Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MENINA DOS ANOS / Haruki Murakami
A MENINA DOS ANOS / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era sexta-feira, e, para não variar, ela andava a servir às mesas, nesse dia em que completava vinte anos. Costumava trabalhar às sextas, mas nesse dia em concreto tinha combinado com uma colega de trabalho, de modo a ficar com a noite livre. Por sorte, a outra mostrara-se de imediato disposta a trocar de turno. Vendo bem, apanhar com os gritos de um cozinheiro furibundo enquanto distribuía pratos de gnocchi de abóbora e espetada de frutos do mar pelas mesas dos comensais não era a forma ideal de celebrar o vigésimo aniversário. Para mal dos seus pecados, a colega piorara da constipação e ficara de cama com 40 graus de febre e uma diarreia que não havia meio de parar. Avisada em cima da hora, não teve remédio senão apresentar-se ao trabalho.
«Não te preocupes», dissera quando a colega telefonara a pedir desculpa pelo transtorno. «Também não estava a pensar em fazer nada de especial, apesar de ser o dia dos meus anos.»
Em boa verdade, não se pode dizer que tenha ficado particularmente desgostosa. A principal razão para isso era o facto de ter discutido violentamente com o mais-que-tudo, com quem planeara, em teoria, fazer qualquer coisa nessa noite. Andavam juntos desde o secundário. A discussão nascera do nada, mas, palavra puxa palavra, a cena assumira contornos mais dramáticos e transformara-se numa longa e amarga disputa em que ambos verbalizaram a sua fúria – suficientemente má para ter estraçalhado de vez os laços que há muito os uniam. Algo no mais fundo do seu ser se transformara em pedra e morrera para sempre. O namorado não voltara a entrar em contacto desde que se tinham travado de razões, e, por ela, não sentia a mínima vontade de tomar a iniciativa de lhe telefonar.
O restaurante italiano em que trabalhava era um dos mais afamados no cosmopolita bairro de Roppongi, em pleno coração de Tóquio. Estava a funcionar desde meados dos anos de 1960 e, embora fiel aos pratos da velha cozinha, continuava a valer pela qualidade da gastronomia tradicional, pelo que os clientes não se podiam queixar. A sala de jantar tinha uma atmosfera calma e acolhedora, sem sinais de novo-riquismo. Mais do que apelar às camadas jovens, o ambiente atraía, sobretudo, clientes com uma certa idade, entre os quais se contavam alguns atores e escritores célebres.

 


 


Havia dois empregados a tempo inteiro, seis dias por semana. Ela e uma colega, contratadas em regime parcial, eram estudantes que trabalhavam três dias em turnos alternados. Além disso, registava-se a presença de um gerente e, na caixa, de uma senhora magrinha de meia-idade, que, segundo diziam à boca pequena, se mantinha firme no seu posto desde que o restaurante abrira as portas. Inquebrantável, à semelhança de uma vetusta personagem, com o seu quê de sombrio, saída do romance A Pequena Dorrit1 de Charles Dickens. Estava encarregada de fazer a caixa e atender o telefone. Só falava quando necessário e usava o mesmo vestido preto. Tinha qualquer coisa de duro e frio; se fosse deixada a vogar à noite em pleno mar, o mais provável era ir contra todos os barcos que se cruzassem na sua rota e mandá-los direitinhos para o fundo.

Quanto ao gerente do restaurante, andaria na casa dos quarenta. Alto e largo de ombros, bastava olhar para a sua constituição para ver que devia ter feito desporto na juventude, se bem que, com os anos, tivesse acumulado pregas de gordura tanto na barriga como no queixo. O cabelo, curto e espetado, começava a rarear no alto da cabeça, e desprendia-se dele um odor vagamente bafiento que evocava um solteirão – parecido com o cheiro de jornais esquecidos numa gaveta, à mistura com rebuçados de mentol para a tosse. Havia na família um tio solteirão que cheirava igualzinho.

O gerente usava invariavelmente fato escuro, camisa branca e lacinho – não um daqueles que se compram já prontos, com a camisa, mas um laço genuíno, que ele, todo ufano, fazia questão de apertar na perfeição, sem o espelho à frente. Dia após dia, executava com grande eficácia as suas tarefas, que consistiam em receber os comensais e conduzi-los às respetivas mesas, e mais tarde despedir-se deles, tratar das reservas, saber de cor o nome dos clientes mais antigos e fiéis e atendê-los com um sorriso, mostrar-se recetivo a uma hipotética reclamação, recorrer aos conhecimentos de perito para dar conselhos avisados em matéria de vinhos e supervisionar o trabalho dos funcionários. A isso, acrescia uma missão especial, que consistia em transportar o jantar até ao quarto onde morava o dono do restaurante.

1 Little Dorrit, no original. Tradução portuguesa mais recente de João Pedro Cochofel publicada pelo Círculo de Leitores, Lisboa, 1987. (N. da T.)

 

 

– O proprietário tinha um quarto no sexto andar do mesmo edifício do restaurante.

Sem saber como, acabámos os dois à conversa sobre o nosso vigésimo aniversário. A maior parte das pessoas lembra-se perfeitamente desse dia. O dela tinha sido há mais de dez anos.

– Acontece que o proprietário nunca, mas nunca se mostrava no restaurante. O gerente era a única pessoa a conhecer o seu aspecto, já que tinha por obrigação levar-lhe a comida. Tirando ele, nenhum dos restantes empregados lhe pusera a vista em cima.

– Quer dizer que o dono do restaurante mandava entregar todos os dias no quarto a comida feita no seu restaurante?

– Isso mesmo – confirmou ela. – Às oito da noite, fizesse chuva ou fizesse sol, o gerente estava incumbido de lhe levar o jantarinho pronto. Como era a hora de maior movimento no restaurante, a ausência do gerente representava um problema para nós, mas não havia volta a dar, visto que aquele ritual vinha de trás. A refeição era colocada num daqueles carros de rodas, como os que são usados pelos hotéis no serviço de quartos; a seguir, o gerente empurrava o carrinho, com uma expressão muito séria, regressando quinze minutos mais tarde de mãos a abanar. Passada uma hora, tornava a ir lá acima para recolher os pratos e os copos vazios. O ritual repetia-se diariamente, sem exceção, como o mecanismo de um relógio. A primeira vez que assisti à cena, tudo aquilo me pareceu um bocado estranho. Dir-se-ia uma cerimónia religiosa, estás a ver? Mas depois habituei-me e deixei de passar cartão.

 

 

O proprietário do restaurante alimentava-se à base de galinha. A confeção e os acompanhamentos podiam variar, de dia para dia, mas o prato principal era sempre à base de galinha. Um jovem cozinheiro confidenciara-lhe em tempos que cozinhara frango assado durante uma semana a fio, para pôr à prova a reação dele, mas que não recebera reclamações. Como seria de esperar, qualquer cozinheiro-mor que se preze gosta de conduzir experiências e de preparar tudo a seu bel-prazer. Por conseguinte, de cada vez que mudavam de cozinheiro, o novo chef dava largas à imaginação e começava por arranjar mil e uma maneiras de cozinhar frango. Inventavam molhos, cada um mais requintado do que o outro, mandavam buscar as galinhas a novos fornecedores, mas tais esforços revelavam-se inúteis. Era o mesmo que atirar pedras para o interior de uma caverna deserta. A páginas tantas, acabavam por desistir e optavam por enviar ao dono do restaurante a mesma versão do requentado prato de frango guarnecido. Vendo bem, ninguém lhes exigia mais do que isso.

 

 

A dezassete de novembro, no dia dos seus anos, o trabalho correu como de costume. Ao início da tarde a chuva começara a cair a intervalos regulares, e mal escurecera transformara-se num valente temporal. Às cinco, o gerente reuniu-se com o pessoal para o industriar quanto aos pratos do dia. Aos criados de mesa, pedia-se-lhes que memorizassem a ementa, palavra por palavra, e que não recorressem em caso algum a notas rabiscadas num pedaço de papel: escalopes de vitela à Milanesa, sardinhas e massa com couve, musse de avelã. Volta e meia, acontecia o gerente pôr-se no papel de comensal e, à laia de teste, fazer perguntas a que os criados eram obrigados a responder. A seguir, os empregados tomavam a sua refeição: jamais um funcionário daquele restaurante, chegada a hora de fazer o pedido, correria o risco de ser apanhado em flagrante pelos clientes com o estômago a dar horas!

O restaurante abriu as portas às seis, mas os primeiros clientes tardaram a chegar devido à forte bátega que se fez sentir e que levou ao cancelamento de várias reservas. Era provável que as senhoras não quisessem aventurar-se e expor os seus vestidos de cerimónia ao efeito arrasador da chuva. Enquanto o gerente andava de um lado para o outro, de expressão fechada e lábios cerrados, os empregados matavam o tempo a polir saleiros e pimenteiros ou a trocar impressões com o chef. Quanto a ela, mantinha-se atenta à sala de jantar, onde se encontrava um único casal sentado à mesa, e ao som de harpa discretamente difundido através das colunas no teto. O odor intenso das chuvadas tardias de outono inundava o restaurante.

Passava das sete e meia quando o gerente começou a sentir-se adoentado. Sem forças, deixou-se cair numa cadeira e ali ficou, agarrado ao estômago, como se tivesse sido atingido a tiro. Uma camada de suor gorduroso colava-se-lhe à testa. «Acho melhor levarem-me ao hospital», pediu num murmúrio. Ele não era do género de adoecer subitamente e ver-se obrigado a dar parte de fraco. Trabalhava naquele restaurante já lá iam uns dez anos e não se lembrava de ter faltado um dia sequer. Nunca estar doente nem ferido representava um ponto de honra, mas bastava olhar e ver a sua expressão de dor para perceber que estava verdadeiramente atrapalhado.

A rapariga pegou num guarda-chuva e foi lá fora para ver se chamava um táxi. Um dos criados de mesa ajudou o gerente a pôr-se de pé e dispôs-se a acompanhá-lo ao hospital mais próximo. Antes de entrar no táxi, o gerente disse-lhe com maus modos: «Quando forem oito da noite, quero que leves esta refeição ao quarto 604. Tens apenas de tocar à campainha, dizer “Aqui tem o seu jantar” e deixar ficar o carrinho.»

«Quarto 604, diz o senhor?»

 

 

«Às oito em ponto», repetiu, voltando a fazer uma careta de dor. A porta fechou-se, e o táxi arrancou.

Depois de o gerente ter desaparecido do mapa, a chuva continuou sem dar mostras de querer abrandar e um ou outro cliente entrava de longe a longe. Não havia mais de duas ou três mesas ocupadas, por isso não fazia diferença que o gerente e um dos funcionários estivessem ausentes; do mal o menos, como soe dizer-se. Na realidade, a azáfama costumava ser tão grande que o pessoal de serviço não chegava para as encomendas.

Perto das oito, quando a refeição destinada ao dono do restaurante ficou pronta, a jovem empurrou o carrinho de serviço para dentro do elevador e subiu até ao sexto andar. A refeição compunha-se do mesmo de sempre: uma entrada à base de galinha com vegetais cozidos no vapor, meia garrafa de vinho tinto com a rolha parcialmente tirada, pão e manteiga, um termo de café. O aroma intenso do prato de galinha cozinhado encheu por completo o espaço exíguo do elevador, misturando-se com o cheiro da chuva. O chão estava repleto de gotas, dando a entender que alguém com um guarda-chuva molhado utilizara o elevador.

A empregada empurrou o carrinho pelo corredor fora, detendo-se ao chegar diante da porta com o número 604. Era ali. Depois, fez um esforço e tornou a confirmar mentalmente: 604. Tem de ser aqui. Aclarou a garganta e tocou à campainha.

Não obteve resposta. Deixou-se estar ali durante uns bons vinte segundos. Quando se preparava para tocar de novo, a porta foi aberta e apareceu um homenzinho magro. Devia ser uns dez centímetros mais baixo do que ela. Vestia um fato escuro e, em contraste com o branco da camisa, destacava-se a gravata, de um castanho-amarelado parecido com a tonalidade das folhas caídas. Tudo nele respirava limpeza, com a roupa muito bem engomada e sem um vinco, e o cabelo, branco, cuidadosamente penteado. Quem o visse, seria tentado a pensar que se preparava para fazer uma noitada. As rugas vincadas da testa lembravam ravinas, daquelas que se veem nas fotografias tiradas do ar.

 

 

 


– Aqui tem o seu jantar – disse numa voz rouca, pigarreando de novo baixinho. Quando ficava nervosa, a sua voz tinha tendência a enrouquecer.

– O meu jantar?

– Sim, o gerente ficou indisposto de um momento para o outro. Portanto, tive de ser eu a vir até aqui trazer-lhe o jantar no lugar dele.

– Ah, estou a ver – sussurrou o ancião, quase como se falasse com os seus botões, sem tirar a mão da maçaneta da porta. – Com que então, sentiu-se mal! Quem diria?

– Começou a ter dores no estômago de repente e levaram-no para o hospital. Pode ser apendicite, segundo ele.

– Isso não augura nada de bom – declarou o velho, passando os dedos pelas rugas da testa. – Mesmo nada de bom.

A rapariga voltou a aclarar a garganta.

– Posso levar a comida para dentro? – perguntou.

– Ah, claro... – disse ele. – Sim, claro, se estiver nessa disposição. Por mim, esteja à vontade.

Se estiver nessa disposição?, pensou ela. Que estranho modo de pôr as coisas. Por que diabo era a vontade para ali chamada?

O velhote escancarou a porta, e ela empurrou o carrinho. O chão estava coberto por um tapete cinzento e não havia espaço para tirar os sapatos. A primeira divisão tinha aspecto de ser um imenso escritório, como se o quarto funcionasse mais como local de trabalho do que como residência. Da janela avistava-se a Torre de Tóquio, profusamente iluminada, cuja estrutura de aço se recortava a pouca distância dali. Junto à janela via-se uma secretária, e ao lado desta estava um sofá para duas pessoas com ar confortável e resistente. O velho apontou para a mesinha de café com tampo de plástico defronte do sofá. Ela dispôs um guardanapo branco e os talheres de prata, e depois colocou em cima da mesa o bule do café e a chávena, a garrafa de vinho e o copo, o pão e a manteiga, sem esquecer o prato com o frango e o acompanhamento de legumes no vapor.

 

 

– Se o senhor quiser fazer o favor de deixar os pratos na entrada, como de costume, regressarei daqui a uma hora para recolher tudo.

As palavras delas tiveram o condão de desviar o velho da apreciação contemplativa do seu jantar.

– Claro que sim, não se preocupe. Deixarei ficar tudo na entrada. Em cima do carrinho. Daqui a uma hora. Se assim o desejar.

Pois sim, abelha, respondeu ela de si para si, é mesmo isso que desejo.

– Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si?

– Não, muito agradecido – respondeu ele, depois de refletir. Os sapatos pretos brilhavam de tão engraxados. Eram pequenos e deveras elegantes. Vê-se que se trata de um homem que dá valor à apresentação, pensou ela. E que está bastante bem conservado para a idade que tem.

– Nesse caso, vou regressar ao meu posto de trabalho.

– Espere um instante, por favor – pediu ele.

– Sim?

– Estaria disposta, minha cara, a conceder-me cinco minutos do seu tempo? Tenho um assunto que gostaria de abordar com a menina.

Confrontada com um pedido tão sincero, a rapariga corou.

– Sim, acho que isso é possível – concordou. – Quer dizer, desde que não ultrapasse os cinco minutos.

No fundo, era ele o patrão, a pessoa que lhe pagava as horas que trabalhava por dia. A questão não se punha. Além disso, aquele velho não parecia capaz de fazer mal a uma mosca.

– A propósito, que idade tem? – perguntou o homem de idade, mantendo-se de pé junto à mesa, com os braços cruzados e sempre a fitá-la.

– Tenho vinte anos, acabados de fazer – respondeu ela.

– Vinte anos, acabados de fazer – repetiu ele, semicerrando os olhos como se estivesse a querer espreitar por uma pequena fresta. – Vinte anos acabados de fazer. Quando, ao certo?

 

 

– Bom, para ser franca, acabei de os fazer – referiu ela. E, após uma ligeira hesitação, acrescentou: – Hoje é o meu dia de anos.

– Estou a perceber – disse ele, esfregando o queixo como se aquilo se revestisse aos seus olhos de enorme significado. – Hoje, não foi o que disse? Completa vinte anos?

Ela respondeu que sim com a cabeça.

– Quer então dizer que veio ao mundo faz agora exatamente vinte anos.

– De facto – confirmou ela –, assim é.

– Estou a ver, estou a ver – disse ele. – Mas isso é maravilhoso. Bem, então, os meus parabéns.

– Muito obrigada – agradeceu ela. Apercebeu-se de que era a primeira vez, ao longo do dia, que alguém lhe dava os parabéns. Claro, podia ter uma mensagem dos pais no atendedor automático quando chegasse a casa do trabalho, se telefonassem de Oita.

 

 

– Creio que a ocasião merece uma celebração digna desse nome – avançou ele. – Que me diz a acompanhar-me num pequeno brinde? Podemos aproveitar este belo tinto.

– Agradeço, caro senhor, mas não posso, tenho trabalho à espera.

– Ora, um golinho nunca fez mal a ninguém. Se for eu a dar autorização, ninguém se atreverá a dizer nada. Vamos, só um brinde para festejar este dia.

O velho acabou de tirar a rolha da garrafa e deitou um pouco de vinho no copo destinado à menina dos anos. Ato contínuo, tirou outro copo da cristaleira e serviu-se a si próprio.

– Feliz aniversário – disse ele.

Os dois ergueram os respetivos copos e fizeram um brinde.

– Muitos anos de uma vida feliz e plena de realizações, e que nada nem ninguém permitam que nuvens negras representem uma ameaça.

Brindaram os dois e entrechocaram os copos.

Muitos anos de uma vida feliz e plena de realizações, e que nada nem ninguém permitam que nuvens negras representem uma ameaça, repetiu ela mentalmente. Que estranho discurso para brindar ao seu aniversário.

– Uma pessoa faz vinte anos uma vez na vida. É uma ocasião que não se repete.

– Eu sei – replicou ela, bebendo um gole no vinho, à cautela.

– E, no entanto, neste dia em particular, deu-se ao trabalho de vir até aqui trazer-me o jantar, como se fosse uma fada boa.

– Limitei-me a cumprir ordens.

– Mesmo assim – referiu o ancião, acenando rapidamente com a cabeça várias vezes. – Mais uma razão, minha encantadora menina.


Instalou-se na poltrona de cabedal ao lado da escrivaninha e, com um gesto, convidou-a a tomar assento. Sem largar o copo, ela aproximou-se e sentou-se na beirinha do sofá. Com os joelhos alinhados, ajeitou a saia e aclarou a garganta pela enésima vez. Reparou nas linhas traçadas pelas gotas de chuva que escorriam pela vidraça. Reinava uma estranha calma.

– Hoje é o dia em que faz vinte anos, e ainda me traz esta maravilhosa refeição quente – observou ele, para que não restassem dúvidas, ao mesmo tempo que pousava o copo com força na secretária, produzindo um ligeiro som seco. – Só pode ser obra do destino, não lhe parece?

Apesar de não estar lá muito convencida, ela concordou com a cabeça.

– Daí que – prosseguiu o dono do restaurante, ajeitando o nó da gravata no tom das folhas mortas – me sinta na obrigação de ter uma atenção para consigo. Uma ocasião especial exige uma oferta especial.

Apanhada de surpresa, ela abanou a cabeça.

– Nem pense nisso. Limitei-me a trazer-lhe o jantar, tal como me foi pedido.

O homem de idade ergueu as mãos, com as palmas viradas para ela.

– Não, por quem sois! Está decidido. E nem é bom que a menina pense mais no assunto. Quando falo num presente, não me refiro a algo palpável, um objeto com etiqueta a indicar o preço. Nada disso. Quero eu dizer... – explicou, pousando as mãos na secretária e inspirando longa e profundamente – ... que teria todo o gosto em conceder a uma jovem fada tão encantadora um desejo, que é como quem diz, que está ao meu alcance ajudar o seu desejo a materializar-se. Tudo o que possa imaginar, ou que sempre ambicionou. Isto partindo do pressuposto de que tem realmente um desejo concreto.

– Um desejo? – repetiu ela, sentindo a garganta seca.

– Sim, algo que gostasse de ver substancializado. Diga-me qual é o desejo, um desejo que seja, e comprometo-me a transformar os seus anseios em realidade. É um presente de anos desse género que me proponho dar-lhe. Contudo, é melhor ponderar antes de responder, porque só lhe posso conceder um desejo. – Dito aquilo, pôs um dedo no ar. – Um único para amostra. Olhe que não pode mudar de ideias.

 

 

 


Ela não soube que responder. Um desejo? Fustigadas pelo vento, as gotas de chuva batiam com violência e de forma desigual de encontro ao vidro da janela. Enquanto ela permaneceu calada, o velho olhou-a nos olhos, sem dizer palavra. Sentia o pulsar desencontrado do tempo nos ouvidos.

– Posso perguntar uma coisa, esse pedido ser-me-á concedido?

Em jeito de resposta, o ancião – com ambas as mãos sobre a mesa – limitou-se a sorrir. Era um sorriso afetuoso, perfeitamente natural.

– Então, tem um desejo ou não, minha menina? – insistiu ele com toda a gentileza.

*

– Isto foi rigorosamente verdade – frisou, olhando-me de frente. – Não estou a efabular.

– Claro que não – disse eu. Ela não era pessoa do género de inventar uma história daquelas assim do pé para a mão. – E tu, chegaste a fazer o tal pedido?

Ela continuou a fitar-me durante um bocado. Depois, suspirou baixinho.

– Não me interpretes mal – declarou. – É preciso não esquecer que na altura eu não levava o velhote cem por cento a sério. Aos vinte anos já ninguém acredita em contos de encantar. Se aquela era a maneira que ele arranjara para se meter comigo, há que reconhecer que sabia fazer as coisas e que tinha um apurado sentido de oportunidade. Vendo que ele era um velho todo pimpão com um brilhozinho nos olhos, resolvi alinhar na brincadeira. No fim de contas, e já que era o dia em que eu fazia vinte anos, pensei para comigo que não era nada do outro mundo se sucedesse alguma cena invulgar. Não se punha sequer a questão de acreditar ou não.

Assenti em silêncio.

– De certeza que entendes este estado de espírito. Estava a chegar ao fim o dia do meu vigésimo aniversário e ainda não acontecera nada que merecesse a pena referir, nem uma única pessoa me tinha dado os parabéns, e eu limitara-me a servir pratos de tortellini com molho de anchovas.

 

 

 


Voltei a fazer que sim com a cabeça.

– Não te preocupes – disse a outra –, entendo lindamente.

– E foi então que formulei um desejo.

O velho continuava a olhar fixamente para ela, sem dizer uma palavra, com as mãos pousadas na secretária. Sobre a mesa via-se ainda uma série de pastas grossas (porventura livros de contabilidade), a par de material de escritório, um calendário e um candeeiro que tinha um abajur verde. No meio daquilo, as mãos pequenas pareciam fazer parte do inventário. A chuva continuava a embater com violência na vidraça, deixando que as luzes da Torre de Tóquio se infiltrassem por entre as gotas dispersas.

As rugas na testa do homem de provecta idade revelavam-se mais profundas.

– É portanto esse o seu desejo?

– Sim – respondeu ela. – Esse é o meu desejo.

– Um tanto ou quanto insólito para uma rapariga da sua idade – comentou ele. – Para dizer a verdade, estava à espera de algo diferente.

– Se não servir, posso reformular o pedido – disse a jovem, aclarando a voz. – Não me importo. Por mim, tudo bem.

– Não, não! – atalhou ele, agitando as mãos como se fossem bandeirinhas. – Não há nada de errado com o seu desejo. Fiquei surpreendido, confesso. E não deseja mais nada? Como, por exemplo, ficar mais bonita, mais inteligente, mais rica... Enfim, o género de coisas que uma rapariga da sua idade teria normalmente pedido?

Ela precisou de um par de minutos para encontrar as palavras adequadas. O idoso limitou-se a esperar pacientemente, sem piar, mantendo as mãos em posição de repouso sobre a escrivaninha.

– É óbvio que gostava de ser mais bonita, mais inteligente ou de ter mais dinheiro. Mas não consigo imaginar qual a minha reação no caso de um desses cenários me calhar em sorte. Talvez seja demasiada areia para a minha camioneta. Sinceramente, ainda não sei muito bem como encarar as coisas da vida. Não sei como é que funciona.

– Compreendo – disse o velho, entrelaçando os dedos e voltando a descruzá-los. – Compreendo.

– Quer dizer que aceita o meu pedido?

– Claro que sim – respondeu ele. – Naturalmente. Pela minha parte, não vejo nenhum obstáculo.

De um momento para o outro, pareceu fixar um ponto algures na sala. As rugas da testa tornaram-se mais vincadas. A imagem lembrava as próprias dobras do cérebro, à medida que ele dava mostras de se concentrar. Parecia ter o olhar cravado em qualquer coisa – fragmentos invisíveis do passado, quem sabe? – que estivesse a pairar à sua frente. Abriu os braços, soergueu-se na cadeira e bateu as palmas energicamente produzindo um som seco. Depois, voltou a sentar-se e passou ao de leve a ponta dos dedos pelas rugas da testa, como se fizesse menção de as atenuar. Só então se virou para ela, arvorando um sorriso genuíno e meigo.

– Já está – disse ele. – O desejo foi-lhe concedido.

– Tão depressa?

– Sim, não custou nada. O desejo realizou-se. Feliz aniversário, minha simpática menina. Agora pode regressar ao seu trabalho. Não se preocupe, que eu volto a pôr o carrinho no corredor.

Ela apanhou o elevador e regressou ao restaurante. Sem nada para transportar, sentia-se estranhamente leve, como se estivesse a caminhar por cima de uma superfície invulgarmente vaporosa e macia.

– O que foi? Parece que estás na lua– observou o colega mais novo.

Ela lançou-lhe um olhar ambíguo e negou com a cabeça.

– A sério? Não, estou óptima.

 

 

 


– Conta-me tudo. Fala-me lá do dono do restaurante. Como é que ele é?

– Não te sei dizer, não lhe vi bem a cara – desculpou-se ela, matando a conversa logo de início.

Passada uma hora tratou ela mesma de ir buscar o carrinho, que foi encontrar já no corredor, com tudo no devido sítio. Ao levantar a tampa do prato coberto, verificou que tanto a galinha como os vegetais tinham desaparecido. Também a garrafa de vinho e o bule de café estavam vazios. A porta que dava para o quarto 604 permanecia fechada e sem sinal de vida. Ficou ali por segundos, na vaga esperança de que a porta se abrisse, mas tal não se verificou. Voltou a meter o carrinho dentro do elevador e trouxe-o para baixo, deixando-o ficar ao lado da máquina de lavar loiça. O cozinheiro olhou distraidamente para o prato, apenas para confirmar que estava vazio, como de
costume.

*

– Não tornei a ver o proprietário – confidenciou-me ela. – Nem uma única vez. Afinal, o problema do gerente não passou de uma vulgar dor de estômago, e no dia seguinte voltou a levar o jantar ao dono do restaurante. Despedi-me e abandonei o restaurante logo a seguir ao Ano Novo, e nunca mais tornei a pôr lá os pés. Não sei explicar porquê, mas achei melhor manter-me afastada. Chama-lhe uma premonição, se quiseres.

 

 

Ensimesmada, entretinha-se a brincar com uma base de copos, daquelas de papel.

– Às vezes, tenho a sensação de que aquilo que me aconteceu no dia em que fiz vinte anos não passou de uma quimera. Pergunto a mim mesma se terá sucedido algo que me levasse a pensar que aconteceram certas coisas que, em bom rigor, nunca se verificaram. Mas tenho a certeza de que foi realmente assim que a situação se desenrolou. Ainda hoje me lembro com uma nitidez espantosa das peças de mobiliário e de todo o tipo de bricabraque que existia no quarto 604. Não podia ter sido mais real e, além do mais, revestiu-se para mim de grande significado.

Ficámos os dois em silêncio, cada um a beber o que tinha no copo e mergulhado em pensamentos.

– Posso fazer-te uma pergunta? – disse eu. – Ou, melhor dizendo, duas perguntas?

– À vontade – respondeu ela. – Imagino que me queiras perguntar qual foi o desejo que formulei na altura. Palpita-me que será essa a primeira coisa.

– Dir-se-ia que não te apetece falar no assunto.

– Achas?

Assenti.

Ela pousou a base do copo e semicerrou os olhos até ficarem reduzidos a duas fendas, como se estivesse a esforçar-se por avistar algo ao longe.

– Nunca se deve dizer a ninguém aquilo que se desejou, não sei se sabes.

– Fica descansada, não é minha intenção arrancar-te o segredo – expliquei. – Gostaria de saber se o teu desejo se realizou, mais nada. E já agora, independentemente do desejo, se te arrependeste de ter pedido o que pediste. Alguma vez lamentaste não ter desejado outra coisa?

– A resposta à primeira pergunta é sim e não. O mais certo é ainda ter muitos anos de vida pela frente. Como tal, não te posso dizer com toda a certeza o que o futuro me reserva.

– Quer dizer que o teu desejo precisa de tempo para se realizar?

– Acertaste. O tempo desempenha um papel crucial.

– Como acontece quando se pretende cozinhar certos pratos?

Ela anuiu.

Fiquei a matutar naquilo, mas a única coisa que me veio à cabeça foi a imagem de uma grande tarte a cozer lentamente no forno em lume médio.

– E a resposta à segunda pergunta?

– Qual era?

– Queria saber se te arrependeste do que pediste?

 

 

Permaneceram em silêncio por momentos. O olhar que me deitou era desprovido de profundidade. A sombra de um sorriso mudo passou-lhe pelos lábios, sugerindo uma calma resignação.

– Agora estou casada – afirmou. – Casei-me com um técnico de contas três anos mais velho do que eu e temos dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Também sou dona de um setter irlandês. O meu carro é um Audi, e jogo ténis com amigas duas vezes por semana. É esta a vida que levo presentemente.

– Não me parece tão má quanto isso – comentei.

– Mesmo se te disser que o para-choques do Audi tem duas amolgadelas?

– É para isso que eles servem, os para-choques são feitos para bater.

– Isso dava um grande autocolante – disse ela. – Os para-choques são feitos para bater.

Observei a sua boca no instante em que pronunciava aquelas palavras.

– Vê se entendes o que te quero dizer – voltou ela à carga, num tom mais suave, coçando o lóbulo da orelha, por sinal um lóbulo extraordinariamente bem-feito. – Por mais que as pessoas se esforcem, por mais que queiram, nunca alguém pode ser quem não é. Tão simples quanto isso.

– Aí tens outro bom slogan!

Soltou uma gargalhada, nitidamente divertida, e a sombra desapareceu como que por magia.

Encostando o cotovelo ao balcão, olhou para mim.

– Diz-me uma coisa. Se estivesses no meu lugar, o que terias pedido?

– Na noite em que fiz vinte anos, queres tu dizer?

– Ahã.

Demorei bastante a pensar, mas não me veio à memória um único desejo.

– Não me lembro de nada em particular – confessei. – O dia em que fiz vinte anos foi há um ror de tempo.

 

 

– Não te lembras de nada, a sério?

Abanei a cabeça.

– Nem uma única coisa?

– Nadinha.

Ela olhou-me de novo nos olhos. Um olhar profundo e sincero.

– Então é porque o teu desejo já se realizou.

 

 

                                                                  Haruki Murakami

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades