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A Melodia da Morte / Edgar Wallace
A Melodia da Morte / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Melodia da Morte

 

Na vida de Gilbert Sanderson havia mais de um mistério. Por que ficava pálido como morto ao ouvir um violino tocar a "Melodia em Fá"? Por que aceitou transformar o seu casamento com a mulher que amava num frio casamento de conveniência? Que estranhas relações mantinha com uma quadrilha de assaltantes de bancos? Poucas vezes um autor conseguiu armar uma intriga assim tão bem urdida e tão cheia de surpresas.

 

                  

 

O APRENDIZ DE ARROMBADOR

Na noite de 27 de maio de 1911, o escritório de Gilderheim, Pascoe & Company, de Little Hatton Garden, firma que negociava com diamantes, não apresentou nada de extraordinário aos olhos do guarda-noturno que, obedecendo à rotina habitual de seu trabalho, lhe examinara a fechadura e experimentara a porta. Até as nove horas da noite o escritório estivera ocupado pelo Sr. Gilderheim e seu contador, e um policial à paisana, cujo dever era farejar pelas redondezas tudo o que lhe parecesse estranho ou singular, ao ver àquela hora uma janela iluminada no primeiro pavimento, ponderando na singularidade do fato, tratou logo de subir e apurar o que ocorria. Era sábado, dia em que os funcionários de Hatton Garden deixam o trabalho, quando muito, às três da tarde.

E qual não foi o alívio do amável Sr. Gilderheim ao constatar que as batidas que o levaram a atender à porta — com um revólver metido no bolso, por via das dúvidas — não o envolveram em nenhuma aventura maior que o breve bate-papo que entreteve com o policial seu conhecido! Explicou que esse dia recebera uma remessa de diamantes de Amsterdã e ficara até mais tarde para classificar as pedras. Com algumas observações divertidas sobre a tentação que sessenta mil libras em jóias poderiam representar para muita gente safada, o policial despediu-se e se foi.

Às nove e quarenta o Sr. Gilderheim trancou os diamantes num grande cofre, diante do qual uma luz elétrica brilhava dia e noite, e, acompanhado do contador, deixou o número 93 de Little Hatton Garden, seguindo em direção de Holborn.

O guarda de serviço desejou-lhe boa noite, e o policial à paisana, que estava mais adiante em Holborn, trocou com ele algumas palavras.

— Está de serviço a noite toda? — perguntou-lhe o Sr. Gilderheim, enquanto o contador fazia sinal a um táxi.

— Sim senhor — respondeu o policial.

— Ótimo! — tornou o comerciante. — Gostaria que vigiasse especialmente o meu escritório. É que deixei uma grande soma no cofre, e estou preocupado.

O policial sorriu e tranqüilizou-o:

— Acho que o senhor não precisa se preocupar.

Depois que o carro com o Sr. Gilderheim se afastou, o detetive pôs-se a caminhar de volta, em direção do número 93.

Entretanto, no curto lapso de tempo que mediou entre a partida do comerciante e o retorno do policial, muita coisa tinha acontecido. Enquanto o Sr. Gilderheim caminhava ao encontro do detetive, dois homens se aproximaram rapidamente pela outra ponta da rua. O primeiro estacou diante do número 93, abriu a porta com uma chave e entrou sem hesitar. O outro seguiu-o. Não pareciam nem um pouco suspeitos; podiam até ser velhos inquilinos do prédio, tão confiantes se mostravam nos menores gestos.

Cerca de meio minuto depois que o segundo homem tinha entrado, apareceu um terceiro, vindo da mesma direção; deteve-se em frente do prédio, abriu a porta, com a mesma tranqüilidade que distinguira a ação do primeiro, e entrou.

Três minutos depois, dois deles estavam no primeiro andar.

Com extraordinária rapidez, um tirou dos bolsos duas pequenas botijas de metal, fixou-lhes uns tubos de borracha e conectou-lhes um canudo em cuja ponta logo fez sorrir uma chama; enquanto o outro dispunha sobre o assoalho o ferramental fino e delicado que trouxera num pequeno estojo.

Não se falaram. Espicharam-se no chão, e nenhuma tentativa fizeram para extinguir a luz que brilhava diante do cofre. Trabalharam em silêncio por alguns momentos; depois, o mais corpulento dentre eles observou, olhando para um refletor fixado obliquamente ao teto que, através da janela, poderia proporcionar a qualquer transeunte interessado, a visão da parte superior do cofre:

— Tem certeza de que esse espelho não vai causar nenhum problema?

O outro larápio era franzino, parecia jovem e tinha qualquer coisa de músico nos cabelos desgrenhados. Meneou a cabeça.

— A não ser que tenham alterado as leis da ótica especialmente para esta ocasião — disse, com leve sotaque, — não podemos ser vistos de jeito nenhum.

— Ainda bem — suspirou o outro. E, entre assobiando e cantarolando de si para si, aplicou a flama sibilante à porta de aço.

Tentava cautelosamente fundir a fechadura, e não tinha dúvidas de que o conseguiria, pois o cofre era bem velho.

Durante meia hora não tornaram a dizer-se palavra. O homem com o maçarico prosseguia em seu mister; o outro a observá-lo interessado, pronto para desempenhar seu papel quando a operação estivesse suficientemente adiantada.

Ao cabo de meia hora, o mais velho enxugou o suor da testa com as costas da mão, pois o calor resultante da chapa de aço em contato com o fogo era insuportável.

— Por que é que você precisa fazer tanto espalhafato para fechar uma porta? — perguntou. — Você está ficando muito descuidado, Calli.

— Eu, caro George? — retrucou o outro, lançando ao companheiro um olhar de surpresa. — Ainda que houvesse alguém na calçada, não teria ouvido coisa alguma; aliás, eu fechei a porta do mesmo modo como abri; sem ruído.

— Pois sim! — replicou-lhe o comparsa, que suava em bicas. — Eu nem cheguei a fechá-la; você entrou logo atrás de mim!

Algo no silêncio que se seguiu a suas palavras fê-lo erguer os olhos. O outro parecia perplexo.

— Abri a porta com a minha própria chave — esclareceu devagar o mais jovem.

— Você abriu... — começou George, armando uma carranca. — Ficou biruta, Callidino? Eu deixei a porta aberta; você entrou logo depois de mim, e eu subi direto as escadas, com você nos calcanhares.

Callidino olhou detidamente para o outro e meneou a cabeça.

— Já disse que abri a porta com a minha chave — insistiu com calma. — Caramba, George; se alguém entrou depois de você... precisamos ver quem é!

— Como assim?

— Estou dizendo — explicou o pequeno italiano — que seria muito ruim se agora aparecesse mais alguém por aqui.

— Tem razão — conveio o outro.

— Por quê?

Ambos se voltaram, estupefatos; pois a voz que formulara a pergunta, sem o menor vestígio de emoção, era de uma terceira pessoa, a qual permanecia à porta, protegida contra qualquer possibilidade de ser vista pela janela, graças a um ângulo do aposento.

Era um homem vestido a rigor, com um leve sobretudo no braço.

Que espécie de pessoa era ou que aparência tinha os outros não poderiam dizer, pois envergava uma máscara preta que lhe ia do queixo à testa.

— Por favor, não se mexam — disse-lhes; — e não levem a mal este revólver. Uso-o em defesa própria; os senhores têm de admitir que nas circunstâncias, dada a extrema delicadeza de minha posição, é natural que me precavenha.

George Wallis riu à meia voz.

— Cavalheiro — disse, sem mudar de posição, — esteja certo de que tem toda a nossa simpatia; mas não se importa de nos dizer exatamente o que quer?

— Quero aprender — respondeu o estranho, considerando os outros dois com interesse patente. Pelos orifícios da máscara seus olhos cintilavam, vivazes e penetrantes.

— Podem continuar o trabalho. Não quero interrompê-los.

George Wallis apanhou o maçarico e voltou-se, obediente, para a porta do cofre. A situação era nova para ele; contudo não se deixava abalar; era um sujeito adaptável.

— Já que não lhe faz diferença, se você é um representante da lei e da ordem, que eu continue o meu trabalho, então acho que posso mesmo prosseguir, porque se você não representa a lei e a ordem, coisas estas tão admiráveis, excelentes e necessárias, podemos ao menos repartir os lucros com você.

— Podem ficar com tudo — esganiçou o estranho. — Não tenciono repartir com ninguém um processo por latrocínio. Só o que quero é aprender como se faz.

— Pois vai aprender — tornou George Wallis, gatuno dos mais notáveis; — e vai aprender de um perito, pode crer.

— Bem sei disso — conveio o estranho.

Wallis retomou a tarefa sem mostrar-se perturbado pela extraordinária interrupção. As mãos do italiano, porém, crisparam-se, nervosas, o que poderia causar alguma dificuldade; mas a corpulência e o sangue-frio de seu companheiro, o qual obviamente comandava a operação, animaram-no a aceitar quaisquer conseqüências que dali pudessem advir. Foi de novo o mascarado quem veio a quebrar o silêncio que se seguiu.

— Não é extraordinário? — exclamou. — Há escolas técnicas destinadas a ensinar toda espécie de artes e ofícios, e, no entanto, não existe nenhuma que ensine a arte de destruir. Acreditem, agradeço à Providência a oportunidade de observar um verdadeiro mestre em ação.

Sua voz era agradável, mas havia nela certa aspereza que não condizia com aquele tom frívolo.

Deitado, o outro continuou o trabalho por algum tempo; depois disse, sem se voltar:

— Daria tudo para saber exatamente como foi que você chegou aqui.

— Segui-o de perto — explicou o intruso. — Eu sabia que haveria um intervalo considerável entre suas respectivas entradas no prédio. Os senhores andaram observando este escritório durante quase uma semana; a cada noite um ou outro dos senhores esteve de plantão. Alugaram um pequeno escritório logo acima da rua, de onde se tem uma boa vista deste local. Percebi que o golpe seria dado hoje à noite porque os vi sair esta manhã com o gás. Ambos ficaram esperando num canto escuso do prédio em que alugaram o escritório, um dos dois a observar o momento em que a luz daqui se apagasse e o Sr. Gilderheim saísse. Quando ele saiu, o senhor — e dirigiu-se ao homem deitado no assoalho, pois o italiano já se tinha erguido — surgiu imediatamente, mas seu companheiro não o seguiu de pronto. Aliás, ele se deteve para apanhar um pequeno pacote de cartas que alguém deixou cair em seu caminho; e como entre essas cartas havia dois embrulhinhos selados, muito parecidos com aqueles que os comerciantes de Hatton Garden costumam enviar a seus clientes, não é difícil compreender como escapei à observação de seu comparsa e pude seguir o senhor de perto.

Callidino riu-se baixinho.

— É verdade — admitiu, com um gesto de cabeça. — Foi muito engenhoso. Então o pacote não caiu por acaso?

O mascarado inclinou a cabeça.

— Prossigam, por favor — disse amavelmente; — não quero interromper.

— Que vai acontecer quando terminarmos? — indagou George, com o rosto ainda voltado para o cofre.

— No que me diz respeito, nada. Assim que tenham terminado o trabalho e retirado daí o que houver para retirar, eu irei embora.

— Mas vai querer a sua parte, não vai?

— De modo algum — esclareceu o outro friamente. — Não quero nada. Não tenho esse direito. Minha posição social não me permite ir além da conivência com os senhores neste furto.

— Crime capital — corrigiu o homem deitado no assoalho.

— Crime capital — concordou o estranho.

E o mascarado esperou até que, sem o menor ruído, a pesada porta do cofre se abriu e George enfiou a mão dentro para subtrair-lhe o conteúdo; então, sem uma palavra, saiu, fechando a porta atrás de si.

Os dois gatunos ergueram-se tensos e aguçaram os ouvidos. Nada mais ouviram além do ruído abafado da porta da rua ao se fechar; o extraordinário visitante se fora afinal.

Trocaram olhares; um parecia intrigado; o outro, porém, divertia-se.

— Eis um sujeito extraordinário — disse Callidino. O outro concordou.

— É mesmo — disse; — e mais do que extraordinário será conseguirmos cair fora de Hatton Garden esta noite com o fruto da pilhagem.

Tudo leva a crer que o conseguiram, pois ninguém os viu sair, e o arrombamento do cofre de Gilderheim proporcionou ao povo, cujo único tema de conversação até ali era o "grande prêmio" da temporada turfística, um excelente assunto alternativo.

 

O GRANDE PRÊMIO DE SUNSTAR

Lá estava ele de novo!

Acima da confusão de sons, do murmúrio de vozes, suave e triste, ora audível ora não, um como errante fio dourado preso à trama sombria da vida, a fulgurar momentaneamente. Gilbert Standerton apurou o ouvido, tentando localizar aquele som.

Era a "Melodia em Fá" que o músico invisível tocava.

— Vamos ter uma tempestade.

Gilbert não ouviu a voz que o dissera. Sentou-se e abraçou os joelhos, suando abundantemente.

Havia algo de trágico, de terrífico em sua postura. Um perfil que, do ponto de vista de seu exasperado amigo, era perfeito: fronte alta e bem feita, nariz um tanto longo, queixo forte e resoluto.

Leslie Frankfort, erguendo os olhos para aquele sonhador, lembrou-se da imagem convencional de Dante, embora Dante nunca usasse cartola nem consta que jamais achasse tão absorvente uma torcida de turfe.

— Vai chover à beca.

Leslie galgou uma pequena escada e atirou-se num lugar ao lado de Gilbert.

Este despertou da cisma num sobressalto.

— Será? — perguntou, e enxugou o suor da fronte.

Entretanto, quando olhou em torno, não foram as nuvens escuras amontoando-se sobre Banstead o que lhe chamou a atenção, mas sim aquela enorme massa de homens e mulheres, aqueles cartazes berrantes e bizarros gabando a honestidade e a solidez da "velha firma", as barracas colorindo o morro, a longa sucessão de painéis erigidos só para anunciar o uísque de alguém; o alvoroço, a turbulência e a vitalidade daquele vasto e incontável povo; coisas essas suficientes por si só para roubar a importância que uma simples chuva de verão pudesse ter.

— Se você soubesse a pena que os ignorantes têm de você, — disse Leslie Frankfort meio aborrecido — não estaria aí nessa pose de jogador falido. Meu caro, sentado aqui em cima, com essa cara comprida, você parece, sem tirar nem pôr, o modelo ideal para a estampa colorida do número de Natal da Gazeta Antijogo. Se calhar, já existe uma gazeta assim.

Gilbert riu-se.

— Essa gente toda me interessa — disse, erguendo-se um pouco para falar. — Você não percebe o que esse pessoal significa? Cada qual uma individualidade separada e distinta; cada um acalentando uma esperança ou abrigando um receio em seu íntimo; todos capazes de amar, odiar ou entristecer-se. Olhe aquele homem! — e estendeu um dedo longo e nervoso em direção de' alguém.

O local indicado era um pequeno oásis de relva verdejante. Em torno, as pessoas abriram um espaço em cujo centro estava um homem de meia altura, com um chapéu--coco empurrado para a nuca, segurando um charuto comprido e fino entre os dentes alvos e regulares. Estava longe demais para que Leslie pudesse distinguir esses pormenores, mas a imaginação de Gilbert Standerton supria as deficiências visuais do amigo, pois já tinha visto aquele homem antes.

Como se cônscio do escrutínio de que era alvo, o homem em questão voltou-se e aproximou-se lentamente dos dois. Tirou o charuto da boca e escancarou um sorriso para Gilbert.

— Como vai o senhor?

Sua voz soou aguda e logo se desvaneceu, como se uma imensa distância os separasse; precisara gritar para fazer-se ouvir em meio à confusão de vozes. Gilbert acenou-lhe a mão, com um sorriso, ao que o homem respondeu fazendo uma mesura com o chapéu e logo foi tragado por uma onda humana que remoinhou à sua volta e acabou por levá-lo na voragem.

— É um ladrão — comentou Gilbert; — um larápio dos grandes. Chama-se Wallis; há muitos Wallis aqui... As multidões são um espetáculo terrível, pensando bem — concluiu como para seus botões.

O outro relanceou-lhe os olhos penetrantes.

— É duro ter de vará-las debaixo de tempestade — ponderou, pragmaticamente. — Que tal irmos dando o fora?

Gilbert concordou.

Ergueu-se rijo, como se estivesse com cãibra, e desceu os degraus. Atravessaram a cerca, para ganhar tempo; adentraram um pequeno coberto em que homens de imprensa, jóqueis e organizadores de corridas se acotovelavam, e chegaram à estrada.

Na garagem encontraram o carro e, por incrível que pareça, o motorista também. Um relâmpago vibrou sobre os Downs *, e o primeiro trovão já reboava na atmosfera carregada, quando o carro em que estavam se meteu pelo tráfego que demandava Londres. Dali a instantes a tempestade que se armara durante toda a tarde rebentou sobre Epsom. Relâmpagos se sucediam incessantes, em meio à chuva que desabava inclemente com trovões contínuos e ensurdecedores.

(*) Chapada ao sul da Inglaterra.

 

A enorme multidão que havia sobre a colina dissolveu-se, como por efeito da água, em longas filas de pessoas que se atropelavam em direção das três estações ferroviárias. Seria necessário mais que agilidade para dirigir o carro naquele caos de jardineiras e ônibus em que estavam engolfados.

Standerton tomou assento junto do motorista, apesar de o carro todo ser coberto. Era muito observador e, a partir do segundo relâmpago, notou que o motorista empalidecera passando a dar mostras de grave nervosismo. Uma escuridão quase noturna cobria os céus. A linha do horizonte em redor orlava-se de brumas foscas amarelo-inflamadas; havia muito não se via na Inglaterra tempestade igual.

A chuva apertou, mas o rapaz ao lado do motorista não parecia importar-se; observava aquelas mãos nervosas a ziguezaguearem no volante, tentando achar caminho por entre o tráfego intenso da estrada.

Súbito, um relâmpago chicoteou o ar em frente do carro, e uma explosão mais terrível que as anteriores azabumbou Standerton.

Instintivamente o motorista retrocedeu no banco, com o rosto lívido e contorcido; afastou as mãos trêmulas do volante e retirou o pé do pedal. O automóvel acabaria por parar, não estivessem eles no alto de um declive.

— Deus do céu! — bradou ele; — é terrível! Não posso prosseguir, senhor...

A mão de Gilbert Standerton já estava no volante e seu pé calcava firmemente o breque.

— Saia daí — rosnou. — Passe para cá, depressa!

O homem obedeceu. Passou trêmulo para o lugar do outro, cobrindo o rosto com as mãos, e Standerton deslizou rápido para o volante.

Felizmente, era motorista de grande habilidade; mas, mesmo assim, precisou de alguma ajuda para voltar o carro para a colina que conduz aos Downs. Enquanto prosseguiam aos solavancos, a chuva apertou mais ainda, e já havia grandes enxurradas margeando as trilhas. As rodas do veículo patinhavam na lama, porém o homem ao volante conservou o sangue-frio, e dentro em pouco fez o enorme carro deslizar por uma pequena colina até alcançar novamente a estrada. Esta apinhava-se de gente caminhando às pressas. Gilbert progredia devagar, acionando a buzina o tempo todo, quando, de súbito, o automóvel estacou num espasmo.

— Que aconteceu?

Leslie Frankfort abrira a vidraça que separava o chofer dos demais ocupantes do carro.

— Vi um velho amigo ali atrás — explicou Gilbert, falando por cima do ombro. — Posso dar-lhe uma carona? Depois eu explico...

Apontara duas figuras em triste estado à margem da rodovia. Eram um velho e uma moça; Leslie não conseguiu ver-lhes os rostos claramente. Com as costas voltadas para o temporal, ambos tiritavam debaixo de um fino e único casaco.

Gilbert gritou-lhes, e eles se viraram. O homem tinha um rosto aprazível; esguio, refinado, intelectual; era o rosto de um artista. Seu cabelo grisalho transbordava por sobre o colarinho, e segurava sob o capote algo cuja integridade parecia preocupá-lo mais que a sua própria.

A solene mocinha a seu lado, que poderia ter uns dezessete anos, inspecionou gravemente os ocupantes do veículo, com um par de olhos impávidos e grandes. À vista do convite de Gilbert, o velho hesitou; mas, como lhe acenassem com impaciência, fez a moça descer à estrada, enquanto Leslie abria-lhes a porta.

— Subam depressa — gritou. — Caramba, como estão molhados!

Bateu a porta atrás deles, e os recém-chegados sentaram-se à sua frente. Estavam em mísero estado.

— Tirem esse capote — disse Leslie bruscamente. — Tenho aqui um par de lenços; se bem que vocês precisariam era de uma toalha de banho.

A moça sorriu.

— É muita bondade — disse-lhe. — Vamos sujar todo o carro.

— Ah, não tem importância — tornou Leslie, cordial. — O carro não é meu mesmo. De qualquer modo — acrescentou, — desculpe-se depois com o Sr. Standerton.

E revirava na cachola em busca de uma explicação para o fato de Standerton ter recolhido aquelas duas criaturas na Limusine.

O velho sorria ao falar, e suas primeiras palavras foram de explicação.

— O Sr. Standerton sempre foi muito bondoso para comigo — disse docemente, quase com humildade.

A voz era suave e bem modulada, e nisso Leslie Frankfort reconheceu que o seu interlocutor era pessoa educada. Sorriu-lhe. Estava já bastante afeito aos singulares amigos de Standerton para deixar-se surpreender por aquele encharcado músico ambulante; pois tal era o homem, a julgar pelo pescoço dum violino que lhe viu emergir de sob a capa úmida.

— Conhece-o bem, não é?

O velho fez que sim.

— Muito bem até — sublinhou.

Retirou de sob a capa empapada o objeto de seus cuidados, e Leslie Frankfort constatou que se tratava mesmo de um violino, porém velho. O músico inspecionou-o zeloso e depois, com expressão de alívio, pô-lo ao comprido sobre as pernas.

— Espero que não tenha sofrido nenhum dano — acudiu Leslie.

— Não senhor — tornou o outro. — Eu receava muito que terminasse mal um dia que começou tão bem.

Estiveram tocando nos Downs, onde haviam colhido boa messe.

— Minha neta também toca — esclareceu o velho. — Normalmente não nos misturamos com as multidões, mas isto invariavelmente significa dinheiro — sorria, — e não estamos em posição de recusar as oportunidades que aparecem, sejam quais forem.

A essa altura já se afastavam do foco do temporal. Atravessaram Sutton e atingiram uma região cujas estradas ainda estavam secas. Foi quando Gilbert freou o carro e devolveu o volante ao chofer que, envergonhado, reassumiu o seu posto.

— Lamento muito, senhor — começou ele.

— Ah, não foi nada — sorriu-lhe o patrão; — não se tem culpa de ter medo de tempestades. Também já tive pavor delas... Mas há coisas piores — acrescentou, como de si para si.

O homem balbuciou-lhe uma palavra de gratidão; Gilbert abriu a porta traseira e entrou. Cumprimentou o velho com um gesto de cabeça e deu à moça um rápido sorriso.

— Este é o Sr. Springs — disse a Leslie; — um amigo velho. Se você jantou alguma vez em St. John's Wood, na certa deve ter ouvido o violino dele debaixo da janela. Sempre estava lá, não é, Sr. Springs? A propósito — interrompeu-se, — eram vocês tocando...?

Calou-se, e o velhote, interpretando mal a pergunta, fez que sim.

— Afinal, — tornou Gilbert, com súbita mudança de maneiras, — não seria humano deixar minha orquestra particular afogar-se em Epsom Downs, para não falar que poderiam ter sido atingidos por um raio.

— Será que haveria mesmo esse perigo? — indagou Leslie, preocupado.

Gilbert confirmou com um gesto.

— Quando deixamos os Downs, vi uma pessoa atingida — disse; — mas os temporais não são tão perigosos na cidade.

Despediram-se do velho e de sua neta em Balham; depois, com o carro novamente em movimento, Leslie girou os olhos ainda surpresos para o amigo.

— Você é mesmo um caso sério, Gilbert — disse ele; — não consigo entendê-lo. Esta manhã você se descreveu como um feixe de nervos...

— Eu disse isso? — perguntou o outro com indiferença.

— Bom, não chegou a admiti-lo — emendou Leslie, com ar de agravo, — mas essa descrição evidentemente se ajusta em você. E, no entanto, bem no meio duma tempestade de arrepiar os cabelos, você se mete no lugar do motorista para nos tirar do apuro. E ainda por cima se mantém calmo bastante para reconhecer um velhote e dar-lhe carona, quando seria natural, e até justo dentro das circunstâncias, abandoná-lo à própria sorte.

Por alguns instantes Gilbert não respondeu; depois sorriu com uma ponta de amargura.

— Há muitos modos de ser-se nervoso — elucidou, — e acontece que esse que você imaginou não faz parte do meu repertório. Aquele velhote é uma peça importante da minha vida, embora nem mesmo ele o saiba; é o próprio instrumento do destino.

Batia as sílabas com solenidade; então pareceu tomar consciência do olhar intrigado com que o outro o media da cabeça aos pés.

— Não sei de onde você tirou a idéia de que eu fosse um feixe de nervos — disse. — Dificilmente seria essa a condição ideal de um homem à beira do casamento.

— Essa bem pode ser a causa, meu caro — tornou o outro em tom reflexivo. — Conheço um mundaréu de gente capaz de se transtornar com essa perspectiva. Houve um tal de Tuppy Jones que simplesmente escafedeu-se na hora h, alegando perda de memória ou qualquer outro pretexto sensacional.

Gilbert sorriu.

— Eu não fugi propriamente, mas recorri a uma alternativa semelhante: transferi a data do casório.

— E por quê? — indagou-lhe o companheiro. — Eu estava para perguntar-lhe esta manhã, de caminho para Epsom, mas depois me esqueci. A Srta. Cathcart disse-me que não queria saber de nada disso.

Gilbert não o encorajou a continuar, mas o amigo estava de veia e prosseguiu assim mesmo:

— Pegue o que os céus lhe dão, filho. Aí está você com um sólido emprego no Ministério dos Negócios Exteriores, a perspectiva de um subsecretariado acenando-lhe, um belo casamento à vista, rico...

— Por favor, não diga isso — esganiçou Gilbert. — Essa idéia está espalhada por toda Londres. Além do meu salário não tenho dinheiro nenhum. Este carro — apressou--se a dizer em resposta ao olhar interrogativo do outro — é meu, decerto; foi um presente de meu tio, e não creio que ele o queira de volta antes que seja vendido. Ainda bem que isto não faz diferença para você — prosseguiu, ainda com voz áspera, — mas imagino que dois terços dos amigos que tenho e todas as gentilezas de que de tempos em tempos sou alvo baseiam-se nesse boato de riqueza. Todo mundo pensa que sou o herdeiro de meu tio.

— E não é? — indagou-lhe o companheiro, surpreso. Gilbert meneou a cabeça.

— Meu tio expressou recentemente a intenção de deixar toda a sua fortuna para uma admirável instituição que está prestando relevantes serviços ao mundo: o Asilo de Cães, de Battersea.

O rosto jovial de Leslie Frankfort exibiu uma expressão de trágica perplexidade.

— Já contou isto à Srta. Cathcart? — perguntou depois.

— À Srta. Cathcart! — replicou o outro, surpreso. — Claro que não. Não acho que seja necessário. Afinal — disse a sorrir, — não é por dinheiro que Edith vai se casar comigo; ela já é bastante rica, não é? Não que isto importe — emendou à pressa.

Não tornaram a se falar pelo resto da viagem, e na esquina da rua St. James, Leslie desceu.

Gilbert prosseguiu caminho até a pequena casa que já adquirira mobiliada um ano antes, ocasião em que o seu casamento lhe era a mais remota das possibilidades e suas perspectivas pareciam muito mais brilhantes do que então.

Ele pertencia a uma dessas singulares famílias que parecem compostas exclusivamente de sobrinhos. O tio, um excêntrico anglo-indiano, resolvera zelar pelo futuro do rapaz, e era o principal responsável pelo cargo que ele, agora ocupava. Além disso, constituíra-o seu herdeiro; e como era incapaz de fazer em segredo o que quer que fosse, as notícias acerca da boa fortuna daquele moço difundiram-se logo, de um extremo ao outro da Inglaterra.

E não era que, um mês antes de o caso ir oficialmente a público, chegava-lhe às mãos, como uma bomba, a notificação lacônica daquele seu parente, segundo a qual julgara de melhor aviso alterar os termos do testamento, pelo que Gilbert não esperasse entrar na posse de nenhuma quantia superior às mil libras que, do mesmo modo que à sua multidão de primos, lhe estavam daí por diante destinadas.

A nota não o abalou; apenas agravou-o um pouco o temor de ter ofendido o tio de algum modo. Era bastante reconhecido ao velho para ressentir-se de uma simples excentricidade que, afinal, só faria empobrecê-lo comparativamente.

Se tivesse revelado o fato a uma pessoa que fosse, certo é que os rumos de sua vida teriam sido bem outros.

 

GILBERT SAI ÀS PRESSAS

Gilbert estava se vestindo para o jantar, quando a tempestade se abateu sobre Londres. Não perdera nada da força e intensidade iniciais. Durante uma hora a rua úmida refletiu intermitentemente os lampejos azuis das descargas elétricas e a casa sacudiu-se ao ribombo contínuo dos trovões.

Ele próprio estava em sintonia com os elementos, pois raivava em seu íntimo uma tempestade que abalava os fundamentos de sua vida. Exteriormente não havia sinal dessa tensão. O rosto que viu no espelho, ao barbear-se, era uma máscara imóvel e inexpressiva.

Mandou o criado chamar um táxi. O temporal passara de Londres; só um rumor distante de trovões ainda podia ser ouvido quando ele saiu à rua. Punhados de nuvens laceradas pelo vento cruzavam o céu numa corrida frenética. Desceu do táxi defronte do número 274 de Portland Square, lento e relutante. Tinha um desagradável dever a cumprir; mais até do que o poderia crer sua futura sogra.

Não duvidava de que a suspeita com que Leslie lhe envenenara o espírito era injusta e indigna de atenção.

Foi introduzido no vestíbulo onde mais ninguém havia. Olhou o relógio.

— Cheguei cedo demais, Cole? — indagou do mordomo.

— Bastante, senhor — respondeu-lhe o homem; — mas vou avisar a Srta. Cathcart que o senhor já está aqui.

Gilbert concordou. Caminhou até a janela e deteve-se, com as mãos cruzadas nas costas, a contemplar a rua molhada. Esteve assim perto de cinco minutos, cabisbaixo, absorvido em meditações. O ruído da porta ao abrir-se despertou-o da cisma, e ele se voltou para avistar-se com a moça que acabara de entrar.

Edith Cathcart era uma das mais belas mulheres de Londres, conquanto "mulher" fosse palavra um tanto pesada para aplicar-se a uma mocinha mal saída da meninice.

Seus olhos cinzentos, de peculiar suavidade, pareciam abrigar sempre uma apreensão; algo como receio e interesse a um só tempo. Olhos permanentemente em guarda; que, mesmo ao atrair, conservavam as pessoas à distância mínima de um braço. Seu nariz era um tudo-nada arrebitado, e os lábios expressivos acentuavam-lhe a apreensão dos olhos. Pentear-se de modo a fazer os cabelos negros caírem em parte sobre a testa. Trajava cetim verde-marinho, e estava quase sem jóias.

Gilbert foi-lhe ao encontro, apressado, e tomou as mãos dela nas suas, fitando-a com olhos interrogativos, ansiosos.

— Você está encantadora esta noite, Edith — disse, quase num sussurro.

Ela se desembaraçou das mãos dele, mostrando-lhe um leve sorriso para compensar o gesto de repulsa.

— Divertiu-se hoje no hipódromo? — perguntou.

— Foi bem interessante — respondeu ele; — é extraordinário que eu nunca tivesse ido lá antes.

— Você não poderia ter escolhido um dia pior. Foi apanhado pela tempestade? Aqui tivemos um temporal daqueles.

Ela falava rápido, com uma leve nota interrogativa ao final de cada frase. Causava a impressão de que desejava estar em boa harmonia com o noivo, prestando-lhe a devida reverência. Era como uma criança ansiosa por desincumbir--se da lição; e, vez por outra, deixava transparecer uma expressão de alívio, como se tivesse vencido mais uma etapa.

Gilbert sempre estivera cônscio da tensão que caracterizava suas relações com a moça.

Várias vezes por dia tentava convencer-se de que tudo ia bem entre eles. Encontrou prontamente uma escusa para aquele retraimento, bem como para o receio que via ir e vir nos olhos da amada. Ela era jovem, concluiu; muito jovem, mesmo para os anos que tinha; apenas um botão ainda mal aberto. Além do mais, seu romance fora malsinado, de saída, por um tremendo excesso de formalidades.

Encontrara-a convencionalmente num baile. E, não menos convencionalmente, fora-lhe apresentado por sua mãe. Dançaram, passearam, desceram o rio de chalana; levou-a a mãe a Ascot: e em tudo isso desempenhara o papel comum e ordinário que cada ocasião exigia. E, no entanto, faltara algo; disto Gilbert jamais duvidou.

Enfim, acabou lançando sobre si a responsabilidade de todos os azares de suas relações, malgrado o frio cerimonial que lhe pesara sobre o noivado. Ela, porém, com seus olhos suplicantes, teimava em conservá-lo, com o resto do mundo, a nada menos que um braço de si.

Acontece que era essa justamente a distância que os separava quando ele lhe propôs casamento, ao fim de um discurso cuja fluência acusava, por si só, a ausência de tudo o que pudesse roçar, mesmo de leve, a emotividade. O que ela, de seu lado, aceitou depressa, com um murmúrio quase inaudível, oferecendo-lhe uma face fria em que ele assentou o beijo de praxe, afastando-se ambos depois.

E foi assim que a moça conseguiu livrar-se daquele conservatório musical, repleto de horríveis estatuetas de Tânagra — aliás, espúrias —, bem como da chateação que lhe causavam os êxitos fáceis que até então ali vinha obtendo.

Apaixonado, o pobre Gilbert fizera-se menino; esteve idealista, sonhador. Outros homens já feitos e refeitos não deixaram de sucumbir à mesma fraqueza. Afinal, há sempre uma teimosa semente de romantismo mesmo sob a pele mais espessa do mais prático dos homens. Estava, pois, feliz com seus sonhos, acarinhando fantasias melosas no mais íntimo da alma. Amava-a; total e completamente.

Tornou a pegar na mão dela e verificou com tristeza que de novo a moça procurou desembaraçar-se, quando a Sra. Cathcart irrompeu no aposento.

Era alta e ainda bela, embora a idade lhe tivesse acrescentado certa angulosidade às feições. A ação do tempo levara-a a lançar mão de recursos artificiais para realçar antigos atrativos. A boca era fina, reta e obstinada; o queixo, seco demais para ser belo. Atravessou a sala com rapidez e ofereceu ao jovem a mão enluvada.

— Chegou cedo, Gilbert — disse.

— É verdade — respondeu ele, sem-jeito. Lá estava a oportunidade que procurava; mas experimentou alguma relutância em valer-se da ocasião.

Largara a mão da moça quando a porta se abrira, e ela instintivamente recuara um passo e se postara de mãos nas costas a olhá-lo, grave e concentrada.

— Na verdade — disse ele, — eu desejava falar com a senhora.

— Comigo? — perguntou-lhe a Sra. Cathcart com malícia. — Não creio!

E envolveu a ambos com um olhar sorridente. Por alguma razão que ele no momento não compreendia, sentiu-se constrangido.

— Sim, com a senhora — disse; — mas não precisa ser neste exato momento.

Ela sorriu de novo.

— Não deve se preocupar com os preparativos — apressou-se ela a dizer-lhe, erguendo um dedo de advertência. — Deixe tudo por minha conta. Garanto que não vão ter do que se queixar.

— Oh, não é isso — tornou o rapaz, — trata-se de algo mais... mais...

Hesitava. Queria transmitir àquela senhora a gravidade de sua situação. E quando mencionou a conveniência de uma entrevista especial, compreendeu vagamente a delicadeza do caso. Como poderia sugerir àquela mulher, sempre amável e bondosa, que suspeitava nela motivos indignos tanto de sua inteligência como de seu coração? Como poderia mencionar o assunto de sua pobreza a alguém que lhe tinha dito não uma vez apenas, mas dezenas de vezes, que suas expectativas e a questão de sua riqueza futura constituíam o único empecilho ao que ela descrevia como um ideal casamento de amor?

— Quase chego a desejar que você fosse pobre, Gilbert — dissera-lhe ela. — Creio que a riqueza é uma grande desvantagem para as pessoas jovens, nas circunstâncias em que você e Edith estarão.

Mais de uma vez ela lhe dera a entender que o tinha como rico. E, no entanto, diante de uma palavra casual de Leslie, passava a duvidar de seus motivos! Lembrou-se, com irritação cada vez maior, de que fora a Sra. Cathcart quem possibilitara aquele casamento: alguém de espírito mais vulgar poderia até supor que ela lhe atirara Edith nos braços. Realmente, pensava ele considerando a mulher alta e elegante que tinha diante de si; bem que as suspeitas de Leslie tinham fundamento. Vexava-o apenas o ter dado ouvidos a tais sugestões maliciosas.

— Posso tomar quinze minutos do seu tempo... — começou ele, calando-se de súbito. Ia dizer "antes do jantar", mas supôs que uma entrevista depois da refeição teria menos chance de ser interrompida.

— ... após o jantar?

— Como não — sorriu-lhe ela. — Que pretende fazer? Confessar alguma irregularidade de sua juventude?

Ele abanou a cabeça, fazendo uma careta.

— Pode ficar certa de que eu nunca lhe confessaria isso.

— Então nos veremos depois do jantar — tornou a mulher. — Virá muita gente aqui esta noite, e estou muito atarefada. Vocês, noivos — disse dando-lhe com o leque umas pancadinhas recriminatórias no ombro — não fazem idéia do caos em que transformam a vida de seus futuros parentes.

Edith conservava-se apartada, na mesma atitude que assumira quando ele a soltara, observando curiosa a cena, sem participar. Esse era um efeito que a presença da Sra. Cathcart invariavelmente produzia. Não que a obliterasse; o que ocorria não era exatamente um eclipse, como tantas vezes Gilbert pensara admirado. Era como a entrada de uma personagem dramática que se seguisse da retirada imediata da que anteriormente ocupara o palco. Então Edith ficava na coxia à espera da deixa que a introduzisse de novo a uma existência ativa; e tal deixa era sempre a saída da mãe.

— Muita gente formidável virá aqui esta noite, Gilbert

— falou a Sra. Cathcart olhando uma tira de papel que tinha em mãos. — Alguns você não conhece, e outros eu quero muito que conheça. Tenho certeza de que vai gostar bastante do Dr. Cassylis...

Ela ouviu uma exclamação abafada e ergueu os olhos. O rosto de Gilbert estava rígido, sem nenhuma expressão. A moça viu-lhe a carranca e espantou-se.

— Que foi? — perguntou a Sra. Cathcart.

— Nada — replicou ele com firmeza; — a senhora estava falando dos convidados.

— Eu estava dizendo que você deve conhecer o Dr. Barclay-Seymour; é um homem extraordinário. Não o conhece ainda?

Gilbert abanou a cabeça.

— Bem, devia — disse ela. — É um grande amigo meu; mas não sei por que é que ele pratica em Leeds em vez de montar consultório em Harley Street. Não compreendo os homens. Virão também...

E recitou uma lista de nomes, alguns dos quais conhecidos de Gilbert.

— Que horas são? — perguntou ela subitamente. Gilbert olhou o relógio.

— Quinze para as oito? Preciso ir — tornou a mulher.

— Até depois do jantar.

Ao chegar à porta, voltou-se irresoluta:

— Suponho que vocês não queiram mesmo alterar esse plano absurdo — disse esperançosa.

Gilbert já tinha recuperado a serenidade.

— Que plano? — perguntou.

— De passarem a lua-de-mel na cidade — explicou a mulher.

— Acho que a senhora não deve aborrecer Gilbert com isso.

Fora a moça quem falara pela primeira vez em toda a conversa. A mãe cravou-lhe, os olhos aguçados e retrucou com frieza:

— Este assunto, minha querida, me diz respeito mais do que a você.

Gilbert apressou-se a salvar a moça da tempestade que viria. A Sra. Cathcart não tardava em irar-se, e muito embora o próprio Gilbert jamais tivesse sofrido o açoite de sua língua viperina, suspeitou naquele momento que sua futura esposa o tivesse por mais de uma ocasião.

— Ê absolutamente necessário que eu esteja na cidade por esses dias — explicou ele. — Já conversei com a senhora a respeito...

— ... da transferência do casamento? — atalhou a Sra. Cathcart. — Meu caro rapaz, eu não poderia consentir nisso. Não é um pedido razoável, é?

E a mulher lhe sorriu do modo mais afável que a irritação íntima lhe permitiu nas circunstâncias.

— Acho que não — tornou ele hesitante.

E não disse mais; esperou que a porta se fechasse atrás dela e então voltou-se rápido para a moça:

— Edith — disse, falando rápido, — quero que me faça uma coisa.

— Que eu faça uma coisa? — perguntou a moça, surpresa.

— Sim, querida. Preciso sair agora. Quero que arranje uma desculpa qualquer e a apresente a sua mãe. Lembrei-me agora de um problema importantíssimo que deixei...

Falava com hesitação, pois não era bom mentiroso.

— Você quer ir embora!

Era mais surpresa do que desaponto. Ele o notou e irritou-se justamente.

— Não pode ir agora — disse ela, e o temor lhe subiu aos olhos. — Mamãe ficaria furiosa. O pessoal já está chegando.

Desde onde estava, ele vira três carros encostarem quase ao mesmo tempo em frente da casa.

— Preciso ir — disse com desespero. — Você não pode me ajudar de nenhum modo? Não quero me encontrar com essa gente; tenho razões muito boas para isso.

Ela hesitou por um momento.

— Onde estão o seu chapéu e o seu casaco? — perguntou.

— No vestíbulo; você tem exatamente o tempo necessário — disse o rapaz.

Ela foi até o vestíbulo, e voltou com o casaco dele, levou-o ao extremo da sala de visitas, através de uma porta que comunicava com a pequena biblioteca. Havia ali um caminho para a garagem e que também dava para a cavalariça ao fundo da casa.

Ela ficou a olhar, preocupada, até aquela figura alta e empertigada desaparecer; então fechou a porta da biblioteca e voltou para a sala de visitas em tempo de encontrar a mãe.

— Quede o Gilbert — perguntou a Sra. Cathcart.

— Foi embora — respondeu Edith.

— Embora?!

A moça confirmou lentamente com a cabeça. — Lembrou-se de alguma coisa muito importante e teve de ir para casa.

— Mas sem dúvida pretende voltar aqui?...

— Acho que não, mãe — disse com tranqüilidade. — Deve ser coisa importante mesmo.

— Mas isto é estupidez! — A Sra. Cathcart batia o pé. — Aqui está toda a gente que eu convidei especialmente para conhecê-lo... Ê vergonhoso!

— Mas, mãe...

— Não me aborreça, pelo amor de Deus! — replicou a mulher.

Elas estavam sós; os convivas se reuniam na sala de visitas, e não havia motivos para a Sra. Cathcart disfarçar os sentimentos.

— Na certa foi você que o mandou embora... Ele não tem culpa... Como é que você pretende conservar um homem ao seu lado, tratando-o como se ele fosse um garçom à espera de ordens?

A moça ouviu-a com ar de tédio, sem erguer os olhos do tapete.

— Faço o que posso — disse ela em voz baixa.

— Depois de tudo o que fiz para apresentar-lhe um jovem dos mais ricos de Londres, você deveria pelo menos se mostrar gentil para com ele; mas nem que ele fosse o próprio demônio você mostraria maior relutância em encontrá-lo ou maior alívio ao despedir-se dele.

— Mãe! — gritou-lhe a moça com lágrimas nos olhos.

— Não me aborreça, por favor — tornou, ríspida, a Sra. Cathcart. — Estou farta de suas manias e preconceitos. Que é que você pretende afinal? Que quer que eu faça?

Estendeu os braços em desespero.

— Eu não quero me casar — disse a moça em voz baixa. — Meu pai jamais me forçaria a isso.

Era coisa bem ousada para dizer; era mesmo a maior audácia que já tivera em seu trato com a mãe. Ultimamente Edith vinha se enchendo de coragem.

Seu mudo desespero transformava-se agora em ira; uma rebelião explodia em seu peito. E embora fossem raras suas demonstrações de ressentimento, notou que a coragem aumentava com a ousadia.

— Seu pai! — exclamou a Sra. Cathcart, branca de raiva; — não venha com essa história de seu pai para cima de mim! Seu pai era louco! Um louco! Ele nos arruinou, a mim e a você, por não ter tido juízo bastante para conservar o dinheiro que tinha herdado. Pensei que ele fosse esperto. Por vinte anos eu o considerei a própria encarnação da sabedoria, da bondade e da sensatez, e durante esses vinte anos ele dissipou todo seu talento e competência com todos os projetos malucos que os aventureiros das finanças lhe apresentaram. Ele não a forçaria! Estou certa de que não! — riu a mulher, com amargura. — Ele a teria casado com o chofer, se você quisesse. Ele era todo amabilidade e incompetência, muito bonachão e ineficiente. Fique sabendo que eu detesto seu pai!

Ela arregalou os olhos quanto pôde, e realmente foi ódio o que a moça viu neles.

— Eu o odeio toda vez que tenho de entreter um duvidoso corretor de fundos para tirar alguma vantagem de seu conhecimento do mercado; odeio-o por todas as economias que tenho de fazer; odeio-o toda vez que recebo meus magros dividendos e os vejo sumir por causa de sua loucura. Agora, não me leve a odiá-la também — arrematou a mulher, sacudindo diante da moça um dedo ameaçador.

Edith encolhera-se de medo diante daquela torrente de palavras, mas tal difamação de seu finado pai suscitou-lhe no íntimo alguma coisa que a fez desconsiderar todas as conseqüências e enfrentar todos os riscos que suas palavras pudessem acarretar.

Empertigou-se, encarando, pálida, aquela a quem chamava de mãe, com uma expressão de desafio no rosto:

— Pode dizer o que bem entender de mim, mãe — começou, com calma; — mas não tolerarei que difame meu pai. Fiz tudo que a senhora me pediu: vou me casar com um homem que, embora muito bondoso e encantador, não significa mais para mim do que o primeiro indivíduo que eu pudesse encontrar na rua esta noite. Vou fazer esse sacrifício pela senhora: não me peça para renunciar à minha fé no homem que representa a única boa lembrança de minha vida.

Disse-o com voz entrecortada, e lágrimas brilhavam em seu rosto.

O que quer que a Sra. Cathcart pudesse dizer, e havia muitas coisas que poderia ter dito, foi interrompido pela entrada de um criado.

Durante alguns momentos mãe e filha permaneceram encarando-se em silêncio. Depois, sem dizer nada, a Sra. Cathcart girou nos calcanhares e saiu.

A moça aguardou um momento, e então voltou para a biblioteca por onde Gilbert saíra. Fechou a porta atrás de si e acendeu uma das lâmpadas, pois já começava a escurecer.

Estava trêmula de emoção. Poderia ter chorado, mas com furor e vergonha. Pela primeira vez na vida sua mãe se dera realmente a conhecer. A amargura que se concentrara nela durante anos a fio explodira de súbito, sem piedade nem cautela. Revelara o ódio que por anos lhe vinha roendo a alma; revelara subitamente sua relação com o marido, de que a moça jamais suspeitara sequer.

Edith sabia que a relação entre eles não se processara em termos muito afetuosos, mas sua breve vinculação ao mundo em que eles se moviam tinha-lhe reconciliado o espírito com a frieza que caracterizava as atitudes de marido e mulher. Já vira dezenas de lares em que o casal vivia em termos pouco mais que amigáveis, e aceitara essa condição como normal. Essa espécie de relação suscitara em seu espírito uma irritação feroz: criança que era, percebera que alguma coisa ia mal. E pela mesma razão acolhera a idéia de casar-se com Gilbert Standerton. Seu casamento não seria pior, e talvez até fosse um pouco melhor, do que o das pessoas com quem mantinha contato permanente.

Mas na veemência de sua mãe ela, por um momento, percebeu a qualidade que faltava aos matrimônios. Compreendia agora por que seu pai se transformara, às súbitas, de uma pessoa bondosa, sorridente e compreensiva na sombra silenciosa de um homem, naquela figura triste que tão vivamente lhe marcara a memória.

Para ela, isto fora uma rápida reviravolta na roda da vida, uma visão inesperada que lhe apareceu subitamente diante dos olhos. Acalmara-a. Nesses poucos minutos de reflexão, olhando a cavalariça tristonha através da janela treliçada da pequena biblioteca, ela experimentou uma dessas grandes e sutis mudanças que, às vezes, sobrevem à humanidade.

E ali estava uma nova perspectiva, um novo parâmetro para avaliar seus companheiros, uma nova filosofia elaborada no espaço de um segundo. Isto tudo representava uma tremenda revolução em suas convicções íntimas.

Ela própria se surpreendeu à vista da serenidade com que voltou para a sala de visitas e se reuniu ao grupo que começava a formar-se. Descobriu, com um choque, que estava examinando sua mãe com a calma e imparcialidade de alguém que de modo algum estivesse envolvido no caso. A Sra. Cathcart, observando o controle próprio que a moça demonstrava, sentiu-se algo apreensiva.

Dirigiu-se a ela inesperadamente, contando, surpreendê-la ou mesmo embaraçá-la, e ficou um pouco perturbada pela prontidão com que a moça lhe sustentou o olhar e pela frieza com que discordou de algumas proposições suas.

Era uma nova experiência para a despótica Sra. Cathcart. Se a moça estava amuada, aquela era uma nova variedade de amuo, completamente estranha à sua experiência anterior.

Podia ser que estivesse zangada, mas não havia sinal disso; ou magoada, mas nesse caso estaria chorando, e o olho experiente da Sra. Cathcart não conseguiu descobrir na filha o menor indício de lágrimas. Estava intrigada; um pouco aflita. Tinha ido longe demais, pensava; precisava fazer as pazes com a filha, em vez de prosseguir com a rixa até que a outra, como de hábito, se desculpasse.

Irritava-a o fato de achar-se em tal posição, mas ela era antes de tudo uma estrategista, e não seria boa tática firmar-se numa posição desvantajosa. Foi então que buscou recompor o status quo ante bellum, mas descobriu já ser isto impossível.

Esperara que a conversa daquela noite confundisse a moça a ponto de fazê-la procurar a proteção da mãe; mas, para seu espanto, Edith falou a respeito de seu casamento como nunca o fizera antes: sem embaraço nem hesitação; fria, racional e inteligentemente.

Ao fim da noite, Edith comandava a situação, e foi sua mãe quem se achou na posição de peticionária.

A Sra. Cathcart esperou sair o último convidado; então dirigiu-se para a pequena sala de visitas, com o fito de encontrar-se com a filha que examinava, pensativa, um jornal, junto à lareira.

— Que é que a interessa tanto, querida?

A moça olhou em torno, e dobrou lentamente o jornal.

— Nada em particular — respondeu. — Esse seu Dr. Cassylis é um homem muito divertido.

— Ê um homem muito inteligente — tornou a mãe, com azedume.

Ela tinha uma fé infinita em médicos, e prestava-lhes o tributo que comumente se reserva ao sobrenatural.

— É mesmo? — disse a moça, com frieza. — Por que é que ele mora em Leeds?

— Ora essa, Edith; afinal, você saiu da casca — disse--lhe a mãe com um sorriso forçado. — Nunca a vi tão interessada nas pessoas deste mundo.

— Vou me interessar bastante por elas daqui por diante

— tornou a moça com firmeza. — Já perdi muito tempo na vida.

— Acho que você está sendo um tanto desagradável — disse-lhe a mãe, reprimindo a ira com algum esforço; — está procedendo muito mal. Toda essa tolice é fruto da confidencia que em má hora lhe fiz?

A moça não respondeu.

— Acho que vou para a cama, mãe.

— E já que você está tão interessada em pessoas —

— tornou a Sra. Cathcart com calma, — talvez queira interpretar o comportamento que seu noivo teve para comigo. O Dr. Cassylis em particular desejava conhecê-lo, sabe?

— Não vou interpretar coisíssima nenhuma — bradou a moça.

— Não me fale nesse tom — replicou-lhe a mãe, incisiva. A moça se deteve; estava a meio caminho da porta.

Sem se voltar de todo, falou à outra por cima do ombro:

— Mãe, quero que a senhora entenda isto: se tornar a me aborrecer, ou se tornar a fazer de mim o alvo de sua rabugice, eu escreverei a Gilbert e romperei esse compromisso.

— Você ficou louca? — exclamou a mulher. Edith meneou a cabeça.

— Não, só estou cansada; cansada de muita coisa.

A Sra. Cathcart poderia ter falado muito, mas, com sabedoria, calou-se até que a porta se fechasse atrás da filha. Então, apesar de já ser tarde, mandou chamar o cozinheiro e deixou-se estar, quieta e lúgubre, por cerca de meia hora; o vol-au-vent tinha sido realmente atroz.

 

A "MELODIA EM FÁ"

Gilbert Standerton vestia-se vagarosamente diante do espelho, quando Leslie lhe foi anunciado. Esse indivíduo não ficava mal no papel de padrinho de casamento de seu velho amigo.

Leslie Frankfort era uma dessas felizes pessoas que podem combinar um trabalho agradável com uma boa renda pessoal. Era sócio interessado de uma firma de corretores de fundos, que só lidava com os mais seguros mercados. Partilhava com Gilbert o gosto pela música clássica, e fora isto o que a princípio os aproximou.

Entrou no quarto, depositou cuidadosamente a cartola numa cadeira e sentou-se na beirada da cama, de onde passou a fazer sugestões críticas ao afilhado.

— A propósito — disse de súbito, — tornei a ver aquele velhote ontem.

Gilbert olhou em torno.

— Springs, o músico?

O outro fez que sim.

— Estava tocando para uma fila de pessoas diante do teatro... Excelente velho.

— Muito — disse Gilbert, distraído.

Fez uma pausa no ato de vestir-se, apanhou uma carta de cima da mesa e passou-a ao outro.

— Quer que eu leia? — perguntou Leslie. Gilbert assentiu.

— Para ser franco, não há nada para ler — disse ele e o presente de casamento do meu tio.

O rapaz abriu o envelope e tirou de dentro um cheque. Viu a quantia e assobiou surpreso.

— Cem libras! — exclamou. — Santo Deus, isso não dá nem para a manutenção do carro por três meses. A Sra. Cathcart já sabe disso?

Gilbert sacudiu a cabeça.

— Não — disse secamente; — tentei dizer-lhe, mas não consegui. Estou perfeitamente em paz comigo mesmo, Leslie; estamos sendo injustos para com ela. Ela sempre foi tão categórica a respeito de dinheiro. E, afinal de contas, não sou nenhum mendigo — concluiu com um sorriso.

— Você é pior que mendigo — tornou Leslie com gravidade; — um homem com uma renda de seiscentas libras por ano é a pior espécie de mendigo que conheço.

— Por quê?

— Você jamais conseguirá manter seu padrão de vida com menos de duas mil libras; e nunca conseguirá ganhar mais do que seiscentas, mesmo considerando seu emprego no Ministério dos Negócios Exteriores que não pode render mais do que outras seiscentas.

— É trabalhar então.

— Trabalhar! — escarneceu o outro; — não se ganha dinheiro trabalhando. Dinheiro ganha-se por meio de ardis, aproveitando-se dos outros ao máximo. Filho, você tem o coração muito mole para isso.

— Você parece ganhar bastante — comentou Gilbert sorrindo.

Leslie meneou vigorosamente a cabeça.

— Jamais ganhei um níquel em toda a vida — confessou divertido. — Não; fui arranjar uns sócios obstinados e sem imaginação, dos quais dependo. Apenas recebo dividendos em vários períodos do ano. Mas eu estive com sorte. Por falar nisso, qual é o seu dinheiro afinal?

Gilbert dava o nó na gravata. Arregalou os olhos fazendo uma careta.

— Como assim? — perguntou.

— São títulos? Continuarão válidos depois da sua morte?

— Não — respondeu Gilbert; — após a minha morte dificilmente sobrariam cento e cinqüenta libras anuais. Só estou desfrutando um interesse vitalício nessa propriedade particular.

Leslie assobiou.

— Bom, espero, meu velho, que você esteja bem segurado.

O outro não fez nenhuma tentativa de interromper, enquanto Leslie, dissertava com calorosa fluência sobre os deveres e as responsabilidades de um chefe de família, expondo suas opiniões sobre o seguro e os não segurados.

— Certas pessoas são tão imprevidentes — dizia; — conheci um camarada...

Calou-se de súbito. Captara o reflexo do rosto de Gilbert no espelho. Estava conturbado parecia o rosto de alguém em agonia mortal. Leslie ergueu-se num salto.

— Qual é o problema, afinal, meu caro? — esganiçou. Caminhou para o outro e descansou a mão em seu ombro.

— Ah, não é nada... nada, Leslie — respondeu Gilbert. Passou a mão diante dos olhos como para varrer alguma visão lúgubre.

— Acho que afinal eu tenho sido mesmo muito descuidado. Estou dependendo demais do dinheiro do meu tio. Eu devia fazer seguro.

— Mas decerto não é isso que o preocupa, não é? — Indagou Leslie surpreso.

— Um pouco — tornou Gilbert, amuado. — Nunca se sabe...

Fitou o amigo pensativamente, de mãos nos bolsos.

— Puxa, como eu gostaria de poder transferir a data desse casamento!

Leslie riu-se.

— Está na hora! — disse. — Que pateta! Olhou o relógio.

— É melhor se apressar, ou vai perder o seu próprio casamento. Além do mais, esse não é um dia para tristezas.

Viu que a expressão do rosto de Gilbert mudara, e ficou bastante satisfeito.

— Tem razão — disse Gilbert Standerton, brandamente. Quase me esquecia. Deus a abençoe! — sussurrou, lembrando-se de Edith.

Quando deixavam a casa, perguntou: Você tem uma lista dos convidados? Tenho — respondeu Leslie: — a Sra. Cathcart é muito cuidadosa quanto a essas coisas.

— O Dr. Barclay-Seymour está incluído? — tornou a indagar Gilbert cautelosamente.

— Barclay-Seymour... Não, não está — respondeu o outro; — é o fulano de Leeds, não é? Ele deixou Londres a noite passada. Que história foi essa de você fugir a outra noite?

— Eu tinha um compromisso importante — disse Gilbert apressadamente; — eu tinha de ver um sujeito; não pude evitar...

Leslie compreendeu que fizera uma pergunta embaraçosa, e mudou de assunto.

— Por falar nisso, acho que você não deve mencionar o caso do dinheiro à Sra. Cathcart, enquanto não estiver casado.

— Não vou fazê-lo — disse Gilbert soturnamente.

A caminho da igreja passou em revista todos os problemas que o aturdiam, encarando-os de frente. Talvez as coisas não terminassem tão mal como pensava. Sempre fora dado a preocupar-se em demasia com seus problemas. Previra perigos sempre, e muitas vezes seus receios se revelaram sem nenhum fundamento. Tinha vivido solitário por demasiado tempo. Um homem devia estar casado antes de cumprir trinta e dois anos. Era essa a sua idade. Tornara-se ranzinza. Essa análise desfavorável consolou-o até a igreja.

Aquela cerimônia era como um sonho: os bancos cheios, o órgão, o coro todo de branco, o vigário e seus assistentes; a chegada de Edith, tão bela, tão etérea em seu vestido nupcial; os responsos, o ajoelhar-se e erguer-se...; tudo parecia irreal.

Pensara que a música devia causar-lhe uma impressão duradoura; tivera algum trabalho para escolhê-la, e por várias vezes consultara o organista. Mas, findo o serviço, quando principiou a caminhar, ainda como em sonho, para a sacristia, não conseguiu mais lembrar-se de um compasso que fosse. Tinha a lembrança nebulosa de que acima do altar havia um vitral com uma falha, motivada sem dúvida por quebra.

Ei-lo de novo em casa, sentado a uma mesa toda ornada de motivos florais, procurando distinguir, na confusão de sons as falas e as explosões de riso que cresciam cada vez que alguém tomava da palavra: agora estava de pé, falando com facilidade, sem esforço; mas as palavras que usava, ou por que o pessoal aplaudia, ou a razão de sorrirem, isso não sabia.

A certa altura baixou os olhos e mirou o rosto delicado que tinha junto de si, defrontou os solenes olhos dela que então pareciam menos temerosos que nunca. Segurou-lhe a mão; estava fria e indiferente...

— Excelente discurso — comentou Leslie. Estavam na sala de visitas após o café.

— Você é um grande orador.

— Acha? — disse-lhe Gilbert.

Começava a acordar de novo. A sala de visitas era verdadeira, aquela gente era real; as anedotas, os gracejos e as espirituosidades que iam e vinham, tudo isto eram coisas reais que ele bem conhecia.

— Ufa! — Enxugou a testa e deu um profundo suspiro. Sentia como se recuperasse a consciência depois de uma semi-anestesia. Uma experiência bela e indolor, só que de outro mundo; não podia ter sido ele, dizia de si para si, o que ajoelhara ao pé daquele altar.

Oficialmente, passariam a lua-de-mel em Harrogate; na verdade, porém, passá-la-iam em Londres. Simularam ter de pegar o trem, e viajaram para King's Cross.

Nenhuma palavra se pronunciou em toda a viagem. Gilbert sentiu-se incomodado pelo problema, mas não o enfrentou nem procurou vencê-lo. A moça era silenciosa por natureza. Teria muito que dizer no lugar próprio e no momento adequado. Ele viu aquele velho medo tornar aos olhos dela, e magoou-o o retraimento involuntário e inconsciente de Edith, quando sua mão procurou a dela.

O coche foi dispensado em King's Cross. Tomaram então um táxi e dirigiram-se para a casa de St. John's Wood. A pequena mansão estava vazia; os criados tinham saído de férias, mas já tinham tudo preparado. Havia fogões elétricos e toda a espécie de utensílios que a mente humana poderia inventar para poupar trabalho, ou que pudesse adquirir um rapaz com grandes expectativas e nenhuma idéia do valor real do dinheiro.

Isto haveria de ser uma das alegrias da lua-de-mel, assim pensara Gilbert. De bom grado ela dispensara a criada: ele estava pronto para fazer as vezes de pau-para-toda-obra; cozinhar e servir, só deixando o trabalho mais pesado para os dois criados que tinha contratado para a manhã seguinte.

Entretanto, não foi com alegria que ele a conduziu de quarto em quarto mostrando-lhe os tesouros de sua propriedade. Uma sensação de apreensão por algum problema que estava por vir emudecia-o, deprimia-o e o conservava em sujeição temporária.

A moça parecia segura de si. Admirou, criticou bondosamente e chegou a zombar, com delicadeza, de sua domesticidade. Mas a tensão entre eles esteve presente o tempo todo; havia uma sombra em seu meio.

Ela foi para o quarto mudar de roupa. Deram um jeito de jantar fora, e saíram. Leslie Frankfort viu-os no salão de jantar do Princes, mas fingiu o contrário. Eram dez horas quando voltaram para casa.

Gilbert foi ao seu estúdio: sua esposa subira para o quarto com a promessa de descer logo para o café. Ele pôs mãos à obra, com toda a destreza que se poderia esperar de um discípulo de Rahbat, e preparou duas xícaras pequenas de Moca. Serviu-as na mesa, próximo do lugar em que ela se sentaria... Dali a pouco, Edith chegou.

Ele estava despertando depressa do sonho daquela manhã. Estava vivo agora. O aturdimento daquela momentosa cerimônia passara. Ergueu-se e aproximou-se dela. Tomá-la-ia nos braços ali, naquele momento, mas, de novo, havia entre eles a indefectível distância de um braço. A mão dela tocou-lhe o peito, e seu braço se enrijou. Diante daquele ato de repulsa, Gilbert sentiu o coração gelar, pois todos os terrores vagos que antes sentira acabavam de se cristalizar numa terrível e concreta verdade. Então soube tudo o que ela tinha para dizer antes mesmo que falasse.

Isto aconteceu alguns momentos antes de ela encontrar as palavras que queria; iniciar o assunto parecia-lhe muito difícil.

— Gilbert — disse afinal, — estou para cometer um ato de covardia. Digo que é covardia, porque eu não o disse antes.

Gilbert lhe fez sinal para que se sentasse.

Ele tinha ideado um pequeno romance para esse momento, um quadro onírico que jamais seria encenado. Agora, tudo se despedaçava.

— Não quero sentar — disse ela. — Precisarei de toda a minha tenacidade para dizer o que pretendo. Se eu não fosse uma grandissíssima covarde ter-lho-ia dito a noite passada. Pretendia fazê-lo, mas você não apareceu.

— Eu sei — tornou ele, com impaciência; — não pude. Eu não queria... não pude mesmo — repetia.

— Sabe o que eu quero lhe dizer? — Seus olhos estavam firmemente fixos nos dele. — Gilbert, eu não o amo.

Ele fez sinal de que compreendia.

— Bem, agora eu já sei.

— Nunca o amei — acrescentou ela com desespero; — em nenhum momento cheguei a considerá-lo como algo mais do que um bom amigo. Mas...

Estava para explicar-lhe tudo, mas um sentimento de lealdade para com a mãe a conservou calada. Assumiria toda a culpa sozinha. Pois não era mesmo culpada? Ao menos era senhora de sua própria alma; se quisesse, poderia ter-se recusado a representar aquele papel.

— Casei-me com você — prosseguiu lentamente — porque. .. porque você é... rico... porque você será rico.

À última palavra, sua voz tornou-se grave a ponto de parecer rouca. Havia uma grande luta em seu íntimo. Queria contar a verdade, mas não desejava que ele a quisesse mal por isso.

— Pelo meu dinheiro! — repetiu ele, surpreso.

— Sim, eu... eu queria me casar com um homem que tivesse dinheiro. Temos passado por maus bocados.

A confissão saía-lhe aos arrancos; tinha de construir toda a sentença antes de a pronunciar.

— Você não deve culpar minha mãe, eu fui igualmente culpada; e eu deveria ter-lhe dito... Queria contar-lhe.

— Eu compreendo — disse ele com calma.

É espantosa a enorme reserva de energia de que um homem pode dispor quando realmente precisa dela. Nessa crise terrível, nesse momento em que toda a felicidade de sua vida se destroçava, quando seu sonho se esboroava como uma casa de papel, ele conseguia ser imparcial, quase fleumático.

Viu-a vacilar e, num salto, segurou-a.

— Sente-se — disse ele.

Edith obedeceu, sem protestos. Gilbert colocou-a no canto do sofá, e, quase de mau grado, empurrou uma almofada para trás dela; depois caminhou para a lareira.

— Quer dizer então que se casou comigo por causa do meu dinheiro — disse ele, e sorriu.

A situação não deixava de ter o seu lado engraçado.

— Caramba, que comédia... que comédia! — tornou a rir. — Minha pobre criança — disse com ironia inusitada, — lamento por você, pois agora não tem nem marido nem dinheiro!

— Nem dinheiro — repetiu ela erguendo rapidamente os olhos para ele.

Foi apenas interesse o que Gilbert viu neles. Não lhe viu o menor sinal de desapontamento. Ele conhecia a verdade, mais até do que ela lhe poderia contar; não era ela quem desejava fortuna, mas a mãe dela, aquela mulher dominadora e mundana.

— Sem marido e sem dinheiro — repetiu ele com rudeza, malgrado o quase desejo de poupá-la. — E o que é pior — com duas rápidas passadas ele alcançou a escrivaninha que os separava, o inclinou-se sobre ela — não somente você está sem marido e não há dinheiro algum, como ainda...

Estacou como se tivesse levado um tiro.

A moça viu o rosto dele se contorcer; ele tinha os olhos arregalados pendurados no ar, a boca aberta de terror. Ela se ergueu rápida.

—Que foi? Que foi? — sussurrou alarmada.

— Meu Deus!

A voz do rapaz falhava; ela se inclinou para ouvi-lo. De alguma parte, ouviram-se os acordes suaves e melancólicos de um violino. A música ia e vinha, soluçante, ao toque mágico dos dedos do violinista. Edith foi até a janela e espiou. À margem da calçada uma moça, cuja pobreza de traje não escondia sua singular beleza, tocava um violino.

A luz do poste de iluminação pública batia-lhe em cheio no rosto, seus olhos estavam fitos na janela daquele aposento.

Edith olhou para o marido. Este tremia como de febre.

— A "Melodia em Fá" — sussurrava ele. — Meu Deus! A "Melodia em Fá"... bem no dia do meu casamento!

 

O HOMEM QUE DESEJAVA RIQUEZAS

Leslie Frankfort era uma das três pessoas que se achavam no escritório de Warrell & Bird, diante de um cofre gigantesco. Havia ali muita coisa para atrair-lhes a atenção e o assoalho estava repleto de ferramentas de todos os tipos e formas.

O cofre propriamente dito dava provas de ter sido assaltado premeditadamente. Vários furos em semicírculo tinham sido feitos na sólida porta de ferro em torno da fechadura.

— Isto eles fizeram com um maçarico oxídrico — esclareceu um dos homens.

Indicou alguns canos de ferro no chão, junto com os demais objetos.

— Fizeram um trabalho completo. Que será que os perturbou?

O homem mais idoso sacudiu a cabeça.

— Vai ver que o vigia noturno — disse. — Que acha. Frankfort?

— Ainda estou admirado pela perfeição do trabalho deles disse Leslie. — Os malandros devem ter gasto cerca de duzentas libras só em ferramentas!

Apontou-as no chão. Os olhos do detetive acompanharam-lhe o dedo. Sorriu.

— Ê verdade — respondeu tranqüilamente; — esse pessoal é caprichoso. O senhor disse que não falta nada?

O Sr. Warrell sacudiu a cabeça.

— Sim e não — respondeu cauteloso. — Havia aí um colar de diamantes, depositado a semana passada por uma de nossas clientes; não está mais. Mas peço que não divulguem isso.

O detetive fitou-o admirado.

É um pedido muitíssimo estranho — disse a sorrir; — e não é costume guardar colares de diamantes em escritórios de corretagem de fundos, se me permite uma observação crítica.

O Sr. Warrell sorriu.

— Na verdade não é, mas uma cliente nossa que ia para o exterior a semana passada chegou aqui apenas vinte minutos antes da partida de seu trem, e pediu-nos que lhe guardássemos as jóias.

O Sr. Warrell o dissera distraidamente. Não explicara ao detetive que as jóias tinham sido retidas como garantia contra o que pudesse resultar da grave alteração por que passavam as finanças da mencionada cliente; tampouco julgou necessário explicar que conservavam as jóias no escritório na esperança de que a endividada senhora as resgatasse.

— Além do senhor e de seus sócios, alguém mais sabia do colar?

Warrell sacudiu a cabeça.

— Acho que não. Nunca mencionei o caso a ninguém. E você, Leslie?

Leslie hesitava.

— Bom, sou forçado a admitir que sim — confessou ele, — mas a pessoa não passaria adiante a informação.

— Que pessoa? — indagou Warrell.

— Gilbert Standerton. Devo ter mencionado o caso quando falávamos sobre arrombamentos.

O homem mais idoso sacudiu a cabeça em sinal de que compreendia.

—Dificilmente ele seria a espécie de pessoa capaz de roubar cofres.

Sorriu.

— É uma coincidência bastante curiosa — disse Leslie reflexivamente — o fato de que ele e eu falássemos sobre o assunto há apenas uns dois dias, antes de ele se casar. Suponho — perguntou de súbito ao detetive — que não há dúvida de que isto é obra do seu amigo internacional?

O Inspetor-chefe Goldberg confirmou com um gesto de cabeça.

— Não há a menor dúvida — disse ele. — Só há um bando na Inglaterra que poderia ter feito isto, e eu poderia pôr as mãos em cima deles hoje mesmo; mas não teria uma chance em um milhão de reunir, nesse tempo, as provas necessárias para isso.

Leslie fez sinal de que entendia.

— Era isto o que eu dizia ao Gilbert — tornou ele dirigindo-se ao sócio. — Não é extraordinário que tais coisas possam acontecer em pleno século XX? Aí temos três ou quatro homens conhecidos (o senhor, Inspetor, me disse o nome deles depois da última tentativa que fizeram), e a polícia não tem meios de prendê-los porque não pode provar nada contra eles. Não parece curioso?

O Inspetor Goldberg não estava se divertindo nem um pouco, mas sorriu polidamente.

— O senhor, no entanto, deve se lembrar de que é muito difícil reunir provas contra homens que operam em grande escala como esses arrombadores. O que não consigo entender — acrescentou — é a atração que seu cofre tem sobre eles. Esta segunda tentativa foi muito mais formidável do que a anterior.

— Sim, este foi mesmo um arrombamento e tanto — comentou o Sr. Warrell. — Da última vez não foram tão refinados nos preparativos, apesar de terem tido mais êxito, pois chegaram a abrir o cofre.

— Então os senhores não querem que o caso vá para os jornais? — perguntou o Inspetor.

O Sr. Warrell sacudiu a cabeça.

— Não, enquanto eu não tiver falado com minha cliente — disse; — mas estou inteiramente em suas mãos, e o senhor deve fazer tudo o que achar necessário.

— Muito que bem — tornou o detetive. — Por enquanto acho que não é necessário fazer nenhuma declaração à imprensa. Se os repórteres aparecerem, os senhores fariam melhor em contar a verdade até o ponto que entenderem, mas há uma chance de eles ficarem fora disso se os senhores se comunicarem diretamente com a Yard.

O policial permaneceu ali cerca de meia hora, colhendo e anotando todos os dados que pôde encontrar. Depois um contingente de policiais à paisana foi enviado para recolher as ferramentas.

Os ladrões evidentemente tinham entrado no escritório depois do horário de expediente da noite anterior e trabalharam a maior parte da noite na tentativa de arrancar a fechadura do cofre. Que tinham sido perturbados em sua tarefa, depreendia-se do fato de as ferramentas ainda estarem ali. Não era o primeiro arrombamento ocorrido no centro comercial de Londres. Durante os seis meses anteriores ocorrera uma onda de assaltos audaciosos, a maioria dos quais com êxito.

Os homens tinham sempre demonstrado conhecer o conteúdo dos cofres, e fora este o fato que levara a polícia a investigar três membros, aparentemente inocentes, de uma firma estrangeira de corretagem. Mas por mais que tentassem, não se estabeleceu nenhum indício que os vinculasse mesmo remotamente ao crime.

Leslie lembrava-se agora de que desafiara Gilbert Standerton, por brincadeira, a candidatar-se à grande recompensa que pelo menos duas firmas já tinham oferecido pela recuperação de seus bens roubados.

— Afinal de contas — dissera-lhe ele, — com o seu gênio e bom gosto você daria um sabujo ideal.

— Ou um ladrão — dissera Gilbert soturnamente. Tinha tido um mau dia, dia em que suas perspectivas para o futuro se tinham alterado.

Um telegrama estava à espera de Leslie quando ele adentrou os estreitos portais do City Proscenium Club. Apanhou-o, abriu-o despreocupadamente e leu. Enrugou a testa numa expressão de surpresa. Dizia o telegrama:

 

"Preciso vê-lo esta tarde. Encontre-se comigo em Charing Cross Station, às quatro.

Gilbert."

 

Pontualmente, na hora aprazada, Leslie estava lá. Encontrou Gilbert passeando de um lado para outro defronte do relógio. Este espantou-se ao vê-lo.

— Que aconteceu, afinal? — perguntou.

— Que aconteceu! — repetiu o outro. — Que é que você acha?!

— Algum problema? — perguntou Leslie, ansioso. Ele realmente estimava aquele amigo.

— Problema? — Gilbert riu com amargura. — Meu caríssimo amigo, eu sempre tenho problemas. Não tenho estado cheio de problemas desde o dia em que você me conheceu? Quero que faça uma coisa para mim — continuou energicamente. — Você esteve falando outro dia a respeito de dinheiro. Acabo de me convencer da tragédia da minha dependência. Preciso arranjar dinheiro, e depressa.

Falava rápido e em tom normal, mas surpreendeu Leslie com uma determinação que jamais lhe vira antes.

— Quero aprender alguma coisa sobre ações, fundos públicos e tudo o mais. Precisa me ensinar. Não creio que você mesmo saiba muita coisa a respeito — sorria ele, voltando ao seu velho bom humor — mas o pouco que souber vai repartir comigo.

— Escute aqui, meu chapa — protestou o outro, — por que cargas d'água um cara em plena lua-de-mel iria se apoquentar com um negócio desses? Por falar nisso, quede sua esposa?

— Ah, está em casa — respondeu Gilbert, lacônico. Não parecia disposto a falar sobre a mulher, e Leslie, que se divertia à beca com o amigo, teve tato bastante para abandonar o assunto.

— Eu posso lhe ensinar tudo o que sei agora mesmo, se você quer uma dica — informou.

— Preciso mais do que isso; quero saber de investimentos. Faça-me saber de alguma coisa que me leve a ganhar perto de doze mil libras por ano.

Leslie estacou a olhar o outro, embatucado.

— Tem certeza de que não está batendo os pinos? — perguntou.

— Estou perfeitamente bem, meu caro; perfeitamente

— assegurou-lhe Gilbert.

— Mas então — tornou Leslie, — você não percebe que precisa de um pouco mais de um quarto de milhão para arrecadar uma soma dessas!

Gilbert fez que sim, que percebia.

— Foi o que eu pensei. Quero que me arranje, entre esta noite e amanhã, uma lista de títulos da mais absoluta confiança, em que eu possa investir, e que me assegurem, como já disse, ou aos meus herdeiros, a quantia que já falei.

— E você teve a coragem — perguntou Leslie indignado

— de me arrastar para este horrível lugar numa causticante tarde de junho para me gozar com esses delírios sobre investimentos?!

Algo, porém, na fisionomia de Gilbert fê-lo interromper-se.

— Você está mesmo falando sério? — perguntou por fim.

— No duro — confirmou Gilbert.

— Bom, nesse caso, vai ter essa lista num instante. Que aconteceu? Seu tio se dobrou?

Gilbert sacudiu a cabeça.

— Não é provável que ele se dobre — disse. — Na verdade, recebi hoje uma nota de sua secretária informando que o velho está bem mal. Estou chateadíssimo. — Havia uma nota de genuíno pesar em seu tom. — Ele é um cara legal

— Mas não havia razão para passar toda a sua fortuna para os malditos vira-latas — comentou Leslie indignado.

— Por que foi que você quis me encontrar aqui, filho? O seu clube fica logo na esquina.

— Estou sabendo disso — respondeu Gilbert; — mas é que o clube é... Bom, para ser franco, eu estou vendo se caio fora desse clube.

—Vai sair do clube? — perguntou Leslie. — Agora escute aqui; que diabo está acontecendo com você? Quer abandonar o clube, depois vai querer abandonar o emprego no Ministério...

Gilbert confirmou.

— Já abandonei — disse serenamente. — Preciso de todo o tempo livre. Quero empregar todos os instantes nos meus próprios planos e projetos. Você nem faz idéia da minha situação, meu chapa — pôs a mão afetuosamente no ombro do outro, — mas pode crer que eu preciso, com urgência, de todas as dicas que você puder me dar, e só quero os conselhos que eu pedir, está legal?

— O que significa que eu não devo meter o nariz nos seus negócios a menos que receba um convite impresso a ouro. Muito que bem — riu-se Leslie. — Venha, vamos até o meu clube. Espero que a sua curta vida de casado não o tenha levado a antipatizar de todos os clubes.

Gilbert não respondeu, tampouco voltaram ao assunto até que estavam na espaçosa sala de fumar do Júnior Terriers.

Durante duas horas estiveram sentados, Gilbert interrogando o amigo seriamente e com perspicácia, rabiscando anotações numa folha de papel. O outro respondia, amiúde com dificuldade, à multidão de perguntas do amigo.

— Confesso que estou surpreso com o pouco que sei sobre o assunto — admitiu Leslie com pesar enquanto Gilbert anotava a última resposta que obtivera. — Que perguntador enciclopédico você me saiu; você é um inquisidor nato, Gilbert.

Standerton sorriu sem vontade, e enfiou a tira de papel no bolso.

— A propósito — disse, enquanto deixavam o clube, — fiz meu testamento esta manhã e quero que você seja o meu executor.

Leslie empurrou o chapéu para trás, fazendo uma careta.

— Caramba, como você está lúgubre! — disse exasperado. — Casou-se ontem, e hoje já está com a cara mais comprida que um vendedor de "barbadas"; abandonou o emprego que estava rendendo uma boa grana, discutiu muito sobre investimentos e acaba de fazer o seu testamento. É deprimente!

De novo, Gilbert sorriu. Apertou a mão do amigo, em frente do clube, e chamou um táxi.

— Vou para St. John's Wood. Vai para aqueles lados?

— Folgo em saber que vai para St. John's Wood — tornou o outro, escarninho. — Receava que fosse para o crematório mais próximo.

Ao voltar à casa, Gilbert encontrou a esposa em seu estúdio. Estava sentada na poltrona, lendo. O ocorrido na noite anterior não deixara marca alguma em seu belo rosto. Agraciou-o com um sorriso. Instintivamente, ambos adotaram a atitude que melhor se ajustava às circunstâncias. Subira de ponto o respeito de Edith por ele, mesmo naquele curto espaço de tempo; tal domínio próprio naquele momento de terror — terror que, de maneira indefinível, a contagiara — Gilbert demonstrara. Ele a encontrara alegremente na manhã seguinte à hora do café; mas ela não teve dúvidas de que ele passara a noite em claro, pois seus olhos estavam vermelhos e cansados, e apesar de sua cordialidade, tinha a voz aguda de quem tivesse logrado a natureza.

Gilbert caminhou diretamente para a escrivaninha.

— Quer que eu saia? — perguntou ela. Ele ergueu os olhos com surpresa.

— Não, não — disse apressado; — não quero ficar sozinho. Tenho um pequeno trabalho para fazer, mas você não me incomodará. Você devia saber — continuou ele, em tom afetadamente casual, — que vou me demitir do emprego.

— Demitir-se! — repetiu ela.

— É; tenho muita coisa que fazer, e o Ministério me rouba tempo demais; de modo que terei de abandonar o emprego ou alguma outra coisa.

Não esclareceu o que fosse a "alguma outra coisa", nem Edith conseguiu adivinhar. Para ela, Gilbert já era um enigma; e, por estranho que isto fosse, descobriu um novo interesse por ele. Não tinha dúvidas de que havia alguma tragédia na vida de seu marido; uma tragédia com a qual não podia atinar. Ele lhe contara, calma e categoricamente, que tinha sido deserdado; a seu pedido, ela escrevera à mãe contando toda a história. Não sentiu nenhum receio, nenhum abalo íntimo, face à perspectiva do encontro inevitável, muito embora a Sra. Cathcart fosse se irritar a ponto de quase perder a razão.

Edith chegou a sorrir quando colava a orelha do envelope. Era um caso de perfeita justiça, conquanto ela fosse sofrer a vida inteira em conseqüência das maquinações da mãe. Esperava que em resposta à carta, esta a visitasse e tivessem uma entrevista na ausência de Gilbert. Mas Standerton já estava em casa fazia meia hora quando veio o furacão. Ao som da campainha Edith atendeu à porta; aguardara o dia todo, com as orelhas em pé, e àquele toque agressivo, desceu as escadas correndo.

A Sra. Cathcart entrou sem dizer palavra, e, quando a moça fechou a porta, a velha se voltou.

— Onde está esse seu precioso marido? — perguntou com uma voz que denunciava o choque que sofrerá.

— Meu marido está em seu gabinete — respondeu Edith serenamente. — A senhora quer vê-lo?

— Se eu quero vê-lo! — repetiu a mulher no mesmo tom de antes.

Edith viu-lhe nos olhos uma chama viva, o rosto contraído numa expressão selvagem. Por alguns instantes teve--lhe piedade; uma mulher que vira todos os seus sonhos se dissiparem no momento em que já os contava plenamente realizados.

— Porventura ele sabe que estou aqui?

— Com certeza está à espera da senhora — arriscou secamente a moça.

— Quero falar com ele a sós — informou a Sra. Cathcart, dando um passo atrás em direção da filha.

— Se quiser falar com ele, há de ser na minha presença, mãe.

— Você faça o que eu mandar — explodiu a velha. Edith sorriu.

— Mãe, — disse afavelmente — a senhora não tem mais o direito de me controlar. Já me transferiu para outra pessoa.

Aquilo tudo não era um bom preparativo para a entrevista que viria. Edith o reconhecia. Abriu a porta e entrou na frente da mãe.

Quando Gilbert viu quem era a visitante, ergueu-se fazendo uma rápida reverência. Não lhe estendeu a mão. De certo modo ele sabia o que aquela mulher estava sentindo.

— Não quer sentar, Sra. Cathcart? — disse.

— Vou ficar de pé para lhe dizer o que me trouxe aqui — boquejou a velha com impertinência. — Que história é essa, afinal? — Atirou para ele a carta que Edith lhe tinha escrito, a qual lera e relera até que cada palavra ficasse gravada em sua mente. Por acaso é verdade — perguntou ferozmente — que você é pobre? Que nos enganou? Que se casou à custa de mentiras?...

Ele ergueu a mão.

— A senhora parece se esquecer, Sra. Cathcart, — disse com dignidade — que sempre discutimos a questão da minha posição, e a senhora sempre fez questão de deixar bem claro que nenhuma consideração de ordem mundana poderia influir no caso.

— Mundana! — escarneceu a mulher. — Que quer dizer com isso, Sr. Standerton? Não está o senhor, porventura, no mundo? O senhor não vive numa casa e não come pão e manteiga que custam dinheiro? Não usa automóveis cuja manutenção exige dinheiro? De vez que eu vivo no mundo e o senhor também, as considerações de natureza mundana sempre contam. Pensei que o senhor fosse rico; é um pobretão.

Gilbert sorriu, não sem desprezo.

— Que bela embrulhada o senhor aprontou — tornou a mulher asperamente. — Arranjou uma mulher que não o ama... Presumo que já saiba disso.

Ele confirmou, inclinando-se respeitosamente.

— Sei de tudo, Sra. Cathcart — respondeu; — nada pode ser pior que isso. O fato de que a senhora obviamente planejou o casamento por pensar que eu fosse o herdeiro de Sir John Standerton não me fere nem um pouco, porque já encontrei muitas mulheres assim; apenas — disse encolhendo os ombros, — devo confessar que supus que a senhora fosse um pouco diferente do resto das mães mundanas (com o perdão da palavra). Mas não é melhor do que as outras; talvez até seja um pouco pior — concluiu, com os olhos meditativos fitos no rosto da sogra.

Havia no olhar dele um quid muito curioso que a mulher não pôde compreender de todo. Ela já vira aquele olhar alhures, e teve um calafrio, apesar de tudo. Sua ira aos poucos tornou-se medo.

— Pedi-lhe para adiar o casamento — prosseguiu Gilbert com brandura. — Eu tinha uma razão especial, uma razão que não lhe darei, mas que vai interessá-la dentro de alguns meses. Mas a senhora teve receio de perder seu rico genro. Na ocasião não compreendi que era esse o seu receio. Convenci-me (realmente não importa como) — prosseguiu ele com firmeza — de que a senhora é mais responsável do que eu por este casamento.

Gilbert estava mudado. A Sra. Cathcart, na sua ira tempestuosa, era capaz de reconhecer isto: havia uma nova alma, um novo espírito, uma nova determinação e — era isto! — uma ferocidade nova e terrível a brilhar nos olhos dele, que, no momento, lhe endurecia as feições a ponto de ser quase terrível contemplá-lo.

— Sua filha casou-se comigo sob falso conceito. Ela lhe contou tudo o que eu tinha para contar-lhe... Quase tudo — corrigiu-se — e eu previ esta visita. Se a senhora não viesse eu a teria mandado chamar. Sua filha está tão livre como o ar, pelo que me diz respeito. Presumo que a senhora tenha também algum conhecimento da lei. Ela pode requerer o divórcio amanhã mesmo, e obtê-lo sem problemas. E quase sem nenhuma publicidade.

Um lampejo de esperança subiu aos olhos da Sra. Cathcart.

— Nunca pensei nisso — disse ela como de si para si. Voltou-se rápida para a filha, pois era uma mulher de ação.

Pegue suas coisas e vamos.

Edith nem se mexeu. Permanecia do outro lado da mesa, encarando a mãe e fitando o marido de esguelha.

— Você ouviu o que o Sr. Standerton disse — insistiu a Sra. Cathcart, irritável. — Abriu-lhe uma porta para escapar. É verdade o que ele disse. Pode-se obter o divórcio sem dificuldade. Vamos. Depois mando buscar suas roupas.

Edith ainda dessa vez não se mexeu.

A Sra. Cathcart, observando-a, viu que as feições da filha se iam abrandando aos poucos, viu-lhe os lábios se entreabrirem num sorriso e a cabeça cair para trás ao som de uma gargalhada que reboou por todo o aposento.

— Ah, minha mãe! — O infinito desprezo de sua voz feriu a velha como um açoite. — A senhora não me conhece mesmo! Quer que eu vá com a senhora? Que me divorcie? Deve estar louca! Se ele fosse rico de verdade, então podia ser que sim; mas por enquanto, apesar de eu não amá-lo e de não culpá-lo por também não me amar, a minha sorte está lançada com a dele; meu lugar é aqui.

— Melodrama! — comentou a velha com fúria.

— Há um bocado de verdade e muita decência nos melodramas, Sra. Cathcart — interveio Gilbert.

Sua sogra ficou pálida de raiva; depois, virou-se e saiu, batendo a porta.

Os outros dois entreolharam-se pelo espaço de alguns segundos; depois Gilbert estendeu a mão à esposa.

— Obrigado — disse.

A moça baixou os olhos.

— Não há nada que agradecer — respondeu apática. — Já lhe causei muito dano com um pequeno ato; agora quero poupar-lhe todas as conseqüências do meu egoísmo.

 

A AGÊNCIA DE COFRES

O centro comercial de Londres, como todo mundo sabe, está cheio de estabelecimentos sólidos e prósperos.

Abundam, nessa área, empresas que proclamam, com dignidade ou ostentação, o fato de já estarem exatamente ali v por nada menos, que um século, e de serem dirigidas ainda pelos legítimos descendentes de seus fundadores.

Há companhias, sindicatos e sociedades comerciais, instalados em prédios vistosos e ornamentados, bem como elegantes conjuntos de escritórios, que surgem à luz na primavera e desaparecem por completo no inverno, deixando atrás de si um resíduo de pequenas contas por saldar e um locador cuja única satisfação é ter recebido o aluguel adiantado.

As tragédias dessa parte da cidade ocorrem, em grande parte, nas imediações do sombrio e despretensioso edifício da Bolsa de Valores, e podem ser vistas no punhado de gente macambúzia que costuma perambular em torno desse prédio como verdadeiras almas penadas.

Mas o jogador trágico não é peculiar a essa metrópole, e as fortunas que se ganham e perdem num dia ou numa hora têm sua contrapartida em todas as cidades do mundo em que se realizem transações na Bolsa.

As pitorescas tristezas do centro comercial londrino são representadas na mente popular pelos destroços humanos que pululam no Embankment após o escurecer, ou que se arrastam pelos cantos das ruas, cabisbaixos, à cata de bitucas ainda aproveitáveis. Tudo isso é muitíssimo triste; porém os infelizes objetos da nossa piedade estão consideravelmente mais satisfeitos com sua sorte do que a maioria das pessoas poderia imaginar.

A tragédia real, entretanto, está nos mil e um negócios que surgem alegremente e em pouco desbaratam as economias que dois ou três indivíduos otimistas levaram anos para juntar. Os novos cartazes à porta, recendendo a tinta fresca ou verniz, os livros virgens imponentemente dispostos em novas prateleiras, a massa de correspondência despachada diariamente, os folhetos e opúsculos, as tábuas explanatórias e todos os apetrechos do propagandista inexperiente, e as poucas respostas que lhes chegam, tudo isto faz parte do mesmo e triste jogo.

Algumas firmas diligenciam por estabelecer-se com violência, ao som de altas clarinadas. Outras mergulham no trabalho silenciosamente, e de alguma forma misteriosa obtêm êxito. Em geral, poder-se-ia supor, elas já surgem com uma inestimável clientela, mudando-se dos subúrbios para endereços mais prestigiosos.

Um dos estabelecimentos comerciais que passaram a existir em Londres, no ano de 1910, foi uma firma que a lista telefônica definia como "Companhia de Cofres de St. Bride". Trabalhava com cofres novos e usados, caixas fortes e toda espécie de engenhosos mecanismos de proteção.

Em seu único salão-mostruário havia cofres de todas as marcas e tipos, novos e velhos, bem como grades de proteção, alarmas contra roubos, caixas registradoras, grandes e pequenas, e tudo o mais que se podia fazer com aço e ferro visando a resistir às investidas dos gatunos profissionais.

O responsável pela casa era, ao que tudo indicava, um cavalheiro do interior que contratara um pessoal, inclusive um gerente e um vendedor, por meio de propaganda; entrevistou novos empregados nos Midlands, e colocou à disposição do gerente, o qual viera munido de irrepreensíveis cartas de recomendação, uma quantia em dinheiro suficiente para comprar o que fosse necessário e encetar o negócio.

Acrescentava, vez por outra, mais suprimentos à firma, e, embora os pedidos fossem raros, o proprietário do estabelecimento continuava a pagar alegremente o alto preço do aluguel e os generosos salários dos empregados.

Vez por outra visitava a firma, em geral tarde da noite; pois, como explicava, sua ocupação em Birmingham lhe tomava quase todo o tempo.

Inspecionava então o depósito; fazia um inventário das chaves, as quais eram habitualmente guardadas no cofre particular da firma, e, ao fim de tudo, expressava invariavelmente sua satisfação pelo andamento dos negócios.

O próprio gerente nunca pôde entender ao certo como seu patrão podia fazer aquele escritório dar lucros, mas evidentemente ele tinha um grande negócio nas províncias, pois podia dar-se ao luxo de possuir e manter um grande caminhão de carga, um motorista que, de tempos em tempos, aparecia em Bride Street trazendo algum cofre e levando algum artigo recém-comprado a seu novo dono.

O gerente, um tal Sr. Timmings, membro respeitável da sociedade de Batham, limitava-se a imaginar que a parte provincial do negócio devia ser bastante extensa. Algumas vezes o caminhão exibia provas de ter viajado muitos quilômetros, e, fosse como fosse, parecia que os negócios prosperavam, ao menos pelos dados de Birmingham.

Foi no dia seguinte às ocorrências relatadas no capítulo anterior que Gilbert Standerton decidiu, entre outras coisas, adquirir um cofre.

Precisava de um para a sua casa, e havia razões que não carecem de ser pormenorizadas pelas quais um tal artigo lhe era necessário. Jamais tivera necessidade de um cofre antes. Agora, porém, queria comprar um sem perda de tempo. Feliz ou infelizmente, resolveu-se numa hora em que a maioria dos revendedores dessa rara espécie de artigo já tinha cerrado as portas. Passava das seis quando chegou ao centro de Londres.

O Sr. Timmings saíra da loja cedo aquela noite, mas deixara um excelente substituto.

O proprietário viera a Londres um pouco antes naquela tarde, e, através das portas envidraçadas, Gilbert viu-o e espantou-se.

Experimentando a porta, viu que estava trancada, mas com um sorriso jovial o novo proprietário, em pessoa, desaferrolhou-a e o recebeu.

— Já fechamos — esclareceu, — e o gerente já se foi. Posso fazer alguma coisa pelo senhor?

Gilbert fitou-o.

— Sim — disse devagar; — queria comprar um cofre.

— Nesse caso, acho que posso ajudá-lo — disse o outro, de bom humor. — Não quer entrar?

Gilbert entrou, e a porta tornou a ser trancada atrás dele.

— Que espécie de cofre deseja? — perguntou-lhe o homem.

— Queria ver um pequeno; talvez um Chubb de segunda mão, se tiver.

— Por acaso acho que tenho exatamente o que o senhor quer. É para escritório, não é?

Gilbert meneou a cabeça.

— Não, é para minha casa mesmo — esclareceu lacônico; — gostaria que o senhor mandasse entregar o mais depressa possível.

Gilbert examinou vários exemplares e finalmente escolheu o seu.

Quando já estava de saída, viu num extremo da loja um enorme cofre.

Era de tamanho descomunal, com cerca de dois metros e meio de altura e outros tantos de largura. Parecia um enorme guarda-roupa de aço. Três séries de fechaduras protegiam o seu interior, e ainda por cima tinha uma fechadura de combinação.

— Belo cofre! — comentou Gilbert.

— Não é mesmo? — disse o outro, despreocupado.

— Qual o preço?

— Já foi vendido — tornou o proprietário, um pouco brusco.

— Vendido? Gostaria de vê-lo por dentro — disse Gilbert.

O homem sorriu-lhe e alisou pensativamente os bigodes revirados.

— Sinto não poder atendê-lo — disse. — O fato é que o novo dono ficou com as chaves.

— Que azar — tornou Gilbert; — este é um dos cofres mais interessantes que já vi.

— É bastante comum — disse o outro laconicamente, e bateu com os nós dos dedos no lado da peça, com ar meditativo. — É um troço bastante caro.

— Tem-se a impressão de que está aí para sempre.

— É mesmo — disse o outro, distraído. — Foi essa a impressão que eu quis dar.

Sorriu e conduziu o cliente a uma outra parte da loja.

Gilbert teria pago com cheque, mas algo o impediu de fazê-lo. Rebuscou nos bolsos e encontrou as quinze libras que lhe foram pedidas pelo cofre.

O outro despediu-se amigavelmente dele e conduziu-o à porta da rua, fechando-a depois.

— Onde foi que eu vi essa cara antes? — matutava o proprietário de si para si.

Conquanto fosse, em mais de um sentido, um homem muito esperto, é curioso que só conseguiu identificar aquele freguês depois de muitos meses.

 

O ARROMBADOR

Havia três homens no aposento mais interno de um escritório da Cidade. A porta da rua estava trancada a chave, a que comunicava o escritório propriamente dito com um gabinete privado estava escancarada.

Os homens, à mesa, discutiam acerca do almoço frugal que lhes tinha sido trazido de um restaurante próximo, conversando em voz baixa.

George Wallis, cuja autoridade no falar sugeria que estivesse numa posição de liderança em relação aos demais, aparentava os seus cinqüenta anos, era inclinado à obesidade, de meia altura e não apresentava nenhuma característica distintiva, exceto pelo bigode eriçado e as sobrancelhas retintas que lhe davam ao rosto uma aparência algo sinistra. Seus olhos pareciam cansados e preguiçosos, o maxilar quadrado revelava imensa determinação, e as mãos, que brincavam ociosamente com uma caneta, eram pequenas mas fortes; eram mãos de artista; e, na verdade, George Wallis, ou qualquer que fosse o nome que usasse, era conhecido como um artista, na sua profissão particular, em todos os postos policiais do continente europeu.

Callidino, o pequeno italiano a seu lado, estava impecável. Com seus longos cabelos, sugeria mais o entusiasta da música do que o frio homem de negócios. E, no entanto, era conhecido como o mais prático daquele notável trio que por muitos anos fora o terror de todo presidente de banco em França.

O terceiro era Persh; homem robusto, de rosto agradável e rosado e um correto bigode de cavalariano, o qual, apesar do vulto, era extraordinariamente ágil, e a sua fuga da Ilha do Diabo, bem como a subseqüente viagem que empreendeu para a Austrália num barco descoberto, com certeza ainda estarão na memória da maioria dos leitores de jornais.

Não disfarçaram suas identidades, não se esquivaram ao franco interrogatório por que tiveram de passar, quando a polícia local, tendo-os farejado, apareceu para investigar as atividades daquele estabelecimento de "corretores estrangeiros". Os membros da Força municipal ficaram um tanto desapontados ao descobrir que eles estavam conduzindo um negócio perfeitamente legal. Ninguém pode implicar mesmo com notórios ladrões de bancos quando eles procuram viver por qualquer meio que, apesar de muito desacreditado, esteja dentro da lei; e a par de advertir os clientes, com quem pudesse entrar em contato, de que os cabeças daquele notável negócio eram criminosos conhecidos, a polícia teme, inevitavelmente, de pôr-se ao largo e vigiar, persuadida de que, cedo ou tarde, aqueles homens dariam um passo em falso que os enquadraria na esfera de ação policial.

— E eles terão de esperar um bocado de tempo — disse Wallis.

Passeou os olhos por aquela pequena assembléia reunida em torno da mesa, com um sorriso divertido.

— Eles estiveram aqui hoje? — perguntou Callidino.

— Estiveram — respondeu Wallis, com gravidade. — Examinaram nossos livros, nossas mesas e nossas roupas; para não falar nas pernas de nossos bancos.

— Um procedimento indelicado — comentou Persh, alegremente. — E que foi que encontraram, George?

George sorriu.

— Tudo o que tinham para encontrar — respondeu.

— Deve ter sido aquele arrombamento em Bond Guarantees o que os assanhou — disse o italiano com frieza.

— Também acho — disse Wallis com grave indiferença. — Ê mesmo terrível ter nomes como os nossos. Para ser franco — prosseguia ele, — a polícia não me assusta muito, mesmo supondo que houvesse alguma coisa para encontrarem. Ainda não vi nenhum deles com a inteligência daquele safado que encontramos no Ministério dos Negócios Exteriores quando tive de responder a algumas perguntas sobre as singulares experiências de Persh na Ilha do Diabo.

— Como era o nome dele? — indagou Persh interessado.

—Um nome que lembra a África do Sul... ah sim, Standerton. Um bruto descarado... Encontrei-o em Epsom outro dia — disse Wallis. — É uma pena que esteja no Ministério; um desperdício. Você se lembra de como ele caiu em cima de mim com uma descarga de perguntas, Persh?

O outro fez que sim.

— Antes de saber onde estava, admiti que tinha estado em Huntingdonshire na mesma semana em que as jóias de Lady Perkinton foram roubadas. Se ele tivesse tido mais cinco minutos, aposto que teria descoberto — e baixou o tom — onde está escondido todo esse tesouro que a polícia inglesa está procurando.

Os homens riram como de uma grande piada.

— Por falar em gente de sangue-frio — disse Wallis, — lembram-se daquele camarada misterioso que nos reteve em Hatton Garden?

— Você o encontrou? — perguntou Callidino.

George sacudiu a cabeça.

— Não — disse devagar; — só que estou com muito medo dele.

O que, vindo de quem vinha, era uma notável confissão. Ele então mudou de assunto abruptamente.

— Suponho que vocês saibam — continuou — que a policia está particularmente ativa agora. Digo isto porque eles acabam de dar uma busca em regra nos meus pertences.

Não exagerava. A polícia estava, realmente, muito ansiosa por encontrar alguma pista que associasse aqueles três famosos criminosos com os acontecimentos do mês anterior.

Meia hora depois, Wallis deixou o edifício. Deteve-se Por um momento no saguão de entrada daquele prédio de escritórios e acendeu um charuto, com um ar que indicava estar em perfeita paz com o mundo e ainda contar com a aprovação irrestrita da humanidade.

Quando pôs o pé na calçada, um homem alto achegou-se a ele.

Wallis depressa ergueu os olhos para o recém-chegado e fez com a cabeça uma leve saudação.

— É você mesmo que eu quero — disse o homem, com frieza.

— É mesmo? — respondeu ele, com interesse exagerado. — E o que pode o senhor querer de mim?

— Você vem comigo, e de bico calado — declarou o outro.

Chamou um táxi, e ambos foram rapidamente conduzidos ao posto policial mais próximo. Wallis continuava a fumar o charuto, sem o menor sinal exterior de apreensão. Teria batido um bom e alegre papo com o policial, mas o caso é que o outro não estava de veia.

Foi empurrado para o gabinete do oficial de serviço e posto diante da mesa do Inspetor.

Este ergueu os olhos e fez uma ligeira saudação com a cabeça. Era mais cordial que o primeiro.

— Bem, Wallis — começou, com um sorriso, — queremos que nos dê uma pequena informação.

— Os senhores sempre parecem estar pedindo informações a alguém — respondeu George com insolência. — Que houve; outro assalto?

O Inspetor confirmou com a cabeça.

— Ora, vamos — disse o prisioneiro afetando aflição; — que aborrecimento para o senhor, Sr. Whitling. Já apanhou o culpado? — perguntou com delicadeza.

— Por enquanto só apanhei você — disse calmo o Inspetor. — Mas não me surpreenderia se também tivesse apanhado o culpado. Pode nos dizer onde esteve a noite passada?

— Com muito prazer — tornou Wallis; — estive jantando com um amigo.

— O nome dele?

O outro encolheu os ombros.

—O nome não vem ao caso. Eu estava jantando com

m amigo cujo nome não interessa. Escreva isto, Inspetor.

E onde é que estava jantando com esse amigo desconhecido — perguntou o outro, imperturbável.

Wallis deu o nome de um restaurante de Wardour Street.

A que horas estiveram jantando? — tornou a indagar, pacientemente, o Inspetor.

— Entre oito e onze horas — respondeu George, — como o proprietário do restaurante poderá confirmar.

O Inspetor sorriu de si para si. Ele conhecia o restaurante e seu proprietário. O testemunho deste último não teria muito valor perante um júri.

— Conhece alguém respeitável — perguntou o policial

— que possa declarar que vocês estiveram lá; alguém que não seja esse seu amigo desconhecido nem o Signor Villimicci?

Wallis afirmou que sim.

— Eu poderia citar, com o devido respeito — respondeu,

— o Sargento Colebrook, do Departamento Central de Investigações da Scotland Yard.

Dissera-o levemente aborrecido. O Inspetor ergueu os olhos perscrutadores.

— E será que ele vai confirmar a sua história? — perguntou o policial.

— Ele esteve me vigiando o tempo todo, disfarçado, penso eu, de cavalheiro. Pelo menos estava trajado a rigor, e era bem diferente dos garçons. E, depois, ele estava sentado.

— Sei — disse o Inspetor, e descansou a caneta sobre a mesa.

— Foi muito divertido ser vigiado por um verdadeiro sargento-detetive, naquele terrível deserto ladrilhado — prosseguiu o homem. — Eu gostei da brincadeira, mas acho que o coitado se aborreceu antes de mim.

— Compreendo — disse o Inspetor. — Quer dizer que esteve sendo vigiado das oito horas, na noite passada, até... ?

E fez uma pausa interrogativa.

— Até perto da meia-noite, acho eu. Até que o nosso detetive a rigor, conservando um ar trágico de detetive o tempo todo, me escoltou à porta de casa.

— Podemos verificar isso num minuto — tornou o outro.

— Entre naquela sala.

Wallis caminhou despreocupadamente para o gabinete vizinho, enquanto o inspetor manipulava o telefone.

Em cinco minutos tornou a ser chamado.

— Você tem razão — disse-lhe o Inspetor. — Está livre, Wallis.

— Fico contente em ouvir isto — disse George. — Puxa, que alívio! — Deu um grande suspiro. — Agora que estou envolvido no que se poderia chamar de forma legalizada de roubar o público, é muitíssimo agradável saber que minha atividade conta com a aprovação da polícia.

— Nós não aprovamos exatamente tudo o que você faz

— esclareceu o Inspetor.

Que sujeito cacete, pensava Wallis; nem perdia de todo o humor nem era rude por inteiro.

— Pode ir agora... Sinto tê-lo aborrecido.

— Não se incomode — disse polidamente Wallis fazendo uma mesura.

— A propósito, antes de ir-se — tornou o outro — quer dar uma chegada no meu gabinete, por favor?

Wallis seguiu-o. O Inspetor fechou a porta após entrarem. Estavam a sós.

— Wallis, você já sabe que há uma recompensa de perto de doze mil libras pela captura dos homens envolvidos nesses assaltos?

— O senhor me surpreende — disse George erguendo as sobrancelhas.

— Duvido — tornou o outro; — na verdade, você sabe mais a esse respeito do que eu próprio. Mas já vou avisando que nós estamos preparados para ir até as últimas conseqüências para pegar essa quadrilha, ou, pelo menos, para pôr fim a suas atividades. Olhe aqui, George — e cutucou o peito do outro com um dedo forte e nodoso, — não quer cantar?

— Cantar? — O Sr. Wallis era a própria personificação da inocência.

— Está disposto a depor contra eles? — reformulou o outro, sem rodeios.

— Eu gostaria muitíssimo — esclareceu Wallis encolhendo os ombros, — mas como posso depor sobre um caso de que estou absolutamente desinformado? A recompensa é muitíssimo tentadora. Se eu tivesse algum companheiro metido em crimes pode crer que eu não precisaria de tanto para me persuadir a delatá-lo. Minha consciência é coisa bastante adaptável; é como uma régua de ajustar, sabe; terrivelmente ajustável.

— Não quero ouvir mais nada a respeito de sua consciência — disse o policial, fatigado. — Está ou não disposto a cantar?

— Eu não canto — respondeu enfaticamente o Sr. Wallis.

O Inspetor fez-lhe, com a cabeça, um sinal de que desse o fora, e, depois de concluir a mesura que antes interrompera, o Sr. Wallis se retirou.

Bem sabia que todas as suas ações estavam sendo observadas. Soube, logo que deixou o posto policial, que uma certa figura, aparentemente ociosa, que viu na esquina, o seguiria até que outro policial à paisana o viesse render, o qual também o seguiria e observaria. De um lugar a outro, de um extremo da Cidade a outro, aqueles olhos vigilantes não o deixariam jamais; mesmo enquanto dormia, a porta da frente e dos fundos de sua residência estariam sob vigilância. Não poderia dar um passo sequer, sem que toda Londres (ao menos a Londres que lhe tocava) o soubesse.

Sua casa ficava sobre uma tabacaria, numa ruela transversal à Charing Cross Road. Caminhou desapressado para sua pequena mansão, tanto mais que sabia que de um lado da rua um inocente caixeiro-viajante, e, do outro, um homem--sanduíche aparentemente indo para casa com o seu cartaz, o mantinham sob observação. Parou para comprar charutos em Charing Cross Road, atravessou perto do Alhambra, e, dez minutos depois, girava a chave na fechadura da porta que dava para um estreito corredor ao lado da loja e que lhe dava acesso privativo à suíte superior.

Era um quarto bem mobiliado e confortável, decorado com certa habilidade, e em que se destacavam amplos divas. As gravuras que tinha, embora poucas, interessavam por sua raridade.

Não se deu o trabalho de inspecionar o quarto, nem o resto da pequena mansão que alugara. Se a polícia tivesse estado ali, pouco se lhe dava. Se não tivesse, dava na mesma; pois não poderiam encontrar nada. Ele tinha a consciência limpa, pelo menos tanto quanto a pode ter um homem que receia menos as conseqüências abstratas de seus atos do que as visíveis, óbvias e apuráveis.

Tocou uma campainha, e, após curta demora, uma velha mulher o atendeu.

— Traga-me um pouco de chá, Sra. Skard — disse ele. — Alguém me procurou?

A velha fixou os olhos no teto, à cata de inspiração.

— Só o homem do gás — respondeu.

— Só o homem do gás! — repetiu admirado George Wallis. — E ele não ficou surpreso ao descobrir que não usamos gás aqui?

A velhota fitou-o algo divertida.

— Ele disse que vinha examinar o gás — explicou ela, — mas, depois que descobriu que não usávamos gás, disse "eletricidade" ... Rapaz muito distraído.

— Eles são assim mesmo, Sra. Skard; apaixonam-se nessa época do ano, e quando suas mentes se ocupam de outros pensamentos mais agradáveis do que gás e lâmpadas incandescentes, eles se tornam um tanto confusos. Espero que ele não a tenha atrapalhado... Por acaso ele não lhe terá dito que não precisava esperá-lo terminar? — sugeriu Wallis.

— Foi exatamente o que ele disse, patrão — tornou a Sra. Skard. — Disse que poderia fazer tudo sozinho e que não precisava de assistência.

— E macacos me mordam se ele não o fez — replicou--lhe o patrão numa gargalhada explosiva.

Sem se perturbar pelo fato de que seus aposentos tinham sido investigados por um zeloso detetive, sentou-se e ficou a ler por uma hora, uma revista americana. Às seis um táxi entrou naquela rua e freou à porta. O motorista, um homem forte e barbudo, olhava desesperado para um lado e outro procurando um número, e um dos dois detetives que tinham estado a vigiar a casa atravessou a rua de uma maneira inteiramente casual em direção do recém-chegado.

— Está procurando algum número, companheiro? perguntou-lhe.

— Estou procurando o número 43 — esclareceu o motorista.

— É esse aí — disse o policial.

Ele esperou o motorista apertar a campainha. Tendo-o visto entrar pela porta, a qual foi fechada atrás dele, voltou ao seu posto onde o esperava um outro policial.

— George vai dar uma voltinha de táxi — informou; — veremos aonde vai.

O que esperara do outro lado da rua comentou:

— Duvido que ele vá a alguma parte para onde valha a pena segui-lo; em todo caso, deixei o carro esperando na esquina.

— Vamos segui-lo, seja como for — disse o primeiro com amargura. — Você viu o que ele disse de mim ao Inspetor Whitling a noite passada?

O outro mostrou-se muitíssimo interessado.

— Não; que foi?

— Bom — começou ele, mas logo pensou melhor no caso; afinal não era coisa que se contasse o fato de que ele devia vigiar um homem por três horas e que o pilantra em questão sabia, durante todo o tempo, que estava sendo vigiado.

— Atenção! — disse ele quando a porta do N.° 43 se abriu. — Aí vem o nosso homem.

Lançou um olhar ao longo da rua e viu que o carro de aluguel estava esperando.

Ai vem ele. — Mas não era quem esperavam. O chofer barbudo saiu sozinho, acenou um adeus a alguém na entrada da casa, que os outros não podiam avistar, e, tendo dado a partida com grande determinação, ajeitou-se no assento, enquanto o táxi partia lentamente.

— George não está lá — disse o detetive. — Isto quer dizer que teremos de ficar aqui por mais umas duas ou três horas; ainda há luz lá em cima.

Durante quatro longas horas eles estiveram vigiando, e nem uma vez sequer tiraram os olhos da única porta pela qual George Wallis poderia sair. Não tinha nenhuma outra via de escape, disso eles estavam certos.

Por trás da casa havia um muro alto, e a não ser que Wallis estivesse conluiado com seus respeitáveis vizinhos não apenas daquela rua, mas, também, de Charing Cross Road, não poderia sair de seu apartamento sem ser visto pelos policiais que o vigiavam.

Às dez e meia o táxi que eles tinham visto voltou a estacionar na porta da casa e o motorista foi admitido. Era evidente que ele não pretendia demorar, pois não desligou o motor; na verdade, não se afastou do veículo por mais de trinta segundos. Retornou quase imediatamente, entrou no automóvel e se foi.

— Não estou entendendo — disse um dos detetives, admirado.

— Ele deve ter ido levar alguma mensagem para alguém — disse o outro. — Acho que devíamos investigar.

Dez minutos depois, o Inspetor Goldberg, da Scotland Yard, freou seu carro em frente deles e saltou.

— Wallis já voltou? — perguntou apressado.

— Voltar? — esganiçou, surpreendido, o detetive. — Ele ainda nem saiu!

— Não saiu? — repetiu o Inspetor ofegante. — Alguém cuja descrição corresponde à dele foi visto deixando o ramal central de Goldsmiths' Guild há meia hora. Um cofre foi forçado, e vinte mil libras em jóias foram roubados.

Houve um breve silêncio.

— Bem, senhor — tornou-lhe o subordinado com decisão, — uma coisa eu posso jurar: George Wallis não saiu de casa esta noite.

— É verdade — confirmou o outro policial. — O sargento e eu não saímos daqui desde que Wallis entrou.

— Mas — disse admirado o detetive-inspetor — deve ter sido Wallis; nenhum outro poderia ter feito o serviço tão bem.

— Não pode ter sido ele, senhor — insistiu o vigia.

—Então quem, em nome dos céus? — retrucou o Inspetor.

Mas, seus beleguins, sabiamente, não ousaram responder-lhe.

 

A ESPOSA INDIFERENTE

O Sr. Warrell, da firma de Warrell & Bird, gabava-se de ser um homem mundano, e apressava-se em admitir, com a mansa blasonaria em que ocasionalmente incorrem até mesmo os cavalheiros respeitáveis de meia-idade, que já passara por situações verdadeiramente terríveis. E dava a entender que delas sempre se saíra com certa dignidade.

Todo corretor de bolsa que goze de alguma popularidade, e cujo negócio seja bastante amplo, cedo ou tarde vê-se a braços com a delicada tarefa de explicar a um eventual especulador irrefletido, com todas as minúcias, quão precipitadamente e a que riscos investiu ele seu capital.

O Sr. Warrell tinha tido ocasião antes de relatar à Sra. Cathcart, com a maior gentileza possível, as desagradáveis notícias sobre os seus insucessos financeiros. Mas nunca estivera face a face com uma situação que prometia conseqüências tão desagradáveis como a que agora o esperava.

O impassível Cole, com o rosto descaído o fez entrar, pois conhecia o significado de tais visitas, pela via misteriosa que leva os criados a desvendarem os mais íntimos segredos de seus senhores e senhoras, e já sabia, por experiência prévia, que a chegada do Sr. Warrell seguir-se-ia fatalmente de um período de restrições, economias e reformas.

— A Senhora o receberá num instante — foi a mensagem com que voltou.

Alguns minutos depois, a Sra. Cathcart surgiu na sala de estar, com as feições um pouco mais duras que o usual, pensou o Sr. Warrell indagando-se a razão daquilo.

— Bem, Warrell — começou ela com vivacidade, — que maquinações diabólicas o trouxeram aqui? Não quer sentar?

Ele sentou-se com determinação. Colocou o chapéu sobre o assoalho, descalçou as luvas e depositou-as, com cuidado extremo, no interior acetinado do chapéu.

— Que há? — indagou com impaciência a mulher. — As ações da Canadian Pacifics tornaram a baixar?

— Tiveram uma ligeira alta — disse o Sr. Warrell, com um sorriso conciliatório. — Creio que suas expectativas sobre as Canadian Pacifics são bastante fundadas.

Ele bem sabia que ordinariamente a Sra. Cathcart nada apreciava mais do que um tributo à sua capacidade de julgar, mas nessa ocasião ela dispensou o cumprimento, pois sabia que aquele homem não se daria o trabalho de percorrer todo o caminho que fizera desde Throgmorton Street só para louvar-lhe a perspicácia.

— Vou dizer tudo o que tenho em mente — prosseguiu o Sr. Warrell, escolhendo as palavras e pelejando por conservar um penoso sorriso destinado a exprimir, de alguma forma tangível, sua franqueza. — A senhora nos deve cerca de setecentas libras, Sra. Cathcart.

Ela admitiu e acrescentou:

— Vocês têm amplas garantias.

— Sei disso — concordou o outro, dirigindo as palavras para o teto, — mas estaria a senhora preparada para liquidar, em moeda sonante, o que nos deve?

— Não há nada que discutir — tornou ela bruscamente. — No que me diz respeito, não estou preparada para levantar nem setecentos xelins.

— Suponha — sugeriu o Sr. Warrell, ainda com os olhos no teto — suponha que encontre alguém interessado em comprar-lhe o colar (acho que foi esse o artigo que a senhora nos confiou)... por mil libras?

— Ele vale muito mais que isso! — esganiçou ela.

—Pode Ser — tornou o homem, — mas eu estou ansioso para manter as coisas fora dos jornais.

Soltara a sua bomba.

— q que é que você está querendo dizer exatamente?

— argüiu-o ela, pondo-se de pé e mirando-o de cima.

— Não me entenda mal — acudiu ele apressado; — explicarei tudo numa sentença: seu colar de diamantes foi roubado do meu cofre.

— Roubado!

Ela empalideceu.

— Roubado — confirmou o Sr. Warrell — por uma quadrilha que vem se dedicando a esse tipo de operações há doze meses na cidade de Londres. Como a senhora vê, cara Sra. Cathcart — prosseguiu, — esta é uma situação assaz embaraçosa para nós. Não quero que meus clientes saibam que aceito jóias à guisa de penhor, e a senhora — a essa altura sua rudeza foi ao ponto de apontar a mulher com o dedo para acentuar as palavras — não deseja, imagino eu, que seus amigos saibam que precisou penhorar suas jóias.

— Encolheu os ombros e prosseguiu. — Não há dúvida que eu poderia contar o caso à polícia, fornecer-lhes uma descrição do colar e talvez obter indenização de uma companhia de seguros, mas isso eu não quero fazer.

Esse excelente homem de negócios poderia ter acrescentado que suas apólices de seguro não seriam suficientes para compensar o valor da jóia roubada, pois quando os prêmios de seguro são ajustados para cobrir o risco de um escritório de corretagem, via de regra os interessados jamais deixam de levar em conta a possibilidade de algum furto.

— Tenciono arcar eu mesmo com os prejuízos — prosseguia ele; — isto é, pretendo dispor, de meu próprio bolso, de uma quantia razoável, tanto pela senhora como por mim mesmo. Por outro lado, se não aceitar minha sugestão, não me sobra alternativa senão divulgar o assunto em todos os seus mais mínimos detalhes — disse ele com ênfase — à polícia e à imprensa. Então, que me diz?

A Sra. Cathcart poderia informá-lo de que, na verdade, não sabia o que dizer.

 

O colar era muito valioso, e havia ainda outras considerações.

Warrell estava obviamente pensando no valor sentimental da jóia, pois disse:

— Tendo em vista que essa espécie de jóias sempre tem associações, só me cabe sugerir que seu genro lhas compense.

A mulher virou-se para ele com um sorriso escarninho.

— Meu genro! Que esperança!...

Warrell conhecia Standerton; considerava-o um favorito da Fortuna, e não tinha a menor dúvida quanto à sua estabilidade financeira.

O desprezo reconhecível no tom da mulher abalou-o, como só um homem do centro comercial de Londres pode ser abalado por algo que ponha em dúvida o valor de títulos da mais inteira confiança.

Por um momento ele se esqueceu do objetivo de sua visita.

Gostaria de ter pedido explicações, mas achou que não era da alçada do corretor da Sra. Cathcart inquiri-la acerca de seus assuntos domésticos.

— Você me meteu em maus lençóis, Warrell — disse ela, e ergueu-se.

Ele imitou-a, apanhou o chapéu e tirou de dentro as luvas.

— Na verdade, é terrível — disse ele; — tremendamente horrível para a senhora, e tremendamente terrível para mim, minha cara Sra. Cathcart. Estou certo de que também compreende meu embaraço.

Depois que o corretor se retirou, ela permaneceu só, sentada na sala.

Que faria? Pois o que Warrell ignorava era que aquele colar tampouco era dela. Fora mandado remodelar pelo velho Coronel, que tencionava dá-lo à filha; e esta veio a herdá-lo depois.

Um círculo familiar consistente de mãe e filha exercendo direitos de propriedade comuns pode parecer estranho a famílias mais extensas em número. Embora Edith soubesse que o colar era seu, não fez objeções a que a mãe o usasse, jamais chegara a suspeitar de que ela cobiçasse ver aquela jóia em seu próprio cofre, somada à sua escassa coleção.

Apesar disso, sempre se soube que aquele era o "colar de Edith".

A própria Sra. Cathcart referira-se a ele desse modo, e já era um aspecto bastante desagradável, à vista da separação havida entre mãe e filha, aquela questão do colar e sua retenção pelo corretor.

A velha deu de ombros. Não havia nada que se pudesse fazer; devia confiar na sorte. Não conseguia imaginar que Edith pudesse jamais sentir a necessidade daquela jóia; no entanto, se seu marido era pobre, e ela estava obcecada pelo absurdo sentimento de lealdade para com o homem que a enganara, podia haver uma remota possibilidade de que, movida pelo desejo quixotesco de ajudar o esposo, se pusesse a fazer perguntas sobre o paradeiro do colar.

Mas Edith não era desse tipo, pensava. E entreteve aquele pensamento reconfortante enquanto subia as escadas em direção do quarto.

Parou a meio caminho para que a criada a alcançasse com a correspondência que acabava de chegar. Com surpresa, reconheceu no sobrescrito do primeiro envelope a caligrafia da filha, e abriu-o. A carta era breve:

 

"Querida mamãe,

Quer, por favor cuidar para que eu receba o colar que papai me legou. Acho que agora precisarei manter as aparências, ao menos por causa de meu marido."

 

A lauda caiu-lhe das mãos e ela permaneceu estática no meio das escadas

 

Edith Standerton supervisionava a arrumação da mesa para o almoço, quando seu marido chegou. A vida se tornara uma coisa curiosamente sistematizada naquela residência de St. John's Wood.

A nenhum daqueles jovens parecera possível viverem juntos como o faziam agora, em perfeita harmonia e compreensão, e, contudo, sem nenhum sinal visível de amor nem a menor demonstração de afeto de qualquer das partes.

Compará-los a um casal de irmãos dificilmente lhes descreveria a amizade. Faltava-lhes o conhecimento mútuo das coisas e o interesse comum que irmãos teriam. Careciam, igualmente, da capacidade de apreciar os defeitos e as virtudes um do outro.

Eram estranhos, e cada dia ensinava a cada um algo novo sobre o companheiro. Gilbert veio a saber que aquela moça quieta, cujos olhos cinzentos e tristes sempre lhe sugeriam alguma tragédia, tinha senso de humor, era capaz de rir à menor provocação, e era muito judiciosa em sua apreciação da humanidade.

Ela, de seu lado, descobrira nele uma força insuspeitada, uma vitalidade e uma firmeza de propósitos que jamais conhecera antes de casar-se. Gilbert, além do mais, era divertido nos raros intervalos em que estavam a sós. Fora um trotamundos e visitara a Pérsia, a Arábia e outros países menos conhecidos da Ásia Oriental.

Ela jamais tornou a referir-se aos acontecimentos daquela terrível noite de núpcias. Nesse particular, é possível que julgasse mal. Vira uma musicista com um rosto de extraordinária beleza, e dera, quem sabe, importância exagerada ao fato. Mas, em alguma parte do coração de seu marido havia um segredo sobre o qual ela só podia conjeturar. Supunha tratar-se de algo associado, de algum modo, a uma mulher; isso jurava-lho a mulher que havia nela própria.

Não sentia ressentimentos, fosse contra o marido, fosse contra a desconhecida que lhe gemera uma mensagem nas cordas trêmulas de um violino em sua noite de bodas.

Apenas, dizia-se ela, aquilo era "curioso". Queria saber de tudo o que se passava. Tinha a salutar curiosidade dos jovens. A revelação talvez a abalasse, podia ser que a enchesse de desprezo pelo homem cujo nome usava, mas, ainda assim, queria saber.

Após certo tempo, passou a melindrá-la o fato de que ele lhe tivesse segredos.

Estado de espírito bastante estranho, considerando-se a singular relação que mantinham; e, todavia, compreensível.

Embora não tivesse atingido a relação amigável própria de marido e mulher, desenvolvera-se entre ambos uma amizade que, no entender da moça (e esforçava-se por crê-lo), tinha caráter mais duradouro do que aquele que o casamento, como casamento, poderia produzir. Tratava-se de uma camaradagem em que muita coisa ficava subentendida; ela tinha como líquido e certo que ele a amava, e embarcara no casamento sem maiores considerações. Essa era uma base bastante sólida para conquistar a amizade de qualquer mulher.

Gilbert, de seu lado, estava certo de que Edith tinha uma alma nobre e era franca; muito embora sua franqueza, eventualmente, o ferisse quase de morte. Nisso ele via que lhe inspirava um respeito inusitado; se bem que, em momentos de raciocínio mais frio, compreendesse que ela agiria do mesmo modo com qualquer outro.

Edith, por seu turno, transformara essa amizade numa espécie peculiar de romance assexuado, e nisso julgava ter alcançado o ideal a que jovens de todos os tempos sempre aspiraram, sem, todavia, obter êxito apreciável.

Não há homem nem mulher em todo o mundo que não creia poder tirar a sorte grande; não há criatura humana tão acanhada que não se possa imaginar o objeto privilegiado de exceções feitas a leis e normas universais.

Platão talvez deixasse de pontificar as excelências de outros tipos de afeição; sua filosofia talvez entrasse irremediavelmente em ebulição e se esfumasse no ar, se se expusesse ao fogo ardente do amor natural. Milhares de testemunhas poderiam erguer-se e atestar a futilidade da simples camaradagem entre duas pessoas de sexos opostos; mas sempre existe o "tu" e o "eu" no mundo, o qual desafia a experiência, que surge, com sublime fé, a prometer um resultado diferente àqueles que o têm observado igual em todas as experiências anteriores.

Segundo ela própria, se houvesse em seu íntimo a menor chispa de amor por aquele rapaz que com certa brusquidão lhe entrara na vida, e dela saíra com alguma violência, só para retornar sob outro aspecto; se houvesse em seu coração a mais apagada sombra do que se chama amor, então, ao menos, ela se tomaria de ciúmes pelo que quer que lho arrancava todas as noites e não poucas vezes lho restituía quando já a alva rosava o horizonte.

Ficara certa noite à janela, observando-o sair, e cismara vagamente, no que ele poderia ir fazer as noites.

Estaria procurando alívio para uma situação intolerável? Mas ele jamais lhe dera a impressão de que fosse intolerável. Esse pensamento a consolou.

Haveria... alguma outra?

Essa era uma reflexão capaz de franzir as sobrancelhas daquela indiferente esposa.

Certa vez ela se viu, para grande divertimento seu, a ponto de chorar em face de tal suposição. Atravessou todas as fases de dúvida, determinação, ira e contrição, que uma jovem esposa, em meio a circunstâncias mais felizes, poderia ter experimentado.

Quem era afinal a bela violinista? Qual fora o papel dela na vida de Gilbert?

Uma coisa ela sabia: seu marido estava jogando na Bolsa de Valores. A princípio, não compreendia que ele pudesse ser tão prosaico. Sempre o considerara uma pessoa para quem o ato de juntar dinheiro fosse vulgar e repugnante. Ele se demitira do Ministério; estava agora absorvido em algum negócio sobre o qual não discutiam. Ela pensara muitas coisas; porém, até encontrar uma nota contratual de um corretor, em cima de sua escrivaninha, jamais imaginara que o êxito na Bolsa pudesse, nem de longe, ser o alvo de suas ambições.

Aquela transação pareceu-lhe enorme.

A nota representava dezenas de milhares de ações. Ela quase nada sabia acerca da Bolsa, a não ser que tinha havido manhãs em que sua mãe ficara insuportável em resultado de suas perdas. Ocorreu-lhe então que, já que ele se metera em negócios — termo vago que para ela significava qualquer coisa — ela poderia fazer algo mais do que ficar em casa supervisionando o trabalho dos criados.

Poderia ajudá-lo ainda de outra forma. Homens de negócios sempre participam de jantares de conveniência e dão festas diplomáticas. E sabe-se que muitos maridos obtêm êxito graças ao tino das esposas.

Aquele era um bom pensamento. Passou em revista, detidamente, seu guarda-roupa e enviou aquela carta que destruíra por completo a paz de espírito de sua mãe.

Gilbert estivera ausente toda a manhã, e, quando voltou da cidade, parecia muitíssimo fatigado.

Uma troca de sorrisos, leves mostras de tensão e aspereza de um lado, certa expectativa e tristeza de outro; tornara-se essa a saudação convencional entre eles; e também havia a pergunta: "dormiu bem?" que sempre era feita por quem primeiro se lembrasse dela.

Estavam no meio do almoço quando ela lhe perguntou, de súbito:

— Gostaria que déssemos um jantar? Ele ergueu os olhos, surpreso.

— Um jantar? — indagou, ainda incrédulo; viu o rosto dela descair e, compreendendo em parte o sacrifício que estava disposta a se impor, respondeu: — Acho que é uma excelente idéia. A quem gostaria de convidar?

— Alguns amigos seus — tornou ela; — esse formidável cavalheiro, o Sr. Frankfort e... Quem mais?

Gilbert, a duras penas, conseguiu sorrir.

— Acho que esse formidável cavalheiro, o Sr. Frankfort, praticamente esgota o rol dos meus amigos — disse, rindo-se. — Podíamos convidar Warrell.

— Quem é Warrell? Ah, já sei; é o corretor de mamãe. Gilbert fitou-a com curiosidade.

— Corretor de sua mãe? — repetiu lentamente. — Tem certeza?

— Por quê? — perguntou ela.

— Por que o quê — tornou ele, evasivo.

— Por que ficou tão surpreso?

— Não sabia que tinha ficado — respondeu Gilbert, distraidamente; — apenas é difícil imaginar a sua mãe associada a um corretor. Entretanto, o problema é dela. Você compreende, ele é meu corretor também.

— Quem mais? — perguntou Edith.

— Do meu lado da família — tornou ele, com fingida solenidade, — não me lembro de mais ninguém... Que tal sua mãe?

— Eu poderia convidar uma ou duas pessoas interessantes — tornou ela, ignorando a sugestão.

— Por que não sua mãe? — repetiu ele. Edith ergueu os olhos; havia lágrimas neles.

— Por favor, não seja tão terrível — vociferou ela; — você sabe que isso é impossível.

— De modo algum — tornou ele, cordial. — Fiz a sugestão com a melhor boa fé; e acho que é uma grande idéia. Afinal, não há razão para que essa rixa absurda continue. Admito que fiquei danado com ela; mas também admito que fiquei danado com você!

— Mas minha zanga, aos poucos, vai passando — acrescentou, fitando-a bondosamente.

Falara quase de si para si, apesar de fitá-la. A ela pareceu-lhe que Gilbert tentava convencer-se de algo em que não acreditava por inteiro.

— É extraordinário — disse ele — como as questiúnculas, os pequenos aborrecimentos, desaparecem em face de um problema realmente grande.

— Qual é seu grande problema? — perguntou Edith, valendo-se rapidamente da ocasião.

— Nenhum — respondeu. Seu tom de voz era um pouco mais agudo do que normalmente e quase desafiador. — Falei hipoteticamente. Não tenho nenhum problema. A não ser os problemas óbvios da vida. Você por breve tempo foi um problema para mim, mas agora já não é.

— Fico contente em saber — disse ela com brandura. — Desejo realmente que sejamos amigos, Gilbert... Quero mesmo ser uma boa amiga sua; sinto ter-lhe estragado a vida.

Ergueu-se da mesa e fitou-o de cima.

— Não creio que você o tenha feito — disse ele meneando a cabeça; — não do modo como imagina. Outras circunstâncias contribuíram para desfigurar aquilo que seria uma perspectiva agradável. Infelizmente, o nosso casamento não veio a ser o que eu sonhava; mas, afinal, os sonhos são alicerces muito instáveis para a vida. Você nunca imaginou que eu fosse um sonhador, não é? — perguntou rápido, com seu sorriso fácil. — Nunca supôs que eu fosse romântico; no entanto, acho que eu era.

— Você quer dizer que é — corrigiu ela. Gilbert não respondeu.

A questão do jantar tornou a surgir depois, quando ele já se preparava para sair.

— Não gostaria de ficar para discutirmos melhor o caso? — disse ela, timidamente.

Ele hesitou.

— Gostaria muitíssimo — respondeu, — mas... — e olhou o relógio.

Ela mordeu os lábios, e por um momento sentiu uma onda de ira irracional varrer-lhe o espírito. Era absurdo, sem dúvida; ele sempre saía àquela hora, e então não havia motivo para ficar em casa.

— Podemos discutir isso outra hora — tornou ela com frieza, e deixou-o, sem dizer mais nada.

Ele esperou até ouvir fechar-se a porta do quarto dela, depois saiu, sorrindo sem alegria; antes, quase chorando.

Saíra num momento propício; se tivesse demorado mais cinco minutos, ter-se-ia defrontado com a sogra.

A Sra. Cathcart resolvera-se a confessar tudo, e viera fazê-lo pessoalmente. A ausência do genro, pensava, era simplesmente providencial; logo soube que ele não estava, indagando-o da criada.

Sem manifestar sinal de surpresa, Edith recebeu a noticia de que a mãe chegara. Supunha que viera trazer-lhe o colar. Sentiu uma ferroada na consciência ao descer as escadas para encontrar-se com ela; não teria sido desnecessariamente brusca na carta? Era amorável e não deixava de ter afeição natural pela velha. O temor de que pudesse ter-lhe ferido os sentimentos e de que isto viesse à tona na entrevista próxima quase a fez ter uma vertigem no momento em que abriu a porta da sala.

A Sra. Cathcart era a própria frieza personificada. Poder-se-ia supor que nunca essas duas mulheres se encontraram sem que disso lhes ficasse alguma lembrança desagradável. Não fizeram nenhuma referência ao passado, e isto Edith aprovou.

Não era sua intenção malquistar-se com a mãe. Compreendia-a bem demais, o que era uma infelicidade para ambas; e ser-lhes-ia melhor manter certa aparência de amizade.

A velha foi direta ao ponto.

— Acho que você já sabe por que vim — começou.

— Trouxe o colar? — perguntou Edith com um sorriso. — Não me queira mal por pedir-lo; é que eu sinto que devo fazer algo por Gilbert.

— Acho que você devia ter escolhido outro assunto para a sua primeira carta — disse a outra, de mau humor; — mas seja como for...

Edith não retrucou. Era inútil discutir com a mãe. Aquela senhora tinha um defeito nada raro à maioria da humanidade; o de sempre achar que os outros é que estão errados.

— ... devo dizer que sinto muito — prosseguiu ela — porque não estou em posição de devolver-lhe o colar.

A moça fixou na mãe seus olhos espantados.

— Ora essa, e por quê? Que quer dizer?

A velha pelejava por fugir aos olhos da filha.

— Tenho tido prejuízos na Bolsa — explicou. — Imagino que você saiba que seu pai nos deixou apenas o suficiente para não morrermos de fome, e que todo o luxo e conforto que você tem desfrutado se deveram aos meus próprios esforços individuais. Perdi muito dinheiro com as ações da Canadian Pacifics — disse depois, bruscamente.

— E daí? — perguntou Edith, imaginando o que viria depois e receando o pior.

— Estava devendo setecentas libras a uma firma de corretagem — prosseguiu a mulher, — e tive de deixar-lhes o colar como garantia. — A moça teve um sobressalto. — Minha intenção, é claro, era reavê-lo; mas aconteceu uma desgraça: o cofre foi arrombado e o colar furtado.

Edith Standerton arregalou os olhos.

A perda do colar não a afligia tanto quanto o fato de agora perceber que dependia dele mais do que supunha. Era um pequeno pé-de-meia reservado para os dias maus; dias que segundo Gilbert, podiam chegar a qualquer momento.

— Que se há de fazer? — disse depois, conformada.

Não criticou a mãe nem fez comentário algum sobre a impropriedade de oferecer como caução os objetos alheios. Tal crítica seria inútil, e não pagaria a pena.

— Bem — tornou a Sra. Cathcart, — que tem para me dizer?

A moça encolheu os ombros.

— Que posso dizer, mãe? O colar está perdido, e está acabado. A firma ofereceu alguma compensação?

Fizera a pergunta com inocência; ocorrera-lhe que talvez algo pudesse ser salvo.

A Sra. Cathcart desfechou-lhe um rápido olhar.

Será que aquele infernal Warrell tinha-se comunicado com Edith? Sabia que Warrell era amigo do marido de sua filha. Seria muita perversidade da parte dele.

— Alguma — respondeu — mas não o bastante; a questão ainda não foi resolvida, mas vou lhe contar tudo.

— Qual foi? — perguntou Edith. A Sra. Cathcart hesitou em responder.

— Mil libras — disse, com relutância.

— Mil libras!

Não tinha idéia de que o colar valesse aquilo.

— É claro que isto significa — apressou-se a explicar a Sra. Cathcart — setecentas libras minhas e trezentas do corretor.

A moça sorriu de si para si. "Setecentas libras minhas" significava "se você exigir de mim a soma toda, estará me roubando".

— E ainda sobram trezentas. Acho que ficarei com elas.

— Espere um pouco — tornou a velha; — eles sempre podem recuperar o colar; querem que eu lhes forneça uma descrição dele. Que acha?

A moça sacudiu a cabeça.

— Acho que não gostaria disso — respondeu com calma.

— Podem fazer perguntas; não gostaria que se ficasse sabendo que o colar era meu, nem que minha mãe o empenhou como garantia por seus débitos.

Aquela era uma Edith completamente nova. A Sra. Cathcart surpreendia-se.

— Edith — disse ela com severidade, — isto me parece um tanto impertinente.

— Não nego que seja, mas que devo fazer? Que devo dizer? Os fatos são evidentes para a senhora e para mim; o colar foi roubado, e talvez nunca o recuperemos, e não vou expor publicamente minhas perdas, e suas fraquezas, apoiando-me na remota possibilidade de recuperar uma peça que a esta altura provavelmente já está sendo remodelada.

— Você conhece um bocado de coisas sobre jóias e roubos de jóias — disse-lhe a mãe com um leve sorriso escarninho. — Será que Gilbert andou lhe dando algumas aulas?

— Por estranho que pareça, andou sim — tornou a moça calmamente; — temos conversado sobre muitas coisas estranhas.

— Devem passar serões muito agradáveis — disse a velha secamente. E ergueu-se para sair, mirando o relógio.

— Lamento não poder ficar — disse, — mas tenho um jantar marcado com algumas pessoas. Imagino que você não gostaria de comparecer, não é? Trata-se de algo bastante informal; para ser franca, você está na lista dos convidados.

— E Gilbert? — indagou a jovem.

A mulher sorriu.

— Não, ele não está exatamente — respondeu. — Tenho deixado sempre bem claro que os convites que me sejam feitos só são aceitáveis se excluírem o seu marido.

A moça ergueu-se abafando uma explosão de cólera, e a velha viu em seus olhos que uma tempestade se armava.

—Não a entendo bem. Está querendo dizer que tem perambulado por Londres a dizer coisas sobre meu marido?

— Claro que sim — admitiu a Sra. Cathcart virtuosamente; — não sei se tenho perambulado, mas tenho falado a meus amigos íntimos, os quais, naturalmente, se interessam por meus negócios.

— A senhora não tem nenhum direito de falar — tornou a moça enfurecida; — isso é vergonhoso. A senhora cometeu um erro, e agora deve arcar com as conseqüências. Eu também cometi um, mas me conformei com a minha sorte. Se a senhora lamenta que eu me tenha casado com um homem que me despreza, porventura acha que eu não?

A Sra. Cathcart deu uma gargalhada.

— Asseguro-lhe de que embora muitos pensamentos perturbem as minhas noites, o de que seu marido não lhe tenha particular afeição não é um deles; o que me mantém acordada muitas vezes e com terror, é saber que longe de ser o homem rico que eu esperava que fosse, ele é um homem praticamente sem vintém. Que espécie de loucura o induziu agora a abandonar seu trabalho no Ministério dos Negócios Exteriores, afinal?

— Pergunte a ele — disse a jovem, não sem malícia; — ele já está para chegar.

Tanto bastou para apressar a saída da Sra. Cathcart. Edith ficou sozinha.

 

Nessa noite ela jantou só.

A princípio apreciou, com um sentimento de alívio, esses jantares solitários. Era mulher de considerável inteligência, e encarava o futuro sem ilusões.

Compreendia que poderia chegar um tempo em que ela e Gilbert vivessem juntos em perfeita harmonia, conquanto sem terem um pelo outro a espécie de simpatia que marido e mulher devessem ter entre si. Estava disposta a sofrer os anos de provação; e achava bem mais cômodo que negócios e prazer não se misturassem durante os momentos embaraçosos que mediavam entre o jantar e a hora de recolher.

Mas, essa noite, pela primeira vez, estava só.

Sentia a falta dele, desejava sua companhia, bem como sua animação e vitalidade.

Havia momentos em que ele era loquaz, alegre e exuberante. Em outras ocasiões, terríveis e deprimentes, permanecia encafifado em seu gabinete, e ela só por acaso conseguia avistá-lo.

Seu jantar foi dividido entre a leitura e a meditação. Um livro repousava na mesa ao seu lado, mas ela não chegou a virar a página. A criada já estava tirando os pratos, quando Edith Standerton ergueu os olhos espantados.

— Que foi isso? — perguntou.

— Isso o quê, senhora?

Pela janela, ouvira som de música; uma suave e delicada cadência musical; um leve e melodioso queixume.

Ergueu-se da mesa, caminhou até a janela e escancarou-a.

Fora uma jovem tocava um violino. E sob a luz do poste público, Edith reconheceu a executante da "Melodia em Fá".

 

EDITH ENCONTRA-SE COM A VIOLINISTA

Voltou-se para a criada:

— Vá até lá e traga aquela moça aqui imediatamente — ordenou com tranqüilidade.

— Qual moça, senhora? — indagou a mulher, embatucada.

— A que está tocando — explicou Edith. — Depressa, por favor, antes que ela vá embora.

Estava subitamente determinada a desvendar o mistério. Era possível que estivesse sendo desleal para com o marido, mas também podia ser que o estivesse ajudando. A criada voltou em poucos minutos, arrastando a moça atrás de si.

Realmente, era a mesma que surgira na noite de seu casamento. Pusera-se em pé, junto à porta, e observava com curiosidade a recém-chegada.

— Não quer entrar? — disse-lhe. — Já jantou?

— Muito obrigada — respondeu a mocinha; — nós nunca jantamos, mas tomei bastante chá.

— Não gostaria de sentar um momento?

Com uma graciosa inclinação de cabeça, a outra aceitou o convite.

Sua voz estava isenta do acento estrangeiro que Edith esperava ouvir. Não havia dúvida de que era inglesa, e em seu tom havia um refinamento com que Edith não contava.

— Imagino que esteja surpresa por eu tê-la mandado chamar — começou.

A jovem mostrou-lhe, num sorriso, duas carreiras de dentes alvos e regulares.

Quando alguém me chama — respondeu com hesitação — ou é para me pagar a música ou para comprar meu silêncio!

Seus olhos estavam francamente divertidos; o sorriso acendia-lhe levemente as faces mudando-lhe todo o aspecto.

— Pretendo fazer as duas coisas — tornou Edith — e perguntar-lhe algo. Conhece meu marido?

— O Sr. Standerton? — indagou a jovem, e admitiu. — Sim; eu o tenho visto, e também tenho tocado para ele.

— Lembra-se de uma noite, em junho — prosseguiu Edith com o coração apressado ao lembrar-se, — quando você veio para junto dessa janela e tocou... — ela hesitava — certa canção?

A menina fez que sim.

— Claro! — respondeu surpresa; — como não havia de me lembrar especialmente daquela noite?

— Por que especialmente? — perguntou rápido a outra.

— Bom, a senhora sabe, normalmente é meu avô quem toca para o Sr. Standerton, mas aquela noite ele estava doente. Pegara um forte resfriado no hipódromo (tomamos uma chuva daquelas em Epsom) e então eu tive de vir substituí-lo — e confessou, por fim, com um sorriso amargo:

— detesto aquela música; mas era tão misterioso e tão romântico.

— Quer me dizer o que era tão misterioso e romântico?

— pediu Edith.

Nesse ponto chegou o café, e encheram uma xícara para a visitante.

— Como é o seu nome? — perguntou.

— May Wing — explicou a garota.

— Agora diga, May, tudo o que souber — tornou Edith enquanto lhe passava o café; — e acredite, por favor, que não é só por curiosidade que a interrogo.

Contarei tudo — começou a mocinha, de bom grado. — Lembro-me daquele dia em particular porque eu tinha ido à Academia de Música tomar lições. A senhora pode pensar que não nos podemos dar esse luxo, mas é que vovô faz muita questão disso. Voltei para casa muito cansada. Vovô estava deitado no sofá. Moramos em Hoxton. Parecia preocupado. "May, ele disse; quero que me faça um favor esta noite." Ê claro que fiquei muito contente por poder ajudá-lo.

Nesse ponto a mocinha subitamente se calou.

— Ora essa, que engraçado — disse; — acho que tenho no bolso a prova do que estou dizendo.

Apanhou um saquinho do interior da blusa, feito do mesmo pano que seu vestido, abriu-o e revirou-lhe dentro.

Tirou um envelope.

— Não pretendo mostrar-lhe isto por enquanto — explicou; — contarei primeiro o que aconteceu. Como eu estava dizendo, vovô parecia muito preocupado, e ele me perguntou se eu queria fazer algo por ele, sabendo, é claro, que eu queria.

"— Recebi uma carta que não consigo compreender", ele me disse, e então me mostrou isto.

E a jovem apresentou a Edith o envelope.

A outra apanhou-o e tirou-lhe do interior um cartão.

— Ué! — gritou ela. — É a caligrafia do meu marido!

— Pois é — confirmou a jovem musicista.

Trazia o carimbo postal de Doncaster, e a mensagem era curta. Estava endereçada ao velho músico:

"O senhor encontrará anexo um vale postal de uma libra. Vá à casa do Sr. Standerton, entre sete e meia e oito horas e execute a "Melodia em Fá" de Rubenstein. Certifique-se de que ele esteja em casa, mas, se não estiver, volte no dia seguinte e toque a mesma música à mesma hora.

Era tudo.

— Não consigo entender — disse Edith, embasbacada. — Que significa?

A jovem sorriu.

— Eu também gostaria de saber. Quer dizer, sou tão curiosa quanto a senhora; acho que esse é um defeito de todas as mulheres.

— Quer dizer que você não sabe por que motivo este bilhete foi mandado?

— Isso mesmo.

— Nem compreende o que significa? A jovem tornou a sacudir a cabeça.

Edith olhou o envelope e examinou o carimbo postal.

— Estava datado de vinte e quatro de maio.

— Vinte e quatro de maio — repetiu de si para si. — Espere um pouco — disse, e subiu as escadas em direção do seu quarto.

Abriu febrilmente a cômoda com uma chave e pegou um diário de capa vermelha em que tinha escrito as pequenas ocorrências de sua vida em Portland Square. Achou o dia vinte e quatro de maio. Havia só duas anotações. A primeira dizia respeito à compra de um vestido novo, mas a outra era muito enfática:

"G. S. chegou às sete e ficou para jantar. Estava muito distraído e visivelmente preocupado. Saiu às dez. Teve uma tarde deprimente." Tornou a olhar o envelope. "Doncaster, 7:30", dizia.

Então a carta tinha sido remetida de uma distância de cento e oitenta milhas, meia hora depois de ele ter chegado a Portland Square.

Tornou, desconcertada, para a sala de jantar; mas soube controlar-se da agitação em presença da violinista.

— Tenho mesmo de patronizar uma das artes — disse a sorrir.

Tirou meia libra da bolsa e passou-a para May.

— Oh, por favor — protestou a menina.

— Pegue, por favor. Você me deu muito em que pensar. O Sr. Standerton alguma vez mencionou esse incidente de que falamos?

— Nunca — afirmou a garota. — Nunca mais tornei a vê-lo; a não ser uma vez, quando eu estava no ônibus.

Alguns minutos depois, a artistazinha se retirou.

Edith tinha ali matéria farta para a imaginação.

Que significava aquilo? Que mistério havia por trás de tudo?

Agora que reconstituía as circunstâncias em sua mente, lembrava-se de que Gilbert estivera terrivelmente distraído aquela noite e mostrara-se muito nervoso; notara ainda que as mãos dele tremiam, e comentara com a mãe tais fatos.

Se ele esperasse a musicista, se ele próprio tivesse especificado a música a ser tocada, não haveria razão para a música lhe produzir um efeito tão terrível. Depois, ele não era pessoa premeditada.

Não havia nada de teatral em seu temperamento.

Era um músico, e amava a música mais do que a tudo no mundo, exceto ela!

Edith pensou naquela ressalva com alguma ternura.

Ele a amava naquela ocasião, independentemente do que pudesse sentir agora, e o amor de um homem vigoroso não se evapora facilmente, nem se destrói apenas com uma palavra.

Desde que se casaram, o piano da casa não fora aberto. Ele vinha ajudando a patrocinar quase todos os acontecimentos musicais de Londres, e, todavia, não fora a um concerto sequer, nem uma só vez visitara a ópera.

Com a execução da "Melodia em Fá", parecia a Edith que se findara um período precioso da vida dele.

Certa ocasião ela sugeriu que fossem a um concerto a que compareceriam todos os amantes de música que havia em Londres.

— Talvez você goste de ir — dissera ele laconicamente. — Acho que vou estar muito ocupado esta noite. — E isto depois de ele lhe ter dito repetidas vezes que a música lhe exprimia qualquer mensagem e qualquer emoção em linguagem mais clara do que a palavra impressa.

Que queria dizer? Foi tomada de uma súbita sensação de energia, um inesperado desejo de conhecê-lo melhor; queria partilhar uma porção maior de sua vida. Qual era a ligação que aquela música podia ter com a súbita mudança que nele se operara? Que associação tinha ela com o fato de Gilbert se tornar tão esforçado de repente? Que tinha aquela melodia a ver com sua demissão do Ministério e com o seu afastamento dos clubes?

Estava certa de que devia haver alguma ligação entre esses fatos, e estava determinada a descobrir qual fosse.

Enquanto não se inteirasse do caso, não poderia ajudá-lo. Sabia, por instinto, que interrogá-lo seria inútil. Ele era do tipo que sempre prefere operar sozinho.

Era sua esposa, devia-lhe algo. Infelicitara-lhe a vida, e o menos que poderia fazer era tentar ajudá-lo. Mas precisaria de dinheiro.

Sentou-se e rabiscou uma nota para a mãe. Ficaria com as trezentas libras que o corretor lhe devia; chegou mesmo a insinuar que, se o caso não fosse resolvido rapidamente por sua mãe, ela própria trataria de concluir as negociações entrando, pessoalmente, em contato com o Sr. Warrell.

Vira no jornal da manhã o anúncio de uma agência de detetives particulares, e por um momento sentiu-se inclinada a contratar um homem. Mas quais seriam as qualificações especiais que os detetives particulares poderiam ter que ela própria não tivesse? Pois a capacidade de usar a própria cachola e de exercer as próprias faculdades lógicas não era coisa que exigisse treinamento especial.

Encontrara afinal uma missão na vida: solucionar todo aquele mistério que como uma nuvem lhe cercava o marido. Estava entusiasmada com as perspectivas do trabalho em que iria se empenhar.

— Você devia arranjar uma ocupação — Gilbert lhe dissera, à sua maneira hesitante.

Ela sorriu ao pensar no que acharia ele se soubesse da ocupação que ela encontrara.

 

A pequena casa em Hoxton que abrigava May e seu avô, situava-se numa rua pequenina e respeitável, onde residiam principalmente membros da classe dos artesãos. Apesar de pequena e humilde, a habitação fora decorada com muito bom gosto. A mobília era antiga, no melhor e mais atraente sentido da palavra.

O velho Wing sentou-se numa poltrona junto ao fogo, num quarto que servia de cozinha e de sala de jantar, enquanto May se absorvia num trabalho de costura.

— Minha cara — disse o velhote com voz suave, — acho que seria melhor você não sair de novo esta noite.

— Por que não, vô? — perguntou-lhe a neta, sem erguer os olhos da costura.

— Bem, é capaz de ser egoísmo da minha parte — explicou ele, — mas, seja como for, não queria ficar sozinho aqui. Estou esperando visita.

— Uma visita!

Visitante era coisa rara no N.° 9 de Pexton Street. O único visitante que conheciam era o cobrador do aluguel que os via com monótona regularidade toda manhã de segunda-feira.

— Sim — disse ele, hesitando. — Acho que você se lembra do cavalheiro; você o viu há algum tempo.

— É o Sr. Standerton?

O velho sacudiu a cabeça.

— Não, não é o Sr. Standerton; mas você deve se lembrar de que em Epsom um homem muito bem apessoado a ajudou a sair do meio de uma multidão, depois de uma corrida.

— Eu me lembro — confirmou ela.

— O nome dele é Wallis — explicou o velho, — e eu o encontrei hoje por acaso, quando estava fazendo compras.

— Wallis — repetiu a mocinha.

O velho Wing permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois perguntou:

— Você acha que poderíamos tomar um inquilino?

— Ah, não — protestou ela. — Por favor, isso não!

— Eu acho o aluguel muito pesado — explicou-lhe o velho, meneando a cabeça, — e, além do mais, esse Sr. Wallis é um tipo quieto; não creio que nos desse trabalho.

Ainda assim, a moça não estava satisfeita.

— Eu prefiro que não — disse. — Tenho certeza de que a gente pode ganhar o bastante para o aluguel e tudo mais, sem essa espécie de ajuda. Os inquilinos sempre são uma amolação. Acho que a Sra. Gamage não ia gostar.

A Sra. Gamage era a vizinha que todas as manhãs vinha ajudar na arrumação da casa.

A mocinha viu o rosto do velho descair, e aproximando-se dele, passou o braço em torno de seus ombros.

— Não se aborreça, vô — disse ela; — se o senhor quer um inquilino, para mim está bem. — Acho que vai ser muito bom ter alguém aqui para conversar com o senhor quando eu não estiver.

Nesse momento bateram à porta.

— Deve ser ele — disse a pequena, e foi abrir. Reconheceu-o tão logo o viu.

— Posso entrar? — perguntou o recém-chegado. — Queria ver seu avô para tratar de um negócio. Você deve ser a Srta. Wing.

Ela confirmou com um aceno.

— Entre — disse, e conduziu-o até a cozinha.

— Não quero tomar muito do seu tempo — disse Wallis. — Não, obrigado, ficarei de pé mesmo. Estou procurando acomodações sossegadas para um amigo. Pelo menos — prosseguiu, — ele é uma pessoa em que estou muito interessado; um indivíduo sisudo e calmo, que estará ausente pela maior parte do dia, e talvez também pela maior parte da noite. — Sorriu. — Ele é um... — Hesitava. — Para ser exato, é um condutor de táxi — explicou; — embora ele não queira que esse fato se espalhe, porque... bem, é que ele já conheceu dias melhores.

— Só temos aqui um quarto muito pequeno que poderíamos ceder ao seu amigo — disse May; — não quer dar uma olhada?

Ela o conduziu para cima, ao quarto de hóspedes que só em raríssimas ocasiões tinha sido usado pelos poucos visitantes que tinham. O aposento era simples, estava limpo e bem arrumado. George Wallis sacudiu a cabeça aprovativa-mente.

— Não poderia ser melhor, mesmo para mim — comentou.

E propôs, ele mesmo, um preço mais alto do que ela lhe pedira, insistindo, ainda por cima, em pagar um mês adiantado.

— Eu disse ao homem que viesse; já devia estar aqui. Se vocês não se incomodam, eu gostaria de esperar por ele.

Não foi longa a espera; em poucos minutos apareceu o novo inquilino. Era um homem corpulento, com o rosto coberto por uma barba negra e curta, e o fato de ser um tanto taciturno e de pouca prosa ainda mais o valorizava como inquilino.

Wallis disse adeus ao velho e à menina, e acompanhado do homem, que se dizia Smith, caminhou até o fim da rua.

Tinha algo a dizer, e era coisa importante.

— Arranjei-lhe esse lugar, Smith — dizia, à medida que andavam devagar em direção da Hoxton High Street,

— porque é um lugar quieto e seguro. O povo daqui é respeitado; ninguém vai amolá-lo.

— Eles não vão me aborrecer de nenhum jeito, não é?

— perguntou o homem chamado Smith.

— Por enquanto, não — respondeu o outro; — mas não sei com certeza como vai acabar tudo. Estou preocupado.

— Por quê?

George Wallis riu meio desacorçoado.

— Por que você me faz perguntas tão estúpidas? — disse, com uma espécie de irritação bem humorada. — Não compreende o que aconteceu? Alguém está por dentro da nossa jogada.

— Bom, e por que não acabamos com esse alguém? — perguntou calmamente Smith.

— De que jeito? Meu chapa, apesar de termos acumulado em doze meses um cabedal de propriedades móveis suficientemente valioso para podermos nos aposentar, nenhum de nós nesse momento está querendo fazer isso... Levaríamos doze meses para nos livrar da muamba — disse pensativamente.

— Eu não sei bem onde ela está — disse Smith, com um leve sorriso.

— Ninguém sabe, exceto eu — replicou Wallis, com uma careta; — isso é o que me preocupa. Fiquei com toda a responsabilidade. Smith, nós estamos sendo vigiados de verdade.

O outro sorriu.

— Para variar — comentou. Mas Wallis estava muito sério.

— De quem é que você suspeita? — perguntou Smith.

O outro demorou-se um pouco a responder.

— Não é suspeita; eu sei — explicou. — Há alguns meses, quando eu e Calli estávamos agindo em Hatton Garden fomos interrompidos pelo aparecimento de um misterioso cavalheiro que ficou observando até que eu abri o cofre, e desapareceu imediatamente depois. Na ocasião ele não me pareceu particularmente hostil, nem parecia ter nenhum motivo ulterior em vista. Mas agora, por alguma razão que só ele conhece, está agindo contra nós. É esse o homem que temos de encontrar.

— Mas como?

— Ponha um anúncio no jornal — disse Wallis sarcasticamente: — "Pede-se ao cavalheiro que atormenta o Sr. Wallis a gentileza de revelar sua identidade, etc. etc."

— Falo sério! — disse o outro.

— Temos de descobrir quem é ele; deve haver algum modo de pegá-lo. Mas a única coisa a fazer, e tenho de fazê-la para minha própria segurança, é reunir todos vocês e repartir a muamba. É melhor a gente se reunir.

Smith concordou.

— Quando?

— Esta noite — disse Wallis. — Encontre-me no...

E mencionou o nome de um restaurante perto de Regent Street.

Curiosamente, tratava-se do mesmo restaurante em que o solitário Gilbert Standerton costumava jantar.

 

O COLAR

A Sra. Cathcart ficou bastante surpresa ao receber um convite para aquele jantar. Pela manhã tinha mandado à filha um cheque no valor de trezentas libras, que recebera do corretor; como, porém, suas cartas se cruzaram, uma coisa nada tinha que ver com a outra.

Ela não se decidiu de pronto a aceitá-lo; não estava muito certa dos termos em que desejava estar com o genro.

No entanto, ela era (malgrado todos os seus defeitos) uma boa estrategista, e nada lucraria por declinar da convocação, ao passo que comparecer talvez lhe fosse, de algum modo, vantajoso.

Ficou surpresa ao encontrar-se com o Sr. Warrell; surpresa e um tanto embaraçada. Mas, agora que sua filha já sabia de tudo, não havia razão alguma para inquietar-se.

Tomou-o sob sua guarda, como era seu hábito, logo que o viu na pequena sala de estar da casa de St. John's Wood.

Foi um jantar agradável. Gilbert saiu-se muito bem no papel de anfitrião; pareceu reviver nele, ao menos em parte, a sua antiga jovialidade. Warrell; lembrando-se de tudo quanto a Sra. Cathcart lhe contara, permaneceu alerta o tempo todo para ver se descobrira algum vestígio de dissensão entre o casal; e tanto mais ansioso, talvez — pois era, antes de mais nada, um profissional — por encontrar justificativa para a sugestão da Sra. Cathcart, segundo a qual nem tudo ia bem com Gilbert.

Leslie Frankfort, outro convidado, foi interpelado pelo sócio, que lhe pedia informações que o auxiliassem a desatar as dúvidas de seu espírito, mas nada obteve.

O jovem e alegre Leslie Frankfort, estava tão desenfronhado da matéria quanto o próprio Sr. Warrell. Experimentou certa satisfação ao verificar que, fosse como fosse, o ménage de seu amigo não tinha nenhuma perspectiva de ruína imediata.

O jantar fora perfeito, os alimentos raros, e escolhidos por um perito — o que realmente ele era, porquanto Gilbert ajudara a esposa a preparar o menu.

A conversa fluiu ao acaso, como em geral ocorre em tais jantares, em torno dos tópicos que homens e mulheres comentavam em milhares de outras mesas de jantar na Inglaterra, e, seguindo o curso natural dos acontecimentos, acabou por incidir na assombrosa série de assaltos que recentemente vinham sendo cometidos em Londres. Talvez fosse natural que a conversa tomasse tal rumo, depois que a Sra. Cathcart, audaciosamente, mencionou o arrombamento ocorrido no escritório de corretagem de Warrel.

— Realmente não — disse o Sr. Warrell sacudindo a cabeça; — infelizmente não temos nenhuma pista. O caso foi entregue à polícia, mas duvido que venhamos a descobrir os criminosos.

— Acho que se encontrarem os ladrões, eles não serão de muita utilidade para vocês — disse Gilbert serenamente.

— Não sei não — objetou o outro. — Talvez então pudéssemos recuperar as jóias.

Gilbert Standerton começou a rir, mas deteve-se.

— Jóias? — disse ele.

— Não se lembra, Gilbert? — interveio Leslie. — Eu lhe disse que tínhamos um colar no cofre, de propriedade de uma cliente, uma dessas senhoras jogadoras, nossas freguesas.

Um olhar admonitório do sócio interrompeu-o. E a referida jogadora em pessoa, assaz ruborizada, desfechou de sua parte um olhar malevolente sobre o indiscreto rapaz.

— O colar era meu — replicou ela acremente.

— Oh! — disse Leslie, e acabou de concluir que aquela conversa não lhe oferecia nenhum interesse.

Gilbert não se riu do embaraço do amigo.

— Um colar — repetia ele; — que interessante... E seu?

— Meu — repetiu a Sra. Cathcart. — Depositei-o com Warrell como garantia. E que garantia das arábias recebi em troca! — aduziu.

Warrell era todo escusas. Estava embaraçado por mais de uma razão. Estava realmente aborrecido com o jovem indiscreto cujo interesse na firma era antes um legado do pai que o resultado de inteligência e capacidade próprias.

— Que espécie de colar exatamente? — prosseguiu Gilbert. — Não vi nenhuma descrição.

— Nenhuma descrição foi fornecida — explicou o Sr. Warrell, para grande alívio de sua cliente em quem via sinais infalíveis de rápida perda de serenidade. — Preferimos ocultar tudo para o caso não ir parar nos jornais.

Com muito tato, Edith mudou o rumo da conversação, e em pouco estavam todos profundamente imersos na discussão de um tema que nunca deixou de despertar grande interesse: os problemas abstratos da igreja.

A Sra. Cathcart, diga-se de passagem, era uma devota de certa projeção, líder de um círculo e ritualista extremada. Acrescente-se a isto o amplo inconformismo do Sr. Warrell, bem como o franco ceticismo de Leslie, e ter-se-ão todos os ingredientes para um debate que, em rodas menos refinadas, não terminaria sem sangue.

Edith, pelo menos, sentia grande alívio, por pior que fosse o remédio; e antes se dispunha a derrubar a Igreja de Gales, e, se necessário, a da Inglaterra, do que ver exposta a doidice de sua mãe.

A despeito do debate, do dogmatismo da Sra. Cathcart, da filípica de Leslie e da tolerância bem-humorada do Sr. Warrell, sendo esta última uma exasperante atitude de combate, o jantar terminou de modo bastante agradável, e todos passaram para a pequena sala de estar escada acima.

— Infelizmente, acho que vou ter de deixá-los — disse Gilbert.

Era perto de dez horas, e ele já advertira Edith de que tinha um compromisso.

— Desconfio que o velho Gilbert ultimamente se tornou jornalista — disse Leslie. — Eu o vi na outra noite em Fleet Street, não foi?

— Não — replicou Gilbert, lacônico.

— Nesse caso, deve ter sido o seu doublé — disse o outro.

Edith não subira com os demais. Logo antes do jantar Gilbert lhe pedira, com alguma hesitação, que lhe preparasse um pacote de sanduíches.

— Talvez eu passe fora a maior parte da noite — dissera ele. — Um homem quer que eu vá até Brighton para encontrar alguém.

— Vai passar a noite toda fora? — perguntara-lhe ela, um tanto alarmada.

— Não, voltarei perto das quatro.

Talvez ela pensasse que era uma hora muito estranha para um encontro, mas nada comentou.

Quando os convidados começaram a subir, ela se lembrou dos sanduíches, e foi à cozinha ver se já estavam preparados.

Embrulhou-os e colocou-os numa pequena caixa, voltando em seguida para o saguão.

O casaco de Gilbert estava pendurado num cabide, e ela tinha de enfiar o pacote num dos bolsos. Havia um rolo de jornal num deles; ela o retirou, mas ainda havia alguma outra coisa no fundo, algo impreciso e áspero ao seu tato.

Edith riu-se do desmazelo do marido, e enfiou a mão para remover o obstáculo.

Então sua expressão se alterou.

Que era aquilo?

Seus dedos se fecharam em torno do objeto, e ela o puxou fora.

E ali na palma de sua mão, claramente iluminado pela lâmpada que lhe pendia sobre a cabeça, coruscou o seu colar de diamantes!

Por um momento o pequeno vestíbulo oscilou diante de seus olhos, mas com esforço ela se aprumou.

O colar dela!

Não restava dúvida. Revirava-o nas mãos, com dedos trêmulos.

Como viera parar ali? De onde aparecera?

Sobreveio-lhe um pensamento, mas era terrível demais para exprimir-se.

Gilbert, um ladrão! Era absurdo. Tentou sorrir, mas não pôde. Ele estivera fora quase todas as noites; todas as santas noites da semana em que aquele roubo tinha sido cometido.

Edith ouviu passos na escada, e enfiou o colar no bolso do vestido.

Era Gilbert. Não notou a expressão do rosto dela.

— Gilbert — disse-lhe, e algo em sua voz o admoestava. Ele se voltou e fixou-a com olhos perscrutadores.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou.

— Quer dar uma chegada até a sala de jantar? — respondeu ela.

Sua própria voz soava-lhe distante.

Era como se não fosse ela quem falasse, mas uma terceira pessoa.

Gilbert abriu a porta da sala e entrou. A mesa estava ainda posta, com os restos do jantar recente. O brilho róseo da lâmpada do teto difundia-se por sobre aquele caos de flores, prataria e copos.

Gilbert cerrou a porta atrás de si.

— Que houve? — perguntou.

— Isto — replicou ela, e tirou o colar do bolso.

Gilbert olhou para ele. Nem um músculo de seu rosto se moveu.

— Isso? — respondeu. — Bem, o que é isso?

— Meu colar!

— Seu colar — repetiu ele, inerte. — É o colar que sua mãe perdeu?

Ela achou melhor não falar, e confirmou com um gesto de cabeça.

— Que coisa estranha.

Estendeu o braço, tirou-o da mão dela e examinou-o.

— Então, esse é o colar de vocês — disse. — Bem, é uma extraordinária coincidência.

— Onde foi que você o obteve? — perguntou ela. Gilbert não deu resposta. Estava olhando para ela, petrificado, com um ar inexpressivo que tampouco encorajava a especulação.

— Onde o obtive? — repetiu ele, com calma. — Quem disse que o obtive?

— Eu o achei no seu bolso — explicou ela, ofegante. — Oh, Gilbert; não adianta negar que ele estava lá, nem dizer que não sabia disso. Onde foi que você o obteve?

Houve outra pausa, e então veio a resposta:

— Achei-o.

Era inverossímil, e ele o sabia. Edith repetiu a pergunta.

— Não estou preparado para lhe contar — explicou calmamente. — Você está achando que eu o roubei, não é? Com certeza imagina que eu sou ladrão.

Sorria, mas com os lábios rígidos.

— Pode-se ver isso em seus olhos — prosseguia ele. — Você explica a minha ausência de casa, a minha demissão do Ministério, pelo fato de eu ter descoberto uma profissão mais lucrativa.

Soltou uma gargalhada.

— Bem, descobri mesmo — confessou. — Mas não é exatamente a de arrombador. Dou-lhe a minha palavra — continuou ele com fingida solenidade — que jamais arrombei um cofre em toda a vida. Palavra de honra, nunca roubei coisíssima nenhuma de... — Gilbert nesse ponto interrompeu-se; devia estar falando demais.

Edith, porém, agarrou-se à tábua de salvação que ele lhe lançara.

— Oh, você está falando sério, não está? — suplicou ela ansiosamente, e espalmou as mãos sobre o peito dele. — Não está? Sei que é tolice minha; que louca e terrivelmente desleal... que ordinária que eu sou... pensar coisa tão horrível de você. Mas que parece, parece; não parece?

— Parece — admitiu ele com gravidade.

— Não vai me contar como aconteceu? — implorou ela.

— Já disse que o achei..., é verdade. Eu não tinha nenhuma intenção... — Tornou a interromper-se. — Foi como... Achei-o numa ruela qualquer.

— Mas você não se surpreendeu ao achá-lo, não contou à polícia?

Ele sacudiu a cabeça.

— Não. Não fiquei surpreso e não contei nada à polícia. Pretendia restituí-lo, porque, afinal de contas, jóias não têm nenhum valor para mim não é?

— Não entendo, Gilbert. — Edith sacudia a cabeça, desconcertada. — Nada tem valor para você a não ser que lhe pertença, é isso?

— Depende — tornou ele, calmo. — Mas nesse caso particular, você tem a minha palavra de que eu trouxe este objeto para casa esta noite com a intenção de metê-lo numa caixa e enviá-lo ao Comissário de polícia. Pode acreditar ou não. Aí está por que achei tão extraordinário, quando conversávamos no jantar, que sua mãe tivesse perdido um colar e eu achado outro.

Estavam-se olhando, ele a jogar repetidas vezes o colar para cima e apará-lo mecanicamente.

— Que vamos fazer com ele agora? — perguntou Edith. Estava atrapalhada. — Mal posso pensar. — Hesitava. — Que tal fazer o que você pretendia... enviá-lo à polícia?

— Oh! — lembrou-se aflita. — Eu praticamente roubei trezentas libras.

— Trezentas libras! Ele olhou para o colar.

— Isto vale muito mais do que trezentas libras.

Em poucas palavras ela explicou como a jóia veio a perder-se, e como foi parar nas mãos de Warrell.

— Folgo em ouvir que a culpada é sua mãe. Receava que você andasse jogando.

— Isso o aborreceria? — indagou ela, de passagem.

— Um pouco — respondeu; — um jogador na família já basta.

— Você joga muito, Gilbert? — perguntou ela, seriamente.

— Um pouco — respondeu.

— Pois não devia. Jogar, ainda que na Bolsa, sempre é jogar.

— Estou tentando ganhar dinheiro para você — replicou ele com brusquidão.

Aquela era a coisa mais brutal que lhe dissera em sua curta vida de casados; notou que a magoara.

— Sinto muito — disse depois, com brandura. — Sei que sou um bruto, mas não tive a intenção de feri-la. Eu só estava protestando no meu próprio íntimo contra as circunstâncias desfavoráveis. Quer ficar com isto, ou quer que eu fique?

— Eu ficarei com ele — disse. — Mas você não vai contar à polícia onde o encontrou? Pode ser que eles descubram no local mais pistas que levem a solucionar outros casos.

— Acho que não — replicou ele com um leve sorriso. — Não quero incorrer na ira dessa quadrilha. Tenho a certeza de que é uma das mais poderosas e atrevidas que existe. Já é quase dez e meia — informou; — preciso sair.

Estendeu-lhe a mão, e ela a segurou. E fê-lo por mais tempo que o de costume.

— Até logo — ela disse. — Boa sorte, seja qual for o seu trabalho.

— Obrigado.

Então Edith voltou lentamente para junto dos convivas. Nem por isso a situação ficou mais clara. Ela acreditava no marido, e entretanto havia lacunas no que ele lhe dissera; parecia-lhe que ele poderia ter contado mais se quisesse.

Não punha em dúvida a palavra dele quando lhe dissera jamais ter roubado de... de quem iria ele dizer? Edith estava mais resolvida que nunca solver esse mistério, e, depois que os convidados se foram, atirou-se afanosamente à tarefa de escrever cartas. Só foi para a cama depois de ouvir os passos do marido na escada.

Gilbert bateu à porta do quarto quando passou em frente.

— Boa noite — disse.

— Boa noite — ela respondeu.

Edith ouviu a porta do quarto dele fechar-se suavemente; esperou perto de meia hora até ouvir o ruído do interruptor do outro quarto ao desligar-se; daí concluiu que ele se deitara e apagara a luz.

Foi então que, furtivamente, ergueu-se da cama, vestiu o chambre e desceu silenciosamente as escadas. Podia ser que o casaco dele estivesse pendurado no vestíbulo.

Tinha a rude e fantástica esperança de poder encontrar algum outro vestígio que a auxiliasse em sua busca da verdade; mas os bolsos do casaco dele estavam vazios.

Apalpando a manga, sentiu-a algo molhada, donde concluiu que estivera chovendo. Voltou para seu quarto, fechou a porta, sem fazer ruído, e foi até a janela inspecionar a rua. Fazia uma bela manhã e as ruas estavam secas. Olhou então para as mãos. Estavam lambuzadas de sangue!

Então disparou novamente escada abaixo e acendeu a luz do vestíbulo.

Sim, ali estava, nas mangas dele. Havia pequenas gotas de sangue no tapete da escada. Seguindo aquele rastro, viu que ia dar diretamente no quarto de Gilbert. Subiu e bateu.

Ele respondeu instantaneamente.

— Quem é?

— Sou eu. Quero vê-lo.

— Estou muito cansado! — Tornou ele.

— Por favor, deixe-me entrar. Preciso vê-lo.

Edith experimentou a porta; estava trancada. Depois ouviu a cama ranger quando ele se moveu. Um instante  depois a lingüeta deslizou na fechadura, e através da bandeira da porta Edith viu que a luz do quarto se acendera. Gilbert estava quase todo vestido.

— Que houve com seu braço? — perguntou-lhe. Estava cuidadosamente pensado.

— Está ferido, mas não muito.

— Ferido como? — indagou ela impaciente.

Queria que ele lhe explicasse que aquilo ocorrera num desastre de táxi ou num acidente de rua a que estão sujeitos todos os habitantes de uma cidade grande, mas não houve explicação.

Ela lhe pediu para ver a machucadura. Ele não queria, mas Edith insistiu. Por fim, ele removeu a bandagem e mostrou-lhe um horrendo talho, não muito grande, no antebraço. Era bastante irregular para ter sido feito por uma faca ou algum pedaço de vidro quebrado.

Havia também um segundo ferimento aproximadamente do tamanho de uma moeda de meio xelim na altura do cotovelo.

— Aquele parece um ferimento de bala — disse ela, apontando o machucado. — Roçou pelo seu braço e foi atingi-lo de novo perto do cotovelo.

Ele nada disse.

Edith providenciou água quente no banheiro e lavou-o; encontrou um demulcente em seu quarto, e fez-lhe um curativo do melhor modo que pôde.

Não tornou a referir-se às circunstâncias do caso. Aquele não era o momento nem o lugar para isso.

— Há uma excelente enfermeira em você — comentou Gilbert depois que ela terminou.

— E eu receio que havia uma excelente pessoa em você — respondeu ela em voz baixa; — e estou inclinada a pensar que a perverti.

— Ora, por favor, tire isso da cabeça — tornou ele quase com rudeza. — Um homem se faz a si mesmo; você conhece o ditado: quem mal faz, mal espere; e mesmo que você influísse de algum modo na minha ruína, eu sempre seria o primeiro e principal responsável.

— Não estou tão certa disso — ela disse. E fez-lhe uma pequena tipóia para o braço.

— Você se casou comigo porque me amava, pois me deu tudo o que qualquer mulher em perfeito juízo consideraria precioso e sagrado, e porque esperava que eu lhe desse algo em troca. Não lhe dei nada. Humilhei-o de saída contando-lhe o motivo por que me casara. Você teve apenas a duvidosa satisfação de me ver usando o seu nome. Talvez você tenha mesmo chegado a suspeitar de que mora com alguém que é uma eterna criticadora de suas ações e de suas intenções. Porventura não tenho responsabilidades?

Houve um longo silêncio, então ela prosseguiu:

— Farei sempre o que você quiser que eu faça.

— Só quero que seja feliz — foi a resposta.

A voz dele tinha agora o mesmo tom áspero, metálico, que lhe notara antes.

Edith enrubesceu ligeiramente. Muito lhe custara dizer aquilo, e ele agora a humilhava. Estava no seu direito, pensou.

Deixou-o e não mais o viu até a manhã seguinte quando se encontraram à hora do café. Trocaram umas poucas palavras à guisa de saudação, e passaram a ler avidamente os matutinos. Edith lia o seu em silêncio; leu duas vezes uma coluna que lhe interessou especialmente; então depôs o jornal sobre a mesa.

— Vejo que os tais arrombadores assaltaram o Banco das Províncias do Norte a noite passada — disse ela.

— Foi o que eu também li — respondeu ele, sem erguer os olhos do jornal.

— E que um deles foi atingido com um tiro pelo vigia do banco.

— Também li isso. — respondeu-lhe o marido.

— Um tiro! — tornou ela, e olhou significativamente para o braço ferido que ele trazia na tipóia.

Gilbert sacudiu a cabeça, confirmando.

— Acho que o meu jornal é mais recente que o seu — disse com brandura. — O homem atingido morreu. Encontraram o corpo dele num táxi. Seu nome não foi divulgado, mas acontece que eu sei que ele era um cavalheiro corado e muito agradável chamado Persh. . Pobre coitado — acrescentou com ar meditativo; — foi um caso de perfeita justiça.

— Por quê? — indagou ela.

— Ele fez isto — explicou Gilbert Standerton indicando o ferimento no braço com um sorriso sombrio nos lábios.

 

O QUARTO HOMEM

Na noite do jantar oferecido por Gilbert Standerton o condutor de táxi de barbas negras, que tinha ido a Charing Cross Road em busca de instruções, chegou-se à porta do número 43 e foi devidamente observado pelo detetive de serviço. Entrou na casa onde permaneceu por uns cinco minutos, tornou a sair e se foi, sem levar passageiros.

Dez minutos depois, a um sinal do detetive, a casa foi visitada por três homens do Departamento de Investigações Criminais da Scotland Yard, e o mistério do condutor de táxi foi solucionado para sempre.

Em vez de George Wallis, descobriram que quem estava escarranchado na poltrona, escada acima, na sala de estar, absorvido na leitura de um romance, era o próprio chofer de barbas negras.

— É muitíssimo simples — explicou o Inspetor Goldberg, — o motorista chega, e George Wallis o está esperando dentro da casa, devidamente caracterizado, com barbas postiças e tudo mais, para dar a impressão exata de que é o outro. No momento em que este entra e fecha a porta, Wallis a abre, vai até o carro e se retira. E vocês que estavam de vigia, ao vê-lo pensavam tratar-se do próprio motorista voltando.

Fitou o prisioneiro, e este o interpelou: — Bem, que pretende fazer?

— Acho que infelizmente não há nada que eu possa fazer com você — disse Goldberg, lastimando-se. — Tem licença?

— Claro que sim — disse o motorista, e apresentou-lhe.

— Posso prendê-lo por estar associado com criminosos.

— Uma acusação bem difícil de provar — tornou o barbudo; — e mais difícil ainda seria prender alguém com base nela, e possivelmente isso lhe tiraria a chance de apanhar George no fim.

— É verdade — disse Goldberg; — seja como for, vou mandar procurar seu táxi. Ao menos posso prender George por dirigir sem licença.

O homem sacudiu a cabeça.

— Sinto desapontá-lo — disse, afetando lastimar-se, — mas George também tem licença.

— Que desgraçado! — disse frustrado o Inspetor.

— Divertido, não? — comentou o barbudo. — George é terrivelmente perfeito.

— Vamos lá, Smith — disse o detetive, com brandura; — qual é a jogada? Até que ponto você está metido nisto?

— Em quê? — perguntou admirado o outro.

Goldberg desistiu. Sabia que Wallis selecionava seus cúmplices com muito cuidado.

— Seja como for, vou atrás de George — disse. — Você provavelmente blefou a respeito da licença. Uma vez que eu o ponha atrás das grades, haverá uma porção de coisinhas que talvez a gente descubra.

— Faça isso — disse sério o condutor. — vai encontrá-lo estacionado na fila do Haymarket, cerca de dez e meia, esta noite.

— Sim, eu sei — disse, sardônico, o detetive.

Ele não tinha nem acusação nem nenhum mandado, a não ser o mandado de busca que lhe dava o direito de entrar naquela casa.

Smith o motorista foi liberado, e destacou-se um detetive para fazer-lhe sombra.

O êxito deste último pode ser depreendido do fato de que, às dez e meia daquela noite, o Inspetor Goldberg encontrou o táxi que estava procurando, e, para sua surpresa, encontrou-o no lugar que Smith lhe dissera. Ali acharam o motorista barbudo, sentado com todo o aprumo de quem estava por findar mais um virtuoso e produtivo dia de trabalho.

— Bem, George — disse o Inspetor comicamente, — vá saltando do poleiro que eu quero dar uma espiada na sua licença; se não estiver em seu nome vou prendê-lo.

O outro não desceu do carro; apenas meteu a mão no bolso, tirou uma carteirinha de couro e a exibiu. O Inspetor a abriu e leu.

— Ah! — exclamou exultante. — Como eu pensava, esta licença foi tirada em nome de Smith.

— Eu sou o Smith, disse calmamente o motorista.

— Saia esganiçou o Inspetor.

O homem achou melhor obedecer. Não havia dúvida quanto a sua identidade.

— É que — explicou ele — quando o senhor pôs seus sabujos para me seguir eu não quis amolar o George. Ele já é bastante crescido para cuidar de si mesmo; e, por falar nisto, a licença dele tem o nome dele mesmo; de modo que não precisam mais se aborrecer com isso.

— Mas, tanto quanto eu pude notar — prosseguiu o barbudo em tom de censura, — o senhor não acredita em mim; ué! isso me ofendeu. Despistei seu amigo em Oxford Street, vim para cá e tirei o meu carro do criminoso desesperado que vocês estão caçando.

— Onde está ele agora? — perguntou Goldberg.

— Em casa, e na cama a esta hora — disse virtuosamente o barbudo.

Com isto o Inspetor havia de estar satisfeito. Mas, ainda assim, tornou à casa de Charing Cross Street e achou, como receava, George Wallis, se não na cama, ao menos em seu chambre e com as barras do pijama de seda a penderem-lhe sobre grandes chinelos de lã.

— Ó meu velho — foi a saudação do outro; — nunca mais me deixarão em paz? Até quando minha infeliz ficha vai me perseguir, penitente como eu sou pelejando por levar uma vida inofensiva como o Estado requer de cada cidadão?

— Não faça disso um cavalo de batalha, George — rosnou Goldberg. — Você me fez andar a noite toda atrás de você. Onde é que esteve?

— Estive no cinema — disse o outro, calmamente — observando com muito interesse um pobre mas honesto contador de banco lutando por proteger a filha de seu patrão, o qual era rico e mau. Também vi vaqueiros dando tiros de revólveres, e xerifes galopando feito doidos por vastas planícies. Na verdade, passei por toda a escala de emoções que o cinema proporciona.

— Você fala demais — tornou o Inspetor.

Ele não perdeu mais tempo; deixou o Sr. Wallis esforçando-se por reprimir um bocejo; mas mal a porta se fechou atrás do detetive, o outro despiu o chambre e atirou-o para um canto, bem como o pijama e os chinelos de lã. Em poucos segundos estava outra vez completamente vestido.

Da janela da frente ele viu o grupo de policiais debatendo a questão, observou-os até que se dirigiram para a ponta da rua. Lá haveria nova discussão e, depois, um deles voltaria ao seu posto; mas antes que atingissem o fim da rua, Wallis já estava fora de casa caminhando rápido na direção contrária.

Deixara uma luz acesa no apartamento, para encorajar o vigia. Correria o risco de ser descoberto quando voltasse. Dirigiu-se à estação ferroviária, e, um quarto de hora depois, após uma prudente baldeação, achou-se na vizinhança de Hampstead. Desceu a colina em direção do Belsize Park e apanhou um táxi. Parará na estação para telefonar, e fizera três chamadas distintas.

Logo depois das onze, encontrou seus dois comparsas na estação de Chalk Farm. Daí em diante não houve mais vestígio deles. Até ali, e de maneira vaga e insatisfatória, o Inspetor Goldberg conseguiria registrar os movimentos de Wallis naquela noite.

Teve de adivinhar muitas coisas e tomar outras em confiança, pois fora despistado muito bem.

À meia-noite, o guarda do Banco das Províncias do Norte, estava fazendo sua ronda, subia os degraus de pedra de uma escada que começava na saída da caixa-forte subterrânea, quando três homens saltaram sobre ele, amordaçaram-no e o amarraram com incrível rapidez. Não fizeram nenhuma tentativa de feri-lo, mas com perfeição científica colocaram--no em tal posição que lhe tornou completamente impossível oferecer resistência ou pedir socorro ao seu ajudante. Trancaram-no num pequeno gabinete usualmente ocupado pelo subgerente do banco, e prosseguiram com o trabalho.

— Vai ser um trabalho duro — disse Wallis, e pôs o facho da lanterna sobre o gradil de aço que guardava a entrada da casa-forte.

Persh, o homem corpulento que estava com ele, conveio com um aceno de cabeça.

— O gradil não é nada — disse; — eu posso abri-lo.

— Procure o alarma, Callidino — disse Wallis.

O pequeno italiano era perito em matéria de alarmas, e pôs-se a examinar a porta cientificamente.

— Aqui não há nada — disse em definitivo.

Persh, que era a pessoa mais entendida em fechaduras de todo o mundo, pôs mãos à obra, e em quinze minutos o portão girou nos gonzos. Além do gradil, ao fim da passagem, havia uma porta inteiriça, de cor verde, que não oferecia nenhuma segurança contra os instrumentos que eles tinham trazido. Demais, a fechadura era notável, pois não ficava na superfície da folha, mas num pequeno gabinete de aço dentro do compartimento superior. Porém o maçarico foi prontamente posto em ação. Wallis tinha o plano da porta cuidadosamente desenhado em escala, e sabia exatamente onde se encontrava o ponto vital daquela maciça folha de aço. Trabalharam durante hora e meia, então Persh parou de súbito.

— Que foi isso? — perguntou.

Sem mais palavras os três correram, arrepiando caminho pelo corredor; subiram as escadas e ganharam o amplo escritório do primeiro andar, liderados por Persh.

Quando este alcançou o topo da escada, ouviu-se um estampido e ele vacilou. Pensou ter visto um vulto mover-se junto à parede e detonou a arma naquela direção.

— Imbecil! — xingou Wallis. — Quer chamar a atenção de todo mundo nas redondezas?

Ouviu-se um novo tiro, e desta vez não houve dúvida sobre quem o desfechara. Wallis dirigiu seu poderoso farol para o escritório. Com uma mão livre e a outra empolgando um revólver, lá estava, agachado perto da porta, o mesmo guarda que tinham imobilizado. Wallis apagou a luz quando o homem tornou a disparar.

— Vamos dar o fora daqui depressa! — gritou.

Correram pela saída dos fundos, galgaram uma pequena escada de mão, passaram por uma clarabóia, transpuseram uma pequena sacada e finalmente ganharam a loja de malhas por onde tinham entrado. Persh estava gravemente ferido; apesar disso, fez o último e supremo esforço de sua vida. Viram pessoas correndo em direção do banco e ouviram o som de um apito policial; os três saíram juntos da loja de malhas, calmos e sem espalhafato, como três respeitáveis cavalheiros, um dos quais aparentando embriaguez.

Wallis fez sinal a um táxi e indicou ao motorista a direção, com todos os detalhes. Não deu mostras de que tinham pressa, mas Callidino assistia o homenzarrão dentro do veículo; depois partiram vagarosamente. Quando o carro se moveu, Persh desabou para um canto do assento.

— Você foi atingido? — perguntou Wallis, ansiosamente.

— Acho que estou liquidado, George — sussurrou o outro em resposta.

George de lanterna em punho, fez um cuidadoso exame do companheiro. Então inclinou a cabeça fora da janela.

— Que está fazendo? — perguntou Persh debilmente.

— Vou levá-lo ao hospital — respondeu Wallis.

— De jeito nenhum — trovejou o outro. — Pelo amor de Deus não se arrisquem por mim. Digo que estou acabado. Eu posso...

Nada mais disse; todos os seus músculos, naquele momento, pareceram descontrair-se, e ele, deslizando no assento, amontoou-se no soalho do carro.

Os outros o ergueram.

— Deus do céu! — exclamou Wallis, — ele morreu!

O amável Persh morrera realmente.

 

"O assalto ao Banco das Províncias do Norte continua a provocar muitos comentários nos círculos comerciais da Cidade", escrevia o porta-voz do Daily Monitor.

"A polícia tem feito uma série de descobertas interessantes. Não há dúvida de que os meliantes escaparam através" (neste ponto lia-se uma acuradíssima descrição da fuga). "O que, no entanto, interessa à polícia é a prova, que estão em vias de obter, de que havia outro homem no banco e cuja presença até agora não foi explicada. O quarto homem não parece ter participado do assalto, e, ao que tudo indica, sua presença na cena do crime era ignorada pelos próprios ladrões. O guarda do banco, entrevistado esta manhã por nosso representante, mostrou-se naturalmente reticente — o que convém aos interesses de seus empregadores, — mas confirmou os rumores de que o quarto homem, quem quer que possa ser, não deu mostras de antagonismo para com ele (o guarda). Transpira agora que o policial em questão foi amarrado e amordaçado pelos ladrões, os quais, provavelmente sem querer, deixaram sua vítima correndo grande perigo de vida, pois a mordaça quase o asfixiou.

"Depois, estando o referido guarda quase in extremis, entrou em cena o quarto indivíduo, que lhe afrouxou a mordaça e o colocou em posição mais confortável. Ê óbvio que ele não fazia parte do bando original.

"Corre ainda a teoria de que na mencionada noite foram duas quadrilhas de ladrões, isoladas e independentes, que atacaram o mesmo banco. Seja isto verdade ou não, temos de prestar nosso tributo à humanidade do quarto homem."

 

— Então foi assim. — Wallis lera o relato no jornal daquela manhã, sem ressentimentos. Embora o dia tivesse terminado desastrosamente para ele, ainda tinha motivos para sentir-se satisfeito. "Eu nunca me perdoaria se tivéssemos matado aquele guarda", dissera ao companheiro.

Tinha os olhos cansados e seu rosto estava singularmente pálido. Fora um dia realmente trabalhoso. Estava agora no escritório de corretagem, e sua única companhia era Callidino.

— Acho que o pobre do velho Persh vai nos pegar — disse ele.

— Por que o Persh? — indagou o outro.

— O condutor do táxi é capaz de nos identificar como sendo os companheiros dele. É estranho que ainda não tenham aparecido. Não adianta fugir. Como você sabe — ponderou de súbito, — nenhum homem jamais escapa da polícia inglesa se for conhecido. É melhor aguardar os acontecimentos; desse modo a gente evita uma porção de problemas.

— Pensei que você tivesse ido ao posto — disse Callidino com surpresa.

— E fui — confirmou Wallis; — foi a primeira coisa que fiz... Na verdade, na ocasião eu tinha uma desculpa... identificar Persh. Não tem sentido fingir que não o conheço. A única coisa a fazer é apresentar os álibis necessários. De minha parte eu estava na cama dormindo.

— Ninguém o viu voltar para casa? — perguntou Callidino.

Wallis sacudiu a cabeça.

— Não — respondeu; — deixaram um homem para me vigiar, e ele o fez da maneira mais natural, passeando para cima e para baixo em frente da casa. Foi fácil fazer o mesmo caminho que ele, às suas costas, e entrar sem ser visto.

Seguir pessoas é coisa muitíssimo cansativa, e o que pouca gente sabe é que permanecer na mesma posição, com um objetivo em vista, nos torna fisicamente muito tensos. Mesmo um policial treinado pode ser surpreendido cochilando da maneira mais simples, e, como Wallis disse, não teve dificuldade em voltar para casa sem ser observado. O único perigo era que alguém aparecesse na sua ausência.

— E você?

Callidino sorriu.

— O meu álibi è mais complicado — explicou, — e todavia mais simples. — Meus excelentes compatriotas são capazes de jurar qualquer coisa por mim. Para esses napolitanos é fácil mentir.

— Você não é napolitano?

— Siciliano — respondeu o outro a sorrir... Napolitano, onde já se viu!

O desprezo em seu tom de voz divertia Wallis.

— Quem é o quarto homem? — perguntou de súbito Callidino.

— É o nosso estranho misterioso, tenho certeza — respondeu Wallis de mau humor. — Mas, raios! quem é ele? Nunca matei ninguém até hoje, mas vou ter de tomar medidas extraordinárias para satisfazer minha curiosidade a esse respeito.

— Temos de repartir a muamba — disse depois. — Hei de fazer isso ainda hoje. Persh tem parentes em algum canto do mundo, uma filha ou irmã; ela deve ficar com a parte dele. Há um advogado de araque em Southwark que pode fazer isso por nós. Vamos ter de inventar um tio que morreu.

Callidino concordou.

— Quanto a mim — disse ele, erguendo-se e espreguiçando-se, — os vinhedos do Sul já estão começando a me atrair. Vou construir uma aldeia em Montecatini e beber-lhe o vinho; e mais outra no Lago Maggiore, e banhar-me em suas águas. Não vou fazer outra coisa pelo resto da vida, a não ser comer, beber e tomar banho.

— Uma perfeita idéia de jerico — comentou Wallis.

A questão do quarto homem preocupava-o mais do que ele admitira. Aquilo dava-lhe nos nervos. A polícia ele compreendia, e estava preparado para enfrentá-la, podia mesmo combatê-la. Mas ali estava agora o quarto homem, tão astuto quanto eles; que conhecia seus planos, que os seguia, que os mantinha sob constante vigilância. Por quê? Com que objetivo? Não tinha dúvidas de que o quarto homem era o mesmo que os surpreendera em Hatton Garden.

Se aquilo era passatempo, era um passatempo muitíssimo extraordinário, e então o homem só podia estar louco. Se ele tivesse um objetivo em vista, por que era que não aparecia e o admitia abertamente?

— Como é que eu poderia pegá-lo? — disse à meia altura.

— Ponha um anúncio no jornal — sugeriu Callidino por sua vez.

Uma pesada réplica aflorou aos lábios do outro, mas ele se conteve. Afinal, a idéia não era de todo maluca. Podia-se fazer muita coisa por meio da imprensa.

 

O ESCONDERIJO

"Pede-se ao intruso de Hatton Garden que se comunique com o homem que estava sobre o assoalho para marcar um encontro. O homem do assoalho tem algo a propor e promete não causar-lhe dano algum."

Gilbert Standerton leu aquele anúncio durante o café da manhã, e um leve sorriso insinuou-se nos cantos de seus lábios.

Edith o notou.

— Qual foi a piada, Gilbert? — perguntou-lhe.

— Esses anúncios — explicou ele; — são tão gozados. Ela tomou nota da direção dos olhos do marido, bem como da página do jornal, e aguardou a oportunidade de descobrir por si mesma a causa daquele sorriso.

— A propósito — disse ele distraidamente, — hoje depositei algum dinheiro no banco em seu nome.

— Em meu nome? Ele confirmou.

— Isso mesmo; tenho tido muita sorte na Bolsa ultimamente ... Ganhei doze mil libras em cima das ações ferroviárias americanas.

Ela o fitou detidamente.

— No duro?

— Claro que sim. As ações ferroviárias americanas têm saltado muito ultimamente, e eu também. — Tornou a sorrir. — Entrei quando elas estavam baixas e saí quando estavam em alta. Eis a declaração do corretor. — Tirou-a do bolso e passou-a por sobre a mesa.

— Acho — aduziu, com a intenção de fazer humor, — que você devia saber que nem todo o meu rendimento provém daquela minha nefanda profissão.

Edith não respondeu a isso. Ela já sabia quem era o quarto homem, afinal. Por que ele tinha ido lá? Qual era sua intenção?

Se ele fosse um detetive ou se estivesse trabalhando para o Governo, tê-lo-ia confessado. Seu coração quase parou quando ela leu a interessante teoria do jornal.

Era ele o segundo ladrão.

Edith pensara tudo isso tendo diante dos olhos o jornal que ele lhe passara.

A declaração do corretor era bastante clara. Ali estavam as quantias cuidadosamente contabilizadas.

— Como pode ver, não depositei tudo em seu nome — caçoou ele; — uma parte ficou no meu próprio.

— Gilbert — perguntou ela, — por que você me oculta as coisas?

— Que foi que eu ocultei? — perguntou ele.

— Por que você me ocultou o fato de que esteve no banco na noite de anteontem, quando ocorreu essa horrível tragédia?

Ele não respondeu de imediato.

— Não lhe ocultei isso — disse. — Praticamente eu o admiti;... num momento de fraqueza, confesso, mas admiti.

— Que foi fazer lá? — tornou ela.

— A minha fortuna — respondeu solenemente.

Edith, porém, não comprava nabos em saco.

— Que foi fazer lá? — interpelou-o de novo.

— Observar três interessantes ladrões em ação — explicou ele; — e não o fiz só uma vez, mas muitas. É que eu sou especialmente bem dotado em certo sentido. A natureza me fez para ser ladrão, mas a educação, a criação e certa lisura de caráter impediram que eu me tornasse gatuno. Sou um diletante: não cometo crimes, mas interesso-me monstruosamente por eles. Procuro — prosseguiu com lentidão — descobrir que espécie de fascínio o crime exerce sobre a mente normal; além disso, tenho uma razão especial para verificar as quantias que esses homens levantam.

Ela franziu as sobrancelhas admirada, e isto o feriu; não queria aborrecê-la, mas ela agora sabia tanto, que precisava contar-lhe mais.

Pensara que teria sido possível ocultar tudo dela, mas duas pessoas não podem viver em comum, sob o mesmo teto, interessarem-se pelas idas e vindas um do outro, sem que alguns de seus mais caros segredos acabem vindo à luz.

— O que eu não consigo entender... — começou ela lentamente, e embaraçou-se na escolha de uma introdução para assunto tão delicado.

— O que é? — ele perguntou.

— Não consigo entender por que motivo você de repente abandonou todos os seus divertimentos normais, por que se demitiu do Ministério, por que deixou a música e, acima de tudo, por que toda essa revolução na sua vida teria de ocorrer imediatamente depois da execução da "Melodia em Fá".

Ele permaneceu em silêncio por um momento, e quando finalmente falou, a voz lhe saiu penosa e compassada.

— Isso não é inteiramente exato — principiou. — Comecei a observar esses criminosos antes que a canção fosse executada. — Nesse ponto fez uma pausa. — Admito que tive algum receio de que cedo ou tarde a "Melodia em Fá" viesse a ser executada debaixo da minha janela, e andei fazendo alguns preparativos que me valessem nesse dia fatídico. Isto — concluiu ele — é tudo o que lhe posso contar.

— Diga só mais uma coisa — tornou ela, enquanto ele se levantava; — se eu o amasse e fosse tudo o que você esperava de mim, você teria tomado esse rumo?

Ele se pôs a pensar por um momento.

— Não sei dizer-lhe — respondeu por fim; — talvez sim, talvez não. Sim — disse depois, sacudindo enfaticamente a cabeça; — eu teria feito o que estou fazendo agora; só que, se você me amasse ter-me-ia sido mais difícil fazê-lo. Mas do jeito como estão as coisas... — e encolheu os ombros.

Saiu logo depois. Ela apanhou o jornal que ele estivera lendo, e, sem dificuldade, localizou aquele anúncio.

Então ele era o intruso de Hatton Garden, e o que dissera era verdade. Ele tinha observado aqueles homens, e eles sabiam que tinham sido observados.

Com a cabeça aos rodopios Edith sentou-se, com o propósito de juntar os fios daquele mistério. Mas não estava mais próxima da solução quando, de puro esgotamento, deu por findo o esforço.

 

Gilbert não tencionava passar a noite fora. Sabia que sua esposa se aborreceria e teria um genuíno motivo de queixa; à parte isso, em certo sentido ele estava domesticado, e se a vida que levava era muito singular não deixava de ter, por outro lado, seu encanto e atrativo.

O simples saber que a encontraria todas as manhãs, que lhe falaria durante o dia e que tinha nela uma amiga em potencial era-lhe particularmente agradável.

Fora a um escritoriozinho que alugara, situado sobre uma loja em Cheapside; seu trabalho na Cidade lhe tornara necessário um escritório assim.

Girou a chave na fechadura e entrou no pequeno gabinete, situado no terceiro andar, cerrando a porta atrás de si. Havia uma ou duas cartas que lhe tinham sido endereçadas na qualidade de locatário do escritório. Eram principalmente comunicações sobre negócios que lhe exigiam pouca ou nenhuma atenção.

Sentou-se à escrivaninha a fim de redigir uma nota; imaginou que poderia chegar tarde aquela noite e quis esclarecer sua ausência. Edith ocupava um lugar definido em sua vida, e embora ela não exercesse direitos sobre seus movimentos esperava, com razão, ser informada de seus planos mais imediatos.

Mal juntara a pena ao papel, ouviu baterem à porta.

— Entre — gritou, um tanto surpreso.

Não tinha o costume de receber visitas naquele local. Esperava que fosse um angariador ambulante fazendo solicitações, mas o homem que entrou não era tão prosaico. Nem era outro senão o Sr. Wallis, pessoa afável e cortês.

— Não quer sentar? — sugeriu, sem alterar um músculo da face.

— Queria vê-lo, Sr. Standerton — começou Wallis sem fazer menção de sentar-se. — Poderia fazer o favor de vir ao meu escritório?

— Acho que posso vê-lo daqui mesmo — respondeu Gilbert calmamente.

— Preferia que fosse ao meu escritório — insistiu o outro; — estaríamos livres de interrupção. Não está com medo de ir, está? — indagou com um leve sorriso.

— Não estou para provocações, seja como for — sorriu Gilbert; — mas como este escritório não é grande, e por isso não inspira grandes pensamentos, eu irei com você. Suponho que quer me pegar para seu confidente, não é?

Fitou o outro de maneira casual enquanto Wallis confirmava com um gesto de cabeça.

Os dois deixaram juntos o escritório, enquanto Gilbert imaginava qual seria a proposta que iria receber.

Dez minutos depois estavam na loja de St. Bride Street, aquela excelente agência de cofres, cujos negócios, ao que tudo indicava, cresciam a olhos vistos.

Gilbert Standerton olhou em torno. O gerente estava lá: um modelo de respeitabilidade. Ele fez uma polida reverência, que tinha Wallis por alvo, e, de algum modo, mostrou-se surpreso por vê-lo, pois o proprietário da Agência de Cofres de St. Bride era um visitante assaz raro.

— Acho que é esse o meu escritório — disse Wallis. Entraram, e a porta fechou-se por trás deles.

— Bem, o que é que você quer exatamente? — perguntou-lhe Gilbert.

— Quer um charuto? — E o Sr. Wallis empurrou a caixa em direção do visitante.

Gilbert sorriu.

— Não precisa se assustar — disse Wallis, piscando um olho. — Não há droga nenhuma neles, e são da minha marca especial.

— Não fumo charutos — explicou Gilbert.

— Mentira número um — replicou o outro alegremente.

— Para uma troca de confidencias, esse é um começo bastante promissor. Bem, Sr. Standerton, vamos ser muito francos um com o outro; pelo menos eu lhe serei muitíssimo franco. Espero que colabore, porque acho que lhe mereço alguma coisa. Sabe tantas coisas sobre mim, e eu sei tão pouco sobre o senhor, que seria justo equilibrarmos as coisas.

— Eu o compreendo — disse Gilbert, — e se eu vir alguma vantagem nisso, pode ficar certo de que seguirei a sua sugestão.

— Alguns meses atrás — prosseguiu Wallis, sugando sem pressa o charuto enquanto fitava o teto, — eu e um de meus amigos estávamos empenhados num trabalho científico.

Gilbert fez um gesto em sinal de que entendia.

— No meio desse trabalho fomos interrompidos por um cavalheiro, o qual, por razões que ele conhecerá melhor que eu, modestamente ocultava as feições atrás de uma máscara.

— Wallis nesse ponto encolheu os ombros. — Não gostei do melodrama, mas aplaudo a discrição dele. Desde então

— prosseguiu — os esforços de meus amigos em sua busca científica de fortuna têm sido embaraçados por esse mesmo cavalheiro. Algumas vezes eu o vi, outras vezes só viemos a saber de sua presença conosco depois de já nos termos retirado do local do nosso trabalho. Ora, Sr. Standerton, a pessoa em questão talvez tenha excelentes motivos para fazer tudo o que anda fazendo, mas o caso é que está pondo em grave risco a nossa segurança.

— Quem é ele? — perguntou Gilbert Standerton.

— Essa pessoa — tornou Wallis, sem tirar os olhos do teto, — é o senhor.

— Como sabe? — perguntou Gilbert calmamente.

— Eu sei — disse o outro com um sorriso, — e posso prová-lo de uma maneira curiosa. — E empurrou-lhe uma almofada de carimbo. — Quer pôr suas impressões digitais nessa folha de papel? — pediu ele, e apresentou-lhe a folha.

Gilbert sacudiu a cabeça, a sorrir.

— Não vejo razão para isso — disse.

— Exato. Se o senhor o fizesse poderíamos comparar as suas com umas outras impressões interessantíssimas. Neste escritório — prosseguia o Sr. Wallis — temos um grande cofre que está conosco há alguns meses.

Gilbert fez que entendia.

— Adquirido por um cliente que levou as chaves consigo — disse ele.

— Exato — tornou Wallis. — Vejo que se lembra da minha mentira a respeito. Esse cofre tem três conjuntos de chaves e uma palavra-combinação. Disse três — corrigiu-se escrupulosamente; — na verdade, há quatro. Por um imperdoável descuido, deixei as chaves desse cofre em meu bolso, neste mesmo escritório, há três semanas. Devo confessar — disse com um sorriso — que não suspeitei que o senhor tivesse conhecimento tão completo dos meus atos ou dos meus muitos segredos. Lembrei-me da minha asneira, às onze daquela noite, e voltei para apanhar o que esquecera. Encontrei-as exatamente onde as deixara; mas alguém mais as tinha encontrado também, e esse alguém tirou um modelo delas em cera. Além disso — ele se inclinou para Gilbert, baixando o tom de voz. — esse alguém por razões que só ele sabe, habituou-se desde então a vir a esse local todas as noites. Sabe por quê, Sr. Standerton?

— Talvez tenha vindo escolher um cofre — sugeriu Gilbert ironicamente.

— Ele vem para nos roubar o fruto de nosso trabalho — explicou Wallis.

Sorriu ao dizê-lo, porque não lhe faltava senso de humor.

— Algum indivíduo, com uma consciência ou algum senso de retidão moral que o impede de tornar-se ladrão oficialmente, está-se dedicando ao fascinante mister de roubar ladrões. Em outras palavras, perto de vinte mil libras em moeda sonante foram surrupiadas do meu cofre.

— Em caráter de empréstimo, não há dúvida — disse Gilbert Standerton, e reclinou-se na cadeira, com as mãos nos bolsos e um olhar duro nos olhos.

— Que quer dizer? Empréstimo? — perguntou Wallis surpreso.

— Sim, por alguém desesperadamente necessitado de dinheiro; alguém que entende mais de Bolsa de Valores do que muitos que fazem cursos a respeito; alguém com tal conhecimento que poderia jogar pesadamente com um risco mínimo de perda, e apesar disso, temeroso de magoar um certo corretor infeliz com uma falência acidental.

Inclinou-se para Wallis, com o cotovelo sobre a mesa, o rosto voltado obliquamente para o outro. Ouvira a porta da rua fechar-se num estrondo, e compreendeu que agora estavam sós, e que Wallis planejara exatamente isso.

— Eu precisava tremendamente de dinheiro — explicou Gilbert. — Eu poderia ter roubado com facilidade. Tencionava fazê-lo. Vigiei você um mês inteiro. Tenho observado criminosos durante anos. Conheço os macetes da profissão tanto quanto você. Lembre-se de que eu venho do Ministério dos Negócios Exteriores; do departamento que se ocupa principalmente de vigaristas estrangeiros; e recorde que eu era praticamente um policial, ainda que não estivesse investido de autoridade.

— Sei muito bem de tudo isso — disse Wallis.

Estava curioso, queria informações para seu uso pessoal e imediato, desejava, igualmente, ampliar a soma de seus conhecimentos acerca da humanidade.

— Sou um larápio... na verdade. Meus motivos não são da sua conta.

— Por acaso a "Melodia em Fá" teve algo a ver com isso? — perguntou secamente o outro.

Gilbert Standerton pôs-se em pé num salto.

— Que está querendo dizer? — perguntou.

— Apenas o que disse — tornou o outro espetando-lhe uns olhos argutos. — Sei que você tinha o estranho desejo de ouvir essa melodia. Por quê? Confesso que estou curioso.

— Guarde sua curiosidade para o que seja da sua conta — disse o outro com rudeza. — Como foi que soube? — perguntou depois, e Wallis deu uma gargalhada.

— Temos nossas fontes de informação... — começou ele com excessiva eloqüência.

— Já sei — interrompeu-o Gilbert; — o seu amigo Smith, que está morando com os Wings; tinha-me esquecido dele.

— Meu amigo Smith...! Quis dizer meu chofer, não foi?

— Quis dizer seu capanga, o quarto membro de sua quadrilha, o homem que nunca aparece em nenhuma de suas façanhas, e que por trás de muitas máscaras está lançando as bases de seus futuros assaltos. Ah, eu sei tudo sobre este lugar — disse abrangendo com um gesto as redondezas. — Conheço esse esquema da Agência de Cofres; é engenhoso, mas não original. Já foi posto em prática na Itália, acho eu, alguns anos atrás. Você vende cofres por preços ridículos às mansões do interior, e o resto é simples. Você tem as chaves, e a qualquer momento pode entrar numa casa onde tenha vendido um cofre, na certeza de que todos os objetos de valor e toda propriedade móvel estarão reunidos dentro dele.

Wallis confirmou com um aceno.

— Perfeito, amigo — disse ele. — Não preciso de informações a meu respeito. Quer ter a bondade de me explicar exatamente o seu papel? O senhor tem porventura a veleidade de contar-se no número das pessoas honestas?

— Não — respondeu lacônico o outro. — O aspecto moral de minhas ações não tem nada a ver com o caso. Não tenho ilusões a esse respeito.

— É um homem feliz — tornou George Wallis aprovativamente. — Mas quer, por favor, me dizer qual é o seu papel em tudo isto, e como justifica sua ação de remover, de tempos em tempos, gordas somas de dinheiro nosso e transferi-las para algum depósito secreto seu?

— Não a justifico — disse Gilbert.

Ele se ergueu e percorreu o escritoriozinho, enquanto o outro o observava de perto.

— Digo-lhe que sei muito bem que sou um ladrão, mas estou agindo de acordo com um plano.

Nesse ponto voltou-se.

— Sabe que não há um só assalto que você tenha praticado sobre o qual eu não saiba tudo? Não há uma peça de pedraria que você tenha apanhado, cujo valor exato eu desconheça, ou que eu não saiba a quem pertence. Sim — prosseguiu sacudindo a cabeça, — estou sabendo que você não "passou" (não é essa a palavra?) um único artigo sequer, e que ainda tem tudo armazenado. Eu espero, com sorte, não apenas compensá-lo daquilo que lhe tirei, como ainda restituir até o último penny que você roubou.

Wallis espantou-se.

— Que quer dizer? — perguntou.

— Ao verdadeiro dono — prosseguiu Gilbert calmamente. — Tenho pelejado por atingir uma posição de onde lhe possa dizer: "Aqui está o colar que pertence a Lady Dynshird, vale quatro mil libras, dou-lhe uma quantia justa por ele, digamos mil libras (é bem mais do que você conseguiria por aí e nós o devolveremos à proprietária". Quero poder dizer-lhe: "Tirei do seu capital dez mil soberanos em ouro e em notas bancárias francesas, aqui está, essa quantia é para você e eis aqui outra igual que será restituída às pessoas roubadas". Tenho anotado cuidadosamente cada penny que você vem roubando, desde que me juntei à sua quadrilha na qualidade de membro honorário.

Sorriu sombriamente.

— Meu caro Quixote — interveio George Wallis em sinal de protesto, — está se impondo uma tarefa impossível.

Gilbert Standerton sacudiu negativamente a cabeça.

— Não; não estou — respondeu. —i Ganhei mais dinheiro na Bolsa do que jamais pensei possuir na vida.

— Quer me dizer só uma coisa? — pediu o outro. — Como se explica esse seu súbito desejo de enriquecer?

— Isso eu não posso explicar — disse Gilbert, e seu tom de voz era inflexível.

Houve uma ligeira pausa na conversa, depois George Wallis se ergueu.

— Acho que seria melhor a gente se entender agora — disse ele. — Você nos tirou cerca de vinte mil libras... Vinte mil libras nossas desapareceram.

Gilbert sacudiu a cabeça.

— Não, nem um penny desapareceu. Digo-lhe que usei essa soma como reserva para o caso de precisar dela. Na verdade, já não preciso — sorria; — eu poderia devolver-lha esta noite.

— Ficar-lhe-ia imensamente grato — disse o outro cada vez mais surpreso.

Gilbert fitou-o.

— Chego mesmo a gostar de você, Wallis — disse; — apesar de velhaco, há qualquer coisa de admirável em você.

— Ambos somos velhacos — corrigiu-o Wallis. — Você, que não tem ilusões, não comece a criar uma agora.

— Acho que tem razão — anuiu Gilbert, mal-humorado.

— Como vai terminar tudo isto? — perguntou Wallis. — Onde vamos repartir os haveres? — Você está preparado para levar a cabo esse acordo transcendental, contanto que minha firma continue a existir?

Standerton sacudiu a cabeça.

— Não — respondeu. — Seu negócio termina hoje.

— O quê! — exclamou.

— Isso mesmo — ratificou Gilbert. — Você já ganhou bastante dinheiro para se aposentar. Caia fora. Eu ganhei dinheiro suficiente para comprar seu estoque — tornou a sorrir — e para restituir tudo o que você roubou. Há alguns dias que eu estou para lhe fazer esta proposta.

— E assim ficamos por esta noite, não é? — disse Wallis, com ar meditativo. — Meu caro amigo — acrescentou alegremente, — esta noite estou para dar o golpe mais maravilhoso de todos! Você acharia muito engraçado se soubesse quem vai ser a vítima.

— Não ando de muito bom humor ultimamente — respondeu Gilbert. — Quem é?

— Digo-lhe em outra ocasião — respondeu Wallis.

E caminhou para a porta, com as mãos nos bolsos. Deteve-se por um momento a admirar um enorme cofre, assobiando uma cançoneta.

— Não acha que é uma excelente idéia — perguntou, com o ar casual de um proprietário suburbano que exibisse uma nova estufa de pepinos, — esse cofre?

— Sem dúvida!

— O negócio é bom — tornou Wallis em tom melancólico. — Dá pena abandoná-lo depois de tanto esforço. Sabe como é, a gente pode não vender nem meia dúzia de cofres por ano para o tipo certo de pessoa, mas se a gente vende um só que seja... caramba, até que paga a pena! É muito simples — concluiu.

— Por falar nisso, você perdeu algum colar da espécie que se devolve pela polícia? Nada de desculpas!

O outro ergueu a mão.

— Compreendo que é um assunto de família. Sinto se lhe causei algum inconveniente.

Sua polidez irônica divertia Gilbert.

— Não era assunto de família — disse Standerton. — Eu não tinha a menor idéia de quem fosse a proprietária; só que alguém se mostrou muito descuidado... porque eu encontrei o colar fora do cofre. Deve ter caído enquanto alguém escondia coisas às pressas.

— Sou-lhe muitíssimo grato — disse Wallis. — Você removeu algo que poderia ter-se constituído numa grande tentação para o honesto Sr. Timmings.

Apanhou uma chave do bolso, manipulou a combinação do cofre e abriu-o. Nada havia em primeiro plano que pudesse sugerir ser aquilo o depósito do ladrão mais notório de Londres. Todo artigo em seu interior fora cuidadosamente embrulhado em pacotes individuais. Tornou a fechar a porta.

— Aí só está a metade da muamba — explicou.

— Só metade... Que quer dizer?

Gilbert estava genuinamente surpreso, e um leve sorriso escarninho desenhou-se nos lábios do outro.

— Eu tinha certeza de que isso iria desconcertá-lo — disse. — Isso aí é só a metade. Vou-lhe mostrar uma coisa. Já que sabe tanto, por que não ficar logo sabendo tudo?

Voltou para o escritório. Uma porta levava a outro compartimento. Destrancou-a, empurrou-a e passou, seguido de Gilbert. Era um pequeno gabinete, iluminado por uma clarabóia. Ao centro, havia algo semelhante a uma enorme gaiola. Na verdade, era uma grade de aço como as que costumam ser vendidas por firmas francesas para proteção de cofres.

— Uma belíssima gaiola — disse o Sr. Wallis.

Abriu o pequeno portão de aço e entrou; Gilbert atrás dele.

— Como conseguiu colocá-la aqui dentro? — perguntou Standerton.

— Veio desmontada. Acaba de ser montada para que um freguês a veja. A operação é simples; dois ou três mecânicos dão conta dela num só dia.

— Este é o seu outro departamento? — perguntou o outro secamente.

— Em certo sentido, sim — respondeu Wallis; — e vou mostrar-lhe por quê. Se você for até aquele canto e puxar para baixo a primeira barra vai ver algo talvez pela primeira vez na vida.

Gilbert estava a meio caminho da tal barra, quando compreende de súbito, que aquilo era uma armadilha. Voltou-se rápido, mas um revólver já estava apontado diretamente para o seu coração.

— Levante as mãos, Sr. Gilbert Standerton — disse George. — O senhor pode ter sido sincero quando falou em repartir tudo, mas estive pensando que seria melhor concluir o trabalho que tenho para esta noite antes de renunciar ao meu negócio. Como vê, é um caso de perfeita justiça. Seu tio...

— Meu tio! — exclamou Gilbert.

— Seu tio — repetiu George, fazendo uma reverência, — um velho cavalheiro admirável mas ranzinza, depositou num de nossos melhores cofres perto de um quarto de milhão de libras em pedras... os famosos diamantes de Standerton, os quais imagino que o senhor herdará algum dia. — Não acha que é um caso de perfeita justiça... — perguntou ele, enquanto se afastava, ainda com a arma apontada para o prisioneiro, — ...roubá-lo só um pouquinho? Talvez — prosseguiu com humor lúgubre — eu também tenha uma consciência e venha a restituir-lhe o que vou lhe roubar esta noite.

Bateu o portão da grade, fechou-o dando duas voltas à chave e caminhou em direção da porta que dava para o escritório.

— Ficará aqui quarenta e oito horas — esclareceu, — ao fim das quais será libertado; tem a minha palavra. Talvez isso lhe seja um transtorno, mas sempre temos de aturar transtornos nesta vida. Encomendo-o à Providência.

Wallis saiu, mas quinze minutos depois estava de volta.

Gilbert surpreendeu-se ao vê-lo trazer um grande bule de café, duas garrafas térmicas de um quarto de galão, novas em folha, e dois pacotes que depois veio a saber serem de sanduíches.

— Não quero matá-lo de fome — explicou George. — Ê melhor conservar quente o café. Vai ser uma longa espera, e como pode sentir frio, eu também lhe trouxe isto.

Voltou ao escritório e apanhou dois pesados sobretudos que passou através das grades.

— É uma atitude muito decente da sua parte — comentou Gilbert.

— Ora, nem por isso — tornou polidamente o Sr. Wallis.

Gilbert estava desarmado, e se tivesse alguma arma de nada lhe serviria.

Wallis não largara da pistola, nem mesmo ao passar a comida pela grade.

— Desejo-lhe muito boa noite. Se quiser mandar um bilhete à sua esposa dizendo que estará muito ocupado nas próximas horas, terei prazer em enviá-lo.

Ele passou pela grade uma folha de papel e uma caneta. Era uma boa idéia, e Gilbert apreciou-a.

Aquele homem, apesar de biltre, tinha melhores instintos do que muitos que jamais atravessaram no caminho da lei.

O outro rabiscou uma nota desculpando-se, dobrou a folha e colocou-a no envelope, colando-o antes de se dar conta de que seu captor talvez quisesse lê-la.

— Sinto muito — disse depois, — mas você pode abrir, a cola ainda não secou.

Wallis sacudiu a cabeça.

— Se me disser que não escreveu nada além do que lhe pedi, será suficiente para mim — disse.

Depois deixou Gilbert sozinho e com muita coisa em que pensar.

 

O FAZEDOR DE TESTAMENTOS

O General Sir John Standerton era homem capaz de odiar, e de temperamento muitíssimo irascível. Tinha seus motivos, pois passara a maior parte da vida na índia, país de encomenda para destruir até as melhores disposições. Era solteiro e, salvo por um pequeno exército de criados, vivia só. Sua casa de campo, que adquirira vinte anos antes, trocara de nome e agora era conhecida, de ponta a ponta do país, como A Residência. Ali Sir Standerton mantinha um estado quase feudal.

Seus inimigos diziam que ele conservava completo seu batalhão de criados só para ter sempre à mão alguém a quem amaldiçoar; mas isto, evidentemente, era despeito. Dizia-se, igualmente, que a cada ano uma nova firma de advogados passava a trabalhar para ele; e é certo que o General costumava mudar de bancos com extraordinária freqüência.

Leslie Frankfort tomava o café da manhã com seu irmão, certo dia, em sua pequena casa de Mayfair. Jack Frankfort era um jovem e promissor advogado, membro da firma que no momento servia a Sir John Standerton.

— Por falar nisto — disse Jack Frankfort, — esta tarde vou ver um velho amigo seu.

— Quem?

— O velho Standerton.

— Gilbert?

Jack Frankfort sorriu.

— Não; o terrível tio de Gilbert; estamos trabalhando para ele agora.

— Qual o objeto da visita?

— Um testamento, meu caro; vamos fazer um testamento.

— Quantos testamentos será que o velho já fez? — indagou Leslie, encafifado, sem esperar resposta. — Pobre Gilbert!

— Pobre por quê? — perguntou o outro, servindo-se de marmelada.

— Por uns dez minutos ele chegou a ser o herdeiro do tio.

Jack riu-se.

— Todo mundo vez por outra é herdeiro do Velho Standerton por dez minutos — disse. — Acho mesmo que nestes últimos vinte anos ele já testou sua fortuna a todos os hospitais, a todos os asilos de cães e de gatos, e a todas as instituições mais esquisitas de que já se teve notícia; e, hoje, vai fazer mais outro testamento.

— Mexa os pauzinhos em favor do Gilbert — disse Leslie com um sorriso.

— Não há chance — respondeu o outro — de mexer pauzinhos em favor de ninguém. O velho Tomlins, que foi o último a trabalhar para ele, disse que a maior dificuldade em fazer testamentos para o velhote é terminar um, antes que ele comece outro. Seja como for, ele está ansioso por fazer um testamento agora, e eu tenho de ir vê-lo. Vem comigo? Já conhece o velho?

— Não vou — respondeu o outro com ímpeto; — e conheço o velho muitíssimo bem, e ele a mim! Ele sabe que sou amigo de Gilbert. Certa vez passei quase dois dias em sua companhia. Pelo amor de Deus, não diga que você é meu irmão, ou ele arranjará outros advogados.

— Não costumo me vangloriar do nosso parentesco — disse Jack.

— Você sempre a dizer coisas agradáveis — disse Leslie com irritação. — Mas, para um advogado, isso deve ser natural.

Jack Frankfort viajou para Huntingdon aquela tarde em companhia de um homem muito cortês com o qual se viu conversando animadamente depois de dispensarem o incômodo das apresentações formais que tornam tão inacessíveis a maioria dos passageiros ingleses.

O referido cavalheiro evidentemente já estivera em toda parte do mundo e de fato conhecia muita gente conhecida de Jack. Cavaqueou com interesse durante uma hora sobre os lugares mais estranhos da terra, e quando o trem chegou à estaçãozinha a que se destinava Sir Frankfort, o outro também desceu.

— Que coincidência extraordinária — disse-lhe calorosamente. — Também fico aqui. Cidadezinha esquisita, não acha? Poder-se-ia dizer "esquisita", mas era também muito agradável, e contava com uma das mais confortáveis hospedarias do país.

Os dois viajantes deram consigo ocupando quartos contíguos.

Jack Frankfort esperava concluir o negócio antes do anoitecer e ainda voltar a Londres no mesmo dia, mas compreendeu logo que seria insensato contar com a expedição do velho.

Na verdade, não fazia quinze minutos que estava no hotel quando recebeu, da Residência, a notificação de que não poderia ver Sir John antes das dez daquela noite.

— Isto elimina a minha pretensão de voltar a Londres ainda hoje — queixou-se Jack aos seus botões.

Encontrou o companheiro de viagem à hora do jantar.

Embora não muito familiarizado com os hábitos de Sir John, ele sabia que uma das manias do velho era jantar tarde, e como não queria jejuar o resto do dia resolveu adiantar em trinta minutos o horário normal do jantar naquele hotelzinho.

Desculpou-se disso com a afável criatura que tinha diante de si enquanto comentavam a perfeição com que o frango fora tostado.

— Isso até me convém muitíssimo — disse o outro; — tenho muito que fazer nas redondezas. Sabe como é, — explicou, — sou proprietário de uma agência de cofres.

— Agência de cofres — repetiu o outro admirado. O cavalheiro confirmou.

— Parece um negócio singular, mas é muito prolixo — explicou. — Trabalhamos principalmente com cofres e casas-fortes novas e de segunda mão. Temos um grande estabelecimento em Londres... Mas não pretendo transgredir os limites da polidez — sorriu, — tentando vender-lhe o meu peixe.

Frankfort divertiu-se.

— Agência de cofres — repetiu; — é difícil imaginar que um negócio desses dê algum lucro.

— Sempre é difícil imaginar que qualquer ramo dé negócios dê lucros — ponderou o outro. — Os negócios que realmente fascinam são aqueles em que a inteligência se transforma em dinheiro sonante em caixa.

— Quais, por exemplo?

— O dos advogados — sorriu o outro ao dizer. — Oh sim, sei que é advogado, o senhor tem bem o tipo; e eu o saberia mesmo que não visse sua pasta de despachos nem conhecesse seu nome.

Jack Frankfort deu uma gargalhada.

— O senhor é bastante arguto; imagino se não será advogado o senhor mesmo — sugeriu ele.

— Está fazendo um elogio a si próprio — tornou o outro.

Depois, em High Street, quando chamava um coche que o levasse à Residência, Jack notou um grande caminhão de carga ostentando uma simples inscrição do lado: "Companhia de Cofres de St. Bride".

Viu também seu companheiro do jantar falando com gravidade a um chofer de barbas negras.

Pouco depois o caminhão arrastou-se pelas estreitas ruas da cidade, tomando por fim a Estrada de Londres.

Jack Frankfort não teve tempo de especular acerca das oportunidades que aquela cidadezinha pudesse oferecer a um vendedor de cofres, pois dali a cinco minutos estava no gabinete de Sir John Standerton.

O velho General era do tipo amiúde caricaturado nos periódicos humoristas. Robusto e vermelho de rosto, usava ademais suíças brancas, aparadas rente, que terminavam de sopetão logo abaixo das orelhas, daí convergindo num bigode feroz de igual cor que lhe cruzava a face. Era calvo, exceto por uma rala fímbria de cabelo branco que lhe orlava as têmporas, e sua conversa poderia ser descrita como uma sucessão de explosões.

Quando o rapaz adentrou o gabinete, debaixo daquelas ferozes sobrancelhas o olhar arguto do velho colheu-o e examinou-o de alto a baixo.

Estava acostumado com advogados. Já tomara a seu serviço toda variedade deles, e os dividia em duas classes distintas: os trapaceiros e os imbecis. Não havia meios--termos com esse homem e, quando viu que Jack Frankfort era um moço de aparência sagaz, não teve dúvida em classificá-lo na primeira categoria. Então, coagiu-o a sentar-se.

— Quero falar-lhe a respeito do meu testamento — começou ele. — Tenho pensado seriamente nestes últimos dias em alterar a distribuição de meus bens.

Essa era a fórmula invariável. Destinava-se a fazer supor que chegara à presente decisão após longas e maduras considerações, e bem assim que achava a elaboração de testamentos coisa muitíssimo séria que a gente talvez só devesse fazer uma ou duas vezes na vida.

Jack fez que compreendia.

— Perfeito, General — disse ele; — o senhor tem um rascunho?

— Não tenho rascunho nenhum — rosnou o velhote. — O que tenho é um testamento já preparado; aqui tem uma cópia.

Passou-a para o advogado.

— Não sei se já viu isso aí.

— Devo ter uma cópia em minha pasta — informou Jack.

— Que negócio é esse de andar carregando o meu testamento para cima e para baixo nessa mala? — vociferou o homem.

— Foi o único lugar em que pensei — respondeu o rapaz calmamente. — O senhor não gostaria que eu o carregasse no bolso das calças, não é?

O General ficou escandalizado com tal réplica.

— Não seja impertinente, rapaz — berrou ele.

Não era um bom começo; mas Jack também sabia que todos os outros métodos já tinham sido tentados, desde o incensatório até o arrogante, sem nenhum êxito apreciável; e o fim de todas as tentativas, no que dizia respeito aos advogados, era sempre o encerramento de toda e qualquer associação com os bens daquele homem.

O velho até que seria um cliente bastante vantajoso, se tão-somente pudesse ser conservado. Mas nenhum advogado humano ainda descobrira um meio de retê-lo para si.

— Muito que bem — suspirou, por fim, o General. — Agora, tenha a bondade de tomar nota de tudo o que eu lhe disser, depois faça um rascunho de tudo. Em primeiro lugar, eu revogo todos os meus testamentos anteriores.

Jack, de lápis e papel em punho, sacudiu a cabeça e anotou o fato extraordinário.

— Em segundo lugar, quero que deixe absolutamente claro que nenhum penny do meu dinheiro irá para o asilo de cães do Dr. Sundle. Ele foi insolente comigo, e, seja como for, detesto cachorros. Nenhum penny do meu dinheiro irá também para nenhum hospital ou instituição de caridade; nem um níquel!

O velho pecador saboreava com prazer as próprias palavras.

— Pretendia deixar uma grande soma para um fundo hospitalar — explicou, — mas depois do comportamento desse governo infernal...

Jack poderia ter indagado de que modo o velho esperava desforrar-se do governo ofensor negando apoio a todas as instituições destinadas a amparar os pobres, mas, prudentemente, conservou para si o comentário.

— Nada para as instituições de caridade; nem um níquel!

O velho falava lenta, porém enfaticamente, esmurrando a mesa palavra sim palavra não.

— Cem libras para a Associação Nacional Pró Temperança, se bem que essa seja a meu ver uma instituição asnática. Cem libras para o Lar do Soldado de Aldershot, e mil se o tornarem imparcial em relação às religiões. — Riu-se e acrescentou: — Esse Lar do Soldado permanecerá fiel à Igreja da Inglaterra até o dia do Juízo, de modo que assim poupa-se dinheiro! — Clareou a garganta e prosseguiu — nada absolutamente para essa porcaria desse hospital daqui; ...nem mesmo nas entrelinhas! Aquele médico estúpido e maníaco (esqueci o nome daquele nojento) encabeçou uma agitação para abrir uma via pública no meu quintal, veja só! Mas deixe estar que agora eu é que vou aviá-lo — disse com perversidade.

E esteve por meia hora o tempo que o velhote levou para especificar toda gente que não haveria de beneficiar-se de seu testamento, e a soma total do que até ali relutantemente legara não excedia ainda a mil libras!

Ao terminar, escancarou os olhos esperançosos para o jovem advogado, com uma rápida faísca de humor a cintilar neles.

— Acho que já dispus de todo mundo — disse, — sem dispor de coisa alguma... Conhece meu sobrinho? — perguntou depois, de sopetão.

— Conheço um amigo dele.

— Por acaso é parente daquele bobo-alegre chamado Leslie Frankfort? — trovejou.

— Sou irmão dele — esclareceu o outro com calma.

— Hum — murmurou o velho, — bem que reconheci a feição. Já viu alguma vez Gilbert Standerton?

— Encontrei-o uma ou duas vezes — disse cautelosamente Jack Frankfort; só o conheço do modo como o senhor também deve conhecer muita gente a quem só disse "como vai?" etc. e tal.

— Não conheço ninguém a quem jamais tenha dito "como vai etc. e tal" — protestou o velho bufando. — Que espécie de criatura acha que ele é? — indagou, depois de uma pausa.

A recomendação de Leslie para "mexer os pauzinhos em favor de Gilbert" veio-lhe à lembrança.

— Acho que é alguém muito decente — arriscou Jack; — apesar de um tanto reservado e áspero.

O velhote espetou-lhe os olhos irados.

— Áspero, o meu sobrinho? — perguntou ofegante. — Claro que é áspero. Está pensando que um Standerton anda por aí alisando os outros!? Não há em nossa família nada no estilo de Tommy, Dick ou Harry, e graças a Deus! Eu próprio sou o homem mais áspero que o senhor já encontrou na vida.

"Nisso eu acredito perfeitamente", pensou Jack sem dar voz ao pensamento.

Resolveu prosseguir o assunto à sua própria maneira astuciosa.

— Acho — disse afetando inocência — que ele é da espécie de pessoa a quem seria puro desperdício legar alguma coisa.

— E por quê? — perguntou o General ameaçando nova explosão.

Jack encolheu os ombros.

— Bom, ele não quer saber de aparecer, não luta por conservar algum lugar em especial na Sociedade de Londres. Para falar a verdade, ele trata a Sociedade como se fosse muito superior a ela.

— E é! E é! — vociferou o velho. Nós todos somos superiores a essa Sociedade. Está pensando que dou a mínima importância a qualquer pessoa deste país? Acha que me impressiono com o meu lorde das altas torres ou com a minha lady das granjas e o resto desses aristocratas adventícios, desses novos-ricos de uma figa que enxameiam nesse país feito ... feito... ratos? Não senhor! E aposto que este meu sobrinho é da mesmíssima opinião! A Sociedade, como está constituída hoje em dia, não vale mesmo um pinhão! — E estalou os dedos diante do rosto impassível de Jack. — Isto decide o caso — disse em tom peremptório. Estendeu um dedo para as anotações que o outro vinha fazendo e sentenciou: — Deixo o resto de meus bens a Gilbert Standerton. Tome nota disto.

Por duas vezes ele pronunciara aquelas mesmas palavras, e por duas vezes mudara de parecer. Bem podia ser que mudasse de novo. Se a sua reputação se justificasse, pela manhã tudo seria diferente.

— Fique até amanhã — disse ao despedir-se. — Traga-me um esboço logo cedo.

— A que horas? — perguntou Jack polidamente.

— Na hora do café — trovejou o homem.

— A que horas o senhor costuma tomar café?

— À mesma hora que todo ser humano civilizado — replicou o General; — vinte e cinco pra a uma. Ora essa; a que horas você toma o seu café, em nome dos céus?

— Vinte pra a uma — respondeu Jack, docemente; e sentiu-se satisfeito consigo mesmo durante todo o percurso de volta ao hotel.

Não viu o companheiro de trem naquela noite, mas encontrou-o por ocasião do café, na manhã seguinte, o qual, diga-se de passagem, foi servido no horário cristão das oito e meia.

Algo mudara o caráter tranqüilo e jovial do outro. Estava sombrio e silencioso; parecia aborrecido, quase doente, pensou Jack. Na certa havia más épocas para o comércio de cofres como as havia para qualquer outra espécie de negócios.

Evitou, pois, mencionar assuntos de negócios, e mal chegaram a trocar meia dúzia de frases à mesa.

Tornando à Residência, Jack Frankfort verificou surpreso que a noite não mudara a opinião do velho. Suas disposições da véspera ainda estavam de pé e mesmo pareciam mais enfáticas. Na verdade, teve a maior dificuldade em evitar que o velhote cancelasse um minguado dote de cem libras destinado, a um dispensário do norte.

— O dinheiro todo deveria permanecer em família — ponderou laconicamente o General; — é um absurdo dissipar pequenas centenas como esta; isto pode desfalcar um homem. Não creio que ele conserve o dinheiro por muitos anos, mas "previsão", cavalheiro, é o lema da família.

Tanto melhor para Gilbert que o advogado insistisse na restauração do dote àquele dispensário. Por fim, o General cortou fora todo outro legado que fizera no último testamento e, no documento mais curto que assinou na vida, deixou absolutamente todas as suas propriedades, assim móveis como imóveis, ao "meu caro sobrinho".

— Ele se casou, não foi? — perguntou depois.

— Acho que sim — respondeu Jack Frankfort.

— Você acha! Que me interessa o que acha?! — explodiu o velho. — Você é o meu advogado, e sua obrigação é saber todas as coisas. Vá apurar se ele se casou, quem é a esposa dele, de onde ela veio, e faça-os virem aqui jantar.

— Quando? — quis o advogado saber, não cabendo em si de surpresa.

— Hoje à noite — impôs o velhote. — Uma pessoa de Yorkshire virá me visitar, ...o meu médico, .. .e teremos uma bela reunião... Ela é bonita?

— Acho que sim.

Jack hesitava, pois na verdade ainda não conhecia Edith. Sabia muito pouco sobre Gilbert Standerton.

— Se for bonita e se for uma dama — disse compassadamente o velho general — também lhe deixarei algo, em separado.

O coração de Jack quase parou. Santa mãe de Deus, não significaria aquilo um outro testamento? Fosse como fosse, os telegramas foram despachados.

Edith, ao receber o seu, leu-o admirada.

O de Gilbert permaneceu sobre a mesa do vestíbulo, pois ele não voltara para casa na noite anterior, e ainda estava ausente.

Os olhos vermelhos de chorar, da moça, davam testemunho de seu interesse e preocupação pelas atividades do marido.

 

OS DIAMANTES DE STANDERTON

Edith Standerton fez rapidamente os preparativos para a viagem. Levaria a criada a Huntingdon, iriam mesmo sem Gilbert. Era embaraçoso ir só; mas ela se impusera uma tarefa, e se podia ajudar o marido por efeito de comparecer ao jantar de seu irritável tio, então, sim senhor, ela o faria.

Juntou seus objetos pessoais e tomou o trem das quatro com destino à cidade de Tinley.

O velho concedeu-lhe a honra excepcional de esperá-la na estação.

— Quede o Gilbert? — perguntou, quando acabaram as apresentações.

— Foi chamado inesperadamente a sair da cidade — explicou ela. — Vai ficar muito transtornado quando souber.

— Duvido — tornou o General, meio lúgubre. — É preciso muita coisa para transtornar o Gilbert... muito mais, decerto, do que uma oportunidade de reconciliar-se com um velho rabugento. Para ser franco — prosseguiu ele, — não há necessidade de nenhuma reconciliação; mas sempre acho que qualquer um que eu tenha alguma vez cortado do meu testamento me considera daí por diante um inimigo mortal.

— Então, por favor, não me inclua no seu testamento. Ela sorria.

— Não estou bem certo ainda — disse o velho, e acrescentou galantemente: — embora ache que a Natureza já lhe foi generosa o bastante para permitir-lhe dispensar dons mundanos como o de dinheiro!

A isso ela respondeu com uma graciosa careta.

O velho gostou dela e achou-a uma companheira encantadora. Edith Standerton aplicava-se com muito empenho à tarefa de agradá-lo. Tinha um estilo de tratar pessoas mais velhas que ela, de tal modo extraordinário, que as levava a sentirem-se jovens outra vez. Não acho outra frase que melhor exprima a idéia. Havia nela um encanto capaz de fascinar aquele velhote obstinado.

Edith ignorava a causa da mudança da fortuna do marido. Conhecia bem pouco sobre ele, afinal; mas estava cansada de saber que por esta ou aquela razão ele fora deserdado, não, porém, por ter cometido alguma falta. Mal sabia ela que isto fora o resultado de um simples capricho do velho.

— Você terá de voltar e trazer o Gilbert — disse o General, antes de se dispersarem e irem vestir-se para o jantar. — Terei prazer em hospedar os dois.

Felizmente foi-lhe poupado o embaraço de responder, pois o General logo emendou, saltando da cadeira:

— Já sei o que você gostaria de ver; está querendo ver os diamantes de Standerton, não é? Pois vai vê-los.

Ela não tinha o menor desejo de ver os tais diamantes, pois, na verdade, nem sabia que existiam; mas não lhe desagradava a idéia de pôr os olhos em cima deles; afinal, era mulher; e nada avessa a jóias, mesmo que não estivesse destinada a usá-las.

O velho a arrastou, escada acima, para a biblioteca, e Jack Frankfort os seguiu.

— Ali estão — disse o velho, todo cheio de si. — Comprei este cofre de um homem que me pediu por ele, sessenta guinéus... um desgraçado dum viajante, um vigarista dos infernos!... Paguei-lhe trinta... Que acha dele?

— Muito bonito — disse Jack. Não conseguiu pensar em nada mais adequado para dizer.

O velho escancarou os olhos furiosos para cima dele.

— Bonito! — vociferou. — E para que hei de querer coisas bonitas na minha biblioteca?

Colheu do bolso um molho de chaves e, bufando, fez girar a porta do cofre; abriu uma gaveta e exumou dela um grande estojo revestido de marroquim.

— Ei-los! — disse orgulhoso; e na verdade podia orgulhar-se daquela bela coleção.

Com todo o seu amor natural por coisas belas, Edith manuseou com ar muito sério as jóias suntuosas. O engaste era antiquado, mas ocorre que era justamente o antiquado o que andava em moda na ocasião. As pedras coruscavam e reluziam, cada faceta a despedir chispas verdes, azuis e róseas.

Até mesmo Jack Frankfort, pouco dado a jóias, ficou fascinado ante aquela visão.

— Caramba, senhor — comentou ele; — aí há perto de cem mil libras em pedras!

— Há mais — disse o velho. — Está aí, também, um colar de pérolas — e puxou outra gaveta; — está vendo? Há cerca de duzentas mil libras em jóias nesse cofre.

— Num cofre de trinta guinéus! — disse Jack imprudentemente.

O velho voltou-se para ele, num giro lento e silencioso.

— Num cofre de sessenta guinéus — corrigiu violentamente. — Já não disse que pechinchei? Queira perdoar, minha querida. — Riu-se entre dentes daquele pensamento, recolocou as jóias no lugar e tornou a trancar o cofre. — Sessenta guinéus era o que o danado queria. Foi chegando aqui com todas as suas refinadas maneiras londrinas; sobrecasaca, cartola, botas sob medida e tudo mais; minha nossa! É escandaloso o jeito de esse povo se fantasiar. Pelos ares que se dava é capaz que era cavalheiro.

Jack deu mais uma olhada no cofre. Tinha alguma experiência em matéria de valores comerciais.

— Não entendo como foi que ele vendeu — disse. — Esse cofre vale duzentas libras.

— Que foi que disse?!

O velho general voltou-se, atônito, para o advogado.

Jack confirmou.

— Tenho um em meu escritório, agora me ocorreu isso — disse ele. — Custou duzentas e vinte libras, e é da mesma marca.

— Ele só me pediu sessenta guinéus!

— É estranho. Não se incomoda de abri-lo de novo? Eu gostaria de dar uma espiada na fechadura.

De bom grado o velho rodou as chaves e puxou a pesada porta. Jack examinou os quadrados de aço das fechaduras: estavam perfeitos.

— Não consigo entender por que ele o ofereceu por sessenta guinéus. E certamente o senhor fez um negócio da China comprando-o por trinta, senhor.

— Acho que sim — conveio o General desvanecido. — Por falar nisso, estou esperando um homem para o jantar desta noite — prosseguiu ele enquanto o seguiam de volta para a saia de estar; — é um médico de Yorkshire... Barclay-Seymour. Conhecem, por acaso?

Jack não conhecia, Edith porém disse:

— Ah, sim; é um velho amigo meu.

— Na verdade, é um imbecil — disse o General lançando mão do seu método simples de classificar os outros.

Edith riu.

— O senhor me disse ontem que só existem duas classes de pessoas, General: os trapaceiros e os imbecis. Estou pensando — prosseguiu — em que classe o senhor me coloca.

Ante a pergunta, a testa do velhote encheu-se de pregas. Ele considerou aquele belo e jovem palmo de rosto, e respondeu bem-humorado:

— Tenho de inventar uma nova classe para você. Não; pensando melhor, você mesma terá de incluir-se numa das duas classes. Entretanto, como a maioria das mulheres são tolas...

— Ora essa! — protestou Edith, rindo-se.

— E são mesmo — assegurou ele. — Olhe para mim. Se as mulheres não fossem umas bobas, por acaso eu não teria uma esposa? Se alguma sujeita com tutano tivesse dado em cima de mim e me trabalhado com a necessária determinação, eu agora não seria um solteirão em vias de deixar todo o meu dinheiro para pessoas que pouco estão ligando

— e, neste ponto, ele depressa substituiu a frase áspera por outra mais branda — se eu viver ou morrer. ... Seu marido conhece o Doutor, por falar nisso?

A moça sacudiu a cabeça.

— Acho que não — respondeu. — Certa vez eles quase se encontraram num jantar, mas Gilbert tinha um compromisso e...

— Mas o Gilbert o conhece — insistiu o velho. — Falei--lhe muitas vezes dele, o qual, diga-se de passagem, talvez não seja tão imbecil quanto a maioria dos médicos. Eu antes costumava ser mais entusiástico a seu respeito — admitiu,

— e receio que andei falando dele ao Gilbert mais do que justificaria a capacidade ou o gênio do velho Barclay. Ele nunca lhe falou nisso?

A moça meneou negativamente a cabeça.

— Que ingrato desgraçado! — rosnou o velho general inconseqüentemente.

Nesse ponto, um de seus inumeráveis criados adentrou a sala trazendo uma bandeja com um telegrama.

— Epa! Que negócio é esse? — interpelou-o Sir John, fixando os óculos na ponta do nariz e carranqueando para o recém-chegado. — O que é?

— Telegrama, Sir John — respondeu o homem.

— Estou vendo que é um telegrama, seu asno! Quando chegou?

— Há alguns minutos, senhor.

— Quem trouxe?

— O rapaz do telégrafo — ia sempre respondendo o imperturbável servidor.

— Por que não disse logo? — concluiu o velho Sir John Standerton com uma expressão de alívio. Edith, de seu lado, fez tudo o que pôde para evitar o ataque de riso que esteve para ter diante daquela cena.

O velho abriu o telegrama, desdobrou-o, leu-o morosamente e fez uma careta. Então tornou a ler.

— Ora essa! Que significa isto, afinal? — perguntou depois de passá-lo para Edith.

Edith leu:

"Tire do cofre jóias Standerton e deposite-as sem falta no banco ainda esta noite. Se tarde demais para banco, ponha guarda armada para vigiá-las."

Estava assinado "Gilbert Standerton".

 

O CASO QUE O DOUTOR CONTOU

O General tornou a ler aquele telegrama. Apesar de seu temperamento extravagante, era um homem arguto e inteligente.

— Que significa isto? — perguntou. — Onde está o Gilbert? E de onde ele telegrafou?

Tornou a inspecionar o telegrama. Fora despachado de Londres, às 6:35 da tarde.

O General costumava realmente jantar a desoras, pois já passava das nove quando o gongo o anunciou, e Edith Standerton desceu faminta de seu quarto.

Estava aborrecida; não conseguia entender a referência telegráfica às jóias. Por que Gilbert mandara aquela mensagem? Se soubesse mais acerca das circunstâncias do que ocorrera a ele na noite anterior, mais ainda a admiraria o fato de Gilbert ter afinal podido mandar aquela mensagem.

O General levava a sério a advertência, mas não tanto que se dispusesse a transferir as jóias para outro lugar. Na verdade, a aquisição do cofre fora necessária, dado o fato de que, além da casa-forte, que só era forte num sentido etimológico, aquela casa não oferecia nenhuma segurança para qualquer coisa de valor.

Fez nova inspeção das jóias, tornou a fechar a porta do cofre e deixou um criado a postos na biblioteca com instruções estritas de não sair dali até segunda ordem.

Edith ao descer verificou que chegara outro convidado, alguém que a saudou com um sorriso animado e familiar.

— Como está, Doutor? — disse ela. — Não faz muito que nos encontramos em casa de mamãe. Lembra-se de mim?

— Lembro-me perfeitamente — disse o Dr. Barclay-Seymour do alto da sua importância.

Era um homem comprido e magro, com barbas grisalhas e fronte alta.

De maneiras um tanto distraídas, dava a impressão de que sempre tinha matérias de maior peso em que pensar do que aquilo que lhe diziam os interlocutores. Era, talvez, um dos médicos mais notáveis do interior. Emergiu de sua carapaça apenas o bastante para reconhecê-la e lembrar-se da mãe dela. A Sra. Cathcart fora uma grande amiga dos Barclays. Praticamente cresceram juntas.

— Sua mãe é uma mulher maravilhosíssima — disse ele, enquanto a conduzia à sala de jantar; — uma mulher notável.

Edith esteve a ponto de perguntar-lhe por quê. Teria sido imperdoável, mas nunca uma pergunta tanto comichou os lábios trêmulos de alguém, como aquela os seus.

Comeram durante todo o jantar, o qual se tomara um tanto desagradável pelo fato de que o General Sir John Standerton estava visivelmente nervoso. Por duas vezes durante o curso da refeição enviou oficialmente à biblioteca um dos três criados que serviam à mesa, com a missão expressa de verificar se as ordens que dera estavam sendo cumpridas à risca. E por duas vezes soube que nada de extraordinário ainda tinha ocorrido.

— Não sei o que fazer a respeito dessas jóias. Espero que o Gilbert não esteja bancando o sabido — disse ele.

Voltou-se para Edith com ar brando, porém intimidatório.

— Será que ele deu para fazer gracinhas ultimamente?

Ela sorriu.

— Gracinhas é coisa que ele realmente não faz — respondeu ela.

— Não é esquisito que tenha mandado aquela mensagem? — prosseguiu, irritado, o General. — Nem sei o que fazer. Poderia chamar um guarda, mas a polícia daqui é de uma burrice estarrecedora. Acho que vou mandar pôr a minha cama na biblioteca e dormir lá mesmo esta noite.

Seu rosto se iluminou a esse pensamento.

Atingira o estágio na vida em que dormir em qualquer outro aposento que não aquele a que estava acostumado representava, por si só, uma forma de heroísmo. Após o jantar, todos se dirigiram para a outra sala.

O General estava impaciente, e embora Edith tocasse e cantasse uma canção de amor francesa, sem dar mostras de agitação, ela estava mas era tão nervosa quanto ele.

— Vou dizer o que faremos — disse de súbito Sir John: — vamos todos para a biblioteca. É um lugar muito bom se Edith não se importar com o fumo.

Era uma excelente idéia, e Edith acatou-a com prazer. Ela era a única mulher entre eles, e observou tal fato enquanto subia as escadas com Sir John.

O velho despediu um olhar malicioso em torno.

— Sempre achei que um médico é a melhor dama de companhia para qualquer mulher — disse ele reprimindo a custo uma gargalhada.

Encontrou depois o complemento da piada, e discorreu em altos brados sobre velhas mulheres de todas as profissões, no que logo foi interrompido pela chegada do médico e de Jack Frankfort.

A biblioteca estava num amplo salão e distinguia-se principalmente pêlo fato de não revelar o menor indício do gosto literário do velho, salvo por alguns volumes da Enciclopédia Britânica e uma prateleira inteiramente forrada com os volumes do Guia Turfístico de Ruff. No mais, era um salão agradável, revestido de carvalho e com janelas maineladas de fartas ombreiras. Essas, como explicava Sir John, davam para um terraço; donde a sua apreensão.

— Corra a cortina, William — ordenou ele a um criado, — depois dê o fora daqui. Mande servir o café aqui mesmo.

O homem fechou a pesada cortina de veludo, arranjou assento para a moça e retirou-se.

— Com licença — disse Sir John.

Caminhou até o cofre e tornou a abri-lo. Fez nova inspeção no estojo das jóias. Nada tinha acontecido.

— Ah — suspirou; e aquilo era um sinal de grande alívio.

— Esse raio desse telegrama do Gilbert está me dando nos nervos — confessou com irritação. — Por que diabo ele telegrafou? Ele por acaso é da espécie de pessoa capaz de enviar telegramas só para não ter o trabalho de lamber envelopes?

Edith sacudiu a cabeça.

— Eu sei tanto quanto o senhor — disse, — mas pode estar certo de que ele não é um alarmista.

— E como estão se dando vocês dois? — perguntou, de passagem, o velho.

A moça enrubesceu ligeiramente.

— Muito bem — respondeu, e procurou mudar de assunto. Mas era um fato consabido que nenhuma criatura do mundo jamais fora capaz de desviar Sir John de sua linha inquisitorial quando se obstinava em fazer perguntas.

— São felizes ou coisa assim? — reinquiriu ele.

A outra confirmou, com os olhos fixos na parede que ficava à retaguarda do velho.

— Quer dizer que o ama, hem?

Edith ficou embaraçadíssima, e os outros dois homens já não o estavam menos; mas Sir John não era o único a imaginar que os médicos tivessem pouco senso de decência, e os advogados nenhum senso de propriedade. O café veio salvar a todos e a moça rendeu graças aos céus por isso.

— Vou mantê-la aqui até Gilbert vir buscá-la — irrompeu o velhote às súbitas. — Imagino que saiba que você é a primeira pessoa do seu sexo que já tolerei em minha casa.

Ela riu.

— No duro — tornou ele, a sério. — Você sabe que não me dou muito com mulheres. Não há meio de elas compreenderem que, embora eu seja um sujeito irritável, sou inofensivo; e o fato é que sou mesmo um velho irritável — confessou. — Não é que elas sejam impertinentes ou rudes, é sua mansidão, sua longanimidade que eu não agüento. Quando uma dama me manda para o inferno, então eu sei muito bem onde é que estou. Gosto da verdade nua, sem rebuços. Nada de dourar a pílula, comigo.

O Doutor deu uma risada.

— O senhor é diferente da maioria das pessoas, Sir John. Conheço homens muito suscetíveis à verdade brutal.

— Bobos deles! — disse Sir John.

— Não sei não — disse o outro reflexivamente. — Compreendo que um homem não deseje que se lhe lance em rosto um fato amargo sob a forma de uma franca e honesta tijolada, muito embora sempre haja uma vantagem em conhecer a verdade; às vezes ela nos poupa uma porção de aborrecimentos desnecessários — pontificou o médico com certa tristeza. Parecia ter desencadeado em seu próprio espírito uma corrente de pensamentos desagradáveis. — Vou dar-lhe um exemplo extraordinário — prosseguiu, à sua maneira estudada.

— Que foi isso? — interrompeu-o de súbito o General. — Acho que foi um ruído no vestíbulo — disse Edith.

— Pensei que fosse na janela — rosnou o velho, receoso de que lhe notassem o sobressalto. — Prossiga com o seu caso, Doutor.

— Alguns meses atrás — continuou o Dr. Seymour recordando-se — um rapaz veio até mim. Era um cavalheiro, e por certo não cidadão de Leeds; seja como for, eu não o conhecia. Depois descobri que era londrino. Tinha um pequeno problema com os dentes, um molar pontiagudo, coisa bastante simples, que lhe fizera uma pequena incisão no interior da boca. Aquilo o preocupava sobremaneira, e mais ainda quando verificou que o pequeno corte não cicatrizava. Como a maioria de nós, ele tinha um medo terrível de câncer. — Neste ponto baixou o tom, como os médicos geralmente fazem ao falar dessa terrível doença. — Não quis ir ao seu próprio médico; e para ser franco, acho que ele não tinha nenhum. Examinei-o. Não me pareceu que houvesse nada sério com ele, mas mesmo assim colhi uma pequena amostra da membrana para fazer o exame microscópico.

A moça teve um calafrio.

— Desculpe-me — apressou-se a dizer o Doutor, — essa é a parte pior do caso, ... Entretanto — prosseguiu ele, — prometi enviar-lhe o resultado dos exames, e para isso pedi--lhe o endereço. Ele, porém, recusou-se a dizer onde morava. Estava nervosíssimo. "Sei que sou moralmente covarde", ele disse, "mas não quero ouvir a verdade em linguagem crua; se tenho o que receio, gostaria de receber a notícia da maneira menos áspera possível".

— E o que é que ele tinha? — perguntou Sir John não se contendo de curiosidade.

O Doutor deu um longo suspiro e prosseguiu, sem responder:

— Parece-me que ele era uma espécie de músico — disse, e Edith endireitou-se na cadeira enclavinhando as mãos; tinha a expressão rígida e os olhos fixos no médico — quero dizer, era um entusiasta da música, e o meio que arranjou para receber a notícia do que pudesse ter era extraordinário, jamais ouvi nada parecido. Ele me deu dois cartões e um envelope sobrescritado, endereçados a um músico de Londres, a quem patrocinava.

Nesse ponto, tudo passou a oscilar aos olhos de Edith, mas ela se conteve. Seu rosto estava pálido, as mãos presas à cadeira como garras.

— Os dois cartões estavam como eu dizia — prosseguiu o médico, — endereçados a um velho amigo dele, e eram idênticos, exceto por uma coisa. Um deles mandava o músico ir a tal e tal lugar e tocar a "Melodia em Fá", e o outro dava as mesmas instruções, só que mandava tocar a "Canção da Primavera". E aqui é que entra a tragédia. — Ergueu um dedo e continuou: — O paciente me pediu que enviasse o cartão da "Melodia em Fá" no caso de ficar comprovado que tivesse câncer.

Houve então um longo silêncio, apenas quebrado pelo som da respiração apressada da moça.

— E, e...? — sussurrou ela.

— E — o Doutor lançou-lhe um olhar distraído — não é que eu enviei o cartão errado? — disse ele. — Enviei-o, e rasguei o outro, antes de perceber meu erro.

— Então quer dizer que ele não tem câncer? — exclamou Edith.

— Não, e eu não sei como encontrá-lo — disse Barclay--Seymour. — Foi uma tragédia em muitos sentidos. Acho que ele estava para se casar, pois disse-me: "Se for certo que eu tenho esse mal, e se estiver casado, isto quer dizer que deixarei minha esposa na pobreza", e fez uma pergunta curiosa — acrescentou o Doutor. — Perguntou-me: "O senhor não acha que uma pessoa condenada a morrer pode, justificadamente, tomar qualquer medida, cometer qualquer crime visando à proteção dos entes queridos que deixará no mundo?".

— Compreendo — disse Edith.

A voz saíra-lhe cava, nem parecia sua.

— Que foi isso? — gritou de novo o General, pondo-se de pé num salto.

Dessa vez não houve dúvida. Jack Frankfort correu para a janela e puxou a cortina. Lá estava Gilbert Standerton, pálido como um defunto, os olhos pendurados no ar, as mãos trepidando na boca.

— O cartão errado! — disse ele. — Deus do céu!

 

O GUIA BRADSHAW

Um mês depois, Gilbert Standerton chegou do Ministério dos Negócios Exteriores à sua pequena casa em St. John's Wood.

— Há um homem que quer vê-lo, Gilbert — disse-lhe a mulher.

— Deve ser o gerente do banco.

E cumprimentou o homem alto que se ergueu para saudá-lo com um sorriso alegre.

— Agora, Sr. Brown — disse ele, — tenho de explicar--lhe exatamente o que eu quero que faça. Há um homem na América, já está lá faz uma semana ou duas, a quem eu devo uma grande soma de dinheiro: oitenta mil libras, para ser exato; quero que o senhor veja se tenho saldo para liquidar essa dívida.

— Tem sim, Sr. Standerton — respondeu o gerente; — mesmo sem vender nenhuma ação.

— Ótimo. Vai encontrar todos os detalhes aqui — disse Gilbert, e tirou do bolso uma folha de papel dobrada. — Ê na verdade um crédito, no sentido de que será transferido a dois homens. Thomas Black e George Smith. Talvez eles ainda o subdividam, porque acho — sorriu ele — que eles têm outros sócios interessados.

— Ainda não o cumprimentei, Sr. Standerton — disse depois o gerente, — pelo maravilhoso serviço que prestou à Cidade. Dizem que graças ao senhor todo penny furtado pela famosa quadrilha de Wallis foi recuperado. Estive lendo a respeito num jornal ainda outro dia. . . Foi mesmo uma sorte haver um alarma contra incêndios próximo do quartel general deles.

— Felizmente fui encontrado antes que o fogo alcançasse a Companhia de Cofres — disse Gilbert. — Por sorte, aquele bombeiro me viu pela clarabóia. O que tornou as coisas bem mais fáceis; mas, mesmo assim, ainda levaram algum tempo para me tirar dali, como o senhor deve ter lido.

— Já tinha visto esse Wallis antes? — perguntou o outro.

— Os jornais não disseram isso? — caçoou Gilbert com um sorriso sem muita convicção.

— Diziam que de algum modo o senhor sabia que estava para haver um assalto na residência de seu tio. que foi para lá e deu com Wallis debaixo da janela da biblioteca, ou no parapeito, não sei bem...

— Foi no terraço — esclareceu Gilbert serenamente.

— .. .e que ele fugiu ao vê-lo.

— Não foi bem assim — disse Gilbert; — digamos que eu o persuadi a ir embora. Mas eu não sabia se ele já tinha apanhado as jóias, e então pulei a janela sem imaginar que havia alguém na biblioteca. Sabe como é, as cortinas estavam fechadas, e, como eram grossas, não se podia ver luz por elas. Enquanto eu entrei, Wallis escapou; foi só isso.

Gilbert ainda fez uma ou duas sugestões com respeito à transferência do dinheiro, ao fim das quais conduziu o gerente até a porta; a seguir dirigiu-se para a sala em que estava Edith.

Ela o recebeu com um sorriso.

— Está diferente o Ministério? — perguntou-lhe.

— Parece muito diferente, depois de toda essa aventura. Ele sorrira ao responder.

— Nunca pensei que Sir John tivesse influência bastante para reintegrá-lo no cargo.

— Acho que ele tem mais influência do que você imagina — disse Gilbert; — mas também houve outros fatores que ajudaram. Sabe como é, eu andei prestando uns servicinhos ao Ministério durante a minha carreira de crimes, e eles ficaram muito agradecidos.

Ela o fitou, expectante.

— E agora? Vamos recomeçar tudo de onde paramos? — perguntou.

— Onde foi que paramos mesmo? — contraveio ele.

— Pensando bem, acho que nem começamos ainda — tornou Edith.

Ela estivera examinando o guia de horários de trens antes de Gilbert chegar, e agora virava-lhe as páginas distraidamente.

— Está interessada no Guia Bradshaw?

— Muito — respondeu ela. — Estou tentando decidir... — hesitava.

— Decidir o quê? — indagou ele.

— .... onde ... onde vamos passar nossa lua-de-mel — gaguejou por fim.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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