempo com os netos e ver alguns dos velhos amigos do Congresso. Vamos dar um pequeno jantar na véspera da conferência. Porque é que não te juntas a nós? Eu sei que o Douglas iria dar grande valor à tua opinião.
— Adoraria ir.
Michael escrevinhou a morada numa folha de papel e entregou-lha.
— As sete em ponto — disse.
— Lá estarei — respondeu Cynthia, dobrando o papel. — Vemo-nos no gabinete do Cárter.
Michael sentou-se, ligou o computador e leu os telegramas da noite anterior. Uma patrulha da RUC tinha descoberto um carro carregado com noventa quilos de Semtex no condado de Antrim, à saída de Belfast. Pensava-se que um grupo separatista republicano intitulado Verdadeiro IRA era o responsável. Michael fechou o telegrama e abriu outro. Um católico tinha sido morto a tiro perto de Banbridge, no condado de Down. A RUC suspeitava que a Força de Voluntários Lealistas, um grupo extremista protestante ultraviolento, era a responsável. Michael abriu o telegrama seguinte. A loja de Portadown da Ordem de Orange tinha entregado o percurso que propunha para a sua parada anual. Uma vez mais, reivindicava o direito de se manifestar na Garvaghy Road. A temporada das marchas daquele Verão prometia ser tão pródiga em confrontos como a anterior.
Desligou o computador e entrou no gabinete de Cárter. Cynthia já lá estava.
— Espero que vocês os dois não estejam a pensar ter vida própria durante as próximas quarenta e oito horas — atirou Cárter.
— A nossa vida é a CIA, Adrian — respondeu Michael.
— Acabei de falar ao telefone com o Bill Bristol.
— E nós devemos ficar impressionados por teres falado com o conselheiro do presidente para a segurança nacional?
— És capaz de te calar por um minuto, porra, e de me deixares terminar?
Cynthia Martin sorriu e olhou para o seu bloco de notas. Cárter disse:
— O Beckwith anda todo stressado com a conferência sobre a Irlanda do Norte. Parece que os números dele nas sondagens andam a baixar e quer utilizar o processo de paz para fazer aumentar os seus índices de aprovação.
— Mas que bem — soltou Michael. — E como é que nós podemos ser úteis?
— Garantindo que ele está totalmente preparado para a conferência. Ele precisa de ter um quadro completo da situação no terreno no Ulster. Precisa de documentação e de informação para saber até onde é que pode pressionar os lealistas e os nacionalistas para fazer com que as coisas avancem. Precisa de saber se nós achamos que uma viagem presidencial à Irlanda do Norte é ou não uma boa ideia, dado o clima que se vive.
— Quando?
— Tu e a Cynthia vão fazer um relatório ao Bristol na Casa Branca depois de amanhã.
— Oh, que bom, pensei que ia ser uma coisa descabida.
— Se acharem que não conseguem dar conta do recado...
— Nós conseguimos dar conta do recado.
— Bem me parecia.
Michael e Cynthia levantaram-se. Cárter disse:
— Espera um minuto, Michael.
— Querem falar de mim nas minhas costas? — perguntou Cynthia.
— Como é que adivinhaste? — respondeu Adrian.
Cynthia lançou um olhar carrancudo a Cárter e saiu do gabinete. Cárter disse:
— Não faças planos para o almoço.
A sala de jantar da CIA fica no sétimo andar, por trás de uma pesada porta de metal com aspecto de poder ir dar à casa das máquinas. Dantes chamavam-lhe sala de jantar executiva, até que o Departamento de Recursos Humanos descobriu que os quadros subalternos achavam o nome ofensivo. A CIA desembaraçou-se da palavra "executiva" e abriu o restaurante a todos os empregados. Tecnicamente, os trabalhadores da doca de carga e descarga podiam ir até ao sétimo andar para almoçar com os directores-adjuntos e os chefes de divisão. Ainda assim, a maior parte dos quadros preferia a enorme cafetaria na cave, afectuosamente conhecida como "o fosso da mistela", onde podiam trocar mexericos à vontade sem medo de serem ouvidos pelos superiores.
Mónica Tyler estava sentada a uma mesa junto à janela, com vista para as árvores grossas dispostas ao longo do rio Potomac. Os seus dois sempre presentes factótuns, conhecidos de forma jocosa como Tweedledum e Tweedledee, estavam sentados ao lado dela, cada um agarrando com força uma pasta de couro como se estas contivessem os segredos perdidos do mundo antigo. As mesas à volta estavam vazias; Mónica Tyler possuía um talento para criar espaço vazio em seu redor, de forma bastante semelhante a um psicopata com um punhado de dinamite.
Continuou sentada quando Michael e Cárter entraram na sala e se sentaram. Uma empregada trouxe os menus e as outras cartas. Na sala de jantar, os convidados não faziam os seus pedidos oralmente; em vez disso, tinham de preencher um pequeno formulário meticulosamente e fazer o somatório da própria conta. Os espirituosos da agência afirmavam na brincadeira que os formulários eram recolhidos ao final de cada dia e enviados para o Departamento de Recursos Humanos para uma avaliação psicológica. Cárter procurou em vão que Mónica se deixasse envolver numa conversa de circunstância enquanto se debatia com o complexo formulário de pedidos. Michael sabia que a refeição iria ser cobrada ao gabinete da Directora e, por isso, escolheu os artigos mais caros do menu: cocktail de camarão, bolos de caranguejo grelhado e creme brâlée para a sobremesa. Tweedledee preencheu o formulário de Mónica por ela.
— Agora que conseguiste neutralizar a Brigada para a Libertação do Ulster — começou por dizer de repente Mónica —, nós achamos que está na altura de saíres do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e passares para uma coisa mais produtiva.
Michael olhou para Cárter, que encolheu os ombros.
— E quem são esses nós? — perguntou Michael.
Mónica levantou os olhos da salada como se tivesse achado a pergunta impertinente.
— O sétimo andar, claro.
— Por acaso, estava com esperanças de poder passar mais tempo a trabalhar no caso Outubro — disse Michael.
— Por acaso, tenciono retirar-te por completo do caso Outubro. Michael afastou o prato de camarão meio comido e pousou o guardanapo em cima da mesa.
— Uma parte do nosso acordo em relação ao meu regresso à CIA era que me seria permitido passar parte do meu tempo à procura dele. Porque é que estás a tentar fugir ao nosso acordo?
— Para ser sincera contigo, Michael, o Adrian achou que deixar-te ir atrás do Outubro poderia ser suficiente para te atrair de volta ao centro. Mas eu nunca achei grande coisa da ideia e continuo a não achar. Mais uma vez, provaste ser um agente eficaz, e seria negligente da minha parte se permitisse que continuasses a trabalhar num caso que é pouco provável que produza frutos.
— Mas já produziu frutos, Mónica. Provei que o Outubro ainda está vivo e que continua em actividade como assassino e terrorista.
— Não, Michael, tu não provaste que ele está vivo. Tu lançaste a teoria de que ele ainda está vivo, com base na ampliação da fotografia de uma mão. Isso está muito longe de ser uma prova irrefutável.
— Nós raramente lidamos com provas irrefutáveis neste ramo, Mónica.
— Não me pregues sermões, Michael.
Calaram-se quando a empregada apareceu e levantou a mesa depois do primeiro prato.
— Enviámos um alerta à Interpol — recomeçou Mónica. — Avisámos os nossos aliados. Não há muito mais que possa ser feito. Neste momento, trata-se de uma questão de polícia e isto não é uma agência policial.
— Não concordo — respondeu Michael.
— Com que ponto?
— Tu sabes com que ponto.
Os acólitos de Mónica agitaram-se nos seus lugares com inquietação. Cárter começou a catar um fio solto da toalha de mesa. Nada enfurecia mais Mónica Tyler do que ser desafiada por alguém que se encontrasse abaixo dela na cadeia alimentar da agência.
— Alguém contratou o Outubro para assassinar o Ahmed Hus-sein — prosseguiu Michael. — Alguém está a disponibilizar-lhe protecção, documentos para viajar e dinheiro.
Precisamos de descobrir quem está a patrociná-lo. E isso é um trabalho de espionagem, Mónica, não de polícia.
— Mais uma vez, Michael, estás a partir do princípio de que o Outubro era o homem que estava no Cairo. Pode ter sido um agente dos serviços secretos israelitas.
Pode ter sido um membro do Hamas que fosse rival dele. Pode ter sido um assassino da OLP.
— Pode ter sido um pato à Pequim, mas não era. Era o Outubro.
— Não concordo.
Sorriu, demonstrando que se tinha servido das palavras de Michael intencionalmente. Os olhos dela vasculhavam-no sem parar, de um lado para o outro, como se estivessem à procura do melhor sítio para lhe inserir um punhal.
Michael rendeu-se.
— E o que é que tens em mente para mim?
— O processo de paz no Médio Oriente está a dar as últimas — respondeu ela. — O Hamas anda a colocar bombas em Jerusalém e nós recebemos indicações de que a Espada de Gaza está prestes a entrar em acção na Europa. Com toda a probabilidade, isso significa que irão visar americanos. Quero que termines os preparativos para a conferência na Casa Branca sobre a Irlanda do Norte e, a seguir, quero-te outra vez a tratar da Espada de Gaza.
— E se eu não estiver interessado?
— Então, receio que o teu regresso à CIA, embora altamente bem-sucedido, vá ser bastante breve.
Morton Dunne era para a CIA aquilo que "Q" era para os serviços secretos de James Bond. Chefe-adjunto da divisão dos Serviços Técnicos, Dunne era o criador de canetas que explodiam e de microfones transmissores de alta frequência que podiam ser escondidos na fivela de um cinto. Era um engenheiro electrotécnico formado no MIT que podia estar a ganhar cinco vezes mais no sector privado do que o salário que auferia a trabalhar para o Estado. Escolheu a CIA porque a parafernália de espionagem sempre o havia intrigado. No seu tempo livre, fazia a manutenção das antigas câmaras e armas de espionagem instaladas no museu improvisado da agência. E também era um dos principais criadores, em todo o mundo, de papagaios experimentais. Ao fim-de-semana, podia ser encontrado na Ellipse, a fazer voar as suas criações em redor do Monumento de Washington. Uma vez, colocou uma câmara em miniatura de alta resolução num papagaio e fotografou cada centímetro quadrado do relvado sul da Casa Branca.
— Tens autorização para isto, suponho — disse Dunne, sentado diante de um grande ecrã de computador.
Era o protótipo de um licenciado do MIT — magro, pálido como um habitante das cavernas, com óculos de armações de metal que estavam sempre a escorregar-lhe pela cana do nariz estreito.
— Não posso fazer isto sem autorização do teu chefe.
— Eu trago-ta mais logo, mas preciso das fotos agora.
Dunne colocou as mãos no teclado.
— Como é que era o nome dele?
— Outubro. Aquele que fizemos o mês passado para o alerta para a Interpol.
— Oh, sim, já me lembro — disse Dunne, com os dedos a matraquearem no teclado.
Passado um momento, a cara de Outubro surgiu no ecrã.
— E que queres que eu faça?
— Acho que ele é capaz de ter feito uma operação plástica para mudar de cara — disse Michael. — Tenho quase a certeza de que o trabalho foi feito por um francês chamado Maurice Leroux.
— O doutor Leroux pode ter feito todo o tipo de coisas para lhe alterar a aparência.
— Podes mostrar-me umas quantas? — pediu Michael. — Podes fazer uma série completa? Mudar-lhe o cabelo, pôr-lhe uma barba, tudo.
— Vai demorar um bocado.
— Eu espero.
— Senta-te ali — disse Dunne. — E, por amor de Deus, Osbourne, não mexas em nada.
Foi logo a seguir à meia-noite que o carro com motorista de Mónica Tyler chegou ao complexo de Harbor Place, na zona costeira de Georgetown. O guarda-costas abriu-lhe a porta e seguiu-a pelo átrio de entrada até ao elevador. Acompanhou-a à porta do apartamento e deixou-se ficar ali quando ela entrou.
Mónica pôs a água a correr na banheira gigante e despiu-se. Já era quase manhã em Londres. O Director era conhecido por se levantar muito cedo; ela sabia que ele estaria sentado à secretária dali a poucos minutos. Enfiou-se na banheira e deixou-se descontrair na água quente. Depois de terminar, embrulhou-se num grosso roupão branco.
Foi até à sala de estar e sentou-se atrás da secretária de mogno. Havia aí três telefones: um telefone normal com oito linhas, um telefone interno para Langley e um telefone especial seguro que lhe permitia ter conversas sem medo de haver alguém à escuta. Olhou para o relógio de ouro de antiquário que tinha sobre a secretária, um presente da sua antiga firma na Wall Street: 0h45.
Mónica lembrou-se das circunstâncias — as coincidências, as alianças políticas e os acasos felizes — que a tinham conduzido até ao topo da CIA. Terminara o curso na Faculdade de Direito de Yale em segundo lugar, mas, em vez de partir para uma grande firma, acrescentou ao currículo um MBA em Harvard e foi para a Wall Street ganhar dinheiro. Foi lá que conheceu Ronald Clark, angariador de fundos republicano e um homem astuto que entrava e saía de Washington consoante os republicanos controlavam ou não a Casa Branca. Mónica seguiu Clark para o Tesouro, Comércio, Negócios Estrangeiros e Defesa. Quando o presidente Beckwith o nomeou como director da CIA, Mónica tornou-se a directora executiva, o segundo cargo mais poderoso na agência. Quando Clark decidiu reformar-se, Mónica fez lóbi no sentido de ser escolhida para o cargo principal e Beckwith concedeu-lho.
Ronald Clark deixou-lhe uma CIA num estado de desordem. Uma série de outros casos de espionagem, incluindo o caso Aldrich Ames, tinha devastado o moral. A agência não tinha conseguido prever que tanto a índia como o Paquistão se encontravam prestes a fazer explodir engenhos nucleares ou que o Irão e a Coreia do Norte estavam prestes a testar mísseis balísticos capazes de atingirem os seus vizinhos. Durante as audiências para a sua homologação, vários senadores insistiram com ela para que justificasse o tamanho e o custo da CIA; um deles interrogou-se alto e bom som se os Estados Unidos precisariam realmente de uma CIA numa altura em que a guerra fria tinha terminado.
Supostamente, ela deveria ser uma espécie de mera caseira, alguém que mantivesse a cadeira no gabinete do director da CIA quente durante um par de anos, até o sucessor de Beckwith poder nomear o seu chefe dos serviços secretos. Mas ela revelou-se incapaz de desempenhar o papel de caseira e deu início à missão de se tornar indispensável a quem quer que se sentasse na Sala Oval depois de Beckwith; republicano ou democrata.
Achava-se a única pessoa em Langley com a visão para conduzir a CIA pelo terreno instável do período pós-guerra fria. E também tinha estudado a história da espionagem. Sabia que por vezes era necessário sacrificar alguns de maneira a garantir a sobrevivência de muitos. Sentia uma afinidade com os agentes especialistas em logro durante a Segunda Guerra Mundial, que enviavam homens e mulheres para a morte de modo a enganar a Alemanha nazi. Nunca iria permitir que a CIA fosse castrada. Nunca iria permitir que os Estados Unidos ficassem sem um serviço de informações conveniente. E iria fazer tudo para se assegurar de que era ela quem comandava as operações. E era por isso que tinha aderido à Sociedade e que seguia o seu código.
A uma da manhã, levantou o auscultador do telefone seguro e marcou um número. Passados alguns segundos, ouviu a voz agradável e educada da assistente do Director, Daphne. A seguir, o Director veio ao telefone.
— Já não precisa de se preocupar com o Osbourne — disse ela. — Foi-lhe atribuído um novo caso e o processo referente ao caso Outubro foi efectivamente arquivado.
No que à CIA diz respeito, o Outubro está morto e enterrado.
— Muito bem — disse o Director.
— E onde é que está a encomenda?
— A caminho das Caraíbas — respondeu ele. — Deve estar a chegar aos Estados Unidos durante as próximas trinta e seis a quarenta e oito horas. E depois estará tudo terminado.
— Excelente — disse ela.
— Confio que transmitirás quaisquer informações que possam ajudar a encomenda a chegar a tempo ao seu destino.
— Claro, Director.
— Eu sabia que podia contar contigo. Bom dia, Picasso — disse o Director, e a ligação foi interrompida.
Capítulo 35
BAÍA DE CHESAPEAKE, MARYLAND
O Boston Whaler ia ressaltando nas águas agitadas da baía de Chesapeake. O céu estava limpo e a noite, fria de rachar; uma brilhante lua de quarto crescente flutuava lá no alto, acima do horizonte a leste. Delaroche tinha apagado as luzes de presença pouco depois de entrar na embocadura da baía. Esticou o braço e carregou num botão da unidade de navegação instalada no painel de instrumentos. O sistema GPS calculou automaticamente a longitude e a latitude exactas a que se encontrava; estavam no centro das movimentadas rotas de navegação do canal de Chesapeake.
Rebecca Wells estava ao seu lado, segurando com força o leme da segunda consola do Whaler. Sem falar, apontou para o lado de lá da proa. A frente deles, talvez a um quilómetro e meio, brilhavam os faróis de um navio de carga. Delaroche virou alguns graus a bombordo e avançou a toda a velocidade pelas águas pouco fundas da margem ocidental.
Tinha planeado meticulosamente o seu percurso pela baía de Chesapeake durante a longa viagem de Nassau até à costa leste. Tinham efectuado essa etapa da viagem a bordo de um grande iate a caminho do oceano, pilotado por um par de antigos homens da SAS pertencentes à Sociedade. Ele e Rebecca ficaram em camarotes de luxo contíguos.
De dia, estudavam mapas de Chesapeake, analisavam os dossiês de Michael Osbourne e Douglas Cannon e memorizavam as ruas de Washington. A noite, iam até ao convés da popa e treinavam a pontaria com as Beretta de Delaroche. Rebecca pressionou-o para que lhe dissesse o nome dele, mas, de cada vez que perguntava, Delaroche limitava-se a abanar a cabeça e mudava de assunto. Sentindo-se frustrada, baptizou-o de "Pierre", o que Delaroche detestou. Na última noite a bordo do iate, admitiu que não tinha um nome verdadeiro mas que, se ela achava que era necessário referir-se a ele como qualquer coisa, então devia chamar-lhe Jean-Paul.
Delaroche continuava furioso por ser obrigado a trabalhar com a mulher, mas o Director tinha tido razão numa coisa: ela não era amadora nenhuma. O conflito na Irlanda do Norte tinha-lhe aguçado ao máximo as capacidades. Possuía uma memória soberba e instintos operacionais perfeitos. Era alta e bastante forte para uma mulher, e, após três noites de treino com a Beretta, já era uma atiradora mais do que razoável. Delaroche estava preocupado apenas com uma coisa — o idealismo dela. Ele só acreditava na sua arte. Os fanáticos enervavam-no. Em tempos, Astrid Vogel tinha sido uma crente como Rebecca — quando fazia parte do grupo terrorista comunista da Alemanha Ocidental, a Facção Exército Vermelho —, mas, quando ela e Delaroche trabalharam juntos, já tinha descartado os seus ideais e estava naquilo apenas pelo dinheiro.
Delaroche tinha decorado todos os pormenores de Chesapeake — os bancos de areia, os rios e as baías, os terrenos planos e os promontórios. Tudo o que necessitava era de uma indicação do GPS para saber exactamente onde se encontrava em relação a terra. Tinha passado Sandy Point, Cherry Point e Windmill Point. Quando chegou a Bluff Point, já se sentia hirto e dorido do frio. Desligou os motores e beberam café quente de um termos.
Verificou a unidade de navegação GPS: 38,50 graus de latitude por 76,31 graus de longitude. Sabia que estava a aproximar-se de Curtis Point, um promontório na embocadura do West River. O seu destino era o South River, o rio seguinte por onde entrava o mar e que ia desembocar na baía, vindo de Maryland, mais ou menos a cinco quilómetros e meio a norte. Ao passar Saunders Point, viu a primeira luz do dia surgir a leste, a estibordo do Whaler. Contornou Turkey Point e sentiu o empurrão ligeiro da maré vinda do South River.
Acelerou a fundo, subindo o rio para nordeste. Queria chegar a costa e estar na estrada antes de amanhecer. Passou a grande velocidade por Mayo Point e Brewer Point, Glebe Bay e Crab Creek. Passou por baixo de uma ponte e depois de outra. Chegou à desembocadura de um ribeiro e verificou a unidade de navegação para ter a certeza de que se tratava do Broad Creek. A maré estava a baixar e tinha deixado o ribeiro com menos água do que os mapas haviam prometido; por duas vezes, Delaroche saltou para dentro da água gélida e empurrou o Whaler, desencalhando-o do fundo.
Por fim, atingiu a nascente do ribeiro. Encalhou o Whaler num. pedaço de relva pantanosa, desligou o motor, pulou para terra e, puxando pela corda da proa, arrastou o barco mais para dentro do pântano.
Rebecca trepou para o compartimento da frente e pegou num grande saco de lona repleto de material: roupa, dinheiro e equipamento electrónico. Entregou o saco a Delaroche e, a seguir, desceu do barco para o pântano encharcado. O carro estava estacionado num caminho de terra batida, exactamente onde o Director tinha dito que estaria: um grande Volvo preto, com matrícula do Quebeque.
Delaroche tinha uma chave. Abriu o porta-bagagens e atirou o saco lá para dentro. Seguiu por uma série de estradas com duas faixas durante vários quilómetros, passando por terras de cultivo e pastagens iluminadas pelo sol, até chegar à Route 50. Virou para a auto-estrada e seguiu para leste, em direcção a Washington.
Uma hora depois de irem buscar o Volvo, entraram em Washington pela New York Avenue, um corredor de passagem imundo utilizado por quem entrava e saía da cidade diariamente, que se estendia da secção nordeste da cidade até aos subúrbios de Maryland. Delaroche tinha parado uma vez numa estação de serviço à beira da estrada para que ele e Rebecca pudessem mudar-se e vestir roupas mais apropriadas. Atravessou a cidade pela Massachusetts Avenue e parou junto ao caminho de acesso ao hotel em Embassy Row, perto de Dupont Circle. Tinham uma reserva à espera deles, em nome do senhor Clau-de Duras e esposa, de Montreal.
As exigências da história que lhes servia de disfarce obrigaram-nos a partilhar o mesmo quarto. Dormiram até meio da tarde, Rebecca na cama de casal e Delaroche no chão, com a coberta da cama a fazer as vezes de colchão. Acordou de repente, às quatro da tarde, surpreendido pelo que o rodeava, e deu-se conta de que tinha estado a sonhar outra vez com Maurice Leroux.
Pediu, que lhe trouxessem café ao quarto e bebeu-o enquanto guardava vários artigos numa mochila de nylon azul: duas peças de equipamento electrónico sofisticado, dois telemóveis, uma lanterna, várias ferramentas pequenas e uma Beretta de nove milímetros. Rebecca saiu da casa de banho, trazendo calças de ganga azuis, ténis e uma camisola de mangas compridas com as palavras Washington, d. c. e uma imagem da Casa Branca bordadas.
— Como é que estou? — perguntou.
— O teu cabelo está demasiado louro — respondeu Delaroche, enfiando a mão no saco de lona e atirando-lhe um boné de basebol. — Põe isso.
Telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para ter o Volvo à espera deles. Seguiu para oeste no carro, percorrendo a P Street. Havia um mapa turístico no tabliê, que Delaroche não se deu ao trabalho de abrir; as ruas de Washington, tal como as águas de Chesapeake, estavam-lhe gravadas na memória.
Entrou em Georgetown e foi avançando pelas ruas sossegadas e repletas de folhas. Era considerado o bairro mais chique de Washington, com passeios em tijoleira e grandes casas no estilo de arquitectura federal, mas para Delaroche, cujo olhar estava habituado aos canais e às casas com empenas de Amesterdão, tudo parecia bastante prosaico.
Continuou para oeste, pela P Street, até chegar à Wisconsin Avenue. Aí, seguiu para sul, acompanhado pelo ritmo pulsante da música rap que vibrava do BMW dourado atrás de si. Virou para a N Street e a loucura da Wisconsin Avenue dissipou-se lentamente, ficando para trás.
A casa estava vazia, exactamente como Delaroche sabia que estaria. O embaixador Cannon chegaria de Londres na tarde do dia seguinte. Ia dar um jantar privado para amigos e família nessa noite. Um dia depois, participaria numa conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca e, a seguir, estaria presente num conjunto de recepções nocturnas, da responsabilidade das partes participantes nas conversações. Estava tudo no dossiê do Director.
Delaroche estacionou à esquina da casa, na Thirty-third Street. Colocou uma máquina fotográfica ao pescoço e passeou-se pelo quarteirão sossegado, de braço dado com Rebecca, parando aqui e ali para admirar as grandes casas citadinas de tijolo com a luz a jorrar das janelas. Era bastante parecido com Amesterdão, pensou, a maneira como as pessoas deixavam as cortinas abertas e permitiam que quem passasse lhes olhasse para dentro de casa e avaliasse as suas posses.
Já lá tinha estado antes; sabia os desafios que a N Street colocava a um homem como ele. Não havia cafés onde pudesse demorar-se a beber um café, não havia lojas para fazer compras como medida de diversão, não havia praças nem parques para passar o tempo sem atrair atenção — apenas grandes e dispendiosas casas, com vizinhos metediços e sistemas de segurança.
Passaram à frente da casa dos Osbourne. Um grande carro preto estava estacionado do outro lado da rua. Sentado ao volante, estava um homem com uma gabardina castanho-clara, a ler a secção desportiva do The Washington Post. Lá se ia a teoria do Director de que seria fácil matar o embaixador Cannon enquanto ele estivesse em Washington, pensou Delaroche. O homem ainda nem sequer tinha posto os pés na cidade e a casa já se encontrava sob vigilância.
Parou a um quarteirão de distância e tirou fotografias à casa onde John Kennedy tinha vivido quando era um senador do Massachusetts. Alguns secretários ministeriais viviam em Georgetown; as suas casas estavam sob vigilância constante. Se o funcionário em questão estivesse envolvido em matérias de segurança nacional, como o secretário de Estado ou o secretário da Defesa, os seus guarda-costas poderiam até manter um posto permanente num apartamento vizinho. Mas Delaroche estava convicto de que as medidas de segurança para Douglas Cannon consistiam inteiramente no homem com a gabardina castanho-clara — pelo menos, até àquele momento.
Seguiu, com Rebecca atrás, para sul pela Thirty-first Street, cerca de meio quarteirão, até chegarem a uma viela que se estendia por trás da casa dos Osbourne. Espreitou para a quase escuridão; tal como suspeitava, parecia que as traseiras da casa não se encontravam vigiadas.
Delaroche entregou um telemóvel a Rebecca.
— Fica aqui. Liga se houver algum problema. Se eu não regressar daqui a cinco minutos, vai-te embora e volta para o hotel. Se eu não der notícias durante a próxima meia hora, entra em contacto com o Director e faz um pedido de extracção.
Rebecca assentiu com um aceno de cabeça. Delaroche deu meia-volta e começou a avançar pela viela. Parou atrás da casa dos Osbourne e, a seguir, trepou a vedação habilmente e deixou-se cair num jardim bem arranjado que rodeava uma pequena piscina. Olhou para cima e seguiu as linhas que vinham do posto telefónico na viela até ao ponto em que se ligavam à casa. Atravessou o jardim e ajoelhou-se em frente à caixa do telefone nas traseiras da casa. Abriu o fecho da mochila e tirou as ferramentas e uma lanterna. Segurando a lanterna entre os dentes, desatarraxou os parafusos que seguravam a tampa da caixa e estudou a configuração das linhas durante um momento.
Havia duas linhas com ligação à casa, mas Delaroche apenas possuía o equipamento para pôr uma delas sob escuta. Suspeitou que uma das linhas estava provavelmente reservada para as chamadas e a outra para um fax ou modem. Voltou a enfiar a mão na mochila e tirou um pequeno aparelho electrónico. Ligado à linha telefónica dos Osbourne, iria transmitir um sinal de rádio de alta frequência para o telemóvel de Delaroche, permitindo-lhe monitorizar as chamadas do casal. Delaroche demorou apenas dois minutos a instalar o aparelho na linha principal dos Osbourne e a atarraxar novamente a tampa da caixa do telefone.
O segundo aparelho seria muito mais fácil de instalar, uma vez que necessitava apenas de uma janela. Era um mecanismo de escuta que, quando ligado ao exterior de uma janela, iria detectar a vibração das ondas sonoras no interior da estrutura e convertê-las em áudio simulado. Delaroche prendeu o sensor à parte inferior de uma janela )unto à sala de estar principal. Estava escondido por um arbusto, no exterior, e pela aba de uma mesa, no interior da casa. Enterrou a unidade de conversão e transmissão numa zona de adubo vegetal no jardim.
Voltou para trás, seguindo pelo relvado pelo mesmo caminho que tinha feito. Atirou a mochila para o outro lado da vedação e, a seguir trepou-a e deixou-se cair na viela. As duas unidades que tinha acabado de colocar na casa dos Osbourne possuíam um alcance efectivo de três quilómetros, o que lhe possibilitaria monitorizá-los a partir da segurança do seu quarto de hotel em Dupont Circle.
Rebecca estava à espera dele no final da viela.
— Vamos embora — disse ele. Pegou-lhe na mão e regressaram ao Volvo.
Delaroche estava sentado diante de um auscultador do tamanho de uma caixa de sapatos, a testar o sinal do transmissor que tinha colocado na janela dos Osbourne.
Rebecca encontrava-se na casa de banho. Conseguia ouvir o som da água a correr no lavatório. Já estava lá dentro há mais de uma hora. Por fim, a água parou de correr e ela saiu, num roupão de banho do hotel, com o cabelo enrolado numa toalha branca como um xeque. Acendeu um dos cigarros dele e perguntou:
— Funciona?
— O transmissor está a enviar um sinal, mas só vou poder ter a certeza quando estiver alguém dentro de casa.
— Tenho fome — disse ela.
— Pede qualquer coisa para comer ao serviço de quartos.
— Quero sair.
— É melhor ficarmos aqui.
— Andei dez dias enfiada em barcos. Quero sair.
— Veste-te e eu levo-te a qualquer lado.
— Fecha os olhos — disse ela.
Em vez disso, Delaroche voltou-se e ficou de frente para ela. Esticou o braço e puxou-lhe a toalha que tinha à volta da cabeça. O cabelo dela já não possuía um tom louro abrasivo; estava quase preto e brilhava da humidade. De repente, encontrava-se em sintonia com o resto do seu aspecto — os olhos cinzentos, a pele branca e luminosa, o rosto oval. Apercebeu-se de que era uma mulher formidavelmente bonita. Depois ficou zangado; desejou poder esconder-se numa casa de banho com uma garrafa de elixir e sair de lá, passada uma hora, com a sua cara antiga.
Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Tens cicatrizes — disse, passando-lhe com um dedo pela linha do maxilar. — O que é que aconteceu?
— A minha cara não era esta. Se nos mantivermos muito tempo neste ramo, uma cara pode tornar-se uma fonte de risco.
O dedo dela já tinha passado da linha do maxilar para a maçã do rosto e tocava agora nos implantes de colagénio logo por baixo da pele.
— Como é que eras antes?
Delaroche arqueou as sobrancelhas e reflectiu sobre a pergunta dela por um instante. Pensou: como descreveria uma pessoa a sua própria aparência? Se dissesse que em tempos tinha sido belo, antes de Maurice Leroux lhe ter destruído a cara, ela poderia achar que era um mentiroso. Sentou-se à secretária e pegou numa folha de papel do hotel e num lápis.
— Afasta-te por uns minutos — disse.
Ela foi outra vez para a casa de banho, fechou a porta e ligou o secador de cabelo. Ele trabalhou depressa, com o lápis a rabiscar na folha. Depois de terminar, avaliou as suas feições de uma forma bastante desapaixonada, como se pertencessem a uma criatura por ele imaginada.
Enfiou o auto-retrato por baixo da porta da casa de banho. O secador parou de fazer barulho. Rebecca saiu, com a antiga cara de Delaroche nas mãos. Olhou para ele e, a seguir, para a imagem na folha. Beijou o retrato e deixou-o cair no chão. A seguir, beijou Delaroche.
— Quem era ela, Jean-Paul?
— Quem?
— A mulher em que estavas a pensar enquanto fazias amor.
— Eu estava a pensar em ti.
— Não o tempo todo. Eu não estou zangada, Jean-Paul. Não é como se...
Deteve-se antes de poder acabar de dizer aquilo em que estava a pensar. Delaroche interrogou-se sobre o que poderia ela ter dito. Ficou deitada de costas, com a cabeça pousada no abdómen dele e o cabelo escuro espalhado pelo peito. A luz da rua entrava pelas cortinas abertas e caía-lhe sobre o corpo comprido. Tinha a cara ruborizada e arranhada de ter feito amor, mas o resto do corpo era branco-marfim à luz do candeeiro. Era a pele de uma pessoa que raramente tinha visto o sol; Delaroche duvidava que ela alguma vez tivesse posto os pés fora das Ilhas Britânicas antes de ter sido forçada a andar escondida.
— Ela era bonita? E não me mintas mais.
— Sim — respondeu.
— E como é que se chamava?
— Chamava-se Astrid.
— Astrid quê?
— Astrid Vogel.
— Lembro-me de uma mulher chamada Astrid Vogel que fazia parte da Facção Exército Vermelho — disse Rebecca. — Abandonou a Alemanha e andou escondida depois de assassinar um polícia alemão.
— Essa era a minha Astrid — confirmou Delaroche, passando com o dedo por cima da borda do seio de Rebecca. — Mas a Astrid não matou o polícia alemão. Eu é que o matei. Ela limitou-se a pagar o preço.
— Então, és alemão? Delaroche abanou a cabeça.
— Então, és o quê? Qual é o teu nome verdadeiro?
Mas ele ignorou a pergunta. Os dedos passaram do seio dela para a parte de fora da caixa torácica. O abdómen de Rebecca reagiu involuntariamente ao toque dele, retraindo-se repentinamente. Delaroche acariciou-lhe a pele branca do estômago e a parte de cima das coxas. Por fim, ela pegou-lhe na mão e colocou-a entre as pernas. Os olhos fecharam-se-lhe. Uma rajada de vento agitou as cortinas e ela ficou com pele de galinha do calafrio. Tentou tapar o corpo com a coberta, mas Delaroche afastou-a.
— Havia coisas na casa flutuante de Amesterdão que pertenciam a uma mulher — disse ela baixinho, de olhos fechados. — A Astrid vivia naquele barco, não vivia?
— Sim, vivia.
— E tu vivias lá com ela?
— Durante um tempo.
— E fizeram amor na cama por baixo da clarabóia?
— Rebecca...
— Não há problema — interrompeu ela. — Não vais ferir-me os sentimentos.
— Sim, fizemos.
— E o que é que lhe aconteceu?
— Foi morta.
— Quando?
— No ano passado.
Rebecca afastou a mão dele e sentou-se na cama.
— O que é que aconteceu?
— Estávamos a trabalhar juntos numa coisa aqui na América e deu tudo para o torto.
— Quem a matou?
Delaroche hesitou por um momento; tudo aquilo já tinha ido longe de mais. Sabia que devia acabar com a conversa, mas, por alguma razão, queria contar-lhe mais coisas.
Talvez Vladimir tivesse razão. Um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional...
— O Michael Osbourne — atirou. — Na verdade, a mulher dele é que a matou.
— Porquê?
— Porque nós fomos enviados para cá para matar o Michael Osbourne — respondeu e, a seguir, parou por uns instantes, com os olhos a percorrerem-na rapidamente. — Às vezes, neste ramo, as coisas não correm como planeado.
— E porque é que foram contratados para matar o Osbourne?
— Porque ele sabia demasiado acerca de uma das operações da Sociedade.
— Qual operação?
— O abate do Voo 002 da TransAdantic no ano passado.
— Julgava que tinha sido abatido por aquele grupo árabe, a Espada de Gaza.
— Foi abatido a mando de um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott. A Sociedade fez com que parecesse que a Espada de Gaza estava envolvida para que a empresa do Elliott pudesse vender um sistema de defesa antimíssil ao governo americano. O Osbourne suspeitava disso e, por isso, eu fui contratado pelo Director para eliminar toda a gente envolvida na operação, bem como o Osbourne.
— E quem é que abateu de facto o avião?
— Um palestiniano chamado Hassan Mahmoud.
— Como é que sabes?
— Sei porque estava lá nessa noite. E porque o matei quando já estava tudo terminado.
Ela afastou-se dele. Delaroche conseguia ver um medo real na cara dela e sentir a cama a abanar ligeiramente por ela estar a tremer. Rebecca puxou o cobertor para o peito para esconder o corpo dele. Ele olhou-a fixamente, sem a mínima expressão no rosto.
— Meu Deus — soltou ela. — Tu és um monstro.
— Porque é que dizes isso?
— Havia mais de duzentas pessoas inocentes naquele avião.
— Então e as pessoas inocentes que os vossos bombistas mataram em Londres e Dublin?
— Nós não o fizemos por dinheiro — rosnou ela.
— Vocês tinham uma causa — disse ele, com desprezo.
— Exactamente.
— Uma causa que tu achas que é justa.
— Uma causa que eu sei que é justa — respondeu ela. — Enquanto tu és capaz de matar qualquer pessoa desde que o preço seja o certo.
— Meu Deus, mas tu és mesmo uma mulher estúpida, não és? Ela tentou esbofeteá-lo, mas ele agarrou-lhe a mão e segurou-a firmemente, resistindo com facilidade às tentativas dela para se soltar.
— Porque é que julgas que a Sociedade está disposta a ajudar-te? — perguntou Delaroche. — Porque acreditam nos direitos sagrados dos protestantes na Irlanda do Norte?
Claro que não. Porque acham que isso vai beneficiar os seus próprios interesses. Porque acham que isso os fará ganhar dinheiro. A história passou-vos ao lado, Rebecca.
Os protestantes já tiveram o seu tempo na Irlanda do Norte e agora acabou. Por mais bombas, por mais assassínios que haja, não há nada que vá fazer o relógio voltar para trás.
— Se acreditas nisso, porque é que estás a fazer isto?
— Eu não acredito em nada. Isto é o que eu faço. Já matei em nome de todas as causas fracassadas na Europa. A tua é só a mais recente —: respondeu, largando-a e vendo-a afastar-se, a esfregar a mão como se tivesse tocado em alguma coisa perversa — e espero que a última.
— Eu devia ter continuado a andar naquele dia em Amesterdão.
— Provavelmente, tens razão. Mas agora estás aqui e não tens outro remédio senão ficar comigo, e se fizeres precisamente o que eu te disser até pode ser que sobrevivas.
Nunca mais verás a Irlanda do Norte, mas pelo menos estarás viva.
— Não sei bem porquê, mas duvido — respondeu ela. — Vais matar-me quando isto terminar tudo, não vais?
— Não, não te vou matar.
— Provavelmente, também mataste a Astrid Vogel.
— Eu não matei a Astrid e não te vou matar, Rebecca.
Puxou pelo cobertor e deixou-lhe o corpo à luz. Estendeu-lhe a mão, mas ela continuou parada.
— Pega na minha mão — disse Delaroche. — Eu não vou fazer-te mal. Dou-te a minha palavra.
Rebecca pegou-lhe na mão. Ele puxou-a para junto de si e deu-lhe um beijo na boca. Ela resistiu durante um momento; a seguir, rendeu-se, beijando-o e arranhando-lhe a pele como se estivesse a afogar-se nos seus braços. Quando o conduziu para dentro do corpo dela, ficou subitamente muito quieta, olhando para Delaroche de uma forma tão directa como um animal, enervando-o.
— Gosto mais da tua outra cara — disse ela.
— Eu também.
— Quando tudo isto tiver terminado, talvez possamos ir ter outra vez com o médico que fez isto e ele consiga pôr a tua cara como estava antes.
— Receio que isso não seja possível — respondeu.
Ela pareceu compreender exactamente o que ele estava a dizer.
— Se não me vais matar — disse ela —, então porque é que me contaste os teus segredos?
— Não sei bem.
— Quem és tu, Jean-Paul?
Capítulo 36
WASHINGTON
Na manhã seguinte, Michael e Elizabeth viajaram de avião de Nova Iorque para Washington, acompanhados pelas crianças e Maggie. Separaram-se no National Airport.
Michael seguiu para a Casa Branca num carro grande do governo com motorista, para efectuar o relatório sobre a Irlanda do Norte ao conselheiro para a Segurança Nacional, William Bristol; Elizabeth, Maggie e os filhos entraram todos num carro de serviço, um luxuoso Ford, que os levaria até Georgetown.
Elizabeth já não vinha ao grande prédio de tijolo vermelho, no estilo de arquitectura federal, da N Street há mais de um ano. Adorava a antiga casa, mas, ao subir os degraus de tijolo encurvados, sentiu-se subitamente assaltada por más recordações. Lembrou-se da longa luta com o seu próprio corpo para ter filhos. Lembrou-se da tarde em que Astrid Vogel lá tinha ido para a fazer refém para que o assassino chamado Outubro pudesse assassinar o seu marido.
— Está tudo bem, Elizabeth? — perguntou Maggie. Elizabeth interrogou-se quanto tempo teria estado parada daquela forma, com a chave na mão, incapaz de abrir a porta.
— Sim, está tudo óptimo, Maggie. Só estava a pensar numa coisa.
O alarme chilreou quando ela empurrou a porta da frente. Marcou o código de desactivação e o alarme calou-se. Michael tinha transformado o sítio numa fortaleza, mas ela nunca iria sentir-se completamente segura ali.
Ajudou Maggie a instalar as crianças e depois levou a mala para o quarto, no andar de cima. Estava a abri-la quando a campainha tocou. Desceu para o andar de baixo e espreitou pela vigia da porta. Lá fora, estava um homem de cabelo castanho com um fato azul e uma gabardina castanho-clara.
— O que deseja? — perguntou ela, sem abrir a porta.
— O meu nome é Brad Heyworth, senhora Osbourne. Sou o agente dos Serviços de Segurança do Corpo Diplomático encarregado de vigiar a sua casa.
Elizabeth abriu a porta.
— Da DSS[37]? Mas o meu pai só chega de Londres daqui a seis horas.
— Na verdade, há já um par de dias que andamos a vigiar a casa, senhora Osbourne.
— Porquê?
— Depois do incidente no Reino Unido, decidimos que seria provavelmente melhor pecarmos por excesso de prudência.
— E está sozinho?
— Por enquanto, mas quando o embaixador chegar acrescentaremos um segundo homem à equipa.
— Isso é tranquilizador — afirmou ela. — Não quer entrar?
— Não, obrigado, senhora Osbourne, eu preciso de ficar cá fora.
— E não quer que lhe traga nada?
— Estou óptimo — respondeu ele. — Só queria que a senhora soubesse que estamos por perto.
— Obrigada, agente Heyworth.
Elizabeth fechou a porta e ficou a ver o homem da DSS a descer os degraus da frente da casa e voltar a entrar no carro. Sentiu-se contente por ele ali estar. Foi para o andar de cima e sentou-se à secretária no antigo escritório de Michael. Fez uma série de telefonemas curtos: para o serviço de fornecimento de comida RidgewelTs, para o serviço de empregados particulares, para o seu escritório em Nova Iorque a fim de saber se havia mensagens. A seguir, passou mais uma hora a responder a chamadas.
Maria, a empregada doméstica, chegou ao meio-dia. Elizabeth vestiu um fato de treino de nylon e saiu para a rua. Desceu os degraus da frente aos saltos, acenou com a mão a Brad Heyworth e começou a correr pelo passeio em tijoleira da N Street.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tinha pendurado o aviso de não incomodar na maçaneta da porta do quarto e trancou-a com duas voltas. Durante a última hora, tinha estado a ouvir Elizabeth Osbourne: a falar ao telefone, a falar com a ama e os filhos, a falar com o agente da DSS que estava a guardar-lhe a casa. Agora, Delaroche sabia exactamente quando Douglas Cannon chegaria de Londres e quando sairia para a Casa Branca na manhã seguinte para estar presente na conferência sobre a Irlanda do Norte. E também sabia que o agente da DSS estacionado à porta da casa se chamava Brad Heyworth e que um segundo agente se iria juntar à equipa de segurança depois de o embaixador chegar.
Ouviu a chegada de uma empregada doméstica chamada Maria, que falava com um sotaque espanhol carregado: sul-americana, calculou Delaroche — Peru, ou talvez Bolívia.
Ouviu Elizabeth Osbourne anunciar que ia correr e que regressaria dentro de uma hora. Deu um salto quando ela bateu com força com a porta da frente ao sair de casa.
Cinco minutos mais tarde, foi apanhado de sobressalto por um ruído estrondoso que parecia o roncar de um motor a jacto. O barulho era tanto, que teve de arrancar os auscultadores dos ouvidos. Por um momento, pensou que tivesse acontecido alguma calamidade à casa dos Osbourne. Depois, percebeu que era apenas Maria a passar com o aspirador perto da janela onde Delaroche tinha colocado o microfone.
O jantar dado por Douglas Cannon começou por ser pensado como uma celebração íntima para oito pessoas, mas, no rescaldo dos acontecimentos em Hartley Hall, tinha-se metamorfoseado numa grande festa para cinquenta convidados, com serviço de fornecimento de comida, mesas e cadeiras alugadas e um conjunto de rapazes universitários vestidos com casacos azuis e tendo por missão estacionar os carros nas ruas atafulhadas de viaturas de Georgetown. Era assim que funcionava a natureza da fama em Washington. Douglas tinha vivido e trabalhado na cidade durante mais de vinte anos, mas alguém tentara matá-lo e isso fazia dele uma estrela. A CIA e os serviços secretos britânicos tinham contribuído para a notoriedade repentina do embaixador ao porem a circular uma história sobre a calma de Douglas debaixo de fogo em Hartley Hall, ainda que ele estivesse aconchegado com toda a segurança na cama, em Winfield House, na altura em que o ataque se iniciou. Douglas tinha colaborado de boa vontade na intrincada ruse de guerre[38]. Afinal, retirava um certo prazer adolescente em enganar os barões dos media de Washington.
Os convidados começaram a chegar poucos minutos depois das sete da tarde. Estavam presentes dois velhos amigos de Douglas do Senado e um punhado de congressistas.
A chefe do departamento de Washington da NBC News compareceu, acompanhada pelo marido, que era o chefe de departamento da CNN. Cynthia Martin veio sozinha; Adrian Cárter trouxe a mulher, Christine. Para proteger Michael, que ainda era um membro clandestino da CIA, Cárter e Cynthia disseram que trabalhavam para o Departamento de Estado em matérias relacionadas com a Irlanda do Norte. Cárter quis falar a sós com Michael por um momento e, por isso, deslocaram-se até ao jardim e ficaram junto à piscina.
— Como é que as coisas correram com o Bristol hoje de manhã? — perguntou Cárter.
— Ele pareceu impressionado com o produto — respondeu Michael. — O Beckwith também lá apareceu um bocadinho.
— A sério?
— Disse que estava contente com o resultado da Operação Timbale e que o processo de paz tinha encarrilado outra vez. Tinhas razão, Adrian, ele quer mesmo muito que aquilo aconteça. — Michael hesitou e, a seguir, perguntou: — Então, quer dizer que a minha ligação à Irlanda do Norte terminou oficialmente?
— Quando as delegações abandonarem Washington, vamos passar tudo para a Cynthia e transferir-te de novo para a divisão do Médio Oriente.
— Se há alguma coisa que é constante na CIA, é a mudança — respondeu Michael. — Mas gostava de saber à mesma porque é que a Mónica resolveu baralhar as cartas nesta altura e porque é que quer que eu saia do caso Outubro.
— Para a Mónica, o processo Outubro está fechado. Ela acha que, mesmo que o Outubro continue vivo e a trabalhar, não constitui uma ameaça para cidadãos ou interesses americanos e que, por isso, não entra na esfera de actuação do centro.
— E tu concordas?
— Claro que não e já lhe disse isso mesmo. Mas ela é a directora e, em última análise, é ela que decide quais são os nossos alvos.
— Na tua posição, um homem a sério demitir-se-ia.
— Nem todos têm a flexibilidade financeira para poder assumir posições morais de coragem, Michael.
Elizabeth apareceu junto às portas envidraçadas.
— Vocês os dois importam-se de entrar, por favor? — disse. — Até parece que nunca têm uma oportunidade para conversar.
— Já aparecemos daqui a um minuto — respondeu Michael.
— Só mais outra coisa — disse Adrian depois de Elizabeth se ir embora. — Soube da tua sessãozinha de retratos com o Morton Dunne na OTS no outro dia. Mas que raio se passou?
— Um cirurgião plástico chamado Maurice Leroux foi assassinado em Paris há um par de semanas.
— E?
— Estava a pensar que o Outubro pode ter mudado de cara.
— E depois teria matado o médico que lhe fez isso?
— Passou-me pela cabeça, sim.
— Ouve, Michael... a Mónica retirou-te do caso. Não quero que te armes mais em freelancer. Nada de andar a vasculhar processos, nada de operações privadas. No que te diz respeito, o Outubro está morto.
— Não estás a ameaçar-me, pois não, Adrian?
— Por acaso, até estou.
Delaroche tirou os auscultadores e acendeu um cigarro. Os imensos convidados do jantar tinham-lhe inundado o microfone de repente, de tal forma que a única coisa que ouvia era um zumbido constante, interrompido por pedaços incompreensíveis de conversas e gargalhadas ocasionais.
Desligou o gravador e tirou a Beretta de nove milímetros do estojo de aço inoxidável. Desmontou a pistola e limpou cada uma das peças meticulosamente com um pano macio, enquanto decidia como iria matar o embaixador e Michael Osbourne.
Capítulo 37
WASHINGTON
— Feliz Dia de São Patrício — declarou o presidente James Beckwith, ao subir ao pódio no Jardim das Rosas, na manhã seguinte.
Ao seu lado, tinha o primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern, e o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Robin Cook. Atrás do presidente, encontravam-se os líderes dos partidos nacionalistas e unionistas da região, incluindo Gerry Adams, do Sinn Fein, e David Trimble, do Partido Unionista do Ulster, que naquele momento era efectivamente o primeiro-ministro da Irlanda do Norte.
— Estamos hoje aqui reunidos não em crise mas sim em comemoração — prosseguiu Beckwith. — Comemoramos o legado comum que nos une e iremos renovar o nosso compromisso com uma mudança pacífica na Irlanda do Norte.
Douglas Cannon estava sentado mais à ponta, com um grupo de importantes assessores da Casa Branca e do Departamento de Estado que iriam participar nas conversações.
Juntou-se aos aplausos bem-educados.
— No mês passado, um grupo de bandidos lealistas, a auto-intitulada Brigada para a Libertação do Ulster, tentou assassinar o embaixador americano no Reino Unido, o meu velho amigo e colega, Douglas Cannon — continuou Beckwith. — Tratou-se verdadeiramente do último suspiro para aqueles que querem resolver os problemas da Irlanda do Norte com violência e não com cedências. Se alguém duvidar do nosso compromisso com a paz, peço-lhe que tenha em consideração isto: o embaixador Douglas Cannon está hoje aqui e a Brigada para a Libertação do Ulster não passa de uma má recordação.
Beckwith virou-se, sorriu para Douglas e começou a aplaudir. Gerry Adams, David Trimble, Bertie Ahern e Robin Cook fizeram o mesmo, tal como o resto da multidão ali reunida.
— Agora, se nos dão licença, temos trabalho a fazer — rematou Beckwith.
Virou as costas, afastando-se do pódio, e, com os braços abertos, conduziu os políticos até à Sala Oval, ignorando as perguntas gritadas pelo corpo de imprensa destacado para a Casa Branca.
Quando Douglas voltou para a casa na N Street ao final da tarde, Michael e Elizabeth estavam à espera dele.
— Como é que correu? — perguntou Michael.
— Melhor do que o esperado. Agora que a Brigada para a Libertação do Ulster foi neutralizada, o Gerry Adams acha que o IRA vai pensar seriamente na hipótese de desmobilizar.
— E o que quer dizer "desmobilizar"? — perguntou Elizabeth.
— Quer dizer entregar as armas e desmantelar as células terroristas e a estrutura de comando.
Michael disse:
— A CIA calcula que só o IRA tenha acumuladas centenas de toneladas de metralhadoras e duas toneladas e meia de Semtex. E depois há os grupos terroristas protestantes.
É por isso que é tão importante manter o ímpeto do processo de paz a avançar na direcção certa.
— Os protestantes e os católicos conseguiram fazer progressos assinaláveis num curto período de tempo, mas o processo de paz pode cair por terra muito facilmente.
E se isso acontecer, a violência atingirá níveis inauditos — acrescentou Douglas, olhando para o relógio. — Agora começa o divertimento. A recepção do Sinn Fein no Mayflower, a recepção do Partido Unionista do Ulster no Four Seasons e a recepção dos britânicos na embaixada.
— Mas que raio é isso? — perguntou Elizabeth enquanto troe vam de roupa para as recepções.
— É uma Browning automática de alta potência com um carregador de quinze balas.
Michael enfiou a pistola num coldre de ombro e vestiu o casaco do fato.
— E porque é que vais levar uma arma?
— Porque isso me faz sentir bem.
— O papá vai ter um agente da DSS com ele o tempo todo hoje à noite.
— Nunca se pode ser demasiado cauteloso.
— Há alguma coisa que não estejas a dizer-me?
— Só me sentirei melhor quando o teu pai estiver outra vez em Londres, rodeado por um bando de marines e agentes da Divisão Especial, que são capazes de acertar num assassino no meio dos olhos a uma distância de cem passos.
Alisou a parte da frente do casaco.
— Como é que estou?
— Encantador — respondeu ela, enfiando-se no vestido e virando-se de costas para ele. — Aperta-me o fecho. Estamos atrasados.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tirou os auscultadores. Desmontou rapidamente os monitores e os receptores e guardou-os no saco de lona. Enfiou a Beretta de nove milímetros num coldre de ombro e pôs-se à frente do espelho, examinando a sua aparência. Trazia um fato de negócios cinzento de fabrico americano, uma camisa branca e uma gravata às riscas. Preso à orelha direita, estava um fio de plástico transparente do género dos que eram utilizados pelos agentes de segurança no mundo inteiro.
Estudou a sua cara, olhando para os seus olhos, e disse: "Segurança diplomática, minha senhora. Temos uma emergência." Era o sotaque americano monótono do actor das cassetes de inglês que Delaroche tinha estudado enquanto estava no mar. Repetiu as frases mais uma série de vezes, até se sentir completamente à vontade.
Rebecca saiu da casa de banho. Trazia um fato de duas peças feito por medida e meias pretas. Delaroche passou-lhe uma Beretta carregada e dois carregadores extra, que ela enfiou numa mala preta a tiracolo.
Ele tinha deixado o Volvo na Twenty-second Street, logo a seguir à Massachusetts Avenue. Havia uma multa de estacionamento debaixo do limpa-pára-brisas. Delaroche deitou a multa para a sarjeta e pôs-se ao volante.
A limusina parou à frente do Hotel Mayflower, na Connecticut Avenue. Um porteiro de uniforme abriu a porta e Douglas, Michael, Elizabeth e um agente da DSS saíram da limusina. Entraram no hotel e seguiram pelo átrio central decorado até ao grande salão de baile. Gerry Adams avistou Douglas quando este entrou no salão e desembaraçou-se de um emaranhado de americanos de origem irlandesa, fascinados por gente famosa, que lhe desejavam felicidades.
— Obrigado por ter vindo, senhor embaixador — disse Adams no sotaque cerrado de Belfast Ocidental.
Era alto, com barba preta completa e óculos com armações de metal finas. E embora aparentasse ser robusto, sofria os efeitos duradouros de anos de prisão e de uma tentativa de assassínio pela UVF que quase lhe tinha tirado a vida.
— É uma grande honra tê-lo aqui connosco esta noite.
— Obrigado por nos receberem — respondeu Douglas educadamente, apertando a mão a Adams. — Permita-me apresentar-lhe a minha filha, Elizabeth Osbourne, e o marido, Michael Osbourne.
Adams olhou para Michael por breves instantes e apertou-lhe a mão sem entusiasmo. Quando ele e Douglas se puseram a falar por uns momentos da sessão do dia na Casa Branca, Elizabeth e Michael deram alguns passos e afastaram-se para lhes dar privacidade.
A seguir, sem aviso, Gerry Adams pousou a mão no ombro de Michael e disse:
— Importa-se que lhe dê uma palavrinha, senhor Osbourne? Lamento, mas é bastante importante.
Delaroche estacionou na esquina da Prospect Street com a Potomac Street, em Georgetown, e saiu do carro. Rebecca passou para o volante e desceu o vidro. Delaroche inclinou-se e perguntou:
— Alguma questão?
Rebecca abanou a cabeça. Delaroche entregou-lhe um envelope.
— Se alguma coisa correr mal, se me acontecer alguma coisa ou se nos separarmos, vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Virou as costas, afastando-se e entrando numa loja de sandes cheia de estudantes de Georgetown. Pediu um café e comprou um jornal, sentando-se a uma mesa junto à janela.
Um momento depois, viu Rebecca a passar a grande velocidade, seguindo para leste, em direcção à baixa de Washington.
— Por favor, sente-se, senhor Osbourne — disse Gerry Adams.
Tinha levado Michael até uma ampla sala, contígua ao grande salão de baile. O seu par de guarda-costas sempre presente afastou-se para deixar de poder ouvi-los.
Adams serviu duas chávenas de chá.
— Leite, senhor Osbourne?
— Obrigado.
— Tenho uma mensagem do seu amigo Seamus Devlin.
— O Seamus Devlin não é meu amigo — respondeu Michael de forma áspera.
Os guarda-costas olharam de soslaio para a mesa para terem a certeza de que não havia nenhum problema. Gerry Adams fez-lhes sinal com a mão para se irem embora.
— Eu sei o que aconteceu naquela noite em Belfast — disse ele. — E sei porque é que aconteceu. Nós nunca estaríamos na posição em que nos encontramos hoje, à beira de uma paz duradoura na Irlanda do Norte, se não fosse o IRA. É uma força altamente profissional, que não deve ser menosprezada. Tenha isso em conta da próxima vez que o senhor e os seus amigos britânicos tentarem colocar um informador clandestino no nosso seio.
— Pensei que tivesse uma mensagem para mim.
— Tem a ver com aquela cabra que tramou o Eamonn Dillon na Falis Road, a Rebecca Wells.
— O que é que ela tem?
— Foi para Paris depois dos acontecimentos em Hartley Hall. Adams ergueu a chávena de chá, como se estivesse a fazer um brinde, e disse:
— Que bela jogada que aquilo foi, senhor Osbourne. Michael manteve-se calado.
— Ela estava a viver em Montparnasse com um mercenário escocês chamado Roderick Campbell. Segundo o Devlin, ela e o Campbell andavam à procura de um assassino freelancer para terminar o serviço e acabar com o seu sogro.
Michael endireitou-se na cadeira.
— E a fonte é mesmo boa?
— Eu não entrei nesse tipo de pormenores com o Devlin, senhor Osbourne. Mas o senhor já viu o trabalho dele em primeira mão. Não é o tipo de homem que trate das coisas de forma ligeira.
— E onde é que está a Rebecca Wells agora?
— Foi-se embora de Paris de repente, há um par de semanas. O Devlin ainda não conseguiu apanhar-lhe o rasto outra vez.
— E o Roderick Campbell?
— Também se foi... permanentemente, lamento dizê-lo. Foi morto a tiro no seu apartamento, juntamente com uma rapariga — respondeu Adams, divertindo-se claramente por estar a dizer a Michael uma coisa que este não sabia. — Provavelmente, não apareceu nos vossos ecrãs de computador sofisticados do Centro de Contraterrorismo.
— E a Wells e o Campbell chegaram a conseguir contratar algum atirador?
— O Devlin não sabe, mas eu não baixaria já a guarda em relação ao embaixador, se é que me entende. Seria mau para toda a gente envolvida no processo de paz se um atirador ao serviço da Brigada para a Libertação do Ulster conseguisse matar o seu sogro nesta altura — afirmou Adams, pousando a chávena de chá, num sinal de que a reunião estava a chegar ao fim. — O Devlin espera que isto compense algum ressentimento que o senhor possa ter em relação ao Kevin Maguire.
— Pode dizer ao Devlin que se vá foder. Adams sorriu.
— Eu dou-lhe a mensagem.
Rebecca Wells estava sentada ao volante do Volvo, a meio quarteirão da entrada do Mayflower. Ficou a observar o embaixador Cannon e os Osbourne a saírem do hotel, seguidos pelo agente da DSS. Pôs o motor a trabalhar e depois marcou um número no telemóvel.
— Sim.
— Eles estão a sair agora do primeiro ponto de paragem e a seguirem para o segundo.
A ligação foi interrompida.
Rebecca pôs o Volvo em primeira e enfiou-se no meio do trânsito do início da noite, na Connecticut Avenue.
— E quando é que tu e o Gerry se tornaram tão bons amigos? — perguntou Elizabeth.
— Movemo-nos em círculos semelhantes.
— O que é que ele queria?
— Pediu desculpa pelo que me aconteceu em Belfast.
— E tu aceitaste?
— Nem por isso.
— E foi tudo?
— Foi tudo. Douglas disse:
— Muito bem, está na hora de atravessar o fosso religioso. Para o Four Seasons, para tomarmos bebidas com os protestantes.
— Acham que esta gente alguma vez dará recepções em conjunto? — perguntou Elizabeth.
— Se fosse a ti, não contava muito com isso — respondeu Michael.
Noventa minutos mais tarde, Rebecca Wells encontrava-se estacionada numa zona da Massachusetts Avenue revestida de árvores, em Upper Northwest Washington. Do outro lado da rua, estava o amplo complexo da embaixada britânica. Da posição privilegiada em que se encontrava, conseguia ver o pátio de entrada da residência do embaixador.
Os primeiros convidados começavam a ir-se embora.
Rebecca abriu a carta que Delaroche lhe tinha dado e leu-a à meia-luz dos candeeiros de rua. Dobrou a carta e voltou a enfiá-la no bolso. Lembrou-se daquela tarde gelada na praia, em Norfolk, a tarde em que tinha partido para a Escócia para ir buscar Gavin Spencer e as armas. Era difícil imaginar que tinha sido apenas um mês antes, tanta coisa acontecera desde então. Recordou-se da estranha sensação de serenidade que se tinha instalado nela nesse dia, ao caminhar pela praia plana e solitária.
Tinha querido ficar lá para sempre. E agora aquele homem sem passado — aquele assassino contratado que fazia amor com ela como se o corpo dela fosse feito de vidro — estava a oferecer-lhe um refúgio à beira-mar.
Levantou os olhos a tempo de ver Douglas Cannon e os Osbourne a saírem da residência do embaixador britânico. Uma vez mais, marcou o número no telemóvel e esperou pela voz do homem que conhecia apenas como Jean-Paul.
Delaroche interrompeu a ligação com Rebecca Wells e saiu da loja de sandes. Caminhou rapidamente para norte, ao longo da Potomac Street, até chegar à N Street. A casa dos Osbourne ficava a dois quarteirões dali. Passou a andar mais devagar, passeando-se pela rua sossegada, procurando instintivamente sinais de medidas de segurança extra.
Tinha de cronometrar a sua chegada de forma perfeita. O agente da DSS que acompanhava Douglas Cannon iria contactar a equipa dele via rádio, alertando-os em relação à chegada iminente do embaixador. Se não recebesse resposta, iria suspeitar que houvesse algum problema. E era por isso que Delaroche se demorava a avançar pela N Street.
Avistou a equipa de agentes da DSS, sentados num carro estacionado em frente à casa dos Osbourne, com os vidros da frente abertos. Um deles, o que se encontrava ao volante, estava a falar por um rádio portátil. Delaroche partiu do princípio de que estaria a falar com o agente na limusina do embaixador.
Delaroche aproximou-se do carro e parou junto à janela do lado do condutor.
— Peço desculpa — disse ele —, para que lado é que fica a Wis-consin Avenue?
O agente ao volante apontou para leste sem dizer uma palavra.
— Obrigado — disse Delaroche.
A seguir, enfiou a mão por baixo da gabardina, sacou da Beretta com silenciador e atingiu cada um dos agentes com vários tiros no peito. Abriu a porta e empurrou os corpos para baixo. Subiu os vidros automáticos, tirou as chaves da ignição, fechou a porta e trancou-a.
Tudo aquilo tinha demorado menos de trinta segundos. Atirou as chaves do carro para o meio da escuridão e atravessou a rua, em direcção à casa dos Osbourne. Subiu os degraus da frente e tocou à campainha, respirando fundo para acalmar os nervos. Passado um momento, ouviu o som de passos a aproximarem-se da porta.
— Quem está aí?
Era a voz com sotaque inglês de Maggie, a ama.
— Segurança diplomática, minha senhora. Receio que tenhamos uma emergência.
A porta abriu-se e Maggie ficou ali parada, com a desorientação estampada no rosto.
— Que aconteceu?
Delaroche entrou na casa e fechou a porta. Tapou a boca a Maggie com uma mão de ferro, abafando o seu grito, e puxou-lhe a cara para junto da sua. Com a mão que tinha livre, tirou a Beretta de dentro do casaco do fato e encostou-lhe a ponta do silenciador com força à bochecha.
— Eu sei que há crianças nesta casa e não quero fazer-lhes mal — sussurrou no seu inglês com sotaque. — Mas se tu não fizeres exactamente o que eu disser, dou-te um tiro na cara. Estás a perceber?
Maggie assentiu com a cabeça, com os olhos esbugalhados de terror.
— Muito bem, vem comigo lá para cima.
A noite tinha decorrido sem incidentes, tal como Michael esperara, mas à medida que a limusina avançava a alta velocidade pela Massachusetts Avenue, o aviso de Gerry Adams ecoou-lhe nos ouvidos. No caso de Rebecca Wells ter conseguido contratar um assassino, isso constituía um novo e diferente tipo de ameaça à segurança de Douglas.
Um assassino a trabalhar sozinho seria muito mais difícil de identificar e travar do que um membro de uma organização paramilitar conhecida. Michael decidiu dar a notícia a Douglas quando chegassem a casa. As actividades e aparições dele em Londres teriam de ser restringidas até que a ameaça se esfumasse — ou até que Rebecca Wells fosse presa.
A limusina virou para a Wisconsin Avenue e eles seguiram para sul, a caminho de Georgetown. Elizabeth encostou a cabeça ao ombro de Michael e fechou os olhos.
Douglas pousou a mão no antebraço de Michael e disse:
— Sabes, Michael, há uma coisa que eu nunca fiz e que preciso de fazer agora. Nunca te agradeci.
— Do que é que está a falar?
— Nunca te agradeci por me teres salvo a vida. Se não tivesses aceitado o caso, ido até à Irlanda do Norte e arriscado a vida, eu era bem capaz de estar neste momento morto. Evidentemente, nunca tinha tido uma oportunidade para te ver a fazer o teu trabalho. És um agente secreto soberbo.
— Obrigado, Douglas. Vindo de um velho liberal antiespiões, isso significa muito para mim.
— E vais continuar na CIA, agora que a questão da Irlanda do Norte está terminada?
— Se a minha mulher prometer não se divorciar de mim — respondeu Michael. — A Mónica Tyler quer que eu me ocupe novamente do caso Espada de Gaza. A CIA anda a apanhar alguns indícios de que o grupo pode estar a planear novos ataques.
— Que tipo de indícios?
— Movimentações de agentes activos conhecidos, intercepções de comunicações. Esse tipo de coisas.
— Alguma coisa na Grã-Bretanha?
— O Reino Unido é sempre uma possibilidade. Eles gostam de actuar lá.
— Eu lembro-me do ataque em Heathrow.
— Eu também — disse Michael.
Douglas recostou-se e fechou os olhos no momento em que a limusina saiu da Wisconsin Avenue e começou a atravessar as sossegadas ruas residenciais de Georgetown.
— Quando é que isto vai acabar? — perguntou ele.
— Quando é que vai acabar o quê?
— O terrorismo. O roubo de vidas inocentes para a tomada de posições políticas. Quando é que isso vai acabar?
— Quando já não houver mais pessoas no mundo que se sintam suficientemente oprimidas para pegarem numa pistola ou numa bomba. Quando já não houver mais fanáticos religiosos ou étnicos. Quando já não houver mais maníacos que se divirtam a derramar sangue.
— Então, suponho que a resposta à minha pergunta seja nunca. Nunca vai acabar.
— O senhor é que é o historiador. No século i, os zelotes serviram-se do terrorismo para combater a ocupação romana da Terra Prometida. No século XII, um grupo de muçulmanos xiitas chamado os Assassinos serviu-se do terrorismo contra os líderes sunitas do Irão. Não se pode propriamente dizer que seja um fenómeno novo.
— E agora chegou à América: o World Trade Center, Oklahoma City, o Olympic Park.
— É barato, relativamente fácil e só é preciso um punhado de pessoas dedicadas. Dois homens chamados Timothy McVeigh e Terry Nichols[39] provaram isso.
— Continua a ser incompreensível para mim — respondeu Douglas. — Cento e sessenta e oito pessoas mortas num abrir e fechar de olhos.
— Muito bem, vocês os dois — interrompeu Elizabeth, abrindo os olhos quando a limusina travou e parou à frente da casa. — Já chega dessa conversa. Estão a deprimir-me.
Delaroche estava no segundo andar da casa, junto a uma janela com vista para a N Street, quando ouviu o barulho de um carro. Afastou a cortina com o silenciador da Beretta e espreitou para a rua. Era Cannon e os Osbourne que estavam a chegar a casa.
Largou a cortina e atravessou o corredor até às escadas, olhando de relance para o quarto principal ao passar pela porta. A ama estava deitada no chão, com as mãos e os pés amarrados e a boca tapada com fita adesiva.
Delaroche desceu as escadas rapidamente e ficou parado no átrio central às escuras. Iria ser tão fácil, pensou — como um jogo de tiro ao alvo numa feira popular — e depois estaria terminado. Tudo aquilo.
Capítulo 38
WASHINGTON
Rebecca Wells virou para a N Street e seguiu a limusina ao longo de dois quarteirões até ela parar. Não havia lugar em frente à casa dos Osbourne, pelo que o motorista estacionou pura e simplesmente no meio da rua e ligou os quatro piscas. Rebecca enfiou a mão na mala a tiracolo e tirou a Beretta de nove milímetros com silenciador.
As ordens de Jean-Paul ecoaram-lhe pela cabeça. Eu trato dos dois homens que estão no carro e depois entro na casa, tinha-lhe dito na noite anterior, a falar baixinho no quarto de hotel de ambos, com a televisão aos altos berros. Espera até que eles saiam todos da limusina. Matas o último homem da DSS e eu trato do embaixador e do Michael Osbourne.
Interrogou-se se teria ou não a força para o fazer. E depois pensou em Gavin Spencer e em Kyle Blake, e em todos os homens que tinham morrido em Hartley Hall por Michael Osbourne e o sogro a terem enganado. Verificou o mecanismo do gatilho da Beretta e enfiou a primeira bala na câmara.
Uma das portas da limusina abriu-se e o agente da DSS saiu do carro. Deu a volta à limusina e abriu a porta de trás que dava para a casa dos Osbourne. Michael Osbourne foi o primeiro a sair. Deu uma vista de olhos à rua, fixando-se no Volvo por um instante, antes de avançar. O embaixador saiu da limusina, seguido por Elizabeth Osbourne.
Rebecca abriu a porta do Volvo.
Michael virou-se para o homem da DSS e perguntou:
— Onde é que estão os outros agentes?
O agente da DSS levou a mão à boca e murmurou umas quantas palavras. Quando não recebeu resposta, gritou:
— Voltem para dentro do carro! Já!
Foi então que Rebecca Wells saiu do Volvo. Levantou-se e, com os braços apoiados no tejadilho do carro, começou a disparar contra o agente da DSS — um tiro a seguir ao outro, tal como Jean-Paul lhe tinha dito.
Michael não ouviu os tiros, apenas o vidro da janela de trás da limusina a estilhaçar-se e as balas de nove milímetros a perfurarem a bagageira com um baque. Em vez de obedecer às instruções do agente e de entrarem no carro, Michael, Elizabeth e Douglas tinham-se atirado instintivamente para o chão da N Street.
Michael suspeitara que pudesse haver alguma coisa de errado em relação à mulher na carrinha Volvo, mas tinha demorado demasiado tempo até colocar a hipótese de poder ser de facto Rebecca Wells. Naquele momento, debruçado sobre Elizabeth e Douglas, os últimos segundos de vida do agente da DSS, que agora se encontrava morto, passaram-lhe a correr pela mente. O agente tinha tentado comunicar com os outros homens mas não tinha conseguido. E isso acontecera porque alguém já os tinha matado, pensou Michael.
A seguir, lembrou-se das informações que Gerry Adams lhe tinha dado nessa mesma noite. Rebecca Wells andara à procura de um assassino profissional para matar Douglas.
O seu assassino contratado estava provavelmente algures perto dali.
Michael sacou da Browning automática. O motorista continuava ao volante da limusina, agachado por baixo do banco para se proteger. Michael agarrou em Elizabeth e Douglas e gritou:
— Enfiem-se no carro!
Elizabeth rastejou até ao banco de trás. Um dos disparos atingiu o homem da DSS na cabeça, fazendo uma torrente de sangue e tecido cerebral atravessar a janela traseira estilhaçada. Elizabeth olhou para Michael com uma expressão de impotência e tentou limpar o sangue que tinha na cara.
Foi então que os olhos dela se esbugalharam repentinamente e gritou:
— Michael! Atrás de ti!
Michael virou-se e viu uma figura, parada no cimo dos degraus encurvados que davam para a entrada da casa. O homem levantou o braço direito, balançando-o, e disparou com uma só mão duas vezes, sem que a arma com silenciador emitisse qualquer som, apenas uma língua de fogo saída da ponta do cano da pistola.
Mesmo com a luz ténue de Georgetown, Michael sabia que já tinha visto aquela maneira muito característica de manejar uma arma.
O homem que se encontrava nos degraus da frente da sua casa era Outubro.
O primeiro tiro fez ricochete no tejadilho do carro e o segundo acertou nas costas de Douglas quando este se atirava para dentro do carro, caindo em cima de Elizabeth, gemendo de dor.
Michael apontou a arma a Outubro e disparou vários tiros, forçando-o a recuar para dentro de casa. Na rua sossegada, a Browning de alta potência soava a artilharia.
— Avance! Avance! — gritou ao motorista. — Tire-os daqui para fora!
O motorista sentou-se no banco e ligou o motor, acelerando a fundo.
A última coisa que Michael viu foi Elizabeth, a gritar pela janela traseira estilhaçada.
— As crianças, Michael! — berrou. — As crianças!
Michael mergulhou entre dois carros estacionados, num sítio em que se encontrava protegido tanto de Rebecca Wells como de Outubro, pelo menos por alguns segundos.
Espreitou para cima, na direcção da entrada da casa, e viu Outubro a sair. Michael apontou a Browning e disparou vários tiros. Outubro voltou a refugiar-se no interior.
Foi então que os vidros das janelas dos carros à sua volta começaram a estilhaçar-se. A mulher estava a disparar contra ele.
Tinham-se acendido luzes por toda a rua. Michael virou-se e viu Rebecca Wells, de pé atrás da porta aberta da carrinha Volvo, a disparar sobre o tejadilho. Rodopiou e pensou em retribuir o fogo. Mas apercebeu-se de que, se falhasse, uma bala perdida poderia entrar numa das casas em redor e matar uma pessoa inocente que tivesse saído à rua para ver o que se passava.
Apontou para a própria casa. Pensou: "Meu Deus, faz com que as crianças estejam lá em cima, no quarto delas!" E, a seguir, disparou contra Outubro até ficar sem munições na arma.
Michael ouviu a primeira sirene no momento em que estava a mudar de carregador. Talvez tivesse sido o tiroteio, pensou. Ou talvez o homem da DSS tivesse conseguido enviar um alerta antes de ser morto. Fosse qual fosse o caso, Michael conseguia ouvir agora o uivar de várias sirenes que se aproximavam, progressivamente mais forte a cada segundo que passava.
Outubro surgiu à entrada da casa, acenando a Rebecca.
— Vai! — gritou. — Vai-te embora daqui!
O primeiro carro da polícia apareceu na N Street.
Outubro disparou dois tiros contra o carro sem fazer pontaria.
— Agora, Rebecca! Sai daqui!
Michael enfiou a primeira bala do seu novo carregador na câmara e disparou quatro tiros contra Outubro.
Quando isso aconteceu, Rebecca Wells entrou no Volvo e ligou o motor, acelerando a fundo e passando a toda a velocidade pelo local onde Michael se tinha abrigado.
Outubro avançou para a entrada uma última vez e disparou vários tiros na direcção de Michael, dando depois meia-volta e fugindo para dentro da casa.
Michael levantou-se e foi atrás dele, subindo os degraus pesadamente, com a Browning nas mãos esticadas. Quando chegou à entrada, espreitou pelo átrio central às escuras e viu Outubro a erguer uma cadeira e a lançá-la pelas portas envidraçadas.
Outubro virou-se uma última vez e levantou a arma. Michael não ouviu nada, mas viu a boca do cano a expelir fogo. Encostou-se à parte exterior da casa; do outro lado da parede, conseguia sentir as balas a baterem com toda a força no estuque. Quando os disparos pararam, avançou para a entrada e disparou mais três tiros ao mesmo tempo que Outubro corria pelo jardim e trepava a vedação.
Michael correu para o andar de cima, em direcção ao quarto das crianças, e deu com elas a chorarem nos berços, ilesas.
— Maggie!
Ouviu ruídos surdos vindos do quarto principal, bem como gritos abafados. Correu pelo corredor e acendeu as luzes do quarto. Maggie estava deitada no chão, amarrada e amordaçada.
— Só havia um, Maggie? Só um atirador? Ela confirmou com a cabeça.
— Eu volto já.
Correu pelas escadas abaixo precisamente na altura em que um agente da polícia metropolitana entrava na casa, de arma em riste. Apontou a arma na direcção de Michael e gritou:
— Pare imediatamente e largue a arma!
— O meu nome é Michael Osbourne e esta é a minha casa.
— Eu não quero saber quem você é, foda-se! Largue mas é a arma! Já!
— Porra, sou o genro do embaixador Cannon e trabalho para a CIA! Baixe a merda da arma!
O polícia manteve a arma apontada à cabeça de Michael.
— O meu sogro foi atingido — disse Michael. — Os dois atiradores fugiram: um homem, a pé, e uma mulher, numa carrinha Volvo preta. Os meus filhos estão lá em cima com a ama. Vá ajudá-la. Eu volto já.
— Eh, volte aqui! — gritou o polícia quando Michael desatou a correr pelo átrio central e desapareceu ao passar pelas portas envidraçadas estilhaçadas.
Delaroche não tinha vindo até Washington para se envolver num tiroteio com Michael Osbourne. Qualquer um podia ser atingido quando havia balas a voar por um espaço pequeno e Delaroche não estava disposto a trocar a sua vida pela de Osbourne. Além disso, tinha atingido o alvo principal, o embaixador Cannon, com um bom tiro nas costas. Com um bocadinho de sorte, o ferimento iria revelar-se fatal. Ainda assim, sentia-se zangado por não ter sido capaz de matar Osbourne mais uma vez.
Despiu a gabardina castanho-clara enquanto corria pela viela. Quando chegou à Thirty-fourth Street, atravessou-se imediatamente no caminho de um carro que avançava pela rua, um Saab cinzento-claro com um estudante universitário ao volante. Delaroche levantou a Beretta e apontou-a ao pára-brisas.
— Sai do carro, caralho!
O estudante saiu com as mãos no ar e afastou-se.
— Leva-o, cabrão. É teu.
— Corre — disse Delaroche, agitando a Beretta, e o estudante começou a correr.
Delaroche pôs-se ao volante. O estudante universitário gritou:
— Vai-te foder, minha besta de merda!
Delaroche arrancou. Sabia que tinha de sair de Georgetown depressa. Seguiu a grande velocidade pela Thirty-fourth Street, em direcção à M Street. Se conseguisse atravessar a Francis Scott Key Bridge e passar para Arlington, as suas hipóteses de escapar aumentariam exponencialmente. Dali, poderia enfiar-se na George Washington Memorial Parkway, na 1-395, ou na 1-66, e pôr-se a quilómetros de Washington numa questão de minutos.
Na M Street, o semáforo passou de verde para vermelho quando Delaroche se aproximava. Um sinal avisava que era proibido virar À direita com o sinal vermelho. Pensou em passar à mesma com o sinal vermelho, mas manter a calma durante as fugas tinha-lhe sido proveitoso no passado e, por isso, resolveu não agir de forma precipitada naquele momento.
Pisou o travão a fundo até parar.
Olhou para o relógio de pulso e contou os segundos.
Quando Michael Osbourne saltou a vedação e foi dar à viela, ouviu um homem a gritar obscenidades. Uma fracção de segundo depois, ouviu o som de pneus a chiarem e o motor de um pequeno carro a trabalhar. Pelo barulho, calculou que o carro estivesse a dirigir-se para a M Street. E também calculou que era Outubro a tentar escapar.
Correu pela Thirty-third Street até à M Street, virou à direita e continuou a correr.
Delaroche avistou Osbourne a correr pela M Street com a arma na mão, pondo em fuga os assustados peões. Virou-se lentamente e olhou em frente, aguardando que o sinal ficasse verde.
A Beretta estava pousada no banco do passageiro. Delaroche apertou a coronha com a mão direita e pôs o dedo no gatilho. Pensou: "Afinal de contas, talvez até tenha oportunidade de cumprir os termos do contrato."
Osbourne chegou ao cruzamento. Ficou parado na passadeira, mesmo à frente do Saab, com a arma na mão, a olhar fixamente pela Thirty-fourth Street acima. Estava a respirar com dificuldade, com os olhos a moverem-se rapidamente para um lado e para o outro.
Delaroche levantou a Beretta devagar e pousou-a no colo. Pensou em disparar contra Osbourne através do pára-brisas mas resolveu não o fazer. Mesmo que conseguisse acertar, ficaria com um carro danificado para a sua fuga. Esticou a mão esquerda e carregou num botão no apoio de braço, fazendo com que o vidro da sua janela descesse no momento em que o sinal ficou verde.
Vários carros tinham parado atrás de si e os condutores começaram a buzinar, sem se aperceberem de que havia um homem com uma arma parado no meio do cruzamento.
Delaroche não se mexeu, à espera que Osbourne fizesse alguma coisa.
Michael ficou parado no cruzamento, com o coração aos saltos, ignorando a cacofonia de buzinas. Inspeccionou as caras que se encontravam dentro de cada carro: um homem com quarenta e tal anos, de fato e gravata, num Saab cinzento-claro, um par de estudantes ricos num BMW vermelho, dois aristocratas de Georgetown num espectacular Mercedes a diesel e um moço de entregas da Pizza Hut.
Estava toda a gente a buzinar menos o homem do Saab. Michael olhou para ele com atenção. Era bastante feio: bochechas pesadas, um queixo rombo, um nariz largo e achatado. Michael já tinha visto aquela cara algures, mas não conseguia perceber onde. Olhou fixamente para ele enquanto os rostos do seu passado lhe surgiam na cabeça, um por um, como imagens num ecrã, algumas nítidas e definidas, outras desfocadas e cheias de riscos.
Foi então que percebeu onde já tinha visto aquele homem — no ecrã do computador de Morton Dunne, na OTS.
Michael apontou a Browning à cara de Outubro.
— Sai do carro! Já!
Capítulo 50
WASHINGTON
O amplo cruzamento no início da Key Bridge é um dos mais congestionados e caóticos em toda a Washington. Os carros que vêm da imponente ponte, da M Street e da Whitehurst Freeway convergem todos no mesmo ponto. Durante as horas de ponta, de manhã e à tarde, o cruzamento fica entupido de trânsito. A noite, fica cheio de carros que afluem em catadupa para os restaurantes e clubes nocturnos de Georgetown. E, por cima de tudo isso, encontram-se os degraus de pedra pretos tornados célebres por O Exorcista — tristes, cobertos de graffiti e a tresandarem a urina por causa dos estudantes de Georgetown embriagados que acham que urinar ali é um ritual de passagem.
No entanto, nada disso passou pela cabeça de Delaroche enquanto se encontrava sentado ao volante do Saab, a olhar fixamente para o cano da Brouming automática de Michael Osbourne. Quando este o mandou sair do carro, Delaroche carregou a fundo no acelerador e inclinou-se para baixo.
Michael disparou vários tiros no momento em que o carro avançou de rompante.
Desviou-se do caminho, atirando-se para o chão, com o Saab a deslocar-se para o cruzamento com grande rapidez. Delaroche sentou-se direito, readquiriu o controlo da viatura e avançou a toda a velocidade, a caminho da entrada da Key Bridge.
Michael desviou-se, rebolando, do carro que vinha na sua direcção e levantou-se, apoiado num joelho. Fez pontaria para a traseira do Saab enquanto este se afastava velozmente, abstraindo-se do buzinar ensurdecedor dos carros.
Sobravam-lhe oito balas na Browning e nenhum carregador extra.
Disparou todos os oito tiros antes que Delaroche pudesse virar para a ponte.
Sete atravessaram a bagageira e alojaram-se no banco de trás.
O oitavo acertou no depósito de gasolina e o Saab explodiu.
Delaroche ouviu a explosão e sentiu instantaneamente o calor da gasolina a incendiar-se. Os carros travaram a fundo à sua volta. Um rapaz com uma camisola dos Redskins correu para ajudar Delaroche. Delaroche apontou-lhe a Beretta à cabeça e o rapaz da camisola fugiu na direcção do Francis Scott Key Park.
Delaroche saltou para fora do carro e viu Michael Osbourne a correr em direcção a si.
Levantou a Beretta e disparou três vezes.
Michael Osbourne atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um carro estacionado.
Delaroche começou a correr para a Key Bridge, mas um carro, aparentemente sem consciência do veículo em chamas no meio do cruzamento, avançou na sua direcção a grande velocidade. Delaroche saltou mesmo antes de ser atingido e rebolou pelo pára-brisas.
Largou a Beretta e esta foi cair com estrépito no meio dos carros que se aproximavam.
Olhou para cima e viu Michael Osbourne a correr para si. Levantou-se e tentou correr, mas o tornozelo direito cedeu e ele caiu desamparado no asfalto.
Conseguiu erguer-se com grande custo e obrigou-se a avançar. O tornozelo doía-lhe tanto que parecia ter vidro partido por baixo da pele. Conseguiu chegar ao passeio da Key Bridge.
Um homem estava lá especado, a observar a cena, segurando o guiador de uma bicicleta de montanha de má qualidade.
Delaroche deu um murro na garganta do homem e ficou-lhe com a bicicleta.
Subiu para o selim e tentou pedalar, mas quando fez força com a perna direita a dor fê-lo gritar. Pedalou com uma perna, a perna esquerda, enquanto a direita se limitava a subir e descer com a rotação dos pedais.
Virou-se e olhou por cima do ombro. Michael Osbourne ia a correr na sua direcção. Delaroche pedalou mais depressa, mas, entre o tornozelo partido e a fraca qualidade da bicicleta, Osbourne estava a ganhar-lhe terreno. Delaroche sentiu-se completamente indefeso. Não tinha nenhuma arma e apenas uma bicicleta manhosa como transporte.
E, para piorar as coisas, estava magoado.
Mais do que qualquer outra coisa, sentiu uma raiva súbita — raiva do pai e de Vladimir, e de todos os outros do KGB que o tinham condenado a uma vida de assassínios.
Raiva de si próprio, por ter permitido que o Director o forçasse a aceitar aquela missão. Raiva de si próprio, por não ter sido capaz de matar Michael Osbourne uma vez mais. Pôs-se a pensar como teria Osbourne percebido que era ele que se encontrava ao volante do Saab. Teria sido atraiçoado por Maurice Leroux antes de o matar naquela noite em Paris? Teria sido atraiçoado pelo Director? Ou teria subestimado uma vez mais a inteligência e o engenho do homem da CIA, o homem que tinha jurado destruí-lo? Que tudo fosse acabar assim — com Delaroche numa bicicleta a ranger e Osbourne a persegui-lo a pé — era quase risível. Apercebeu-se de que, mesmo que fosse capaz de escapar a Osbourne naquele momento, as suas hipóteses de conseguir ir muito longe iam diminuindo a cada minuto.
Virou-se e olhou uma vez mais por cima do ombro, vendo que Osbourne tinha ganho mais terreno. Forçou-se a pedalar com ambas as pernas, ignorando a dor no tornozelo, enquanto decidia aquilo que estava disposto a fazer para sair daquela ponte vivo.
Michael voltou a enfiar a Browning no coldre de ombro e correu a toda a velocidade pela ponte fora, impulsionando os braços para trás e para a frente com o máximo de força. Por um instante, foi transportado de regresso à final da milha urbana do estado da Virgínia. Michael tinha feito uma jogada táctica brilhante durante a última volta, colocando-se numa posição perfeita para ultrapassar o líder da corrida nos últimos cem metros, mas quando chegaram à recta final não tivera a coragem para aguentar a dor necessária para vencer. Tinha ficado literalmente hipnotizado com as costas do outro rapaz — o esvoaçar da camisola ao vento, os músculos robustos dos ombros —, à medida que este se afastava cada vez mais até cortar a meta. E recordou-se do pai, tão furioso por ele ter perdido que nem sequer o tinha querido consolar a seguir à corrida.
Já só estava a dez metros de Outubro.
Tinha corrido praticamente um quilómetro e meio desde que saíra disparado de casa. Sentia as pernas pesadas e os músculos retesados do sprint prolongado. Os braços ardiam-lhe e a garganta sabia a ferrugem e a sangue por abrir a boca para tentar respirar. Andava a perseguir Outubro há anos, socorrendo-se de todos os recursos e serviços técnicos que a CIA tinha para oferecer, mas tudo se tinha resumido àquilo, uma corrida desenfreada pela Key Bridge. Desta vez, não iria ter medo da dor.
Desta vez, não iria ficar hipnotizado com as costas do adversário, a afastar-se cada vez mais. Inclinou a cabeça para trás e rugiu como um animal ferido, esbracejando com o máximo de força no ar, como se estivesse a tentar empurrar-se para a frente.
Outubro já se encontrava apenas a um ou dois metros de distância.
Michael deu um salto e atirou-o ao chão com toda a força.
Outubro aterrou de costas, com Michael em cima dele, sentado no seu abdómen.
Deu-lhe dois murros na cara, com o segundo soco a deixar uma ferida bem no alto da maçã do rosto de Delaroche, e depois agarrou-se à garganta dele com as duas mãos e começou a estrangulá-lo.
Tinha perdido toda a noção de razão e sanidade. Estava a apertar o pescoço a Delaroche, esmagando-lhe a traqueia, gritando com ele selvaticamente, e, no entanto, uma estranha calma tinha invadido o rosto do assassino. Os olhos azuis percorriam rapidamente Michael e um meio sorriso vago despontou-lhe nos lábios.
Michael percebeu que Outubro estava a decidir qual seria a melhor maneira de o matar. Apertou com mais força.
Outubro esticou-se repentinamente e agarrou o cabelo de Michael com a mão esquerda. Puxou a cabeça de Michael para si e enfiou-lhe o polegar da mão direita na órbita do olho.
Michael gritou de dor e afrouxou a pressão no pescoço de Outubro. O assassino transformou as mãos em machados e atingiu-o duas vezes seguidas nas têmporas.
Michael quase perdeu os sentidos. Abanou a cabeça, tentando aclarar a visão, e depois apercebeu-se de que estava deitado de costas e que o assassino lhe tinha escapado.
Esforçou-se para se levantar. Outubro já estava em pé, com os pés afastados, as mãos junto à cara e os olhos fixados nos de Michael. Rodou e acertou-lhe com um violento pontapé rotativo na cabeça, atingindo-a de lado.
Michael cambaleou do passeio até à estrada na ponte, atravessando-se no caminho de um autocarro que seguia a alta velocidade. O motorista buzinou com toda a força.
Michael afastou-se com um pulo, caindo directamente nos braços de Outubro.
O assassino agachou-se e, servindo-se do ímpeto de Michael, atirou-o por cima do parapeito da ponte.
Delaroche esperou pelo som do corpo de Michael a bater na água a uns cem metros de distância, mas não se ouviu nada. Deu um passo em frente e olhou para baixo. Ao cair, Michael tinha conseguido agarrar-se à parte de baixo do parapeito com uma mão e encontrava-se naquele momento a balançar sobre a água. Olhou para cima, com sangue na boca, e fitou Delaroche.
O mais fácil de fazer seria pisar-lhe a mão até ele ter de largar o parapeito, mas, por alguma razão, a ideia parecia repugnante a Delaroche. Tinha matado sempre silenciosa e rapidamente, surgindo do nada e desaparecendo outra vez. Matar um homem daquela maneira parecia-lhe, de alguma forma, bárbaro.
Inclinou-se e disse:
— Deixa-me ir e eu ajudo-te.
— Vai-te foder — respondeu-lhe Michael, com um esgar de dor.
— Isso não é lá muito sensato da tua parte — lançou Delaroche, esticando-se pelo parapeito e agarrando no pulso esquerdo de Michael. — Estica-te e agarra-te à minha mão.
A mão de Michael estava a começar a escorregar da ponte.
— Tu acabaste de matar o meu sogro — respondeu. — Tentaste matar-me a mim e à minha mulher. Mataste a Sarah.
— Eu não os matei, Michael. Foram outras pessoas que os mataram. Eu fui só a arma. Sou tão responsável pelas mortes deles como tu és pela morte da Astrid Vogel.
— Quem é que te contratou? — perguntou Michael asperamente.
— Não interessa.
— Interessa-me a mim! Quem é que te contratou?
Mas a mão de Michael começava a soltar-se cada vez mais.
Delaroche agarrou-lhe o braço esquerdo com as duas mãos.
Michael enfiou a mão direita dentro do casaco, sacou a Bronming e apontou-a à cabeça de Delaroche. Delaroche continuou a segurar a mão de Michael, olhando fixamente para a pistola. A seguir, sorriu e perguntou:
— Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo? Michael conhecia a parábola; qualquer pessoa que já tivesse vivido ou trabalhado no Médio Oriente conhecia-a. Uma rã e um escorpião encontram-se numa das margens do Nilo e o escorpião pede à rã para o transportar até à outra margem.
A rã recusa-se, pois tem medo que o escorpião lhe dê uma ferroada. O escorpião assegura à rã que não lhe dará uma ferroada; fazê-lo seria uma tolice, já que assim ambos se afogariam. A rã reconhece a lógica dessa afirmação e aceita levar o escorpião até à outra margem. Quando chegam a meio do rio, o escorpião dá uma ferroada à rã. "Mas agora vamos os dois afogar-nos", grita a rã, com o corpo a ficar dormente devido ao veneno do escorpião. "Porque é que fizeste isso?" O escorpião sorri e responde: "Porque isto é o Médio Oriente."
— Eu conheço a história — respondeu Michael.
— Nós andamos os dois embrenhados neste conflito há demasiados anos. Talvez possamos ajudar-nos um ao outro. Afinal de contas, a vingança é para os selvagens. Sei que estiveste há pouco tempo na Irlanda do Norte. Vê só o que é que a vingança fez por esse sítio.
— O que é que tu queres?
— Digo-te aquilo que tu mais queres saber: quem é que me contratou para matar o Douglas Cannon, quem é que me contratou para matar os conspiradores do caso da TransAtlantic, quem é que me contratou para te matar a ti por saberes demasiado. — Fez uma pausa. — E também te digo quem é a pessoa dentro da tua organização que está envolvida com essa gente. Em troca, tu forneces-me protecção e permites que eu tenha acesso às minhas contas bancárias.
— Eu não tenho a autoridade para fazer um acordo desses.
— Talvez não a autoridade, mas tens a capacidade. Michael ficou calado.
Delaroche perguntou:
— Não queres morrer sem saber a verdade, pois não, Michael?
— Vai-te foder!
— Temos um acordo?
— E como é que tu sabes que eu não te prendo assim que me puxares para cima?
— Porque, infelizmente, tu és um homem honrado, o que te torna estranhamente inadequado para uma actividade destas.
Delaroche sacudiu Michael e repetiu:
— Temos um acordo?
— Temos um acordo, meu grandessíssimo cabrão.
— Então, pronto. Deita a pistola para o rio e agarra a minha mão antes que faças com que morramos os dois.
Capítulo 40
WASHINGTON
AEROPORTO INTERNACIONAL DE DULLES
— A bala partiu várias costelas do embaixador Cannon e fez com que o pulmão esquerdo parasse de funcionar — disse o médico do George Washington University Hospital, um cirurgião de aspecto absurdamente jovem chamado Carlisle. — Mas, a não ser que sofra quaisquer complicações graves, penso que vai ficar bom.
— Posso vê-lo? — perguntou Elizabeth. Carlisle abanou a cabeça.
— Ele agora está no recobro e, sinceramente, não está com grande aspecto. Porque é que não fica aqui e tenta pôr-se o mais confortável possível? Nós deixamo-la vê-lo assim que ele acordar.
O médico foi-se embora. Elizabeth tentou sentar-se, mas, passados poucos minutos, já se encontrava outra vez a percorrer de um lado para o outro a pequena sala de espera privada. Dois agentes da polícia metropolitana estavam de guarda do lado de fora da sala. Ela trazia um conjunto azul de roupa de bloco operatório, pois tinha ficado com o vestido manchado com o sangue do pai e do agente da DSS. Maggie e as crianças estavam numa sala à parte. Maggie era formidável, pensou Elizabeth. Tinha sido ameaçada por um assassino e amarrada com fita adesiva, mas recusara-se a deixar que as enfermeiras tomassem conta de Liza e Jake. Agora, Elizabeth precisava apenas de uma coisa. Precisava de ouvir a voz do marido.
Tinha passado mais de uma hora desde a arrepiante fuga de Elizabeth da N Street. A polícia informara-a do que sabia. Quando as primeiras viaturas chegaram ao local, os terroristas tinham fugido e Mi-chael estava vivo. Depois, desapareceu pelo jardim das traseiras e ninguém o tinha visto desde então. Dois minutos mais tarde, ocorreu um tiroteio na Key Bridge, do lado de Georgetown, e um carro explodiu. O carro, um Saab castanho-claro, fora roubado momentos antes por um homem com uma pistola com silenciador. E também tinha havido relatos de dois homens a lutarem na ponte. Um homem pendurado na ponte, a balançar-se sobre a água... Elizabeth fechou os olhos e estremeceu. Pensou: "Michael, se estás vivo, diz-me, por favor."
Eram onze da noite. Ligou a televisão e fez apping pelos vários canais. A história estava por todo o lado — nas estações televisivas locais e em todos os canais de informação por cabo. Ninguém tinha qualquer notícia sobre Michael. Ela enfiou a mão na mala e tirou um cigarro, acendendo-o e fumando-o enquanto andava de um lado para o outro.
Uma enfermeira apareceu e espetou a cabeça pela porta.
— Peço desculpa, minha senhora, mas não se pode fumar aqui dentro.
Elizabeth procurou um sítio para deitar o cigarro fora.
— Deixe estar que eu trato disso, senhora Osbourne — disse a enfermeira suavemente. — Precisa que lhe traga alguma coisa?
Elizabeth abanou a cabeça.
No momento em que a enfermeira saiu da sala, o seu telemóvel tocou.
Pegou no telemóvel que tinha dentro da mala e atendeu:
— Sim?
— Sou eu, Elizabeht. Não digas nada, ouve só.
— Michael — sussurrou ela.
— Estou óptimo — disse ele. — Não fui ferido.
— Graças a Deus — desabafou ela.
— Como é que está o Douglas?
— Já saiu do bloco operatório. O médico acha que ele vai ficar bom.
— E onde estão as crianças?
— Estão aqui no hospital — respondeu Elizabeth. — Quando é que eu te vou ver?
— Talvez amanhã. Tenho uma coisa que preciso de fazer primeiro. Amo-te, Elizabeth.
— Michael, onde é que estás? — perguntou ela, mas a ligação já tinha sido interrompida.
Rebecca Wells deixou o Volvo no parque de estacionamento de longa duração do Aeroporto de Dulles e apanhou um autocarro de ligação até ao terminal. Largou as chaves num caixote do lixo e entrou numa casa de banho. Mudou de roupa num dos compartimentos, trocando o fato de duas peças por calças de ganga ruças, uma camisola de lã e botas de cowboy de camurça. Para terminar, prendeu o cabelo e colocou uma peruca loura. Olhou-se ao espelho; a transformação tinha demorado menos de cinco minutos.
Agora, era Sally Burke, de Los Angeles, com um passaporte e uma carta de condução da Califórnia para comprová-lo.
Percorreu o terminal até ao balcão da Air México e fez o check-in para o último voo da noite para a Cidade do México. As setenta e duas horas seguintes iriam ser difíceis. Do México, atravessaria depois a América Central e do Sul, trocando de passaporte e de identidade a cada dia. A seguir, embarcaria num avião em Buenos Aires e regressaria à Europa.
Sentou-se na sala de espera junto à porta de embarque e aguardou que chamassem os passageiros para o voo. Tentou fechar os olhos, mas, de cada vez que o fazia, via a cabeça do agente da DSS a explodir num jorro de sangue.
O CNN Airport Channel estava a passar um serviço noticioso sobre a tentativa de assassínio.
A Brigada para a Libertação do Ulster acaba de reivindicar a responsabilidade pela tentativa de assassínio do embaixador Douglas Cannon. Os dois agressores, um homem e uma mulher, ainda estão a monte. Os médicos do George Washington University Hospital, em Washington, dizem que Cannon se encontra em estado crítico, mas que os ferimentos sofridos não põem em risco a sua vida...
Rebecca desviou o olhar. Pensou: "Onde raio é que tu estás, Jean-Paul" Tirou do envelope a carta que ele lhe tinha dado quatro horas antes' e leu-a uma vez mais.
Vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Começaram a chamar os passageiros para o voo. Ela atirou a carta para um caixote de lixo e dirigiu-se para a porta de embarque.
Capítulo 41
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
— Tens nome?
— Eu utilizo muito nomes, mas chamei-me Jean-Paul Delaroche mais tempo do que todos os outros e, por isso, penso em mim como sendo ele.
— Então, devo chamar-te Delaroche?
— Se quiseres — respondeu Delaroche, franzindo os lábios de uma forma muito francesa.
Apesar da hora tardia, continuava a haver bastante trânsito na Capital Beltway, os resquícios da eterna confusão de Washington ao anoitecer. Michael virou para a Interstate 95 e seguiu para norte, na direcção de Baltimore. O carro era um Ford alugado, que Michael tinha levantado no National Airport depois de fugir da Key Bridge num táxi. De início, o taxista recusara-se a abrir a porta a um par de homens de fato com ar de quem tinha acabado de levar uma carga de pancada. A seguir, Delaroche mostrou-lhe um molho de notas de vinte e o taxista disse que, se quisessem ir até à Lua, ele conseguiria fazê-los estar lá de manhã.
Delaroche ia sentado à frente, no banco do passageiro, com os pés apoiados no painel de instrumentos. Estava a esfregar o tornozelo e a ralhar com ele, como se este o tivesse traído. De forma despreocupada, acendeu outro cigarro. Se se sentia ansioso ou com medo, não mostrava qualquer indício disso. Desceu o vidro da janela, libertando a nuvem de fumo. De repente, o interior do carro tresandava a terra de cultivo húmida.
Ao longo dos vários anos que se seguiram ao assassínio de Sarah, Michael tinha tentado retratar o assassino dela na sua mente. Concluiu que tinha imaginado que ele fosse maior do que de facto era. Na verdade, Delaroche era bastante pequeno e compacto, com os músculos bem retesados de um pugilista de peso médio. Michael já tinha ouvido a voz dele uma vez — em Cannon Point, na noite em que ele o tentara matar —, mas ao ouvi-lo a falar naquele momento compreendeu que ele não era um só homem mas sim vários. O sotaque corria o mapa da Europa. Às vezes, era francês, às vezes, alemão e, outras vezes, holandês ou grego. Nunca falou como um russo; Michael interrogou-se se, chegado àquele ponto, conseguiria sequer falar a sua língua materna.
— Já agora, a arma estava descarregada.
Delaroche soltou um suspiro profundo, como se estivesse aborrecido com um programa televisivo entediante.
— A pistola de uso corrente para os agentes da CIA é uma Browning automática de alta potência, com um carregador de vinte tiros — continuou. — Depois de recarregares, disparaste quatro tiros contra mim pela porta da frente, três pela porta das traseiras, mais três pelo pára-brisas e cinco para a bagageira do Saab.
— Se sabias que a arma estava descarregada, porque é que não me atiraste simplesmente da ponte abaixo?
— Porque, mesmo que te tivesse matado, não tinha praticamente hipóteses de escapar. Estava ferido. Não tinha pistola, não tinha carro, não tinha meio de comunicar.
Tu eras a única arma que me restava.
— Do que é que estás para aí a falar, porra?
— Eu tenho uma coisa que tu queres e tu tens uma coisa que eu quero. Tu queres saber quem é me contratou para te matar e eu quero protecção contra os meus inimigos para poder viver descansado.
— E o que é que te leva a crer que eu pretendo cumprir esse acordo?
— Um homem não abandona a CIA se não tiver princípios. E um homem não regressa à CIA quando o presidente lhe pede para o fazer se não acreditar em honra. A tua honra é o teu ponto fraco. Mas, afinal de contas, porque é que escolheste esta vida, Michael? Foi o teu pai que te levou a isso?
Michael pensou: "Então, o Delaroche passou tanto tempo a analisar-me como eu a ele."
— Não me parece que tivesse tomado a mesma decisão se os papéis estivessem invertidos — disse Michael. — Acho que te teria deixado cair da ponte e apreciado ver o teu corpo a flutuar pelo rio abaixo.
— Isso não é uma coisa de que te devas gabar. És virtuoso, mas também és altamente emotivo e isso torna-te facilmente manipulável. O KGB percebeu isso quando te colocou a Sarah Randolph no caminho e quando me mandou matá-la à frente dos teus olhos.
— Vai-te foder! — exclamou Michael.
Sentiu-se tentado a parar o carro e dar um enxerto de pancada em Delaroche. Depois lembrou-se da luta na ponte e da facilidade com que Delaroche o tinha quase matado com as próprias mãos.
— Michael, por favor, abranda antes que nos mates aos dois. Para onde é que estamos a ir, já agora?
— O que é que te aconteceu à cara? — perguntou por seu turno Michael, ignorando a pergunta de Delaroche.
— Tu enviaste um alerta à Interpol, bem como um esboço por computador da minha cara, e por isso fiz uma cirurgia plástica.
— E como é que soubeste do alerta?
— Uma coisa de cada vez, Michael.
— O cirurgião plástico era um homem chamado Maurice Leroux?
— Sim — respondeu Delaroche. — Como é que sabias?
— Soube porque os serviços secretos britânicos tinham conhecimento do facto de Leroux trabalhar realmente de tempos em tempos para pessoas como tu. Foste tu que o mataste?
Delaroche não disse nada.
— Ele não te fez nenhum favor — disse Michael. — Estás hediondo.
— Tenho noção disso — respondeu Delaroche friamente — e culpo-te a ti.
— És um homicida. Não sinto pena de ti por teres tido uma má experiência com um cirurgião plástico.
— Eu não sou um homicida, sou um assassino profissional. Há uma diferença. Dantes, matava pessoas pelo meu país, mas agora o meu país já não existe e por isso mato por dinheiro.
— Isso faz de ti um homicida, pelas minhas contas.
— Estás a dizer-me que não há homens assim a trabalhar para a tua organização? Vocês também têm os vossos assassinos, Michael. Por isso, por favor... não tentes vir com superioridades morais.
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon?
— Para onde estás a levar-me?
— Para um sítio seguro.
— Espero que não estejas a levar-me para uma casa segura da CIA, pois não?
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon? Delaroche pôs-se a olhar pela janela durante bastante tempo e, a seguir, inspirou fundo, como se estivesse prestes a mergulhar e a ficar submerso durante muito tempo.
— Talvez o melhor seja eu começar pelo princípio — disse ele por fim, desviando o olhar da janela e fitando Michael. — Sê paciente e eu conto-te tudo aquilo que queres saber.
Delaroche falou como se estivesse a narrar a história de vida de outra pessoa e não a sua própria. Quando sentia dificuldades com o inglês, passava para uma das outras línguas que ele e Michael tinham em comum: espanhol, ou italiano, ou árabe. Ainda nem duas horas antes, tinha assassinado a sangue frio dois agentes da DSS, mas, pelo que Michael conseguia detectar, não sofria quaisquer problemas de efeitos colaterais pelo facto de matar. Ele matara apenas uma vez — um terrorista da Espada de Gaza, no Aeroporto de Heathrow — e tinha sido perseguido por pesadelos durante semanas.
Falou a Michael do homem que conhecia apenas como Vladimir. Tinham vivido num grande apartamento do KGB em Moscovo e possuíam uma agradável datcha não muito longe da cidade, para os fins-de-semana e as férias. Nessa altura, Delaroche era conhecido pelo seu nome de baptismo, que era Nicolai, e pelo patronímico, que era Mikhailovich. Não lhe era permitido ter contacto com outras crianças. Não frequentou as normais escolas do Estado, não pertenceu a qualquer clube desportivo ou a organizações juvenis do Partido Comunista. Nunca o deixavam sair do apartamento ou da ãatcha sem Vladimir ao seu lado. Por vezes, quando Vladimir se encontrava doente ou demasiado cansado, mandava um gorila carrancudo chamado Boris acompanhar a criança.
A determinada altura, Vladimir começou a ensinar-lhe línguas. Ter uma outra língua é ter outra alma, dizia Vladimir. E para a vida que estás prestes a levar, Nicolai Mikhailovich, vais precisar realmente de muitas almas. Delaroche franziu a cara como se fosse um velho e curvou os ombros. Ao observá-lo, Michael ficou assombrado com a capacidade que ele tinha para se transformar noutra pessoa. Quando falou com a voz de Vladimir, soou como um russo pela primeira vez.
De vez em quando, um homem alto e severo, com fatos ocidentais e cigarros ocidentais, vinha visitá-lo, continuou Delaroche a contar. Estudava o rapaz como um escultor seria capaz de estudar uma obra em execução. Muitos anos mais tarde, Delaroche ficaria a conhecer a identidade do homem alto. Era Mikhail Voronstov, o chefe da Primeira Direcção Principal[40] do KGB — o seu pai.
Em Agosto de 1968, com dezasseis anos, foi enviado para o Ocidente. Atravessou a fronteira da Checoslováquia com a Áustria, fazendo passar-se por filho de dissidentes checos a fugir dos russos. Ficou na Áustria durante algum tempo e depois mudou-se para Paris, onde viveu como um miúdo da rua até a igreja o acolher.
Foi em Paris que descobriu que sabia pintar. Vladimir nunca o tinha deixado dedicar-se a mais nada além das línguas e das artes do ofício. Não há tempo para actividades frívolas, Nicolai Mikhailovich, dizia. Estamos numa corrida contra o tempo. Passava tardes a deambular pelos museus, estudando grandes obras. Frequentou a escola de arte durante um certo tempo e até conseguiu vender alguns dos seus trabalhos na rua.
A seguir, apareceu o homem chamado Mikhail Arbatov e os assassínios começaram.
— O Arbatov era o agente responsável por mim — explicou De-laroche. — No começo, eu tratava de assuntos internos: dissidentes, potenciais desertores, esse tipo de coisas. A seguir, embarquei num tipo de missão diferente.
Michael passou em revista uma série de assassínios que sabia terem sido levados a cabo por Delaroche: o ministro espanhol, em Madrid, o representante da polícia francesa, em Paris, o executivo da BMW, em Frankfurt, o representante da OLP, em Tunes, o empresário israelita, em Londres.
— O KGB queria tirar partido dos movimentos terroristas e nacionalistas existentes no interior das fronteiras da NATO e dos seus aliados — prosseguiu Delaroche.
— O IRA, a Facção Exército Vermelho, as Brigadas Vermelhas de Itália, os bascos, em Espanha, a Acção Directa, em França, e por aí fora. Matei em ambos os lados do espectro, pura e simplesmente de maneira a criar a desordem. Houve muitos mais assassínios do que aqueles que referiste, claro.
— E quando a União Soviética se desmoronou?
— Eu e o Arbatov ficámos à deriva.
— E então passaram a trabalhar por conta própria? Delaroche confirmou com a cabeça, esfregando o tornozelo.
— O Arbatov tinha excelentes contactos e era um negociador talentoso. Actuava como meu agente, recebendo propostas, negociando honorários... esse tipo de coisas.
Dividíamos as receitas do meu trabalho.
— E depois veio o caso da TransAdantic.
— Foi o dia de trabalho mais bem pago da minha vida, um milhão de dólares. Mas não fui eu que abati aquele avião a jacto. Foi aquele psicopata palestiniano, o Hassan Mahmoud, quem abateu o avião.
— Tu limitaste-te a liquidar o Mahmoud.
— Exactamente.
— E o corpo foi deixado lá ficar para nós deduzirmos que tinha sido a Espada de Gaza a levar a cabo o atentado.
— Sim.
— E- depois foste contratado pelos homens que abateram de facto o avião para eliminar as outras pessoas envolvidas na operação, como o Colin Yardley, em Londres, e o Eric Stoltenberg, no Cairo.
— E depois tu.
— Quem é que te contratou? — perguntou de novo Michael. — Quem é que te contratou para me matar?
— Eles chamam-se a si mesmos Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais — começou por dizer Delaroche. — São um grupo de agentes dos serviços secretos, homens de negócios, comerciantes de armas e criminosos que tentam influenciar os acontecimentos mundiais de modo a ganharem dinheiro e a protegerem os seus próprios interesses.
— Não acredito que uma organização dessas exista realmente.
— Abateram o avião para que um dos seus membros, um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott, pudesse convencer o presidente Beckwith a construir um sistema de defesa antimíssil.
Michael tinha suspeitado que Elliott estivesse envolvido naquela tragédia; na verdade, até tinha posto as suas suspeitas por escrito no relatório que fizera à CIA.
Ainda assim, ouvir Delaroche confirmar-lhe essas suspeitas fê-lo sentir-se enojado. Começou a escorrer-lhe suor pelas costelas.
— Eles sabiam que tu estavas a aproximar-te demasiado da verdade — continuou Delaroche. — Decidiram que o melhor seria que morresses e, por isso, contrataram-me para te matar.
— Como é que eles souberam das minhas suspeitas?
— Têm uma fonte dentro de Langley.
— E o que é que aconteceu a seguir a Shelter Island? — perguntou Michael.
— Passei a trabalhar em exclusivo para a Sociedade.
— E a Sociedade tem algum líder?
— Chamam-lhe o Director. É o único nome pelo qual é conhecido. É inglês. Tem uma rapariga nova chamada Daphne. É tudo o que eu sei sobre ele.
— Foste tu que mataste o Ahmed Hussein no Cairo. Delaroche virou-se de repente e lançou um olhar furioso a Michael.
— A Sociedade executou o assassínio a mando da Mossad. Como é que soubeste que tinha sido eu?
— O Hussein estava sob vigilância dos egípcios. Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio e reparei na cicatriz que o assassino tinha na mão direita. Foi aí que soube que estavas vivo e outra vez em acção. Foi aí que enviámos o alerta à Interpol.
— Soubemos do alerta imediatamente — revelou Delaroche, olhando para as costas da mão direita. — O Director tem excelentes contactos no mundo dos serviços secretos e de segurança ocidentais, mas disse que a informação sobre o alerta à Interpol veio da fonte dele em Langley.
— E porque é que a Sociedade se envolveu na questão da Irlanda do Norte?
— Porque achou que o acordo de paz na Irlanda do Norte era mau para o negócio. Houve uma reunião do Conselho Executivo da Sociedade no mês passado, em Míconos. Nessa reunião, decidiram matar-te a ti e ao teu sogro, e foi-me dada essa missão.
— E a mulher que ia no Volvo era a Rebecca Wells?
— Era.
— Onde é que ela está agora?
— Isso não fazia parte do nosso acordo, Michael.
— E porquê matarem-me a mim?
— O Director investiu uma grande quantidade de dinheiro em mim e quis proteger o seu investimento. Viu-te como uma ameaça.
— E a fonte de Langley estava na reunião em Míconos?
— Estava toda a gente em Míconos.
Já passava das cinco da manhã quando Michael e Delaroche chegaram à aldeia de Greenport, em Long Island. Seguiram pelas ruas desertas e estacionaram no cais dos ferries. O barco estava tranquilamente parado no seu estaleiro; só iria fazer a primeira travessia até Shelter Island, do outro lado do estreito, dali a uma hora. Michael fez uma chamada pelo telefone público junto ao pequeno barracão revestido de ripas que havia no terminal.
— Onde é que tu estás, foda-se? — perguntou Adrian Cárter. — Tens toda a cidade à tua procura.
— Liga-me para este número de um telefone público.
O número de dez dígitos que indicou a Cárter não tinha qualquer semelhança com o verdadeiro número do telefone público. Tinha dado o número a Cárter num código rudimentar que os dois tinham utilizado em operações muitos anos antes — na ordem inversa, com o primeiro dígito mais um do que o número verdadeiro, o segundo dígito menos dois, o terceiro dígito mais três e por aí fora. Não precisou de repetir. Cárter, tal como Michael, era atormentado por uma memória perfeita.
Michael desligou e fumou um cigarro enquanto esperava que Cárter se vestisse, entrasse no carro e se dirigisse a um telefone público. A imagem de Cárter a vestir um casaco por cima do pijama fez Michael sorrir. O telefone tocou passados cinco minutos.
— Importas-te de me dizer que raio se está a passar?
— Digo-te quando tu aqui chegares.
— E onde é que tu estás?
— Em Shelter Island.
— E que raio estás a fazer aí? Estiveste envolvido naquele tiroteio na Key Bridge?
— Apanha mas é o primeiro avião para aqui, Adrian. Preciso de ti. Cárter hesitou um momento e depois disse:
— Estou aí assim que puder, mas porque é que eu já sei que não vai sair daqui nada de bom?
Quando Michael voltou para o carro, Delaroche tinha desaparecido. Encontrou-o uns instantes depois, encostado a uma vedação com rede metálica a enferrujar, a olhar fixamente para o outro lado do estreito, na direcção da silhueta baixa e escura de Shelter Island.
— Conta-me os teus planos — disse Delaroche.
— Se queres o teu dinheiro e a tua felicidade, vais ter de fazer por merecer.
— E que queres tu que eu faça?
— Ajuda-me a destruir a fonte dentro de Langley.
— Sabes quem ele é?
— Sei — respondeu Michael. — E não é um ele. É a Mónica Tyler.
— Eu não sei o suficiente para destruir a Mónica Tyler.
— Sabes, sim, senhor.
Delaroche continuava a olhar fixamente para a água negra.
— De certeza que podíamos ter feito isto noutro sítio que não este, Michael. Porque é que me trouxeste outra vez para este sítio?
Mas Delaroche não estava verdadeiramente à espera de uma resposta e Michael não lhe deu uma.
— Eu preciso de saber uma coisa. Preciso de saber como é que a Astrid morreu.
— A Elizabeth matou-a.
— Como?
Quando Michael lhe contou, ele fechou os olhos. Ficaram ali parados, lado a lado, ambos agarrados à vedação, à medida que os primeiros trabalhadores dos ferries foram começando a chegar. Passados poucos minutos, o barco começou a ressoar no seu estaleiro.
— Nunca foi nada pessoal — disse Delaroche, por fim. — Foram só negócios. Compreendes o que te estou a dizer, Michael? Foram só negócios.
— Tu fizeste-nos passar um inferno, a mim e à minha família, e nunca te perdoarei isso. Mas compreendo. Agora, compreendo tudo.
Capítulo 42
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Quando chegaram ao portão de Cannon Point, um segurança chamado Tom Moore saiu do abrigo para os guardas. Era um antigo comando do exército, com ombros grossos e quadrados e cabelo louro cortado à escovinha.
— Peço desculpa por não ter ligado primeiro para te avisar que estava a caminho, Tom.
— Não há problema, senhor Osbourne — respondeu Moore. — Já ouvimos o que aconteceu ao senhor embaixador. Como é óbvio, estamos todos a torcer por ele. Só espero que apanhem os sacanas que fizeram isto. Na rádio, disseram que eles desapareceram sem deixar rasto.
— Parece que sim. Este é um amigo meu — disse Michael, apontando para Delaroche. — Vai ficar cá um dia ou dois.
— Sim, senhor.
— Aparece lá em casa para almoçar, Tom. Precisamos de falar.
— Eu não quero ter nada a ver com isso — afirmou Adrian Cárter. — Passa isso à Divisão de Contra-Espionagem. Meu Deus, por mim, até podes dar isso aos palhaços do FBI. Mas livra-te disso, porque essa coisa vai destruir quem quer que toque nela.
Cárter e Michael estavam a andar ao longo da divisória com vista para o estreito, de cabeça para baixo e mãos nos bolsos, como uma equipa de busca à procura de um corpo. Naquela manhã, não havia vento e estava frio. Cárter estava com o mesmo anoraque almofadado que trazia vestido naquela tarde no Central Park, em que tinha pedido a Michael para regressar à CIA. Era um fumador regenerado, mas, a meio da história, cravou um cigarro a Michael e devorou-o.
— Ela é a directora da CIA — disse Michael. — Ela controla a Divisão de Contra-Espionagem. E, quanto ao FBI, quem é que vai querer envolvê-los? Isto é um assunto nosso. O FBI só nos vai lembrar isso mesmo.
— E estás a esquecer-te de que ali o Jack, o "Estripador, é a tua única testemunha? — retorquiu Cárter, apontando com a cabeça para a casa. — Tens de admitir que ele tem de facto um problemazinho em termos de credibilidade. Já pensaste pelo menos na possibilidade de ele ter inventado esta coisa toda para impedir que o prendesses?
— Ele não está a inventar.
— Como podes ter tanta certeza? Toda esta coisa de uma ordem secreta chamada Sociedade soa-me a um belo monte de treta.
— Alguém contratou aquele homem para me matar no ano passado porque eu estava a aproximar-me demasiado da verdade acerca do caso da TransAtlantic. Revelei as minhas suspeitas a duas pessoas dentro da CIA. Uma foste tu e a outra foi a Mónica Tyler.
— E então?
— Para começar, porque é que a Mónica fez com que eu me fosse embora da CIA no ano passado? E porque é que me retirou do caso Outubro uma semana antes de ele tentar matar o Douglas? E há mais uma coisa. O Delaroche disse que houve uma reunião da Sociedade em Míconos, no início deste mês. A Mónica esteve na Europa a participar numa conferência regional sobre segurança. E, depois disso, tirou dois dias de folga e desapareceu por completo.
— Meu Deus, Michael, eu também estive na Europa no início do mês.
— Eu acredito na história, Adrian. E tu também.
Saíram do recinto de Cannon Point e caminharam pela Shore Road, no limite de Dering Harbor.
— Se isto for tornado público, vai ser desastroso para a CIA.
— Concordo — disse Michael. — Seriam necessários anos para recuperar de um golpe desses. Destruiria a reputação da CIA em Washington e, em boa verdade, pelo mundo inteiro.
— Então, o que é que fazemos?
— Apresentamos-lhe as provas e acabamos com ela antes que possa causar mais estragos. Ela tem sangue nas mãos, mas se fizermos isto em público a agência vai ficar em ruínas.
— A única maneira de alguma vez conseguires desalojar a Mónica do sétimo andar é com dinamite.
— Eu próprio subo até lá com uma pasta cheia dele, se for preciso.
— E porque é que me envolveste?
— Porque tu és a única pessoa em quem confio. Foste o agente responsável por mim, Adrian. Serás sempre o agente responsável por mim.
Pararam numa ponte que percorria toda a desembocadura de um ribeiro por onde entrava o mar, à frente de Dering Harbor. Para lá da ponte, havia uma vasta planície com relva pantanosa e árvores despidas. Um homem bastante pequeno e esguio estava diante de um cavalete na ponte, a pintar. Tinha luvas de lã sem dedos e uma camisola de pescador já coçada e vários tamanhos acima do seu.
— Encantador — disse Cárter, olhando para o trabalho. — O senhor é muito talentoso.
— Obrigado — respondeu o pintor, num inglês com sotaque carregado.
Cárter virou-se para Michael e soltou:
— Só podes estar a brincar comigo.
— Adrian Cárter, gostaria de te apresentar o Jean-Paul Delaroche. És capaz de o conhecer melhor como Outubro.
Tom Moore apareceu na casa ao meio-dia.
— Queria ver-me, senhor Osbourne?
— Entra, Tom. Há café acabado de fazer na cozinha.
Michael serviu o café e sentaram-se um em frente do outro, à mesa pequena na cozinha.
— O que é que posso fazer por si, senhor Osbourne?
— Vai haver aqui um encontro hoje à noite que eu preciso de gravar, em áudio e vídeo — começou por dizer Michael. — As câmaras de vigilância podem ser reposicionadas?
— Sim, senhor — respondeu Moore sem emoção.
— E consegues gravar através do dispositivo de saída?
— Sim, senhor.
Adrian Cárter entrou na cozinha, seguido por Delaroche.
— Temos algum equipamento áudio na propriedade?
— Não, senhor. O seu sogro não permitiu que houvesse quaisquer microfones. Achou que isso seria uma invasão da sua privacidade — explicou Moore, com a sua cara grande a deixar despontar um sorriso agradável. — Ele já mal tolera as câmaras. Antes de partir para Londres, apanhei-o a tentar desligar uma.
— E quanto tempo é que demoraria para se arranjarem uns microfones e um gravador?
Moore encolheu os ombros.
— Um par de horas, no máximo.
— E consegues instalá-las de maneira a que não possam ser vistas?
— Os microfones são fáceis porque são relativamente pequenos. As câmaras é que põem um problema. São câmaras de segurança normais, mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos.
Michael praguejou baixinho.
— Mas tenho uma ideia.
— Sim?
— As câmaras têm uma lente razoavelmente longa. Se realizassem o encontro na sala de estar, eu podia posicionar câmaras lá fora, no relvado, e filmar através das janelas.
Michael sorriu e disse:
— Tu és bom, Tom.
— Fiz um pouco de espionagem quando estava nos comandos. Só têm de se certificar de que as cortinas ficam sempre abertas.
— Não posso garantir isso.
— Na pior das hipóteses, terão o áudio como apoio. Delaroche perguntou:
— Tem mais alguma arma além dessa peça de museu com que anda?
Moore trazia um revólver Smith & Wesson de calibre 38.
— Eu gosto destas peças de museu porque elas não encravam — respondeu Moore, batendo com a mão grossa no coldre. — Mas sou capaz de conseguir deitar a mão a umas quantas automáticas.
— De que tipo?
— Colt, de calibre quarenta e cinco.
— Nada de Glock nem de Beretta?
— Lamento — soltou Moore, com o espanto estampado no rosto.
— Uma ou duas Colt serviriam muito bem — disse Cárter.
— Sim, senhor — respondeu Moore. — E pode dizer-me do que é que isto tudo se trata?
— De maneira nenhuma.
Delaroche subiu as escadas e seguiu Michael até ao quarto no andar de cima. Este dirigiu-se ao armário, abriu a porta e tirou uma pequena caixa da gaveta de cima.
Abriu-a e tirou de lá a Beretta.
— Creio que deixaste cair isto da última vez que aqui estiveste — disse Michael, entregando a pistola a Delaroche.
A mão direita de Delaroche, com a sua cicatriz, apertou a coronha e, num movimento reflexo, o dedo enfiou-se na protecção do gatilho. Havia qualquer coisa na facilidade com que Delaroche manejava a arma que fez Michael sentir um arrepio.
— Onde é que arranjaste isto? — perguntou Delaroche.
— Saquei-a da água, no final da doca.
— E quem é que a restaurou?
— Fui eu.
Delaroche desviou os olhos da pistola e fitou Michael com um ar intrigado.
— E por que raio foste fazer uma coisa dessas?
— Não sei bem. Acho que queria poder lembrar-me de qual era realmente o aspecto dela.
Delaroche ainda tinha um carregador para uma Beretta de nove milímetros dentro do bolso. Enfiou-o na arma e engatilhou-a, introduzindo a primeira bala na câmara.
— Se quisesses, suponho que podias cumprir os termos do teu contrato neste momento.
Delaroche sorriu e devolveu a Beretta a Michael.
Às quatro da tarde, Michael entrou no escritório de Douglas e ligou para o gabinete de Mónica Tyler na sede da CIA. Cárter estava à escuta noutra extensão, com a mão a tapar o auscultador. A secretária de Mónica informou que a directora Tyler se encontrava numa reunião dos quadros superiores e que não podia ser interrompida.
Michael respondeu que era uma emergência e puseram-no a falar com Tweedledee ou Tweedledum, Michael nunca sabia ao certo qual era qual. Fizeram-no esperar os dez minutos da praxe enquanto Mónica era arrancada da reunião.
— Eu sei tudo — disse Michael, no momento em que ela veio finalmente ao telefone. — Sei da Sociedade e sei do Director. Sei do Mitchell Elliott e do caso da TransAdantic.
E sei que tu tentaste mandar matar-me.
— Michael, estás a delirar completamente? Do que raio é que estás para aí a falar?
— Estou a dar-te uma maneira de saíres disto discretamente.
— Michael, eu não...
— Vem ter à casa do meu sogro em Shelter Island. Vem sozinha: nada de segurança, nada de funcionários. Está cá às dez da noite. Se a essa hora ainda não tiveres chegado, ou se eu vir alguma coisa de que não goste, vou ter com o FBI e o The New York Times e conto-lhes tudo o que sei.
Desligou sem esperar que ela respondesse.
Trinta minutos mais tarde, o telefone seguro tocou no escritório da mansão londrina do Director. Estava sentado numa poltrona de orelhas, junto à lareira, com os pés apoiados numa otomana, a despachar um monte de papelada. Daphne entrou no escritório silenciosamente e atendeu o telefone.
— É o Picasso — disse Daphne. — Diz que é urgente.
O Director pegou no auscultador e disse:
— Sim, Picasso?
Com calma, Mónica Tyler informou-o do telefonema que tinha acabado de receber de Michael Osbourne.
— Suspeito que o Outubro seja a fonte das informações de que ele dispõe — disse o Director. — Se isso for verdade, parece-me que o Osbourne não tem muito por onde pegar. O Outubro sabe muito pouco acerca da estrutura global da nossa organização e não é propriamente uma testemunha credível. É um homem que mata por dinheiro, um homem sem princípios morais e sem lealdade.
— Concordo, Director, mas não me parece que devamos simplesmente desconsiderar a ameaça.
— Não estou a sugerir isso.
— E possui os recursos necessários para os eliminar?
— Não assim com tão pouca antecedência.
— E se eu prender pura e simplesmente o Outubro?
— Então, ele e o Outubro irão contar ao mundo a história deles.
— Estou aberta a sugestões.
— Sabes jogar póquer? — perguntou o Director.
— Em sentido figurado ou literalmente?
— Um bocadinho das duas coisas, na verdade.
— Penso que compreendo a sua ideia.
— Ouve o que o Osbourne tem para dizer e avalia as tuas opções. Eu sei que não preciso de te lembrar que fizeste um juramento de fidelidade para com a Sociedade.
A tua primeira preocupação deve ser o cumprimento desse juramento.
— Compreendo, Director.
— E talvez se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
— Eu nunca fiz esse tipo de coisas, Director.
— Não é assim tão difícil, Picasso. Fico à espera de notícias tuas. Desligou o telefone e olhou para Daphne.
— Começa a ligar para os membros do Conselho Executivo e para os chefes de divisão. Preciso de falar com todos eles urgentemente. Receio que possamos ser forçados a parar com as nossas actividades durante algum tempo.
Mónica Tyler desligou o telefone e olhou para o rio Potomac através da janela. Atravessou a sala e parou diante de um Rembrandt, uma paisagem que tinha comprado por uma pequena fortuna num leilão em Nova Iorque. Percorreu o quadro com os olhos: as nuvens, a luz a espalhar-se do chalé, a charrete sem cavalo no meio da erva do prado. Agarrou na moldura e puxou. O Rembrandt girou nas dobradiças, revelando um pequeno cofre na parede.
Os dedos dela giraram a fechadura automaticamente, sem que os olhos olhassem praticamente para os números; passados uns segundos, o cofre estava aberto. Começou a tirar de lá alguns artigos: um envelope com cem mil dólares em dinheiro, três passaportes falsos com nomes diferentes e de países diferentes e cartões de crédito correspondentes aos nomes.
A seguir, tirou um último artigo, uma Browning automática.
E take se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
Mudou de roupa, trocando o fato Chanel de corte justo por umas calças de ganga e uma grande mala de mão de couro preta. Depois, guardou uma muda de roupa numa pequena mala de fim-de-semana.
Pôs a mala de mão ao ombro e enfiou a mão lá dentro, apertando a coronha da Browning tinha sido treinada pela CIA para manejar uma arma. Um dos membros da equipa de segurança dela estava à espera no corredor.
— Boa tarde, Directora Tyler.
— Boa tarde, Ted.
— É para voltar para a sede, Directora?
— Por acaso, não, é para heliporto.
— O heliporto? Ninguém nos disse nada sobre...
— Não há problema, Ted — disse ela calmamente. — É um assunto privado.
O segurança olhou para ela atentamente.
— Passa-se alguma coisa, Directora Tyler?
— Não, Ted, vai correr tudo lindamente.
Capítulo 43
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Michael mantinha-se ansiosamente vigilante no relvado de Cannon Point. Estava a beber o café horrível de Adrian Cárter, a fumar os seus próprios cigarros horríveis e a andar de um lado para o outro na relva gelada, com os binóculos que Douglas utilizava para observar aves colocados ao pescoço. Meu Deus, como a noite estava fria, pensou. Olhou uma vez mais para o céu a ocidente, na direcção em que Mónica viria, mas viu apenas uma chuva de estrelas molhadas, espalhadas pelo tapete negro do espaço, e uma nesga de lua, de um branco-amarelado.
Olhou para o relógio — 21h58. Mónica nunca chega a horas, pensou. "A Mónica há-de chegar dez minutos atrasada ao próprio funeral", gracejou uma vez Cárter, especado na deprimente antessala de Mónica, à espera que esta aparecesse. Talvez ela não vá aparecer, pensou Michael, ou talvez eu simplesmente espere que ela não o faça.
Talvez Adrian tivesse razão. Talvez ele devesse simplesmente esquecer tudo aquilo, deixar a CIA — para sempre, desta vez — e ficar em Shelter Island com Elizabeth e as crianças. E depois? Viver o resto da minha vida a olhar por áma do ombro, à espera que a Mónica ou os amigos dela enviem outro assassino, outro Delaroche?
Viu as horas uma vez mais. Era o velho relógio do pai: fabricado na Alemanha, grande como um dólar de prata, à prova de água, à prova de pó, à prova de choque, seguro para crianças, ligeiramente luminoso. Perfeito para um espião. Tinha sido a única coisa do pai com que Michael ficara depois de ele morrer. Nem tinha tirado a correia removível que lhe deixava um padrão de buracos rectangulares estampado na pele do pulso. Às vezes, olhava para o relógio e pensava no pai — em Moscovo, ou Roma, ou Viena, ou Beirute — à espera de um agente. Interrogou-se sobre o que o pai acharia daquilo tudo.
Na altura, ele nunca me diizia o que pensava, pensou Michael. Porque é que agora haveria de ser diferente?
Ouviu um baque surdo que poderia ter sido provocado por um helicóptero à distância mas que era apenas o som proveniente do clube nocturno que ficava na outra margem, em Greenport — a banda residente a preparar-se para mais um concerto tenebroso. Michael pensou na sua heterogénea equipa de operações. Delaroche, o seu inimigo, a prova acabada da traição perpetrada por Mónica, à espera para ser posto no palco e depois tirado de lá. Tom Moore, parado diante dos seus monitores no chalé dos convidados, prestes a apanhar o choque da sua vida. Adrian Cárter, atrás dele, a andar de um lado para o outro, a fumar os cigarros de Michael sem parar e a desejar estar em qualquer outro lugar que não aquele.
Michael ouviu o bater das hélices do helicóptero muito antes de o conseguir ver. Por um instante, pensou que até pudessem ser dois, ou três, ou mesmo quatro. Instintivamente, esticou o braço para agarrar na Colt automática que Tom Moore lhe fornecera, mas, passado um momento, viu as luzes de um único helicóptero a aproximar-se, sobrevoando Nassau Point e Great Hog Neck, e percebeu que tinha sido apenas o vento nocturno a pregar-lhe uma partida aos ouvidos.
Lembrou-se da manhã, dois meses antes, em que o helicóptero que transportava o presidente James Beckwith fizera o mesmo percurso até Shelter Island, desencadeando a sucessão de acontecimentos que o tinha levado até àquele sítio.
As imagens desenrolaram-se na sua mente à medida que o helicóptero se ia aproximando.
Adrian Cárter no dique da represa no Central Park, a seduzir Michael a regressar.
Kevin Maguire amarrado a uma cadeira e Seamus Devlin a sorrir. Eu não matei o Kevin Maguire, Michael. Você é que o matou.
Preston McDaniels a ser esmagado pelas rodas do comboio da Linha do Sofrimento.
Delaroche, a sorrir por cima do parapeito da Key Bridge. Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo?
Às vezes, o trabalho de espionagem é assim, costumava dizer o pai — como a teoria do caos. Um sopro de vento agita a superfície de um lago, fazendo um tufo de juncos deslocar-se, o que origina o voo de uma libélula, que assusta uma rã, e sempre por aí adiante até que, a dezenas de milhares de quilómetros de distância e muitas semanas depois, um tufão destrói uma ilha nas Filipinas.
O helicóptero sobrevoou baixinho a baía de Southold. Michael olhou para o relógio do pai: um minuto depois das dez. O helicóptero começou a descer sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, aterrando a seguir no extenso relvado de Cannon Point. Os motores desligaram-se e as hélices foram parando de girar gradualmente.
A porta abriu-se e uma pequena escada estendeu-se até ao chão. Mónica saiu do helicóptero, com uma mala de mão preta ao ombro, e avançou de forma decidida em direcção à casa.
— Vamos lá a despachar este disparate — disse ela, passando depressa por Michael. — Sou uma mulher muito ocupada.
Mónica Tyler não era uma pessoa que caminhasse sem pressas, mas estava a fazê-lo naquele momento. Percorreu a sala de estar de Douglas Cannon como um político a inspeccionar um parque de caravanas a seguir a um tornado — com calma, estoicismo e empatia, mas com o cuidado de não pisar nada que fosse revoltante. Foi fazendo pequenas pausas de tempos a tempos, ora franzindo o sobrolho à coberta com motivos florais por cima do sofá, ora fazendo uma careta perante o pequeno tapete rústico diante da lareira.
— Tens câmaras em algum sítio, não tens, Michael — disse ela, fazendo uma afirmação e não uma pergunta. — E microfones.
Prosseguiu a sua agitada travessia pela sala.
— Não te importas que eu corra estas cortinas, pois não, Michael? E que, sabes, eu também passei por aquele cursozinho na quinta. Posso não ser uma agente operacional experiente como tu, mas sei uma coisinha ou outra sobre as artes clandestinas.
Fez questão de mostrar bem que estava a fechar as cortinas.
— Pronto — rematou. — Assim está muito melhor. Sentou-se, como uma testemunha relutante e arrogante a sentar-se para depor. Os pedaços de tronco na lareira começaram a crepitar. Ela cruzou uma perna sobre a outra, pousando as mãos compridas em cima do tecido desbotado das calças de ganga, e fitou Michael com um olhar gelado. O cenário prosaico à sua volta tinha-lhe retirado a intimidação física. Não havia caneta de ouro para esgrimir como um punhal, não havia secretária para interromper uma reunião que se tinha tornado inesperadamente desagradável, não havia Tweedledum nem Tweedledee, vigilantes como dobermans, agarrados às suas pastas de couro e telemóveis seguros.
Delaroche entrou na sala. Estava a fumar um cigarro. Mónica lançou-lhe um olhar feroz de desprezo, já que o tabaco, como a falta de lealdade, era um dos seus ódios de estimação.
— Este homem chama-se Jean-Paul Delaroche — disse Michael. — Sabes quem é?
— Suspeito que seja um antigo assassino do KGB com o nome de código Outubro e que agora actua como assassino internacional a soldo.
— E sabes porque é que ele cá está?
— Provavelmente, porque quase matou o teu sogro ontem à noite, em Georgetown, apesar de todos os nossos esforços para o determos.
— Que jogo andas tu a jogar, Mónica? — perguntou Michael rispidamente.
— Ia precisamente perguntar-te a mesma coisa.
— Eu sei tudo — disse ele, agora mais calmo.
— Acredita em mim, Michael, tu não sabes tudo. Na verdade, não sabes praticamente nada. É que a tua brincadeirazinha pôs gravemente em risco uma das operações mais importantes que a CIA tem neste momento em execução.
A sala tinha ficado em silêncio, à excepção da lareira, que se encontrava de novo em actividade, a crepitar como pequenas armas. La fora, o vento abanava as árvores despidas e uma delas arranhava a fachada lateral da casa. Um camião roncou pela Shore Road e um cão ladrava algures.
— Se queres ouvir o resto, vais ter de desligar os teus microfones — avisou Mónica.
Michael não se mexeu. Mónica esticou o braço na direcção da mala, como se estivesse prestes a levantar-se para se ir embora.
— Está bem — disse Michael.
Pôs-se em pé, foi até à secretária de Douglas e abriu uma gaveta. Lá dentro, estava um microfone, mais ou menos do tamanho de um dedo. Michael levantou-o para que Mónica o pudesse ver.
— Desliga-o — disse ela.
Ele arrancou o microfone do cabo.
— E agora o de apoio — continuou ela. — Tu és demasiado paranóico para fazeres uma coisa destas sem um apoio.
Michael dirigiu-se para as prateleiras dos livros, tirou um volume de Proust e puxou do segundo microfone.
— Acaba com ele — ordenou Mónica. Delaroche olhou para Michael.
— Ela tem uma pistola na mala.
Michael aproximou-se da cadeira onde Mónica Tyler estava sentada, enfiou a mão na mala e tirou de lá a Browning.
— Desde quando é que os directores da CIA andam com armas?
— Quando se sentem ameaçados — respondeu Mónica. Michael travou a patilha de segurança e atirou a Browning para Delaroche.
— Muito bem, Mónica, vamos lá começar.
Adrian Cárter era ansioso por natureza, o que o tornava estranhamente inadequado para a actividade de enviar agentes para o terreno e ficar à espera que eles regressassem.
Ao longo dos anos, tinha aguentado muitas vigílias plenas de ansiedade por causa de Michael Osbourne. Lembrou-se das duas noites intermináveis que tinha passado em Beirute, em 1985, à espera que Michael regressasse de um encontro com um agente no vale de Bekaa. Cárter temia que Michael tivesse sido sequestrado ou morto.
Estava prestes a desistir quando Michael apareceu em Beirute aos tropeções, coberto de poeira e a cheirar a cabras.
Ainda assim, nada se comparava ao desconforto que sentia naquele momento, ao ouvir o seu agente a confrontar a directora da CIA. Quando esta exigiu que Michael inutilizasse o primeiro microfone Cárter não ficou especialmente preocupado — havia dois na sala e um agente operacional experiente como Michael nunca abriria mão do seu ás de trunfo.
Depois, ouviu Mónica a exigir que o segundo fosse igualmente desligado, seguido de uma série de ruídos surdos e estática, no momento em que Michael o arrancou da prateleira. Quando a ligação à sala foi interrompida, fez a única coisa que um bom orientador de agentes pode fazer.
Acendeu outro dos cigarros de Michael e esperou.
— Pouco tempo depois de ter sido nomeada directora da CIA, fui abordada por um homem que dava apenas pelo nome de Director — começou por dizer ela, falando como uma mãe exausta, a contar com relutância um conto de fadas a uma criança que não quer ir deitar-se. — Perguntou-me se eu estaria disposta a fazer parte de um clube de elite, um grupo internacional de agentes dos serviços secretos, especialistas financeiros e homens de negócios dedicado à preservação da segurança mundial. Suspeitei que havia ali qualquer coisa de errado e, por isso, informei a Divisão de Contra-Espionagem do incidente, relatando-o como um potencial recrutamento por parte de uma organização inimiga. A Divisão de Contra-Espionagem achou que poderia ser produtivo, em termos operacionais, aceitar o convite do Director e eu concordei. Pedi a aprovação do próprio presidente para dar início à operação. Encontrei-me com o homem chamado Director mais três vezes, duas na Europa do Norte e uma no Mediterrâneo.
No final do nosso terceiro encontro, chegámos a um acordo e eu entrei para a Sociedade.
"A Sociedade tem tentáculos muito compridos. Está envolvida em operações secretas a uma escala mundial. Comecei a recolher imediatamente informações sobre os membros e as operações. Algumas informações passaram por uma lavagem efectuada pela agência e nós tomámos contramedidas. Por vezes, considerámos ser necessário permitir que as operações da Sociedade prosseguissem, pois desmantelá-las poderia pôr em risco a minha posição dentro da hierarquia da organização.
Michael observou-a enquanto ela falava. Estava calma e serena e completamente lúcida, como se estivesse a ler um discurso preparado numa reunião de accionistas.
Sentiu-se tremendamente impressionado com ela; era uma mentirosa formidável.
— E quem é o Director?
— Não sei, e suspeito que o Delaroche também não saiba.
— E tu sabias que ele tinha sido contratado para matar o meu sogro?
— Claro, Michael — respondeu ela, semicerrando os olhos em sinal de desprezo.
— Então, para que é que foi toda aquela fantochada na sala de jantar executiva? Porque é que me retiraste do caso?
— Porque o Director mo pediu — respondeu ela secamente. A seguir, acrescentou: — Deixa-me explicar. Ele achou que o Delaroche conseguiria desempenhar a missão com maior facilidade se tu já não te encontrasses à frente do caso. Por isso, afastei-te e tomei discretamente medidas para assegurar a segurança do teu sogro. Infelizmente, essas medidas não foram bem-sucedidas.
— Se foi esse o caso, então porque é que ele estava desprotegido em Washington?
— Porque o Director me garantiu que o Delaroche não iria actuar em solo americano.
— E porque é que não me disseste?
— Porque nós não queríamos que tu fizesses nada de precipitado que pudesse pôr em risco a segurança da operação. O objectivo era atrair o Delaroche e fazer com que ele se mostrasse para poder ser eliminado... retirado do mercado, por assim dizer. Não queríamos que o afugentasses trancando o teu sogro numa caixa-forte e deitando a chave fora.
Michael olhou para Delaroche, que estava a abanar a cabeça.
— Ela está a mentir — disse ele. — O Director tratou de tudo o que eu precisava aqui: transportes, armas, tudo. Decidiu levar a cabo o assassínio especificamente em Washington porque sabia que o embaixador estaria mais vulnerável aqui do que em Londres. Foi programado para coincidir com a conferência sobre a Irlanda do Norte de modo a aumentar o impacto no processo de paz.
Parou por uns instantes, com os olhos a deslocarem-se de Michael para Mónica e vice-versa.
— Ela é muito boa, mas está a mentir.
Mónica ignorou-o, continuando a olhar para Michael.
— Era por causa disto que nós não queríamos que o Delaroche fosse preso, Michael. Porque ele iria mentir. Porque ele iria inventar. Seria capaz de dizer qualquer coisa para salvar a pele. E o problema é que tu acreditas nele. Nós queríamos vê-lo eliminado porque, se ele fosse preso, suspeitávamos que pudesse sair-se com uma jogada destas.
— Não é uma jogada — disse Delaroche. — É a verdade.
— Devias ter desempenhado melhor o teu papel, Michael. Devias ter-te limitado a levar a cabo a tua vingança pela Sarah Randolph e matá-lo. Mas agora arranjaste uma bela trapalhada... para a CIA e para ti mesmo.
Mónica levantou-se, indicando que o encontro tinha chegado ao fim.
Michael disse:
— Se insistes em fazer a coisa assim, não me deixas outra escolha a não ser ir ter com a Divisão de Contra-Espionagem e o FBI e reve-lar-lhes as minhas suspeitas sobre ti. Vais passar os próximos dois anos a aguentar o equivalente à tortura chinesa da água. A seguir, o Senado há-de querer atirar-se a ti. Só as contas que terás de pagar em termos jurídicos vão deixar-te falida. Nunca mais voltarás a trabalhar no governo e ninguém na Wall Street vai querer ter alguma coisa a ver contigo.
Vais ser destruída, Mónica.
— Tu não tens provas que cheguem, e ninguém vai acreditar em ti.
— O genro do embaixador Douglas Cannon afirma que a directora da CIA esteve envolvida na tentativa de assassínio contra ele.
É uma história do caneco. Não há um único jornalista em Washington que não se atirasse a ela como gato a bofe.
— E tu vais ser posto em tribunal por teres revelado segredos da CIA. •
— Estou disposto a arriscar.
Adrian Cárter entrou na sala. Mónica olhou para ele; depois voltou a fixar os olhos em Michael.
— Uma caça às bruxas destruirá a agência, Michael. Devias saber isso. O teu pai foi apanhado na caça à toupeira levada a cabo pelo Angleton[41], não foi? Isso quase lhe destruiu a carreira. Esta é a tua maneira de te vingares da CIA pelo que aconteceu ao teu pai? Ou ainda sentes rancor por mim por eu ter tido a lata de te suspender em tempos?
— Não estás em posição de me irritar neste preciso momento, Mónica.
— Então, o que é que eu tenho de fazer para impedir que faças essa alegação imprudente contra mim?
— Terás de te demitir na altura apropriada. E, até lá, vais fazer exactamente aquilo que eu e o Adrian te dissermos. E vais ajudar-me a acabar com a Sociedade.
— Meu Deus, tu és mesmo um tonto ingénuo! Acabar com a Sociedade é impossível. A única forma de os controlar é fazendo parte deles. — Olhou para Delaroche. — E o que é que pensas fazer com ele?
Michael respondeu:
— Eu trato do Delaroche. — Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá uma cassete áudio. — Fiz isto ontem à noite, com umas cópias à mistura — disse. — Inclui um relato completo do teu papel na Sociedade, no caso da TransAtlantic e na tentativa de matar o meu sogro. Vou montar uma espécie de mecanismo de disparo. Se acontecer alguma coisa ao Adrian, ao Delaroche ou a mim, serão enviadas cópias disto para o The New York Times e o FBI.
Michael voltou a guardar a cassete no bolso.
— A decisão é tua, Mónica.
— Eu dei seis anos da minha vida à agência — disse ela. — Fiz tudo o que estava ao meu alcance para assegurar a sua sobrevivência e protegê-la de homens como tu: dinossauros sem a visão necessária para compreender que a CIA possui um papel neste nosso novo mundo. O jogo deixou-te para trás, Michael, e tu és demasiado estúpido para reparar sequer nisso.
— Tu usaste a CIA como um joguete privado para promover os teus próprios interesses e eu agora estou a recuperá-la.
Ela colocou a mala ao ombro, deu meia-volta e começou a ir-se embora.
— A decisão é tua, Mónica — repetiu Michael, mas ela limitou-se a continuar a andar.
Um momento depois, ouviram o gemido do motor do helicóptero a regressar à vida. Michael avançou para a varanda a tempo de ver o helicóptero de Mónica levantar voo do relvado e desaparecer sobre as águas do estreito.
Passaram o resto do dia à espera. Cárter ficou especado na varanda, de binóculos pendurados ao pescoço, olhando fixamente na direcção do estreito, como um guarda fronteiriço no Muro de Berlim. Michael contornou a casa, caminhando decidido por praias cheias de pedras e no meio dos bosques, à procura de sinais de que o inimigo estivesse a reunir as tropas. E, durante todo esse tempo, Delaroche limitou-se a observá-los, um espectador, ligeiramente perplexo, da destruição por si causada.
Cárter manteve-se em contacto com a sede. Alguém tinha tido notícias de Mónica?, perguntava ele inocentemente no final de cada conversa. As respostas foram-se tornando cada vez mais intrigantes à medida que o dia avançava. Mónica cancelou todas as reuniões que tinha. Mónica está enfiada no gabinete. Mónica não está a receber chamadas.
Mónica passou à clandestinidade. Mónica não quer comer nem beber nada. Michael e Cárter discutiram o significado dessas informações, como é próprio dos espiões fazerem.
Estaria a redigir os seus termos de rendição ou a preparar um contra-ataque?
À tarde, Cárter foi à aldeia comprar comida. Delaroche cozinhou omeletas para todos, apoiado num banco porque não conseguia ter o tornozelo inchado no chão durante muito tempo. Beberam uma garrafa de vinho, e depois outra. Delaroche providenciou o entretenimento. Ao longo de duas horas, deu uma palestra: treino, artes do ofício, missões, identidades secretas, armamento e tácticas. Não lhes contou nada que pudessem utilizar contra ele, mas pareceu retirar prazer desse mínimo desvelar de segredos.
Não disse nada acerca de Sarah Randolph ou de Astrid Vogel, ou da noite em Cannon Point um ano antes, quando ele e Michael se tinham ferido a tiro mutuamente. Permaneceu completamente imóvel enquanto falava, de mãos cruzadas sobre a mesa, com a esquerda a tapar a direita de maneira a esconder a cicatriz enrugada que tinha conduzido Michael até ele.
Foi Cárter quem fez as perguntas, pois Michael já estava com a cabeça noutro sítio. Oh, ele estava a ouvir, pensou Cárter — Michael, o dictafone humano, capaz de monitorizar três conversas e de recitar cada uma delas a outra pessoa passada uma semana —, mas já tinha um recanto da mente a voltar-se para outro problema. Por fim, Cárter começou a falar em russo, uma língua que Michael não falava, e os dois homens terminaram a conversa em privado.
Ao cair da noite, Michael e Delaroche foram caminhar. Michael, a antiga estrela das pistas, tinha enrolado uma grande quantidade de fita adesiva branca à volta do tornozelo de Delaroche. Cárter deixou-se ficar na casa; seria como estar a escutar uma conversa entre amantes desavindos e não queria tomar parte nisso. Ainda assim, não conseguiu resistir ao impulso de ir para a varanda para os observar. Não era um voyeur, apenas um agente de controlo, tomando conta do seu agente e velho amigo.
Seguiram ao longo da divisória em direcção à doca, com Delaroche a coxear ligeiramente. Quando a luz começou a enfraquecer, Cárter deixou de ser capaz de distinguir um do outro, tão semelhantes eram os dois homens em altura e constituição. Foi então que se apercebeu de que eram como duas metades do mesmo homem. Cada um possuía traços, presentes, embora reprimidos com êxito, no outro. Se não fosse pelo património e direitos adquiridos pelo nascimento, a aleatória roleta russa do tempo e espaço, tanto um como o outro poderiam muito bem ter seguido o caminho contrário: Jean-Paul De-laroche, virtuoso agente secreto; Michael Osbourne, assassino.
Passado bastante tempo — uma hora, calculou Cárter, já que, de forma nada característica, se tinha esquecido de registar a hora a que a conversa tinha começado —,
Michael e Delaroche começaram a fazer o caminho de regresso à casa.
Pararam junto ao carro alugado de Michael e ficaram defronte um do outro, cada um no seu lado do capô. Cárter continuava a não ser capaz de dizer qual era qual.
Um deles parecia estar a falar de maneira intensa e outro a bater indolentemente com a biqueira do sapato no chão. Quando a conversa terminou, aquele que tinha estado a dar pontapés no chão estendeu a mão por cima do capô do carro, mas o outro não a quis apertar.
Delaroche retirou a mão e entrou no carro. Passou pelo portão de segurança e avançou a alta velocidade pela Shore Road, embrenhando-se na escuridão. Michael Osbourne aproximou-se da casa lentamente.
ABRIL
Capítulo 44
WASHINGTON
VIENA
SOUTH ISLAND, NOVA ZELÂNDIA
O embaixador Douglas Cannon recebeu alta do George Washington University Hospital numa manhã invulgarmente quente da segunda semana de Abril. Tinha chovido durante a noite, mas a meio da manhã as poças já resplandeciam sob um sol intenso. Havia apenas um pequeno grupo de jornalistas e operadores de câmara à espera junto ao caminho de acesso, já que os media de Washington sofrem de uma espécie de síndroma de défice de atenção colectivo e ninguém estava realmente interessado em ver um velho a sair do hospital. Ainda assim, Douglas conseguiu "ser notícia", como se costuma dizer nessa profissão, quando exigiu ruidosamente sair pelo próprio pé e não com a ajuda da obrigatória cadeira de rodas — tão ruidosamente, de facto, que os jornalistas o conseguiram ouvir lá fora. "Deram-me um tiro nas costas, que raios, não nas pernas", resmungou Cannon. Os comentários foram relatados mais tarde nas notícias da noite, para grande gáudio do embaixador.
Ficou na casa da N Street, em Georgetown, durante as primeiras duas semanas de recuperação, e depois voltou para casa, para a sua adorada Cannon Point. Uma pequena multidão que se tinha reunido para lhe dar as boas-vindas acenou e gritou quando o carro de Douglas passou por Shelter Island Heights. Permaneceu em Cannon Point durante o resto da Primavera. Os seguranças acompanhavam-no quando ia passear à beira de água, cheia de pedras, na Upper Beach, e quando percorria os trilhos da reserva de Mashomack. Por altura de Junho, já se sentia com força suficiente para ir velejar no Athena. De forma nada habitual nele, tinha entregado o leme a Michael, mas foi vociferando ordens e criticando tão energicamente os conhecimentos náuticos do genro, que Michael ameaçou atirá-lo pela borda fora junto à costa de Plum Island.
Amigos de longa data insistiram com Douglas para que se demitisse do cargo em Londres; até o presidente Beckwith considerou que essa seria a melhor opção. Mas, no final de Junho, ele regressou a Londres e instalou-se no seu gabinete na Grosvenor Square. A 4 de Julho, no Dia da Independência, compareceu perante o Parlamento a título especial e, a seguir, viajou para Belfast, onde foi recebido como um herói.
Para coincidir com a sua visita, os serviços secretos e de segurança britânicos e americanos divulgaram os resultados da sua investigação conjunta à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de matar Cannon em Washington. No comunicado, concluía-se que havia dois terroristas envolvidos, uma mulher chamada Rebecca Wells, que também estava implicada no caso de Hartley Hall, e um homem não identificado que se supunha ser um assassino profissional contratado pelo grupo.
Apesar de uma busca à escala global, os dois terroristas continuavam a monte.
Horas depois da visita de Cannon à Irlanda do Norte, um grande carro-bomba explodiu à porta de um mercado, junto à esquina da Whiterock Road com a Falis Road. Morreram cinco pessoas e foram feridas outras dezasseis. A Brigada para a Libertação do Ulster reivindicou a responsabilidade. Nessa noite, um grupo republicano extremista, dando pelo nome de Célula de Libertação Irlandesa, vingou esse atentado através da explosão de um gigantesco camião-bomba que arrasou grande parte do centro de Portadown.
O grupo prometeu prosseguir com os seus atentados até que o acordo de paz de Sexta-Feira Santa estivesse morto.
Durante várias semanas, os corredores sem fim de Langley palpitaram com os rumores acerca de uma reorganização drástica no sétimo andar. Mónica ia-se embora, segundo um rumor. Ia ficar para sempre, segundo outro. Mónica tinha caído em desgraça junto do presidente. Mónica estava prestes a tornar-se secretária de Estado. O rumor mais popular entre os seus detractores era a história de que ela tinha sofrido um esgotamento nervoso; que tinha entrado em delírio; que, num acesso de raiva psicótica, tinha tentado destruir por completo a mobília de mogno do seu gabinete.
Inevitavelmente, os rumores difundidos acerca de Mónica chegaram aos ouvidos do The Washington Post. O correspondente do jornal para as questões de espionagem preferiu excluir as coisas mais picantes que tinha ouvido, mas, numa extensa notícia de primeira página, acabou mesmo por relatar que Mónica tinha perdido a confiança dos quadros inferiores da CIA, dos barões da comunidade dos serviços secretos e até do próprio presidente. Nessa tarde, durante uma iniciativa destinada à obtenção de publicidade positiva, com miúdos da escola no Jardim das Rosas, o presidente Beckwith afirmou que Mónica Tyler continuava a ter a sua "total e absoluta confiança".
Traduzido do vocabulário de Washington para uma linguagem simples, o comentário significava que a queda de Mónica Tyler estava a ser ponderada.
Foi assolada por pedidos de entrevistas. O Meet the Press[42] queria que ela participasse no programa. Ted Koppel telefonou-lhe pessoalmente para a convidar para o Nightline[43]. Um membro dos quadros do Larry King Tive[44] tentou mesmo convencer os guardas que se encontravam no portão da frente a deixá-lo passar. Mónica recusou-os a todos. Preferiu antes emitir um comunicado escrito no qual afirmava estar à completa disposição do presidente, e se o presidente quisesse que ela permanecesse ao seu serviço assim o faria.
Mas já não havia nada a fazer. O Inverno abateu-se sobre o sétimo andar. As portas mantiveram-se fechadas a sete chaves. A papelada deixou de circular. A paralisia começava a instalar-se. Mónica estava isolada, dizia a fábrica dos rumores. Mónica estava menos acessível do que nunca. Mónica estava acabada. Tweedledee e Tweedledum só muito raramente eram vistos; e, quando acabavam por aparecer, moviam-se pelos corredores como lobos cinzentos assustadiços. Alguma coisa tinha de ser feita, diziam os rumores. As coisas não podiam continuar daquela maneira.
Por fim, em Julho, Mónica convocou uma reunião dos quadros para o auditório e anunciou a sua demissão, com efeitos a partir do dia 1 de Setembro. Estava a fazer o anúncio atempadamente para que o presidente Beckwith — que ela admirava profundamente e tinha a honra de ter servido — tivesse tempo de sobra para escolher um sucessor apropriado. Entretanto, dar-se-iam mudanças nos quadros superiores. Adrian Cárter iria passar a ser o novo director executivo. Cynthia Martin iria substituir Cárter enquanto chefe do Centro de Contraterrorismo. E Michael Osbourne iria passar a ser o novo director-adjunto de operações.
No Outono, Mónica desapareceu por completo. A sua antiga firma queria tê-la de volta, mas ela disse que precisava de algum tempo para si própria antes de regressar à labuta da Wall Street. Começou a viajar; no sétimo andar de Langley, iam chegando regularmente a Cárter e a Michael informações sobre o seu paradeiro. Mónica estava sempre sozinha, de acordo com os relatórios. Nada de amigos, família, amantes, cães — nada de contactos suspeitos de qualquer espécie. Tinha sido vista em Buenos Aires. Tinha sido avistada em Paris. Tinha ido fazer um safari na África do Sul. Foi fazer mergulho submarino no mar Vermelho, para grande surpresa de todos na sede, já que não havia lá ninguém que tivesse descoberto o facto de ela ser uma mergulhadora de grandes predicados. No final de Novembro, um perito em vigilância do posto de Viena da CIA fotografou Mónica sentada sozinha num café frio na Stephansplatz.
Nessa mesma noite, Mónica Tyler estava a regressar ao hotel a pé a seguir ao jantar, atravessando uma passagem estreita para peões na sombra da Catedral de Santo Estêvão, quando um homem lhe surgiu à frente. Era de estatura média, constituição compacta e passo ágil. Havia qualquer coisa na forma como ele se mexia, o ritmo decidido do seu andar, que fez com que disparassem alarmes na cabeça dela.
Olhou de soslaio por cima do ombro e apercebeu-se de que estava sozinha. Parou de andar, deu meia-volta e começou a voltar para a praça. O homem, agora atrás dela, limitou-se a acelerar o passo. Mónica não correu — percebeu que isso seria inútil —, fechou apenas os olhos e continuou a andar.
O homem foi-se aproximando, mas não aconteceu nada. Ela parou e voltou-se para o enfrentar. Ao virar-se, o homem tirou uma pistola do casaco. Havia um silenciador comprido e esguio instalado na ponta do cano.
— Meu Deus, não — disse ela, mas o homem levantou o braço e disparou rapidamente três vezes.
Mónica Tyler caiu para trás, ficando a olhar fixamente para os pináculos da catedral. Ouviu o seu assassino a afastar-se e sentiu o seu próprio sangue a escorrer-lhe do corpo para as frias pedras arredondadas da calçada.
A seguir, os pináculos de Santo Estêvão transformaram-se em água e ela morreu.
Em Georgetown, Elizabeth Osbourne ouviu o telefone a tocar. Agora que Michael era o director-adjunto, os telefonemas às quatro da manhã não eram invulgares. Tinha uma reunião importante com um cliente de manhã — transferira-se para o escritório da firma em Washington quando Michael foi promovido — e precisava de dormir. Fechou os olhos e tentou não ouvir Michael a murmurar às escuras.
— Alguma coisa importante? — perguntou ela quando o ouviu a pousar o auscultador.
— A Mónica Tyler foi assassinada hoje à noite em Viena.
— Assassinada? O que é que aconteceu?
— Foi morta a tiro.
— Mas quem é que iria querer matar a Mónica Tyler?
— A Mónica tinha muitos inimigos.
— Vais entrar ao serviço?
— Não — respondeu ele. — Trato disso de manhã.
Ela fechou os olhos e tentou adormecer, mas era escusado. Havia qualquer coisa na voz de Michael que a tinha deixado perturbada. A Mónica tinha muitos inimigos.
Incluindo tu, Michael", pensou.
Antes de amanhecer, ele saiu da cama. Elizabeth levantou-se e foi até ao andar de baixo. Deu com ele na sala de estar, parado diante das portas envidraçadas, a olhar fixamente para o jardim meio iluminado.
— Michael — perguntou ela baixinho —, estás bem?
— Estou óptimo — respondeu ele, sem se virar.
— Queres falar de alguma coisa?
— Não, Elizabeth — respondeu. — Só preciso de pensar.
— Michael, se há...
— Já disse que não posso falar disso, Elizabeth. Por isso, não insistas.
Deu meia-volta e afastou-se das portas envidraçadas, passando por ela sem falar.
Elizabeth reparou que a cara dele estava branca como a cal.
A Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais reuniu para a sua conferência anual de Verão num château à beira do lago, no cimo das montanhas de South Island, na Nova Zelândia. O local tinha sido escolhido com grande antecedência, e o lago gelado e os nevoeiros cerrados do Inverno da Nova Zelândia revelaram-se uma alegoria adequada para o terrível estado da Sociedade após a morte de Picasso. O passado do Director no MI6 tinha-o preparado para a ocasional operação falhada, mas nada nos serviços secretos se poderia comparar ao cessar de actividades global que ocorreu nas horas que se seguiram ao desmascarar de Picasso. De um dia para o outro, todas as operações terminaram. Os planos para novos empreendimentos foram discretamente arrumados. As comunicações conheceram um fim abrupto. O dinheiro deixou de circular. O Director encerrou-se na sua mansão em St. John's Wood, apenas com a companhia de Daphne, e fez aquilo que qualquer bom agente operacional faz a seguir a uma autêntica asneira da grossa — avaliou os estragos. E quando achou que estava na altura, pôs-se a coser discretamente os fragmentos dispersos da sua confraria secreta.
Supostamente, a conferência em South Island deveria ser uma espécie de festa de debutante. Mas a reabilitação da Sociedade revelava-se, na melhor das hipóteses, titubeante. Dois dos membros do Conselho Executivo não se deram sequer ao trabalho de comparecer. Um tentou enviar um substituto, uma sugestão que o Director considerou risível. Pouco depois de dar início à reunião, o Director, num raro acesso de cólera motivado pelo orgulho ferido, apresentou uma moção com vista a expulsá-los a ambos. A moção foi aprovada por uma votação de viva voz, registada por Daphne no seu bloco de estenografia com grande prontidão.
— O segundo ponto na ordem de trabalhos é o falecimento de Picasso — anunciou o Director, aclarando depois ligeiramente a garganta. — Estou certo de que a morte dela terá sido um choque terrível para todos vocês, mas pelo menos ela já não se encontra em posição de prejudicar a Sociedade.
— Felicito-o por lidar com o problema de uma forma tão profissional — disse Rodin.
— Mas não estás a perceber — respondeu o Director. — A morte dela foi mesmo um choque, já que a Sociedade não teve absolutamente nada a ver com isso.
— Mas e em relação ao Outubro? Ele ainda está vivo, não está?
— Parto do princípio de que seja esse o caso, mas não tenho a certeza. Talvez a CIA o tenha escondido. Talvez o Michael Osbourne o tenha matado e encoberto isso.
A única coisa que posso afirmar com certeza é que todas as nossas tentativas para o localizar fracassaram.
— Talvez eu possa ajudar — interrompeu Monet, o chefe de operações da Mossad israelita. — Os nossos homens já se mostraram capazes de encontrar fugitivos no passado.
Encontrar um homem como o Outubro não deve revelar-se demasiado difícil.
Mas o Director abanou a cabeça lentamente.
— Não — afirmou ele. — Mesmo que o Outubro continue vivo, duvido que alguma vez venha a ser um problema para nós no futuro. Na minha opinião, é melhor deixar cair o assunto. — Baixou os olhos e remexeu nos papéis. — O que me leva ao terceiro ponto na nossa ordem de trabalhos, a situação na antiga Jugoslávia. A Frente de Libertação do Kosovo gostaria de contar com a nossa ajuda. Meus senhores, estamos de volta ao activo.
EPÍLOGO
LISBOA
BRÉLÉS, FRANÇA
Jean-Paul Delaroche tinha arrendado um pequeno apartamento num prédio cor de âmbar a ruir com vista para o porto de Lisboa. Estivera em Lisboa apenas uma vez, e só de passagem, e a mudança de ares trouxe nova vida ao seu trabalho. Com efeito, atravessava o seu período mais produtivo em muitos anos. Trabalhava aplicadamente de manhã até meio da tarde, produzindo óptimas obras a partir das igrejas, das praças e dos barcos ao longo da zona ribeirinha. O dono de uma eminente galeria lisboeta viu-o a pintar uma tarde e propôs-lhe entusiasticamente expor os seus quadros. Delaroche aceitou o cartão dele com os seus dedos esborratados de tinta e disse que iria pensar nisso.
A noite, ia caçar. Ia para a varanda e punha-se à procura de sinais de vigilância. Caminhava durante horas, tentando fazer com que eles se mostrassem. Ia andar de bicicleta para o campo e desafiava-os a seguirem-no. Colocou escutas no seu próprio apartamento para ver se alguém lá entrava quando estava fora. No último dia de Novembro, aceitou o facto de que ninguém andava a vigiá-lo.
Ao final dessa tarde, saiu do apartamento e dirigiu-se para um bom café para jantar.
Pela primeira vez em trinta anos, não levou a pistola consigo.
Em Dezembro, alugou um grande Fiat e conduziu até França. Tinha deixado Brélés, a velha aldeia piscatória na costa da Bretanha, há mais de um ano e não pusera lá os pés desde então. Chegou ao meio-dia, um dia depois de partir de Lisboa, tendo passado a noite em Biarritz.
Estacionou na aldeia e foi passear a pé. Ninguém o reconheceu. Na boulangerie, Mademoiselle Trevaunce serviu-lhe o pão sem praticamente um bonjour. Mademoiselle Plauché, da charcuterie, costumava meter-se descaradamente com ele; naquele dia, foi sem alegria que lhe cortou o presunto e a fatia de queijo de cabra, despachando-o logo de seguida.
Delaroche entrou no café onde os velhos passavam as tardes. Perguntou se algum deles tinha visto uma irlandesa pela aldeia: cabelos pretos, ancas jeitosas, bonita.
— Está uma irlandesa a viver no velho chalé, no pontão — respondeu Didier, o dono de cara vermelha do armazém da aldeia. — Onde o louco vivia dantes: le Solitaire.
Quando Delaroche fez de conta que não percebia o que ele queria dizer com aquele último comentário, Didier limitou-se a rir e explicou a Delaroche o caminho até ao chalé. A seguir, perguntou-lhe se não queria acompanhá-los num pouco de vinho e azeitonas. Delaroche abanou simplesmente a cabeça e respondeu:
— Non, merci.
Delaroche seguiu de carro pela estrada da costa e estacionou a cerca de duzentos metros do chalé, numa área de descanso com vista para a água. Viu fumo a sair da chaminé, cortado logo de seguida pelo vento. Limitou-se a ficar ali sentado, a petiscar o pão e o queijo, a fumar, a observar o chalé e as ondas a baterem nas rochas.
A dada altura, teve um vislumbre do cabelo preto dela, a passar diante de uma janela aberta.
Pensou na última coisa que Michael Osbourne lhe tinha dito na véspera de partirem de Shelter Island. Ela merece pior, dissera ele nessa noite. Ela merece morrer.
Osbourne era um homem demasiado decente — demasiado virtuoso — para condenar Mónica à morte, mas Delaroche julgava saber aquilo que lhe ia no coração naquele momento. Era um pequeno preço a pagar para retribuir a Osbourne o facto de este lhe ter concedido a liberdade.
Na verdade, aquilo até lhe deu um certo prazer; ela era uma das pessoas mais desagradáveis que ele já tinha conhecido. E havia mais uma coisa — ela tinha visto a cara dele.
Rebecca surgiu no terraço, de braços cruzados por baixo do peito, a contemplar o Sol a pôr-se. Delaroche pensou: "Será que ela me quer ver? Ou será que quer que eu fique longe para poder esquecer todo este assunto?" O mais fácil para ele seria dar meia-volta e esquecê-la. Voltar para Lisboa e para o seu trabalho. Aceitar a proposta do dono da galeria e expor os quadros.
Ligou o motor. Bastou esse som distante para que ela se virasse de repente e enfiasse a mão debaixo da camisola. Era por andar escondida, pensou Delaroche. Anda a saltar ao mínimo barulho, sempre à procura de uma pistola. Ele conhecia muito bem essa sensação.
Rebecca olhou fixamente para o carro durante bastante tempo e, passado um bocado, os seus lábios ergueram-se em qualquer coisa parecida com um sorriso. A seguir, voltou as costas, contemplando o mar novamente e ficando à espera que ele viesse ter com ela. Delaroche meteu a primeira e começou a avançar pela estrada, em direcção ao chalé.
NOTAS
[1]Siglas de Ulster Volunteer Force (Força de Voluntários do Ulster), Ulster Defence Association (Associação de Defesa do Ulster) e Ulster Freedom Fighters (Combatentes para a Liberdade do Ulster). (N. do T.)
[2]Força policial da República da Irlanda. (N. do T.)
[3]Sigla de Royal Ulster Constabulary (Polícia Real do Ulster). (N. do T.)
[4]Independem Television News, fornecedor internacional de notícias e conteúdos com sede no Reino Unido. (N. do T.)
[5]Termo pejorativo para os católicos irlandeses, utilizado sobretudo na Irlanda do Norte e na Escócia. (N. do T.)
[6]Termo pejorativo para os cidadãos protestantes. (N. do T.)
[7]Theobald Wolfe Tone (1763-1798), uma das figuras principais do movimento pela independência irlandesa United Irishmen, considerado o pai do republicanismo irlandês;
Eamon de Valera (1882-1975), uma das figuras políticas dominantes do século XX na Irlanda e um importante líder da luta pela independência irlandesa em relação ao Reino Unido;
Michael John ("Mick") Collins (1890-1922), líder revolucionário irlandês que foi ministro das Finanças da República Irlandesa, director dos serviços secretos do IRA e membro da delegação irlandesa que negociou o Tratado Anglo-Irlandês de 1921, tendo sido também presidente do Governo Provisório da Irlanda do Sul e comandante-chefe do Exército Nacional. (N. do T.)
[8]No original, National Organization for Women, organização feminista norte-americana (também conhecida pela sigla NOW) fundada em 1966. (N. do T.)
[9]Ou bocha: jogo que consiste em lançar bolas e situá-las o mais perto possível de uma bola mais pequena, o bolim, lançada anteriormente. (N. do T.)
[10]Acrónimo para Grand Old Party, outra designação para o Partido Republicano dos Estados Unidos. (N. do T.)
[11]Sigla de Special Air Service (Serviços Aéreos Especiais), força especial das forças armadas do Reino Unido. (N. do T.)
[12]Marcha associada em primeiro lugar ao presidente dos Estados Unidos da América. (N. do T.)
[13]No original, "A Mighty Fortress Is Our God", o mais conhecido dos hinos compostos por Martinho Lutero. (N. do T.)
[14]Bebida espirituosa grega tradicional, com sabor a anis e um aspecto leitoso quando se lhe adiciona água. (N. do T.)
[15]Abreviatura para non-official cover, termo utilizado em espionagem para os agentes ou operacionais que adoptam disfarces em organizações sem ligações ao governo para o qual trabalham. (N. do T.)
[16]Sigla de Office of Strategic Services (Agência de Serviços Estratégicos), os serviços secretos dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[17]No original, Doubk Cross. (N. do T.)
[18]Serviços secretos do alto-comando militar alemão, activos de 1925 a 1944. (N. do T.)
[19]No original, Loyalist Volunteer Force. (N. do T.)
[20]Em francês, no original. (N. do T.)
[21]Sigla para Ulster Unionist Party (Partido Unionista do Ulster). (N. do T.)
[22]Expressão que significa "autonomia política" ou "autogoverno autónomo". (N. do T.)
[23]Rua no bairro de Westminster, no centro de Londres. (N. do T.)
[24]Sigla para Counterterrorist Center (Centro de Contraterrorismo). (N. do T.)
[25]Pancada leve dada numa bola de golfe para a introduzir no buraco. (N. do T.)
[26]Sigla para Office of Technical Services (Divisão dos Serviços Técnicos). (N. do T.)
[27]Abreviatura de Chief Of Station. (N. do T.)
[28]Em português, "brochista". (N. do T.)
[29]Canção patriótica do musical da Broadway Uttle Johnny Jones, escrita por George M. Cohan. (N. do T.)
[30]No original, "active service unit" (ou ASU), células do IRA compostas por cinco a oito membros com a missão de levar a cabo ataques armados. (N. do T.)
[31]Termo pejorativo para um cidadão de origem irlandesa. (N. do T.)
[32]Personagem do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, caracterizada pelo seu sorriso pronunciado, que levou à expressão "sorrir como um gato de Cheshire", para descrever alguém que sorri maliciosamente. (N. do T.)
[33]Em alemão, Rote Armee Fraktion ou RAF, organização guerrilheira e terrorista alemã de extrema-esquerda, também conhecida como Baader-Meinhof, fundada em 1970, na antiga Alemanha Ocidental, e dissolvida em 1998. (N. do T.)
[34]Divisão administrativa utilizada em Paris. (N. do T.)
[35]Sigla para Special Operations Executive, uma organização secreta militar britânica em actividade durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[36]canção patriótica satírica da autoria de W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, parte integrante da ópera H.M.S. Pinalore, estreada em 1878. (N. do T.)
[37]Abreviatura para Diplomatic Security Service (Serviços de Segurança do Corpo Diplomático). (N. do T.)
[38]Acção levada a cabo com o objectivo de enganar o inimigo, de maneira a obter informações ou qualquer tipo de vantagem militar. (N. do T.)
[39]Os principais responsáveis pelo atentado à bomba em Oklahoma City, a 19 de Abril de 1995. (N. do T.)
[40]Divisão de espionagem internacional do KGB. (N. do T.)
[41]James Jesus Angleton (1917-1987), antigo chefe da Divisão de Contra-Espionagem da CIA. (N. do T.)
[42]Programa semanal televisivo de informação produzido pela estação norte-americana NBC, no ar desde 1947. (N. do T.)
[43]Programa televisivo de informação nocturna produzido pela estação norte-americana ABC, iniciado em 1979. (N. do T.)
[44]Talk-show diário apresentado por Larry King na estação televisiva norte-americana CNN, no ar desde 1985. (N. do T.)
Capítulo 32
PARIS
Rebecca Wells estava a viver em Montparnasse, num prédio de apartamentos desinteressante a poucos quarteirões do terminal ferroviário. Desde que fugira de Norfolk, tinha passado a maior parte do tempo no apartamento horroroso, a olhar para programas de televisão franceses que não conseguia compreender. Às vezes, ouvia notícias do seu país na rádio. A brigada tinha sido esmagada e a culpa era dela.
Precisava de sair. Levantou-se do sofá e foi até à janela. Cinzento, como de costume: frio, desolador. Até o Ulster era melhor do que Paris em Março. Foi à casa de banho e olhou para o espelho. Uma desconhecida retribuiu-lhe o olhar. O seu esplêndido cabelo preto tinha sido destruído pelo peróxido que utilizara em Norwich para o oxigenar. Tinha a pele amarela da falta de ar e dos cigarros em demasia. A pele debaixo dos olhos parecia ter nódoas negras.
Vestiu um casaco de cabedal e parou à entrada do quarto, ouvindo o som metálico de halteres. Bateu à porta e o barulho parou. Ro-derick Campbell abriu a porta e ficou ali à sua frente, sem camisa e com o corpo esguio a brilhar do suor. Campbell era um escocês que tinha servido no exército britânico e que, a seguir, oferecera os seus serviços como mercenário e traficante de armas em África e na América do Sul. Tinha cabelo preto cortado à escovinha, uma pêra e tatuagens no peito e nos braços. Estava uma prostituta nua deitada na cama, a brincar com uma das armas dele.
— Vou sair — disse ela. — Preciso de apanhar ar.
— Tem cuidado — respondeu ele, no sotaque suave das suas Terras Altas de origem. — Queres companhia?
— Não, obrigada. Estendeu-lhe uma arma.
— Leva isto.
O elevador estava outra vez avariado, pelo que desceu para a rua pelas escadas. Meu Deus, como estava feliz por sair daquele sítio! Estava zangada com Kyle Blake por este a ter enviado para junto de um homem como Campbell. Mas as coisas podiam ser piores, pensou. Podia estar na prisão ou morta como os outros. O frio sabia-lhe bem e andou durante muito tempo. De vez em quando, parava à frente da montra de uma loja e olhava de soslaio para trás. Tinha a certeza de que não estava a ser seguida.
Pela primeira vez em muitos dias, sentiu realmente fome. Entrou num pequeno café e, servindo-se do seu francês catastrófico, pediu uma omeleta com queijo e um café creme. Acendeu um cigarro e olhou pela janela. Interrogou-se se iria ser sempre assim — viver em cidades estranhas, rodeada de pessoas que não conhecia.
Queria terminar o que tinham começado; queria o embaixador Douglas Cannon morto. Sabia que a Brigada para a Libertação do Uls-ter já não se encontrava em condições para dar conta do trabalho; na realidade, já não havia uma Brigada para a Libertação do Ulster. Para que o embaixador fosse morto, teria de haver alguém que não eles a fazê-lo. Tinha recorrido a Roderick Campbell para que a ajudasse. Ele conhecia o tipo de homens de que ela precisava: homens que ganhavam a vida a matar, homens que matavam apenas por uma razão: dinheiro.
Quando o empregado trouxe a comida, Rebecca devorou-a rapidamente. Não conseguia lembrar-se da última vez em que tinha comido verdadeira comida. Acabou a omeleta e engoliu um pedaço de baguete com a ajuda do café. O empregado voltou a aparecer e pareceu assombrado por o prato dela estar vazio.
— Tinha muita fome — disse ela, constrangida.
Pagou a conta e foi-se embora. Apertando o casaco contra a garganta com força, percorreu as ruas sossegadas de Montparnasse. Passado um momento, ouviu um carro atrás de si. Parou num telefone público e fingiu que estava a ligar para um número enquanto olhava para o carro: um grande Citroen preto, com dois homens à frente e um atrás. Talvez a polícia francesa. Talvez os serviços secretos franceses, pensou. Talvez amigos de Roderick. Talvez nada.
Começou a andar mais depressa. De repente, estava a transpirar apesar do frio. O condutor do Citroen carregou no acelerador e o barulho do motor tornou-se mais forte.
"Meu Deus", pensou ela, "vão atropelar-me!" Virou a cabeça no instante em que o carro passou por ela a toda a velocidade para depois travar a fundo e parar poucos metros à sua frente.
A porta traseira do lado do passageiro abriu-se. O homem que se encontrava no banco de trás inclinou-se para fora e disse:
— Boa tarde, menina Wells.
Ficou estupefacta. Parou de andar e olhou para ele. Tinha cabelo louro oleoso, todo puxado para trás a partir da testa, e pele clara e queimada do sol.
— Entre no carro, por favor. Receio que não seja seguro estarmos a falar na rua.
Tinha o sotaque de um inglês de boas famílias.
— Quem é o senhor? — perguntou ela.
— Nós não pertencemos às autoridades, se é isso que está a pensar — respondeu ele. — Na verdade, somos bem o contrário.
— E o que é que querem?
— Na verdade, isto tem a ver com o que a senhora quer. Ela hesitou.
— Por favor, não temos muito tempo — disse o homem louro, estendendo uma mão clara. — E não se preocupe, menina Wells. Se a quiséssemos matar, já estaria morta.
De Montparnasse, atravessaram a cidade de Paris até a um prédio de apartamentos no quinto arrondissement, na Rue Tournefort, com vista para a Place de la Contrescarpe.
O homem louro desapareceu no Citroen. Um homem a ficar careca, com uma cara rosada, ficou-lhe com a arma de Roderick e conduziu-a para um apartamento que tinha o ar de um pied-à-terre raramente utilizado. A mobília era masculina e confortável: sofás pretos informais e cadeiras agrupadas à volta de uma mesa de café de vidro; estantes para livros em madeira de teca amarelada, com relatos históricos, biografias e thrillers de autores americanos e ingleses. O que sobrava das paredes estava desocupado, com contornos esbatidos nos sítios onde antes tinham estado pendurados quadros emoldurados. O homem fechou a porta e introduziu um código de seis dígitos num teclado, presumivelmente activando o sistema de segurança. Sem dizer uma palavra, estendeu a mão e levou-a para dentro do quarto.
O quarto estava escuro, com a excepção de um pedaço junto à janela, que se encontrava iluminado por uma luz chuvosa que entrava pela persiana parcialmente aberta.
Um instante depois de a porta se fechar, um homem falou algures na escuridão. A voz era seca e precisa, a voz de um homem que não gostava de se repetir.
— Chegou-nos aos ouvidos que anda à procura de alguém que seja capaz de assassinar o embaixador americano em Londres — disse o homem. — Acho que a podemos ajudar.
— E quem é que são vocês?
— Não tem nada a ver com isso. Posso assegurar-lhe que somos perfeitamente capazes de desempenhar uma tarefa como a que tem em mente. E com muito menos trapalhada do que aquele episódio em Hartley Hall.
Rebecca tremeu de raiva, que o homem nas sombras pareceu detectar.
— Lamento informá-la, mas foram enganados em Norfolk, menina Wells — disse ele. — Caíram direitinhos numa armadilha engendrada pela CIA e o MI5. O homem que conduziu a operação foi o genro do embaixador, que por acaso trabalha para a CIA. O nome dele é Michael Osbourne. Quer que eu continue?
Ela anuiu com a cabeça.
— Se aceitar a nossa oferta de ajuda, prescindiremos dos nossos honorários habituais. E deixe-me assegurar-lhe que são normalmente bastante exorbitantes para um trabalho deste género... suspeito que bem acima das possibilidades de uma organização como a Brigada para a Libertação do Ulster.
— Estão dispostos a fazê-lo de graça? — perguntou Rebecca, incrédula.
— Exactamente.
— E o que é que querem de mim?
— Na altura indicada, irá reivindicar a responsabilidade pelo acto.
— Mais nada?
— Mais nada.
— E quando tiver terminado tudo?
— Não terá mais nenhuma obrigação, excepto a de nunca falar, sob quaisquer circunstâncias, sobre a nossa parceria consigo. E, se de facto falar das nossas combinações, reservamo-nos o direito de aplicar medidas punitivas.
Parou por um momento para permitir que o seu aviso fizesse efeito.
— É capaz de vir a encontrar dificuldades para se deslocar de um lado para o outro quando tudo isto tiver terminado — continuou. — Se quiser, podemos disponibilizar-lhe serviços que a ajudarão a manter-se a monte. Podemos providenciar-lhe documentos de viagem falsos. Podemos ajudá-la a alterar a sua aparência. Temos contactos com determinados governos que estão dispostos a proteger fugitivos a troco de dinheiro ou favores. Mais uma vez, estaríamos dispostos a disponibilizar-lhe estes serviços sem qualquer custo.
— Porquê? — perguntou ela. — Porque é que estão dispostos a fazer isso a troco de nada?
— Nós não somos uma organização filantrópica, menina Wells. Estamos dispostos a trabalhar consigo porque temos interesses comuns.
Um isqueiro acendeu-se, deixando ver uma parte da cara dele por um instante, antes de o quarto mergulhar novamente na escuridão: cabelo cor de prata, pele clara, uma boca dura, olhos frios.
— Receio que já não seja seguro para si permanecer em Paris —disse. — As autoridades francesas têm conhecimento da sua existência aqui.
Ela sentiu-se como se lhe tivessem despejado água gelada em cima da nuca. A ideia de ser presa, de ter de voltar para a Grã-Bretanha acorrentada, fê-la ficar fisicamente doente.
— Precisa de sair de França imediatamente — disse ele. — Proponho-lhe o Barém. O chefe das forças de segurança é um velho amigo meu. Estará segura e há piores sítios para se estar do que o golfo Pérsico em Março. O tempo é esplêndido nesta altura do ano.
— Não estou interessada em passar o resto dos dias deitada junto a uma piscina no Barém.
— O que é que está a querer dizer, menina Wells?
— Que quero participar na operação — respondeu ela. — Aceito a vossa oferta, mas quero estar lá para ver o homem a morrer.
— Tem treino?
— Sim — respondeu.
— E já matou alguém? Lembrou-se da noite dois meses antes — o celeiro no condado de Armagh —, quando tinha matado Charlie Bates com um tiro.
— Sim — respondeu calmamente —, já matei.
— O homem que tenho em mente para a missão prefere trabalhar sozinho — disse ele —, mas suspeito que verá que é uma opção sensata aceitar um parceiro para este contrato.
— Quando é que parto?
— Hoje à noite.
— Gostava de voltar ao apartamento para ir buscar umas quantas coisas.
— Lamento, mas isso não é possível.
— Então e o Roderick? O que vai ele pensar se eu desaparecer sem nenhuma explicação?
— Deixe que nos preocupemos nós com o Roderick Campbell.
O homem louro regressou no Citroen a Montparnasse e estacionou à porta do prédio de apartamentos de Roderick Campbell. Saiu do carro e atravessou a rua. Tinha roubado as chaves da mulher. Abriu a porta principal do rés-do-chão e subiu as escadas até ao apartamento. Tirando a Herstal automática de alta potência do cós das calças de ganga, abriu a porta e entrou sorrateiramente.
Capítulo 33
AMESTERDÃO
A previsão meteorológica para a costa holandesa era agradável para Março, pelo que Delaroche subiu para a sua bicicleta italiana de estrada ao início dessa manhã e pedalou para sul. Usava longos calções pretos de ciclismo e uma camisola de gola alta branca e de algodão por baixo da camisola de malha de um amarelo-vivo, suficientemente justa para evitar que enfolasse com o vento, mas suficientemente folgada para esconder a Beretta automática que tinha debaixo da axila esquerda. Seguiu para sul, em direcção a Leiden, atravessando Bloembollenstreek, a maior região produtora de flores da Holanda, com as suas pernas poderosas a pedalarem sem esforço pelos campos a brilharem já coloridos.
Durante algum tempo, os olhos dele foram absorvendo o campo holandês — os diques e os canais, os moinhos de vento e os campos de flores —, mas, passado um bocado, o rosto de Maurice Leroux apareceu-lhe nos pensamentos. Tinha-lhe surgido num sonho durante a noite anterior, parado à frente dele, branco como um monte de neve, com dois buracos no peito e trazendo ainda na cabeça a ridícula boina.
Eu sou de confiança. Já me ocupei de muitos homens como você.
Delaroche entrou em Leiden e almoçou num café ao ar livre na margem do Reno. Naquele ponto, apenas a poucos quilómetros da sua desembocadura no mar do Norte, o rio era estreito e corria lentamente, bem diferente da montanha de água espumosa perto da nascente, no alto dos Alpes, ou do largo gigante industrial da planície alemã. Delaroche pediu um café e uma sanduíche de queijo e fiambre.
A incapacidade de purgar o subconsciente da imagem de Leroux enervou-o. Normalmente, passava apenas por um curto período de desconforto depois de matar alguém. Mas já tinha passado uma semana desde que matara Leroux e continuava a ver a cara dele a flutuar-lhe na mente.
Lembrou-se do homem chamado Vladimir. Delaroche tinha sido separado da mãe à nascença e dado ao KGB para ser aí educado. Vladimir fora todo o seu mundo. Tinha-o treinado em línguas e nas artes do ofício. Tinha tentado ensinar-lhe alguma coisa sobre a vida antes de lhe ensinar como matar. Vladimir avisara-o que iria acabar por acontecer. Um dia, vais tirar uma vida e esse homem irá seguir-te, dissera-lhe Vladimir. Vai tomar as refeições contigo, partilhar a tua cama. Quando isso acontecer, está na altura de abandonares este ofício, porque um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional.
Delaroche pagou a conta e saiu do café. O tempo ia piorando à medida que avançava em direcção ao mar do Norte. O céu foi ficando mais carregado e o ar tornou-se mais frio. Lutou contra um forte vento de frente durante todo o caminho até Haarlem.
Talvez Vladimir tivesse razão. Talvez estivesse na altura de abandonar o jogo antes que o jogo desse conta dele. Podia voltar para o Mediterrâneo e passar os dias a andar nas suas bicicletas e a pintar os seus quadros e a beber o seu vinho no terraço com vista para o mar, e que se lixasse o Vladimir e que se lixasse o pai, e que se lixasse o Director e todas as outras pessoas que lhe tinham imposto aquela vida. Talvez pudesse encontrar uma mulher — uma mulher como Astrid Vogel, uma mulher que tivesse suficientes segredos próprios para que ele lhe pudesse confiar os seus.
Já tinha querido abandonar tudo antes, mas, com Astrid morta, isso já não fazia sentido e o Director tinha-lhe feito uma generosa proposta que era demasiado boa para recusar. Pagava-lhe uma quantidade tremenda de dinheiro e providenciava-lhe protecção contra os seus inimigos. Se deixasse a Sociedade, Delaroche estaria por sua própria conta. Teria de tratar da sua própria segurança ou encontrar um novo Protector.
Entrou em Haarlem e atravessou o rio Spaarne. Amesterdão ficava a vinte e cinco quilómetros de distância, uma bela viagem pelas margens do Noordzeekanaal. Delaroche tinha o vento nas costas e a estrada era suave e plana, pelo que demorou pouco mais de meia hora a chegar à cidade.
Levou o seu tempo até atingir o Herengracht. Entrou no apartamento e verificou os sinais que deixara para se certificar de que ninguém lá tinha estado durante a sua ausência. Havia outro bilhete escrevinhado à pressa pela rapariga alemã. Quero ver-te outra vez meu cabrão! Eva.
Ligou o computador e conectou-se à Internet. Tinha uma mensagem de e-mail nova. Abriu-a e digitou o seu nome de código. A mensagem era do Director; queria encontrar-se com ele no dia seguinte em Amesterdão, no Vondelpark.
Delaroche enviou uma resposta a dizer que lá estaria.
Na manhã seguinte, deambulou pelas barracas do Albert Cuyp-markt no anel de canais oriental. Meticulosamente, foi controlando se estava a ser seguido à medida que passava com descontracção por cestos pejados de fruta, peixe do mar do Norte, queijos holandeses e flores acabadas de cortar. Convencido de que não estava a ser seguido, foi do mercado até ao Vondelpark, o extenso parque próximo do quarteirão dos museus de Amesterdão. Avistou o Director, sentado num banco do parque que dava para um lago de patos, com a alta rapariga jamaicana ao seu lado.
O Director ainda não tinha visto Delaroche desde a cirurgia plástica em Atenas. Delaroche não gostava de jogos ou de outros divertimentos — o isolamento e o secretismo da sua vida tinham-lhe roubado qualquer oportunidade para desenvolver um verdadeiro sentido de humor —, mas resolveu pregar uma partida para testar a eficácia do trabalho que Maurice Leroux tinha feito na sua cara.
Pôs um cigarro na boca e colocou os óculos de sol. Aproximou-se do Director e, falando holandês, pediu-lhe lume. O Director passou-lhe um pesado isqueiro de prata.
Delaroche acendeu o cigarro e devolveu o isqueiro. "Dank u", disse. O Director acenou com a cabeça friamente ao voltar a enfiar o isqueiro no bolso do casaco.
Delaroche afastou-se pelo caminho. Regressou alguns momentos depois e sentou-se ao lado do Director, a comer uma pêra que tinha comprado no Albert Cuypmarkt, sem dizer nada. O Director e a rapariga afastaram-se e sentaram-se noutro banco. Delaroche observou-os com curiosidade durante um momento; a seguir, levantou-se também e juntou-se a eles no banco do lado.
O Director fez uma carranca.
— Desculpe, importava-se de...
— Penso que queria falar comigo — interrompeu Delaroche, tirando os óculos de sol.
— Deus do Céu — murmurou o Director. — És mesmo tu?
— Receio bem que sim.
— Estás bastante horrendo. Não admira que tenhas matado aquele pobre desgraçado.
— Tenho um contrato para ti.
Os olhos do Director mexiam-se de um lado para o outro rapidamente enquanto os dois homens seguiam um atrás do outro pelo caminho que atravessava o Vondelpark. Tinha começado como agente operacional — saltara de pára-quedas sobre França com o SOE[35] durante a Segunda Guerra Mundial e orientara agentes em Berlim contra os russos — e os seus instintos de sobrevivência continuavam aguçados.
— Tens andado a acompanhar a situação na Irlanda do Norte? — perguntou o Director.
— Leio os jornais.
— Então, sabes que um grupo terrorista protestante intitulado Brigada para a Libertação do Ulster tentou e não conseguiu assassinar o embaixador americano enviado para o Palácio de St. James, Douglas Cannon.
Delaroche assentiu com a cabeça.
— Li qualquer coisa acerca disso, sim.
— Mas o que tu não sabes é que a equipa de assassinos caiu direitinha numa armadilha engendrada pelo MI5 e a CIA. E o agente da CIA responsável pela parte americana da coisa era um velho amigo teu.
Delaroche olhou furiosamente para o Director.
— O Osbourne?
O Director assentiu com a cabeça.
— Escusado será dizer que a Brigada para a Libertação do Ulster gostaria de ver tanto o embaixador como o genro mortos, e nós concordámos em fazer-lhes esse trabalho.
— Com que objectivo?
— A brigada gostaria de destruir o processo de paz e, sinceramente, nós também. É mau para o negócio. Daqui a menos de duas semanas, no Dia de São Patrício, o presidente Beckwith vai presidir a um encontro entre dirigentes norte-irlandeses na Casa Branca. O Douglas Cannon vai lá estar.
— Tem a certeza disso?
— Tenho uma fonte seguríssima. Os americanos são bons a protegerem os embaixadores deles no estrangeiro, mas em casa a história é bem diferente. O Cannon não vai ter grande guarda, se a tiver sequer. Um profissional com o teu talento não deverá ter dificuldades em cumprir os termos do contrato.
— E tenho alguma escolha?
— Deixa-me recordar-te que te pago uma quantidade tremenda de dinheiro e te providencio protecção — respondeu o Director com frieza. — Em troca, tu matas para mim.
É um acordo simples.
Sempre se tinha comportado como um velho e confuso fidalgo na presença de Delaroche, mas era evidente que se tratava de um homem que utilizaria quaisquer meios ao seu dispor para atingir os seus fins.
— Na verdade, até tinha pensado que ficarias encantado com a oportunidade de enfrentar o teu velho inimigo — prosseguiu ele.
— E porque é que partiu desse princípio?
— Por causa da Astrid Vogel. Fico espantado que não tenhas já matado o Osbourne por tua conta.
— Não o matei porque não fui contratado para o matar — respondeu Delaroche. — Sou um assassino profissional, não um homicida.
— Algumas pessoas seriam capazes de ver nisso uma distinção inquestionável, mas compreendo o teu ponto de vista e respeito-te por isso. No entanto, o Osbourne continua a ser uma ameaça séria à nossa segurança. Eu dormiria melhor se ele já não estivesse entre nós.
Delaroche deteve-se e virou-se para ficar cara a cara com o Director.
— Duas semanas não são muito tempo... especialmente para um trabalho nos Estados Unidos.
— É com certeza tempo suficiente para ti. Delaroche assentiu.
— Vou fazê-lo.
— Óptimo — disse o Director. — E agora que concordaste em aceitar o contrato, há um senão. Gostava que trabalhasses com um parceiro.
— Eu não trabalho com pessoas que não conheço.
— Compreendo, mas estou a pedir-te que abras uma excepção neste caso.
— E quem é ele?
— Ela, na verdade. Chama-se Rebecca Wells. É a mulher que sobreviveu à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de assassinar o Douglas Cannon em Inglaterra.
— É uma amadora — afirmou Delaroche.
— É uma agente experimentada e já teve o seu baptismo de sangue. Por razões políticas, achamos ser importante que ela faça parte da operação. Tenho a certeza de que vais apreciar a oportunidade de trabalhar com ela.
— E se eu recusar?
— Então, lamento dizê-lo, mas perdes o direito ao teu salário e à protecção que eu te disponibilizo.
— Onde é que ela está?
O Director apontou com o dedo mais para a frente no caminho de gravilha.
— Segue naquela direcção mais ou menos uns cem metros. Hás-de encontrá-la sentada num banco: cabelos louros, a ler o Die Welt. Vou começar a preparar os dossiês e a tratar do teu transporte para a América. Fica aqui em Amesterdão até eu te contactar.
Dito isto, o Director deu meia-volta e desapareceu no nevoeiro que se espalhava pelo Vondelpark.
Delaroche comprou um pequeno mapa do centro de Amesterdão num posto de turismo no parque. Sentou-se no banco ao lado daquele em que Rebecca Wells se encontrava, fingindo obedientemente que lia a edição da véspera do Die Welt. Estava menos interessado na mulher do que no que se estava a passar à volta dela. Durante vinte minutos, sondou caras, à procura de sinais físicos de vigilância. Parecia estar sozinha, mas ele queria ter a certeza. Marcou um ponto no mapa com um círculo e foi ter com ela.
— Vai ter comigo a este sítio daqui a duas horas em ponto — disse, passando-lhe o mapa dobrado. — Não pares de andar e não chegues um minuto antes.
O ponto que Delaroche tinha assinalado no mapa era o Monumento Nacional na Dam Platz. Rebecca Wells deixou-se ficar no Vondelpark por mais meia hora, vagueando pelos jardins e passando pelos lagos sinuosos. A determinada altura, deu meia-volta e voltou para trás agilmente, obrigando Delaroche a enfiar-se numa casa de banho pública para se esconder.
Do parque foi até ao Museu Van Gogh. Comprou um livre-trânsito na bilheteira, na porta principal, e entrou. Delaroche seguiu-a com facilidade pelo museu apinhado.
Van Gogh fora uma das suas primeiras influências; distraiu-se com uma das suas obras preferidas, Campo de Trigo com Corvos, e perdeu-a de vista. Reencontrou-a passado um momento, a olhar demoradamente para o Quarto em Aries. Havia qualquer coisa no quadro colorido, uma celebração da paz doméstica por Van Gogh, que parecia intrigá-la.
Saiu do museu, deambulou pelo Albert Cuypmarkt e passeou pelo Singel até chegar ao rio Amstel. Foi aí que saltou de repente para dentro de um eléctrico que ia a passar. Delaroche fez sinal a um táxi para parar e seguiu-a.
Ela foi de eléctrico até à Leidseplein e continuou a pé até um café ao ar livre, próximo do American Hotel, onde bebeu café e comeu um bolo. Delaroche observou-a de um café do outro lado do canal. Ela pagou a conta e levantou-se, mas em vez de seguir o seu caminho pelo passeio refugiou-se dentro do café.
Delaroche atravessou o canal rapidamente. Em holandês, perguntou ao empregado se tinha visto a sua namorada — uma irlandesa, loura oxigenada. O empregado apontou para a casa de banho com a cabeça. Delaroche bateu à porta. Como ninguém respondeu, abriu-a; a mulher tinha desaparecido. Espreitou pela cozinha e viu que havia uma entrada de serviço que dava para uma viela estreita. Atravessou a cozinha, ignorando os protestos dos chefes que lá estavam a trabalhar, e entrou na viela. Não havia sinais dela.
Apanhou o eléctrico para a Dam Platz e encontrou-a sentada junto a um dos leões à frente do Monumento Nacional. Olhou para o relógio e sorriu.
— Onde é que estiveste? — perguntou. — Estava preocupada contigo.
— Não estás a ser seguida — respondeu Delaroche, sentando-se ao lado dela —, mas mexes-te como uma amadora.
— Despistei-te... não foi?
— Sou um homem a pé. Qualquer pessoa consegue despistar um homem a pé.
— Ouve-me bem, meu sacana. Eu sou de Portadown, na Irlanda do Norte. Não me fodas. Tenho frio, estou cansada e já estou farta desta merda. O velho disse que ias dar-me um sítio onde ficar. Vamos embora.
Caminharam em silêncio pelo Prinsengracht até chegarem ao Krista. Delaroche saltou para o convés da popa e estendeu a mão para que Rebecca fizesse o mesmo. Ela deixou-se ficar onde estava, olhando-o fixamente como se ele fosse louco.
— Se pensas que vou viver na merda de uma barcaça...
— Não é uma barcaça — interrompeu ele. — Agarra a minha mão. Eu mostro-te.
Subiu a bordo da casa flutuante sem a ajuda dele e observou-o a abrir o cadeado da escotilha por cima da escada. Seguiu-o até lá abaixo, ao salão, e olhou em redor, para a mobília confortável.
— Este barco é teu? — perguntou.
— É de um amigo meu.
Ela tentou acender um dos candeeiros, mas quando carregou no interruptor não aconteceu nada. Delaroche voltou a subir para o convés, desligou o cabo de alimentação do barco e ligou-a outra vez a uma tomada pública na calçada. Passado um instante, o salão do Krista irradiou com uma luz quente.
— Tens dinheiro? — perguntou Delaroche, ao descer novamente a escada.
— O velho deu-me algum — respondeu ela. — Quem é ele, já agora?
— Chama-se o Director.
— Director do quê?
— O director da organização que está a ajudar-te a matar o embaixador.
— E como é que ela se chama? Delaroche ficou calado.
— Não sabes como é que se chama?
— Sei — respondeu.
— Sabes quem é que faz parte dela?
— Estou resolvido a descobrir.
Ela atravessou o salão e sentou-se na borda da cama de Astrid. Delaroche acendeu o pequeno aquecedor.
— E tu tens nome? — perguntou ela.
— Às vezes — respondeu ele.
— Como é que te devo chamar?
— Podes ficar aqui até partirmos para a América — disse Delaroche, ignorando a pergunta. — Vais precisar de roupa lavada e de comida. Vou trazer-te umas coisas mais para a tarde. Fumas?
Ela acenou com a cabeça.
Delaroche atirou-lhe um maço de tabaco.
— Trago-te mais.
— Obrigada.
— Sabes mais alguma língua?
— Não — respondeu ela.
Delaroche soltou um longo suspiro e abanou a cabeça.
— Não precisava de outras línguas para actuar na Irlanda do Norte.
— Isto não é a Irlanda do Norte — respondeu ele. — E consegues fazer alguma coisa em relação a esse sotaque?
— O que é que o meu sotaque tem de mal?
— Mais valia pendurares uma faixa da Ordem de Orange ao peito.
— Consigo falar como uma inglesa.
— Faz isso, por favor — disse ele, subindo depois a escada pesadamente e fechando a escotilha ao sair.
Capítulo 34
SEDE DA CIA, WASHINGTON
Uma semana após o encontro de Delaroche com o Director em Amesterdão, Michael Osbourne regressou ao Centro de Contraterrorismo pela primeira vez desde que saíra de Londres. Introduziu o seu código na porta de segurança e entrou. Cárter estava sentado à secretária, debruçado sobre uma pilha de memorandos, claramente irritado.
Levantou os olhos e fixou-os em Michael, franzindo o sobrolho.
— Ora vejam bem, Sir Michael resolveu honrar-nos com a sua presença — disse Cárter.
— É um título de cavaleiro honorário. Vossa Majestade chega perfeitamente.
Cárter sorriu.
— Bem-vindo a casa. Sentimos a tua falta. Está tudo bem?
— Não podia estar melhor.
— Tens dez minutos para te pores ao corrente da situação. Depois preciso de te ver a ti e à Cynthia no meu gabinete.
— Óptimo. Vemo-nos daqui a meia hora.
Michael percorreu a Avenida Abu Nidal até ao seu cubículo. Um dos espirituosos do centro tinha pendurado uma grande bandeira do Reino Unido sobre a parede do cubículo e ouvia-se o God Save the Queen a sair baixinho de um pequeno leitor de cassetes.
— Muito engraçado — disse Michael em voz alta, para ninguém em especial.
Blaze e Eurotrash apareceram, seguidos por Cynthia Martin e Gigabyte.
.- Nós só queríamos arranjar um bocadinho o sítio para ti, Sir Michael — disse Blaze. — Sabes, fazer com que se parecesse um bocadinho menos com Langley e um bocadinho mais com a tua pátria.
— Foi muito atencioso da vossa parte.
Blaze, Eurotrash e Gigabyte afastaram-se, cantando uma versão gutural de "He Is an Englishman"[36]. Cynthia deixou-se ficar e sentou-se na cadeira em frente à secretária de Michael.
— Parabéns, Michael. Conseguiste sacar uma bela jogada.
— Obrigado. Fico grato por isso.
— Secretamente, acho que estava com esperanças de que te estampasses por completo. Nada pessoal, compreendes.
— Pelo menos, isso é sincero.
— A honestidade sempre foi uma fonte de angústia para mim. Michael sorriu.
— O meu sogro vem a Washington uns dias antes do início da conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca. Quer passar algum tempo com os netos e ver alguns dos velhos amigos do Congresso. Vamos dar um pequeno jantar na véspera da conferência. Porque é que não te juntas a nós? Eu sei que o Douglas iria dar grande valor à tua opinião.
— Adoraria ir.
Michael escrevinhou a morada numa folha de papel e entregou-lha.
— As sete em ponto — disse.
— Lá estarei — respondeu Cynthia, dobrando o papel. — Vemo-nos no gabinete do Cárter.
Michael sentou-se, ligou o computador e leu os telegramas da noite anterior. Uma patrulha da RUC tinha descoberto um carro carregado com noventa quilos de Semtex no condado de Antrim, à saída de Belfast. Pensava-se que um grupo separatista republicano intitulado Verdadeiro IRA era o responsável. Michael fechou o telegrama e abriu outro. Um católico tinha sido morto a tiro perto de Banbridge, no condado de Down. A RUC suspeitava que a Força de Voluntários Lealistas, um grupo extremista protestante ultraviolento, era a responsável. Michael abriu o telegrama seguinte. A loja de Portadown da Ordem de Orange tinha entregado o percurso que propunha para a sua parada anual. Uma vez mais, reivindicava o direito de se manifestar na Garvaghy Road. A temporada das marchas daquele Verão prometia ser tão pródiga em confrontos como a anterior.
Desligou o computador e entrou no gabinete de Cárter. Cynthia já lá estava.
— Espero que vocês os dois não estejam a pensar ter vida própria durante as próximas quarenta e oito horas — atirou Cárter.
— A nossa vida é a CIA, Adrian — respondeu Michael.
— Acabei de falar ao telefone com o Bill Bristol.
— E nós devemos ficar impressionados por teres falado com o conselheiro do presidente para a segurança nacional?
— És capaz de te calar por um minuto, porra, e de me deixares terminar?
Cynthia Martin sorriu e olhou para o seu bloco de notas. Cárter disse:
— O Beckwith anda todo stressado com a conferência sobre a Irlanda do Norte. Parece que os números dele nas sondagens andam a baixar e quer utilizar o processo de paz para fazer aumentar os seus índices de aprovação.
— Mas que bem — soltou Michael. — E como é que nós podemos ser úteis?
— Garantindo que ele está totalmente preparado para a conferência. Ele precisa de ter um quadro completo da situação no terreno no Ulster. Precisa de documentação e de informação para saber até onde é que pode pressionar os lealistas e os nacionalistas para fazer com que as coisas avancem. Precisa de saber se nós achamos que uma viagem presidencial à Irlanda do Norte é ou não uma boa ideia, dado o clima que se vive.
— Quando?
— Tu e a Cynthia vão fazer um relatório ao Bristol na Casa Branca depois de amanhã.
— Oh, que bom, pensei que ia ser uma coisa descabida.
— Se acharem que não conseguem dar conta do recado...
— Nós conseguimos dar conta do recado.
— Bem me parecia.
Michael e Cynthia levantaram-se. Cárter disse:
— Espera um minuto, Michael.
— Querem falar de mim nas minhas costas? — perguntou Cynthia.
— Como é que adivinhaste? — respondeu Adrian.
Cynthia lançou um olhar carrancudo a Cárter e saiu do gabinete. Cárter disse:
— Não faças planos para o almoço.
A sala de jantar da CIA fica no sétimo andar, por trás de uma pesada porta de metal com aspecto de poder ir dar à casa das máquinas. Dantes chamavam-lhe sala de jantar executiva, até que o Departamento de Recursos Humanos descobriu que os quadros subalternos achavam o nome ofensivo. A CIA desembaraçou-se da palavra "executiva" e abriu o restaurante a todos os empregados. Tecnicamente, os trabalhadores da doca de carga e descarga podiam ir até ao sétimo andar para almoçar com os directores-adjuntos e os chefes de divisão. Ainda assim, a maior parte dos quadros preferia a enorme cafetaria na cave, afectuosamente conhecida como "o fosso da mistela", onde podiam trocar mexericos à vontade sem medo de serem ouvidos pelos superiores.
Mónica Tyler estava sentada a uma mesa junto à janela, com vista para as árvores grossas dispostas ao longo do rio Potomac. Os seus dois sempre presentes factótuns, conhecidos de forma jocosa como Tweedledum e Tweedledee, estavam sentados ao lado dela, cada um agarrando com força uma pasta de couro como se estas contivessem os segredos perdidos do mundo antigo. As mesas à volta estavam vazias; Mónica Tyler possuía um talento para criar espaço vazio em seu redor, de forma bastante semelhante a um psicopata com um punhado de dinamite.
Continuou sentada quando Michael e Cárter entraram na sala e se sentaram. Uma empregada trouxe os menus e as outras cartas. Na sala de jantar, os convidados não faziam os seus pedidos oralmente; em vez disso, tinham de preencher um pequeno formulário meticulosamente e fazer o somatório da própria conta. Os espirituosos da agência afirmavam na brincadeira que os formulários eram recolhidos ao final de cada dia e enviados para o Departamento de Recursos Humanos para uma avaliação psicológica. Cárter procurou em vão que Mónica se deixasse envolver numa conversa de circunstância enquanto se debatia com o complexo formulário de pedidos. Michael sabia que a refeição iria ser cobrada ao gabinete da Directora e, por isso, escolheu os artigos mais caros do menu: cocktail de camarão, bolos de caranguejo grelhado e creme brâlée para a sobremesa. Tweedledee preencheu o formulário de Mónica por ela.
— Agora que conseguiste neutralizar a Brigada para a Libertação do Ulster — começou por dizer de repente Mónica —, nós achamos que está na altura de saíres do destacamento especial dedicado à Irlanda do Norte e passares para uma coisa mais produtiva.
Michael olhou para Cárter, que encolheu os ombros.
— E quem são esses nós? — perguntou Michael.
Mónica levantou os olhos da salada como se tivesse achado a pergunta impertinente.
— O sétimo andar, claro.
— Por acaso, estava com esperanças de poder passar mais tempo a trabalhar no caso Outubro — disse Michael.
— Por acaso, tenciono retirar-te por completo do caso Outubro. Michael afastou o prato de camarão meio comido e pousou o guardanapo em cima da mesa.
— Uma parte do nosso acordo em relação ao meu regresso à CIA era que me seria permitido passar parte do meu tempo à procura dele. Porque é que estás a tentar fugir ao nosso acordo?
— Para ser sincera contigo, Michael, o Adrian achou que deixar-te ir atrás do Outubro poderia ser suficiente para te atrair de volta ao centro. Mas eu nunca achei grande coisa da ideia e continuo a não achar. Mais uma vez, provaste ser um agente eficaz, e seria negligente da minha parte se permitisse que continuasses a trabalhar num caso que é pouco provável que produza frutos.
— Mas já produziu frutos, Mónica. Provei que o Outubro ainda está vivo e que continua em actividade como assassino e terrorista.
— Não, Michael, tu não provaste que ele está vivo. Tu lançaste a teoria de que ele ainda está vivo, com base na ampliação da fotografia de uma mão. Isso está muito longe de ser uma prova irrefutável.
— Nós raramente lidamos com provas irrefutáveis neste ramo, Mónica.
— Não me pregues sermões, Michael.
Calaram-se quando a empregada apareceu e levantou a mesa depois do primeiro prato.
— Enviámos um alerta à Interpol — recomeçou Mónica. — Avisámos os nossos aliados. Não há muito mais que possa ser feito. Neste momento, trata-se de uma questão de polícia e isto não é uma agência policial.
— Não concordo — respondeu Michael.
— Com que ponto?
— Tu sabes com que ponto.
Os acólitos de Mónica agitaram-se nos seus lugares com inquietação. Cárter começou a catar um fio solto da toalha de mesa. Nada enfurecia mais Mónica Tyler do que ser desafiada por alguém que se encontrasse abaixo dela na cadeia alimentar da agência.
— Alguém contratou o Outubro para assassinar o Ahmed Hus-sein — prosseguiu Michael. — Alguém está a disponibilizar-lhe protecção, documentos para viajar e dinheiro.
Precisamos de descobrir quem está a patrociná-lo. E isso é um trabalho de espionagem, Mónica, não de polícia.
— Mais uma vez, Michael, estás a partir do princípio de que o Outubro era o homem que estava no Cairo. Pode ter sido um agente dos serviços secretos israelitas.
Pode ter sido um membro do Hamas que fosse rival dele. Pode ter sido um assassino da OLP.
— Pode ter sido um pato à Pequim, mas não era. Era o Outubro.
— Não concordo.
Sorriu, demonstrando que se tinha servido das palavras de Michael intencionalmente. Os olhos dela vasculhavam-no sem parar, de um lado para o outro, como se estivessem à procura do melhor sítio para lhe inserir um punhal.
Michael rendeu-se.
— E o que é que tens em mente para mim?
— O processo de paz no Médio Oriente está a dar as últimas — respondeu ela. — O Hamas anda a colocar bombas em Jerusalém e nós recebemos indicações de que a Espada de Gaza está prestes a entrar em acção na Europa. Com toda a probabilidade, isso significa que irão visar americanos. Quero que termines os preparativos para a conferência na Casa Branca sobre a Irlanda do Norte e, a seguir, quero-te outra vez a tratar da Espada de Gaza.
— E se eu não estiver interessado?
— Então, receio que o teu regresso à CIA, embora altamente bem-sucedido, vá ser bastante breve.
Morton Dunne era para a CIA aquilo que "Q" era para os serviços secretos de James Bond. Chefe-adjunto da divisão dos Serviços Técnicos, Dunne era o criador de canetas que explodiam e de microfones transmissores de alta frequência que podiam ser escondidos na fivela de um cinto. Era um engenheiro electrotécnico formado no MIT que podia estar a ganhar cinco vezes mais no sector privado do que o salário que auferia a trabalhar para o Estado. Escolheu a CIA porque a parafernália de espionagem sempre o havia intrigado. No seu tempo livre, fazia a manutenção das antigas câmaras e armas de espionagem instaladas no museu improvisado da agência. E também era um dos principais criadores, em todo o mundo, de papagaios experimentais. Ao fim-de-semana, podia ser encontrado na Ellipse, a fazer voar as suas criações em redor do Monumento de Washington. Uma vez, colocou uma câmara em miniatura de alta resolução num papagaio e fotografou cada centímetro quadrado do relvado sul da Casa Branca.
— Tens autorização para isto, suponho — disse Dunne, sentado diante de um grande ecrã de computador.
Era o protótipo de um licenciado do MIT — magro, pálido como um habitante das cavernas, com óculos de armações de metal que estavam sempre a escorregar-lhe pela cana do nariz estreito.
— Não posso fazer isto sem autorização do teu chefe.
— Eu trago-ta mais logo, mas preciso das fotos agora.
Dunne colocou as mãos no teclado.
— Como é que era o nome dele?
— Outubro. Aquele que fizemos o mês passado para o alerta para a Interpol.
— Oh, sim, já me lembro — disse Dunne, com os dedos a matraquearem no teclado.
Passado um momento, a cara de Outubro surgiu no ecrã.
— E que queres que eu faça?
— Acho que ele é capaz de ter feito uma operação plástica para mudar de cara — disse Michael. — Tenho quase a certeza de que o trabalho foi feito por um francês chamado Maurice Leroux.
— O doutor Leroux pode ter feito todo o tipo de coisas para lhe alterar a aparência.
— Podes mostrar-me umas quantas? — pediu Michael. — Podes fazer uma série completa? Mudar-lhe o cabelo, pôr-lhe uma barba, tudo.
— Vai demorar um bocado.
— Eu espero.
— Senta-te ali — disse Dunne. — E, por amor de Deus, Osbourne, não mexas em nada.
Foi logo a seguir à meia-noite que o carro com motorista de Mónica Tyler chegou ao complexo de Harbor Place, na zona costeira de Georgetown. O guarda-costas abriu-lhe a porta e seguiu-a pelo átrio de entrada até ao elevador. Acompanhou-a à porta do apartamento e deixou-se ficar ali quando ela entrou.
Mónica pôs a água a correr na banheira gigante e despiu-se. Já era quase manhã em Londres. O Director era conhecido por se levantar muito cedo; ela sabia que ele estaria sentado à secretária dali a poucos minutos. Enfiou-se na banheira e deixou-se descontrair na água quente. Depois de terminar, embrulhou-se num grosso roupão branco.
Foi até à sala de estar e sentou-se atrás da secretária de mogno. Havia aí três telefones: um telefone normal com oito linhas, um telefone interno para Langley e um telefone especial seguro que lhe permitia ter conversas sem medo de haver alguém à escuta. Olhou para o relógio de ouro de antiquário que tinha sobre a secretária, um presente da sua antiga firma na Wall Street: 0h45.
Mónica lembrou-se das circunstâncias — as coincidências, as alianças políticas e os acasos felizes — que a tinham conduzido até ao topo da CIA. Terminara o curso na Faculdade de Direito de Yale em segundo lugar, mas, em vez de partir para uma grande firma, acrescentou ao currículo um MBA em Harvard e foi para a Wall Street ganhar dinheiro. Foi lá que conheceu Ronald Clark, angariador de fundos republicano e um homem astuto que entrava e saía de Washington consoante os republicanos controlavam ou não a Casa Branca. Mónica seguiu Clark para o Tesouro, Comércio, Negócios Estrangeiros e Defesa. Quando o presidente Beckwith o nomeou como director da CIA, Mónica tornou-se a directora executiva, o segundo cargo mais poderoso na agência. Quando Clark decidiu reformar-se, Mónica fez lóbi no sentido de ser escolhida para o cargo principal e Beckwith concedeu-lho.
Ronald Clark deixou-lhe uma CIA num estado de desordem. Uma série de outros casos de espionagem, incluindo o caso Aldrich Ames, tinha devastado o moral. A agência não tinha conseguido prever que tanto a índia como o Paquistão se encontravam prestes a fazer explodir engenhos nucleares ou que o Irão e a Coreia do Norte estavam prestes a testar mísseis balísticos capazes de atingirem os seus vizinhos. Durante as audiências para a sua homologação, vários senadores insistiram com ela para que justificasse o tamanho e o custo da CIA; um deles interrogou-se alto e bom som se os Estados Unidos precisariam realmente de uma CIA numa altura em que a guerra fria tinha terminado.
Supostamente, ela deveria ser uma espécie de mera caseira, alguém que mantivesse a cadeira no gabinete do director da CIA quente durante um par de anos, até o sucessor de Beckwith poder nomear o seu chefe dos serviços secretos. Mas ela revelou-se incapaz de desempenhar o papel de caseira e deu início à missão de se tornar indispensável a quem quer que se sentasse na Sala Oval depois de Beckwith; republicano ou democrata.
Achava-se a única pessoa em Langley com a visão para conduzir a CIA pelo terreno instável do período pós-guerra fria. E também tinha estudado a história da espionagem. Sabia que por vezes era necessário sacrificar alguns de maneira a garantir a sobrevivência de muitos. Sentia uma afinidade com os agentes especialistas em logro durante a Segunda Guerra Mundial, que enviavam homens e mulheres para a morte de modo a enganar a Alemanha nazi. Nunca iria permitir que a CIA fosse castrada. Nunca iria permitir que os Estados Unidos ficassem sem um serviço de informações conveniente. E iria fazer tudo para se assegurar de que era ela quem comandava as operações. E era por isso que tinha aderido à Sociedade e que seguia o seu código.
A uma da manhã, levantou o auscultador do telefone seguro e marcou um número. Passados alguns segundos, ouviu a voz agradável e educada da assistente do Director, Daphne. A seguir, o Director veio ao telefone.
— Já não precisa de se preocupar com o Osbourne — disse ela. — Foi-lhe atribuído um novo caso e o processo referente ao caso Outubro foi efectivamente arquivado.
No que à CIA diz respeito, o Outubro está morto e enterrado.
— Muito bem — disse o Director.
— E onde é que está a encomenda?
— A caminho das Caraíbas — respondeu ele. — Deve estar a chegar aos Estados Unidos durante as próximas trinta e seis a quarenta e oito horas. E depois estará tudo terminado.
— Excelente — disse ela.
— Confio que transmitirás quaisquer informações que possam ajudar a encomenda a chegar a tempo ao seu destino.
— Claro, Director.
— Eu sabia que podia contar contigo. Bom dia, Picasso — disse o Director, e a ligação foi interrompida.
Capítulo 35
BAÍA DE CHESAPEAKE, MARYLAND
O Boston Whaler ia ressaltando nas águas agitadas da baía de Chesapeake. O céu estava limpo e a noite, fria de rachar; uma brilhante lua de quarto crescente flutuava lá no alto, acima do horizonte a leste. Delaroche tinha apagado as luzes de presença pouco depois de entrar na embocadura da baía. Esticou o braço e carregou num botão da unidade de navegação instalada no painel de instrumentos. O sistema GPS calculou automaticamente a longitude e a latitude exactas a que se encontrava; estavam no centro das movimentadas rotas de navegação do canal de Chesapeake.
Rebecca Wells estava ao seu lado, segurando com força o leme da segunda consola do Whaler. Sem falar, apontou para o lado de lá da proa. A frente deles, talvez a um quilómetro e meio, brilhavam os faróis de um navio de carga. Delaroche virou alguns graus a bombordo e avançou a toda a velocidade pelas águas pouco fundas da margem ocidental.
Tinha planeado meticulosamente o seu percurso pela baía de Chesapeake durante a longa viagem de Nassau até à costa leste. Tinham efectuado essa etapa da viagem a bordo de um grande iate a caminho do oceano, pilotado por um par de antigos homens da SAS pertencentes à Sociedade. Ele e Rebecca ficaram em camarotes de luxo contíguos.
De dia, estudavam mapas de Chesapeake, analisavam os dossiês de Michael Osbourne e Douglas Cannon e memorizavam as ruas de Washington. A noite, iam até ao convés da popa e treinavam a pontaria com as Beretta de Delaroche. Rebecca pressionou-o para que lhe dissesse o nome dele, mas, de cada vez que perguntava, Delaroche limitava-se a abanar a cabeça e mudava de assunto. Sentindo-se frustrada, baptizou-o de "Pierre", o que Delaroche detestou. Na última noite a bordo do iate, admitiu que não tinha um nome verdadeiro mas que, se ela achava que era necessário referir-se a ele como qualquer coisa, então devia chamar-lhe Jean-Paul.
Delaroche continuava furioso por ser obrigado a trabalhar com a mulher, mas o Director tinha tido razão numa coisa: ela não era amadora nenhuma. O conflito na Irlanda do Norte tinha-lhe aguçado ao máximo as capacidades. Possuía uma memória soberba e instintos operacionais perfeitos. Era alta e bastante forte para uma mulher, e, após três noites de treino com a Beretta, já era uma atiradora mais do que razoável. Delaroche estava preocupado apenas com uma coisa — o idealismo dela. Ele só acreditava na sua arte. Os fanáticos enervavam-no. Em tempos, Astrid Vogel tinha sido uma crente como Rebecca — quando fazia parte do grupo terrorista comunista da Alemanha Ocidental, a Facção Exército Vermelho —, mas, quando ela e Delaroche trabalharam juntos, já tinha descartado os seus ideais e estava naquilo apenas pelo dinheiro.
Delaroche tinha decorado todos os pormenores de Chesapeake — os bancos de areia, os rios e as baías, os terrenos planos e os promontórios. Tudo o que necessitava era de uma indicação do GPS para saber exactamente onde se encontrava em relação a terra. Tinha passado Sandy Point, Cherry Point e Windmill Point. Quando chegou a Bluff Point, já se sentia hirto e dorido do frio. Desligou os motores e beberam café quente de um termos.
Verificou a unidade de navegação GPS: 38,50 graus de latitude por 76,31 graus de longitude. Sabia que estava a aproximar-se de Curtis Point, um promontório na embocadura do West River. O seu destino era o South River, o rio seguinte por onde entrava o mar e que ia desembocar na baía, vindo de Maryland, mais ou menos a cinco quilómetros e meio a norte. Ao passar Saunders Point, viu a primeira luz do dia surgir a leste, a estibordo do Whaler. Contornou Turkey Point e sentiu o empurrão ligeiro da maré vinda do South River.
Acelerou a fundo, subindo o rio para nordeste. Queria chegar a costa e estar na estrada antes de amanhecer. Passou a grande velocidade por Mayo Point e Brewer Point, Glebe Bay e Crab Creek. Passou por baixo de uma ponte e depois de outra. Chegou à desembocadura de um ribeiro e verificou a unidade de navegação para ter a certeza de que se tratava do Broad Creek. A maré estava a baixar e tinha deixado o ribeiro com menos água do que os mapas haviam prometido; por duas vezes, Delaroche saltou para dentro da água gélida e empurrou o Whaler, desencalhando-o do fundo.
Por fim, atingiu a nascente do ribeiro. Encalhou o Whaler num. pedaço de relva pantanosa, desligou o motor, pulou para terra e, puxando pela corda da proa, arrastou o barco mais para dentro do pântano.
Rebecca trepou para o compartimento da frente e pegou num grande saco de lona repleto de material: roupa, dinheiro e equipamento electrónico. Entregou o saco a Delaroche e, a seguir, desceu do barco para o pântano encharcado. O carro estava estacionado num caminho de terra batida, exactamente onde o Director tinha dito que estaria: um grande Volvo preto, com matrícula do Quebeque.
Delaroche tinha uma chave. Abriu o porta-bagagens e atirou o saco lá para dentro. Seguiu por uma série de estradas com duas faixas durante vários quilómetros, passando por terras de cultivo e pastagens iluminadas pelo sol, até chegar à Route 50. Virou para a auto-estrada e seguiu para leste, em direcção a Washington.
Uma hora depois de irem buscar o Volvo, entraram em Washington pela New York Avenue, um corredor de passagem imundo utilizado por quem entrava e saía da cidade diariamente, que se estendia da secção nordeste da cidade até aos subúrbios de Maryland. Delaroche tinha parado uma vez numa estação de serviço à beira da estrada para que ele e Rebecca pudessem mudar-se e vestir roupas mais apropriadas. Atravessou a cidade pela Massachusetts Avenue e parou junto ao caminho de acesso ao hotel em Embassy Row, perto de Dupont Circle. Tinham uma reserva à espera deles, em nome do senhor Clau-de Duras e esposa, de Montreal.
As exigências da história que lhes servia de disfarce obrigaram-nos a partilhar o mesmo quarto. Dormiram até meio da tarde, Rebecca na cama de casal e Delaroche no chão, com a coberta da cama a fazer as vezes de colchão. Acordou de repente, às quatro da tarde, surpreendido pelo que o rodeava, e deu-se conta de que tinha estado a sonhar outra vez com Maurice Leroux.
Pediu, que lhe trouxessem café ao quarto e bebeu-o enquanto guardava vários artigos numa mochila de nylon azul: duas peças de equipamento electrónico sofisticado, dois telemóveis, uma lanterna, várias ferramentas pequenas e uma Beretta de nove milímetros. Rebecca saiu da casa de banho, trazendo calças de ganga azuis, ténis e uma camisola de mangas compridas com as palavras Washington, d. c. e uma imagem da Casa Branca bordadas.
— Como é que estou? — perguntou.
— O teu cabelo está demasiado louro — respondeu Delaroche, enfiando a mão no saco de lona e atirando-lhe um boné de basebol. — Põe isso.
Telefonou para a recepção e pediu ao camareiro para ter o Volvo à espera deles. Seguiu para oeste no carro, percorrendo a P Street. Havia um mapa turístico no tabliê, que Delaroche não se deu ao trabalho de abrir; as ruas de Washington, tal como as águas de Chesapeake, estavam-lhe gravadas na memória.
Entrou em Georgetown e foi avançando pelas ruas sossegadas e repletas de folhas. Era considerado o bairro mais chique de Washington, com passeios em tijoleira e grandes casas no estilo de arquitectura federal, mas para Delaroche, cujo olhar estava habituado aos canais e às casas com empenas de Amesterdão, tudo parecia bastante prosaico.
Continuou para oeste, pela P Street, até chegar à Wisconsin Avenue. Aí, seguiu para sul, acompanhado pelo ritmo pulsante da música rap que vibrava do BMW dourado atrás de si. Virou para a N Street e a loucura da Wisconsin Avenue dissipou-se lentamente, ficando para trás.
A casa estava vazia, exactamente como Delaroche sabia que estaria. O embaixador Cannon chegaria de Londres na tarde do dia seguinte. Ia dar um jantar privado para amigos e família nessa noite. Um dia depois, participaria numa conferência sobre a Irlanda do Norte na Casa Branca e, a seguir, estaria presente num conjunto de recepções nocturnas, da responsabilidade das partes participantes nas conversações. Estava tudo no dossiê do Director.
Delaroche estacionou à esquina da casa, na Thirty-third Street. Colocou uma máquina fotográfica ao pescoço e passeou-se pelo quarteirão sossegado, de braço dado com Rebecca, parando aqui e ali para admirar as grandes casas citadinas de tijolo com a luz a jorrar das janelas. Era bastante parecido com Amesterdão, pensou, a maneira como as pessoas deixavam as cortinas abertas e permitiam que quem passasse lhes olhasse para dentro de casa e avaliasse as suas posses.
Já lá tinha estado antes; sabia os desafios que a N Street colocava a um homem como ele. Não havia cafés onde pudesse demorar-se a beber um café, não havia lojas para fazer compras como medida de diversão, não havia praças nem parques para passar o tempo sem atrair atenção — apenas grandes e dispendiosas casas, com vizinhos metediços e sistemas de segurança.
Passaram à frente da casa dos Osbourne. Um grande carro preto estava estacionado do outro lado da rua. Sentado ao volante, estava um homem com uma gabardina castanho-clara, a ler a secção desportiva do The Washington Post. Lá se ia a teoria do Director de que seria fácil matar o embaixador Cannon enquanto ele estivesse em Washington, pensou Delaroche. O homem ainda nem sequer tinha posto os pés na cidade e a casa já se encontrava sob vigilância.
Parou a um quarteirão de distância e tirou fotografias à casa onde John Kennedy tinha vivido quando era um senador do Massachusetts. Alguns secretários ministeriais viviam em Georgetown; as suas casas estavam sob vigilância constante. Se o funcionário em questão estivesse envolvido em matérias de segurança nacional, como o secretário de Estado ou o secretário da Defesa, os seus guarda-costas poderiam até manter um posto permanente num apartamento vizinho. Mas Delaroche estava convicto de que as medidas de segurança para Douglas Cannon consistiam inteiramente no homem com a gabardina castanho-clara — pelo menos, até àquele momento.
Seguiu, com Rebecca atrás, para sul pela Thirty-first Street, cerca de meio quarteirão, até chegarem a uma viela que se estendia por trás da casa dos Osbourne. Espreitou para a quase escuridão; tal como suspeitava, parecia que as traseiras da casa não se encontravam vigiadas.
Delaroche entregou um telemóvel a Rebecca.
— Fica aqui. Liga se houver algum problema. Se eu não regressar daqui a cinco minutos, vai-te embora e volta para o hotel. Se eu não der notícias durante a próxima meia hora, entra em contacto com o Director e faz um pedido de extracção.
Rebecca assentiu com um aceno de cabeça. Delaroche deu meia-volta e começou a avançar pela viela. Parou atrás da casa dos Osbourne e, a seguir, trepou a vedação habilmente e deixou-se cair num jardim bem arranjado que rodeava uma pequena piscina. Olhou para cima e seguiu as linhas que vinham do posto telefónico na viela até ao ponto em que se ligavam à casa. Atravessou o jardim e ajoelhou-se em frente à caixa do telefone nas traseiras da casa. Abriu o fecho da mochila e tirou as ferramentas e uma lanterna. Segurando a lanterna entre os dentes, desatarraxou os parafusos que seguravam a tampa da caixa e estudou a configuração das linhas durante um momento.
Havia duas linhas com ligação à casa, mas Delaroche apenas possuía o equipamento para pôr uma delas sob escuta. Suspeitou que uma das linhas estava provavelmente reservada para as chamadas e a outra para um fax ou modem. Voltou a enfiar a mão na mochila e tirou um pequeno aparelho electrónico. Ligado à linha telefónica dos Osbourne, iria transmitir um sinal de rádio de alta frequência para o telemóvel de Delaroche, permitindo-lhe monitorizar as chamadas do casal. Delaroche demorou apenas dois minutos a instalar o aparelho na linha principal dos Osbourne e a atarraxar novamente a tampa da caixa do telefone.
O segundo aparelho seria muito mais fácil de instalar, uma vez que necessitava apenas de uma janela. Era um mecanismo de escuta que, quando ligado ao exterior de uma janela, iria detectar a vibração das ondas sonoras no interior da estrutura e convertê-las em áudio simulado. Delaroche prendeu o sensor à parte inferior de uma janela )unto à sala de estar principal. Estava escondido por um arbusto, no exterior, e pela aba de uma mesa, no interior da casa. Enterrou a unidade de conversão e transmissão numa zona de adubo vegetal no jardim.
Voltou para trás, seguindo pelo relvado pelo mesmo caminho que tinha feito. Atirou a mochila para o outro lado da vedação e, a seguir trepou-a e deixou-se cair na viela. As duas unidades que tinha acabado de colocar na casa dos Osbourne possuíam um alcance efectivo de três quilómetros, o que lhe possibilitaria monitorizá-los a partir da segurança do seu quarto de hotel em Dupont Circle.
Rebecca estava à espera dele no final da viela.
— Vamos embora — disse ele. Pegou-lhe na mão e regressaram ao Volvo.
Delaroche estava sentado diante de um auscultador do tamanho de uma caixa de sapatos, a testar o sinal do transmissor que tinha colocado na janela dos Osbourne.
Rebecca encontrava-se na casa de banho. Conseguia ouvir o som da água a correr no lavatório. Já estava lá dentro há mais de uma hora. Por fim, a água parou de correr e ela saiu, num roupão de banho do hotel, com o cabelo enrolado numa toalha branca como um xeque. Acendeu um dos cigarros dele e perguntou:
— Funciona?
— O transmissor está a enviar um sinal, mas só vou poder ter a certeza quando estiver alguém dentro de casa.
— Tenho fome — disse ela.
— Pede qualquer coisa para comer ao serviço de quartos.
— Quero sair.
— É melhor ficarmos aqui.
— Andei dez dias enfiada em barcos. Quero sair.
— Veste-te e eu levo-te a qualquer lado.
— Fecha os olhos — disse ela.
Em vez disso, Delaroche voltou-se e ficou de frente para ela. Esticou o braço e puxou-lhe a toalha que tinha à volta da cabeça. O cabelo dela já não possuía um tom louro abrasivo; estava quase preto e brilhava da humidade. De repente, encontrava-se em sintonia com o resto do seu aspecto — os olhos cinzentos, a pele branca e luminosa, o rosto oval. Apercebeu-se de que era uma mulher formidavelmente bonita. Depois ficou zangado; desejou poder esconder-se numa casa de banho com uma garrafa de elixir e sair de lá, passada uma hora, com a sua cara antiga.
Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Tens cicatrizes — disse, passando-lhe com um dedo pela linha do maxilar. — O que é que aconteceu?
— A minha cara não era esta. Se nos mantivermos muito tempo neste ramo, uma cara pode tornar-se uma fonte de risco.
O dedo dela já tinha passado da linha do maxilar para a maçã do rosto e tocava agora nos implantes de colagénio logo por baixo da pele.
— Como é que eras antes?
Delaroche arqueou as sobrancelhas e reflectiu sobre a pergunta dela por um instante. Pensou: como descreveria uma pessoa a sua própria aparência? Se dissesse que em tempos tinha sido belo, antes de Maurice Leroux lhe ter destruído a cara, ela poderia achar que era um mentiroso. Sentou-se à secretária e pegou numa folha de papel do hotel e num lápis.
— Afasta-te por uns minutos — disse.
Ela foi outra vez para a casa de banho, fechou a porta e ligou o secador de cabelo. Ele trabalhou depressa, com o lápis a rabiscar na folha. Depois de terminar, avaliou as suas feições de uma forma bastante desapaixonada, como se pertencessem a uma criatura por ele imaginada.
Enfiou o auto-retrato por baixo da porta da casa de banho. O secador parou de fazer barulho. Rebecca saiu, com a antiga cara de Delaroche nas mãos. Olhou para ele e, a seguir, para a imagem na folha. Beijou o retrato e deixou-o cair no chão. A seguir, beijou Delaroche.
— Quem era ela, Jean-Paul?
— Quem?
— A mulher em que estavas a pensar enquanto fazias amor.
— Eu estava a pensar em ti.
— Não o tempo todo. Eu não estou zangada, Jean-Paul. Não é como se...
Deteve-se antes de poder acabar de dizer aquilo em que estava a pensar. Delaroche interrogou-se sobre o que poderia ela ter dito. Ficou deitada de costas, com a cabeça pousada no abdómen dele e o cabelo escuro espalhado pelo peito. A luz da rua entrava pelas cortinas abertas e caía-lhe sobre o corpo comprido. Tinha a cara ruborizada e arranhada de ter feito amor, mas o resto do corpo era branco-marfim à luz do candeeiro. Era a pele de uma pessoa que raramente tinha visto o sol; Delaroche duvidava que ela alguma vez tivesse posto os pés fora das Ilhas Britânicas antes de ter sido forçada a andar escondida.
— Ela era bonita? E não me mintas mais.
— Sim — respondeu.
— E como é que se chamava?
— Chamava-se Astrid.
— Astrid quê?
— Astrid Vogel.
— Lembro-me de uma mulher chamada Astrid Vogel que fazia parte da Facção Exército Vermelho — disse Rebecca. — Abandonou a Alemanha e andou escondida depois de assassinar um polícia alemão.
— Essa era a minha Astrid — confirmou Delaroche, passando com o dedo por cima da borda do seio de Rebecca. — Mas a Astrid não matou o polícia alemão. Eu é que o matei. Ela limitou-se a pagar o preço.
— Então, és alemão? Delaroche abanou a cabeça.
— Então, és o quê? Qual é o teu nome verdadeiro?
Mas ele ignorou a pergunta. Os dedos passaram do seio dela para a parte de fora da caixa torácica. O abdómen de Rebecca reagiu involuntariamente ao toque dele, retraindo-se repentinamente. Delaroche acariciou-lhe a pele branca do estômago e a parte de cima das coxas. Por fim, ela pegou-lhe na mão e colocou-a entre as pernas. Os olhos fecharam-se-lhe. Uma rajada de vento agitou as cortinas e ela ficou com pele de galinha do calafrio. Tentou tapar o corpo com a coberta, mas Delaroche afastou-a.
— Havia coisas na casa flutuante de Amesterdão que pertenciam a uma mulher — disse ela baixinho, de olhos fechados. — A Astrid vivia naquele barco, não vivia?
— Sim, vivia.
— E tu vivias lá com ela?
— Durante um tempo.
— E fizeram amor na cama por baixo da clarabóia?
— Rebecca...
— Não há problema — interrompeu ela. — Não vais ferir-me os sentimentos.
— Sim, fizemos.
— E o que é que lhe aconteceu?
— Foi morta.
— Quando?
— No ano passado.
Rebecca afastou a mão dele e sentou-se na cama.
— O que é que aconteceu?
— Estávamos a trabalhar juntos numa coisa aqui na América e deu tudo para o torto.
— Quem a matou?
Delaroche hesitou por um momento; tudo aquilo já tinha ido longe de mais. Sabia que devia acabar com a conversa, mas, por alguma razão, queria contar-lhe mais coisas.
Talvez Vladimir tivesse razão. Um homem que vê fantasmas já não consegue comportar-se como um profissional...
— O Michael Osbourne — atirou. — Na verdade, a mulher dele é que a matou.
— Porquê?
— Porque nós fomos enviados para cá para matar o Michael Osbourne — respondeu e, a seguir, parou por uns instantes, com os olhos a percorrerem-na rapidamente. — Às vezes, neste ramo, as coisas não correm como planeado.
— E porque é que foram contratados para matar o Osbourne?
— Porque ele sabia demasiado acerca de uma das operações da Sociedade.
— Qual operação?
— O abate do Voo 002 da TransAdantic no ano passado.
— Julgava que tinha sido abatido por aquele grupo árabe, a Espada de Gaza.
— Foi abatido a mando de um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott. A Sociedade fez com que parecesse que a Espada de Gaza estava envolvida para que a empresa do Elliott pudesse vender um sistema de defesa antimíssil ao governo americano. O Osbourne suspeitava disso e, por isso, eu fui contratado pelo Director para eliminar toda a gente envolvida na operação, bem como o Osbourne.
— E quem é que abateu de facto o avião?
— Um palestiniano chamado Hassan Mahmoud.
— Como é que sabes?
— Sei porque estava lá nessa noite. E porque o matei quando já estava tudo terminado.
Ela afastou-se dele. Delaroche conseguia ver um medo real na cara dela e sentir a cama a abanar ligeiramente por ela estar a tremer. Rebecca puxou o cobertor para o peito para esconder o corpo dele. Ele olhou-a fixamente, sem a mínima expressão no rosto.
— Meu Deus — soltou ela. — Tu és um monstro.
— Porque é que dizes isso?
— Havia mais de duzentas pessoas inocentes naquele avião.
— Então e as pessoas inocentes que os vossos bombistas mataram em Londres e Dublin?
— Nós não o fizemos por dinheiro — rosnou ela.
— Vocês tinham uma causa — disse ele, com desprezo.
— Exactamente.
— Uma causa que tu achas que é justa.
— Uma causa que eu sei que é justa — respondeu ela. — Enquanto tu és capaz de matar qualquer pessoa desde que o preço seja o certo.
— Meu Deus, mas tu és mesmo uma mulher estúpida, não és? Ela tentou esbofeteá-lo, mas ele agarrou-lhe a mão e segurou-a firmemente, resistindo com facilidade às tentativas dela para se soltar.
— Porque é que julgas que a Sociedade está disposta a ajudar-te? — perguntou Delaroche. — Porque acreditam nos direitos sagrados dos protestantes na Irlanda do Norte?
Claro que não. Porque acham que isso vai beneficiar os seus próprios interesses. Porque acham que isso os fará ganhar dinheiro. A história passou-vos ao lado, Rebecca.
Os protestantes já tiveram o seu tempo na Irlanda do Norte e agora acabou. Por mais bombas, por mais assassínios que haja, não há nada que vá fazer o relógio voltar para trás.
— Se acreditas nisso, porque é que estás a fazer isto?
— Eu não acredito em nada. Isto é o que eu faço. Já matei em nome de todas as causas fracassadas na Europa. A tua é só a mais recente —: respondeu, largando-a e vendo-a afastar-se, a esfregar a mão como se tivesse tocado em alguma coisa perversa — e espero que a última.
— Eu devia ter continuado a andar naquele dia em Amesterdão.
— Provavelmente, tens razão. Mas agora estás aqui e não tens outro remédio senão ficar comigo, e se fizeres precisamente o que eu te disser até pode ser que sobrevivas.
Nunca mais verás a Irlanda do Norte, mas pelo menos estarás viva.
— Não sei bem porquê, mas duvido — respondeu ela. — Vais matar-me quando isto terminar tudo, não vais?
— Não, não te vou matar.
— Provavelmente, também mataste a Astrid Vogel.
— Eu não matei a Astrid e não te vou matar, Rebecca.
Puxou pelo cobertor e deixou-lhe o corpo à luz. Estendeu-lhe a mão, mas ela continuou parada.
— Pega na minha mão — disse Delaroche. — Eu não vou fazer-te mal. Dou-te a minha palavra.
Rebecca pegou-lhe na mão. Ele puxou-a para junto de si e deu-lhe um beijo na boca. Ela resistiu durante um momento; a seguir, rendeu-se, beijando-o e arranhando-lhe a pele como se estivesse a afogar-se nos seus braços. Quando o conduziu para dentro do corpo dela, ficou subitamente muito quieta, olhando para Delaroche de uma forma tão directa como um animal, enervando-o.
— Gosto mais da tua outra cara — disse ela.
— Eu também.
— Quando tudo isto tiver terminado, talvez possamos ir ter outra vez com o médico que fez isto e ele consiga pôr a tua cara como estava antes.
— Receio que isso não seja possível — respondeu.
Ela pareceu compreender exactamente o que ele estava a dizer.
— Se não me vais matar — disse ela —, então porque é que me contaste os teus segredos?
— Não sei bem.
— Quem és tu, Jean-Paul?
Capítulo 36
WASHINGTON
Na manhã seguinte, Michael e Elizabeth viajaram de avião de Nova Iorque para Washington, acompanhados pelas crianças e Maggie. Separaram-se no National Airport.
Michael seguiu para a Casa Branca num carro grande do governo com motorista, para efectuar o relatório sobre a Irlanda do Norte ao conselheiro para a Segurança Nacional, William Bristol; Elizabeth, Maggie e os filhos entraram todos num carro de serviço, um luxuoso Ford, que os levaria até Georgetown.
Elizabeth já não vinha ao grande prédio de tijolo vermelho, no estilo de arquitectura federal, da N Street há mais de um ano. Adorava a antiga casa, mas, ao subir os degraus de tijolo encurvados, sentiu-se subitamente assaltada por más recordações. Lembrou-se da longa luta com o seu próprio corpo para ter filhos. Lembrou-se da tarde em que Astrid Vogel lá tinha ido para a fazer refém para que o assassino chamado Outubro pudesse assassinar o seu marido.
— Está tudo bem, Elizabeth? — perguntou Maggie. Elizabeth interrogou-se quanto tempo teria estado parada daquela forma, com a chave na mão, incapaz de abrir a porta.
— Sim, está tudo óptimo, Maggie. Só estava a pensar numa coisa.
O alarme chilreou quando ela empurrou a porta da frente. Marcou o código de desactivação e o alarme calou-se. Michael tinha transformado o sítio numa fortaleza, mas ela nunca iria sentir-se completamente segura ali.
Ajudou Maggie a instalar as crianças e depois levou a mala para o quarto, no andar de cima. Estava a abri-la quando a campainha tocou. Desceu para o andar de baixo e espreitou pela vigia da porta. Lá fora, estava um homem de cabelo castanho com um fato azul e uma gabardina castanho-clara.
— O que deseja? — perguntou ela, sem abrir a porta.
— O meu nome é Brad Heyworth, senhora Osbourne. Sou o agente dos Serviços de Segurança do Corpo Diplomático encarregado de vigiar a sua casa.
Elizabeth abriu a porta.
— Da DSS[37]? Mas o meu pai só chega de Londres daqui a seis horas.
— Na verdade, há já um par de dias que andamos a vigiar a casa, senhora Osbourne.
— Porquê?
— Depois do incidente no Reino Unido, decidimos que seria provavelmente melhor pecarmos por excesso de prudência.
— E está sozinho?
— Por enquanto, mas quando o embaixador chegar acrescentaremos um segundo homem à equipa.
— Isso é tranquilizador — afirmou ela. — Não quer entrar?
— Não, obrigado, senhora Osbourne, eu preciso de ficar cá fora.
— E não quer que lhe traga nada?
— Estou óptimo — respondeu ele. — Só queria que a senhora soubesse que estamos por perto.
— Obrigada, agente Heyworth.
Elizabeth fechou a porta e ficou a ver o homem da DSS a descer os degraus da frente da casa e voltar a entrar no carro. Sentiu-se contente por ele ali estar. Foi para o andar de cima e sentou-se à secretária no antigo escritório de Michael. Fez uma série de telefonemas curtos: para o serviço de fornecimento de comida RidgewelTs, para o serviço de empregados particulares, para o seu escritório em Nova Iorque a fim de saber se havia mensagens. A seguir, passou mais uma hora a responder a chamadas.
Maria, a empregada doméstica, chegou ao meio-dia. Elizabeth vestiu um fato de treino de nylon e saiu para a rua. Desceu os degraus da frente aos saltos, acenou com a mão a Brad Heyworth e começou a correr pelo passeio em tijoleira da N Street.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tinha pendurado o aviso de não incomodar na maçaneta da porta do quarto e trancou-a com duas voltas. Durante a última hora, tinha estado a ouvir Elizabeth Osbourne: a falar ao telefone, a falar com a ama e os filhos, a falar com o agente da DSS que estava a guardar-lhe a casa. Agora, Delaroche sabia exactamente quando Douglas Cannon chegaria de Londres e quando sairia para a Casa Branca na manhã seguinte para estar presente na conferência sobre a Irlanda do Norte. E também sabia que o agente da DSS estacionado à porta da casa se chamava Brad Heyworth e que um segundo agente se iria juntar à equipa de segurança depois de o embaixador chegar.
Ouviu a chegada de uma empregada doméstica chamada Maria, que falava com um sotaque espanhol carregado: sul-americana, calculou Delaroche — Peru, ou talvez Bolívia.
Ouviu Elizabeth Osbourne anunciar que ia correr e que regressaria dentro de uma hora. Deu um salto quando ela bateu com força com a porta da frente ao sair de casa.
Cinco minutos mais tarde, foi apanhado de sobressalto por um ruído estrondoso que parecia o roncar de um motor a jacto. O barulho era tanto, que teve de arrancar os auscultadores dos ouvidos. Por um momento, pensou que tivesse acontecido alguma calamidade à casa dos Osbourne. Depois, percebeu que era apenas Maria a passar com o aspirador perto da janela onde Delaroche tinha colocado o microfone.
O jantar dado por Douglas Cannon começou por ser pensado como uma celebração íntima para oito pessoas, mas, no rescaldo dos acontecimentos em Hartley Hall, tinha-se metamorfoseado numa grande festa para cinquenta convidados, com serviço de fornecimento de comida, mesas e cadeiras alugadas e um conjunto de rapazes universitários vestidos com casacos azuis e tendo por missão estacionar os carros nas ruas atafulhadas de viaturas de Georgetown. Era assim que funcionava a natureza da fama em Washington. Douglas tinha vivido e trabalhado na cidade durante mais de vinte anos, mas alguém tentara matá-lo e isso fazia dele uma estrela. A CIA e os serviços secretos britânicos tinham contribuído para a notoriedade repentina do embaixador ao porem a circular uma história sobre a calma de Douglas debaixo de fogo em Hartley Hall, ainda que ele estivesse aconchegado com toda a segurança na cama, em Winfield House, na altura em que o ataque se iniciou. Douglas tinha colaborado de boa vontade na intrincada ruse de guerre[38]. Afinal, retirava um certo prazer adolescente em enganar os barões dos media de Washington.
Os convidados começaram a chegar poucos minutos depois das sete da tarde. Estavam presentes dois velhos amigos de Douglas do Senado e um punhado de congressistas.
A chefe do departamento de Washington da NBC News compareceu, acompanhada pelo marido, que era o chefe de departamento da CNN. Cynthia Martin veio sozinha; Adrian Cárter trouxe a mulher, Christine. Para proteger Michael, que ainda era um membro clandestino da CIA, Cárter e Cynthia disseram que trabalhavam para o Departamento de Estado em matérias relacionadas com a Irlanda do Norte. Cárter quis falar a sós com Michael por um momento e, por isso, deslocaram-se até ao jardim e ficaram junto à piscina.
— Como é que as coisas correram com o Bristol hoje de manhã? — perguntou Cárter.
— Ele pareceu impressionado com o produto — respondeu Michael. — O Beckwith também lá apareceu um bocadinho.
— A sério?
— Disse que estava contente com o resultado da Operação Timbale e que o processo de paz tinha encarrilado outra vez. Tinhas razão, Adrian, ele quer mesmo muito que aquilo aconteça. — Michael hesitou e, a seguir, perguntou: — Então, quer dizer que a minha ligação à Irlanda do Norte terminou oficialmente?
— Quando as delegações abandonarem Washington, vamos passar tudo para a Cynthia e transferir-te de novo para a divisão do Médio Oriente.
— Se há alguma coisa que é constante na CIA, é a mudança — respondeu Michael. — Mas gostava de saber à mesma porque é que a Mónica resolveu baralhar as cartas nesta altura e porque é que quer que eu saia do caso Outubro.
— Para a Mónica, o processo Outubro está fechado. Ela acha que, mesmo que o Outubro continue vivo e a trabalhar, não constitui uma ameaça para cidadãos ou interesses americanos e que, por isso, não entra na esfera de actuação do centro.
— E tu concordas?
— Claro que não e já lhe disse isso mesmo. Mas ela é a directora e, em última análise, é ela que decide quais são os nossos alvos.
— Na tua posição, um homem a sério demitir-se-ia.
— Nem todos têm a flexibilidade financeira para poder assumir posições morais de coragem, Michael.
Elizabeth apareceu junto às portas envidraçadas.
— Vocês os dois importam-se de entrar, por favor? — disse. — Até parece que nunca têm uma oportunidade para conversar.
— Já aparecemos daqui a um minuto — respondeu Michael.
— Só mais outra coisa — disse Adrian depois de Elizabeth se ir embora. — Soube da tua sessãozinha de retratos com o Morton Dunne na OTS no outro dia. Mas que raio se passou?
— Um cirurgião plástico chamado Maurice Leroux foi assassinado em Paris há um par de semanas.
— E?
— Estava a pensar que o Outubro pode ter mudado de cara.
— E depois teria matado o médico que lhe fez isso?
— Passou-me pela cabeça, sim.
— Ouve, Michael... a Mónica retirou-te do caso. Não quero que te armes mais em freelancer. Nada de andar a vasculhar processos, nada de operações privadas. No que te diz respeito, o Outubro está morto.
— Não estás a ameaçar-me, pois não, Adrian?
— Por acaso, até estou.
Delaroche tirou os auscultadores e acendeu um cigarro. Os imensos convidados do jantar tinham-lhe inundado o microfone de repente, de tal forma que a única coisa que ouvia era um zumbido constante, interrompido por pedaços incompreensíveis de conversas e gargalhadas ocasionais.
Desligou o gravador e tirou a Beretta de nove milímetros do estojo de aço inoxidável. Desmontou a pistola e limpou cada uma das peças meticulosamente com um pano macio, enquanto decidia como iria matar o embaixador e Michael Osbourne.
Capítulo 37
WASHINGTON
— Feliz Dia de São Patrício — declarou o presidente James Beckwith, ao subir ao pódio no Jardim das Rosas, na manhã seguinte.
Ao seu lado, tinha o primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern, e o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Robin Cook. Atrás do presidente, encontravam-se os líderes dos partidos nacionalistas e unionistas da região, incluindo Gerry Adams, do Sinn Fein, e David Trimble, do Partido Unionista do Ulster, que naquele momento era efectivamente o primeiro-ministro da Irlanda do Norte.
— Estamos hoje aqui reunidos não em crise mas sim em comemoração — prosseguiu Beckwith. — Comemoramos o legado comum que nos une e iremos renovar o nosso compromisso com uma mudança pacífica na Irlanda do Norte.
Douglas Cannon estava sentado mais à ponta, com um grupo de importantes assessores da Casa Branca e do Departamento de Estado que iriam participar nas conversações.
Juntou-se aos aplausos bem-educados.
— No mês passado, um grupo de bandidos lealistas, a auto-intitulada Brigada para a Libertação do Ulster, tentou assassinar o embaixador americano no Reino Unido, o meu velho amigo e colega, Douglas Cannon — continuou Beckwith. — Tratou-se verdadeiramente do último suspiro para aqueles que querem resolver os problemas da Irlanda do Norte com violência e não com cedências. Se alguém duvidar do nosso compromisso com a paz, peço-lhe que tenha em consideração isto: o embaixador Douglas Cannon está hoje aqui e a Brigada para a Libertação do Ulster não passa de uma má recordação.
Beckwith virou-se, sorriu para Douglas e começou a aplaudir. Gerry Adams, David Trimble, Bertie Ahern e Robin Cook fizeram o mesmo, tal como o resto da multidão ali reunida.
— Agora, se nos dão licença, temos trabalho a fazer — rematou Beckwith.
Virou as costas, afastando-se do pódio, e, com os braços abertos, conduziu os políticos até à Sala Oval, ignorando as perguntas gritadas pelo corpo de imprensa destacado para a Casa Branca.
Quando Douglas voltou para a casa na N Street ao final da tarde, Michael e Elizabeth estavam à espera dele.
— Como é que correu? — perguntou Michael.
— Melhor do que o esperado. Agora que a Brigada para a Libertação do Ulster foi neutralizada, o Gerry Adams acha que o IRA vai pensar seriamente na hipótese de desmobilizar.
— E o que quer dizer "desmobilizar"? — perguntou Elizabeth.
— Quer dizer entregar as armas e desmantelar as células terroristas e a estrutura de comando.
Michael disse:
— A CIA calcula que só o IRA tenha acumuladas centenas de toneladas de metralhadoras e duas toneladas e meia de Semtex. E depois há os grupos terroristas protestantes.
É por isso que é tão importante manter o ímpeto do processo de paz a avançar na direcção certa.
— Os protestantes e os católicos conseguiram fazer progressos assinaláveis num curto período de tempo, mas o processo de paz pode cair por terra muito facilmente.
E se isso acontecer, a violência atingirá níveis inauditos — acrescentou Douglas, olhando para o relógio. — Agora começa o divertimento. A recepção do Sinn Fein no Mayflower, a recepção do Partido Unionista do Ulster no Four Seasons e a recepção dos britânicos na embaixada.
— Mas que raio é isso? — perguntou Elizabeth enquanto troe vam de roupa para as recepções.
— É uma Browning automática de alta potência com um carregador de quinze balas.
Michael enfiou a pistola num coldre de ombro e vestiu o casaco do fato.
— E porque é que vais levar uma arma?
— Porque isso me faz sentir bem.
— O papá vai ter um agente da DSS com ele o tempo todo hoje à noite.
— Nunca se pode ser demasiado cauteloso.
— Há alguma coisa que não estejas a dizer-me?
— Só me sentirei melhor quando o teu pai estiver outra vez em Londres, rodeado por um bando de marines e agentes da Divisão Especial, que são capazes de acertar num assassino no meio dos olhos a uma distância de cem passos.
Alisou a parte da frente do casaco.
— Como é que estou?
— Encantador — respondeu ela, enfiando-se no vestido e virando-se de costas para ele. — Aperta-me o fecho. Estamos atrasados.
No hotel em Embassy Row, Delaroche tirou os auscultadores. Desmontou rapidamente os monitores e os receptores e guardou-os no saco de lona. Enfiou a Beretta de nove milímetros num coldre de ombro e pôs-se à frente do espelho, examinando a sua aparência. Trazia um fato de negócios cinzento de fabrico americano, uma camisa branca e uma gravata às riscas. Preso à orelha direita, estava um fio de plástico transparente do género dos que eram utilizados pelos agentes de segurança no mundo inteiro.
Estudou a sua cara, olhando para os seus olhos, e disse: "Segurança diplomática, minha senhora. Temos uma emergência." Era o sotaque americano monótono do actor das cassetes de inglês que Delaroche tinha estudado enquanto estava no mar. Repetiu as frases mais uma série de vezes, até se sentir completamente à vontade.
Rebecca saiu da casa de banho. Trazia um fato de duas peças feito por medida e meias pretas. Delaroche passou-lhe uma Beretta carregada e dois carregadores extra, que ela enfiou numa mala preta a tiracolo.
Ele tinha deixado o Volvo na Twenty-second Street, logo a seguir à Massachusetts Avenue. Havia uma multa de estacionamento debaixo do limpa-pára-brisas. Delaroche deitou a multa para a sarjeta e pôs-se ao volante.
A limusina parou à frente do Hotel Mayflower, na Connecticut Avenue. Um porteiro de uniforme abriu a porta e Douglas, Michael, Elizabeth e um agente da DSS saíram da limusina. Entraram no hotel e seguiram pelo átrio central decorado até ao grande salão de baile. Gerry Adams avistou Douglas quando este entrou no salão e desembaraçou-se de um emaranhado de americanos de origem irlandesa, fascinados por gente famosa, que lhe desejavam felicidades.
— Obrigado por ter vindo, senhor embaixador — disse Adams no sotaque cerrado de Belfast Ocidental.
Era alto, com barba preta completa e óculos com armações de metal finas. E embora aparentasse ser robusto, sofria os efeitos duradouros de anos de prisão e de uma tentativa de assassínio pela UVF que quase lhe tinha tirado a vida.
— É uma grande honra tê-lo aqui connosco esta noite.
— Obrigado por nos receberem — respondeu Douglas educadamente, apertando a mão a Adams. — Permita-me apresentar-lhe a minha filha, Elizabeth Osbourne, e o marido, Michael Osbourne.
Adams olhou para Michael por breves instantes e apertou-lhe a mão sem entusiasmo. Quando ele e Douglas se puseram a falar por uns momentos da sessão do dia na Casa Branca, Elizabeth e Michael deram alguns passos e afastaram-se para lhes dar privacidade.
A seguir, sem aviso, Gerry Adams pousou a mão no ombro de Michael e disse:
— Importa-se que lhe dê uma palavrinha, senhor Osbourne? Lamento, mas é bastante importante.
Delaroche estacionou na esquina da Prospect Street com a Potomac Street, em Georgetown, e saiu do carro. Rebecca passou para o volante e desceu o vidro. Delaroche inclinou-se e perguntou:
— Alguma questão?
Rebecca abanou a cabeça. Delaroche entregou-lhe um envelope.
— Se alguma coisa correr mal, se me acontecer alguma coisa ou se nos separarmos, vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Virou as costas, afastando-se e entrando numa loja de sandes cheia de estudantes de Georgetown. Pediu um café e comprou um jornal, sentando-se a uma mesa junto à janela.
Um momento depois, viu Rebecca a passar a grande velocidade, seguindo para leste, em direcção à baixa de Washington.
— Por favor, sente-se, senhor Osbourne — disse Gerry Adams.
Tinha levado Michael até uma ampla sala, contígua ao grande salão de baile. O seu par de guarda-costas sempre presente afastou-se para deixar de poder ouvi-los.
Adams serviu duas chávenas de chá.
— Leite, senhor Osbourne?
— Obrigado.
— Tenho uma mensagem do seu amigo Seamus Devlin.
— O Seamus Devlin não é meu amigo — respondeu Michael de forma áspera.
Os guarda-costas olharam de soslaio para a mesa para terem a certeza de que não havia nenhum problema. Gerry Adams fez-lhes sinal com a mão para se irem embora.
— Eu sei o que aconteceu naquela noite em Belfast — disse ele. — E sei porque é que aconteceu. Nós nunca estaríamos na posição em que nos encontramos hoje, à beira de uma paz duradoura na Irlanda do Norte, se não fosse o IRA. É uma força altamente profissional, que não deve ser menosprezada. Tenha isso em conta da próxima vez que o senhor e os seus amigos britânicos tentarem colocar um informador clandestino no nosso seio.
— Pensei que tivesse uma mensagem para mim.
— Tem a ver com aquela cabra que tramou o Eamonn Dillon na Falis Road, a Rebecca Wells.
— O que é que ela tem?
— Foi para Paris depois dos acontecimentos em Hartley Hall. Adams ergueu a chávena de chá, como se estivesse a fazer um brinde, e disse:
— Que bela jogada que aquilo foi, senhor Osbourne. Michael manteve-se calado.
— Ela estava a viver em Montparnasse com um mercenário escocês chamado Roderick Campbell. Segundo o Devlin, ela e o Campbell andavam à procura de um assassino freelancer para terminar o serviço e acabar com o seu sogro.
Michael endireitou-se na cadeira.
— E a fonte é mesmo boa?
— Eu não entrei nesse tipo de pormenores com o Devlin, senhor Osbourne. Mas o senhor já viu o trabalho dele em primeira mão. Não é o tipo de homem que trate das coisas de forma ligeira.
— E onde é que está a Rebecca Wells agora?
— Foi-se embora de Paris de repente, há um par de semanas. O Devlin ainda não conseguiu apanhar-lhe o rasto outra vez.
— E o Roderick Campbell?
— Também se foi... permanentemente, lamento dizê-lo. Foi morto a tiro no seu apartamento, juntamente com uma rapariga — respondeu Adams, divertindo-se claramente por estar a dizer a Michael uma coisa que este não sabia. — Provavelmente, não apareceu nos vossos ecrãs de computador sofisticados do Centro de Contraterrorismo.
— E a Wells e o Campbell chegaram a conseguir contratar algum atirador?
— O Devlin não sabe, mas eu não baixaria já a guarda em relação ao embaixador, se é que me entende. Seria mau para toda a gente envolvida no processo de paz se um atirador ao serviço da Brigada para a Libertação do Ulster conseguisse matar o seu sogro nesta altura — afirmou Adams, pousando a chávena de chá, num sinal de que a reunião estava a chegar ao fim. — O Devlin espera que isto compense algum ressentimento que o senhor possa ter em relação ao Kevin Maguire.
— Pode dizer ao Devlin que se vá foder. Adams sorriu.
— Eu dou-lhe a mensagem.
Rebecca Wells estava sentada ao volante do Volvo, a meio quarteirão da entrada do Mayflower. Ficou a observar o embaixador Cannon e os Osbourne a saírem do hotel, seguidos pelo agente da DSS. Pôs o motor a trabalhar e depois marcou um número no telemóvel.
— Sim.
— Eles estão a sair agora do primeiro ponto de paragem e a seguirem para o segundo.
A ligação foi interrompida.
Rebecca pôs o Volvo em primeira e enfiou-se no meio do trânsito do início da noite, na Connecticut Avenue.
— E quando é que tu e o Gerry se tornaram tão bons amigos? — perguntou Elizabeth.
— Movemo-nos em círculos semelhantes.
— O que é que ele queria?
— Pediu desculpa pelo que me aconteceu em Belfast.
— E tu aceitaste?
— Nem por isso.
— E foi tudo?
— Foi tudo. Douglas disse:
— Muito bem, está na hora de atravessar o fosso religioso. Para o Four Seasons, para tomarmos bebidas com os protestantes.
— Acham que esta gente alguma vez dará recepções em conjunto? — perguntou Elizabeth.
— Se fosse a ti, não contava muito com isso — respondeu Michael.
Noventa minutos mais tarde, Rebecca Wells encontrava-se estacionada numa zona da Massachusetts Avenue revestida de árvores, em Upper Northwest Washington. Do outro lado da rua, estava o amplo complexo da embaixada britânica. Da posição privilegiada em que se encontrava, conseguia ver o pátio de entrada da residência do embaixador.
Os primeiros convidados começavam a ir-se embora.
Rebecca abriu a carta que Delaroche lhe tinha dado e leu-a à meia-luz dos candeeiros de rua. Dobrou a carta e voltou a enfiá-la no bolso. Lembrou-se daquela tarde gelada na praia, em Norfolk, a tarde em que tinha partido para a Escócia para ir buscar Gavin Spencer e as armas. Era difícil imaginar que tinha sido apenas um mês antes, tanta coisa acontecera desde então. Recordou-se da estranha sensação de serenidade que se tinha instalado nela nesse dia, ao caminhar pela praia plana e solitária.
Tinha querido ficar lá para sempre. E agora aquele homem sem passado — aquele assassino contratado que fazia amor com ela como se o corpo dela fosse feito de vidro — estava a oferecer-lhe um refúgio à beira-mar.
Levantou os olhos a tempo de ver Douglas Cannon e os Osbourne a saírem da residência do embaixador britânico. Uma vez mais, marcou o número no telemóvel e esperou pela voz do homem que conhecia apenas como Jean-Paul.
Delaroche interrompeu a ligação com Rebecca Wells e saiu da loja de sandes. Caminhou rapidamente para norte, ao longo da Potomac Street, até chegar à N Street. A casa dos Osbourne ficava a dois quarteirões dali. Passou a andar mais devagar, passeando-se pela rua sossegada, procurando instintivamente sinais de medidas de segurança extra.
Tinha de cronometrar a sua chegada de forma perfeita. O agente da DSS que acompanhava Douglas Cannon iria contactar a equipa dele via rádio, alertando-os em relação à chegada iminente do embaixador. Se não recebesse resposta, iria suspeitar que houvesse algum problema. E era por isso que Delaroche se demorava a avançar pela N Street.
Avistou a equipa de agentes da DSS, sentados num carro estacionado em frente à casa dos Osbourne, com os vidros da frente abertos. Um deles, o que se encontrava ao volante, estava a falar por um rádio portátil. Delaroche partiu do princípio de que estaria a falar com o agente na limusina do embaixador.
Delaroche aproximou-se do carro e parou junto à janela do lado do condutor.
— Peço desculpa — disse ele —, para que lado é que fica a Wis-consin Avenue?
O agente ao volante apontou para leste sem dizer uma palavra.
— Obrigado — disse Delaroche.
A seguir, enfiou a mão por baixo da gabardina, sacou da Beretta com silenciador e atingiu cada um dos agentes com vários tiros no peito. Abriu a porta e empurrou os corpos para baixo. Subiu os vidros automáticos, tirou as chaves da ignição, fechou a porta e trancou-a.
Tudo aquilo tinha demorado menos de trinta segundos. Atirou as chaves do carro para o meio da escuridão e atravessou a rua, em direcção à casa dos Osbourne. Subiu os degraus da frente e tocou à campainha, respirando fundo para acalmar os nervos. Passado um momento, ouviu o som de passos a aproximarem-se da porta.
— Quem está aí?
Era a voz com sotaque inglês de Maggie, a ama.
— Segurança diplomática, minha senhora. Receio que tenhamos uma emergência.
A porta abriu-se e Maggie ficou ali parada, com a desorientação estampada no rosto.
— Que aconteceu?
Delaroche entrou na casa e fechou a porta. Tapou a boca a Maggie com uma mão de ferro, abafando o seu grito, e puxou-lhe a cara para junto da sua. Com a mão que tinha livre, tirou a Beretta de dentro do casaco do fato e encostou-lhe a ponta do silenciador com força à bochecha.
— Eu sei que há crianças nesta casa e não quero fazer-lhes mal — sussurrou no seu inglês com sotaque. — Mas se tu não fizeres exactamente o que eu disser, dou-te um tiro na cara. Estás a perceber?
Maggie assentiu com a cabeça, com os olhos esbugalhados de terror.
— Muito bem, vem comigo lá para cima.
A noite tinha decorrido sem incidentes, tal como Michael esperara, mas à medida que a limusina avançava a alta velocidade pela Massachusetts Avenue, o aviso de Gerry Adams ecoou-lhe nos ouvidos. No caso de Rebecca Wells ter conseguido contratar um assassino, isso constituía um novo e diferente tipo de ameaça à segurança de Douglas.
Um assassino a trabalhar sozinho seria muito mais difícil de identificar e travar do que um membro de uma organização paramilitar conhecida. Michael decidiu dar a notícia a Douglas quando chegassem a casa. As actividades e aparições dele em Londres teriam de ser restringidas até que a ameaça se esfumasse — ou até que Rebecca Wells fosse presa.
A limusina virou para a Wisconsin Avenue e eles seguiram para sul, a caminho de Georgetown. Elizabeth encostou a cabeça ao ombro de Michael e fechou os olhos.
Douglas pousou a mão no antebraço de Michael e disse:
— Sabes, Michael, há uma coisa que eu nunca fiz e que preciso de fazer agora. Nunca te agradeci.
— Do que é que está a falar?
— Nunca te agradeci por me teres salvo a vida. Se não tivesses aceitado o caso, ido até à Irlanda do Norte e arriscado a vida, eu era bem capaz de estar neste momento morto. Evidentemente, nunca tinha tido uma oportunidade para te ver a fazer o teu trabalho. És um agente secreto soberbo.
— Obrigado, Douglas. Vindo de um velho liberal antiespiões, isso significa muito para mim.
— E vais continuar na CIA, agora que a questão da Irlanda do Norte está terminada?
— Se a minha mulher prometer não se divorciar de mim — respondeu Michael. — A Mónica Tyler quer que eu me ocupe novamente do caso Espada de Gaza. A CIA anda a apanhar alguns indícios de que o grupo pode estar a planear novos ataques.
— Que tipo de indícios?
— Movimentações de agentes activos conhecidos, intercepções de comunicações. Esse tipo de coisas.
— Alguma coisa na Grã-Bretanha?
— O Reino Unido é sempre uma possibilidade. Eles gostam de actuar lá.
— Eu lembro-me do ataque em Heathrow.
— Eu também — disse Michael.
Douglas recostou-se e fechou os olhos no momento em que a limusina saiu da Wisconsin Avenue e começou a atravessar as sossegadas ruas residenciais de Georgetown.
— Quando é que isto vai acabar? — perguntou ele.
— Quando é que vai acabar o quê?
— O terrorismo. O roubo de vidas inocentes para a tomada de posições políticas. Quando é que isso vai acabar?
— Quando já não houver mais pessoas no mundo que se sintam suficientemente oprimidas para pegarem numa pistola ou numa bomba. Quando já não houver mais fanáticos religiosos ou étnicos. Quando já não houver mais maníacos que se divirtam a derramar sangue.
— Então, suponho que a resposta à minha pergunta seja nunca. Nunca vai acabar.
— O senhor é que é o historiador. No século i, os zelotes serviram-se do terrorismo para combater a ocupação romana da Terra Prometida. No século XII, um grupo de muçulmanos xiitas chamado os Assassinos serviu-se do terrorismo contra os líderes sunitas do Irão. Não se pode propriamente dizer que seja um fenómeno novo.
— E agora chegou à América: o World Trade Center, Oklahoma City, o Olympic Park.
— É barato, relativamente fácil e só é preciso um punhado de pessoas dedicadas. Dois homens chamados Timothy McVeigh e Terry Nichols[39] provaram isso.
— Continua a ser incompreensível para mim — respondeu Douglas. — Cento e sessenta e oito pessoas mortas num abrir e fechar de olhos.
— Muito bem, vocês os dois — interrompeu Elizabeth, abrindo os olhos quando a limusina travou e parou à frente da casa. — Já chega dessa conversa. Estão a deprimir-me.
Delaroche estava no segundo andar da casa, junto a uma janela com vista para a N Street, quando ouviu o barulho de um carro. Afastou a cortina com o silenciador da Beretta e espreitou para a rua. Era Cannon e os Osbourne que estavam a chegar a casa.
Largou a cortina e atravessou o corredor até às escadas, olhando de relance para o quarto principal ao passar pela porta. A ama estava deitada no chão, com as mãos e os pés amarrados e a boca tapada com fita adesiva.
Delaroche desceu as escadas rapidamente e ficou parado no átrio central às escuras. Iria ser tão fácil, pensou — como um jogo de tiro ao alvo numa feira popular — e depois estaria terminado. Tudo aquilo.
Capítulo 38
WASHINGTON
Rebecca Wells virou para a N Street e seguiu a limusina ao longo de dois quarteirões até ela parar. Não havia lugar em frente à casa dos Osbourne, pelo que o motorista estacionou pura e simplesmente no meio da rua e ligou os quatro piscas. Rebecca enfiou a mão na mala a tiracolo e tirou a Beretta de nove milímetros com silenciador.
As ordens de Jean-Paul ecoaram-lhe pela cabeça. Eu trato dos dois homens que estão no carro e depois entro na casa, tinha-lhe dito na noite anterior, a falar baixinho no quarto de hotel de ambos, com a televisão aos altos berros. Espera até que eles saiam todos da limusina. Matas o último homem da DSS e eu trato do embaixador e do Michael Osbourne.
Interrogou-se se teria ou não a força para o fazer. E depois pensou em Gavin Spencer e em Kyle Blake, e em todos os homens que tinham morrido em Hartley Hall por Michael Osbourne e o sogro a terem enganado. Verificou o mecanismo do gatilho da Beretta e enfiou a primeira bala na câmara.
Uma das portas da limusina abriu-se e o agente da DSS saiu do carro. Deu a volta à limusina e abriu a porta de trás que dava para a casa dos Osbourne. Michael Osbourne foi o primeiro a sair. Deu uma vista de olhos à rua, fixando-se no Volvo por um instante, antes de avançar. O embaixador saiu da limusina, seguido por Elizabeth Osbourne.
Rebecca abriu a porta do Volvo.
Michael virou-se para o homem da DSS e perguntou:
— Onde é que estão os outros agentes?
O agente da DSS levou a mão à boca e murmurou umas quantas palavras. Quando não recebeu resposta, gritou:
— Voltem para dentro do carro! Já!
Foi então que Rebecca Wells saiu do Volvo. Levantou-se e, com os braços apoiados no tejadilho do carro, começou a disparar contra o agente da DSS — um tiro a seguir ao outro, tal como Jean-Paul lhe tinha dito.
Michael não ouviu os tiros, apenas o vidro da janela de trás da limusina a estilhaçar-se e as balas de nove milímetros a perfurarem a bagageira com um baque. Em vez de obedecer às instruções do agente e de entrarem no carro, Michael, Elizabeth e Douglas tinham-se atirado instintivamente para o chão da N Street.
Michael suspeitara que pudesse haver alguma coisa de errado em relação à mulher na carrinha Volvo, mas tinha demorado demasiado tempo até colocar a hipótese de poder ser de facto Rebecca Wells. Naquele momento, debruçado sobre Elizabeth e Douglas, os últimos segundos de vida do agente da DSS, que agora se encontrava morto, passaram-lhe a correr pela mente. O agente tinha tentado comunicar com os outros homens mas não tinha conseguido. E isso acontecera porque alguém já os tinha matado, pensou Michael.
A seguir, lembrou-se das informações que Gerry Adams lhe tinha dado nessa mesma noite. Rebecca Wells andara à procura de um assassino profissional para matar Douglas.
O seu assassino contratado estava provavelmente algures perto dali.
Michael sacou da Browning automática. O motorista continuava ao volante da limusina, agachado por baixo do banco para se proteger. Michael agarrou em Elizabeth e Douglas e gritou:
— Enfiem-se no carro!
Elizabeth rastejou até ao banco de trás. Um dos disparos atingiu o homem da DSS na cabeça, fazendo uma torrente de sangue e tecido cerebral atravessar a janela traseira estilhaçada. Elizabeth olhou para Michael com uma expressão de impotência e tentou limpar o sangue que tinha na cara.
Foi então que os olhos dela se esbugalharam repentinamente e gritou:
— Michael! Atrás de ti!
Michael virou-se e viu uma figura, parada no cimo dos degraus encurvados que davam para a entrada da casa. O homem levantou o braço direito, balançando-o, e disparou com uma só mão duas vezes, sem que a arma com silenciador emitisse qualquer som, apenas uma língua de fogo saída da ponta do cano da pistola.
Mesmo com a luz ténue de Georgetown, Michael sabia que já tinha visto aquela maneira muito característica de manejar uma arma.
O homem que se encontrava nos degraus da frente da sua casa era Outubro.
O primeiro tiro fez ricochete no tejadilho do carro e o segundo acertou nas costas de Douglas quando este se atirava para dentro do carro, caindo em cima de Elizabeth, gemendo de dor.
Michael apontou a arma a Outubro e disparou vários tiros, forçando-o a recuar para dentro de casa. Na rua sossegada, a Browning de alta potência soava a artilharia.
— Avance! Avance! — gritou ao motorista. — Tire-os daqui para fora!
O motorista sentou-se no banco e ligou o motor, acelerando a fundo.
A última coisa que Michael viu foi Elizabeth, a gritar pela janela traseira estilhaçada.
— As crianças, Michael! — berrou. — As crianças!
Michael mergulhou entre dois carros estacionados, num sítio em que se encontrava protegido tanto de Rebecca Wells como de Outubro, pelo menos por alguns segundos.
Espreitou para cima, na direcção da entrada da casa, e viu Outubro a sair. Michael apontou a Browning e disparou vários tiros. Outubro voltou a refugiar-se no interior.
Foi então que os vidros das janelas dos carros à sua volta começaram a estilhaçar-se. A mulher estava a disparar contra ele.
Tinham-se acendido luzes por toda a rua. Michael virou-se e viu Rebecca Wells, de pé atrás da porta aberta da carrinha Volvo, a disparar sobre o tejadilho. Rodopiou e pensou em retribuir o fogo. Mas apercebeu-se de que, se falhasse, uma bala perdida poderia entrar numa das casas em redor e matar uma pessoa inocente que tivesse saído à rua para ver o que se passava.
Apontou para a própria casa. Pensou: "Meu Deus, faz com que as crianças estejam lá em cima, no quarto delas!" E, a seguir, disparou contra Outubro até ficar sem munições na arma.
Michael ouviu a primeira sirene no momento em que estava a mudar de carregador. Talvez tivesse sido o tiroteio, pensou. Ou talvez o homem da DSS tivesse conseguido enviar um alerta antes de ser morto. Fosse qual fosse o caso, Michael conseguia ouvir agora o uivar de várias sirenes que se aproximavam, progressivamente mais forte a cada segundo que passava.
Outubro surgiu à entrada da casa, acenando a Rebecca.
— Vai! — gritou. — Vai-te embora daqui!
O primeiro carro da polícia apareceu na N Street.
Outubro disparou dois tiros contra o carro sem fazer pontaria.
— Agora, Rebecca! Sai daqui!
Michael enfiou a primeira bala do seu novo carregador na câmara e disparou quatro tiros contra Outubro.
Quando isso aconteceu, Rebecca Wells entrou no Volvo e ligou o motor, acelerando a fundo e passando a toda a velocidade pelo local onde Michael se tinha abrigado.
Outubro avançou para a entrada uma última vez e disparou vários tiros na direcção de Michael, dando depois meia-volta e fugindo para dentro da casa.
Michael levantou-se e foi atrás dele, subindo os degraus pesadamente, com a Browning nas mãos esticadas. Quando chegou à entrada, espreitou pelo átrio central às escuras e viu Outubro a erguer uma cadeira e a lançá-la pelas portas envidraçadas.
Outubro virou-se uma última vez e levantou a arma. Michael não ouviu nada, mas viu a boca do cano a expelir fogo. Encostou-se à parte exterior da casa; do outro lado da parede, conseguia sentir as balas a baterem com toda a força no estuque. Quando os disparos pararam, avançou para a entrada e disparou mais três tiros ao mesmo tempo que Outubro corria pelo jardim e trepava a vedação.
Michael correu para o andar de cima, em direcção ao quarto das crianças, e deu com elas a chorarem nos berços, ilesas.
— Maggie!
Ouviu ruídos surdos vindos do quarto principal, bem como gritos abafados. Correu pelo corredor e acendeu as luzes do quarto. Maggie estava deitada no chão, amarrada e amordaçada.
— Só havia um, Maggie? Só um atirador? Ela confirmou com a cabeça.
— Eu volto já.
Correu pelas escadas abaixo precisamente na altura em que um agente da polícia metropolitana entrava na casa, de arma em riste. Apontou a arma na direcção de Michael e gritou:
— Pare imediatamente e largue a arma!
— O meu nome é Michael Osbourne e esta é a minha casa.
— Eu não quero saber quem você é, foda-se! Largue mas é a arma! Já!
— Porra, sou o genro do embaixador Cannon e trabalho para a CIA! Baixe a merda da arma!
O polícia manteve a arma apontada à cabeça de Michael.
— O meu sogro foi atingido — disse Michael. — Os dois atiradores fugiram: um homem, a pé, e uma mulher, numa carrinha Volvo preta. Os meus filhos estão lá em cima com a ama. Vá ajudá-la. Eu volto já.
— Eh, volte aqui! — gritou o polícia quando Michael desatou a correr pelo átrio central e desapareceu ao passar pelas portas envidraçadas estilhaçadas.
Delaroche não tinha vindo até Washington para se envolver num tiroteio com Michael Osbourne. Qualquer um podia ser atingido quando havia balas a voar por um espaço pequeno e Delaroche não estava disposto a trocar a sua vida pela de Osbourne. Além disso, tinha atingido o alvo principal, o embaixador Cannon, com um bom tiro nas costas. Com um bocadinho de sorte, o ferimento iria revelar-se fatal. Ainda assim, sentia-se zangado por não ter sido capaz de matar Osbourne mais uma vez.
Despiu a gabardina castanho-clara enquanto corria pela viela. Quando chegou à Thirty-fourth Street, atravessou-se imediatamente no caminho de um carro que avançava pela rua, um Saab cinzento-claro com um estudante universitário ao volante. Delaroche levantou a Beretta e apontou-a ao pára-brisas.
— Sai do carro, caralho!
O estudante saiu com as mãos no ar e afastou-se.
— Leva-o, cabrão. É teu.
— Corre — disse Delaroche, agitando a Beretta, e o estudante começou a correr.
Delaroche pôs-se ao volante. O estudante universitário gritou:
— Vai-te foder, minha besta de merda!
Delaroche arrancou. Sabia que tinha de sair de Georgetown depressa. Seguiu a grande velocidade pela Thirty-fourth Street, em direcção à M Street. Se conseguisse atravessar a Francis Scott Key Bridge e passar para Arlington, as suas hipóteses de escapar aumentariam exponencialmente. Dali, poderia enfiar-se na George Washington Memorial Parkway, na 1-395, ou na 1-66, e pôr-se a quilómetros de Washington numa questão de minutos.
Na M Street, o semáforo passou de verde para vermelho quando Delaroche se aproximava. Um sinal avisava que era proibido virar À direita com o sinal vermelho. Pensou em passar à mesma com o sinal vermelho, mas manter a calma durante as fugas tinha-lhe sido proveitoso no passado e, por isso, resolveu não agir de forma precipitada naquele momento.
Pisou o travão a fundo até parar.
Olhou para o relógio de pulso e contou os segundos.
Quando Michael Osbourne saltou a vedação e foi dar à viela, ouviu um homem a gritar obscenidades. Uma fracção de segundo depois, ouviu o som de pneus a chiarem e o motor de um pequeno carro a trabalhar. Pelo barulho, calculou que o carro estivesse a dirigir-se para a M Street. E também calculou que era Outubro a tentar escapar.
Correu pela Thirty-third Street até à M Street, virou à direita e continuou a correr.
Delaroche avistou Osbourne a correr pela M Street com a arma na mão, pondo em fuga os assustados peões. Virou-se lentamente e olhou em frente, aguardando que o sinal ficasse verde.
A Beretta estava pousada no banco do passageiro. Delaroche apertou a coronha com a mão direita e pôs o dedo no gatilho. Pensou: "Afinal de contas, talvez até tenha oportunidade de cumprir os termos do contrato."
Osbourne chegou ao cruzamento. Ficou parado na passadeira, mesmo à frente do Saab, com a arma na mão, a olhar fixamente pela Thirty-fourth Street acima. Estava a respirar com dificuldade, com os olhos a moverem-se rapidamente para um lado e para o outro.
Delaroche levantou a Beretta devagar e pousou-a no colo. Pensou em disparar contra Osbourne através do pára-brisas mas resolveu não o fazer. Mesmo que conseguisse acertar, ficaria com um carro danificado para a sua fuga. Esticou a mão esquerda e carregou num botão no apoio de braço, fazendo com que o vidro da sua janela descesse no momento em que o sinal ficou verde.
Vários carros tinham parado atrás de si e os condutores começaram a buzinar, sem se aperceberem de que havia um homem com uma arma parado no meio do cruzamento.
Delaroche não se mexeu, à espera que Osbourne fizesse alguma coisa.
Michael ficou parado no cruzamento, com o coração aos saltos, ignorando a cacofonia de buzinas. Inspeccionou as caras que se encontravam dentro de cada carro: um homem com quarenta e tal anos, de fato e gravata, num Saab cinzento-claro, um par de estudantes ricos num BMW vermelho, dois aristocratas de Georgetown num espectacular Mercedes a diesel e um moço de entregas da Pizza Hut.
Estava toda a gente a buzinar menos o homem do Saab. Michael olhou para ele com atenção. Era bastante feio: bochechas pesadas, um queixo rombo, um nariz largo e achatado. Michael já tinha visto aquela cara algures, mas não conseguia perceber onde. Olhou fixamente para ele enquanto os rostos do seu passado lhe surgiam na cabeça, um por um, como imagens num ecrã, algumas nítidas e definidas, outras desfocadas e cheias de riscos.
Foi então que percebeu onde já tinha visto aquele homem — no ecrã do computador de Morton Dunne, na OTS.
Michael apontou a Browning à cara de Outubro.
— Sai do carro! Já!
Capítulo 50
WASHINGTON
O amplo cruzamento no início da Key Bridge é um dos mais congestionados e caóticos em toda a Washington. Os carros que vêm da imponente ponte, da M Street e da Whitehurst Freeway convergem todos no mesmo ponto. Durante as horas de ponta, de manhã e à tarde, o cruzamento fica entupido de trânsito. A noite, fica cheio de carros que afluem em catadupa para os restaurantes e clubes nocturnos de Georgetown. E, por cima de tudo isso, encontram-se os degraus de pedra pretos tornados célebres por O Exorcista — tristes, cobertos de graffiti e a tresandarem a urina por causa dos estudantes de Georgetown embriagados que acham que urinar ali é um ritual de passagem.
No entanto, nada disso passou pela cabeça de Delaroche enquanto se encontrava sentado ao volante do Saab, a olhar fixamente para o cano da Brouming automática de Michael Osbourne. Quando este o mandou sair do carro, Delaroche carregou a fundo no acelerador e inclinou-se para baixo.
Michael disparou vários tiros no momento em que o carro avançou de rompante.
Desviou-se do caminho, atirando-se para o chão, com o Saab a deslocar-se para o cruzamento com grande rapidez. Delaroche sentou-se direito, readquiriu o controlo da viatura e avançou a toda a velocidade, a caminho da entrada da Key Bridge.
Michael desviou-se, rebolando, do carro que vinha na sua direcção e levantou-se, apoiado num joelho. Fez pontaria para a traseira do Saab enquanto este se afastava velozmente, abstraindo-se do buzinar ensurdecedor dos carros.
Sobravam-lhe oito balas na Browning e nenhum carregador extra.
Disparou todos os oito tiros antes que Delaroche pudesse virar para a ponte.
Sete atravessaram a bagageira e alojaram-se no banco de trás.
O oitavo acertou no depósito de gasolina e o Saab explodiu.
Delaroche ouviu a explosão e sentiu instantaneamente o calor da gasolina a incendiar-se. Os carros travaram a fundo à sua volta. Um rapaz com uma camisola dos Redskins correu para ajudar Delaroche. Delaroche apontou-lhe a Beretta à cabeça e o rapaz da camisola fugiu na direcção do Francis Scott Key Park.
Delaroche saltou para fora do carro e viu Michael Osbourne a correr em direcção a si.
Levantou a Beretta e disparou três vezes.
Michael Osbourne atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um carro estacionado.
Delaroche começou a correr para a Key Bridge, mas um carro, aparentemente sem consciência do veículo em chamas no meio do cruzamento, avançou na sua direcção a grande velocidade. Delaroche saltou mesmo antes de ser atingido e rebolou pelo pára-brisas.
Largou a Beretta e esta foi cair com estrépito no meio dos carros que se aproximavam.
Olhou para cima e viu Michael Osbourne a correr para si. Levantou-se e tentou correr, mas o tornozelo direito cedeu e ele caiu desamparado no asfalto.
Conseguiu erguer-se com grande custo e obrigou-se a avançar. O tornozelo doía-lhe tanto que parecia ter vidro partido por baixo da pele. Conseguiu chegar ao passeio da Key Bridge.
Um homem estava lá especado, a observar a cena, segurando o guiador de uma bicicleta de montanha de má qualidade.
Delaroche deu um murro na garganta do homem e ficou-lhe com a bicicleta.
Subiu para o selim e tentou pedalar, mas quando fez força com a perna direita a dor fê-lo gritar. Pedalou com uma perna, a perna esquerda, enquanto a direita se limitava a subir e descer com a rotação dos pedais.
Virou-se e olhou por cima do ombro. Michael Osbourne ia a correr na sua direcção. Delaroche pedalou mais depressa, mas, entre o tornozelo partido e a fraca qualidade da bicicleta, Osbourne estava a ganhar-lhe terreno. Delaroche sentiu-se completamente indefeso. Não tinha nenhuma arma e apenas uma bicicleta manhosa como transporte.
E, para piorar as coisas, estava magoado.
Mais do que qualquer outra coisa, sentiu uma raiva súbita — raiva do pai e de Vladimir, e de todos os outros do KGB que o tinham condenado a uma vida de assassínios.
Raiva de si próprio, por ter permitido que o Director o forçasse a aceitar aquela missão. Raiva de si próprio, por não ter sido capaz de matar Michael Osbourne uma vez mais. Pôs-se a pensar como teria Osbourne percebido que era ele que se encontrava ao volante do Saab. Teria sido atraiçoado por Maurice Leroux antes de o matar naquela noite em Paris? Teria sido atraiçoado pelo Director? Ou teria subestimado uma vez mais a inteligência e o engenho do homem da CIA, o homem que tinha jurado destruí-lo? Que tudo fosse acabar assim — com Delaroche numa bicicleta a ranger e Osbourne a persegui-lo a pé — era quase risível. Apercebeu-se de que, mesmo que fosse capaz de escapar a Osbourne naquele momento, as suas hipóteses de conseguir ir muito longe iam diminuindo a cada minuto.
Virou-se e olhou uma vez mais por cima do ombro, vendo que Osbourne tinha ganho mais terreno. Forçou-se a pedalar com ambas as pernas, ignorando a dor no tornozelo, enquanto decidia aquilo que estava disposto a fazer para sair daquela ponte vivo.
Michael voltou a enfiar a Browning no coldre de ombro e correu a toda a velocidade pela ponte fora, impulsionando os braços para trás e para a frente com o máximo de força. Por um instante, foi transportado de regresso à final da milha urbana do estado da Virgínia. Michael tinha feito uma jogada táctica brilhante durante a última volta, colocando-se numa posição perfeita para ultrapassar o líder da corrida nos últimos cem metros, mas quando chegaram à recta final não tivera a coragem para aguentar a dor necessária para vencer. Tinha ficado literalmente hipnotizado com as costas do outro rapaz — o esvoaçar da camisola ao vento, os músculos robustos dos ombros —, à medida que este se afastava cada vez mais até cortar a meta. E recordou-se do pai, tão furioso por ele ter perdido que nem sequer o tinha querido consolar a seguir à corrida.
Já só estava a dez metros de Outubro.
Tinha corrido praticamente um quilómetro e meio desde que saíra disparado de casa. Sentia as pernas pesadas e os músculos retesados do sprint prolongado. Os braços ardiam-lhe e a garganta sabia a ferrugem e a sangue por abrir a boca para tentar respirar. Andava a perseguir Outubro há anos, socorrendo-se de todos os recursos e serviços técnicos que a CIA tinha para oferecer, mas tudo se tinha resumido àquilo, uma corrida desenfreada pela Key Bridge. Desta vez, não iria ter medo da dor.
Desta vez, não iria ficar hipnotizado com as costas do adversário, a afastar-se cada vez mais. Inclinou a cabeça para trás e rugiu como um animal ferido, esbracejando com o máximo de força no ar, como se estivesse a tentar empurrar-se para a frente.
Outubro já se encontrava apenas a um ou dois metros de distância.
Michael deu um salto e atirou-o ao chão com toda a força.
Outubro aterrou de costas, com Michael em cima dele, sentado no seu abdómen.
Deu-lhe dois murros na cara, com o segundo soco a deixar uma ferida bem no alto da maçã do rosto de Delaroche, e depois agarrou-se à garganta dele com as duas mãos e começou a estrangulá-lo.
Tinha perdido toda a noção de razão e sanidade. Estava a apertar o pescoço a Delaroche, esmagando-lhe a traqueia, gritando com ele selvaticamente, e, no entanto, uma estranha calma tinha invadido o rosto do assassino. Os olhos azuis percorriam rapidamente Michael e um meio sorriso vago despontou-lhe nos lábios.
Michael percebeu que Outubro estava a decidir qual seria a melhor maneira de o matar. Apertou com mais força.
Outubro esticou-se repentinamente e agarrou o cabelo de Michael com a mão esquerda. Puxou a cabeça de Michael para si e enfiou-lhe o polegar da mão direita na órbita do olho.
Michael gritou de dor e afrouxou a pressão no pescoço de Outubro. O assassino transformou as mãos em machados e atingiu-o duas vezes seguidas nas têmporas.
Michael quase perdeu os sentidos. Abanou a cabeça, tentando aclarar a visão, e depois apercebeu-se de que estava deitado de costas e que o assassino lhe tinha escapado.
Esforçou-se para se levantar. Outubro já estava em pé, com os pés afastados, as mãos junto à cara e os olhos fixados nos de Michael. Rodou e acertou-lhe com um violento pontapé rotativo na cabeça, atingindo-a de lado.
Michael cambaleou do passeio até à estrada na ponte, atravessando-se no caminho de um autocarro que seguia a alta velocidade. O motorista buzinou com toda a força.
Michael afastou-se com um pulo, caindo directamente nos braços de Outubro.
O assassino agachou-se e, servindo-se do ímpeto de Michael, atirou-o por cima do parapeito da ponte.
Delaroche esperou pelo som do corpo de Michael a bater na água a uns cem metros de distância, mas não se ouviu nada. Deu um passo em frente e olhou para baixo. Ao cair, Michael tinha conseguido agarrar-se à parte de baixo do parapeito com uma mão e encontrava-se naquele momento a balançar sobre a água. Olhou para cima, com sangue na boca, e fitou Delaroche.
O mais fácil de fazer seria pisar-lhe a mão até ele ter de largar o parapeito, mas, por alguma razão, a ideia parecia repugnante a Delaroche. Tinha matado sempre silenciosa e rapidamente, surgindo do nada e desaparecendo outra vez. Matar um homem daquela maneira parecia-lhe, de alguma forma, bárbaro.
Inclinou-se e disse:
— Deixa-me ir e eu ajudo-te.
— Vai-te foder — respondeu-lhe Michael, com um esgar de dor.
— Isso não é lá muito sensato da tua parte — lançou Delaroche, esticando-se pelo parapeito e agarrando no pulso esquerdo de Michael. — Estica-te e agarra-te à minha mão.
A mão de Michael estava a começar a escorregar da ponte.
— Tu acabaste de matar o meu sogro — respondeu. — Tentaste matar-me a mim e à minha mulher. Mataste a Sarah.
— Eu não os matei, Michael. Foram outras pessoas que os mataram. Eu fui só a arma. Sou tão responsável pelas mortes deles como tu és pela morte da Astrid Vogel.
— Quem é que te contratou? — perguntou Michael asperamente.
— Não interessa.
— Interessa-me a mim! Quem é que te contratou?
Mas a mão de Michael começava a soltar-se cada vez mais.
Delaroche agarrou-lhe o braço esquerdo com as duas mãos.
Michael enfiou a mão direita dentro do casaco, sacou a Bronming e apontou-a à cabeça de Delaroche. Delaroche continuou a segurar a mão de Michael, olhando fixamente para a pistola. A seguir, sorriu e perguntou:
— Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo? Michael conhecia a parábola; qualquer pessoa que já tivesse vivido ou trabalhado no Médio Oriente conhecia-a. Uma rã e um escorpião encontram-se numa das margens do Nilo e o escorpião pede à rã para o transportar até à outra margem.
A rã recusa-se, pois tem medo que o escorpião lhe dê uma ferroada. O escorpião assegura à rã que não lhe dará uma ferroada; fazê-lo seria uma tolice, já que assim ambos se afogariam. A rã reconhece a lógica dessa afirmação e aceita levar o escorpião até à outra margem. Quando chegam a meio do rio, o escorpião dá uma ferroada à rã. "Mas agora vamos os dois afogar-nos", grita a rã, com o corpo a ficar dormente devido ao veneno do escorpião. "Porque é que fizeste isso?" O escorpião sorri e responde: "Porque isto é o Médio Oriente."
— Eu conheço a história — respondeu Michael.
— Nós andamos os dois embrenhados neste conflito há demasiados anos. Talvez possamos ajudar-nos um ao outro. Afinal de contas, a vingança é para os selvagens. Sei que estiveste há pouco tempo na Irlanda do Norte. Vê só o que é que a vingança fez por esse sítio.
— O que é que tu queres?
— Digo-te aquilo que tu mais queres saber: quem é que me contratou para matar o Douglas Cannon, quem é que me contratou para matar os conspiradores do caso da TransAtlantic, quem é que me contratou para te matar a ti por saberes demasiado. — Fez uma pausa. — E também te digo quem é a pessoa dentro da tua organização que está envolvida com essa gente. Em troca, tu forneces-me protecção e permites que eu tenha acesso às minhas contas bancárias.
— Eu não tenho a autoridade para fazer um acordo desses.
— Talvez não a autoridade, mas tens a capacidade. Michael ficou calado.
Delaroche perguntou:
— Não queres morrer sem saber a verdade, pois não, Michael?
— Vai-te foder!
— Temos um acordo?
— E como é que tu sabes que eu não te prendo assim que me puxares para cima?
— Porque, infelizmente, tu és um homem honrado, o que te torna estranhamente inadequado para uma actividade destas.
Delaroche sacudiu Michael e repetiu:
— Temos um acordo?
— Temos um acordo, meu grandessíssimo cabrão.
— Então, pronto. Deita a pistola para o rio e agarra a minha mão antes que faças com que morramos os dois.
Capítulo 40
WASHINGTON
AEROPORTO INTERNACIONAL DE DULLES
— A bala partiu várias costelas do embaixador Cannon e fez com que o pulmão esquerdo parasse de funcionar — disse o médico do George Washington University Hospital, um cirurgião de aspecto absurdamente jovem chamado Carlisle. — Mas, a não ser que sofra quaisquer complicações graves, penso que vai ficar bom.
— Posso vê-lo? — perguntou Elizabeth. Carlisle abanou a cabeça.
— Ele agora está no recobro e, sinceramente, não está com grande aspecto. Porque é que não fica aqui e tenta pôr-se o mais confortável possível? Nós deixamo-la vê-lo assim que ele acordar.
O médico foi-se embora. Elizabeth tentou sentar-se, mas, passados poucos minutos, já se encontrava outra vez a percorrer de um lado para o outro a pequena sala de espera privada. Dois agentes da polícia metropolitana estavam de guarda do lado de fora da sala. Ela trazia um conjunto azul de roupa de bloco operatório, pois tinha ficado com o vestido manchado com o sangue do pai e do agente da DSS. Maggie e as crianças estavam numa sala à parte. Maggie era formidável, pensou Elizabeth. Tinha sido ameaçada por um assassino e amarrada com fita adesiva, mas recusara-se a deixar que as enfermeiras tomassem conta de Liza e Jake. Agora, Elizabeth precisava apenas de uma coisa. Precisava de ouvir a voz do marido.
Tinha passado mais de uma hora desde a arrepiante fuga de Elizabeth da N Street. A polícia informara-a do que sabia. Quando as primeiras viaturas chegaram ao local, os terroristas tinham fugido e Mi-chael estava vivo. Depois, desapareceu pelo jardim das traseiras e ninguém o tinha visto desde então. Dois minutos mais tarde, ocorreu um tiroteio na Key Bridge, do lado de Georgetown, e um carro explodiu. O carro, um Saab castanho-claro, fora roubado momentos antes por um homem com uma pistola com silenciador. E também tinha havido relatos de dois homens a lutarem na ponte. Um homem pendurado na ponte, a balançar-se sobre a água... Elizabeth fechou os olhos e estremeceu. Pensou: "Michael, se estás vivo, diz-me, por favor."
Eram onze da noite. Ligou a televisão e fez apping pelos vários canais. A história estava por todo o lado — nas estações televisivas locais e em todos os canais de informação por cabo. Ninguém tinha qualquer notícia sobre Michael. Ela enfiou a mão na mala e tirou um cigarro, acendendo-o e fumando-o enquanto andava de um lado para o outro.
Uma enfermeira apareceu e espetou a cabeça pela porta.
— Peço desculpa, minha senhora, mas não se pode fumar aqui dentro.
Elizabeth procurou um sítio para deitar o cigarro fora.
— Deixe estar que eu trato disso, senhora Osbourne — disse a enfermeira suavemente. — Precisa que lhe traga alguma coisa?
Elizabeth abanou a cabeça.
No momento em que a enfermeira saiu da sala, o seu telemóvel tocou.
Pegou no telemóvel que tinha dentro da mala e atendeu:
— Sim?
— Sou eu, Elizabeht. Não digas nada, ouve só.
— Michael — sussurrou ela.
— Estou óptimo — disse ele. — Não fui ferido.
— Graças a Deus — desabafou ela.
— Como é que está o Douglas?
— Já saiu do bloco operatório. O médico acha que ele vai ficar bom.
— E onde estão as crianças?
— Estão aqui no hospital — respondeu Elizabeth. — Quando é que eu te vou ver?
— Talvez amanhã. Tenho uma coisa que preciso de fazer primeiro. Amo-te, Elizabeth.
— Michael, onde é que estás? — perguntou ela, mas a ligação já tinha sido interrompida.
Rebecca Wells deixou o Volvo no parque de estacionamento de longa duração do Aeroporto de Dulles e apanhou um autocarro de ligação até ao terminal. Largou as chaves num caixote do lixo e entrou numa casa de banho. Mudou de roupa num dos compartimentos, trocando o fato de duas peças por calças de ganga ruças, uma camisola de lã e botas de cowboy de camurça. Para terminar, prendeu o cabelo e colocou uma peruca loura. Olhou-se ao espelho; a transformação tinha demorado menos de cinco minutos.
Agora, era Sally Burke, de Los Angeles, com um passaporte e uma carta de condução da Califórnia para comprová-lo.
Percorreu o terminal até ao balcão da Air México e fez o check-in para o último voo da noite para a Cidade do México. As setenta e duas horas seguintes iriam ser difíceis. Do México, atravessaria depois a América Central e do Sul, trocando de passaporte e de identidade a cada dia. A seguir, embarcaria num avião em Buenos Aires e regressaria à Europa.
Sentou-se na sala de espera junto à porta de embarque e aguardou que chamassem os passageiros para o voo. Tentou fechar os olhos, mas, de cada vez que o fazia, via a cabeça do agente da DSS a explodir num jorro de sangue.
O CNN Airport Channel estava a passar um serviço noticioso sobre a tentativa de assassínio.
A Brigada para a Libertação do Ulster acaba de reivindicar a responsabilidade pela tentativa de assassínio do embaixador Douglas Cannon. Os dois agressores, um homem e uma mulher, ainda estão a monte. Os médicos do George Washington University Hospital, em Washington, dizem que Cannon se encontra em estado crítico, mas que os ferimentos sofridos não põem em risco a sua vida...
Rebecca desviou o olhar. Pensou: "Onde raio é que tu estás, Jean-Paul" Tirou do envelope a carta que ele lhe tinha dado quatro horas antes' e leu-a uma vez mais.
Vai ter a este sítio. Irei depois buscar-te, se conseguir.
Começaram a chamar os passageiros para o voo. Ela atirou a carta para um caixote de lixo e dirigiu-se para a porta de embarque.
Capítulo 41
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
— Tens nome?
— Eu utilizo muito nomes, mas chamei-me Jean-Paul Delaroche mais tempo do que todos os outros e, por isso, penso em mim como sendo ele.
— Então, devo chamar-te Delaroche?
— Se quiseres — respondeu Delaroche, franzindo os lábios de uma forma muito francesa.
Apesar da hora tardia, continuava a haver bastante trânsito na Capital Beltway, os resquícios da eterna confusão de Washington ao anoitecer. Michael virou para a Interstate 95 e seguiu para norte, na direcção de Baltimore. O carro era um Ford alugado, que Michael tinha levantado no National Airport depois de fugir da Key Bridge num táxi. De início, o taxista recusara-se a abrir a porta a um par de homens de fato com ar de quem tinha acabado de levar uma carga de pancada. A seguir, Delaroche mostrou-lhe um molho de notas de vinte e o taxista disse que, se quisessem ir até à Lua, ele conseguiria fazê-los estar lá de manhã.
Delaroche ia sentado à frente, no banco do passageiro, com os pés apoiados no painel de instrumentos. Estava a esfregar o tornozelo e a ralhar com ele, como se este o tivesse traído. De forma despreocupada, acendeu outro cigarro. Se se sentia ansioso ou com medo, não mostrava qualquer indício disso. Desceu o vidro da janela, libertando a nuvem de fumo. De repente, o interior do carro tresandava a terra de cultivo húmida.
Ao longo dos vários anos que se seguiram ao assassínio de Sarah, Michael tinha tentado retratar o assassino dela na sua mente. Concluiu que tinha imaginado que ele fosse maior do que de facto era. Na verdade, Delaroche era bastante pequeno e compacto, com os músculos bem retesados de um pugilista de peso médio. Michael já tinha ouvido a voz dele uma vez — em Cannon Point, na noite em que ele o tentara matar —, mas ao ouvi-lo a falar naquele momento compreendeu que ele não era um só homem mas sim vários. O sotaque corria o mapa da Europa. Às vezes, era francês, às vezes, alemão e, outras vezes, holandês ou grego. Nunca falou como um russo; Michael interrogou-se se, chegado àquele ponto, conseguiria sequer falar a sua língua materna.
— Já agora, a arma estava descarregada.
Delaroche soltou um suspiro profundo, como se estivesse aborrecido com um programa televisivo entediante.
— A pistola de uso corrente para os agentes da CIA é uma Browning automática de alta potência, com um carregador de vinte tiros — continuou. — Depois de recarregares, disparaste quatro tiros contra mim pela porta da frente, três pela porta das traseiras, mais três pelo pára-brisas e cinco para a bagageira do Saab.
— Se sabias que a arma estava descarregada, porque é que não me atiraste simplesmente da ponte abaixo?
— Porque, mesmo que te tivesse matado, não tinha praticamente hipóteses de escapar. Estava ferido. Não tinha pistola, não tinha carro, não tinha meio de comunicar.
Tu eras a única arma que me restava.
— Do que é que estás para aí a falar, porra?
— Eu tenho uma coisa que tu queres e tu tens uma coisa que eu quero. Tu queres saber quem é me contratou para te matar e eu quero protecção contra os meus inimigos para poder viver descansado.
— E o que é que te leva a crer que eu pretendo cumprir esse acordo?
— Um homem não abandona a CIA se não tiver princípios. E um homem não regressa à CIA quando o presidente lhe pede para o fazer se não acreditar em honra. A tua honra é o teu ponto fraco. Mas, afinal de contas, porque é que escolheste esta vida, Michael? Foi o teu pai que te levou a isso?
Michael pensou: "Então, o Delaroche passou tanto tempo a analisar-me como eu a ele."
— Não me parece que tivesse tomado a mesma decisão se os papéis estivessem invertidos — disse Michael. — Acho que te teria deixado cair da ponte e apreciado ver o teu corpo a flutuar pelo rio abaixo.
— Isso não é uma coisa de que te devas gabar. És virtuoso, mas também és altamente emotivo e isso torna-te facilmente manipulável. O KGB percebeu isso quando te colocou a Sarah Randolph no caminho e quando me mandou matá-la à frente dos teus olhos.
— Vai-te foder! — exclamou Michael.
Sentiu-se tentado a parar o carro e dar um enxerto de pancada em Delaroche. Depois lembrou-se da luta na ponte e da facilidade com que Delaroche o tinha quase matado com as próprias mãos.
— Michael, por favor, abranda antes que nos mates aos dois. Para onde é que estamos a ir, já agora?
— O que é que te aconteceu à cara? — perguntou por seu turno Michael, ignorando a pergunta de Delaroche.
— Tu enviaste um alerta à Interpol, bem como um esboço por computador da minha cara, e por isso fiz uma cirurgia plástica.
— E como é que soubeste do alerta?
— Uma coisa de cada vez, Michael.
— O cirurgião plástico era um homem chamado Maurice Leroux?
— Sim — respondeu Delaroche. — Como é que sabias?
— Soube porque os serviços secretos britânicos tinham conhecimento do facto de Leroux trabalhar realmente de tempos em tempos para pessoas como tu. Foste tu que o mataste?
Delaroche não disse nada.
— Ele não te fez nenhum favor — disse Michael. — Estás hediondo.
— Tenho noção disso — respondeu Delaroche friamente — e culpo-te a ti.
— És um homicida. Não sinto pena de ti por teres tido uma má experiência com um cirurgião plástico.
— Eu não sou um homicida, sou um assassino profissional. Há uma diferença. Dantes, matava pessoas pelo meu país, mas agora o meu país já não existe e por isso mato por dinheiro.
— Isso faz de ti um homicida, pelas minhas contas.
— Estás a dizer-me que não há homens assim a trabalhar para a tua organização? Vocês também têm os vossos assassinos, Michael. Por isso, por favor... não tentes vir com superioridades morais.
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon?
— Para onde estás a levar-me?
— Para um sítio seguro.
— Espero que não estejas a levar-me para uma casa segura da CIA, pois não?
— Quem é que te contratou para matar o Douglas Cannon? Delaroche pôs-se a olhar pela janela durante bastante tempo e, a seguir, inspirou fundo, como se estivesse prestes a mergulhar e a ficar submerso durante muito tempo.
— Talvez o melhor seja eu começar pelo princípio — disse ele por fim, desviando o olhar da janela e fitando Michael. — Sê paciente e eu conto-te tudo aquilo que queres saber.
Delaroche falou como se estivesse a narrar a história de vida de outra pessoa e não a sua própria. Quando sentia dificuldades com o inglês, passava para uma das outras línguas que ele e Michael tinham em comum: espanhol, ou italiano, ou árabe. Ainda nem duas horas antes, tinha assassinado a sangue frio dois agentes da DSS, mas, pelo que Michael conseguia detectar, não sofria quaisquer problemas de efeitos colaterais pelo facto de matar. Ele matara apenas uma vez — um terrorista da Espada de Gaza, no Aeroporto de Heathrow — e tinha sido perseguido por pesadelos durante semanas.
Falou a Michael do homem que conhecia apenas como Vladimir. Tinham vivido num grande apartamento do KGB em Moscovo e possuíam uma agradável datcha não muito longe da cidade, para os fins-de-semana e as férias. Nessa altura, Delaroche era conhecido pelo seu nome de baptismo, que era Nicolai, e pelo patronímico, que era Mikhailovich. Não lhe era permitido ter contacto com outras crianças. Não frequentou as normais escolas do Estado, não pertenceu a qualquer clube desportivo ou a organizações juvenis do Partido Comunista. Nunca o deixavam sair do apartamento ou da ãatcha sem Vladimir ao seu lado. Por vezes, quando Vladimir se encontrava doente ou demasiado cansado, mandava um gorila carrancudo chamado Boris acompanhar a criança.
A determinada altura, Vladimir começou a ensinar-lhe línguas. Ter uma outra língua é ter outra alma, dizia Vladimir. E para a vida que estás prestes a levar, Nicolai Mikhailovich, vais precisar realmente de muitas almas. Delaroche franziu a cara como se fosse um velho e curvou os ombros. Ao observá-lo, Michael ficou assombrado com a capacidade que ele tinha para se transformar noutra pessoa. Quando falou com a voz de Vladimir, soou como um russo pela primeira vez.
De vez em quando, um homem alto e severo, com fatos ocidentais e cigarros ocidentais, vinha visitá-lo, continuou Delaroche a contar. Estudava o rapaz como um escultor seria capaz de estudar uma obra em execução. Muitos anos mais tarde, Delaroche ficaria a conhecer a identidade do homem alto. Era Mikhail Voronstov, o chefe da Primeira Direcção Principal[40] do KGB — o seu pai.
Em Agosto de 1968, com dezasseis anos, foi enviado para o Ocidente. Atravessou a fronteira da Checoslováquia com a Áustria, fazendo passar-se por filho de dissidentes checos a fugir dos russos. Ficou na Áustria durante algum tempo e depois mudou-se para Paris, onde viveu como um miúdo da rua até a igreja o acolher.
Foi em Paris que descobriu que sabia pintar. Vladimir nunca o tinha deixado dedicar-se a mais nada além das línguas e das artes do ofício. Não há tempo para actividades frívolas, Nicolai Mikhailovich, dizia. Estamos numa corrida contra o tempo. Passava tardes a deambular pelos museus, estudando grandes obras. Frequentou a escola de arte durante um certo tempo e até conseguiu vender alguns dos seus trabalhos na rua.
A seguir, apareceu o homem chamado Mikhail Arbatov e os assassínios começaram.
— O Arbatov era o agente responsável por mim — explicou De-laroche. — No começo, eu tratava de assuntos internos: dissidentes, potenciais desertores, esse tipo de coisas. A seguir, embarquei num tipo de missão diferente.
Michael passou em revista uma série de assassínios que sabia terem sido levados a cabo por Delaroche: o ministro espanhol, em Madrid, o representante da polícia francesa, em Paris, o executivo da BMW, em Frankfurt, o representante da OLP, em Tunes, o empresário israelita, em Londres.
— O KGB queria tirar partido dos movimentos terroristas e nacionalistas existentes no interior das fronteiras da NATO e dos seus aliados — prosseguiu Delaroche.
— O IRA, a Facção Exército Vermelho, as Brigadas Vermelhas de Itália, os bascos, em Espanha, a Acção Directa, em França, e por aí fora. Matei em ambos os lados do espectro, pura e simplesmente de maneira a criar a desordem. Houve muitos mais assassínios do que aqueles que referiste, claro.
— E quando a União Soviética se desmoronou?
— Eu e o Arbatov ficámos à deriva.
— E então passaram a trabalhar por conta própria? Delaroche confirmou com a cabeça, esfregando o tornozelo.
— O Arbatov tinha excelentes contactos e era um negociador talentoso. Actuava como meu agente, recebendo propostas, negociando honorários... esse tipo de coisas.
Dividíamos as receitas do meu trabalho.
— E depois veio o caso da TransAdantic.
— Foi o dia de trabalho mais bem pago da minha vida, um milhão de dólares. Mas não fui eu que abati aquele avião a jacto. Foi aquele psicopata palestiniano, o Hassan Mahmoud, quem abateu o avião.
— Tu limitaste-te a liquidar o Mahmoud.
— Exactamente.
— E o corpo foi deixado lá ficar para nós deduzirmos que tinha sido a Espada de Gaza a levar a cabo o atentado.
— Sim.
— E- depois foste contratado pelos homens que abateram de facto o avião para eliminar as outras pessoas envolvidas na operação, como o Colin Yardley, em Londres, e o Eric Stoltenberg, no Cairo.
— E depois tu.
— Quem é que te contratou? — perguntou de novo Michael. — Quem é que te contratou para me matar?
— Eles chamam-se a si mesmos Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais — começou por dizer Delaroche. — São um grupo de agentes dos serviços secretos, homens de negócios, comerciantes de armas e criminosos que tentam influenciar os acontecimentos mundiais de modo a ganharem dinheiro e a protegerem os seus próprios interesses.
— Não acredito que uma organização dessas exista realmente.
— Abateram o avião para que um dos seus membros, um fornecedor americano de equipamento de defesa chamado Mitchell Elliott, pudesse convencer o presidente Beckwith a construir um sistema de defesa antimíssil.
Michael tinha suspeitado que Elliott estivesse envolvido naquela tragédia; na verdade, até tinha posto as suas suspeitas por escrito no relatório que fizera à CIA.
Ainda assim, ouvir Delaroche confirmar-lhe essas suspeitas fê-lo sentir-se enojado. Começou a escorrer-lhe suor pelas costelas.
— Eles sabiam que tu estavas a aproximar-te demasiado da verdade — continuou Delaroche. — Decidiram que o melhor seria que morresses e, por isso, contrataram-me para te matar.
— Como é que eles souberam das minhas suspeitas?
— Têm uma fonte dentro de Langley.
— E o que é que aconteceu a seguir a Shelter Island? — perguntou Michael.
— Passei a trabalhar em exclusivo para a Sociedade.
— E a Sociedade tem algum líder?
— Chamam-lhe o Director. É o único nome pelo qual é conhecido. É inglês. Tem uma rapariga nova chamada Daphne. É tudo o que eu sei sobre ele.
— Foste tu que mataste o Ahmed Hussein no Cairo. Delaroche virou-se de repente e lançou um olhar furioso a Michael.
— A Sociedade executou o assassínio a mando da Mossad. Como é que soubeste que tinha sido eu?
— O Hussein estava sob vigilância dos egípcios. Eu vi uma cassete de vídeo com o assassínio e reparei na cicatriz que o assassino tinha na mão direita. Foi aí que soube que estavas vivo e outra vez em acção. Foi aí que enviámos o alerta à Interpol.
— Soubemos do alerta imediatamente — revelou Delaroche, olhando para as costas da mão direita. — O Director tem excelentes contactos no mundo dos serviços secretos e de segurança ocidentais, mas disse que a informação sobre o alerta à Interpol veio da fonte dele em Langley.
— E porque é que a Sociedade se envolveu na questão da Irlanda do Norte?
— Porque achou que o acordo de paz na Irlanda do Norte era mau para o negócio. Houve uma reunião do Conselho Executivo da Sociedade no mês passado, em Míconos. Nessa reunião, decidiram matar-te a ti e ao teu sogro, e foi-me dada essa missão.
— E a mulher que ia no Volvo era a Rebecca Wells?
— Era.
— Onde é que ela está agora?
— Isso não fazia parte do nosso acordo, Michael.
— E porquê matarem-me a mim?
— O Director investiu uma grande quantidade de dinheiro em mim e quis proteger o seu investimento. Viu-te como uma ameaça.
— E a fonte de Langley estava na reunião em Míconos?
— Estava toda a gente em Míconos.
Já passava das cinco da manhã quando Michael e Delaroche chegaram à aldeia de Greenport, em Long Island. Seguiram pelas ruas desertas e estacionaram no cais dos ferries. O barco estava tranquilamente parado no seu estaleiro; só iria fazer a primeira travessia até Shelter Island, do outro lado do estreito, dali a uma hora. Michael fez uma chamada pelo telefone público junto ao pequeno barracão revestido de ripas que havia no terminal.
— Onde é que tu estás, foda-se? — perguntou Adrian Cárter. — Tens toda a cidade à tua procura.
— Liga-me para este número de um telefone público.
O número de dez dígitos que indicou a Cárter não tinha qualquer semelhança com o verdadeiro número do telefone público. Tinha dado o número a Cárter num código rudimentar que os dois tinham utilizado em operações muitos anos antes — na ordem inversa, com o primeiro dígito mais um do que o número verdadeiro, o segundo dígito menos dois, o terceiro dígito mais três e por aí fora. Não precisou de repetir. Cárter, tal como Michael, era atormentado por uma memória perfeita.
Michael desligou e fumou um cigarro enquanto esperava que Cárter se vestisse, entrasse no carro e se dirigisse a um telefone público. A imagem de Cárter a vestir um casaco por cima do pijama fez Michael sorrir. O telefone tocou passados cinco minutos.
— Importas-te de me dizer que raio se está a passar?
— Digo-te quando tu aqui chegares.
— E onde é que tu estás?
— Em Shelter Island.
— E que raio estás a fazer aí? Estiveste envolvido naquele tiroteio na Key Bridge?
— Apanha mas é o primeiro avião para aqui, Adrian. Preciso de ti. Cárter hesitou um momento e depois disse:
— Estou aí assim que puder, mas porque é que eu já sei que não vai sair daqui nada de bom?
Quando Michael voltou para o carro, Delaroche tinha desaparecido. Encontrou-o uns instantes depois, encostado a uma vedação com rede metálica a enferrujar, a olhar fixamente para o outro lado do estreito, na direcção da silhueta baixa e escura de Shelter Island.
— Conta-me os teus planos — disse Delaroche.
— Se queres o teu dinheiro e a tua felicidade, vais ter de fazer por merecer.
— E que queres tu que eu faça?
— Ajuda-me a destruir a fonte dentro de Langley.
— Sabes quem ele é?
— Sei — respondeu Michael. — E não é um ele. É a Mónica Tyler.
— Eu não sei o suficiente para destruir a Mónica Tyler.
— Sabes, sim, senhor.
Delaroche continuava a olhar fixamente para a água negra.
— De certeza que podíamos ter feito isto noutro sítio que não este, Michael. Porque é que me trouxeste outra vez para este sítio?
Mas Delaroche não estava verdadeiramente à espera de uma resposta e Michael não lhe deu uma.
— Eu preciso de saber uma coisa. Preciso de saber como é que a Astrid morreu.
— A Elizabeth matou-a.
— Como?
Quando Michael lhe contou, ele fechou os olhos. Ficaram ali parados, lado a lado, ambos agarrados à vedação, à medida que os primeiros trabalhadores dos ferries foram começando a chegar. Passados poucos minutos, o barco começou a ressoar no seu estaleiro.
— Nunca foi nada pessoal — disse Delaroche, por fim. — Foram só negócios. Compreendes o que te estou a dizer, Michael? Foram só negócios.
— Tu fizeste-nos passar um inferno, a mim e à minha família, e nunca te perdoarei isso. Mas compreendo. Agora, compreendo tudo.
Capítulo 42
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Quando chegaram ao portão de Cannon Point, um segurança chamado Tom Moore saiu do abrigo para os guardas. Era um antigo comando do exército, com ombros grossos e quadrados e cabelo louro cortado à escovinha.
— Peço desculpa por não ter ligado primeiro para te avisar que estava a caminho, Tom.
— Não há problema, senhor Osbourne — respondeu Moore. — Já ouvimos o que aconteceu ao senhor embaixador. Como é óbvio, estamos todos a torcer por ele. Só espero que apanhem os sacanas que fizeram isto. Na rádio, disseram que eles desapareceram sem deixar rasto.
— Parece que sim. Este é um amigo meu — disse Michael, apontando para Delaroche. — Vai ficar cá um dia ou dois.
— Sim, senhor.
— Aparece lá em casa para almoçar, Tom. Precisamos de falar.
— Eu não quero ter nada a ver com isso — afirmou Adrian Cárter. — Passa isso à Divisão de Contra-Espionagem. Meu Deus, por mim, até podes dar isso aos palhaços do FBI. Mas livra-te disso, porque essa coisa vai destruir quem quer que toque nela.
Cárter e Michael estavam a andar ao longo da divisória com vista para o estreito, de cabeça para baixo e mãos nos bolsos, como uma equipa de busca à procura de um corpo. Naquela manhã, não havia vento e estava frio. Cárter estava com o mesmo anoraque almofadado que trazia vestido naquela tarde no Central Park, em que tinha pedido a Michael para regressar à CIA. Era um fumador regenerado, mas, a meio da história, cravou um cigarro a Michael e devorou-o.
— Ela é a directora da CIA — disse Michael. — Ela controla a Divisão de Contra-Espionagem. E, quanto ao FBI, quem é que vai querer envolvê-los? Isto é um assunto nosso. O FBI só nos vai lembrar isso mesmo.
— E estás a esquecer-te de que ali o Jack, o "Estripador, é a tua única testemunha? — retorquiu Cárter, apontando com a cabeça para a casa. — Tens de admitir que ele tem de facto um problemazinho em termos de credibilidade. Já pensaste pelo menos na possibilidade de ele ter inventado esta coisa toda para impedir que o prendesses?
— Ele não está a inventar.
— Como podes ter tanta certeza? Toda esta coisa de uma ordem secreta chamada Sociedade soa-me a um belo monte de treta.
— Alguém contratou aquele homem para me matar no ano passado porque eu estava a aproximar-me demasiado da verdade acerca do caso da TransAtlantic. Revelei as minhas suspeitas a duas pessoas dentro da CIA. Uma foste tu e a outra foi a Mónica Tyler.
— E então?
— Para começar, porque é que a Mónica fez com que eu me fosse embora da CIA no ano passado? E porque é que me retirou do caso Outubro uma semana antes de ele tentar matar o Douglas? E há mais uma coisa. O Delaroche disse que houve uma reunião da Sociedade em Míconos, no início deste mês. A Mónica esteve na Europa a participar numa conferência regional sobre segurança. E, depois disso, tirou dois dias de folga e desapareceu por completo.
— Meu Deus, Michael, eu também estive na Europa no início do mês.
— Eu acredito na história, Adrian. E tu também.
Saíram do recinto de Cannon Point e caminharam pela Shore Road, no limite de Dering Harbor.
— Se isto for tornado público, vai ser desastroso para a CIA.
— Concordo — disse Michael. — Seriam necessários anos para recuperar de um golpe desses. Destruiria a reputação da CIA em Washington e, em boa verdade, pelo mundo inteiro.
— Então, o que é que fazemos?
— Apresentamos-lhe as provas e acabamos com ela antes que possa causar mais estragos. Ela tem sangue nas mãos, mas se fizermos isto em público a agência vai ficar em ruínas.
— A única maneira de alguma vez conseguires desalojar a Mónica do sétimo andar é com dinamite.
— Eu próprio subo até lá com uma pasta cheia dele, se for preciso.
— E porque é que me envolveste?
— Porque tu és a única pessoa em quem confio. Foste o agente responsável por mim, Adrian. Serás sempre o agente responsável por mim.
Pararam numa ponte que percorria toda a desembocadura de um ribeiro por onde entrava o mar, à frente de Dering Harbor. Para lá da ponte, havia uma vasta planície com relva pantanosa e árvores despidas. Um homem bastante pequeno e esguio estava diante de um cavalete na ponte, a pintar. Tinha luvas de lã sem dedos e uma camisola de pescador já coçada e vários tamanhos acima do seu.
— Encantador — disse Cárter, olhando para o trabalho. — O senhor é muito talentoso.
— Obrigado — respondeu o pintor, num inglês com sotaque carregado.
Cárter virou-se para Michael e soltou:
— Só podes estar a brincar comigo.
— Adrian Cárter, gostaria de te apresentar o Jean-Paul Delaroche. És capaz de o conhecer melhor como Outubro.
Tom Moore apareceu na casa ao meio-dia.
— Queria ver-me, senhor Osbourne?
— Entra, Tom. Há café acabado de fazer na cozinha.
Michael serviu o café e sentaram-se um em frente do outro, à mesa pequena na cozinha.
— O que é que posso fazer por si, senhor Osbourne?
— Vai haver aqui um encontro hoje à noite que eu preciso de gravar, em áudio e vídeo — começou por dizer Michael. — As câmaras de vigilância podem ser reposicionadas?
— Sim, senhor — respondeu Moore sem emoção.
— E consegues gravar através do dispositivo de saída?
— Sim, senhor.
Adrian Cárter entrou na cozinha, seguido por Delaroche.
— Temos algum equipamento áudio na propriedade?
— Não, senhor. O seu sogro não permitiu que houvesse quaisquer microfones. Achou que isso seria uma invasão da sua privacidade — explicou Moore, com a sua cara grande a deixar despontar um sorriso agradável. — Ele já mal tolera as câmaras. Antes de partir para Londres, apanhei-o a tentar desligar uma.
— E quanto tempo é que demoraria para se arranjarem uns microfones e um gravador?
Moore encolheu os ombros.
— Um par de horas, no máximo.
— E consegues instalá-las de maneira a que não possam ser vistas?
— Os microfones são fáceis porque são relativamente pequenos. As câmaras é que põem um problema. São câmaras de segurança normais, mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos.
Michael praguejou baixinho.
— Mas tenho uma ideia.
— Sim?
— As câmaras têm uma lente razoavelmente longa. Se realizassem o encontro na sala de estar, eu podia posicionar câmaras lá fora, no relvado, e filmar através das janelas.
Michael sorriu e disse:
— Tu és bom, Tom.
— Fiz um pouco de espionagem quando estava nos comandos. Só têm de se certificar de que as cortinas ficam sempre abertas.
— Não posso garantir isso.
— Na pior das hipóteses, terão o áudio como apoio. Delaroche perguntou:
— Tem mais alguma arma além dessa peça de museu com que anda?
Moore trazia um revólver Smith & Wesson de calibre 38.
— Eu gosto destas peças de museu porque elas não encravam — respondeu Moore, batendo com a mão grossa no coldre. — Mas sou capaz de conseguir deitar a mão a umas quantas automáticas.
— De que tipo?
— Colt, de calibre quarenta e cinco.
— Nada de Glock nem de Beretta?
— Lamento — soltou Moore, com o espanto estampado no rosto.
— Uma ou duas Colt serviriam muito bem — disse Cárter.
— Sim, senhor — respondeu Moore. — E pode dizer-me do que é que isto tudo se trata?
— De maneira nenhuma.
Delaroche subiu as escadas e seguiu Michael até ao quarto no andar de cima. Este dirigiu-se ao armário, abriu a porta e tirou uma pequena caixa da gaveta de cima.
Abriu-a e tirou de lá a Beretta.
— Creio que deixaste cair isto da última vez que aqui estiveste — disse Michael, entregando a pistola a Delaroche.
A mão direita de Delaroche, com a sua cicatriz, apertou a coronha e, num movimento reflexo, o dedo enfiou-se na protecção do gatilho. Havia qualquer coisa na facilidade com que Delaroche manejava a arma que fez Michael sentir um arrepio.
— Onde é que arranjaste isto? — perguntou Delaroche.
— Saquei-a da água, no final da doca.
— E quem é que a restaurou?
— Fui eu.
Delaroche desviou os olhos da pistola e fitou Michael com um ar intrigado.
— E por que raio foste fazer uma coisa dessas?
— Não sei bem. Acho que queria poder lembrar-me de qual era realmente o aspecto dela.
Delaroche ainda tinha um carregador para uma Beretta de nove milímetros dentro do bolso. Enfiou-o na arma e engatilhou-a, introduzindo a primeira bala na câmara.
— Se quisesses, suponho que podias cumprir os termos do teu contrato neste momento.
Delaroche sorriu e devolveu a Beretta a Michael.
Às quatro da tarde, Michael entrou no escritório de Douglas e ligou para o gabinete de Mónica Tyler na sede da CIA. Cárter estava à escuta noutra extensão, com a mão a tapar o auscultador. A secretária de Mónica informou que a directora Tyler se encontrava numa reunião dos quadros superiores e que não podia ser interrompida.
Michael respondeu que era uma emergência e puseram-no a falar com Tweedledee ou Tweedledum, Michael nunca sabia ao certo qual era qual. Fizeram-no esperar os dez minutos da praxe enquanto Mónica era arrancada da reunião.
— Eu sei tudo — disse Michael, no momento em que ela veio finalmente ao telefone. — Sei da Sociedade e sei do Director. Sei do Mitchell Elliott e do caso da TransAdantic.
E sei que tu tentaste mandar matar-me.
— Michael, estás a delirar completamente? Do que raio é que estás para aí a falar?
— Estou a dar-te uma maneira de saíres disto discretamente.
— Michael, eu não...
— Vem ter à casa do meu sogro em Shelter Island. Vem sozinha: nada de segurança, nada de funcionários. Está cá às dez da noite. Se a essa hora ainda não tiveres chegado, ou se eu vir alguma coisa de que não goste, vou ter com o FBI e o The New York Times e conto-lhes tudo o que sei.
Desligou sem esperar que ela respondesse.
Trinta minutos mais tarde, o telefone seguro tocou no escritório da mansão londrina do Director. Estava sentado numa poltrona de orelhas, junto à lareira, com os pés apoiados numa otomana, a despachar um monte de papelada. Daphne entrou no escritório silenciosamente e atendeu o telefone.
— É o Picasso — disse Daphne. — Diz que é urgente.
O Director pegou no auscultador e disse:
— Sim, Picasso?
Com calma, Mónica Tyler informou-o do telefonema que tinha acabado de receber de Michael Osbourne.
— Suspeito que o Outubro seja a fonte das informações de que ele dispõe — disse o Director. — Se isso for verdade, parece-me que o Osbourne não tem muito por onde pegar. O Outubro sabe muito pouco acerca da estrutura global da nossa organização e não é propriamente uma testemunha credível. É um homem que mata por dinheiro, um homem sem princípios morais e sem lealdade.
— Concordo, Director, mas não me parece que devamos simplesmente desconsiderar a ameaça.
— Não estou a sugerir isso.
— E possui os recursos necessários para os eliminar?
— Não assim com tão pouca antecedência.
— E se eu prender pura e simplesmente o Outubro?
— Então, ele e o Outubro irão contar ao mundo a história deles.
— Estou aberta a sugestões.
— Sabes jogar póquer? — perguntou o Director.
— Em sentido figurado ou literalmente?
— Um bocadinho das duas coisas, na verdade.
— Penso que compreendo a sua ideia.
— Ouve o que o Osbourne tem para dizer e avalia as tuas opções. Eu sei que não preciso de te lembrar que fizeste um juramento de fidelidade para com a Sociedade.
A tua primeira preocupação deve ser o cumprimento desse juramento.
— Compreendo, Director.
— E talvez se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
— Eu nunca fiz esse tipo de coisas, Director.
— Não é assim tão difícil, Picasso. Fico à espera de notícias tuas. Desligou o telefone e olhou para Daphne.
— Começa a ligar para os membros do Conselho Executivo e para os chefes de divisão. Preciso de falar com todos eles urgentemente. Receio que possamos ser forçados a parar com as nossas actividades durante algum tempo.
Mónica Tyler desligou o telefone e olhou para o rio Potomac através da janela. Atravessou a sala e parou diante de um Rembrandt, uma paisagem que tinha comprado por uma pequena fortuna num leilão em Nova Iorque. Percorreu o quadro com os olhos: as nuvens, a luz a espalhar-se do chalé, a charrete sem cavalo no meio da erva do prado. Agarrou na moldura e puxou. O Rembrandt girou nas dobradiças, revelando um pequeno cofre na parede.
Os dedos dela giraram a fechadura automaticamente, sem que os olhos olhassem praticamente para os números; passados uns segundos, o cofre estava aberto. Começou a tirar de lá alguns artigos: um envelope com cem mil dólares em dinheiro, três passaportes falsos com nomes diferentes e de países diferentes e cartões de crédito correspondentes aos nomes.
A seguir, tirou um último artigo, uma Browning automática.
E take se proporcione a oportunidade de resolveres tu própria o assunto.
Mudou de roupa, trocando o fato Chanel de corte justo por umas calças de ganga e uma grande mala de mão de couro preta. Depois, guardou uma muda de roupa numa pequena mala de fim-de-semana.
Pôs a mala de mão ao ombro e enfiou a mão lá dentro, apertando a coronha da Browning tinha sido treinada pela CIA para manejar uma arma. Um dos membros da equipa de segurança dela estava à espera no corredor.
— Boa tarde, Directora Tyler.
— Boa tarde, Ted.
— É para voltar para a sede, Directora?
— Por acaso, não, é para heliporto.
— O heliporto? Ninguém nos disse nada sobre...
— Não há problema, Ted — disse ela calmamente. — É um assunto privado.
O segurança olhou para ela atentamente.
— Passa-se alguma coisa, Directora Tyler?
— Não, Ted, vai correr tudo lindamente.
Capítulo 43
SHELTER ISLAND, NOVA IORQUE
Michael mantinha-se ansiosamente vigilante no relvado de Cannon Point. Estava a beber o café horrível de Adrian Cárter, a fumar os seus próprios cigarros horríveis e a andar de um lado para o outro na relva gelada, com os binóculos que Douglas utilizava para observar aves colocados ao pescoço. Meu Deus, como a noite estava fria, pensou. Olhou uma vez mais para o céu a ocidente, na direcção em que Mónica viria, mas viu apenas uma chuva de estrelas molhadas, espalhadas pelo tapete negro do espaço, e uma nesga de lua, de um branco-amarelado.
Olhou para o relógio — 21h58. Mónica nunca chega a horas, pensou. "A Mónica há-de chegar dez minutos atrasada ao próprio funeral", gracejou uma vez Cárter, especado na deprimente antessala de Mónica, à espera que esta aparecesse. Talvez ela não vá aparecer, pensou Michael, ou talvez eu simplesmente espere que ela não o faça.
Talvez Adrian tivesse razão. Talvez ele devesse simplesmente esquecer tudo aquilo, deixar a CIA — para sempre, desta vez — e ficar em Shelter Island com Elizabeth e as crianças. E depois? Viver o resto da minha vida a olhar por áma do ombro, à espera que a Mónica ou os amigos dela enviem outro assassino, outro Delaroche?
Viu as horas uma vez mais. Era o velho relógio do pai: fabricado na Alemanha, grande como um dólar de prata, à prova de água, à prova de pó, à prova de choque, seguro para crianças, ligeiramente luminoso. Perfeito para um espião. Tinha sido a única coisa do pai com que Michael ficara depois de ele morrer. Nem tinha tirado a correia removível que lhe deixava um padrão de buracos rectangulares estampado na pele do pulso. Às vezes, olhava para o relógio e pensava no pai — em Moscovo, ou Roma, ou Viena, ou Beirute — à espera de um agente. Interrogou-se sobre o que o pai acharia daquilo tudo.
Na altura, ele nunca me diizia o que pensava, pensou Michael. Porque é que agora haveria de ser diferente?
Ouviu um baque surdo que poderia ter sido provocado por um helicóptero à distância mas que era apenas o som proveniente do clube nocturno que ficava na outra margem, em Greenport — a banda residente a preparar-se para mais um concerto tenebroso. Michael pensou na sua heterogénea equipa de operações. Delaroche, o seu inimigo, a prova acabada da traição perpetrada por Mónica, à espera para ser posto no palco e depois tirado de lá. Tom Moore, parado diante dos seus monitores no chalé dos convidados, prestes a apanhar o choque da sua vida. Adrian Cárter, atrás dele, a andar de um lado para o outro, a fumar os cigarros de Michael sem parar e a desejar estar em qualquer outro lugar que não aquele.
Michael ouviu o bater das hélices do helicóptero muito antes de o conseguir ver. Por um instante, pensou que até pudessem ser dois, ou três, ou mesmo quatro. Instintivamente, esticou o braço para agarrar na Colt automática que Tom Moore lhe fornecera, mas, passado um momento, viu as luzes de um único helicóptero a aproximar-se, sobrevoando Nassau Point e Great Hog Neck, e percebeu que tinha sido apenas o vento nocturno a pregar-lhe uma partida aos ouvidos.
Lembrou-se da manhã, dois meses antes, em que o helicóptero que transportava o presidente James Beckwith fizera o mesmo percurso até Shelter Island, desencadeando a sucessão de acontecimentos que o tinha levado até àquele sítio.
As imagens desenrolaram-se na sua mente à medida que o helicóptero se ia aproximando.
Adrian Cárter no dique da represa no Central Park, a seduzir Michael a regressar.
Kevin Maguire amarrado a uma cadeira e Seamus Devlin a sorrir. Eu não matei o Kevin Maguire, Michael. Você é que o matou.
Preston McDaniels a ser esmagado pelas rodas do comboio da Linha do Sofrimento.
Delaroche, a sorrir por cima do parapeito da Key Bridge. Conheces a história da rã e do escorpião que atravessam o Nilo?
Às vezes, o trabalho de espionagem é assim, costumava dizer o pai — como a teoria do caos. Um sopro de vento agita a superfície de um lago, fazendo um tufo de juncos deslocar-se, o que origina o voo de uma libélula, que assusta uma rã, e sempre por aí adiante até que, a dezenas de milhares de quilómetros de distância e muitas semanas depois, um tufão destrói uma ilha nas Filipinas.
O helicóptero sobrevoou baixinho a baía de Southold. Michael olhou para o relógio do pai: um minuto depois das dez. O helicóptero começou a descer sobre o estreito de Shelter Island e Dering Harbor, aterrando a seguir no extenso relvado de Cannon Point. Os motores desligaram-se e as hélices foram parando de girar gradualmente.
A porta abriu-se e uma pequena escada estendeu-se até ao chão. Mónica saiu do helicóptero, com uma mala de mão preta ao ombro, e avançou de forma decidida em direcção à casa.
— Vamos lá a despachar este disparate — disse ela, passando depressa por Michael. — Sou uma mulher muito ocupada.
Mónica Tyler não era uma pessoa que caminhasse sem pressas, mas estava a fazê-lo naquele momento. Percorreu a sala de estar de Douglas Cannon como um político a inspeccionar um parque de caravanas a seguir a um tornado — com calma, estoicismo e empatia, mas com o cuidado de não pisar nada que fosse revoltante. Foi fazendo pequenas pausas de tempos a tempos, ora franzindo o sobrolho à coberta com motivos florais por cima do sofá, ora fazendo uma careta perante o pequeno tapete rústico diante da lareira.
— Tens câmaras em algum sítio, não tens, Michael — disse ela, fazendo uma afirmação e não uma pergunta. — E microfones.
Prosseguiu a sua agitada travessia pela sala.
— Não te importas que eu corra estas cortinas, pois não, Michael? E que, sabes, eu também passei por aquele cursozinho na quinta. Posso não ser uma agente operacional experiente como tu, mas sei uma coisinha ou outra sobre as artes clandestinas.
Fez questão de mostrar bem que estava a fechar as cortinas.
— Pronto — rematou. — Assim está muito melhor. Sentou-se, como uma testemunha relutante e arrogante a sentar-se para depor. Os pedaços de tronco na lareira começaram a crepitar. Ela cruzou uma perna sobre a outra, pousando as mãos compridas em cima do tecido desbotado das calças de ganga, e fitou Michael com um olhar gelado. O cenário prosaico à sua volta tinha-lhe retirado a intimidação física. Não havia caneta de ouro para esgrimir como um punhal, não havia secretária para interromper uma reunião que se tinha tornado inesperadamente desagradável, não havia Tweedledum nem Tweedledee, vigilantes como dobermans, agarrados às suas pastas de couro e telemóveis seguros.
Delaroche entrou na sala. Estava a fumar um cigarro. Mónica lançou-lhe um olhar feroz de desprezo, já que o tabaco, como a falta de lealdade, era um dos seus ódios de estimação.
— Este homem chama-se Jean-Paul Delaroche — disse Michael. — Sabes quem é?
— Suspeito que seja um antigo assassino do KGB com o nome de código Outubro e que agora actua como assassino internacional a soldo.
— E sabes porque é que ele cá está?
— Provavelmente, porque quase matou o teu sogro ontem à noite, em Georgetown, apesar de todos os nossos esforços para o determos.
— Que jogo andas tu a jogar, Mónica? — perguntou Michael rispidamente.
— Ia precisamente perguntar-te a mesma coisa.
— Eu sei tudo — disse ele, agora mais calmo.
— Acredita em mim, Michael, tu não sabes tudo. Na verdade, não sabes praticamente nada. É que a tua brincadeirazinha pôs gravemente em risco uma das operações mais importantes que a CIA tem neste momento em execução.
A sala tinha ficado em silêncio, à excepção da lareira, que se encontrava de novo em actividade, a crepitar como pequenas armas. La fora, o vento abanava as árvores despidas e uma delas arranhava a fachada lateral da casa. Um camião roncou pela Shore Road e um cão ladrava algures.
— Se queres ouvir o resto, vais ter de desligar os teus microfones — avisou Mónica.
Michael não se mexeu. Mónica esticou o braço na direcção da mala, como se estivesse prestes a levantar-se para se ir embora.
— Está bem — disse Michael.
Pôs-se em pé, foi até à secretária de Douglas e abriu uma gaveta. Lá dentro, estava um microfone, mais ou menos do tamanho de um dedo. Michael levantou-o para que Mónica o pudesse ver.
— Desliga-o — disse ela.
Ele arrancou o microfone do cabo.
— E agora o de apoio — continuou ela. — Tu és demasiado paranóico para fazeres uma coisa destas sem um apoio.
Michael dirigiu-se para as prateleiras dos livros, tirou um volume de Proust e puxou do segundo microfone.
— Acaba com ele — ordenou Mónica. Delaroche olhou para Michael.
— Ela tem uma pistola na mala.
Michael aproximou-se da cadeira onde Mónica Tyler estava sentada, enfiou a mão na mala e tirou de lá a Browning.
— Desde quando é que os directores da CIA andam com armas?
— Quando se sentem ameaçados — respondeu Mónica. Michael travou a patilha de segurança e atirou a Browning para Delaroche.
— Muito bem, Mónica, vamos lá começar.
Adrian Cárter era ansioso por natureza, o que o tornava estranhamente inadequado para a actividade de enviar agentes para o terreno e ficar à espera que eles regressassem.
Ao longo dos anos, tinha aguentado muitas vigílias plenas de ansiedade por causa de Michael Osbourne. Lembrou-se das duas noites intermináveis que tinha passado em Beirute, em 1985, à espera que Michael regressasse de um encontro com um agente no vale de Bekaa. Cárter temia que Michael tivesse sido sequestrado ou morto.
Estava prestes a desistir quando Michael apareceu em Beirute aos tropeções, coberto de poeira e a cheirar a cabras.
Ainda assim, nada se comparava ao desconforto que sentia naquele momento, ao ouvir o seu agente a confrontar a directora da CIA. Quando esta exigiu que Michael inutilizasse o primeiro microfone Cárter não ficou especialmente preocupado — havia dois na sala e um agente operacional experiente como Michael nunca abriria mão do seu ás de trunfo.
Depois, ouviu Mónica a exigir que o segundo fosse igualmente desligado, seguido de uma série de ruídos surdos e estática, no momento em que Michael o arrancou da prateleira. Quando a ligação à sala foi interrompida, fez a única coisa que um bom orientador de agentes pode fazer.
Acendeu outro dos cigarros de Michael e esperou.
— Pouco tempo depois de ter sido nomeada directora da CIA, fui abordada por um homem que dava apenas pelo nome de Director — começou por dizer ela, falando como uma mãe exausta, a contar com relutância um conto de fadas a uma criança que não quer ir deitar-se. — Perguntou-me se eu estaria disposta a fazer parte de um clube de elite, um grupo internacional de agentes dos serviços secretos, especialistas financeiros e homens de negócios dedicado à preservação da segurança mundial. Suspeitei que havia ali qualquer coisa de errado e, por isso, informei a Divisão de Contra-Espionagem do incidente, relatando-o como um potencial recrutamento por parte de uma organização inimiga. A Divisão de Contra-Espionagem achou que poderia ser produtivo, em termos operacionais, aceitar o convite do Director e eu concordei. Pedi a aprovação do próprio presidente para dar início à operação. Encontrei-me com o homem chamado Director mais três vezes, duas na Europa do Norte e uma no Mediterrâneo.
No final do nosso terceiro encontro, chegámos a um acordo e eu entrei para a Sociedade.
"A Sociedade tem tentáculos muito compridos. Está envolvida em operações secretas a uma escala mundial. Comecei a recolher imediatamente informações sobre os membros e as operações. Algumas informações passaram por uma lavagem efectuada pela agência e nós tomámos contramedidas. Por vezes, considerámos ser necessário permitir que as operações da Sociedade prosseguissem, pois desmantelá-las poderia pôr em risco a minha posição dentro da hierarquia da organização.
Michael observou-a enquanto ela falava. Estava calma e serena e completamente lúcida, como se estivesse a ler um discurso preparado numa reunião de accionistas.
Sentiu-se tremendamente impressionado com ela; era uma mentirosa formidável.
— E quem é o Director?
— Não sei, e suspeito que o Delaroche também não saiba.
— E tu sabias que ele tinha sido contratado para matar o meu sogro?
— Claro, Michael — respondeu ela, semicerrando os olhos em sinal de desprezo.
— Então, para que é que foi toda aquela fantochada na sala de jantar executiva? Porque é que me retiraste do caso?
— Porque o Director mo pediu — respondeu ela secamente. A seguir, acrescentou: — Deixa-me explicar. Ele achou que o Delaroche conseguiria desempenhar a missão com maior facilidade se tu já não te encontrasses à frente do caso. Por isso, afastei-te e tomei discretamente medidas para assegurar a segurança do teu sogro. Infelizmente, essas medidas não foram bem-sucedidas.
— Se foi esse o caso, então porque é que ele estava desprotegido em Washington?
— Porque o Director me garantiu que o Delaroche não iria actuar em solo americano.
— E porque é que não me disseste?
— Porque nós não queríamos que tu fizesses nada de precipitado que pudesse pôr em risco a segurança da operação. O objectivo era atrair o Delaroche e fazer com que ele se mostrasse para poder ser eliminado... retirado do mercado, por assim dizer. Não queríamos que o afugentasses trancando o teu sogro numa caixa-forte e deitando a chave fora.
Michael olhou para Delaroche, que estava a abanar a cabeça.
— Ela está a mentir — disse ele. — O Director tratou de tudo o que eu precisava aqui: transportes, armas, tudo. Decidiu levar a cabo o assassínio especificamente em Washington porque sabia que o embaixador estaria mais vulnerável aqui do que em Londres. Foi programado para coincidir com a conferência sobre a Irlanda do Norte de modo a aumentar o impacto no processo de paz.
Parou por uns instantes, com os olhos a deslocarem-se de Michael para Mónica e vice-versa.
— Ela é muito boa, mas está a mentir.
Mónica ignorou-o, continuando a olhar para Michael.
— Era por causa disto que nós não queríamos que o Delaroche fosse preso, Michael. Porque ele iria mentir. Porque ele iria inventar. Seria capaz de dizer qualquer coisa para salvar a pele. E o problema é que tu acreditas nele. Nós queríamos vê-lo eliminado porque, se ele fosse preso, suspeitávamos que pudesse sair-se com uma jogada destas.
— Não é uma jogada — disse Delaroche. — É a verdade.
— Devias ter desempenhado melhor o teu papel, Michael. Devias ter-te limitado a levar a cabo a tua vingança pela Sarah Randolph e matá-lo. Mas agora arranjaste uma bela trapalhada... para a CIA e para ti mesmo.
Mónica levantou-se, indicando que o encontro tinha chegado ao fim.
Michael disse:
— Se insistes em fazer a coisa assim, não me deixas outra escolha a não ser ir ter com a Divisão de Contra-Espionagem e o FBI e reve-lar-lhes as minhas suspeitas sobre ti. Vais passar os próximos dois anos a aguentar o equivalente à tortura chinesa da água. A seguir, o Senado há-de querer atirar-se a ti. Só as contas que terás de pagar em termos jurídicos vão deixar-te falida. Nunca mais voltarás a trabalhar no governo e ninguém na Wall Street vai querer ter alguma coisa a ver contigo.
Vais ser destruída, Mónica.
— Tu não tens provas que cheguem, e ninguém vai acreditar em ti.
— O genro do embaixador Douglas Cannon afirma que a directora da CIA esteve envolvida na tentativa de assassínio contra ele.
É uma história do caneco. Não há um único jornalista em Washington que não se atirasse a ela como gato a bofe.
— E tu vais ser posto em tribunal por teres revelado segredos da CIA. •
— Estou disposto a arriscar.
Adrian Cárter entrou na sala. Mónica olhou para ele; depois voltou a fixar os olhos em Michael.
— Uma caça às bruxas destruirá a agência, Michael. Devias saber isso. O teu pai foi apanhado na caça à toupeira levada a cabo pelo Angleton[41], não foi? Isso quase lhe destruiu a carreira. Esta é a tua maneira de te vingares da CIA pelo que aconteceu ao teu pai? Ou ainda sentes rancor por mim por eu ter tido a lata de te suspender em tempos?
— Não estás em posição de me irritar neste preciso momento, Mónica.
— Então, o que é que eu tenho de fazer para impedir que faças essa alegação imprudente contra mim?
— Terás de te demitir na altura apropriada. E, até lá, vais fazer exactamente aquilo que eu e o Adrian te dissermos. E vais ajudar-me a acabar com a Sociedade.
— Meu Deus, tu és mesmo um tonto ingénuo! Acabar com a Sociedade é impossível. A única forma de os controlar é fazendo parte deles. — Olhou para Delaroche. — E o que é que pensas fazer com ele?
Michael respondeu:
— Eu trato do Delaroche. — Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá uma cassete áudio. — Fiz isto ontem à noite, com umas cópias à mistura — disse. — Inclui um relato completo do teu papel na Sociedade, no caso da TransAtlantic e na tentativa de matar o meu sogro. Vou montar uma espécie de mecanismo de disparo. Se acontecer alguma coisa ao Adrian, ao Delaroche ou a mim, serão enviadas cópias disto para o The New York Times e o FBI.
Michael voltou a guardar a cassete no bolso.
— A decisão é tua, Mónica.
— Eu dei seis anos da minha vida à agência — disse ela. — Fiz tudo o que estava ao meu alcance para assegurar a sua sobrevivência e protegê-la de homens como tu: dinossauros sem a visão necessária para compreender que a CIA possui um papel neste nosso novo mundo. O jogo deixou-te para trás, Michael, e tu és demasiado estúpido para reparar sequer nisso.
— Tu usaste a CIA como um joguete privado para promover os teus próprios interesses e eu agora estou a recuperá-la.
Ela colocou a mala ao ombro, deu meia-volta e começou a ir-se embora.
— A decisão é tua, Mónica — repetiu Michael, mas ela limitou-se a continuar a andar.
Um momento depois, ouviram o gemido do motor do helicóptero a regressar à vida. Michael avançou para a varanda a tempo de ver o helicóptero de Mónica levantar voo do relvado e desaparecer sobre as águas do estreito.
Passaram o resto do dia à espera. Cárter ficou especado na varanda, de binóculos pendurados ao pescoço, olhando fixamente na direcção do estreito, como um guarda fronteiriço no Muro de Berlim. Michael contornou a casa, caminhando decidido por praias cheias de pedras e no meio dos bosques, à procura de sinais de que o inimigo estivesse a reunir as tropas. E, durante todo esse tempo, Delaroche limitou-se a observá-los, um espectador, ligeiramente perplexo, da destruição por si causada.
Cárter manteve-se em contacto com a sede. Alguém tinha tido notícias de Mónica?, perguntava ele inocentemente no final de cada conversa. As respostas foram-se tornando cada vez mais intrigantes à medida que o dia avançava. Mónica cancelou todas as reuniões que tinha. Mónica está enfiada no gabinete. Mónica não está a receber chamadas.
Mónica passou à clandestinidade. Mónica não quer comer nem beber nada. Michael e Cárter discutiram o significado dessas informações, como é próprio dos espiões fazerem.
Estaria a redigir os seus termos de rendição ou a preparar um contra-ataque?
À tarde, Cárter foi à aldeia comprar comida. Delaroche cozinhou omeletas para todos, apoiado num banco porque não conseguia ter o tornozelo inchado no chão durante muito tempo. Beberam uma garrafa de vinho, e depois outra. Delaroche providenciou o entretenimento. Ao longo de duas horas, deu uma palestra: treino, artes do ofício, missões, identidades secretas, armamento e tácticas. Não lhes contou nada que pudessem utilizar contra ele, mas pareceu retirar prazer desse mínimo desvelar de segredos.
Não disse nada acerca de Sarah Randolph ou de Astrid Vogel, ou da noite em Cannon Point um ano antes, quando ele e Michael se tinham ferido a tiro mutuamente. Permaneceu completamente imóvel enquanto falava, de mãos cruzadas sobre a mesa, com a esquerda a tapar a direita de maneira a esconder a cicatriz enrugada que tinha conduzido Michael até ele.
Foi Cárter quem fez as perguntas, pois Michael já estava com a cabeça noutro sítio. Oh, ele estava a ouvir, pensou Cárter — Michael, o dictafone humano, capaz de monitorizar três conversas e de recitar cada uma delas a outra pessoa passada uma semana —, mas já tinha um recanto da mente a voltar-se para outro problema. Por fim, Cárter começou a falar em russo, uma língua que Michael não falava, e os dois homens terminaram a conversa em privado.
Ao cair da noite, Michael e Delaroche foram caminhar. Michael, a antiga estrela das pistas, tinha enrolado uma grande quantidade de fita adesiva branca à volta do tornozelo de Delaroche. Cárter deixou-se ficar na casa; seria como estar a escutar uma conversa entre amantes desavindos e não queria tomar parte nisso. Ainda assim, não conseguiu resistir ao impulso de ir para a varanda para os observar. Não era um voyeur, apenas um agente de controlo, tomando conta do seu agente e velho amigo.
Seguiram ao longo da divisória em direcção à doca, com Delaroche a coxear ligeiramente. Quando a luz começou a enfraquecer, Cárter deixou de ser capaz de distinguir um do outro, tão semelhantes eram os dois homens em altura e constituição. Foi então que se apercebeu de que eram como duas metades do mesmo homem. Cada um possuía traços, presentes, embora reprimidos com êxito, no outro. Se não fosse pelo património e direitos adquiridos pelo nascimento, a aleatória roleta russa do tempo e espaço, tanto um como o outro poderiam muito bem ter seguido o caminho contrário: Jean-Paul De-laroche, virtuoso agente secreto; Michael Osbourne, assassino.
Passado bastante tempo — uma hora, calculou Cárter, já que, de forma nada característica, se tinha esquecido de registar a hora a que a conversa tinha começado —,
Michael e Delaroche começaram a fazer o caminho de regresso à casa.
Pararam junto ao carro alugado de Michael e ficaram defronte um do outro, cada um no seu lado do capô. Cárter continuava a não ser capaz de dizer qual era qual.
Um deles parecia estar a falar de maneira intensa e outro a bater indolentemente com a biqueira do sapato no chão. Quando a conversa terminou, aquele que tinha estado a dar pontapés no chão estendeu a mão por cima do capô do carro, mas o outro não a quis apertar.
Delaroche retirou a mão e entrou no carro. Passou pelo portão de segurança e avançou a alta velocidade pela Shore Road, embrenhando-se na escuridão. Michael Osbourne aproximou-se da casa lentamente.
ABRIL
Capítulo 44
WASHINGTON
VIENA
SOUTH ISLAND, NOVA ZELÂNDIA
O embaixador Douglas Cannon recebeu alta do George Washington University Hospital numa manhã invulgarmente quente da segunda semana de Abril. Tinha chovido durante a noite, mas a meio da manhã as poças já resplandeciam sob um sol intenso. Havia apenas um pequeno grupo de jornalistas e operadores de câmara à espera junto ao caminho de acesso, já que os media de Washington sofrem de uma espécie de síndroma de défice de atenção colectivo e ninguém estava realmente interessado em ver um velho a sair do hospital. Ainda assim, Douglas conseguiu "ser notícia", como se costuma dizer nessa profissão, quando exigiu ruidosamente sair pelo próprio pé e não com a ajuda da obrigatória cadeira de rodas — tão ruidosamente, de facto, que os jornalistas o conseguiram ouvir lá fora. "Deram-me um tiro nas costas, que raios, não nas pernas", resmungou Cannon. Os comentários foram relatados mais tarde nas notícias da noite, para grande gáudio do embaixador.
Ficou na casa da N Street, em Georgetown, durante as primeiras duas semanas de recuperação, e depois voltou para casa, para a sua adorada Cannon Point. Uma pequena multidão que se tinha reunido para lhe dar as boas-vindas acenou e gritou quando o carro de Douglas passou por Shelter Island Heights. Permaneceu em Cannon Point durante o resto da Primavera. Os seguranças acompanhavam-no quando ia passear à beira de água, cheia de pedras, na Upper Beach, e quando percorria os trilhos da reserva de Mashomack. Por altura de Junho, já se sentia com força suficiente para ir velejar no Athena. De forma nada habitual nele, tinha entregado o leme a Michael, mas foi vociferando ordens e criticando tão energicamente os conhecimentos náuticos do genro, que Michael ameaçou atirá-lo pela borda fora junto à costa de Plum Island.
Amigos de longa data insistiram com Douglas para que se demitisse do cargo em Londres; até o presidente Beckwith considerou que essa seria a melhor opção. Mas, no final de Junho, ele regressou a Londres e instalou-se no seu gabinete na Grosvenor Square. A 4 de Julho, no Dia da Independência, compareceu perante o Parlamento a título especial e, a seguir, viajou para Belfast, onde foi recebido como um herói.
Para coincidir com a sua visita, os serviços secretos e de segurança britânicos e americanos divulgaram os resultados da sua investigação conjunta à tentativa da Brigada para a Libertação do Ulster de matar Cannon em Washington. No comunicado, concluía-se que havia dois terroristas envolvidos, uma mulher chamada Rebecca Wells, que também estava implicada no caso de Hartley Hall, e um homem não identificado que se supunha ser um assassino profissional contratado pelo grupo.
Apesar de uma busca à escala global, os dois terroristas continuavam a monte.
Horas depois da visita de Cannon à Irlanda do Norte, um grande carro-bomba explodiu à porta de um mercado, junto à esquina da Whiterock Road com a Falis Road. Morreram cinco pessoas e foram feridas outras dezasseis. A Brigada para a Libertação do Ulster reivindicou a responsabilidade. Nessa noite, um grupo republicano extremista, dando pelo nome de Célula de Libertação Irlandesa, vingou esse atentado através da explosão de um gigantesco camião-bomba que arrasou grande parte do centro de Portadown.
O grupo prometeu prosseguir com os seus atentados até que o acordo de paz de Sexta-Feira Santa estivesse morto.
Durante várias semanas, os corredores sem fim de Langley palpitaram com os rumores acerca de uma reorganização drástica no sétimo andar. Mónica ia-se embora, segundo um rumor. Ia ficar para sempre, segundo outro. Mónica tinha caído em desgraça junto do presidente. Mónica estava prestes a tornar-se secretária de Estado. O rumor mais popular entre os seus detractores era a história de que ela tinha sofrido um esgotamento nervoso; que tinha entrado em delírio; que, num acesso de raiva psicótica, tinha tentado destruir por completo a mobília de mogno do seu gabinete.
Inevitavelmente, os rumores difundidos acerca de Mónica chegaram aos ouvidos do The Washington Post. O correspondente do jornal para as questões de espionagem preferiu excluir as coisas mais picantes que tinha ouvido, mas, numa extensa notícia de primeira página, acabou mesmo por relatar que Mónica tinha perdido a confiança dos quadros inferiores da CIA, dos barões da comunidade dos serviços secretos e até do próprio presidente. Nessa tarde, durante uma iniciativa destinada à obtenção de publicidade positiva, com miúdos da escola no Jardim das Rosas, o presidente Beckwith afirmou que Mónica Tyler continuava a ter a sua "total e absoluta confiança".
Traduzido do vocabulário de Washington para uma linguagem simples, o comentário significava que a queda de Mónica Tyler estava a ser ponderada.
Foi assolada por pedidos de entrevistas. O Meet the Press[42] queria que ela participasse no programa. Ted Koppel telefonou-lhe pessoalmente para a convidar para o Nightline[43]. Um membro dos quadros do Larry King Tive[44] tentou mesmo convencer os guardas que se encontravam no portão da frente a deixá-lo passar. Mónica recusou-os a todos. Preferiu antes emitir um comunicado escrito no qual afirmava estar à completa disposição do presidente, e se o presidente quisesse que ela permanecesse ao seu serviço assim o faria.
Mas já não havia nada a fazer. O Inverno abateu-se sobre o sétimo andar. As portas mantiveram-se fechadas a sete chaves. A papelada deixou de circular. A paralisia começava a instalar-se. Mónica estava isolada, dizia a fábrica dos rumores. Mónica estava menos acessível do que nunca. Mónica estava acabada. Tweedledee e Tweedledum só muito raramente eram vistos; e, quando acabavam por aparecer, moviam-se pelos corredores como lobos cinzentos assustadiços. Alguma coisa tinha de ser feita, diziam os rumores. As coisas não podiam continuar daquela maneira.
Por fim, em Julho, Mónica convocou uma reunião dos quadros para o auditório e anunciou a sua demissão, com efeitos a partir do dia 1 de Setembro. Estava a fazer o anúncio atempadamente para que o presidente Beckwith — que ela admirava profundamente e tinha a honra de ter servido — tivesse tempo de sobra para escolher um sucessor apropriado. Entretanto, dar-se-iam mudanças nos quadros superiores. Adrian Cárter iria passar a ser o novo director executivo. Cynthia Martin iria substituir Cárter enquanto chefe do Centro de Contraterrorismo. E Michael Osbourne iria passar a ser o novo director-adjunto de operações.
No Outono, Mónica desapareceu por completo. A sua antiga firma queria tê-la de volta, mas ela disse que precisava de algum tempo para si própria antes de regressar à labuta da Wall Street. Começou a viajar; no sétimo andar de Langley, iam chegando regularmente a Cárter e a Michael informações sobre o seu paradeiro. Mónica estava sempre sozinha, de acordo com os relatórios. Nada de amigos, família, amantes, cães — nada de contactos suspeitos de qualquer espécie. Tinha sido vista em Buenos Aires. Tinha sido avistada em Paris. Tinha ido fazer um safari na África do Sul. Foi fazer mergulho submarino no mar Vermelho, para grande surpresa de todos na sede, já que não havia lá ninguém que tivesse descoberto o facto de ela ser uma mergulhadora de grandes predicados. No final de Novembro, um perito em vigilância do posto de Viena da CIA fotografou Mónica sentada sozinha num café frio na Stephansplatz.
Nessa mesma noite, Mónica Tyler estava a regressar ao hotel a pé a seguir ao jantar, atravessando uma passagem estreita para peões na sombra da Catedral de Santo Estêvão, quando um homem lhe surgiu à frente. Era de estatura média, constituição compacta e passo ágil. Havia qualquer coisa na forma como ele se mexia, o ritmo decidido do seu andar, que fez com que disparassem alarmes na cabeça dela.
Olhou de soslaio por cima do ombro e apercebeu-se de que estava sozinha. Parou de andar, deu meia-volta e começou a voltar para a praça. O homem, agora atrás dela, limitou-se a acelerar o passo. Mónica não correu — percebeu que isso seria inútil —, fechou apenas os olhos e continuou a andar.
O homem foi-se aproximando, mas não aconteceu nada. Ela parou e voltou-se para o enfrentar. Ao virar-se, o homem tirou uma pistola do casaco. Havia um silenciador comprido e esguio instalado na ponta do cano.
— Meu Deus, não — disse ela, mas o homem levantou o braço e disparou rapidamente três vezes.
Mónica Tyler caiu para trás, ficando a olhar fixamente para os pináculos da catedral. Ouviu o seu assassino a afastar-se e sentiu o seu próprio sangue a escorrer-lhe do corpo para as frias pedras arredondadas da calçada.
A seguir, os pináculos de Santo Estêvão transformaram-se em água e ela morreu.
Em Georgetown, Elizabeth Osbourne ouviu o telefone a tocar. Agora que Michael era o director-adjunto, os telefonemas às quatro da manhã não eram invulgares. Tinha uma reunião importante com um cliente de manhã — transferira-se para o escritório da firma em Washington quando Michael foi promovido — e precisava de dormir. Fechou os olhos e tentou não ouvir Michael a murmurar às escuras.
— Alguma coisa importante? — perguntou ela quando o ouviu a pousar o auscultador.
— A Mónica Tyler foi assassinada hoje à noite em Viena.
— Assassinada? O que é que aconteceu?
— Foi morta a tiro.
— Mas quem é que iria querer matar a Mónica Tyler?
— A Mónica tinha muitos inimigos.
— Vais entrar ao serviço?
— Não — respondeu ele. — Trato disso de manhã.
Ela fechou os olhos e tentou adormecer, mas era escusado. Havia qualquer coisa na voz de Michael que a tinha deixado perturbada. A Mónica tinha muitos inimigos.
Incluindo tu, Michael", pensou.
Antes de amanhecer, ele saiu da cama. Elizabeth levantou-se e foi até ao andar de baixo. Deu com ele na sala de estar, parado diante das portas envidraçadas, a olhar fixamente para o jardim meio iluminado.
— Michael — perguntou ela baixinho —, estás bem?
— Estou óptimo — respondeu ele, sem se virar.
— Queres falar de alguma coisa?
— Não, Elizabeth — respondeu. — Só preciso de pensar.
— Michael, se há...
— Já disse que não posso falar disso, Elizabeth. Por isso, não insistas.
Deu meia-volta e afastou-se das portas envidraçadas, passando por ela sem falar.
Elizabeth reparou que a cara dele estava branca como a cal.
A Sociedade para o Desenvolvimento e a Cooperação Internacionais reuniu para a sua conferência anual de Verão num château à beira do lago, no cimo das montanhas de South Island, na Nova Zelândia. O local tinha sido escolhido com grande antecedência, e o lago gelado e os nevoeiros cerrados do Inverno da Nova Zelândia revelaram-se uma alegoria adequada para o terrível estado da Sociedade após a morte de Picasso. O passado do Director no MI6 tinha-o preparado para a ocasional operação falhada, mas nada nos serviços secretos se poderia comparar ao cessar de actividades global que ocorreu nas horas que se seguiram ao desmascarar de Picasso. De um dia para o outro, todas as operações terminaram. Os planos para novos empreendimentos foram discretamente arrumados. As comunicações conheceram um fim abrupto. O dinheiro deixou de circular. O Director encerrou-se na sua mansão em St. John's Wood, apenas com a companhia de Daphne, e fez aquilo que qualquer bom agente operacional faz a seguir a uma autêntica asneira da grossa — avaliou os estragos. E quando achou que estava na altura, pôs-se a coser discretamente os fragmentos dispersos da sua confraria secreta.
Supostamente, a conferência em South Island deveria ser uma espécie de festa de debutante. Mas a reabilitação da Sociedade revelava-se, na melhor das hipóteses, titubeante. Dois dos membros do Conselho Executivo não se deram sequer ao trabalho de comparecer. Um tentou enviar um substituto, uma sugestão que o Director considerou risível. Pouco depois de dar início à reunião, o Director, num raro acesso de cólera motivado pelo orgulho ferido, apresentou uma moção com vista a expulsá-los a ambos. A moção foi aprovada por uma votação de viva voz, registada por Daphne no seu bloco de estenografia com grande prontidão.
— O segundo ponto na ordem de trabalhos é o falecimento de Picasso — anunciou o Director, aclarando depois ligeiramente a garganta. — Estou certo de que a morte dela terá sido um choque terrível para todos vocês, mas pelo menos ela já não se encontra em posição de prejudicar a Sociedade.
— Felicito-o por lidar com o problema de uma forma tão profissional — disse Rodin.
— Mas não estás a perceber — respondeu o Director. — A morte dela foi mesmo um choque, já que a Sociedade não teve absolutamente nada a ver com isso.
— Mas e em relação ao Outubro? Ele ainda está vivo, não está?
— Parto do princípio de que seja esse o caso, mas não tenho a certeza. Talvez a CIA o tenha escondido. Talvez o Michael Osbourne o tenha matado e encoberto isso.
A única coisa que posso afirmar com certeza é que todas as nossas tentativas para o localizar fracassaram.
— Talvez eu possa ajudar — interrompeu Monet, o chefe de operações da Mossad israelita. — Os nossos homens já se mostraram capazes de encontrar fugitivos no passado.
Encontrar um homem como o Outubro não deve revelar-se demasiado difícil.
Mas o Director abanou a cabeça lentamente.
— Não — afirmou ele. — Mesmo que o Outubro continue vivo, duvido que alguma vez venha a ser um problema para nós no futuro. Na minha opinião, é melhor deixar cair o assunto. — Baixou os olhos e remexeu nos papéis. — O que me leva ao terceiro ponto na nossa ordem de trabalhos, a situação na antiga Jugoslávia. A Frente de Libertação do Kosovo gostaria de contar com a nossa ajuda. Meus senhores, estamos de volta ao activo.
EPÍLOGO
LISBOA
BRÉLÉS, FRANÇA
Jean-Paul Delaroche tinha arrendado um pequeno apartamento num prédio cor de âmbar a ruir com vista para o porto de Lisboa. Estivera em Lisboa apenas uma vez, e só de passagem, e a mudança de ares trouxe nova vida ao seu trabalho. Com efeito, atravessava o seu período mais produtivo em muitos anos. Trabalhava aplicadamente de manhã até meio da tarde, produzindo óptimas obras a partir das igrejas, das praças e dos barcos ao longo da zona ribeirinha. O dono de uma eminente galeria lisboeta viu-o a pintar uma tarde e propôs-lhe entusiasticamente expor os seus quadros. Delaroche aceitou o cartão dele com os seus dedos esborratados de tinta e disse que iria pensar nisso.
A noite, ia caçar. Ia para a varanda e punha-se à procura de sinais de vigilância. Caminhava durante horas, tentando fazer com que eles se mostrassem. Ia andar de bicicleta para o campo e desafiava-os a seguirem-no. Colocou escutas no seu próprio apartamento para ver se alguém lá entrava quando estava fora. No último dia de Novembro, aceitou o facto de que ninguém andava a vigiá-lo.
Ao final dessa tarde, saiu do apartamento e dirigiu-se para um bom café para jantar.
Pela primeira vez em trinta anos, não levou a pistola consigo.
Em Dezembro, alugou um grande Fiat e conduziu até França. Tinha deixado Brélés, a velha aldeia piscatória na costa da Bretanha, há mais de um ano e não pusera lá os pés desde então. Chegou ao meio-dia, um dia depois de partir de Lisboa, tendo passado a noite em Biarritz.
Estacionou na aldeia e foi passear a pé. Ninguém o reconheceu. Na boulangerie, Mademoiselle Trevaunce serviu-lhe o pão sem praticamente um bonjour. Mademoiselle Plauché, da charcuterie, costumava meter-se descaradamente com ele; naquele dia, foi sem alegria que lhe cortou o presunto e a fatia de queijo de cabra, despachando-o logo de seguida.
Delaroche entrou no café onde os velhos passavam as tardes. Perguntou se algum deles tinha visto uma irlandesa pela aldeia: cabelos pretos, ancas jeitosas, bonita.
— Está uma irlandesa a viver no velho chalé, no pontão — respondeu Didier, o dono de cara vermelha do armazém da aldeia. — Onde o louco vivia dantes: le Solitaire.
Quando Delaroche fez de conta que não percebia o que ele queria dizer com aquele último comentário, Didier limitou-se a rir e explicou a Delaroche o caminho até ao chalé. A seguir, perguntou-lhe se não queria acompanhá-los num pouco de vinho e azeitonas. Delaroche abanou simplesmente a cabeça e respondeu:
— Non, merci.
Delaroche seguiu de carro pela estrada da costa e estacionou a cerca de duzentos metros do chalé, numa área de descanso com vista para a água. Viu fumo a sair da chaminé, cortado logo de seguida pelo vento. Limitou-se a ficar ali sentado, a petiscar o pão e o queijo, a fumar, a observar o chalé e as ondas a baterem nas rochas.
A dada altura, teve um vislumbre do cabelo preto dela, a passar diante de uma janela aberta.
Pensou na última coisa que Michael Osbourne lhe tinha dito na véspera de partirem de Shelter Island. Ela merece pior, dissera ele nessa noite. Ela merece morrer.
Osbourne era um homem demasiado decente — demasiado virtuoso — para condenar Mónica à morte, mas Delaroche julgava saber aquilo que lhe ia no coração naquele momento. Era um pequeno preço a pagar para retribuir a Osbourne o facto de este lhe ter concedido a liberdade.
Na verdade, aquilo até lhe deu um certo prazer; ela era uma das pessoas mais desagradáveis que ele já tinha conhecido. E havia mais uma coisa — ela tinha visto a cara dele.
Rebecca surgiu no terraço, de braços cruzados por baixo do peito, a contemplar o Sol a pôr-se. Delaroche pensou: "Será que ela me quer ver? Ou será que quer que eu fique longe para poder esquecer todo este assunto?" O mais fácil para ele seria dar meia-volta e esquecê-la. Voltar para Lisboa e para o seu trabalho. Aceitar a proposta do dono da galeria e expor os quadros.
Ligou o motor. Bastou esse som distante para que ela se virasse de repente e enfiasse a mão debaixo da camisola. Era por andar escondida, pensou Delaroche. Anda a saltar ao mínimo barulho, sempre à procura de uma pistola. Ele conhecia muito bem essa sensação.
Rebecca olhou fixamente para o carro durante bastante tempo e, passado um bocado, os seus lábios ergueram-se em qualquer coisa parecida com um sorriso. A seguir, voltou as costas, contemplando o mar novamente e ficando à espera que ele viesse ter com ela. Delaroche meteu a primeira e começou a avançar pela estrada, em direcção ao chalé.
NOTAS
[1]Siglas de Ulster Volunteer Force (Força de Voluntários do Ulster), Ulster Defence Association (Associação de Defesa do Ulster) e Ulster Freedom Fighters (Combatentes para a Liberdade do Ulster). (N. do T.)
[2]Força policial da República da Irlanda. (N. do T.)
[3]Sigla de Royal Ulster Constabulary (Polícia Real do Ulster). (N. do T.)
[4]Independem Television News, fornecedor internacional de notícias e conteúdos com sede no Reino Unido. (N. do T.)
[5]Termo pejorativo para os católicos irlandeses, utilizado sobretudo na Irlanda do Norte e na Escócia. (N. do T.)
[6]Termo pejorativo para os cidadãos protestantes. (N. do T.)
[7]Theobald Wolfe Tone (1763-1798), uma das figuras principais do movimento pela independência irlandesa United Irishmen, considerado o pai do republicanismo irlandês;
Eamon de Valera (1882-1975), uma das figuras políticas dominantes do século XX na Irlanda e um importante líder da luta pela independência irlandesa em relação ao Reino Unido;
Michael John ("Mick") Collins (1890-1922), líder revolucionário irlandês que foi ministro das Finanças da República Irlandesa, director dos serviços secretos do IRA e membro da delegação irlandesa que negociou o Tratado Anglo-Irlandês de 1921, tendo sido também presidente do Governo Provisório da Irlanda do Sul e comandante-chefe do Exército Nacional. (N. do T.)
[8]No original, National Organization for Women, organização feminista norte-americana (também conhecida pela sigla NOW) fundada em 1966. (N. do T.)
[9]Ou bocha: jogo que consiste em lançar bolas e situá-las o mais perto possível de uma bola mais pequena, o bolim, lançada anteriormente. (N. do T.)
[10]Acrónimo para Grand Old Party, outra designação para o Partido Republicano dos Estados Unidos. (N. do T.)
[11]Sigla de Special Air Service (Serviços Aéreos Especiais), força especial das forças armadas do Reino Unido. (N. do T.)
[12]Marcha associada em primeiro lugar ao presidente dos Estados Unidos da América. (N. do T.)
[13]No original, "A Mighty Fortress Is Our God", o mais conhecido dos hinos compostos por Martinho Lutero. (N. do T.)
[14]Bebida espirituosa grega tradicional, com sabor a anis e um aspecto leitoso quando se lhe adiciona água. (N. do T.)
[15]Abreviatura para non-official cover, termo utilizado em espionagem para os agentes ou operacionais que adoptam disfarces em organizações sem ligações ao governo para o qual trabalham. (N. do T.)
[16]Sigla de Office of Strategic Services (Agência de Serviços Estratégicos), os serviços secretos dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[17]No original, Doubk Cross. (N. do T.)
[18]Serviços secretos do alto-comando militar alemão, activos de 1925 a 1944. (N. do T.)
[19]No original, Loyalist Volunteer Force. (N. do T.)
[20]Em francês, no original. (N. do T.)
[21]Sigla para Ulster Unionist Party (Partido Unionista do Ulster). (N. do T.)
[22]Expressão que significa "autonomia política" ou "autogoverno autónomo". (N. do T.)
[23]Rua no bairro de Westminster, no centro de Londres. (N. do T.)
[24]Sigla para Counterterrorist Center (Centro de Contraterrorismo). (N. do T.)
[25]Pancada leve dada numa bola de golfe para a introduzir no buraco. (N. do T.)
[26]Sigla para Office of Technical Services (Divisão dos Serviços Técnicos). (N. do T.)
[27]Abreviatura de Chief Of Station. (N. do T.)
[28]Em português, "brochista". (N. do T.)
[29]Canção patriótica do musical da Broadway Uttle Johnny Jones, escrita por George M. Cohan. (N. do T.)
[30]No original, "active service unit" (ou ASU), células do IRA compostas por cinco a oito membros com a missão de levar a cabo ataques armados. (N. do T.)
[31]Termo pejorativo para um cidadão de origem irlandesa. (N. do T.)
[32]Personagem do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, caracterizada pelo seu sorriso pronunciado, que levou à expressão "sorrir como um gato de Cheshire", para descrever alguém que sorri maliciosamente. (N. do T.)
[33]Em alemão, Rote Armee Fraktion ou RAF, organização guerrilheira e terrorista alemã de extrema-esquerda, também conhecida como Baader-Meinhof, fundada em 1970, na antiga Alemanha Ocidental, e dissolvida em 1998. (N. do T.)
[34]Divisão administrativa utilizada em Paris. (N. do T.)
[35]Sigla para Special Operations Executive, uma organização secreta militar britânica em actividade durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
[36]canção patriótica satírica da autoria de W. S. Gilbert e Arthur Sullivan, parte integrante da ópera H.M.S. Pinalore, estreada em 1878. (N. do T.)
[37]Abreviatura para Diplomatic Security Service (Serviços de Segurança do Corpo Diplomático). (N. do T.)
[38]Acção levada a cabo com o objectivo de enganar o inimigo, de maneira a obter informações ou qualquer tipo de vantagem militar. (N. do T.)
[39]Os principais responsáveis pelo atentado à bomba em Oklahoma City, a 19 de Abril de 1995. (N. do T.)
[40]Divisão de espionagem internacional do KGB. (N. do T.)
[41]James Jesus Angleton (1917-1987), antigo chefe da Divisão de Contra-Espionagem da CIA. (N. do T.)
[42]Programa semanal televisivo de informação produzido pela estação norte-americana NBC, no ar desde 1947. (N. do T.)
[43]Programa televisivo de informação nocturna produzido pela estação norte-americana ABC, iniciado em 1979. (N. do T.)
[44]Talk-show diário apresentado por Larry King na estação televisiva norte-americana CNN, no ar desde 1985. (N. do T.)
Daniel Silva
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