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Series & Trilogias Literarias
Depois de uma longa estada no estrangeiro, LISBETH SALANDER regressa à Suécia, cede o pequeno apartamento onde vivia à sua amiga MÍRIAM WU, e instala-se luxuosamente numa zona nobre da cidade. Pela primeira vez na vida é economicamente independente, mas cedo percebe que o dinheiro não é tudo: não tem amigos nem família e está só.
MIKAEL BLOMKVIST, que tentara contactar LISBETH SALANDER durante meses, sem sucesso, desiste e concentra-se no trabalho. À Millennium chegou material para uma notícia explosiva: o jornalista DAG SVENSSON e a sua companheira MIA JOHANSSON entregam na editora dois documentos que provam o envolvimento de personalidades importantes numa rede de tráfico de mulheres para exploração sexual. Quando DAG e MIA são brutalmente assassinados, todos os indícios recolhidos no local do crime apontam um suspeito: LISBETH SALANDER. O seu passado sombrio e pouco convencional não abona a favor da sua imagem e a polícia move-lhe uma implacável perseguição.
LISBETH SALANDER, que está disposta a romper de vez com o passado e a punir aqueles que a prejudicaram, tem agora de provar a sua inocência e só uma pessoa parece disposta a ajudá-la: MIKAEL BLOMKVIST que, apesar de todas as evidências, se recusa a acreditar na sua culpabilidade.
NÃO HÁ INOCENTES. HÁ APENAS DIFERENTES GRAUS DE RESPONSABILIDADE!
Estava deitada de costas, presa por correias de couro à armação de ferro da cama estreita. As correias, cruzadas, apertavam-lhe o peito, e tinha as mãos algemadas aos lados do catre.
Havia muito que desistira de tentar libertar-se. Estava acordada, mas tinha os olhos fechados. Se os abrisse, ver-se-ia envolta em escuridão; a única luz era uma débil risca amarelada que se filtrava por cima da porta. A boca sabia-lhe mal e ansiava por poder lavar os dentes.
Escutava, atenta ao som de passos que lhe diria que ele estava a chegar. Não fazia a mínima ideia de que horas pudessem ser, mas sentia que começava a ficar demasiado tarde para que ele a visitasse naquela noite. Uma súbita vibração da cama fê-la abrir os olhos. Foi como se, algures na casa, alguém tivesse ligado uma máquina. Passados alguns segundos, já não saberia dizer se aquilo fora real ou se o tinha imaginado.
Assinalou mentalmente a passagem de mais um dia.
O quadragésimo terceiro do seu cativeiro.
Tinha comichão no nariz e voltou a cabeça para poder esfregá-lo na almofada. Estava a transpirar. O quarto era quente e abafado. Vestia apenas uma camisa de noite, que se enrodilhava debaixo do corpo. Movendo um pouco a anca, conseguiu agarrar o tecido entre o polegar e o indicador e puxá-lo para fora, alguns centímetros de cada vez. Fez o mesmo do outro lado. Mesmo assim, continuava a fazer uma dobra debaixo dos rins. O colchão era desconfortável, cheio de curvas e covas. A solidão exagerava impiedosamente as pequenas sensações que noutras circunstâncias teria ignorado. As correias que lhe sujeitavam o peito estavam suficientemente frouxas para lhe permitirem mudar de posição e deitar-se de lado, mas isso obrigava-a a deixar uma mão atrás das costas, e em poucos minutos ficava com o braço dormente.
Não tinha medo. Sentia, isso sim, uma grande raiva acumulada.
Ao mesmo tempo, era assombrada por fantasias desagradáveis sobre o que lhe ia acontecer. Detestava aquela impotência. Por mais que tentasse concentrar-se noutra coisa qualquer - para passar o tempo e não pensar na situação em que se encontrava -, a angústia arranjava sempre maneira de insinuar-se-lhe no espírito. Pairava à volta dela como uma nuvem de gás, ameaçando penetrar-lhe os poros e envenená-la. Descobrira que a melhor maneira de manter o medo à distância era fantasiar sobre qualquer coisa que lhe desse a sensação de poder. Fechou os olhos e imaginou o cheiro a gasolina.
Ele estava sentado num carro, com o vidro do lado do condutor aberto. Ela corria para o carro, despejava a gasolina pela janela e acendia um fósforo. Acontecia tudo num segundo. As chamas irrompiam. Ele contorcia-se, e ela ouvia-lhe os gritos de terror e de agonia. Sentia o cheiro a carne queimada, e um outro cheiro, mais acre, o do plástico e dos estofos a transformarem-se em carvão.
Devia ter dormitado, porque não ouviu os passos, mas estava bem acordada quando a porta se abriu. A luz do corredor cegou-a.
Ele sempre tinha vindo, afinal.
Era alto. Não sabia que idade teria, mas era um adulto. Tinha cabelos emaranhados, vermelho-acastanhados, e uma barbicha rala, e usava óculos de aros pretos. Cheirava a loção de barba.
Odiava aquele cheiro.
Ele deteve-se aos pés da cama e ficou a observá-la durante muito tempo.
Odiava o silêncio dele.
Só conseguia ver-lhe a silhueta recortada à contraluz do corredor. Então ele falou. Tinha uma voz pesada, clara, que destacava pedantemente cada palavra.
Odiava a voz dele.
Disse-lhe que era o dia do aniversário e que queria dar-lhe os parabéns. O tom não era inamistoso nem irónico. Era neutro. Pensou que ele devia estar a sorrir.
Odiava-o.
Ele aproximou-se e contornou a cama até à cabeceira. Pousou-lhe a mão húmida na testa e passou os dedos ao longo da linha dos cabelos num gesto que provavelmente tencionava ser terno. Era o presente de aniversário que tinha para ela.
Odiava que ele lhe tocasse.
Viu a boca dele mexer-se, mas bloqueou o som. Não queria ouvir. Não queria responder. Ouviu-o elevar a voz em que se insinuara uma nota de irritação provocada pelo silêncio dela. Estava a falar de confiança mútua. Passados alguns minutos, calou-se. Ignorou-lhe o olhar. Então, ele encolheu os ombros e começou a ajustar as correias de couro. Apertou-as mais um furo sobre o peito e inclinou-se para ela.
De repente, ela voltou-se para a esquerda, afastando-se o mais rapidamente que pôde e até onde as correias lhe permitiram. Dobrou os joelhos até ao queixo e disparou os pés na direcção da cabeça dele. Tinha apontado à maçã-de-adão e as pontas dos dedos apanharam-no algures por baixo do queixo, mas ele estava preparado para o ataque e desviou-se, e o golpe foi só de raspão. Tentou pontapeá-lo outra vez, mas ele tinha-se afastado. Voltou a deixar cair as pernas em cima da cama.
O lençol pendia para o chão. A camisa de noite tinha-lhe subido acima das coxas.
Ele ficou imóvel por muito tempo, sem dizer uma palavra. Então, contornou a cama e prendeu-lhe os pés. Ainda tentou encolher as pernas, mas ele agarrou-lhe o tornozelo com uma mão, empurrou o joelho para baixo com a outra e afivelou a correia. Passou para o lado contrário e fez o mesmo ao outro pé.
Estava completamente indefesa.
Ele apanhou o lençol do chão e tapou-a. Ficou a observá-la, em silêncio, durante dois minutos. Adivinhava-lhe a excitação no escuro, apesar de ele não a mostrar. Estava de certeza com uma erecção. Soube que ia estender a mão e tocar-lhe.
Então, ele deu meia-volta e saiu, fechando a porta. Ouviu-o trancá-la, o que era completamente desnecessário, uma vez que ela não tinha meio de libertar-se da cama.
Ficou estendida durante vários minutos, a olhar para a estreita risca de luz por cima da porta. Então, moveu-se e experimentou as correias, para ver se estavam muito apertadas. Conseguiu dobrar um pouco os joelhos, mas as correias que lhe prendiam o peito e os tornozelos ficaram imediatamente tensas. Relaxou. Ficou imóvel, a olhar para o vazio.
Esperou. Pensou numa lata de gasolina e num fósforo.
Viu-o encharcado em gasolina. Sentiu a caixa de fósforos na mão, a chocalhar quando ela a agitou. Abriu a caixa e retirou um fósforo. Ouviu-o dizer qualquer coisa, mas tapou os ouvidos, não ouviu as palavras. Viu a expressão na cara dele quando aproximou o fósforo da lixa. Ouviu o raspar da cabeça do fósforo na lixa impregnada de enxofre. Foi como um longo, um arrastado trovão. Viu o fósforo inflamar-se.
Sorriu com um sorriso duro, e preparou-se.
Era o dia do seu décimo terceiro aniversário.
1.ª PARTE
EQUAÇÕES IRREGULARES
16 a 20 de Dezembro
A EQUAÇÃO CLASSIFICA-SE EM FUNÇÃO DA POTÊNCIA DAS SUAS INCÓGNITAS
[O VALOR DO EXPOENTE). SE ESTE É IGUAL A UM, TEMOS UMA EQUAÇÃO DO PRIMEIRO GRAU, SE o EXPOENTE DA POTÊNCIA É DOIS, TRATA-SE DE UMA EQUAÇÃO DO SEGUNDO GRAU, ETC. AS EQUAÇÕES DE GRAU SUPERIOR Ao PRIMEIRO ATRIBUEM VÁRIOS VALORES ÀS RESPECTIVAS INCÓGNITAS.
ESTES VALORES CHAMAM-SE RAIZ.
EQUAÇÃO DO PRIMEIRO GRAU (EQUAÇÃO LINEAR): 3X - 9 = 0 (RAIZ: X = 3)
CAPÍTULO 1
QUINTA-FEIRA, 16 DE DEZEMBRO - SEXTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO
LiSBETH Salander puxou os óculos escuros para a ponta do nariz e espreitou por baixo da larga aba do chapéu. Viu a mulher do quarto 32 sair pela porta lateral do hotel e encaminhar-se para uma das cadeiras de lona às riscas brancas e verdes alinhadas à beira da piscina. Tinha os olhos postos no chão e avançava com passos que pareciam pouco seguros.
Lisbeth só a vira de longe. Calculou que andaria por volta dos 35 anos, mas também podia ter qualquer coisa entre os 25 e os 50. Tinha cabelos castanhos, que lhe caíam até aos ombros, um rosto oval e um corpo que parecia saído de um catálogo de lingerie. Usava um biquini preto, sandálias e óculos de sol com armação de tartaruga e lentes violeta. Era americana e falava com o sotaque arrastado do Sul. Deixou cair o grande chapéu de praia amarelo ao lado da cadeira e fez sinal ao empregado do Ella Carmichaels Bar.
Lisbeth pousou o livro no colo e bebeu um golo de café gelado antes de estender a mão para o maço de cigarros. Sem mexer a cabeça, deslocou o olhar para o horizonte. Conseguia ver uma nesga do mar das Caraíbas por entre um grupo de palmeiras e rododendros diante do hotel. Um iate rumava a Norte, a caminho de Santa Lúcia ou de Dominica. Muito mais ao largo, distinguiu os contornos acinzentados de um cargueiro em viagem para Sul, em direcção à Guiana ou a um dos países vizinhos. Uma ligeira brisa tornava suportável o calor da manhã, mas mesmo assim sentiu uma gota de suor escorrer-lhe para a sobrancelha. Não gostava de apanhar sol. Tinha-se mantido o mais possível à sombra, e naquele momento estava sentada debaixo do
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toldo do terraço. O que não a impedia de estar castanha como uma avelã, pelo menos nas partes do corpo que os calções de caqui e o top preto deixavam ver.
Escutava a estranha música dos steel drums que jorrava dos altifalantes do bar. Era incapaz de distinguir Sven-Ingvars de Nick Cave, mas os tambores de aço fascinavam-na. Parecia-lhe incrível que alguém conseguisse afinar um barril de petróleo, e ainda mais incrível que um barril de petróleo pudesse produzir uma música diferente de tudo o que alguma vez ouvira. Para ela, aqueles sons eram uma espécie de magia.
Subitamente, sentiu uma pontada de irritação e olhou para a mulher, a quem o empregado do bar acabava de entregar um copo cheio de uma bebida alaranjada.
Não tinha nada com isso, claro, mas não conseguia perceber por que raio a fulana ainda ali estava. Havia quatro noites, desde a chegada do casal ao hotel, que ouvia o teatro de terror abafado que se desenrolava no quarto contíguo ao dela. Ouvia os choros e as vozes baixas, excitadas, e, por vezes, o som inconfundível de bofetadas. O homem responsável pelos estalos - Lisbeth assumia que era o marido - tinha cabelos lisos e pretos, que penteava com risco ao meio, num estilo antiquado, e parecia estar em Granada a tratar de negócios. Que espécie de negócios, Lisbeth não fazia a mínima ideia, mas todas as manhãs ele aparecia com a sua pasta de documentos, de casaco e gravata, e bebia um café no bar do hotel antes de sair para apanhar o táxi.
Voltava ao hotel ao fim da tarde, dava um mergulho e ficava sentado com a mulher junto à piscina. Jantavam juntos, no que parecia um tête-à-tête discreto e apaixonado. Talvez a mulher bebesse um pouco mais do que a conta, mas a sua embriaguez não era incómoda nem ruidosa.
As cenas no quarto ao lado começavam invariavelmente entre as dez e as onze, quando Lisbeth já estava na cama com um livro sobre os mistérios da matemática. Nunca eram nada de dramático. Tanto quanto Lisbeth conseguia perceber através da parede, era mais uma espécie de discussão repetitiva, chata. Na noite anterior, incapaz de
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conter a curiosidade, fora para a varanda, ouvir, através da porta aberta da varanda do quarto do casal, o que se passava lá dentro. Durante mais de uma hora, o sujeito andara de um lado para o outro, a resmonear qualquer coisa a respeito de ser um monte de merda, e de não a merecer. Repetia que ela devia achá-lo uma desilusão. Não, respondia ela, não achava nada disso, e tentava acalmá-lo. O tipo tornara-se ainda mais veemente - Lisbeth ficara com a impressão de que a tinha agarrado pelos braços e sacudido -, de modo que, naturalmente, ela acabara por dar-lhe a resposta que ele queria: "Está bem, és uma desilusão." No mesmo instante, o sacana aproveitara o pretexto para se pôr a insultá-la. Chamara-lhe puta, uma acusação que Lisbeth não hesitaria em refutar por todos os meios ao seu alcance se lhe tivesse sido dirigida. Não fora, mas mesmo assim debatera-se durante algum tempo sobre a possibilidade de fazer qualquer coisa.
Ouvira, espantada, aquela estranha e azeda discussão, que cessara repentinamente com o que lhe parecera ser o som de um estalo na cara. Estava a uma unha negra de sair para o corredor e arrombar a porta do quarto vizinho quando se fizera silêncio.
Naquele momento, examinando a mulher estendida na cadeira de lona à beira da piscina, notou-lhe uma pequena nódoa negra num ombro e um arranhão na anca, mas nenhuma outra marca.
Meses antes tinha lido, num exemplar da Popular Science que alguém deixara em cima de uma das cadeiras do Aeroporto Leonardo da Vinci, um artigo que despertara nela um vago fascínio pelo abstruso tema da astronomia esférica. Seguindo um impulso, deslocara-se à livraria da Universidade de Roma para comprar algumas obras básicas sobre a matéria. Mas descobrira que, para perceber as complexidades da astronomia esférica, ia ter de mergulhar nos profundos mistérios da matemática. E assim, no decurso das suas viagens ao longo dos últimos meses, visitara outras livrarias de outras universidades, para comprar mais livros.
Os seus estudos tinham sido muito pouco sistemáticos e sem um verdadeiro objectivo, pelo menos até ao dia em que entrara numa livraria universitária em Miami e saíra de lá com um exemplar
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de Dimensions in Mathematks, do Dr. L. C. Parnault (Harvard University Press, 1999). Fora isto antes de descer até às Florida Keys e começar a saltitar de ilha em ilha através do Caribe. Estivera em Guadalupe (duas noites num buraco horroroso), em Dominica (divertido e descontraído, cinco noites), em Barbados (uma noite num hotel americano onde se sentira terrivelmente deslocada) e em Santa Lúcia (nove noites). Teria considerado a hipótese de ficar mais tempo se não tivesse arranjado um inimigo na pessoa de um bandidozeco meio atrasado mental que frequentava o bar do hotel de segunda onde se alojara. Por fim, perdera a paciência e partira-lhe a cabeça com um tijolo, deixara o hotel e apanhara oferry para St. Georges, a capital de Granada. Um país de que nunca tinha ouvido falar até comprar o bilhete para o barco.
Desembarcara em Granada a meio de uma trovoada tropical, às dez horas de uma manhã de Novembro. Ficara a saber, pelo Caribbean Traveler, que Granada, também conhecida como Ilha das Especiarias, era um dos maiores produtores mundiais de noz-moscada. A ilha tinha 120 mil habitantes, mas havia outros 200 mil granadinos a viver nos Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha, o que dava uma ideia da situação do mercado de emprego local. A topografia era montanhosa, tendo por centro um vulcão adormecido, o Grand Etang.
Historicamente, Granada era uma das muitas insignificantes ex-colónias britânicas onde o capitão Barba Negra tinha, ou talvez não, desembarcado e enterrado um tesouro. Em 1795, a ilha fora notícia quando Julian Fedon, um plantador mestiço de ascendência francesa, liderara uma sublevação inspirada na Revolução Francesa. A Coroa enviara tropas que tinham abatido a tiro, enforcado ou mutilado um número considerável de rebeldes. O que mais abalara as autoridades coloniais fora o facto de até os brancos pobres, os chamados petit blancs, se terem juntado à rebelião de Fedon, sem a mínima consideração pelas barreiras raciais. A revolta fora esmagada, mas Fedon nunca chegara a ser capturado. Desaparecera no montanhoso Grand Etang e transformara-se numa espécie de Robin dos Bosques caribenho.
Cerca de 200 anos mais tarde, em 1979, um advogado chamado Maurice Bishop iniciara nova revolta que o guia de viagens dizia
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inspirada "nas ditaduras comunistas de Cuba e da Nicarágua". Mas Lisbeth ficara com uma ideia muito diferente das coisas depois de ter conhecido Philip Campbell, professor, bibliotecário, pregador baptista... e dono de uma pensão, onde ela alugara um quarto para passar os primeiros dias da sua estada na ilha. Em termos gerais, a história podia resumir-se da seguinte maneira: Bishop, um líder extremamente popular, depusera um ditador louco, um fanático dos OVNI que consagrara uma boa parte do magro orçamento nacional à procura de discos voadores. Bishop promovera a democracia económica e introduzira no país as primeiras leis sobre igualdade sexual. E então, em 1983, fora assassinado por um bando de marxistas loucos.
Seguira-se a chacina de mais de cem pessoas, incluindo o ministro dos Negócios Estrangeiros, o ministro da Condição Feminina e alguns dos mais destacados líderes sindicais. Depois disto, os Estados Unidos tinham invadido o país e restaurado a democracia. Para os granadinos, isto significara que o desemprego passara de cerca de 6% para quase 50% e que o tráfico de cocaína voltara a ser a principal fonte de rendimento nacional. Campbell abanara a cabeça ao ler a versão
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dos factos apresentada pelo guia de viagens de Lisbeth e dera-lhe algumas dicas sobre o género de pessoas e locais que devia evitar depois do anoitecer.
No caso de Lisbeth, os conselhos deste tipo caíam habitualmente em saco roto. No entanto, evitara travar conhecimento com a criminalidade de Granada ao apaixonar-se pela praia de Grand Anse, a sul de St. George's, um areal praticamente deserto que se estendia por quilómetros. Ali, podia caminhar durante horas sem ter de falar fosse com quem fosse, ou sequer encontrar vivalma. Mudara-se para o Keys, um dos poucos hotéis americanos de Grand Anse, onde estava havia sete semanas, fazendo pouco mais do que passear pela praia e comer um fruto local chamado chinup que lhe fazia lembrar as groselhas amargas da Suécia e que achava delicioso.
Era a época baixa, e raramente mais de um terço dos quartos do hotel estava ocupado. O único problema era que tanto a sua paz e sossego como os seus estudos matemáticos tinham sido perturbados pelo discreto terror do quarto ao lado.
Mikael Blomkvist tocou à campainha do apartamento de Lisbeth Salander na Lundagatan. Não esperava que ela lhe abrisse a porta, mas caíra no hábito de passar pelo apartamento uma ou duas vezes por mês, para ver se alguma coisa tinha mudado. Espreitou pela fresta da caixa do correio e viu o mesmo monte de publicidade e outro lixo postal. Era tarde, e estava demasiado escuro para perceber se o monte tinha aumentado muito ou pouco desde a sua última visita.
Demorou-se um instante no patamar antes de dar meia-volta, frustrado. Regressou sem pressas ao seu apartamento, na Bellmans-gatan, pôs água a ferver para o café e passou os olhos pelos jornais da tarde antes de ver o Rapport, o último noticiário da noite na televisão. Estava irritado e deprimido por não saber onde raio se metera Lisbeth. Sentia um vago mal-estar, e perguntou-se pela milésima vez o que lhe teria acontecido.
Convidara Lisbeth para passar os feriados do Natal em Sandhamn. Tinham dado longos passeios e discutido calmamente as repercussões
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dos dramáticos acontecimentos em que ambos tinham estado envolvidos no ano anterior, quando Blomkvist passara por aquilo que acabara por considerar uma crise prematura de meia-idade. Fora condenado por difamação e passara dois meses na prisão, a sua carreira profissional como jornalista andara pela sarjeta e deixara o seu lugar de director da revista Millennium mais ou menos em desgraça. Mas, nesse ponto, tudo dera uma enorme reviravolta. Uma encomenda para escrever a biografia do industrial Henrik Vanger - que encarara como uma forma de terapia absurdamente bem remunerada - acabara por transformar-se numa assustadora caçada a um assassino psicopata.
Fora durante essa caçada que conhecera Lisbeth Salander. Levou inconscientemente a mão à pequena cicatriz que o nó corredio lhe deixara por baixo da orelha direita. Lisbeth não só o ajudara a encontrar o assassino como também lhe salvara a vida.
Os estranhos talentos da rapariga não cessavam de espantá-lo: tinha uma memória fotográfica e uma habilidade fenomenal para lidar com computadores. Mikael considerava-se mais ou menos letrado informaticamente, mas Lisbeth dominava os computadores como se tivesse feito um pacto com o Diabo. Acabara por compreender que ela era uma hacker de renome mundial e que no seio de uma exclusivíssima fraternidade internacional dedicada ao crime informático ao mais alto nível - e não necessariamente para combatê-lo - se tornara já uma lenda, conhecida online apenas pelo nome de Vespa.
Fora a habilidade dela para se passear à-vontade por computadores alheios que lhe dera a ele os materiais necessários com que transformar a sua humilhação profissional naquilo que ficara conhecido como "o caso Wennerstrõm" - um furo jornalístico que, passado um ano, continuava a ser objecto de investigações da polícia internacional empenhada em deslindar uma complexa rede de crimes financeiros. E ele, Mikael Blomkvist, continuava a ser convidado para aparecer em programas televisivos.
Na altura, há um ano atrás, vivera aquela vitória com uma enorme satisfação. Fora, de um só golpe, vingança pessoal e reabilitação profissional. Mas a satisfação depressa esmorecera. Passadas meia dúzia
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de semanas, estava farto até aos cabelos de responder às mesmas perguntas dos jornalistas e da polícia. "Lamento, mas não vou revelar as minhas fontes." Quando um jornalista do Azerbahdzian Times, um jornal de língua inglesa, se deslocara expressamente a Estocolmo para lhe fazer as mesmas perguntas, fora a gota de água. Reduzira as entrevistas ao mínimo, e nos últimos meses só contemporizara uma vez, quando a apresentadora do programa Ela, da TV4, lhe telefonara, e isto só porque a investigação entrara numa nova fase.
A cooperação de Mikael Blomkvist com a apresentadora da TV4 tinha uma dimensão especial. Fora a primeira jornalista a pegar na história, e sem o programa dela na noite em que a Millennium lançara o furo, talvez o impacte tivesse sido muito diferente. Só mais tarde Mikael soubera que ela tivera de lutar com unhas e dentes para convencer o director de programas da estação a deixá-la ir em frente. Houvera uma resistência enorme em dar qualquer espécie de destaque "àquele palhaço" da Millennium, e até ao momento de a emissão ir para o ar não era garantido que o batalhão de advogados da estação desse luz verde à história. Vários colegas mais antigos tinham-se oposto, e tinham-na avisado de que se estivesse enganada seria o fim da sua carreira. Ela mantivera-se firme, e acabara por conseguir a história do ano.
Acompanhara pessoalmente o caso naquela primeira semana - ao fim e ao cabo, era a única jornalista que investigara aprofundadamente o assunto -, mas, a dada altura antes do Natal, Mikael Blomkvist apercebera-se de que os novos desenvolvimentos da história tinham passado a ser confiados a jornalistas do sexo masculino. Por volta do Ano Novo, soubera, por portas travessas, que ela fora afastada, a pretexto de que o acontecimento mediático mais importante do ano tinha de ser tratado por jornalistas financeiros com experiência e não por uma rapariguinha qualquer vinda de Gotland, ou de Bergslagen, ou lá de onde era que ela vinha. Quando a TV4 voltara a telefonar-lhe, Mikael explicara muito claramente que só responderia a perguntas se fosse "ela" a fazê-las. Tinham-se passado dias de amuado silêncio até os rapazes da estação capitularem.
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O crescente desinteresse de Mikael Blomkvist pelo caso Wenner-strõm coincidira com o desaparecimento de Lisbeth da sua vida. Continuava a não conseguir perceber o que se passara.
Tinham-se separado dois dias depois do Natal, e ele não voltara a vê-la durante o resto da semana. Telefonara-lhe um dia antes da véspera de Ano Novo, mas ninguém atendera.
Na véspera de Ano Novo fora duas vezes ao apartamento dela e tocara à campainha. Da primeira vez, vira luzes acesas, mas ela não abrira a porta. Da segunda vez, não havia luzes. No dia de Ano Novo voltara a telefonar-lhe, mas, mais uma vez, ninguém atendera; em compensação, ouvira uma gravação a dizer que o assinante não estava contactável.
Vira-a duas vezes, nos dias seguintes. Como não conseguia apanhá-la pelo telefone, fora até ao apartamento dela, no princípio de Janeiro, e sentara-se nos degraus da escada, disposto a esperar. Levara um livro, e aguentara teimosamente durante quatro horas até que, pouco antes das 11 da noite, ela aparecera. Transportava uma caixa de cartão castanho e detivera-se bruscamente ao vê-lo.
- Olá, Lisbeth - dissera ele, fechando o livro.
Ela lançara-lhe um olhar inexpressivo, sem vestígios de amizade ou sequer de simpatia. Em seguida, passara por ele e enfiara a chave na fechadura.
- Não vais convidar-me para um café? - perguntara ele. Ela voltara-se e dissera, em voz baixa:
- Vai-te embora. Não quero voltar a ver-te aqui.
Então, fechara-lhe a porta na cara, e ele, estupefacto, ouvira-a trancar-se por dentro.
Três dias mais tarde, tinha apanhado o metro de Slussen para T-Centralem, e quando a composição parara em Gamla Stan olhara pela janela e vira-a na gare, a menos de dois metros de distância. Vira-a no preciso instante em que as portas se fechavam. Durante cinco segundos, Lisbeth olhara através dele, como se ele fosse transparente, até dar meia-volta e sair do seu campo de visão ao mesmo tempo que o comboio recomeçava a andar.
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A conclusão era mais do que óbvia. Lisbeth Salander não queria ter nada que ver com ele. Cortara-o da sua vida tão cirúrgica e decididamente como eliminava os ficheiros no seu computador, sem explicação nem compromisso. Mudara o número do telemóvel e não respondia ao e-mail.
Mikael suspirou, apagou o televisor e foi pôr-se à janela, a olhar para o edifício da Câmara.
Talvez estivesse a cometer um erro indo ao apartamento dela de vez em quando. Se uma mulher indicava sem margem para dúvidas que não queria mais nada com ele, afastava-se. Sempre fora essa a sua atitude. Não respeitar uma tal mensagem seria, a seus olhos, mostrar falta de respeito para com ela.
Já tinham dormido juntos. Fora por iniciativa dela, e durara meio ano. Se agora ela decidia pôr fim ao caso - tão surpreendentemente como o começara - tudo bem. Era um direito que lhe assistia. Mikael não tinha qualquer problema com o papel de ex-namorado -se era isso que era -, mas aquele repúdio total espantava-o.
Não estava apaixonado por Lisbeth - eram tão diferentes quanto duas pessoas podiam ser -, mas gostava dela e sentia a falta dela, por mais exasperante que aquele nico de miúda por vezes conseguisse ser. Acreditara que o sentimento era recíproco. Em suma, sentia-se um idiota.
Ficou muito tempo à janela.
Finalmente, decidiu-se. Se Lisbeth tinha tão pouca consideração por ele que não era sequer capaz de cumprimentá-lo quando se encontravam numa estação de metro, então a amizade entre os dois tinha acabado e os estragos eram irreparáveis. Não voltaria a tentar contactá-la.
Lisbeth Salander olhou para o relógio e apercebeu-se de que, apesar de ter permanecido sentada à sombra, perfeitamente imóvel, estava encharcada em suor. Eram dez e meia da manhã. Decorou uma fórmula matemática com três linhas de comprimento e fechou o livro. Pegou na chave e no maço de cigarros que tinha em cima da mesa.
O quarto era no terceiro andar, o último do hotel. Despiu-se e meteu-se debaixo do duche.
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Um lagarto verde com 20 centímetros de comprimento estava a olhar para ela da parede, junto ao tecto. Lisbeth devolveu o olhar, mas não fez qualquer gesto para o enxotar. Havia lagartos por todo o lado, naquela ilha. Entravam pelas persianas da janela aberta, por baixo da porta, pelo exaustor da casa de banho. Lisbeth gostava de ter companhia que a deixasse em paz. A água estava fria sem estar gelada, e ela deixou-se ficar debaixo do duche uns bons cinco minutos, para se refrescar.
Quando voltou ao quarto foi pôr-se, nua, diante do espelho da porta do guarda-fato e examinou o seu próprio corpo com surpresa redobrada. Continuava a pesar apenas 42 quilos e a ter um metro e cinquenta e cinco de altura. Bem, quanto a isso, não havia nada a fazer. Tinha membros de boneca, quase frágeis, mãos pequenas e praticamente não tinha ancas.
Mas agora tinha mamas.
Toda a sua vida fora lisa, como se nunca tivesse chegado a atingir a puberdade. Aquilo incomodava-a, e sempre tivera vergonha de mostrar-se nua.
Agora, de repente, tinha mamas. Não eram, nem pouco mais ou menos, gigantescas - não fora isso que quisera, teriam parecido ridículas no seu corpo escanzelado - mas eram dois seios sólidos e redondos, de tamanho médio. O trabalho fora bem executado, e as proporções eram razoáveis. Mas faziam toda a diferença, tanto no seu aspecto como na sua autoconfiança.
Passara cinco semanas numa clínica dos arredores de Génova, a receber os implantes que formavam a estrutura dos seus novos seios. A clínica e os médicos que lá trabalhavam eram os mais reputados de toda a Europa, e como regra faziam intervenções medicamente justificadas e não simples cirurgia estética. A médica que se ocupara dela, uma mulher encantadoramente directa chamada Alessandra Perrini, dissera-lhe que o seu peito era anormalmente subdesenvolvido, o que justificava aumentá-lo por razões médicas.
O pós-operatório não fora indolor, mas os seios pareciam perfeitamente normais tanto à vista como ao tacto. Os mamilos continuavam tão sensíveis como antes, e entretanto as cicatrizes tinham
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quase desaparecido. Lisbeth não lamentara a sua decisão nem por um segundo. Estava satisfeita. Ainda agora, passados seis meses, não conseguia passar por um espelho em topless sem se deter e congratular-se por ter melhorado tanto a sua qualidade de vida.
Aproveitara a estada na clínica para mandar remover uma das tatuagens, uma vespa com dois centímetros de comprimento no lado direito do pescoço. Gostava das suas tatuagens, sobretudo do grande dragão que ia do ombro até ao meio das costas. Mas a vespa era demasiado visível, tornava-a demasiado fácil de recordar e identificar. E Lisbeth Salander não queria ser recordada nem identificada. Tinham usado um raio laser para fazer desaparecer a vespa, e, quando passava o dedo pelo pescoço, ainda sentia a cicatriz, agora quase imperceptível. Uma inspecção mais atenta revelaria uma ligeira descoloração da pele no sítio onde a tatuagem estivera, mas um simples olhar nada detectaria. Ao todo, a estada em Génova custara-lhe 190 mil coroas.
Um luxo que podia perfeitamente permitir-se.
Parou de devanear em frente do espelho e vestiu umas cuecas e um soutien. Dois dias depois de ter saído da clínica, entrara, pela primeira vez nos seus 25 anos de vida, numa boutique de lingerie e comprara a peça de roupa de que nunca até então tivera necessidade. Entretanto, fizera 26 anos e usava o soutien com uma certa sensação de fascínio.
Enfiou uns jeans e uma T-shirt preta que tinha estampada no peito a frase "Considere-se avisado!" Encontrou as sandálias e o chapéu de sol e pendurou ao ombro uma sacola de lona preta.
Ao atravessar o vestíbulo notou o murmúrio que vinha de um pequeno grupo de hóspedes do hotel reunidos junto à recepção. Abrandou o passo e apurou o ouvido.
- Pode ser perigoso? - perguntava uma mulher negra em voz alta e com um sotaque europeu. Lisbeth reconheceu-a como sendo um dos membros do grupo que chegara de Londres num voo charter e que estava no hotel havia dez dias.
Freddy McBain, o recepcionista de cabelos grisalhos que nunca deixava de cumprimentá-la com um sorriso amistoso, parecia preocupado. Estava a dizer-lhes que iam ser distribuídas informações
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completas a todos os hóspedes e que não havia qualquer motivo para preocupações desde que as seguissem à letra. A afirmação provocou uma saraivada de novas perguntas.
Lisbeth franziu a testa e continuou até ao bar, onde encontrou Ella Carmichael atrás do balcão.
- Porquê a agitação? - perguntou, apontando com o polegar, por cima do ombro, na direcção da recepção.
- Matilda ameaça fazer-nos uma visita.
- Matilda?
- Um furacão que se formou ao largo do Brasil há umas semanas e que ontem passou por Paramaribo... a capital do Suriname. Ninguém sabe muito bem que direcção vai tomar... provavelmente mais para norte, para os Estados Unidos. Mas se continuar a seguir a costa para oeste vai apanhar Trindade e Granada pelo caminho. Em resumo, é capaz de levantar-se um pouco de vento.
- Pensava que a época dos furacões já tinha acabado.
- E acabou. Normalmente, temos este problema em Setembro e Outubro. Mas o clima está tão baralhado, com essa coisa do efeito de estufa e tudo o mais, que hoje em dia nunca se sabe.
" - Okay. Para quando é que estão à espera do Matilda?
- Para breve.
- Há alguma coisa que eu deva fazer?
- Lisbeth, os furacões não são coisa com que se brinque. Tivemos um, nos anos setenta, que causou um monte de estragos, aqui em Granada. Eu tinha onze anos e vivia na povoação do Grand Etang, a caminho de Grenville, e nunca esquecerei aquela noite.
- Hum.
- Mas não precisa de preocupar-se. Não se' afaste muito do hotel, no sábado. Junte numa mala as coisas que não gostaria de perder... como esse computador com que está sempre a brincar... e esteja preparada para levá-la consigo se recebermos ordens para ir para um abrigo. Mais nada.
- Certo.
- Uma bebida?
- Não, obrigada.
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Lisbeth saiu sem se despedir. Ella Carmichael sorriu, resignada. Demorara algumas semanas a habituar-se aos modos peculiares daquela estranha rapariga e a perceber que não era uma snob... só tinha vindo de outro planeta. Mas pagava as suas bebidas sem barafustar, mantinha-se relativamente sóbria, não se metia na vida dos outros e nunca causava problemas.
O serviço de transportes públicos de Granada era assegurado por uma frota de mini-autocarros extravagantemente decorados que funcionavam sem horário fixo ou quaisquer outras formalidades, mas só durante o dia. A noite, era praticamente impossível alguém deslocar-se sem carro próprio.
Lisbeth não teve de esperar muito junto à berma da estrada para St. Georges até que um deles aparecesse. O motorista era um rasta, e a aparelhagem sonora berrava No Woman, No Cry a toda a força dos seus pulmões electrónicos. Lisbeth tapou os ouvidos, pagou o seu dólar e instalou-se o melhor que pôde entre uma mulher gorda, de cabelos grisalhos, e dois garotos que vestiam uniformes escolares.
St. Georges abraçava a baía em forma de ferradura que abrigava a Carénage, o porto interior. A volta do porto erguiam-se escarpadas colinas salpicadas de casas e velhos edifícios coloniais, com o Fort Rupert temerariamente debruçado de uma precipitosa falésia no extremo do promontório.
Era uma cidade compacta, de malha apertada, com ruas estreitas e muitas vielas que trepavam pelas colinas, e quase não havia uma única superfície plana além do campo de críquete, que servia também de hipódromo, no limite norte do casario.
Lisbeth apeou-se no porto e foi a pé até à Maclntyre's Electronics, no alto de uma curta e íngreme ladeira. Praticamente tudo o que se vendia em Granada era importado dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, de modo que custava duas vezes mais do que em qualquer outro lugar, mas ao menos a loja tinha ar condicionado.
A bateria sobressalente que encomendara para o seu PowerBook da Apple (G4 titânio com um monitor de 17 polegadas) tinha finalmente chegado. Em Miami, comprara um PDA Palm com teclado
desdobrável que servia para o e-mail e podia transportar facilmente na sacola em vez de carregar com o G4, mas era um pobre substituto para o monitor de 17 polegadas. A bateria original do PowerBook estava a dar as últimas e já só aguentava meia hora antes de ter de ser recarregada, o que era uma seca quando queria ficar no terraço do hotel, perto da piscina, além de que o abastecimento de electricidade em Granada deixava muito a desejar. Desde que chegara, semanas antes, já houvera dois apagões bastante demorados. Pagou com um cartão de crédito em nome das Wasp Enterprises, enfiou a bateria na sacola e voltou a sair para a torreira do sol.
Passou pelo Barclays e levantou 300 dólares. Em seguida, foi ao mercado e comprou cenouras, seis mangas e uma garrafa de litro e meio de água mineral. Com tudo isto, a sacola de lona ficou bem mais pesada e, quando voltou ao porto, Lisbeth estava com fome e com sede. Pensou primeiro no Nutmeg, mas já havia uma fila de pessoas à espera diante do restaurante, de modo que continuou até ao Turtleback, um sítio mais sossegado no extremo oposto do porto. Sentou-se na esplanada e pediu um prato de lulas com batatas salteadas e uma garrafa de Carib, a cerveja local. Pegou num exemplar abandonado do Grenadian Voice, que percorreu com os olhos durante dois minutos. A única coisa com interesse era um aviso dramático a respeito da possível chegada do Matilda. O texto era acompanhado pela fotografia de uma casa demolida, uma recordação dos estragos causados pelo último furacão que atingira a ilha.
Dobrou o jornal, bebeu um golo directamente da garrafa e então viu o homem do quarto 32 a sair do bar e atravessar a esplanada. Levava a pasta de couro castanho numa mão e um grande copo de Coca-Cola na outra. Olhou de passagem para Lisbeth, sem dar sinal de reconhecê-la, e foi sentar-se na outra ponta da esplanada, a olhar para a água.
Parecia muito preocupado e ficou ali sentado, imóvel, durante sete minutos, notou Lisbeth, até erguer o copo e beber três longos golos. Então, voltou a pousar o copo e recomeçou a olhar para o mar. Passado um pouco, Lisbeth desinteressou-se dele, abriu a sacola e tirou de lá o seu Dimensions in Mathematks.
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Durante toda a sua vida, Lisbeth sempre gostara de problemas e charadas. Tinha nove anos quando a mãe lhe oferecera um cubo de Rubik, que lhe pusera a habilidade à prova durante uns breves mas frustrantes 40 minutos até que compreendera como funcionava. A partir desse momento, nunca mais tivera qualquer dificuldade em resolver o problema. Nunca perdia os testes de inteligência dos jornais; cinco figuras de formas estranhas, e a pergunta era como deveria ser a sexta. Para ela, a resposta era sempre óbvia.
Na escola primária, aprendera a somar e a subtrair. A multiplicação, a divisão e a geometria eram extensões naturais. Sabia somar a conta num restaurante, fazer uma factura e calcular a trajectória de um obus disparado a uma dada velocidade de um determinado ângulo. Era fácil. Mas, antes de ler o artigo naquele exemplar do Popular Science, nunca se sentira intrigada pela matemática ou pensara sequer na tabuada como sendo matemática. Para ela, era uma coisa que aprendera numa tarde, na escola, e nunca compreendera por que razão o professor insistira em voltar ao assunto durante o ano inteiro. Então, de repente, intuíra a lógica inexorável que devia forçosamente estar por detrás dos raciocínios e das fórmulas, e fora isso que a levara pela primeira vez à secção de Matemática da livraria universitária. Mas fora só quando começara a ler Dimensions in Mathematks que todo um novo mundo se abrira à sua frente. A matemática era, na realidade, um quebra-cabeças lógico com um número infinito de variações... enigmas que era possível resolver. O truque não estava em resolver problemas aritméticos. Cinco vezes cinco seriam sempre 25. O truque estava em compreender as combinações das várias regras que permitiam resolver qualquer problema matemático, fosse
ele qual fosse.
Dimensions in Mathematks não era, estritamente falando, um manual de estudo. Era um calhamaço de 1200 páginas sobre a história da matemática desde os antigos Gregos até às actuais tentativas de compreender a astronomia esférica. Era considerado uma Bíblia, na mesma linha do que a Aritmética de Diofanto significara (e continuava
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a significar) para os matemáticos sérios. Quando abrira aquele livro pela primeira vez, no terraço do hotel da praia de Grand Anse, fora arrebatada para um mundo encantado de números. Era um livro escrito por um autor que não só sabia ensinar como era capaz de entreter o leitor com historietas e problemas surpreendentes. Graças a ele, pudera acompanhar o percurso da matemática desde Arquimedes até ao contemporâneo Jet Propulsion Laboratory, na Califórnia. Compreendera os métodos que usavam para resolver os problemas.
A equação de Pitágoras (x2 + y2 = z2), formulada cinco séculos antes de Cristo, fora uma epifania. Naquele momento, Lisbeth compreendera o significado do que decorara na escola secundária, numa das poucas aulas a que tinha assistido. Num triângulo rectângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Ficara fascinada pela descoberta de Euclides, feita por volta de 300 a. C, de que um número perfeito par é sempre o produto de dois números dos quais um é dois elevado a a menos um (a-1 expoentes) e o outro é dois elevado a a (expoente) menos um, sempre que dois elevado a a (expoente) menos um seja um número primo. Aquilo era um aperfeiçoamento da equação de Pitágoras, e ela via a infinidade de combinações possíveis.
seis igual a dois elevado a um vezes dois elevado a dois menos um
vinte e oito igual a dois elevado a dois vezes dois elevado a três menos um
quatrocentos e noventa e seis igual a dois elevado a quatro vezes dois elevado a cinco menos um
oito mil cento e vinte oito igual a dois elevado a seis vezes dois elevado a sete menos um
Podia continuar indefinidamente sem encontrar um único número que quebrasse a regra. Havia ali uma lógica que apelava à sua noção de absoluto. Assimilara, com um prazer nunca desmentido, Arquimedes, Newton, Martin Gardner e uma dúzia de outros matemáticos clássicos.
E então chegara ao capítulo sobre Pierre de Fermat, cujo enigma matemático, o "Ultimo Teorema de Fermat", a trazia baralhada havia sete semanas. Um período de tempo negligenciável, tendo em conta que Fermat dera com os matemáticos em doidos durante quase 400 anos até que, em 1993, um inglês chamado Andrew Wiles conseguira solucionar o mistério.
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O teorema de Fermat tinha um enunciado enganadoramente simples.
Pierre de Fermat nasceu em 1601, em Beaumont-de-Lomagne, no Sudoeste da França. Ironicamente, nem sequer era matemático, mas um magistrado que se dedicava à matemática como passatempo, o que o não impediu de ser considerado o maior matemático autodidacta de todos os tempos. Como Lisbeth Salander, gostava de resolver enigmas e charadas. Achava uma graça especial a provocar os outros matemáticos inventando problemas sem fornecer as soluções. Descartes usava, para se lhe referir, uma grande variedade de epítetos menos lisonjeiros, e um colega inglês, John Wallis, chamava-lhe "esse maldito francês".
Em 1621, foi publicada uma tradução em latim da Aritmética de Diofanto que continha uma compilação completa das teorias dos números que Pitágoras, Euclides e outros matemáticos da Antiguidade tinham formulado. Foi quando estudava a equação de Pitágoras que, numa explosão de puro génio, Fermat criou o seu imortal problema. Formulou uma variante do teorema de Pitágoras. Transformou o quadrado em cubo e em vez de x2 + y2 = z2, escreveu x3 + y3 = z3.
O problema era que a nova equação parecia não ter qualquer solução em que x, y e z fossem números inteiros positivos. O que Fermat acabava de fazer era, recorrendo a uma pequena alteração teórica, transformar uma fórmula que tinha um número infinito de soluções perfeitas num beco sem saída que não tinha nenhuma. Porque o seu teorema era precisamente isso: um beco sem saída. Fermat afirmava que em parte alguma do infinito universo dos números havia um número inteiro e positivo que, elevado ao cubo, representasse a soma de dois outros números inteiros e positivos elevados ao cubo, e que esta regra era geral e aplicável a todos os números inteiros e positivos com uma potência superior a 2, ou seja, precisamente a equação de Pitágoras.
Os outros matemáticos apressaram-se a concordar que assim era. Usando o método de tentativas sucessivas, confirmaram que não encontravam qualquer número que desmentisse a afirmação de Fermat. O único problema era que, mesmo que contassem até ao fim dos tempos,
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nunca seriam capazes de testar todos os números existentes - ao fim e ao cabo, são infinitos - e, consequentemente, nunca poderiam estar cem por cento seguros de que o próximo número não desmentisse ou provasse a falsidade do teorema. Em matemática, todas as afirmações têm de ser matematicamente provadas e expressas de acordo com uma fórmula cientificamente correcta. O matemático tem de poder subir a um pódio e declarar: "É assim porque..."
Fermat, como era seu hábito, acirrava provocadoramente os colegas. Assim, rabiscou, na margem de uma página do seu exemplar de Aritmética, o enunciado do problema, seguido pelas palavras: Cuius rei demonstrationem mirabilem sane detexi hanc marginis exiquitas non ca-peret. A frase ficou imortalizada na história da matemática: "encontrei uma demonstração desta proposição, realmente maravilhosa, mas a margem do livro é demasiado estreita para a conter."
Se a intenção era exasperar os seus pares, foi bem-sucedido. Desde 1637, não houve praticamente matemático que se prezasse que não tenha dedicado tempo, por vezes muito tempo, a tentar decifrar a demonstração de Fermat. Gerações de pensadores fracassaram na tarefa até que Andrew Wiles desencantou finalmente a prova que todos esperavam. Quando o conseguiu, havia 25 anos que estudava o enigma, os últimos dez a tempo inteiro.
Lisbeth Salander estava confusa.
Na verdade, não era a resposta que lhe interessava. Era o processo de solução. Quando alguém lhe propunha uma charada, ela resolvia-a. Antes de compreender os princípios do raciocínio, a resolução dos enigmas que envolvessem números era muito mais demorada, mas chegava sempre à resposta correcta antes de a ir verificar na página das soluções.
Quando leu o teorema de Fermat, pegou num pedaço de papel e pôs-se a rabiscar números. Mas não conseguiu encontrar o que procurava.
Desdenhou ir ver a resposta, de modo que passou por alto a secção que dava a solução de Wiles. Em vez disso, acabou de ler Dimen-sions e confirmou que nenhum dos outros problemas referidos no livro
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apresentava para ela uma dificuldade particular. Voltou então ao enigma de Fermat, dia após dia, com crescente irritação, perguntando a si mesma que "demonstração maravilhosa" teria ele descoberto. Meteu por becos sem saída, uns atrás dos outros.
Ergueu os olhos quando o homem do quarto 32 se pôs de pé e se encaminhou para a saída. Tinha estado ali sentado duas horas e dez minutos.
Ella Carmichael pousou o copo em cima do balcão. Descobrira, logo nos primeiros dias, que as bebidas cor-de-rosa com estúpidos guarda-sóis de papel não faziam o género daquela cliente. Lisbeth Salander pedia sempre a mesma coisa: rum com Coca-Cola. Exceptuando uma noite, em que estava com uma disposição dos diabos e se embebedara de tal maneira que Ella tivera de pedir ao porteiro que a ajudasse a levá-la para o quarto, o consumo normal ficava-se por caffé latte e um par de runs-com-cola. Ou cerveja Carib. Como sempre, tinha-se sentado no extremo direito do balcão e abrira um livro que parecia conter complicadas filas de números e que, no entender de Ella, era uma escolha estranha, em termos de leitura, para uma rapariga daquela idade.
Reparara, também, que Lisbeth não parecia minimamente interessada em "ser engatada". Os poucos solitários que tinham tentado a sorte com ela tinham sido rejeitados gentil mas firmemente. Bem, num caso, não tão gentilmente como isso. Chris MacAllen, o sujeito que levara muito literalmente com os pés, era um vadio local que andava mesmo a pedi-las. Por isso, Ella não ficara nada preocupada quando, sem que se tivesse chegado a saber muito bem como, ele tropeçara em qualquer coisa e caíra na piscina depois de ter passado a noite inteira a chagar o juízo a Miss Salander. Diga-se, em louvor de MacAllen, que não guardara rancor. Voltara ao bar na noite seguinte, sóbrio como um juiz, e perguntara a Lisbeth se podia pagar-lhe uma cerveja, que, ao cabo de uma breve hesitação, ela aceitara. A partir daí, tinham passado a cumprimentar-se delicadamente quando se encontravam.
- Tudo bem?
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Lisbeth assentiu e pegou no copo.
- Alguma novidade a respeito do Matilda?
- Continua a dirigir-se para cá. Somos capazes de ter um fim-de-semana agitado.
- Quando é que vamos saber?
- Só mesmo em cima da hora. Pode continuar a avançar para Granada e então decidir virar para norte no último instante.
Ouviram uma gargalhada um tudo nada demasiado estridente, e voltaram-se para olhar. Era a senhora do quarto 32, que achara aparentemente muita graça a qualquer coisa que o marido tinha dito.
- Quem são?
- O doutor Forbes? São americanos, de Austin, no Texas. - Ella Carmichael disse "americanos" como se cuspisse a palavra.
-Já tinha percebido que são americanos, mas que estão a fazer aqui? Ele é médico?
- Não, não é um desses doutores. Está ligado à Fundação Santa Maria.
- O que é isso?
- Apoiam a educação de crianças dotadas. Ele é uma excelente pessoa. Está a negociar com o Ministério da Educação a construção de mais uma escola secundária em Saint Georges.
- É uma excelente pessoa que bate na mulher - disse Lisbeth. -.,-. Ella lançou-lhe um olhar incisivo e acabou por afastar-se até à outra ponta do bar, para atender um par de clientes locais.
Lisbeth passou os dez minutos seguintes de nariz enfiado no livro. Descobrira que tinha uma memória fotográfica muito antes de ter chegado à puberdade, e isso tornava-a diferente 'de todos os colegas de turma. Nunca revelara o segredo a ninguém... excepto a Mikael Blomkvist, num momento de fraqueza. Já sabia de cor o texto de Dimensions in Mathematks e só carregava o livro de um lado para o outro porque ele constituía um elo físico com Fermat, como se aquele tijolo se tivesse transformado num talismã.
Naquela noite, porém, não conseguia concentrar-se no teorema de Fermat. Em vez disso, continuava a ver o Dr. Forbes, sentado,
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imóvel, na Carénage, a olhar durante duas horas para o mesmo ponto perdido no mar.
Não seria capaz de explicar como foi que desconfiou que havia ali qualquer coisa que não batia certo.
Finalmente, fechou o livro, subiu ao quarto e ligou o Power-Book. Surfar na Internet não a obrigava a pensar. O hotel não tinha banda larga, mas podia ligar o modem interno do computador ao telemóvel e receber e enviar e-mails. Teclou uma mensagem para peste_xyz_666@hotmail.com:
Sem ADSL. Preciso info sobre Dr. Forbes, da Santa Maria Foundation, e mulher, residentes em Austin, Texas. 500 dólares para quem fizer a pesquisa. Vespa.
Acrescentou a sua chave PGP pública, encriptou a mensagem com a chave PGP de Peste e enviou-a. Olhou para o relógio. Passava pouco das sete e meia da tarde.
Desligou o computador, fechou a porta do quarto à chave, caminhou 400 metros ao longo da praia, atravessou a estrada para St. George's e foi bater à porta de uma cabana nas traseiras do Coconut. George Bland tinha 16 anos e era estudante. Queria ser advogado ou médico, ou talvez astronauta, e era tão escanzelado como Lisbeth e só um poucochinho mais alto.
Lisbeth conhecera-o na praia, no dia seguinte a ter-se mudado para Grand Anse. Tinha-se sentado à sombra de umas palmeiras para ver os miúdos a jogar futebol à beira-mar. Estava embrenhada em Dimensions quando o rapaz chegara e se sentara na areia a poucos metros de distância, aparentemente sem se ter apercebido da presença dela. Observara-o em silêncio. Um rapaz negro, de sandálias, jeans pretos e camisa branca.
Também ele abrira um livro e mergulhara na leitura. Era, como o dela, um livro de matemática: Matemática Básica-4. Começara a escrever num caderno de exercícios. Quando ela tossicara, o rapaz quase dera um salto. Pedira desculpa por tê-la incomodado e preparava-se para se afastar quando Lisbeth lhe perguntara se achava a matemática difícil.
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A álgebra. Um minuto mais tarde, ela apontara-lhe um erro nos cálculos. Passada meia hora, tinham acabado os trabalhos de casa dele. Passada uma hora, tinham revisto todo o capítulo seguinte do livro e ela explicara-lhe o truque por detrás das operações aritméticas, como se fosse sua professora. O rapaz olhara para ela, fascinado. Passadas duas horas, tinha-lhe dito que a mãe vivia em Toronto, que o pai vivia em Grenville, do outro lado da ilha, e que ele vivia numa barraca um pouco mais adiante, na praia. Era o mais novo da família e tinha três irmãs.
Lisbeth achava a companhia dele surpreendentemente calmante. A situação era invulgar. Raramente iniciava uma conversa com um desconhecido apenas para falar. Não era uma questão de timidez. Para ela, uma conversa tinha de ter uma função concreta. "Como é que chego à farmácia?", ou "Quanto custa o quarto?" A conversa tinha também uma função profissional. Quando trabalhava como investigadora para Dragan Armanskij, na Milton Security, nunca tivera problemas em ter longas conversas, desde que fosse para obter informações. Por outro lado, não gostava de conversas pessoais, que levavam sempre a intromissões em áreas que ela considerava privadas. "Que idade tens?", "Adivinha", "Gostas da Britney Spears?", "Quem?", "Que achas dos quadros do Carl Larsson?", "Nunca pensei sequer nisso.", "És lésbica?", "Vai-te lixar".
Aquele rapaz era envergonhado e tímido, mas era bem educado e tentava manter uma conversa inteligente sem competir com ela nem meter o nariz na sua vida. Como ela, parecia estar só. E parecia aceitar com naturalidade que uma deusa da matemática tivesse descido do céu para a praia de Grand Anse, e com prazer que ela condescendesse em fazer-lhe companhia. Puseram-se de pé quando o sol mergulhava no horizonte. Ele acompanhara-a até ao hotel, apontando de passagem a cabana que era a sua morada de estudante. Timidamente, perguntara se podia convidá-la para um chá. Ela aceitara, o que parecera surpreendê-lo.
A cabana tinha uma mesa mal atamancada, duas cadeiras, uma cama e um armário de madeira para a roupa. A única iluminação provinha de um candeeiro de secretária com um fio que se prolongava
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até ao Coconut. O rapaz tinha um fogão de campanha. Oferecera-lhe uma refeição de arroz e legumes, que servira em pratos de plástico. Ousadamente, oferecera-lhe até um charro da droga local, que ela também aceitara.
Lisbeth não pudera deixar de notar que ele estava perturbado pela sua presença e não sabia como tratá-la. Num impulso, decidira deixá-lo seduzi-la. Acabara por ser um processo dolorosamente complicado, em que ele sem dúvida compreendia os sinais dela mas não fazia ideia de como reagir-lhes. Finalmente, ela perdera a paciência, empurrara-o para a cama e despira a camisa e os jeans.
Era a primeira vez que se mostrava nua a alguém depois da operação em Itália. Saíra da clínica com uma sensação de pânico. Demorara imenso tempo a perceber que não estava ninguém a olhar embasbacado para ela. A Lisbeth Salander que normalmente se estava nas tintas para o que os outros pensavam a seu respeito parecera ter-se sumido, naquele dia.
O jovem Bland fora a iniciação perfeita para o seu novo eu. Quando por fim, depois de algum encorajamento, conseguira desapertar-lhe o soutien, George apagara imediatamente a luz antes de despir-se também. Lisbeth voltara a acendê-la. Observara-lhe atentamente as reacções enquanto, com uma notória falta de jeito, ele começara a tocar-lhe. Só muito mais tarde descontraíra, segura de que ele pensava que os seus seios eram naturais. Por outro lado, era pouco provável que tivesse muita experiência em matéria de seios femininos.
Não tinha planeado arranjar um amante adolescente em Granada. Cedera a um impulso, e quando o deixara, muito mais tarde nessa noite, não tencionava voltar. Mas, no dia seguinte, encontrara-o na praia e apercebera-se de como aquele desajeitado rapaz era uma companhia agradável. Durante aquelas sete semanas, George Bland tornara-se uma presença habitual na vida dela. Não estavam juntos durante o dia, mas passavam as horas até ao pôr do Sol na praia e as noites sozinhos na cabana dele.
Tinha consciência de que quando passeavam juntos pareciam dois adolescentes. Sweet sixteen.
Ele achava, evidentemente, que a sua vida se tornara muito mais interessante. Conhecera uma mulher que estava a ensinar-lhe matemática e erotismo.
George Bland abriu a porta e sorriu, encantado.
- Queres companhia? - perguntou ela.
Lisbeth Salander deixou a cabana um pouco depois das duas da manhã. Tinha uma agradável sensação de calor no corpo e seguiu pela praia em vez de apanhar a estrada até ao hotel. Caminhou sozinha no escuro, sabendo que Bland estaria cem metros mais atrás.
Fazia sempre aquilo. Ela nunca ficava a noite toda, e ele protestava, dizendo que era perigoso uma mulher andar sozinha àquelas horas. Insistia em que era seu dever acompanhá-la. Sobretudo quando era muito tarde, como tantas vezes acontecia. Lisbeth ouvia-lhe as objecções e então punha fim à discussão com um firme não. "Ando por onde quero e à hora que quero. E não, não preciso de escolta." Da primeira vez que o apanhara a segui-la ficara verdadeiramente aborrecida, mas agora achava aquela necessidade de protegê-la uma ternura, de modo que fingia não perceber que ele a seguia e que daria meia-volta quando a visse entrar no hotel.
Perguntou a si mesma o que faria se fosse atacada.
Usaria o martelo que comprara na Maclntyres e que transportava na bolsa exterior da sacola. Não havia muitas ameaças físicas a que não fosse possível fazer frente com um bom martelo, pensava Lisbeth.
As estrelas cintilavam, apesar de uma lua quase cheia. Ergueu os olhos e identificou Regulus, na constelação do Leão, perto do horizonte. Estava quase a chegar ao terraço do hotel quando se deteve bruscamente. Acabava de ver alguém junto à linha de água, em frente do hotel. Era a primeira vez que via alguém na praia depois de escurecer. Estava quase a cem metros de distância, mas Lisbeth soube no mesmo instante quem era o homem que ali estava, ao luar.
Era o Excelente Dr. Forbes, do quarto 32.
Com três rápidos passos escondeu-se atrás de uma árvore. Olhou na direcção de onde tinha vindo, mas também George se tinha escondido. A figura junto à água caminhava lentamente, de um lado
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para o outro. Estava a fumar um cigarro. De vez em quando, detinha-se e inclinava-se, como que a examinar a areia. Esta pantomima continuou durante 20 minutos até que, de repente, Forbes se voltou, caminhou rapidamente para a entrada do hotel que dava para a praia e desapareceu.
Lisbeth esperou alguns minutos antes de descer até ao sítio onde ele tinha estado. Descreveu um lento semicírculo, inspeccionando a areia. Tudo o que conseguiu distinguir foi seixos e algumas conchas. Minutos depois, desistiu da busca e voltou ao hotel.
Na varanda do quarto inclinou-se apoiada à balaustrada e espreitou para a porta dos vizinhos. Silêncio total. A discussão da noite tinha obviamente terminado. Passado algum tempo, tirou da sacola umas mortalhas e começou a enrolar um charro com a droga que George lhe tinha dado. Sentou-se na cadeira da varanda e ficou a olhar para o negrume do mar das Caraíbas enquanto fumava e pensava.
Sentia-se como um posto de radar em alerta máximo, com todas as luzes a piscar no vermelho.
CAPÍTULO 2
SEXTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO
NILS ERIK BjURMAN, advogado, de 55 anos, pousou a chávena de café e ficou a ver o rio de gente que desfilava diante da montra do Café Hedon, na Praça Stureplan. Acompanhava com os olhos as pessoas que passavam, mas não via verdadeiramente nenhuma delas.
Estava a pensar em Lisbeth Salander. Pensava muitas vezes em Lisbeth Salander.
E sempre que pensava nela sentia o sangue ferver de raiva. Odiava-a tanto quanto a sua capacidade emocional permitia.
Lisbeth Salander tinha-o esmagado. Nunca esqueceria aquilo. Dominara-o e humilhara-o. Maltratara-o de uma maneira que deixara marcas indeléveis no seu corpo. Numa área que ia dos mamilos até um pouco acima das virilhas. Algemara-o à cama, torturara-o e tatuara-lhe no peito e no ventre uma mensagem cujo significado era inconfundível e que seria muito difícil de apagar.
SOU UM PORCO SÁDICO, UM PERVERTIDO E UM VIOLADOR.
O facto de o conteúdo da mensagem corresponder inteiramente à verdade não contava para nada. O ódio de Bjurman não era racional.
O Tribunal Distrital de Estocolmo declarara Lisbeth Salander legalmente interdita. E ele fora nomeado seu tutor, o que a deixara totalmente dependente dele. Começara a fantasiar a respeito dela logo na primeira vez que a vira. Não saberia explicá-lo, mas era como se a rapariga tivesse deliberadamente provocado aquela reacção, como se fosse ela a culpada. Por ele a ter violado.
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De um ponto de vista puramente intelectual, Nils Bjurman sabia que o que tinha feito não era socialmente aceitável nem permitido. Sabia que agira mal. E sabia que, juridicamente, os seus actos eram indefensáveis e puníveis com vários anos de prisão. Mas a partir do instante em que conhecera Lisbeth Salander, dois anos antes, fora incapaz de resistir-lhe. As leis, o mais básico dos códigos morais, e a sua responsabilidade como tutor dela... nada disso importava.
Era uma rapariga estranha. Uma adulta, mas com um aspecto que a fazia parecer uma criança. E ele tinha controlo absoluto sobre a vida dela; Lisbeth era o seu brinquedo.
Com o cadastro que acumulara ao longo dos anos, não teria qualquer espécie de credibilidade se lhe passasse pela cabeça queixar-se. E nem sequer se tratava de violação de uma virgem inocente - o processo dela confirmava que tivera um grande número de experiências sexuais, podia até ser considerada promíscua. O relatório de uma assistente social aludia à possibilidade de Lisbeth Salander ter oferecido serviços sexuais a troco de dinheiro quando tinha 17 anos. Uma patrulha policial notara um homem já de idade, embriagado, sentado com uma rapariga muito nova num banco de jardim, em Tantluden. Os agentes tinham interrogado o par; a rapariga recusara responder a quaisquer perguntas, e o homem estava demasiado bêbedo para dizer fosse o que fosse que se percebesse.
Aos olhos de Nils Bjurman, a conclusão não podia ser mais evidente: Lisbeth Salander era uma puta de baixo coturno, podia fazer com ela o que quisesse, o risco era nulo. E se ela se atrevesse a queixar-se à Agência de Tutoria, quem acreditaria numa palavra do que dissesse?
Não, era o brinquedo ideal: adulta, promíscua, socialmente interdita. .. e à mercê dele.
Fora a primeira vez que explorara uma das suas clientes. Até então, nunca lhe ocorrera sequer tentar fosse o que fosse com alguém com quem tivesse uma relação profissional. Para satisfazer as suas peculiares necessidades sexuais, sempre recorrera a prostitutas.
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Era discreto, e pagava bem. O problema era que as prostitutas não eram sérias, estavam só a fingir. Era um serviço que ele comprava a uma mulher que gemia e rolava os olhos: desempenhava o seu papel, mas soava a falso, a teatro de rua.
Tentara dominar a mulher durante os anos em que fora casado, mas ela limitara-se a aceitar o jogo, e também isso fora uma mentira.
Lisbeth fora a solução ideal. Indefesa. Sem família, sem amigos: a vítima perfeita, ali à mão de semear. A ocasião faz o ladrão.
E então, de repente, tinha-o esmagado. Atacara-o com uma força e uma determinação que nunca lhe passara pela cabeça que ela pudesse possuir. Humilhara-o. Torturara-o. Pouco faltara para o destruir completamente.
Durante os quase dois anos que já tinham passado, a vida de Bjurman mudara radicalmente. Depois da visita nocturna de Lisbeth Salander ao seu apartamento, ficara como que paralisado, praticamente incapaz de pensar com clareza ou de agir decididamente. Fechara-se em casa, deixara de atender o telefone, não conseguira sequer manter o contacto com os seus clientes regulares. Passadas duas semanas, entrara de baixa médica. Encarregara a secretária de lidar com a correspondência no escritório, cancelar todos os seus compromissos e manter à distância os clientes mais exaltados.
Todos os dias, era confrontado por aquela tatuagem. Acabara por tirar o espelho da casa de banho.
Voltara ao escritório no início do Verão. Passara a maior parte dos clientes a colegas. Conservara apenas empresas cujos assuntos legais podia tratar por correspondência, sem necessidade de participar em reuniões. A sua única cliente era, agora, Lisbeth Salander. Todos os meses preparava uma folha de balanço e um relatório para a Agência de Tutoria. Fazia exactamente o que ela exigira: os relatórios não continham uma ponta de verdade e deixavam bem claro que Lisbeth Salander deixara de precisar de um tutor. Cada um que redigia era como deitar sal numa ferida, mas não tinha por onde escolher.
Nils Bjurman passara o Verão e o Outono mergulhado numa sombria e impotente fúria. E então, em Dezembro, saíra da sua letargia
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e fora passar férias a França. Enquanto lá estava, consultara um especialista, numa clínica de cirurgia estética dos arredores de Marselha, sobre a melhor maneira de remover a tatuagem.
O médico examinara-lhe o abdómen com mal disfarçado espanto. Finalmente, recomendara uma linha de acção. O método mais simples seria um tratamento laser, dissera, mas a tatuagem era tão extensa, e a agulha teria de penetrar tão profundamente, que receava que a única solução realista fosse uma série de enxertos de pele. Seria caro, e demoraria tempo.
Naqueles dois anos, Bjurman vira Lisbeth Salander apenas uma vez.
Na noite em que o atacara e assumira o controlo da sua vida, Lisbeth levara os duplicados das chaves do apartamento e do escritório. Ia andar de olho nele, dissera, e apareceria quando menos esperasse. Bjurman estava quase a acreditar que se tratara de uma ameaça vã, mas, mesmo assim, não se atrevera a mudar as fechaduras. O aviso dela fora categórico: se alguma vez o apanhasse na cama com uma mulher, tornaria público o vídeo de 90 minutos que documentava o modo como ele a violara.
Em Janeiro daquele ano, acordara certa noite, às três da madrugada, sem saber muito bem porquê. Acendera a luz da mesa de cabeceira e quase gritara de susto ao vê-la aos pés da cama. Era como um fantasma que se tivesse materializado ali, a menos de dois metros dele. O rosto dela estava pálido e sem expressão. Empunhava o taser com a mão direita.
- Bom dia, senhor advogado Bjurman - dissera. - Desculpa ter-te acordado, desta vez.
Santo Deus, já ali tinha estado noutras ocasiões? Enquanto ele dormia?
Não tinha maneira de saber se ela estava a mentir. Tossicara para limpar a garganta, e preparava-se para falar quando ela o interrompera com um gesto.
- Acordei-te porque preciso de falar contigo. Vou estar fora durante bastante tempo. Continua a escrever os teus relatórios todos os meses, mas não me mandes cópias. Manda-as para este endereço de e-mail.
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Tirara um papel dobrado do bolso do casaco e deixara-o cair aos pés da cama.
- Se a Agência de Tutoria quiser contactar comigo, ou se acontecer qualquer outra coisa que exija a minha presença, escreve-me para esse endereço. Compreendido?
Ele assentira com a cabeça.
- Compreendo...
- Não fales. Não quero ouvir a tua voz.
Ele cerrara os dentes. Não ousara tentar contactá-la, uma vez que ela ameaçara enviar o vídeo às autoridades se o fizesse. Em vez disso, pensara durante meses no que lhe diria se e quando ela o contactasse a ele. Não havia verdadeiramente nada que pudesse dizer em sua defesa. Tudo o que podia fazer era apelar à humanidade dela. Tentaria convencê-la - se ela lhe desse uma oportunidade para falar - de que fizera aquilo num momento de loucura, estava amargamente arrependido e queria compensá-la. Rastejaria, se fosse preciso, se fosse isso o necessário para convencê-la, para eliminar a ameaça que ela representava.
- Tenho uma coisa a dizer - começara, numa voz chorosa. - Quero pedir-te perdão...
Ela escutara-o em silêncio. Então, pusera um pé em cima da cama e olhara para ele com uma expressão de nojo.
- Agora ouve-me tu, Bjurman. És um pervertido e eu não tenho qualquer motivo para perdoar-te. Mas, se te portares bem, deixar-te-ei em paz no dia em que a declaração da minha interdição for cancelada.
Esperara até que ele baixasse os olhos. Vai obrigar-me a rastejar.
- Mantém-se o que te disse há um ano. Se falhares, o vídeo vai para a Agência. Se tentares contactar-me de qualquer maneira diferente da que te indiquei, o vídeo vai para as televisões. Se voltares a tocar-me, mato-te.
Ele acreditara.
- Mais uma coisa. No dia em que eu te libertar, poderás fazer o que quiseres. Mas, até lá, não voltarás a pôr os pés naquela clínica de
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Marselha. Se iniciares algum tratamento, volto a tatuar-te, e desta vez vai ser na testa.
Como porra é que ela sabe da clínica?
No instante seguinte, Lisbeth tinha desaparecido. Bjurman ouvira o ligeiro estalido do trinco da porta. Fora como se um fantasma o tivesse visitado.
Naquele instante, começara a odiar Lisbeth Salander com uma intensidade que brilhava como um ferro em brasa no cérebro e transformara a sua vida na obsessão de esmagá-la. Fantasiava sobre como a matar. Imaginava-a a rastejar aos seus pés, a suplicar misericórdia. Mas ele seria implacável. Agarrar-lhe-ia o pescoço com as mãos e apertaria até ela deixar de respirar. Queria arrancar-lhe os olhos da cara e o coração do peito. Queria apagá-la da face da Terra.
Paradoxalmente, fora também por essa altura que sentira que começava a funcionar outra vez e descobrira em si mesmo um surpreendente equilíbrio emocional. Estava obcecado por aquela mulher que lhe ocupava o espírito em todos os momentos que passava acordado. Mas recomeçara a pensar racionalmente. Se queria arranjar maneira de destruí-la, ia ter de pôr a cabeça em ordem. A vida dele assentara num novo objectivo.
Deixara de fantasiar a respeito da morte dela e começara a planeá-la.
Mikael Blomkvist passou a menos de dois metros do advogado Nils Bjurman quando, transportando dois escaldantes copos de café latte, regressou, a ziguezaguear por entre as mesas do Café Hedon, à que ele e a directora editorial Erika Berger ocupavam. Nem ele nem Erika tinham alguma vez ouvido falar de Nils Bjurman, pelo que nenhum dos dois reparou no advogado.
Erika franziu o sobrolho e afastou um cinzeiro, para arranjar espaço para os copos de café. Mikael pendurou o casaco nas costas da cadeira, puxou o cinzeiro para o seu lado da mesa e acendeu um cigarro. Erika, que detestava o fumo do tabaco, lançou-lhe um olhar furioso. Ele voltou a cabeça, para soprar o fumo para o lado.
- Pensava que tinhas deixado de fumar.
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- Uma recaída temporária.
- Vou deixar de fazer amor com tipos que cheirem a tabaco - disse ela, sorrindo docemente.
- Não há problema. Não faltam por aí raparigas menos esquisitas - respondeu ele, devolvendo o sorriso.
Erika ergueu os olhos para o tecto.
- Então, qual é o problema? Fiquei de encontrar-me com a Char-lie no teatro, daqui a vinte minutos.
Charlie era Charlotta Rosenberg, uma amiga de infância.
- A nova estagiária - respondeu ele. - Não me incomoda que seja filha de uma das tuas amigas, mas ainda lhe faltam oito semanas de estágio na redacção, e não creio que consiga aguentá-la tanto tempo.
- Já tinha reparado nos olhares provocantes que ela te lança. Naturalmente, espero que te portes como um cavalheiro.
- Erika, a rapariga tem dezassete anos e dez de idade mental. E olha que estou a pecar por excesso.
- Está impressionada, é só isso. Provavelmente, um ligeiro deslumbramento. Ao fim e ao cabo, és um herói.
- Ontem à noite, às dez e meia, tocou-me à campainha. Tinha uma garrafa de vinho e queria subir.
- Ups - disse Erika.
- Ups é a palavra certa. Se eu fosse vinte anos mais novo, talvez não tivesse hesitado. Mas vou fazer quarenta e cinco um destes dias.
- Nem me lembres. Temos a mesma idade.
Mikael Blomkvist tinha, evidentemente, consciência de que o caso Wennerstrõm lhe conferira uma certa notoriedade. Ao longo daquele último ano recebera convites para os lugares, festas e eventos mais inverosímeis. Era recebido com beijinhos no ar por todo o género de pessoas a quem antes mal apertava a mão. Não se tratava essencialmente de gente dos media - esses conhecia-os a todos, e havia já muito tempo que se dava bem com uns e mal com outros -, mas das chamadas figuras culturais e celebridades da lista B que queriam dar a ideia de serem seus amigos íntimos. Estava na moda ter Mikael Blomkvist como convidado para um almoço ou um jantar privado.
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"Gostava imenso, mas infelizmente já estou comprometido", começava a ser a sua resposta habitual.
Um dos inconvenientes do estatuto de estrela era a vaga cada vez mais desenfreada de boatos. Um conhecido telefonara-lhe, preocupado, a perguntar se estava bem. Razão da pergunta: ouvira um rumor a respeito de ele ter sido visto numa clínica de desintoxicação. Na realidade, o seu consumo total de drogas, desde a adolescência, resumia-se a meia dúzia de charros e uma experiência com cocaína, na companhia da vocalista de uma banda de rock holandesa, havia mais de 15 anos. Quanto a bebida, só se embebedava a sério em jantares e festas particulares. Num bar, raramente ia além de uma caneca de cerveja, ficando-se a maior parte das vezes por uma imperial. Em casa, tinha vodca e algumas garrafas de whisky de malte escocês, tudo ofertas. Só muito de longe em longe lhes tocava.
Mikael era solteiro. O facto de ter tido várias relações ocasionais era conhecido dentro e fora do seu círculo de amigos, e agora dava azo a mais boatos. A sua longa ligação com Erika Berger era objecto de frequentes especulações. Ultimamente, dizia-se que se tornara um conquistador inveterado e estava a aproveitar a recém-adquirida celebridade para levar para a cama toda a clientela feminina dos locais de diversão nocturna de Estocolmo. Um jornalista que mal conhecia chegara inclusivamente a sugerir-lhe que procurasse ajuda médica para o seu problema sexual.
Era verdade que tivera muitas relações passageiras, por sinal, até mais do que uma em simultâneo. Sabia que era razoavelmente bem-parecido, mas nunca se considerara excepcionalmente atraente, apesar de lhe terem muitas vezes dito que tinha qualquer coisa que fazia as mulheres interessarem-se por ele. Erika explicara-lhe que irradiava autoconfiança e segurança, e tinha um jeito especial para fazer as mulheres sentirem-se à vontade. Ir para a cama com ele não era ameaçador nem complicado, mas eroticamente agradável. O que, na opinião do próprio Mikael, era como devia ser.
As suas melhores relações sempre tinham sido com mulheres que conhecia bem e de quem gostava muito, de modo que não fora por
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acaso que começara um caso com Erika Berger vinte anos antes, quando ela era uma jovem jornalista.
A sua actual notoriedade, no entanto, aumentara o interesse das mulheres por ele a um ponto que começara a achar bizarro. E o mais surpreendente eram as jovens, mesmo muito jovens, que se atiravam impulsivamente a ele nas circunstâncias mais inesperadas.
Mikael não era, porém, particular apreciador de adolescentes, apesar das suas minissaias muito minis e dos corpos perfeitos. Quando era jovem, as suas amigas eram quase sempre mais velhas - por vezes, consideravelmente mais velhas - e mais experientes. Com o tempo, a diferença de idades tendera a nivelar-se. Lisbeth Salander fora, decididamente, um passo na direcção contrária.
E era essa a razão daquele encontro combinado à pressa com Erika.
A Millennium aceitara proporcionar um estágio a uma recém-graduada de um curso profissional de jornalismo, como favor a uma das amigas de Erika Berger. Não era caso único: todos os anos a revista recebia vários estagiários. Mikael cumprimentava delicadamente a rapariga, mas não tardara em aperceber-se de que ela não tinha mais do que um muito vago interesse em jornalismo para lá de "querer ser vista na televisão" e - desconfiava ele - do facto de ser "bem" trabalhar na Millennium.
A rapariga não perdia uma oportunidade de estabelecer contacto físico com ele. Mikael fingia não se aperceber dos descarados avanços dela, o que só servia para a incitar a redobrar esforços. Com toda a franqueza, estava a tornar-se cansativo.
- Imagine-se, Mikael Blomkvist vítima de assédio sexual no trabalho! - exclamou Erika, com uma gargalhada.
- Ricky, isto é uma maçada. Não quero ofender nem embaraçar a miúda, mas ela é tão subtil como uma égua no cio. Tremo só de pensar no que poderá fazer a seguir.
- Mikael, a rapariga tem dezassete anos e as hormonas em polvorosa. Está apaixonada por ti e é demasiado nova para saber como expressar-se.
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- Estás enganada. Sabe perfeitamente como expressar-se. Há qualquer coisa de retorcido no comportamento dela, e começa a ficar irritada por eu não morder o anzol. Do que menos preciso é de uma nova vaga de rumores a dizer que sou um filho da mãe de um velho libidinoso que anda à procura de carne fresca.
- Okay, mas deixa-me ver se percebi bem o problema. Ela tocou-te à campainha ontem à noite. Foi só isso?
- Com uma garrafa de vinho. Disse que tinha estado numa festa em casa de uns amigos ali perto e quis convencer-me de que fora por puro acaso que dera por si no meu prédio.
- O que foi que lhe disseste?
- Não lhe abri a porta, evidentemente. Disse-lhe que tinha aparecido em má altura, que estava com uma amiga.
- E como reagiu ela a isso?
- Ficou chateada, mas foi-se embora.
- O que é que queres que faça?
- Tira-a de cima de mim. Estou a pensar em ter uma conversa muito séria com a fulana, na segunda-feira. Ou ganha juízo, ou corro com ela da redacção.
Erika pensou por um instante.
- Deixa-me falar com ela - disse, por fim. - A miúda anda à procura de um namorado, não de um amante.
- Não sei do que é que ela anda à procura, mas...
- Mikael, eu já passei pelo que ela está a passar. Deixa-me falar com ela.
Como qualquer pessoa que tivesse visto televisão ou lido um jornal no decurso daquele ano, Nils Bjurman já ouvira falar de Mikael Blomkvist. Mas não o reconheceu, ali no Café Hedon, e, de todos os modos, não fazia ideia de que pudesse haver uma ligação entre Lis-beth Salander e a Millennium.
Além disso, estava demasiado absorto nos seus próprios pensamentos para dar atenção ao que o rodeava.
Desde que recuperara da paralisia mental que o tolhera, não parava de descrever círculos à volta do mesmo problema.
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Lisbeth Salander tinha em seu poder um vídeo que gravara com uma câmara escondida e que mostrava o que ele fizera. Obrigara-o a vê-lo. Não havia ali lugar para interpretações benevolentes. Se chegasse à Agência de Tutoria, ou, não o permitisse Deus, fosse parar às mãos dos media, seria o fim da sua carreira, da sua liberdade e da sua vida. Sabia qual era a pena para violação agravada, exploração de uma pessoa em situação de dependência, maus tratos e maus tratos agravados; pelos seus cálculos, apanharia, no mínimo, seis anos de prisão. Um procurador mais zeloso poderia até usar uma das partes do vídeo como base para uma acusação de tentativa de assassínio.
Pouco faltara para ele a asfixiar quando, na sua excitação, lhe tapara a cara com uma almofada. Só lamentava não ter acabado o trabalho.
Não aceitariam que ela estivera aquele tempo todo a fazer um jogo. Tinha-o provocado com aqueles olhinhos de menina, seduzira-o com um corpo que parecia o de uma garota de doze anos. Fora ela que o levara a violá-la. Nunca perceberiam que tudo aquilo não passara de teatro. Ela tinha planeado. ..
A primeira coisa que ia ter de fazer era apoderar-se do vídeo e certificar-se de que não havia cópias. Era esse o cerne do problema.
Não lhe restava a mínima dúvida de que uma cabra como Lisbeth Salander havia de ter feito numerosos inimigos ao longo dos anos. E aí, ele, Nils Bjurman, tinha uma vantagem. Ao contrário de qualquer outra pessoa que tivesse tentado ou pudesse vir a tentar apanhá-la, tinha acesso a todos os registos médicos, aos relatórios da Assistência Social e às avaliações psiquiátricas. Era uma das poucas pessoas em toda a Suécia que lhe conhecia os segredos.
O processo individual de que a Agência lhe entregara uma cópia quando ele aceitara ser tutor da rapariga tinha umas míseras 15 páginas, que se limitavam a dar uma imagem da vida adulta dela e incluíam as avaliações feitas pelos psiquiatras nomeados pelo tribunal, a decisão judicial de colocá-la sob tutoria e um resumo dos saldos bancários do ano anterior.
Tinha lido aquele processo vezes sem conta. Começara então a procurar sistematicamente informações sobre a vida de Lisbeth Salander.
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Como advogado, estava habituado a extrair informação dos registos das autoridades públicas. Como tutor dela, tinha a possibilidade de penetrar as camadas de confidencialidade que envolviam os registos médicos. Podia conseguir qualquer documento que quisesse relacionado com Lisbeth Salander.
Mesmo assim, demorara meses a montar, pormenor a pormenor, um retrato da vida dela, desde os relatórios da escola primária aos relatórios das assistentes sociais, passando pelos relatórios da polícia e transcrições de decisões judiciais. Discutira o estado dela com o Dr. Jesper H. Lõderman, o psiquiatra que, quando Lisbeth fizera 18 anos, recomendara que fosse entregue a uma instituição. Lõderman fizera-lhe um resumo do caso. Tinham sido todos muito prestáveis. Uma assistente social chegara a elogiá-lo por mostrar tanta determinação em conhecer todos os aspectos da vida de Lisbeth Salander.
Descobrira uma autêntica mina de ouro de informações sob a forma de dois blocos de notas deixados a apanhar pó dentro de uma caixa no arquivo da Agência de Tutoria. Tinham pertencido ao seu antecessor, o advogado Holger Palmgren, que, aparentemente, acabara por conhecer Lisbeth Salander tão bem ou melhor do que ninguém. Palmgren tinha, conscienciosa e pontualmente, apresentado o seu relatório à Agência, ano após ano, e Bjurman supunha que, muito provavelmente, Lisbeth não sabia que também tomara meticulosas notas para si mesmo. Estes apontamentos tinham ido parar à Agência de Tutoria, onde, tudo o indicava, ninguém os tinha lido desde que ele sofrera um AVC, havia dois anos.
Tinha os originais, e não havia registo de ter sido feita qualquer cópia. Perfeito.
O retrato que Palmgren fazia de Lisbeth Salander era completamente diferente do que podia ser deduzido do relatório da Agência. Bjurman pudera seguir o laborioso trajecto de uma adolescente rebelde que se transformara em jovem adulta e conseguira um emprego na Milton Security - um emprego que ficara a dever à interferência pessoal de Palmgren. Ficara também a saber, por aquelas notas, que Lisbeth não era de modo algum uma atrasada mental que fazia fotocópias e café. Pelo contrário, tinha um trabalho a sério, fazendo
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investigação por conta de Dragan Armanskij, director executivo da Milton. Palmgren e Armanskij conheciam-se obviamente bem e, de longe em longe, trocavam informações sobre a sua protegida.
Lisbeth Salander parecia ter tido apenas dois amigos em toda a sua vida, e ambos a consideravam como sua protegida. Palmgren tinha, entretanto, saído de cena. Armanskij continuava presente, e podia revelar-se uma ameaça. Bjurman decidiu manter-se afastado dele.
Os blocos de notas vinham explicar muita coisa. Bjurman compreendeu como conseguira Lisbeth descobrir tanto a respeito dele. Continuava a não ser capaz de explicar, por mais que se esforçasse, como soubera ela da sua visita à clínica francesa, mas muito do mistério que a rodeava tinha-se dissipado. Lisbeth ganhava a vida a escavar na vida de outras pessoas. Bjurman tomara imediatamente algumas precauções na sua própria investigação e decidira que, tendo Lisbeth acesso ao apartamento dele, não seria boa ideia conservar lá quaisquer papéis relacionados com o caso. Reunira toda a documentação e enchera uma caixa de cartão que levara para a sua cabana de Verão perto de Stallarholmen, onde passava cada vez mais tempo em solitária ruminação.
Quanto mais lia a respeito de Lisbeth Salander, mais se convencia de que era uma doente mental. Estremeceu ao recordar como ela o algemara à cama. Tivera-o completamente à sua mercê, naquele momento, e não duvidava de que cumpriria a ameaça de matá-lo, se ele lhe desse motivos para isso.
Não tinha qualquer espécie de inibições sociais, concluía um dos relatórios. Pois bem, a conclusão dele ia ainda'mais longe: "Era uma doente, uma assassina, uma psicopata, uma louca perigosa. Uma granada perdida. Uma puta."
Os blocos de notas de Palmgren tinham-lhe proporcionado a última chave. Em diversas ocasiões, o seu antecessor registara, em estilo de diário, conversas muito pessoais que tivera com Lisbeth. O velho maluco. Em duas dessas conversas usava a expressão "quando Todo
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o Mal acontecera". Presumivelmente, fora buscar as palavras directamente a Lisbeth, mas não era claro a que acontecimento se referiam.
"Todo o Mal", escrevera Bjurman numa folha de papel. Os anos com famílias de acolhimento? Algum ataque em especial? A explicação tinha de estar algures na documentação a que já tivera acesso.
Pegara na avaliação psiquiátrica de Lisbeth Salander quando tinha 18 anos e lera-a de uma ponta à outra pela quinta ou sexta vez. Fora então que se apercebera de que havia forçosamente uma falha naquilo que sabia.
Tinha excertos das observações dos professores da escola primária, uma declaração ajuramentada segundo a qual a mãe de Lisbeth nunca pudera cuidar dela, relatórios de várias famílias de acolhimento durante os anos de adolescência.
Alguma coisa provocara a loucura quando ela tinha 12 anos.
E havia outras lacunas na biografia de Lisbeth Salander.
Descobrira, com enorme surpresa, que havia uma irmã gémea que não era mencionada no material que já conhecia. Meu Deus, são duas. Mas não conseguira encontrar qualquer referência ao que acontecera a essa irmã.
Não se sabia quem era o pai e não havia qualquer explicação do motivo por que a mãe nunca pudera cuidar dela. Bjurman supusera que tinha adoecido e que fora em resultado disso que todo o processo começara, incluindo a passagem pela clínica de pedopsiquiatria. Agora, porém, tinha a certeza de que alguma coisa acontecera quando Lisbeth tinha 12 ou 13 anos. Todo o Mal. Um trauma qualquer. Mas não havia, nas notas de Palmgren, qualquer indicação a respeito do que "Todo o Mal" pudesse ter sido.
Na avaliação psiquiátrica encontrara finalmente referência a um anexo que faltava: o número de um relatório da polícia datado de 12 de Março de 1991- Estava anotado à mão, na margem da cópia que obtivera no arquivo da Assistência Social. Pedira para ver o relatório, e fora-lhe dito que estava classificado como "SECRETO por ordem de Sua Alteza Real", mas que podia apresentar o pedido ao serviço pertinente.
Bjurman ficara espantado. O facto de um relatório policial referente a uma miúda de 12 anos ser considerado material classificado
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não tinha, em si mesmo, nada de surpreendente: podia haver dúzias de razões para a protecção de privacidade. Mas ele era o tutor de Lisbeth Salander e tinha o direito de consultar qualquer documento que dissesse respeito à sua pupila. O que não compreendia era o porquê da necessidade de apresentar um requerimento ao governo para ter acesso ao relatório.
Fizera o requerimento. Dois meses mais tarde, fora informado de que tinha sido indeferido. Que poderia haver num relatório policial com quase 15 anos a respeito de uma rapariga tão nova que fizesse dele um caso de defesa nacional? Que possível ameaça poderia representar para o Governo sueco?
Voltara aos apontamentos de Palmgren, numa tentativa de perceber o que teria sido aquela história de "Todo o Mal". Mas não encontrara a mais pequena pista. O assunto fora com certeza discutido entre Palmgren e Lisbeth, mas nunca registado por escrito. A referência a "Todo o Mal" só aparecia quase no fim do segundo bloco de notas. Talvez Palmgren não tivesse tido tempo para anotar as suas próprias conclusões sobre aquela, aparentemente crucial, série de acontecimentos antes de ter a trombose.
Palmgren fora curador de Lisbeth Salander desde que ela tinha 13 anos e seu tutor a partir do dia em que fizera 18. O que significava que entrara na história pouco depois de "Todo o Mal" ter acontecido e Lisbeth ter sido internada na clínica pedopsiquiátrica. O mais certo era ter sabido do que se tratava.
Bjurman voltara ao arquivo da Agência de Tutoria, dessa vez para procurar a descrição pormenorizada da missão de Palmgren, tal como fora definida pela Assistência Social. À primeira vista, o documento era uma decepção: duas páginas de informação geral. A mãe de Lisbeth Salander não estava em condições de criar a filha; as duas irmãs tinham sido separadas; Camilla Salander fora colocada, através da Assistência Social, numa família de acolhimento; Lisbeth Salander fora internada na Clínica Pedopsiquiátrica Sankt Stefan. Não tinha sido considerada qualquer alternativa.
Porquê? Apenas uma frase enigmática: "Considerando os acontecimentos de 3/12/91, os Serviços de Assistência Social determinaram..."
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Seguia-se nova referência ao relatório policial classificado como secreto. Mas com um novo pormenor: o nome do polícia que o redigira.
Bjurman ficara a olhar para aquele nome, estupefacto. Conhecia-o. Conhecia-o até muito bem, e aquela descoberta lançava uma nova luz sobre todo o caso. Mesmo assim, precisara de mais dois meses para conseguir o relatório, recorrendo, desta vez, a métodos muito diferentes. O documento consistia de 47 páginas A4, mais cerca de uma dúzia de páginas com notas acrescentadas ao longo de um período de seis anos. E, finalmente, as fotografias. E o nome.
Meu Deus... não épossível.
Havia outra pessoa que tinha razões para odiar Lisbeth Salander tão intensamente como ele.
Bjurman não estava sozinho.
Tinha um aliado, o mais improvável aliado que poderia imaginar.
Nils Bjurman foi arrancado ao seu devaneio por uma sombra que se projectou sobre a mesa do Café Hedon. Ergueu os olhos e viu um homem loiro, um... gigante, era a única palavra que servia para descrevê-lo. Encolheu-se instintivamente durante uma fracção de segundo antes de recuperar a compostura. Arqueou inquisitivamente uma sobrancelha.
O homem que olhava para ele tinha mais de dois metros de altura e era excepcionalmente bem constituído. Um adepto da musculação, sem dúvida. Bjurman não viu o mais pequeno vestígio de gordura ou de flacidez. Usava os cabelos loiros quase rapados dos lados e com uma curta e eriçada crista em cima. Tinha um rosto oval, estranhamente gentil, quase infantil. Os olhos azuis, frios como gelo, não eram, porém, nem remotamente gentis. Vestia um casaco de couro preto que lhe chegava quase aos joelhos, camisa azul, gravata e calças pretas. A última coisa em que Bjurman reparou foi nas mãos. Se todo ele era grande, as mãos eram enormes.
- Doutor Bjurman?
Falava com um sotaque europeu que Bjurman não conseguiu identificar, mas a voz era tão aguda que o advogado teve de reprimir
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um sorriso. Com um esforço, manteve a expressão neutra e assentiu com a cabeça.
- Recebemos a sua carta.
- Quem é você? Queria falar...
O homem das mãos enormes já estava sentado em frente dele, e interrompeu-o.
- É comigo que vai ter de falar. Diga-me o que quer. Bjurman hesitou. Detestava de sobremaneira a ideia de pôr-se à
mercê de um desconhecido, mas era preciso. Recordou a si mesmo que não estava sozinho no seu ódio a Lisbeth Salander. Tratava-se de recrutar aliados. Falando em voz baixa, explicou o que queria.
CAPÍTULO 3
SEXTA-FEIRA, 17 DE DEZEMBRO - SÁBADO 18 DE DEZEMBRO
LISBETH Salander acordou às sete da manhã, tomou um duche e desceu à recepção para perguntar a Freddy McBain se havia um beach bugy que pudesse alugar. Dez minutos mais tarde, tinha pagado a caução, ajustado o assento e o retrovisor, testado a ignição e verificado que o depósito estava cheio. Dirigiu-se ao bar e pediu um caffé latte e uma sanduíche de queijo para o pequeno-almoço, e uma garrafa de água mineral para levar. Durante o pequeno-almoço entreteve-se a rabiscar num guardanapo de papel e a remoer o teorema de Pierre de Fermat: x elevado a três mais y elevado a três igual a z elevado a três.
Passava pouco das oito quando o Dr. Forbes entrou. Recém-barbeado, de fato escuro, camisa branca e gravata azul. Pediu ovos, torradas, sumo de laranja e café. Às oito e meia, pôs-se de pé, saiu e enfiou-se no táxi que o esperava.
Lisbeth seguiu-o a uma distância razoável. Forbes largou o táxi junto ao Seascape, no início da Carénage, e começou a passear lentamente à beira da água. Lisbeth continuou mais algumas dezenas de metros, estacionou o bugy mais ou menos a meio do passeio do cais e esperou pacientemente que ele passasse para continuar a segui-lo.
À uma da tarde, estava encharcada em suor e tinha os pés inchados. Havia quatro horas que caminhava, subindo e descendo as ruas de St. Georges. Em passo de passeio, mas sem paragens, e começava a sentir nos músculos das pernas o esforço imposto pelas íngremes ladeiras da cidade. Estava espantada com a resistência de Forbes. Bebeu a água que lhe restava na garrafa, e preparava-se para desistir do projecto quando, de repente, ele se encaminhou para o Turtleback. Aguardou
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dez minutos antes de entrar também no restaurante e sentar-se na esplanada. Ocuparam ambos os mesmos lugares que no dia anterior, e, tal como então tinha feito, ele bebeu Coca-Cola e olhou para as águas do porto.
Forbes era uma das raríssimas pessoas em Granada que usavam fato e gravata. O calor parecia não o incomodar.
Às três da tarde, arrancou Lisbeth aos seus pensamentos pagando e saindo do restaurante. Caminhou sem pressas ao longo da Carénage e apanhou um dos mini-autocarros que faziam a ligação com Grand Anse.
Lisbeth estacionou diante do Keys Hotel cinco minutos antes de o mini-autocarro o deixar à porta. Foi para o quarto, encheu a banheira de água fria e enfiou-se nela, de testa pensativamente franzida.
O exercício da manhã - ainda lhe doíam os pés - deixara-lhe uma mensagem muito clara. Todos os dias, Forbes saía do hotel vestido para a luta, com a sua pasta de couro castanho, e passava o dia sem fazer absolutamente nada excepto matar o tempo. Fosse o que fosse que estivesse a fazer em Granada, não era com certeza a planear a construção de uma nova escola, apesar de querer dar a impressão de que se encontrava na ilha para tratar de negócios.
Para quê todo este teatro?
A única pessoa a quem podia estar interessado em esconder qualquer coisa era a mulher, que presumivelmente acreditava que ele passava os dias ocupadíssimo. Mas porquê? Seria possível que o negócio tivesse ido pelo cano e o orgulho o impedisse de admiti-lo? Ou teria a visita a Granada um objectivo completamente diferente? Estaria à espera de alguma coisa? Ou de alguém?
Abriu o e-mail. Tinha quatro mensagens. A primeira era de Peste e fora enviada logo uma hora depois de ela lhe ter escrito. Estava encriptada e perguntava: "Estás mesmo viva?" Peste nunca fora do género de escrever longos e-mails carregados de sentimento. E, por pensar nisso, ela também não.
Duas outras tinham chegado por volta das duas da manhã. Uma era de Peste, também encriptada, a dizer-lhe que um conhecido da Internet, que assinava Bilbo e vivia precisamente no Texas, ia pegar
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no assunto. Peste acrescentava o endereço e-mail de Bilbo e a respectiva chave PGP. Minutos mais tarde, Bilbo enviara uma mensagem, de um endereço hotmail. A mensagem dizia apenas que enviaria informações sobre o Dr. Forbes e a mulher nas próximas vinte e quatro horas.
A quarta mensagem era também de Bilbo, enviada ao fim da tarde. Continha um NIB encriptado e um endereço ftp. Lisbeth abriu o URL e encontrou um ficheiro Zip com 390 KB, que descarregou e guardou. Era uma pasta que continha cinco documentos Word e quatro fotos de baixa resolução. Duas eram do Dr. Forbes, outra fora tirada na estreia de uma peça de teatro e mostrava Forbes com a mulher, e a quarta mostrava-o no púlpito de uma igreja.
O primeiro documento tinha 11 páginas de texto e era o relatório de Bilbo. O segundo consistia em 84 páginas de texto descarregadas da Internet. Os dois seguintes eram recortes do Austin American-Statesman, digitalizados em OCR, o último era um resumo sobre a congregação a que o Dr. Forbes pertencia, a Igreja Presbiteriana de Austin South.
Além de saber o Levítico de cor - no ano anterior tivera ampla ocasião de interessar-se pelos castigos bíblicos -, os conhecimentos de Lisbeth em matéria de história religiosa eram modestos. Tinha uma vaga noção das diferenças entre as igrejas judaicas, presbiterianas e católicas e sabia que as judaicas se chamavam sinagogas. Por um momento, receou ter de mergulhar nos pormenores religiosos. Mas, pensando melhor, a verdade era que se estava nas tintas para o tipo de congregação a que o Dr. Forbes pertencia.
O Dr. Richard Forbes, também conhecido como reverendo Ri-chard Forbes, tinha 42 anos. Segundo a homepage da Igreja Presbiteriana de Austin South, a congregação empregava sete pessoas. O Rev. Duncan Clegg ocupava o primeiro lugar da lista. A foto mostrava um homem bem constituído, com uma basta cabeleira grisalha e uma bem cuidada barba também grisalha.
Forbes era o terceiro da lista, responsável pelas questões ligadas ao ensino. A seguir ao nome estava escrito, entre parêntesis, a designação "Holy Water Foundation".
Lisbeth leu a introdução à declaração de princípios da Igreja:
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Através da oração e da acção de graças, serviremos o povo de Austin South oferecendo a estabilidade, a teologia e a ideologia de esperança tal como são defendidas pela Igreja Presbiteriana da América. Como servidores de Cristo, oferecemos um refúgio aos necessitados e a promessa de reconciliação com Deus através da oração e do sacramento do baptismo. Rejubilemos no amor a Deus. O nosso dever é derrubar as barreiras que separam as pessoas e eliminar os obstáculos à compreensão da mensagem de amor a Deus.
Por baixo da introdução aparecia o número da conta bancária da Igreja e um apelo aos crentes para que manifestassem de forma tangível o seu amor a Deus.
Pela leitura do resumo biográfico fornecido por Bilbo, Lisbeth ficou a saber que Forbes nascera em Pine Bluff, no Nevada, e fora agricultor, homem de negócios, administrador escolar, correspondente local de um jornal do Novo México e manager de uma banda de rock cristã antes de, aos 31 anos, aderir à Igreja Presbiteriana de Austin South. Era contabilista diplomado e também estudara arqueologia. Bilbo não conseguira, no entanto, descobrir qualquer suporte credível para o título de doutor.
Fora no seio da Igreja que conhecera Geraldine Knight, única filha do rancheiro William F. Knight, também membro fundador da congregação. Tinham casado em 1997 e, a partir daí, a sua carreira arrancara decididamente. Tornara-se director da Santa Maria Foundation, cujo objectivo era "investir os fundos de Deus em projectos educacionais para os necessitados".
Forbes tinha sido preso duas vezes. Com 25 anos, em 1987, fora acusado de ofensas corporais agravadas na sequência de um acidente de viação. Fora absolvido em tribunal. Tanto quanto Lisbeth podia dizer pelos recortes de imprensa, estava de facto inocente. Em 1995, fora acusado de desviar dinheiro da banda de rock cristã que representava. Também dessa vez fora absolvido.
Em Austin, tornara-se uma figura pública proeminente e membro do Conselho Municipal para o Ensino. Era membro do Partido Democrata, participava activamente em obras de caridade e angariava fundos para financiar a educação de crianças oriundas de famílias
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menos afortunadas. A Igreja Presbiteriana de Austin South concentrava a sua acção na comunidade de língua espanhola.
Em 1991, tinham sido levantadas contra ele suspeitas de irregula-ridades financeiras no seu trabalho na Santa Maria Foundation. Um artigo de jornal acusara-o de ter aplicado em fundos de investimento mais activos da fundação do que os estatutos permitiam. As alegações tinham sido refutadas pela Igreja e o Rev. Clegg mantivera-se firme ao lado de Forbes durante toda a controvérsia. Não chegara a ser formulada qualquer acusação e uma auditoria nada descobrira de anormal.
Lisbeth estudou o resumo que Bilbo fizera das finanças pessoais de Forbes. Tinha um rendimento anual de 60 mil dólares, o que era considerado um salário decente, mas não tinha quaisquer activos. Geraldine Forbes era a responsável pela estabilidade financeira do casal. Com a morte do pai, em 2002, vira-se única herdeira de uma fortuna de 40 milhões de dólares. Não tinham filhos.
Forbes dependia, portanto, da mulher em matéria de dinheiro. Lisbeth pensou que era uma posição particularmente incómoda para quem tinha o hábito de bater na mulher.
Entrou na Internet e enviou uma mensagem encriptada a Bilbo, a agradecer o relatório, e, em seguida, transferiu os 500 dólares para a conta dele.
Foi para a varanda e apoiou-se à balaustrada. O sol estava a pôr-se. Uma brisa agitava as copas das palmeiras ao longo do paredão da praia. Matilda começava a estender os dedos na direcção de Granada. Lisbeth seguiu o conselho de Ella Carmichael e enfiou o computador, o livro Dimensions in Mathematics, o estojo de artigos de higiene pessoal e uma muda de roupa na sacola de lona preta, que pousou ao lado da cama. Feito isto, desceu até ao bar e pediu um prato de peixe e uma garrafa de Carib para o jantar.
O único acontecimento interessante deu-se quando o Dr. Forbes, que tinha mudado de roupa e vestia agora um pólo claro, calções e ténis, se aproximou do bar e interrogou Ella sobre as movimentações de Matilda. Não parecia particularmente preocupado. Usava um fio de ouro com uma cruz ao pescoço e tinha um ar vigoroso, atraente, mesmo.
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Lisbeth estava esgotada depois do seu infrutífero deambular pelas ruas de St. Georges. Deu um curto passeio depois do jantar, mas o vento soprava forte e a temperatura descera acentuadamente. Voltou ao quarto e, às nove horas, já estava na cama. O vento sacudia as portadas das janelas. Tivera a intenção de ler um pouco, mas adormeceu quase imediatamente.
Foi acordada pelo barulho de qualquer coisa a bater. Olhou para o relógio: onze e um quarto. Saltou da cama e abriu a janela da varanda. As rajadas de vento empurraram-na para dentro. Agarrou-se às ombreiras da porta, avançou cautelosamente um passo e olhou em redor.
Algumas lâmpadas penduradas à volta da piscina balouçavam loucamente, criando um dramático espectáculo de sombras no jardim. Reparou que havia vários hóspedes do hotel reunidos junto à abertura do muro circundante, a olhar para a praia. Outros tinham-se agrupado perto do bar. Viu, a norte, as luzes de St. Georges. Não chovia, apesar de o céu estar carregado de nuvens. Na escuridão, não conseguia ver o mar, mas as ondas rugiam muito mais alto do que era costume. A temperatura descera ainda mais. Pela primeira vez desde que chegara a Granada, tiritou de frio.
Ainda estava na varanda quando ouviu alguém bater à porta. Enrolou um lençol à volta do corpo e foi abrir. Freddy McBain tinha uma expressão resoluta.
- Peço desculpa por incomodá-la, mas parece que temos uma tempestade.
- Matilda.
- Matilda - assentiu McBain. - Atingiu Tobago ao princípio da noite, e temos notícia de estragos substanciais.
Lisbeth reviu os seus conhecimentos de geografia e meteorologia. Trindade e Tobago ficavam a cerca de 200 quilómetros a sudoeste de Granada. Uma tempestade tropical podia ter um raio de quase cem quilómetros e deslocar-se a uma velocidade de 30 ou 40 quilómetros por hora. O que significava que Matilda podia estar a bater à porta
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de Granada de um momento para o outro. Tudo dependia da direcção que seguisse.
- Não há perigo imediato - continuou McBain -, mas não vamos correr riscos. Quero que reúna os seus objectos de valor num saco e desça até ao vestíbulo. O hotel fornecerá café e sanduíches.
Lisbeth lavou a cara, para acordar, enfiou uns jeans, uns sapatos e uma camisa de flanela, e pegou na sacola de lona. Antes de sair do quarto, abriu a porta da casa de banho e acendeu a luz. O lagarto verde não estava lá; devia ter-se metido num buraco qualquer. Bicho esperto.
No bar, foi sentar-se no seu lugar do costume. Ella Carmichael orientava um grupo de empregados que enchiam garrafas-termo com bebidas quentes. Pouco depois, aproximou-se do canto de Lisbeth.
- Olá. Está com ar de quem acaba de acordar.
- Dormi um pouco. O que é que acontece agora?
- Esperamos. Temos tempestade no mar e recebemos um alerta de furacão vindo de Trindade. Se as coisas piorarem e o Matilda vier para estas bandas, vamos para a cave. Quer dar uma ajuda?
- O que é que posso fazer?
- Temos no vestíbulo cento e sessenta mantas que é preciso levar para baixo. E há um monte de coisas que têm de ser guardadas.
Lisbeth ajudou a levar as mantas para a cave e a trazer do terraço da piscina para o vestíbulo floreiras, cadeiras, mesas e outras coisas que não estavam presas ao chão. Quando Ella ficou satisfeita e lhe disse que era o suficiente, foi até à abertura do muro que dava para a praia e avançou alguns passos na escuridão. O mar rugia ameaçadoramente, e o vento puxava-a com tanta força que teve de fazer um esforço para se manter de pé. As palmeiras ao longo do muro balouçavam numa dança furiosa.
Voltou para dentro, sentou-se ao balcão e pediu um café latte. Já passava da meia-noite. O ambiente entre os hóspedes e o pessoal era de nervosismo. As pessoas conversavam em voz baixa, olhando de vez em quando para o horizonte, à espera. Havia 32 hóspedes e dez empregados no Keys Hotel. Lisbeth reparou em Geraldine Forbes sentada a uma mesa, perto da recepção. Parecia tensa e tinha um copo de bebida na mão. O marido não estava à vista.
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Lisbeth bebeu o seu café, e tinha recomeçado a remoer o teorema de Fermat quando McBain saiu do escritório e se deteve no meio do vestíbulo.
- A vossa atenção, por favor. Fui informado de que uma tempestade com intensidade de furacão acaba de atingir Petit Martinique. Sou obrigado a pedir a todos que desçam imediatamente à cave.
McBain ignorou as muitas perguntas e encaminhou os seus hóspedes para as escadas da cave, por detrás do balcão da recepção. Petit Martinique, uma pequena ilha que pertencia a Granada, ficava a poucas milhas marítimas a norte da ilha principal. Lisbeth olhou para Ella Carmichael e apurou o ouvido quando ela se aproximou de McBain.
- É muito mau?
- Não temos meio de saber: as linhas telefónicas caíram - respondeu ele, em voz baixa.
Lisbeth desceu à cave e pousou a sacola em cima de uma manta, num canto. Pensou por um instante, e então voltou a subir as escadas, contra a corrente que vinha do vestíbulo. Encontrou Ella e perguntou-lhe se havia mais alguma coisa que pudesse fazer para ajudar. Ella abanou a cabeça, com um ar preocupado.
- Este Matilda é um sacaninha. Vamos ter de esperar para ver o que acontece.
Lisbeth viu um grupo de cinco adultos e cerca de dez crianças entrar apressadamente no vestíbulo, vindo de fora. McBain ocupou-se deles e encaminhou-os para a entrada da cave.
Subitamente, sentiu-se invadir pelo medo.
- Suponho que por esta altura já toda a gente foi para as caves - disse, em voz baixa.
Ella estava a olhar para a família que descia as escadas.
- Infelizmente, a nossa é uma das poucas caves que existem em Grand Anse. Há-de aparecer mais gente a procurar refúgio aqui.
Lisbeth olhou vivamente para ela.
- E os outros, que vão fazer?
- Os que não têm caves? - Ella deixou escapar um risinho amargo. - Vão encolher-se em casa ou procurar abrigo num sítio qualquer. E confiar em Deus.
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Lisbeth voltou-se, atravessou o vestíbulo a correr e saiu porta fora.
George Bland.
Ouviu Ella chamá-la, mas não se deteve para explicar.
Ele vive numa merda de uma barraca que a primeira rajada vai atirar abaixo.
Quando chegou à estrada de St. George's, cambaleou sob a força do vento que a puxava e empurrava, e então começou a correr. Corria teimosamente contra o vento, inclinada para a frente, a tropeçar. Demorou quase dez minutos a fazer os 400 metros até à cabana. Não viu ninguém pelo caminho.
A chuva chegou sem aviso, como o jacto gelado de uma mangueira. Nesse preciso instante, Lisbeth virou na direcção da cabana de George e viu a luz do candeeiro de querosene a dançar na janela. Ficou instantaneamente encharcada e mal conseguia ver dois metros à frente do nariz. Bateu à porta com os punhos cerrados. George abriu-a, com uma expressão de espanto.
- Que estás aqui a fazer? - gritou ele, para se fazer ouvir acima do uivo do vento.
- Anda! Tens de vir para o hotel! Eles têm uma cave!
O rapaz parecia em choque. O vento fechou a porta com estrondo, e George demorou vários segundos a conseguir abri-la novamente. Lisbeth agarrou-o pela T-shirt e puxou-o para fora. Limpou-lhe a água da cara, e então pegou-lhe na mão e começou a correr. Ele correu ao lado dela.
Foram pela praia, o que significava menos cerca de cem metros do que pela estrada. Quando chegaram a meio caminho, Lisbeth apercebeu-se de que talvez tivesse sido um erro. Na praia, não tinham qualquer espécie de protecção. O vento e a chuva açoitavam-nos tão furiosamente que tiveram de parar várias vezes. O ar estava cheio de areia e de ramos. O barulho era horrível. Ao cabo do que lhe pareceu uma eternidade, avistou finalmente as paredes do hotel e apressou o passo. No preciso instante em que ia transpor a entrada e alcançar a segurança, olhou por cima do ombro para a praia. E deteve-se bruscamente.
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Acabava de ver, através da cortina de chuva, duas figuras a 50 metros de distância. George puxou-a pelo braço, para a arrastar para dentro. Ela largou-lhe a mão e apoiou-se ao muro, a tentar distinguir o que se passava junto à linha de água. Durante um ou dois segundos, a chuva ocultou-lhe as duas figuras, mas então um relâmpago incendiou o céu de uma ponta à outra.
Já sabia que eram Richard e Geraldine Forbes. Estavam mais ou menos no mesmo sítio onde vira Forbes andar de um lado para o outro, na noite anterior.
Quando o relâmpago seguinte iluminou a cena, Forbes parecia estar a arrastar a mulher, que se debatia.
As peças do quebra-cabeças encaixaram-se umas nas outras. A dependência económica. As acusações de irregularidades financeiras em Austin. As deambulações sem objectivo e as horas passadas no Tur-tleback.
Estava a planear matá-la. Quarenta milhões de dólares em cima da mesa. A tempestade é o álibi. Esta é a oportunidade perfeita.
Voltou-se e empurrou George para o outro lado da entrada. Olhou em redor e encontrou a desconjuntada cadeira de madeira onde o guarda da noite costumava sentar-se e que não fora levada para dentro. Bateu com ela contra o muro até a desmanchar e pegou numa das pernas. George gritou, horrorizado, ao vê-la correr para a praia.
As rajadas furiosas quase a atiravam ao chão, mas ela cerrava os dentes e continuava a avançar, passo a passo, enfrentando a tempestade. Tinha quase chegado junto do casal quando um novo relâmpago lhe mostrou Geraldine Forbes caída de joelhos à beira da água. O marido estava de pé junto dela, o braço erguido pronto para bater com o que parecia ser uma barra de ferro. Lisbeth viu o braço descer num arco em direcção à cabeça da mulher. Geraldine deixou de lutar.
Forbes nem sequer a viu chegar. Sentiu uma dor lancinante quando a perna da cadeira o atingiu na base da nuca, e caiu de bruços na areia.
Lisbeth inclinou-se e agarrou um braço de Geraldine. Enquanto o vento continuava a fustigá-las, virou o corpo de cara para cima.
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No mesmo instante, ficou com as mãos cobertas de sangue. Geraldine Forbes tinha um ferimento na cabeça. Era pesada como chumbo, e Lisbeth olhou desesperadamente em redor, perguntando a si mesma como ia conseguir arrastá-la até ao muro do hotel. Então, George apareceu a seu lado. Gritou qualquer coisa que Lisbeth não conseguiu perceber no meio do rugido da tempestade.
Olhou para Forbes. Estava de costas para ela, mas tinha-se posto de gatas. Pegou no braço esquerdo de Geraldine, passou-o por cima dos ombros e fez sinal a George para que fizesse o mesmo com o outro braço. Entre os dois, começaram a arrastar penosamente o corpo pela areia.
A meio caminho do hotel, Lisbeth estava completamente exausta, como se toda a força se lhe tivesse esvaído do corpo. O coração saltou-lhe no peito quando sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro. Largou Geraldine, rodou sobre si mesma, disparou a perna para a frente e atingiu Forbes nos testículos. Ele cambaleou e caiu de joelhos. Lisbeth pontapeou-o na cara. Viu a expressão horrorizada de George. Deu-lhe meio segundo de atenção antes de voltar a pegar no braço de Geraldine e recomeçar a arrastá-la.
Passados alguns segundos, voltou a ver o hotel. Forbes avançava aos tropeções, dez passos atrás deles, mas cambaleava como um bêbedo, sacudido pelas rajadas de vento.
Um novo relâmpago rasgou a escuridão, e Lisbeth abriu muito os olhos, paralisada pelo terror.
Cem metros atrás de Forbes, no mar, viu o dedo de Deus.
Uma imagem gélida na súbita explosão de luz, um pilar negro como carvão que subia para o céu e desaparecia nas nuvens.
Matilda.
Não pode ser.
Um furacão... sim.
Um tornado... impossível.
Granada não é uma zona de tornados.
Um megatornado numa região onde não é suposto haver tornados.
Os tornados não se formam sobre a água.
Isto está cientificamente errado.
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Isto é algo único.
Veio para me levar.
Também George vira o tornado. Gritaram um ao outro, apressando-se mutuamente, incapazes de ouvir o que o outro dizia.
Vinte metros para o muro. Dez. Lisbeth tropeçou e caiu de joelhos. Cinco. Na entrada, olhou uma última vez por cima do ombro. Teve um vislumbre de Forbes no preciso instante em que era puxado para o mar, como se uma grande mão invisível o tivesse apanhado. Continuando a arrastar o corpo inanimado de Geraldine, atravessaram aos tombos o pátio das traseiras. Lisbeth ouvia, acima do rugido da tempestade, o estilhaçar dos vidros das janelas e o uivo agudo das chapas metálicas retorcidas. Uma tábua passou a voar a poucos centímetros da cara dela. No instante seguinte, sentiu uma dor quando qualquer coisa sólida lhe bateu nas costas. A violência do vento diminuiu quando entraram no vestíbulo.
Lisbeth obrigou George a deter-se e agarrou-lhe o colarinho da camisa. Puxou a cabeça dele para si e gritou-lhe ao ouvido:
- Encontrámo-la na praia. Não vimos o marido. Compreendeste?
Ele assentiu.
Arrastaram Geraldine Forbes até ao fundo das escadas da cave e Lisbeth deu um pontapé na porta. McBain abriu-a e ficou a olhar para eles. Então, puxou-os para dentro e voltou a fechar a porta.
No mesmo instante, o barulho da tempestade transformou-se de um rugido ensurdecedor numa espécie de rumorejar abafado, como o ribombar de um trovão distante. Lisbeth respirou fundo.
Ella Carmichael encheu uma caneca de café quente. Lisbeth sentia-se tão exausta que mal conseguia levantar o braço para lhe pegar. Estava sentada no chão, sem forças, encostada à parede. Alguém os embrulhara em mantas, a ela e a George. Estava encharcada até aos ossos e a sangrar abundantemente de um golpe abaixo do joelho. Tinha um rasgão com dez centímetros de comprimento na perna dos jeans, e não se lembrava de aquilo ter acontecido. Ficou a ver, meio aturdida, McBain e dois hóspedes do hotel enrolarem ligaduras
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à volta da cabeça de Geraldine Forbes. Apanhava uma palavra aqui e ali, e compreendeu que alguém do grupo era médico. Reparou que a cave estava apinhada. Além dos hóspedes do hotel, muita gente de fora tinha ido refugiar-se ali.
Um pouco mais tarde, McBain aproximou-se e acocorou-se junto dela.
- Não morre desta. Lisbeth não disse nada.
- Que aconteceu?
- Encontrámo-la caída na praia.
- Faltavam-me três pessoas quando contei os hóspedes, aqui na cave. A menina e o casal Forbes. A Ella disse-me que tinha saído a correr como uma louca quando a tempestade nos atingiu.
- Fui buscar o meu amigo George. - Lisbeth fez um gesto com o queixo na direcção do rapaz. - Vive do outro lado da estrada, numa barraca que a estas horas já deve ter ido pelos ares.
- Foi muito corajoso, mas terrivelmente estúpido - comentou McBain, olhando para George. - Algum de vocês viu o marido?
- Não - respondeu Lisbeth, com uma expressão neutra. George olhou para ela e abanou a cabeça.
Ella estava a olhar fixamente para ela, com a cabeça de lado. Lisbeth devolveu-lhe o olhar, impassível.
Geraldine Forbes recuperou os sentidos por volta das três da manhã. Por essa altura, Lisbeth tinha adormecido, com a cabeça apoiada no ombro de George.
Por uma qualquer espécie de milagre, Granada sobreviveu àquela noite. McBain deixou os hóspedes saírem da cave e, quando a manhã rompeu, a tempestade tinha-se dissipado e fora substituída pela chuvada mais torrencial que Lisbeth alguma vez vira.
O Keys Hotel ficara a precisar de reparações a sério. A devastação ao longo de toda a costa fora considerável. O lado do bar de Ella voltado para a piscina tinha pura e simplesmente desaparecido, e uma das varandas caíra. Não havia uma única janela intacta e o telhado de uma secção que se projectava do corpo do edifício estava dobrado em dois.
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O vestíbulo era um caos de detritos. Mas, no todo, o hotel continuava de pé.
Lisbeth levou George consigo e foi a cambalear até ao quarto. Pendurou uma manta a tapar o buraco da janela que o vento arrancara, para impedir a chuva de entrar. O olhar de George encontrou o dela.
- Haverá menos explicações a dar se não tivermos visto o marido dela - disse, antes que ele pudesse fazer qualquer pergunta.
George assentiu. Lisbeth despiu-se, atirou as roupas para o chão e deitou-se, batendo com a mão na cama, a seu lado. Ele voltou a assentir, despiu-se também e deitou-se junto dela. Adormeceram os dois quase imediatamente.
Quando Lisbeth acordou, era meio-dia, e o Sol brilhava por entre as nuvens. Doía-lhe o corpo todo, e tinha o joelho tão inchado que mal conseguia dobrar a perna. Deslizou para fora da cama e enfiou-se debaixo do duche. O lagarto verde estava de volta ao seu lugar na parede. Lisbeth vestiu uns calções e um top e saiu do quarto sem acordar George.
Ella continuava a pé. Estava com o ar de quem tinha levado com um camião em cima, mas tinha o bar do vestíbulo a funcionar. Lisbeth pediu café e uma sanduíche. Viu, pela janela escaqueirada ao lado da porta, um carro-patrulha estacionado no pátio. Quando Ella lhe levou o café, McBain saiu do seu escritório, junto à recepção, seguido por um polícia uniformizado. Ao vê-la, disse qualquer coisa ao polícia e aproximaram-se os dois da mesa dela.
- Este é o agente Ferguson, que gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.
Lisbeth cumprimentou delicadamente o polícia. Também o agente Ferguson tivera obviamente uma longa noite. Tirou do bolso um bloco de notas e uma caneta e anotou o nome dela.
- Miss Salander, dizem-me que a menina e um amigo seu encontraram Mrs. Richard Forbes durante o furacão, ontem à noite.
Lisbeth assentiu com a cabeça.
- Onde foi que a encontraram?
- Na praia, logo junto à entrada - respondeu Lisbeth. - Quase tropeçámos nela.
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Ferguson anotou também aquilo.
- Mrs. Forbes disse alguma coisa? Lisbeth abanou a cabeça.
- Estava inconsciente? Lisbeth assentiu vigorosamente.
- Tinha um ferimento grave na cabeça. Lisbeth voltou a assentir.
- Não sabe como foi causado esse ferimento?
Lisbeth abanou a cabeça. Ferguson resmungou qualquer coisa por entre dentes, irritado com o laconismo das respostas.
- Havia montes de coisas a voar pelos ares - disse ela, no tom de quem quer ajudar. - Eu quase apanhei com uma tábua na cabeça.
- Feriu-se na perna? - Ferguson estava a apontar para a ligadura.
- Que aconteceu?
- Só reparei quando já estava na cave.
- Estava com um jovem.
- George Bland.
- Onde é que ele vive?
- Numa cabana atrás do Coconut, na estrada para o aeroporto. Se é que a cabana ainda está de pé, quer dizer.
Lisbeth não acrescentou que George Bland se encontrava naquele momento a dormir na sua cama, dois pisos mais acima.
- Algum dos dois viu o marido, Richard Forbes? Lisbeth abanou a cabeça.
Não tendo aparentemente, de momento, outras perguntas que quisesse fazer, o agente Ferguson fechou o bloco de notas.
- Obrigado, Miss Salander. Vou ter de redigir um relatório sobre
a morte.
- Ela morreu?
- Mrs. Forbes...? Não, está no hospital, em St. George's. Aparentemente, deve-lhe a si e ao seu amigo o facto de estar viva. Mas o marido morreu. O corpo foi encontrado no parque de estacionamento do aeroporto, há duas horas.
Seiscentos metros para sul!
- Estava bastante maltratado - acrescentou Ferguson.
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- Que pena - disse Lisbeth, sem grandes sinais de surpresa. Quando McBain e Ferguson se retiraram, Ella foi sentar-se à
mesa de Lisbeth, sobre a qual pousou dois shots de rum. Lisbeth lançou-lhe um olhar interrogativo.
- Depois de uma noite como a passada, precisa de qualquer coisa para retemperar as forças. Por conta da casa. O pequeno-almoço é por conta da casa.
As duas mulheres olharam-se. Então, ergueram os copos e beberam.
A tempestade tropical Matilda seria, ao longo das semanas seguintes, objecto de muito estudo e discussão em estações meteorológicas das Caraíbas e dos Estados Unidos. Tornados com aquela intensidade eram um fenómeno praticamente desconhecido na região. Considerava-se até teoricamente impossível que se formassem sobre o mar. Pouco a pouco, os especialistas chegaram à conclusão de que um conjunto de frentes meteorológicas particularmente invulgares se combinara para formar um pseudotornado - algo que não era verdadeiramente um tornado, apenas parecido. Outra facção propunha teorias que implicavam o efeito de estufa e um desequilíbrio ecológico.
Lisbeth não estava interessada em discussões teóricas. Sabia o que tinha visto e decidiu que, de futuro, tentaria evitar qualquer contacto pessoal com possíveis parentes de Matilda.
A tempestade causara numerosos feridos, mas, felizmente, apenas um morto.
Nunca ninguém saberia o que tinha levado Richard Forbes a sair do hotel no meio de um furacão, a não ser, talvez, a pura ignorância que parecia ser comum a todos os turistas americanos. Geraldine Forbes não estava em condições de oferecer qualquer explicação. Sofrera um traumatismo grave e as suas recordações dos acontecimentos da noite eram fragmentárias e incoerentes.
Além disso, estava inconsolável por ter ficado viúva.
2.a PARTE
DA RÚSSIA, COM AMOR
10 de Janeiro - 23 de Março
UMA EQUAÇÃO CONTÉM NORMALMENTE UMA Ou MAIS INCÓGNITAS,
FREQUENTEMENTE DESIGNADAS POR X, Y, Z. DOS VALORES DESTAS INCÓGNITAS
QUE GARANTEM A IGUALDADE DOS DOIS TERMOS DA EQUAÇÃO DIZ-SE
QUE SATISFAZEM A EQUAÇÃO, Ou QUE CONSTITUEM A SOLUÇÃO.
EXEMPLO: 3X + 4 = 6X - 2 (X = 2)
CAPÍTULO 4
SEGUNDA-FEIRA, 10 DE JANEIRO -TERÇA-FEIRA, 11 DE JANEIRO
LISBETH Salander aterrou no Aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, ao meio-dia. Além do tempo de voo, passara nove horas no Grantly Adams Airport, em Barbados. A British Airways recusara deixar partir o avião até que um passageiro que tinha um ar vagamente árabe fosse levado para interrogatório e uma possível ameaça terrorista esmagada na génese. Quando aterrara em Gatwick, já perdera o voo de ligação para a Suécia e tivera de passar a noite em Londres até conseguir nova reserva.
Sentia-se como um saco de bananas que tivesse passado demasiado tempo ao sol. Tudo o que tinha consigo era uma mala de mão, onde enfiara o PowerBook, Dimensions e uma muda de roupa. Na alfândega, passou pela porta verde sem ser interpelada. Quando saiu para o terminal de autocarros do aeroporto foi acolhida por uma mistura de chuva e granizo e uma temperatura próxima dos zero graus. Era a Suécia a dar-lhe as boas-vindas.
Hesitou. Toda a sua vida tivera de escolher pela opção mais barata, e ainda não se habituara à ideia de que tinha um pouco menos de três mil milhões de coroas, que roubara recorrendo a uma mistura de novas tecnologias e boa e velha burla à moda antiga. Depois de ter passado alguns minutos a ficar molhada e enregelada, resolveu lançar às urtigas o livro de regras e fez sinal a um táxi. Deu ao motorista o endereço do apartamento na Lundagatan e adormeceu no banco traseiro.
Só depois de o táxi ter parado na Lundagatan e o condutor a ter sacudido se apercebeu de que dera a sua antiga morada. Disse ao homem que mudara de ideias e que continuasse até à Gõtgatsbacken.
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Deu-lhe uma boa gorjeta em dólares e praguejou quando meteu o pé numa poça junto à valeta. Vestia jeans, T-shirt e um fino casaco de pano, e calçava sandálias e soquetes de algodão. Caminhou, vendo bem onde punha os pés, até ao 7-Eleven, onde comprou champô, pasta de dentes, sabonete, quefir, leite, queijo, ovos, pão, bolinhos de canela, café, uma caixa de chá Lipton, um saco grande de Billy's Pan Pizza e um pacote de Marlboro Light. Pagou com cartão VISA.
Quando voltou à rua, hesitou quanto ao caminho a seguir. Podia subir a Svartensgatan, onde já se encontrava, ou descer a Hõkens Gata em direcção a Slussen. O inconveniente da Hòkens Gata era que teria de passar mesmo à porta dos escritórios da Millennium, correndo o risco de encontrar Mikael. Acabou por decidir que não tinha nada que fazer desvios para o evitar. Avançou na direcção de Slussen, apesar de aquele caminho ser na realidade um pouco mais longo, e, na Hõkens Gata, virou à direita para Mosebacke Torg. Atravessou a praça, passando pela estátua das Irmãs, em frente do Sõdra Teatern, e subiu os degraus que trepavam a colina até à Fiskargatan. Deteve-se e olhou pensativamente para o bloco de apartamentos. Não tinha verdadeiramente a sensação de ter chegado "a casa".
Olhou em redor. Era um sítio isolado em pleno Sbdermalm. Havia muito pouco movimento, o que para ela era óptimo. Tornava mais fácil observar quem andava pela zona. Provavelmente, era um lugar apreciado pelos passeantes, no Verão, mas, durante o Inverno, " só lá ia quem tinha assuntos a tratar nas redondezas. Não viu ninguém. Pelo menos, ninguém que reconhecesse, ou que se pudesse razoavelmente esperar que a reconhecesse a ela. Pousou o saco das compras no chão, para tirar as chaves. Subiu no elevador até ao último piso e abriu uma porta. A pequena chapa metálica junto ao botão da campainha tinha um nome: V. Kulla.
Uma das primeiras coisas que Lisbeth Salander fizera depois de ter entrado na posse de uma enorme quantia em dinheiro, tornando-se assim financeiramente independente para o resto dos seus dias (ou por tanto tempo quanto se pudesse esperar que um pouco menos de
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três mil milhões de coroas durasse), fora procurar um novo apartamento. O mercado imobiliário constituíra uma experiência nova para ela. Nunca antes investira dinheiro em nada de mais substancial do que um ocasional objecto útil que pudesse pagar a pronto ou comprar recorrendo a facilidades de crédito. As suas maiores compras tinham sido, até ao momento, vários computadores e a Kawa-saki. Comprara a moto por 7 mil coroas... uma autêntica pechincha. Gastara quase outro tanto em peças sobressalentes e passara vários meses a desmontá-la e a artilhá-la. Teria preferido um carro, mas sempre hesitara, por não saber muito bem como encaixar a despesa no seu orçamento.
Comprar um apartamento, depressa se apercebera, era um negócio completamente diferente. Começara por ver os anúncios classificados na edição online do Dagens Nybeter. Toda uma ciência à parte, como não tardara a dar-se conta.
Quarto + sala, loc. exc. prox. Est. Sodra. P: 2,7M ou melhor of. Encargos mens. 5510.
T3, vista para o parque, Hogalid, 2,9M.
T2, 4 7 m2, c. de b. renovada, canaliz. nova. 1998. Gotlansgatan. 1,8M. Ene. mens. 2200.
Ligara para alguns números ao acaso, mas não fazia ideia do que perguntar. Não tardara a sentir-se tão idiota que desistira até de tentar. Em vez disso, saíra no primeiro domingo de Janeiro e visitara dois apartamentos com indicação de "Para Venda". Um ficava em Vindragarvágen, para os lados de Reimersholm, e o outro na Helene-borgsgatan, perto de Hornstull. O de Reimers era uma bela casa cheia de luz, numa torre com vista para Lângholm e Essingen. Lisbeth sentira que ali poderia ser feliz. O de Heleneborgsgatan era um buraco com vista para o prédio ao lado.
O problema é que não conseguia decidir em que parte da cidade queria viver, como deveria ser o seu apartamento ou o que iria exigir do seu novo domicílio. Nunca pensara numa alternativa aos 45 metros quadrados na Lundagatan onde passara a infância. Através do seu curador na altura, o advogado Holger Palmgren, entrara na posse do apartamento que fora da mãe ao completar 18 anos.
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Atormentada por este dilema, deixara-se cair no sofá do seu escritório/sala de estar e começara a pensar.
O apartamento da Lundagatan dava para um pátio. Era apertado e nada confortável. A vista da janela do quarto era a parede mestra do prédio vizinho. A vista da cozinha era as traseiras do prédio do outro lado da rua e a entrada para as arrecadações da cave. Da sala de estar via um candeeiro de rua e alguns ramos de uma faia.
A primeira coisa que ia exigir da sua nova casa era que tivesse vista.
Nunca tivera varanda, e sempre invejara os vizinhos mais abastados dos andares superiores que podiam passar os dias de Verão a beber uma cerveja gelada debaixo de um toldo, na deles. A segunda exigência seria que a sua nova casa tivesse uma varanda.
E como deveria ser o apartamento? Pensou no de Mikael - sessenta e cinco metros de open space num sótão transformado na Bell-mansgatan, com vista para o edifício da Câmara e para as comportas de Slussen. Gostara de lá estar. Queria um apartamento agradável, pouco mobilado, que não desse muito trabalho. Era o terceiro ponto na lista de exigências.
Durante anos, vivera em lugares apertados. A cozinha tinha uns escassos dez metros quadrados, com espaço apenas para uma minúscula mesa e duas cadeiras. A sala tinha vinte 20, o quarto 12. A quarta exigência seria que a sua nova casa tivesse fartura de espaço, e também armários. Queria um escritório como deve ser e um quarto grande, onde pudesse espraiar-se à vontade.
A casa de banho da Lundagatan era um cubículo sem janelas, com quadrados de cimento no chão, uma estúpida meia-banheira e um papel de parede plastificado que nunca ficava verdadeiramente limpo fizesse ela o que fizesse. Queria azulejos e uma grande banheira. Queria uma máquina de lavar roupa dentro de casa e não numa cave. Queria que a casa de banho cheirasse a fresco e queria poder abrir uma janela.
Estudara então as ofertas online das imobiliárias. Na manhã seguinte, levantara-se cedo para ir visitar a Nobel, considerada
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a melhor agência imobiliária de Estocolmo. Vestia uns velhos jeans pretos, botas e o blusão de couro preto. Esperara ao balcão, a ver uma mulher loira com cerca de 35 anos aceder ao website da empresa e começar a carregar fotografias de apartamentos. Finalmente, um homem de meia-idade, baixo, gorducho, com cabelos ruivos e finos, aproximara-se dela. Lisbeth perguntara-lhe que tipo de apartamentos tinha disponíveis. Ele olhara-a com uma expressão de surpresa e adoptara um tom risonhamente familiar:
- E diga-me, minha menina, os papás sabem que está a pensar sair de casa?
Lisbeth olhara para ele com os seus grandes olhos inexpressivos até que o sujeito parara de rir.
- Quero um apartamento - dissera.
O homem pigarreara e olhara para a colega que trabalhava com o computador, como que a pedir ajuda.
- Estou a ver. E em que tipo de apartamento estava a pensar?
- Julgo que gostaria de um apartamento no Sõder, com varanda e vista para a água, pelo menos quatro assoalhadas, casa de banho com janela e espaço para a máquina de lavar roupa. E tem de haver um sítio fechado onde possa guardar uma moto.
A mulher que trabalhava com o computador erguera a cabeça e olhara para ela.
- Uma moto? - perguntara o homem dos cabelos ruivos e finos. Lisbeth assentira calmamente com a cabeça.
- Posso saber... hã, como se chama?
Lisbeth dissera-lhe. E então perguntara-lhe como se chamava, e ele respondera que se chamava Joakim Persson.
- Sabe, é que... é muito caro comprar um apartamento aqui em Estocolmo...
Lisbeth olhara para ele com silenciosa paciência. Voltara a perguntar que apartamentos tinha para lhe propor e informara-o de que o comentário a respeito do preço fora supérfluo e deslocado.
- Em que área de actividade trabalha?
Lisbeth reflectira por um instante. Tecnicamente, era free-lancer; na prática, trabalhava para Armanskij e para a Milton Security,
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mas a sua actividade fora muito irregular naquele último ano. Havia três meses que não fazia nenhum trabalho para ele.
- De momento, não estou a trabalhar - dissera.
- Ah... presumo então que ainda estuda?
- Não, não estudo.
Persson saíra de trás do balcão e passara-lhe carinhosamente um braço pelos ombros, encaminhando-a para a porta.
- Bem, Froken Salander, teremos muito gosto em vê-la por cá daqui a alguns anos, mas terá de trazer um pouco mais de dinheiro do que tem no seu mealheiro. O facto é que a sua semanada não dá para cobrir esta despesa. - Persson beliscara-lhe jovialmente uma bochecha. - Volte mais tarde, e teremos muito gosto em arranjar-lhe um apartamentozinho jeitoso.
Lisbeth ficara parada no passeio em frente da imobiliária durante vários minutos. Perguntara distraidamente a si mesma o que acharia Herr Persson se um cocktail molotov lhe entrasse a voar pelo vidro da montra. Finalmente, fora para casa e ligara o PowerBook.
Demorara dez minutos a entrar na rede interna da Nobel, usando as passwords que vira a mulher loira introduzir antes de começar a carregar fotografias. Três minutos tinham bastado para ficar a saber que o computador em que a mulher estava a trabalhar era também o servidor da empresa - como épossível ser tão estúpido? -, e mais três para aceder a todos os 14 computadores da rede. Ao fim de duas horas tinha passado a pente-fino a contabilidade pessoal de Persson e descobrira um pagamento de 750 mil coroas feito por baixo da mesa que ele se esquecera de comunicar ao fisco.
Descarregara os ficheiros necessários e enviara-os para as Finanças a partir de uma conta e-mail anónima ligada a um servidor nos Estados Unidos. Feito isto, eliminara Herr Persson dos seus pensamentos.
Dedicara o resto do dia a passar em revista as propriedades que faziam parte do catálogo da Nobel. A mais cara era um palacete nos arredores de Mariefred, onde não tinha o mínimo desejo de viver. Só para os chatear, escolhera a segunda mais cara, um enorme apartamento na Fiskargatan, perto de Mosebacke Torg.
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Examinara então as fotos e os planos, e decidira que satisfazia plenamente todas as suas exigências. Tinha pertencido a um director da ABB que desaparecera de cena depois de ter atribuído a si mesmo um muito discutido e muito criticado pára-quedas dourado de vários milhares de milhões de coroas.
Nessa noite, telefonara a Jeremy MacMillan, do gabinete de advogados MacMillan & Marks, de Gibraltar - a troco de honorários que até ele considerara generosos, MacMillan criara uma série de empresas de fachada para serem titulares das contas pelas quais ela distribuíra a fortuna que, no ano anterior, tinha roubado ao financeiro corrupto Hans-Erik Wennerstrõm - e encarregara-o de entrar em contacto com a imobiliária Nobel, de Estocolmo, e adquirir, em nome da Wasp Enterprises, o apartamento situado na Fiskargatan, perto de Mosebacke Torg. Demorara quatro dias, e o número final a que tinham chegado fizera-a arquear as sobrancelhas. Mais os cinco por cento de comissão para MacMillan. Antes do fim dessa semana mudara-se para lá com duas caixas de roupas, lençóis e toalhas, um colchão e alguns utensílios de cozinha. Dormira no colchão durante três semanas enquanto investigava clínicas de cirurgia plástica, tratava de uma série de pormenores burocráticos que tinham ficado por resolver (incluindo uma conversa nocturna com um certo advogado chamado Nils Bjurman) e pagara adiantadamente o condomínio do antigo apartamento, além de tomar medidas para a liquidação de outras despesas mensais, como electricidade, água, etc.
Feito isto, comprara um bilhete de avião para Itália e dera entrada na clínica. Quando o tratamento terminara e tivera alta, instalara-se num hotel, em Roma, a tentar decidir o que fazer a seguir. O normal seria regressar à Suécia e retomar a sua vida, mas, por várias razões, não queria sequer pensar em Estocolmo. Não tinha uma verdadeira profissão. Não via o seu futuro na Milton Security. A culpa não era de Armanskij, que provavelmente ficaria muito satisfeito por tê-la a trabalhar a tempo inteiro e vê-la transformar-se numa rodinha eficiente da engrenagem da empresa. Mas, aos 25 anos, não tinha qualquer espécie de formação, e não estava a ver-se chegar aos 50 ainda
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a investigar as aldrabices dos gatunos do mundo empresarial. Era um passatempo interessante, não um trabalho para a vida.
Outra razão da sua relutância em regressar a Estocolmo era Mikael Blomkvist. Em Estocolmo, corria o risco de dar de caras com Super Porra Blomkvist, e isso era a última coisa que queria. Ele magoara-a. Admitia que não intencionalmente. Tinha-se até portado de uma maneira bastante decente. Só ela era culpada por ter-se "apaixonado" por ele. A própria frase era uma contradição tratando-se de Lisbeth Cabra de Merda Salander.
Mikael era um mulherengo notório. Na melhor das hipóteses, ela fora uma diversão agradável, alguém de quem ele tivera pena num momento em que precisava dela e não havia ninguém melhor disponível. Mas rapidamente passara para outra companhia mais agradável. Lisbeth amaldiçoava-se por ter baixado a guarda e permitido que ele entrasse na sua vida.
Quando recuperara o juízo, cortara todos os contactos. Não fora fácil, mas soubera resistir. A última vez que o vira, estava ela na gare da estação de metro de Gamla Stan e ele sentado no comboio a caminho da Baixa. Olhara para ele durante um bom minuto e decidira que não lhe restava um pingo de sentimento, porque isso teria sido o mesmo que sangrar até morrer. Vai-te foder. Ele só a vira quando as portas já se fechavam e olhara para ela por um instante, com uma expressão interrogativa, antes de a composição arrancar.
Não compreendia por que teimava ele em tentar manter o contacto, como se ela fosse uma porra de um projecto social que tivesse assumido. Irritava-a o facto de ser tão tapado que parecia não perceber que ela não queria voltar a vê-lo, não adivinhar que, sempre que lhe enviava um e-mail, ela o apagava sem sequer o abrir, apesar de isso ser como uma facada no coração.
Não, Estocolmo não a atraía minimamente. Exceptuando alguns colegas de trabalho na Milton Security, meia dúzia de parceiros de cama havia muito postos de parte e as raparigas da antiga banda de rock Evil Fingers, não conhecia praticamente ninguém na sua cidade natal.
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A única pessoa por quem tinha algum respeito era Dragan Ar-manskij. Não era fácil definir os seus sentimentos para com ele. Sempre fora para ela motivo de alguma surpresa o facto de se sentir atraída por Armanskij. Se ele não fosse tão casado, ou tão velho, ou tão conservador, talvez tivesse tentado a sua sorte.
Pegara na agenda e abrira-a na secção de mapas. Nunca estivera na Austrália, ou em África. Lera alguma coisa a respeito, mas nunca vira as pirâmides, ou Angkor Vat. Nunca viajara no Star Ferry entre Kowloon e Victoria, em Hong Kong, nunca mergulhara no mar das Caraíbas nem se estendera ao sol numa praia da Tailândia. Exceptuando meia dúzia de viagens rápidas de trabalho aos países bálticos e aos países nórdicos vizinhos, além de Zurique e Londres, claro, praticamente não saíra da Suécia. Para ser mais exacta, raramente saíra de Estocolmo.
Nunca tivera dinheiro para isso.
Estava de pé junto à janela do quarto do hotel que dava para a Via Garibaldi, em Roma. A cidade parecia-lhe um monte de ruínas. E então decidira-se. Vestira o casaco, descera à recepção e perguntara se havia alguma agência de viagens nas proximidades. Comprara um bilhete de avião para Telavive e passara os dias seguintes a deambular pela Cidade Velha de Jerusalém, a visitar a Mesquita de al-Aqsa e o Muro das Lamentações. Vira com desconfiança os soldados armados de metralhadoras em cada esquina, e seguira para Banguecoque. Depois disto, continuara a viajar durante o resto do ano.
Havia apenas uma coisa que tinha verdadeiramente de fazer. Fora a Gibraltar duas vezes. A primeira, para investigar a fundo o homem que escolhera para cuidar do seu dinheiro. A segunda, para se certificar de que ele o fazia como deve ser.
Foi uma sensação estranha, rodar a chave na fechadura do seu novo apartamento na Fiskargatan, passado tanto tempo.
Pousou o saco das compras e teclou o código de quatro dígitos que desligava o alarme anti-roubo. Em seguida, despiu as roupas molhadas e deixou-as no chão do vestíbulo. Entrou na cozinha nua, ligou a ficha do frigorífico e arrumou a comida antes de dirigir-se à
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casa de banho e passar os dez minutos seguintes debaixo do duche. Comeu uma Billy's Pan Pizza, que aqueceu no microondas, e uma maçã. Abriu uma das caixas com que fizera a mudança e encontrou uma almofada, lençóis e uma manta que cheiravam ligeiramente a mofo, depois de terem estado fechados durante um ano. Fez a cama no colchão que deixara num quarto contíguo à cozinha.
Adormeceu dez segundos depois de ter pousado a cabeça na almofada e dormiu quase 24 horas seguidas. Quando acordou, ligou a máquina de café, embrulhou-se numa manta e foi sentar-se, às escuras, no peitoril de uma janela, a fumar um cigarro e a olhar para Djurgâr-den e Saltsjõn, fascinada pelas luzes.
No dia seguinte, andou muito ocupada. Fechou a porta do apartamento às sete da manhã. Antes de descer no elevador, abriu a janela de ventilação do poço da escada e prendeu um duplicado da chave a um fino fio de cobre que tinha amarrado ao suporte do tubo de escoamento, do lado da parede. A experiência ensinara-lhe a sensatez de ter sempre uma chave sobressalente num lugar acessível.
Estava um frio de rachar, lá fora. Lisbeth vestia uns finos jeans já muito gastos, com um rasgão por baixo de um dos bolsos traseiros que deixava ver o azul das cuecas. Tinha uma T-shirt e uma quente camisola de gola alta, com uma costura que começava a esfiapar-se no pescoço. Também descobrira o velho blusão de cabedal com as tachas metálicas nos ombros, e decidira que ia arranjar alguém que lhe substituísse o forro quase inexistente dos bolsos. Calçava meias grossas e botas. No todo, sentia-se confortável e quentinha.
Desceu a Sankt Paulsgatan até Zinkensdam e dirigiu-se ao seu velho apartamento, na Lundagatan. A primeira coisa que fez foi certificar-se de que a Kawasaki continuava a salvo, na cave. Deu uma palmadinha no assento antes de subir ao apartamento. Teve de empurrar a porta com força para vencer a resistência da montanha de correspondência que se acumulara do outro lado.
Quando deixara a Suécia, um ano antes, não sabia muito bem o que fazer com o apartamento, de modo que a melhor solução parecera-lhe ser providenciar o pagamento das contas fixas. Ainda ali tinha
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mobília, laboriosamente reunida ao longo de anos de visitas a casas de móveis em segunda mão, meia dúzia de canecas lascadas, dois computadores mais antigos e montes de papéis. Mas nada de valor.
Foi à cozinha buscar um saco de plástico preto e passou os cinco minutos seguintes a separar o lixo da correspondência. A maior parte do monte foi directamente para o saco de plástico. Havia algumas cartas para ela, sobretudo extractos bancários e declarações para o IRS da Milton Security. Uma das vantagens de estar sob tutela era não ter de preocupar-se com questões fiscais: as comunicações desse tipo primavam pela ausência. Tirando isso, e num ano inteiro, recebera apenas três cartas pessoais.
A primeira era de uma advogada, Greta Molander, que fora a executora testamentária adhoc da mãe. A carta comunicava que, feito o arrolamento dos bens da falecida, Lisbeth Salander e a irmã, Camilla, herdavam 9312 coroas cada. Fora feito um depósito da quantia correspondente na conta bancária de Frõken Salander. Pedia-se o favor de confirmar a recepção. Lisbeth enfiou a carta no bolso interior do blusão.
A segunda carta era da directora da Casa de Saúde Àppelviken, e lembrava-lhe delicadamente que tinham em depósito uma caixa com os objectos pessoais da mãe. Importar-se-ia de contactar a Àppelviken e dizer o que desejava que fizessem com aqueles objectos? A carta terminava com o aviso de que caso não tivessem notícias dela ou da irmã (cujo endereço ignoravam) até ao fim do ano, não teriam alternativa - considerando a escassez de espaço - senão desembaraçarem-se deles. Lisbeth viu que a carta tinha data de Junho e pegou no telemóvel. A caixa continuava lá. Pediu desculpa por não ter contactado mais cedo e prometeu ir buscá-la no dia seguinte.
A última carta era de Mikael Blomkvist. Lisbeth hesitou um instante antes de decidir não a abrir, e atirou-a para o saco.
Encheu outra caixa com várias bugigangas que queria conservar e apanhou um táxi para Mosebacke. Maquilhou-se, pôs os óculos escuros e uma peruca loira que lhe chegava aos ombros e enfiou na mala um passaporte norueguês em nome de Irene Nesser. Examinou-se ao espelho e decidiu que Irene Nesser se parecia um pouco com Lisbeth
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Salander, mas era, mesmo assim, uma pessoa completamente diferente.
Depois de comer rapidamente uma baguette com brie e um latte no Café Éden, na Gõtgatan, foi a pé até uma agência de aluguer de automóveis em Ringvágen, onde Irene Nesser alugou um Nissan Micra. Dali, rumou aos armazéns da IKEA, em Kungens Kurva, e passou três horas a examinar o mobiliário, anotando num bloco os números dos artigos de que precisava. Durante esse espaço de tempo tomou várias decisões muito rápidas.
Comprou dois sofás Karlanda forrados de couro creme, cinco cadeirões Põang, duas mesas redondas de faia laçada, uma mesa de café Svansbo e várias mesas de apoio Lack. Comprou dois armários Ivar e duas estantes Bond, um móvel para o televisor e uma unidade Magiker com portas. Optou por um guarda-fato Pax Nexus com três portas e duas pequenas cómodas Malm.
Demorou muito tempo a escolher a cama, e acabou por decidir-se por uma armação Hemnes com colchão e mesas de cabeceira a condizer. Só para jogar pelo seguro, comprou uma cama Lilleham para o quarto de hóspedes. Não que planeasse ter visitas, mas já que tinha um quarto de hóspedes, mais valia mobilá-lo.
A casa de banho do apartamento já estava equipada com um armário-farmácia, um armário para toalhas e uma máquina de lavar roupa que o antigo proprietário deixara ficar. Tudo o que teve de comprar foi um cesto para a roupa suja.
Do que precisava mesmo era de mobilar a cozinha. Depois de reflectir um pouco, escolheu uma sólida mesa Rosfors de faia, com tampo de vidro temperado, e quatro cadeiras coloridas.
Também precisava de mobilar o escritório, e examinou uma série de extravagantes "postos de trabalho" cheios de prateleiras engenhosas para arrumar computadores e teclados. No fim, abanou a cabeça e comprou uma secretária vulgar, o modelo Galant, de faia, com tampo inclinável e cantos arredondados, e um grande armário de arquivo.
Demorou ainda mais tempo a escolher a cadeira de secretária - na qual ia de certeza passar muitas horas - do que tinha demorado a escolher a cama, e optou por uma das mais caras, o modelo Ierksaw.
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Percorreu o armazém de uma ponta à outra e comprou um bom abastecimento de lençóis, fronhas, toalhas, toalhões de banho, mantas, almofadas, facas de cozinha de aço inoxidável, talheres, pratos, tachos, panelas, tábuas de trinchar, três grandes tapetes, vários candeeiros de secretária e uma quantidade enorme de material de escritório: pastas, arquivadores, cestos de papéis, caixas, e coisas assim.
Pagou com um cartão de crédito em nome da Wasp Enterprises e mostrou o passaporte de Irene Nesser. Pagou também a entrega e a montagem do material. A conta ascendeu a um pouco mais de 90 mil coroas.
Estava de regresso ao Sõder às cinco da tarde, a tempo de fazer uma visita à Axelsson, Electrónica para o Lar, onde comprou um rádio e um televisor de 19 polegadas. Quase em cima da hora de fechar, entrou numa loja na Hornsgatan e comprou um aspirador. Nos Mariahallen, comprou uma esfregona, detergentes, um balde, sabão, escovas de dentes e uma embalagem gigante de papel higiénico.
No fim deste frenesi consumista sentia-se cansada mas feliz. Enfiou as suas compras no Nissan Micra alugado e deixou-se finalmente cair numa cadeira do Café Java, na Hornsgatan. Pegou num jornal da tarde abandonado na mesa ao lado e ficou a saber que os sociais-democratas continuavam no governo e que nada de importante parecia ter acontecido na Suécia enquanto estivera ausente.
Às oito, estava em casa. A coberto da escuridão tirou as compras do carro e levou-as para o apartamento de V. Kulla. Deixou tudo num monte, no vestíbulo, e voltou a sair para tentar arranjar um lugar onde estacionar. De novo em casa, pôs a água a correr no jaccuzzi, que dava à vontade para três pessoas. Pensou em Mikael por um instante. Até ter visto a carta dele, naquela manhã, esquecera-o por completo durante meses. Perguntou a si mesma se estaria em casa, e se Erika Berger estaria com ele.
Passado algum tempo, inspirou fundo, voltou-se de bruços e mergulhou. Levou as mãos aos seios e apertou os mamilos com força, retendo a respiração até que os pulmões começaram a doer-lhe.
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Erika Berger, directora editorial da Millennium, consultou o relógio quando Mikael Blomkvist chegou. Estava quase quinze minutos atrasado para a reunião de planeamento marcada para a segunda terça-feira de cada mês, às dez horas em ponto, durante a qual se esboçavam os planos para o número seguinte e se tomavam decisões sobre o conteúdo da revista com vários meses de antecedência.
Mikael pediu desculpa pelo atraso numa explicação murmurada que ninguém ouviu e a que muito menos se deu ao trabalho de responder. Além de Erika Berger, participavam a assistente editorial, Malin Eriksson, o sócio e director artístico Christer Malm, a jornalista Monika Nilsson, os redactores Henry Cortez e Lotta Karim, colaboradores em part-time. Mikael notou imediatamente que a estagiária não estava presente, mas havia uma cara nova no pequeno grupo sentado à volta da mesa de reuniões do gabinete de Erika. Era muito invulgar ela permitir a presença de um intruso nas sessões de planeamento da Millennium.
- Apresento-lhes o Dag Svensson - disse Erika. -freelancer. Vamos comprar-lhe um artigo.
Mikael apertou-lhe a mão. Svensson era loiro e tinha olhos azuis, usava os cabelos muito curtos e uma barba de três dias. Devia andar pelos 30 anos e parecia desavergonhadamente em forma.
- Por norma, publicamos uma ou duas edições temáticas por ano - continuou Erika. - Gostaria de usar esta história no número de Maio. Temos a gráfica marcada para vinte e sete de Abril. O que nos dá uns bons três meses para preparar os artigos.
- E qual é o tema? - perguntou Mikael, enquanto se servia do termo de café.
- O Dag procurou-me a semana passada com o esboço de uma história. Por isso lhe pedi que se nos juntasse hoje. Queres continuar a partir daqui, Dag?
- Tráfico de mulheres - disse Svensson. - Ou seja, exploração sexual. Neste caso, sobretudo de raparigas vindas dos países bálticos e da Europa Oriental. Se me permitem, vou começar pelo princípio.
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Estou a escrever um livro sobre o assunto, e foi por isso que contactei a Millennium... uma vez que funcionam também como editora.
Houve sorrisos em torno da mesa. As Edições Millennium tinham, até ao momento, publicado exactamente um livro, o tijolo de Mikael, já com um ano, sobre o império financeiro do multimilionário Wennerstrõm. O livro tivera seis edições na Suécia, fora publicado em norueguês, alemão e inglês e seria em breve traduzido para francês. O êxito comercial espantava-os a todos, considerando que a história se tornara entretanto conhecidíssima e fora tratada em todos os jornais.
- A nossa produção editorial não tem sido das mais consistentes - fez Mikael notar, cautelosamente.
Até Svensson esboçou um sorriso.
- Admito que não - disse. - Mas têm os meios para publicar um livro.
- Há montes de editoras maiores - insistiu Mikael. - Bem estabelecidas no mercado.
- Sem dúvida - interveio Erika. - Mas há já um ano que discutimos a possibilidade de nos lançarmos a sério na edição, como complemento da nossa actividade regular. Abordámos o assunto em duas reuniões da comissão administrativa, e todos reagiram muito positivamente. Estamos a pensar numa lista muito pequena... três ou quatro títulos por ano... de reportagens sobre vários temas. Produtos tipicamente jornalísticos, por outras palavras. Este seria um bom livro para começar.
- Tráfico de mulheres - disse Mikael. - Conta-nos mais.
- Há quatro anos que investigo a questão do tráfico de mulheres. Entrei no tema pela mão da minha namorada, por assim dizer. Chama-se Mia Johansson, é criminologista e o seu trabalho de pesquisa insere-se nesta área. Trabalhou no Conselho de Prevenção Criminal e conduziu um inquérito sobre a legislação relativa ao negócio do sexo.
- Conheço-a - disse Malin Eriksson, de repente. - Fiz uma entrevista com ela há dois anos, quando publicou um relatório que comparava a maneira como homens e mulheres são tratados nos tribunais.
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Svensson sorriu.
- Esse criou alguma agitação. Mas há já cinco ou seis anos que a Mia investiga o tráfico de mulheres. Foi assim que nos conhecemos. Eu estava a trabalhar numa história sobre a exploração sexual na Internet e alguém me disse que ela sabia qualquer coisa a esse respeito. E sabia. Resumindo, começámos a trabalhar juntos, eu como jornalista, ela como investigadora. Entre uma coisa e outra começámos a namorar, e, desde há um ano, vivemos juntos. Ela está a preparar o doutoramento e vai defender a sua tese este ano.
- A tua namorada está então a escrever uma tese de doutoramento enquanto tu...?
- Enquanto eu escrevo a versão popular da tese dela e acrescento alguma da minha própria investigação. Além de uma versão mais curta na forma do artigo de que falei à Erika.
- Okay, estão a trabalhar em equipa. Qual é a história?
- Temos um governo que introduziu a legislação mais dura em matéria de exploração comercial do sexo, temos uma polícia que supostamente deve garantir que essa legislação seja implementada e cumprida, e temos tribunais que supostamente devem condenar os criminosos sexuais... chamamos aos homens, aos clientes, criminosos sexuais desde que passou a ser crime pagar por serviços sexuais... e temos uma imprensa que escreve artigos indignados sobre o tema, et cetera. Entretanto, a Suécia é um dos países que importa, per capita, mais prostitutas da Rússia e dos países bálticos.
- Podes fundamentar essa afirmação?
- Não é segredo. E nem sequer é novidade. O que é novidade é que falámos com uma dúzia de Liljas four-ever. São sobretudo raparigas entre os quinze e os vinte anos. Vêm de situações de miséria extrema na Europa Oriental e são atraídas para a Suécia com promessas de emprego, mas acabam nas garras de uma máfia sem escrúpulos. As experiências por que algumas dessas raparigas passaram fariam Lilja 4-ever(1) parecer um filme para toda a família. Coisas que nem sequer seria possível mostrar num filme.
(1) Referência ao filme Lilja 4-ever, do realizador sueco Lukas Moodysson (2002).
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- Okay.
- É esse o enfoque da tese da Mia, por assim dizer. Mas não do livro.
Reinava um silêncio atento à volta da mesa.
- A Mia entrevistou as raparigas. Eu segui a pista dos fornecedores e do cliente-tipo.
Mikael sorriu. Não conhecia Svensson de nenhum lado, mas sentiu imediatamente que era o tipo de jornalista de que gostava, alguém que ia direito ao coração da história. Para Mikael, a regra de ouro do jornalismo era que havia sempre um culpado. O mau.
- E encontraste alguns factos interessantes?
- Posso provar, por exemplo, que um funcionário público ligado ao Ministério da Justiça, que esteve envolvido na redacção das leis sobre o negócio do sexo, explorava pelo menos duas raparigas que foram trazidas para a Suécia por traficantes de pessoas. Uma delas tinha quinze anos.
- Uau!
- Há três anos que trabalho intermitentemente nesta história. O livro incluirá casos de estudo de clientes. Há três polícias, um dos quais trabalha na Segurança Nacional e outro na Secção de Costumes. Há cinco advogados, um promotor público e um juiz. Há também três jornalistas, um dos quais já escreveu artigos sobre o comércio sexual. Na intimidade, entrega-se a fantasias de violação com uma prostituta adolescente de Tallinn... e não estou a falar de sexo consensual. Tenciono dar nomes. Tenho documentação à prova de fogo.
Mikael assobiou.
- Uma vez que voltei a ser editor, vou querer passar toda a documentação a pente-fino - disse. - Da última vez que fui descuidado a verificar as fontes, passei três meses na prisão.
- Se publicarem a história, dou-lhes toda a documentação que quiserem. Mas tenho uma condição para vender o artigo à Millennium.
- O Dag quer que publiquemos também o livro - explicou Erika.
- Precisamente. Quero que caia como uma bomba, e, de momento, a Millennium é a revista com maior impacte e mais credibilidade do país. Não acredito que qualquer outro editor se atrevesse a publicar um livro como este.
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- Portanto, sem livro não há artigo - disse Mikael.
- A mim parece-me que a coisa tem mais do que pernas para andar - disse Malin, e Cortez emitiu um murmúrio de concordância.
- O artigo e o livro são duas coisas diferentes - continuou Erika. - No que respeita à revista, o Mikael é o editor e, portanto, responsável pelo conteúdo. Quanto ao livro, a responsabilidade pelo conteúdo cabe ao autor.
- Eu sei - disse Svensson. - Não estou preocupado. No momento em que o livro for publicado, a Mia apresenta queixa na polícia contra todos os nomeados.
- Essa sim, vai fazer ondas - comentou Cortez.
- E é só metade da história - continuou Svensson. - Também tenho andado a estudar algumas das redes que ganham dinheiro com o negócio do sexo. Estamos a falar de crime organizado.
- E quem está envolvido?
- É isso que é tão trágico. A máfia do sexo é constituída por um sórdido bando de pulhas de primeira apanha. Não sei verdadeiramente o que esperava quando iniciei esta investigação, mas a maior parte das pessoas tem a ideia... ou pelo menos eu tinha... de que a "máfia" é uma coisa de gente dos mais altos escalões da sociedade. Se calhar, foram os filmes americanos que contribuíram para criar essa imagem. A tua história sobre o Wennerstrõm - Svensson voltou-se para Mikael - também prova que, por vezes, é o que acontece. Mas o Wennerstrõm foi, em certo sentido, a excepção que confirma a regra. O que encontrei foi um bando de falhados sádicos e brutais que mal sabem ler ou escrever; são completamente incapazes em matéria de organização e de pensamento estratégico. Há ligações a motards e outros grupos mais ou menos organizados, mas, de um modo geral, o negócio do sexo é gerido por uma cambada de cretinos.
- Tudo isso fica muito claro no artigo - interveio Erika. - Temos leis, e uma polícia, e um sistema judicial que todos os anos financiamos com milhões de coroas saídos do bolso dos contribuintes para combater o negócio do sexo... e nem sequer são capazes de apanhar e condenar um bando de atrasados mentais.
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- É uma tremenda violação dos direitos humanos, mas as vítimas situam-se tão no fundo da escala social que não têm o mínimo interesse para o sistema legal. Não votam. Quase não falam sueco, exceptuando o pouco vocabulário de que precisam para "fazer o serviço". Noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos crimes sexuais não são denunciados à polícia, e os que são quase nunca chegam a tribunal. É, com toda a certeza, o maior icebergue de toda a história da criminalidade sueca. Imaginem se os assaltos a bancos fossem tratados com a mesma displicência. Impensável. Infelizmente, cheguei à conclusão de que a actividade não sobreviveria nem mais um dia se a realidade não fosse que o sistema judicial não quer pura e simplesmente pôr-lhe termo. Os abusos sexuais contra adolescentes vindas de Tallinn ou de Riga não são uma prioridade. Uma pega é uma pega. Faz tudo parte do sistema.
- E toda a gente sabe - murmurou Monika Nilsson.
- Então, que acham? - perguntou Erika.
- Gosto - respondeu Mikael. - Vamos arriscar o pescoço com essa história, mas foi exactamente para isso que criámos a Millennium.
- E é por isso que continuo a trabalhar na revista - acrescentou Monika. - De vez em quando, o editor tem de saltar de uma falésia.
Todos riram, excepto Mikael.
- Foi ele o único suficientemente louco para aceitar o lugar de editor - disse Erika. - Vamos publicar a história em Maio. E o teu livro sairá na mesma altura.
- O livro está pronto? - perguntou Mikael.
- Não. Tenho o esqueleto todo, mas só metade do texto. Se aceitarem publicar o livro e me derem um adiantamento, poderei trabalhar nele a tempo inteiro. A pesquisa está quase toda feita. O que falta são pormenores complementares... na realidade, é só comprovar o que já sei... e confrontar os clientes que vou apontar.
- Vamos tratar disto como tratámos do livro sobre o Wennerstrõm. Vamos precisar de uma semana para o layout e paginação - Christer confirmou com um aceno de cabeça - e duas para a impressão e acabamento. Fazemos as confrontações em Março e Abril e preparamos um resumo de quinze páginas que encerrará o livro. Teremos
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o manuscrito pronto a quinze de Abril, o que nos dará tempo para rever todas as fontes.
- Como é que fazemos em relação ao contrato, e isso?
- Nunca redigi um contrato de edição. O melhor é falar com o nosso advogado. - Erika franziu a testa. - Proponho um contrato de trabalho a termo certo, por quatro meses, de Fevereiro a Maio. Mas olha que não pagamos salários mirabolantes.
- Tudo bem. Só preciso de um ordenado base para poder dedicar-me ao livro a tempo inteiro.
- Quanto ao resto, a regra da casa é fifty-fifty da venda do livro depois de deduzidos os custos. Que te parece?
- Parece-me óptimo - respondeu Svensson.
- Distribuição de tarefas - continuou Erika. - Malin, quero que sejas tu a planear a edição temática. Será a tua principal responsabilidade a partir do mês que vem; vais trabalhar com o Dag e editar o manuscrito do artigo. O que significa que tu, Lotta, ficas como assistente editorial da revista de Março a Maio. Terás de passar a tempo inteiro, e a Malin ou o Mikael dar-te-ão uma mão sempre que possível.
Malin Eriksson assentiu com um gesto de cabeça.
- Mikael, vais ser o editor do livro. - Erika voltou-se para Svensson. - Embora ele não goste de admiti-lo, é um excelente editor, e percebe de pesquisa. Vai ver ao microscópio cada sílaba do teu livro, e vai estar atento a todos os pormenores. Lisonjeia-me muito o facto de quereres que sejamos nós a publicar o teu livro, mas acontece que temos, aqui na Millennium, um problema especial. Temos um ou dois inimigos que só esperam uma oportunidade para nos afundar. Se arriscarmos o pescoço e publicarmos uma coisa como esta, vai ter de ser cem por cento exacta. Não podemos permitir-nos menos.
- Nem eu quereria que fosse de outra maneira.
- Óptimo. Mas vais aguentar ter alguém a espreitar por cima do teu ombro e a criticar tudo o que fizeres durante quatro meses?
Svensson sorriu e olhou para Mikael.
- Venha ele - disse.
- Se vai ser uma edição temática, vamos precisar de mais material. Mikael... quero que escrevas sobre os aspectos financeiros do comércio
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do sexo. De quanto dinheiro estamos a falar anualmente? Quem ganha dinheiro com esta actividade e para onde vai ele? Será possível encontrar provas de que uma parte vai parar aos cofres do Estado? Monika, trabalha a questão dos abusos sexuais em geral. Fala com as mulheres que estão nos lares de refúgio, com investigadores, médicos e pessoal da Assistência Social. Vocês os dois e o Dag tratam dos artigos de apoio. Henry, quero que entrevistes a Mia Johansson... não pode ser o Dag a fazê-lo. Perfil: quem é ela, o que investiga e a que conclusões chegou. Depois, quero que relates alguns casos-tipo tirados dos arquivos da polícia. Christer, fotografias. Não sei como é que vamos ilustrar isto. Pensa no assunto.
- É talvez, de todos os temas, o mais fácil de ilustrar. Artístico. Nenhum problema.
- Deixem-me acrescentar uma coisa - disse Svensson. - Há, na polícia, uma pequena minoria de homens e mulheres que estão a fazer um excelente trabalho. Talvez fosse boa ideia falar com alguns deles.
- Tens nomes? - perguntou Cortez.
- E números de telefone - respondeu Svensson.
- Óptimo - disse Erika. - O tema da edição de Maio é o negócio do sexo. A nossa posição é que o tráfico de mulheres é um crime contra os direitos humanos e que esses criminosos têm de ser denunciados e tratados como os criminosos de guerra, ou os membros de esquadrões da morte, ou os torturadores de qualquer lugar do mundo. Agora, toca a bulir.
CAPÍTULO 5
QUARTA-FEIRA, 12 DE JANEIRO - SEXTA-FEIRA, 14 DE JANEIRO
Appelviken pareceu-lhe um lugar desconhecido, estranho até, quando, pela primeira vez em 18 meses, conduziu o Nissan Micra alugado pelo caminho de acesso. A partir dos 15 anos visitara duas vezes por ano a casa de saúde onde a mãe ficara internada depois de "Todo o Mal" ter acontecido. A mãe passara dez anos em Âppelviken, e fora lá que acabara por morrer, aos 43 anos, em consequência de uma derradeira e devastadora hemorragia cerebral.
Os últimos 14 anos da vida de Agneta Sofia Salander tinham sido pontuados por pequenas hemorragias cerebrais que a tornavam incapaz de cuidar de si mesma. Por vezes, nem sequer conseguia reconhecer a filha.
Lisbeth Salander não pensava muitas vezes na mãe. Eram pensamentos que despertavam nela sentimentos de impotência e vulnerabilidade, um estado de espírito negro como a noite. Quando adolescente, alimentara fantasias a respeito de ela e a mãe se darem bem e serem capazes de chegar a uma qualquer espécie de relacionamento. Era o coração a pensar. A cabeça sabia que nunca aconteceria.
A mãe fora uma mulher baixa e magra, mas nada que se parecesse com o aspecto anoréctico dela. Na realidade, era até muito bonita, com uma bela figura. Como a irmã de Lisbeth, Camilla.
Lisbeth não queria pensar na irmã.
Sempre achara uma partidazinha da vida o facto de ela e Camilla serem tão diferentes. Apesar de serem gémeas, nascidas com 20 minutos de diferença.
Lisbeth era a primeira. Camilla era a bonita.
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Eram tão diferentes que parecia quase impossível terem sido geradas no mesmo útero. Se nada tivesse dado para o torto no seu código genético, Lisbeth teria sido tão esplendorosamente bonita como a irmã. E, provavelmente, tão louca como ela.
Camilla sempre fora extrovertida, popular e bem-sucedida nos estudos, ao passo que Lisbeth era calada e introvertida, raramente respondendo às perguntas dos professores. As notas de Camilla eram sempre boas, as de Lisbeth nunca. Ainda na primária, já Camilla se afastara da irmã ao ponto de nem sequer fazerem o mesmo caminho para a escola. Professores e colegas notavam que as duas raparigas nunca falavam uma com a outra, nunca se sentavam juntas. A partir dos oito anos, tinham frequentado o mesmo ano, mas em turmas separadas. Quando tinham 12 e "Todo o Mal" acontecera, tinham sido colocadas em famílias de acolhimento diferentes. Só tinham voltado a encontrar-se cinco anos mais tarde, e desse encontro resultara um olho negro para Lisbeth e um lábio inchado para Camilla. Lisbeth não sabia onde estava Camilla a viver naquele momento, nem estava interessada em saber.
A seus olhos, Camilla era hipócrita, corrupta e manipuladora. Mas fora Lisbeth Salander que a sociedade declarara interdita.
Puxou o fecho de correr do blusão antes de enfrentar a chuva para atravessar o pátio até à entrada principal. Deteve-se junto de um banco de jardim e olhou em redor. Fora naquele preciso lugar que, 18 meses antes, vira a mãe pela última vez. Fizera-lhe uma visita inesperada quando ia a caminho de Hedestad para ajudar Mikael Blomkvist a descobrir um assassino em série. A mãe estava agitada, não a reconhecera, mas mesmo assim não queria deixá-la ir; Agarrara-se-lhe à mão e olhara para ela com uma expressão confusa. Lisbeth estava com pressa. Abraçara a mãe e continuara para norte, na sua moto.
A directora da clínica, Agnes Mikaelsson, recebeu-a cordialmente e acompanhou-a a um armazém. Encontraram a caixa de cartão. Lisbeth pegou-lhe. Não pesava mais de dois ou três quilos. Pouca coisa, em termos de herança.
- Tinha o pressentimento de que havia de voltar um dia - disse Frõken Mikaelsson.
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- Estive no estrangeiro - respondeu Lisbeth. Agradeceu à directora por ter conservado as coisas da mãe durante tanto tempo, levou a caixa para o carro e partiu.
Já passava do meio-dia quando chegou a Mosebacke. Guardou, sem a abrir, a caixa que continha os objectos pessoais da mãe no armário do vestíbulo e voltou a sair.
Quando abriu a porta do prédio, um carro-patrulha passava lentamente na rua. Ficou a observar, desconfiada, a presença das autoridades nas proximidades de sua casa, mas ao ver que os polícias não mostravam o mínimo interesse nela, esqueceu o assunto.
Foi às compras na H&M e na KappaAhl, e tratou de adquirir um novo guarda-roupa. Abasteceu-se largamente de vestuário básico sob a forma de calças, jeans, tops e meias. Não se interessava por roupas de marca, mas sabia-lhe bem poder comprar meia dúzia de pares de jeans sem ter de se preocupar com o dinheiro. Foi na Skoman que fez aquisições mais extravagantes: cuecas e soutiens suficientes para encher uma gaveta. Também aquilo se podia considerar vestuário básico, mas, ao cabo de meia hora de embaraçada escolha, juntou ao lote um conjunto que achou sexy, até erótico, e que um ano antes não lhe teria sequer passado pela cabeça comprar. Quando o experimentou, nessa noite, sentiu-se incrivelmente parva. O que viu no espelho foi uma rapariga escanzelada e cheia de tatuagens com uma lingerie grotesca. Despiu aquelas coisas e atirou-as para o caixote do lixo.
Tinha também comprado sapatos de Inverno e dois pares mais leves, para usar em casa. E um par de botas pretas com salto, que a faziam parecer vários centímetros mais alta. E um bom casaco de Inverno, de camurça castanha.
Fez café e uma sanduíche antes de levar o carro alugado para a respectiva garagem, em Ringen. Voltou para casa a pé e foi sentar-se às escuras, junto à janela, a olhar para as águas do Saltsjon.
Mia Johansson cortou o cbeesecake e enfeitou cada fatia com uma bola de gelado de framboesa. Serviu Erika e Mikael em primeiro lugar, e depois Svensson e a si mesma. Malin Eriksson fora a única que
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resistira resolutamente à sobremesa, contentando-se com o café servido numa antiquada chávena de porcelana, decorada com motivos florais.
- Faziam parte do serviço da minha avó - disse Mia, ao ver que Malin examinava a chávena.
- Tem um medo de morte de que se parta alguma chávena - avisou Svensson. - Só as usa quando temos convidados verdadeiramente importantes.
Mia sorriu.
- Vivi vários anos com a minha avó, quando era miúda. Estas chávenas são praticamente tudo o que me resta dela.
- São muito bonitas - disse Malin. - A minha cozinha é cem por cento ikea.
Mikael não estava minimamente interessado nas chávenas de café. Em contrapartida, não tirava os olhos do prato com o cbeesecake. Ponderou a hipótese de alargar um furo ao cinto das calças. Erika parecia partilhar as suas reflexões.
- Meu Deus, devia ter dito não à sobremesa - suspirou, olhando contritamente para Malin antes de pegar na colher.
Era suposto ser um simples jantar de trabalho, em parte para cimentar a cooperação que tinham combinado, em parte para continuar a discutir os planos para a edição temática. Dag sugerira que se reunissem em casa dele para comer qualquer coisa, e Mia servira a melhor galinha agridoce que Mikael alguma vez provara em toda a sua vida. Durante o jantar, tinham despachado duas garrafas de um robusto tinto espanhol, e Dag perguntou se alguém queria um copo de Trullamore Dew com a sobremesa. Só Erika cometeu o erro de declinar, e Dag foi buscar os copos.
Mia e Dag partilhavam um T2 em Enskede. Namoravam havia já quatro anos, mas só no ano anterior tinham decidido mergulhar de cabeça e viver juntos.
Tinham-se reunido às seis da tarde, e quando a sobremesa foi servida, às oito e meia, ainda não fora dita uma palavra sobre o assunto que servira alegadamente de pretexto para o jantar. Mas Mikael
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descobrira que gostava dos anfitriões e se sentia bem na companhia deles.
Foi Erika quem, finalmente, levou a conversa para o tema que estavam ali para discutir. Mia foi buscar o manuscrito da sua tese e colocou-o em cima da mesa, à frente dela. Tinha um título surpreendentemente irónico - Da Rússia, com Amor -, uma clara alusão ao livro de Ian Fleming. O subtítulo era: Tráfico de Mulheres, o Crime Organizado e a Resposta da Sociedade.
- Convém estabelecer desde já a diferença entre a minha tese e o livro que o Dag está a escrever - disse. - O livro do Dag é uma polémica que visa as pessoas que estão a ganhar dinheiro com o tráfico de mulheres. A minha tese tem que ver com estatísticas, trabalho de campo, textos jurídicos e um estudo sobre como a sociedade e os tribunais tratam as vítimas.
- Referes-te às raparigas.
- Muito novas, entre os quinze e os vinte, classe operária, escolaridade muito baixa. Quase todas têm uma vida familiar instável e muitas foram vítimas de uma ou outra forma de abuso já na infância. Vêm para a Suécia enganadas, iludidas por um monte de mentiras.
- Pelos traficantes.
- Neste sentido, a minha tese tem uma perspectiva sexista. Não é frequente o investigador poder definir tão claramente os papéis segundo linhas de género. Raparigas, as vítimas; rapazes, os organizadores. Se exceptuarmos um punhado de mulheres que trabalha por conta própria e tira partido do negócio do sexo, não há qualquer outra forma de criminalidade em que o próprio papel sexual seja uma pré-condição para o crime. Nem há qualquer outra forma de criminalidade em que a aceitação social seja tão grande, ou que a sociedade se esforce tão pouco por impedir.
- E no entanto, a Suécia tem leis muito estritas em matéria de tráfico de mulheres e de exploração sexual - disse Erika. - Não e verdade?
- Não me faças rir. Várias centenas de raparigas... não há, como é óbvio, estatísticas publicadas... são trazidas todos os anos para a Suécia para trabalharem como prostitutas, o que, neste caso, significa
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deixarem-se violar sistematicamente. Depois de ter entrado em vigor, a lei contra o tráfico de mulheres foi posta meia dúzia de vezes à prova nos tribunais. A primeira foi em Abril de 2003, o caso contra a dona louca de um bordel que tinha feito uma mudança de sexo. Foi absolvida, claro.
- Pensava que tinha sido condenada.
- Por gerir um bordel, sim. Mas foi absolvida das acusações de tráfico. A questão foi que as vítimas eram também as testemunhas contra ela, e desapareceram, voltaram para casa. A Interpol tentou encontrá-las, mas, ao cabo de vários meses de investigação, arquivou o processo.
- Que foi feito delas?
- Nada. O programa de televisão Insider pegou no caso e enviou uma equipa a Tallinn. Os jornalistas demoraram precisamente uma tarde a encontrar duas das raparigas, que viviam com os pais. A terceira tinha-se mudado para Itália.
- Por outras palavras, a polícia de Tallinn não foi muito eficiente.
- De então para cá, conseguimos um par de acusações, mas em todos os casos tratou-se de homens que tinham sido presos por outros crimes e que eram tão estúpidos que era impossível não serem apanhados - interveio Dag. - A lei é pura fachada. Não é aplicada. E o problema aqui é que se trata de violação agravada, muitas vezes associada a agressão física, agressão física agravada e ameaças de morte, e, em alguns casos, sequestro. É o pão nosso de cada dia para muitas raparigas que chegam de minissaia e carregadas de maquilhagem e são levadas para uma moradia qualquer nos subúrbios. Não têm hipótese de escolha: ou vão para a cama com os tipos asquerosos que pagam, ou arriscam-se a ser espancadas e torturadas pelos respectivos chulos. Não podem fugir... não falam a língua, não conhecem a lei e não sabem onde procurar ajuda. Não podem voltar para casa porque lhes tiraram o passaporte, e no caso da dona do bordel, as raparigas viviam trancadas num apartamento.
- Faz lembrar os campos de concentração. E chegam a ganhar algum dinheiro?
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- Oh, sim - respondeu Mia. - Para as manter sossegadas, dão-lhes um pedaço do bolo. Geralmente, trabalham vários meses antes de serem autorizadas a voltar a casa. Nessa altura, recebem entre vinte mil e trinta mil coroas, o que, em dinheiro russo, é uma pequena fortuna. Infelizmente, a maior parte viciou-se em álcool ou em drogas, e num estilo de vida que significa que esse dinheiro depressa desaparece. O que faz que o sistema se alimente a si mesmo, pois, passado algum tempo, estão outra vez cá: voltam voluntariamente, por assim dizer, para os seus torturadores.
- Quanto é que o negócio rende, anualmente? - perguntou Mikael.
Mia olhou para Dag e pensou um instante antes de responder.
- É muito difícil dar uma resposta exacta. Fartámo-nos de fazer contas, mas os nossos valores são forçosamente estimativas.
- Dá-nos uma ideia geral.
- Okay. Sabemos, por exemplo, que a madame acusada e absolvida de tráfico de mulheres trouxe trinta e cinco raparigas do Leste no espaço de dois anos. Todas elas estiveram cá por períodos que variaram entre algumas semanas e vários meses. Durante o julgamento, ficou-se a saber que, nesses dois anos, tinham rendido dois milhões de coroas. Fiz as minhas contas e calculei que cada rapariga rende à volta de sessenta mil coroas por mês. Quinze mil, digamos, são custos: viagens, roupas, cama e comida, et cetera. Não é uma vida de luxo; muitas delas têm de partilhar com várias outras um apartamento disponibilizado pelo bando. Do saldo, quarenta e cinco mil coroas, o bando fica com vinte ou trinta mil. O chefe mete metade ao bolso, digamos quinze mil, e divide o resto pelos subordinados: condutores, gorilas e outros. As raparigas recebem entre dez e doze mil coroas.
- Por mês...
- Suponhamos que um bando tem duas ou três raparigas a "trabalhar", o que significa duzentas mil coroas por mês. Cada bando É constituído por duas ou três pessoas, e é disso que vivem. É mais ou menos este o retrato financeiro da violação.
- E de quantas raparigas estamos a falar... se extrapolarmos?
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- Em qualquer momento há cem raparigas activas que são, de um modo ou de outro, vítimas do tráfico de mulheres. O que dá um total mensal, na Suécia, de seis milhões de coroas, à volta de setenta milhões por ano. E isto só das raparigas que são vítimas do tráfico.
- Mesmo assim, parece-me uma ninharia.
- É /uma ninharia. Mas, mesmo para conseguir essas somas relativamente modestas, cerca de cem raparigas têm de ser violadas. E isso que me põe doida.
- Ora aí está uma afirmação digna de uma investigadora objectiva! Mas quantos desses bandalhos vivem à custa das raparigas?
- Calculo que cerca de trezentos.
- Não parece um problema impossível de resolver - comentou Erika.
- Aprovamos leis, e os meios de comunicação indignam-se como é sua obrigação, mas a verdade é que nunca ninguém falou com uma dessas raparigas do Leste, nem faz ideia de como elas vivem.
- Como é que funciona? Quer dizer, na prática. Provavelmente, não é fácil trazer uma rapariga de dezasseis anos de Tallinn para aqui sem que ninguém dê por isso. Como é que funcionam quando elas chegam? - quis Mikael saber.
- Quando comecei a investigar isto, pensava que estávamos a falar de uma organização altamente especializada, com uma espécie de máfia profissional a trazer raparigas através da fronteira nem eu imaginava como.
- Mas não é nada disso - disse Malin.
- O negócio é organizado, mas cheguei à conclusão de que estamos a falar de muitos bandos pequenos e muito desorganizados. Esqueçam os fatos Armani e os carros desportivos: os bandos são cinquenta por cento russos ou bálticos e cinquenta por cento suecos. O chefe-tipo tem quarenta anos, muito pouca instrução e toda a sua vida andou metido em sarilhos. A perspectiva que tem das mulheres é pura Idade da Pedra. Há uma hierarquia muito rígida e os associados têm frequentemente medo dele. É violento, quase sempre toxico-dependente e não hesita em espancar quem quer que se lhe atravesse no caminho.
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Os móveis da IKEA foram entregues às nove e meia da manhã seguinte. Dois cidadãos extremamente robustos apertaram a mão a Irene Nesser, que falava com um ligeiro sotaque norueguês, e começaram imediatamente a transferir caixas do camião para o apartamento, usando o pequeno elevador. Passaram o dia a montar mesas, armários e camas. Irene Nesser foi ao Sõderhhallarna comprar o almoço para os dois. Comida grega.
A meio da tarde, os homens da IKEA estavam despachados e foram-se embora. Lisbeth Salander tirou a peruca e passeou-se pelo apartamento, perguntando a si mesma se iria sentir-se bem na sua nova casa. A mesa da cozinha tinha um ar demasiado elegante para o seu gosto. A divisão contígua, que tinha portas para o vestíbulo e para a cozinha, era agora a sala de estar, com modernos sofás e um conjunto de confortáveis cadeirões à volta da mesa de café, junto à janela. Estava satisfeita com o quarto. Sentou-se cuidadosamente na cama, para experimentar o colchão.
Examinou o escritório, saboreando a vista para o Saltsjõn. Sim, é um lugar agradável. Vou poder trabalhar aqui.
Em que iria trabalhar era, porém, algo que ainda não sabia.
Passou o resto da tarde a desempacotar e arrumar as suas coisas. Fez a cama e guardou as toalhas, os lençóis e as fronhas no armário da roupa branca. Tirou as roupas novas dos sacos e pendurou-as nos guarda-fatos. Apesar de tudo o que tinha comprado, só ocupou uma pequena parte do espaço. Distribuiu os candeeiros e arrumou os tachos e as panelas e os pratos e os talheres nos armários e gavetas da cozinha.
Lançou um olhar crítico às paredes nuas e decidiu que ia ter de arranjar uns posters ou quadros. Ou tapeçarias. Um vaso para flores também não seria má ideia.
Então, abriu as caixas de cartão que trouxera da Lundagatan e pôs livros e revistas nas prateleiras, e, nas gavetas da secretária, recortes de jornais e papelada de antigas investigações que se calhar devia mas era deitar no lixo. Destino que deu, sem ponta de remorso,
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às suas velhas T-shirts e meias cheias de buracos. Às tantas, encontrou um vibrador, ainda na caixa original. Fora um dos extravagantes presentes de aniversário de Mimi. Esquecera-se completamente dele e nem sequer o experimentara. Decidiu reparar essa omissão e pôs o vibrador na mesa de cabeceira.
De repente, ficou séria. Mimi. Sentiu uma pontada de remorso. Andara com Mimi, numa base bastante regular, durante um ano, e então trocara-a por Mikael sem uma palavra de explicação. Não se despedira nem dissera que estava a pensar ir para o estrangeiro. Também não se despedira de Armanskij nem dissera fosse o que fosse às raparigas do Evil Fingers. Deviam julgá-la morta, ou então tinham-na pura e simplesmente esquecido. Nunca fora uma figura central do grupo.
Apercebeu-se, naquele momento, de que também não se despedira de George Bland, em Granada, e perguntou a si mesma se ele andaria a passear pela praia, à procura dela. Lembrou-se do que Mikael lhe tinha dito a respeito de a amizade se basear em confiança e respeito. Não faço outra coisa senão desperdiçar amigos. Perguntou a si mesma se Mimi ainda andaria por aí, algures na cidade, e se deveria tentar entrar em contacto com ela.
Passou uma boa parte da noite no escritório, a separar papéis, a instalar os seus computadores, a navegar na Net. Deu uma rápida vista de olhos aos seus investimentos e descobriu que estava mais rica do que um ano antes.
Fez uma inspecção de rotina ao computador de Bjurman, mas nada encontrou na correspondência dele que lhe desse motivos para pensar que andava a fazer asneiras. Parecia ter reduzido as suas actividades profissionais e privadas a um estado semivegetativo. Raramente usava o e-mail, e quando navegava na Net era sobretudo para visitar sites pornográficos.
Já passava das duas da manhã quando largou o computador. Foi para o quarto e despiu-se, atirando as roupas para cima de uma cadeira. Ficou muito tempo a ver-se ao espelho da casa de banho, examinando o rosto anguloso e assimétrico, e os seus novos seios. E a tatuagem nas costas: um belo dragão encurvado, vermelho, verde
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e preto. Durante o ano que passara a viajar, deixara crescer os cabelos até aos ombros, mas, no final da estada em Granada, pegara numa tesoura e cortara-os. Continuavam a espigar em todas as direcções. Sentia que tinha ocorrido, ou estava a ocorrer, uma mudança fundamental na sua vida. Talvez fosse o facto de dispor de muito dinheiro e não ter de pensar em cada coroa que gastava. Ou talvez fosse o mundo adulto, que estava agora, com tanto atraso, a introduzir-se à força na sua existência. Ou talvez a compreensão de que, com a morte da mãe, a sua infância tinha acabado.
Durante a operação aos seios, na clínica de Génova, fora necessário, por razões médicas, retirar o anel que tinha num dos mamilos. Em seguida, desembaraçara-se do que lhe enfeitava o lábio inferior, e, em Granada, tirara um outro que tinha num outro lábio... magoava-a, e não conseguira sequer compreender como permitira que a furassem num sítio daqueles.
Abriu a boca e desenroscou o parafuso que lhe trespassava a língua havia sete anos. Guardou-o numa caixa que colocou na prateleira de vidro, ao lado do lavatório. Sentia a boca vazia. Exceptuando alguns aros nas orelhas, já só lhe restavam dois percings: um anel na sobrancelha esquerda e uma pedra decorativa no umbigo.
Finalmente, enfiou-se debaixo do seu novo edredão. A cama que comprara era gigantesca; sentia-se como se estivesse deitada à beira de um campo de futebol. Puxou o edredão para as orelhas e ficou a pensar durante muito tempo.
CAPÍTULO 6
DOMINGO, 23 DE JANEIRO - SÁBADO, 29 DE JANEIRO
Lisbeth Salander subiu no elevador da garagem até ao sexto piso, o último dos três que a Milton Security ocupava no edifício perto de Slussen. Abriu a porta com o cartão magnético que pirateara anos antes. Consultou automaticamente o relógio quando entrou no corredor às escuras. Domingo, três e dez da madrugada. O vigilante nocturno estaria sentado diante do centro de alarme, no quarto piso, longe do elevador, e ela sabia que ia quase de certeza ter aquele piso só para si.
Como sempre, espantava-a o facto de uma empresa de segurança ter lapsos tão básicos no seu próprio funcionamento.
Pouca coisa tinha mudado, ali no sexto piso, durante o ano que passara. Começou por visitar o seu antigo gabinete, um cubículo atrás de uma parede de vidro no corredor, onde Armanskij a instalara. A porta não estava fechada. Tudo exactamente na mesma, exceptuando a caixa de cartão cheia de papelada que alguém encostara à parede: a secretária, a cadeira, o cesto de papéis, uma estante (vazia) e um PC Toshiba pateticamente antiquado e com o disco rígido minúsculo.
Nada sugeria que Armanskij tivesse dado o gabinete dela a outra pessoa. Considerou isto um bom sinal, mas sabia que não significava grande coisa. Era um espaço a que dificilmente se poderia dar qualquer uso que valesse a pena.
Fechou a porta e avançou pelo corredor, certificando-se de que não havia retardatários em nenhum dos gabinetes. Deteve-se junto da máquina de café e premiu o botão para servir-se de um cappuccino, e em seguida abriu a porta do gabinete de Armanskij com o seu cartão pirateado.
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O gabinete estava, como sempre, irritantemente arrumado. Inspeccionou-o rapidamente e estudou a estante antes de sentar-se à secretária e ligar o computador.
Tirou um CD do bolso interior do blusão e enfiou-o na drive. Iniciou um programa chamado Asphyxia 1.3. Desenvolvera-o ela mesma e a sua única função era carregar no computador de Armanskij uma versão mais actualizada do Internet Explorer. O processo demorou menos de cinco minutos.
Quando acabou, ejectou o CD e reiniciou o computador. O novo programa era um tudo-nada maior e um microssegundo mais lento. Todas as configurações eram idênticas às originais, incluindo a data de instalação. Não haveria o mais pequeno vestígio da nova pasta.
Teclou o endereço ftp de um servidor na Holanda e viu surgir no visor uma janela de comando. Clicou em copy, escreveu Armanskij/ /MiltSec e clicou em OK. No mesmo instante, o computador começou a copiar o disco rígido de Armanskij para o servidor na Holanda. Uma barra de tempo indicava que o processo ia demorar 34 minutos.
Enquanto a transferência progredia tirou de um pote que estava na estante um duplicado da chave da secretária e passou a meia hora seguinte a pôr-se a par dos processos que Armanskij guardava na gaveta de cima do lado direito, os assuntos importantes em curso. Quando o computador assinalou que a transferência estava concluída, voltou a guardar as pastas pela mesma ordem em que as tinha encontrado.
Desligou o computador, apagou o candeeiro da secretária e saiu do gabinete, levando a chávena de café consigo. Deixou o edifício da Milton Security pelo mesmo caminho que usara para entrar. Eram quatro horas e doze minutos.
Foi a pé até casa, sentou-se diante do PowerBook, contactou o servidor na Holanda e começou a copiar o Asphyxia 1.3. Surgiu uma janela, a perguntar o nome do disco de destino. Tinha 40 opções diferentes, que fez desfilar no visor. Passou pelo disco rígido NilsEB-jurman, a que costumava dar uma vista de olhos de dois em dois meses. Deteve-se por um segundo em MikBlomlport
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e Mik BlomIMillHavia mais de um ano que não clicava em qualquer daqueles ícones, e perguntou vagamente a si mesma se não seria melhor eliminá-los. Acabou por decidir conservá-los, por uma questão de princípio: depois de todo o trabalho que dava entrar num computador, seria estupidez apagar a informação e, quem sabe, ter um dia de repetir todo o processo. O mesmo se aplicava a Wennerstrom, que também não abria havia muito tempo. O homem que usara aquele nome estava morto. O ícone Armanskij/MilSec, o último que criara, estava no fim da lista.
Podia ter-lhe clonado o disco rígido mais cedo, mas nunca se dera ao incómodo porque trabalhava na Milton Security e podia com toda a facilidade apoderar-se de qualquer informação que Armanskij quisesse esconder do resto do mundo. Não invadira o computador dele por motivos maliciosos: só queria saber em que estava a empresa a trabalhar, ver o aspecto das coisas. Clicou o nome, e abriu-se imediatamente uma pasta contendo um novo ícone chamado Armans-kijHD. Acedeu ao disco rígido e verificou que todos os ficheiros estavam nos respectivos lugares.
Até às sete da manhã, leu de uma ponta à outra os relatórios, a documentação financeira e os e-mails de Armanskij. Por fim, desligou o computador, enfiou-se na cama e dormiu até ao meio-dia e meia.
Na última sexta-feira de Janeiro, a Millennium reuniu a sua Assembleia Geral Anual na presença do contabilista da empresa, de um auditor externo e dos quatro sócios: Erika Berger (30%), Mikael Blomkvist (20%), Christer Malm (20%) e Harriet Vanger (30%). Malin Eriksson estava presente na sua qualidade de representante do sindicato e presidente da comissão de trabalhadores da revista, formada por ela própria, Lotta Karim, Henry Cortez, Monika Nilsson e o chefe de vendas, Sonny Magnusson. Era a primeira assembleia geral a que Malin Eriksson assistia.
A reunião começou às quatro da tarde e durou uma hora. A maior parte do tempo foi dedicada aos aspectos financeiros e ao relatório do auditor. Claramente, a Millennium pisava terreno firme, muito diferente da situação de crise em que se encontrava dois anos antes. O auditor
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anunciou um lucro de 2,1 milhões de coroas, sendo um milhão proveniente das vendas do livro de Mikael Blomkvist sobre o caso Wen-nerstrõm.
Erika Berger propôs que se constituísse uma provisão de um milhão de coroas, para prevenir crises futuras; que 250 mil coroas fossem destinadas a despesas extraordinárias, como a compra de novos computadores e outro equipamento e remodelação das instalações, e 300 mil fossem para aumentos de salários e para oferecer a Henry Cortez um contrato a tempo inteiro. Do saldo, seria pago um dividendo de 50 mil coroas a cada sócio, e 100 mil coroas seriam divididas em partes iguais pelos quatro empregados, independentemente de trabalharem a tempo inteiro ou em part-time. Sonny Magnusson não receberia qualquer bónus. O seu contrato dava-lhe direito a uma comissão sobre o espaço publicitário que vendia, o que já fazia dele o mais bem pago de todos os colaboradores da revista. A proposta foi aceite por unanimidade.
Mikael Blomkvist propôs que o orçamento destinado aos freelan-cers fosse reduzido a favor da contratação em part-time de mais um jornalista. Estava a pensar em Dag Svensson, que assim poderia usar a Millennium como base para o seu trabalho independente e mais tarde, se a coisa resultasse, ser contratado a tempo inteiro. Erika Berger opôs-se, alegando que a revista não podia funcionar sem ter acesso a uma grande quantidade de artigos freelance. Harriet Vanger apoiou-a. Malm absteve-se. Ficou decidido não mexer no orçamento para os freelancers, mas investigar a possibilidade de fazer ajustamentos noutras despesas. Todos queriam Dag Svensson, pelo menos como colaborador em part-time.
Seguiu-se uma breve discussão sobre a futura direcção e planos de desenvolvimento; Erika Berger foi reeleita presidente da comissão administrativa por mais um ano. Com isto, a reunião foi encerrada.
Malin Eriksson não dissera uma palavra. Estava satisfeita com a perspectiva de receber, tal como os colegas, um bónus de 25 mil coroas, mais do que o ordenado mensal.
No fim da assembleia, Erika Berger convocou uma reunião de sócios. Ela, Mikael Blomkvist, Christer Malm e Harriet Vanger
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ficaram depois de os outros terem abandonado a sala. Erika tomou a palavra.
- Há apenas um ponto na agenda - disse. - Harriet, nos termos do acordo que fizemos com o Henrik, a participação dele nesta empresa seria por dois anos. Esse prazo está prestes a terminar. Vamos ter de decidir o que acontece aos teus interesses... ou melhor, aos interesses do Henrik na Millennium.
- Todos sabemos que o investimento do meu tio foi um gesto impulsivo, provocado por uma situação anormal - respondeu Harriet. - Essa situação deixou de existir. O que é que propõem?
Malm franziu a testa, irritado. Era o único dos presentes que não sabia de que situação anormal estava Harriet a falar. Mikael e Erika não lhe tinham contado nada. Erika limitara-se a dizer que era uma questão pessoal que envolvia Mikael e que ele em circunstância alguma queria discutir. Obviamente, o silêncio de Mikael tinha qualquer coisa a ver com Hedestad e com Harriet Vanger. Não precisava de saber todos os pormenores para tomar uma decisão, e tinha demasiado respeito por Mikael para fazer daquilo um bicho de sete cabeças.
- Discutimos a questão entre os três e chegámos a uma conclusão - disse Erika. Olhou Harriet nos olhos. - Mas antes de explicarmos o nosso raciocínio, gostaríamos de saber o que pensas.
Harriet Vanger olhou-os um a um. Demorou um pouco mais o olhar em Mikael, mas as expressões deles nada revelavam.
- Se quiserem comprar a parte da família, vai custar-lhes três milhões de coroas, mais juros. Têm esse dinheiro? - perguntou, num tom neutro.
- Temos - respondeu Mikael, com um sorriso;
Tinha recebido cinco milhões de coroas pelo trabalho que fizera para o antigo magnata da indústria, Henrik Vanger. Ironicamente, parte desse trabalho consistira em descobrir o que acontecera a Harriet Vanger.
- Nesse caso, a decisão está nas vossas mãos - disse Harriet. - O acordo estipula que podem cancelar a participação da família Vanger a partir de hoje. Eu nunca teria aceitado um contrato tão fraco como o que o Henrik assinou.
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- Podemos comprar a vossa parte, se for preciso - disse Erika. - Mas a verdadeira questão é saber o que tu queres. És a CEO de um grande grupo industrial... dois grandes grupos industriais, para ser mais exacta. O nosso orçamento anual é capaz de corresponder ao que vocês ganham durante a pausa para o café. Porque havias de querer desperdiçar o teu tempo num negócio tão marginal como a Millennium!
Harriet Vanger olhou calmamente para ela e ficou calada por um longo momento. Então, desviou os olhos para Mikael e respondeu:
- Sempre fui dona de qualquer coisa praticamente desde o dia em que nasci. Hoje, passo os meus dias a dirigir uma empresa onde há mais intrigas do que num romance de quatrocentas páginas. Quando aceitei este lugar, foi para cumprir obrigações a que não podia fugir. Mas sabem uma coisa? Durante os últimos dezoito meses descobri que me divirto muito mais neste conselho de administração do que nos outros todos juntos.
Mikael inclinou a cabeça, com um ar pensativo. Harriet voltou-se para Malm. - Os problemas que vocês enfrentam na Millennium são mínimos, acessíveis. Naturalmente, a empresa quer ter lucro... é evidente. Mas têm outro objectivo... pretendem atingir outros objectivos.
Bebeu um golo do copo de água que tinha à sua frente e olhou para Erika. - O que é exactamente esse objectivo, continua a ser pouco claro para mim. O objectivo é um tudo-nada nebuloso. Não são um partido político nem um grupo de pressão. Não têm outras leal-dades a considerar excepto as vossas. Mas denunciam as falhas da sociedade e não se importam de entrar em conflito com figuras públicas. Querem mudar as coisas e marcar a diferença. Todos vocês fingem ser cínicos e niilistas, mas têm a vossa própria moral que orienta a revista, e muitas vezes reparei que é uma moral de um tipo muito particular. Não sei como chamar-lhe, excepto dizendo que a Millennium tem uma alma. Este é o único conselho de administração a que me orgulho de pertencer.
Depois disto, ficou calada durante tanto tempo que Erika acabou por soltar uma gargalhada.
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- Tudo isso está muito bem, mas ainda não respondeste à pergunta.
- É uma das coisas mais estranhas e mais absurdas em que alguma vez me vi envolvida, mas gosto da vossa companhia e tenho-me divertido imenso. Se quiserem que fique, terei muito gosto em fazê-lo.
- Okay - disse Christer. - Discutimos isto de trás para a frente e da frente para trás e chegámos a uma conclusão. Vamos comprar a tua parte.
Harriet abriu muito os olhos.
- Querem livrar-se de mim?
- Quando assinámos o contrato, tínhamos a cabeça no cepo, à espera do machado. Não tínhamos alternativa. Desde o início, começámos a contar os dias até que pudéssemos comprar a parte do teu tio.
Erika abriu uma pasta e tirou dela um monte de papéis que empurrou na direcção de Harriet, juntamente com um cheque no valor exacto da dívida. Harriet leu os papéis e assinou-os sem dizer uma palavra.
- Muito bem - disse Erika. - Foi razoavelmente indolor. Quero que fique registado a nossa gratidão a Henrik Vanger por tudo o que ele fez pela Millennium. Espero que lhe transmitas o que acabo de dizer.
- Assim farei - disse Harriet, num tom neutro, que não traía nada do que sentia. Estava magoada e profundamente desapontada por a terem deixado dizer que queria ficar antes de correrem com ela.
- E agora - continuou Erika -, deixa-me ver se consigo interessar-te por um contrato completamente diferente.
Tirou da pasta outro monte de papéis e fê-lo deslizar por cima da mesa.
- Não sabíamos se tu, pessoalmente, tinhas algum interesse em ser sócia da Millennium. O preço seria o mesmo que a quantia que acabas de receber. O acordo não tem limites de tempo nem cláusulas de excepção. Serias sócia de parte inteira, com as mesmas responsabilidades que nós.
Harriet arqueou as sobrancelhas.
- Porquê todo este rodeio?
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- Tinha de ser feito, mais tarde ou mais cedo - respondeu Chris-ter. - Podíamos ter renovado o antigo acordo de ano para ano ou até que surgisse um conflito e comprássemos a vossa parte. Mas era sempre um contrato que teria de ser dissolvido mais cedo ou mais tarde.
Harriet apoiou-se num cotovelo e olhou inquisitivamente para ele. Em seguida, voltou-se para Mikael e para Erika.
- Assinámos o nosso contrato com o Henrik porque precisávamos do dinheiro - disse Erika. - Agora estamos a oferecer-te este contrato porque queremos. E, ao contrário do antigo, não nos permitirá dar-te tão facilmente o pontapé de saída, no futuro.
- Para nós, é uma diferença enorme - acrescentou Mikael em voz baixa, e foi a única contribuição que fez para a conversa.
- A verdade é que acreditamos que trazes alguma valia à Millen-nium, além da garantia financeira implícita no nome Vanger - continuou Erika. - És inteligente e sensata e propões soluções construtivas. Até agora, tens mantido uma atitude discreta, quase como uma convidada que vem visitar-nos de três em três meses, mas, para este conselho de administração, representas a estabilidade e a direcção que nunca tivemos. Percebes de negócios. Certa vez perguntaste-me se podias confiar em mim, e eu perguntei-me a mesma coisa a teu respeito. Agora, ambas sabemos a resposta. Gosto de ti e confio em ti... todos nós gostamos e confiamos em ti. Não queremos que faças parte do grupo por causa de uma qualquer trapalhada legal. Queremos que sejas uma verdadeira sócia e companheira de trabalho.
Harriet pegou no contrato e passou cinco minutos a lê-lo. No fim, ergueu os olhos.
- Estão os três de acordo? - perguntou.
Três cabeças assentiram. Harriet pegou na caneta e assinou.
Os sócios da Millennium jantaram juntos no Samirs Gryta, na Tavastgatan. Foi uma festa sossegada - para celebrar a nova sociedade -, com bom vinho e cuscuz de cordeiro. A conversa foi descontraída, mas Harriet estava visivelmente nervosa. Havia no ambiente um ligeiro ar a primeiro encontro, em que ambas as partes sabem que vai acontecer qualquer coisa, mas não sabem exactamente o quê.
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Harriet saiu do restaurante às sete e meia. Desculpou-se dizendo que tinha de ir para o hotel e deitar-se cedo. Erika, que ia ter com o marido, fez com ela uma parte do caminho. Despediram-se em Slus-sen. Mikael e Christer ficaram mais algum tempo, até que também Christer disse que tinha de ir para casa e se retirou.
Harriet apanhou um táxi para o Sheraton e subiu directamente para o seu quarto, no oitavo piso. Despiu-se, tomou um banho e vestiu o roupão do hotel. Então, sentou-se à janela, a olhar para a Riddarholmen. Tirou da mala um maço de Dunhills. Fumava três ou quatro cigarros por dia, tão poucos que podia considerar-se uma não-fumadora e continuar a desfrutar o seu prazer sem pesos na consciência. Às nove horas, alguém bateu à porta do quarto. Era Mikael.
- Sacaninha - disse ela.
Ele sorriu e beijou-a na face.
- Pensei que iam mesmo correr comigo.
- Nunca faríamos uma coisa dessas. Compreendeste porque foi que quisemos o novo contrato?
- Claro. Faz todo o sentido.
Mikael abriu-lhe o roupão, pôs uma mão no seio dela e acariciou-o cuidadosamente.
- Sacaninha - repetiu Harriet.
Lisbeth Salander parou diante da porta com a pequena chapa metálica a dizer WU. Tinha visto as luzes acesas, da rua, e ouvia o som de música vindo do interior. Portanto, Miriam Wu continuava a viver no pequeno estúdio na Tomtebogatan, perto de Sankt Eriksplan. Era sexta-feira à noite e Lisbeth estivera meio à espera de que Mimi tivesse saído para se divertir e o apartamento estivesse às escuras. As únicas perguntas a que faltava responder era se Mimi ainda queria ter alguma coisa que ver com ela e se estava sozinha e disponível.
Premiu o botão da campainha.
Mimi abriu a porta e arqueou as sobrancelhas numa expressão de surpresa. Então, encostou-se à ombreira e pôs uma mão na anca.
- Salander. Pensava que tinhas morrido, ou coisa parecida.
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- Ou coisa parecida?
- O que é que queres?
- Há muitas respostas para essa pergunta.
Miriam Wu examinou o patamar antes de voltar a olhar para Lisbeth.
- Experimenta uma.
- Bem, queria ver se continuas sozinha e se queres companhia para esta noite.
Mimi pareceu espantada durante alguns segundos, e então pôs-se a rir às gargalhadas.
- És a única pessoa que conheço capaz de bater-me à porta ao cabo de ano e meio de silêncio e perguntar-me se quero foder.
- Queres que me vá embora?
Mimi parou de rir. Ficou silenciosa durante alguns segundos.
- Lisbeth... Jesus, estás a falar a sério! Lisbeth esperou.
Por fim, Mimi suspirou e abriu mais a porta para a deixar entrar.
- Anda lá. Posso ao menos oferecer-te um café.
Lisbeth seguiu-a e sentou-se num dos bancos junto a uma pequena mesa, no vestíbulo. O apartamento tinha 20 metros quadrados: uma minúscula sala e um vestíbulo só parcialmente mobilado. A cozinha pouco mais era do que um nicho num canto do vestíbulo. A água vinha, através de uma mangueira, do lavatório da casa de banho.
A mãe de Mimi era chinesa, de Hong Kong, e o pai sueco, de Boden. Lisbeth sabia que viviam os dois em Paris. Mimi estudava sociologia em Estocolmo, e tinha uma irmã mais velha que estudava antropologia nos Estados Unidos. Os genes da mãe revelavam-se nos cabelos muito negros, lisos e lustrosos, que ela usava curtos, e nas feições ligeiramente asiáticas. O pai dera-lhe os olhos azuis-claros. Tinha uma boca grande e covinhas nas faces que não herdara de nenhum dos pais.
Mimi tinha 31 anos. Gostava de vestir-se de couro e de frequentar clubes onde se fazia arte ao vivo. Por vezes, participava nos espectáculos. Lisbeth não ia a um clube desde os 16 anos.
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Além dos estudos, Mimi tinha um emprego: um dia por semana como vendedora na Domino Fashion, numa rua transversal à Svea-vãgen. Quem precisasse desesperadamente de trajes do género uniforme de enfermeira de borracha ou fato de bruxa de couro preto podia procurá-los na Domino. A loja desenhava e produzia as roupas, por encomenda. Mimi era co-proprietária, juntamente com algumas amigas, e a loja proporcionava um modesto complemento à sua bolsa de uns poucos milhares de coroas mensais. Lisbeth tinha-a visto actuar pela primeira vez num espectáculo durante o desfile Gay Pride, anos antes, e, mais tarde nessa mesma noite, encontrara-a numa tenda-bar. Mimi usava um estranho vestido de plástico amarelo-limão que revelava mais do que escondia. Lisbeth não vira nada de erótico na vestimenta, mas estava suficientemente bêbeda para, de repente, querer engatar uma rapariga vestida de limão. Para seu grande espanto, o citrino olhara para ela, rira alto, beijara-a despudoradamente e dissera "És tu que eu quero". Tinham ido para o apartamento de Lisbeth e tinham feito amor até de madrugada.
- Sou o que sou - disse Lisbeth. - Fugi de tudo e de todos. Devia ter-me despedido.
- Pensei que te tinha acontecido alguma coisa. Não que tivéssemos mantido grande contacto durante os últimos meses antes de te ires embora.
- Estive ocupada.
- És tão misteriosa. Nunca falas de ti. Nem sequer sei se tens um emprego ou para quem podia ter telefonado quando deixaste de atender o telemóvel.
- De momento não estou a trabalhar, e além disso tu és igual a mim. Querias sexo, mas não estavas particularmente interessada numa relação. Ou estavas?
- É verdade - admitiu Mimi, finalmente.
- O mesmo se passa comigo. Nunca fiz promessas.
- Mudaste - disse Mimi.
- Nem por isso.
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- Pareces mais velha. Mais madura. Tens roupas diferentes. E meteste qualquer coisa no soutien.
Lisbeth não respondeu. Mimi tinha-a visto nua, claro que ia notar a diferença. Por fim, baixou os olhos e resmungou:
- Fiz uma operação às mamas.
- Que foi que disseste?
Lisbeth ergueu os olhos e a voz, sem se aperceber que estava a adoptar um tom de desafio:
- Fui para uma clínica em Itália e fiz uns implantes mamários. Foi por isso que desapareci. Depois, andei a viajar. Agora estou de regresso.
- Estás a brincar?
Lisbeth lançou-lhe um olhar inexpressivo.
- Que parvoíce a minha. Esqueci-me de que nunca brinca, Mr. Spock.
- Não vou pedir desculpa. Estou só a ser sincera. Se queres que me vá embora, é só dizer.
Mimi riu-se.
- Bem, podes apostar que não quero que te vás embora antes de me deixares dar uma espreitadela. Por favor.
- Sempre gostei de fazer sexo contigo, Mimi. Nunca quiseste saber se eu trabalhava ou não, e se eu estava ocupada arranjavas outra pessoa.
Mimi percebera, logo na escola secundária, que era lésbica. Quando tinha 17 anos, depois de uma série de tentativas atrapalhadas, fora finalmente iniciada nos mistérios do sexo durante uma festa organizada em Gotemburgo pela Federação Sueca pelos Direitos das Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais. A partir daí, não voltara sequer a considerar outro estilo de vida. Certa vez, quando tinha 23 anos, experimentara fazer sexo com um homem. Fizera mecanicamente tudo o que se esperava dela, mas não fora agradável. Pertencia também a essa minoria dentro da minoria que não estava interessada em casamento ou fidelidade ou serões tranquilos passados em casa.
- Só voltei há um par de semanas. Precisava de saber se tinha de ir à procura de alguém ou se ainda estavas interessada.
Mimi inclinou-se e beijou-a ao de leve nos lábios.
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- Tinha pensado estudar esta noite. - Desapertou o primeiro botão da blusa de Lisbeth. - Mas que se lixe... - Beijou-a outra vez e continuou a desapertar os botões. - Tenho de ver isto. - Voltou a beijá-la. - Bem-vinda a casa.
Harriet Vanger adormeceu por volta das duas da manhã. Mikael ficou acordado, a ouvi-la respirar. Passado algum tempo levantou-se e roubou-lhe um Dunhill do maço que tinha na mala. Sentou-se na cadeira junto à cama, a fumar e a olhar para ela.
Não planeara tornar-se amante de Harriet Vanger. Longe disso. Depois da estada em Hedestad, o que mais queria era manter-se tão longe de toda a família quanto possível. Falava com Harriet nas reuniões de direcção, mas não passava daí. Sabiam os segredos um do outro, mas exceptuando o papel de Harriet Vanger na administração da Millennium, não havia contactos entre os dois.
Nas férias de Pentecostes do ano anterior fora a Sandhamn pela primeira vez havia meses, disposto a gozar um pouco de paz e sossego sentado no alpendre da cabana a ler um livro. Na tarde de sexta-feira, quando ia a caminho do quiosque comprar cigarros, dera de caras com Harriet. Aparentemente, também ela sentira a necessidade de sair de Hedestad e alugara um quarto no hotel da vila, para o fim-de-semana. Não voltara lá desde os seus tempos de criança. Tinha 16 anos quando deixara a Suécia e 53 quando regressara. Fora Mikael quem a descobrira, na Austrália.
Depois de uma surpreendida saudação, Harriet remetera-se a um embaraçado silêncio. Mikael conhecia-lhe a história, e ela sabia que ele tivera de comprometer os seus princípios para proteger os horríveis segredos da família Vanger. E que, em parte, o fizera por ela.
Mikael convidara-a para a cabana. Fizera café e tinham ficado horas sentados no alpendre, a conversar. Era a primeira vez que falavam com tempo depois do regresso dela.
- Que fez com as coisas que estavam na cave do Martin? - não resistira Mikael a perguntar.
- Quer mesmo saber?
- Quero.
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- Tratei eu própria do assunto. Queimei tudo o que podia arder. E mandei deitar a casa abaixo. Não podia viver lá, e não podia alugá-la e deixar que outras pessoas lá vivessem. Para mim, tudo o que estivesse associado àquela casa tinha que ver com o mal. Estou a planear construir outra casa no local, uma coisa pequena.
- E as pessoas não estranharam quando mandou deitar a casa abaixo? Era muito luxuosa e moderna.
Ela sorrira.
- O Dirch Frode pôs a correr a história de que havia tanta humidade nos alicerces que saía mais barato deitá-la abaixo do que repará-la.
Frode era o advogado da família.
- Como vai o Frode?
- Está quase a fazer setenta anos. Eu trato de o manter ocupado. Tinham jantado juntos, e Mikael apercebera-se de que Harriet
estava ali sentada a contar-lhe os pormenores mais íntimos da sua vida. Quando lhe perguntara porquê, ela pensara um pouco e acabara por responder que não havia verdadeiramente mais ninguém no mundo com quem pudesse abrir-se daquela maneira. Além disso, era difícil não abrir o coração a um garoto a quem servira de babysitter 40
anos antes.
Em toda a sua vida, fizera sexo com três homens. Primeiro o pai, depois o irmão. Matara o pai e fugira do irmão. Conseguira sobreviver e conhecera um homem com o qual construíra uma nova vida.
- Era terno e amoroso. Não estávamos... quer dizer, não tínhamos uma vida amorosa exuberante, mas ele era forte, inspirava confiança. Fui feliz com ele. Tivemos vinte maravilhosos anos juntos antes de ele adoecer.
- Nunca voltou a casar? Porque não? Ela encolhera os ombros.
- Era mãe de dois filhos e proprietária de uma grande empresa agrícola. Não podia escapar-me para fins-de-semana românticos. E nunca senti falta de sexo. - Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo. - Está a fazer-se tarde. É melhor eu voltar ao hotel.
Mikael não fizera menção de pôr-se de pé.
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- Queres seduzir-me?
- Quero - dissera ele.
Levantara-se da cadeira e pegara-lhe na mão, levando-a para dentro e para o sótão onde tinha a cama. De repente, ela detivera-o.
- A verdade é que não sei muito bem como. Não é uma coisa que eu faça todos os dias.
Tinham passado todo o fim-de-semana juntos, e depois disso uma noite de três em três meses, no fim das reuniões da administração da revista. Não era uma relação que pudesse durar. Ela trabalhava 24 horas por dia e viajava muito. Passava um mês em cada dois na Austrália. Mas acabara por apreciar aqueles encontros esporádicos com Mikael.
Mimi fez café duas horas mais tarde, enquanto Lisbeth continuava deitada de costas, suada e nua, em cima dos lençóis. Estava a fumar um cigarro quando a viu voltar da cozinha. Invejava o corpo de Mimi. Era impressionantemente musculada. Ia ao ginásio três noites por semana, uma delas para praticar boxe tailandês, ou kara-té, ou uma merda dessas, o que a fazia estar numa forma espantosa.
E era deliciosa. Não tão bonita como uma modelo, mas genuinamente atraente. Adorava provocar e flirtar. Quando se arranjava para uma festa, com os seus vestidos malucos, conseguia que qualquer pessoa se interessasse por ela. Lisbeth não percebia por que raio gostaria Mimi de um estupor como ela. Mas ainda bem que gostava. O sexo com Mimi era tão espectacularmente libertador que Lisbeth se limitava a relaxar e saboreá-lo, tirando o que queria e dando em troca.
Mimi pousou as canecas num banco ao lado da cama. Gatinhou pelo colchão e baixou a cabeça para mordiscar um dos mamilos de Lisbeth.
- Servem - disse.
Lisbeth ficou calada. Estava a olhar para os seios de Mimi. Também eram pequenos, mas pareciam perfeitamente naturais no corpo dela.
- Vou ser franca contigo, Lisbeth, ficas espectacular.
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- Isso é parvoíce. As mamas não fazem diferença nenhuma, para um lado nem para o outro, mas pelo menos agora tenho umas.
- Preocupas-te tanto com o teu corpo.
- Olha quem fala, a fazer exercício como uma idiota.
- Faço exercício como uma idiota porque gosto. Excita-me, é quase tão bom como sexo. Devias experimentar.
- Faço boxe.
- Tretas. Vais ao ginásio uma vez por mês, no máximo. E é sobretudo porque te dá gozo esmurrar aqueles peneirentos. Não é a mesma coisa que fazer exercício para nos sentirmos bem.
Lisbeth encolheu os ombros. Mimi sentou-se em cima dela, com uma perna para cada lado.
- Lisbeth, estás obcecada com o teu corpo. Já devias saber que gosto de te ter na cama não pelo teu aspecto mas pelo que fazes. Acho-te bestialmente sexy.
- Também eu a ti. É por isso que volto sempre.
- Não é por amor? - exclamou Mimi, a fingir-se magoada. Lisbeth abanou a cabeça.
- Andas com alguém?
Mimi hesitou um instante antes de assentir.
- Talvez, de certa maneira. É um pouco complicado.
- Não estou a querer meter o nariz na tua vida.
- Eu sei, mas não me importo de te dizer. É uma pessoa da universidade que é um pouco mais velha do que eu. Está casada há vinte anos, mas o marido farta-se de viajar, de modo que estamos juntas de vez em quando. Subúrbios, moradia, essa coisa toda. É uma lésbica não assumida. Já dura desde o Outono passado e começa a cair um pouco na rotina. Mas ela é mesmo boa. E além disso, continuo a andar com a malta do costume.
- Estava a pensar... importas-te que volte a passar por cá?
- Não, não me importo. Gosto de saber de ti.
- Mesmo que eu desapareça por mais seis meses?
- Mantém-te em contacto. Gosto de saber se estás morta ou viva. E, acredites ou não, sei em que dia fazes anos.
- Sem compromissos?
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Mimi suspirou e sorriu.
- Sabes, és uma lésbica com quem eu consigo imaginar-me a viver. Deixar-me-ias em paz quando eu quisesse estar sozinha.
Lisbeth não disse nada.
- Além de não seres verdadeiramente uma lésbica. Provavelmente, és bissexual. Mas, mais do que tudo, és sensual... gostas de sexo, e não tens preconceitos em matéria de género. És um factor de caos entrópico.
- Não sei o que sou - disse Lisbeth. - Mas agora estou em Estocolmo e muito mal em matéria de relações. A verdade é que não conheço ninguém aqui. És a primeira pessoa com quem falo desde que regressei.
Mimi estudou-a com uma expressão séria.
- Queres mesmo conhecer pessoas? És a pessoa mais esquiva e inacessível que conheço. Mas as tuas maminhas são deliciosas. - Agarrou com os dedos a pele por baixo de um dos mamilos e esticou-a. -Condizem contigo. Nem demasiado grandes, nem demasiado pequenas.
Lisbeth suspirou de alívio; as críticas eram favoráveis.
- E parecem mesmo verdadeiras.
Apertou com tanta força que Lisbeth ofegou. Olharam uma para a outra. Então, Mimi voltou a inclinar-se e beijou-a gulosamente. Lisbeth retribuiu o beijo e passou os braços à volta dela. O café ficou a arrefecer em cima do banco.
CAPÍTULO 7
SÁBADO, 29 DE JANEIRO - DOMINGO, 13 DE FEVEREIRO
Às ONZE DA MANHÃ DE SÁBADO, um carro chegou a Svavelsjõ - uma povoação que não teria mais de 15 casas, entre Jãma e Vanghárad - e estacionou diante do último edifício, situado a cerca de 150 metros já fora da aldeia. Era uma decrépita estrutura industrial que em tempos albergara uma gráfica mas que, de acordo com a tabuleta colocada por cima da porta, servia agora de sede ao Moto-Clube de Svavelsjõ. Não havia qualquer outro carro à vista. Mesmo assim, o condutor olhou cuidadosamente em redor antes de se apear. Era enorme e loiro. Estava um frio intenso. O homem calçou umas luvas de couro e tirou da bagageira um saco de desporto preto.
Não receava estar a ser observado. Era impossível estacionar perto da velha gráfica sem ser visto. Se a polícia ou qualquer serviço do governo quisessem manter o local sob vigilância, teriam de equipar os seus homens com camuflados e telescópios e enterrá-los no extremo mais distante de um descampado. O que não deixaria de provocar falatório entre os habitantes, e três das casas pertenciam a membros
do M-C de Svavelsjõ.
Por outro lado, não queria entrar no edifício. A polícia tinha feito rusgas às instalações em mais de uma ocasião, e era impossível saber se não estaria lá escondido algum equipamento de vigilância. O que significava que as conversas dentro do clube eram estritamente sobre carros, mulheres e cerveja, e, ocasionalmente, sobre em que acções valia a
pena investir.
Por isso o homem esperou até Carl-Magnus Lundin sair para o pátio. Magge Lundin, o presidente do clube, era um sujeito alto
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e magro, em cuja figura esgalgada o ventre dilatado típico dos bebedores de cerveja punha uma rotundidade incongruente. Tinha apenas 36 anos. Os cabelos eram loiros, apanhados num rabo-de-cavalo, e vestia jeans pretos, botas e um pesado casaco de Inverno. Do seu cadastro policial constavam já cinco averbamentos. Dois por pequenas infracções relacionadas com drogas, um por receptação de bens roubados e outro por roubo de viatura e condução sob os efeitos do álcool. O quinto, mais grave, significara um ano de prisão: agressão física com danos corporais agravados. Acontecera vários anos antes, quando, completamente bêbedo, se passara dos carretos num bar de Estocolmo.
Lundin e o seu gigantesco visitante trocaram um aperto de mão e começaram a caminhar lentamente ao longo da vedação do pátio.
- Já não nos víamos há uns meses - observou Lundin. O gigante loiro assentiu com a cabeça.
- Temos um negócio preparado - disse. - Mais de três quilos de metanfetamina. Para ser exacto, três quilos e sessenta gramas.
- As mesmas condições que da última vez?
- Fifty-fifty.
Magge Lundin tirou um maço de cigarros do bolso do casaco. Gostava de fazer negócios com o loiro. A met valia, na rua, entre 160 e 230 coroas por grama, dependendo da oferta. Aquela quantidade representava cerca de 600 mil coroas. O Moto-Clube de Svavelsjõ distribuiria os três quilos em pacotes de cerca de 250 gramas por um grupo de dealers de confiança. Nesse ponto da cadeia, o preço descia para qualquer coisa entre 120 e 130 coroas por grama, o que, logicamente, diminuía a receita total.
Era um excelente negócio para o Moto-Clube de Svavelsjõ. Ao contrário do que acontecia com outros fornecedores, nunca havia merdas a respeito de pagamentos adiantados ou preços fixos. O gigante loiro fornecia a droga e pedia 50% da receita, uma partilha perfeitamente razoável. Ambas as partes sabiam mais ou menos quanto rendia cada quilo de met. O valor total dependia da eficácia de Lundin a negociar com os dealers. Podia variar uns poucos milhares para
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um lado ou para o outro, mas, no fim, o loiro receberia à volta de 190 mil coroas.
Tinham feito muitos negócios juntos, ao longo dos anos, sempre com o mesmo sistema. Lundin sabia que o gigante loiro poderia duplicar a sua receita ocupando-se pessoalmente da distribuição. E também sabia por que é que o outro aceitava um lucro mais baixo... podia ficar na retaguarda e deixar o Moto-Clube de Svavelsjõ correr todos os riscos. Desse modo, tinha um rendimento mais pequeno, mas mais seguro. E, ao contrário do que acontecia com todos os outros fornecedores que conhecia, aquele era um relacionamento baseado em sólidos princípios comerciais, crédito e boa vontade. Sem confusões, sem merdas, sem ameaças.
Certa vez, o loiro até engolira um prejuízo de quase 100 mil coroas, numa entrega de armas que dera para o torto. Lundin não conhecia mais ninguém no negócio capaz de absorver um prejuízo daqueles. Ficara aterrorizado quando tivera de lhe dizer. Explicara-lhe o que fora que correra mal com o negócio e como um polícia do Centro de Prevenção Criminal estivera à beira de marcar pontos à custa de um membro da Irmandade Ariana de Vàrmland. Mas o loiro nem sequer pestanejara. Fora até muito compreensivo. As merdas acontecem. Era esquecer o assunto e seguir em frente.
Magge Lundin não era completamente estúpido. Compreendia que ter menos lucro e arriscar menos era bom negócio.
Nunca lhe passara sequer pela cabeça tentar enganar o loiro. Seria uma péssima ideia. O loiro e respectivos associados aceitavam um lucro menor desde que as contas fossem honestas. Se o enganasse, o loiro iria visitá-lo, e Lundin estava convencido de que não sobreviveria a essa visita.
- Quando é que é a entrega?
O loiro deixou cair o saco de desporto no chão.
- A entrega está feita.
Lundin não se sentiu tentado a abrir o saco e a verificar o conteúdo. Em vez disso, estendeu a mão, em sinal de que tinham um acordo e que ele tencionava cumprir a sua parte.
- Há mais uma coisa - disse o loiro.
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- O que é?
- Gostaríamos de propor-te um serviço especial.
- Ouçamos.
O loiro tirou um sobrescrito do bolso interior do casaco. Lundin abriu-o. Continha uma fotografia de passaporte e uma folha de papel A4 com dados pessoais. Arqueou interrogativamente uma sobrancelha.
- Chama-se Lisbeth Salander e mora em Estocolmo, na Lunda-gatan, no Sõdermalm.
- Certo.
- Está provavelmente no estrangeiro, de momento, mas vai voltar mais cedo ou mais tarde.
- Okay.
- O meu empregador gostaria de ter uma conversa sossegada com ela. Tem de ser entregue viva. Sugerimos aquele armazém perto de Yngern. E precisamos de alguém para fazer a limpeza, depois. Ela tem de desaparecer sem deixar rasto.
- Não há-de haver problema. Como é que sabemos quando vai estar em casa?
- Eu digo-te.
- E o preço?
- Que dizes a dez mil pelo serviço completo? É muito simples. Ir a Estocolmo, pegar nela e entregar-ma.
Trocaram um novo aperto de mão.
Na sua segunda visita a Lundagatan, Lisbeth Salander sentou-se no sofá, a pensar. Tinha de tomar várias decisões, e uma delas era se devia ou não conservar aquele apartamento.
Acendeu um cigarro, soprou o fumo para o tecto e sacudiu a cinza para dentro de uma lata de Cola vazia.
Não tinha motivos para gostar particularmente do apartamento. Fora para lá viver com a mãe e a irmã quando tinha quatro anos. A mãe dormia na sala, ela e Camilla partilhavam o minúsculo quarto. Quando tinha 12 anos e "Todo o Mal" acontecera, fora levada para uma clínica psiquiátrica infantil e, depois dos 15, passara por uma série de famílias de acolhimento. O seu curador na altura, Holger Palmgren,
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encarregara-se de alugar o apartamento, e também conseguira que lhe fosse devolvido quando ela fizera 18 anos e precisara de um lugar onde viver.
Aquele apartamento fora um ponto de referência fixo durante a maior parte da sua vida. Apesar de não precisar dele, não lhe agradava a ideia de vendê-lo. Isso significaria ter desconhecidos a ocupar o
seu espaço.
O problema logístico era que todo o seu correio - na medida em que recebia algum - ia para Lundagatan. Se vendesse o apartamento, teria de arranjar outro endereço para usar. A última coisa que queria era ser oficialmente incluída numa série de bases de dados. Neste aspecto, era quase paranóica. Não tinha motivos para confiar nas autoridades. Ou em quem quer que fosse, para dizer a verdade.
Olhou para a parede corta-fogo do prédio fronteiro que se via da janela, como fizera toda a sua vida. Sentiu-se subitamente aliviada por ter tomado a decisão de deixar o apartamento. Nunca se sentira segura, ali. Sempre que dobrava a esquina da Lundagatan e se aproximava da porta do prédio - sóbria ou não -, costumava examinar desconfiadamente os arredores, os carros estacionados, as pessoas que passavam. Tinha a certeza de que havia, algures, alguém que queria fazer-lhe mal, e o momento mais provável para um ataque era quando entrava ou saía de casa.
Nunca ocorrera qualquer ataque, mas isso não significava que pudesse relaxar. O endereço de Lundagatan constava de todos os registos e bases de dados públicos, e durante todos aqueles anos nunca tivera meios para melhorar a sua segurança; a única coisa que podia fazer era não baixar a guarda. Agora, a situação mudara. Não queria que ninguém conhecesse o seu novo endereço em Mosebacke. O instinto aconselhava-a a manter-se o mais anónima possível.
Fosse como fosse, tinha de resolver o problema: o que fazer com o velho apartamento. Pensou naquilo durante algum tempo, e então pegou no telemóvel e ligou para Mimi.
- Olá, sou eu.
- Olá, Lisbeth. Então desta vez telefonas logo após uma semana?
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- Estou na Lundagatan.
- Okay.
- Estava a pensar se gostarias de ficar com o apartamento.
- Que estás tu a dizer?
- Vives numa caixa de sapatos.
- Gosto da minha caixa de sapatos. Vais-te mudar?
- Já me mudei. O apartamento está vazio. Mimí pareceu hesitar.
- Lisbeth, não posso comprá-lo.
- Nem eu tenciono vendê-lo. Podes mudar para cá esta tarde e ficar o tempo que quiseres sem pagar nada durante um ano. Como é uma casa de habitação social, não posso alugar, mas posso referir no contrato que és minha companheira. Desse modo evitas chatices com o condomínio.
Mimi riu-se.
- Lisbeth, estás por acaso a pedir-me em casamento? Lisbeth manteve-se séria como um juiz.
- Não estou a usar o apartamento e não quero vendê-lo.
- Estás a dizer que posso viver aí de graça? Isso é a sério? -É.
- Por quanto tempo?
- Todo o que quiseres. Estás interessada?
- Claro que estou. Não é todos os dias que me oferecem um apartamento de graça em pleno Sõder.
- Há uma pequena coisa.
- Bem me parecia.
- Podes cá viver tanto tempo quanto quiseres', mas eu continuarei a constar como residente e o meu correio virá para aqui. Tudo o que tens que fazer é avisar-me se aparecer alguma coisa interessante.
- Lisbeth, és mesmo tarada. Onde é que vais viver?
- Falamos disso noutra altura - respondeu Lisbeth, evasivamente.
Combinaram encontrar-se nessa tarde, para que Mimi pudesse dar uma vista de olhos ao apartamento. Lisbeth já se sentia muito
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melhor. Foi a pé até ao Handelsbank, na Hornsgatan, onde tirou uma senha e esperou a sua vez.
Mostrou o BI e explicou que estivera fora bastante tempo e queria saber o saldo da sua conta poupança. Tinha 82 670 coroas. A conta estivera parada durante mais de um ano, e então, no Outono anterior, fora feito um depósito de 9132 coroas. A herança da mãe.
Levantou 9300 coroas. Queria gastar aquele dinheiro em qualquer coisa que tivesse deixado a mãe feliz. Foi à estação de correios da Rosenlundsgatan e fez um donativo anónimo a favor de um dos refúgios de mulheres de Estocolmo.
Eram oito da noite de sexta-feira quando Erika Berger desligou o computador e se espreguiçou. Tinha passado nove horas seguidas a dar os últimos retoques na edição de Março da Millennium, e uma vez que Malin Eriksson estava a trabalhar a tempo inteiro com Svensson no número temático, tivera de fazer uma boa parte do trabalho sozinha. Henry e Lotta tinham ajudado qualquer coisa, mas eram essencialmente redactores e pesquisadores, pouco habituados ao minucioso e cansativo trabalho de rever e editar.
Apesar do cansaço e das dores nas costas estava satisfeita com o dia e com a vida em geral. Os gráficos da contabilidade apontavam na direcção certa, os artigos estavam a chegar a tempo, ou pelo menos não excessivamente atrasados, e o pessoal andava feliz. Passado mais de um ano, continuavam como que pedrados de adrenalina na sequência do caso Wennerstrõm.
Depois de ter tentado durante algum tempo massajar o pescoço, decidiu que do que estava a precisar era de um duche, e pensou em usar a casa de banho do escritório. Mas a preguiça era muita e deixou-se ficar como estava, com os pés em cima do tampo da secretária. Ia fazer 45 anos dentro de três meses, e o tal famoso futuro que tanto desejara começava a ser uma coisa do passado. Aparecera-lhe uma rede de pequenas rugas à volta dos olhos e da boca, mas sabia que continuava a ser atraente. Fazia exercício no ginásio duas vezes por semana, mas tinha reparado que estava a tornar-se cada vez mais
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difícil subir até ao topo do mastro durante os longos passeios à vela. E era sempre ela que tinha de subir: o marido sofria de vertigens.
Disse para consigo mesma que os seus 45 anos, apesar de alguns altos e baixos, tinham sido, no geral, bastante bons. Tinha dinheiro, status, uma casa de que gostava muito e um trabalho que adorava. Tinha um marido ternurento que a amava e por quem continuava apaixonada ao fim de 15 anos de casamento. E ainda tinha um agradável e aparentemente incansável amante, que talvez não lhe satisfizesse a alma, mas lhe satisfazia o corpo sempre que ela precisava.
Sorriu ao pensar em Mikael Blomkvist. Perguntou a si mesma quando iria ele arranjar coragem para lhe dizer que andava a dormir com Harriet Vanger. Nenhum deles dissera uma palavra que fosse a respeito daquela relação, mas Erika não era parva. Na reunião do conselho de administração, em Agosto, notara a troca de olhares entre os dois. Por pura malícia, tentara ligar para os telemóveis de ambos, nessa noite, e estavam desligados. Dificilmente se poderia considerar isto uma prova irrefutável, claro, mas em subsequentes reuniões do conselho, o telefone de Mikael estivera sempre indisponível, à noite. Era quase cómico ver como Harriet os deixava depois do jantar com a mesma desculpa de que tinha de deitar-se cedo. Erika não era ciumenta e não tencionava levar mais longe a investigação, mas não deixaria de espicaçá-los a ambos a propósito do assunto caso se lhe deparasse uma boa ocasião.
Nunca se envolvia nos casos de Mikael com outras mulheres, mas esperava que aquela história entre ele Harriet não criasse problemas na administração da revista. Não que estivesse verdadeiramente preocupada. Mikael tinha um longo passado de relações terminadas, mas continuava a dar-se às mil maravilhas com a maior parte das mulheres envolvidas.
Ser a amiga e confidente de Mikael Blomkvist era algo que lhe dava um prazer enorme. Completamente limitado em relação a certas coisas, Mikael era, em relação a outras, tão incrivelmente perspicaz que quase parecia um oráculo. Mas nunca conseguira compreender o amor dela pelo marido, era incapaz de perceber por que razão ela considerava
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Greger Beckman uma pessoa tão encantadora: terno, interessante, generoso e, acima de tudo, sem nenhuma das características que tanto detestava na maior parte dos homens. Greger era o homem ao lado de quem queria envelhecer. Tinha desejado ter filhos com ele, mas não fora possível, e agora era demasiado tarde. Mas se tivesse de escolher um parceiro para a vida, não conseguiria imaginar alguém melhor e mais estável... alguém em que pudesse confiar tão cegamente e que estivesse sempre pronto a ajudá-la quando precisasse.
Mikael Blomkvist era muito diferente. Era um homem com traços de carácter tão mutáveis que, por vezes, parecia ter múltiplas personalidades. Como profissional, era obstinado e quase patologicamente focado no trabalho. Pegava numa história e trabalhava-a até ao ponto em que se aproximava da perfeição, e então atava todas as pontas soltas. Quando estava no seu melhor, era brilhante, e quando não estava tão bem, mesmo assim era muito melhor do que a média. Parecia ter um dom quase intuitivo para escolher a história que escondia um esqueleto no armário e pôr de lado a que redundaria numa peça vulgar e chata. Nunca se arrependera de trabalhar com ele.
Como nunca se arrependera de ter-se tornado sua amante. A única pessoa que compreendia a sua paixão sexual por Mikael era o marido, e compreendia porque ela não receava discutir as suas necessidades com ele. Não era uma questão de infidelidade, mas de desejo. O sexo com Mikael dava-lhe algo que nenhum outro homem conseguia dar-lhe, nem mesmo Greger.
O sexo era importante para ela. Perdera a virgindade quando tinha 14 anos e passara uma grande parte da adolescência numa frustrada procura de satisfação. Experimentara tudo, desde namoros desenfreados com colegas a um perturbado caso com um professor consideravelmente mais velho, sexo pelo telefone e fetichismo. Experimentara o que mais a interessava no erotismo. Tentara o sadoma-soquismo e fora durante algum tempo membro do Club Xtrem, que organizava festas que não eram socialmente aceitáveis. Experimentara várias vezes sexo com outras mulheres e, desapontada, admitira que não era o seu género e que as mulheres não conseguiam excitá-la, nem de longe, como um homem. Ou dois. Com o marido, explorara
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as possibilidades do sexo com dois homens - um deles dono de uma galeria famosa - e descobrira que qualquer dos seus dois parceiros tinha uma forte tendência bissexual e que ela própria ficava quase paralisada de prazer quando sentia dois homens a acariciá-la e a satisfazê-la ao mesmo tempo, tal como tinha uma sensação de prazer difícil de definir quando via o marido ser acariciado por outro homem. Ela e Greger tinham repetido a excitação, com o mesmo êxito, com um par de parceiros regulares.
Não que a vida sexual dela com o marido fosse aborrecida ou insatisfatória. Acontecia apenas que Mikael lhe proporcionava uma experiência completamente diferente.
Tinha talento. Era, pura e simplesmente, Podre de Bom na Cama. Tão bom que parecia a Erika ter conseguido um equilíbrio perfeito tendo Greger como marido e Mikael como amante-para-as-ocasiões. Não conseguia passar sem qualquer deles, e não tencionava ter de escolher entre os dois.
E fora isto que o marido compreendera, que ela tinha necessidades para lá do que ele podia oferecer-lhe, mesmo sob a forma dos seus mais imaginativos e acrobáticos exercícios no jaccuzzi.
Do que Erika mais gostava na sua relação com Mikael era o facto de ele não mostrar qualquer desejo de controlá-la. Não era minimamente ciumento, e apesar de ela própria ter tido vários ataques de ciumeira quando tinham começado a andar juntos, 20 anos antes, depressa descobrira que, no caso dele, não precisava de ter ciúmes. A relação entre os dois baseava-se na amizade e, em questões de amizade, Mikael era indefectivelmente leal. Era uma relação capaz de sobreviver às mais duras provas.
Em todo o caso, aborrecia-a que muitos dos seus conhecidos continuassem a murmurar sobre a relação dela com Mikael, e sempre nas suas costas.
Mikael era um homem. Podia andar de cama em cama sem que ninguém arqueasse sequer uma sobrancelha. Ela era uma mulher, e o facto de ter um amante, ainda por cima com o consentimento do marido-e também o facto de se ter mantido fiel a esse amante durante 20 anos - dava tema para as mais interessantes conversas à mesa de jantar.
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Pensou um instante, e então pegou no telefone e ligou para o marido.
- Olá, querido. Que estás a fazer?
- A escrever.
Greger Beckman não era apenas um artista; era, acima de tudo, professor de história da arte e autor de vários livros. Participava frequentemente em debates públicos e era consultor de vários e grandes ateliês de arquitectura. Havia já um ano que estava a trabalhar num livro sobre a importância da decoração artística de interiores, explicando por que razão as pessoas se sentiam bem em certos edifícios e noutros não. O livro começara a ganhar contornos de um ataque ao funcionalismo que (suspeitava Greger) ia causar furor.
- Como é que está a correr?
- Bem. Vai fluindo. E tu?
- Acabei agora mesmo o último número. Vai para a gráfica na quinta-feira.
- Parabéns.
- Estou desfeita.
- Cheira-me que tens alguma engatada.
- Planeaste alguma coisa para esta noite? Ficavas muito aborrecido se eu não fosse para casa?
- Dá cumprimentos ao Mikael e diz-lhe que anda a desafiar a
sorte.
- Ele era capaz de gostar.
- Okay. Então diz-lhe que és uma bruxa impossível de satisfazer e que vais acabar por envelhecer prematuramente.
- Isso já ele sabe.
- Nesse caso, tudo o que me resta é suicidar-me. Vou continuar a escrever até cair para o lado. Diverte-te.
Erika ligou para Mikael, que tinha ido a casa de Mia e Dag, em Enskede, para discutir alguns pormenores finais do manuscrito de Svensson, e perguntou-lhe se estava demasiado ocupado ou se consideraria a possibilidade de massajar umas costas doridas.
- Tens a chave - disse ele. - Faz de conta que estás em tua casa.
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- Farei. Até já.
Demorou dez minutos a fazer o percurso a pé até à Bellmans-gatan. Despiu-se, tomou um duche e tirou um café da máquina. Em seguida enfiou-se na cama, nua e expectante.
O máximo de satisfação para ela seria provavelmente uma ménage à trois com Greger e Mikael, mas sabia que isso nunca iria acontecer. Mikael era tão inflexivelmente hetero que ela gostava de provocá-lo acusando-o de homofobia. O interesse dele em homens era nulo. Mais uma prova de que não se pode ter tudo nesta vida.
O gigante loiro franzia a testa, irritado, enquanto conduzia o carro, a 15 quilómetros por hora, por uma estrada florestal em tão mau estado que, durante algum tempo, julgou ter-se enganado no caminho. Começava a escurecer quando, finalmente, a estrada alargou e viu a cabana. Parou, desligou o motor e olhou em redor. Faltavam cerca de 50 metros.
Estava na região de Stallarholm, não muito longe de Marifred. Era uma simples cabana dos anos 50, no meio de um bosque. Avistou, por entre as árvores, uma faixa de gelo do lago Málaren.
Não conseguia compreender por que haveria alguém de querer passar o seu tempo livre num lugar tão isolado. Sentiu um súbito desconforto mal saiu do carro e fechou a porta. A floresta parecia ameaçadora, como se estivesse a fechar-se à sua volta. Sentia que estava a ser observado. Começou a avançar para a cabana, mas ouviu um restolhar que o fez deter-se bruscamente.
Olhou para o bosque. As sombras do crepúsculo adensavam-se, o silêncio era absoluto, não havia vento. Ficou ali parado durante dois minutos, com os sentidos em alerta total, até que, pelo canto do olho, viu uma figura deslocar-se lenta e silenciosamente por entre as árvores. Quando focou o olhar, a figura estava perfeitamente imóvel, 30 metros para o interior da floresta, a olhar para ele.
Sentiu uma onda de pânico. Tentou distinguir pormenores. Viu um rosto escuro, ossudo. Parecia ser um anão - não teria mais de metade da altura dele - e vestia qualquer coisa que parecia uma túnica de ramos de pinheiro e musgo. Um troll da floresta? Um duende?
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Conteve a respiração. Os cabelos eriçaram-se-lhe na nuca.
Então piscou os olhos seis vezes e sacudiu a cabeça. Quando voltou a olhar, a figura tinha-se deslocado cerca de dez metros para a direita. Não está ali ninguém. Sabia que estava a imaginar coisas. E no entanto, distinguia perfeitamente a figura no meio das árvores. De súbito, o estranho ser moveu-se, aproximou-se. Parecia estar a deslocar-se, em rápidos saltos, num semicírculo, à procura da melhor posição
para atacá-lo.
O loiro avançou apressadamente para a cabana. Bateu à porta com um pouco mais de força do que tencionara. Mal ouviu vozes no interior, o medo desapareceu. Olhou por cima do ombro. Viu apenas
árvores.
Mesmo assim, só soltou a respiração quando a porta se abriu e
Nils Bjurman o convidou delicadamente a entrar.
Miriam Wu ofegava quando voltou a subir as escadas depois de ter levado para o depósito de reciclagem, na cave, o último saco de lixo com as tralhas que Lisbeth tinha deixado. O apartamento estava clinicamente limpo e cheirava a sabão, a tinta e ao café que Lisbeth acabara de fazer. Estava sentada num banco, a olhar pensativamente para o apartamento nu de onde as cortinas, os tapetes, os talões de desconto presos à porta do frigorífico e a habitual lixeira do vestíbulo tinham desaparecido como que por milagre. Ficou espantada ao descobrir que parecia muito maior.
Mimi e Lisbeth não tinham o mesmo gosto em matéria de roupas, mobiliário ou estímulos intelectuais. Mais exactamente: Mimi tinha gosto e opiniões muito definidas a respeito de como a sua casa devia ser, que mobílias queria e que roupas usava. Lisbeth, na opinião de Mimi, não tinha gosto, ponto final.
Depois de Mimi ter examinado o apartamento na Lundagatan com uma minúcia digna de um agente imobiliário, tinham discutido a questão e Mimi decidira que a maior parte da tralha tinha de sair. Especialmente o horroroso e sujo sofá castanho da sala. Queria Lisbeth conservar alguma coisa? Não. Depois disto e durante duas
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semanas, Mimi passara longos dias, além de várias horas por noite, a deitar fora móveis velhos, a limpar armários, a esfregar soalhos, a pintar as paredes da cozinha, da sala, do quarto e do vestíbulo. E também envernizara o soalho da sala.
Lisbeth não tinha o mínimo interesse nestas tarefas, mas aparecera várias vezes para ver Mimi trabalhar, fascinada. Por fim, o apartamento ficara vazio de tudo excepto de uma pequena e sólida mesa de cozinha que Mimi tencionava lixar e pintar, dois bancos, também de madeira, de que Lisbeth se apropriara quando um outro morador do prédio resolvera limpar a arrecadação, e um conjunto de estantes na sala que Mimi achava que valia a pena pintar.
- Mudo-me este fim-de-semana, a menos que tenhas mudado de ideias.
- Não preciso do apartamento.
- Mas é um óptimo apartamento. Quer dizer, há apartamentos maiores e melhores, mas este fica mesmo no centro de Sõder e o condomínio é uma ninharia. Lisbeth, estás a perder uma fortuna não o vendendo.
- Tenho o suficiente para me governar.
Mimi calou-se, sem saber muito bem como interpretar esta seca resposta.
- Onde é que estás a viver? Lisbeth não respondeu.
- Pode-se visitar-te?
- De momento, não.
Lisbeth abriu a mochila e tirou de lá uns papéis que estendeu a Mimi.
- Já tratei de tudo com o condomínio. A maneira mais fácil é registar-te como minha companheira e dizer que vou vender-te metade do apartamento. O preço é uma coroa. Tens de assinar o contrato.
Mimi pegou numa caneta e assinou, acrescentando a sua data de nascimento.
- Mais nada?
- Mais nada.
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- Lisbeth, sempre achei que eras um pouco esquisita. Tens consciência de que acabas de oferecer-me metade deste apartamento? Adorava ficar com ele, mas não quero entrar numa situação em que tu de repente te arrependas e isso cause problemas entre nós.
- Nunca vai haver problemas entre nós. Quero que vivas aqui. Por mim, está tudo bem.
- Mas sem nada em troca? Estás completamente chanfrada.
- Ficas encarregada do meu correio. É essa a combinação.
- O que vai ocupar-me para aí quatro segundos por semana. Tencionas aparecer de vez em quando para fazer amor?
- Gostaria muito, mas não faz parte do contrato. Podes dizer não sempre que quiseres.
Mimi suspirou.
- E eu que começava a gostar da ideia de ser uma mulher por conta. Tu sabes, ter alguém que nos oferece um apartamento, paga as contas e aparece de vez em quando para um pouco de exercício na cama.
Ficaram sentadas, em silêncio, durante algum tempo. Então, Mimi pôs-se resolutamente de pé, foi à sala e apagou a única lâmpada que pendia do tecto.
- Chega aqui. Lisbeth seguiu-a.
- Nunca fiz amor no chão de um apartamento acabado de pintar e sem mobília. Vi uma vez um filme com o Marlon Brando sobre um casal que o fazia, em Paris.
Lisbeth olhou para o chão.
- Apetece-me brincar - disse Mimi. - Estás com disposição?
- Estou quase sempre com disposição.
- Acho que esta noite vou ser uma cabra dominadora. Eu é que mando. Despe-te.
Lisbeth sorriu. Despiu-se. Demorou cerca de dez segundos.
- Deita-te no chão. De barriga para baixo.
Lisbeth obedeceu. O soalho estava frio e fez-lhe pele de galinha. Mimi usou a T-shirt dela, com a frase "Tem o direito de permanecer calado" para lhe amarrar os pulsos atrás das costas.
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Lisbeth não conseguiu impedir-se de pensar que aquilo era muito semelhante ao modo como Nils Cabrão de Merda Bjurman a amarrara dois anos antes.
As semelhanças acabavam ali.
Com Mimi, tudo o que sentia era uma excitante expectativa. Deixou-se manobrar docilmente quando Mimi a fez rolar até ficar deitada de costas e lhe abriu as pernas. À escassa luz que entrava pela janela, viu-a puxar a T-shirt por cima da cabeça, fascinada pelos seios dela. Mimi usou a T-shirt que acabava de despir para lhe vendar os olhos. Lisbeth ouviu o restolhar de roupas. Segundos mais tarde, sentiu a língua de Mimi no ventre e os dedos dela entre as coxas. Estava excitada como não lhe acontecia havia já muito tempo. Fechou os olhos por baixo da venda e deixou Mimi marcar o ritmo.
CAPÍTULO 8
SEGUNDA-FEIRA, 14 DE FEVEREIRO - SÁBADO, 19 DE FEVEREIRO
Dragan Armanskij ergueu os olhos quando ouviu a ligeira pancada na ombreira e viu Lisbeth Salander à porta. Tinha uma chávena de café em cada mão. Pousou lentamente a caneta e empurrou o relatório para um lado.
- Olá - disse ela. -Olá.
- É uma visita de cortesia. Posso entrar?
Armanskij fechou os olhos por um segundo. Apontou para a cadeira das visitas, do outro lado da secretária. Olhou para o relógio. Eram seis e meia da tarde. Lisbeth entregou-lhe uma das chávenas e sentou-se. Ficaram a olhar um para o outro durante algum tempo.
- Há mais de um ano - disse Armanskij. Lisbeth assentiu com a cabeça.
- Está zangado?
- Devia estar?
- Não me despedi.
Ele franziu os lábios. Estava surpreendido, mas ao mesmo tempo aliviado por saber que, pelo menos, Lisbeth não tinha morrido. Repentinamente, sentiu-se invadir por uma vaga de irritação e cansaço.
- Não sei o que dizer - começou. - Não tens qualquer obrigação de dizer-me em que estás a trabalhar. O que é que queres?
A voz soara um pouco mais fria do que ele tencionara.
- Não tenho a certeza. Queria sobretudo dizer olá.
- Precisas de emprego? Não vou dar-te mais trabalho. Ela abanou a cabeça.
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- Estás a trabalhar para outra pessoa?
Lisbeth voltou a abanar a cabeça. Parecia estar à procura das palavras. Armanskij esperou.
- Tenho andado a viajar - disse, por fim. - Só voltei há muito pouco tempo.
Armanskij estudou-a. Lisbeth tinha mudado. Havia uma nova... maturidade na escolha das roupas e no porte. E enfiara qualquer coisa no soutien.
- Estás diferente. Onde estiveste?
- Andei por aí... - disse ela, mas então notou a irritação dele, e acrescentou: - Fui a Itália, e a partir daí continuei, estive no Médio Oriente, fui a Hong Kong via Banguecoque. Estive na Austrália durante algum tempo, e na Nova Zelândia, e saltitei de ilha em ilha através do Pacífico. Passei um mês no Taiti. Depois andei pelos Estados Unidos e passei os últimos meses nas Caraíbas. Não sei por que não me despedi.
- Eu digo-te: porque te estás nas tintas para as outras pessoas - disse Armanskij, no tom de quem afirma um facto.
Lisbeth mordeu o lábio.
- Geralmente, são as outras pessoas que se estão nas tintas para mim.
- Conversa. Tens um problema de atitude e tratas como merda as pessoas que tentam ser tuas amigas. É tão simples como isso.
Silêncio.
- Quer que me vá embora?
- Faz como quiseres. Sempre fizeste. Mas se saíres agora, não quero voltar a ver-te nunca mais.
Subitamente, Lisbeth teve medo. Alguém que ela respeitava estava a um passo de rejeitá-la. Não sabia o que dizer.
- Já passaram dois anos desde que o Holger Palmgren teve a trombose. Não o visitaste uma única vez - continuou Armanskij, implacável.
Lisbeth ficou a olhar para ele, quase em estado de choque.
- O Palmgren está vivo?
- Nem sequer sabes se está vivo ou morto.
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- Os médicos disseram...
- Os médicos disseram muita coisa - interrompeu-a Armanskij. - Estava muito mal e não conseguia comunicar. Mas, no último ano, recuperou bastante. Não consegue falar muito bem, é preciso estar com atenção para perceber o que diz. Precisa de ajuda para muitas coisas, mas é capaz de ir à casa de banho sozinho. As pessoas que gostam dele visitam-no e fazem-lhe companhia.
Lisbeth continuou sentada, aturdida. Fora ela que encontrara Palmgren depois de ele ter tido o AVC, dois anos antes. Chamara a ambulância e os médicos tinham abanado a cabeça e dito que o prognóstico não era encorajador. E ela vivera no hospital durante uma semana, até que um médico lhe dissera que Palmgren entrara em coma e que era extremamente improvável que saísse dele. Nessa altura, levantara-se e saíra do hospital sem olhar para trás. E, naturalmente, sem comprovar o que tinha acontecido.
Franziu o sobrolho. Nessa mesma altura tinha apanhado com Nils Bjurman, que absorvera grande parte da sua atenção. Mas ninguém, nem sequer Armanskij, lhe dissera que Palmgren estava vivo, ou que estava a melhorar. E ela nunca considerara sequer essa possibilidade.
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Nunca, em toda a sua vida, se sentira uma cabra tão egoísta como naquele instante. E nunca ninguém a descompusera num tom tão duro. Baixou a cabeça.
Foi Armanskij quem, finalmente, quebrou o silêncio que se instalara:
- Como vais tu? Encolheu os ombros.
- Como é que ganhas a vida? Tens trabalho?
- Não, não tenho, e não sei que espécie de trabalho quero. Mas tenho algum dinheiro, de modo que lá me vou safando.
Armanskij estudou-a com um olhar atento.
- Só passei para dizer olá... não ando à procura de emprego. Não sei... talvez fizesse um trabalho para si, se alguma vez precisasse, mas teria de ser qualquer coisa que me interessasse.
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- Suponho que não queres contar-me o que aconteceu em Hefcstad, naquele ano.
Lisbeth não respondeu.
- Bem, alguma coisa aconteceu. O Martin Vanger enfeixou o carro num camião depois de tu teres estado aqui a pedir emprestado algum equipamento de vigilância porque alguém te tinha ameaçado. E a irmã dele regressou de entre os mortos. Causou uma certa sensação, para dizer o menos.
- Dei a minha palavra em como não falaria no assunto.
- E também não queres dizer-me qual foi o teu papel no caso Wennerstrõm.
- Fiz pesquisa para o Mikael Blomkvist. - A voz dela tornara-se repentinamente muito mais fria. - Mais nada. Não quis envolver-me.
- O Blomkvist andou à tua procura por tudo quanto é sítio. Telefonava-me pelo menos uma vez por mês, para saber se eu sabia alguma coisa de ti.
Lisbeth não disse nada, mas Armanskij notou que tinha cerrado os lábios com força.
- Não posso dizer que gosto do homem - continuou Armanskij -, mas é inegável que se preocupa contigo. Encontrei-o uma vez, no Outono passado. Também não quis falar de Hedestad.
Lisbeth não queria falar de Mikael Blomkvist.
- Só vim dizer olá e dizer que estou de volta. Ainda não sei se vou ficar. Tem aqui o meu número de telemóvel e o meu novo e-mail, se precisar de entrar em contacto comigo.
Estendeu-lhe um pedaço de papel e pôs-se de pé. Já tinha chegado à porta quando ele falou.
- Espera um instante. O que é que vais fazer?
- Vou ver o Holger Palmgren.
- Okay. Mas o que eu queria dizer era... que tipo de trabalho vais fazer?
- Não sei.
- Mas tens de ganhar a vida.
- Já lhe disse, tenho o suficiente para me ir governando.
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Armanskij recostou-se na cadeira. Nunca sabia muito bem como interpretar o que ela dizia.
- Fiquei tão furioso por teres desaparecido sem dizer uma palavra que tinha quase decidido não voltar a confiar em ti. - Fez uma careta. - Não se pode contar contigo. Mas és um raio de uma boa investigadora. Sou capaz de ter um trabalho a calhar para ti.
Lisbeth abanou a cabeça, mas voltou para junto da secretária.
- Não quero o seu trabalho. Quer dizer, não preciso do seu trabalho. Estou a falar a sério. Sou financeiramente independente.
Armanskij franziu cepticamente o sobrolho.
- Okay, és financeiramente independente, seja lá o que for que isso quer dizer. Acredito em ti. Mas se precisares de um emprego...
- Dragan, é a segunda pessoa que visito desde que voltei. Não preciso do seu trabalho. Mas, nestes últimos anos, tem sido uma das poucas pessoas que respeito.
- Toda a gente tem de ganhar a vida.
- Lamento, mas já não estou interessada em fazer investigação pessoal. Diga-me alguma coisa se lhe aparecer um problema verdadeiramente interessante.
- Que espécie de problema.
- Um daqueles que parecem impossíveis de resolver. Se ficar emperrado e não souber o que fazer e a situação for desesperada. Se quer que eu trabalhe para si, vai ter de arranjar-me qualquer coisa especial. Talvez para o lado das operações.
- Para o lado das operações? Tu? Mas tu desapareces sem deixar rasto sempre que te dá na gana.
- Atenção, nunca falhei um trabalho que tivesse aceitado fazer. Armanskij ficou a olhar para ela, sem saber o que fazer. A palavra
"operações" era jargão profissional, mas significava trabalho de campo. Podia ser qualquer coisa desde serviço de guarda-costas e missões de vigilância em exposições de arte. O pessoal das operações era composto por veteranos de confiança, muitos deles ex-polícias, e 90% eram homens. Lisbeth Salander era o exacto oposto de todos os critérios que definira para o pessoal de operações da Milton Security.
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- Bem... - disse, hesitantemente, mas já ela tinha saído. Armanskij abanou a cabeça. Ela é estranha. Ela é muito estranha.
No instante seguinte, Lisbeth estava de novo à porta.
- Oh, a propósito... Há um mês que tem dois dos seus rapazes a proteger a tal actriz, a Christine Rutherford, do maluco que lhe escreve cartas ameaçadoras. Pensa que é alguém próximo dela, porque o autor das cartas sabe tantos pormenores.
Armanskij ficou a olhar, de boca aberta. Uma espécie de choque eléctrico percorreu-lhe o corpo, há está ela outra vez. A falar de um caso sobre o qual não pode saber absolutamente nada.
- E...?
- É tanga. Um truque publicitário. Ela e o namorado é que escrevem as cartas. Vai mandar mais uma nos próximos dias, e, para a semana, vai haver uma "fuga" para os jornais. Provavelmente, vão culpar a Milton Security. Risque-a da sua lista de clientes. Já.
Antes que Armanskij pudesse dizer qualquer coisa, Lisbeth tinha desaparecido. Ficou sentado, a olhar para a porta. Não era possível, ela não podia saber um único pormenor sobre aquele caso. Tinha de ter alguém dentro da Milton que a mantinha ao corrente. Mas só quatro ou cinco pessoas sabiam daquilo, além dele: o chefe dos operacionais e os encarregados da vigilância propriamente dita, e todos eles eram profissionais da máxima confiança. Armanskij coçou o queixo.
Olhou para a secretária. O dossier Rutherford estava ali, fechado à chave. O gabinete tinha um alarme anti-roubo. Olhou para o relógio e verificou que Harry Fransson, chefe do departamento técnico, já devia ter saído. Iniciou o e-mail e escreveu uma mensagem a pedir a Fransson que, na manhã seguinte, instalasse uma câmara de vigilância no gabinete.
Lisbeth Salander foi directamente para Mosebacke. Apressou o passo, assolada por uma súbita sensação de urgência.
Ligou para o hospital de Sõder e, depois de a telefonista a ter feito passar por meia dúzia de serviços, conseguiu descobrir o paradeiro de Palmgren. Durante os últimos 14 meses tinha estado num centro de reabilitação, em Ersta. De repente, teve uma visão de Appelviken.
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Quando ligou, disseram-lhe que Palmgren estava a dormir, mas que poderia visitá-lo no dia seguinte.
Passou o resto da tarde a passear de um lado para o outro, no apartamento. Estava com um humor de cão. Deitou-se cedo e adormeceu quase de imediato. Acordou as sete da manhã, tomou um duche e comeu o pequeno-almoço no 7-Eleven. Às oito, estava à porta da agência de aluguer de automóveis, em Ringvàgen. Tenho mesmo de comprar um carro. Alugou o mesmo Nissan Micra que usara para ir a Àppelviken semanas antes.
Estava inusitadamente nervosa quando estacionou diante do centro de reabilitação, mas ganhou coragem, entrou no edifício e dirigiu-se à recepção.
A funcionária que a atendeu consultou alguns papéis e informou-a de que Holger Palmgren se encontrava no ginásio, a fazer terapia, e só estaria disponível depois das onze. Podia aguardar na sala de espera ou voltar mais tarde. Lisbeth foi sentar-se no carro e fumou três cigarros enquanto esperava. Às onze, voltou à recepção. Foi-lhe dito que Palmgren estava na sala de jantar. Por aquele corredor, depois na primeira à direita e logo a seguir à esquerda.
Deteve-se à porta e reconheceu Palmgren na sala meio vazia. Estava sentado de frente para ela, mas concentrava toda a sua atenção no prato. Segurava o garfo de uma maneira estranha e levava a comida à boca com uma dolorosa determinação. Uma em cada três vezes falhava, e a comida caía do garfo.
Cinzento e encolhido, parecia ter cem anos. O rosto era como uma máscara, estranhamente imóvel. Estava sentado numa cadeira de rodas. Só então Lisbeth se convenceu de que estava vivo, de que Armanskij não dissera aquilo apenas para a castigar.
Holger Palmgren praguejou silenciosamente quando tentou, pela terceira vez, apanhar com o garfo um pedaço de macarrão gratinado. Já se resignara a ser incapaz de andar normalmente e aceitara o facto de haver uma porção de coisas que não conseguia fazer. Mas detestava não conseguir comer decentemente e, por vezes, babar-se como um bebé.
Sabia exactamente o que tinha de fazer: baixar o garfo no ângulo certo, empurrá-lo para a frente, levantá-lo e guiá-lo até a boca. O problema era a coordenação. Era como se a mão tivesse uma vontade própria. Quando lhe ordenava que subisse, deslizava lentamente para a beira do prato. E se conseguia guiá-la até à boca, mudava frequentemente de direcção no último momento e ia parar ao queixo ou à face. Não que a reabilitação não estivesse a produzir resultados. Seis meses antes, a mão tremia-lhe tanto que nem sequer conseguia levar a colher à boca. Era possível que continuasse a levar muito tempo a comer, mas pelo menos comia sozinho, e ia continuar a trabalhar até recuperar o controlo total dos membros.
Quando baixou o garfo para apanhar mais uma porção, uma mão apareceu de súbito, vinda de trás, e tirou-lho suavemente de entre os dedos. Viu o garfo recolher um pedaço de macarrão com queijo e levantá-lo. Pensou que conhecia aquela mão magra e pequena, como a de uma boneca, e voltou a cabeça para encontrar os olhos de Lisbeth Salander. A expressão dela era expectante. Parecia ansiosa.
Durante um longo momento, Palmgren olhou para a cara dela. De repente, o coração batia-lhe no peito de um modo perfeitamente irracional. Então, abriu a boca e aceitou a comida.
Lisbeth deu-lhe de comer, garfada a garfada. Normalmente, Palmgren detestava que o alimentassem como se fosse uma criança, mas compreendeu a necessidade dela. Não era por ele ser uma criatura imprestável e impotente. Lisbeth estava a dar-lhe de comer como um gesto de humildade: no caso dela, uma ocorrência extraordinariamente rara. Colocava as porções exactas no garfo e esperava que ele acabasse de mastigar. Quando apontou para o copo de leite com a palhinha, ela pegou-lhe para que pudesse beber.
Quando acabou de engolir o último pedaço, ela pousou o garfo e lançou-lhe um olhar interrogativo. Palmgren abanou a cabeça. Nenhum dos dois dissera uma palavra durante toda a refeição.
Palmgren recostou-se na cadeira de rodas e inspirou fundo. Lisbeth pegou no guardanapo e limpou-lhe cuidadosamente a boca. Palmgren sentiu-se como um padrinho da Maria num filme americano
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em que um capo di tutti capi lhe testemunhasse o seu respeito. Imaginou-a a beijar-lhe a mão, e sorriu ao absurdo da fantasia.
- Há algum lugar onde seja possível conseguir um café? - perguntou ela.
Ele entaramelou as palavras. A língua e os lábios não conseguiam
modular os sons.
- Mea seriso pois quina. - Mesa de serviço depois da esquina, conseguiu ela decifrar.
- Quer uma chávena? Leite, sem açúcar, como sempre? Palmgren fez que sim com a mão. Lisbeth levou a bandeja do
macarrão e voltou um minuto mais tarde com duas chávenas de café. Palmgren notou que bebia o dela sem leite, o que era invulgar. Sorriu quando reparou que tinha guardado a palhinha do copo de leite para ele beber o café. Tinha mil coisas para dizer, e não conseguia articular uma única sílaba. Mas os olhos dos dois continuavam a encontrar-se, a todo o instante. Lisbeth tinha um ar de culpa. Foi ela quem quebrou finalmente o silêncio.
- Pensava que tinha morrido - disse. - Se soubesse que estava vivo, nunca... Há muito tempo que teria vindo vê-lo. Perdoe-me.
Ele inclinou a cabeça. Sorriu, um grotesco torcer dos lábios.
- Estava em coma quando o deixei e os médicos disseram-me que ia morrer, que era uma questão de dias, e eu fui-me embora. Lamento tanto.
Palmgren levantou a mão e pousou-a na dela. Lisbeth agarrou-a com força.
- Desperceste. - Desapareceste.
- Falou com o Dragan Armanskij? Ele baixou a cabeça.
- Andei a viajar. Tinha de sair daqui. Fui-me embora sem me despedir de ninguém. Ficou preocupado?
Abanou a cabeça de um lado para o outro, lentamente.
- Não quero que se preocupe comigo, nunca.
- Num me peocupo ctigo. Saas-te sempe. Mas o Armanshi stava peocupado. - Nunca me preocupo contigo. Safas-te sempre. Mas o Armanskij estava preocupado.
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Ela sorriu o seu sorrisinho torcido, e Palmgren pareceu relaxar. Estudou-a, comparando a recordação que guardava dela com a mulher que via à sua frente. Estava diferente. Tinha um ar limpo, saudável, e estava bastante bem vestida. Tirara opiercing do lábio e... hum... a vespa tatuada no pescoço também tinha desaparecido. Estava mais adulta. Riu-se pela primeira vez em muitas semanas. O riso dele pareceu um acesso de tosse.
O sorriso de Lisbeth rasgou-se e, de repente, uma sensação de calor como já não conhecia havia muito tempo encheu-lhe o coração.
- Tás bem. - Estás bem. Palmgren apontava com a mão para as roupas dela. Lisbeth assentiu.
- Estou óptima.
- Omo é o nvo tetor? - Como é o novo tutor?
Palmgren notou que o rosto de Lisbeth escurecia. Os lábios dela cerraram-se. Olhou-o nos olhos.
- Tudo bem... Posso bem com ele.
As sobrancelhas dele interrogavam-na. Lisbeth olhou em redor e mudou de assunto.
- Há quanto tempo está aqui?
Palmgren sofrera um AVC e ainda tinha dificuldade em falar e em coordenar os movimentos, mas a mente continuava intacta e detectou imediatamente a nota falsa na voz de Lisbeth. Depois de a conhecer havia tantos anos, acabara por perceber que ela nunca lhe mentia directamente, mas também nunca era totalmente honesta. A maneira que tinha de não lhe dizer a verdade era distrair-lhe a atenção. Havia obviamente um problema qualquer entre ela e o novo tutor. O que não o espantava.
Sentiu-se invadir por uma profunda sensação de remorso. Quantas vezes pensara em ligar para Nils Bjurman - colega de profissão, ao fim e ao cabo, ainda que não um amigo - para lhe perguntar como estava Lisbeth, e negligenciara fazê-lo? E porque não contestara a declaração de interdição enquanto podia fazê-lo? Sabia porquê: tinha querido, egoistamente, manter vivo o contacto com ela. Amava aquela endiabrada criança como se fosse a filha que nunca tivera, e arranjara
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uma desculpa para manter a relação. Além disso, era fisicamente demasiado difícil. Já lhe custava o suficiente baixar o fecho das calças quando arrastava os pés até à casa de banho. Sentia-se como se tivesse sido ele a abandonar Lisbeth Salander. Mas ela há-de sobreviver sempre... É a pessoa mais competente que conheço.
- Tornal.
- Desculpe, não percebi.
- Tibrnal.
- O tribunal? Que tem o tribunal?
- É peciso quecelar de... de... delaração interdição...
Palmgren pôs-se muito vermelho e contorceu o rosto numa careta, furioso por não conseguir articular as palavras. Lisbeth pousou a mão no braço dele e apertou suavemente.
- Holger... não se preocupe comigo. Tenho planos para tratar da minha declaração de interdição. Em breve. Já não precisa de preocupar-se com isso, mas é possível que venha a precisar da sua ajuda. Pode ser? Será o meu advogado, se eu precisar?
Ele abanou a cabeça.
- Demiado velho - Bateu com os nós dos dedos no braço da cadeira de rodas. - Velho nútil.
- Sim, vai ser um velho inútil se adoptar essa atitude. Preciso de um conselheiro legal e quero-o a si. É possível que não possa falar em tribunal, mas pode aconselhar-me quando chegar o momento. De acordo?
Ele voltou a abanar a cabeça, e então assentiu.
- Tbalho?
- Não compreendo.
- Em que tás a tbalhar? Não Armanshi. - Em que estás a trabalhar? Não é com o Armanskij.
Lisbeth hesitou enquanto debatia consigo mesma como explicar a situação. Era complicado.
-Já não trabalho para o Armanskij. Já não preciso de trabalhar para ele para ganhar a vida. Tenho dinheiro e estou muito bem.
As sobrancelhas de Palmgren juntaram-se no meio da testa.
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- Vou passar a vir visitá-lo muitas vezes, a partir de hoje. Hei-de contar-lhe tudo... mas não pensemos mais nisso, por enquanto. Neste momento, há outra coisa que quero fazer.
Inclinou-se, pousou uma pequena mala em cima da mesa e tirou um tabuleiro de xadrez.
- Há dois anos que não tenho a oportunidade de lhe dar uma boa abada.
Palmgren desistiu. Lisbeth estava metida em qualquer coisa de que não queria falar. Não duvidava de que teria sérias reservas quanto ao assunto, mas ainda confiava o suficiente nela para saber que, fosse o que fosse, poderia ser dúbio aos olhos da lei dos homens, mas não um crime contra as leis de Deus. Ao contrário da maior parte dos que a conheciam, Palmgren estava convencido de que Lisbeth era uma pessoa genuinamente justa. O problema era que a noção de justiça dela nem sempre coincidia com a do sistema judicial.
Lisbeth dispôs as peças e Palmgren reconheceu, com um choque, o seu xadrez. Deve tê-lo tirado do apartamento depois de eu ter adoecido. Como recordação? Lisbeth deu-lhe as brancas. De repente, Palmgren estava feliz como uma criança.
Lisbeth Salander ficou duas horas com Holger Palmgren. Tinha-o batido sem apelo nem agravo três vezes seguidas quando a enfermeira interrompeu a animada discussão por causa do jogo com o anúncio de que eram horas da fisioterapia da tarde. Lisbeth recolheu as peças e dobrou o tabuleiro.
- Sabe dizer-me que espécie de fisioterapia ele está a fazer? - perguntou à enfermeira.
- Treino de força e coordenação. E estamos a fazer progressos, não estamos?
Palmgren assentiu, sombriamente.
-Já consegue dar alguns passos. No Verão, será capaz de passear sozinho no parque. Esta menina é a sua filha?
Os olhos de Palmgren encontraram os de Lisbeth.
- Fia adtiva. - Filha adoptiva.
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- Foi muita bondade sua ter vindo fazer uma visita. - Onde diabo estiveste todo este tempo? Lisbeth ignorou o tom irónico e a crítica implícita. Inclinou-se e beijou Palmgren na face.
- Volto na sexta.
Palmgren levantou-se laboriosamente da sua cadeira de rodas. Lisbeth acompanhou-o até ao elevador. Mal as portas se fecharam, dirigiu-se à recepção e pediu para falar com o responsável pelos pacientes. Foi encaminhada para um Dr. A. Sivarnandan, que encontrou num gabinete ao fundo do corredor. Apresentou-se, dizendo ser filha adoptiva de Holger Palmgren.
- Gostava de saber como está ele e o que é que se espera que aconteça.
O Dr. Sivarnandan pegou no processo de Palmgren e leu as primeiras páginas. Tinha a pele marcada pela varíola e um fino bigode que Lisbeth achou absurdo. Finalmente, ergueu os olhos. Para surpresa dela, falou com sotaque finlandês.
- Não encontro qualquer registo de Herr Palmgren ter uma filha, adoptiva ou não. Para ser exacto, o parente mais chegado parece ser um primo que tem oitenta e seis anos e vive em Jámtland.
- Holger Palmgren cuidou de mim desde os meus treze anos até ter a trombose. Na altura, eu tinha vinte e quatro. - Procurou no bolso do casaco e atirou uma caneta para cima da secretária, à frente do médico. - Chamo-me Lisbeth Salander. Escreva o meu nome no processo dele. Sou a parente mais chegada que ele tem neste mundo.
- É possível - disse o Dr. Sivarnandan, firmemente. - Mas se é a parente mais chegada, não há dúvida de que demorou bastante tempo a informar-nos. Tanto quanto sei, as únicas visitas que tem são de uma pessoa que, apesar de não ser da família, é quem deve ser avisada no caso da saúde dele piorar, ou se falecer.
- Deve estar a falar de Dragan Armanskij.
O Dr. Sivarnandan arqueou uma sobrancelha.
- Exacto. Conhece-o?
- Pode telefonar para ele e confirmar que eu sou quem digo ser.
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- Não é preciso, acredito em si. Disseram-me que passou duas horas a jogar xadrez com Herr Palmgren. Mas não posso discutir o estado de saúde dele sem autorização.
- Que aquele diabo teimoso nunca dará. É que, sabe, vive na ilusão de que não deve sobrecarregar-me com os seus problemas e de que ainda é responsável por mim, e não o contrário. Durante dois anos, pensei que tinha morrido. Ontem, descobri que estava vivo. Se tivesse sabido... é demasiado complicado para explicar, mas quero saber que espécie de prognóstico ele tem e se vai recuperar.
O Dr. Sivarnandan pegou na caneta e escreveu cuidadosamente o nome de Lisbeth no processo de Palmgren. Pediu-lhe o número da Segurança Social e um número de telefone.
- Muito bem, a partir deste momento, é oficialmente filha adoptiva de Herr Palmgren. Talvez isto não esteja cem por cento de acordo com as regras, mas considerando que é a primeira pessoa a visitá-lo desde o Natal, que foi quando Herr Armanskij passou por cá... Esteve com ele, teve ocasião de ver que tem problemas de coordenação e com a fala. Fez um AVC.
- Eu sei. Fui eu que o encontrei e chamei a ambulância.
- Ah! nesse caso, deve saber que passou três meses nos cuidados intensivos. Esteve em coma durante muito tempo. A maior parte dos pacientes nunca chega a acordar de uma situação daquelas, mas acontece. Obviamente, não tinha chegado a hora dele. Ao princípio, tivemos de pô-lo na enfermaria geriátrica para doentes crónicos incapazes de cuidar de si mesmos. Contra tudo o que seria de esperar, começou a dar sinais de melhoras e, há nove meses, foi transferido para aqui, para reabilitação.
- Diga-me que possibilidades tem de recuperar a mobilidade e a fala.
O Dr. Sivarnandan abriu as mãos.
- Tem uma bola de cristal melhor do que a minha? A verdade é que não faço a mínima ideia. Tanto pode morrer de uma hemorragia cerebral esta noite como ter mais vinte anos de uma vida relativamente normal. Não tenho modo de saber. Pode-se dizer que está nas mãos de Deus.
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- E se ele viver mais vinte anos?
- Tem sido uma recuperação laboriosa e só nos últimos meses foi possível observar alguns progressos. Há seis meses, não conseguia comer sem ajuda. Há um mês, mal se levantava da cadeira de rodas, o que se deve em parte à atrofia muscular causada pela longa permanência na cama. Agora, já é capaz de caminhar sozinho curtas distâncias.
- Pode melhorar?
- Pode. Pode melhorar muito. O primeiro patamar foi difícil, mas agora estamos a ver progressos de dia para dia. Herr Palmgren perdeu quase dois anos de vida. Espero que dentro de alguns meses, no Verão, já seja capaz de passear no parque.
- E a fala?
- O problema é que os centros de terapia da fala e da mobilidade foram ambos afectados. O que o deixou impotente durante muito tempo. Desde então, tem sido obrigado a aprender a controlar o corpo e a falar de novo. Nem sempre se lembra de que palavras usar, e tem de reaprender algumas delas. Mas não é o mesmo que ensinar uma criança a falar: ele sabe o significado das palavras, só não consegue articulá-las. Dê-lhe um par de meses e vai ver como a fala melhora. E o mesmo é verdade relativamente à capacidade de movimentar-se. Há nove meses, não conseguia distinguir a direita da esquerda nem o para cima do para baixo, no elevador.
Lisbeth pensou nisto por um instante. Descobriu que gostava do Dr. Sivarnandan, com o seu ar indiano e o seu sotaque finlandês.
- O A é de quê? - perguntou.
O médico lançou-lhe um olhar divertido.
- Anders - respondeu.
- Anders?
- Nasci no Sri Lanka, mas fui adoptado por um casal de Abo quando tinha três meses.
- Muito bem, Anders, como é que posso ajudar?
- Visite-o. Proporcione-lhe estímulos intelectuais.
- Posso vir todos os dias.
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- Não a quero aqui todos os dias. Se ele gosta de si, quero que fique à espera das suas visitas, não que se farte delas.
- Poderia qualquer tipo de cuidados especiais aumentar as hipóteses de recuperação? Posso pagar, seja qual for o preço.
O médico sorriu.
- Receio que ninguém lhe possa proporcionar mais cuidados especiais do que nós. Claro que bem gostaria de ter mais recursos e que os cortes não nos afectassem, mas posso garantir-lhe que está a ser muito bem tratado.
- E se não tivesse de preocupar-se com os cortes, que mais poderia oferecer-lhe?
- O ideal para pacientes como Holger Palmgren seria, claro, poder oferecer-lhe um ergoterapeuta pessoal a tempo inteiro. Mas há já muito tempo que não temos esse tipo de recursos na Suécia.
- Contrate um.
- Desculpe?
- Contrate um ergoterapeuta pessoal a tempo inteiro. O melhor que conseguir encontrar. Trate disso amanhã de manhã, por favor. E certifique-se de que ele tem tudo o que é necessário em matéria de equipamento técnico. Terá os fundos disponíveis no final da semana.
- Ouça, menina, está a brincar comigo?
O olhar que Lisbeth cravou no Dr. Anders Sivarnandan não tinha a mais pequena nota de humor.
Mia Johansson encostou o Fiat ao passeio, em frente da estação de metro de Gamla Stan. Dag abriu a porta e instalou-se no lugar do passageiro. Inclinou-se para o lado e beijou-a na face enquanto ela arrancava atrás de um autocarro.
- Olá para ti também - disse ela, sem tirar os olhos do trânsito. - Estás com um ar muito sério. Aconteceu alguma coisa?
Dag suspirou enquanto punha o cinto de segurança.
- Não, nada de grave. Um pequeno problema com o manuscrito, mais nada.
- Que problema?
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- Falta um mês para a data limite. Fizemos nove das vinte e duas confrontações que planeámos. Estou a ter dificuldades com o Bjõrck, o tal tipo da Segurança Nacional. O filho da mãe está de baixa por doença prolongada e não atende o telefone de casa.
- Estará no hospital?
- Não sei. Alguma vez tentaste arrancar alguma informação à Sapo? Nem sequer admitem que o Bjõrck trabalha para eles.
- Tentaste os pais?
- Ambos mortos. Não é casado. Tem um irmão que vive em Espanha. Não faço a mínima ideia de onde encontrá-lo.
Mia olhou para ele enquanto atravessava Slussen em direcção ao túnel de acesso a Nynãsgãven.
- Na pior das hipóteses, deitamos fora a parte que diz respeito ao Bjõrck. O Mikael insiste em que toda a gente que vamos denunciar tenha a oportunidade de se defender antes de a bronca rebentar.
- Mas seria uma pena perdermos um agente da Segurança Nacional que anda com prostitutas. O que é que vais fazer?
- Procurá-lo e encontrá-lo, claro. E tu como estás? Nervosa? - perguntou ele, e espetou-lhe ao de leve um dedo nas costas.
- Para dizer a verdade, nem por isso. Para o mês que vem tenho de defender a minha tese e tornar-me uma doutora a sério, e estou cal-míssima.
- Dominas o assunto de trás para a frente e da frente para trás. Não tens motivos para estar nervosa.
- Olha para trás.
Dag torceu-se e viu uma caixa aberta no banco traseiro.
- Mia... está impressa! - exclamou, encantado. Pegou num exemplar da tese.
Da Rússia, com Amor:
Tráfico de mulheres, crime organizado
e a resposta da sociedade
por Miajohansson
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- Pensei que só ficava pronta para a semana... Raios, vamos ter de abrir uma garrafa de champanhe quando chegarmos a casa. Parabéns, Senhora Doutora!
Voltou a inclinar-se e a beijá-la.
- Calma, só sou doutora daqui a três semanas. E vê se conservas as mãos quietas enquanto eu estou a conduzir.
Dag riu-se, mas logo a seguir ficou sério.
- A propósito, sem querer fazer de desmancha-prazeres... lembras-te de, há cerca de um ano, teres entrevistado uma rapariga chamada Irina?
- Irina P, vinte e dois anos, de São Petersburgo. Veio para a Suécia pela primeira vez em mil novecentos e noventa e nove, e várias outras vezes depois disso. Que se passa com ela?
- Encontrei o Gulbrandsen, hoje. O polícia envolvido na investigação do bordel de Sõdertãlje. Lembras-te da rapariga que encontraram a boiar no canal? Foi notícia em todos os jornais da tarde. Era a Irina.
- Oh, não, isso é horrível! Passaram em silêncio por Sankstull.
- Aparece na minha tese - disse Mia, por fim. - Dei-lhe um pseudónimo: Tâmara.
Dag procurou na tese a parte dedicada às entrevistas e passou as páginas até encontrar "Tâmara". Leu atentamente, enquanto Mia passava por Gullmarsplan e Globen.
- Foi trazida para cá por um tipo a que chamas Anton.
- Não posso usar nomes verdadeiros. Talvez isso me valha algumas críticas na discussão da tese, mas não posso nomear as raparigas. Seria pô-las num perigo mortal. E, obviamente, também não posso identificar os clientes. Não seria muito difícil, através deles, chegar às raparigas com quem falei. Por isso, em todos os casos de estudo, usei sempre pseudónimos.
- Quem é o Anton?
- Provavelmente, chama-se Zala. Nunca consegui descobrir ao certo quem ele é. Penso que é polaco, ou jugoslavo, e que Zala também não é o nome verdadeiro. Falei com a Irina quatro ou cinco vezes,
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e foi só no nosso último encontro que ela me disse o nome dele. Estava a tentar endireitar a vida, deixar o negócio, mas tinha um medo de morte dele.
- Hum...
- Hum, o quê?
- Estava a pensar... encontrei esse nome, Zala, aí há uma ou duas semanas.
- A que propósito?
- Confrontei o Sandstrõm... o cliente que é jornalista. Um autêntico filho da mãe.
- Em que sentido?
- Não é um verdadeiro jornalista. Faz newsletters publicitárias para várias empresas. E tem fantasias doentias a respeito de violação, que concretizou com aquela rapariga...
- Eu sei. Fui eu que a entrevistei.
- Mas sabias que foi ele que fez o layout da brochura do Instituto de Saúde Pública sobre doenças sexualmente transmissíveis?
- Não, isso não sabia.
- Confrontei-o a semana passada. Passou-se completamente quando lhe mostrei as provas e lhe perguntei por que é que usa prostitutas adolescentes do Leste para realizar as suas fantasias. Pouco a pouco, consegui arrancar-lhe uma espécie de explicação.
- E que era?
- O Sandstrõm envolveu-se numa situação em que já não era apenas um cliente. Também fazia recados para a máfia do sexo. Deu-me os nomes que conhecia, incluindo esse tal Zala. Não disse nada de específico sobre ele, mas não é um nome muito comum.
Mia olhou para ele.
- Sabes quem ele é? - perguntou Dag.
- Não. Nunca consegui identificá-lo. É apenas um nome que aparece de vez em quando. As raparigas pareciam ter um medo de morte dele, e nenhuma quis dizer-me fosse o que fosse.
CAPÍTULO 8
DOMINGO, 6 DE MARÇO - SEXTA-FEIRA, 11 DE MARÇO
O Dr. SIVARNANDAN abrandou o passo quando viu Holger Palmgren e Lisbeth Salander pela janela da sala de jantar. Estavam os dois inclinados para o tabuleiro. Lisbeth aparecia uma vez por semana, geralmente ao domingo. Chegava por volta das três, e os dois passavam um par de horas a jogar xadrez. Ia-se embora às oito, a hora em que ele tinha de ir para a cama. O médico notara que não o tratava como as pessoas costumam tratar os inválidos - pelo contrário, pareciam estar constantemente a discutir, e deixava-o servi-la, ir buscar-lhe o café.
Sivarnandan não conseguia chegar a uma conclusão sobre aquela estranha jovem que se dizia filha adoptiva de Palmgren. Tinha um ar estranho, e parecia encarar tudo o que a rodeava com extrema desconfiança. Não tinha ponta de sentido de humor, nem a capacidade de manter uma conversa normal. E quando ele lhe perguntava que espécie de trabalho fazia, arranjava sempre maneira de não responder.
Poucos dias depois da primeira visita, voltara com um monte de documentos nos quais se declarava que fora criada uma fundação sem fins lucrativos com o único objectivo de ajudar o Centro na reabilitação de Palmgren. O presidente do conselho de administração da fundação era um advogado de Gibraltar. O conselho era constituído por um outro advogado, também com residência em Gibraltar, e por um contabilista chamado Hugo Svensson, residente em Estocolmo. A fundação disponibilizara um fundo de dois milhões e meio de coroas que o Dr. Sivarnandan podia usar como quisesse, desde que proporcionasse
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ao paciente Holger Palmgren todos os meios técnicos e médicos que promovessem a sua total recuperação. Tudo o que Sivarnandan tinha de fazer era pedir ao contabilista o dinheiro necessário.
Era um acordo invulgar, para não dizer único. Sivarnandan dera voltas ao assunto durante vários dias, perguntando a si mesmo se não haveria algo de menos ético em tudo aquilo. Chegara à conclusão de que não e, em consequência, contratara Johanna Karolina Oskarsson como assistente e monitora pessoal de Holger Palmgren. Frõcken Oskarsson tinha 39 anos e era uma fisioterapeuta diplomada, licenciada em psicologia e com uma longa experiência em cuidados de reabilitação. Para espanto de Sivarnandan, o salário do primeiro mês de Frõcken Oskarsson fora pago ao Centro adiantadamente, logo que o contrato fora assinado. Até esse momento, tivera o vago receio de que tudo aquilo não passasse de uma espécie de burla.
No espaço de um mês a coordenação de movimentos e o estado geral de Palmgren tinham melhorado assinalavelmente. O que transparecia nos testes a que era sujeito todas as semanas. Que parte destas melhoras se devia à terapêutica e que parte era obra de Lisbeth Salander era algo sobre que Sivarnandan só podia especular. Do que não havia a mínima dúvida era de que Palmgren fazia grandes esforços e aguardava as visitas dela com o entusiasmo de uma criança. Até parecia achar divertido ser regularmente esmagado no xadrez.
O Dr. Sivarnandan fizera-lhes companhia, uma vez. Palmgren jogava com as peças brancas e fizera uma abertura siciliana. Ponderara longamente cada jogada. Quaisquer que fossem as deficiências físicas provocadas pela trombose, a acuidade mental não dava mostras de ter sido afectada.
Em frente dele, Lisbeth Salander lia um livro sobre calibragem de rádio-telescópios numa situação de imponderabilidade. Estava sentada num almofadão, para ficar à altura da mesa. Quando Palmgren fizera a sua jogada, ela erguera os olhos do livro e deslocara uma peça, aparentemente sem ter olhado para o tabuleiro, e voltara à leitura. Palmgren desistira na vigésima sétima jogada. Lisbeth franzira o sobrolho e examinara o tabuleiro durante uns quinze segundos.
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- Não - exclamara ela. - Ainda pode conseguir um empate. Palmgren suspirara e passara cinco minutos a olhar para o tabuleiro. Finalmente, fixara em Lisbeth Salander os olhos semicerrados.
- Prova-o.
Ela rodara o tabuleiro e ficara com as peças dele. E forçara um empate à trigésima nona jogada.
- Santo Deus! - exclamara Sivarnandan.
- Ela é assim - dissera Palmgren. - Se tentar convencê-lo a jogar a dinheiro, não aceite.
Sivarnandan jogava xadrez desde criança, e, já adolescente, participara num torneio escolar, em Abo, e ficara em segundo lugar. Considerava-se um amador competente, mas reconhecia em Lisbeth Salander uma xadrezista muito acima do seu nível. Muito obviamente, nunca jogara num clube, e quando ele referira que o jogo lhe parecera uma variante de uma partida clássica de Lasker, reagira com uma expressão vazia. Era claro que não fazia a mínima ideia de quem fora Emanuel Lasker. Sivarnandan não pudera evitar perguntar a si mesmo se o talento dela seria inato e, em caso afirmativo, se teria outros talentos que pudessem interessar a um psicólogo.
Mas não dissera uma palavra. Bem via que o seu paciente estava muito melhor do que em qualquer outra altura desde que chegara a Ersta.
Já era noite quando Nils Bjurman chegou a casa. Tinha passado quatro semanas inteiras na sua cabana de Verão, perto de Stallarhol-men, mas nem por isso estava mais animado. Nada acontecera que alterasse a situação, além do facto de o gigante loiro o ter informado de que os seus representados estavam interessados na proposta, e que o preço era cem mil coroas.
Havia um monte de correio no tapete diante da porta. Bjurman pegou-lhe e levou-o para a mesa da cozinha. Estava cada vez menos interessado em tudo o que se relacionasse com o trabalho ou o mundo exterior, e só algum tempo mais tarde olhou para a correspondência, que examinou distraidamente.
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Uma das cartas era do Handelsbank. Um extracto, que assinalava um levantamento de 9300 coroas da conta poupança de Lisbeth Salander.
Ela tinha voltado.
Bjurman foi para o escritório e pousou o documento em cima da secretária. Ficou a olhar para ele, cheio de ódio, durante mais de um minuto, enquanto se recompunha. Teve de procurar o número. Pegou no auscultador e ligou para um telemóvel com um cartão pré-pago.
- Sim? - disse a voz do gigante loiro.
- Fala Nils Bjurman.
- O que é que quer?
- Ela regressou à Suécia.
Houve um breve silêncio do outro lado.
- Muito bem. Não volte a ligar para este número. -Mas...
Antes que pudesse dizer mais qualquer coisa, e para sua considerável irritação, a ligação foi cortada. Praguejou entre dentes. Dirigiu-se ao bar e verteu num copo uma dose tripla de bourbon, que despejou em dois tragos. Tenho de ter cuidado com a bebida, pensou. Deitou mais um pouco no copo e voltou à secretária. Sentou-se a olhar para o extracto de conta do Handelsbank.
Mimi Wu massajava as costas e o pescoço de Lisbeth Salander. Havia vinte minutos que estava entregue àquele trabalho, enquanto Lisbeth, deliciada, deixava escapar um ou outro gemido de prazer. Ser massajada por Mimi era uma experiência fantástica, e sentia-se como uma gatinha, com vontade de ronronar e esticar as garras.
Disfarçou um suspiro de desapontamento quando Mimi lhe deu uma palmada no rabo e disse que chegava. Permaneceu deitada de bruços e imóvel durante algum tempo, na vã esperança de que Mimi continuasse, mas quando a ouviu pegar no copo de vinho, voltou-se de barriga para cima.
- Obrigada - disse Lisbeth.
- Passas o dia sentada diante do computador. É por isso que te doem as costas.
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- Foi só uma distensão muscular.
Estavam deitadas, nuas, na cama de Mimi no apartamento da Lundagatan, a beber vinho tinto e a sentirem-se patetas. Desde que reatara a sua amizade com Mimi, Lisbeth parecia não se fartar dela. Tornara-se um mau hábito telefonar-lhe todos os dias... várias vezes. Olhou para Mimi e recordou-se dos inconvenientes de voltar a aproximar-se demasiado de alguém. Podia acabar magoada.
Mimi inclinou-se para a beira da cama, abriu a gaveta da mesa de cabeceira e tirou de lá um pequeno embrulho achatado, envolto em papel florido e com um laço dourado, que atirou para o colo de Lisbeth.
- O que é?
- O teu presente de aniversário.
- Só faço anos para o mês que vem.
- É o teu presente do ano passado. Não consegui encontrar-te.
- Abro?
- Se quiseres.
Lisbeth pousou o copo de vinho, sacudiu o embrulho e abriu-o cuidadosamente. Era uma bonita cigarreira, com tampa de esmalte azul e preto decorada com minúsculos caracteres chineses.
- Devias era deixar de fumar - disse Mimi. - Mas como não deixas, ao menos podes guardar os cigarros numa caixa bonita.
- Obrigada - disse Lisbeth. - És a única pessoa que me oferece presentes no dia do meu aniversário. O que é que significam estes caracteres?
- Como raio queres que saiba? Não percebo chinês. Encontrei isso na feira da ladra.
- É muito bonita.
- É uma coisa de nada, mas parecia mesmo feita para ti. Acabou-se o vinho. Apetece-te ir beber uma cerveja?
- Isso significa sair da cama e vestir-me?
- Receio que sim. Mas qual é a vantagem de viver em Sõder e não ir a um bar de vez em quando?
Lisbeth suspirou.
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- Anda lá - insistiu Mimi, tocando na pedra decorativa do umbigo dela. - Estás mesmo vidrada no sexo. Mas podemos voltar para cá depois da cerveja.
Lisbeth voltou a suspirar, mas rodou as pernas para fora da cama e estendeu a mão para as cuecas.
Dag Svensson estava a trabalhar na secretária que lhe tinham atribuído num canto da redacção da Millennium quando ouviu uma chave rodar na fechadura. Olhou para o relógio e viu que já passava das nove da noite. Mikael pareceu surpreendido ao encontrá-lo ainda
a trabalhar.
- A formiguinha trabalhadora, e essa história toda... Estava aqui a trabalhar no livro, e perdi a noção do tempo. E a ti, o que é que te
traz por cá?
- Vim só buscar uma pasta de que me esqueci. Está tudo a correr bem?
- Claro... bem, para ser franco, não... Passei três semanas a tentar descobrir o sacana do Bjorck, o tal da Sapo. Parece ter desaparecido sem deixar rasto. Talvez tenha sido raptado por uns serviços
secretos inimigos.
Mikael puxou uma cadeira e ficou a pensar durante alguns instantes.
- Já tentaste o velho truque da lotaria?
- O que é isso?
- Inventa um cabeçalho jeitoso e escreve-lhe uma carta a dizer que ganhou um telemóvel com GPS, ou outra coisa qualquer. Imprimes a carta de modo a que pareça oficial e envia-la para a morada dele... no caso vertente, uma caixa postal. Já ganhou o telemóvel, um Nokia topo de gama. Mas há mais, é uma das vinte pessoas que podem ganhar cem mil coroas. Tudo o que tem de fazer é participar num estudo de mercado para vários produtos. A entrevista durará cerca de uma hora e será conduzida por um profissional. E então... bem, estás a ver o resto.
Dag estava a olhar para ele de boca aberta. - Isso é a sério?
A
- Porque não? Já tentaste tudo o mais, e até um tipo da Sapo deve ser capaz de perceber que as probabilidades de ganhar cem mil brasas sendo uma de apenas vinte pessoas são muito boas.
Dag soltou uma gargalhada.
- És completamente chanfrado. Isso é legal?
- Não vejo o que possa haver de ilegal em oferecer um telemóvel a alguém.
- Não há dúvida, passaste-te dos carretos.
Mikael ia a caminho de casa, e raramente entrava em bares. Mas gostava da companhia de Dag.
- Apetece-te uma cerveja? - perguntou. Dag olhou para o relógio.
- Porque não? - respondeu. - Uma rápida. Deixa-me mandar uma mensagem à Mia. Saiu com umas amigas e ficou combinado passar por cá a buscar-me no regresso a casa.
Foram ao Kvarnen, sobretudo porque era confortável e ficava perto. Dag riu-se enquanto escrevia a carta que ia enviar a Bjõrck, do QG da Segurança Nacional. Mikael lançou, disfarçadamente, um olhar céptico àquele seu colega de riso tão fácil. Tinham tido a sorte de arranjar uma mesa perto da porta. Tinham ambos pedido canecas de cerveja. Beberam e discutiram o tema que, de momento, ocupava a vida profissional de Dag Svensson.
Mikael não viu Lisbeth, de pé junto ao balcão com Míriam Wu. Lisbeth recuou um passo, de modo a interpor Mimi na linha de visão dele. Observou-o por cima do ombro da amiga.
Era a primeira vez que entrava num bar desde que voltara e - rnaldita sorte - tinha logo de dar de caras com ele. Super Porra Blomk-vist. Havia mais de um ano que não o via.
- Que se passa? - perguntou Mimi.
- Nada.
Continuaram a conversar. Ou melhor, Mimi continuou a sua história a respeito de uma lésbica que conhecera durante uma viagem a Londres, anos antes. Estava a visitar uma galeria de arte, e quanto mais se esforçava por engatá-la, mais bizarra a situação se tornava.
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Lisbeth assentia com a cabeça, de vez em quando, mas, como de costume, não percebeu nada da história.
Mikael não tinha mudado muito, decidiu. Estupidamente bem, raios o partissem: simpático e descontraído, apesar da expressão concentrada. Ouvia o que o companheiro dizia, assentindo ocasionalmente com a cabeça. A conversa parecia ser séria.
Lisbeth examinou o outro homem. Um tipo de cabelos loiros, curtos, vários anos mais novo do que Mikael e que falava com veemência. Não fazia a mínima ideia de quem pudesse ser.
De repente, um grupo aproximou-se da mesa de Mikael para o cumprimentar. Uma mulher fez-lhe uma festa na cara e disse qualquer coisa que provocou uma gargalhada geral. Mikael pareceu embaraçado, mas riu com os outros.
Lisbeth franziu o sobrolho.
- Não ouviste uma palavra do que eu disse - protestou Mimi.
- Claro que ouvi.
- És uma péssima companhia num bar. Desisto. O melhor é irmos para casa foder.
- Daqui a nada - disse Lisbeth.
Aproximou-se um pouco mais de Mimi e pôs uma mão na anca dela. Mimi olhou-a nos olhos.
- Apetece-me beijar-te na boca.
- Agora não.
- Tens medo que as pessoas pensem que és lésbica?
- Neste momento, não quero atrair atenções.
- Então vamos para casa.
- Ainda não. Espera um pouco.
Não tiveram de esperar muito. Vinte minutos depois de terem chegado, o homem que estava com Mikael recebeu uma chamada no telemóvel. Beberam o resto da cerveja e puseram-se de pé ao mesmo
tempo.
- Olha - disse Mimi. - Aquele tipo que está ali é o Mikael Blomkvist. Tornou-se mais famoso do que uma estrela de rock, depois do caso Wennerstrõm.
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- Não me digas.
- Não soubeste de nada? Foi mais ou menos quando tu foste para o estrangeiro.
- Ouvi qualquer coisa.
Lisbeth esperou mais cinco minutos antes de olhar para Mimi.
- Querias beijar-me na boca. Mimi fez um ar de surpresa.
- Estava só a provocar-te.
Lisbeth pôs-se em bicos dos pés, agarrou a cara de Mimi com ambas as mãos, puxou-a para baixo e beijou-a longamente na boca. Quando se separaram, os presentes aplaudiram.
- Sabias que és completamente chalada? - disse Mimi.
Lisbeth Salander só chegou a casa às sete da manhã. Puxou a gola da T-shirt e cheirou. Estava a precisar de um duche, mas que se lixasse. Em vez disso, deixou a roupa caída no chão e foi para a cama. Dormiu até às quatro da tarde e foi ao mercado de Sõderhallarna tomar o pequeno-almoço.
Pensou em Mikael Blomkvist e na reacção que tivera ao ver-se subitamente a poucos metros dele. Ficara irritada, mas, ao mesmo tempo, descobrira que vê-lo já não a magoava. Mikael tornara-se um pequeno pormenor no horizonte, um factor de perturbação menor na sua existência. Havia coisas bem piores.
Mesmo assim, desejou ter tido a coragem de aproximar-se e dizer olá. Ou talvez partir-lhe as pernas, não tinha a certeza.
Fosse como fosse, estava com curiosidade em saber o que andava ele a tramar. Fez umas compras e voltou a casa por volta das sete. Iniciou o PowerBook e abriu o Asphyxia 1.3. O ícone MikBlom/port continuava no servidor holandês. Clicou duas vezes e abriu uma cópia do disco rígido de Mikael. Era a primeira visita que fazia ao computador dele desde que saíra da Suécia, mais de um ano antes. Notou, com satisfação, que não tinha actualizado a versão antiga do MacOS, o que teria neutralizado o Asphyxia e impedido o acesso. Pensou que ia ter de modificar o programa de modo a impedir que uma eventual actualização interferisse com o seu funcionamento. O volume de dados
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gravados no disco rígido aumentara quase 6,9 gigabytes desde a sua última visita. Isso devia-se a uma série de novos ficheiros pdf e documentos Quark. Os documentos não ocupavam muito espaço, mas os bitmaps sim, apesar de as imagens estarem comprimidas. Ao que parecia, desde que reocupara o posto de editor, Mikael arquivara todos os novos números da Millennium.
Ordenou os ficheiros por data, começando pelo mais antigo, e reparou que Mikael dedicara muito tempo, durante os últimos meses, a uma pasta chamada "Dag Svensson", aparentemente o projecto de um livro. Em seguida, abriu a caixa do correio e leu atentamente a lista de endereços da correspondência.
Um deles fê-la dar um salto. A 26 de Janeiro, Mikael recebera um e-mail de Harriet Porra Vanger. Abriu a mensagem e leu as poucas linhas sobre uma assembleia geral que decorreria nas instalações da Millennium. A mensagem terminava com a informação de que Harriet Vanger reservara quarto no mesmo hotel que da última vez.
Lisbeth digeriu esta informação. Então, encolheu os ombros e descarregou todo o e-mail de Mikael e o livro de Svensson - cujo título de trabalho era As Sanguessugas, tendo como subtítulo O Apoio da Sociedade ao Negócio da Prostituição. Encontrou também uma tese intitulada Da Rússia, com Amor, escrita por uma tal Mia Johansson.
Cortou a ligação com o servidor holandês e foi à cozinha fazer café. Em seguida, sentou-se no sofá novo da sala, com o PowerBook pousado no regaço. Abriu a cigarreira que Mimi lhe oferecera e acendeu um Marlboro Light. Passou o resto da noite a ler.
Às nove, tinha terminado a tese de Mia Johansson. Mordeu o lábio inferior.
Às dez e meia, despachara o livro de Dag Svensson. A Millen-nium preparava-se para voltar aos cabeçalhos dos jornais.
Às onze e meia, estava a ler o último dos e-mails de Mikael quando repentinamente se endireitou, de olhos muito abertos. Sentiu um arrepio gelado descer-lhe pela espinha. Era uma mensagem de Svensson para Blomkvist. Svensson referia que tinha umas ideias a respeito de um gangster da Europa de Leste, um tipo chamado Zala, que talvez justificasse um
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capítulo à parte, mas admitia que já não lhes restava muito tempo. Mikael não respondera a este e-mail.
Zala.
Lisbeth ficou sentada, imóvel, até que o screen saver se ligou.
Dag Svensson pôs o bloco de notas de lado e coçou a cabeça. Olhou para a palavra escrita no alto da primeira página do bloco. Quatro letras. "Zala".
Passou três minutos absorto em pensamentos, a desenhar intricados círculos à volta do nome. Acabou por levantar-se e ir à kitchenette buscar uma chávena de café. Eram horas de ir para casa, mas descobrira que gostava de ficar a trabalhar até tarde na redacção da Millennium, quando estava tudo em silêncio.
Tinha todo o material sob controlo, mas, pela primeira vez desde que iniciara o projecto, preocupava-o a possibilidade de ter deixado escapar um pormenor importante. Zala.
Até ao momento, estivera impaciente por acabar a escrita e ver o livro publicado, mas agora gostaria de poder ter mais tempo.
Pensou no relatório da autópsia que o inspector Gulbrandsen o deixara ler. O corpo de Irina P. fora encontrado no canal de Sõder-tãlje. Fora vítima de uma violência extrema. Apresentava extensas contusões no rosto e no peito. A causa da morte fora o pescoço partido, mas dois outros ferimentos tinham sido considerados igualmente mortais. Seis costelas partidas e o pulmão esquerdo perfurado. Uma rotura do baço. Não era fácil interpretar os ferimentos. O patologista sugeria que a arma utilizada fora um taco de madeira embrulhado em panos. Por que teria o assassino embrulhado em panos a arma do crime não era explicado, mas a extensão das lesões não era consistente com um vulgar ataque.
O assassínio continuava por resolver, e Gulbrandsen admitira que as probabilidades de isso vir a acontecer eram mínimas.
O nome de Zala aparecia quatro vezes no material que Mia reunira ao longo dos últimos dois anos, mas sempre na retaguarda, sempre
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fantasmagoricamente fugidio. Ninguém sabia quem era ou podia sequer provar que existia. Algumas das raparigas tinham referido que o nome era usado como ameaça, um aterrador aviso às que não andassem na linha. Dag passara uma semana inteira a procurar informação mais concreta a respeito de Zala, a interrogar polícias, jornalistas e várias fontes com contactos no negócio do sexo.
Falara com o jornalista, Sandstrõm, que estava absolutamente decidido a denunciar no livro. Sandstrõm suplicara-lhe que tivesse piedade. Oferecera um suborno. Dag não ia mudar de ideias, mas usara a sua vantagem para pressioná-lo e arrancar-lhe informação a respeito de Zala.
Sandstrõm jurara que não conhecia Zala pessoalmente, mas admitira que tinha falado com ele pelo telefone. Não, não tinha o número. Não, não podia dizer quem estabelecera o contacto.
Dag apercebera-se repentinamente de que Sandstrõm tinha medo, um medo que se sobrepunha à perspectiva de ser exposto aos olhos do mundo como um filho da mãe depravado. Temia pela vida. Porquê?
CAPÍTULO 10
SEGUNDA-FEIRA, 14 DE MARÇO - DOMINGO, 20 DE MARÇO
ALUGAR UM AUTOMÓVEL sempre que queria ir visitar Palmgren era um processo complicado e cansativo, de modo que, em meados de Março, Lisbeth Salander resolveu comprar um carro. Começou por adquirir um espaço para estacionamento, um problema muito mais complicado do que a compra do carro propriamente dito.
Tinha direito a um lugar no parque do prédio em Mosebacke, mas não queria que alguém pudesse relacionar o automóvel com o sítio onde vivia. Por outro lado, havia já vários anos que se inscrevera numa lista para um lugar na garagem do seu antigo condomínio, na Lundagatan. Telefonou a perguntar em que número da lista se encontrava o seu nome, e responderam-lhe que era o primeiro. E não só -no final do mês, haveria um espaço disponível. Óptimo. Ligou para Mimi e pediu-lhe que fizesse imediatamente o contrato com o condomínio. No dia seguinte, começou a procurar um carro.
Tinha dinheiro para comprar qualquer Rolls-Royce ou Ferrari que quisesse, mas não estava minimamente interessada em nada que desse nas vistas. Em vez disso, visitou dois stands de usados, em Nacka, e saiu do segundo com um Honda cor de vinho de caixa automática, com quatro anos, depois de passar uma hora a verificar todos os pormenores, incluindo o motor, para desespero do vendedor. Por uma questão de princípio, regateou até abater duas mil coroas ao preço e pagou em dinheiro.
Em seguida, dirigiu-se a Lundagatan e bateu à porta de Mimi, a quem deixou um duplicado das chaves. Sim, claro que Mimi podia usar o carro, desde que avisasse com antecedência. Como o lugar
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na garagem só estaria disponível no final do mês, estacionaram na rua.
Mimi ia ao cinema com uma amiga que Lisbeth não conhecia. Ao vê-la maquilhada à gótica e ataviada com uma farpela horrível, que incluía qualquer coisa que parecia uma coleira de cão à volta do pescoço, assumiu que se tratava de uma namorada, e quando Mimi lhe perguntou se queria ir com elas, respondeu que não, obrigada. O que menos lhe apetecia era envolver-se numa ménage-à-trois com Mimi e uma das suas namoradas de longas pernas e sem dúvida imensamente sexy, mas que a faria sentir-se uma idiota. Além disso, tinha assuntos a tratar, de modo que apanharam o metro até Hõtor-get, onde se despediram.
Lisbeth foi a pé até à OnOff, na Sveavãgen - chegou dois minutos antes da hora de fechar -, e comprou um cartucho de toner para a impressora laser. Pediu ao empregado que o tirasse da embalagem, para que coubesse na mochila.
Quando saiu da loja, estava cheia de fome e de sede. Foi até à Stu-replan e entrou, por puro acaso, no Café Hedon, um lugar onde nunca pusera os pés e de que nem sequer tinha ouvido falar. Reconheceu instantaneamente Nils Bjurman, de costas para ela, e deu meia-volta e saiu. Foi colocar-se em frente da montra que dava para o passeio e esticou o pescoço para poder observar o seu tutor escondida pelo balcão.
Ver Bjurman não despertou nela quaisquer sentimentos dramáticos. Nem raiva, nem ódio, nem medo. No que lhe dizia respeito, o mundo seria sem dúvida um lugar melhor sem a presença dele, mas a verdade era que só estava vivo porque ela decidira que lhe seria mais útil assim. Olhou para o homem sentado à mesa diante do advogado, e abriu muito os olhos quando ele se pôs de pé. Clique.
Era um homem excepcionalmente grande, com pelo menos dois metros de altura e bem constituído. Excepcionalmente bem constituído, para ser exacta. Tinha uma cara franzina e cabelos loiros, muito curtos, mas, no todo, a impressão que dava era de força.
Viu-o inclinar-se para a frente e dizer qualquer coisa a Bjurman, que assentiu. Trocaram um aperto de mão, e Lisbeth notou que Bjurman encolhia rapidamente a sua.
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Que espécie de tipo és tu e que negócios tens com o Bjurman?
Afastou-se alguns passos rua abaixo e esperou debaixo do toldo de uma tabacaria. Estava a olhar para o expositor de jornais quando o loiro saiu do café e, sem olhar em redor, virou à esquerda. Passou a menos de meio metro das costas dela. Lisbeth deu-lhe 15 metros de avanço e seguiu-o.
Não teve muito que andar. O gigante loiro foi direito à estação de metro de Birger Jarlsgatan e comprou um bilhete. Esperou na gare do sentido sul - que era, de todos os modos, a direcção que ela pretendia seguir - e apanhou o comboio para Norsborg. Saiu em Slussen, mudou para a Linha Verde e voltou a apear-se em Sankstull. A partir daí, foi a pé até ao Café Blomberg, na Gõtgatan.
Lisbeth esperou cá fora. Estudou o homem com quem o brutamontes loiro fora encontrar-se. Clique. Percebeu imediatamente que se passava ali qualquer coisa de sinistro. O homem tinha uma barriga demasiado grande para a idade e um rosto afilado, que inspirava desconfiança. Usava os cabelos puxados para trás, presos num rabo-de-cavalo, e um bigode loiro. Vestia blusão de ganga, jeans pretos e botas de tacão alto. Lisbeth reparou que ele tinha uma tatuagem nas costas da mão direita, mas não conseguiu distinguir o desenho. Usava uma pulseira de ouro e fumava Lucky Strikes, a julgar pelo maço pousado em cima da mesa. O olhar vago, ligeiramente vítreo, dava-lhe um ar de pedrado. Lisbeth reparara que usava colete por baixo do blusão. Identificou-o facilmente como um motard.
O gigante não pediu nada. Parecia estar a dar instruções. O homem do blusão de ganga escutava atentamente, mas não contribuiu para a conversa. Lisbeth reconheceu que muito em breve teria de comprar um microfone direccional.
Passados apenas cinco minutos, o gigante loiro saiu do café. Lisbeth recuou alguns passos, mas ele nem sequer olhou na sua direcção. Caminhou cerca de 40 metros até aos degraus da Allhelgonagatan e entrou num Volvo branco. Lisbeth conseguiu memorizar a matrícula antes de o carro virar na esquina seguinte.
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Voltou rapidamente ao Blomberg, mas a mesa já estava vazia. Olhou para um e para o outro extremo da rua, sem ver o tipo do rabo-de-cavalo. De repente, avistou-o de relance no passeio oposto, a empurrar a porta de um MacDonalds.
Teve de entrar para voltar a encontrá-lo. Estava sentado com outro homem que usava o colete por cima do blusão de ganga. Leu as palavras "M-C SVAVELSJÕ". O logo era uma roda estilizada de uma moto que parecia uma cruz céltica com um machado.
Demorou-se um minuto na Gõtgatan antes de encaminhar-se para norte. O seu sistema de alarme interno entrara subitamente em alerta máximo.
Fez uma paragem no 7-Eleven e comprou comida para uma semana: um pacote gigante de Billy's Pan Pizza, três embalagens de peixe congelado, três empadas de bacon, um quilo de maçãs, dois pães, meio quilo de queijo, leite, café, um pacote de Marlboro Light e os jornais da tarde. Subiu a Svartensgatan até Mosebacke e olhou em redor antes de introduzir o código de entrada no teclado numérico junto à porta. Pôs uma das empadas de bacon no microondas e bebeu leite directamente do pacote. Ligou a máquina de café e iniciou o PowerBook. Abriu o Asphyxia 1.3 e seleccionou a cópia do disco rígido de Bjurman. Passou a meia hora seguinte a examinar o conteúdo do computador dele.
Não encontrou absolutamente nada de interesse. Bjurman parecia não usar o correio electrónico; havia pouco mais de uma dúzia de curtas mensagens pessoais de e para conhecidos. Nenhuma das mensagens tinha qualquer relação com ela.
Descobriu uma pasta recente com fotografias pornográficas que provavam o persistente interesse do advogado na humilhação sádica de mulheres. Franziu a testa, mas aquilo não era, estritamente falando, uma violação das regras que ela lhe estabelecera.
Abriu a pasta com a documentação referente ao papel de Bjurman como seu tutor e leu, um a um, todos os relatórios mensais. Correspondiam palavra por palavra às cópias que ele lhe enviara para o endereço hotmail.
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Tudo normal.
Talvez uma pequena discrepância... Quando abriu a pasta de propriedades do Word, verificou que ele redigia normalmente os relatórios nos primeiros dias do mês, que dedicava cerca de quatro horas a rever cada um deles e que os enviava pontualmente para a Agência de Tutoria no dia 20. Ora, Março já ia a meio e Bjurman ainda não começara a trabalhar no relatório do mês. Preguiça? Tem saído à noite? Ocupado com outra coisa? Ou anda a tramar alguma? Voltou a franzir o sobrolho.
Desligou o computador, foi sentar-se no cadeirão junto à janela e abriu a cigarreira. Acendeu um cigarro e ficou a olhar para a escuridão. Desleixara a vigilância que devia ter mantido. O sacana é escorregadio como uma enguia.
Estava genuinamente preocupada. Primeiro, Super Blomkvist, depois o nome Zala, e agora o Nils Cabrão de Merda Bjurman na companhia de um macho alfa carregado de esteróides com ligações a um bando de ex-presidiarios motards. No espaço de poucos dias, vários focos de agitação tinham-se materializado para perturbar a vida ordeira que estava a tentar criar para si mesma.
Às duas e meia da madrugada, Lisbeth Salander entrou sem ser vista no edifício na Upplandsgatan, perto de Odenplan, onde Nils Bjurman vivia. Deteve-se diante da porta dele, empurrou cuidadosamente a tampa da fresta do correio e enfiou pela abertura um microfone extremamente sensível que comprara na Counterspy, em Mayfair, quando passara por Londres. Nunca ouvira falar de Ebbe Carlsson, mas era a mesma loja onde ele adquirira o famoso equipamento de escuta que levara o ministro da Justiça sueco a uma inesperada demissão, no final da década de oitenta. Inseriu o minúsculo auscultador no ouvido e ajustou o volume.
Ouviu o zumbido abafado do frigorífico e o tiquetaquear de pelo menos dois relógios, um dos quais era o da parede da sala, à esquerda da porta. Aumentou o volume e escutou, contendo a respiração. Ouvia os mais variados rangidos e estalidos vindos do interior do apartamento, mas nenhum sinal de actividade humana. Demorou
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um minuto a detectar os sons débeis de uma respiração regular e pesada.
Nils Bjurman estava a dormir.
Retirou o microfone e guardou-o no bolso interior do blusão de couro. Vestia jeans escuros e calçava sapatilhas com solas de borracha. Introduziu a chave na fechadura e entreabriu silenciosamente a porta. Antes de abri-la por completo, tirou o taser do bolso. Não tinha consigo qualquer outra arma. Achava que o taser seria mais do que o suficiente para lidar com Bjurman.
Fechou a porta e avançou sem ruído pelo corredor em direcção ao quarto. Deteve-se ao ver a luz, mas, de onde estava, já conseguia ouvi-lo ressonar. Entrou no quarto. O candeeiro estava pousado no peitoril da janela. Que se passa contigo, Bjurman? Tens medo do escuro?
Aproximou-se da cama e ficou a olhar para ele durante vários minutos. Tinha um ar envelhecido, desmazelado. O quarto cheirava a homem que não dava muita atenção à sua higiene pessoal.
Não sentiu a mais pequena ponta de compaixão. Por uma fracção de segundo, um brilho de ódio implacável refulgiu-lhe nos olhos. Reparou num copo em cima da mesa de cabeceira e inclinou-se para cheirar. Whisky.
Passado algum tempo, saiu do quarto. Fez um curto desvio pela cozinha, não notou nada de anormal, atravessou a sala e deteve-se à porta do escritório. Tirou do bolso um punhado de migalhas de pão torrado que espalhou cuidadosamente pelo soalho de madeira. Se alguém tentasse segui-la atravessando a sala de estar, o ruído das migalhas pisadas alertá-la-ia.
Sentou-se à secretária e pousou o taser à sua frente. Em seguida, revistou metodicamente as gavetas e leu a correspondência referente às finanças particulares de Bjurman. Reparou que ele se tornara mais desleixado e esporádico na verificação dos saldos bancários.
A última gaveta estava fechada à chave. Lisbeth franziu o sobrolho. Quando da sua última visita, havia mais de um ano, todas as gavetas estavam abertas. Os olhos dela pareceram desfocar-se enquanto tentava recordar o conteúdo daquela. Uma máquina fotográfica, uma teleobjectiva, um pequeno gravador Olympus de bolso, um álbum
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de fotografias encadernado a couro e uma pequena caixa com um colar, algumas jóias e um anel de ouro com a inscrição Tilda e Jacob Bjurman 23 de Abril de 1951. Sabia que eram os nomes dos pais de Bjurman, ambos já falecidos. Presumivelmente, tratava-se de uma aliança de casamento, que ele conservara como recordação.
Portanto, ele fecha à chave as coisas que considera valiosas.
Inspeccionou o armário de tampo cilíndrico atrás da secretária e retirou as duas pastas de arquivo que continham os relatórios da tutoria. Durante um quarto de hora, leu-os atentamente. Lisbeth Salander era, segundo Bjurman, uma jovem conscienciosa e agradável. Quatro meses antes, escrevera que ela parecia tão racional e competente que via bons motivos para discutir, na próxima revisão anual, a necessidade de continuar a mantê-la sob tutela. O relatório estava elegantemente redigido e representava o primeiro passo na revogação da declaração de interdição.
A pasta incluía ainda várias notas manuscritas que mostravam que Bjurman fora contactado por uma tal Ulrika von Liebenstaahlat, da Agência de Tutoria, no sentido de terem uma conversa geral sobre a evolução de Lisbeth Salander. As palavras "necessidade de avaliação psiquiátrica" tinham sido sublinhadas.
Lisbeth fez uma careta, voltou a pôr as pastas no lugar e olhou em redor.
Não conseguia encontrar nada digno de nota. Bjurman parecia estar a portar-se de acordo com as instruções que lhe dera. Mordeu o lábio inferior. Continuava a ter a sensação de que havia qualquer coisa que não estava bem.
Levantou-se da cadeira, e preparava-se para apagar o candeeiro de secretária quando interrompeu o gesto a meio. Voltou a tirar as pastas de arquivo do armário e examinou-as novamente. Estava confusa. As pastas deviam conter mais material. Um ano antes, quando da sua última visita, havia ali um resumo do seu desenvolvimento a partir da infância, feito pela Agência de Tutoria. Tinha desaparecido. Por que raio teria Bjurman retirado documentação de um processo em curso? Franziu a testa. Não lhe ocorria qualquer boa razão. A menos
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que estivesse a juntá-la noutro sítio. Passou os olhos pelas prateleiras do armário e acabou por detê-los na última gaveta da secretária.
Não se lembrara de levar uma gazua, de modo que voltou ao quarto de Bjurman e revistou-lhe os bolsos do casaco, suspenso de um cabide de madeira, até encontrar o porta-chaves. A gaveta continha os mesmos objectos que um ano antes. Mas a colecção fora aumentada com a adição de uma caixa achatada que tinha na tampa o desenho de um Colt.45 Magnum.
Recordou a investigação que fizera a respeito de Bjurman, dois anos antes. Gostava de armas e era membro de um clube de tiro. De acordo com os registos da polícia, detinha uma licença de posse para um Colt .45 Magnum.
Chegou relutantemente à conclusão de que Bjurman tinha boas razões para manter aquela gaveta fechada à chave.
Não gostava da situação, mas não conseguia lembrar-se de um bom pretexto para acordá-lo e pregar-lhe um susto de morte.
Mia Johansson acordou às seis e meia da manhã. Ouviu a televisão a funcionar, com o som muito baixo, na sala, e chegou-lhe ao nariz o cheiro a café acabado de fazer. Ouviu também o matraquear do teclado do iBook de Dag. Sorriu.
Nunca o tinha visto trabalhar tão afincadamente numa história. A Millennium fora uma boa jogada. Dag era propenso a ataques de bloqueio de escritor, e parecia que dar-se com Mikael e Erika e os outros estava a ter nele um efeito benéfico. Chegava muitas vezes a casa de mau humor por Mikael lhe ter apontado algum erro, ou demolido um dos seus raciocínios, mas depois redobrava os esforços.
Perguntou a si mesma se seria o momento mais adequado para interromper-lhe a concentração. O período estava três semanas atrasado. Ainda não fizera o teste de gravidez. Talvez fosse a altura.
Ia fazer trinta anos. Dentro de menos de um mês, defenderia a sua tese. Doutora Mia Johansson! Voltou a sorrir e decidiu não dizer nada a Dag enquanto não tivesse a certeza. Talvez esperasse até depois de ele acabar o livro, quando desse a festa para celebrar o doutoramento.
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Dormitou mais dez minutos antes de levantar-se e ir até à sala, embrulhada num lençol. Dag ergueu os olhos.
- Ainda não são sete horas - disse ela. - O Mikael anda outra vez a armar em chefe.
- Tem sido mau para ti? E bem feito! Gostas dele, não gostas? Dag recostou-se no sofá da sala e enfrentou-lhe o olhar. Ao cabo
de um instante, assentiu.
- A Millennium é um lugar óptimo para trabalhar. Estive a falar com o Mikael, no Kvarnen, antes de me teres ido buscar, ontem à noite. Perguntou-me o que tencionava fazer depois de acabar este projecto.
- Ah! E tu, que disseste?
- Que não sabia. Há já tanto tempo que funciono como freelancer. Gostava de ter qualquer coisa mais estável.
- A Millennium. ', Ele assentiu.
- O Mikael andou a apalpar o terreno, e perguntou-me se estaria interessado num emprego em part-time. O mesmo contrato que o Henry Cortez e a Lotta Karim têm. Teria uma secretária e uma avença na Millennium, e trataria de arranjar o resto por fora.
- É isso que queres?
- Se eles me fizerem uma proposta concreta, aceito.
- Okay. Mas ainda não são sete da manhã e é sábado.
- Eu sei. Achei que devia dar um jeito aqui neste capítulo.
- E eu acho que deves voltar para a cama e dar um jeito noutra coisa.
Sorriu-lhe e levantou uma ponta do lençol. Dag pôs o computador em standby.
Lisbeth Salander passou uma boa parte dos dias que se seguiram sentada diante do PowerBook, a fazer pesquisa. A sua busca estendeu-se em muitas direcções diferentes, e nem sempre tinha a certeza do que procurava.
Parte da recolha de factos era simples. A partir dos arquivos dos media, reconstituiu a história do Moto-Clube de Svavelsjõ. O clube
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aparecia nas notícias dos jornais com o nome de Tálje Hog Riders. A polícia fizera uma rusga à sede, na época instalada numa escola abandonada perto de Sõdertálje, depois de os vizinhos terem alertado para o som de tiros. Os representantes da lei e da ordem tinham comparecido com uma força inusitada e posto fim a um campeonato de tiro ao alvo com uma AK4 que se veio a descobrir ter sido roubada do espólio do 20.º Regimento de Infantaria de Vásterbotten, licenciado no início dos anos 80.
De acordo com um vespertino, o M-C de Svavelsjõ tinha seis ou sete membros e uma dúzia de "simpatizantes". Todos os membros efectivos tinham passado pela prisão. Dois deles destacavam-se do grupo. O líder do clube era Carl-Magnus ("Magge") Lundin, cuja foto aparecera no Aftonbladet depois de a polícia ter tomado as instalações de assalto, em 2001. Fora condenado cinco vezes, no final da década de oitenta e início da de noventa, por roubo, receptação de artigos roubados e tráfico de droga. Uma das sentenças - por um crime que envolvera ofensas corporais agravadas -, valera-lhe 18 meses de calabouço. Fora libertado em 1995 e, pouco depois, tornara-se presidente dos Tálje Hog Riders, o actual Moto-Clube de Svavelsjõ.
Segundo a unidade antigangue da polícia, o número dois do clube era Sonny Nieminen, agora com 37 anos, que contava com nada menos que 23 condenações. Iniciara a sua carreira aos 16 anos, quando fora, por ordem do tribunal, confiado aos cuidados de uma instituição de reinserção social. Motivo: assalto com violência física e roubo. Ao longo dos dez anos seguintes, Sonny Nieminen fora condenado cinco vezes por roubo, uma por roubo agravado, duas por intimidação, duas por crimes ligados à droga, uma por extorsão, outra por agressão a um funcionário público, duas pela posse de armas ilegais, uma por conduzir sob o efeito do álcool e seis por agressão simples. As sentenças, ditadas de acordo com regras que Lisbeth não conseguia compreender, tinham sido: liberdade condicional, multas e várias encarcerações de 30 a 60 dias, até que, em 1989, passara dez meses preso por agressão física agravada e roubo com violência. Libertado passados poucos meses, mantivera-se na linha até Outubro de 1990, altura em que se envolvera numa zaragata num bar de Sõdertálje e acabara com
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uma condenação por homicídio e uma pena de seis anos de prisão. Em 1995, estava novamente em liberdade.
Em 1996, fora preso por cumplicidade num assalto à mão armada a um carro blindado de transporte de valores. Tinha fornecido aos três assaltantes as armas utilizadas. Condenado a quatro anos de prisão, fora libertado em 1999. De acordo com um artigo de jornal de 2001 - em que Nieminen não era referido pelo nome, mas em que os pormenores sobre o suspeito eram tais que permitiam facilmente identificá-lo -, muito provavelmente participara no assassínio de um membro de um bando rival.
Lisbeth descarregou as fotos de Nieminen e de Lundin. Nieminen tinha um rosto fotogénico, com cabelos pretos encaracolados e uns olhos perigosos. Lundin parecia apenas um idiota chapado, e era sem dúvida o homem com quem o gigante loiro fora encontrar-se no Café Blomberg. Nieminen era o que o esperava no MacDonalds.
Através do Registo Nacional de Veículos Automóveis, ficou a saber que o Volvo branco pertencia à Auto-Expert, uma empresa de rent-a-car de Eskilstuna. Ligou para lá e falou com um tal Refik Alba:
- Chamo-me Gunilla Hansson. O meu cão foi atropelado, ontem, por um condutor que se pôs em fuga. O filho da mãe conduzia um carro que, de acordo com a matrícula, pertence à vossa empresa. Um Volvo branco. - Deu a matrícula.
- Lamento imenso.
- Receio que não baste. Quero o nome do condutor, para poder processá-lo.
- Já participou a ocorrência à polícia?
- Não, preferia resolver isto directamente.
- Lamento, mas não posso revelar os nomes dos nossos clientes, a menos que haja participação policial.
A voz de Lisbeth endureceu. Perguntou se seria boa prática obrigá-la a apresentar queixa na polícia contra um cliente da empresa em vez de deixá-la resolver a questão particularmente. Refik Alba pediu mais uma vez desculpa e repetiu que não podia infringir os regulamentos da empresa.
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O nome Zala foi outro beco sem saída. Com duas pausas para as Billys Pan Pizza, Lisbeth Salander passou a maior parte do dia ao computador, tendo uma garrafa de litro e meio de Coca-Cola como única companhia.
Encontrou centenas de "Zala" - desde um atleta italiano a um compositor argentino -, mas não aquele que procurava.
Tentou Zalachenko, mas também não foi bem-sucedida. Frustrada, arrastou-se aos tombos para a cama e dormiu doze horas seguidas. Quando acordou, eram onze da manhã. Ligou a máquina de café e pôs a água a correr no jaccuzzi. Acrescentou sais de banho e levou café e sanduíches para tomar o pequeno-almoço enquanto estava de molho. Desejou que Mimi estivesse ali para lhe fazer companhia, mas ainda não lhe tinha dito onde vivia.
Ao meio-dia, saiu do banho, secou-se e vestiu um roupão. Voltou a ligar o computador.
Os nomes Dag Svensson e Mia Johansson produziram melhores resultados. Servindo-se do motor de busca da Google, obteve rapidamente um breve resumo do que aqueles dois tinham andado a fazer nos últimos anos. Descarregou cópias de alguns artigos de Svensson, um deles com fotografia. Não ficou grandemente surpreendida ao verificar que era o homem que vira com Mikael, no Kvarnen. O nome ganhou uma cara, e vice-versa.
Encontrou vários textos sobre Mia Johansson, ou artigos dela. Tinha atraído pela primeira vez a atenção dos media com um relatório sobre como a justiça tratava homens e mulheres de maneira diferente. O relatório suscitara uma revoada de editoriais e artigos em newsletters de organizações femininas. A própria Mia Johansson contribuíra para o debate com vários outros artigos. Lisbeth leu-os atentamente. Algumas feministas consideravam significativas as conclusões a que Mia chegava, outras acusavam-na de "espalhar ilusões burguesas", sem especificarem a que ilusões burguesas se referiam.
Às duas da tarde, abriu o Asphyxia 1.3, mas, em vez de seleccionar MikBlomlport, optou por MikBlom/Mill, o disco rígido do computador
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de Mikael na Millennium. Sabia, por experiência, que não continha praticamente nada de interesse. Exceptuando os momentos em que o usava para surfar na Net, Mikael trabalhava quase exclusivamente no iBook. Mas tinha direitos de administrador para toda a redacção da revista, e Lisbeth não teve a mínima dificuldade em encontrar aquilo que procurava: a password para a rede interna da Millennium.
Para entrar nos outros computadores da revista, não bastava o disco rígido copiado no servidor holandês. O MikBlom/Mill tinha de estar também ligado e conectado à rede interna.
Teve sorte. Mikael estava aparentemente a trabalhar e tinha o des-ktop ligado. Lisbeth esperou dez minutos, mas não detectou quaisquer sinais de actividade. Assumiu que ele devia tê-lo ligado ao chegar à redacção, para procurar qualquer coisa na Net, e o deixara ligado enquanto fazia qualquer outra coisa no portátil. Aquilo tinha de ser feito com muito cuidado. Durante a hora que se seguiu, invadiu cautelosamente um computador atrás de outro e descarregou os e-mails de Erika, de Malm e de uma outra colaboradora que não conhecia e que se chamava Malin Eriksson. Finalmente, localizou o desktop de Dag Svensson. Segundo informação do sistema, era um velho Macintosh Power PC com um disco rígido de apenas 750 MB, quase de certeza uma relíquia que só era usada para processamento de texto por eventuais free-lancers. Estava ligado à rede interna, o que significava que Svensson se encontrava na redacção da Millennium. Descarregou o e-mail dele e fez-lhe uma revista ao disco rígido. Encontrou uma pasta com um nome curto mas que a encantou: [ZALA].
Acabava de receber 203 mil coroas em notas, o que era mais do que esperava conseguir pelos três quilos de metanfetamina que entregara a Lundin no final de Janeiro. Um belo lucro por meia dúzia de horas de trabalho efectivo - ir buscar a met ao intermediário, guardá-la durante algum tempo, entregá-la a Lundin e cobrar 50% dos lucros. O Moto-Clube de Svavelsjõ parecia não ter qualquer dificuldade em realizar aquela quantia todos os meses, e o bando de Lundin era apenas um dos três que tinha a funcionar - os outros dois operavam
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em Gotemburgo e Malmõ. Em conjunto, representavam uma receita média de meio milhão de coroas mensais.
E no entanto estava de tão mau humor que encostou o carro à berma da estrada e desligou o motor. Havia 36 horas que não dormia, e sentia-se zonzo. Apeou-se, para esticar as pernas e urinar. A noite estava fresca e estrelada. Tinha parado à beira de um campo, não muito longe de Jãrna.
O conflito que o agitava era de uma natureza quase ideológica. A oferta de metanfetamina era praticamente ilimitada num raio de 400 quilómetros à volta de Estocolmo. E a procura era enorme. O resto era simples logística: como transportar o produto do ponto A para o ponto B, ou, para ser mais exacto, da cave em Tallinn para o porto-
-franco de Estocolmo.
Havia um problema que se arrastava: como garantir o transporte regular da Estónia para a Suécia? Na realidade, esse era não só o principal problema, como também o elo mais fraco da cadeia, uma vez que, ao cabo de tantos anos, continuava a ter de improvisar. E, nos últimos tempos, as merdas tinham-se sucedido. Orgulhava-se da sua capacidade organizativa. Construíra uma rede bem lubrificada e alimentada a quantidades iguais de pau e cenoura. Era ele que fazia o trabalho preparatório, cimentava parcerias, fechava os negócios e garantia que as entregas chegavam aos lugares certos.
A cenoura era o incentivo oferecido aos intermediários como Lundin: um lucro sólido e relativamente isento de risco. O sistema era bom. Lundin não tinha de mexer um dedo para conseguir o produto: nada de viagens cansativas para comprar nem contactos com gente que podia ser sabia-se lá o quê, desde agentes da brigada anti-droga a membros da máfia russa. Lundin sabia que o gigante loiro fazia a entrega e depois cobrava os seus 50%.
O pau era para quando surgiam complicações. Um dealer de rua tagarela que ficara a saber mais do que convinha sobre a rede de abastecimento quase comprometera o M-C de Svavelsjõ. E ele fora obrigado a intervir para o castigar.
Era uma das coisas para que tinha jeito: impor castigos.
Suspirou.
Sentia que a operação estava a tornar-se demasiado pesada, demasiado diversificada.
Acendeu um cigarro e flectiu as pernas, fazendo força contra a cancela da vedação que cercava o campo.
A metanfetamina era uma fonte de receita discreta e fácil de gerir: grandes lucros, pequenos riscos. Os negócios de armas justificavam-se, em certa medida, desde que trabalhos insignificantes pouco pertinentes pudessem ser identificados e evitados. Considerando os riscos, não era economicamente defensável vender dois petardos, por uns miseráveis milhares, a uns cretinos completamente chanfrados cujo grande objectivo era assaltar o quiosque da esquina.
Certos casos de espionagem industrial ou de contrabando de componentes electrónicos para a Europa Oriental podiam justificar-se... apesar de o mercado ter caído muito nos últimos anos.
Em contrapartida, as putas dos países bálticos eram um investimento totalmente insatisfatório. Um negócio de patacos, ainda por cima susceptível de, a qualquer momento, provocar clamores hipocritamente indignados na imprensa e debates nessa estranha entidade política que era o Parlamento sueco, o Riksdag, cujas regras do jogo lhe pareciam, no mínimo, muito pouco claras. A única vantagem era que toda a gente gostava de putas - promotores públicos, juízes, polícias e até um ou outro membro do Parlamento. Ninguém ia pôr-se a cavar muito fundo para acabar com o negócio.
Nem sequer uma puta morta era necessariamente sinónimo de chatices. Se, no espaço de poucas horas, a polícia conseguia apanhar um suspeito com as roupas ainda sujas de sangue, o tipo era preso, claro, e passava alguns anos numa prisão ou em qualquer outra obscura instituição de reinserção social. Se não conseguia, depressa chegava à conclusão de que tinha coisas mais importantes para investigar, como ele sabia por experiência própria.
Fosse como fosse, não gostava de negócios de putas. Para começar, não gostava das próprias putas, com as suas caras tão maquilhadas que pareciam pintadas e os seus risos estridentes de bêbedas. Não eram puras. E havia sempre o risco de uma delas ter a brilhante ideia de pedir asilo, ou de pôr-se a contar o que sabia à polícia ou aos jornalistas.
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Nesses casos, era obrigado a ocupar-se pessoalmente do assunto e aplicar o castigo. E se as revelações fossem suficientemente escandalosas, o Ministério Público e a polícia ver-se-iam forçados a agir... não fosse o Parlamento acordar e prestar atenção. Em resumo, o negócio das putas dava sempre em merda.
Os irmãos Atho e Harry Ranta eram casos típicos: dois parasitas inúteis que tinham ficado a saber mais do que lhes convinha sobre o negócio. Por mais que a sua vontade fosse embrulhá-los em correntes e largá-los no fundo do porto, tivera de acompanhá-los até ao ferry que fazia a ligação a Tallinn e esperar pacientemente que a porra do barco partisse. As férias forçadas tinham-se devido a um sacana de um jornalista qualquer que metera o nariz nos negócios deles, de modo que fora decidido que seria mais prudente desaparecerem por uns tempos.
Voltou a suspirar.
Acima de tudo, detestava diversões como esta da Salander. No que lhe dizia respeito, não tinha a mínima ponta de interesse. Não representava qualquer espécie de lucro.
Não gostava de Bjurman, e não conseguia compreender por que raio fora decidido fazer o que ele pedira. Mas agora a bola estava a rolar. Tinham sido dadas instruções, o contrato fora dado a um freelancer do M-C de Svavelsjõ, e ele não gostava nem um bocadinho da situação.
Alongou o olhar pelo campo envolto em trevas, atirando a ponta do cigarro para o caminho de saibro que corria ao longo da vedação. Pareceu-lhe detectar um movimento pelo canto do olho e imobilizou-se. Focou o olhar. A única luz era a que vinha de um fino crescente da lua e das estrelas, mas conseguiu, mesmo assim, distinguir os contornos de uma figura escura que avançava lentamente na direcção dele, a cerca de 30 metros de distância, fazendo pequenas paragens.
Um suor gelado inundou-lhe a testa. Odiava a criatura no campo. Durante cerca de um minuto ficou como que paralisado, a olhar para o vulto que continuava a avançar. Quando a criatura já estava suficientemente perto para ver-lhe os olhos a faiscar no escuro, deu meia-volta e correu para o carro. Abriu a porta com um repelão. Sentiu o pânico crescer-lhe no peito até que conseguiu ligar o motor
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e acender os faróis. A criatura estava na estrada, e pôde finalmente vê-la com nitidez. Pareceu-lhe uma raia enorme, a deslizar. Tinha um aguilhão encurvado, como um escorpião.
Aquela criatura não era deste mundo. Era um monstro do mundo das trevas.
Engatou a mudança e arrancou, com os pneus a guinchar. Quando passou pela criatura viu-a tentar o ataque, que não alcançou o carro. Só parou de tremer vários quilómetros mais à frente.
Lisbeth Salander passou a noite a ler o material que Dag Svensson e a Millennium tinham compilado sobre o tráfico de mulheres. Pouco a pouco, começava a ter uma boa imagem geral, apesar de baseada em fragmentos que ia retirando de uma grande variedade de documentos.
Erika Berger enviara um e-mail a Mikael a perguntar como estavam a correr as confrontações; ele respondera sucintamente que não conseguia encontrar o homem da Cheka. Lisbeth interpretou isto como significando que uma das pessoas que iam ser denunciadas trabalhava na Sapo, a Polícia de Segurança Nacional. Malin Eriksson enviara a Dag Svensson o resumo de uma pesquisa complementar, com cópias para Mikael e para Erika Berger. Svensson e Mikael tinham respondido com comentários e sugestões. Mikael e Svensson trocavam e-mails várias vezes por dia. Svensson descrevia a confrontação que tivera com um jornalista, Per-Áke Sandstrõm.
Ficou também a saber, pela leitura dos e-mails, que Svensson estava em contacto com alguém chamado Gulbrandsen, com um endereço Yahoo. Demorou algum tempo a perceber que esse Gulbrandsen era um polícia e que a troca de correspondência electrónica entre os dois se fazia offthe record, utilizando um endereço de e-mail privado e não o de Gulbrandsen na polícia. Gulbrandsen era, portanto, uma fonte. A pasta [ZALA} era decepcionantemente pobre, contendo apenas três documentos Word. O maior, com uns escassos 128 KB, chamava-se <Irina P> e oferecia o esboço da vida de uma prostituta, seguido pelo resumo, redigido por Svensson, do relatório da autópsia, com uma descrição sumária dos horríveis ferimentos.
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Lisbeth reconheceu no texto uma frase que era tirada, palavra a palavra, da tese de Mia Johansson. Na tese, a mulher chamava-se Tâmara, mas Irina P. e Tâmara tinham de ser a mesma pessoa, de modo que leu com renovado interesse a parte da tese dedicada às entrevistas. O segundo documento, <Sandstrõm>, continha o resumo que Svensson enviara a Mikael e no qual se provava que o jornalista fora um dos vários clientes que tinham abusado de uma rapariga oriunda de um país báltico, e também que fazia favores à máfia do sexo, pagos com drogas e serviços sexuais. Além de produzir newsletters para várias empresas, Sandstrõm redigira uma série de artigos para um jornal diário em que condenava indignadamente o negócio do sexo. Uma das suas revelações era que um homem de negócios sueco, cujo nome não referia, tinha visitado um bordel em Tallinn.
O nome de Zala não era referido em nenhum dos documentos, mas uma vez que estes se encontravam numa pasta chamada [ZALA], tinha de haver uma ligação. O último documento, no entanto, chamava-se precisamente <Zala>. Resumia-se a uma curta nota.
Segundo Svensson, o nome Zala aparecera, desde meados dos anos 90, em nove casos relacionados com tráfico de droga, tráfico de armas e prostituição. Ninguém sabia quem ele era, mas fontes diferentes davam-no como sérvio, polaco ou talvez checo. Toda a informação era em segunda mão.
Svensson discutira exaustivamente Zala com a fonte G. (Gulbrandsen?) e sugeria que talvez tivesse sido ele o responsável pela morte de Irina P. Não havia referência ao que G. achava da teoria, mas uma nota indicava que o misterioso personagem constituíra um dos pontos da agenda durante uma reunião com o "grupo especial de investigação sobre crime organizado". O nome aparecera tantas vezes que a polícia começara a fazer perguntas, a tentar estabelecer se Zala era uma pessoa real e se ainda estava vivo.
Tanto quanto Svensson conseguira averiguar, o nome surgira pela primeira vez em 1996, relacionado com um assalto a um carro de transporte de valores, em Õrkelljunga. Os assaltantes, depois de se apoderarem de 3,3 milhões de coroas, tinham-se metido numa tal trapalhada durante a fuga que, no espaço de 24 horas, a polícia
conseguira identificar e deter os membros do bando. No dia seguinte, tinha sido feita outra detenção: Sonny Nieminen, criminoso profissional e membro do Moto-Clube de Svavelsjõ, cujo papel fora fornecer as armas usadas no assalto.
Uma semana depois do roubo tinham sido detidas mais três pessoas. O bando contava, portanto, com oito membros, sete dos quais tinham recusado revelar fosse o que fosse às autoridades. O oitavo, um rapaz de 19 anos chamado Birger Nordman, fora-se abaixo e confessara tudo o que sabia durante o interrogatório. O julgamento redundara numa retumbante vitória para a acusação. O que talvez explicasse (sugeria a fonte de Svensson na polícia) o facto de, dois anos mais tarde, Nordman ter sido encontrado enterrado num areal em Vármland, depois de ter desaparecido aquando de uma saída precária da prisão.
Segundo G., a polícia acreditava que Nieminen, considerado altamente perigoso e implacável, era o homem-chave por detrás do bando. E acreditava também que fora ele que ordenara o assassínio de Nordman, mas não havia provas. Enquanto estivera preso, estabelecera aparentemente contactos com a Irmandade Ariana, uma organização criminosa das prisões que por sua vez estava ligada à Wolfpack Fraternity e a clubes de Hells Angels espalhados pelo mundo, bem como a outras organizações nazis supinamente cretinas e violentas como o Movimento de Resistência Sueco.
O que despertou o interesse de Lisbeth foi, porém, uma coisa completamente diferente. Nordman confessara à polícia que as armas usadas no assalto tinham sido fornecidas por Nieminen, que por sua vez as obtivera de um sérvio que não conhecia mas a que chamava "Sala". Svensson concluía que se tratava de uma personagem anónima da cena criminal e que Zala devia ser a alcunha. Mas avisava que podiam estar em presença de um criminoso particularmente astuto que operava sob pseudónimo.
A última secção continha a pouca informação que Sandstrõm tinha para dar sobre Zala. O pseudojornalista falara uma vez ao telefone com alguém que usava aquele nome. As notas nada diziam sobre o teor da conversa.
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Já passava das quatro da madrugada quando desligou o Power-Book e foi sentar-se no cadeirão junto à janela, a olhar para o Saltsjõn. Ficou ali sentada, a fumar cigarros uns atrás dos outros, duas horas, a pensar. Ia ter de tomar várias decisões estratégicas... e precisava de fazer uma avaliação dos riscos.
Tinha, sobretudo, de encontrar Zala e saldar as contas de uma vez por todas.
Na noite de sábado da semana anterior à Páscoa, Mikael Blomk-vist foi visitar uma antiga namorada que morava na Slipgatan, em Hornstull. Aceitara, excepcionalmente, o convite para uma festa. A ex-namorada em questão tinha entretanto casado e não estava interessada nele a não ser como amigo, mas trabalhava nos media e acabara de escrever um livro que estivera em gestação durante dez anos e cujo tema era, no mínimo, curioso: a imagem das mulheres nos meios de comunicação de massas. Mikael contribuíra com algum material para o livro, e por isso fora convidado.
O seu papel limitara-se à pesquisa sobre um tema à sua escolha. Optara por examinar as políticas de igualdade de oportunidades que a agência noticiosa TT, o Dagens Nyether, o programa televisivo Rapport e outros meios de comunicação tão ostensivamente promoviam. Em seguida, verificara quantos homens e mulheres formavam os quadros de cada uma das empresas acima do nível de assistente editorial. Os resultados tinham sido embaraçosos: CEO, todos homens; presidentes do conselho de administração, todos homens; directores editoriais, todos homens; directores do departamento de relações internacionais, todos homens; chefes de redacção, todos homens... e assim por diante, até que, por fim, aparecia a primeira mulher.
A festa era em casa da autora e os convidados eram maioritariamente amigos que a tinham ajudado a escrever o livro.
Foi uma noite divertida, com boa comida e conversa descontraída. Mikael fora com a intenção de se retirar razoavelmente cedo, mas muitos dos presentes eram velhos conhecidos que raramente via. Além disso, ninguém fez questão de discutir o caso Wennerstrõm. A festa prolongou-se até às duas da manhã.
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Mikael viu o autocarro passar antes de conseguir chegar à paragem, mas a noite não estava demasiado fria e resolveu ir a pé até casa em vez de esperar pelo seguinte. Seguiu a Hõgalidsgatan até à igreja e virou para a Lundagatan, o que despertou imediatamente velhas recordações.
Cumprira a promessa, feita em Dezembro, de deixar de visitar a Lundagatan na vã esperança de que Lisbeth pudesse aparecer. Naquela noite, deteve-se no passeio do outro lado da rua, diante do prédio dela. Ansiava por tocar à campainha, mas sabia como era altamente improvável que ela quisesse vê-lo, muito menos àquelas horas da noite e sem aviso.
Encolheu os ombros e retomou o caminho em direcção a Zin-kensdamm. Não tinha dado 50 passos quando o barulho de uma porta a abrir-se o fez voltar a cabeça, e o coração deu-lhe um salto no peito. Não havia como confundir aquele corpo escanzelado. Lisbeth acabava de sair do prédio e afastava-se na direcção oposta. Parou junto de um carro estacionado.
Mikael abriu a boca para chamá-la quando a voz se lhe prendeu na garganta. Viu um homem sair de outro carro estacionado um pouco mais à frente e aproximar-se rapidamente de Lisbeth, por trás. Viu que era alto e que tinha os cabelos presos num rabo-de-cavalo.
Lisbeth Salander ouviu um ruído e viu um movimento pelo canto do olho no preciso instante em que se preparava para abrir a porta do Honda. O homem aproximava-se dela vindo de trás, seguindo uma trajectória oblíqua. Girou sobre si mesma dois segundos antes de ele a alcançar, e identificou-o instantaneamente como sendo Carl-Magnus Lundin, do Moto-Clube de Svavelsjõ, que, dias antes, se encontrara com o brutamontes loiro no Café Blomberg.
Calculou que pesasse cerca de 120 quilos e notou-lhe a pose agressiva. Usou a chave como arma e não hesitou uma fracção de segundo sequer antes de, com um movimento rapidíssimo, lhe rasgar um fundo golpe na cara, da base do nariz até à orelha. O homem estendeu as mãos, mas agarrou apenas o ar. Lisbeth pareceu enfiar-se pelo chão abaixo.
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Mikael viu Lisbeth disparar a mão para a frente. No mesmo instante em que atacou, deixou-se cair no chão e rolou para debaixo do carro.
Segundos mais tarde, reaparecia do lado oposto, pronta para lutar ou fugir. Enfrentou o olhar do seu inimigo por cima do tejadilho do Honda, e optou pela fuga. Escorria sangue pela cara do homem. Antes mesmo que ele conseguisse focar o olhar, já ela estava do outro lado da Lundagatan e a correr em direcção à igreja de Hõgalid.
Mikael ainda estava paralisado, de boca aberta, quando o atacante correu atrás de Lisbeth. Parecia um tanque a perseguir um carro de brinquedo.
Lisbeth subiu os degraus para o troço superior da Lundagatan, dois de cada vez. No topo das escadas olhou para trás e viu o seu perseguidor chegar ao primeiro degrau. Era rápido. Reparou no monte de tábuas e de areia de umas obras que o município estava a fazer na
rua.
Lundin tinha quase chegado ao alto das escadas quando Lisbeth voltou a surgir à sua frente. Teve tempo de registar que ela atirara qualquer coisa, mas não o suficiente para reagir antes que a pedra da calçada o atingisse na têmpora. A pedra fora lançada com considerável força, e abriu-lhe uma nova ferida na cara. Sentiu que perdia o equilíbrio, e então o mundo começou a andar à roda enquanto ele caía para trás. Conseguiu travar a queda agarrando-se ao corrimão, mas tinha perdido vários segundos.
A paralisia de Mikael Blomkvist dissipou-se quando o homem desapareceu no cimo das escadas. Começou a gritar-lhe que parasse imediatamente.
Lisbeth ia a meio do adro da igreja quando ouviu a voz de Mikael. Que raio? Mudou de direcção e espreitou por cima da balaustrada do terraço. Viu-o, três metros mais abaixo. Hesitou uma décima de segundo antes de continuar a fugir.
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No mesmo instante em que começava a correr para as escadas, Mikael reparou numa Dodge que arrancava de junto ao passeio em frente do prédio de Lisbeth, logo atrás do carro que ela tentara abrir. A carrinha passou por ele, seguindo na direcção de Zinkensdamm. Viu um rosto de relance, mas estava demasiado escuro para distinguir a matrícula.
Alcançou o perseguidor de Lisbeth no cimo das escadas. Tinha parado e estava imóvel, a olhar em redor.
Quando Mikael chegou junto dele, o homem voltou-se e atingiu-o violentamente na cara com as costas da mão. Mikael foi apanhado completamente de surpresa. Caiu para trás e rebolou pelas escadas abaixo.
Lisbeth ouviu o grito abafado de Mikael e quase parou. Que raio se passa? Mas, quando voltou a cabeça, viu Lundin a uns escassos 30 metros mais atrás. É mais rápido do que eu. Merda, vai apanhar-me.
Virou à esquerda e correu alguns metros pela passagem entre dois edifícios. Chegou a um pátio que não oferecia qualquer espécie de esconderijo e continuou a correr o mais depressa que pôde até à esquina mais próxima. Virou à direita e apercebeu-se no último instante que se tinha metido num beco sem saída. Quando chegou à esquina do edifício seguinte, viu Lundin aparecer no cimo dos degraus que davam acesso ao pátio. Continuou a correr - sem ele a ver - mais alguns metros, e então mergulhou de cabeça num enorme rododendro que enfeitava um canteiro diante do prédio.
Ouvia os passos pesados de Lundin, mas não conseguia vê-lo. Conteve a respiração, agachando-se no solo debaixo do grande arbusto.
Lundin passou pelo esconderijo dela e deteve-se. Hesitou cerca de dez segundos antes de correr à volta do pátio. Um minuto mais tarde, estava de volta. Deteve-se no mesmo lugar. Desta vez, manteve-se imóvel durante 30 segundos. Lisbeth retesou os músculos, pronta para fugir se fosse descoberta. Lundin recomeçou a andar, passando a dois metros dela. Lisbeth ouviu os passos dele a afastarem-se.
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Mikael Blomkvist pôs-se laboriosamente de pé. Doía-lhe a nuca e o queixo, e o lábio fendido punha-lhe na boca um sabor a sangue.
Voltou a subir os degraus, cambaleando um pouco, e olhou em redor. Viu o homem do rabo-de-cavalo a correr, cerca de cem metros mais à frente. Viu-o deter-se e espreitar para cada passagem entre os prédios, e em seguida atravessar a Lundagatan e entrar na Dodge. A carrinha acelerou e afastou-se na direcção de Zinkensdamm.
Mikael caminhou lentamente ao longo do troço elevado da Lundagatan, à procura de Lisbeth, mas não a encontrou em parte alguma. Não se via vivalma, e espantou-o um pouco o facto de uma rua de Estocolmo poder parecer tão deserta às três da manhã de um domingo de Março. Pouco depois, desistiu de procurá-la e voltou para trás. Ao passar pelo carro junto ao qual o homem do rabo-de-cavalo tentara atacar Lisbeth, pisou qualquer coisa, e descobriu que era um porta-chaves. Inclinou-se para lhe pegar e viu um saco debaixo do carro.
Ficou ali muito tempo, à espera, sem saber o que fazer. Finalmente, tentou as chaves na porta. Nenhuma delas servia.
Lisbeth Salander manteve-se escondida debaixo do arbusto durante 15 minutos, só se mexendo para consultar o relógio. Pouco depois das três, ouviu uma porta abrir-se e fechar-se e passos a dirigirem-se à arrecadação de bicicletas, no pátio.
Quando voltou a fazer-se silêncio, pôs-se lentamente de joelhos e espreitou por entre os ramos do arbusto. Examinou atentamente todos os recantos do pátio, mas não viu sinais de Lundin. Regressou à rua, preparada para dar meia-volta e fugir a qualquer momento. Deteve-se junto ao muro e olhou para a Lundagatan, lá em baixo. Viu Mikael, como que de guarda diante da porta do prédio. Tinha o saco dela na mão.
Manteve-se perfeitamente imóvel, escondida atrás do poste de um candeeiro, enquanto os olhos de Mikael varriam os degraus e o muro, sem a verem.
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Mikael continuou no seu posto diante da porta durante mais meia hora. Ela observou-o atentamente, sem se mexer, até que, por fim, ele desistiu e começou a descer a rua em direcção a Zinkensdamm. Quando desapareceu, Lisbeth começou a pensar no que tinha acontecido.
Super Blomkvist.
Não conseguia imaginar, por mais que se esforçasse, como raio surgira ele em cena. Tirando isso, o ataque não era difícil de explicar. Carl Cabrão Magnus Lundin.
Lundin encontrara-se com o gigante que ela vira a falar com Bjur-man.
Nils Filho da Puta Bjurman.
Aquele monte de merda contratou um estupor de um macho alfa para me fazer mal. E eu expliquei-lhe muito claramente quais seriam as consequências.
Estava a ferver por dentro. Estava tão furiosa que a boca lhe sabia a sangue. Agora ia ter de castigá-lo.
3.a PARTE
EQUAÇÕES IMPOSSÍVEIS
23 de Março a 2 de Abril
AS EQUAÇÕES ABSURDAS, PARA AS QUAIS NÃO EXISTE QUALQUER SOLUÇÃO, DIZEM-SE IMPOSSÍVEIS.
CAPÍTULO I
QUARTA-FEIRA, 23 DE MARÇO - QUINTA-FEIRA, 24 DE MARÇO
MIKAEL BLOMKVIST pegou na caneta vermelha e traçou um ponto de interrogação, rodeado por um círculo, na margem do manuscrito de Dag Svensson. Por baixo, escreveu: "Nota de rodapé". Queria uma referência à fonte, naquela página.
Era a noite da quarta-feira anterior à Quinta-feira Santa, e a Millennium estava mais ou menos fechada para os feriados da Páscoa. Monika fora para o campo. Lotta fora para as montanhas, com o marido. Henry estivera algum tempo na redacção, disposto a atender os telefonemas, mas Mikael acabara por mandá-lo para casa, uma vez que não estava ninguém a telefonar e, além disso, estava lá ele para atender se alguém telefonasse. Henry fora-se embora, com um sorriso de orelha a orelha, para ir encontrar-se com a nova namorada.
Dag não aparecera. Mikael estava sozinho na redacção, a trabalhar no manuscrito. O livro ia ter 288 páginas e 12 capítulos. Dag entregara o texto final de nove dos 12 capítulos, e Mikael passara a pente-fino cada palavra, devolvendo-o com algumas notas a pedir uma melhor clarificação de alguns pontos e a sugerir pequenas alterações.
Dag era um escritor dotado, e Mikael limitara a sua intervenção a pequenas notas escritas à margem. Durante as semanas em que o manuscrito fora crescendo em cima da sua secretária, apenas tinham discutido a sério sobre um parágrafo, que Mikael queria eliminar e Dag se batera com unhas e dentes para manter. No fim, ganhara Dag.
Em suma, a Millennium tinha um excelente livro que muito em breve iria para a gráfica. Não restava a mínima dúvida de que ia
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fazer sensação. Dag Svensson era implacável na denúncia dos clientes da prostituição, e contava a história de uma tal maneira que ninguém poderia deixar de concluir que havia qualquer coisa de errado com o sistema. Essa parte do livro mostrava não só o seu talento como escritor, mas também como filantropo. Toda a estrutura da obra assentava num cuidadoso trabalho de pesquisa. Trabalho jornalístico de um tipo que deveria ser incluído na lista das espécies
ameaçadas.
Ao longo daqueles dois meses e meio, Mikael descobrira que Dag Svensson era um jornalista meticuloso, que deixava muito poucas pontas soltas. Não usava a retórica pesada típica de tantos outros cronistas sociais que transformavam os textos em lixo pretensioso. O seu livro era mais do que uma denúncia, era uma declaração de guerra. Mikael sorriu para si mesmo. Dag era 15 anos mais novo, mas reconhecia nele a mesma paixão que o levara a atacar o jornalismo financeiro de segunda e a escrever um livro bombástico. Havia redactores que ainda não lhe tinham perdoado.
O problema com o livro de Svensson era que tinha de ser à prova de fogo. Um jornalista que se expunha daquela maneira tinha de estar cem por cento seguro da sua história, ou então mais valia não a publicar. Naquele momento, Dag estava apenas 98 por cento seguro. Havia ainda alguns pontos fracos que era preciso trabalhar e uma ou duas afirmações que não documentava adequadamente.
Às cinco e meia, Mikael abriu a gaveta da secretária e tirou de lá um cigarro. Erika decretara a proibição absoluta de fumar no escritório, mas ele estava sozinho e não ia aparecer ninguém naquele fim-de-semana. Trabalhou mais 40 minutos antes de juntar as páginas do capítulo que estivera a editar em cima da secretária de Erika, para ela as ler. Dag prometera enviar na manhã seguinte, por e-mail, o texto final dos três capítulos que faltavam, o que lhe daria a possibilidade de os rever durante o fim-de-semana. Estava convocada, para a terça-feira depois da Páscoa, uma reunião em que seria aprovada a versão final do livro e dos artigos da Millennium. Depois disso, só ficaria a faltar o layout, que era uma dor de cabeça exclusiva de Christer,
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e mandar o material para a gráfica. Mikael resolvera nem sequer pedir orçamentos; confiaria o trabalho à Halvigs Reklam, em Mormongãva, que já imprimira o livro sobre o caso Wennerstrõm e oferecia um serviço de excelente qualidade por um bom preço.
Olhou para o relógio e decidiu permitir-se o luxo de mais um cigarro. Foi sentar-se junto à janela, a olhar para a Gõtgatan. Passou a língua pelo golpe na parte de dentro do lábio. Já começava a sarar.
Perguntou a si mesmo, pela milésima vez, o que fora que verdadeiramente acontecera à porta de Lisbeth, na madrugada de domingo.
Tudo o que sabia de certeza era que ela estava viva e de regresso a Estocolmo.
Tentara contactá-la todos os dias, desde então. Enviara e-mails para o endereço que ela usava mais de um ano antes. Passara pela Lun-dagatan várias vezes por dia. Começava a desesperar.
A pequena chapa metálica afixada na porta passara a dizer "Salander-Wu". Havia 230 pessoas com o apelido Wu nos cadernos eleitorais. Destas, 140 viviam em Estocolmo e arredores, mas nenhuma na Lundagatan. Não fazia a mínima ideia se Lisbeth tinha um namorado ou se alugara o apartamento.
Finalmente, e como último recurso, tentara um meio de comunicação praticamente caído em desuso: escrevera-lhe uma carta.
Olá,Sally,
Não sei o que aconteceu o ano passado, mas por esta altura até um cretino chapado como eu já percebeu que cortaste todos os contactos. Tens todo o direito de escolher com quem te dás e não é minha intenção pressionar-te. Quero só dizer-te que continuo à pensar em ti como uma amiga, que tenho saudades das nossas conversas e que adoraria tomar um café contigo... se te apetecer.
. Não imagino sequer em que espécie de sarilho te meteste, mas aquela cena na Lundagatan foi assustadora. Se precisares de ajuda, podes telefonar-me a qualquer hora. Como sabes, estou profundamente em ": dívida para contigo.
Além disso, tenho o teu saco. Se não queres ver-me, basta que me dês o endereço para onde possa enviá-lo. Prometo não te incomodar,
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uma vez que deste a entender, muito claramente, que não queres ter nada a ver comigo.
Mikael
Como já esperava, não obtivera qualquer resposta.
Quando chegara a casa, na madrugada do ataque na Lundagatan, abrira o saco dela e despejara o conteúdo em cima da mesa da cozinha. Havia uma carteira com o BI, cerca de 600 coroas, 200 dólares americanos e um passe mensal dos transportes públicos de Estocolmo. Havia um maço de Marlboro Light, três isqueiros Bic, uma caixa de pastilhas para a garganta, um pacote de lenços de papel, uma escova de dentes, pasta de dentes, três tampões numa bolsa lateral, um pacote de preservativos ainda fechado com uma etiqueta que mostrava ter sido comprado no Aeroporto de Gatwick, em Londres, um bloco de notas em formato A4 com separadores rígidos, cinco esferográficas, uma lata de gás pimenta, uma pequena bolsa com bâton e sombras, um rádio FM com auscultadores mas sem pilhas e um exemplar do Aftonbladet de sábado.
O objecto mais estranho do conjunto era um martelo, facilmente acessível numa bolsa exterior. O ataque fora tão rápido que Lisbeth não tivera tempo de usar o martelo, nem a lata de gás pimenta. Por isso usara as chaves como arma: ainda tinham vestígios de sangue e de pele.
Havia seis chaves no chaveiro. Três eram típicas chaves de casa: porta da rua, porta do apartamento, uma chave de um cadeado. Mas nenhuma delas servira na porta do prédio da Lundagatan.
Abrira o bloco de notas e folheara-o página a página. Reconhecera a letra cuidada de Lisbeth e apercebera-se imediatamente de que aquilo não era um diário secreto. Três quartos das páginas estavam cheios do que lhe parecera ser anotações matemáticas. No início da primeira página havia uma equação que até ele conhecia:
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Nunca se dera ao trabalho de fazer os cálculos. Acabara a escola secundária com a nota mais alta a matemática, o que não significava, claro, que fosse um matemático, apenas que fora capaz de absorver o conteúdo do curriculum escolar. As páginas do bloco de notas de Lisbeth continham, no entanto, fórmulas que ele não compreendia e não tinha a mínima intenção de compreender. Uma equação ocupava duas páginas inteiras e terminava com coisas riscadas e emendadas. Não saberia sequer dizer se eram fórmulas e cálculos matemáticos verdadeiros, mas conhecendo como conhecia as peculiaridades de Lisbeth Salander, assumia que as equações eram genuínas e tinham sem dúvida um qualquer significado esotérico.
Folheara o bloco de trás para a frente e da frente para trás durante muito tempo. Se tivesse encontrado um caderno cheio de caracteres chineses, não teria feito grande diferença. Mas, mesmo assim, percebera o essencial do que ela tentara fazer. Lisbeth estava fascinada pelo teorema de Fermat, uma charada clássica de que até ele já tinha ouvido falar. Deixara escapar um longo suspiro.
A última página do bloco continha uma série de notas muito curtas que não tinham absolutamente nada que ver com matemática, mas que apesar disso continuavam a parecer fórmulas:
Loiro + Magge = NEB
Estavam sublinhadas e metidas dentro de círculos, e não tinham qualquer significado para ele. Ao fundo da página havia um número de telefone e o nome de uma empresa de aluguer de automóveis em Eskilstuna: Auto-Expert.
Mikael apagou o cigarro, guardou a beata no bolso do casaco, ligou o alarme anti-roubo do escritório e foi a pé até ao terminal de Slussen, onde apanhou o autocarro para a reserva yuppie de Stàket, perto de Lánnersta. Tinha sido convidado para jantar pela irmã, Annika Blomkvist Giannini, que fazia naquele dia 42 anos.
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Erika Berger começou o seu longo fim-de-semana de Páscoa com uma furiosa e preocupada corrida de três quilómetros que terminou no pontão do ferry, em Saltsjõbaden. Tinha sido preguiçosa nas idas ao ginásio, e sentia-se rígida e em baixo de forma. Regressou a casa em passo normal. Greger estava a dar uma conferência no Museu de Arte Moderna e só chegaria por volta das oito. Estava a pensar abrir uma garrafa de bom vinho, pôr a sauna a funcionar e seduzi-lo. Pelo menos, distrair-lhe-ia a atenção do problema que a preocupava.
Na semana anterior, almoçara com o CEO de um dos mais importantes grupos de comunicação social da Suécia. Entre duas garfadas de salada, ele falara muito seriamente da sua intenção de recrutá-la para directora editorial do maior diário do grupo, o Svenska Morgon-Posten. O Grande Dragão, como era conhecido no meio. "O conselho de administração discutiu várias possibilidades, mas chegámos à conclusão de que a Erika seria uma grande mais-valia para o jornal. É a pessoa que queremos." A proposta era acompanhada por uma oferta de salário que fazia o que ela ganhava na Millennium parecer ridículo.
A abordagem fora tão inesperada que a deixara sem palavras. Porquê eu?
Ele começara por mostrar-se evasivo, mas, pouco a pouco, acabara por explicar que ela era conhecida, respeitada e geralmente considerada uma editora de enorme talento. Tinham ficado impressionados com a maneira como arrancara a Millennium do atoleiro onde se encontrava atascada dois anos antes. O Svenska Morgon-Posten estava a precisar de uma revitalização semelhante. Todo o jornal tinha um "ar de velho" que alienava os assinantes das gerações mais jovens. Era uma jornalista com força. Tinha peso. Além disso, pôr uma mulher, e uma feminista, à frente de uma das instituições mais conservadoras - e onde o elemento masculino predominava mais gritantemente - da Suécia era uma ideia provocadora e ousada. Estavam todos de acordo. Bem, quase todos. Mas os que contavam tinham concordado.
- Mas eu não partilho a visão política do jornal.
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- Que importância tem isso? Também não é uma adversária declarada. Queremos que seja a chefe, não uma apparatchik. Quanto à página editorial, tudo se há-de resolver.
Não o dissera explicitamente, mas era também uma questão de classe social. Erika Berger vinha do meio certo. Ela respondera que a proposta era sem dúvida atraente, mas que não podia dar uma resposta imediata. Ia ter de pensar naquilo. Em todo o caso, tinham concordado que quanto mais depressa decidisse, melhor. O CEO explicara que se o motivo da hesitação era o salário, seria com certeza possível chegar a um número mais simpático. Além disso, a proposta incluía um pára-quedas dourado surpreendentemente generoso. "É tempo de começar a pensar no seu plano de reforma."
Ia fazer 45 anos. Fizera a sua aprendizagem como estagiária e temporária. Criara a Millennium e tornara-se directora editorial por mérito próprio. O momento em que teria de pegar no telefone e dizer sim ou não aproximava-se inexoravelmente, e ela continuava sem saber o que ia dizer. Ao longo da última semana, ponderara várias vezes a possibilidade de discutir o assunto com Mikael, mas não conseguira arranjar coragem. Por isso continuara a esconder-lhe a oferta que lhe fora feita, o que despertava nela um intenso sentimento de culpa.
Havia algumas desvantagens óbvias. Um sim significaria romper a sociedade com Mikael. Ele nunca a seguiria para o Svenska Morgon-Posten, fosse qual fosse a proposta que ela fizesse ou eles pudessem fazer-lhe. Não precisava de dinheiro e sentia-se perfeitamente bem a escrever artigos ao seu próprio ritmo.
Erika gostava muito de ser directora editorial da Millennium. Era uma posição que lhe dava, no mundo do jornalismo, um status que achava quase imerecido. Nunca fora produtora de informação. Não era essa a sua área, e considerava-se até uma escritora medíocre. Por outro lado, era excelente na rádio e na TV e, acima de tudo, era brilhante como editora. Além disso, gostava do empenhamento pessoal que o trabalho de edição exigia, o que era um pré-requisito para o cargo de directora editorial da Millennium.
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Mesmo assim, sentia-se tentada. Não tanto pelo salário, mas pelo facto de o lugar significar que passaria, sem margem para dúvidas, a jogar na primeiríssima liga dos media suecos. "Uma oferta destas só acontece uma vez na vida", frisara o CEO.
Algures perto do Grande Hotel, em Saltsjõbaden, apercebera-se, para seu desespero, de que não ia ser capaz de rejeitá-la. E estremeceu ao pensar que ia ter de dizê-lo a Mikael.
O jantar em casa dos Giannini foi, como sempre, moderadamente caótico. Annika tinha duas filhas: Monica, de 13 anos, e Jennie, de 10. O marido, Enrico, patrão do ramo escandinavo de uma internacional de biotecnologia, tinha a custódia de António, de 16 anos, filho do seu primeiro casamento. Igualmente presentes estavam a mãe de Enrico, Antonia, o irmão, Pietro, a cunhada, Eva-Lotta, e os dois filhos do casal, Peter e Nicola. E ainda a irmã de Enrico, Mar-cella, que vivia no mesmo bairro e tinha quatro filhos. A tia Angelina, que os restantes membros da família consideravam completamente louca ou, nos seus melhores dias, extremamente excêntrica, fora convidada e levara consigo o novo namorado.
O factor caos à mesa do jantar, sobrecarregada de comida, foi, pois, bastante elevado. As conversas entrecruzavam-se numa estonteante mistura de sueco e italiano, por vezes ao mesmo tempo, e, para piorar ainda mais as coisas, Angelina passou a noite a divagar em voz alta - para quem quisesse ouvi-la - sobre os porquês de o irmão de Annika continuar solteiro. E não deixou de sugerir uma porção de soluções adequadas para o problema, escolhidas entre as filhas das suas amigas. Exasperado, Mikael acabou por dizer-lhe que teria muito gosto em casar mas que, infelizmente, a sua amante já era casada. Esta cortou o pio a Angelina, pelo menos durante algum tempo.
Às sete e meia, o telemóvel de Mikael tocou. Ele julgava tê-lo desligado e quase perdeu a chamada enquanto o tirava do bolso interior do casaco, que alguém pendurara no bengaleiro da entrada. Era Dag Svensson.
- Vim interromper alguma coisa?
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- Não particularmente. Estou a jantar com a minha irmã e um regimento de parentes do marido dela. Alguma novidade?
- Duas coisas. Tentei contactar o Christer, mas ele não está a atender o telefone.
- Foi ao teatro com o namorado.
- Raios. Combinei encontrar-me com ele na redacção, amanhã de manhã, com as fotos e os gráficos para o livro. O Christer ficou de vê-los durante o fim-de-semana. Mas a Mia decidiu de repente ir passar a Páscoa com os pais, em Dalarna, para lhes mostrar a tese. Partimos de manhã muito cedo e há fotos que não posso mandar por e-mail. Posso enviar-tas por estafeta, esta noite?
- Podes, mas... ouve, estou em Lánnersta, e ainda me vou demorar por aqui algum tempo, mas mais logo volto para a cidade. Enskede não fica muito fora do meu caminho. Posso passar por aí e recolher o material. Por volta das onze está bem?
- Óptimo. A segunda coisa... acho que não vais gostar disto.
- Dispara.
- Encontrei uma coisa que é melhor verificar antes de o livro ir para a gráfica.
- Okay. O que é?
- Zala, com Z.
- Ah. Zala, o gangster. Aquele de quem toda a gente parece ter medo e a respeito de quem ninguém quer falar.
- Esse mesmo. Há um par de dias, voltei a tropeçar no nome dele. Estou convencido de que está na Suécia e que devia fazer parte da lista de clientes do capítulo sete.
- Dag... não podes começar a desenterrar material novo três semanas antes de o livro ir para a gráfica.
- Eu sei. Mas isto é especial. Falei com um polícia que tinha ouvido qualquer coisa a respeito do Zala. Seja como for, penso que valeria a pena passar um par de dias, na semana que vem, a investigá-lo. ; - Porquê ele? Tens montes de outros sacanas no teu livro.
- É que este parece ser um sacana de proporções olímpicas. Ninguém sabe verdadeiramente quem ele é. Tenho um dedinho que me diz que vai valer a pena espiolhar mais um pouco.
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- Nunca se deve ignorar o que os nossos dedinhos nos dizem... mas, com toda a franqueza, não podemos alargar o prazo. A gráfica está marcada e o livro tem de sair em simultâneo com o número da Millennium.
- Eu sei - disse Dag, num tom infeliz.
- Eu depois ligo-te - disse Mikael, e desligou.
Mia Johansson acabava de fazer café e estava a deitá-lo no termo de mesa quando a campainha da porta tocou. Faltava pouco para as nove. Dag estava mais perto da porta e, pensando que era Mikael que se despachara mais cedo do que contara, abriu-a sem espreitar pelo ralo. Em vez de Mikael, viu à sua frente uma adolescente de pequena estatura, que parecia uma boneca.
- Quero falar com Dag Svensson e Mia Johansson - disse a rapariga.
- Sou Dag Svensson.
- Gostaria de falar com os dois.
Dag consultou o relógio, num gesto automático. Mia, atraída pela curiosidade, apareceu no vestíbulo e foi colocar-se atrás dele.
- É um pouco tarde para uma visita - disse Dag.
- Gostaria de falar-lhes sobre o livro que estão a pensar publicar na Millennium.
Dag e Mia trocaram um olhar.
- Posso saber quem é?
- Interesso-me pelo tema. Posso entrar, ou vamos discutir o assunto aqui no patamar?
Dag hesitou um segundo. Não conhecia a rapariga de parte nenhuma, e a hora não era das mais habituais para fazer visitas, mas ela parecia perfeitamente inofensiva, e por isso abriu completamente a porta. Escoltou-a até junto da mesa, na sala de estar.
- Um café? - ofereceu Mia.
- Que tal dizer-nos primeiro quem é? - disse Dag.
- Sim, obrigada. O café, quero dizer. Chamo-me Lisbeth Salander. Mia encolheu os ombros e abriu o termo. Já tinha as chávenas
preparadas, na expectativa da visita de Mikael.
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- E que a leva a pensar que vou publicar um livro na Millennium? - perguntou Dag.
De repente, estava cheio de suspeitas. Mas a rapariga ignorou-o e voltou-se para Mia. Fez uma careta que poderia passar por um sorriso torcido.
- Uma tese interessante - disse Lisbeth. Mia fez um ar espantado.
- Como é que sabe da minha tese?
- Chegou-me às mãos uma cópia - respondeu a rapariga, enigmaticamente.
Dag estava cada vez mais irritado.
- Vai mesmo ter de explicar quem é e o que quer.
A rapariga enfrentou-lhe o olhar. Dag reparou que as íris eram tão escuras que, àquela luz, os olhos pareciam pretos. E talvez tivesse calculado a idade um pouco por baixo.
- Gostaria de saber porque anda a fazer perguntas sobre Zala, Alexander Zala - disse Lisbeth Salander. - E, sobretudo, gostaria de saber exactamente o que já descobriu a respeito dele.
Alexander Zala, pensou Dag, estupefacto. Nunca soubera o nome próprio do homem.
Lisbeth pegou na chávena e bebeu um pequeno golo sem desviar os olhos dos deles. Não havia no rosto dela o mais pequeno vestígio de calor humano. De repente, Dag sentiu um ligeiro mal-estar.
Ao contrário de Mikael e dos outros adultos presentes no jantar (e apesar de ser ela a aniversariante), Annika Giannini bebera apenas um copo de cerveja, recusando o vinho e a aquavit no fim da refeição. Por isso, às dez e meia, estava perfeitamente sóbria. E uma vez que considerava o irmão um idiota completo em certos aspectos, ofereceu-se generosamente para levá-lo a casa, passando por Enskede. Já tinha planeado levá-lo até à paragem de autocarro, em Vãrmdõvãgen. Ir até à cidade não lhe demoraria muito mais.
- Porque é que não compras um carro? - perguntou, enquanto Mikael colocava o cinto de segurança.
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- Porque, ao contrário de ti, tenho a sorte de poder ir a pé para o emprego, e preciso de carro aí uma vez por ano. Além disso, não estaria em condições de conduzir, de todos os modos, depois de o teu marido se ter posto a servir aguardente de Skâne.
- Está a tornar-se sueco. Há dez anos, teria sido grappa.
Fizeram a viagem a conversar sobre as coisas que os irmãos e irmãs costumam conversar. Exceptuando uma persistente tia paterna, duas tias maternas bastante menos persistentes, dois primos afastados e um primo em segundo grau, Mikael e Annika eram tudo o que restava em termos de família. A diferença de três anos significava que não tinham tido grande coisa em comum durante a adolescência, mas a idade aproximara-os.
Annika estudara direito, e Mikael considerava-a a mais inteligente dos dois. Fizera a universidade com uma perna às costas, passara alguns anos em tribunais distritais, e então tornara-se assistente de um dos advogados mais conhecidos da Suécia. Pouco depois, abrira o seu próprio escritório. Fizera uma especialização em direito de família, que, gradualmente, evoluíra para um trabalho na área da igualdade de direitos. Empenhara-se na defesa das mulheres vítimas de violência doméstica, escrevera um livro sobre o assunto e tornara-se um nome respeitado entre as feministas. Como se isto não bastasse, envolvera-se politicamente com os sociais-democratas, o que levara Mikael a espicaçá-la por ser uma apparatchkk. Quanto a ele, decidira muito cedo que activismo partidário e credibilidade jornalística eram duas coisas que não combinavam. Quase nunca votava, e quando se sentia absolutamente obrigado a fazê-lo, recusava sempre revelar a sua escolha, mesmo a Erika Berger.
- Como vão as coisas contigo? - perguntou Annika, quando atravessavam a Skurubron.
- Oh, tudo bem. Estou óptimo.
- Qual é então o problema?
- Que problema?
- Eu conheço-te, Micke. Estiveste preocupado toda a noite. Mikael permaneceu calado por um instante.
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- É uma história complicada. Neste momento, tenho dois problemas. Um tem que ver com uma rapariga que conheci há dois anos, que me ajudou no caso Wennerstrõm e depois desapareceu da minha vida sem qualquer explicação. Não soube nada dela durante mais de um ano. Até à semana passada.
Contou à irmã o que se passara na Lundagatan.
- Participaste à polícia? -Não.
- Porque não?
- Esta rapariga é patologicamente reservada. A atacada foi ela. É ela quem tem de fazer a participação.
Coisa que, suspeitava Mikael, não ocupava de certeza um dos primeiros lugares na lista de prioridades de Lisbeth Salander.
- Casmurro como de costume - disse Annika, dando-lhe uma palmadinha na cara. - E o segundo problema?
- Estamos a trabalhar, na Millennium, numa história que vai dar que falar. Passei a noite toda a pensar se devia ou não consultar-te. Como advogada, quero dizer.
Annika lançou-lhe um olhar surpreendido.
- Consultar-me? - exclamou. - Essa sim, seria novidade.
- A história é sobre o tráfico de seres humanos e violência contra mulheres. Tu lidas com violência contra mulheres e és advogada. Provavelmente não trabalhas com casos de liberdade de imprensa, mas ficar-te-ia sinceramente agradecido se pudesses ler o manuscrito antes de irmos para impressão. Há vários artigos da revista e um livro, o que significa uma porção de material.
Annika manteve-se silenciosa enquanto metia pela estrada industrial de Hammarby e passava pela comporta de Sickla. Percorreu um labirinto de pequenas ruas secundárias paralelas a Nynãsvágen antes de virar para a Enskedevâgen.
- Sabes, Mikael, em toda a minha vida, só fiquei verdadeiramente zangada contigo uma vez.
- Palavra? - disse ele, surpreendido.
- Foi quando o Wennerstrõm te levou a tribunal e foste condenado por difamação.
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- Porquê? Fiz figura de parvo, mais nada.
- Já tinhas feito figura de parvo em muitas outras ocasiões. Mas daquela vez precisaste de um advogado, e a única pessoa a quem não pediste ajuda foi a mim. Em vez disso, ficaste quieto e calado, a levar pancada nos jornais, na televisão e no tribunal. Nem sequer te defendeste. Fiquei para morrer.
- Havia circunstâncias especiais. Não podias ter feito nada para me ajudar.
- Está bem, mas só compreendi isso mais tarde, quando a Millennium voltou à liça e arrasou o Wennerstròm. Até lá, fiquei muito desiludida contigo.
- Não tínhamos a mais pequena hipótese de ganhar o caso.
- Não estás a ver a questão, mano. Eu sei que era um caso perdido. Li o acórdão. A questão foi que não me pediste ajuda. No género: "mana, preciso de um advogado." Foi por isso que nunca apareci no tribunal.
Mikael pensou naquilo por um instante.
- Desculpa. Suponho que devia ter falado contigo.
- Pois devias.
- A verdade é que deixei praticamente de funcionar durante todo aquele ano. Não queria falar com ninguém. Só me apetecia estender-me no chão e morrer.
- Não foi exactamente o que fizeste.
- Desculpa.
O rosto de Annika abriu-se num sorriso.
- Bonito. Um pedido de desculpas com dois anos de atraso. Okay. Terei muito prazer em ler o texto. É urgente?
- Bastante. Vamos para impressão não tarda. Vira aqui à esquerda.
Annika estacionou do outro lado da rua, em frente do prédio na Bjõrneborgsvâgen onde Mia e Dag viviam.
- Não demoro nada - disse Mikael, e atravessou rapidamente a rua para marcar o código de acesso no painel da porta. Apercebeu-se, mal entrou, de que alguma coisa tinha acontecido. Ouviu vozes
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excitadas e subiu a correr os três lanços de escadas. Só quando chegou ao patamar percebeu que a agitação tinha por foco o apartamento de Mia e Dag. Havia cinco vizinhos reunidos diante da porta, aberta de par em par.
- Que se passa? - perguntou, mais curioso do que preocupado. Calaram-se e olharam para ele. Três mulheres e dois homens, todos na casa dos 70. Uma das mulheres estava em camisa de noite.
- Ouvimos tiros - disse o homem que vestia um roupão castanho e tinha o ar de saber do que estava a falar.
- Tiros? - repetiu Mikael, com uma expressão aparvalhada.
- Ainda agora. Foram disparados tiros dentro do apartamento, há menos de um minuto.
Mikael abriu caminho pelo meio do grupo e premiu o botão da campainha enquanto entrava.
- Dag? Mia?
Não obteve resposta.
Subitamente, sentiu um arrepio gelado descer-lhe pelo pescoço. Reconheceu o cheiro: cordite. Aproximou-se da porta da sala. A primeira coisa que viu foi, Santa-Mãe-de-Dem, Dag Svensson caído no chão, junto às cadeiras da mesa de jantar, no meio de uma poça de sangue com um metro de diâmetro.
Correu para ele, ao mesmo tempo que tirava o telemóvel do bolso e marcava o 112. Atenderam-no de imediato.
- Chamo-me Mikael Blomkvist. Preciso de uma ambulância e da polícia.
Deu a morada.
- Qual é a situação?
- Um homem. Parece ter sido atingido a tiro na cabeça e está inconsciente.
Inclinou-se e tentou encontrar no pescoço o pulsar do coração de Dag. Foi então que viu o enorme orifício na nuca e compreendeu que o que estava a pisar devia ser massa encefálica. Lentamente, retirou a mão.
Nenhuma equipa de emergência do mundo conseguiria salvar Dag Svensson.
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Reparou então nos cacos de uma das chávenas de porcelana que Mia herdara da avó e que tanto receava que alguém partisse. Endireitou-se rapidamente e olhou em redor.
- Mia! - gritou.
O vizinho do roupão castanho seguira-o até ao vestíbulo. Mikael
deteve-se à porta da sala e ergueu uma mão.
- Pare aí - disse. - Volte para o patamar.
O homem deu a impressão de ir protestar, mas acabou por obedecer. Mikael ficou imóvel durante 15 segundos. Então, contornou a poça de sangue, passou pelo corpo de Dag e avançou cautelosamente para a
porta do quarto.
Mia Johansson estava caída de costas no chão, aos pés da cama. Não-não-não-não-a-Mia-pelo-amor-de-Deus! Tinha sido atingida na cara. A bala entrara pela mandíbula, por baixo da orelha esquerda. O orifício de saída, na têmpora direita, tinha o tamanho de uma laranja e a órbita do olho daquele lado era um buraco lugubremente vazio. A força do projéctil fora tal que a parede por cima da cabeceira da cama, a três metros de distância, estava coberta de salpicos de sangue. Mikael apercebeu-se de que continuava a apertar o telemóvel na mão crispada, com a linha para o serviço de emergência ainda aberta, e de que estava a conter a respiração. Encheu os pulmões de ar e levantou o telefone.
- Precisamos da polícia. Duas pessoas atingidas a tiro. Julgo que
estão mortas. Depressa, por favor.
Ouviu a voz do serviço de emergência dizer qualquer coisa, mas não percebeu as palavras. Era como se, de repente, tivesse um problema de audição. O silêncio à sua volta era absoluto. Não ouviu a sua própria voz quando tentou falar. Baixou a mão que segurava o telemóvel e saiu do apartamento, às arrecuas. Quando chegou ao patamar, apercebeu-se de que estava a tremer convulsivamente e de que o coração lhe batia no peito com uma violência dolorosa. Sem uma palavra, passou por entre os petrificados vizinhos e foi sentar-se nos degraus da escada. Ouviu, como que vindas de muito longe, as perguntas que lhe faziam. "Que aconteceu?" "Estão feridos?" "Aconteceu alguma coisa?" O som das vozes fazia eco, como se viesse do fundo de um túnel.
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Sentia-se aturdido, como que paralisado. Soube que estava em estado de choque. Inclinou-se para a frente e colocou a cabeça entre os joelhos. E então começou a pensar. Santo Deus... foram assassinados. Foram mortos a tiro há poucos minutos. Talvez o assassino ainda estivesse no apartamento... não, eu tê-lo-ia visto. É um apartamento muito pequeno. Não conseguia parar de tremer. Dag estava caído de bruços, de modo que não lhe vira a cara, mas a visão do rosto destroçado de Mia nunca mais se lhe apagaria da memória.
De repente, recuperou a audição, como se alguém tivesse rodado o botão do volume. Pôs-se de pé e olhou para o vizinho do roupão castanho.
- O senhor - disse. - Fique aqui e não deixe ninguém entrar no apartamento. A polícia e a ambulância vêm a caminho. Eu vou descer para lhes abrir a porta.
Desceu os degraus três a três. No piso térreo, olhou para a escada da cave e deteve-se bruscamente. A meio da escada, bem à vista, estava um revólver. Pareceu-lhe um Colt .45 Magnum... o mesmo tipo de arma usado para assassinar Olof Palme.
Conteve o impulso de pegar-lhe. Em vez disso, voltou ao hall de entrada, bloqueou a porta na posição de aberta e saiu para a frescura da noite. Só quando ouviu uma curta buzinadela se lembrou de que a irmã continuava à espera dele. Atravessou a rua.
Annika abriu a boca para fazer um comentário sarcástico sobre a demora do irmão. E então viu a expressão na cara dele.
- Viste passar alguém enquanto estavas à espera? - perguntou-lhe Mikael. A voz dele soou estranhamente rouca.
- Não. Quem poderia ter visto? Que aconteceu?
Mikael ficou calado durante alguns segundos, enquanto olhava para a direita e para a esquerda. Meteu a mão no bolso do casaco e encontrou um maço amarrotado onde já só restava um cigarro. Enquanto o acendia, ouviu ao longe as sereias que se aproximavam. Olhou para o relógio. Eram onze e dezassete.
- Annika... vai ser uma longa noite - disse sem olhar para ela, enquanto o carro da polícia entrava na rua.
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Os primeiros a chegar foram os agentes Magnusson e Ohlsson. Tinham ido a Nynàsvãgen, em resposta ao que acabara por revelar-se um falso alarme. O terceiro foi o comissário Oswald Mârtensson, que se encontrava em Sankstull quando a central de operações chamara todos os carros na área. Chegaram quase ao mesmo tempo vindos de direcções diferentes e viram o homem de jeans e casaco escuro que, no meio da rua, erguia uma mão a fazer-lhes sinal para pararem. No mesmo instante saiu uma mulher de um carro estacionado a poucos metros do homem.
Os três polícias esperaram alguns segundos. A central falara de duas pessoas mortas a tiro, e o homem tinha qualquer coisa escura na mão esquerda. Só depois de se certificarem de que era o telemóvel saíram dos carros, a ajeitar os cinturões. Mârtensson assumiu o comando.
- Foi você que telefonou a participar a ocorrência? - perguntou. O homem assentiu com a cabeça. Parecia muito abalado. Estava
a fumar um cigarro e a mão tremia-lhe quando o levou à boca.
- O seu nome?
- Mikael Blomkvist. Duas pessoas foram mortas a tiro neste edifício, há muito pouco tempo. Chamavam-se Dag Svensson e Mia Johansson. No terceiro andar. Os vizinhos estão reunidos em frente da porta.
- Santo Deus! - exclamou a mulher.
- E a senhora, quem é? - indagou Mârtensson.
- Annika Giannini. Sou irmã dele - respondeu ela, apontando para Mikael.
- Vivem aqui?
- Não - disse Mikael. - Eu ia visitar o casal que foi assassinado. A minha irmã deu-me boleia.
- Diz que duas pessoas foram mortas a tiro. Viu o que aconteceu?
- Não. Encontrei-os mortos.
- Vamos lá acima, dar uma vista de olhos - decidiu o comissário.
- Espere - pediu Mikael. - Segundo os vizinhos, os tiros foram disparados cerca de um minuto antes de eu chegar. Liguei para o 112
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um minuto depois de ter chegado. Desde então, passaram menos de cinco minutos. O que significa que a pessoa que os matou ainda deve estar na área.
- Tem uma descrição?
- Não vimos ninguém. É possível que um dos vizinhos tenha visto qualquer coisa.
Mârtensson fez sinal a Magnusson, que levantou o rádio e falou em voz baixa. O comissário voltou-se para Mikael.
- Pode indicar-nos o caminho?
Quando entraram no prédio, Mikael deteve-se e apontou para a escada da cave. Mârtensson inclinou-se e examinou a arma. Desceu o resto dos degraus até à porta da cave. Estava fechada à chave.
- Ohlsson, fique aqui e mantenha um olho nesta coisa - ordenou. No patamar, o grupo de vizinhos reduzira-se a dois. Os outros
tinham regressado aos respectivos apartamentos, mas o homem do roupão castanho mantinha-se no seu posto. Pareceu aliviado ao ver os agentes uniformizados.
- Não deixei ninguém entrar - anunciou.
- Muito bem - disseram Mikael e o comissário ao mesmo tempo.
- Parece haver rastos de sangue nas escadas - observou o agente Magnusson.
Olharam todos para as pegadas. Mikael apontou para os seus sapatos italianos.
- Provavelmente, são minhas - disse. - Estive dentro do apartamento. Havia muito sangue.
Mârtensson lançou-lhe um olhar inquisitivo. Usou uma caneta para empurrar a porta do apartamento e descobriu mais pegadas ensanguentadas no vestíbulo.
- À direita. O Dag Svensson está na sala, e a Mia Johansson no quarto.
Mârtensson fez uma rápida inspecção ao apartamento e voltou a sair segundos depois. Usou o rádio para pedir reforços da judiciária. Acabava de falar quando a equipa da emergência médica chegou. O comissário deteve-os quando se preparavam para entrar.
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- Duas vítimas. Tanto quanto me pareceu, já não há nada a fazer. Tentem fazer o vosso trabalho sem contaminar demasiado o local do crime.
Não demorou muito a confirmar a suspeita do comissário. O chefe da equipa médica decidiu que não valia a pena levar os corpos para o hospital e tentar a reanimação. Já nada poderia reanimá-los. Mikael sentiu-se repentinamente agoniado e voltou-se para Mârtensson.
- Vou lá para fora. Preciso de ar.
- Infelizmente, não posso deixá-lo ir já.
- Vou só sentar-me nos degraus, diante da porta.
- Mostra-me a sua identificação, por favor?
Mikael tirou a carteira do bolso e entregou-lha. Em seguida voltou-se e, sem uma palavra, foi sentar-se nos degraus diante da porta do prédio, onde Annika continuava à espera com o agente Ohlsson. A irmã sentou-se junto dele.
- Micke, que aconteceu?
- Duas pessoas de que eu gostava muito acabam de ser assassinadas. O Dag Svensson e a Mia Johansson. Era o manuscrito dele que eu queria que lesses.
Annika compreendeu que aquele não era o melhor momento para o inundar com perguntas. Em vez disso, passou-lhe um braço pelos ombros e puxou-o para si. Um pequeno grupo de curiosos noctívagos juntara-se no passeio, do outro lado da rua. Mikael observou-os enquanto a polícia começava a montar um cordão. Tinha começado uma investigação criminal.
Já passava das três da manhã quando Mikael Blomkvist e a irmã foram autorizados a deixar a sede da Judiciária. Tinham ficado uma hora dentro do carro de Annika, à porta do prédio em Enskede, à espera de que o procurador de turno chegasse e desse início à fase preliminar. Então, uma vez que Mikael era amigo de ambas as vítimas e fora ele que as encontrara e ligara para o Serviço de Emergência, fora-lhes pedido que acompanhassem a brigada até à Kungsholmen para, segundo a polícia, colaborarem na investigação.
Na sede da Judiciária tiveram de esperar que a inspectora Anita Nyberg arranjasse tempo para falar com eles. A inspectora Nyberg era loira e parecia uma adolescente.
Estou a ficar velho, pensara Mikael.
Às duas e meia da manhã tinha bebido tanto café requentado da cantina da polícia que estava a sentir-se perfeitamente sóbrio e bastante maldisposto. Tivera de interromper a conversa para ir à casa de banho, onde vomitara as tripas. E durante todo este tempo, a imagem do rosto de Mia Johansson não lhe saíra da cabeça. Bebera três chávenas de água e lavara a cara duas vezes antes de voltar à entrevista. Tentara recompor-se para responder o melhor possível às perguntas da inspectora Nyberg.
- Dag Svensson e Mia Johansson tinham inimigos?
- Que eu soubesse, não.
- Tinham recebido quaisquer ameaças?
- Se tinham, não me falaram delas.
- Como descreveria a relação entre os dois?
- Tudo indicava que se amavam. O Dag disse-me que estavam a pensar ter um bebé depois de a Mia completar o doutoramento.
- Usavam drogas?
- Não posso afirmá-lo com certeza, mas não me parece, e se usavam, não passou com certeza de um charro numa festa quando tinham alguma coisa que celebrar.
- Qual era o motivo da sua visita a uma hora tão tardia? Mikael explicara a história dos retoques de última hora num livro, sem especificar o tema.
- Descreveria como normal visitar pessoas às onze da noite?
- Sim, sem dúvida, mas foi a primeira vez.
- Como foi que os conheceu?
- Por motivos de trabalho.
As perguntas tinham-se sucedido, tentando estabelecer um enquadramento temporal.
Os tiros tinham sido ouvidos em todo o edifício. Tinham sido disparados com menos de cinco segundos de intervalo. O homem do
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roupão castanho, um major reformado da artilharia de costa, com 70 anos, era o vizinho mais próximo. Estava a ver televisão. Depois do segundo tiro saíra para a escada. Tinha um problema numa anca, pelo que o levantar-se do sofá fora um processo demorado. Calculava que teria demorado 30 segundos a chegar ao patamar. Nem ele nem nenhum dos outros vizinhos tinham visto quem quer que fosse na escada.
Segundo os vizinhos, Mikael Blomkvist chegara ao apartamento menos de dois minutos depois de o segundo tiro ter sido disparado.
Feitas as contas, e considerando que ele e Annika tinham tido a visão do exterior desimpedida enquanto ela encontrava o edifício certo, parava o carro e ele atravessava a rua para subir ao apartamento, havia um hiato de 30 a 40 segundos, tempo durante o qual o assassino tivera de sair do apartamento, descer três lanços de escada - largando o revólver pelo caminho - sair do prédio e desaparecer antes de o carro de Annika dobrar a esquina da rua.
Por um momento estonteante, Mikael percebera que a inspectora Nyberg estava a considerar a possibilidade de ter sido ele próprio o assassino, tendo descido apenas um lanço de escada e fingido chegar ao local depois de os vizinhos se terem juntado. Mas Mikael tinha um álibi inatacável na pessoa da irmã; toda a sua noite, incluindo o telefonema de Dag Svensson, podia ser confirmada por uma dúzia de membros da família Giannini.
Finalmente, Annika perdera a paciência. Mikael ajudara em tudo o que pudera. Estava visivelmente cansada e não se sentia bem. Dissera à inspectora que não era só irmã de Mikael, era também a sua advogada. Era mais do que tempo de acabar com aquilo e deixá-lo ir para casa.
Quando chegaram à rua, pararam algum tempo junto ao carro de Annika.
- Vai para casa e vê se dormes um pouco - aconselhou ela. Mikael abanou a cabeça.
- Tenho de ir a casa da Erika - disse. - Ela também os conhecia. Não posso telefonar-lhe a dizer uma coisa destas, e não quero que acorde e fique a saber pelo noticiário.
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Annika hesitou, mas sabia que ele tinha razão.
- Muito bem, vamos então a Saltsjõbaden.
- Podes levar-me lá?
- Para que outra coisa servem as irmãs mais novas?
- Se me deres uma boleia até Nacka, posso apanhar lá um táxi, ou esperar por um autocarro.
- Disparate. Entra, eu levo-te.
CAPÍTULO 12
QUINTA-FEIRA SANTA, 24 DE MARÇO
Annika GlANNlNl estava tão cansada como o irmão, e Mikael conseguiu convencê-la a deixá-lo em Nacka e a poupar um desvio de uma hora para contornar a enseada de Lánnersta. Beijou a irmã na face, agradeceu-lhe a ajuda e esperou que ela desse a volta antes de apanhar um táxi.
Havia já dois anos que não ia a Saltsjõbaden. Antes disso, só estivera em casa de Erika meia dúzia de vezes. Um sinal de imaturidade, sem dúvida, pensava ele.
Como funcionava exactamente o casamento dela com Greger Beckman era coisa de que não fazia ideia. Conhecia Erika desde o início dos anos 80 e planeava continuar a ter uma relação com ela até já ser demasiado velho para se levantar da cadeira de rodas. Houvera uma separação no final da década, quando ambos tinham casado com outras pessoas. O hiato durara menos de um ano.
No caso dele, a consequência da infidelidade fora um divórcio. No caso de Erika Greger reconhecera que a duradoura atracção sexual entre os dois era tão forte que evidentemente não seria razoável esperar que uma mera convenção os mantivesse afastados. E não estava disposto a perder Erika como Mikael perdera a mulher.
Quando Erika admitira a sua infidelidade, Greger fora bater à porta de Mikael. Havia já algum tempo que Mikael temia aquela visita, mas em vez de lhe dar um murro no nariz, Greger propusera que fossem beber um copo. Tinham passado por três bares de Sõdermalm até ficarem suficientemente etilizados para terem uma conversa séria, que decorrera num banco de jardim em Mariatorget, quando o sol já nascia.
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De início, Mikael mostrara-se céptico, mas Greger acabara por conseguir convencê-lo de que se ele tentasse destruir o seu casamento com Erika, voltaria a procurá-lo sóbrio e com um taco de baseball, mas se era apenas uma questão de desejo físico e inquietação da alma e incapacidade de contenção, então, por ele, tudo bem.
Posto isto, Mikael e Erika tinham retomado a sua relação com a bênção de Greger e sem tentarem esconder-lhe fosse o que fosse. Tudo o que Erika tinha que fazer sempre que lhe dava vontade - e dava-lhe com alguma regularidade -, era pegar no telefone e dizer ao marido que ia passar a noite com Mikael.
Nunca Greger dissera uma palavra de censura a respeito de Mikael. Pelo contrário, parecia considerar benéfica a relação dele com a mulher, e o amor que tinha por ela crescera, por saber que nunca poderia dar como adquirida a continuidade da presença dela.
Mikael, em contrapartida, nunca conseguira sentir-se à-vontade na companhia de Greger: uma dura prova de que até as relações livres tinham o seu preço. Por tudo isto, só costumava ir a Saltsjõbaden nas raras ocasiões em que Erika dava uma festa em que a sua ausência seria notada e comentada.
Apeou-se do táxi diante da grande moradia do casal. Reprimiu o mal-estar que lhe causava o facto de ser portador de más notícias, pôs resolutamente o dedo no botão da campainha e deixou-o lá ficar durante 40 segundos, até ouvir passos no interior. Greger abriu a porta com uma toalha enrolada à volta da cintura e uma expressão de fúria que se transformou em surpresa ao ver o amante da mulher.
- Olá, Greger.
- Bom dia, Blomkvist. Que raio de horas são?
Greger Beckman era loiro e magro. Tinha muitos cabelos no peito e quase nenhuns na cabeça. Ostentava uma barba de sete dias e uma grande cicatriz por cima do sobrolho direito, recordação de um acidente de vela havia já alguns anos.
- Passa um pouco das cinco. Podes acordar a Erika? Preciso de falar com ela.
Greger assumiu que se Mikael vencera repentinamente a sua relutância em visitar Saltsjõbaden - e estava ali àquela hora - era porque
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qualquer coisa muito invulgar tinha acontecido. Além disso, o visitante tinha o ar de quem estava a precisar muito de uma bebida, ou pelo menos de uma cama onde pudesse recuperar o sono em atraso. Abriu mais a porta e deixou-o entrar.
- Que aconteceu?
Antes que Mikael pudesse responder, Erika apareceu no patamar do primeiro piso, a atar o cinto de um roupão branco. Já ia a meio das escadas quando viu Mikael no vestíbulo.
- Mikael! O que foi que aconteceu?
- O Dag e a Mia - disse Mikael, e o rosto dele revelou instantaneamente a notícia que tinha ido ali levar.
- Não! - exclamou Erika, levando a mão à boca.
- Foram assassinados a noite passada. Venho agora mesmo da polícia.
- Assassinados? - disseram Erika e Greger ao mesmo tempo.
- Alguém entrou no apartamento deles e matou-os a tiro. Fui eu que os encontrei.
Erika sentou-se nos degraus da escada.
- Não quis que ficasses a saber pelo noticiário da manhã - disse Mikael.
Faltava um minuto para as sete da manhã de Quinta-feira Santa quando Mikael e Erika entraram nas instalações da Millennium. Erika acordara Christer Malm e Malin Eriksson com a notícia de que Mia e Dag tinham sido assassinados na noite anterior. Viviam os dois muito perto e já tinham chegado para a reunião. A máquina do café estava ligada.
- Que diabo aconteceu? - perguntou Christer.
Malin fez-lhe sinal para se calar e aumentou o volume do rádio para ouvir o noticiário das sete.
Duas pessoas, um homem e uma mulher, foram mortos a tiro ontem à noite, num apartamento de Enskede. Segundo a polícia, trata-se de um duplo assassínio. Nenhuma das vítimas era anteriormente conhecida da polícia. O móbil do crime continua desconhecido. A nossa repórter Hanna Olofosson encontra-se no local.
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"Faltava pouco para a meia-noite quando a polícia foi alertada para a ocorrência de disparos num prédio de apartamentos na Bjõrneborg-vágen, aqui em Enskede. Segundo um vizinho, foram disparados vários tiros no interior do apartamento. O motivo é desconhecido e ainda não foi feita qualquer detenção. A polícia selou o apartamento e está em curso o exame pericial."
- Sucinto - comentou Malin, e voltou a baixar o volume do rádio. Então, começou a chorar. Erika passou-lhe um braço pelos ombros.
-Jesus Cristo! - murmurou Christer, sem se dirigir a ninguém em especial.
- Sentem-se todos - disse Erika, num tom firme. - Mikael... Mikael contou-lhes o que sabia do que tinha acontecido. Numa
voz monocórdica, que fez lembrar o tom neutro da jornalista da rádio, descreveu como tinha encontrado Mia e Dag.
- Jesus Cristo! - repetiu Christer. - Isto é uma perfeita loucura. Malin foi mais uma vez dominada pela emoção. Recomeçou a
chorar, sem fazer o mais pequeno esforço para esconder as lágrimas.
- Tenho tanta pena - disse Malin.
- Também eu. Só me apetece chorar - disse Christer. Mikael perguntou a si mesmo por que seria que não era capaz
de chorar. Sentia apenas um enorme vazio, como se estivesse anestesiado.
- O que sabemos até agora é muito pouco - disse Erika. - Temos de discutir duas coisas. Estamos a três semanas de ir para impressão com o material do Dag; devemos publicá-lo? Podemos publicá-lo? Esta é a primeira. A outra é uma questão que discuti com o Mikael quando vínhamos para cá.
- Não sabemos por que motivo foram assassinados - encadeou Mikael. - Pode ter sido por qualquer coisa relacionada com a vida particular da Mia e do Dag, ou pode ter sido um acto de pura violência gratuita, mas não podemos pôr de parte a possibilidade de ter alguma coisa que ver com aquilo em que eles estavam a trabalhar.
Fez-se um longo silêncio à volta da mesa.
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Finalmente, Mikael tossicou para aclarar a garganta e continuou:
- Como disse, preparamo-nos para publicar uma história em que nomeamos pessoas que estão extremamente desejosas de não serem identificadas neste contexto. O Dag iniciou as confrontações há duas semanas. Estou a pensar que se uma dessas pessoas...
- Espera - pediu Malin. - Vamos denunciar três polícias, pelo menos um dos quais trabalha para a Sapo e outro para a Divisão de Costumes. E depois há vários advogados, um promotor público, um juiz e um par de jornalistas devassos. Será possível que um deles tenha assassinado duas pessoas para impedir a publicação?
- Bem, não sabemos a resposta para essa pergunta - disse Mikael. - Todos eles têm muito a perder, mas julgo que seria incrivelmente estúpido pensarem que conseguiriam abafar uma história como esta assassinando um jornalista. Mas também vamos denunciar vários proxenetas, e apesar de usarmos nomes fictícios, não será muito difícil a qualquer pessoa que conheça minimamente o meio descobrir quem eles são. Alguns já têm cadastro por crimes violentos.
- Okay - disse Christer. - Mas estás a encarar estes crimes como se tivessem sido execuções. Se entendi bem a história do Dag, não estamos a lidar com tipos particularmente inteligentes. Acha-los capazes de praticar um duplo assassínio e escapar impunes?
- Não é preciso ser um génio para disparar dois tiros - observou
Malin.
- Estamos a especular a respeito de uma coisa sobre a qual não sabemos praticamente nada - interveio Erika. - Mas temos de fazer a pergunta. Se o motivo dos crimes foi suprimir os artigos do Dag... ou a tese da Mia, já agora... temos de reforçar a segurança aqui na
Millennium.
- Mas há uma terceira questão - disse Malin. - Devemos ir à polícia com os nomes que temos? O que foi que lhes disseste ontem à
noite, Mikael?
- Disse-lhes em que estava o Dag a trabalhar, mas eles não pediram pormenores, e não lhes dei nomes.
- Provavelmente devíamos dar - opinou Erika.
- Não é assim tão simples - disse Mikael. - Podíamos dar-lhes uma lista de nomes, mas que faremos se eles perguntarem onde os arranjámos? Não podemos revelar nenhuma fonte que deseje permanecer anónima. E é esse o caso de várias das raparigas que a Mia entrevistou.
- Que raio de sarilho - resmungou Erika. - Voltamos à pergunta original: devemos ou não publicar?
Mikael ergueu uma mão.
- Espera. Podíamos votar esta coisa, mas acontece que eu sou o editor, o editor é o responsável pelo que se publica na revista e acho que, pela primeira vez, vou tomar a decisão sozinho. A resposta é não. Não podemos publicar este material no próximo número. Não é razoável continuarmos a seguir o plano original, como se não tivesse acontecido nada.
Ninguém à volta da mesa pareceu querer discutir a decisão.
- Claro que quero publicar, mas vamos ter de reformular muita coisa. O Dag e a Mia é que tinham a documentação, e a história baseava-se no facto de a Mia ir apresentar queixa na polícia contra as pessoas que vamos nomear. Ela era a especialista. Algum de nós sabe alguma coisa a respeito deste tema?
A porta da frente bateu e Henry Cortez apareceu no umbral.
- É por causa do Dag e da Mia? - perguntou, a ofegar. Todos assentiram.
- Raios, isto é de loucos!
- Como foi que soubeste? - perguntou Mikael.
- Ia a caminho de casa com a minha namorada quando ouvi a notícia no rádio do táxi. A polícia queria saber se algum taxista tinha feito um serviço para a rua deles. Reconheci a morada. Tinha de vir.
Henry parecia tão abalado que Erika se levantou da cadeira para o abraçar e convidou-o a tomar lugar à mesa.
- Penso que o Dag havia de querer que publicássemos a história dele - disse.
- E eu concordo que devemos. O livro, sem a mínima dúvida. Mas, dadas as circunstâncias, vamos ter de adiar a data de publicação.
228
- O que é que fazemos, então? - perguntou Malin. - Não é só um artigo que é preciso mudar... é todo um número temático. Temos de refazer toda a revista.
Erika ficou calada por uns instantes. Então, pela primeira vez naquele dia, sorriu cansadamente.
- Tinhas planeado passar a Páscoa fora, Malin? - perguntou. -Bem, se tinhas, esquece. Vamos fazer assim... Malin, tu e eu... e o Christer... vamos sentar-nos e planear um novo número sem o material do Dag. Temos de ver se conseguimos alguns dos artigos que tínhamos planeado para o número de Junho. Mikael, que material recebeste do Dag?
- Tenho as versões finais de nove dos doze capítulos. E tenho a primeira versão dos capítulos dez e onze. O Dag ficou de enviar-me as versões finais... vou verificar o meu e-mail... mas só tenho o esboço do décimo segundo, que corresponde à súmula final e às conclusões.
- Mas tu e o Dag falaram sobre todos os capítulos, não é verdade?
- Sim, e eu sei o que ele planeava escrever no último capítulo, se é aí que estás a querer chegar.
- Okay, vais ter de sentar-te e estudar os manuscritos... tanto do livro como dos artigos. Quero saber o que falta e se podemos escrever o que o Dag não conseguiu entregar. Achas que és capaz de fazer uma avaliação objectiva ainda hoje?
- Sou.
- Também quero que penses no que vamos dizer à polícia. O que está dentro dos limites e a partir de que ponto nos arriscamos a quebrar o acordo de confidencialidade com as nossas fontes. Ninguém da Millennium dirá seja o que for a quem quer que seja fora da revista sem o teu okay.
- Parece-me bem - concordou Mikael.
- Até que ponto achas provável o livro do Dag ter sido o motivo dos assassínios?
- Ou a tese da Mia... Não sei. Mas não podemos descartar a
possibilidade.
- Não, não podemos. Vais ter de ser tu a pegar nas rédeas.
229
- Nas rédeas de quê?
- Da investigação.
- Que investigação?
- A nossa investigação, porra! - Repentinamente, Erika tinha erguido a voz. - O Dag era jornalista e estava a trabalhar para a Millennium. Se foi morto por causa desse trabalho, eu quero saber. É por isso que nós... como equipa editorial... vamos ter de descobrir o que aconteceu. Tu encarregas-te dessa parte: procurar no material que o Dag nos deu um motivo para os assassínios. - Voltou-se para Malin. - Se, entre as duas, conseguirmos planear o novo número até ao fim do dia, eu e o Christer faremos um esboço do layout. Mas tu trabalhaste muito com o Dag nos artigos complementares do número temático. Quero que acompanhes os desenvolvimentos da investigação da polícia, juntamente com o Mikael.
Malin assentiu.
- Henry... podes trabalhar hoje?
- Claro.
- Começa por telefonar ao resto do nosso staff e explica-lhes o que aconteceu. Depois, entra em contacto com a políci e tenta descobrir se já fizeram alguns progressos. Pergunta-lhes se vai haver uma conferência de imprensa, ou coisa assim.
- Vou começar por telefonar aos outros. Depois dou um pulo a casa para tomar um duche e estou de volta dentro de quarenta e cinco minutos, a menos que siga directamente para Kungsholmen.
- Vamos manter-nos em contacto durante todo o dia.
- Certo - disse Mikael. -Já acabámos? Tenho de fazer um telefonema.
Harriet Vanger estava a tomar o pequeno-almoço na varanda envidraçada da casa de Henrik Vanger, em Hedeby, quando o telemóvel tocou. Atendeu sem olhar para o visor.
- Bom dia, Harriet - disse Mikael.
- Santo Deus! Pensava que eras uma daquelas pessoas que nunca se levantam antes das oito.
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- E sou, desde que tenha tido oportunidade de me deitar. O que não foi o caso ontem à noite.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não ouviste as notícias? - estranhou Mikael, e fez-lhe um resumo dos acontecimentos da noite anterior.
- Isso é horrível! Como é que estás a aguentar-te?
- Obrigado por perguntares. Já estive melhor. Mas estou a telefonar porque tu és accionista da Millennium e tens o direito de ser informada. Suponho que, não tarda, algum jornalista vai descobrir que fui eu que encontrei o Dag e a Mia, e isso vai dar azo a algumas especulações. E quando se souber que o Dag estava a trabalhar num caso explosivo para a Millennium, vai haver perguntas.
- E tu achas que é melhor eu estar preparada. Então, o que é que devo dizer?
- Diz a verdade. Foste informada do que aconteceu. Estás chocada com os crimes, mas não participas no trabalho editorial, de modo que não podes comentar quaisquer especulações. Compete à polícia investigar os assassínios, não à Millennium.
- Obrigada pelo aviso. Há alguma coisa que possa fazer?
- De momento, não. Mas se me ocorrer qualquer coisa, logo te
digo.
- Obrigada. E, por favor... mantém-me ao corrente.
CAPÍTULO 13
QUINTA-FEIRA SANTA, 24 DE MARÇO
A RESPONSABILIDADE DE chefiar o inquérito preliminar ao duplo assassínio de Enskede aterrou oficialmente na secretária do procurador público Richard Ekstrõm às sete da manhã de Quinta-feira Santa. O procurador de turno na noite anterior, um jurista ainda jovem e relativamente inexperiente, tivera a noção de que os crimes de Enskede podiam transformar-se numa bomba mediática. Telefonara de imediato ao procurador distrital adjunto, que, por sua vez, acordara o director distrital da Judiciária. Em conjunto, tinham passado a bola a um procurador diligente e com largos anos de experiência: Richard Ekstrõm.
Ekstrõm era um homem magro, robusto, com um metro e sessenta e sete de altura, cabelos loiros muito finos e uma barbicha. Tinha 42 anos, andava sempre impecavelmente vestido e calçava sapatos com uns tacões ligeiramente mais altos do que o normal. Começara a sua carreira como procurador adjunto em Uppsala, até ter sido recrutado como investigador pelo Ministério da Justiça, onde o seu trabalho consistira em adequar a lei sueca às normas da UE. E tão bem o desempenhara que, passado pouco tempo, fora nomeado chefe de divisão. Chamara a atenção das chefias com um relatório sobre as deficiências organizacionais do sistema de segurança legal, em que defendia uma maior eficácia em vez do aumento de recursos que certas autoridades policiais exigiam. Ao fim de quatro anos no Ministério da Justiça passara para o Ministério Público de Estocolmo, onde estivera ligado a vários casos de roubos espectaculares e crimes violentos.
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No seio da administração, era tido como social-democrata, mas, na realidade, não se interessava minimamente por política partidária. Quando começara a atrair as atenções dos media, certas pessoas altamente colocadas tinham passado a andar de olho nele. Viam-no, definitivamente, como um candidato a voos mais altos e, graças à sua presumida filiação partidária, tinha uma vasta rede de contactos nos círculos policiais e políticos. Entre a força policial, e no respeitante às suas capacidades, as opiniões dividiam-se. Desagradava, por exemplo, àqueles que consideravam ser a contratação de mais polícias a melhor maneira de promover a lei e a ordem. Em contrapartida, era respeitado pelo facto de não ter medo de sujar as mãos quando levava um caso a tribunal.
Depois de ouvir a exposição sobre os acontecimentos em Enske-de feita pelos agentes da Judiciária, concluíra de imediato que aquele caso ia criar agitação nos media. As vítimas eram uma investigadora criminologista à beira de obter o doutoramento e um jornalista - profissão que detestava ou acarinhava, conforme as circunstâncias.
Tivera uma rápida conferência telefónica com o director distrital da Judiciária. Às sete e um quarto pegara no telefone e ligara para o inspector Jan Bublanski, conhecido entre os colegas como Inspector Bolha. Bublanski estava de folga na semana da Páscoa, graças à montanha de horas extraordinárias que acumulara ao longo do ano, mas foi-lhe pedido que interrompesse o seu descanso e se apresentasse o mais rapidamente possível nas instalações da Judiciária para encabeçar a investigação do duplo crime de Enskede.
Bublanski tinha 52 anos e estava na polícia desde os 23- Passara seis anos nos carros-patrulha e estivera nas divisões de combate ao tráfico de armas e assaltos antes de, tendo feito um curso de formação acelerada, ser promovido à Divisão de Crimes Violentos da Secção Distrital da Polícia Judiciária. Participara, nos últimos dez anos, na investigação de 33 casos de assassínio ou homicídio. Chefiara 17 dessas investigações, das quais 14 tinham sido levadas a bom termo e duas declaradas encerradas, o que significava que a polícia sabia quem era o assassino mas não tinha provas suficientes para levá-lo a tribunal. No caso restante, já com cerca de seis anos, Bublanski e os colegas
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tinham falhado. Tivera que ver com um alcoólico e desordeiro notório que fora morto à facada na sua residência em Bergshamara. O local do crime era um pesadelo de impressões digitais e vestígios de ADN deixados ao longo dos anos pelas dúzias de pessoas que se tinham embebedado ou tinham sido espancadas no apartamento. Bublanski e os colegas estavam convencidos de que o assassino fazia parte do prodigioso número de bêbedos e drogados que constituíam o círculo de amigos do morto, mas, apesar de todos os esforços, o autor da proeza nunca fora descoberto. O caso acabara por ser arquivado.
As estatísticas em termos de casos resolvidos por Bublanski eram excelentes, e era respeitado e estimado pelos colegas, isto sem prejuízo de o considerarem um pouco estranho, sem dúvida devido ao facto de ser judeu. Em certos feriados importantes fora visto a usar um solidéu nos corredores da Judiciária. A circunstância levara um comissário da polícia - entretanto reformado - a comentar que era impróprio um inspector da Judiciária usar um solidéu dentro das instalações, tal como seria impróprio um agente usar um turbante em serviço. Não chegara, no entanto, a haver um verdadeiro debate sobre o assunto. Um jornalista ouvira o comentário e começara a fazer perguntas, altura em que o comissário batera rapidamente em retirada para o seu gabinete.
Bublanski pertencia à congregação do Sõder e comia comida vegetariana quando não conseguia encontrar comida kosher. Mas não era tão ortodoxo que recusasse trabalhar no Sabbat. Também ele reconheceu imediatamente que as mortes de Enskede não iam ser uma investigação de rotina. Ekstrõm chamou-o à parte mal o viu aparecer, às oito da manhã.
- Tem todo o ar de ser uma história miserável - disse, sem mais preâmbulos. - As vítimas eram um jornalista e a companheira, uma criminologista. Mas há mais. Foram encontradas por outro jornalista.
Bublanski assentiu. Era quanto bastava para garantir que o caso seria seguido muito de perto pelos media.
- E para acrescentar uma pitada de sal à ferida, o jornalista que os encontrou é o Míkael Blomkvist, da revista Millennium.
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- Ups!
- Famoso pelo circo que rodeou o caso Wennerstrõm. - O que é que sabemos sobre o motivo?
- Até ao momento, nada. Nenhuma das vítimas era nossa conhecida. Ao que tudo indica, era gente decente. A mulher ia doutorar-se daqui a semanas. Este caso tem prioridade máxima.
Para Bublanski, o assassínio tinha sempre prioridade máxima.
- Vamos reunir uma equipa. Vais ter de trabalhar depressa, e eu certificar-me-ei de que tens todos os meios de que precisas. Ficas com o Faste e o Andersson. E o Holmberg. Estava a trabalhar no caso Rin-keby, mas parece que o assassino conseguiu fugir do país. Poderás também recorrer, para tudo o que for necessário, à Judiciária Nacional.
- Quero a Sonja Modig.
- Não será demasiado nova?
Bublanski arqueou as sobrancelhas, surpreendido.
- Demasiado nova? Tem trinta e nove anos, quase a tua idade. Além disso, é fina como um coral.
- Tudo bem, tu é que sabes quem queres na equipa. Mas fá-lo depressa. Os chefões já começam a resmungar.
Bublanski considerou aquilo um exagero. Àquela hora, os chefões ainda estavam a tomar o pequeno-almoço.
A investigação começou oficialmente com uma reunião pouco antes das nove. O inspector Bublanski juntou as suas tropas numa sala da sede distrital da Judiciária. Estudou o grupo. Não estava inteiramente satisfeito com a sua composição.
Sonja Modig era, de todos os membros do grupo, aquele em que mais confiava. Tinha 12 anos de experiência, quatro dos quais na Divisão de Crimes Violentos, onde estivera envolvida em várias das investigações que ele chefiara. Era meticulosa e metódica, mas Bublanski não tardara a descobrir nela a característica que considerava mais valiosa num investigador: a imaginação e a capacidade de fazer associações. Em pelo menos dois casos complexos, Modig descobrira ligações peculiares e inesperadas que tinham escapado a todos os
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outros, e que tinham levado à descoberta dos criminosos. E era, além disso, senhora de um humor refinado, intelectual, que ele apreciava. Estava contente por poder contar com Jerker Holmberg. Holmberg tinha 55 anos e era de Ângermanland. Atarracado e sério, não tinha nada da imaginação que tornava Sonja Modig tão preciosa, mas era, na opinião de Bublanski, talvez o melhor investigador de local do crime de toda a força policial sueca. Tinham trabalhado juntos diversas vezes ao longo dos anos, e Bublanski estava convencido de que se houvesse no local do crime qualquer coisa que valesse a pena encontrar, Holmberg encontrá-la-ia. A sua tarefa imediata seria assumir a condução dos trabalhos no apartamento de Enskede.
Quanto a Curt Andersson, mal o conhecia. Era um sujeito taciturno e solidamente constituído, com uns cabelos loiros tão curtos que, à distância, parecia careca. Tinha 38 anos e viera muito recentemente de Huddinge, onde investigara as actividades criminosas dos bandos. Tinha fama de exaltado e duro, provavelmente um eufemismo pelo facto de poder usar métodos pouco ortodoxos. Dez anos antes fora acusado de brutalidade, mas um inquérito ilibara-o completamente.
O que se passara fora o seguinte: em Outubro de 1999, fora a Alby com um colega deitar a mão a um bandidozeco local. O sujeito era conhecido da polícia e havia anos que aterrorizava a vizinhança do prédio de apartamentos onde vivia. Graças a uma dica de um informador ia ser levado para um interrogatório relacionado com um assalto a uma loja de vídeos em Norsborg. Quando confrontado por Andersson e pelo colega, o cretino puxara de uma faca, em vez de acompanhá-los sossegadamente. O outro agente ficara com vários cortes nas mãos e sem um polegar antes de o sujeito voltar a sua atenção para Andersson, que, pela primeira vez em toda a sua carreira, fora obrigado a usar a arma de serviço. Disparara três tiros. O primeiro fora um tiro de aviso, o segundo fora deliberadamente apontado mas falhara o alvo - uma proeza difícil, uma vez que o homem se encontrava a menos de três metros de distância - e o terceiro acertara-lhe em cheio no peito, seccionando a aorta. O tipo esvaíra-se em sangue numa questão de minutos. O inevitável inquérito ilibara Andersson
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de qualquer responsabilidade, mas valera-lhe a reputação de extrema dureza.
Bublanski começara por ter dúvidas a respeito dele, mas, ao cabo de seis meses, nada encontrara que justificasse críticas ou desconfianças. Pelo contrário, começava a sentir algum respeito pela lacónica habilidade de Andersson.
O último membro da equipa, Hans Faste, tinha 47 anos, era um veterano com 15 anos na Divisão de Crimes Violentos e era também a razão da relativa insatisfação de Bublanski. Faste tinha um lado bom e um lado mau. O lado bom era a sua grande experiência na investigação de casos complicados. O lado mau era o facto de ser um egocêntrico com um tipo de humor desbocado capaz de mexer com os nervos de qualquer pessoa normal, e nomeadamente com os nervos do inspector Bublanski. Tinha atitudes que ele, Bublanski, achava intoleráveis, mas, desde que mantido com rédea curta, era um investigador competente. Além disso, tornara-se uma espécie de mentor de Andersson, que parecia não objectar aos seus modos espalhafatosos. Trabalhavam frequentemente juntos.
A inspectora Nyberg, da Divisão Criminal, fora convidada para a reunião para lhes dar uma ideia da conversa que tivera com o jornalista Mikael Blomkvist durante a noite. O comissário Mârtensson estava também presente para falar do que acontecera no local do crime. Estavam ambos exaustos e desejosos de ir para a cama, mas Nyberg levara consigo fotografias do apartamento, que fez circular pelos membros da equipa.
Meia hora mais tarde, tinham uma sequência bastante clara dos acontecimentos.
- Tendo presente que o exame pericial do local do crime está ainda em curso - começou Bublanski -, foi isto que pensamos que aconteceu: uma pessoa desconhecida entrou no apartamento em Ens-kede sem ser vista pelos vizinhos ou qualquer outra testemunha e matou a tiro Dag Svensson e Mia Johansson.
- Ainda não sabemos - acrescentou Nyberg - se a arma que encontrámos é a arma do crime, mas encontra-se neste momento no Laboratório Forense Nacional, onde lhe foi atribuída prioridade
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máxima. Encontrámos também um fragmento de bala... da que atingiu Dag Svensson... relativamente intacto, na parede do quarto. A que atingiu Mia Johansson está tão fragmentada que duvido que possa ser de grande ajuda.
- Obrigado pela informação. Um Colt Magnum é uma arma de cowboy que devia ser pura e simplesmente proibida. Temos um número de série?
- Ainda não - respondeu Mârtensson. - Mandei a arma e os fragmentos de bala para o LFN, por estafeta, directamente do local do crime. Achei melhor serem eles a tratar do assunto.
- Óptimo. Ainda não tive tempo de ir ao local do crime, mas vocês os dois estiveram lá. Quais são as vossas conclusões?
Nyberg deixou o colega mais velho falar pelos dois.
- Em primeiro lugar, estamos convencidos de que houve apenas um atirador. Em segundo lugar, foi uma execução pura e simples. Fiquei com a impressão de que alguém tinha excelentes razões para matar Dag Svensson e Mia Johansson, e fez o trabalho com toda a limpeza.
- Em que baseia essa conclusão? - perguntou Faste.
- O apartamento estava perfeitamente limpo e arrumado. Não apresentava quaisquer das marcas características de um assalto, ou coisa parecida. Foram disparadas apenas duas balas, e ambas atingiram os alvos na cabeça. Trata-se, obviamente, de alguém que sabe lidar com armas.
- Para mim faz sentido.
- Se olharmos para o plano do apartamento... por aquilo que pudemos reconstituir, diria que o homem, o Svensson, foi atingido a curta distância... possivelmente à queima-roupa. Havia marcas de queimaduras à volta do orifício de entrada. Assumimos que foi o primeiro a ser morto. O impacte atirou-o contra a mesa de jantar. O atirador podia estar no vestíbulo, ou logo à entrada da sala. Mia Johansson foi abatida de muito mais longe. Estava provavelmente à porta do quarto e tentou voltar-se para fugir. A bala atingiu-a por baixo da orelha esquerda e saiu acima do olho direito. O impacte
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atirou-a para dentro do quarto, onde foi encontrada. Chocou com os pés da cama e escorregou para o chão.
- Um único tiro disparado por alguém habituado a lidar com
armas - disse Faste.
- Mais do que isso. Não há pegadas que indiquem que o assassino entrou no quarto para verificar se estava morta. Sabia que tinha atingido o alvo e saiu do apartamento. Portanto, dois tiros, dois mortos, e fora. Vamos ter de esperar pelo exame pericial, mas aposto que usou munições de caça. A morte há-de ter sido instantânea. Ambas as vítimas apresentavam ferimentos graves.
A equipa ponderou este resumo em silêncio. Todos os presentes sabiam do que estava Mârtensson a falar quando dizia que deviam ter sido usadas munições de caça. Há dois tipos de munições: as balas duras, com revestimento metálico - geralmente cobre ou aço -, que atravessam o corpo causando estragos comparativamente modestos,
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e as chamadas balas macias, ou de ponta oca, que se expandem ao penetrar no corpo, provocando danos terríveis. Há uma enorme diferença entre atingir uma pessoa com uma bala de nove milímetros de diâmetro ou uma bala que se expande até dois centímetros ou mais de diâmetro. A este segundo tipo também se chama munição de caça, e o seu objectivo é causar uma hemorragia maciça. É considerada mais humana quando usada na caça ao alce, uma vez que o que se pretende é abater o animal o mais rapidamente e com o menor sofrimento possível. O seu uso em situações de combate é proibido pela lei internacional, porque um soldado atingido por um destes projécteis morrerá sempre, independentemente do ponto de entrada.
Na sua sabedoria, a polícia sueca introduzira as balas de ponta oca no seu arsenal dois anos antes. Exactamente porquê, ninguém parecia saber. O que se sabia, e era evidente, era que se, por exemplo, Hannes Westberg, ferido no estômago durante as manifestações de 2001 em Gotemburgo, tivesse sido atingido por um desses projécteis, não teria sobrevivido.
- Portanto, a intenção era indiscutivelmente matar - disse Andersson.
Estava a falar dos assassínios de Enskede, mas estava também a dar a sua opinião no silencioso debate que decorria à volta da mesa. Nyberg e Mârtensson concordaram.
- E depois, temos a questão do tempo - disse Bublanski.
- Exacto. Imediatamente depois de ter disparado os tiros mortais, o assassino sai do apartamento, desce as escadas, larga a arma e desaparece na noite. Pouco depois... tem de ter sido uma questão de segundos... o Blomkvist e a irmã chegam e estacionam em frente da porta. Uma possibilidade é o assassino ter saído pela cave. Há uma porta lateral que podia usar; dá para o pátio das traseiras e daí, atravessado um relvado, para uma rua paralela. Mas teria de ter a chave da porta da cave.
- Há algum sinal de o assassino ter saído por esse lado? -Não.
- O que quer dizer que não temos a mais pequena pista a que nos agarrar - disse Sonja Modig. - Mas porque terá ele deixado a arma?
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Se a tivesse levado... ou se a tivesse atirado fora longe do prédio... teríamos demorado muito mais tempo a encontrá-la. Era uma pergunta a que ninguém sabia responder.
- Que devemos pensar do Blomkvist? - perguntou Faste.
- Estava em choque, disso não tenho a mais pequena dúvida -respondeu Mârtensson. - Mas teve um comportamento calmo e coerente. Pareceu-me perfeitamente racional e não vi motivos para suspeitar dele. A irmã, que é advogada, confirmou o telefonema e a viagem de carro até ao local. Não acredito que esteja envolvido.
- É uma celebridade - observou Modig.
- O que quer dizer que isto vai transformar-se num circo mediático - rematou Bublanski. - Mais uma razão para resolvermos o assunto o mais depressa que pudermos. Okay... Jerker, tu tratas do local do crime, claro, e dos vizinhos. Faste, tu e o Curt investigam as vítimas. Quem eram, em que estavam a trabalhar, quem eram os amigos, quem podia ter um motivo para os matar. Sonja, nós os dois passamos a pente-fino os depoimentos das testemunhas. Depois disso, vais fazer um apanhado, minuto a minuto, de tudo o que o Svensson e a mulher fizeram ontem durante o dia, até serem mortos. Encontramo-nos aqui às duas e meia.
Mikael Blomkvist começou o seu dia de trabalho sentado à secretária de Svensson. Ficou em silêncio e imóvel durante algum tempo, como se não lhe apetecesse nada fazer aquilo.
Dag Svensson tivera o seu próprio portátil e começara por trabalhar sobretudo em casa. Geralmente, passava apenas dois dias por semana na redacção; mais nas últimas semanas. Na Millennium, usara o velho PowerMac G3, um computador que estava na secretária que lhe fora atribuída e podia ser utilizado por qualquer membro do pessoal. Mikael ligou-o e encontrou grande parte do material em que Dag estivera a trabalhar. Costumava usar o G3 principalmente para pesquisar na Net, mas também copiara para lá algumas pastas do portátil. Tinha, além disso, um back-up completo em dois discos que conservava fechados à chave na gaveta da secretária. Como regra,
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actualizava o back-up todos os dias, mas como não fora à redacção nos dias anteriores, a última cópia era de domingo à noite. Faltavam três. Mikael fez uma cópia ZIP do disco e guardou-a no cofre do seu gabinete. Em seguida, passou 45 minutos a examinar o conteúdo do disco original. Continha cerca de 30 pastas e um número enorme de ficheiros. Quatro anos de pesquisa sobre o tráfico de mulheres. Leu os nomes dos documentos, à procura dos que pudessem conter o material mais sensível - os nomes das fontes que Dag estivera a proteger. Dag fora claramente muito cuidadoso com as suas fontes - todo o material relacionado com elas estava numa pasta chamada [FONTES_CONFIDENCIAL]. A pasta continha 134 documentos, a maior parte deles muito pequenos. Mikael seleccionou-os todos e apagou-os. Em seguida, arrastou-os para um ícone do programa Burn, que não se limitava a eliminar os documentos: destruía-os byte a byte.
Feito isto, atacou o e-mail de Dag. Tinha-lhe sido dado um endereço próprio na Millennium, que ele usava tanto na redacção como no seu portátil. Tinha umapassword, claro, mas isso não constituía problema, uma vez que Mikael tinha direitos de administrador e podia aceder a todas as contas. Descarregou uma cópia do e-mail de Dag e gravou-a em CD.
Finalmente, passou para a montanha de papel formada pelo material de referência, notas, recortes de imprensa, cópias de sentenças judiciais e toda a correspondência que Dag acumulara. Jogou pelo seguro e fez cópias de tudo o que lhe pareceu importante. Eram duas mil páginas, e demorou-lhe três horas.
Pôs de lado todo o material que pudesse de um ou de outro modo estar relacionado com uma fonte confidencial. Ficou com um monte de 40 páginas, sobretudo notas de dois blocos A4 que Dag tinha fechado à chave na gaveta. Enfiou este material num sobrescrito e levou-o para o seu gabinete. Depois disto, transferiu para a sua secretária todo o restante material que fizera parte do projecto de Dag.
Quando acabou, inspirou fundo e foi ao 7-Eleven, onde bebeu um café e comeu uma fatia de pizza. Assumia, erradamente, que a polícia ia chegar de um momento para o outro para passar em revista a secretária de Dag Svensson.
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A investigação deu um inesperado salto em frente quando, pouco depois das dez, Bublanski recebeu um telefonema de Lennart Granlund, do Laboratório Forense Nacional, em Linkõping.
- É sobre os crimes de Enskede.
- Tão depressa?
- Recebemos a arma hoje de manhã, e ainda não acabei a análise, mas tenho algumas informações que talvez lhe interessem.
- Óptimo. Diga-me o que descobriu.
- A arma é um Colt .45 Magnum, fabricado nos Estados Unidos em 1981. Temos impressões digitais e possível ADN... mas a análise ainda vai demorar algum tempo. Também examinámos as balas com que o casal foi morto. Parecem ter sido disparadas pela arma, o que não será grande surpresa. É o que geralmente acontece quando se encontra uma arma caída nas escadas, no local do crime. Estão muito fragmentadas, mas temos um pedaço que podemos usar para comparação. É extremamente provável que tenha sido esta a arma do crime.
- Uma arma ilegal, suponho. Tem um número de série?
- A arma é o mais legal possível. Pertence a um advogado, Nils Erik Bjurman, e foi comprada em 1983- Bjurman é membro do clube de tiro da polícia. Mora na Upplandsgatan, perto de Odenplan.
- Que raio me está a dizer?
- Também encontrámos, como lhe disse, várias impressões digitais. De pelo menos duas pessoas. É de prever que um dos conjuntos pertença a Bjurman, uma vez que a arma não foi dada como roubada nem vendida... mas quanto a isso não tenho informações.
- Ah. Por outras palavras, temos uma pista.
- As digitais do segundo conjunto... um polegar direito e um indicador... constam dos registos e temos uma identificação.
- Quem é?
- Uma mulher nascida a 30 de Abril de 1978. Presa por agressão física no metro, em Gamla Stan, em 1995. Foi nessa altura que lhe tiraram as impressões digitais.
- E tem um nome?
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- Sim. Chama-se Lisbeth Salander.
Bublanski, também conhecido como Bolha, arqueou as sobrancelhas e anotou o nome e a data de nascimento no seu bloco de notas.
Quando voltou à redacção depois do café e da fatia de pizza, Mikael Blomkvist foi directamente para o seu gabinete e fechou a porta, dando claramente a entender que não queria ser incomodado. Ainda não tivera tempo para lidar com o monte de informação acessória ligada aos e-mails e às notas de Dag. Ia ter de sentar-se e reler o livro e os artigos de ponta a ponta, com outros olhos, tendo presente que o autor estava morto e não poderia responder às perguntas difíceis que talvez fosse preciso fazer.
Tinha de tomar uma decisão quanto à publicação do livro, e tinha de tentar perceber se havia no material de que dispunha qualquer coisa que sugerisse um motivo para os crimes. Ligou o computador e começou a trabalhar.
Jan Bublanski telefonou a Ekstrõm e pô-lo ao corrente das descobertas do LFN. Ficou decidido que ele e Sonja Modig fariam uma visita ao advogado Nils Bjurman. Poderia ser para uma conversa, um interrogatório ou até uma detenção. Faste e Andersson procurariam Lisbeth Salander e pedir-lhe-iam que explicasse como tinham as suas impressões digitais ido parar à arma do crime.
A visita a Bjurman não apresentava, em princípio, qualquer dificuldade. A morada constava de uma série de bases de dados oficiais: finanças, polícia - por causa da arma - e Direcção de Viação e Trânsito, entre outras, incluindo a lista telefónica. Bublanski e Sonja Modig dirigiram-se a Odenplan e conseguiram entrar no prédio na Upplandsgatan aproveitando o facto de um jovem vir a sair no preciso instante em que chegavam.
Tocaram à campainha do apartamento, mas ninguém respondeu. Foram até ao escritório de Bjurman em Sankt Eriksplan, com o mesmo resultado.
- Talvez esteja no tribunal - sugeriu Modig.
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- Talvez esteja num avião a caminho do Brasil depois de ter matado duas pessoas em Enskede - respondeu Bublanski.
Modig assentiu e mirou o colega pelo canto do olho. Gostava da companhia dele. Não teria nada a opor a um flerte, não se desse o caso de ser mãe de dois filhos e terem ambos casamentos felizes. Examinaram as placas de latão nas outras portas do patamar e descobriram que os vizinhos mais próximos eram um dentista, o Dr. Norman, uma empresa chamada N-Consulting e um tal Rune Hâkansson, advogado.
Começaram pelo advogado.
- Bom dia. Chamo-me Sonja Modig e o meu companheiro é o inspector Jan Bublanski. Somos da polícia e temos assuntos a tratar com Nils Erik Bjurman, o seu colega da porta ao lado. Sabe onde poderemos encontrá-lo?
Hâkansson abanou a cabeça.
- Quase não o tenho visto, ultimamente. Esteve muito doente, há coisa de dois anos, e, desde então, pode-se dizer que encerrou o escritório. A chapa continua na porta, mas só cá aparece de dois em dois meses, ou coisa assim.
- Esteve muito doente, diz? - perguntou Bublanski.
- Não sei exactamente com quê. Trabalhava imenso, e, de repente, adoeceu. Cancro, supus eu. Mal o conhecia.
- Sabe que tinha cancro, ou pensa que tinha cancro? - insistiu
Modig.
- Bem... Não, não tenho a certeza. Tinha uma secretária, Britt Karlsson, ou Nilsson, uma coisa assim. Uma senhora já de idade. Dispensou-a, e foi ela que me disse que tinha adoecido. Foi na Primavera de 2003. Só voltei a vê-lo em Dezembro desse ano. Parecia dez anos mais velho, magro, de cabelos grisalhos... Tirei as minhas conclusões.
Voltaram ao apartamento. Ninguém. Bublanski pegou no telemóvel e ligou para o número de telemóvel de Bjurman. Uma mensagem informou-o de que "o assinante para que ligou não pode ser contactado neste momento. Por favor, volte a tentar mais tarde".
Tentou o número do apartamento. Ouviram o débil toque do telefone do outro lado da porta antes de o atendedor automático fazer clique e pedir a quem ligava que deixasse mensagem.
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Era uma da tarde.
- Café?
- Preciso de um humburger.
No Burger King, em Odenplan, Modig comeu um Whooper e Bublanski um Veggie Burger, e depois regressaram os dois à sede da Judiciária.
O procurador Richard Ekstrõm convocou uma reunião no seu gabinete para as duas da tarde. Bublanski e Modig sentaram-se lado a lado, de costas para a parede e perto da janela. Andersson chegou dois minutos mais tarde e sentou-se do outro lado da mesa, em frente deles. Holmberg apareceu com uma bandeja cheia de copos de papel com café. Fizera uma breve visita a Enskede e tencionava voltar lá ao fim da tarde, depois de a equipa pericial ter terminado o seu trabalho.
- Onde está o Faste? - perguntou Ekstrõm.
- Na Assistência Social. Telefonou há cinco minutos a avisar que ia chegar atrasado - respondeu Andersson.
- Vamos arrancar sem ele. O que é que temos? - começou Ekstrõm, sem mais preâmbulos. Apontou para Bublanski.
- Procurámos o Nils Bjurman, proprietário registado daquela que é provavelmente a arma do crime. Não estava em casa nem no escritório. Segundo um outro advogado, vizinho dele, adoeceu há dois anos e deixou mais ou menos de exercer.
- Bjurman tem cinquenta e seis anos e nenhum cadastro criminal - acrescentou Modig. - Dedica-se sobretudo ao direito empresarial. Não tive tempo para investigar o passado dele para além disto.
- Mas é o proprietário da arma que foi usada em Enskede.
- Exacto. A arma está registada e devidamente licenciada, e ele é membro do clube de tiro da polícia - confirmou Bublanski. - Falei com o Gunnarsson, das armas... é o presidente do clube e conhece bem o Bjurman. Fez-se sócio em 1978 e foi tesoureiro de 1984 a 1992. O Gunnarsson descreve-o como sendo um excelente atirador com pistola, muito calmo e controlado, nada dado a fantasias.
- Um maníaco das armas?
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- Segundo o Gunnarsson, estava mais interessado na vida do clube do que no tiro propriamente dito. Gostava de competir, mas não se destacava, pelo menos, como fanático por armas. Em 1983, participou no campeonato nacional e ficou em décimo terceiro lugar. Nos últimos dez anos, tem praticado menos e quase só aparece para as reuniões anuais, e coisas assim.
- Tem mais algumas armas?
- Desde que aderiu ao clube, teve licenças para quatro armas. Além do Colt, uma Beretta, uma Smith & Wesson e uma pistola de competição fabricada pela Rapid. Estas três últimas foram vendidas no clube, há dez anos, e as licenças transferidas para os novos proprietários. Nada de irregular, por esse lado.
- E não fazemos a mínima ideia de onde ele possa estar.
- Exacto. Mas só começámos a procurá-lo hoje, às dez da manhã. Pode andar a passear no Djurgârden, ou ter voltado ao hospital.
Nesse instante, a porta abriu-se e Faste irrompeu na sala. Parecia ofegante.
- Peço desculpa pelo atraso. Posso interromper? Ekstrõm fez-lhe sinal para que continuasse.
- Esta Lisbeth Salander é uma personagem muito interessante. Passei a manhã na Assistência Social e na Agência de Tutoria. - Despiu o casaco de couro e pendurou-o nas costas da cadeira antes de se sentar e pegar no bloco de notas.
- Na Agência de Tutoria? - perguntou Ekstrõm, de testa franzida.
- É uma miúda muito perturbada - continuou Faste. - Foi declarada interdita e confiada sob tutela. Adivinhem quem é o tutor. -Fez uma pausa dramática. - O doutor Nils Bjurman, proprietário da arma usada em Enskede.
A notícia teve sem dúvida o efeito que Faste esperava. Demorou 15 minutos a pôr o grupo ao corrente de tudo o que descobrira a respeito de Lisbeth Salander.
- Resumindo - disse Ekstrõm, depois de Faste ter terminado -, temos, na provável arma do crime, as impressões digitais de uma mulher que passou metade da adolescência em instituições psiquiátricas;
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que se supõe ter ganhado a vida como prostituta; que foi declarada legalmente interdita e que tem tendências comprovadamente violentas. É caso para perguntar, que raio anda ela a fazer à solta.
- Revela tendência para a violência desde a escola primária - esclareceu Faste. - Parece ser uma verdadeira psicopata.
- Mas, até ao momento, não temos nada que a relacione com o casal de Enskede. - Ekstrõm tamborilou com os dedos no tampo da mesa. - Talvez este duplo assassínio não seja assim tão difícil de esclarecer, ao fim e ao cabo. Temos uma morada para essa Salander?
- Na Lundagatan, em Sõdermalm. Segundo as Finanças, trabalhou intermitentemente na Milton Security.
- E que raio de trabalho fazia ela numa empresa de segurança?
- Não sei. Estamos a falar de rendimentos bastante modestos, durante vários anos. Talvez fosse empregada da limpeza, ou algo parecido.
- Hum - fez Ekstrõm. - Não tardaremos a sabê-lo. Mas, para já, temos de encontrá-la.
- Concordo - disse Bublanski. - Deixamos os pormenores para mais tarde. Temos então um suspeito. Hans, e tu, Curt, vão à Lundagatan e tragam a fulana. Tenham cuidado... não sabemos se tem outras armas, e não sabemos até que ponto é verdadeiramente perigosa.
- Entendido.
- Bolha - interrompeu-o Ekstrõm. - O director da Milton Security chama-se Dragan Armanskij. Conheci-o durante um caso, há já alguns anos. É de confiança. Vai visitá-lo e conversa um pouco com ele, em privado, a respeito desta Salander. É melhor ires antes que ele saia.
Bublanski ficou visivelmente aborrecido, em parte por Ekstrõm o ter tratado pela alcunha, em parte por ter formulado o pedido como uma ordem. Assentiu secamente com a cabeça e olhou para Sonja Modig.
- Sonja, continuas a procurar o Bjurman. Bate a todas as portas da vizinhança. Penso que é importante encontrá-lo.
- Okay.
- Temos de encontrar uma ligação entre essa Salander e o casal de Enskede. E temos de situá-la em Enskede na altura dos crimes.
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Jerker, arranja fotografias dela e mostra-as aos vizinhos. Operação porta-a-porta esta noite. Leva alguns agentes uniformizados para te ajudarem.
Bublanski fez uma pausa e coçou a cabeça.
- Raios me partam, com um pouco de sorte, podemos ter o problema resolvido e embrulhado esta noite... E eu a pensar que ia ser uma das tais investigações.
- Mais uma coisa - interveio Ekstrõm. - Os media estão, como seria de esperar, a pressionar-nos. Prometi-lhes uma conferência de imprensa para as três. Posso tratar disso, desde que tenha alguém do gabinete de imprensa a ajudar-me. Calculo que alguns jornalistas vão tentar falar directamente com vocês. Até nova ordem, não dizemos uma palavra sobre a Lisbeth Salander ou o Bjurman.
Dragan Armanskij decidira ir para casa mais cedo. Era Quinta-feira Santa, e ele e a mulher estavam a pensar passar o fim-de-semana da Páscoa na casa de Verão que tinham em Blidõ. Acabava de fechar a pasta e de vestir o casaco quando a recepcionista lhe ligou a comunicar que o inspector Jan Bublanski, da Judiciária, desejava falar-lhe. Armanskij não conhecia Bublanski, mas o facto de um inspector da Judiciária querer falar com ele foi o suficiente para fazê-lo voltar a pendurar o casaco no cabide. Não lhe apetecia falar fosse com quem fosse, mas a Milton Security não podia dar-se ao luxo de ignorar a polícia. Foi receber Bublanski no corredor, junto ao elevador.
- Obrigado por me dispensar um pouco do seu tempo - disse Bublanski. - O meu chefe, o procurador Ekstrõm, manda-lhe cumprimentos.
Trocaram um aperto de mão.
- Ekstrõm... sim, encontrámo-nos um par de vezes. Há já alguns anos. Um café?
Armanskij fez uma paragem na máquina de café e premiu o botão para tirar dois espressos antes de guiar Bublanski até ao seu gabinete e oferecer-lhe um dos confortáveis cadeirões junto à janela.
- Armanskij... é um nome russo? - perguntou Bublanski, por curiosidade. - O meu também acaba em ski.
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- A minha família é originária da Arménia. E a sua?
- Da Polónia.
- Em que posso ser-lhe útil? Bublanski tirou o bloco de notas do bolso.
- Estou a investigar os crimes de Enskede. Parto do princípio que ouviu as notícias?
Armanskij fez um curto aceno de cabeça.
- O Ekstrõm deu-me a entender que é uma pessoa discreta.
- Na minha posição, tenho interesse em colaborar com a polícia. Sou capaz de guardar um segredo, se é isso que quer saber.
- Óptimo. Procuramos uma pessoa que, a dada altura, trabalhou para a sua empresa. Lisbeth Salander. Conhece-a?
Armanskij sentiu uma bola de cimento formar-se-lhe no estômago. A sua expressão não se alterou.
- Posso saber porque é que procuram Frõken Salander?
- Digamos que a consideramos alguém com interesse para a actual investigação.
A bola de cimento no estômago de Armanskij cresceu. Provocava-lhe uma dor quase física. Desde o dia em que conhecera Lisbeth Salander, sempre tivera o pressentimento de que a vida dela se encaminhava para uma catástrofe. Mas sempre a imaginara como vítima, não como agressora. Continuou a não revelar qualquer emoção.
- Lisbeth Salander é então suspeita de ter cometido os crimes de Enskede. Entendi bem as suas palavras?
Bublanski hesitou um instante, e então assentiu.
- Que pode dizer-me a respeito dela?
- O que é que quer saber?
- Antes de mais nada, onde podemos encontrá-la?
- Vive na Lundagatan. Vou ter de procurar a morada exacta. Tenho um número de telemóvel.
- Temos a morada. O número de telemóvel seria útil. Armanskij dirigiu-se à secretária e leu o número em voz alta.
Bublanski tomou nota.
- Trabalha para si?
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- Tem o seu próprio negócio. Confiei-lhe alguns trabalhos em regime defreelance, de 1998 até há cerca de um ano e meio.
- Que género de trabalho fazia ela?
- Investigação.
Bublanski ergueu os olhos do bloco de notas.
- Investigação? - repetiu.
- Investigações pessoais, para ser mais exacto.
- Um momento, um momento... Estamos a falar da mesma rapariga? A Lisbeth Salander que procuramos não acabou o secundário e foi oficialmente declarada incapaz de gerir os seus assuntos.
- Hoje em dia já não se diz "declarada incapaz" - disse Armans-kij, calmamente.
- Quero lá saber de como hoje se diz. A rapariga que procuramos é tida como uma pessoa profundamente perturbada e com propensão para a violência. Além disso, temos um relatório da Assistência Social que dá a entender que, em finais dos anos noventa, se dedicava à prostituição. Não há nada nos registos que indique que era capaz de qualquer espécie de trabalho qualificado.
- Os registos são uma coisa. As pessoas, outra completamente diferente.
- Está a dizer-me que ela tinha qualificações para fazer investigação pessoal para a Milton Security?
- Não apenas isso. Lisbeth Salander foi, de longe, a melhor investigadora que alguma vez tive.
Bublanski pousou a caneta e franziu a testa.
- Parece falar dela... com respeito.
Armanskij baixou os olhos para as mãos. A pergunta marcava uma bifurcação na estrada. Sempre receara que, mais cedo ou mais tarde, Lisbeth acabasse metida em sarilhos, mas não conseguia imaginá-la envolvida no duplo assassínio em Enskede - no papel de assassina ou outro qualquer. Mas que sabia ele a respeito da vida privada de Lisbeth Salander? Recordou a recente visita dela ao escritório, em que afirmara misteriosamente ter dinheiro suficiente para se governar e não precisar de emprego.
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O mais sensato, o mais razoável naquele momento, seria distanciar-se de tudo o que tivesse a ver com Lisbeth Salander, pessoalmente, sem dúvida, mas sobretudo como representante da Milton Security. De todos os modos, pensou, Lisbeth era provavelmente a pessoa mais solitária que conhecia.
- Respeito e competência. São atitudes que não se encontram em registos escolares nem em processos individuais.
- Conhece, portanto, o passado dela.
- Que está sob tutela e que teve uma infância muito complicada? Sim.
- E, mesmo assim, confia nela.
- É precisamente a razão por que confio nela.
- Importa-se de explicar?
- O primeiro curador dela, Holger Palmgren, era advogado do velho Milton. Pegou no caso quando ela era adolescente, e convenceu-me a dar-lhe emprego. Ao princípio, encarreguei-a de separar o correio e fazer fotocópias, coisas assim. Mas acabei por descobrir que tinha talentos incríveis. E pode esquecer qualquer relatório que diga que ela foi prostituta. É puro disparate. A Lisbeth passou por um período difícil na adolescência, e era indiscutivelmente um pouco rebelde... mas isso não é o mesmo que infringir a lei. A prostituição é provavelmente a última coisa no mundo a que ela recorreria.
- O actual tutor é um advogado chamado Nils Bjurman.
- Não o conheço pessoalmente. O Palmgren sofreu um AVC aqui há dois anos. A Lisbeth deixou de trabalhar para mim pouco depois. O último trabalho que ela fez foi em Outubro, há um ano e meio.
- Porque foi que deixou de lhe dar trabalho?
- Não fui eu que deixei de lhe dar trabalho. Foi ela que interrompeu o contacto e desapareceu. Foi para o estrangeiro. Sem uma palavra de explicação.
- Foi para o estrangeiro?
- Andou quase um ano por fora.
- Isso não pode ser verdade. O Bjurman apresentou relatórios mensais sobre ela durante todo o ano passado. Temos cópias em Kungsholmen.
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Armanskij encolheu os ombros e sorriu.
- Quando foi a última vez que a viu?
- No início de Fevereiro. Apareceu de repente, para me fazer uma visita de cortesia. Tinha passado todo o ano anterior fora do país, a viajar pela Ásia e pelas Caraíbas.
- Peço desculpa, mas estou a ficar um pouco confuso. Estava convencido de que esta Lisbeth Salander era uma rapariga mentalmente doente que não acabou o secundário e se encontrava sob tutela. Agora, diz-me que era uma investigadora excepcional, que tinha o seu próprio negócio e que ganhou dinheiro suficiente para passar um ano a viajar à volta do mundo, tudo isto sem que o tutor dela desse o alarme. Há aqui qualquer coisa que não bate certo.
- Há muitas coisas que não batem certo, no que diz respeito a Frõken Salander.
- Posso perguntar... qual é a sua opinião geral a respeito dela? Armanskij pensou um pouco. Finalmente, disse:
- É uma das pessoas mais irritantes e inflexíveis que conheci em toda a minha vida.
- Inflexível?
- Não faz absolutamente nada que não queira fazer. Está-se totalmente nas tintas para o que as outras pessoas pensam dela. É extraordinariamente habilidosa. Nunca conheci ninguém como ela.
- É desequilibrada?
- Como é que define desequilibrada?
- É capaz de assassinar duas pessoas a sangue-frio? Armanskij ficou calado durante muito tempo.
- Lamento, não posso responder a essa pergunta. Sou um cínico. Acredito que todos nós somos capazes de matar. Em desespero, por ódio, ou, pelo menos, para nos defendermos.
- Não afasta a possibilidade, em todo o caso.
- Lisbeth Salander não faz nada sem ter uma boa razão. Se matou alguém, foi porque sentia que tinha uma boa razão para o fazer. Posso perguntar... porque suspeita a polícia do envolvimento dela naqueles assassínios?
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Bublanski hesitou um instante. Os olhos dele encontraram os de
Armanskij.
- Isto fica entre nós?
- Absolutamente.
- A arma do crime pertence a Nils Bjurman. E tem as impressões digitais dela.
Armanskij cerrou os dentes. Era uma forte prova circunstancial.
- Só soube dos assassínios pela rádio. Do que se tratou? Drogas?
- Ela anda metida em drogas?
- Que eu saiba, não. Mas, como disse, passou por um mau período na adolescência, foi presa várias vezes por embriaguez. Os registos hão-de dizer se havia ou não drogas envolvidas.
- Não temos um motivo para os assassínios. As vítimas eram um casal respeitável. Ela era criminologista, a poucas semanas de obter o doutoramento. Ele era jornalista. Mia Johansson e Dag Svensson. - Os nomes dizem-lhe alguma coisa?
Armanskij abanou a cabeça.
- Estamos a tentar encontrar uma ligação entre eles e Lisbeth Salander.
,.,," - Nunca ouvi falar deles. Bublanski pôs-se de pé.
- Obrigado pelo seu tempo. Foi uma conversa fascinante. Não sei se fiquei a saber muito mais do que já sabia, mas espero que o que foi dito possa ficar entre nós.
- Evidentemente.
- Voltarei a entrar em contacto, se necessário. E, claro, se Lisbeth Salander...
- Certamente - disse Armanskij.
Trocaram um aperto de mão. Bublanski já ia a caminho da porta quando se deteve.
- Não conhece, por acaso, alguém que se dê com a rapariga? Amigos, conhecidos...
Armanskij voltou a abanar a cabeça.
- Não sei nada da vida privada dela. Excepto que o antigo tutor era importante para ela. Holger Palmgren. Está num centro
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de reabilitação, em Ersta. É possível que a Lisbeth tenha entrado em contacto com ele, desde que voltou.
- Nunca teve visitas quando trabalhava aqui? Haveria registo do facto, suponho?
- Não. Trabalhava sobretudo em casa, e só cá vinha apresentar os relatórios. Com muito poucas excepções, nem chegava a conhecer os clientes. A não ser, talvez... - Um súbito pensamento irrompera no cérebro de Armanskij.
- O que foi?
- Há outra pessoa com quem ela talvez tenha entrado em contacto. Um jornalista que conheceu há um par de anos. Fartou-se de procurá-la enquanto ela esteve no estrangeiro.
- Um jornalista?
- Chama-se Mikael Blomkvist. Lembra-se do caso Wennerstrõm?
Bublanski voltou lentamente para trás.
- Foi o Blomkvist que encontrou o casal em Enskede. Acaba de estabelecer uma ligação entre Lisbeth Salander e as vítimas do crime.
Armanskij sentiu a bola de cimento pesar-lhe dolorosamente no estômago.
CAPÍTULO 14
QUINTA-FEIRA SANTA, 24 DE MARÇO
SONJA Modig tinha tentado ligar para o telemóvel de Nils Bjurman três vezes só naquela última meia hora. A resposta fora a mesma de sempre: o assinante que desejava contactar não estava disponível.
Às três e meia, meteu-se no carro, foi até à Upplandsgatan e premiu o botão da campainha do apartamento. Nada. Passou os 20 minutos seguintes a bater porta-a-porta, na esperança de encontrar alguém que soubesse do paradeiro de Bjurman.
Onze dos 19 apartamentos estavam desertos. Era, muito obviamente, a hora errada para andar a bater à porta das pessoas, e a coisa não ia melhorar ao longo do fim-de-semana da Páscoa. Nos oito apartamentos onde havia alguém, foram todos muito prestáveis. Cinco dos moradores conheciam Bjurman: um cavalheiro bem-educado, de boas maneiras, que vivia no quinto andar. Ninguém fazia a mínima ideia de onde pudesse estar. Talvez tivesse ido visitar um dos vizinhos com quem se dava mais, um homem de negócios chamado Sjõman. Mas também nessa porta ninguém atendeu.
Frustrada, Sonja Modig pegou uma vez mais no telemóvel e ligou novamente para o atendedor automático de Bjurman. Disse o seu nome, deixou um número de telefone e pediu que entrasse em contacto com ela logo que possível.
Voltou para junto da porta do apartamento e escreveu uma nota a pedir a Bjurman que a contactasse. Juntou um cartão-de-visita e enfiou os dois papéis pela fresta do correio. Quando ia a baixar a tampa, ouviu o telefone tocar no interior. Inclinou-se e escutou atentamente. A campainha tocou quatro vezes. Ouviu o clique do atendedor automático a arrancar, mas não conseguiu ouvir a mensagem.
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Baixou a tampa da fresta do correio e ficou a olhar para a porta. Exactamente que impulso a levou a estender a mão e a tocar no puxador da porta, não saberia dizer, mas, para sua grande surpresa, descobriu que a porta não estava fechada. Empurrou-a e espreitou para o vestíbulo.
- Olá! - chamou cautelosamente, e ficou à escuta. Nenhum som.
Avançou um passo, e então hesitou. Não tinha um mandado de busca e nenhum direito de estar ali, por muito aberta que a porta estivesse. Olhou para a esquerda e viu de relance a sala de estar. Tinha decidido sair do apartamento quando calhou olhar para a mesa do vestíbulo. Viu uma caixa com o desenho de um Colt Magnum na tampa.
Subitamente, foi invadida por uma forte sensação de mal-estar. Abriu o casaco e empunhou a arma de serviço, coisa que praticamente nunca tinha feito em toda a sua vida.
Baixou a patilha de segurança e apontou o cano para o chão enquanto entrava na sala e olhava em redor. Não viu nada de invulgar, mas a sua apreensão aumentava. Voltou para trás e espreitou para a cozinha. Vazia. Percorreu o corredor e empurrou a porta do quarto.
O corpo nu de Nils Bjurman estava atravessado em cima da cama. Tinha os joelhos no chão, como se tivesse estado ajoelhado a rezar as suas orações.
Mesmo da porta, Sonja Modig soube que estava morto. A bala que lhe entrara pela nuca tinha-lhe arrancado metade da testa.
Saiu do apartamento a recuar e fechou a porta. Ainda empunhava a arma de serviço quando levantou a tampa do telemóvel e ligou para o inspector Bublanski. Não conseguiu apanhá-lo. Ligou então para o procurador Ekstrõm. Tomou nota da hora. Eram quatro e dezoito.
Hans Faste olhou para a porta do prédio na Lundagatan. Olhou para Andersson, e depois para o relógio. Quatro e dez.
Depois de terem obtido do administrador do condomínio o código de acesso, tinham já estado no interior do edifício e escutado à porta assinalada com a chapa metálica que dizia "Salander-Wu". Não tinham ouvido qualquer ruído no interior e ninguém respondera à campainha. Por isso tinham voltado a sair e agora esperavam no carro estacionado de modo a poderem vigiar a porta.
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Um telefonema já lhes permitira saber que a pessoa cujo nome fora recentemente adicionado ao contrato do apartamento era Miriam Wu, nascida em 1974 e anteriormente residente em Sankt Eriksplan.
Tinham uma foto de passaporte de Lisbeth Salander presa com fita adesiva por cima do rádio do carro. Faste resmungou entre dentes que a gaja tinha ar de puta.
- A merda das putas estão a ficar cada vez piores. É preciso um tipo estar muito desesperado para engatar uma coisa destas.
Andersson ficou calado.
Às quatro e vinte, receberam um telefonema de Bublanski, que lhes disse que acabava de sair da Milton Security e ia a caminho da redacção da Millennium. Pedia-lhes para manterem a vigia na Lundagatan. Lisbeth Salander seria levada para interrogatório, mas era bom terem presente que o procurador não acreditava que ela pudesse estar ligada às mortes de Enskede.
- Muito bem - disse Faste. - Segundo o Bolha, o procurador quer uma confissão antes de prender seja quem for.
Andersson continuou calado. Ficaram a ver, cheios de tédio, as pessoas que passavam na rua.
As vinte para as cinco, Ekstrõm ligou para o telemóvel de Faste.
- Estão a acontecer muitas coisas. Encontrámos o Bjurman assassinado, em casa. Está morto há pelo menos vinte e quatro horas.
Faste endireitou-se no banco.
- Entendido. O que é que fazemos?
- Vou emitir um alerta em relação à Salander. É procurada como suspeita em três assassínios. Vai ser um alerta a nível nacional. Vamos ter de considerá-la perigosa e possivelmente armada.
- Entendido.
- Vou mandar uma brigada móvel para aí. Eles encarregam-se de controlar o apartamento.
- Entendido.
- Estiveram em contacto com o Bublanski?
- Está na Millennium.
- Parece que desligou o telefone. Tentem apanhá-lo e contem-lhe o que aconteceu.
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Faste e Andersson trocaram um olhar.
- A questão é, o que é que fazemos se ela aparecer? - disse Andersson.
- Se estiver sozinha e parecer tudo em ordem, apanhem-na. A rapariga é completamente louca e está obviamente disposta a matar. Pode haver mais armas no apartamento.
Mikael Blomkvist estava morto de cansaço quando pousou o monte de páginas do manuscrito em cima da secretária de Erika e se deixou cair no cadeirão junto à janela, com vista para a Gõtgatan. Tinha passado a tarde inteira a tentar decidir o que fazer com o livro inacabado de Dag Svensson.
O tema era sensível. Menos de um dia depois de Svensson ter morrido, já o seu editor ponderava o que fazer com o trabalho que ele deixara para trás. Para alguém de fora, a atitude poderia parecer cínica e insensível. Mas não era assim que Mikael a via. Sentia-se quase como se estivesse em estado de imponderabilidade. Uma síndrome que todos os jornalistas e directores de jornais conhecem bem, e que se manifesta nos piores momentos de crise.
É quando todas as outras pessoas se deixam abater pelo desgosto que o jornalista se torna mais eficiente. E apesar do choque atordoador que afectara todos os membros da equipa da Millennium presentes na manhã daquela Quinta-feira Santa, o profissionalismo viera ao de cima e fora rigorosamente canalizado para o trabalho.
Para Mikael Blomkvist, isto era evidente. Ele e Dag Svensson eram madeira da mesma árvore, e Dag teria feito o mesmo por ele se estivesse no seu lugar. Teria perguntado a si mesmo o que poderia fazer por Mikael. Dag deixara um legado na forma de um manuscrito com uma história explosiva. Trabalhara nela durante quatro anos; pusera a sua alma numa tarefa que nunca chegaria a completar.
E escolhera trabalhar na Millennium.
O assassínio de Dag Svensson e Mia Johansson não era um trauma nacional à escala do assassínio de Olof Palme, e a investigação não seria acompanhada a par e passo por uma nação enlutada. Mas para o pessoal da Millennium, o choque era talvez ainda maior - tinham
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sido pessoalmente afectados -, e Svensson tivera uma vasta rede de contactos nos media que ia exigir respostas para as suas perguntas.
Agora, competia-lhe a ele e a Erika acabar o livro de Dag e responder às perguntas: quem os tinha matado? E porquê?
- Posso reconstruir o texto - disse Mikael. - Eu e a Malin vamos rever os capítulos inacabados linha a linha e ver onde ainda é necessário um pouco mais de trabalho. No geral, tudo o que temos de fazer é seguir as notas do Dag, mas temos um problema nos capítulos quatro e cinco, que são largamente baseados nas entrevistas da Mia. O Dag não refere as fontes, mas penso que, com uma ou duas excepções, podemos usar as referências da tese como fonte principal.
- E o último capítulo?
- Tenho o esboço do Dag, e discutimo-lo tantas vezes que sei mais ou menos exactamente o que ele queria dizer. Proponho que peguemos no sumário e o usemos como posfácio, onde poderei também explicar o raciocínio.
- Tudo bem, mas quero aprová-lo. Não podemos estar a pôr palavras na boca dele.
- Não há perigo disso. Vou escrever o capítulo como uma reflexão pessoal e assiná-lo. Vou explicar como foi que ele pesquisou e escreveu o livro e dizer que espécie de pessoa era. Concluirei recapitulando o que me disse em pelo menos uma dúzia de conversas ao longo dos últimos meses. Há muito material no esboço dele que posso citar. Penso que vou conseguir fazer uma coisa digna.
- Quero, mais do que nunca, ver este livro publicado - disse Erika.
Mikael compreendia exactamente o que ela sentia.
Erika pousou os óculos de ler em cima da secretária e abanou a cabeça. Levantou-se, encheu duas chávenas de café e foi sentar-se em frente de Mikael.
- Eu e o Christer já temos o layout do número de substituição. Fomos buscar dois artigos que tínhamos marcado para o número a seguir e vamos encher os buracos com material freelance. Mas vai ser um pouco do género miscelânea, sem um verdadeiro foco.
Ficaram silenciosos por momentos.
- Ouviste as notícias? - perguntou Erika, por fim.
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- Não. Já sei o que vão dizer.
- É o prato forte de todas as estações de rádio. O segundo lugar vai para uma jogada política do Partido do Centro.
- O que significa que não aconteceu absolutamente mais nada
neste país.
- A polícia ainda não revelou nomes. O Dag e a Mia são descritos como "um casal respeitável". Nenhuma referência a quem os encontrou.
- Aposto que a polícia vai fazer tudo o que puder para manter essa parte debaixo do chapéu. O que tem a vantagem de jogar a nosso favor.
- Porque é que achas isso?
- Porque, por princípio, os detectives odeiam um circo mediático. Tenho um certo valor como objecto de informação, de modo que lhes convém que não se saiba que fui eu que os encontrei. Calculo que haja uma "fuga" esta noite, ou amanhã de manhã.
- Tão novo e já tão cínico.
-Já não somos novos, Ricky. Pensei nisso enquanto estava a ser interrogado, ontem à noite. A inspectora da polícia pareceu-me uma
miúda.
Erika esboçou um sorriso. Ainda dormira algumas horas, na noite anterior, mas a tensão começava a fazer-se sentir. No entanto, ia, muito em breve, tornar-se a directora editorial de um dos maiores jornais suecos. Não... não é o momento mais oportuno para dar a notícia ao Mikael.
- O Henry telefonou - disse. - O procurador que está a dirigir o inquérito preliminar, um tal Ekstrõm, deu uma espécie de conferência de imprensa, esta tarde.
- Richard Ekstrõm?
- Sim. Conhece-lo?
- Figura política. Circo mediático garantido. Esta história vai
ter montes de publicidade.
- Bem, disse que a polícia já está a seguir um certo número de pistas e espera resolver o caso em breve. Tirando isso, mais nada. Mas, aparentemente, a sala estava apinhada de jornalistas.
Mikael esfregou os olhos.
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- Não consigo tirar da cabeça a imagem do corpo da Mia. Raios, estava a começar a conhecê-los.
Erika abanou tristemente a cabeça.
- Um louco qualquer...
- Não sei. Passei o dia a pensar nisso.
- A pensar em quê?
- A Mia foi atingida de lado. Vi o orifício de entrada num lado do pescoço e o orifício de saída na testa, do lado oposto. O Dag foi atingido de frente. A bala entrou pela testa e saiu pela nuca. Parece terem sido os dois únicos tiros disparados. Não me cheira que tenha sido obra de um louco isolado.
Erika olhou pensativamente para ele.
- O que foi, então?
- Se não foi um assassínio aleatório, então tem de haver um motivo. E quanto mais penso nisso, mais me convenço de que este manuscrito constituiu o raio de um bom motivo. - Mikael apontou para o monte de papéis em cima da secretária de Erika. Ela seguiu a direcção do dedo. E então olharam um para o outro.
- Talvez não seja o livro em si. Talvez eles tenham espiolhado demasiado e conseguido... não sei... talvez alguém se tenha sentido ameaçado.
- E contratado um assassino profissional. Micke... essas coisas acontecem nos filmes americanos. Este livro é sobre os exploradores da prostituição, os clientes. Menciona os nomes de polícias, políticos, jornalistas... Achas que um deles mandou assassinar o Dag e a Mia?
- Não sei, Ricky. Mas é suposto irmos para impressão dentro de três semanas com a mais dura denúncia sobre o tráfico de mulheres alguma vez publicada na Suécia.
Nesse momento, Malin bateu à porta, entreabriu-a, enfiou a cabeça pela abertura e anunciou que o inspector Bublanski, da Judiciária, queria falar com Mikael Blomkvist.
Bublanski trocou apertos de mão com Erika e Mikael e sentou-se na terceira cadeira da mesa junto à janela. Estudou Mikael, e viu um homem de olhos encovados e barba por fazer.
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- Alguma novidade? - perguntou Mikael.
- Talvez. Julgo saber que foi o senhor que encontrou o casal em Enskede e chamou a polícia, ontem à noite.
Mikael assentiu, cansadamente.
- Bem sei que já contou a sua história ao detective de serviço, ontem à noite, mas gostaria de pedir-lhe que esclarecesse alguns pormenores.
- O que é que quer saber?
- O que foi que o levou a visitar o Dag Svensson e a Mia Johansson a uma hora tão tardia?
- Isso não é um pormenor, é todo um romance - respondeu Mikael, com um sorriso cansado. - Estava num jantar em casa da minha irmã... vive numa nova urbanização, em Stáket. O Dag ligou-me para o telemóvel a dizer que não ia ter tempo para passar pela redacção na quinta-feira... hoje, portanto... como tínhamos combinado. Tinha ficado de entregar umas fotos ao nosso director artístico. A razão que deu foi que ele e a Mia tinham decidido ir passar o fim-de-semana a casa da mãe dela, e queriam sair muito cedo. Perguntou se podia deixá-las ficar em minha casa, logo de manhã. Eu disse-lhe que, uma vez que morava tão perto, podia passar por casa deles, quando saísse da casa da minha irmã.
- Foi então a Enskede para ir buscar umas fotos.
- Exacto.
- Consegue imaginar algum motivo para os assassínios de Svensson e Johansson?
Mikael e Erika trocaram um olhar. Nenhum deles disse uma palavra.
- O que é que se passa? - quis Bublanski saber.
- Naturalmente, discutimos o assunto durante o dia, e não conseguimos chegar a acordo. Ou melhor, estamos de acordo, mas não temos a certeza. Preferimos não especular.
- Diga-me, de todos os modos.
Mikael descreveu-lhe o tema do livro de Dag Svensson, e como ele e Erika tinham estado a discutir se teria alguma relação com
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os assassínios. Bublanski ficou imóvel e silencioso por instantes, a digerir a informação.
- O Dag Svensson preparava-se então para denunciar membros da polícia.
Não estava a gostar nada do rumo que a conversa tomara. Imaginou imediatamente as voltas que a "pista da polícia" podia dar nos media, levando a todo o tipo de teorias da conspiração.
- Não - disse Mikael. - Preparava-se para denunciar criminosos, alguns dos quais por acaso são polícias. Há também um ou dois membros da minha própria profissão, jornalistas.
- E estão a pensar publicar essa informação agora? Mikael voltou-se para Erika.
- Não - respondeu ela. - Passámos o dia a trabalhar no próximo número da revista. Muito provavelmente, publicaremos o livro do Dag Svensson, mas isso só acontecerá quando soubermos exactamente o que aconteceu. Dadas as circunstâncias, o texto vai ter de ser profundamente alterado. Nada faremos que prejudique a investigação policial do assassínio dos nossos dois amigos, se é isso que o preocupa.
- Vou ter de dar uma vista de olhos à secretária do Svensson, mas uma vez que isto é a redacção de um órgão de comunicação, uma busca aprofundada pode revelar-se uma questão sensível.
- Encontrará o material do Dag no computador que ele utilizava - disse Erika.
- Já revistei a secretária dele - acrescentou Mikael. - Retirei certos documentos que identificavam directamente fontes que desejam permanecer anónimas. Tem inteira liberdade para examinar tudo o mais, e deixei em cima da secretária uma nota avisando de que nada poderá ser tocado ou removido. É essencial que o conteúdo do livro permaneça secreto até à impressão. Temos absolutamente de impedir que o texto seja passado de mão em mão, na polícia, tanto mais que nos preparamos para denunciar dois ou três elementos da corporação.
Merda, pensou Bublanski, porque não vim cá logo de manhã? Mas limitou-se a assentir com a cabeça e a mudar de assunto.
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- Bom. Há uma pessoa que queremos interrogar no que se refere aos assassínios. Julgo que a conhece. Gostaria de ouvir o que tem a dizer a respeito de uma mulher chamada Lisbeth Salander.
Por um segundo, Mikael Blomkvist foi todo ele um ponto de interrogação. Bublanski notou que Erika Berger lhe lançava um olhar interessado.
- Desculpe, mas não estou a compreender.
- Conhece Lisbeth Salander?
- Sim, conheço.
- Conhece-a como?
- Porque pergunta?
Bublanski estava nitidamente irritado, mas disse apenas:
- Gostaria de falar com ela sobre os assassínios de Enskede. Conhece-a como?
- Mas... isso não faz ponta de sentido. A Lisbeth Salander não tem qualquer espécie de relação com o Dag Svensson e a Mia Johansson.
- Isso é algo que estabeleceremos a seu tempo - disse Bublanski, pacientemente. - Para já, a minha pergunta mantém-se. Como é que conhece Lisbeth Salander?
Mikael passou a mão pela barba que lhe eriçava o queixo e esfregou os olhos, enquanto uma catadupa de pensamentos lhe atravessava o espírito. Finalmente, enfrentou o olhar de Bublanski.
- Contratei-a, há dois anos, para fazer uma pesquisa num projecto completamente diferente.
- Que projecto?
- Lamento, mas, quanto a isso, vai ter de acreditar na minha palavra: não tinha nada que ver com Dag Svensson ou Mia Johansson. E é um assunto arrumado. Ponto final.
Bublanski não gostava de ouvir ninguém dizer que havia assuntos que não podiam ser discutidos sequer no âmbito de uma investigação criminal, mas, de momento, optou por não insistir.
- Quando foi a última vez que a viu? Mikael fez uma pausa antes de responder.
- É assim. Andámos juntos durante algum tempo, no Outono de há dois anos. A relação terminou por volta do Natal desse ano.
Depois disso, ela desapareceu da cidade. Não voltei a vê-la durante mais de um ano. Até há uma semana.
Erika Berger arqueou as sobrancelhas. Bublanski assumiu que aquilo era novidade para ela.
- Diga-me onde a viu.
Mikael inspirou fundo e fez um breve resumo dos acontecimentos na Lundagatan. Bublanski escutou-o, cada vez mais espantado, sem saber muito bem até que ponto ele estava a inventar a história.
- Não chegou, portanto, a falar com ela.
- Não. Desapareceu no troço superior da Lundagatan. Esperei muito tempo, mas ela não voltou a aparecer. Escrevi-lhe um bilhete a pedir-lhe que entrasse em contacto comigo.
- E tem a certeza absoluta de que não sabe de qualquer relação entre ela e o casal de Enskede.
- A certeza absoluta.
- Pode descrever o homem que diz ter visto atacá-la?
- Não em pormenor. Ele atacou-a, ela defendeu-se e fugiu. Vi-o de uma distância de quarenta a quarenta e cinco metros. Era de noite e estava escuro.
- Tinha bebido?
- Um pouco, mas não estava a cair de bêbedo. O homem tinha cabelos claros, e usava rabo-de-cavalo. Vestia um blusão escuro e era barrigudo. Enquanto subia as escadas da Lundagatan, só o vi de costas, mas ele voltou-se quando me bateu. Julgo lembrar-me de que tinha um rosto esguio, com uns olhos azuis muito juntos.
- Porque foi que nunca me contaste essa história? - perguntou Erika.
Mikael encolheu os ombros.
- Meteu-se um fim-de-semana pelo meio, e tu tinhas ido a Gotemburgo participar na porcaria de um debate. Não vieste na segunda e na terça só nos vimos de passagem. Não me pareceu assim tão importante como isso.
- Mas considerando o que aconteceu em Enskede... é estranho que não tenha falado do assunto à polícia - disse Bublanski.
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- Porque é que havia de falar no assunto à polícia? É como dizer que devia ter comunicado que, há um mês atrás, apanhei um carteirista a tentar roubar-me a carteira na estação do metro. Não há absolutamente qualquer ligação imaginável entre o que aconteceu na Lundagatan e o que aconteceu em Enskede.
- Mas não participou o ataque à polícia?
- Não. - Mikael fez uma pausa. - Lisbeth Salander é uma pessoa muito reservada. Ainda pensei ir à polícia, mas decidi que lhe competia a ela fazê-lo, se quisesse. E, além disso, queria falar com ela primeiro.
- Mas não falou?
- Não falo com ela desde o dia seguinte ao Natal de há um ano.
- Porque foi que a vossa... relação, se é essa a palavra certa... terminou?
A expressão de Mikael ensombreceu.
- Não sei. Ela interrompeu todos os contactos comigo... praticamente do dia para a noite.
- Aconteceu alguma coisa entre os dois?
- Não, se está a referir-se a uma discussão, ou coisa assim. Um dia éramos bons amigos. No dia seguinte, ela deixou de atender o telefone. Então desapareceu, e saiu da minha vida.
Bublanski ponderou a explicação de Mikael. Parecia sincera e era apoiada pelo facto de Dragan Armanskij ter descrito o desaparecimento dela da Milton Security em termos semelhantes. Aparentemente, alguma coisa acontecera a Lisbeth Salander naquele Inverno, um ano antes. Voltou-se para Erika.
- Também conhecia Frõken Salander?
- Vi-a uma vez. Pode explicar-me porque está a fazer-nos perguntas sobre a Lisbeth Salander relacionadas com Enskede?
Bublanski abanou a cabeça.
- Lisbeth Salander foi relacionada com o local do crime. É tudo o que posso dizer. Mas tenho de admitir que quanto mais ouço a respeito dela mais surpreendido fico. Como era ela, como pessoa?
- Em que aspecto? - perguntou Mikael.
- Como a descreveria?
- Profissionalmente... uma das melhores caçadoras de informações que alguma vez conheci.
Erika lançou-lhe um olhar e mordeu o lábio. Bublanski estava convencido de que faltava uma peça do quebra-cabeças e de que aqueles dois sabiam qualquer coisa que não queriam dizer-lhe.
- E pessoalmente?
Mikael fez uma longa pausa antes de responder.
- É uma pessoa muito estranha e solitária - disse, por fim. - Socialmente introvertida. Não gosta de falar sobre si mesma. Ao mesmo tempo, é dotada de uma vontade muito forte. Tem um grande sentido moral.
- Moral?
- Sim. Uma moral muito particular. É impossível convencê-la a fazer seja o que for contra a sua vontade. No mundo dela, as coisas são certas ou são erradas, por assim dizer.
Mais uma vez, Mikael Blomkvist estava a descrevê-la praticamente nos mesmos termos que Armanskij usara. Dois homens que a conheciam, e a mesma avaliação.
- Conhece Dragan Armanskij?
- Encontrámo-nos um par de vezes. Levei-o a beber uma cerveja, o ano passado, quando estava a tentar descobrir onde se teria a Lisbeth metido.
- E diz que ela era uma investigadora competente?
- A melhor.
Bublanski tamborilou com os dedos no tampo da mesa e olhou para as pessoas que passavam lá em baixo, na Gõtgatan. Sentia-se estranhamente dividido. Os relatórios psiquiátricos que Faste obtivera na Agência de Tutoria afirmavam que Lisbeth Salander era uma pessoa profundamente perturbada e possivelmente violenta, para todos os efeitos uma deficiente mental. O que Armanskij e Blomkvist diziam pintava um retrato completamente diferente do que fora definido pelos especialistas médicos ao longo de anos de estudo. Ambos admitiam que Lisbeth Salander era uma pessoa estranha, mas ambos lhe teciam rasgados elogios, a nível profissional.
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Além disso, Blomkvist dissera que tinham "andado juntos" durante algum tempo... o que sugeria uma relação sexual. Bublanski perguntou a si mesmo que regras se aplicariam aos indivíduos declarados interditos. Seria possível que Blomkvist tivesse praticado uma qualquer espécie de abuso ao explorar uma pessoa numa posição de dependência?
- E como avaliou a deficiência social dela? - perguntou.
- Deficiência?
- A tutoria, e os problemas psiquiátricos.
- Tutoria?
- Que problemas psiquiátricos? - perguntou Erika. Bublanski olhou de um para o outro, estupefacto. Não sabem. Não fazem a mínima ideia! Subitamente, sentiu-se furioso com Armanskij e Blomkvist, e sobretudo com Erika Berger, com as suas roupas elegantes e o seu belo escritório sobranceiro à Gõtgatan. É aqui que ela se senta, a dizer às pessoas o que pensar. Mas dirigiu a sua irritação contra Blomkvist.
- Não percebo o que se passa consigo e com Armanskij.
- Que raio quer dizer com isso?
- A Lisbeth Salander passou metade da adolescência em instituições psiquiátricas. Uma avaliação médica e uma sentença em tribunal afirmam que era, e continua a ser, incapaz de gerir os seus próprios assuntos. Foi declarada interdita. É comprovadamente violenta e toda a sua vida teve problemas com a polícia. E agora é a principal suspeita numa investigação de assassínio. E no entanto, você e o Armanskij falam dela como se fosse uma espécie de princesa.
Mikael estava como que petrificado, a olhar para ele.
- Deixe-me pôr a coisa doutra maneira - continuou Bublanski. - Andamos à procura de uma ligação entre Lisbeth Salander e o casal de Enskede. Acontece que você não só encontrou as vítimas, como também é essa ligação. Tem alguma coisa a dizer a este respeito?
Mikael recostou-se para trás, fechou os olhos e tentou perceber alguma coisa do que se estava a passar. Lisbeth suspeita de ter assassinado Mia e Dag? Não pode ser. Não faz sentido. Seria ela capaz de matar alguém? Subitamente, recordou a expressão que lhe vira no rosto quando atacara Martin Vanger com o taco de golfe. Não tenho a mínima
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dúvida de que seria capaz de matá-lo. Mas não matou, porque tinha de salvar-me a vida. Levou instintivamente a mão ao pescoço, onde o nó corredio da corda de Vanger o apertara. Mas Mia e Dag... não faz a mais pequena ponta de sentido.
Tinha consciência de que Bublanski analisava cada uma das suas reacções. Como acontecera com Armanskij, tinha de fazer uma escolha. Mais cedo ou mais tarde, ia ter de decidir em que canto do ringue queria estar se Lisbeth fosse acusada de assassínio. Culpada ou inocente?
Antes que pudesse dizer fosse o que fosse, o telefone na secretária de Erika tocou. Ela pegou-lhe, escutou durante alguns instantes e estendeu-o a Bublanski.
- Alguém chamado Faste quer falar consigo.
Bublanski pegou no aparelho e escutou atentamente. Mikael e Erika viram a expressão dele mudar.
- Quando é que vão avançar? Silêncio.
- Qual é a morada? Lundagatan. E o número? Okay, estou perto. Vou já para aí.
Pôs-se de pé.
- Peço desculpa, mas vou ter de interromper esta conversa. O tutor de Lisbeth Salander acaba de ser encontrado, morto a tiro. Ela é, a partir deste momento, formalmente acusada, in absentia, de três assassínios.
Erika Berger deixou cair o queixo. Mikael Blomkvist parecia ter sido fulminado por um raio.
A ocupação do apartamento na Lundagatan"foi um processo simples, do ponto de vista táctico. Faste e Andersson deixaram-se ficar encostados ao carro enquanto a polícia de choque ocupava as escadas e controlava a frente e as traseiras do edifício.
A polícia de choque depressa confirmou o que Faste e Andersson já sabiam: ninguém abriu a porta quando tocaram à campainha.
Faste olhou para o fundo da Lundagatan, que, para desespero dos passageiros do autocarro número 66, estava cortada ao trânsito de
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Zinkensdamm até à igreja de Hõgalid. O autocarro ficara preso no cordão de segurança montado no alto da subida e não podia avançar nem recuar. Finalmente, Faste foi até lá e ordenou a um polícia uniformizado que deixasse passar o veículo. Uma considerável multidão de curiosos acompanhava os acontecimentos do troço superior da Lundagatan.
- Tem de haver uma maneira mais simples - disse Faste.
- Mais simples do que o quê? - perguntou Andersson.
- Do que enviar a polícia de choque sempre que é preciso deitar a mão a um patifezeco qualquer.
Andersson dispensou-se de comentar.
- Ao fim e ao cabo, a tipa tem um metro e meio de altura e pesa cerca de quarenta quilos.
Fora decidido que não seria necessário arrombar a porta com a marreta. Bublanski juntou-se-lhes enquanto esperavam que um serralheiro retirasse a fechadura, e afastou-se para o lado para deixar a equipa de assalto entrar à frente. Demorou cerca de oito segundos a revistar os 45 metros quadrados do apartamento e a confirmar que Lisbeth Salander não estava escondida debaixo da cama, na casa de banho ou dentro de um armário. Bublanski recebeu o sinal de que o local estava seguro e entrou.
Os três detectives examinaram com curiosidade o apartamento impecavelmente limpo e arrumado. O mobiliário era simples. As cadeiras da cozinha estavam pintadas em diferentes tons de pastel. As paredes estavam decoradas com bonitas fotografias a preto e branco, emolduradas. No hall de entrada havia uma prateleira com um leitor de CD e uma vasta colecção de discos. Desde rock da pesada a ópera. Tudo tinha um aspecto artístico. Elegante. De bom-gosto.
Andersson inspeccionou a cozinha e não encontrou nada fora do normal. Folheou um monte de jornais e examinou a bancada, os armários e o congelador do frigorífico.
Faste abriu os armários e as gavetas da cómoda do quarto. Assobiou ao encontrar algemas e um sortido de brinquedos eróticos. No guarda-fato, descobriu roupas de látex que a mãe teria ficado envergonhada só de as ver.
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- Houve aqui uma festa - disse em voz alta, segurando um fato de couro que, de acordo com a etiqueta, fora desenhado e confeccionado pela Domino Fashion... sabia Deus o que tal coisa pudesse ser.
Bublanski deu uma vista de olhos à mesa do vestíbulo, onde encontrou um pequeno monte de correspondência fechada dirigida a Lisbeth Salander. Examinou os sobrescritos um a um e verificou que eram contas e extractos bancários. E uma carta pessoal. De Mikael Blomkvist. Até ao momento, a história de Blomkvist confirmava-se. Inclinou-se e apanhou o correio caído no chão, em frente da porta, pisado pelos tipos da polícia de choque. Consistia de uma revista, Tai Pro Boxing, o jornal de distribuição gratuita Sòdermalmsnytt, e três sobrescritos dirigidos a Miriam Wu.
Foi assaltado por uma desagradável suspeita. Foi à casa de banho e abriu o armário dos remédios. Encontrou uma caixa de analgésicos e meio tubo de Citodon, um composto de paracetamol e codeína. Um medicamento que exigia receita médica. A anotação escrita na embalagem pelo farmacêutico indicava que tinha sido prescrito a Miriam Wu. Havia apenas um copo e uma escova de dentes na prateleira de vidro.
- Faste, porque é que a chapa da porta diz "Salander-Wu"? -perguntou.
- Não faço ideia.
- Okay, deixa-me pôr a coisa desta maneira: porque é que o correio caído junto à porta é dirigido a Miriam Wu, e porque é que há no armário dos remédios um tubo de Citodon receitado a Miriam Wu? Porque é que há só uma escova de dentes? E porque é que... se a Lisbeth Salander tem, segundo as informações de que dispomos, pouco mais de um palmo de altura... essas calças de couro que tens na mão pertencem a alguém que tem pelo menos um metro e setenta?
Fez-se no apartamento um silêncio embaraçoso. Foi Andersson que o quebrou.
- Merda - disse ele.
CAPÍTULO 15
QUINTA-FEIRA SANTA, 24 DE MARÇO
Christer Malm sentia-se exausto e infeliz quando chegou finalmente a casa depois daquele inesperado dia de trabalho. O aroma de um cozinhado exótico atraiu-o à cozinha, onde encontrou o namorado.
- Como te sentes? - perguntou Arnold Magnusson.
- Como um saco de merda.
- Estive o dia todo a ouvir as notícias. Ainda não deram nomes. Mas parece ter sido horrível.
- É horrível. O Dag trabalhava para nós. Era um amigo e eu gostava muito dele. Não conhecia a namorada, mas o Micke e a Erika conheciam.
Olhou em redor. Tinham-se mudado para aquele apartamento na Allhelgonagatan havia apenas três meses. De repente, pareceu-lhe um mundo completamente diferente.
O telefone tocou. Olharam um para o outro e decidiram ignorá-lo. Então, o atendedor automático ligou-se e ouviram uma voz familiar:
- Christer. Estás aí? Atende.
Era Erika Berger, a dizer-lhe que a polícia procurava a antiga investigadora de Mikael, que era a principal suspeita nos assassínios de Mia Johansson e Dag Svensson.
Malm recebeu a notícia com a sensação de irrealidade.
Henry Cortez perdera a agitação na Lundagatan pela simples razão de ter passado todo aquele tempo especado à porta do gabinete de imprensa da Judiciária em Kungsholmen, de onde não saía qualquer novidade desde a conferência de imprensa ao início da tarde.
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Estava cansado, com fome e furioso por ser ignorado pelas pessoas com quem tentava contactar. Só às seis da tarde, quando o assalto ao apartamento de Lisbeth Salander já tinha terminado, ouviu um rumor a respeito de a polícia ter um suspeito. A dica viera de um colega de um vespertino. Mas Henry não demorou muito a descobrir o número do telemóvel de Ekstrõm. Apresentou-se e fez as suas perguntas a respeito de quem, como e porquê.
- De que jornal disse que era? - quis Ekstrõm saber.
- Da revista Millennium. Conhecia uma das vítimas. Segundo julgo saber, a polícia procura uma pessoa específica. Pode confirmar isto?
- Não posso comentar, de momento.
- Pode dizer quando estarão em condições de fornecer mais informação concreta?
- É possível que haja uma nova conferência de imprensa, mais para o fim do dia.
O tom era evasivo. Henry puxou o brinco de ouro que tinha na orelha.
- As conferências de imprensa são para os jornalistas que têm prazos urgentes. Eu trabalho para uma publicação mensal, e temos um interesse pessoal e muito especial em saber que progressos houve.
- Não posso ajudá-lo. Vai ter de ser paciente, como toda a gente.
- Segundo a minha fonte, procuram uma mulher para interrogatório. Quem é ela?
- Não posso comentar, de momento.
- Pode confirmar que procuram uma mulher?
- Não confirmo nem desminto coisa nenhuma. Passe bem.
O inspector Jerker Holmberg deteve-se à porta do quarto onde o corpo de Mia Johansson tinha sido encontrado e olhou para a enorme mancha de sangue no chão. Voltou-se e viu uma mancha semelhante no sítio onde Dag Svensson tombara. Era muito sangue, muito mais do que, de acordo com a sua experiência, geralmente resultava de ferimentos por bala; o comissário Mârtensson tivera razão ao presumir que o assassino usara munição de caça. O sangue coagulara numa massa preta e castanho-ferrugem que cobria uma extensão tão grande de
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soalho que o pessoal da ambulância e os membros da equipa técnica não tinham tido outro remédio senão pisá-lo, deixando pegadas por todo o apartamento. Holmberg calçava sapatilhas de ginástica, protegidas por capas de plástico azul:
Para ele, a verdadeira investigação do local do crime começava naquele momento. Os corpos das vítimas tinham sido removidos. Estava sozinho, depois de os dois últimos membros da equipa técnica terem dito boa-noite e saído. Tinham fotografado as vítimas e medido os salpicos de sangue nas paredes e conferenciado sobre as "áreas de dispersão" e "velocidade das gotículas". Holmberg não dera grande atenção ao exame pericial. As conclusões dos técnicos seriam compiladas num relatório que revelaria em pormenor onde o assassino se situara em relação às vítimas, e a que distância e por que ordem os tiros tinham sido disparados, e que impressões digitais poderiam ter interesse. Mas não conteria uma sílaba sobre a identidade do assassino - ou da assassina, uma vez que o principal suspeito era uma mulher - nem de que motivos podia ter tido para cometer os crimes. Essas eram as perguntas a que ele ia agora tentar responder.
Entrou no quarto. Pousou uma velha pasta de documentos em cima de uma cadeira e tirou dela um dictafone, uma câmara digital e um bloco de notas.
Começou por revistar a cómoda atrás da porta. As duas primeiras gavetas continham roupa interior feminina, camisolas e um guar-da-jóias. Dispôs os vários objectos em cima da cama e examinou o guarda-jóias. Não lhe pareceu que contivesse peças de grande valor. Na última gaveta, encontrou dois álbuns de fotografias e duas pastas de arquivo de contabilidade doméstica. Pegou no gravador.
"Protocolo de confiscação, Bjõrneborgsgatan oito Bê, cómoda, última gaveta. Dois álbuns de fotografias encadernados tamanho A-4. Uma pasta de arquivo com lombada preta marcada "Despesas da Casa" e uma pasta de arquivo com lombada azul marcada "Documentos Financeiros", contendo informação sobre hipoteca e empréstimos para a compra do apartamento. Uma pequena caixa de cartão contendo cartas manuscritas, postais e objectos pessoais."
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Levou estes objectos para o vestíbulo e colocou-os dentro de um saco de viagem. Passou então às gavetas das mesas de cabeceira, uma de cada lado da cama de casal. Nada de interesse. Abriu o guarda-fato e afastou as peças de roupa uma a uma, apalpando os bolsos e enfiando os dedos nos sapatos à procura de objectos esquecidos ou escondidos, e em seguida concentrou-se nas prateleiras superiores. Abriu caixas e pequenas gavetas. Encontrou, aqui e ali, papéis ou pequenos objectos que, por variadas razões, incluiu no inventário da confiscação.
Havia uma secretária num canto do quarto. Era um minúsculo posto de trabalho, com um PC Compaq e um monitor já antigo. Por baixo da secretária havia um armário de arquivo com duas gavetas e, ao lado, uma estante baixa. Holmberg sabia que seria provavelmente ali que faria as descobertas mais importantes - se houvesse alguma coisa a descobrir -, de modo que deixou aquele recanto para o fim. Voltou à sala e continuou a examinar o local do crime. Abriu o lou-ceiro com portas de vidro e examinou cada chávena, cada gaveta, cada prateleira. Feito isto, voltou a sua atenção para a grande estante que ocupava as paredes do lado da rua e do lado da casa de banho. Arrastou uma cadeira e começou por verificar se havia alguma coisa escondida na parte de cima do móvel. Revistou então as prateleiras uma a uma, tirando rapidamente montes de livros e folheando-os, certificando-se também de que não havia nada escondido por detrás deles, nas prateleiras. Quarenta e cinco minutos mais tarde, repôs o último livro do respectivo lugar. Havia agora, em cima da mesa da sala, uma pequena pilha de livros que, por uma razão ou por outra, lhe tinham despertado a atenção. Voltou a ligar o gravador.
"Da estante, na sala de estar. Um livro de Mikael Blomkvist, o Banqueiro da Máfia. Um livro em alemão intitulado Der Staat und die Autonomen, um livro em sueco intitulado Terrorismo Revolucionário e um livro em inglês intitulado hlamicjihad."
Incluíra o livro de Mikael Blomkvist porque o nome do autor aparecera na investigação preliminar. As outras três obras eram talvez menos óbvias. Holmberg não fazia a mínima ideia de se os assassínios estavam relacionados com qualquer forma de actividade política - não sabia sequer se Dag Svensson e Mia Johansson tinham sido pessoas
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com ligações à política -, ou se os livros revelavam apenas um interesse geral na política como parte do trabalho jornalístico e académico que desenvolviam. Por outro lado, se fora cometido um duplo assassínio num apartamento onde havia livros sobre terrorismo, ele ia tomar nota do facto. Guardou os livros no saco, juntamente com os outros objectos.
Revistou as gavetas de uma secretária antiga. Em cima do tampo havia um leitor de CD, e as gavetas continham uma enorme quantidade de discos. Passou a meia hora seguinte a abri-los, um a um, e a certificar-se de que o conteúdo correspondia à caixa. Encontrou cerca de uma dezena sem rótulo, que tinham provavelmente sido gravados em casa ou talvez fossem cópias pirateadas: introduziu-os, um a um, no leitor, para verificar se tinham mais alguma coisa gravada além de música. Examinou o armário do televisor próximo da porta do quarto, onde havia uma considerável colecção de videocassetes. Experimentou várias e descobriu que havia um pouco de tudo, desde filmes de acção a gravações de programas noticiosos televisivos. Acrescentou 36 cassetes ao inventário. Foi à cozinha, desarolhou um termo de café e fez uma breve pausa antes de continuar a busca.
De uma prateleira do armário da cozinha tirou uma quantidade de frascos e caixas de medicamentos, que meteu num saco de plástico e juntou ao espólio. Passou a despensa e o frigorífico a pente-fino, abrindo todos os boiões, pacotes de café e garrafas que já tivessem sido abertos. Num vaso pousado no peitoril da janela encontrou 1220 coroas e vários talões de caixa. Da casa de banho não tirou nada, mas notou que o cesto da roupa suja estava a deitar por fora. Revistou as roupas. Tirou os casacos e sobretudos do armário do vestíbulo e revistou os bolsos.
Encontrou a carteira de Svensson no bolso interior de um casaco de desporto e, depois de a examinar, atirou-a para dentro do saco. Svensson tinha um cartão de sócio da cadeia de ginásios Friskis & Svettis, um cartão multibanco do Handelsbanken e um pouco menos de 400 coroas em dinheiro. Encontrou a bolsa de Mia Johansson e passou cinco minutos a examinar o conteúdo. Também ela tinha um cartão da Friskis & Svettis, um cartão multibanco, um cartão de
cliente do Konsum e um cartão de membro de uma coisa chamada Clube Horizonte, cujo logotipo era um globo. Havia 2500 coroas em dinheiro, uma quantia relativamente elevada mas não irrazoável considerando que estavam a preparar-se para sair de Estocolmo nas férias da Páscoa. O facto de haver dinheiro nas carteiras reduzia a probabilidade de as mortes terem tido qualquer coisa a ver com um roubo.
"Da bolsa de Mia Johansson, encontrada na prateleira superior do cabide do vestíbulo. Uma agenda de bolso ProPlan, um caderno com moradas e um bloco de notas com capas de couro."
Fez mais uma pausa para beber café e reparou que, para variar, não encontrara naquela casa nada que fosse embaraçoso ou íntimo: nem acessórios eróticos escondidos, nem lingerie sexy, nenhuma gaveta cheia de vídeos pornográficos; nem cigarros de marijuana ou quaisquer vestígios de outras substâncias ilegais. Pareciam ser um casal normal, possivelmente (da perspectiva da polícia) até um pouco mais sensaborão do que a média.
Finalmente, voltou ao quarto e sentou-se à secretária. Abriu a primeira gaveta. Depressa se apercebeu de que tanto a secretária como a pequena estante ao lado continham material abundante, fontes e referências, relacionado com a tese de doutoramento de Mia Johansson, "Da Rússia, com Amor". A documentação estava meticulosamente repertoriada, como num bom relatório policial, e Holmberg perdeu-se durante algum tempo na leitura de certas partes do texto. Mia Johansson era suficientemente idónea para estar na polícia, disse para consigo mesmo. Uma secção da estante estava só meio ocupada e parecia conter material pertencente a Dag Svensson: sobretudo recortes de imprensa de artigos dele e sobre outros temas que lhe tinham interessado.
Dedicou algum tempo ao computador, e descobriu que continha quase cinco gigas de informação, desde software a cartas, passando por artigos descarregados da Net e ficheiros pdf. Não ia conseguir ver aquilo tudo numa única noite. Juntou o computador, uma série de CD e uma drive com cerca de 30 discos ZIP ao material confiscado.
Feito isto, sentou-se a pensar. O computador continha, tanto quando pudera ver, material de trabalho de Mia Johansson.
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Dag Svensson fora jornalista, e um computador deveria ter sido a mais importante das suas ferramentas de trabalho, mas nem sequer tinha um endereço e-mail no Compaq. Devia, portanto, ter tido um computador algures noutro sítio. Levantou-se e voltou a percorrer o apartamento. No vestíbulo, encontrou uma mochila preta com vários blocos de notas pertencentes a Svensson e uma bolsa destinada a um portátil. Vazia. Não havia nenhum portátil no apartamento. Pegou nas chaves, desceu ao pátio e revistou o carro de Mia Johansson, e depois a arrecadação na cave. Nenhum computador.
O que o cão tinha de estranho era o facto de não ladrar, meu caro Watson.
Tomou nota de que parecia ter desaparecido pelo menos um computador.
Bublanski e Faste reuniram-se com Ekstrõm no gabinete deste último às seis e meia, logo a seguir a terem regressado da Lundagatan. Andersson, depois de ter telefonado, fora mandado à Universidade de Estocolmo para falar com o orientador de Mia Johansson sobre a tese de doutoramento que ela se preparava para defender. Holmberg continuava em Enskede e Sonja Modig estava a investigar o local do crime em Odenplan. Tinham passado dez horas desde que Bublanski fora escolhido para dirigir a equipa de investigação, e sete desde que começara a caça a Lisbeth Salander.
- E quem é essa Miriam Wu? - perguntou Ekstrõm.
- Não sabemos muito a respeito dela. Não tem cadastro criminal. A primeira coisa que o Faste vai fazer amanhã é começar a procurá-la. Mas, tanto quanto pudemos ver, não há sinais de que a Salander viva na Lundagatan. Para começar, todas as roupas que encontrámos no apartamento são do tamanho errado para ela.
- E não eram roupas vulgares - acrescentou Faste.
- Que quer isso dizer? - estranhou Ekstrõm.
- Bem, digamos que não são o tipo de roupa que compraria para o Dia da Mãe.
- De momento, nada sabemos a respeito de Miriam Wu - interveio Bublanski.
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- Que mais é preciso saber, pelo amor de Deus? Tem um armário cheio de roupas de puta.
- Roupas de puta? - repetiu Ekstrõm.
- Couro preto, cintos de ligas, corpetes, chicotes e uma gaveta cheia de brinquedos eróticos. E não me pareceram nada baratos.
- Estás a dizer que a Miriam Wu é uma prostituta?
- Não sabemos nada a respeito de Frõken Wu, nesta fase - insistiu Bublanski, um pouco mais secamente.
- Um dos relatórios da Assistência Social indicava, há alguns anos, que Lisbeth Salander estava envolvida em prostituição - disse Ekstrõm.
- E a Assistência Social sabe geralmente do que está a falar - reforçou Faste.
- O relatório da Assistência Social a que te referes não é apoiado por qualquer relatório da polícia - disse Bublanski. - Houve um incidente em Tantolunden, quando, ela tinha dezasseis ou dezassete anos; estava na companhia de um homem consideravelmente mais velho. Mais tarde, nesse mesmo ano, foi presa por estar embriagada em público. Mais uma vez, na companhia de um homem mais velho.
- Queres dizer com isso que não devemos tirar conclusões precipitadas - disse Ekstrõm. - Okay. Mas a mim parece-me que sendo a tese da Mia Johansson sobre o tráfico de mulheres e prostituição, há a possibilidade de, no decurso da sua pesquisa, ter entrado em contacto com a Lisbeth Salander e com essa tal Wu, e de tê-las provocado de uma maneira qualquer, e que isso possa constituir motivo para assassínio.
- A Johansson pode ter entrado em contacto com o tutor dela e posto o carrossel em andamento - sugeriu Faste.
- É possível - admitiu Bublanski. - Mas terá de ser a investigação a estabelecê-lo. O importante, para já, é encontrar Lisbeth Salander. É óbvio que não está a viver na Lundagatan. O que significa que também temos de encontrar a Wu e descobrir como foi viver para o apartamento e que tipo de relação tem com a Salander.
- E como é que a encontramos?
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- Ela anda por aí, algures. O problema é que a única morada que alguma vez teve é na Lundagatan. Não há registo de qualquer mudança de residência.
- Estás a esquecer que esteve internada em Sankt Stefan e que passou por várias famílias de acolhimento.
- Não estou a esquecer coisa nenhuma. - Bublanski consultou os seus papéis. - Teve três famílias de acolhimento quando tinha quinze anos. Não correu bem. Antes de fazer os dezasseis anos e até quase aos dezoito, viveu com um casal de Hágersten. Frederik e Monika Gull-berg. O Andersson vai falar com eles amanhã, quando acabar na universidade.
- Como é que vamos fazer na conferência de imprensa? - perguntou Faste.
O ambiente no gabinete de Erika Berger, às sete daquela tarde, era sombrio. Mikael permanecera em silêncio e quase sem se mexer desde que o inspector Bublanski saíra. Malin dera um pulo de bicicleta até à Lundagatan, para ver o que por lá se passava. Aparentemente, ninguém fora preso e o movimento na rua voltara ao normal. Henry telefonara a dizer-lhes que a polícia começara a procurar uma segunda mulher, cujo nome não fora revelado. Erika informara-o: tratava-se de uma tal Miriam Wu.
Erika debatera com Malin o que tinha de ser feito, mas a situação imediata era complicada pelo facto de ela estar a par do papel que Lisbeth desempenhara no desenlace do caso Wennerstrõm, ao passo que Malin não sabia de nada e nunca ouvira sequer falar de Lisbeth Salander. Por isso a conversa resvalara várias vezes para silêncios embaraçosos.
- Vou para casa - disse repentinamente Mikael, pondo-se de pé. - Estou tão cansado que não consigo pensar. Preciso de dormir. Amanhã é Sexta-feira Santa. Vou aproveitar para descansar e ver uns papéis. Malin, podes trabalhar na Páscoa?
- Tenho opção?
- Não. Começamos no sábado, ao meio-dia. Podemos trabalhar em minha casa, em vez de na redacção?
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- Tudo bem.
- Estou a pensar em reformular a abordagem que decidimos esta manhã. Já não é apenas uma questão de tentar descobrir se a denúncia do Dag teve alguma coisa que ver com os assassínios. Agora trata-se de descobrir, a partir do material que temos, quem matou o Dag e a Mia.
Malin perguntou a si mesma como iriam eles fazer uma coisa daquelas, mas não disse nada. Mikael despediu-se com um aceno de mão e saiu sem mais uma palavra.
As sete e um quarto, o inspector Jan Bublanski seguiu relutantemente o procurador Ekstrõm até ao pódio do Centro de Imprensa da Judiciária. Não tinha o mais pequeno interesse em apresentar-se diante de uma dúzia de câmaras de TV, e a ideia de ser o foco desse tipo de atenção quase o paralisava de medo. Detestava ver-se na televisão, era uma coisa a que nunca conseguira habituar-se.
Ekstrõm, pelo contrário, estava como peixe na água naquele ambiente. Ajeitou os óculos e adoptou uma expressão adequadamente séria. Deixou os fotógrafos fazerem as suas fotos antes de erguer as mãos a pedir silêncio.
- Gostaria de agradecer a presença de todos nesta conferência de imprensa convocada um tanto à pressa sobre os assassínios da noite passada, em Enskede. Temos mais alguma informação a partilhar convosco. Chamo-me Richard Ekstrõm e sou procurador do Ministério Público. Tenho comigo o inspector Jan Bublanski, da Secção Distrital da Judiciária, Divisão de Crimes Violentos, que está a chefiar a investigação. Vou ler um comunicado, e em seguida terão oportunidade de fazer perguntas.
Olhou para os jornalistas reunidos. Os assassínios de Enskede eram um tema escaldante, que estava a tornar-se mais escaldante a cada hora que passava. Ficou satisfeito ao verificar que o Aktuellt, o Rapport e a TV4 tinham comparecido, e reconheceu jornalistas da agência noticiosa TT e de importantes jornais matutinos e vespertinos. Havia também alguns que não conhecia.
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- Como todos sabem, duas pessoas foram assassinadas em Ens-kede, ontem à noite. Foi encontrada uma arma no local do crime, um Colt.45 Magnum. Hoje, o Laboratório Forense Nacional concluiu que se trata da arma usada para cometer os crimes. O proprietário foi identificado, e fomos procurá-lo.
Neste ponto, fez uma pausa.
- Às dezasseis e quinze desta tarde, o proprietário da arma foi encontrado morto no seu apartamento, perto de Odenplan. Abatido a tiro. Tudo indica que já estava morto quando os crimes de Enskede foram cometidos. A polícia - fez um gesto na direcção de Bublanski - tem motivos para acreditar que a mesma pessoa foi responsável pelos três assassínios.
Um murmúrio percorreu o grupo de jornalistas. Vários deles começaram a falar em voz baixa para os respectivos telemóveis.
- Já têm algum suspeito? - perguntou um repórter da Rádio Nacional.
Ekstrõm ergueu um pouco a voz.
- Se evitarem interromper a minha exposição, chegaremos lá mais depressa. Esta tarde, foi identificada uma pessoa que a polícia pretende interrogar sobre os assassínios.
- Vai dizer-nos o nome?
- É uma mulher. A polícia procura uma mulher de vinte e seis anos que estava relacionada com o proprietário da arma e que sabemos ter estado no local do crime, em Enskede.
Bublanski carregou o sobrolho e fez um ar sombrio. Aquele era o ponto da agenda em que ele e Ekstrõm tinham discordado, nomeadamente a questão de saber se deviam ou não identificar o suspeito, no caso a suspeita.
Ekstrõm argumentara que, segundo toda a documentação disponível, Lisbeth Salander era uma mulher mentalmente doente e potencialmente perigosa que qualquer factor ainda desconhecido lançara numa fúria assassina. Não havia garantia de que a violência tivesse chegado ao fim e era, por conseguinte, do interesse do público que fosse identificada e capturada o mais rapidamente possível.
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Bublanski defendia que seria preferível esperar pelo menos pelos resultados do exame pericial feito ao apartamento de Bjurman antes de a equipa de investigação se comprometer inequivocamente com uma linha de acção. A opinião de Ekstrõm prevalecera.
Ekstrõm ergueu uma mão para silenciar o vozear dos jornalistas. A revelação pública de que o suspeito dos três assassínios era uma mulher ia cair como uma bomba. Passou o microfone a Bublanski, que tossicou duas vezes para aclarar a garganta, ajeitou os óculos e olhou sombriamente para o papel onde estava escrito o que ficara combinado.
- A polícia procura uma mulher de vinte e seis anos chamada Lisbeth Salander. Será distribuída uma foto tipo passaporte. Não sabemos onde se encontra neste momento, mas acreditamos que está na área da Grande Estocolmo. A polícia gostaria de ter a ajuda do público para encontrar esta mulher o mais rapidamente possível. Lisbeth Salander tem um metro e cinquenta e cinco de altura e é muito magra.
Inspirou fundo, enervado. Sentia as axilas húmidas de suor.
- Lisbeth Salander esteve em tempos internada numa clínica psiquiátrica e é considerada perigosa para si mesma e para o público. Gostaríamos de destacar que não afirmamos categoricamente que seja ela a assassina, mas um conjunto de circunstâncias exige que a interroguemos imediatamente a fim de determinar que conhecimento possa ter dos assassínios em Enskede e em Odenplan.
- Ou sim ou sopas - gritou um dos jornalistas. - Ou é suspeita de assassínio, ou não é.
Bublanski lançou a Ekstrõm um olhar desamparado.
- A polícia está a investigar numa frente muito ampla e, naturalmente, encaramos vários cenários diferentes. Mas há fortes motivos para suspeitar da mulher que acabamos de nomear, e a polícia considera extremamente urgente que ela seja colocada sob custódia. É suspeita devido a provas periciais que surgiram durante o exame ao local do crime.
- Que espécie de provas? - gritou no mesmo instante alguém, do meio da sala apinhada.
- De momento, não vamos falar de provas periciais.
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Vários jornalistas começaram a falar ao mesmo tempo. Ekstrõm ergueu uma mão e apontou para o representante do Dagens Eko. Conhecia-o e considerava-o objectivo.
- O inspector Bublanski disse que Frõken Salander esteve internada numa instituição psiquiátrica. Qual o motivo?
- Esta mulher teve uma... uma infância perturbada e enfrentou, ao longo dos anos, uma grande quantidade de problemas. Está sob tutela e o proprietário da arma do crime era o seu tutor.
- De quem estamos a falar?
- Do indivíduo que foi encontrado morto no apartamento de Odenplan. Só revelaremos o nome depois de a família ter sido informada.
- Qual foi o móbil dos assassínios? Bublanski pegou no microfone.
- Não especulemos sobre os possíveis motivos - disse.
- A suspeita tem cadastro?
- Tem.
Surgiu então uma pergunta de um jornalista que tinha uma voz profunda, característica, que se fazia ouvir acima de todas as outras:
- Lisbeth Salander constitui um perigo para o público? Ekstrõm hesitou um instante antes de responder.
- Temos motivos para pensar que pode recorrer à violência em situações de tensão. Estamos a emitir este alerta porque queremos entrar em contacto com ela o mais rapidamente possível.
Bublanski mordeu o lábio inferior.
Às nove da noite, a inspectora Sonja Modig encontrava-se ainda no apartamento do falecido Nils Bjurman. Tinha telefonado para casa, a explicar a situação ao marido. Depois de 11 anos de casamento, havia muito que ele aceitara que o emprego dela nunca seria das nove às cinco.
Estava sentada à secretária de Bjurman, a ler os papéis que encontrara na gaveta, quando ouviu a pancada na porta e, ao voltar a cabeça, viu o Inspector Bolha a equilibrar duas chávenas de café em cima do bloco de notas e um saco azul de bolos de canela comprados no
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quiosque da esquina na outra mão. Fez-lhe um cansado aceno de mão.
- Em que é que não queres que toque? - perguntou Bublanski.
- Os rapazes da técnica já acabaram aqui. Estão a trabalhar na cozinha e no quarto. O corpo ainda lá está.
Bublanski pousou o café e os bolos, puxou uma cadeira e sentou-se. Sonja Modig abriu o saco de papel e tirou um bolo.
- Obrigada. Estava mesmo a precisar de um café. Comeram em silêncio, durante algum tempo. Finalmente, Modig lambeu os dedos e comentou:
- Ouvi dizer que as coisas não correram muito bem na Lunda-gatan.
- Não estava lá ninguém. Havia meia dúzia de cartas, ainda fechadas, para a Salander, mas quem lá vive é uma tal Miriam Wu. Também ainda não conseguimos encontrá-la.
- Quem é?
- A verdade é que não sei. O Faste está a investigá-la. Foi acrescentada ao contrato de habitação do apartamento há um mês, mas parece ser apenas alguém que vive lá. Desconfio que a Salander mudou de casa sem deixar morada.
- Talvez tenha planeado tudo isto.
- O quê? Um triplo assassínio? - Bublanski abanou tristemente a cabeça. - Toda esta história está a transformar-se numa enorme salganhada. O Ekstrõm insistiu numa conferência de imprensa, o que quer dizer que vamos ter os media à perna. E tu, descobriste alguma coisa?
- Além do corpo do Bjurman no quarto? Encontrámos a caixa do Magnum, vazia, claro. Estão a ver se encontram impressões digitais. O Bjurman tinha um arquivo com cópias dos'relatórios sobre a Salander que mandava mensalmente para a Agência de Tutoria. A dar-lhes crédito, a rapariga transformou-se num anjinho.
- Também ele? - espantou-se Bublanski.
- Também ele o quê?
- Mais um admirador da Salander - respondeu Bublanski, e resumiu o que tinha sabido através de Armanskij e de Blomkvist. Quando acabou, ela passou os dedos pelos cabelos e esfregou os olhos.
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- Mas isso é completamente absurdo.
Bublanski puxou o lábio inferior com o indicador e o polegar da mão direita. Modig olhou para ele e teve de reprimir um sorriso. Bublanski tinha um rosto duro, talhado a escopro, que parecia quase brutal. Mas quando estava confuso ou inseguro sobre qualquer coisa, fazia um ar zangado, quase de amuo. Era nessas ocasiões que o via como Inspector Bolha. Nunca usara a alcunha na presença dele e não sabia sequer quem a inventara. Mas assentava-lhe perfeitamente.
- Qual é o nosso grau de certeza?
- O procurador parece não ter dúvidas. Foi emitido um mandado de captura a nível nacional - respondeu Bublanski. - A fulana passou o último ano no estrangeiro, e é possível que tente voltar a sair.
- Mas qual é o nosso grau de certeza? Bublanski encolheu os ombros.
- Já detivemos pessoas com muito menos.
- As impressões dela estão na arma do crime. O tutor dela apareceu morto. Sem querer adiantar-me aos resultados, aposto que com a mesma arma. Amanhã já ficamos a saber: os técnicos encontraram um fragmento de bala relativamente intacto na armação da cama.
- Óptimo.
- Há munições para o revólver na última gaveta da secretária. Balas com núcleo de urânio e ponta de ouro.
- Muito útil.
- Temos montes de papelada a dizer que a Salander é instável. O Bjurman era o tutor dela e era o proprietário da arma.
- Hum...
- Temos uma ligação entre ela e o casal de Enskede: o Mikael
Blomkvist.
- Hum...
- Não pareces muito convencido.
- Não consigo formar uma opinião sobre a fulana. Os papéis dizem uma coisa, mas o Armanskij e o Blomkvist dizem outra completamente diferente. De acordo com a papelada, é uma psicopata com uma deficiência quase progressiva. De acordo com os dois homens que trabalharam com ela, é uma investigadora sobredotada. Há aqui
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uma enorme discrepância. Não temos um motivo no que respeita ao Bjurman e nada que nos diga que ela conhecia o casal de Enskede.
- E achas que uma psicopata precisa de grandes motivos?
- Ainda não fui ao quarto. Qual é o aspecto?
- Encontrei o corpo atravessado de bruços em cima da cama. Estava ajoelhado no chão, como se estivesse a rezar. Nu. Um tiro na nuca.
- Um tiro, como em Enskede?
- Tanto quanto pude ver. Parece que a Salander, se foi ela a assassina, o obrigou a ajoelhar-se junto da cama antes de disparar. A bala entrou pela nuca e saiu pela cara.
- Estilo execução, portanto.
- Precisamente.
- Estava a pensar... alguém deve ter ouvido o tiro.
- O quarto dá para as traseiras e os vizinhos de baixo e de cima estão fora. A janela estava fechada. Além disso, ela usou uma almofada para abafar o barulho.
- Espertalhona.
Nesse instante, Gunnar Samuelsson, da equipa técnica, espreitou para dentro da sala.
- Olá, Bolha - disse, e então voltou-se para a colega. - Modig, estávamos a preparar-nos para remover o corpo, de modo que o virámos. Há uma coisa que tens de ver.
Dirigiram-se todos ao quarto. O corpo de Bjurman tinha sido estendido de costas numa maca com rodas, a primeira paragem no caminho para o patologista. Não havia a mínima dúvida quanto à causa da morte. A testa apresentava um buraco com dez centímetros de largura, e uma boa parte do crânio estava suspensa de um farrapo de pele. O sangue que jorrara para a cama e para a parede fronteira contava a história.
Bublanski fez a sua careta de amuo.
- O que é que eu tenho de ver? - perguntou Modig. Samuelsson levantou a película de plástico que cobria o corpo de
Bjurman. Bublanski pôs os óculos quando ele e Modig se aproximaram para ler as palavras tatuadas no abdómen do cadáver. As letras
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eram irregulares e desajeitadas. Obviamente, quem as desenhara tinha pouca experiência como tatuador, mas a mensagem não poderia ser mais clara: sou um porco sádico, um pervertido e um violador.
Modig e Bublanski olharam um para o outro, estupefactos.
- Será possível que estejamos a olhar para o motivo? - disse ela, finalmente.
Mikael Blomkvist comprou uma refeição congelada no 7-Eleven, a caminho de casa, enfiou a embalagem no microondas enquanto se despia e deixou-se ficar três minutos debaixo do duche. Pegou num garfo e comeu de pé, directamente da embalagem. Estava com fome, mas não lhe apetecia comida; queria apenas engoli-la o mais depressa que pudesse. Quando acabou, abriu uma Vestfyn Pilsner e bebeu pela garrafa.
Sem acender qualquer luz, ficou de pé diante da janela que dava para Gamla Stan durante mais de 20 minutos, enquanto tentava parar de pensar.
Vinte e quatro horas antes, estava em casa da irmã quando Svensson lhe ligara para o telemóvel. Nessa altura, Dag e Mia ainda estavam vivos.
Havia 36 horas que não dormia, e os tempos em que podia fazer directas impunemente eram coisa do passado. Mas sabia que não ia ser capaz de dormir enquanto pensasse no que tinha visto. Era como se as imagens de Enskede lhe tivessem ficado gravadas na memória para todo o sempre.
Por fim, desligou o telemóvel e enfiou-se na cama. Às onze da noite, ainda estava acordado. Levantou-se e foi fazer café. Pôs um CD no leitor e ficou a ouvir Debbie Harry cantar "Maria". Sentou-se no sofá da sala, a beber café e a pensar em Lisbeth Salander.
Que sabia ele verdadeiramente a respeito dela? Praticamente nada.
Que tinha uma memória fotográfica e era uma hacker excepcional. Que era uma mulher estranha, introvertida, que não gostava de falar a respeito de si mesma, e que não tinha a mais pequena ponta de confiança em qualquer espécie de autoridade.
Que podia ser terrivelmente violenta. Era, aliás, graças a isso que estava vivo.
Mas nunca soubera que ela fora declarada interdita e que estava sob tutela, ou que passara uma parte da adolescência numa clínica psiquiátrica.
Tinha de escolher de que lado ia estar.
A dada altura, depois da meia-noite, decidiu que não ia aceitar a assunção da polícia de que ela tinha matado Dag e Mia. No mínimo dos mínimos, devia-lhe a oportunidade de explicar-se antes de a condenar.
Não fazia ideia de a que horas tinha adormecido, mas, às quatro e meia da manhã, acordou no sofá. Foi aos tropeções até à cama e voltou a adormecer instantaneamente.
CAPÍTULO 16
SEXTA-FEIRA SANTA, 25 DE MARÇO - SÁBADO DE ALELUIA, 26 DE MARÇO
Malin ERIKSSON recostou-se no sofá. Sem pensar no que fazia, pôs os pés em cima da mesa de café - exactamente como teria feito em casa - e no mesmo instante voltou a tirá-los. Mikael sorriu-lhe.
- Tudo bem - disse. - Estás em tua casa.
Ela sorriu e voltou a pôr os pés em cima da mesa.
Mikael tinha levado as cópias dos papéis de Svensson da redacção da Millennium para o apartamento, e espalhara o material pelo chão da sala. Ele e Malin tinham passado oito horas a ver e-mails, notas, apontamentos rabiscados e, sobretudo, o texto do livro.
No sábado de manhã, Annika Giannini fora visitar o irmão. Levara consigo os jornais da tarde do dia anterior, com os seus cabeçalhos gritantes e uma reprodução enorme da fotografia de passaporte de Lisbeth Salander na primeira página. Um deles dizia:
PROCURADA POR TRIPLO ASSASSÍNIO
O outro optara por um cabeçalho mais sensacionalista:
POLÍCIA NA PISTA DE ASSASSINA PSICOPATA
Tinham conversado longamente, e Mikael explicara à irmã a sua relação com Lisbeth Salander e por que razão não podia acreditar que ela fosse culpada. Finalmente, perguntara-lhe se estaria disposta a representar Lisbeth, se e quando ela fosse capturada.
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- Já representei mulheres em vários casos de violação e maus-tratos, mas não sou verdadeiramente uma advogada criminal - respondera ela.
- És a advogada mais hábil que conheço, e a Lisbeth vai precisar de alguém em quem possa confiar. Penso que te aceitará.
Annika pensara um pouco antes de, relutantemente, concordar em ter pelo menos uma conversa com Lisbeth Salander, se chegassem a esse ponto.
A uma da tarde, a inspectora Modig telefonara a perguntar se podia ir buscar o saco de ombro de Lisbeth. A polícia tinha, evidentemente, aberto e lido a carta que ele enviara para a morada de Lisbeth na Lundagatan.
Modig tocara à campainha ainda não tinham passado 20 minutos, e Mikael pedira-lhe que aguardasse na sala, na companhia de Malin, enquanto ia buscar o saco. Na cozinha, tirara-o da prateleira junto ao microondas e, depois de hesitar um instante, retirara do interior a lata de gás pimenta e o martelo. Ocultação de provas. O gás pimenta era uma arma ilegal, cuja posse era punida por lei. O martelo só serviria para dar argumentos aos que acusavam Lisbeth de ter tendências violentas. E isso era o que menos falta fazia.
Voltara à sala e oferecera café à inspectora.
- Posso fazer-lhe umas perguntas? - pedira Modig.
- Faça favor.
- Na carta que escreveu a Lisbeth Salander, e que o meu colega encontrou no apartamento da Lundagatan, diz estar em dívida para com ela. O que é exactamente que isso quer dizer?
- Lisbeth Salander fez-me um enorme favor.
- Que espécie de favor?
- Foi um favor estritamente pessoal, que não tenciono discutir. Modig olhara fixamente para ele.
- Estamos a investigar três casos de assassínio.
- E eu espero que apanhem o filho da mãe que matou o Dag e a Mia o mais depressa possível.
- Não acredita que Lisbeth Salander seja a assassina?
- Não, não acredito.
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- Nesse caso, quem pensa que matou os seus amigos?
- Não sei. Mas o Dag preparava-se para denunciar um grande número de pessoas que tinham muito a perder. Uma delas pode ter sido o assassino.
- E por que razão haveria essa pessoa de matar Nils Bjurman, o advogado?
- Não sei. Pelo menos por enquanto.
O olhar dele mantivera-se firme e cheio de convicção. Subitamente, Modig sorrira. Sabia que lhe chamavam Super Blomkvist, uma alcunha inspirada no nome do detective dos livros de Astrid Lind-gren. Compreendia agora porquê.
- Mas tenciona descobrir?
- Se puder. Pode dizê-lo ao inspector Bublanski.
- Assim farei. E se a Lisbeth Salander entrar em contacto consigo, espero que nos avise.
- Não estou a contar que ela me contacte a confessar que é a culpada destes crimes, mas se o fizer, tentarei convencê-la a entregar-se. Nesse caso, apoiá-la-ei em tudo o que puder... Ela vai precisar de um amigo.
- E se ela disser que não é culpada?
- Nesse caso, espero que possa lançar alguma luz sobre o que aconteceu.
- Herr Blomkvist, só entre nós os dois e offthe record, espero que compreenda que Lisbeth Salander tem de ser detida. Não faça nenhuma parvoíce se ela entrar em contacto consigo. Se estiver enganado, e ela for responsável por estas mortes, pode ser extremamente perigoso para si.
Mikael fizera um gesto de assentimento.
- Espero que não nos vejamos obrigados a colocá-lo sob vigilância. Sabe, evidentemente, que é ilegal prestar qualquer tipo de ajuda a um fugitivo. Ajudar alguém acusado de assassínio é um crime muito grave.
- E eu, pelo meu lado, espero que a polícia dedique ao menos algum tempo a estudar a possibilidade de Lisbeth Salander não ter nada que ver com esses crimes.
- Fá-lo-emos, com certeza. Próxima pergunta. Sabe, por acaso, que espécie de computador Dag Svensson usava para trabalhar?
- Tinha um Mac iBook 500 em segunda mão, com um visor de 14 polegadas. Igual ao meu, mas com um visor maior. - Mikael apontou para o computador pousado em cima de uma mesa próxima.
- Faz ideia de onde ele o guardava?
- Habitualmente, transportava-o numa mochila preta. Suponho que estará no apartamento deles.
- Não, não está. Poderá estar na redacção?
- Não. Passei em revista a secretária dele, e não está lá nada. Ficaram sentados em silêncio durante alguns instantes.
- Quer isso dizer que o computador do Dag desapareceu? - perguntara finalmente Mikael.
Mikael Blomkvist e Malin Eriksson tinham feito uma lista das pessoas que podiam, em teoria, ter motivos para matar Svensson. Tinham escrito os nomes em grandes folhas de papel que Mikael distribuíra, coladas com fita adesiva pelas paredes da sala. Eram todos homens, clientes ou proxenetas, e todos eles apareciam no livro. As oito da noite, tinham 37 nomes, 29 dos quais eram facilmente identificáveis. Oito eram referidos por pseudónimos no texto de Svensson. Vinte dos identificados eram clientes que tinham, em várias ocasiões, explorado uma ou outra das raparigas. O problema prático - da perspectiva de saber se deviam ou não publicar o livro - era o facto de muitas das afirmações se basearem em informação que só Dag ou Mia possuíam. Um escritor que soubesse - inevitavelmente - menos sobre o tema ia ter de verificar os dados por si mesmo.
Calcularam que cerca de 80% do texto existente podia ser publicado sem problemas de maior, mas havia muito trabalho de investigação a fazer antes que a Millennium pudesse arriscar-se a publicar os restantes 20%. Não duvidavam da exactidão do que era afirmado, apenas não estavam suficientemente familiarizados com o trabalho de pormenor que apoiava as descobertas mais explosivas do livro. Se Dag Svensson estivesse vivo, poderiam publicar sem hesitações: ele e Mia saberiam refutar quaisquer objecções.
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Mikael olhou para a janela. Tinha anoitecido, e estava a chover. Perguntou a Malin se queria mais café. Ela respondeu que não.
- Temos o manuscrito sob controlo - disse ela. - Mas não estamos mais perto de descobrir o assassino do Dag e da Mia.
- Pode ser um dos nomes na parede.
- Pode ser alguém que não tenha nada que ver com o livro. Ou pode ser a tua amiga.
- Lisbeth - disse Mikael.
Malin lançou-lhe um olhar de soslaio. Havia 18 meses que trabalhava na Millennium. Entrara em pleno caos do caso Wennerstrõm. Depois de anos de trabalhos temporários, a Millennium fora o seu primeiro emprego fixo a tempo inteiro. E estava a sair-se maravilhosamente. Trabalhar na Millennium dava status. Criara uma excelente relação com Erika Berger e com o resto do pessoal, mas sempre se sentira pouco à vontade na companhia de Mikael Blomkvist. Não havia, que ela soubesse, qualquer razão clara para aquilo, mas, de todas as pessoas da Millennium, Mikael era a que achava mais reservada e
inacessível.
Ao longo do último ano, chegara quase todos os dias tarde e fechava-se sozinho no seu gabinete, ou no gabinete de Erika. Ausentava-se com muita frequência e, nos primeiros meses, Malin quase o vira mais vezes sentado num sofá, num estúdio de TV, do que em pessoa. Não encorajava conversas de circunstância e, a julgar pelos comentários dos outros membros do pessoal, parecia ter mudado. Estava mais taciturno, mais distante.
- Se o meu trabalho vai ser tentar descobrir por que razão o Dag e a Mia foram mortos, vou precisar de saber mais sobre Lisbeth Salander. Nem sequer sei por onde começar, se...
Deixou a frase em suspenso. Mikael olhou para ela. Então, sentou-se no outro cadeirão e pôs os pés em cima da mesa, ao lado dos
dela.
- Gostas de trabalhar na Millennium} - perguntou, inesperadamente. - Quer dizer, já trabalhas para nós há um ano e meio, mas eu tenho andado numa correria de um lado para o outro que mal tivemos oportunidade de nos conhecer.
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- Gosto muito de trabalhar para a Millennium - respondeu Malin. - E vocês, estão satisfeitos comigo?
- Eu e a Erika temos dito muitas vezes que nunca tivemos uma assistente editorial tão competente. Foste um autêntico achado. E desculpa por não te ter dito mais cedo.
Malin sorriu, satisfeita. Um elogio do Super Blomkvist era altamente gratificante.
- Mas não era exactamente disso que eu estava a falar - disse.
- Queres saber qual é a relação entre a Lisbeth Salander e a Millennium.
- Tu nunca disseste nada, e a Erika também não fala do assunto. Mikael enfrentou-lhe o olhar. Ele e Erika podiam ter toda a confiança em Malin, mas havia coisas que não podia discutir.
- Concordo contigo - disse, por fim. - Se vais cavar nesta história, precisas de mais informação. Eu sou uma fonte elementar, e sou também a ligação entre a Lisbeth e o Dag e a Mia. Faz as tuas perguntas, e eu responderei o melhor que puder. Quando não puder responder, dir-te-ei.
- Porquê tanto segredo? Quem é Lisbeth Salander e que tem ela que ver com a Millennium, para começar?
- É assim. Há dois anos, contratei-a como investigadora para um trabalho extremamente complicado. É esse o problema. Não posso dizer-te o que ela fez para mim. A Erika sabe, mas está obrigada por um solene compromisso de confidencialidade.
- Há dois anos... isso foi antes de arrumares o Wennerstrõm. Devo assumir que a Lisbeth estava a fazer uma pesquisa relacionada com esse caso?
- Não, não deves. Não vou confirmar nem desmentir. Mas posso dizer-te que contratei a Lisbeth para um projecto completamente diferente e que ela fez um trabalho excepcional.
- Okay, isso foi quando estavas a viver como um eremita em He-destad, segundo ouvi dizer. E Hedestad não passou propriamente despercebida no mapa dos media, nesse Verão. Com Harriet Vanger a regressar de entre os mortos, e tudo isso. Estranhamente, a Millennium não escreveu uma palavra a respeito de tão surpreendente ressuscitação.
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- A razão por que não escrevemos a respeito da Harriet foi o facto de ela fazer parte do nosso conselho de administração. Deixámos que fossem outros a investigá-la. E quanto à Lisbeth Salander, podes acreditar na minha palavra quando te digo que o trabalho que ela fez para mim naquele projecto não teve nada que ver com o que aconteceu em Enskede.
- Acredito na tua palavra.
- Deixa-me dar-te um conselho. Não te ponhas a adivinhar. Não tires conclusões precipitadas. Aceita simplesmente que ela trabalhou para mim e que eu não posso falar, e não falarei, do que esteve em causa. Mas ela fez outra coisa por mim, além de trabalho. Naquela altura, salvou-me a vida. Literalmente.
Malin ergueu os olhos, surpreendida. Nunca ouvira uma palavra a respeito daquilo, na Millennium.
- O que quer dizer que a conheces bastante bem.
- Tão bem quanto é possível a alguém conhecer a Lisbeth Salander, suponho. É a pessoa mais introvertida que encontrei em toda a minha vida.
Levantou-se do cadeirão e olhou para a noite, lá fora.
- Não sei se queres, mas acho que vou beber um vodca com sumo de lima - disse, finalmente.
- Soa-me bastante melhor do que mais um café.
Dragan Armanskij passou o fim-de-semana da Páscoa, na sua casa na ilha de Blidõ, a pensar em Lisbeth Salander. Os filhos, já crescidos, tinham preferido não passar os feriados com os pais. Ritva, a mulher com quem estava casado havia 25 anos, notou que, por vezes, ele parecia alheado. Caía em meditabundos silêncios e respondia distraida-mente quando ela lhe falava. Ia todos os dias, de carro, à papelaria mais próxima comprar os jornais. Sentava-se junto à janela, na marquise, e lia as notícias sobre a caçada a Lisbeth Salander.
Estava desapontado consigo mesmo por tê-la avaliado tão mal. Sempre soubera, desde que a conhecia, que ela tinha problemas mentais. Que fosse violenta e capaz de magoar seriamente quem a ameaçasse
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não o espantava. A possibilidade de ter atacado o tutor - que indubitavelmente veria como alguém que se intrometia nos seus assuntos - era compreensível, a um certo nível intelectual. Qualquer tentativa de controlar-lhe a vida seria vista como uma provocação, um acto hostil.
Em contrapartida, já não conseguia, por mais que se esforçasse, compreender o que poderia tê-la levado a matar a tiro duas pessoas que, de acordo com toda a informação disponível, lhe eram completamente desconhecidas.
Continuava à espera de que a polícia estabelecesse uma ligação entre Lisbeth e o casal de Enskede, que um deles, ou ambos, tivesse de facto qualquer coisa a ver com ela, ou que um deles tivesse provocado a sua violência. Mas os jornais nada diziam a esse respeito; em vez disso, especulava-se que a mulher mentalmente doente devia ter sofrido uma espécie de colapso.
Telefonou duas vezes ao inspector Bublanski, a perguntar se tinham sido feitos quaisquer progressos, mas nem o chefe da investigação podia dar-lhe uma ligação entre Lisbeth e o casal de Enskede. Mikael Blomkvist conhecia Lisbeth e conhecera o casal. Mas nada sugeria que Lisbeth conhecesse ou tivesse sequer ouvido falar de Dag Svensson e Mia Johansson. Se as impressões digitais dela não estivessem na arma do crime, e se não houvesse uma indiscutível ligação entre ela e Bjurman, a primeira vítima, a polícia andaria ainda às apalpadelas no escuro.
Malin fez uma visita à casa de banho de Mikael e voltou para o sofá.
- Resumindo - disse. - A tarefa é descobrir se Lisbeth Salander assassinou o Dag e a Mia, como a polícia afirma. Por onde começar?
- Encara isto como uma escavação arqueológica. Não precisamos de fazer a nossa própria investigação policial. Mas temos de estar em cima da polícia e sacar-lhes, de uma maneira ou de outra, o que forem sabendo. Será como qualquer outro trabalho, com a diferença de que não teremos necessariamente de publicar tudo o que descobrirmos.
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- Mas se foi a Lisbeth que os matou, tem de haver uma ligação significativa entre ela e o Dag e a Mia. E a única ligação, até ao momento, és tu.
- E, na realidade, não sou ligação nenhuma. Há mais de um ano que não falo com a Lisbeth. Não imagino como poderia ela ter sabido da existência...
De repente, calou-se. Lisbeth Salander, a super-hacker. Ocorreu-lhe que tinha o iBook cheio de correspondência com Dag, além de várias versões do livro e de um ficheiro com a tese de Mia. Não podia ter a certeza de que Lisbeth andasse a invadir-lhe o computador, mas supondo que ela descobrira que ele conhecia Dag Svensson, que razão poderia ter tido para matá-lo? E a Mia. Até muito pelo contrário: o trabalho que estavam a fazer tinha que ver com violência contra mulheres, e Lisbeth tê-los-ia encorajado de todos os modos ao seu alcance. Isto se a conhecia minimamente.
- Estás com ar de quem se lembrou de alguma coisa - disse Malin.
Mikael não tinha a mínima intenção de revelar os dotes especiais de Lisbeth na área da informática.
- Não, estou só muito cansado e a descarrilar um pouco - disse.
- Bem, a tua Lisbeth não é suspeita de ter assassinado apenas o Dag e a Mia, mas também o tutor, e nesse caso a ligação é claríssima. O que é que sabes a respeito dele?
- Nada. Nunca tinha ouvido o nome dele. Nem sequer sabia que ela tinha um tutor.
- Mas a probabilidade de alguém ter assassinado os três é praticamente nula. Mesmo que alguém tivesse matado o Dag e a Mia por causa da história, não teria qualquer razão plausível para matar também o tutor da Lisbeth.
- Eu sei, e isso põe-me doente. Mas consigo imaginar pelo menos um cenário em que alguém de fora podia matar o Dag e a Mia e também o tutor da Lisbeth.
- Conta.
- Digamos que o Dag e a Mia foram assassinados porque andavam a meter o nariz no negócio do sexo e que a Lisbeth se viu de
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algum modo envolvida, como parte interessada. Se o Bjurman era o tutor dela, há a possibilidade de ela lhe ter contado, e por conseguinte ele ter sido testemunha, ou de algum modo ter ficado a saber de qualquer coisa que levou à sua morte.
- Percebo a ideia - disse Malin. - Mas não tens o mais pequeno indício que apoie essa teoria.
- Pois não, nem o mais pequeno indício.
- Então o que achas? É ou não culpada? Mikael pensou por instantes.
- Se me perguntasses se ela é capaz de matar, a resposta seria sim. A Lisbeth tem uma veia violenta. Vi-a em acção quando...
- Quando ela te salvou a vida? Mikael olhou para Malin.
- Não posso explicar-te as circunstâncias. Mas havia um homem que queria matar-me, e estava prestes a consegui-lo quando ela o atacou com um taco de golfe.
- E tu não contaste nada disso à polícia?
- Absolutamente nada. É uma coisa que tem de ficar entre nós. - Olhou fixamente para ela. - Malin, tenho de poder confiar em ti.
- Não contarei a ninguém o que me disseste. Nem sequer ao Anton. Não és apenas o meu patrão... gosto de ti, e não quero fazer nada que te prejudique.
- Peço desculpa.
- Vê lá se paras de pedir desculpa.
Ele riu-se. Mas voltou a pôr-se sério logo a seguir.
- Estou convencido de que, se necessário, ela teria matado o homem para me proteger. Mas ao mesmo tempo acredito que é muito racional. Estranha, sem dúvida, mas completamente racional de acordo com a sua própria perspectiva. Fez uma coisa horrivelmente violenta, mas porque era necessária, não porque quis. Para matar uma pessoa, teria de sentir-se extraordinariamente ameaçada, ou provocada.
Ficou pensativo por alguns instantes. Malin aguardou pacientemente.
- Não posso falar pelo advogado. Não sei nada a respeito dele. Mas não consigo imaginá-la a ser ameaçada ou provocada... fosse
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de que maneira fosse... pelo Dag e pela Mia. Não acredito que seja possível.
Ficaram em silêncio por um longo momento. Malin olhou para o relógio e viu que eram nove e meia.
- É tarde. É melhor ir andando para casa.
- Foi um longo dia. Podemos continuar amanhã. Não, deixa ficar a louça. Eu trato disso.
Naquela noite de sábado, Dragan Armanskij ficou acordado, a ouvir a mulher dormir. Nada naquele drama fazia sentido. Acabou por levantar-se, enfiar as chinelas e o roupão e ir para a sala. Estava frio, de modo que pôs algumas achas na lareira de pedra-sabão, abriu uma cerveja e sentou-se a olhar para as águas escuras do canal de Furusund.
O que é que eu sei?
Lisbeth Salander era desequilibrada e imprevisível. Quanto a isso, não havia a mínima dúvida.
Alguma coisa acontecera no Inverno de 2003, quando ela deixara de trabalhar para ele e partira para fazer o seu ano sabático no estrangeiro. Blomkvist tivera qualquer coisa que ver com a súbita partida dela... mas também não sabia o que lhe tinha acontecido.
Lisbeth voltara e fora procurá-lo. Afirmara ser "financeiramente independente", o que presumivelmente significava que tinha dinheiro suficiente para se governar durante algum tempo.
Tinha visitado Palmgren com regularidade. Não entrara em contacto com Blomkvist.
Matara a tiro três pessoas, duas das quais não conhecia. Não faz ponta de sentido.
Bebeu um golo de cerveja e acendeu uma cigarrilha. Sentia a consciência pesada, e isso contribuía para o seu mau humor.
Quando Bublanski o procurara, tinha-lhe dado, sem hesitar, toda a informação de que dispunha e que pudesse conduzir à detenção de Lisbeth. Não tinha a mínima dúvida de que era preciso que ela fosse detida... e quanto mais cedo melhor. Agora, porém, arrependia-se de a ter em tão pouca conta que aceitara sem discutir a presunção de
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que era culpada. Toda a sua vida fora um realista. Se a polícia lhe dizia que uma pessoa era suspeita de assassínio, o mais certo era que fosse verdade. Portanto, Lisbeth era culpada.
No entanto, a polícia parecia não estar a considerar a possibilidade de ela ter sentido que as suas acções eram justificadas... ou de haver circunstâncias atenuantes ou uma explicação razoável para o facto de ter enlouquecido. A missão da polícia era encontrá-la e provar que ela disparara aqueles tiros, não psicanalisá-la. Ficariam satisfeitos se conseguissem descobrir um motivo para o que ela fizera, mas se não conseguissem, estavam preparados para atribuir as mortes a um acesso de loucura. Abanou a cabeça. Não era capaz de aceitar a ideia de ela ser uma assassina psicopata. Lisbeth Salander nunca fazia nada contra a sua vontade ou sem pesar cuidadosamente as consequências.
Estranha, sim. Louca, não. Tinha, portanto, de haver uma explicação, por muito obscura que pudesse parecer a quem não a conhecesse.
Por volta das duas da manhã, tomou uma decisão.
CAPÍTULO 17
DOMINGO DE PÁSCOA, 27 DE MARÇO -TERÇA-FEIRA, 29 DE MARÇO
Dragan Armanskij levantou-se cedo no domingo, depois de longas horas de constante preocupação. Desceu à cozinha sem acordar a mulher e fez café e uma sanduíche. Em seguida, ligou o portátil e começou a escrever.
Usou o mesmo formulário que a Milton Security utilizava para as investigações pessoais e introduziu todos os factos sobre a personalidade de Lisbeth Salander de que conseguiu lembrar-se.
Às nove, Ritva desceu as escadas e serviu-se de uma chávena de café. Perguntou-lhe o que estava a fazer. Ele respondeu evasivamente e continuou a escrever. Ritva conhecia-o o suficiente para saber que ia estar ligado à terra durante o resto do dia.
Afinal, Mikael Blomkvist tinha-se enganado, o que se deveu provavelmente ao facto de ser fim-de-semana de Páscoa e a sede da Judiciária estar ainda relativamente deserta. Só no domingo de manhã os media souberam que tinha sido ele a encontrar Dag Svensson e Mia Johansson. O primeiro a ligar foi um jornalista do Aftonbladet, um velho amigo.
- Blomkvist? Fala Nicklasson.
- Diz.
- Foste então tu que encontraste o casal em Enskede?
- É verdade.
- A minha fonte diz-me que trabalhavam para a Millennium.
- A tua fonte só acertou em metade. O Dag Svensson estava a fazer um trabalho freelance para a Millennium. A Mia Johansson não trabalhava para nós.
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- Caramba, pá, é o raio de uma história, tens de admitir.
- Pois é - disse Mikael, num tom cansado.
- Porque foi que não disseram nada?
- O Dag era um colega e um amigo. Achámos que era de bom-tom deixar que as famílias soubessem o que tinha acontecido antes de publicarmos fosse o que fosse.
Mikael tinha a certeza de que esta afirmação não seria citada.
- Faz sentido. Em que estava o Dag a trabalhar?
- Numa história que lhe encomendámos.
- A respeito de quê?
- Que espécie de furo estão vocês a preparar no Aftonbladet}
- Era então um furo?
- Vai-te lixar, Nicklasson.
- Oh, vá lá, Bloomy. Achas que os crimes tiveram alguma coisa que ver com a história em que o Dag Svensson estava a trabalhar?
- Se voltas a chamar-me Bloomy, desligo e não torno a falar contigo durante o resto do ano.
- Está bem, desculpa. Achas que o Dag foi assassinado por causa do seu trabalho como jornalista de investigação?
- Não faço a mínima ideia de por que é que o Dag foi assassinado... - A história em que ele estava a trabalhar tinha alguma coisa que ver com a Lisbeth Salander?
- Não. Absolutamente nada.
- O Dag conhecia essa chalada?
- Não faço ideia.
- O Dag escreveu, recentemente, uma série de artigos sobre crime informático. Era o género de história que estava a fazer para a Millennium?
Não desistes, pois não? Mikael estava quase a dizer a Nicklasson que fosse dar uma curva quando, de repente, se sentou muito direito na cama. Acabava de ter duas excelentes ideias. Nicklasson começou a dizer qualquer coisa.
- Aguenta um instante. Não saias daí. Eu já volto.
Saltou da cama e tapou o microfone do telemóvel com a palma da mão. Subitamente, estava noutro planeta.
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Desde os assassínios que dava voltas à cabeça à procura de uma maneira de entrar em contacto com Lisbeth. Havia uma possibilidade - uma fortíssima possibilidade - de ela ler o que ele dissesse aos jornais, onde quer que estivesse. Se negasse conhecê-la, ela poderia interpretá-lo como uma indicação de que a abandonara, ou a traíra. Se a defendesse, outras pessoas poderiam pensar que ele sabia mais do que dizia sobre os assassínios. Mas se usasse as palavras certas, talvez Lisbeth se sentisse tentada a contactá-lo.
- Desculpa, estou de volta. Que estavas a dizer?
- Estava a perguntar se o trabalho do Dag era sobre crime informático.
- Se queres uma declaração minha, eu dou-ta.
- Dispara.
- Só se me citares ipsis verbis.
- De que outra maneira haveria de citar-te?
- Acho que é melhor não responder a essa pergunta.
- Então, o que é que tens a dizer?
- Mando-te por e-mail dentro de quinze minutos.
- O quê?
- Vê o teu e-mail - disse Mikael, e desligou.
Foi até à secretária e iniciou o iBook. Abriu o Word e concentrou-se durante dois minutos antes de começar a escrever.
Erika Berger, directora editorial da Millennium, ficou profundamente abalada pela morte do jornalista freelancer e colaborador Dag Svensson, e manifestou a esperança de que os crimes sejam rapidamente solucionados.
Os corpos de Dag Svensson e da companheira, Mia Johansson, assassinados na noite da passada quarta-feira, foram encontrados por Mikael Blomkvist, editor da revista.
"Dag Svensson era um jornalista excepcionalmente talentoso e uma pessoa de quem eu gostava muito. Tinha-nos proposto ideias para vários artigos. Entre outras coisas, estava a levar a cabo uma aprofundada investigação sobre a questão da pirataria informática", disse Mikael Blomkvist ao Aftonbladet.
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Blomkvist e Berger recusam especular sobre quem poderá ter sido o autor dos assassínios, ou sobre os motivos destas mortes.
Logo a seguir a ter escrito isto, pegou no telefone e ligou para Erika.
- Viva, Ricky. Acabas de ser entrevistada pelo Aftonbladet.
- Conta.
Mikael leu-lhe o texto que acabava de escrever.
- Como assim?
- É tudo verdade. O Dag trabalhava como freelancer há mais de dez anos, e uma das suas especializações era a segurança informática. Falámos muitas vezes do assunto, quando pensámos na possibilidade de abordar o tema depois da história sobre o tráfico de mulheres. E conheces mais alguém que se interesse por pirataria informática?
Erika percebeu imediatamente o que ele estava a tentar fazer.
- Esperto, Micke. Muito esperto. Okay, avança. Nicklasson ligou um minuto depois de ter recebido o e-mail.
- Não se pode dizer que seja um grande furo.
- É tudo o que tens, e é mais do que qualquer outro jornal vai ter. Reproduzes tudo, ou nada.
Depois de falar com Nicklasson, Mikael voltou ao iBook, pensou um instante e escreveu:
Querida Lisbeth,
Vou escrever esta carta e deixá-la no meu disco rígido sabendo que, mais cedo ou mais tarde, acabarás por lê-la. Lembro-me de como assumiste o controlo do disco rígido do Wenríerstrõm, há dois anos, e suspeito de que fizeste o mesmo ao meu. É evidente que já não queres ter nada que ver comigo. Não tenciono perguntar-te porquê e não tens de explicar seja o que for.
Os acontecimentos dos últimos dias voltaram a ligar-nos, por muito que isso te desagrade. A polícia diz que mataste duas pessoas de quem eu gostava muito. Fui eu que encontrei o Dag e a Mia minutos depois de terem sido assassinados. Não acredito que tenhas sido tu a matá-los.
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Espero muito não estar enganado. A polícia afirma que és uma assassina psicopata, mas isso significaria que me enganei completamente a teu respeito, ou que, durante o último ano, mudaste tanto que não conseguiria reconhecer-te. E se não és tu a assassina, então a polícia anda à procura da pessoa errada.
Dada a situação, devia provavelmente aconselhar-te a entregares-te, mas desconfio de que estaria a gastar o meu latim. Mais cedo ou mais tarde, vão encontrar-te, e quando isso acontecer vais precisar de um amigo. Podes querer não ter nada que ver comigo, mas tenho uma irmã chamada Annika Giannini que é advogada. Das melhores. Está disposta a representar-te, se a contactares. Podes confiar nela.
No que respeita à Millennium, iniciámos a nossa própria investigação sobre os motivos que levaram à morte do Dag e da Mia. O que estou a fazer neste preciso momento é a preparar uma lista das pessoas que teriam razões para silenciar o Dag. Não sei se estou na pista certa, mas vou investigar a lista nome a nome.
O problema é que não compreendo como o Nils Bjurman encaixa na fotografia. Não é referido no material do Dag e não consigo imaginar qualquer relação entre ele e o Dag e a Mia.
Ajuda-me. Por favor. Qual é a ligação?
Mikael
PS. Arranja outra foto de passaporte. A que tens não te faz justiça.
Chamou ao documento <Para Sally>. Em seguida, criou uma pasta chamada [LISBETH SALANDER] e colocou o respectivo ícone no desktop do iBook.
Na manhã de terça-feira, Dragan Armanskij chamou três pessoas para uma reunião no seu gabinete na Milton Security.
Johan Fráklund, de 62 anos, ex-inspector da polícia em Solna, era o chefe da unidade operacional e tinha a seu cargo o planeamento
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e a análise. Armanskij recrutara-o havia já dez anos, e considerava-o um dos grandes trunfos da empresa.
Os outros dois presentes eram Sonny Bohman, de 48 anos, e Nik-las Hedstrõm, de 29- Bohman era, como Frãklund, um ex-polícia. Pertencera à Secção de Resposta Armada de Norrmalm, nos anos 80, antes de passar para a Divisão de Crimes Violentos, onde liderara uma dúzia de investigações espectaculares. Desempenhara um papel-chave durante a crise do atirador furtivo que ficara conhecido como "O Homem do Laser", no início da década de noventa, e, em 1997, aceitara um lugar na Milton Security, depois de muita persuasão e a oferta de um salário substancialmente melhor.
Niklas Hedstrõm era considerado um novato. Frequentara a Academia de Polícia, mas, quando se preparava para fazer os exames finais, descobrira que sofria de um problema cardíaco congénito que não só exigia uma intervenção cirúrgica de envergadura, como também significava o fim da sua carreira policial.
Frãklund, que fora contemporâneo do pai de Hedstrõm, sugerira a Armanskij que lhe desse uma oportunidade. Uma vez que havia um lugar em aberto na secção de análise, Armanskij aprovara o recrutamento, e nunca tivera motivos para se arrepender. Hedstrõm trabalhava para a Milton havia cinco anos. Podia faltar-lhe experiência de campo, mas era dotado de uma inteligência viva e perspicaz.
- Bom dia a todos. Sentem-se e comecem a ler - disse Armanskij, enquanto distribuía três pastas com cerca de cinquenta páginas fotocopiadas de recortes de imprensa sobre a caça a Lisbeth Salander, além de três páginas com informação pessoal que ele próprio redigira. Hedstrõm foi o primeiro a acabar de ler, e pousou a pasta. Armanskij esperou que os outros dois terminassem. - Suponho que nenhum dos senhores deixou de reparar nos cabeçalhos dos jornais na semana passada.
- Lisbeth Salander - disse Frãklund, num tom sombrio. Bohman abanou a cabeça.
Hedstrõm limitou-se a olhar para o vazio, com uma expressão indecifrável e a sugestão de um sorriso triste. Armanskij passou os olhos pelo trio.
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- Uma das nossas colaboradoras - disse. - Até que ponto chegaram a conhecê-la enquanto trabalhou connosco?
- Tentei brincar com ela, uma vez - disse Hedstrõm, novamente com o seu esboço de sorriso. - Não achou graça. Pensei que ia arrancar-me a cabeça à dentada. Era uma trombuda de primeira e não devo ter trocado mais de uma dezena de frases com ela.
- A mim pareceu-me muito estranha - disse Fráklund. Bohman encolheu os ombros.
- Eu chamar-lhe-ia completamente chalada e uma criatura insuportável. Já sabia que era esquisita, mas nunca pensei que fosse louca a este ponto.
- Fazia as coisas à sua maneira - contemporizou Armanskij. -Não era uma pessoa de trato fácil, mas eu confiava nela porque era a melhor investigadora que alguma vez conheci. Entregava sempre resultados além do esperado, sem falhar.
- Uma coisa que nunca compreendi - disse Fráklund. - Nunca percebi como conseguia ela ser tão incrivelmente competente e ao mesmo tempo tão anti-social.
- A explicação reside, claro, no estado mental dela - declarou Armanskij, batendo com o dedo espetado numa das pastas. - Foi declarada interdita.
- Não fazia ideia - disse Hedstrõm. - Quer dizer, não trazia nenhum cartaz nas costas a dizer que era oficialmente atrasada mental. E o senhor nunca disse nada.
- Não - admitiu Armanskij. - Nunca disse nada porque pensei que ela não precisava de ser mais estigmatizada do que já era. Toda a gente merece uma oportunidade.
- E o resultado dessa benevolente experiência foi o que aconteceu em Enskede - disse Bohman.
- É possível - reconheceu Armanskij.
Não queria trair o seu fraco por Lisbeth diante daqueles três profissionais, que o observavam expectantemente. Tinham adoptado um tom bastante neutro durante a conversa, mas Armanskij sabia que detestavam Lisbeth, a exemplo, aliás, de todos os restantes empregados da Milton Security. Não queria parecer fraco ou confuso.
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Era importante apresentar o assunto de uma maneira que criasse um certo entusiasmo e profissionalismo.
- Resolvi, pela primeiríssima vez, usar alguns dos recursos da Milton para resolver um problema interno - continuou. - Não precisa de ter um peso excessivo no orçamento, mas estou a pensar libertar-vos aos dois, Bohman e Hedstrõm, das vossas actuais responsabilidades. A vossa missão, embora eu possa estar a formulá-la de uma maneira um tanto vaga, será "encontrar a verdade" a respeito de Lisbeth Salander.
Os dois homens olharam para ele com um ar céptico.
- Quero que você, Fráklund, encabece e acompanhe a investigação. Quero saber o que aconteceu e o que poderá ter levado Lisbeth Salander a matar o tutor e o casal de Enskede. Tem de haver uma explicação racional.
- Desculpe que lhe diga, mas isso parece-me um trabalho para a polícia - observou Fráklund.
- Sem dúvida - reconheceu Armanskij. - Mas nós temos uma certa vantagem em relação à polícia. Conhecemos a Lisbeth, e temos uma ideia de como ela funciona.
- Bom, se o diz - disse Bohman, num tom de dúvida. - Não acredito que alguém na empresa conhecesse a Salander ou fizesse a mais pequena ideia do que se passava naquela cabecinha.
- Isso não importa - declarou Armanskij. - A Lisbeth Salander trabalhava para a Milton Security. A meu ver, temos a responsabilidade de encontrar a verdade.
- A Salander já não trabalhava para nós há... o quê, dois anos? - objectou Fráklund. - Não estou a ver como é que podemos ser responsáveis pelo que ela fez. E não acredito que a polícia aprecie a nossa interferência na investigação.
- Pelo contrário - disse Armanskij. Aquele era o seu trunfo, e tinha de jogá-lo bem.
- Como assim? - estranhou Bohman.
- Ontem, tive um par de longas conversas com o homem que está a orientar o inquérito preliminar, o procurador Ekstrõm, e com o inspector Bublanski, que chefia a investigação no terreno. O Ekstrõm está sob pressão. Não estamos a falar de uma luta entre gangues.
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Trata-se de um caso com enorme potencial mediático em que um advogado, uma criminologista e um jornalista foram... ao que parece... executados. Expliquei que uma vez que a principal suspeita foi empregada da Milton Security, decidimos iniciar a nossa própria investigação. - Armanskij fez uma pausa, para os deixar digerir aquilo antes de continuar. - Eu e o Ekstrõm estamos de acordo em que o mais importante, de momento, é que a Lisbeth Salander seja colocada sob custódia o mais rapidamente possível... antes que cause mais mal a si mesma ou a terceiros. Uma vez que a conhecemos melhor do que a polícia, podemos contribuir para a investigação. Eu e o Ekstrõm decidimos que vocês os dois - apontou para Bohman e Hedstrõm - vão mudar-se para Kungsholmen e dar apoio à equipa do Bublanski. Os três empregados entreolharam-se, espantados.
- Permita que faça uma simples pergunta... mas nós somos meros civis - disse Bohman. - A polícia vai mesmo deixar-nos participar numa investigação criminal, assim sem mais?
- Vão trabalhar sob as ordens do Bublanski, mas manter-me-ão constantemente informado. Terão pleno acesso a toda a investigação. Entregarão ao Bublanski todo o material que temos e todo o que descobrirem. Para a polícia, isto significa que a equipa ganha um reforço gratuito. E nenhum de vocês é "um mero civil". Vocês os dois, Frák-lund e Bohman, trabalharam para a polícia durante mais tempo do que para mim, e até o Hedstrõm fez o curso da Academia.
- Mas é contra os princípios...
- De modo algum. A polícia recorre muitas vezes a consultores civis nas suas investigações, quer se trate de psicólogos em crimes sexuais ou de intérpretes quando há estrangeiros envolvidos. Vocês limitar-se-ão a participar como consultores civis com um conhecimento particular do principal suspeito.
Frãklund assentiu lentamente com a cabeça.
- Muito bem, a Milton vai participar na investigação da polícia e tentar ajudar a apanhar a Lisbeth Salander. Mais alguma coisa?
- Oh, sim. A vossa principal missão, no que respeita à Milton, é encontrar a verdade. Nada mais. Quero saber se a Lisbeth matou aquelas três pessoas... e se sim, porquê.
- Há alguma dúvida quanto à culpa dela? - perguntou Hedstrõm.
- As provas circunstanciais de que a polícia dispõe são fortes. Mas eu quero saber se há o outro lado da história... se há algum cúmplice de que não tenhamos conhecimento, alguém que possa ter sido o verdadeiro autor dos disparos, ou se há outras circunstâncias ainda desconhecidas.
- Não vai ser fácil encontrar circunstâncias atenuantes num triplo assassínio - disse Fráklund. - Se é isso que procuramos, devíamos supor que existe uma possibilidade de ela ser inocente. E eu não acredito nisso.
- Eu também não - disse Armanskij. - Mas o vosso trabalho será ajudar por todos os modos a polícia a deter Lisbeth Salander no mais curto espaço de tempo possível.
- Orçamento? - perguntou Fráklund.
- Aberto. Quero ser regularmente informado dos custos, e se a coisa se descontrolar, encerramos a operação. Mas partamos do princípio de que vão estar nisto uma semana, a partir de hoje. E uma vez que eu sou, dos que aqui estamos, o que melhor conhece a Lisbeth, devo ser uma das pessoas que vocês vão interrogar.
Sonja Modig lançou-se pelo corredor em passo acelerado e conseguiu chegar à sala de reuniões no preciso instante em que os colegas ocupavam os respectivos lugares. Sentou-se ao lado de Bublanski, que juntara toda a equipa de investigação para aquela reunião, incluindo o orientador do inquérito preliminar. Faste lançou-lhe um olhar aborrecido e tratou da introdução; fora ele que pedira o encontro.
Investigara anos de confrontação entre a burocracia da Assistência Social e Lisbeth Salander - aquilo a que chamava "a pista da psicopata" -, e conseguira sem dúvida reunir um considerável acervo de material. Faste tossicou para aclarar a garganta e voltou-se para o homem sentado à sua direita.
- Apresento-lhes o doutor Peter Teleborian, médico-chefe da clínica psiquiátrica Sankt Stefan, em Uppsala. Teve a gentileza de deslocar-se a Estocolmo para ajudar na investigação e dizer-nos o que sabe sobre a Lisbeth Salander.
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Sonja Modig estudou o Dr. Teleborian. Era um homem baixo, de cabelos castanhos encaracolados, óculos de aros metálicos e uma pequena barbicha. Vestia informalmente casaco de bombazina bege, jeans e uma camisa às riscas azuis e brancas, aberta no pescoço. As feições eram marcadas e o aspecto juvenil. Já se cruzara com ele diversas vezes, mas nunca tivera oportunidade de lhe falar. Teleborian dera uma conferência sobre perturbações psiquiátricas quando ela estava no último semestre da Academia de Polícia, e, numa outra ocasião, falara sobre psicopatas e comportamento psicopático nos jovens. Além disso, Modig estivera presente no julgamento de um violador em série em que ele testemunhara como perito. Tendo participado durante anos em debates públicos, o Dr. Teleborian era um dos psiquiatras mais conhecidos do país. Ganhara fama com as duras críticas que tecera aos cortes orçamentais na área dos cuidados psiquiátricos que tinham levado ao encerramento de vários hospitais da especialidade. Pessoas que necessitavam obviamente de tratamento tinham sido abandonadas nas ruas, para se tornarem indigentes a cargo da Segurança Social. Depois do assassínio da ministra dos Negócios Estrangeiros, Anna Lindh, o Dr. Teleborian tornara-se membro da comissão nomeada pelo Governo para estudar o declínio dos cuidados psiquiátricos.
Teleborian fez um aceno de cabeça ao grupo e deitou água mineral no copo de plástico.
- Vamos ver se posso contribuir de alguma maneira - começou, cautelosamente. - Detesto ter razão nas minhas previsões em situações como esta.
- As suas previsões? - estranhou Bublanski.
- É verdade. Por ironia, na noite dos assassínios em Enskede estava num debate televisivo a discutir a bomba-relógio que vai tiqueta-queando um pouco por todo o lado na nossa sociedade. É terrível. Claro que não estava a pensar especificamente em Lisbeth Salander naquela altura, mas dei um certo número de exemplos... com pseudónimos, é óbvio... de doentes que pura e simplesmente deviam estar em instituições e não em liberdade nas ruas. Calculei que, só este ano, a polícia vai ter de resolver meia dúzia de casos de assassínio ou de homicídio em que o assassino pertence a esse pequeno grupo de pacientes.
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- E acha que a Lisbeth Salander é um desses malucos? - perguntou Faste.
- Maluco não é a palavra que eu usaria. No entanto, ela é inquestionavelmente um desses indivíduos perturbados que eu não deixaria à solta na nossa sociedade, se pudesse.
- Está a dizer que devia ser presa antes que cometesse um crime? - interveio Modig. - Isso não está muito de acordo com os princípios de um Estado de direito.
Faste franziu o sobrolho e lançou-lhe um olhar furioso. Modig perguntou a si mesma porque seria que ele se mostrava sempre tão hostil para com ela.
- Tem toda a razão - disse Teleborian, acorrendo inadvertidamente em seu socorro. - Não é compatível com os princípios de um Estado de direito, pelo menos na sua forma actual. Trata-se de fazer um número de equilibrismo entre o respeito pelos direitos do indivíduo e o respeito pelos direitos das potenciais vítimas que uma pessoa mentalmente doente pode deixar na sua esteira. Cada caso é um caso, e cada paciente deve ser tratado numa base individual. É inevitável que nós, na área da psiquiatria, também cometamos erros e libertemos pessoas que não deviam andar na rua.
- Bem, não creio que precisemos de entrar aqui em grandes debates de política social - disse Bublanski, cautelosamente.
- Claro que não - concordou Teleborian. - Estamos a tratar de um caso específico. Mas deixe-me dizer que é importante que todos os que aqui estão compreendam que Lisbeth Salander é uma pessoa doente que precisa de tratamento, tal como uma pessoa com uma dor de dentes ou uma doença cardíaca precisa de tratamento. Ainda pode ficar bem, como teria ficado se tivesse recebido os cuidados de que necessitava quando ainda era tratável.
- Não foi então o médico dela - disse Faste.
- Sou uma das muitas pessoas que estiveram envolvidas no caso de Lisbeth Salander. Ela foi minha paciente no início da adolescência, e eu fui um dos médicos que a avaliaram antes de ser decidido colocá-la sob tutela, quando fez dezoito anos.
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- Pode falar-nos um pouco dela? - pediu Bublanski. - Que poderá tê-la levado a assassinar duas pessoas que não conhecia, e que poderá tê-la levado a assassinar o tutor?
O Dr. Teleborian riu.
- Não, não posso dizer-lhes isso. Há muitos anos que não acompanho o desenvolvimento dela, e não sei em que fase de psicose se encontra neste momento. Mas posso dizer, sem a mais pequena sombra de dúvida, que tinha de conhecer o casal de Enskede.
- O que é que o faz ter tanta certeza? - perguntou Faste.
- Uma das falhas no tratamento de Lisbeth Salander foi o facto de nunca ter chegado a ser feito um diagnóstico completo do seu estado. Isto porque ela não era receptiva ao tratamento. Recusava invariavelmente responder a perguntas ou participar em qualquer forma
de terapia.
- Portanto, não sabe verdadeiramente se ela está ou não doente? - disse Modig. - Quer dizer, se não há um diagnóstico...
- Veja a coisa da seguinte maneira - respondeu Teleborian. -A Lisbeth Salander foi-me confiada quando acabava de completar treze anos. Era psicótica, dava mostras de um comportamento obsessivo, e sofria obviamente de paranóia. Foi minha paciente nos dois anos que passou internada na Sankt Stefan. A razão do internamento foi o facto de, ao longo de toda a infância, ter revelado um comportamento excepcionalmente violento em relação aos colegas de escola, professores e conhecidos. Foi várias vezes acusada de agressões físicas. Em todos os casos de que tivemos conhecimento, a agressão foi dirigida contra pessoas do seu círculo, ou seja, pessoas que ela conhecia e que tinham dito ou feito qualquer coisa que ela percebera como um insulto. Nunca atacou um desconhecido. É por isso que acredito que tem de haver uma ligação entre ela e o casal de Enskede.
- Excepto o ataque no metro, quando tinha dezassete anos - disse Faste.
- Bem, nessa ocasião, foi ela a atacada, e estava a defender-se -respondeu Teleborian. - E contra, diga-se, um predador sexual conhecido. Mas constitui também um bom exemplo da maneira como se comporta. Podia ter-se afastado, ou procurado refúgio entre os outros
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passageiros. Em vez disso, respondeu com agressão agravada. Quando se sente ameaçada, reage com excessiva violência.
- Qual é exactamente o problema dela? - perguntou Bublanski.
- Como disse, não temos um verdadeiro diagnóstico. Diria que sofre de esquizofrenia e se mantém em constante equilíbrio à beira da psicose. É desprovida de empatia e, em muitos aspectos, pode ser descrita como sociopata. Acho surpreendente, para ser franco, que se tenha aguentado tão bem desde os dezoito anos. Tem funcionado na sociedade, ainda que sob tutela, desde há oito anos, sem fazer nada que desse origem a uma participação policial ou a uma detenção. Mas o prognóstico...
- O prognóstico?
- Durante todo este tempo, não recebeu qualquer tratamento. Receio que a doença que há dez anos poderíamos ter tratado e curado faça hoje parte integrante da sua personalidade. A minha previsão é que, quando for detida, não receberá uma sentença de prisão. Lisbeth Salander precisa de tratamento.
- Então, como raio decidiu o tribunal distrital largá-la na sociedade? - perguntou Faste.
- Resultou provavelmente de uma conjugação de factores. Ela tinha um advogado, bastante bom, aliás, mas foi também uma manifestação da actual política de liberalização e cortes orçamentais. Foi uma decisão a que me opus quando fui consultado pela medicina forense. Mas não tive voz activa na questão.
- Mas com certeza esse tipo de prognóstico deve depender muito de suposições, não lhe parece? - voltou Modig à carga. - Ao fim e ao cabo, não sabe nada do que se passou com ela desde que fez dezoito anos.
- Baseia-se em mais do que suposições. Baseia-se na minha experiência profissional.
:, - Considera-a autodestrutiva?
- Quer dizer se a imagino a cometer suicídio? Não, duvido muito. É mais do tipo psicopata egomaníaca. Tudo tem que ver com ela. Todos os que a rodeiam são insignificantes.
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- Disse que ela pode reagir de forma excessiva - disse Faste. - Por outras palavras, devemos considerá-la perigosa?
O Dr. Teleborian olhou para ele durante um longo momento. Então, inclinou-se para a frente e esfregou a testa.
- Não faz ideia de como é difícil prever exactamente como uma pessoa vai reagir. Não quero que Lisbeth Salander seja magoada quando a capturarem... mas sim, no caso dela, tentaria certificar-me de que a detenção era feita com a máxima cautela. Se estiver armada, há forte probabilidade de usar a arma.
CAPÍTULO 18
TERÇA-FEIRA, 29 DE MARÇO - QUARTA-FEIRA, 30 DE MARÇO
As TRÊS INVESTIGAÇÕES paralelas dos crimes de Enskede seguiam o seu curso. A do Inspector Bolha beneficiava da vantagem da autoridade. À primeira vista, a solução parecia perfeitamente ao alcance: tinham uma suspeita e a arma do crime ligada a essa suspeita. Tinham uma ligação incontestável entre a suspeita e a primeira vítima e uma ligação possível, ainda que muito menos incontestável, via Blomkvist, com as duas outras vítimas. Para Bublanski, era agora basicamente uma questão de encontrar Lisbeth Salander e metê-la numa cela na Prisão de Kronoberg.
A investigação de Armanskij estava formalmente subordinada à da polícia, mas o chefe da Milton Security tinha a sua própria agenda. O seu objectivo era zelar pelos interesses de Lisbeth: descobrir a verdade e, de preferência, uma verdade que confirmasse circunstâncias convincentemente atenuantes.
A investigação da Millennium era a mais difícil. Faltavam à revista os recursos da polícia, obviamente, e a organização de Armanskij. Ao contrário da polícia, no entanto, Mikael Blomkvist não estava particularmente interessado em estabelecer um cenário que explicasse de uma forma credível por que fora Lisbeth a Enskede matar dois dos seus amigos. Decidira, durante o fim-de-semana da Páscoa, que pura e simplesmente não acreditava naquela história. Se Lisbeth estava de algum modo envolvida naqueles crimes, tinha de ser de um modo completamente diferente do que a polícia sugeria: outra pessoa qualquer empunhara a arma, ou acontecera qualquer coisa que escapara ao controlo dela.
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Niklas Hedstrõm não disse uma palavra durante a viagem de táxi de Slussen a Kungsholmen. Ainda estava aturdido por ir finalmente participar numa verdadeira investigação policial. Olhou de soslaio para Bohman, que relia a apresentação de Armanskij.
Então, de repente, sorriu para si mesmo. Aquele trabalho dera-lhe a oportunidade totalmente inesperada de realizar uma ambição que nem Armanskij nem Bohman conheciam ou podiam sequer imaginar. Ia ter a possibilidade de vingar-se de Lisbeth Salander. Esperava poder ajudar a capturá-la. E esperava, acima de tudo, que ela fosse condenada a prisão perpétua.
Que Lisbeth Salander não fora uma figura querida na Milton Security, ninguém o ignorava. A maior parte dos que tinham tido alguma coisa a ver com ela achavam-na um estupor insuportável. Mas ninguém fazia ideia de quão profundamente Hedstrõm a odiava.
A vida não fora justa para com ele. Era bem-parecido, estava na flor da idade, e até era inteligente. Mas fora-lhe para todo o sempre negada a possibilidade de ser aquilo que toda a vida desejara ser: polícia. O seu calcanhar de Aquiles era um sopro cardíaco provocado por uma lesão microscópica numa das válvulas. Fora operado e o problema ficara resolvido, mas ser um doente cardíaco significava que nunca haveria lugar para ele na força policial. Tinha sido relegado para segundo plano.
Quando lhe fora dada a possibilidade de trabalhar na Milton Security, aceitara, mas sem qualquer entusiasmo. A Milton era um caixote de lixo para descartados: agentes da polícia demasiado velhos, que já não estavam à altura. Também ele fora recusado pela polícia... mas, no seu caso, sem culpa que pudesse ser-lhe atribuída.
Quando começara na Milton, uma das suas primeiras missões -fizera inclusivamente parte do treino - fora trabalhar com a unidade operacional na análise de um esquema de protecção para uma cantora famosa e já não muito jovem. A senhora em questão sentia-se ameaçada por um admirador excessivamente entusiástico que, por sinal, era também um doente mental fugido da instituição onde estava
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internado. A cantora vivia numa vtlla em Sõdertõrn, e a Milton instalara equipamento de vigilância e alarmes, além de um guarda-costas. Certa noite, o admirador lunático tentara entrar por arrombamento. O guarda-costas apanhara-o sem a mínima dificuldade e o sujeito fora rapidamente condenado por ameaças e invasão de propriedade privada e despachado para o asilo.
Durante duas semanas, Hedstrõm visitara regularmente a villa de Sõdertõrn, com outros empregados da Milton. Achava a cantora uma velha pega snob e arrogante que lhe lançara um olhar surpreendido quando ele tentara ser charmoso. Devia era estar grata por ainda haver meia dúzia de palermas que se lembravam dela.
Desprezava a maneira subserviente como o pessoal da Milton se apressava a satisfazer todos os desejos da velha, mas, evidentemente, nada dissera do que sentia.
Certa tarde, pouco depois de o intruso ter sido preso, a cantora e dois funcionários da Milton encontravam-se no jardim, junto à piscina, enquanto ele estava dentro de casa, a fotografar portas e janelas que pudessem precisar de ser reforçadas. Andara de divisão em divisão, e quando chegara ao quarto, não conseguira resistir à tentação de revistar as gavetas. Encontrara uma dúzia de álbuns de fotografias do tempo em que ela era uma grande estrela, nos anos 80 e 90, e fazia digressões por todo o mundo. As fotos eram relativamente inocentes mas, com um pouco de imaginação, poderiam ser vistas como "estudos eróticos". Céus, mas que cabra estúpida! Roubara cinco das fotografias mais ousadas, que tinham obviamente sido captadas por um amante e que ela guardava religiosamente.
Fotografara as imagens e repusera os originais nos respectivos lugares. Esperara seis meses até as vender a um tablóide britânico, que lhe pagara nove mil libras e fizera com elas alguns cabeçalhos sensacionalistas.
Nunca chegara a saber como conseguira Lisbeth descobri-lo, mas, depois de as fotos terem sido publicadas, recebera uma visita dela. Sabia que fora ele que as vendera. Se voltasse a tentar uma gracinha daquelas, denunciava-o a Armanskij. Tê-lo-ia denunciado imediatamente se tivesse provas... que obviamente não tinha. A partir daquele
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dia, sentira que ela o vigiava. Via aqueles olhinhos de porco cravados nele cada vez que voltava a cabeça.
Começara a andar tenso, frustrado. A única maneira que tinha de vingar-se era contribuir para a maledicência geral durante as conversas na cantina, mas nem sequer nisso fora muito bem sucedido. Não ousava atrair as atenções, sabendo, como toda a gente na tasca, que, por razões incompreensíveis, ela estava sob a protecção de Armanskij. Perguntava a si mesmo que espécie de domínio teria Lis-beth Salander sobre o director-geral da Milton, ou se seria possível que o velho filho da mãe andasse a comê-la em segredo. Mas apesar de ninguém na Milton gostar particularmente de Lisbeth, todos tinham um enorme respeito por Armanskij, e por isso aceitavam-na sem problemas de maior. Fora, para ele, um alívio monumental quando Lisbeth começara a aparecer cada vez menos, até que deixara completamente de trabalhar para a empresa.
Agora, deparava-se-lhe uma oportunidade de saldar velhas contas. E completamente isenta de risco. Lisbeth podia acusá-lo do que quisesse, ninguém acreditaria nela. Nem mesmo Armanskij aceitaria a palavra de uma assassina psicopata.
O inspector Bublanski viu Hans Faste sair do elevador acompanhado por Bohman e Hedstrõm, da Milton Security. Tinha-o mandado buscar os dois novos colegas e ajudá-los a passar pela segurança. Não estava totalmente satisfeito com a ideia de dar a gente de fora acesso a uma investigação criminal, mas a decisão fora tomada à sua revelia... e, que raio, Bohman era um polícia a sério, com muitos quilómetros às costas. Quanto a Hedstrõm, acabara o curso na Academia, pelo que não podia ser completamente idiota. Apontou-lhes a sala de reuniões.
A caça a Lisbeth Salander ia no seu sexto dia e era tempo de fazer uma avaliação geral. O procurador Ekstrõm não participaria no encontro. O grupo era composto pelos inspectores Modig, Faste, Andersson e Holmberg, apoiados por quatro agentes da unidade de detecção e busca da Judiciária Nacional. Bublanski começou por apresentar
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os homens da Milton Security e perguntar se algum deles queria dizer alguma coisa. Bohman tossicou para aclarar a garganta.
- Já passou algum tempo desde a última vez que estive neste edifício, mas conhecem-me e sabem que fui agente da polícia durante muitos anos até passar para o sector privado. A razão de estarmos aqui é o facto de Lisbeth Salander ter trabalhado para a Milton durante vários anos, o que nos faz sentir de algum modo responsáveis. A missão de que fomos encarregados é ajudar a capturá-la. Podemos contribuir com o conhecimento pessoal que temos dela, mas não estamos aqui para atrapalhar a investigação nem tentar pregar-lhes uma rasteira.
- Como era ela, enquanto colega? - perguntou Faste.
- Não era exactamente o género de pessoa de quem se gosta... - começou Hedstrõm, mas calou-se quando Bublanski ergueu uma mão.
- Vamos ter ocasião de discutir tudo isso em pormenor durante a reunião. Mas o melhor é pegar nisto por ordem, uma coisa de cada vez, e ver em que pé estamos. Depois da reunião, vocês os dois vão ter de ir falar com o procurador Ekstrõm e assinar um acordo de confidencialidade. Comecemos pela Sonja.
- É frustrante. Poucas horas depois dos crimes, tínhamos conseguido identificar a Salander. Descobrimos onde ela vivia... ou pelo menos o sítio onde julgávamos que ela vivia. Depois disso, nada. Recebemos cerca de trinta telefonemas de pessoas que pensam tê-la visto, mas, até agora foram só falsos alarmes. É como se a fulana se tivesse evaporado.
- O que custa um pouco a acreditar - interveio Andersson. -Tem um ar bastante invulgar, com todas aquelas tatuagens. Não deveria ser muito difícil de encontrar.
- Ontem, a polícia de Uppsala recebeu uma dica e avançou em força, de armas na mão. Cercaram e pregaram um susto de morte a um miúdo de catorze anos que até era muito parecido com a Salander. Os pais não ficaram nada contentes.
- É uma desvantagem, isto de andar à procura de alguém que parece ter catorze anos. Desaparece por completo no meio de qualquer grupo de adolescentes.
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- Mas com a atenção que tem estado a merecer dos media, alguém devia ter visto qualquer coisa - disse Andersson. - Esta semana, vão passar a fotografia dela nos Dez Mais Procurados da Suécia. Talvez
resulte.
- Custa-me a crer, considerando que já apareceu nas primeiras páginas de todos os jornais do país - contrapôs Faste.
- O que sugere que talvez devamos mudar de abordagem - interveio Bublanski. - Com cúmplices, podia ter saído do país, mas é mais provável que esteja escondida algures.
Bohman ergueu uma mão. Bublanski fez-lhe um aceno de cabeça.
- O perfil que temos dela não aponta para que seja autodestrutiva. Por outro lado, é uma estratega que planeia cuidadosamente todas as suas acções. Não faz nada sem analisar as consequências. Pelo menos, é o que o Dragan Armanskij acha.
- Coincide com a avaliação que o antigo psiquiatra dela nos deu. Mas deixemos de lado a caracterização, por enquanto - disse Bublanski. - Mais cedo ou mais tarde, vai ter de sair do buraco. Jerker, com que tipo de recursos pode ela contar?
- Vão gostar desta - respondeu Holmberg. - Tem, há já vários anos, uma conta no Handelsbank. É o rendimento que declara. Ou melhor, o rendimento que o tutor dela, Nils Bjurman, declarava. Há um ano, o saldo era de cem mil coroas. No Outono de 2003, levantou tudo.
- Precisou de dinheiro no Outono de 2003. Foi quando deixou de trabalhar para a Milton Security - disse Bohman.
- Possivelmente. A conta ficou a zeros durante duas semanas. E então repôs a massa toda.
- Pensou que ia precisar de dinheiro, mas não o gastou e voltou
a depositá-lo?
- Talvez. Em Dezembro de 2003, usou a conta para pagar uma série de coisas, incluindo um ano de despesas do apartamento. O saldo baixou para setenta mil coroas. Depois disso, não houve movimentos durante um ano, exceptuando um depósito de nove mil e qualquer coisa. Fui verificar: era a herança da mãe. A quantia exacta era nove mil trezentas e doze coroas. Em Fevereiro deste ano levantou nove mil e trezentas coroas... e foi a última vez que mexeu na conta.
- Então de que raio é que ela vive?
- Ouçam esta. Em Janeiro deste ano abriu uma nova conta. Desta vez no Svenska Enskilda Banken. Depositou dois milhões de coroas.
- De onde veio o dinheiro? - perguntou Modig.
- Foi transferido para a conta dela de um banco nas ilhas do Canal.
Fez-se silêncio na sala de reuniões.
- Não percebo nada disto - disse Modig, passados alguns instantes.
- Então é dinheiro que ela não declarou? - perguntou Bublanski.
- Não, mas tecnicamente só tem de o fazer para o ano. O que é interessante é o facto de a soma não estar registada nos relatórios do Bjurman sobre os bens dela, e ele fazia um todos os meses.
- Portanto... ou ele não sabia, ou estavam os dois metidos numa marosca qualquer. Como é que estamos do lado da investigação pericial?
- Recebi um relatório preliminar ontem de manhã. Isto é o que sabemos. Um: podemos situar a Salander em ambos os locais do crime. Encontrámos impressões dela na arma e nos cacos da chávena de café partida, em Enskede. Estamos à espera dos resultados das amostras de ADN que recolhemos, mas não há a mais pequena dúvida de que esteve no apartamento. Dois: temos as impressões digitais dela na caixa que encontrámos no apartamento do Bjurman, a caixa da arma. Três: temos finalmente uma testemunha capaz de situá-la no local do crime em Enskede. O dono de uma tabacaria telefonou a dizer que a Salander esteve na loja dele na noite dos crimes. Comprou um maço de Mar/boro Light.
- E esperou este tempo todo para decidir-se a falar?
- Esteve fora durante a Páscoa, como toda a gente. Bom -Holmberg apontou para o mapa -, a tabacaria fica aqui, a menos de duzentos metros do local do crime. Ela entrou quando ele se preparava para fechar, por volta das dez. Deu-nos uma descrição perfeita.
- Tatuagem no pescoço? - perguntou Andersson.
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- Foi um tanto vago a esse respeito. Pareceu-lhe ver uma tatuagem. Mas viu com certeza absoluta que tinha um piercing na sobrancelha.
- Que mais?
- Não muito mais em termos de provas forenses. Mas deve ser
o bastante.
- Faste... o apartamento na Lundagatan?
- Temos as impressões digitais dela, mas não nos parece que viva lá. Virámos aquilo de pernas para o ar, e tudo indica que quem lá mora é a tal Miriam Wu. O nome dela foi acrescentado ao contrato em Fevereiro deste ano.
- O que é que sabemos a respeito dessa Wu?
- Não tem cadastro na polícia. Lésbica conhecida. Aparece em espectáculos, e coisas assim, no festival Gay Pride. Parece que estuda sociologia e é co-proprietária da Domino Fashion, uma sex-shop na Tegnérgatan.
- Sex-shop? - perguntou Modig, arqueando as sobrancelhas? Certa vez comprara, para contentamento do marido, uma lingerie
muito sexy na Domino Fashion. E não fazia a mínima tenção de revelar o facto aos homens sentados à volta da mesa.
- Sim, vendem algemas, e roupas de puta, e coisas assim. Estás a precisar de um chicote?
- Não é uma sex-shop, é uma boutique de moda para pessoas que gostam de lingerie sexy.
- É a mesma merda.
- Adiante - interveio Bublanski, irritado. - Algum sinal de Frõ-ken Wu?
- Nem rasto.
- Pode ter ido passar a Páscoa fora - sugeriu Modig.
- Ou então a Salander liquidou-a também - disse Faste. - Talvez queira despachar todos os conhecidos.
- A Wu é lésbica. Devemos assumir que ela e a Salander são um casal?
- Penso que podemos tirar a conclusão de que existe uma relação sexual - disse Andersson. - Encontrámos as impressões digitais da Salander na cama e à volta dela. E também num par de algemas.
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- Nesse caso, vai gostar das que temos preparadas para ela - disse Faste.
Modig gemeu.
- Continua - disse Bublanski, dirigindo-se a Andersson.
- Temos uma dica de que a Miriam Wu foi vista no Kvarnen a beijar uma rapariga que corresponde à descrição da Salander. Foi há cerca de duas semanas. O informador afirma que sabe bem quem é a Salander e que já a tinha encontrado noutras ocasiões, mas que não a viu durante todo o ano passado. Ainda não tive tempo para comprovar com o pessoal, mas passo por lá esta tarde.
- No processo da Assistência Social, não há qualquer referência ao facto de ela ser lésbica. Durante a adolescência, costumava fugir de casa das famílias de acolhimento para ir engatar homens em bares. Foi várias vezes vista pela polícia na companhia de homens mais velhos.
- Ainda por cima era puta - disse Faste.
- O que é que sabemos a respeito de pessoas que ela conheça? Curt?
- Quase nada. Não voltou a ter problemas com a polícia a partir dos dezoito anos. Conhece o Dragan Armanskij e o Mikael Blomk-vist, isso já nós sabemos. E conhece a Miriam Wu, claro. A mesma fonte que nos deu a dica a respeito dela e da Wu no Kvarnen diz que costumava andar com um grupo de raparigas chamado Evil Fingers.
- Evil Fingers? O que é isso? - perguntou Bublanski.
- Parece ter qualquer coisa que ver com o oculto. Juntavam-se e pintavam a manta.
- Não me digam que a Salander era também o raio de uma satanista - disse Bublanski. - Os jornais vão adorar.
- Um grupo de satanistas lésbicas - propôs Faste, prestimosamente.
- Hans, a tua visão das mulheres é pura Idade Média - interveio Modig. - Até eu ouvi falar das Evil Fingers.
- Ouviste? - espantou-se Bublanski.
- Era uma girls band de rock de finais dos anos noventa. Não exactamente superestrelas, mas foram bastante conhecidas durante algum tempo.
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- Então, satanistas lésbicas que tocavam rock da pesada - disse Faste.
- Okay, chega de brincadeira - cortou Bublanski. - Hans, e tu, Curt, descubram quem fazia parte dessas Evil Fingers e falem com elas. A Salander tem mais amigos?
- Não muitos, além do antigo tutor, Holger Palmgren. Foi internado numa clínica de cuidados continuados, depois de ter tido uma trombose, e ao que parece está bastante mal. Para ser franco, devo dizer que não encontrei sinais de um círculo de amigos verdadeiro. Continuo sem saber onde é que ela vive e nunca lhe vi a agenda de contactos, mas a minha impressão é que não tem amigos chegados.
- Ninguém consegue andar por aí sem deixar rasto, como um raio de um fantasma. O que é que pensamos do Mikael Blomkvist?
- Não o temos sob vigilância directa, mas temos estado em contacto com ele - respondeu Faste. - Para o caso de a Salander aparecer. Foi do trabalho para casa, na quinta-feira, e parece não ter voltado a sair do apartamento durante todo o fim-de-semana.
- Não estou a vê-lo implicado nos crimes. A história dele bate certo, e sabemos onde estava em cada minuto daquela noite.
- Mas conhece a Salander. E a ligação entre ela e o casal de Ens-kede. Além disso, temos a história que nos contou a respeito de um homem ter atacado a Salander uma semana antes dos assassínios. O que é que devemos pensar a esse respeito? - perguntou Bublanski.
- Além do Blomkvist, não houve outras testemunhas da agressão,.. ou alegada agressão - disse Faste.
- Achas que ele está a imaginar coisas, ou a mentir?
- Não sei. Mas parece-me uma história do caraças. Como é possível que um homem adulto não consiga dominar uma miúda que pesa para aí o quê, quarenta quilos?
- Porque havia o Blomkvist de mentir?
- Para nos baralhar a respeito da Salander?
- A verdade é que nada disto faz sentido. Foi o Blomkvist que pôs a hipótese de os amigos terem sido mortos por causa do livro que o Svensson estava a escrever.
- Tretas! - declarou Faste. - Foi a Salander. Porque havia alguém de matar o tutor para calar o Svensson? E quem mais poderia ser... um polícia?
- Se o Blomkvist for em frente e publicar a sua versão, vamos ter merda com fartura sobre as teorias da conspiração envolvendo a polícia - disse Andersson.
Houve um murmúrio de concordância à volta da mesa.
- Muito bem - disse Modig. - Porque foi que ela matou o Bjur-man?
- E que significa aquela tatuagem? - acrescentou Bublanski, apontando para a fotografia do ventre do advogado.
SOU UM PORCO SÁDICO, UM PERVERTIDO E UM VIOLADOR.
- O que diz o relatório do patologista? - indagou Bohman.
- A tatuagem tem entre um e três anos, de acordo com a extensão da hemorragia cutânea - respondeu Modig.
- Penso que podemos descartar a hipótese de ter sido o próprio Bjurman a encomendá-la.
- É verdade que há malucos para tudo, mas não acredito que passe a ser um modelo entre os entusiastas das tatuagens.
Modig agitou o indicador.
- O patologista diz que, tecnicamente, é um péssimo trabalho, o que até eu já tinha percebido. Foi de certeza feita por um amador. A agulha penetrou a profundidades diferentes, e é uma tatuagem muito grande numa parte sensível do corpo. No todo, há-de ter sido um processo doloroso, a roçar a tortura.
- Só que o Bjurman nunca participou a agressão à polícia - disse Faste.
- Eu também não participava, se alguém me tatuasse uma coisa daquelas na barriga - replicou Andersson.
- Mais uma coisa - continuou Modig. - E isto talvez confirme a confissão, se é disso que se trata, da tatuagem. - Tirou de uma pasta várias impressões laser de fotografias e passou-as em redor. - Imprimi alguns exemplos de coisas que encontrei no disco rígido do Bjurman.
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Foram descarregadas da Net. O computador contém cerca de duas mil imagens do mesmo género.
Faste assobiou e mostrou a foto de uma mulher amarrada numa posição brutalmente incómoda.
- Talvez seja qualquer coisa para a Domino Fashion ou para as Evil Fingers - disse.
Bublanski fez um gesto impaciente, a mandá-lo calar.
- Como é que devemos interpretar isto? - perguntou Bohman.
- Suponhamos que a tatuagem tem dois anos - disse Bublanski. - Teria sido feita mais ou menos na altura em que o Bjurman adoeceu. Nenhum registo médico indica que ele tivesse qualquer doença, além de hipertensão. Podemos, portanto, assumir que houve uma ligação.
- A Salander mudou durante esse ano - acrescentou Bohman. - Deixou de trabalhar para a Milton e, sem avisar ninguém, ao que parece, partiu para o estrangeiro.
- Devemos assumir que também aqui há uma ligação? A tatuagem diz claramente que o Bjurman violou alguém. A Salander seria a vítima provável. E dar-lhe-ia um motivo para matá-lo.
- Há outras interpretações possíveis, claro - disse Faste. - Consigo imaginar um cenário em que a Salander e a chinoca têm uma espécie qualquer de serviço de acompanhamento com uns toques de SD. O Bjurman podia ser um desses malucos que gostam de ser chicoteados por rapariguinhas. Podia ter uma relação de dependência com a Salander, e as coisas terem dado para o torto.
- Mas isso não explica a presença dela em Enskede.
- Se o Svensson e a namorada se preparavam para denunciar o negócio do sexo, é possível que tenham tropeçado na Salander e na Wu. Pode ser esse o motivo para ela ter cometido o crime.
- O que, por enquanto, não passa de mera especulação - acrescentou Modig.
A reunião arrastou-se por mais uma hora e abordou também o facto de o portátil de Dag Svensson ter desaparecido. Quando interromperam, para o almoço, sentiam-se muito frustrados. Parecia haver mais pontos de interrogação do que nunca.
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A primeira coisa que Erika Berger fez quando chegou ao escritório, na terça-feira de manhã, foi ligar para Magnus Borgsjõ, presidente do conselho de administração do Svenska Morgon-Posten.
- Estou interessada - disse.
- Calculei que estivesse.
- Era minha intenção falar consigo logo a seguir aos feriados da Páscoa, mas, como julgo que sabe, rebentou o caos por estes lados.
- O assassínio do Dag Svensson. Lamento muito. Uma coisa terrível.
- Nesse caso, compreenderá que este não é o melhor momento para anunciar que me vou embora.
Borgsjõ ficou em silêncio por um instante.
- Temos um problema do nosso lado - disse, por fim. - Da última vez que falámos, dissemos que começaria a um de Agosto. Mas acontece que o nosso director editorial, o Hâkan Morander, que a Erika viria substituir, está bastante doente. Tem problemas cardíacos e precisa de abrandar o ritmo de trabalho. Falou com o médico, aqui há dias, e este fim-de-semana fiquei a saber que planeia reformar-se no fim de Junho. A ideia era que ele ainda cá estaria até ao Outono, e que os dois trabalhariam juntos em Agosto e Setembro. Mas tal como a situação está agora, temos uma crise. Erika... vai ter de começar em Maio, e nunca depois do dia quinze.
- Céus, isso é daqui a meia dúzia de semanas!
- Continua interessada?
- Sim, claro... mas isso significa que vou ter apenas um mês para arrumar a casa aqui na Millennium.
- Eu sei. Lamento muito, Erika, mas tenho de pressioná-la. Um mês deve ser suficiente para resolver os problemas numa revista que tem apenas meia dúzia de empregados.
- Mas isso significa sair a meio de uma crise.
- Ia ter de sair, de todos os modos. Tudo o que estamos a fazer é antecipar a data algumas semanas.
- Tenho algumas condições.
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- Ouçamo-las.
- Manterei o meu lugar no conselho de administração da Millennium.
- Isso pode não ser muito curial. A Millennium é uma revista mensal, claro, e muito mais pequena do que a nossa, mas, tecnicamente, continuamos a ser concorrentes.
- Não há volta a dar-lhe. Não terei nada que ver com o trabalho editorial da Millennium, mas não quero vender a minha parte. O que significa que terei de continuar no conselho de administração.
- Okay, havemos de arranjar uma solução.
Combinaram uma reunião com o conselho de administração do jornal na primeira semana de Abril, para acertar os últimos pormenores e redigir o contrato.
Mikael Blomkvist teve a sensação de déjà vu ao estudar a lista de suspeitos que ele e Malin tinham elaborado durante o fim-de-semana. Trinta e sete nomes, tudo pessoas que Dag Svensson atacava duramente no seu livro. Destes, 21 eram clientes identificados.
Recordou como começara a tentar descobrir um assassino em He-destad, dois anos antes, e se vira com uma galeria de quase 50 suspeitos.
Às dez da manhã de terça-feira, chamou Malin Eriksson ao seu gabinete na Millennium e fechou a porta depois de ela entrar. Ficaram sentados por alguns instantes, a beber café. Então, entregou-lhe a lista de nomes.
- O que é que eu faço? - perguntou Malin.
- Antes de mais nada, temos de mostrar a lista à Erika... talvez daqui a dez minutos. Depois, temos de verificar esses nomes, um a um. É possível, é até provável, que uma dessas pessoas esteja relacionada com os crimes.
- E como é que os verificamos?
- Estou a pensar em concentrar-me nos vinte e um clientes. São os que têm mais a perder. Estou a pensar seguir o mesmo método que o Dag: falar com eles um a um.
- E eu, o que é que faço?
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- Duas coisas. Em primeiro lugar, há sete pessoas que não estão identificadas: dois clientes e cinco outros que fazem parte do negócio. O teu trabalho nos próximos dias vai ser tentar identificá-los. Alguns dos nomes constam da tese da Mia; é possível que haja referências cruzadas que nos ajudem a descobrir as identidades verdadeiras. Em segundo lugar, sabemos muito pouco a respeito de Nils Bjurman, o tutor da Lisbeth. Apareceu uma pequena biografia nos jornais, mas aposto que metade foi inventada.
- Tenho então de espiolhar-lhe o passado.
- Exactamente. Tudo o que conseguires descobrir.
Harriet Vanger telefonou a Mikael por volta das cinco da tarde.
- Podes falar?
- Tenho um bocadinho.
- A rapariga que a polícia procura... é a mesma que te ajudou a encontrar-me, não é?
Harriet Vanger e Lisbeth Salander nunca se tinham visto.
- Sim - respondeu Mikael. - Desculpa não ter tido tempo para te manter a par. Mas sim, é ela.
- O que é que isso significa?
- No que te diz respeito? Nada, espero.
- Mas ela sabe tudo sobre mim e sobre o que aconteceu.
- Sim, sabe tudo o que aconteceu. Harriet manteve-se silenciosa.
- Harriet, não acredito que tenha sido ela. Estou a trabalhar partindo do princípio que a Lisbeth está inocente de todos estes crimes. Confio nela.
- A acreditar no que os jornais dizem...
- Já devias saber que não se pode acreditar no que os jornais dizem. No que te diz respeito, é muito simples: a Lisbeth deu a sua palavra em como não diria nada. Acredito que cumprirá essa promessa enquanto viver. Tudo o que sei a respeito dela me diz que é uma pessoa de princípios.
- E se não foi ela?
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- Não sei, Harriet. Estou a fazer tudo o que posso para descobrir o que realmente aconteceu. E não te preocupes.
- Não estou preocupada, mas quero estar preparada para o pior. Como é que estás a aguentar-te, Mikael?
- Assim-assim. Tem sido um inferno.
- Mikael... estou em Estocolmo. Parto para a Austrália amanhã... Vou lá estar um mês.
- Estou a ver.
- Estou no hotel.
- Não sei, Harriet. Estou completamente esgotado. Esta noite tenho de trabalhar e não seria muito boa companhia.
- Não precisas de ser boa companhia. Vem até cá relaxar um pouco.
Mikael chegou a casa à uma da manhã. Estava cansado e só tinha vontade de mandar tudo para o diabo e ir para a cama, mas, em vez disso, ligou o iBook e verificou os e-mails. Não havia nada de interesse.
Abriu a pasta [LISBETH SALANDER} e descobriu que continha um novo documento. Chamava-se <Para MikBlom> e estava ao lado daquele a que ele chamara <Para Sally>.
Ao ver o documento no computador sentiu um choque. Ela está cá. Esteve no meu computador. Talvez esteja em linha neste preciso momento. Fez um duplo clique e abriu o documento.
Não sabia muito bem do que estava à espera. Uma carta. Uma resposta. Um protesto de inocência. Uma explicação. A resposta de Lisbeth era exasperantemente curta. A mensagem consistia de uma palavra. Quatro letras. "Zala."
Mikael ficou a olhar para o nome.
Dag falara de Zala no seu último telefonema, duas horas antes de ter sido assassinado.
Que está ela a querer dizer? Será Zala a ligação entre o Bjurman e o Dag e a Mia? Como? Porquê? Quem éele? E como éque a Lisbeth sabe disto? Como éque está envolvida?
Abriu as propriedades do documento e viu que tinha sido criado menos de 15 minutos antes. Então sorriu. O nome que aparecia como
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autor era Mikael Blomkvist. Lisbeth tinha criado o documento no computador dele servindo-se do programa dele. Era melhor do que um e-mail e não deixava endereços que pudessem ser localizados, apesar de Mikael ter a certeza de que seria impossível localizar Lisbeth através da Internet. E aquilo provava sem margem para dúvidas que ela fizera uma Opa Hostil - a expressão era dela - ao computador dele.
Foi pôr-se à janela, a olhar para o palácio da Câmara. Não conseguia libertar-se da sensação de que ela estava a vigiá-lo naquele preciso instante, quase como se estivesse ali na sala a olhar para ele pelo visor do eBook. Lisbeth podia, claro, estar em qualquer lugar do mundo, mas ele suspeitava de que estava muito perto. Algures em Sõdermalm. Num raio de um par de quilómetros do sítio onde ele se encontrava.
Sentou-se, criou um novo documento Word a que chamou <Sally-2> e colocou-o no desktop. Escreveu uma curta mensagem:
Lisbeth,
És o raio de uma chata. Quem diabo é Zala? É ele a ligação? Sabes quem matou o Dag e a Mia? Se sabes, diz-me, para eu poder resolver esta trapalhada e ir dormir. Mikael.
Ela estava dentro do iBook. A resposta chegou um minuto mais tarde. Apareceu um novo documento, desta vez chamado <Kalle Blomkvist >.
Tu é que és o jornalista. Descobre.
Mikael franziu a testa. Lisbeth estava a provocá-lo, a usar a alcunha que sabia que ele detestava. E não lhe dava a mais pequena ajuda. Criou o documento <Sally-3> e colocou-o no desktop.
Lisbeth,
Um jornalista descobre coisas fazendo perguntas a quem sabe. Estou a perguntar-te a ti. Sabes porque foi que o Dag e a Mia foram
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"assassinados e quem foi que os matou? Se sabes, por favor, diz-me. Dá-qualquer coisa com que trabalhar. Mikael.
Esperou várias horas, desalentado, por nova resposta. Às quatro da manhã, desistiu e foi para a cama.
CAPÍTULO 19
QUARTA-FEIRA, 30 DE MARÇO - SEXTA-FEIRA, 1 DE ABRIL
MIKAEL Blomkvist dedicou o dia de quarta-feira a passar a pente-fino o material de Svensson, à procura de referências a Zala. Descobriu, tal como Lisbeth já tinha feito, a pasta [ZALA] no disco rígido de Dag, e leu os três documentos <Irina P>, <Sandstrõm> e <Zala>, e, tal como Lisbeth, descobriu que Svensson tivera uma fonte na polícia, alguém chamado Gulbrandsen. Localizou-o na Secção da Judiciária de Sõdertàlje, mas quando ligou para lá, disseram-lhe que Gulbrandsen tinha saído em serviço e só regressaria na segunda-feira seguinte.
Verificou que Dag dedicara muito tempo a Irina P. Pelo relatório da autópsia, ficou a saber que a mulher sofrera uma morte lenta e cruel. O crime ocorrera em finais de Fevereiro. A polícia não tinha qualquer pista sobre a identidade do assassino, mas, uma vez que ela era prostituta, assumira que fora um cliente.
Mikael perguntou a si mesmo por que teria Dag incluído o documento <Irina P> na pasta [ZALA]. Tinha evidentemente estabelecido uma ligação entre os dois, mas não havia quaisquer referências no texto. Presumivelmente, fizera a ligação numa data posterior.
O documento <Zala> era tão pequeno que pouco mais parecia do que uma colecção de apontamentos de trabalho. Zala (se na verdade existia) surgia no mundo do crime quase como um fantasma. Não parecia inteiramente credível, e o texto não continha quaisquer referências a fontes.
Fechou o documento e coçou a cabeça. Solucionar aquele mistério ia ser uma tarefa muito mais difícil do que imaginara. E, ainda por
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cima, não conseguia evitar que a dúvida o assaltasse a cada instante. Não havia nada que lhe dissesse, inequivocamente, que Lisbeth Salander não tinha cometido aqueles crimes. Tudo o que tinha era a convicção instintiva de que não fazia sentido.
Sabia que ela não tinha falta de dinheiro. Lisbeth usara os seus talentos como hacker para roubar muitos milhões de coroas, mas ignorava que ele tinha conhecimento do facto. Exceptuando a ocasião em que fora obrigado a explicar a Erika os dotes informáticos dela, nunca traíra o seu segredo fosse a quem fosse.
Não queria, de forma alguma, acreditar que Lisbeth era culpada. Nunca poderia pagar a dívida que tinha para com ela. Lisbeth não se limitara a salvar-lhe a vida, salvara-lhe também a carreira profissional e, muito provavelmente, o futuro da própria Millennium ao entregar-lhes a cabeça de Hans-Erik Wennerstrõm numa bandeja.
E sentia uma enorme lealdade para com ela. Quer fosse culpada ou não, ia fazer tudo o que pudesse para ajudá-la quando acabasse por ser apanhada.
No entanto, havia muita coisa que não sabia a respeito dela. As avaliações médicas, o facto de ter estado internada numa das instituições psiquiátricas mais respeitadas do país, o facto de ter sido declarada interdita, tudo tendia a confirmar que havia algo de errado com ela. O médico-chefe da clínica psiquiátrica de Sankt Stefan em Upp-sala, o Dr. Peter Teleborian, fora largamente citado na imprensa. Não fizera, como não podia fazer, qualquer afirmação especificamente relacionada com Lisbeth, mas comentara o colapso dos cuidados de saúde mental em todo o país. Teleborian era conhecido e respeitado não só na Suécia, mas também internacionalmente. Fora absolutamente convincente e conseguira transmitir simpatia para com as vítimas e respectivas famílias ao mesmo tempo que deixava clara a sua preocupação pelo bem-estar de Lisbeth Salander.
Mikael ponderara a hipótese de entrar em contacto com o Dr. Teleborian, interrogando-se se o médico poderia ajudá-lo de alguma maneira. Mas abstivera-se. O Dr. Teleborian teria muitas oportunidades de ajudar Lisbeth quando ela fosse capturada.
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Por fim, foi à kitchenette e deitou café numa chávena com o logo do Partido Moderado da Unidade e seguiu para o gabinete de Erika.
- Tenho uma longa lista de clientes e proxenetas para entrevistar - disse Blomkvist.
Erika olhou para ele, preocupada.
- Provavelmente, vou levar duas ou três semanas a contactar todos os nomes da lista. Estão espalhados de Strángnâs a Norrkõping. Vou precisar de um carro.
Erika abriu a carteira e tirou de lá as chaves do BMW.
- Não te faz diferença?
- Claro que não me faz diferença. Venho de carro para o emprego tão raramente como vou a Saltsjõbaden. Além disso, se precisar, tenho o carro do Greger.
- Obrigado.
- Há uma condição. -Diz.
- Alguns desses sujeitos são bandidos do pior. Se vais andar por aí a acusar chulos de terem assassinado o Dag e a Mia, quero que leves isto contigo e o tragas sempre no bolso do casaco.
E pôs em cima da mesa uma lata de gás pimenta.
- Onde arranjaste essa coisa?
- Comprei-a nos Estados Unidos, no ano passado. Raios me partam se vou andar por aí sozinha à noite sem ter qualquer coisa com que me defender.
- Vai ser o diabo se me apanham na posse de uma arma ilegal.
- Mais vale isso do que eu ter de escrever o teu obituário, Mikael... Não sei muito bem se tens consciência disto, mas por vezes preocupo-me seriamente contigo.
- Estou a ver.
- Corres demasiados riscos e és tão casmurro que nunca recuas quando tomas uma decisão estúpida.
Mikael sorriu e voltou a pôr a lata de gás pimenta em cima da secretária de Erika.
- Obrigado pela preocupação. Mas não preciso.
- Micke, insisto.
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- Tudo bem, já tomei as minhas precauções.
Levou a mão ao bolso e tirou de lá uma lata. Era o gás pimenta que retirara da bolsa de Lisbeth e que desde então trazia consigo.
Jan Bublanski bateu à porta do gabinete de Sonja Modig e foi sentar-se na cadeira dos visitantes, junto da secretária dela.
- O computador do Dag Svensson - disse.
- Também tenho estado a pensar nisso. Fiz um resumo do último dia do Svensson e da Johansson. Ainda há alguns buracos, mas ele nunca chegou a ir à redacção da Millennium. Em contrapartida, foi ao centro da cidade e, por volta das quatro da tarde, encontrou um antigo colega de escola. Foi um encontro perfeitamente fortuito, num café da Drottninggatan. O amigo afirma que ele tinha o computador na mochila. Viu-o e até fez um comentário sobre ele.
- E às onze da noite... quando a polícia chegou ao apartamento... o computador tinha desaparecido.
- Exacto.
- E que devemos nós deduzir daí?
- Pode ter parado noutro sítio e, por qualquer razão, ter esquecido lá o computador.
- Não é muito provável, pois não?
- Não, não é muito provável. Mas podia tê-lo deixado para reparação. E depois há a possibilidade de haver outro sítio onde ele costumasse trabalhar e que nós ignoremos. Por exemplo, em tempos alugou um espaço num gabinete de freelancers perto de Sankt Eriksplan. E há também, claro, a possibilidade de o assassino ter levado o computador com ele.
- Segundo o Armanskij, a Salander é muito boa com computadores.
- Exactamente - disse Modig, assentindo com a cabeça.
- Hum. A teoria do Blomkvist é que o Svensson e a Johansson foram assassinados por causa da investigação que o Svensson estava a fazer. E que estaria toda no computador dele.
- Estamos a ficar um pouco para trás. Três vítimas de assassínio criam tantas pontas soltas que é difícil acompanhar o ritmo, mas a
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verdade é que ainda não fizemos uma busca como deve ser à secretária do Svensson na Millennium.
- Falei com a Erika Berger esta manhã. Disse-me que estava surpreendida por ainda não termos ido dar uma vista de olhos ao que ele lá deixou.
- Temo-nos focado demasiado na caça à Salander. E, até agora, não fazemos a mais pequena ideia do motivo. Podes...?
- Combinei com a Berger uma visita à Millennium, amanhã de manhã.
- Obrigado.
Na quinta-feira, Mikael Blomkvist estava sentado à secretária, a conversar com Malin, quando um telefone tocou algures na redacção. Através da porta aberta, viu Henry passar para ir atender. E então percebeu, numa fracção de segundo, que era o telefone da secretária de Dag, e levantou-se de um salto.
- Pára! - gritou. - Não toques nesse telefone!
Henry tinha a mão no auscultador. Mikael atravessou a sala a correr. Como diabo era o nome da falsa companhia que tinha...
- Indigo Marketing, fala Mikael. Em que posso ser-lhe útil?
- Hã... bom dia. Chamo-me Gunnar Bjõrck. Recebi uma carta a dizer que ganhei um telemóvel.
- Parabéns - disse Mikael. - É um Sony Ericsson, último modelo.
- E é grátis?
- Exactamente, completamente gratuito. Para receber a sua oferta, só tem de ser entrevistado. Fazemos estudos de mercado e análises aprofundadas para várias empresas. Demorará cerca de uma hora a responder às nossas perguntas. Depois da entrevista, o seu nome será incluído noutro sorteio e terá a oportunidade de ganhar cem mil coroas.
- Compreendo. Pode ser pelo telefone?
- Infelizmente, não. O questionário envolve olhar para vários logos comerciais e identificá-los. Vamos também perguntar-lhe que tipo de imagens publicitárias prefere e mostrar-lhe várias alternativas. Vamos ter de mandar um dos nossos colaboradores.
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- Estou a ver... e como foi que eu fui escolhido?
- Fazemos este tipo de estudo várias vezes por ano. Neste momento, estamos a concentrar-nos em homens bem-sucedidos no seu grupo etário. Tiramos números de segurança social à sorte dentro destes parâmetros.
Bjõrck aceitou finalmente um encontro. Disse a Mikael que estava de baixa e a convalescer numa cabana de Verão em Smâdalarõ. Deu indicações sobre como lá chegar. Combinaram o encontro para sexta de manhã.
- YES! - gritou Mikael, quando desligou o telefone, esmurrando o ar. Malin e Henry trocaram um olhar surpreendido.
Paolo Roberto aterrou em Arlanda às onze e meia da manhã de quinta-feira. Tinha dormido durante a maior parte do voo desde Nova Iorque, e, por uma vez, não estava a sentir os efeitos do jet lag.
Acabava de passar um mês nos Estados Unidos a falar de boxe, a assistir a combates e a procurar ideias para uma produção que planeava vender à Strix Television. Relutantemente, admitiu que tinha arrumado profissionalmente as botas, em parte por persuasão da família, mas também porque começava a sentir o peso dos anos. Nem sequer era tanto o problema de manter-se em forma, o que conseguia com uma sessão bem puxada no ginásio pelo menos uma vez por semana. Ainda era um nome de referência no mundo do pugilismo e esperava continuar a trabalhar na modalidade, de um modo ou de outro, até ao fim dos seus dias.
Foi buscar a mala à passadeira da bagagem. Na alfândega, escolheram-no para ser revistado, até que um dos funcionários o reconheceu.
- Eh, Paolo! Na mala só traz as luvas, não é verdade. A arma mortífera é você mesmo, pá!
Estava a atravessar o hall das chegadas em direcção à escada rolante quando se deteve bruscamente, aturdido ao ver o rosto de Lisbeth Salander nos jornais da tarde que se encontravam nos expositores. Talvez sempre estivesse a sofrer o efeito do jet lag, ao fim e ao cabo. Voltou a ler o cabeçalho.
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"CAÇA A LISBETH SALANDER"
Olhou para o outro expositor.
extra! "psicopata procurada por triplo assassínio"
Comprou os jornais da tarde e os da manhã e foi para a cafetaria. Leu os artigos com a sensação de irrealidade.
Quando Mikael Blomkvist chegou ao seu apartamento na Bell-mansgatan, às onze da noite de quinta-feira, estava cansado e deprimido. Tinha planeado deitar-se cedo para recuperar um pouco de sono, mas não conseguiu resistir à tentação de ligar o iBook e ver o e-mail. Nada de interesse por esse lado, mas então abriu a pasta [LISBETH SALANDER]. O coração bateu-lhe mais depressa quando descobriu um novo documento chamado <MB-2>. Abriu-o imediatamente.
Procurador E. está a passar informação para a imprensa. Pergunta-lhe por que não passou o antigo relatório da polícia.
Ponderou a mensagem, confuso. Que antigo relatório da polícia? Porque teria ela de escrever todas as mensagens sob a forma de charada? Criou um novo documento, a que chamou <Críptico>.
Olá, Sally. Estou morto de cansaço e ainda não parei um momento desde os assassínios. Não estou com paciência para adivinhas. Talvez tu te estejas nas tintas, mas eu quero saber quem matou os meus amigos. M.
Esperou sentado à secretária. A resposta (<Críptico-2>) chegou um minuto mais tarde:
Que farias se tivesse sido eu?
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Respondeu com <Críptico-3>:
Lisbeth, se é verdade, como dizem, que te passaste dos carretos, talvez possas pedir ao Dr. Teleborian que te ajude. Mas eu não acredito que tenhas assassinado o Dag e a Mia. Espero não estar enganado.
O Dag e a Mia iam publicar um artigo a denunciar o negócio do sexo. Suponho que terá sido essa a razão por que os mataram, mas não tenho nada a que me agarrar.
Não sei o que correu mal entre nós, mas tu e eu conversámos, em tempos, a respeito da amizade. Eu disse-te que a amizade se constrói com base em duas coisas: respeito e confiança. Mesmo que já não gostes de mim, podes continuar a contar comigo e a confiar em mim. Nunca revelei os teus segredos fosse a quem fosse. Nem sequer o que aconteceu aos milhões do Wennerstrõm. Confia em mim. Não sou teu inimigo. M.
Já quase tinha perdido a esperança quando, 50 minutos mais tarde, o documento <Críptico-4> surgiu no visor.
Vou pensar nisso.
Mikael suspirou de alívio. A resposta significava exactamente o que dizia. Lisbeth ia pensar nisso. Era a primeira vez desde que, sem uma palavra de explicação, ela desaparecera da sua vida, que oferecia uma possibilidade de comunicação. Escreveu o documento <Críp-tico-5>:
OK. Eu espero. Mas, por favor, não demores muito tempo.
O inspector Faste recebeu a chamada na sexta-feira de manhã quando estava na Lângholmsgatan, perto da Vãsterbron, a caminho do trabalho. A polícia não tinha recursos para colocar o apartamento da Lundagatan sob vigilância 24 horas por dia, de modo que tinham pedido a um dos vizinhos, um polícia reformado, que o mantivesse debaixo de olho.
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- A chinoca acaba de chegar - disse o homem.
Dificilmente Faste poderia estar num local mais conveniente. Fez uma inversão de marcha ilegal depois da paragem de autocarros da Heleneborgsgatan, antes de chegar à Vãsterbron, e desceu a Hõ-galidsgatan até à Lundagatan. Chegou menos de dois minutos depois de ter recebido o telefonema, atravessou a rua a correr e entrou no edifício pela porta das traseiras.
Miriam Wu ainda estava parada diante da porta do apartamento, a olhar para a fechadura arrancada e para a fita da polícia atravessada de um umbral ao outro quando ouviu passos nas escadas. Voltou-se , e viu um homem corpulento a olhar fixamente para ela. Sentiu a hostilidade dele e deixou cair a bolsa no chão, disposta a fazer uma demonstração de boxe tailandês, se necessário.
- Miriam Wu? - perguntou ele.
Para surpresa dela, estava a mostrar-lhe um crachá da polícia.
- Sim - respondeu. - Que se passa aqui?
- Onde esteve a semana passada?
- Estive fora. Que aconteceu? Houve um assalto?
- Vou ter de pedir-lhe que me acompanhe a Kungsholmen - disse ele, pondo-lhe uma mão no ombro.
Bublanski e Modig viram Miriam Wu ser escoltada por Faste até à sala de interrogatório. A rapariga estava claramente furiosa.
- Sente-se, por favor. Sou o inspector Jan Bublanski, e esta é a minha colega, a inspectora Sonja Modig. Peço desculpa por termos sido obrigados a trazê-la até aqui desta maneira, mas há umas perguntas que precisamos de fazer-lhe.
- Tudo bem, mas porquê? Aquele tipo não é muito falador -disse Miriam, apontando com o polegar para Faste.
- Há já algum tempo que andamos à sua procura. Pode dizer-nos onde esteve?
- Poder, posso, mas acho que não me apetece. E também acho que não têm nada com isso.
Bublanski arqueou as sobrancelhas.
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- Chego a casa e encontro a minha porta arrombada e selada pela polícia, e então um tipo carregado de esteróides agarra em mim e arrasta-me para aqui. Tenho direito a uma explicação?
- Não gosta de homens? - perguntou Faste.
Miriam Wu voltou-se e olhou para ele, espantada. Bublanski lançou um olhar furioso ao colega.
- Não leu nenhum jornal durante toda a semana que passou? Esteve fora do país?
- Não, não li nenhum jornal. Estive em Paris, a visitar os meus pais. Durante duas semanas. Acabo de chegar da Estação Central.
- Veio de comboio?
- Não gosto de aviões.
- E não viu os títulos dos jornais?
- Apeei-me do comboio e apanhei o metro para casa. Bublanski pensou por um instante. Não saíra nada sobre Lisbeth
Salander nos jornais daquela manhã. Pôs-se de pé e saiu da sala. Quando voltou, trazia o número da Páscoa do Aftonbladet, com a fotografia de Salander na primeira página. Miriam Wu quase caiu para o lado.
Mikael Blomkvist seguiu as indicações que Bjorck lhe tinha dado para chegar à cabana em Smâdalarõ. Estacionou o BMW e verificou que a "cabana de verão" era uma moderna vivenda com condições para ser habitada ao longo de todo o ano. Tinha vista para o mar, na direcção da enseada de Jungfrufjârden. Percorreu o caminho de saibro e tocou à campainha. Bjorck era facilmente identificável pela fotografia de passaporte que Dag Svensson juntara ao processo.
- Bom dia - disse Mikael.
- Óptimo. Encontrou a casa.
- Graças às suas indicações.
Bjorck parecia estar de perfeita saúde, embora coxeasse um pouco.
- Estou de baixa - explicou.
- Nada de grave, espero.
- Estou à espera de ser operado a uma hérnia discal. Quer café?
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- Não, obrigado. - Mikael sentou-se à mesa da cozinha e abriu a jwsta, de onde tirou um dossier. Bjorck sentou-se em frente dele.
- A sua cara não me é estranha. Já nos conhecíamos?
- Não me parece - respondeu Mikael.
- Tenho a certeza de que já o vi num sítio qualquer.
- Talvez nos jornais.
- Como disse que se chamava?
- Mikael Blomkvist. Sou jornalista. Trabalho para a revista Millennium.
Bjorck pareceu confuso. De repente, fez-se luz. Super Blomkvist. O caso Wenmrstrom. Mas continuava a não perceber as implicações.
- A Millennium! Não sabia que faziam estudos de mercado.
- De vez em quando. Gostaria de começar por mostrar-lhe três fotos e perguntar-lhe de qual gosta mais.
Mikael pôs três fotografias de raparigas em cima da mesa. Uma tinha sido descarregada de um site porno da Net. As outras duas eram ampliações de fotografias de passaporte.
Bjorck ficou pálido como um morto.
- Não estou a perceber.
- Não? Esta é Lidia Komarova, de dezasseis anos, de Minsk. A seguir temos Myang So Chin, conhecida como Jo-Jo, da Tailândia. E por fim, Yelena Barasova, de dezanove anos, de Tallinn. Comprou sexo a todas estas mulheres, e a minha pergunta é: de qual gostou mais? Faça de conta que é um estudo de mercado.
- Resumindo, afirma conhecer Lisbeth Salander há cerca de três anos. No início deste ano, e sem esperar qualquer remuneração, ela cedeu-lhe o apartamento e foi viver para outro sítio. Fazem sexo ocasionalmente, quando ela a contacta, mas não sabe onde mora, que espécie de trabalho faz nem como ganha a vida. Espera que acredite nisso?
Miriam fulminou-o com o olhar.
- Estou-me nas tintas para aquilo em que acredita ou deixa de acreditar. Não fiz nada de ilegal e como vivo a minha vida e com quem faço sexo é assunto que me diz respeito a mim e a mais ninguém.
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Bublanski suspirou. Quando, naquela manhã, soubera que Miriam Wu tinha reaparecido, sentira um enorme alívio. Finalmente, um pouco de sorte. Mas a informação que estava a obter dela era tudo menos esclarecedora. Era, até, muito estranha. E o problema era que ele acreditava na rapariga. Miriam dava respostas claras, inteligíveis, sem qualquer hesitação. Referia locais e datas de encontros com Lisbeth Salander, e fazia um relato tão preciso de como acontecera a sua mudança para o apartamento na Lundagatan que tanto ele como Modig estavam convencidos de que uma história tão bizarra tinha de ser verdadeira.
Faste assistira à conversa com crescente exasperação, mas conseguira manter-se calado. Achava que Bublanski estava a ser demasiado mole com aquela chinoca, que era uma cabra arrogante e usava um monte de palavras para evitar responder à única pergunta que verdadeiramente interessava, a saber: onde raio se tinha escondido a puta de merda da Salander?
Mas Miriam Wu não sabia onde estava Lisbeth Salander. Não sabia que espécie de trabalho Lisbeth Salander fazia. Nunca ouvira falar da Milton Security. Nunca ouvira falar de Dag Svensson ou de Mia Johansson, e, consequentemente, não podia dar-lhes qualquer informação que tivesse uma ponta de interesse. Não fazia ideia de que Lisbeth Salander estava sob tutela, nem de que tinha estado internada, nem das muitas avaliações psiquiátricas que constavam do seu CV.
Em contrapartida, não tinha dúvidas em confirmar que ela e Lisbeth Salander tinham estado no Kvarnen, e se tinham beijado, e depois tinham ido para o apartamento na Lundagatan, e que Lisbeth tinha saído muito cedo na manhã seguinte. Dias mais tarde, ela, Miriam, apanhara o comboio para Paris e não vira os cabeçalhos dos jornais suecos. Exceptuando uma curta visita de Lisbeth para deixar as chaves do carro, não voltara a vê-la desde aquela noite no Kvarnen.
- Chaves do carro? - perguntou Bublanski. - A Salander não tem nenhum carro.
Miriam Wu disse-lhe que estava enganado. Lisbeth tinha um Honda cor de vinho, que estava estacionado na Lundagatan diante do prédio de apartamentos. Bublanski pôs-se de pé e olhou para Modig.
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- Importas-te de continuar esta conversa? - disse, e saiu da sala.
Precisava de encontrar Holmberg e pedir-lhe que fizesse um exame pericial a um Honda cor de vinho estacionado na Lundagatan. E precisava de estar sozinho para pensar.
Gunnar Bjõrck, chefe-adjunto da Divisão de Imigração da Polícia de Segurança Nacional, na altura de baixa médica, estava sentado, lívido, à mesa da cozinha de onde se desfrutava uma bela vista da enseada de Jungfrufjárden. Mikael Blomkvist observava-o com uma expressão paciente, neutra. Estava agora convencido de que Bjõrck não tivera nada que ver com os assassínios. Uma vez que Dag Svensson nunca conseguira encontrá-lo, não fazia a mínima ideia de que ia ser denunciado, com o nome e a fotografia publicados na Millennium e num livro. O homem forneceu, em todo o caso, uma informação valiosa. Conhecia Nils Bjurman. Tinham-se conhecido no clube de tiro da polícia, de que Bjõrck era um membro activo havia 28 anos. Durante algum tempo, tinham os dois feito parte da direcção. Não eram amigos chegados, mas tinham estado juntos em diversas ocasiões e, ocasionalmente, combinavam um jantar.
Não, não via Bjurman há já vários meses. A última vez que o encontrara fora no Verão anterior, num bar. Lamentava muito que Bjurman tivesse sido assassinado - e ainda por cima por uma psicopata - mas não tencionava ir ao funeral.
Mikael ponderou a coincidência, mas acabou por largar o assunto. Bjurman havia de ter conhecido centenas de pessoas ao longo da sua vida profissional e social. O facto de conhecer alguém cujo nome aparecia no material de Svensson não era improvável nem estatisticamente invulgar. Ele próprio conhecia vagamente um jornalista que também era referido no livro.
Era tempo de encerrar a conversa. Bjõrck passara por todas as fases que seriam de esperar. Primeiro negação, e depois - quando lhe mostrara uma parte da documentação - fúria, ameaças, tentativa de suborno e, finalmente, súplica. Mikael fizera, ouvidos de mercador a todas estas explosões.
- Vai arruinar a minha vida se publicar essa treta - disse Bjõrck.
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- Sem dúvida.
- E vai fazê-lo?
- Absolutamente.
- Porquê? Não pode dar-me uma chance? Estou doente.
- Interessante, isso de usar a piedade como argumento.
- Não custa nada ser compassivo.
- Nisso tem toda a razão. Está para aí a choramingar porque eu vou destruir-lhe a vida, mas não se importou de destruir as vidas das raparigas contra as quais cometeu crimes. Podemos provar três casos. Sabe Deus quantos mais haverá. Por onde andava a sua piedade, nessa altura?
Pôs-se de pé e reuniu os papéis, que guardou na pasta.
- Não precisa de me acompanhar. Eu saio sozinho. Quando chegou à porta, voltou-se para Bjõrck.
- Alguma vez ouviu falar de um homem chamado Zala? - perguntou.
Bjõrck ficou a olhar para ele. Estava ainda tão agitado que mal ouviu a pergunta. Abriu muito os olhos.
Zala!
Não pode ser.
Bjurman!
Será possível?
Mikael notou a mudança na expressão dele e voltou para junto da mesa.
- Porque é que pergunta pelo Zala? - murmurou Bjõrck. Estava quase em estado de choque.
- O fulano interessa-me - respondeu Mikael.
Quase podia ver as estrelinhas a girar na cabeça do homem. Passados alguns instantes, Bjõrck pegou no maço de cigarros que estava no peitoril da janela. Era o primeiro cigarro que fumava desde que Mikael chegara.
- Se eu souber alguma coisa sobre esse Zala... o que é que isso vale para si?
- Depende daquilo que souber.
Bjõrck pensou no assunto. Emoções e pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça.
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Como raio pode este tipo saber alguma coisa a respeito do Zalachenko?
- É um nome que não ouvia há muito tempo - disse, por fim.
- Sabe então quem ele é?
- Não foi isso que eu disse. O que é que procura?
- E um dos nomes da lista de pessoas que o Svensson estava a investigar.
- O que é que vale para si?
- O que é que vale?
- Se eu o levar ao Zala... deixa-me de fora do seu relatório?
Mikael sentou-se lentamente. Depois de Hedestad, decidira nunca mais negociar uma história. E não tencionava negociar com Bjõrck; acontecesse o que acontecesse, ia desmascará-lo. Mas apercebeu-se de que era suficientemente desonesto para chegar a um acordo com o homem e depois traí-lo. Não experimentava qualquer sentimento de culpa. Bjõrck era um polícia que tinha violado a lei. Se conhecia o nome de um possível assassino, a sua obrigação era intervir, e não usar a informação para salvar a própria pele. Bjõrck podia alimentar a esperança de se safar se revelasse informação sobre outro criminoso. Mikael enfiou a mão no bolso do casaco, ligou o gravador que tinha desligado antes de se levantar da mesa, e tirou de lá um lenço.
- Ouçamos o que tem para me contar - disse.
Sonja Modig estava furiosa com Faste, mas não permitiu que a sua expressão denunciasse o que pensava dele. A entrevista com Miriam Wu, que tinha continuado depois de Bublanski sair da sala, não estava de modo algum a correr de acordo com as regras, e Faste ignorava os seus olhares de aviso.
Modig estava espantada. Nunca gostara de Faste nem dos seus modos machistas, mas sempre o considerara um investigador hábil. E, naquele dia, essa habilidade primava pela ausência. Era evidente que Faste se sentia ameaçado por uma mulher bonita, inteligente, voluntariosa e lésbica. Era também evidente que Wu se apercebera da irritação dele e estava a exacerbá-la deliberadamente.
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- Encontrou então o brinquedo que estava na minha gaveta. Que fantasias lhe suscitou na altura? - perguntou Miriam, com um sorrisinho de curiosidade.
Faste estava à beira de explodir.
- Cala a boca e responde à pergunta!
- Perguntou-me se o usava para foder a Lisbeth. E a minha resposta é que não tem nada com isso.
Modig ergueu uma mão.
- A entrevista com Miriam Wu foi interrompida para uma pausa às onze horas e doze minutos.
Desligou o gravador.
- Importa-se de ficar aqui, Miriam? Faste, preciso de falar contigo. Miriam Wu sorriu docemente quando Faste lhe lançou um olhar
assassino antes de sair para o corredor atrás de Modig. Sonja rodou sobre os calcanhares e olhou-o nos olhos, com o nariz quase colado ao dele.
- O Bublanski encarregou-me deste interrogatório. E tu não estás a ajudar nada.
- Ora, deixa-te disso. Aquela puta é mais escorregadia do que uma enguia.
- Haverá algum simbolismo freudiano na tua escolha de comparações?
- O quê?
- Esquece. Vai procurar o Curt e desafia-o para um jogo do galo, ou vai para o clube disparar a tua pistola, ou lá o que quiseres. Não te quero ali dentro.
- Por que raio estás a fazer isto, Modig?
- Porque tu estás a sabotar o meu interrogatório.
- Estás tão húmida com a gaja que queres interrogá-la sozinha?
Antes que pudesse impedir-se, Sonja Modig ergueu a mão e esbofeteou-o com força. Arrependeu-se no mesmo instante, mas era demasiado tarde. Olhou para os dois extremos do corredor e certificou-se de que ninguém tinha testemunhado a cena. Graças a Deus.
Ao princípio, Faste pareceu surpreendido. Então esboçou um sorriso de desprezo, atirou o casaco por cima do ombro e afastou-se.
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Modig esteve quase a chamá-lo para pedir desculpa, mas não o fez. Esperou um minuto, para se acalmar. Então, tirou dois copos de café da máquina automática e voltou à sala de interrogatórios.
Ficaram as duas sentadas em silêncio, a beber o café. Por fim, Modig olhou para Miriam Wu.
- Peço desculpa. Esta foi talvez a entrevista mais mal conduzida em toda a história deste edifício.
- O tipo que aí estava parece ser um excelente colega de trabalho. Deixe-me adivinhar: é heterossexual, divorciado e encarregado das piadas sobre homossexuais durante as pausas para o café.
- É... uma relíquia de qualquer coisa. É tudo o que posso dizer.
- E você não é?
- Pelo menos, não sou homofóbica.
- Acredito.
- Míriam, há dez dias que eu... nós, todos nós, trabalhamos sem parar. Estamos cansados e furiosos. Estamos a tentar esclarecer um horrível duplo assassínio em Enskede e um não menos horrível homicídio perto de Odenplan. A sua amiga Lisbeth Salander está ligada aos locais de ambos os crimes. Foi emitido um mandado de captura contra ela, a nível nacional. Por favor, compreenda que, custe o que custar, temos de detê-la antes que faça mal a outra pessoa ou talvez a si mesma.
- Conheço a Lisbeth Salander. Ela não matou ninguém.
- Não acredita, ou não quer acreditar? Miriam, não emitimos mandados de captura nacionais sem uma razão muito forte. Uma coisa posso dizer-lhe: o meu chefe, o inspector Bublanski, não está convencido de que ela seja culpada. Discutimos a possibilidade de ter tido um cúmplice, ou de ter sido de alguma maneira arrastada para isto contra a sua vontade. Mas temos de encontrá-la. Acredita que ela está inocente, Miriam, mas e se estiver enganada? Já disse que não sabe assim tanto a respeito dela.
- Não sei em que acreditar.
- Então ajude-nos a chegar à verdade.
- Estou a ser detida por alguma coisa?
- Não.
- Posso ir-me embora quando quiser?
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- Tecnicamente, sim.
- E sem ser tecnicamente?
- Continuará a ser um ponto de interrogação aos nossos olhos. Miriam Wu pesou aquelas palavras.
- Dispare. Se as suas perguntas me chatearem, não responderei. Modig voltou a ligar o gravador.
CAPÍTULO 20
SEXTA-FEIRA, 1 DE ABRIL- DOMINGO, 3 DE ABRIL
MIRIAM Wu esteve mais uma hora com a inspectora Modig. Já perto do fim, Bublanski entrou, sentou-se e ficou a ouvir sem dizer uma palavra. Miriam fez-lhe um delicado aceno de cabeça, mas continuou a falar com Modig.
Finalmente, Modig olhou para Bublanski e perguntou-lhe se tinha mais alguma pergunta. Ele abanou a cabeça.
- Declaro terminada a entrevista com Miriam Wu. São treze horas e nove minutos - disse Modig, e desligou o gravador.
- Parece que houve um pequeno problema com o inspector Faste - disse Bublanski.
- Estava com dificuldade em concentrar-se - respondeu Modig.
- É um idiota - declarou Miriam, em jeito de explicação.
- O inspector Faste tem muitos pontos a seu favor, mas não é a melhor escolha para interrogar uma jovem - disse Bublanski, olhando Miriam nos olhos. - Não devia ter-lhe confiado a tarefa. Peço desculpa.
Miriam pareceu surpreendida.
- Desculpas aceites. Eu também não fui muito simpática para consigo, ao princípio.
Bublanski fez um gesto com a mão, a descartar o assunto.
- Posso fazer-lhe mais algumas perguntas? Com o gravador desligado?
- Força.
- Quanto mais ouço a respeito de Lisbeth Salander, mais baralhado fico. A imagem que recebo das pessoas que a conhecem é
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inconsistente com a imagem que me é transmitida pela documentação da Assistência Social e pelos relatórios psiquiátricos.
- E então?
- Por favor, dê-me respostas simples, sem floreados.
- Tudo bem.
- A avaliação psiquiátrica que foi feita quando Lisbeth Salander tinha dezoito anos conclui que é atrasada mental.
- Tretas. A Lisbeth é talvez a pessoa mais inteligente que conheço.
- Nunca acabou o secundário e nem sequer tem um certificado que diga que sabe ler e escrever.
- A Lisbeth lê e escreve muito melhor do que eu. Por vezes, senta-se a rabiscar fórmulas matemáticas. Pura álgebra. Coisas demasiado complicadas para mim.
- Matemática?
- É um hobby que arranjou.
- Um hobby} - perguntou Bublanski, ao cabo de um instante.
- Equações. Nem sequer sei o que os símbolos significam. Bublanski suspirou.
- A Assistência Social escreveu um relatório, depois de ela ter sido detida em Tantolunden quando tinha dezoito anos. Segundo esse relatório, a sua amiga ganhava a vida como prostituta.
- A Lisbeth, uma pega? Tretas. Não sei que espécie de trabalho ela faz, mas não ficaria nada surpreendida se tivesse um emprego na tal empresa de segurança.
- Como é que ela ganha a vida?
- Não sei.
- É lésbica?
- Não. A Lisbeth faz sexo comigo, mas isso não é o mesmo que ser homossexual. Penso que nem ela própria sabe que identidade sexual tem. Por mim, diria que é bissexual.
- E essa história de usarem algemas, e coisas assim? Acha que ela tem tendências sádicas, ou como a descreveria?
- Vocês olharam para àqueles brinquedos sexuais e perceberam tudo ao contrário. Podemos usar algemas, por vezes, quando
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interpretamos papéis, mas isso não tem nada que ver com sadismo ou violência. É um jogo.
- Alguma vez aconteceu ela ser violenta consigo?., - Não. Normalmente, sou eu que faço o papel de dominadora. - Muito bem, chega. A propósito, mandei alguém instalar uma fechadura nova. O homem ainda deve lá estar, de modo que pode pedir-lhe as chaves.
Miriam Wu sorriu docemente.
A reunião da tarde, às três horas, resultou no primeiro desacordo sério. Bublanski pôs o grupo ao corrente das novidades, e então explicou que achava que deviam alargar o âmbito da investigação.
- Desde o primeiro dia, temos concentrado todas as nossas energias no esforço de encontrar Lisbeth Salander. É sem dúvida a nossa principal suspeita... isto com base nas provas... mas a imagem que temos dela é contrariada por todos os que a conhecem. O Armanskij, o Blomkvist e a Miriam Wu recusam vê-la como uma assassina psicopata. Por isso, quero que alarguemos um pouco o nosso raciocínio, que consideremos assassinos alternativos e a possibilidade de a própria Salander ter tido um cúmplice ou ter estado apenas presente quando os tiros foram disparados.
Estes comentários provocaram um aceso debate, em que Bublanski enfrentou uma forte oposição da parte de Faste e também de Bohman, o homem da Milton Security. Bohman fez notar que a explicação mais simples é frequentemente a correcta.
- É possível, claro, que a Salander não tenha agido sozinha, mas não temos quaisquer provas forenses que apontem para um cúmplice.
- Podemos sempre seguir as pistas do Blomkvist dentro da polícia - acrescentou Faste, acidamente.
Na discussão, Bublanski teve apenas o apoio de Modig. Andersson e Holmberg limitaram-se a observações isoladas e neutras, enquanto Hedstrõm, o outro homem da Milton, se mantinha calado como um rato. Finalmente, o procurador Ekstrõm ergueu uma mão.
- Bublanski... se bem entendi, não queres eliminar a Salander da investigação.
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- Não, claro que não. Temos as impressões digitais dela. Mas, até ao momento, não temos um motivo. Quero que comecemos a pensar segundo linhas diferentes. Será possível que haja várias pessoas envolvidas? Poderá tudo isto estar relacionado com o tal livro a respeito do negócio do sexo que o Svensson estava a escrever? O Blomkvist tem com certeza razão quando afirma que várias das pessoas referidas no livro têm bons motivos para matar.
- Como é que queres avançar? - perguntou Ekstrõm.
- Quero que duas pessoas comecem a procurar assassinos alternativos. A Sonja... e tu, Niklas, encarregam-se dessa parte.
- Eu? - exclamou Hedstrõm, espantado.
Bublanski tinha-o escolhido porque era o mais novo do grupo e provavelmente o mais capaz de pensar fora dos carris.
- Vais trabalhar com a Modig. Revejam tudo o que sabemos até agora e tentem descobrir qualquer coisa que nos tenha escapado. Faste, tu, o Andersson e o Bohman continuam a procurar a Salander. É a nossa prioridade número um.
- E eu que faço? - perguntou Holmberg.
- Concentra-te no Bjurman. Analisa outra vez o apartamento. Volta a procurar, para o caso de termos deixado passar qualquer coisa. Perguntas?
Ninguém tinha nenhuma.
- Okay. Por enquanto, não dizemos nada a respeito da Miriam Wu ter aparecido. Pode ter mais coisas para nos dizer, e não quero os media a cair em cima dela.
Ekstrõm concordou que deviam proceder de acordo com o plano de Bublanski.
- Muito bem - disse Hedstrõm, olhando para Modig -, tu é que és a detective. Diz-me o que é que tenho de fazer.
Estavam no corredor, à porta da sala de reuniões.
- Acho que devíamos ter uma nova conversa com o Mikael Blomkvist - disse ela. - Mas, antes disso, preciso de discutir umas coisas com o Bublanski. Tenho amanhã e o domingo de folga. O que
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significa que só começaremos na segunda de manhã. Aproveita o fim-de-semana para rever o material do caso.
Despediram-se. Modig chegou à porta do gabinete de Bublanski no momento em que Ekstrõm de lá saía.
- Tens um minuto?
- Senta-te.
- Fiquei tão furiosa com o Faste que receio ter perdido as estribeiras.
- Queixou-se de que o agrediste.
- Depois de ele sugerir que eu queria ficar sozinha com a Wu porque ela me excitava.
- Talvez seja preferível não entrar em pormenores. Mas a situação configura claramente um caso de assédio sexual. Queres apresentar queixa?
- Dei-lhe um estalo. Fiquemos por aqui.
- Foste provocada para lá do razoável.
- É verdade.
- O Faste tem problemas de relacionamento com mulheres fortes.
- Já tinha reparado nisso.
- Tu és uma mulher forte e uma excelente detective.
- Obrigada.
- Mas agradecia que, de futuro, não andasses por aí a espancar o pessoal.
- Não volta a acontecer. Acabei por não ter tempo de ir à Millennium.
- Já devíamos ter tratado disso. Vai para casa e aproveita o fim-de-semana para descansar. Começamos com a nova abordagem na segunda-feira.
Niklas Hedstrõm fez uma paragem na Estação Central e bebeu um café no George. Sentia-se profundamente deprimido. Passara a semana inteira à espera de ouvir dizer que Lisbeth Salander tinha sido apanhada. Se ela resistisse à prisão, era até possível que, com um pouco de sorte, um simpático polícia lhe desse um tiro.
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Estar subordinado a Bohman já era suficientemente mau - o homem era um dos mais aborrecidos e menos imaginativos funcionários da Milton -, mas agora tinha sido posto sob as ordens da inspectora Modig, e ela era, de todo o grupo de investigadores, a mais céptica em relação à culpabilidade de Salander. Perguntou a si mesmo se o famoso Inspector Bolha não teria um caso com aquela cabra. Não ficaria nada surpreendido. Aparentemente, ela fazia dele o que queria. De todos os outros, só Faste tinha tomates suficientes para dizer o que pensava.
Hedstrõm puxava pela cabeça. Nessa manhã, ele e Bohman tinham tido uma curta reunião, na Milton, com Armanskij e Frãk-lund. Uma semana de investigação não proporcionara quaisquer resultados, e Armanskij estava frustrado por ninguém ter encontrado o que quer que fosse que ajudasse a esclarecer os crimes. Frãklund sugerira que a Milton Security devia repensar o seu envolvimento - Bohman e Hedstrõm tinham coisas mais importantes que fazer do que trabalhar de graça para a polícia.
Armanskij decidira que os dois continuariam no caso mais uma semana. Se, ao fim desse tempo, continuasse a não haver resultados, a missão seria cancelada.
Por outras palavras, restava-lhe apenas uma semana até que a porta para o seu envolvimento na investigação se fechasse definitivamente. Não sabia muito bem o que ia fazer.
Passado algum tempo, pegou no telemóvel e ligou para Tony Scala, um jornalista freelancer que ganhava a vida a escrever merdas para revistas masculinas e que conhecia de meia dúzia de encontros casuais. Trocadas as amenidades da praxe, disse-lhe que tinha informações sobre os crimes de Enskede, explicando as circunstâncias em que se vira envolvido na investigação policial mais escaldante dos últimos anos. Scala mordeu imediatamente o isco: aquilo podia dar um furo para uma das revistas. Combinaram encontrar-se para um café no Aveny, na Kunsggatan, uma hora depois.
Scala era gordo. Era mesmo muito gordo.
- Dou-te a informação, mas com duas condições prévias - disse Hedstrõm.
- Dispara.
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- Primeira: nenhuma referência à Milton Security no artigo. O nosso papel é exclusivamente de consultoria.
- Embora seja um elemento importante, uma vez que a Salander trabalhou na Milton.
- Serviço de limpeza, e essas coisas - disse Hedstrõm, com um gesto depreciativo. - Não interessa a ninguém.
- Se assim dizes.
- Segunda: tens de escrever o artigo de modo a dar a impressão que foi uma mulher que te passou a informação.
:,, - Porquê?
- Para desviar as suspeitas de mim.
- Tudo bem. Então, o que é que temos? ( - A amiga lésbica da Salander apareceu.
- Excelente! A tipa a quem ela ofereceu o apartamento na Lundagatan? A que tinha desaparecido?
- Miriam Wu. Vale alguma coisa?
- Podes apostar que sim. Onde esteve ela?
- Fora do país. Afirma não ter ouvido nem lido nada a respeito dos assassínios.
- É considerada suspeita?
- Não. Pelo menos por enquanto. Foi ouvida hoje e libertada há coisa de três horas.
- Estou a ver. Acreditas na história dela?
- Estou convencido de que mente com quantos dentes tem. Sabe de certeza qualquer coisa.
- Excelente material, Niklas.
- Em todo o caso, é melhor investigá-la. Estamos a falar de uma gaja que pratica SM com a Salander.
- Tens a certeza absoluta disso?
- Admitiu-o durante o interrogatório. Encontrámos algemas, fatos de couro, chicotes e essa trampa toda quando revistámos o apartamento. Aquilo dos chicotes era um exagero. Okay, era mentira, mas com toda a certeza aquela puta chinoca andava metida também nos chicotes.
- A sério? - perguntou Scala, de olhos muito abertos.
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Paolo Roberto foi um dos últimos a sair. Tinha passado a tarde na biblioteca, a ler tudo o que fora escrito sobre a perseguição a Lisbeth Salander.
Saiu para a Sveavágen a sentir-se deprimido e confuso. E cheio de fome. Entrou no MacDonalds, pediu um burger e foi sentar-se numa mesa de canto.
Lisbeth Salander uma tripla assassina. Não podia acreditar em semelhante coisa. Aquela rapariguinha esquisita? A questão era saber se devia fazer qualquer coisa. E se sim, o quê.
Miriam Wu regressou de táxi à Lundagatan e ficou a olhar para a devastação do seu apartamento acabado de decorar. O conteúdo de armários, guarda-fatos, gavetas e até caixas de sapatos tinha sido despejado no chão e remexido. Havia manchas de pó para detectar impressões digitais em todas as superfícies. Os seus acessórios eróticos, objectos que considerava altamente pessoais, estavam empilhados em cima da cama. Mas, tanto quanto pudesse ver, não faltava nada.
Foi à cozinha ligar a máquina de café e abanou a cabeça. Lisbeth, Lisbeth, em que porra de sarilho te meteste tu?
Pegou no telemóvel e ligou para a amiga, mas uma mensagem gravada disse-lhe que o assinante que desejava contactar não estava disponível. Sentou-se à mesa da cozinha e ficou muito tempo a tentar perceber o que era real e o que não era. A Lisbeth Salander que conhecia não era nenhuma assassina psicopata, mas, por outro lado, a verdade era que não a conhecia muito bem. Lisbeth era fogo na cama, isso sem dúvida, mas também conseguia ser fria como o gelo, quando estava para aí virada.
Prometeu a si mesma não decidir o que quer que fosse até falar com Lisbeth e ouvir o que ela tivesse para dizer. Só lhe apetecia chorar, e passou as duas horas seguintes a arrumar aquela confusão.
Às sete da tarde, o apartamento estava de novo mais ou menos habitável. Miriam tinha tomado um duche e estava na cozinha, vestindo um roupão oriental de seda preta bordada a ouro, quando
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a campainha da porta tocou. Foi abrir, e viu-se perante um sujeito excepcionalmente gordo e de barba por fazer.
- Olá, Miriam, o meu nome é Tony Scala. Sou jornalista. Posso fazer-lhe umas perguntas?
O homem gordo fazia-se acompanhar por um fotógrafo, que disparou o flash mesmo na cara dela.
Miriam Wu ainda considerou a hipótese de lhe dar um pontapé no joelho e uma cotovelada no nariz, mas teve a presença de espírito para perceber que isso só serviria para lhes dar mais fotografias do tipo que procuravam.
- Esteve no estrangeiro com a Lisbeth Salander? Sabe onde ela está?
Miriam fechou-lhe a porta na cara e rodou a chave na fechadura recentemente instalada. Scala levantou a tampa da fresta do correio.
- Miriam, mais cedo ou mais tarde vai ter de falar à imprensa. Eu posso ajudá-la.
Miriam cerrou o punho e esmurrou-lhe os dedos. Ouviu-o gritar de dor. Foi para o quarto e estendeu-se em cima da cama, de olhos fechados. Lisbeth, vou torcer-te o pescoço, quando te encontrar.
Depois da visita a Smâdalarõ, Mikael Blomkvist passara o resto da tarde a falar com outro dos homens que Dag Svensson nomeava no seu livro. Até ao momento, tinha riscado da lista seis dos 37 nomes. O último fora um juiz reformado que vivia em Tumba e presidira a vários casos de prostituição.
Para variar, o velho patife não tentara negar, ameaçar ou pedir misericórdia. Pelo contrário, admitia alegremente ter tido relações com prostitutas vindas do Leste. Não, não estava nem um bocadinho arrependido. A prostituição era uma profissão respeitável e ele considerava estar a fazer um favor às raparigas sendo um dos seus clientes.
Mikael estava a atravessar Liljeholmen, por volta das dez da noite, quando Malin Eriksson lhe ligou.
- Viva. Leste a edição online do Morgon-Posten?
- Não, o que é que eles dizem?
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- A amiga da Lisbeth Salander regressou a casa.
- O quê? Quem?
- Miriam Wu, a lésbica que vive no apartamento da Lundagatan. Wu, pensou Mikael. "Salander-Wu", na chapinha metálica.
- Obrigado. Vou já para aí.
Miriam Wu tinha desligado o telefone fixo do apartamento, e o telemóvel também. Às sete e meia, a notícia do seu aparecimento tinha aparecido no website de um matutino. Pouco depois, tinham telefonado do Aftonbladet e, três minutos mais tarde, do Expressen. O Aktuellt publicara a história sem referir o nome dela, mas, pelas nove da noite, nada menos que 16 jornalistas de vários órgãos de comunicação tinham tentado conseguir um comentário.
A campainha da porta tocara duas vezes. Não abrira, e apagara todas as luzes no apartamento. Apetecia-lhe esmurrar o nariz ao próximo jornalista que a chateasse. No fim, pegou no telemóvel, ligou a uma amiga que vivia perto, em Hornstull, e perguntou-lhe se podia passar a noite em casa dela.
Escapuliu-se pela porta de serviço cinco minutos antes de Mikael Blomkvist estacionar diante do prédio e premir o botão da campainha.
Bublanski telefonou a Sonja Modig pouco depois das dez da manhã de sábado. Modig tinha dormido até às nove e brincara um pouco com os filhos antes de o marido os levar a dar uma volta.
-Já leste os jornais?
- Não, ainda não. Só me levantei há uma hora, e estive entretida com os miúdos. Aconteceu alguma coisa?
- Alguém da nossa equipa anda a falar com a imprensa.
- Sempre o soubemos. Alguém deixou transpirar o relatório psiquiátrico da Salander, há já vários dias.
- Essa foi o Ekstrõm.
- Foi? - espantou-se Modig.
- Claro, ainda que ele nunca o admita. Está a tentar criar interesse, porque lhe convém. Mas isto não. Umfreelancer chamado Tony
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Scala falou com alguém que lhe contou uma porção de coisas a respeito da Miriam Wu. Entre outras, pormenores do que foi dito no interrogatório, ontem. Coisas que queríamos manter em segredo, e o Ekstrõm trepou pelas paredes.
- Raios!
- O jornalista não menciona nomes. Descreve a fonte como "alguém que desempenha um papel central na investigação".
- Merda.
- O artigo refere a fonte como uma "ela".
Modig não disse nada durante dez segundos. Ela era a única mulher ligada à investigação.
- Bublanski... não disse uma palavra a nenhum jornalista. Não discuti a investigação com ninguém fora do nosso corredor. Nem sequer com o meu marido.
- Não acreditei nem por um segundo que a fuga tivesse partido de ti. Mas, infelizmente, o procurador Ekstrõm acredita. E o Faste, que está de serviço este fim-de-semana, farta-se de insinuar coisas.
Modig sentiu-se subitamente muito cansada.
- E então, o que é que acontece agora?
- O Ekstrõm quer que sejas afastada da investigação enquanto a acusação é examinada.
- Que acusação? Isto é absurdo. Como é que eu posso provar...
- Tu não tens de provar coisa alguma. A pessoa que faz a acusação é que tem de apresentar a prova.
- Eu sei, mas... raios partam isto tudo. Quanto tempo vai demorar?
-Já acabou.
- O quê?
- Perguntei-te. Tu disseste que a fuga não partiu de ti. A investigação está feita e eu vou escrever o relatório. Encontramo-nos na segunda, às nove, no gabinete do Ekstrõm, e eu trato das perguntas.
- Obrigada, Bublanski.
- De nada.
- Há um problema.
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- Eu sei.
- Como não fui eu, tem de ter sido alguém da nossa equipa.
- Alguma sugestão?
- A minha primeira aposta seria no Faste, mas não acredito verdadeiramente que tenha sido ele.
- Sinto-me inclinado a concordar contigo. É um chato de primeira, mas ficou genuinamente irritado com esta história.
Bublanski gostava de dar o seu passeio, dependendo do tempo que fazia e do tempo de que dispunha. Era uma das raras formas de exercício físico que apreciava. Morava na Katarina Bangata, em Sodermalm, não muito longe dos escritórios da Millennium, ou da Milton Security, já agora, onde Lisbeth Salander tinha trabalhado, e da Lundagatan, onde ela tinha vivido. E ficava também perto da sinagoga na Sankt Paulsgatan. Na tarde de sábado, passou por todos estes lugares.
Inicialmente, a mulher, Agnes, acompanhara-o. Estavam casados havia 23 anos e ele fora fiel durante todo aquele tempo.
Tinham entrado na sinagoga e falado um pouco com o rabi. Bublanski era judeu polaco, enquanto a família de Agnes - tinham morrido quase todos em Auschwitz - era originária da Hungria.
Depois da visita à sinagoga, tinham-se separado: Agnes para ir às compras, Bublanski para continuar o seu passeio. Precisava de estar sozinho, para pensar sobre a investigação. Reviu as medidas que tomara desde que o caso lhe caíra na secretária na manhã de Quinta-feira Santa, e não conseguiu detectar muitos erros.
Um fora não ter mandado imediatamente alguém passar em revista a secretária de Svensson na Millennium. Quando se lembrara -e encarregara-se ele próprio disso -, já Blomkvist tirara de lá sabia Deus o quê.
Outro fora não ter descoberto que Lisbeth Salander tinha comprado um carro. Mas Holmberg já lhe comunicara que o Honda não continha nada de interesse.
Exceptuando esses dois erros, a investigação fora tão correcta quanto se poderia esperar.
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Parou junto ao quiosque, perto de Zinkensdamm, e olhou para o expositor dos jornais. A fotografia de Lisbeth Salander fora remetida para uma vinheta, pequena mas perfeitamente reconhecível, e a ênfase passara para uma notícia bem mais vendável:
"POLÍCIA INVESTIGA GRUPO DE LÉSBICAS SATÂNICAS"
Comprou um jornal e encontrou a história, dominada pela foto de cinco raparigas de 16 ou 17 anos vestidas com blusões de couro preto cravejados de tachas, jeans pretos rasgados e T-shirts justas. Uma delas segurava uma bandeira com um pentagrama e outra fazia um sinal com o indicador e o mindinho da mão direita. A legenda dizia: "Lisbeth Salander acompanhava uma banda de death metal que tocava em pequenos clubes. Em 1996, a banda prestou homenagem à Igreja de Satã e gravou uma música que foi um êxito, Etiquette ofEvil." O nome Evil Fingers não era referido e o jornal desfocara os rostos das raparigas, mas os fãs da banda não teriam certamente dificuldade em reconhecê-las.
A história centrava-se em Miriam Wu e estava ilustrada com uma foto tirada durante um show no Berns, em que ela aparecera em tronco nu e usando o quépi de oficial do exército russo. O rosto estava igualmente desfocado.
AMIGA DE L. SALANDER ESCREVE A RESPEITO DE SEXO ENTRE LÉSBICAS E SADOMASOQUISTAS A mulher, de 31 anos, é bem conhecida na vida nocturna de Estocolmo. Não faz segredo da sua homossexualidade e de que gosta de dominar as parceiras.
O jornalista descobrira inclusivamente uma rapariga chamada Sara que, segundo afirmava, fora objecto das atenções da visada. O namorado ficara "perturbado" pelo incidente. O artigo explicava tratar-se de um obscuro grupo feminista e elitista que se situava nas margens do movimento gay e ganhara uma certa notoriedade ao organizar uma "bondage workshop" durante o Gay Pride. O resto baseava-se numa
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peça deliberadamente provocadora que Miriam Wu escrevera, 16 anos antes, para uma revisteca feminista. Bublanski passou os olhos pelo texto e atirou o jornal para o caixote do lixo.
Pensou em Faste e Modig, ambos detectives competentes. Mas Faste era um problema; começava a bulir com os nervos de toda a gente. Ia ter de falar com ele, mas não acreditava que fosse o culpado das fugas de informação.
A dada altura, deu por si na Lundagatan, a olhar para a porta do prédio de Lisbeth Salander. Não tinha tomado a decisão consciente de ir até ali.
Subiu as escadas para o troço superior da rua, onde ficou muito tempo a pensar na história de Blomkvist sobre o ataque a Salander. Uma história que também não levava a parte alguma. Não havia relatório policial, nem nomes das pessoas envolvidas, e nem sequer uma descrição adequada do atacante. Blomkvist afirmara não ter conseguido ler a matrícula da carrinha que fugira do local.
Isto assumindo, claro, que tudo aquilo tinha de facto acontecido.
Mais um beco sem saída.
Olhou para o Honda cor de vinho que continuava estacionado junto ao passeio, e nesse instante viu Mikael Blomkvist encaminhar-se para a porta do prédio.
Miriam Wu acordou tarde, enrolada nos lençóis. Sentou-se na cama e olhou em redor, para o quarto desconhecido.
Usara o ataque dos media como desculpa para pedir refúgio à amiga. Mas também quisera sair do apartamento, apercebia-se disso, por temer que Lisbeth fosse bater-lhe à porta. O interrogatório na polícia e a perseguição dos jornalistas tinham-na afectado profundamente, e apesar de ter tomado a resolução de não tomar partido até Lisbeth ter tido oportunidade de explicar o que acontecera, começava a recear que a amiga fosse de facto culpada.
Baixou o olhar para Viktoria Viktorsson, conhecida como Duplo-V e 100% lésbica. Estava deitada de bruços e murmurava qualquer coisa no seu sono. Miriam levantou-se sem fazer barulho e tomou um duche. Em seguida, vestiu-se e saiu para ir comprar pão. Foi só quando
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estava a pagar na caixa da padaria, junto ao Café Cinnamon, que viu os cabeçalhos dos jornais. Voltou a correr para o apartamento.
Mikael Blomkvist marcou o código de acesso e entrou. Dois minutos mais tarde estava de novo à porta. Ninguém em casa. Olhou para um lado e para o outro, parecendo indeciso. Bublanski observava-o atentamente.
O dilema que ocupava o espírito do inspector Bublanski podia resumir-se da seguinte maneira: se Blomkvist tinha mentido a respeito do ataque, era porque estava a fazer um jogo qualquer, o que, no pior cenário, podia significar que tivera alguma coisa que ver com os assassínios. Mas se estava a dizer a verdade, então havia um elemento escondido naquele drama; havia mais jogadores do que os que estavam à vista, e o pano de fundo das mortes podia ser consideravelmente mais complicado do que um ataque de loucura de uma rapariga patologicamente perturbada.
Quando Mikael começou a andar na direcção de Zinkensdamm, Bublanski chamou-o. Mikael voltou-se, viu o detective e encaminhou-se para ele. Encontraram-se ao fundo das escadas.
- Viva, Blomkvist. À procura da Lisbeth Salander?
- Por acaso, não. Vinha procurar a Miriam Wu.
- Não está em casa. Alguém disse à imprensa que ela tinha voltado.
- O que foi que ela disse?
Bublanski lançou-lhe um olhar atento. Mikael Blomkvist. Super Blomkvist.
- Caminhemos um pouco - disse. - Estou a precisar de um café. Passaram em silêncio pela igreja de Hõgalid. Foram até ao Café
Lillasyster, perto do cruzamento onde a Liljeholmsbron atravessa o Norrstrõm. Bublanski pediu um duplo espresso com uma colher de leite frio e Mikael um caffè latte. Sentaram-se na secção de fumadores.
- Já há muito tempo que não tinha um caso tão frustrante - confessou Bublanski. - Até que ponto posso falar consigo sem vir tudo escarrapachado no Expressen, amanhã de manhã?
- Não trabalho para o Expressen.
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- Sabe muito bem o que quero dizer.
- Bublanski... não acredito que a Lisbeth seja culpada.
- E agora está a fazer a sua investigaçãozinha particular? É por isso que lhe chamam Super Blomkvist?
Mikael sorriu.
- Alguém me disse que a si lhe chamam Inspector Bolha. Bublanski fez um sorriso contrafeito.
- Porque é que acha que a Salander está inocente?
- Não sei nada sobre o tutor, mas ela não tinha a mais pequena razão para matar o Dag e a Mia. Especialmente a Mia. A Lisbeth detesta os homens que odeiam mulheres, e a Mia estava a preparar-se para apertar a tarraxa a um monte de clientes de prostitutas. Exactamente o que a Lisbeth faria, no lugar dela. É uma pessoa com princípios morais muito fortes.
- Não consigo formar uma imagem coerente dela. Uma psicopata atrasada mental ou uma hábil investigadora?
- É diferente, só isso. É definitivamente associal, mas não há nada de errado com a inteligência dela. Pelo contrário, é provavelmente mais esperta do que qualquer um de nós.
Bublanski suspirou. Blomkvist estava a dar-lhe a mesma música que Miriam Wu.
- Seja como for, temos de detê-la. Não posso entrar em pormenores, mas ela esteve no local do crime, e foi inequivocamente associada à arma do crime.
Mikael assentiu.
- Suponho que isso significa que encontraram as impressões digitais dela. O que não quer dizer que a tenha disparado.
Bublanski inclinou a cabeça.
- O Armanskij também não acredita. É demasiado cauteloso para dizê-lo abertamente, mas também ele procura provas da inocência dela.
- E você? O que é que acha?
- Sou polícia. Prendo pessoas e interrogo-as. Neste momento, as coisas estão muito feias para Frõken Salander. Já engaiolámos assassinos com base em provas circunstanciais mais fracas.
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- Não respondeu à minha pergunta.
- Não sei. Se ela estiver inocente... Quem acha que teria motivos para matar tanto o advogado como os seus amigos?
Mikael pegou no maço de cigarros e ofereceu-o a Bublanski, que abanou a cabeça. Não queria mentir à polícia. Devia dizer qualquer coisa sobre o homem chamado Zala. E também sobre o superintendente Gunnar Bjõrck, da Polícia de Segurança Nacional.
O facto era, porém, que Bublanski e os colegas tinham acesso ao computador de Svensson, que continha a pasta chamada [ZALA}. Bastava-lhes lê-la. Em vez disso, avançavam em frente como um bulldozer, ao mesmo tempo que forneciam à imprensa pormenores escabrosos sobre o passado de Lisbeth.
Tinha uma ideia, mas não sabia aonde ela o conduziria. Não queria falar de Bjõrck até ter a certeza. Zalachenko. Era essa a ligação entre Bjurman, por um lado, e Dag e Mia, pelo outro. O problema era que, até ao momento, Bjõrck não lhe dissera nada.
- Deixe-me procurar um pouco mais, e eu dou-lhe uma teoria alternativa.
- Nada de ligações à polícia, espero.
- Por enquanto, não. O que foi que a Miriam Wu lhes disse?
- Mais ou menos o mesmo que você. Tinham uma ligação.
- Não é da minha conta - disse Mikael.
- Ela e a Lisbeth Salander conhecem-se há três anos. Diz que não sabe nada do passado da Lisbeth e nem sequer sabia onde ela trabalhava. Custa a acreditar, mas eu penso que está a dizer a verdade.
- A Lisbeth é obsessivamente reservada. Tem o telefone da Miriam Wu?
- Tenho.
- Pode dar-mo?
- Não.
- Porquê?
- Mikael, isto é um assunto da polícia. Não precisamos de detectives privados com teorias malucas.
- Ainda não tenho teoria nenhuma. Além de estar convencido de que a resposta está algures no material do Svensson.
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- Pode entrar em contacto com a Wu, se fizer um esforço.
- Possivelmente. Mas é muito mais simples perguntar a alguém que já tenha o número.
Bublanski suspirou.
Mikael sentiu-se repentinamente muito irritado com ele.
- Os polícias são mais espertos do que as pessoas normais, aquelas a quem chamam detectives privados?
- Não, não foi isso que eu disse. Mas os polícias têm uma formação, e o trabalho deles é solucionar crimes.
- As pessoas vulgares também têm uma formação - disse Mikael, lentamente. - E, por vezes, um detective privado percebe melhor as coisas do que os verdadeiros polícias.
- Isso é o que julga.
- É o que eu sei. Veja o caso Rahman. Um monte de polícias passaram cinco anos sentados em cima dos traseiros, sem verem nada, enquanto Rahman estava preso, acusado de ter assassinado uma velhota. E inocente. E ainda hoje estaria preso se uma professora de liceu não tivesse dedicado vários anos a conduzir uma investigação séria. Não tinha nenhum dos recursos que vocês têm à vossa disposição. E não só provou que ele estava inocente, como até identificou a pessoa que muito provavelmente era o verdadeiro assassino.
- E verdade que fizemos má figura no caso Rahman. O procurador recusou ouvir os factos.
- Bublanski... vou dizer-lhe uma coisa. Neste preciso momento, vocês estão a fazer má figura no caso da Lisbeth Salander. Estou absolutamente convencido de que ela não matou o Dag e a Mia, e vou prová-lo. Vou arranjar-lhes outro assassino, e quando isso acontecer, vou também escrever um artigo que você e os seus colegas não vão gostar de ler.
No regresso a casa, Bublanski sentiu uma urgente necessidade de discutir aquele caso com Deus, mas em vez de dirigir-se à sinagoga, entrou na igreja católica da Folkungagatan. Sentou-se num dos bancos mais recuados e não se mexeu durante uma hora. Como judeu, não tinha nada que estar numa igreja católica, mas era um lugar
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tranquilo que visitava regularmente quando precisava de arrumar as ideias. Achava que as igrejas católicas eram também sítios bons para meditar, e tinha a certeza de que Deus não se importava. Além disso, havia uma importante diferença entre o judaísmo e o catolicismo. Os judeus iam à sinagoga procurar a companhia de outras pessoas. Os católicos iam à igreja procurar paz na presença de Deus. A igreja convidava ao silêncio e os visitantes eram sempre deixados em paz.
Pensou em Lisbeth Salander e Miriam Wu. E perguntou-se mesmo o que poderiam estar Berger e Blomkvist a esconder-lhe. Com toda a certeza, sabiam qualquer coisa sobre a Lisbeth Salander que não lhe tinham dito. Que tipo de pesquisa tinha ela feito para Blomkvist? Talvez o tivesse ajudado a desmascarar Wennerstrõm? Não, não podia ser. Nunca Lisbeth poderia ter contribuído com qualquer coisa de importante num caso daqueles, por muito boa que fosse a investigar pessoas.
Estava preocupado. Não gostava daquela certeza absoluta de Blomkvist relativamente à inocência de Lisbeth Salander. Uma coisa era ele, como detective, ser atormentado por dúvidas: a dúvida fazia parte do seu trabalho. Outra, e muito diferente, era Blomkvist fazer-lhe um ultimato como investigador privado.
Não gostava de investigadores privados, porque eles muitas vezes lançavam as sementes de teorias da conspiração que podiam produzir grandes títulos nos jornais, mas também criavam à polícia uma porção de trabalho extra.
Aquela história acabara por tornar-se a mais exasperante investigação em que alguma vez se vira envolvido. Sentia que tinha perdido o foco. Tinha de haver ali uma cadeia de consequências lógicas.
Se um jovem aparecia morto à facada em Mariatorget, era uma questão de descobrir que bando de skinheads ou qualquer outro grupo de malandros andara a fazer na estação de Sõder uma hora antes. Havia amigos, havia conhecidos, havia testemunhas, e, em muito pouco tempo, havia suspeitos.
Se um tipo era morto com três tiros num bar de Skãrholmen e se descobria que era um peso pesado da máfia jugoslava, era uma questão
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de descobrir que aspirante a "chefe" andava a tentar controlar o negócio do contrabando de tabaco.
Se uma mulher de vinte e poucos anos com um passado decente e um estilo de vida normal aparecia estrangulada em casa, era uma questão de saber quem era o namorado, ou quem fora a última pessoa que estivera com ela num bar na noite anterior.
Dirigira tantas investigações daquelas que era capaz de fazê-lo a dormir.
A actual investigação começara muito bem. Passadas poucas horas, já tinham um suspeito. Lisbeth Salander era praticamente feita à medida para o papel: uma psicopata confirmada, que se sabia ter tido acessos de fúria incontrolável durante toda a sua vida. Era simplesmente uma questão de apanhá-la, arrancar-lhe uma confissão ou, dependendo das circunstâncias, colocá-la sob vigilância psiquiátrica. Mas depois deste começo tão promissor, fora tudo para o diabo. Lisbeth Salander não morava onde era suposto morar. Tinha amigos como Armanskij e Blomkvist. Tinha uma relação com uma lésbica que gostava de sexo com algemas, e isso punha os media em polvorosa naquilo que já era uma situação complicada. Tinha dois milhões e meio de coroas depositados num banco e nenhum emprego conhecido. Então, aquele sujeito, Mikael Blomkvist, aparecia com teorias sobre o tráfico de mulheres e conspirações... e, sendo uma celebridade jornalística, tinha peso suficiente para lançar o caos na investigação com um simples artigo.
Mas, acima de tudo, não conseguiam localizar a principal suspeita, não obstante o facto de ela ter um palmo de altura e tatuagens espalhadas por todo o corpo. Quase duas semanas volvidas desde os crimes, não faziam a mais pequena ideia de onde pudesse ter-se escondido.
Gunnar Bjõrck, superintendente da Sapo, na ocasião de baixa médica por causa de uma hérnia discal, tivera um dia de cão a partir do momento em que Mikael Blomkvist pisara a soleira da sua porta. Apesar da dor surda e contínua que se lhe instalara nas costas, andava
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de um lado para o outro na cozinha da casa emprestada, incapaz de relaxar ou de tomar uma iniciativa. Não compreendia nada daquela história. As peças do quebra-cabeças não encaixavam.
Quando soubera da morte de Bjurman, ficara estupefacto. Mas a notícia de que Lisbeth Salander fora quase de imediato identificada como a principal suspeita não o surpreendera. E então começara a perseguição. Tinha acompanhado todos os noticiários na TV, tinha comprado todos os jornais que conseguira encontrar e tinha lido tudo o que fora escrito sobre o caso.
Não duvidava nem por um instante de que Salander era mentalmente doente e capaz de matar. Não tinha motivos para questionar a culpabilidade dela nem as assunções da polícia - pelo contrário, tudo o que ele sabia sobre Lisbeth Salander confirmava que ela sofria de graves perturbações mentais. Estivera quase, quase a telefonar para oferecer a sua ajuda, ou pelo menos para certificar-se de que o caso estava a ser devidamente investigado, mas então apercebera-se de que, na realidade, já nada daquilo lhe dizia respeito. Já não tinha nada com aquilo, e havia pessoas competentes para lidar com o assunto. Além disso, um telefonema poderia atrair o tipo de atenção que queria evitar. Por isso se limitara a seguir os novos desenvolvimentos através das notícias, com um vago interesse.
A visita de Blomkvist virara a sua paz e sossego de pernas para o ar. Nunca lhe passara pela cabeça que a orgia assassina de Lisbeth Salander pudesse vir a envolvê-lo pessoalmente, que uma das suas vítimas fosse uma merda de um jornalista que se preparava para desmascará-lo perante o país inteiro.
E muito menos lhe ocorrera que o nome de Zala pudesse aparecer no meio de tudo aquilo como uma granada sem cavilha, e menos ainda imaginara que aquele nome pudesse ser do conhecimento de um jornalista como Mikael Blomkvist. Desafiava todas as probabilidades.
No dia seguinte à visita de Blomkvist, telefonou ao seu antigo chefe, agora um homem muito velho que vivia em Laholm. Ia ter de abordar a história sem deixar perceber que o seu telefonema tinha
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outras razões além de pura curiosidade e preocupação profissionais. Foi uma conversa relativamente curta.
- Fala Bjorck. Assumo que leu os jornais.
- Li. Ela voltou a aparecer.
- E parece não ter mudado muito.
- O problema já não é nosso.
- Não acha...
- Não, não acho. Tudo isso está morto e enterrado. Não há qualquer ligação.
- Mas o Bjurman... Presumo que não foi por acaso que o nomearam tutor dela.
Um silêncio, que se prolongou por vários segundos.
- Não, não foi por acaso. Pareceu uma boa ideia, há três anos. Quem podia prever uma coisa destas?
- O que é que o Bjurman sabia? Inesperadamente, o velho riu-se.
- Sabes bem como era o Bjurman. Não exactamente o mais dotado dos actores.
- Quero dizer... sabia da ligação? Poderá haver entre os papéis ou os objectos pessoais dele qualquer coisa que leve alguém até...
- Não, claro que não. Compreendo aonde estás a querer chegar, mas não te preocupes. A Salander sempre foi o factor incontrolável em toda esta história. Arranjámos maneira de o Bjurman ficar com o lugar, mas só para termos no papel de tutor alguém que pudéssemos vigiar. Antes isso que um desconhecido. Se ela se pusesse a tagarelar a respeito de qualquer coisa, ele avisava-nos. O que aconteceu acabou por ser o melhor para todos.
- Porque diz isso?
- Bem, depois disto, a Salander vai ficar fechada numa enfermaria psiquiátrica por muito, muito tempo.
- Faz sentido.
- Não te preocupes. Goza a tua baixa em paz e sossego.
Isso era, porém, exactamente o que Bjõrck não conseguia fazer. E o culpado era Blomkvist. Sentou-se à mesa da cozinha e ficou
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a olhar para Jungfrufjãrden enquanto tentava avaliar a sua própria situação. Estava a ser ameaçado de dois lados.
Blomkvist ia denunciá-lo como cliente de prostitutas. Havia um sério risco de aquilo significar o fim da sua carreira na polícia.
Mais grave do que isso, porém, era o facto de Blomkvist andar a tentar encontrar Zalachenko. Que também estava envolvido na história. E ia levar o maldito jornalista direitínho à sua porta.
O seu antigo chefe parecia convencido de que não havia nada no apartamento ou no gabinete de Bjurman que pudesse proporcionar novas pistas. Mas havia. O relatório de 1991- E fora dele, Bjõrck, que o advogado o recebera.
Tentou visualizar o encontro com Bjurman, nove meses antes. Fora em Gamla Stan. Bjurman telefonara-lhe para o serviço, certa tarde, a convidá-lo para uma cerveja. Tinham conversado sobre o clube de tiro, e disto e daquilo, mas Bjurman procurara-o por uma razão muito especial. Precisava de um favor. Perguntara por Zalachenko...
Pôs-se de pé e aproximou-se da janela da cozinha. Lembrava-se de que estava um pouco tonto. Na realidade, estava completamente bêbedo. O que fora que Bjurman lhe pedira?
"Por falar nisso... estou a tratar de uma coisa para um velho conhecido que apareceu de repente...
- Ah, sim? Quem?
- O Alexander Zalachenko. Lembras-te dele?
- Deves estar a brincar. Não é um homem fácil de esquecer. Que é feito dele?"
Em rigor, Bjurman não tinha nada com isso. Na realidade, havia até boas razões para investigar o advogado só por ter perguntado... não fora o facto de ele ser o tutor de Lisbeth Salander. Tinha-lhe dito que precisava do velho relatório. E eu dei-lho.
Fora um erro grave. Partira do princípio de que Bjurman já tinha sido informado... qualquer outra coisa teria parecido impensável. E Bjurman apresentara a coisa como se estivesse apenas a tentar atalhar através da burocracia que classificava tudo como "confidencial" e "secreto", e fazia qualquer porcaria arrastar-se durante meses. Em especial tudo o que tivesse a ver com Zalachenko.
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Dei-lhe o relatório. Ainda tinha o carimbo de "confidencial", mas era por uma boa razão, e o Bjurman não era homem para se pôr a falar. Não era brilhante, mas nunca foi um tagarela. Que mal podia fazer? Já tinha passado tanto tempo.
Bjurman enganara-o. Dera a impressão de que se tratava de uma simples questão de formalidades e burocracia. Quanto mais pensava nisso, mais se convencia de que Bjurman tinha escolhido cuidadosamente as suas palavras. Muito cuidadosamente.
Mas que porra queria o gajo, afinal? E porque o teria Salander liquidado?
Mikael Blomkvist voltou ao apartamento na Lundagatan mais quatro vezes, no sábado, na esperança de encontrar Miriam Wu, mas ela não estava em casa.
Passou uma boa parte do dia no Kaffebar, na Hornsgatan, com o seu iBook, a reler os e-mails que Svensson recebera no endereço da Millennium e o conteúdo da pasta [ZALA]. Nas semanas que tinham antecedido a sua morte, Dag passara cada vez mais tempo a investigar o tal Zala.
Mikael desejou poder telefonar-lhe e perguntar por que razão incluíra o documento sobre Irina P. naquela pasta. A única conclusão razoável era que Svensson suspeitava que fora Zala que a matara.
Às cinco da tarde, Bublanski telefonou-lhe e deu-lhe o número do telemóvel de Miriam Wu. Não sabia o que fora que levara o inspector a mudar de ideias, mas agora que tinha o número, tentou ligar de meia em meia hora. Ela só atendeu já passava das onze da noite. A conversa foi muito curta.
- Miriam? Fala Mikael Blomkvist.
- E quem diabo é você?
- Sou jornalista e trabalho para uma revista chamada Millennium. Miriam Wu expressou os seus sentimentos de uma maneira clara e concisa:
- Ah, sim. Esse Blomkvist. Vai para o inferno, sacana de jornalista.
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Desligou antes que ele tivesse oportunidade de explicar o que queria. Mikael dirigiu alguns pensamentos a Tony Scala e voltou a tentar. Ela não atendeu. Acabou por enviar uma mensagem de texto.
"Por favor, ligue-me. É importante."
Ela não ligou.
Já de madrugada, Mikael desligou o computador e arrastou-se até à cama. Desejou ter Erika como companhia.
4.ª PARTE
A EXTERMINADORA IMPLACÁVEL
24 de Março a 8 de Abril
A RAIZ DE UMA EQUAÇÃO É O NÚMERO QUE, SUBSTITUINDO AS INCÓGNITAS,
CONVERTE ESSA EQUAÇÃO NUMA IDENTIDADE. DIZ-SE QUE A RAIZ SATISFAZ A
EQUAÇÃO. RESOLVER UMA EQUAÇÃO IMPLICA ENCONTRAR TODAS AS SUAS RAÍZES.
DE UMA EQUAÇÃO QUE É SEMPRE SATISFEITA, SEJAM QUAIS FOREM OS VALORES
ATRIBUÍDOS ÀS RESPECTIVAS INCÓGNITAS. DIZ-SE QUE É UMA IDENTIDADE.
(A + B)2 = A2 + 2AB + B2
CAPÍTULO 21
QUINTA-FEIRA SANTA, 24 DE MARÇO - SEGUNDA-FEIRA, 4 DE ABRIL
LISBETH SALANDER passou a primeira semana da perseguição policial longe do drama, em paz e sossego no seu apartamento na Fiskargatan. Com o telemóvel desligado e o cartão SIM tirado. Não tencionava voltar a utilizar aquele aparelho. Acompanhava, cada vez mais espantada, as histórias das edições online dos jornais e dos noticiários da TV.
A fotografia de passaporte que começou por aparecer na Net e depois num canto do televisor em todas as notícias a seu respeito irritou-a profundamente. Estava com cara de parva.
Depois de tantos anos a procurar afincadamente o anonimato, transformara-se, do dia para a noite, numa das pessoas mais mediáticas e badaladas de todo o país. Começava a aperceber-se de que um mandado de captura a nível nacional visando uma rapariga baixa suspeita de três assassínios era um dos acontecimentos mais sensacionais do ano. Por isso seguia com crescente estupefacção os comentários e as especulações a que os media davam eco, fascinada pelo facto de documentos confidenciais referentes à sua história clínica parecerem estar acessíveis a qualquer jornalista que quisesse lê-los e publicá-los. Um título, em particular, despertou recordações adormecidas:
"DETIDA POR AGRESSÃO FÍSICA EM GAMLA STAN"
Um jornalista judicial da agência noticiosa TT destacara-se da concorrência ao desencantar um relatório escrito quando ela fora presa por ter pontapeado um homem na estação de metro de Gamla Stan.
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Recordava bem o incidente. Estivera em Odenplan, e regressava à casa da família de acolhimento com que estava provisoriamente a viver. Em Râdmansgatan, um indivíduo aparentemente sóbrio entrara no comboio e fixara de imediato a sua atenção nela. Soubera, mais tarde, que se chamava Karl Evert Norgren, tinha 52 anos e era um antigo jogador de hóquei no gelo residente em Gâvle. Apesar de a carruagem estar meio vazia, o tipo sentara-se a seu lado e começara a importuná-la. Pousara uma mão no joelho dela e tentara iniciar uma conversa do género "Dou-te duzentas coroas se fores para minha casa comigo". Quando ela o ignorara, ele tornara-se agressivo e chamara-lhe cabra estúpida. O facto de ela ter recusado responder e mudado de lugar na T-Centralen não bastara para o acalmar.
Quando estavam quase a chegar a Gamla Stan, ele abraçara-a pelas costas e enfiara-lhe as mãos por baixo da camisola, murmurando-lhe ao ouvido que era uma puta. Lisbeth Salander não gostava que tipos que não conhecia lhe chamassem puta no metro. Respondera com uma cotovelada nos olhos, e então agarrara-se a um dos postes da carruagem, levantara as pernas e acertara-lhe com os dois calcanhares em cheio na cana do nariz. O que provocara um abundante derramamento de sangue.
A vestimenta punk e os cabelos pintados de azul tinham-lhe roubado qualquer possibilidade de desaparecer no meio da multidão quando o comboio se detivera na gare. Um amigo da lei e da ordem atirara-a ao chão e imobilizara-a até à chegada da polícia.
Amaldiçoara o facto de ser mulher e fraca. Se fosse um homem, ninguém teria ousado atacá-la.
Nunca tentara explicar por que tinha pontapeado Karl Evert Norgren na cara. Não acreditava que valesse a pena explicar fosse o que fosse à autoridade. Recusara, por uma questão de princípio, responder às perguntas dos psicólogos que tinham tentado determinar o seu estado mental. Quisera a sorte que vários outros passageiros tivessem testemunhado o que se passara, entre eles uma persistente mulher de Hárnõsand que, por acaso, era deputada pelo Partido do Centro. A mulher declarara que Norgren tinha molestado Lisbeth e que esta se limitara a reagir. Quando, mais tarde, se descobrira que
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Norgren já tinha duas condenações por ofensas sexuais, o Ministério Público decidira desistir da acusação. Mas isso não significara que o relatório da Assistência Social a respeito dela fosse posto de lado. Pouco depois, o tribunal distrital declarara-a legalmente interdita e confiara-a à guarda de Holger Palmgren, primeiro, e depois de Nils Bjurman.
Agora, todos aqueles pormenores íntimos e confidenciais estavam na Net para consumo público. A sua história pessoal era complementada com descrições coloridas de como sempre entrara em conflito com os que a rodeavam desde a escola primária, e de como passara os primeiros anos da adolescência numa clínica psiquiátrica.
Os diagnósticos sobre Lisbeth Salander na imprensa variavam consoante as edições e os jornais. Umas vezes era descrita como psicótica, outras como esquizofrénica ou paranóica. Todos subscreviam a ideia de que era deficiente mental - ao fim e ao cabo, não conseguira acabar o secundário e abandonara a escola sem fazer os exames. O público não devia ter a mínima dúvida de que era desequilibrada e propensa à violência.
Quando se soube que era amiga de Miriam Wu, uma lésbica assumida, foi um frenesi em certos jornais. Wu aparecera no show de Benita Costa no Gay Pride Festival, uma exibição provocadora em que fora fotografada de seios nus, calções de couro com suspensórios e botas altas de grandes saltos pontiagudos. Escrevera, para um jornal gay, artigos que eram largamente citados, tal como as entrevistas que dera relacionadas com a sua participação em diversos espectáculos. A combinação lésbica-suspeita-de-ser-uma-assassina-em-série e sexo sadomasoquista era, aparentemente, imbatível como meio de fazer subir as tiragens.
Como Wu não foi encontrada naquela primeira e dramática semana, especulou-se que talvez tivesse sido igualmente vítima da fúria assassina de Lisbeth Salander, ou, em alternativa, que tivesse sido sua cúmplice. Estas especulações, no entanto, restringiam-se, de um modo geral, a um muito pouco sofisticado chat room da Internet chamado
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"Exílio". Em contrapartida, vários jornais avançaram com a teoria de que, uma vez que a tese de Mia Johansson versava o negócio do sexo, podia ter sido esse o motivo que levara Lisbeth Salander a cometer os crimes. A teoria baseava-se no facto de - segundo os relatórios da Assistência Social - ela se dedicar à prostituição.
No final da semana, os media descobriram que a suspeita tinha também ligações a um grupo de jovens com conotações satânicas. O grupo adoptara o nome de Evil Fingers, o que levou um colunista cultural já de certa idade a escrever sobre o desenraizamento da juventude e dos perigos que corriam, desde cultura skinbead ao hip-bop.
Quando se juntavam todas as alegações relativas a Lisbeth Salander feitas nos vários meios de comunicação, ficava-se a saber que a polícia procurava uma lésbica psicopata que aderira a um culto satânico sadomasoquista que odiava a sociedade em geral e os homens em particular. E, como Salander estivera no estrangeiro durante um ano, podia haver também ligações internacionais.
Só num caso Lisbeth reagiu com alguma emoção ao que era dito no meio da balbúrdia mediática:
"TÍNHAMOS MEDO DELA" Ameaçou matar-nos, afirmam professora e colegas
Quem fazia esta afirmação era uma antiga professora, agora estilista, chamada Birgitta Miââs. Lisbeth recordava-a como uma péssima professora substituta de matemática que, certa vez, insistira em obrigá-la a responder a uma pergunta a que ela já respondera correctamente, apesar de as soluções do manual afirmarem que estava errada. Na realidade, era o manual que estava errado, o que, na opinião de Lisbeth, deveria ser óbvio para qualquer pessoa. Mas Miââs tornara-se cada vez mais obstinada, e Lisbeth cada vez menos disposta a continuar a discutir o assunto. No fim, remetera-se a um silêncio sombrio, e Miââs, num acesso de pura frustração, agarrara-a por um ombro e sacudira-a. Lisbeth respondera atirando-lhe o livro à cabeça,
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e fora o caos. Cuspira e esbracejara enquanto os colegas tentavam agarrá-la. Tinha, na altura, onze anos.
A história apareceu publicada num jornal da tarde, acompanhada por uma caixa com citações e a fotografia de um ex-colega a posar diante da porta da velha escola. O ex-colega era David Gustavsson, que se dizia agora assistente financeiro. Afirmava que todos os alunos tinham medo de Lisbeth Salander porque "uma vez ela ameaçou matar alguém". Gustavsson fora o maior rufião da escola, um bruto com o QI de um boi que raramente deixava escapar a oportunidade de distribuir insultos e pancada nos corredores e no recreio. Certa vez, atacara-a atrás do ginásio, durante o intervalo do almoço, e, como sempre, ela ripostara. De um ponto de vista puramente físico, Lisbeth não tinha a mais pequena hipótese, mas a sua atitude sempre fora preferir a morte à capitulação. O incidente degenerara quando um grande grupo de colegas se juntara para ver Gustavsson atirá-la ao chão uma e outra vez. Fora divertido, até um certo ponto, mas a estúpida rapariga parecia não ser capaz de perceber o que era melhor para ela, e desistir. Nem sequer chorava ou pedia misericórdia.
Passado algum tempo, começara a ser demasiado até para os colegas dela. Gustavsson era tão claramente mais forte e Lisbeth tão obviamente indefesa que ele começara a fazer má figura. Tinha dado início a uma contenda que não conseguia acabar. Por fim, atingira-a com dois murros que a tinham deixado sem respiração e com um lábio rachado. Os colegas tinham-se afastado a rir, deixando-a caída atrás do ginásio.
Lisbeth fora para casa lamber as suas feridas. Dois dias mais tarde, voltara à escola com um taco de baseball, encontrara Gustavsson em pleno recreio e batera-lhe com ele numa orelha. Enquanto ele estava no chão, em choque e a ganir de dores, inclinara-se, apoiara-lhe a ponta do taco na garganta e murmurara-lhe ao ouvido que, se voltasse a tocar-lhe, o matava. Quando os professores tiveram conhecimento do que acontecera, Gustavsson fora levado para a enfermaria e Lisbeth despachada para o gabinete do reitor para ouvir a sentença: suspensão, anotação do incidente no seu processo e mais relatórios da Assistência Social.
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Havia mais de 15 anos que Lisbeth não pensava em Miââs ou em Gustavsson. Havia de descobrir o que andavam os dois a fazer, quando tivesse um pouco de tempo disponível.
A súmula de toda esta atenção foi Lisbeth Salander ter-se tornado, ao mesmo tempo, famosa e infame aos olhos de toda a população sueca. O seu passado foi cartografado, escalpelizado e publicado até ao mais ínfimo pormenor, desde as explosões de fúria da escola primária até ao internamento na clínica pedopsiquiátrica de Sankt Stefan, nos arredores de Uppsala, onde passara mais de dois anos.
Arrebitou as orelhas quando o director clínico, o Dr. Peter Teleborian, foi entrevistado na TV. A última vez que o vira fora há oito anos atrás, aquando da sentença do tribunal distrital que a declarara interdita. Naquele momento, tinha uma profunda ruga de preocupação a cavar-lhe a testa, e coçava a barbicha com um ar pensativo, quando se voltou para o entrevistador e explicou que a obrigação de confidencialidade o impedia de discutir um paciente em particular. Podia, no entanto, dizer que Lisbeth Salander era um caso extremamente complexo que exigia uma atenção especial e que o tribunal distrital, contrariando a sua recomendação, decidira colocá-la sob tutela e reinseri-la na sociedade em vez de proporcionar-lhe os cuidados institucionais de que necessitava. Era escandaloso, afirmou Teleborian. Lamentou o facto de três pessoas terem perdido a vida em consequência desta decisão e aproveitou para lançar algumas farpas contra os cortes orçamentais nos cuidados psiquiátricos que o governo impusera nas últimas décadas.
Lisbeth notou que nenhum jornal referia o facto de o tratamento mais comum nas enfermarias fechadas da clínica pedopsiquiátrica, pela quais o Dr. Teleborian fora responsável, consistir em encerrar "os pacientes rebeldes e agitados" numa divisão "livre de estímulos". A cela continha apenas uma cama com correias de couro. A explicação científica era que as crianças agitadas não deviam receber quaisquer estímulos susceptíveis de provocar uma crise.
Mais tarde, descobrira que havia outro nome para a mesma coisa. Privação sensorial. Nos termos da Convenção de Genebra, sujeitar
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prisioneiros a privação sensorial era considerado desumano. O processo fazia normalmente parte da panóplia de meios usados por governos ditatoriais em experiências de lavagem ao cérebro, e havia provas de que os presos políticos que tinham confessado todo o género de crimes durante os Processos de Moscovo, nos anos 30, tinham sido submetidos a esse tratamento.
Enquanto olhava para a cara de Teleborian no televisor, Lisbeth sentiu que o seu coração se transformava num pequeno bloco de gelo. Ainda usaria aquela horrorosa loção de barba? Fora ele o responsável pelo "tratamento" dela. Aparentemente, era suposto ser tratada de modo a passar a ter a noção das suas acções. Depressa chegara à conclusão de que os "pacientes rebeldes e agitados" eram todos os que questionavam o raciocínio e a competência do Dr. Teleborian.
A seu tempo, descobrira que os métodos de tratamento psiquiátrico mais comuns no século XVI estavam a ser utilizados em Sankt Stefan, no limiar do século XXI.
Passara cerca de metade do tempo que lá estivera internada amarrada a uma cama numa divisão "livre de estímulos".
Teleborian nunca a assediara sexualmente. Aliás, nunca lhe tocara, a não ser nas situações mais inocentes. Certa vez, pousara-lhe uma mão num ombro, num gesto de aviso, quando ela estava deitada e amarrada na cela de isolamento. Lisbeth perguntou a si mesma se as marcas dos seus dentes ainda seriam visíveis no dedo mindinho dele. Toda aquela história acabara por transformar-se num jogo vicioso, em que Teleborian detinha todos os trunfos. A defesa dela fora fechar-se e ignorá-lo completamente sempre que ele entrava na cela.
Tinha 12 anos quando duas agentes da polícia a tinham levado para Sankt Stefan. Fora poucas semanas depois de "Todo o Mal" ter acontecido. Lembrava-se perfeitamente dos mais pequenos pormenores. Ao princípio, pensara que, de um modo ou de outro, tudo se havia de compor. Tentara explicar a sua versão aos polícias, às assistentes sociais, ao pessoal do hospital, às enfermeiras, aos médicos, aos psicólogos, e até a um pastor, que quisera que rezassem juntos. Sentada no banco traseiro do carro da polícia, continuava sem saber, quando passaram pelo Centro Wenner-Gren, a caminho de Uppsala,
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para onde iam. Ninguém lhe dissera. Fora então que começara a sentir que nada se ia compor. Nunca.
Tentara explicar a Teleborian.
O resultado dos seus esforços fora encontrar-se, na noite em que fazia 13 anos, amarrada à cama.
Peter Teleborian era, de longe, o sádico mais detestável e odioso que Lisbeth conhecera em toda a sua vida. Deixava Bjurman a perder de vista. Bjurman fora incrivelmente brutal, mas com isso era ela capaz de lidar. Teleborian, em contrapartida, estava protegido por uma cortina de documentos, avaliações, honras académicas e conversa de chacha psiquiátrica. Nenhuma das suas acções seria alguma vez denunciada ou criticada.
Tinha a autorização do Estado para amarrar rapariguinhas desobedientes com correias de couro.
E cada vez que, deitada de costas e algemada à cama, os olhos de ambos se encontravam enquanto ele apertava as correias de couro, ela lia-lhe a excitação no rosto. Sabia. E ele sabia que ela sabia.
Na noite em que fizera 13 anos, decidira nunca mais voltar a trocar uma palavra com Teleborian ou qualquer outro psiquiatra ou psicanalista. Fora a prenda de anos que oferecera a si mesma. E cumprira a promessa. Sabia que aquilo enfurecia Teleborian e contribuía talvez mais do que qualquer outra coisa para ele a mandar amarrar à cama noite após noite. Mas era um preço que estava disposta a pagar.
Aprendera sozinha a autocontrolar-se. Nunca mais tivera explosões de fúria, e deixara de atirar coisas pelos ares nos dias em que era libertada da cela de isolamento.
Mas recusava falar com os médicos.
Em contrapartida, falava educadamente com as enfermeiras, o pessoal da cozinha e as empregadas da limpeza. O facto fora notado. Certo dia, uma enfermeira chamada Carolina, e em quem ela confiava até um certo ponto, perguntara-lhe por que procedia daquele modo. Lisbeth olhara-a fixamente.
"Porque é que não falas com os médicos?"
"Porque eles não ouvem o que eu digo."
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A resposta não fora impulsiva. Fora a sua maneira de comunicar com os médicos. Sabia que todos os comentários daquele género eram registados e provavam que o seu silêncio era uma decisão inteiramente racional.
Durante o último ano em Sankt Stefan, fora mandada menos vezes para a cela de isolamento. Quando acontecia, era sempre por, de uma ou outra maneira, ter irritado o Dr. Teleborian. O que não era difícil: parecia bastar ele olhar para ela para ficar irritado. O médico não desistia de tentar penetrar o obstinado silêncio dela e forçá-la a reconhecer a sua existência.
A dada altura, Teleborian receitara-lhe um tranquilizante que fazia com que ela tivesse dificuldade em respirar ou pensar, o que, por vezes, provocava ansiedade. Lisbeth recusara continuar a tomá-lo, o que resultara na decisão de lhe enfiarem à força os comprimidos na boca, três vezes por dia.
A resistência dela era tão grande que o pessoal tinha de agarrá-la, abrir-lhe a boca e obrigá-la a engolir. Da primeira vez, enfiara imediatamente os dedos na garganta e vomitara o almoço em cima do servente mais próximo. Depois disso, tinham passado a dar-lhe os comprimidos quando estava amarrada, de modo que ela aprendera a provocar o vómito sem enfiar os dedos na garganta. Esta teimosa resistência e o trabalho extra que representava para o pessoal tinham levado a uma suspensão da medicação.
Acabara de fazer 15 anos quando, sem qualquer explicação, a levaram de regresso a Estocolmo, para viver uma vez mais com uma família de acolhimento. A mudança fora um choque para ela. Na altura, Teleborian não era ainda director clínico de Sankt Stefan. Lisbeth tinha a certeza de que só por isso fora libertada. Se lhe coubesse a ele decidir, teria continuado amarrada à cama, na cela de isolamento.
Naquele momento, enquanto o via na televisão, perguntava a si mesma se teria fantasias a respeito de ela voltar a cair sob a sua alçada, ou se já seria demasiado velha para lhe despertar o interesse. A referência dele à decisão do tribunal distrital de não a institucionalizar provocara a indignação do entrevistador, que, por outro lado, parecia
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não fazer a mínima ideia do que perguntar. Não havia ninguém para contradizer Teleborian. Havia muito que o antigo director de Sankt Stefan tinha morrido. O juiz do tribunal distrital que julgara o caso de Lisbeth, e que tinha agora de aceitar, pelo menos em parte, o papel de mau da história, reformara-se e recusava fazer comentários para a imprensa.
Lisbeth encontrou um dos artigos mais surpreendentes na edição online de um jornal publicado no centro do país. Leu-o três vezes antes de desligar o computador e acender um cigarro. Ficou sentada no sofá Ikea, junto à janela, a olhar tristemente para a noite lá fora.
"ELA É BISSEXUAL", DIZ UMA AMIGA DE INFÂNCIA
A mulher de 26 anos procurada pela polícia por ser suspeita de três assassínios é descrita como uma excêntrica introvertida que teve grande dificuldade em adaptar-se à escola. A despeito dos muitos esforços para incluí-la no grupo, manteve-se sempre à parte.
"Tinha obviamente problemas com a sua identidade sexual", recorda Johanna, uma das suas poucas amigas íntimas na escola.
"Tornou-se claro, logo de início, que ela era diferente, que era bissexual. Estávamos todos muito preocupados com ela."
E o artigo continuava, descrevendo alguns episódios de que a tal Johanna se lembrava. Lisbeth franziu a testa. Não recordava nenhum daqueles episódios, nem de ter tido uma amiga íntima chamada Johanna. Na realidade, não se recordava de ter alguma vez conhecido alguém que pudesse ser descrita como amiga íntima ou que tivesse tentado puxá-la para qualquer grupo durante os anos em que frequentara a escola.
O artigo não especificava quando teriam acontecido os episódios descritos, mas deixara a escola com 12 anos. O que significava que a sua preocupada amiga de infância teria descoberto a sua bissexualidade quando ela tinha dez, talvez onze.
Entre a enxurrada de artigos ridículos publicados ao longo da semana, o que citava a tal Johanna foi o que mais a afectou.
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Era obviamente fabricado. Ou o jornalista encontrara uma mitómana, ou inventara ele próprio a história. Memorizou o nome do autor e juntou-o à lista de assuntos para investigação futura.
Nem sequer as peças mais positivas, as que criticavam o sistema com títulos como "A sociedade falha" ou "ela nunca teve a ajuda DE QUE PRECISAVA", conseguiam diluir o seu estatuto de inimigo público número um: uma assassina psicopata que, num acesso de loucura, executara três respeitáveis cidadãos.
Lisbeth leu estas interpretações da sua vida com um certo fascínio e reparou numa lacuna óbvia na informação publicada. Apesar de um acesso aparentemente ilimitado aos pormenores mais secretos da sua vida, os media tinham passado completamente por alto "Todo o Mal", que acontecera pouco antes de ela completar 13 anos. A informação publicada abarcava o período que ia do jardim de infância até aos seus 11 anos, e recomeçava no ponto em que, já com 15, a tinham libertado da clínica psiquiátrica.
Alguém ligado à investigação policial devia estar a alimentar os media, mas, por razões que desconhecia, decidira ocultar a parte que incluía "Todo o Mal". O facto surpreendeu-a. Se a polícia queria dar ênfase à sua propensão para um comportamento violento, aquele relatório seria, de longe, o mais prejudicial. Fora a razão de a terem mandado para Sankt Stefan.
No Domingo de Páscoa, Lisbeth começou a ter uma visão de conjunto da investigação policial, construindo, através dos dados que os media lhe forneciam, uma imagem dos respectivos participantes. O procurador Richard Ekstrõm dirigia o inquérito preliminar e era, regra geral, quem falava durante as conferências de imprensa. A investigação propriamente dita era encabeçada pelo inspector Jan Bublanski, um sujeito para o pesado, que usava um fato de mau corte e aparecia quase sempre ao lado de Ekstrõm enquanto este perorava aos media.
Logo nos primeiros dias tinha identificado Sonja Modig como sendo a única mulher da equipa de investigadores e a pessoa que encontrara Bjurman. Tomou nota dos nomes de Hans Faste e Curt
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Andersson, mas deixou escapar completamente o de Jerker Holmberg, que não aparecera referido em nenhum artigo. Criou, no computador, ficheiros para cada uma destas pessoas e começou a alimentá-los com dados.
Naturalmente, a informação sobre o modo como a investigação policial estava a progredir encontrava-se nos computadores que os detectives usavam e cujas bases de dados se encontravam no servidor situado na sede da Judiciária. Lisbeth sabia que seria extremamente difícil entrar na rede interna da polícia. Extremamente difícil, mas não impossível. Aliás, já numa ocasião o tinha feito.
Anos antes, no âmbito de um trabalho para Armanskij, analisara a rede interna da polícia para avaliar as hipóteses de aceder aos registos criminais. Na ocasião, fracassara miseravelmente em todas as tentativas de invasão a partir do exterior: a polícia usava firewalls demasiado sofisticadas e artilhadas com todo o género de armadilhas capazes de resultar numa atenção indesejada por parte das autoridades.
A rede interna da polícia fora excepcionalmente bem concebida, com cablagem própria e sem ligações ao exterior, nem sequer à Net. Por outras palavras, do que precisava era de um agente da Judiciária que estivesse a trabalhar no seu caso e tivesse autorização de acesso à rede interna, ou, como segunda melhor hipótese, de convencer a rede interna da instituição policial de que era uma pessoa autorizada. Neste último aspecto, felizmente, os peritos em segurança da polícia tinham deixado um buraco de todo o tamanho. As esquadras de todo o país estavam ligadas à rede central, e várias delas eram pequenos postos locais onde não ficava ninguém durante a noite e, em muitos casos, nem sequer tinham alarmes nem patrulhas de vigilância. A esquadra de Lângvik, nos arredores de Vãsterâs, fazia parte deste grupo. Ocupava cerca de 130 metros quadrados no mesmo edifício que alojava a biblioteca pública e a Delegação Regional da Segurança Social, e tinha, durante o dia, uma guarnição de três agentes.
Na altura, Lisbeth não conseguira entrar na rede para a pesquisa que tinha entre mãos, mas decidira que talvez valesse a pena dedicar algum tempo e esforço a conseguir o acesso, para futuros trabalhos. Ponderara as várias possibilidades e acabara por candidatar-se a um
emprego de Verão na biblioteca de Lângvik. Numa pausa nos seus trabalhos de limpeza, tinham-lhe bastado dez minutos na secção de arquivo para conseguir os planos pormenorizados de todo o edifício. Tinha chaves para todas as portas, excepto, naturalmente, as da esquadra. Descobrira, no entanto, que podia, sem grande dificuldade, entrar nas instalações policiais trepando pelo algeroz até à janela da casa de banho do primeiro andar que, naquela época do ano, era deixada aberta, por causa do calor. A esquadra era vigiada por uma empresa de segurança particular que fazia, no máximo, duas rondas por noite. Ridículo.
Demorara menos de cinco minutos a encontrar o usarname e a password escondidos debaixo do mata-borrão da secretária do chefe da esquadra, e uma noite a testar a estrutura da rede e o tipo de acessos que ele tinha e quais tinham sido considerados acima do escopo das autoridades locais. Como bónus, conseguira também os usernames e as passwords dos outros dois agentes. Um deles era Maria Ottosson, de 32 anos, e, abrindo o computador dela, Lisbeth ficara a saber que recentemente se tinha candidatado, e sido aceite, a um posto de detective na Divisão Central de Combate à Fraude, em Estocolmo. Ottosson fora uma espécie dejackpot: a inocente Maria deixara o seu portátil, um PC Dell, numa gaveta da secretária, que não fechara à chave! Maria Ottosson era, portanto, uma agente da polícia que usava o seu portátil pessoal no serviço. Brilhante. Lisbeth ligara a máquina e inserira o CD com o programa Asphyxia 1.0, a primeira versão do seu software-espião, que instalara em dois locais: como parte activa e integrante do Microsoft Internet Explorer e, por uma questão de segurança, na lista de endereços. Raciocinara que mesmo que Ottosson comprasse um novo computador, copiaria a lista de endereços, e o mais provável era que transferisse essa mesma lista de endereços para o computador da Divisão de Combate à Fraude, e em Estocolmo, quando lá se apresentasse ao serviço, semanas mais tarde.
Instalara igualmente o programa nos outros computadores da esquadra, garantindo a possibilidade de obter dados do exterior e, através do simples expediente de usurpar-lhes as identidades, aceder ao registo criminal e alterá-lo à sua vontade. Tinha, no entanto, de agir
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com a máxima cautela. O sistema de segurança da polícia dispunha de um alarme que era automaticamente accionado se algum agente local entrava na rede fora das horas de expediente, ou se o número de alterações ultrapassava um determinado limiar, ou se procurasse informação sobre casos em que a polícia local não estaria normalmente
envolvida.
Ao longo do ano seguinte, trabalhara com um outro hacker, conhecido como Peste, para controlar a rede interna da polícia. O processo revelara-se tão difícil que tinham acabado por desistir, mas não sem terem acumulado uma centena de identidades que podiam usar à
vontade.
Peste marcara pontos decisivos quando conseguira entrar no computador pessoal do chefe da Divisão de Segurança Informática da Polícia. Era um funcionário público, um economista sem conhecimentos profundos de informática mas com uma autêntica mina de ouro de informações no seu portátil. A partir daí, Lisbeth e Peste teriam podido, se não piratear a rede interna da polícia, pelo menos devastá-la introduzindo-lhe vírus dos mais diversos tipos... uma actividade em que nenhum dos dois estava minimamente interessado. Eram hackers, não sabotadores. Queriam acesso a redes operacionais, não destruí-las.
Verificou a sua lista de nomes e viu que nenhum dos indivíduos cujas identidades podia usurpar trabalhava na investigação dos três assassínios - seria esperar demasiado. Mas conseguiu entrar na rede sem grandes problemas e inteirar-se de pormenores sobre a perseguição que se estendia a todo o país. Ficou a saber que tinha sido vista e perseguida em Uppsala, Norrkõping, Gotemburgo, Malmõ, Hãssleholm e Kalmar, e que tinha sido posta a circular uma imagem classificada, trabalhada em computador, que dava uma ideia mais exacta de qual seria o seu aspecto actual.
Uma das poucas vantagens de Lisbeth Salander, no meio de toda aquela atenção mediática, era o facto de existirem tão poucas fotografias dela. Exceptuando a do passaporte, já com quatro anos e igual à da carta de condução, e uma da polícia tirada quando tinha 18 anos,
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havia apenas meia dúzia de outras em anuários escolares ou tiradas por uma professora durante uma visita à reserva natural de Nacka, quando tinha 12. Estas últimas mostravam a imagem desfocada de uma criança sentada um pouco à margem das outras.
A fotografia do passaporte mostrava-a de olhos fixos, a boca comprimida numa linha fina e a cabeça ligeiramente projectada para a frente. Adequava-se bem à imagem da assassina psicopata e atrasada mental, e os media tinham-na publicado aos milhões. O lado positivo era que estava agora tão diferente que poucas pessoas a reconheceriam a partir dela.
Leu com interesse as biografias das três vítimas de assassínio. Na terça-feira, os jornais começaram a marcar passo e, à falta de novas e dramáticas revelações sobre o paradeiro de Lisbeth Salander, o foco do interesse passara para as vítimas. Dag Svensson, Mia Johansson e Nils Bjurman eram retratados num longo artigo num dos jornais da tarde.
Nils Bjurman aparecia como um jurista respeitado e socialmente activo que pertencia à Greenpeace e tinha "um compromisso para com a juventude". Era dedicada uma coluna a Jan Hâkansson, amigo e colega de Bjurman e com escritório no mesmo edifício. Hâkansson confirmava a imagem de um Bjurman que se batia pelos direitos dos desfavorecidos. Uma funcionária pública da Agência de Tutoria descrevia-o como genuinamente preocupado com a sua pupila.
Lisbeth Salander esboçou o seu primeiro sorriso irónico do dia.
Mia Johansson, a vítima feminina do drama, era objecto de grande atenção. O artigo descrevia-a como uma jovem bela e muito inteligente, que tinha já um impressionante palmarés académico e uma carreira brilhante à sua frente. Amigos, colegas da universidade e um orientador de tese contribuíam com comentários elogiosos, e a pergunta que todos faziam era, "porquê?". Havia fotos de velas acesas e flores à porta do apartamento de Enskede.
Em comparação, muito pouco espaço era dedicado a Dag Svensson. O artigo retratava-o como um jornalista arguto e destemido, mas o foco principal estava na companheira.
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Lisbeth notou, com alguma surpresa, que só no Domingo de Páscoa alguém pareceu aperceber-se de que Svensson estava a trabalhar numa grande reportagem para a revista Millennium. E, mesmo assim, não havia nos artigos qualquer referência a que trabalho estava a fazer.
Não chegou a ler a declaração que Mikael Blomkvist enviara para o Aftonbladet. Só na terça-feira, quando o tema foi abordado no noticiário da noite na TV, percebeu que Mikael estava a fornecer informação deliberadamente enganadora. Afirmava que Svensson estivera a preparar uma reportagem sobre segurança e pirataria informática.
Franziu a testa. Sabia que aquilo era mentira, e questionou-se sobre o que estaria a Millennium a tramar. Então percebeu a mensagem, e esboçou o seu segundo sorriso irónico do dia. Estabeleceu contacto com o servidor na Holanda e fez um duplo-clique no ícone MikBlom-Iport. Encontrou a pasta [LISBETH SALANDER] e o documento <Para Sally> bem destacado no meio do desktop. Abriu-o e leu-o.
Ficou sentada durante muito tempo, a olhar para a carta de Mikael, dominada por sentimentos contraditórios. Até ao momento, tinha sido ela contra o resto da Suécia, o que, na sua simplicidade, era uma equação bastante elegante e lúcida. Agora, de repente, tinha um aliado, ou, pelo menos, um potencial aliado, que afirmava acreditar na sua inocência. E, claro, tinha de ser o único homem em todo o mundo que não queria voltar a ver, fosse em que circunstâncias fosse. Suspirou. Mikael estava a ser, como sempre, um ingénuo bem-in-tencionado. Desde os dez anos que ela não era inocente.
Não há inocentei. Há apenas diferentes graus de responsabilidade.
Bjurman tinha morrido porque decidira não jogar de acordo com as regras que ela estipulara. Tivera todas as oportunidades, mas mesmo assim contratara uma porra de um macho alfa para lhe fazer mal. Não era ela a responsável.
Não devia, em todo o caso, subestimar o envolvimento de Super Blomkvist. Podia vir a ser-lhe útil.
Era bom a resolver charadas, e era extremamente persistente. Descobrira-o em Hedestad. Quando fincava os dentes numa coisa, nunca mais a largava. Podia ser-lhe útil até que ela pudesse sair do
país. Coisa que, assumia, seria mais cedo ou mais tarde obrigada a fazer.
Infelizmente, Mikael Blomkvist não era controlável. Precisava de ter uma razão para agir. E precisava também de uma desculpa moral.
Por outras palavras, era totalmente previsível. Lisbeth pensou um pouco, e então criou um documento a que chamou < Para Mik-Blom> e escreveu uma única palavra:
"Zala"
Aquilo ia dar-lhe qualquer coisa em que pensar.
Ainda estava sentada, a pensar, quando reparou que Mikael tinha ligado o computador. A resposta chegou instantes depois de ele ler a mensagem:
Lisbeth,
És o raio de uma chata. Quem diabo é Zala? É ele a ligação? Sabes quem matou o Dag e a Mia? Se sabes, diz-me, para eu poder resolver esta trapalhada e ir dormir. Mikael.
Muito bem. Chegara o momento de fisgar o peixe. Criou um segundo documento e chamou-lhe < Super Blomkvist>. Sabia que aquela ia chateá-lo. Escreveu:
Tu é que és o jornalista. Descobre.
Como já esperava, Mikael respondeu de imediato com um apelo à razão e uma tentativa de puxar-lhe ao sentimento. Sorriu e cortou a ligação com o disco rígido dele.
Já que estava a espiolhar, abriu o disco rígido de Dragan Ar-manskij. Leu o relatório a respeito dela que ele tinha escrito no dia a seguir à Páscoa. Não era claro a quem fora dirigido, mas assumiu que
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a única explicação razoável era Armanskij estar a trabalhar com a polícia para ajudar a capturá-la.
Dedicou algum tempo a passar em revista o e-mail de Armanskij, mas não encontrou nada de interesse. Já se preparava para desligar quando tropeçou numa mensagem dirigida ao chefe dos serviços técnicos da Milton, com instruções para a instalação de uma câmara de vigilância no gabinete.
Bingo!
Olhou para a data, e viu que tinha sido enviada cerca de uma hora depois da visita de cortesia que fizera a Armanskij, no início de Fevereiro.
O que significava que ia ter de ajustar certas rotinas no sistema de vigilância automática até voltar a visitar o gabinete do seu antigo patrão.
CAPÍTULO 22
TERÇA-FEIRA, 29 DE MARÇO - DOMINGO, 3 DE ABRIL
Na MANHÃ de TERÇA-feira, Lisbeth Salander acedeu ao registo criminal da polícia e procurou o nome de Alexander Zalachenko. Não o encontrou, o que não a surpreendeu, uma vez que ele nunca fora condenado por qualquer crime na Suécia e não figurava sequer na base de dados do Registo Civil.
Para aceder ao registo criminal, usara a identidade do superintendente Douglas Skiõld, da polícia de Malmõ. Teve um ligeiro sobressalto quando, de repente, o computador emitiu um bip e um ícone da barra de menus começou a piscar, indicando que alguém andava à procura dela no ICQ.
O seu primeiro impulso foi desligar. Mas então pensou melhor. Skiõld não tinha o ICQ na sua máquina. Era um programa que muito poucas pessoas já de uma certa idade usavam.
O que significava que alguém tentava contactá-la a ela. E o leque de interlocutores possíveis era muito pequeno. Abriu o ICQ e teclou:
<O que é que queres, Peste?>
<Vespa. Não é fácil encontrar-te. Será que nunca consultas o teu e-mail?>
<Como foi que me encontraste?>
<Skiòld. Tenho a mesma lista. Assumi que havias de usar a identidade com o mais alto grau de autorização.>
<O que é que queres?>
<Quem é esse Zalachenko de que andas à procura?>
<M.N.T.V.>
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<Mete-te na tua vida.>
<Que se passa?>
<Vai-te lixar, Peste.>
<E eu a pensar que tinha uma deficiência social, como tu lhe chamas. A dar crédito aos jornais, sou perfeitamente normal, em comparação contigo.>
<Para ti também.>
<Precisas de ajuda?>
Lisbeth hesitou. Primeiro Mikael, e agora Peste. Quantas mais pessoas estariam dispostas a acorrer em seu auxílio? O problema com Peste era ser um recluso que pesava 150 quilos, comunicava quase que exclusivamente pela Internet e fazia-a a ela parecer um modelo de graças sociais. Ao ver que não obtinha resposta, Peste teclou outra linha:
<Ainda aí estás? Precisas de ajuda para sair do país?>
<Não.>
<Porque foi que limpaste o sebo àqueles tipos?>
<Vai-te foder.>
<Tencionas matar mais gente e, se sim, devo preocupar-me? Sou provavelmente o único, capaz de encontrar-te.>
<Mete-te na tua vida e não tens por que te preocupar.>
<Não estou preocupado. Procura-me no hotmail, se precisares de alguma coisa. Arma? Novo passaporte?>
<És um sociopata.>
<Comparado contigo, queres tu dizer?>
Lisbeth saiu do ICQ e sentou-se no sofá, para pensar. Dez minutos mais tarde, enviou um e-mail para o endereço hotmail de Peste:
Procurador Richard Ekstrõm, lidera inquérito preliminar, vive em Tàby. Casado, com dois filhos e ligação de banda larga em casa. Preciso de acesso a portátil ou PC. Preciso lê-lo em tempo real. Opa hostil com disco rígido duplicado.
Sabia que Peste só muito excepcionalmente saía do seu apartamento em Sundyberg, de modo que esperava que tivesse um qualquer
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puto borbulhento para lhe fazer o trabalho de campo. Não havia necessidade de assinar a mensagem. Recebeu a resposta passados 15 minutos, no ICQ.
<Quanto é que pagas?>
<10 000 para a tua conta + despesas e 5000 para o teu assistente. > <Volto a falar.>
Na quinta-feira de manhã recebeu um e-mail de Peste, com um endereço ftp. Ficou estupefacta. Não contara com resultados antes de pelo menos 15 dias. Fazer uma Opa hostil, mesmo com o excepcional programa de Peste e o seu hardware especialmente concebido, era um processo laborioso que exigia introduzir pedaços de informação num computador kilobyte a kilobyte até criar um programa muito simples. O tempo que podia demorar dependia da frequência com que Ekstrõm usasse o seu computador, e, em condições normais, seriam precisos mais alguns dias para transferir toda a informação para um disco rígido espelho. Quarenta e oito horas não era apenas excepcional, era teoricamente impossível. Lisbeth estava impressionada. Contactou-o pelo ICQ.
<Como conseguiste?>
<Quatro computadores na casa. Imaginas, nenhum deles com firewall? Segurança zero. Tudo o que tive de fazer foi ligar-me ao cabo e descarregar. As minhas despesas são 6000 coroas. É muito para ti?>
<Não. Mais um bónus pela rapidez do serviço.>
Pensou um instante, e então transferiu 30 mil coroas para a conta de Peste, através da Internet. Não queria assustá-lo com quantias excessivas. Feito isto, instalou-se confortavelmente na sua cadeira Verksam e entrou no portátil de Ekstrõm.
Uma hora mais tarde, tinha lido todos os relatórios que o inspector Bublanski enviara ao procurador. Calculou que, tecnicamente,
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aqueles relatórios nunca deveriam ter saído das instalações da Judiciária. O que só provava, uma vez mais, que não há sistema de segurança capaz de resistir a um empregado estúpido. Através do computador de Ekstrõm, obteve várias informações importantes.
Em primeiro lugar, ficou a saber que Armanskij destacara dois membros do seu pessoal para se juntarem à equipa de Bublanski. A colaboração era gratuita, o que, na prática, significava que a Milton Security estava a financiar a perseguição que a polícia lhe movia. A missão dos dois homens era ajudar a capturar Lisbeth Salander por todos os meios possíveis. Obrigadinha, Armanskij. Hei-de lembrar-me desta. Franziu a testa ao ler os nomes dos funcionários em questão. Bohman sempre lhe parecera um tipo honesto, e sempre se comportara para com ela de uma maneira perfeitamente decente. Hedstrõm era pura e simplesmente um zé-ninguém corrupto que usara a sua posição na Milton Security para ludibriar uma cliente da empresa.
A ética de Lisbeth Salander era do tipo selectivo. Não tinha nada contra ludibriar os clientes da empresa - desde que o merecessem -, mas a partir do momento em que aceitasse um trabalho com uma cláusula de confidencialidade, nada a levaria a violá-la.
Não demorou muito a descobrir que o responsável pelas fugas para a imprensa era o próprio Ekstrõm, como ressaltava com clara evidência de um e-mail em que o procurador respondia a perguntas sobre o historial psiquiátrico dela e a sua ligação a Miriam Wu.
A terceira informação significativa foi a admissão por parte da equipa de Bublanski de que não faziam a mínima ideia de onde procurá-la. Leu com interesse um relatório sobre que medidas tinham sido tomadas e que endereços tinham sido postos sob vigilância esporádica. A lista era curta. Lundagatan, claro, mas também a morada de Mikael Blomkvist, a antiga morada de Miriam em Sankt Eriksplan, e o Kvarnen, onde tinham sido vistas juntas. Porque tive de envolver a Mimi nisto? Foi um enorme erro.
Na quinta-feira, os investigadores de Ekstrõm tinham igualmente descoberto a ligação às Evil Fingers. Calculou que aquilo significava novos endereços debaixo de mira. Franziu a testa. Também
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as raparigas do grupo iam desaparecer do seu círculo de amigos, apesar de não ter entrado em contacto com nenhuma delas desde que regressara à Suécia.
Quanto mais pensava naquilo, mais confusa ficava. Ekstrõm estava a passar para os media todo o género de trampa. O objectivo era claro: a publicidade convinha-lhe, e estava a preparar o terreno para o dia em que a acusaria formalmente dos crimes.
Mas se assim era, porque não revelara o relatório policial de 1991, que levara ao internamento dela em Sankt Stefan? Porque mantinha a história secreta?
Voltou ao computador de Ekstrõm e reviu os documentos. Quando acabou, acendeu um cigarro. Não encontrara uma única referência aos acontecimentos de 1991. Por estranho que parecesse, só havia uma explicação: Ekstrõm ignorava a existência do relatório em questão.
Por alguns instantes, hesitou sobre o que fazer. Então, olhou para o PowerBook. Aquilo era precisamente o tipo de coisa em que Super Filho da Mãe Blomkvist podia cravar os dentes. Acedeu ao disco rígido dele e criou o documento <MB-2>:
Procurador E. está a passar informação para a imprensa. Pergunta-lhe por que não passou o antigo relatório da polícia.
Devia ser o suficiente para o pôr a funcionar. Sentou-se e esperou pacientemente duas horas que Mikael entrasse online para ler o e-mail. Um quarto de hora depois, ele reparou no documento dela e, passados cinco minutos, respondeu com um seu, <Críptico>. Não tinha mordido o isco. Em vez disso, insistia em querer saber quem assassinara os amigos.
Era um argumento que Lisbeth conseguia compreender. Suavizou um pouco o tom e respondeu com <Críptico-2>:
Que farias se tivesse sido eu?
A intenção era ser uma pergunta pessoal. A resposta chegou com <Críptico-3>. E abalou-a.
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Lisbeth, se é verdade, como dizem, que te passaste dos carretos, talvez possas pedir ao Dr. Teleborian que te ajude. Mas eu não acredito que tenhas assassinado o Dag e a Mia. Espero não estar enganado.
O Dag e a Mia iam publicar uma denúncia sobre o negócio do sexo. Suponho que terá sido essa a razão por que os mataram. Mas não tenho nada a que me agarrar.
Não sei o que correu mal entre nós, mas tu e eu conversámos, em tempos, a respeito da amizade. Eu disse-te que a amizade se constrói com base em duas coisas: respeito e confiança. Mesmo que já não gostes de mim, podes continuar a contar comigo e a confiar em mim. Nunca revelei os teus segredos fosse a quem fosse. Nem sequer o que aconteceu aos milhões do Wennerstrõm. Confia em mim. Não sou teu inimigo. M.
A referência a Teleborian começou por enfurecê-la, mas então percebeu que ele não estava a querer provocá-la. Não fazia a mínima ideia de quem era Teleborian e o mais provável era só o ter visto na TV, onde aparecia como um perito responsável e internacionalmente respeitado.
Mas o que verdadeiramente a abalou foi a referência aos milhões de Wennerstrõm. Como teria ele obtido aquela informação? Tinha a certeza absoluta de não ter cometido erros e de que ninguém no mundo podia saber o que fizera.
Releu a carta várias vezes.
A referência à amizade provocou-lhe uma sensação de mal-estar. Não sabia como responder àquilo.
Um pouco mais tarde, criou o documento <Críptico-4>.
Vou pensar nisso.
Desligou o computador e foi sentar-se no cadeirão junto à janela.
Havia já vários dias que a provisão de Billys Pan Pizza, bem como as últimas migalhas de pão e os últimos restos de queijo se tinham
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esgotado. Nos últimos três dias, Lisbeth Salander sobrevivera graças a um pacote de flocos de aveia que comprara por impulso, com a vaga ideia de que devia comer coisas mais alimentícias. Descobrira que meia chávena de flocos de aveia misturados com algumas passas e água se transformavam, ao cabo de um minuto no microondas, numa papa bastante comestível.
Não foi só a falta de comida que a obrigou a decidir-se. Havia uma coisa que precisava de fazer e, infelizmente, não podia fazê-la fechada no apartamento. Foi ao guarda-fatos e tirou de lá a peruca loira e o passaporte norueguês de Irene Nesser.
Frõken Nesser existia na vida real. Tinha algumas semelhanças físicas com Lisbeth Salander e perdera o seu passaporte três anos antes. Lisbeth obtivera-o através de Peste e usara a identidade de Nesser sempre que necessário durante quase 18 meses.
Tirou o piercing da sobrancelha e maquilhou-se diante do espelho da casa de banho. Vestiu uns jeans escuros e uma quente camisola de lã castanha, com uma barra amarela, e botas de salto alto. Tinha uma pequena provisão de latas de gás pimenta guardada numa caixa. Pegou numa. Encontrou também o taser, em que não tocava havia um ano, e pô-lo a carregar. Enfiou uma muda de roupa numa mochila. Às onze da noite de sexta-feira, nove dias depois dos assassínios, saiu pela primeira vez do apartamento em Mosebacke. Foi até ao MacDonalds, na Hornsgatan, onde era menos provável encontrar algum dos antigos colegas da Milton Security do que na loja perto de Slussen ou na de Medborgarplatsen. Comeu um Big Mac e bebeu uma maxi-Cola.
Terminada a refeição, apanhou o autocarro nº 4 para Sankt Eriks-plan, do outro lado da Vásterbron. Foi a pé até Odenplan e acercou-se do prédio onde Bjurman morara, na Upplandsgatan, pouco depois da meia-noite. Não esperava que o apartamento estivesse sob vigilância, mas viu uma luz acesa num outro, no mesmo piso, de modo que continuou até Vanadisplan. A luz estava apagada quando voltou, uma hora mais tarde.
Subiu as escadas em bicos de pés e sem acender as luzes. Com um x-acto, cortou a fita da polícia que selava a porta e entrou silenciosamente.
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Acendeu a luz do vestíbulo, que sabia não ser visível do exterior, e serviu-se de uma pequena lanterna eléctrica para iluminar o seu caminho até ao quarto. As persianas estavam corridas. Passou o fino feixe de luz pela cama manchada de sangue. Recordou que estivera muito perto de morrer naquela cama e sentiu-se subitamente invadida por uma profunda satisfação ao pensar que Bjurman saíra para sempre da sua vida.
A razão da sua visita ao local do crime era procurar resposta para duas perguntas. Em primeiro lugar, não compreendia a relação entre Zala e Bjurman. Estava convencida de que essa relação tinha de existir, mas nada do que encontrara no computador do seu antigo tutor lhe fornecera qualquer pista.
A segunda tinha que ver com uma questão que não lhe saía da cabeça. Da última vez que ali estivera, semanas antes, reparara que Bjurman tinha tirado alguma documentação referente a ela do arquivador onde guardava todo o material relacionado com a tutoria. As páginas que faltavam faziam parte do relatório da Agência que resumia o estado psicológico de Lisbeth Salander em termos muito concisos. Bjurman já não precisava daquelas páginas e era possível que tivesse feito uma limpeza ao processo e as tivesse deitado fora. Por outro lado, os advogados nunca deitam fora documentos relativos a um caso em aberto. E no entanto, aqueles papéis relacionados com ela tinham em tempos estado no arquivador, e agora não conseguia encontrá-los em parte alguma na secretária ou perto dela.
Verificou que a polícia levara as pastas de arquivo relativas ao seu caso, além de várias outras. Passou as duas horas seguintes a revistar cada centímetro do apartamento, para o caso de os agentes terem deixado passar qualquer coisa, mas acabou por concluir que não.
Na cozinha, descobriu várias chaves numa gaveta. Havia as chaves do carro, e duas enfiadas na mesma argola, uma delas a chave-mestra do prédio, a outra de um cadeado. Subiu silenciosamente ao sótão e experimentou todos os cadeados até encontrar a arrecadação de Bjurman. Continha móveis velhos, um guarda-fatos cheio de roupa usada, esquis, uma bateria de automóvel, caixas de cartão com livros e outra tralha. Não viu nada de interesse, de modo que desceu
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as escadas e usou a chave-mestra para entrar na garagem. Descobriu facilmente o Mercedes de Bjurman, e bastaram-lhe poucos minutos para se convencer de que também ali nada havia de útil.
Não se deu ao trabalho de ir ao escritório. Já lá estivera semanas antes, quando da sua visita anterior, e sabia que, naqueles dois últimos anos, ele quase não o tinha usado.
Regressou ao apartamento e sentou-se no sofá da sala, a pensar. Instantes depois, pôs-se de pé, voltou à gaveta da cozinha onde encontrara as chaves e examinou-as uma a uma. Um conjunto pertencia a uma moderna fechadura de segurança, mas havia uma enferrujada, de ar antigo. Franziu a testa. Então, ergueu os olhos para a prateleira por cima da bancada, onde Bjurman tinha cerca de 20 sacos de sementes. Sementes para um jardim de ervas aromáticas.
Ele tinha uma casa de férias. Ou um terreno, algures. Foi isso que me escapou.
Só precisou de três minutos para encontrar, no livro de contas de Bjurman, uma entrada, já com seis anos, referente ao pagamento de obras feitas no caminho de acesso, e de mais um minuto para descobrir uma apólice de seguro referente a uma propriedade perto de Stal-larholmen, nos arredores de Mariefred.
Às cinco da manhã, parou no 7-Eleven que funcionava 24 horas por dia na Hantverkargatan, em Fridhemsplan. Comprou uma enorme quantidade de Billys Pan Pizzas, leite, pão, queijo e algumas outras coisas. Comprou também um jornal da manhã, com um título de primeira página que a fascinou:
"MULHER PROCURADA FUGIU DO PAÍS?"
Por qualquer razão que desconhecia, aquele jornal não a referia pelo nome. Era "a mulher de 26 anos". Segundo o autor do artigo, uma fonte policial afirmava que ela podia ter fugido do país e talvez estivesse em Berlim. Aparentemente, a polícia recebera a informação de que fora vista em Kreuzberg, num "clube anarco-feminista" descrito como pouso habitual de jovens associados a tudo e mais alguma
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coisa, desde terrorismo a actividades antiglobalização, passando pelo satanismo.
Apanhou o número 4 para Sõdermalm, apeou-se na Rosenlunds-gatan e fez a pé o resto do percurso até Mosebacke. Bebeu café e comeu uma sanduíche antes de ir para a cama.
Dormiu até quase ao meio da tarde. Quando acordou, decidiu que era mais do que tempo de mudar os lençóis. Passou a tarde de sábado a limpar o apartamento. Levou o lixo para fora e juntou os jornais em dois sacos de plástico que deixou no papelão. Fez uma máquina de roupa interior e t-shirts, e a seguir outra dejeans. Encheu a máquina de lavar louça e pô-la a funcionar. Finalmente, aspirou e lavou o chão. Às nove da noite, estava encharcada em suor. Preparou um banho, com montes de espuma. Recostou-se na banheira e fechou os olhos, para pensar. Acordou à meia-noite, e a água estava fria. Secou-se e foi para a cama. Adormeceu quase instantaneamente.
No domingo de manhã, ficou furiosa mal ligou o PowerBook e leu todas as coisas horríveis que tinham sido escritas sobre Miriam Wu. Sentiu-se miserável e culpada. E o único crime de Mimi era ser sua... conhecida? amiga? amante?
Não sabia muito bem como descrever a relação entre as duas, mas compreendia que, fosse como fosse, o mais certo era ter terminado. Ia ter de riscar mais um nome da sua cada vez mais curta lista de conhecidos. Depois de tudo o que fora escrito na imprensa, não estava a ver Mimi a querer voltar a ter mais contactos com uma psicopata como ela.
Tinha bons motivos para estar furiosa.
Tomou nota do nome de Tony Scala, o jornalista que começara tudo aquilo. Decidiu também que havia, um dia, de ter uma conversa com um sacana de um colunista - representado na foto que acompanhava o texto com um horrível casaco aos quadros - cujo artigo fazia repetidas e jocosas referências a Mimi como "a lésbica sado-masoquista".
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Ao contrário da sua lista de conhecidos, a das pessoas com quem tinha contas a ajustar aumentava de dia para dia. Mas, primeiro, tinha de encontrar Zala.
Mikael Blomkvist foi acordado pelo telefone às sete e meia da manhã de domingo. Estendeu a mão e atendeu sonolentamente.
- Bom dia - disse Erika.
- Hum - resmungou Mikael.
- Estás sozinho?
- Infelizmente.
- Nesse caso, sugiro que tomes um duche e faças café. Vais ter uma visita dentro de quinze minutos.
- Vou?
- O Paolo Roberto.
- O pugilista? O rei dos reis?
- Telefonou-me, e estivemos a falar durante meia hora.
- Porquê?
- Porque é que ele me ligou? Bem, conhecemo-nos suficientemente bem para nos cumprimentarmos. Entrevistei-o quando ele entrou no filme do Hildebrand, e, depois disso, encontrámo-nos meia dúzia de vezes.
- Não sabia. Mas a minha pergunta era: porque é que ele vem visitar-me?
- Porque... acho que é melhor ser ele a explicar-te.
Mikael acabara de tomar duche e enfiar as calças quando a campainha da porta tocou. Foi abrir e pediu ao pugilista que se sentasse à mesa enquanto procurava uma camisa e tirava dois espressos duplos, que serviu com uma colher de chá de leite. Paolo Roberto inspeccionou o café, impressionado.
- Queria falar comigo? - perguntou Mikael.
- Foi uma sugestão da Erika Berger.
- Estou a ver. Diga.
- Conheço a Lisbeth Salander. Mikael arqueou uma sobrancelha.
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- Conhece?
- Fiquei muito surpreendido quando a Erika me disse que também a conhecia.
- Acho que talvez fosse melhor começar pelo princípio.
- Okay. É o seguinte. Voltei anteontem, depois de ter passado um mês em Nova Iorque, e dei com a cara da Lisbeth pespegada na porra de todos os jornais da cidade. Os jornais estão a escrever uma porção de merdas sobre ela. E não há um cabrão de um jornalista que tenha uma boa palavra a dizer sobre a miúda.
- Ora aí está uma exposição bastante colorida - observou Mikael. Paolo Roberto riu.
- Peço desculpa, mas estou mesmo lixado. A verdade é que liguei à Erika porque precisava de desabafar e não sabia com quem mais falar. E como aquele jornalista de Enskede trabalhava para a Millennium, e como eu conhecia a Erika, telefonei-lhe.
-E?
- Mesmo que a Lisbeth se tenha passado completamente dos carretos e feito tudo o que a polícia diz que fez, têm a obrigação de lhe dar uma chance. Vivemos num Estado de direito e ninguém pode ser condenado sem julgamento.
- É também essa a minha convicção.
- Foi o que a Erika me disse. Quando lhe liguei, pensava que vocês, na Millennium, também queriam a cabeça dela, considerando que o tal Svensson era vosso colega. Mas a Erika disse-me que você está convencido de que ela está inocente.
- Conheço a Lisbeth. Não consigo imaginá-la como uma assassina tresloucada.
Paolo Roberto soltou uma gargalhada.
- É um raio de uma miúda esquisita... mas faz parte dos bons. Gosto dela.
- Como foi que a conheceu?
- Praticámos boxe juntos desde que ela tinha dezassete anos. Mikael fechou os olhos durante dez segundos e depois voltou a
abri-los e a olhar para o campeão de boxe. Lisbeth Salander era, como sempre, um poço de surpresas.
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- Claro. Lisbeth Salander pratica boxe com Paolo Roberto. Estão os dois na mesma categoria de peso.
- Estou a falar a sério.
- Acredito. Ela disse-me, uma vez, que costumava treinar com os rapazes, num clube de boxe.
- Deixe-me contar-lhe como aconteceu. Há dez anos, o AS de Zinken ofereceu-me o lugar de treinador dos juniores. Eu já era conhecido no boxe e o director do clube achou que seria uma boa maneira de atrair malta nova, de modo que comecei a ir lá à tarde, treinar a rapaziada. Acabei por ficar o Verão todo e uma parte do Outono. E a verdade é que chamei uma porção de miúdos de quinze e dezasseis anos, e até alguns mais velhos. Muitos eram imigrantes. O pugilismo é uma excelente alternativa a andar por aí a fazer parvoíces. Pode crer, sei do que estou a falar.
- Acredito.
- Então um belo dia, aí em meados do Verão, aparece aquela miúda escanzelada. Está a ver o aspecto dela, certo? Apareceu no clube e disse que queria aprender boxe.
- Estou a imaginar a cena.
- Foi uma risota pegada para uma dúzia de tipos que pesavam o dobro dela e eram, evidentemente, muito maiores. Eu também me ri. Nada de grave, mas picámo-la um pedaço. Tínhamos uma secção de raparigas, e eu disse uma parvoíce qualquer a respeito de as miúdas do tamanho dela só poderem praticar boxe às quintas-feiras, ou coisa assim.
- Aposto que ela não se riu.
- Não. Não se riu. Olhou para mim com aqueles olhos pretos. Então, estendeu a mão e pegou num par de luvas que alguém tinha deixado por ali. Não estavam atadas, nem nada, e eram demasiado grandes para ela. E nós ríamos cada vez mais. Percebe o que quero dizer?
- A coisa promete.
Paolo Roberto soltou uma nova gargalhada.
- Uma vez que era eu o instrutor, avancei para ela e esbocei uns directos, está a ver, só a fingir.
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- Oh-oh...
- Exacto. De repente, ela atirou-me um murro que me acertou em cheio na boca. Eu estava a brincar, e ela apanhou-me completa-mente desprevenido. Acertou-me mais dois ou três antes de eu começar sequer a blocar. Claro que ela não tinha ponta de força muscular, e era como se estivesse a bater-me com uma pena. Mas quando eu comecei a blocar, ela mudou de táctica. Lutava por instinto, e conseguiu acertar-me mais duas ou três vezes. Então comecei a blocar a sério, e descobri que ela era mais rápida do que um raio de um lagarto. Se fosse maior e mais forte, tinha-me dado luta.
- Não me espanta.
- Então, ela mudou outra vez de táctica e acertou-me um em cheio nos tomates. Aquele senti-o.
Mikael fez uma careta.
- E então eu respondi e acertei-lhe na cara. Quer dizer, não foi com força, nem nada, só um toque. E ela deu-me um pontapé nas canelas. Foi uma coisa de loucos. Eu era três vezes maior e ela não tinha a mais pequena hipótese, mas continuou a atirar-se a mim como se estivesse a defender a vida.
- Tinha-a irritado.
- Percebi isso mais tarde. E fiquei envergonhado. Quer dizer... tínhamos afixado cartazes a chamar a malta nova, e a miúda aparece a pedir muito seriamente para aprender boxe, e sai-lhe na rifa um bando de matulões que se põem a fazer troça dela. Eu também me tinha passado, se alguém me tratasse daquela maneira.
- Só que qualquer outra pessoa teria pensado duas vezes antes de se atirar a Paolo Roberto!
- Bem, o problema da Lisbeth era que os murros dela não valiam nada. Por isso comecei a treiná-la. Tivemo-la na secção das raparigas durante um par de semanas, e ela perdeu vários combates porque mais cedo ou mais tarde alguém conseguia acertar-lhe, e então tínhamos de parar tudo e levá-la para o vestiário porque ela ficava tão furiosa que se punha aos pontapés e às dentadas e aos murros a torto e a direito.
- É mesmo dela.
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- Nunca desistia. Mas, no fim, acabou por chatear tantas raparigas que o treinador correu com ela.
- E depois?
- Era completamente impossível praticar boxe com ela. Só conhecia um estilo, a que entre nós chamávamos Exterminadora Implacável e que consistia em atacar sempre, sem parar, e não fazia a mínima diferença que fosse um simples aquecimento ou um treino amigável. E as miúdas estavam constantemente a ir para casa cheias de nódoas negras porque a Lisbeth lhes dava pontapés. Foi então que tive uma ideia. Estava a ter problemas com um puto chamado Samir. Tinha dezassete anos e era sírio. Era um bom pugilista, bem constituído e com um bom directo... mas não sabia mexer-se. Ficava sempre parado no mesmo sítio. Pedi à Lisbeth que aparecesse no clube numa tarde em que ia treiná-lo. Ela equipou-se e eu pu-la no ringue com ele, de capacete, protector de boca e tudo o mais. Ao princípio, o Samir recusou lutar com ela porque era "uma porra de uma miúda", e todas essas merdas machistas. Então eu disse, bem alto para que todos ouvissem, que aquilo não era um combate de treino e que apostava quinhentas coroas em como ela o arrumava. A Lisbeth, disse que não estava ali para treinar e que o Samir ia dar-lhe uma coça das antigas. Ficou a olhar para mim, desconfiada. O Samir ainda estava a dizer baboseiras quando a campainha tocou. A Lisbeth foi-se a ele com toda a gana e acertou-lhe um murro no queixo que o deixou sentado no chão. Nessa altura, eu tinha-a treinado durante todo o Verão e ela começava a ter algum músculo e a bater com força.
- Aposto que o miúdo ficou contente.
- Bem, aquele combate foi tema de conversa durante semanas. O Samir apanhou uma sova. A Lisbeth ganhou aos pontos. Se tivesse um pouco mais de massa corporal, era bem capaz de o ter magoado a sério. Passado algum tempo, o Samir estava tão frustrado que começou a bater-lhe com toda a força. Eu estava cheio de medo que ele lhe acertasse em cheio e tivéssemos de chamar uma ambulância. Ela ficou com algumas nódoas negras, de blocar com os ombros, e ele conseguiu encostá-la às cordas, porque era muito mais pesado, mas não lhe acertou uma única vez a sério.
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- Gostava de ter visto.
- Nesse dia, a malta do clube começou a respeitar a Lisbeth. Especialmente o Samir. Então, eu passei a pô-la no ringue com tipos consideravelmente maiores e mais fortes. Era a minha arma secreta, óptima para treinar. Combinávamos sessões em que o objectivo dela era acertar cinco vezes em várias partes do corpo: queixo, testa, estômago, e por aí fora. E os rapazes tinham de defender-se e proteger essas áreas. Passou a ser uma espécie de medalha de honra ter combatido com a Lisbeth. Era como enfrentar um vespão. Até começámos a chamar-lhe "a Vespa", e ela tornou-se uma espécie de mascote do clube. Julgo que até gostava, porque um dia apareceu com uma vespa tatuada no pescoço.
Mikael sorriu. Lembrava-se muito bem daquela vespa. E fazia parte da descrição dela que a polícia divulgara.
- Quanto tempo é que isso durou?
- Uma tarde por semana, durante cerca de três anos. Eu só lá estava a tempo inteiro no Verão. Fora disso, só de vez em quando. O tipo que continuou a treinar a Lisbeth era o treinador-adjunto, o Pute Karlsson. Então a Lisbeth começou a trabalhar e deixou de aparecer com tanta frequência, mas, até ao ano passado, ia ao clube pelo menos uma vez por mês. Eu via-a de vez em quando, e fazia algumas sessões com ela. Era um bom treino, fartávamo-nos de suar. Ela quase não falava com ninguém. Quando não tinha parceiros, passava duas horas a esmurrar o saco de areia como se fosse um inimigo mortal.
CAPÍTULO 23
DOMINGO, 3 DE ABRIL - SEGUNDA-FEIRA, 4 DE ABRIL
Mikael tirou mais dois espressos. Pediu desculpa quando acendeu um cigarro. Paolo Roberto encolheu os ombros.
O pugilista tinha fama de não ter papas na língua e dizer exactamente o que pensava. Mikael não tardou a aperceber-se de que a fama era merecida, mas que era, ao mesmo tempo, um ser humano humilde e inteligente. E até tentara uma carreira política candidatando-se a deputado pelo partido social-democrata. Não, o homem tinha definitivamente qualquer coisa entre as orelhas. Mikael descobrira que começara a gostar dele.
- Porque veio contar-me esta história?
- A miúda está mesmo metida numa alhada, não está? Não sei o que fazer, mas penso que o mais certo é vir a precisar de um amigo.
- Concordo.
- Porque é que acha que ela está inocente?
- É difícil de explicar. A Lisbeth é uma pessoa estranha, sem dúvida, mas não acredito que tenha assassinado o Dag e a Mia. Especialmente a Mia. Para começar, não tinha motivo...
- Pelo menos que nós saibamos.
- É verdade. A Lisbeth não teria qualquer problema em usar violência contra alguém que o merecesse. Mas não sei. Decidi desafiar O Bublanski, o detective que está a chefiar a investigação. Penso que o Dag e a Mia foram mortos por uma razão. E penso que essa razão está algures na história em que o Dag estava a trabalhar.
- Se isso for verdade, então a Lisbeth vai precisar de mais do que uma mão a que se agarrar quando for presa... vai precisar de um tipo
de apoio completamente diferente.
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- Eu sei
Paolo Roberto tinha um brilho perigoso nos olhos.
- Se está inocente, tem sido sujeita à porra de um dos maiores escândalos jurídicos da história. Tem sido descrita como uma assassina pelos media e pela polícia, e depois de toda a merda que escreveram a respeito dela...
- Eu sei.
- Então, que podemos nós fazer? Posso ajudar de alguma maneira?
- A melhor ajuda que podemos dar-lhe é arranjar outro suspeito. É nisso que estou a trabalhar. A segunda melhor coisa seria chegar até ela antes que um polícia qualquer lhe dê um tiro na cabeça. A Lisbeth não é do género de entregar-se voluntariamente.
- E como é que a encontramos?
- Não sei. Mas há uma coisa que pode fazer. Uma coisa prática, se puder dispor do tempo e da energia.
- A minha namorada está fora até ao fim da semana. O que quer dizer que posso dispor do tempo e da energia.
- Bem, estava a pensar que sendo um pugilista... -Sim?
- A Lisbeth tem uma amiga, Miriam Wu. Provavelmente, já leu a respeito dela.
- Mais conhecida como a fufa sadomasoquista... Sim, já li a respeito dela.
- Tenho o número do telemóvel dela e tenho tentado contactá-la. Mas ela desliga mal percebe que é um jornalista.
- Não a censuro.
- A verdade é que não tenho tempo para andar atrás de Frõken Wu. Mas li algures que ela treina boxe tailandês. Estava a pensar que se um pugilista famoso quisesse entrar em contacto com ela...
- Estou a ver. E tem esperança de que ela possa dar uma pista para chegar à Lisbeth.
- Quando a polícia a interrogou, disse que não fazia ideia de onde ela pudesse estar. Mas vale a pena tentar.
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- Dê-me o número. Eu falo com ela.
Mikael deu-lhe o número e a morada na Lundagatan.
Gunnar Bjorck tinha passado o fim-de-semana a analisar a situação. As suas perspectivas, concluiu, estavam por um fio, e ia ter de fazer o melhor possível com as cartas que tinha na mão.
Blomkvist era um sacana de primeira. A única questão era saber se seria possível persuadi-lo a manter-se calado a respeito... sobre o facto de ele, Bjorck, ter recorrido aos serviços daquelas cabras. Era um crime punível por lei e, se a coisa se soubesse, custar-lhe-ia, no mínimo, a carreira. A imprensa estraçalhá-lo-ia. Um membro da Polícia Nacional de Segurança que explorava prostitutas adolescentes... Se ao menos aquelas putas de merda não fossem tão novas...
Ficar ali sentado de braços cruzados é que ia de certeza selar a sua sorte. Bjorck era suficientemente inteligente para não ter dito nada a Blomkvist. Lera-lho na cara. O homem estava desesperado. Queria informação. Mas ia ter de pagar por ela, e o preço era o silêncio.
Zala trazia uma nova dimensão à investigação criminal.
Svensson andara à procura de Zala.
Bjurman andara à procura de Zala.
E o superintendente Bjorck era o único a saber que havia uma ligação entre Zala e Bjurman, uma ligação que significava que Zala era a chave para os assassínios em Enskede e em Odenplan.
Isto criava um outro problema grave para o futuro bem-estar de Bjorck. Fora ele que dera a Bjurman a informação sobre Zalachenko... como um gesto de amizade e a despeito de todo o processo continuar a ser altamente secreto. Era um pormenor, mas significava que tinha cometido outro crime punível por lei.
Além disso, depois da visita de Blomkvist, na sexta-feira, envolvera-se em mais um crime. Era um membro da instituição policial, o que significava que se tivesse informação pertinente para uma investigação criminal, a sua obrigação era transmiti-la de imediato aos colegas interessados. Mas se desse a informação a Bublanski e a Ekstrõrn, estaria inevitavelmente a implicar-se. E viria tudo a público. Não só a história das putas, mas todo o caso Zalachenko.
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No sábado, fora ao seu gabinete na Polícia de Segurança Nacional, em Kungsholmen. Reunira todos os documentos referentes a Zalachenko e lera-os de uma ponta à outra. Os relatórios tinham sido escritos por ele, mas isso fora muito tempo antes. O documento mais antigo tinha quase 30 anos. O mais recente dez.
Zalachenko.
Um filho da puta escorregadio.
Zala.
Era assim que lhe chamava nos relatórios, apesar de não se recordar de ter usado o nome.
A ligação era, no entanto, claríssima. A Enskede. A Bjurman. E a Lisbeth Salander.
Bjõrck continuava a não perceber como encaixavam todas as peças do quebra-cabeças, mas julgava saber por que razão Lisbeth estivera em Enskede. Não lhe custava imaginá-la a deixar-se dominar pela fúria e a matar Svensson e a mulher, Johansson, por terem recusado cooperar, ou por a terem provocado. Tinha um motivo, que só ele e mais duas ou três outras pessoas em todo o país conheciam.
É completamente louca. Espero que um polícia qualquer lhe dê um tiro nos cornos quando a apanharem. Ela sabe. Pode revelar a história toda, se decidir falar.
Fosse como fosse que olhasse para a situação, Mikael Blomkvist continuava a parecer a única saída possível. E isso era a única coisa que lhe interessava. Sentia um desespero cada vez maior. Tinha de convencer Blomkvist a tratá-lo como uma fonte confidencial e a manter silêncio sobre as suas... escapadelas com a merda das putas. Raios, se ao menos a Salander rebentasse também com a cabeça do Blomkvist!
Olhou para o número do telefone de Zala e pesou as vantagens e os inconvenientes de contactá-lo. Não conseguia decidir-se.
Fazendo da necessidade virtude, Mikael Blomkvist adquirira o hábito de, a cada nova fase da sua pesquisa, fazer o ponto da situação. Quando Paolo Roberto saiu, dedicou uma hora a essa tarefa. Tinha-se tornado quase um diário, em que dava livre expressão aos seus pensamentos, ao mesmo tempo que registava meticulosamente todas
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as conversas e todos os encontros, bem como todas as pesquisas que fazia. Encriptou o documento e enviou cópias para Erika e para Malin, para que as colegas se mantivessem a par do que fazia.
Dag Svensson concentrara-se em Zala durante as últimas semanas de vida. O nome surgira na derradeira conversa telefónica que tivera com ele, horas antes de ser assassinado. Bjõrck afirmava saber qualquer coisa a respeito do homem.
Passou em revista tudo o que tinha descoberto sobre Bjõrck, o que não era muito.
Gunnar Bjõrck, 62 anos, solteiro, nascido em Falun. Estava na polícia desde os 21 anos. Começara como simples agente, mas estudara Direito e acabara por entrar para a Sapo, a Polícia de Segurança Nacional, quando tinha 26 ou 27 anos. Fora isto em 1969 ou 1970, muito perto do fim do mandato de Per Gunnar Vinge como director. Vinge fora demitido depois de ter afirmado, durante uma conversa com Ragnar Lassinanti, governador de Norrbotten, que Olof Palme fazia espionagem a favor dos russos. Tinham-se seguido o caso do Bureau Interno, e o de Holmér, e o do Carteiro, e o assassínio de Palme, e escândalos atrás de escândalos. Mikael não fazia ideia de que papéis poderia Bjõrck ter desempenhado durante as suas três décadas na Polícia de Segurança Nacional.
A carreira do homem, entre 1970 e 1985, era, sem dúvida, um livro por escrever, o que nem sequer era assim tão estranho, considerando que tudo o que tinha que ver com as actividades da Sapo era confidencial. Tanto podia ter sido afiador de lápis, como agente secreto na China (improvável).
Em Outubro de 1985, fora colocado na embaixada sueca em Washington, onde permanecera dois anos. Em 1988, regressara a Estocolmo. Em 1996, tornara-se uma figura pública: nomeado director-adjunto da Divisão de Imigração (Mikael não fazia ideia de qual a natureza exacta das suas funções). Depois de 1996, fizera vários comunicados à imprensa, como a respeitante à deportação de um árabe suspeito, etc. Em 1998, estivera na ribalta quando vários diplomatas iraquianos tinham sido expulsos do país.
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Que tem tudo isto a ver com a Lisbeth ou com os assassínios do Dag e da Mia? Talvez nada.
Mas o Bjorck conhece o Zala. Portanto, tem de haver uma ligação.
Erika Berger não falara a ninguém, nem sequer ao marido, de quem raramente guardava segredos, da sua mudança para o Svenska Morgon-Posten. Restava-lhe cerca de um mês à frente da Millennium. A ansiedade começava a afectá-la. Os dias passavam a correr e muito em breve estaria a enfrentar o último.
Estava também cada vez mais preocupada com Mikael. Lera o último e-mail dele com uma sensação de impotência. Reconhecia os sinais. Era a mesma obstinação que o fizera ficar em Hedestad dois anos antes, era a mesma determinação obsessiva com que fora atrás de Wennerstrõm. Desde Quinta-feira Santa, nada mais existira para ele excepto descobrir quem matara Dag e Mia e provar a inocência de Lisbeth.
Comungava totalmente destes objectivos - ao fim e ao cabo, Dag e Mia também tinham sido seus amigos -, mas havia uma faceta de Mikael Blomkvist que a fazia sentir-se pouco à-vontade: era capaz de tornar-se implacável quando cheirava sangue.
A partir do momento em que ele lhe telefonara, no dia anterior, a dizer que desafiara Bublanski como um raio de um cowboy do Oeste americano, soubera que a procura de Lisbeth Salander ia mantê-lo ocupado no futuro previsível. Sabia por experiência própria que seria impossível de aturar enquanto não resolvesse o problema. Balançaria entre o egocentrismo e a depressão. E algures na equação ia correr riscos que seriam talvez completamente desnecessários.
E Lisbeth Salander? Só a vira uma vez e não sabia o suficiente a respeito daquela estranha rapariga para partilhar a certeza de Mikael de que estava inocente. E se Bublanski tivesse razão? E se ela fosse culpada? E se Mikael conseguisse encontrá-la e ela fosse uma lunática com uma arma?
E a surpreendente conversa que tivera com Paolo Roberto no início daquela manhã em nada contribuíra para a tranquilizar. Era bom,
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claro, Mikael não ser o único do lado de Lisbeth, mas Paolo era outro cowboy como ele.
E onde iria encontrar alguém que a substituísse na Millennium'? Estava a tornar-se urgente. Pensou em ligar a Christer e discutir o assunto com ele, mas não podia dizer-lhe e impedir que a novidade chegasse aos ouvidos de Mikael.
Mikael era um repórter brilhante, mas seria um desastre como director editorial. Nesse sentido, ela e Christer eram muito mais parecidos, mas duvidava que Christer aceitasse a oferta. Malin Eriksson era demasiado jovem, não tinha ainda a autoconfiança necessária. Monika Nilsson era demasiado egocêntrica. Henry Cortez era bom jornalista, mas demasiado jovem e inexperiente. Lottie Karim era demasiado excêntrica. E não tinha a certeza de que Christer e Mikael aceitassem alguém vindo de fora.
Era uma alhada de todo o tamanho, e de modo nenhum a maneira como queria terminar o seu mandato à frente da Millennium.
No domingo à noite, Lisbeth Salander usou o Asphyxia 1.3 para abrir o ícone MikBlom/port e ler o material que tinha sido acrescentado nos últimos dois dias. Mikael não estava online.
Leu o diário da pesquisa e perguntou-se se ele estaria a escrevê-lo com tanto pormenor por causa dela e, se sim, que poderia isso significar. Mikael sabia, com toda a certeza, que ela lhe entrava no computador, pelo que era natural concluir que queria que lesse o que escrevia. A questão, porém, era: o que não estava ele a escrever? Sabendo que ela acedia ao computador, podia controlar o fluxo de informação. Notou de passagem que, aparentemente, ele não fora muito mais longe com Bublanski do que desafiá-lo para uma espécie de duelo relacionado com a inocência ou a culpa dela. Estava a basear as suas conclusões em emoções e não em factos. Que idiota ingénuo.
Em compensação, tinha fixado a mira em Zala. Bem pensado, Super Blomkvist.
Notou então, com alguma surpresa, que Paolo Roberto surgira em cena. Era uma boa notícia. Sorriu. Gostava daquele filho da mãe
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descarado. Era machão até à ponta dos cabelos. No ringue, não hesitava em chegar-lhe a sério. Quando conseguia acertar-lhe, claro.
Sentou-se direita na cadeira quando desencriptou e leu o mais recente e-mail de Mikael para Erika.
Gunnar Bjorck, da Sapo, tem informações sobre o Zala.
Gunnar Bjorck conhecia o Bjurman.
Os olhos de Lisbeth velaram-se enquanto ela traçava mentalmente um triângulo. Zala. Bjõrck. Bjurman. Sim, faz sentido. Nunca tinha olhado para o problema daquela perspectiva. Talvez Mikael não fosse assim tão estúpido, ao fim e ao cabo. Mas, claro, não estabelecera a ligação. Nem ela própria o fizera, apesar de saber muito mais sobre o que tinha acontecido. Pensou um pouco em Bjurman e apercebeu-se de que o facto de ter conhecido Bjõrck fazia dele uma peça mais importante do que até então imaginara.
Compreendeu também que, muito provavelmente, ia ter de fazer uma visita a Smâdalarõ.
Voltou ao disco rígido de Mikael e criou na pasta [LISBETH SALANDER] um novo documento a que chamou < Canto do Ringue >. Ele ia vê-lo da próxima vez que ligasse o iBook.
1. Mantém-te longe do Teleborian. É um sacana do pior.
2. A Miriam Wu não tem absolutamente nada que ver com isto.
3. Fazes bem em concentrar-te no Zala. É ele a chave. Mas não vais encontrá-lo em nenhum registo público.
4. Há uma ligação entre o Bjurman e o Zala. Não sei qual é, mas estou a tentar descobrir. O Bjõrck?
5. Importante. Há um relatório da polícia a meu respeito, muito mau para mim, de Fevereiro de 1991- Não sei o número do processo e não consigo encontrá-lo. Porque foi que o Ekstrõm não o deu aos jornais? Resposta: não está no computador dele. Conclusão: não sabe da sua existência. Como é isto possível?
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Pensou um instante e acrescentou:
PS. Mikael, não estou inocente. Mas não matei o Dag e a Mia. Não tive nada a ver com isso. Vi-os naquela noite, mas, quando saí, estavam os dois vivos. Obrigada por acreditares em mim. Dá cumprimentos meus ao Paolo Roberto e diz-lhe que tem um gancho de esquerda que é uma merda.
P.P.S. Como soubeste aquilo do Wennerstrõm?
Mikael encontrou o documento cerca de três horas mais tarde. Leu a mensagem linha a linha pelo menos cinco vezes. Era a primeira vez que Lisbeth afirmava claramente que não tinha matado Dag e Mia. Acreditou nela, e isso deu-lhe uma enorme sensação de alívio. E, finalmente, estava a falar com ele, ainda que de uma forma tão codificada como sempre.
Notou também que só negava ter matado Dag e Mia. Não dizia nada a respeito de Bjurman. Assumiu que era por ele só ter referido Dag e Mia na sua mensagem. Pensou por instantes, e então criou <Canto do Ringue-2>.
Olá, Sally,
Obrigado por me teres finalmente dito que estás inocente. Acreditava que sim, mas com todo o barulho que tem sido feito na imprensa, até eu tive algumas dúvidas. Perdoa-me. É bom sabê-lo directamente do teu teclado. Agora já só falta descobrir o verdadeiro assassino. Uma coisa que nós os dois já fizemos uma vez. Talvez a coisa avançasse mais depressa se não fosses tão misteriosa. Assumo que tens lido o meu diário. Nesse caso, sabes o mesmo que eu sei e o que penso. Estou convencido de que o Bjõrck sabe qualquer coisa e tenciono ter outra conversa com ele nos próximos dias. Achas que investigar os clientes das raparigas é uma perda de tempo?
Também eu acho estranha essa história do relatório da polícia. Vou pôr a minha colega Malin Eriksson a trabalhar no assunto. Que idade tinhas tu na altura? Doze? Treze? A respeito de que é o relatório?
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Tomo a devida nota da tua opinião sobre o Teleborian.
M.
PS. Cometeste um erro no golpe Wennerstrõm. Quando estávamos em Sandhamn, no Natal, eu já sabia, mas não perguntei nada, uma vez que tu não referiste o assunto. E não tenciono dizer-te qual foi o erro a menos que nos encontremos para um café.
A resposta, quando chegou, dizia:
Esquece os clientes. O Zala é o único que importa. É um matulão loiro. Mas o relatório da polícia é interessante, uma vez que alguém parece querer escondê-lo. Não pode ser por acaso.
O procurador Richard Ekstrõm estava de péssimo humor quando a equipa de Bublanski se juntou para a reunião da manhã, na segunda-feira. Mais de uma semana a procurar uma suspeita cujo nome e aspecto eram conhecidos não produzira quaisquer resultados. E não ficou mais bem disposto quando Andersson, que estivera de serviço no fim-de-semana, lhe contou as últimas novidades.
- Um assalto? - exclamou, com indisfarçado espanto.
- O vizinho telefonou no domingo à noite para dizer que a fita que selava a porta do apartamento do Bjurman tinha sido cortada. Fui verificar.
-E?
- Foi cortada em três pontos. Provavelmente com uma lâmina de barba, ou um x-acto. Um trabalho bem feito. Quase não se nota.
- Um assalto? Há patifes especializados em apartamentos de pessoas falecidas...
- Não houve roubo. Revistei o apartamento. Todos os valores... leitor de DVD, e essas coisas... continuam lá. Mas a chave do carro do Bjurman estava em cima da mesa da cozinha.
- A chave do carro?
- O Jerker esteve no apartamento na quarta-feira, para verificar se nos tinha escapado alguma coisa. Verificou também o carro. Jura
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que não havia nenhuma chave na mesa da cozinha quando saiu e voltou a colocar a fita.
- Não pode tê-la esquecido lá? Ninguém é perfeito.
- O Jerker nunca usou aquela chave. Usou a que estava no porta-chaves do Bjurman, e que ele já tinha confiscado.
Bublanski esfregou o queixo.
- Não se tratou, portanto, de um assalto normal.
- Alguém entrou no apartamento do Bjurman e andou por lá a espiolhar. Deve ter sido entre quarta-feira e a noite de domingo, quando o vizinho telefonou.
- Alguém que andava à procura de qualquer coisa? Mas o quê? Jerker?
-Já lá não havia nada de interesse, nada que não tivéssemos já confiscado.
- Nada de que tenhamos conhecimento, pelo menos. O motivo do assassínio continua por esclarecer. Assumimos que a Salander é uma psicopata, mas até os psicopatas têm de ter um motivo.
- O que é que sugeres?
- Não sei. Alguém revistou o apartamento do Bjurman. Primeira pergunta: quem? Segunda pergunta: porquê? O que foi que nos escapou?
- Jerker?
Holmberg suspirou, resignado:
- Tudo bem, vou voltar a revistar o apartamento. Desta vez, com pinças.
Na segunda-feira, Lisbeth Salander acordou às 11 da manhã. Ficou meia hora a preguiçar antes de se levantar, ligar a máquina do café e tomar um duche. Preparou o pequeno-almoço e sentou-se diante do PowerBook para ver o que havia de novo no computador de Ekstrõm e ler as edições online dos jornais da manhã. Em seguida, abriu a pasta da pesquisa de Dag Svensson e leu as notas que ele tomara durante a conversa com o jornalista Per-Áke Sandstrõm, o cliente de prostitutas que fazia recados para a máfia do sexo e sabia
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qualquer coisa a respeito de Zala. Quando acabou, voltou a encher a caneca de café e foi sentar-se junto à janela, para pensar.
Às quatro da tarde, tinha pensado o suficiente.
Precisava de dinheiro. Tinha três cartões de crédito. Um deles estava em seu nome e era, para todos os efeitos práticos, inútil. Outro fora emitido em nome de Irene Nesser, mas ela queria evitar usá-lo, uma vez que identificar-se com o passaporte de Nesser podia ser perigoso. O terceiro tinha o nome da Wasp Enterprises e estava ligado a uma conta onde havia cerca de três milhões de coroas que podiam ser aumentadas através de transferências via Internet. Qualquer pessoa podia utilizar o cartão, mas teria de identificar-se.
Foi à cozinha, abriu uma lata de bolachas e tirou de lá um maço de notas. Tinha 950 coroas em dinheiro, o que não era grande coisa. Felizmente, tinha também 1800 dólares, que deixara numa gaveta depois de regressar das suas viagens; podia trocá-los, sem necessidade de se identificar, em qualquer agência de câmbio. A ideia fê-la sentir-se muito melhor.
Pôs a peruca de Irene Nesser, vestiu-se elegantemente, enfiou uma muda de roupa e uma caixa de maquilhagem numa mochila e saiu para a sua segunda expedição fora de Mosebacke. Foi a pé até à Folkungatan, desceu a Erstagatan e chegou à Watski uns minutos antes da hora do fecho. Comprou um rolo de fita isoladora e uma talha com dupla roldana e oito metros de corda de algodão.
No regresso, apanhou o número 66. Na Medborgarplatsen, viu uma mulher à espera do autocarro. Não a reconheceu imediatamente, mas qualquer coisa fez soar um sinal de alarme, e, olhando com mais atenção, viu que era Irene Flemstrõm, do Serviço de Pessoal da Milton Security. Usava um novo penteado, mais moderno. Saiu por uma porta do autocarro enquanto Flemstrõm entrava pela outra. Olhou em redor, à procura, como sempre, de caras que pudessem ser-lhe familiares. Dirigiu-se à estação de Sõdra, passando pelo edifício semicircular de Boffils Bâge, e apanhou o comboio suburbano para norte.
A inspectora Sonja Modig trocou um aperto de mão com Erika Berger, que lhe ofereceu imediatamente café. Notou que todas
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as canecas tinham logos ou slogans de partidos políticos ou organizações profissionais.
- Arranjei-as quase todas em festas eleitorais e entrevistas - explicou Erika Berger, estendendo-lhe uma com o logo do Partido Liberal da Juventude.
Trabalhou na secretária que fora de Dag Svensson. Malin Eriksson ajudou-a, tanto a compreender o tema do livro e do artigo de Dag como a navegar por entre as montanhas de material de pesquisa. Modig estava impressionada com a importância de tudo aquilo. A falta do computador de Svensson e o facto de o seu trabalho estar inacessível tinham sido, desde o início, um motivo de frustração para a equipa de detectives. E afinal estava tudo ali, ao dispor deles, na redacção da Millennium.
Mikael Blomkvist não se encontrava no escritório, mas Erika Berger deu-lhe uma lista de todo o material que ele retirara da secretária de Svensson e que dizia exclusivamente respeito à identificação das fontes. Modig telefonou a Bublanski e explicou a situação. Decidiram que todo o material que estava na secretária de Svensson, incluindo o computador da Millennium, teria de ser confiscado, e que, caso fosse necessário, Bubianski voltaria com um mandado para requisitar o que Blomkvist já tinha retirado. Modig fez um inventário e Henry Cortez ajudou-a a levar as caixas de cartão para o carro.
Na tarde de segunda-feira, Mikael Blomkvist estava a sentir-se profundamente frustrado. Já confrontara dez dos nomes que Dag tencionava denunciar. Em todos os casos, encontrara homens preocupados, exaltados e chocados. Calculou que os rendimentos médios dos indivíduos envolvidos andariam pelas 400 mil coroas anuais. Constituíam um patético grupo de homens cheios de medo.
Não sentira, no entanto, que qualquer deles tivesse fosse o que fosse a esconder no respeitante aos assassínios.
Ligou o iBook, para ver se havia alguma nova mensagem de Lis-beth. Não havia. No seu último e-mail, ela dissera-lhe que os clientes não tinham qualquer interesse e que não valia a pena perder tempo com eles. Tinha fome, mas não estava com paciência para cozinhar.
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Além disso, havia já duas semanas que não comprava nada, a não ser leite, na loja da esquina. Vestiu o casaco, foi até ao restaurante grego na Hornsgatan e pediu uma grelhada de cordeiro.
Lisbeth Salander começou por dar uma vista de olhos às escadas e, ao pôr do Sol, fez dois cautelosos circuitos à volta dos edifícios contíguos. Eram prédios baixos, certamente de paredes finas e de modo nenhum ideais para os seus propósitos. Sandstrõm, o jornalista, morava no apartamento de esquina do quarto andar, que era também o último do prédio. A partir do patamar, as escadas continuavam até à porta de um sótão. Ia ter de servir.
O problema era não haver luz em qualquer das janelas do apartamento.
Foi até kpizzaria, a meia dúzia de ruas de distância, e comeu uma havaiana sentada numa mesa de canto enquanto lia os jornais da tarde. Pouco antes das nove, comprou uma embalagem de caffè latte num quiosque Pressbyrâ e voltou ao edifício. O apartamento continuava às escuras. Subiu até ao quarto andar e foi sentar-se nos degraus que davam para o sótão e de onde via a porta do apartamento de Sandstrõm, meio lanço mais abaixo. Bebeu o caffè latte enquanto esperava.
O inspector Hans Faste conseguiu finalmente localizar Cilla Norén, a vocalista do grupo satânico Evil Fingers, no estúdio da Recent Trash Records, situado num edifício industrial em Àlvsjõ. Foi um choque de culturas mais ou menos da mesma magnitude de quando os espanhóis encontraram pela primeira vez os índios caribes.
Depois de várias tentativas infrutíferas em casa dos pais de Norén, Faste acabara por chegar aos estúdios, onde, segundo a irmã, Cilla estava "a dar uma ajuda" na produção de um CD da banda Cold Wax, de Borlãnge. Faste nunca ouvira falar desta banda, que parecia ser formada por um grupo de rapazes na casa dos vinte. Mal entrou no corredor, embateu numa parede de som que o deixou sem respiração. Ficou a ver os Cold Wax através de uma divisória de vidro, enquanto esperava por uma pausa na cacofonia.
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Cilla Norén tinha cabelos compridos, muito negros e brilhantes, com madeixas verdes e vermelhas, e os olhos pintados de preto. Era para o rechonchudo e usava uma saia curta e um top que mostrava um piercing a enfeitar-lhe o umbigo. Tinha um cinto cravejado de tachas a cingir-lhe as ancas e parecia saída de um filme de terror francês.
Faste mostrou o crachá da Judiciária e disse que precisava de falar com ela. Cilla continuou a mascar a pastilha elástica e lançou-lhe um olhar céptico. Apontou para uma porta que dava para uma espécie de cantina, onde ele tropeçou e quase caiu em cima de um saco de lixo que alguém deixara mesmo à entrada. Ela encheu de água uma garrafa de plástico, bebeu quase metade, sentou-se à mesa e acendeu um cigarro. Cravou em Faste os olhos azuis-claros.
- O que é a Recent Trash Records? Cilla fez um ar mortalmente entediado.
- É uma empresa discográfica que promove novas bandas.
- Qual é o seu papel aqui?
- Sou engenheira de som. Faste olhou-a duramente.
- Teve treino específico para essa função?
- Ná. Aprendi sozinha.
- Dá para ganhar a vida?
- Porque é que pergunta?
- Só por perguntar. Suponho que leu o que os jornais têm escrito a respeito da Lisbeth Salander.
Cilla confirmou com um aceno de cabeça.
- Estamos convencidos de que a conhece. É verdade?
- Talvez.
- É verdade ou não é verdade?
- Depende do que procura.
- Procuro uma mulher louca que cometeu um triplo assassínio. Quero informações a respeito de Lisbeth Salander.
- Não sei nada dela desde o ano passado.
- Quando foi a última vez que a viu?
- Algures no Outono de há dois anos. No Kvarnen. Costumava aparecer por lá, mas a dada altura deixámos de a ver.
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- Tentou entrar em contacto com ela?
- Liguei-lhe para o telemóvel meia dúzia de vezes. O número está desactivado.
- E não sabe outra maneira de contactá-la?
- Não.
- O que são as Evil Fingers? Cilla pareceu divertida.
- Não lê os jornais?
- Que quer dizer com isso?
- Dizem que somos uma banda satânica.
- E são?
- Por acaso tenho ar de satânica?
- Que ar têm os satânicos?
- Não sei quem é mais estúpido... se a polícia ou os jornais.
- Ouça, minha menina, isto é um assunto importante.
- Saber se somos ou não satânicos?
- Deixe-se de parvoíces e responda à pergunta.
- E qual era a pergunta?
Faste fechou os olhos por um segundo e pensou numa visita que fizera à polícia na Grécia, quando lá estivera de férias, anos antes. A força policial grega, apesar de todos os seus problemas, tinha uma enorme vantagem relativamente à sua congénere sueca. Se aquela jovem adoptasse a mesma atitude na Grécia, ele poderia obrigá-la a dobrar-se com o traseiro voltado para cima e aplicar-lhe três boas vergastadas. Olhou para ela.
- A Lisbeth Salander era membro das Evil Fingers?
- Não me parece.
- O que é que isso quer dizer?
- A Lisbeth é talvez a pessoa com mais falta de ouvido que alguma vez conheci.
- Falta de ouvido?
- Consegue perceber a diferença entre um trompete e uma bateria, mas é só até onde vão ós dotes musicais dela.
- Perguntei se ela fazia parte do grupo Evil Fingers.
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- E eu respondi à pergunta. Que raio pensa que são as Evil Fingers?
- Diga-me você a mim.
- Estão a fazer uma investigação policial com base em artigos idiotas dos jornais.
- Responda à pergunta.
- As Evil Fingers eram uma banda de rock. Éramos um grupo de raparigas, em meados dos anos noventa, que gostavam de rock da pesada e tocávamos para nos divertirmos. Fazíamos promoção com pentagramas e um pouco de "Simpatia pelo Diabo". Depois a banda desfez-se, e eu sou a única que continua a trabalhar na área da música.
- E a Lisbeth Salander não era, como diz, membro do grupo.
- É como digo.
- Nesse caso, porque é que as nossas fontes afirmam que a Salander fazia parte da banda?
- Porque as vossas fontes são tão estúpidas como os jornais.
- Diga-me qualquer coisa que não seja estúpida.
- Éramos cinco raparigas na banda, e ainda nos reunimos de vez em quando. Antigamente, todas as semanas, no Kvarnen. Agora, cerca de uma vez por mês. Mas mantemo-nos em contacto.
- E o que é que fazem quando estão juntas?
- O que é que acha que as pessoas fazem no Kvarnen? Faste suspirou.
- Portanto, juntam-se para beber.
- Geralmente, bebemos cerveja. E coscuvilhamos um pouco. O que é que faz quando se junta com os seus amigos?
- E como é que a Salander entra na fotografia?
- Conhecia-a no Komvux, há uns anos. Costumava aparecer no Kvarnen de vez em quando e bebia uma cerveja connosco.
- As Evil Fingers não podem, então, ser consideradas "uma organização"?
Cilla olhou-o como se ele acabasse de desembarcar de outro planeta.
- São lésbicas?
- Quer levar um estalo na cara?
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- Responda à pergunta.
- Não tem nada com isso.
- Calma. Não vai conseguir provocar-me.
- Hello, está aí alguém? A polícia afirma que a Lisbeth matou três pessoas e você vem aqui perguntar-me quais são as minhas preferências sexuais. Vá para o raio que o parta.
- Sabe que posso levá-la para a Central?
- Porquê? A propósito, esqueci-me de dizer que estou no terceiro ano de Direito e que o meu pai é Ulf Norén, da Norén e Knape, o consultório de advogados. Encontramo-nos no tribunal.
- Pensei que trabalhava na área da música.
- Faço isto porque é divertido. Acha que é assim que ganho a vida?
- Não faço a mínima ideia de como é que ganha a vida.
- Não é como lésbica satânica, se é nisso que está a pensar. E se é com base nisso que andam à procura da Lisbeth, percebo por que é que ainda não conseguiram encontrá-la.
- Sabe onde ela está?
Cilla começou a balançar o tronco para a frente e para trás, enquanto agitava as mãos em círculo.
- Sinto que está perto... espere um instante, vou consultar os meus poderes telepáticos.
- Deixe-se de palhaçadas.
- Já lhe disse que não sei nada dela há quase dois anos. Não faço a mínima ideia de onde está. E agora, se não precisa de mais nada...
Sonja Modig tinha ligado o computador de Svensson e passado a tarde inteira a catalogar o conteúdo do disco rígido e dos CD. Depois, ficou a ler o livro até às onze da noite.
Chegou a duas conclusões. Primeira, que Dag Svensson fora um escritor brilhante que descrevia o negócio do sexo com uma objectividade fascinante. Lamentou o facto de ele não ter tido ocasião de fazer uma conferência na Academia de Polícia: os seus conhecimentos teriam sido uma valiosa contribuição para o currkulum. Faste, por exemplo, teria podido beneficiar largamente do saber de Svensson.
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A segunda conclusão foi que a teoria de Blomkvist a respeito de a pesquisa de Svensson poder constituir o móbil dos crimes tinha mais do que pernas para andar. A denúncia que Svensson planeara teria feito muito mais do que prejudicar um punhado de homens. Era uma revelação brutal. Algumas das figuras mais destacadas - entre elas indivíduos que tinham proferido sentenças em julgamentos relacionados com crimes de carácter sexual ou participado em debates sobre o tema - seriam completamente aniquiladas.
O problema era que mesmo que um cliente ameaçado de ser denunciado tivesse decidido matar Svensson, continuava a não haver, até ao momento, qualquer sombra de ligação a Nils Bjurman. O advogado não aparecia referido no material de Svensson, e esse facto não só retirava força ao argumento de Blomkvist, como reforçava a probabilidade de Lisbeth Salander ser a única suspeita possível.
Ainda que o motivo para a morte de Svensson e Johansson continuasse pouco claro, Lisbeth Salander fora vista no local dos crimes e as suas impressões digitais estavam na arma utilizada para os cometer.
Uma arma que estava também directamente ligada à morte de Bjurman. Havia uma ligação pessoal e um possível motivo - a decoração do abdómen de Bjurman levantava a possibilidade de uma qualquer forma de agressão sexual ou de relação sadomasoquista entre os dois. Ninguém no seu juízo perfeito imaginaria Bjurman a deixar-se voluntariamente tatuar de uma maneira tão bizarra e dolorosa. Ou ele tivera prazer na humilhação, ou Salander - se fora ela a autora da tatuagem - tivera de começar por imobilizá-lo e deixá-lo indefeso. Como podia isso ter acontecido não era coisa sobre a qual Modig quisesse especular.
Por outro lado, Teleborian confirmara que a violência de Salander era dirigida contra pessoas que, por qualquer razão, ela considerava uma ameaça, ou que a tivessem ofendido.
O psiquiatra parecera genuinamente preocupado, como se desejasse que nenhum mal acontecesse à sua antiga paciente. O que não impedia que a investigação tivesse sido largamente baseada na análise que ele fizera dela: uma sociopata à beira da psicose.
Fosse como fosse, a teoria de Blomkvist era atraente.
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Mordeu o lábio inferior e tentou imaginar um cenário alternativo àquele em que Lisbeth Salander aparecia como a assassina, a trabalhar sozinha. Finalmente, escreveu uma linha no bloco de notas:
"Dois motivos completamente diferentes? Dois assassinos? A mesma arma?"
Um pensamento atravessou-lhe fugazmente o espírito, desaparecendo antes que o pudesse acatar, mas era qualquer coisa que tencionava perguntar a Bublanski na manhã seguinte. Não saberia explicar por que era que se sentia tão pouco à-vontade com a hipótese de Lisbeth Salander como única assassina.
Decidiu que, por aquele dia, já chegava. Desligou resolutamente o computador e fechou os discos à chave numa gaveta. Vestiu o casaco, apagou o candeeiro da secretária, e preparava-se para fechar a porta quando ouviu um som vindo de um pouco mais adiante, no corredor. Franziu a testa. Julgava estar sozinha no departamento. Avançou até ao gabinete de Faste. A porta estava aberta, e ouviu-o falar ao telefone.
- Estabelece indiscutivelmente uma ligação - dizia Faste.
Modig teve um instante de hesitação antes de inspirar fundo e bater com os nós dos dedos na ombreira da porta. Faste ergueu os olhos, surpreendido. Ela acenou-lhe.
- A Modig ainda está no departamento - disse Faste para o telefone. Escutou, assentindo com a cabeça, sem desviar os olhos dela. Okay, eu digo-lhe. - Desligou. - O Bolha - disse, em jeito de explicação. - O que é que queres?
- O que é que estabelece uma ligação? Ele lançou-lhe um olhar especulativo.
- Agora escutas as conversas dos outros?
- Não, mas a tua porta estava aberta e ouvi o que dizias antes de bater.
Faste encolheu os ombros.
- Liguei ao Bolha para lhe dizer que o LFN encontrou finalmente qualquer coisa útil.
- O que foi?
- O Svensson tinha um telemóvel com um cartão da Comviq. Conseguiram uma lista de chamadas que confirma a conversa com o
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Mikael Blomkvist às oito e doze. Foi quando ele estava a jantar em casa da irmã.
- Óptimo. Mas eu nunca acreditei que ele tivesse alguma coisa a ver com os assassínios.
- Nem eu. Mas o Svensson fez outra chamada, naquela noite. Às nove e trinta e quatro. A chamada durou três minutos.
-E?
- Ligou para o telefone fixo do Bjurman. Por outras palavras, há uma ligação entre os dois crimes.
Modig deixou-se cair na cadeira de visitas de Faste.
- Ora essa, senta-te. Faz de conta que estás em tua casa. Ela ignorou-o.
- Okay, o que é que o horário nos diz? Pouco depois das oito, o Svensson telefona ao Blomkvist e combina um encontro para mais tarde, nessa noite. Às nove e meia, liga para o Bjurman. Pouco antes das dez, Lisbeth Salander compra cigarros na loja da esquina, em Enskede. Pouco depois das onze, o Blomkvist e a irmã chegam a Ens-kede, e às onze e onze ele liga para as emergências.
- Parece correcto, Miss Marple.
- Talvez pareça, mas não está. Segundo o médico legista, o Bjurman foi assassinado entre as dez e as onze. Nessa altura, a Lisbeth Salander estava em Enskede. Temos estado a partir do princípio de que ela matou o Bjurman primeiro e só depois o casal em Enskede.
- Isso não quer dizer nada. Voltei a falar com o médico legista. Só encontrámos o Bjurman no dia seguinte, passadas quase vinte e quatro horas. O médico legista diz que é perfeitamente aceitável uma variação de uma hora, para cima ou para baixo.
- Mas o Bjurman foi de certeza a primeira vítima, uma vez que encontrámos a arma em Enskede. Isso significaria que ela o matou depois das nove e trinta e quatro e em seguida foi até Enskede, onde comprou cigarros. Teve tempo para ir de Odenplan a Enskede?
- Teve. Não foi de transportes públicos, como tínhamos começado por assumir. Tinha um carro. Eu e o Sonny fizemos o trajecto, e dá mais do que tempo.
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- Mas então espera uma hora antes de matar o Svensson e a Johansson? Que esteve ela a fazer durante todo esse tempo?
- A beber café. Temos as impressões digitais nos cacos da chávena.
Lançou-lhe um olhar triunfante. Modig suspirou e ficou calada durante um minuto.
- Hans, estás a olhar para isto como se fosse uma questão de prestígio. Podes ser um chato de todo o tamanho, e por vezes fazes perder a paciência a um santo, mas eu vim aqui para pedir desculpa por aquela estalada. Foi totalmente descabido.
Faste olhou para ela por um longo momento.
- Modig, podes achar que eu sou um chato de todo o tamanho, mas eu acho que tu és pouco profissional e não devias estar na polícia. Pelo menos, não a este nível.
Modig considerou várias respostas, mas acabou por encolher os ombros e pôr-se de pé.
- Bem, pelo menos, agora sabemos o que pensamos um do outro.
- Pois sabemos. E acredita no que te digo, não vais durar muito tempo aqui.
Sonja Modig fechou a porta com mais força do que tencionara. Não permitas que o filho da mãe te afecte. Desceu à garagem para ir buscar o carro.
Faste sorriu, satisfeito, para a porta fechada.
Mikael Blomkvist acabava de chegar a casa quando o telefone tocou.
- Olá. Sou eu, a Malin. Podes falar?
- Claro.
- Ontem houve uma coisa que me chamou a atenção.
- Conta.
- Estava a rever os recortes de imprensa que temos sobre a perseguição à Salander, e encontrei o artigo sobre o tempo que ela passou na clínica psiquiátrica. O que me pareceu estranho foi haver um hiato tão grande na biografia dela.
- Que hiato?
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- Há muita coisa sobre os sarilhos em que se meteu quando andava na escola. Problemas com os professores e com os colegas, e por aí fora.
- Lembro-me disso. Há até uma professora que disse que tinha medo da Lisbeth quando ela tinha onze anos.
- Birgitta Miââs.
- Isso mesmo.
- E há pormenores a respeito da Lisbeth na clínica psiquiátrica. E montes de material sobre ela com as famílias de acolhimento a partir dos quinze, e sobre aquele caso em Gamla Stan.
- Qual é a tua ideia?
"- Ela foi levada para a clínica pouco antes de fazer treze anos.
- Sim?
- E não há uma palavra a respeito do motivo por que foi internada. Obviamente, se uma criança de doze anos é internada numa clínica psiquiátrica, é porque qualquer coisa aconteceu. E no caso da Lisbeth, o mais certo é ter sido uma crise das tais, uma coisa em grande, que devia constar da biografia. Mas não há lá nada.
Mikael franziu o sobrolho.
- Malin, soube, através de uma fonte em que confio, que há um relatório da polícia sobre a Lisbeth datado de Fevereiro de 1991, quando ela tinha doze anos. Não aparece no processo. Estava a preparar-me para pedir-te que investigasses.
- Se o relatório existe, devia fazer parte do processo dela. Retirá-lo seria infringir a lei. Verificaste?
- Não, mas a minha fonte garante-me que não está lá. Malin ficou calada por um instante.
- E essa tua fonte é fiável?
- Muito.
Malin e Mikael chegaram à mesma conclusão ao mesmo tempo.
- A Sapo - disse Malin.
- O Bjõrck - disse Mikael.
CAPÍTULO 24
TERÇA-FEIRA, 5 DE ABRIL
Per-Ake Sandstrõm, jornalista freelancer de 40 e muitos anos, chegou a casa pouco depois da meia-noite, ligeiramente embriagado e com um nó de pânico a apertar-lhe o estômago. Passara o dia desesperadamente inactivo. Estava, e essa era a verdade, pura e simplesmente aterrorizado.
Tinham passado quase duas semanas desde que Svensson fora assassinado. No dia seguinte, vira os noticiários da televisão num estado de estupefacção. E então, sentira uma grande onda de alívio e de esperança: Dag Svensson estava morto, o que talvez significasse que o livro em que o estupor se preparava para denunciá-lo já era.
Odiava Svensson. Tinha pedido e suplicado, tinha rastejado diante daquele sacana.
No primeiro dia, estivera demasiado eufórico para pensar claramente. Só no seguinte começara a considerar a situação. A polícia ia encontrar o texto de Svensson e começar a investigar a sua pequena escapadela. Jesus... podia até ser suspeito de um crime!
O medo acalmara um pouco quando o rosto de Lisbeth Salander aparecera pespegado nas primeiras páginas dos jornais de todo o país. Mas quem raio é esta Lisbeth Salander? Nunca ouvira falar dela. Mas a polícia tinha, aparentemente, boas razões para considerá-la suspeita e, segundo as declarações do procurador, era provável que os assassínios não tardassem em ser esclarecidos. Talvez, ao fim e ao cabo, ninguém se interessasse por ele. Mas Sandstrõm sabia, por experiência própria, que os jornalistas guardavam sempre documentação e notas. A Millennium. Uma revista de merda com uma reputação totalmente fabricada.
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Eram como todos os outros, a meter o nariz em tudo, a fazer barulho, a lixar a vida às pessoas.
Não tinha meio de saber até onde a pesquisa chegara. Não tinha a quem perguntar. Sentia-se como se estivesse num vazio.
Durante uma semana, oscilara entre o pânico e a embriaguez. Aparentemente, a polícia não andava à procura dele. Talvez - se tivesse sorte - se safasse daquela. Mas se não tivesse sorte, a sua vida profissional estaria acabada.
Enfiou a chave na fechadura e rodou-a. Quando abriu a porta, ouviu subitamente um ligeiro restolhar, na escada, e, antes que pudesse voltar-se, sentiu uma dor paralisante na base da espinha.
Gunnar Bjõrck ainda não se tinha deitado quando o telefone tocou. Estava de pijama e roupão, mas continuava sentado à mesa da cozinha, de luz apagada, a remoer o seu dilema. Ao longo da sua carreira, nunca se vira num aperto como aquele. Nem parecido.
Não tivera a intenção de atender. Já passava da meia-noite. Mas o telefone continuara a tocar. Ao décimo toque, não conseguiu resistir mais.
- Fala Mikael Blomkvist - disse uma voz do outro lado. Merda.
-Já passa da meia-noite. Estava na cama.
- Achei que estaria interessado em ouvir o que tenho a dizer.
- O que é que quer?
- Amanhã, às dez, vou dar uma conferência de imprensa sobre os assassínios de Dag Svensson e Mia Johansson.
Bjõrck engoliu em seco.
- Vou revelar todos os pormenores do livro sobre o tráfico de mulheres e exploração sexual que o Svensson tinha praticamente preparado para publicação. Você é o único cliente que vou nomear.
- Tinha prometido dar-me algum tempo... - Bjõrck percebeu o medo na sua própria voz e calou-se.
-Já passaram vários dias. Disse que me telefonava depois do fim-de-semana. Amanhã é terça-feira. Ou me diz agora o que quero saber, ou eu falo com a comunicação social.
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- Se der essa conferência de imprensa, nunca descobrirá nada a respeito do Zala..
- É possível. Mas também deixará de ser um problema meu, e quem vai querer falar consigo é a polícia. E o resto dos media, claro.
Não havia espaço para negociação.
Bjõrck aceitou encontrar-se com Blomkvist, mas conseguiu adiar o encontro para quarta-feira. Uma curta trégua. Mas estava pronto. Era nadar ou afogar-se.
Acordou no chão da sala de estar. Não sabia quanto tempo tinha estado inconsciente. Doía-lhe o corpo todo e não conseguia mexer-se. Demorou algum tempo a perceber que tinha as mãos amarradas atrás das costas com fita isoladora e os pés atados. Um pedaço de fita tapava-lhe a boca. As luzes da sala estavam acesas e as persianas baixadas. Não conseguia compreender o que tinha acontecido.
Ouviu barulhos que pareciam vir do escritório. Ficou imóvel, à escuta. Uma gaveta a abrir-se e a fechar-se. Um ladrão? Papéis a serem remexidos. Alguém revistava a secretária.
Pareceu-lhe que tinha passado uma eternidade, até que ouviu o som de passos nas suas costas. Tentou voltar a cabeça, mas não viu ninguém. Disse a si mesmo que tinha de manter a calma.
De repente, duas mãos passaram-lhe por cima da cabeça um laço de corda grossa. Sentiu o nó apertar-lhe o pescoço. O medo quase o fez borrar-se. Olhou para cima e viu que a corda subia até um sistema de roldanas suspenso do gancho de que habitualmente pendia o candeeiro da sala. Então, a pessoa que o tinha atacado entrou no seu campo de visão. A primeira coisa que viu foi um par de botas pretas.
O choque não poderia ter sido maior quando continuou a erguer o olhar. Ao princípio, não reconheceu a psicopata cuja fotografia aparecia, desde a Páscoa, nas primeiras páginas de todos os jornais. Tinha cabelos curtos, pretos, e não era muito parecida com a foto dos jornais. Vestia-se toda de negro -jeans, casaco de algodão aberto, t-shirt, luvas.
O que mais o aterrorizou, no entanto, foi a cara. Estava pintada. Usava bâton preto, eyeliner e uma sombra verde-escuro brilhante.
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O resto do rosto era branco. Tinha pintado uma risca vermelha desde a têmpora esquerda até ao lado direito do queixo, atravessando o nariz.
Era uma máscara grotesca. Parecia completamente louca.
O cérebro de Sandstrõm resistia a aceitar a situação. Tudo aquilo tinha um ar de irrealidade.
Lisbeth pegou na ponta da corda e puxou-a. Sandstrõm sentiu o nó apertar-lhe ainda mais o pescoço e, durante alguns segundos, não conseguiu respirar. Então, levantou-se, parou de puxar e enrolou a corda à volta do tubo do irradiador. Amarrou-a com um nó de barqueiro.
Em seguida, voltou a desaparecer. Esteve ausente mais de um quarto de hora. Quando regressou, puxou uma cadeira e sentou-se à frente dele. Sandstrõm tentou evitar olhar para a cara pintada, mas era impossível. Lisbeth pousou uma pistola em cima da mesa da sala. A pistola dele. Tinha-a encontrado dentro de uma caixa de sapatos, no guarda-fatos. Um Colt 1911 Government. Uma arma ilegal que ele tinha há vários anos. Comprara-a a um amigo, mas nunca chegara sequer a dispará-la. Viu-a extrair o carregador, introduzir as munições, voltar a colocá-lo no encaixe da coronha e puxar a culatra. Sentiu-se à beira do desmaio. Forçou-se a enfrentar-lhe o olhar.
- Nunca compreendi a necessidade que os homens têm de documentar as suas perversões - disse ela.
Tinha uma voz suave, mas fria como o gelo. Uma voz baixa, mas perfeitamente nítida. Mostrou-lhe uma fotografia. Devia tê-la imprimido a partir do disco rígido do computador dele, pelo amor de Deus!
- Assume que se trata de Ines Hammujárvi, estónia, dezassete anos, de Riepalu, perto de Narva. Divertiste-te com ela?
A pergunta era retórica. Sandstrõm não podia responder. Tinha a boca tapada com fita isoladora e o cérebro, paralisado pelo terror, estava incapaz de formular uma resposta. A fotografia mostrava... Santo Deus, por que raio é que guardei aquelas fotos?
- Sabes quem eu sou? Acena com a cabeça. Sandstrõm acenou.
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- És um porco sádico, um pervertido e um violador. Ele não fez qualquer movimento.
- Acena.
Ele acenou. De repente, tinha lágrimas nos olhos.
- Vamos clarificar desde já as regras - continuou Lisbeth. - No que me diz respeito, devias morrer já. Que sobrevivas ou não a esta noite é-me completamente indiferente. Compreendes?
- Provavelmente, não escapou à tua atenção que eu sou uma louca que gosta de matar pessoas. Especialmente homens.
Apontou para o monte de jornais recentes que ele tinha em cima da mesa de café.
- Vou tirar-te a fita da boca. Se gritares ou levantares a voz, chego-te com esta coisa. - Mostrou-lhe o taser. - Este brinquedo dá uma descarga de setenta e cinco mil volts. Cerca de sessenta mil da próxima vez, tendo em conta que já o usei e não o pus a recarregar. Compreendes?
Ele pareceu hesitar.
- Significa isto que os teus músculos deixam de funcionar. Foi o que sentiste à porta, quando chegaste a cambalear. - Sorriu-lhe. -O que, por sua vez, significa que as tuas pernas deixam de poder aguentar-te e tu acabas por enforcar-te a ti mesmo. E tudo o que eu vou ter de fazer é levantar-me desta cadeira e sair do apartamento.
Sandstrõm voltou a assentir. Santo Deus, é uma puta de uma assassina louca. Não pôde evitá-lo: as lágrimas escorreram-lhe, incontroláveis, pela cara. Fungou.
Ela levantou-se da cadeira e arrancou o pedaço de fita que lhe tapava a boca. O rosto grotesco estava a cinco centímetros do dele.
- Não digas uma palavra - ordenou. - Se falares sem autorização, apanhas um choque.
Esperou até que ele parasse de fungar e lhe enfrentasse o olhar.
- Tens uma oportunidade de sobreviver a esta noite - continuou ela. - Uma oportunidade, não duas. Vou-te fazer uma série de <perguntas. Se responderes, deixo-te viver. Acena com a cabeça se compreendeste.
Ele acenou.
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- Se recusares responder a qualquer pergunta, morres. Compreendeste?
Ele acenou.
- Se me mentires ou me deres uma resposta evasiva, morres. Ele acenou.
- Não vou regatear contigo. Não vais ter uma segunda oportunidade. Ou respondes imediatamente às minhas perguntas, ou morres. Se responderes satisfatoriamente, viverás. É tão simples como isso.
Ele acenou. Acreditava nela. Não podia fazer outra coisa.
- Por favor - disse. - Não quero morrer...
- Se morres ou vives depende de ti. Mas já violaste a minha primeira regra: não falas sem autorização.
Sandstrõm cerrou os lábios com força. É louca, completamente louca.
Mikael Blomkvist estava demasiado frustrado e febril para saber o que fazer. Finalmente, vestiu o casaco, pôs um cachecol ao pescoço e caminhou distraidamente até à estação de Sõdra, passando pelo Boffils Bâge, antes de dar por si nos escritórios da Millennium. O silêncio era absoluto. Não acendeu as luzes, mas ligou a máquina de café e foi sentar-se à janela que dava para a Gõtgatan enquanto esperava. Tentou pôr em ordem os pensamentos. A investigação do crime era como um mosaico partido no qual conseguia distinguir algumas peças, enquanto outras faltavam. E faltavam demasiadas peças. Havia, algures, um padrão. Sentia-o, mas não conseguia vê-lo.
Foi assaltado pela dúvida. Ela não é uma assassina louca, recordou a si mesmo. Tinha-lhe enviado uma mensagem a dizer que não matara Dag e Mia. E ele acreditava. Mas sentia que, mesmo assim, estava, de alguma maneira que lhe escapava, intimamente ligada àquelas mortes.
Lentamente, começou a reavaliar a teoria a que se agarrara a partir do momento em que entrara no apartamento de Enskede. Assumira, mais ou menos instintivamente, que a investigação de Dag Svensson sobre o tráfico de mulheres era o único motivo plausível para os assassínios. Agora, começava a aceitar a afirmação de Bublanski de que aquilo não explicava o assassínio de Bjurman.
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Lisbeth dissera-lhe, na sua mensagem, que esquecesse os clientes e se concentrasse em Zala. Porquê? Estafermo de rapariga. Porque não lhe dizia qualquer coisa que fizesse sentido?
Encheu de café uma caneca da Jovem Esquerda, sentou-se num dos sofás, pôs os pés em cima da mesa baixa e acendeu um proibido cigarro.
Bjõrck fazia parte da lista de clientes. Bjurman fora o tutor de Lisbeth. Não podia ser coincidência o facto de tanto Bjurman como Bjõrck trabalharem para a Sapo. Um relatório policial a respeito de Lisbeth tinha desaparecido.
Poderia haver mais do que um motivo?
Poderia Lisbeth Salander ser o motivo?
Ficou ali sentado, com uma ideia que não conseguia pôr em palavras. Havia qualquer coisa que ainda não fora explorada, mas não era capaz de encontrar uma resposta, o que era exactamente o que queria dizer com a ideia de a própria Lisbeth poder ser o motivo. Teve uma fugaz sensação de descoberta.
Então apercebeu-se de que estava demasiado cansado e bebeu o café, lavou a máquina e foi para casa. Deitado no escuro, voltou a pegar no fio da meada e, durante duas horas, tentou identificar o que queria articular.
Lisbeth Salander fumava um cigarro, confortavelmente recostada na cadeira. Cruzou a perna direita sobre a esquerda e cravou os olhos nele. Sandstrõm nunca tinha visto um olhar tão intenso. Quando falou, a voz dela continuou a ser suave.
- Em Janeiro de 2003, visitaste pela primeira vez Ines Hammujárvi, que acabava de fazer dezasseis anos, no apartamento dela, em Norsborg. Porque foi que a visitaste?
Sandstrõm não sabia o que responder. Ele próprio não percebia como tinha aquilo começado nem por que razão... Ela ergueu o taser.
- Eu... não sei. Desejava-a. Era tão bonita.
- Bonita?
- Sim. Era bonita.
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- E tu achaste que tinhas o direito de amarrá-la a uma cama e fodê-la.
- Ela consentiu. Juro. Consentiu.
- Pagaste-lhe? Sandstrõm mordeu a língua.
- Não.
- Porque não? Era uma puta. As putas são pagas.
- Foi... foi uma prenda.
- Uma prenda? - A voz tinha adquirido um tom perigoso.
- Foi em troca de um favor que eu tinha feito a uma pessoa.
- Per-Áke - disse Lisbeth, como se estivesse a falar com uma criança -, não estás a tentar fugir à minha pergunta, pois não?
-Juro. Responderei a tudo o que perguntar. Não mentirei.
- Óptimo. Que favor foi esse, e a quem o fizeste?
- Tinha trazido do estrangeiro uns esteróides anabolizantes. Tinha ido numa viagem de serviço à Estónia, estava com umas pessoas que conhecia, e trouxe os comprimidos no meu carro. O tipo que foi comigo chamava-se Harry Ranta. Mas não voltou comigo no carro.
- Como foi que conheceste esse Harry Ranta?
- Há anos que o conheço. Desde os anos oitenta. É só um amigo. Costumávamos beber uns copos juntos.
- E foi o Harry Ranta que te ofereceu a Ines Hammujárvi como... prenda?
- Sim... não, desculpe, foi mais tarde, aqui em Estocolmo. Foi o irmão dele, o Atho Ranta.
- Estás então a dizer que o Atho Ranta te bateu à porta e te perguntou se querias ir a Norsborg foder a Ines?
- Não... foi... foi numa festa, raios, não consigo lembrar-me de onde estávamos...
De súbito, começou a tremer incontrolavelmente, e sentiu que as pernas cediam. Precisava de apoiar-se a qualquer coisa para se manter de pé.
- Responde calmamente - disse Lisbeth. - Não vou enforcar-te só porque precisas de tempo para arrumar as ideias. Mas no momento
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em que me der a impressão de que estás a tentar fugir a uma pergunta... puff!
Ergueu as sobrancelhas e, para enorme espanto dele, ficou com um ar angélico. Tão angélico quanto era possível, com aquela pavorosa máscara.
Sandstrõm fez um esforço para engolir. Tinha a boca seca como um osso, e sentia a corda apertar-se-lhe à volta do pescoço.
- Onde foi a festa não tem importância. Como foi que o Atho Ranta te ofereceu a Ines?
- Estávamos a conversar a respeito... nós... eu disse-lhe que queria... - Apercebeu-se de que estava a chorar.
- Disseste-lhe que querias uma das putas dele. Sandstrõm assentiu.
- Eu estava bêbedo... Ele disse que ela precisava... precisava...
- De que é que ela precisava?
- O Atho disse que ela precisava de ser castigada. Era rebelde. Não fazia o que ele queria.
- E que queria ele que ela fizesse?
- Que se prostituísse por ele. Ofereceu-ma... Eu estava bêbedo, não sabia o que fazia. Não queria... Perdão.
Fungou.
- Não é a mim que tens de pedir perdão. Portanto, tu ofereceste-te para ajudar o Atho a castigar a Ines e foram os dois até casa dela.
- Não foi assim.
- Conta-me como foi. Porque é que foste com o Atho a casa da Ines?
Tinha o taser equilibrado no joelho. Sandstrõm estava outra vez a tremer.
- Fui porque queria tê-la. Ela estava lá e estava disponível. A Ines vivia com uma namorada do Harry Ranta. Acho que nunca soube o nome dela. O Atho amarrou a Ines à cama e eu... fiz amor com ela, com o Atho a ver.
- Não, não fizeste amor com ela. Violaste-a. Ele permaneceu calado.
- Ou não?
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Sandstrõm assentiu.
- E que disse a Ines?
- Não disse nada.
- Não protestou? Ele abanou a cabeça.
- Quer então dizer que ela achou porreiro um filho da puta de meia-idade amarrá-la à cama e fodê-la.
- Estava bêbeda. Não se ralou.
Lisbeth deixou escapar um suspiro de resignação.
- Okay. E depois continuaste a visitar a Ines.
- Ela era tão... queria-me.
- Treta.
Ele olhou para ela, com uma expressão de desespero, e acabou por inclinar a cabeça.
- Violei-a. O Harry e o Atho autorizaram. Queriam que ela... que ela aprendesse.
- Pagaste-lhes? Sandstrõm assentiu.
- Quanto?
- O Atho fez-me um bom preço. Eu tinha-o ajudado com o contrabando.
- Quanto?
- Umas notas de mil, ao todo.
- Numa das tuas fotos, a Ines está aqui, neste apartamento.
- O Harry trouxe-a. Voltou a fungar.
- Portanto, a troco de umas notas de mil, tinhas uma rapariga com a qual podias fazer o que quisesses. Quantas vezes a violaste?
- Não sei... várias.
- Okay. Quem é o chefe do bando?
- Eles matam-me, se os denunciar.
- Cagando. Neste momento, sou um problema muito maior para ti do que os irmãos Ranta.
Mostrou-lhe o taser.
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- O Atho. É o mais velho. O Harry trata dos pormenores.
- Quantos mais há no bando?
- Só conheço o Harry e o Atho. A miúda do Atho também faz parte. E um tipo chamado... não sei. Pelle qualquer coisa. É sueco. Não sei quem ele é. É um drogado que faz uns serviços para eles.
- A miúda do Atho?
- A Silvia. é puta.
Lisbeth ficou silenciosa por instantes, a pensar. Então, ergueu os olhos.
- Quem é o Zala?
Sandstrõm empalideceu. A mesma pergunta que Svensson lhe tinha feito. Não disse nada durante muito tempo, e então percebeu que a rapariga começava a ficar irritada.
- Não sei - respondeu. - Não sei quem ele é. A expressão dela endureceu.
- Portaste-te muito bem até agora. Não desperdices a tua única oportunidade.
-Juro por Deus, palavra. Não sei quem ele é. O jornalista que matou...
Calou-se. Talvez não fosse boa ideia trazer à baila a matança de Enskede.
-Sim?
- Perguntou-me a mesma coisa. Não sei. Se soubesse, dizia-lhe. Juro. É alguém que o Atho conhece.
- Falaste com ele?
- Só por um minuto, ao telefone. Falei com alguém que disse que se chamava Zala. Ou melhor, ele falou comigo.
- Porquê?
Sandstrõm pestanejou. O suor fazia-lhe arder os olhos, e sentia o ranho a escorrer-lhe pelo queixo.
- Queriam... queriam que eu lhes fizesse outro favor.
- A história está a tornar-se irritantemente lenta - disse Lisbeth.
- Queriam que eu fizesse outra viagem a Tallinn e trouxesse um carro que já estava preparado. Anfetaminas. Eu não queria ir.
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- Porque não?
, - Era demasiado perigoso. Eles eram uns autênticos gangsters. E.-eu queria sair. Tinha o meu trabalho.
- Achavas então que podias ser gangster só nas horas vagas.
- Na verdade, não é assim que eu sou.
- Oh, pois. - A voz dela soou tão carregada de desprezo que Sandstrõm fechou os olhos. - Continua. Como é que o Zala entra na história?
- Foi um pesadelo.
Estava outra vez a chorar. Mordeu o lábio com tanta força que fez sangue.
- Estás a tornar-te chato - disse Lisbeth.
- O Atho não me largava. O Harry avisou-me de que o Atho estava a ficar furioso comigo e não sabia em que é que aquilo ia dar. Por fim, concordei em falar com o Atho. Foi em Agosto do ano passado. Fomos a Norsborg, eu e o Harry...
Continuava a mexer a boca, mas não saíam palavras. Lisbeth semicerrou os olhos. Ele reencontrou a voz.
- O Atho estava como louco. É muito violento. Não faz ideia de como consegue ser violento. Disse-me que era demasiado tarde para sair e que se não fizesse o que ele queria não me deixaria viver. Ia fazer-me uma demonstração.
- Ah, sim?
- Obrigaram-me a ir com eles. Fomos até Sõdertàlje, de carro. O Atho disse-me para pôr um capuz. Era um saco, que ele me amarrou à volta do pescoço. Eu estava morto de medo.
- Estavas então num carro, com um saco enfiado na cabeça. E depois, que aconteceu?
- O carro parou. Eu não sabia onde estava.
- Onde foi que te enfiaram o saco na cabeça?
- Um pouco antes de Sõdertàlje.
- E quanto tempo demoraram a chegar ao sítio?
- Talvez... meia hora. Fizeram-me sair do carro. Era uma espécie de armazém.
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- E depois?
- O Harry e o Atho levaram-me para dentro. As luzes estavam acesas. A primeira coisa que vi foi um tipo caído no chão de cimento. Estava amarrado. Tinham-no espancado horrivelmente.
- Quem era?
- Chamava-se Kenneth Gustafsson. Mas só o soube mais tarde.
- Que aconteceu?
- Estava lá um homem. O maior homem que vi em toda a minha vida. Enorme. Todo ele era músculos.
- Descreve-o.
- Loiro. Parecia o Diabo em pessoa.
- Nome?
- Nunca disse como se chamava.
- Okay. Um tipo grande e loiro. Quem mais?
- Havia um outro tipo. Parecia muito nervoso. Usava rabo-de-cavalo.
Magge Lundin.
- Mais alguém?
- Eu, o Harry e o Atho.
- Continua.
- O tipo grande... puxou uma cadeira para mim. Não disse uma palavra. Só o Atho é que falou. Disse que o tipo estendido no chão era um bufo. Queria que eu soubesse o que acontecia a quem arranjava problemas.
As palavras saíam-lhe agora a jorros, como se não conseguisse contê-las.
- O tipo grande levantou o desgraçado que estava caído no chão e sentou-o noutra cadeira, à minha frente. Estávamos a um metro de distância. Olhei-o nos olhos. Então o gigante foi pôr-se de pé atrás dele, pôs-lhe as mãos à volta do pescoço e... e...
- Estrangulou-o?
- Sim... não... apertou-o até o matar. Acho que lhe partiu o pescoço com as mãos. Ouvi um estalo, e o tipo morreu mesmo ali à minha frente.
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Sandstrõm balouçava para trás e para a frente. Escorriam-lhe lágrimas pela cara. Nunca tinha contado aquilo a ninguém. Lisbeth deu-lhe um minuto para se recompor.
- E depois?
- O outro homem... o do rabo-de-cavalo... pegou numa motos-serra e cortou a cabeça e as mãos do morto. Depois disso, o gigante aproximou-se de mim. Pôs-me as mãos à volta do pescoço. Eu puxei-as com toda a minha força, mas não consegui afastá-las um milímetro. Mas ele não apertou... limitou-se a deixar as mãos ali durante muito tempo. Entretanto, o Atho pegou no telemóvel e fez uma chamada em russo. Então disse que o Zala queria falar comigo e encostou-me o telemóvel ao ouvido.
- O que foi que o Zala disse?
- Só perguntou se eu ainda queria desistir. Eu prometi ir a Tallinn buscar o carro com as anfetaminas. Que outra coisa podia eu fazer?
Lisbeth ficou imóvel e silenciosa durante muito tempo. Olhou pensativamente para o jornalista que fungava de corda ao pescoço.
- Descreve a voz dele.
- Era... normal.
- Grave? Alta?
- Grave. Vulgar. Rouca.
- Que língua falou?
- Sueco.
- Sotaque?
- Sim... talvez um pouco. Mas falava bem sueco. Ele e o Atho falavam russo.
- Sabes russo?
- Um pouco. Não sou fluente. Só um pouco'.
- O que foi que o Atho lhe disse?
- Que a demonstração tinha terminado.
- Falaste disto a alguém?
- Não.
- Ao Svensson?
- Não... não.
- O Svensson visitou-te.
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Sandstrõm assentiu.
- Não ouvi.
- Sim.
- Porquê?
- Sabia que eu tinha... as raparigas.
- O que foi que ele te perguntou?
- Queria saber... a respeito do Zala. Perguntou pelo Zala. Na segunda visita.
- Na segunda visita?
- Contactou-me duas semanas antes de morrer. Foi a primeira visita. Depois voltou a aparecer dois dias antes de você... de...
- Antes de eu o matar?
- Sim.
- E foi nessa altura que perguntou pelo Zala?
- Sim.
- E tu, que lhe disseste?
- Nada. Não tinha nada para lhe dizer. Admiti que tinha falado com ele ao telefone. Mais nada. Não lhe falei do monstro loiro nem do que tinham feito ao Gustafsson.
- Okay. Diz-me exactamente o que foi que o Svensson te perguntou.
- Só... só queria que eu lhe dissesse o que sabia a respeito do Zala. Mais nada.
- E tu não lhe disseste nada?
- Nada de útil. Não sei nada.
Lisbeth mordeu pensativamente o lábio inferior. Há qualquer coisa que ele não está a contar.
- A quem falaste da visita do Svensson? Sandstrõm pareceu estremecer. Lisbeth agitou o taser.
- Telefonei ao Harry.
- Quando?
Ele engoliu em seco.
- Na noite em que o Svensson me visitou pela primeira vez.
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Lisbeth continuou a interrogá-lo durante mais meia hora, mas Sandstrõm limitava-se a repetir o que já tinha dito, acrescentando um pormenor aqui e ali. Por fim, ela pôs-se de pé e pousou a mão na corda.
- Deves ser um dos pervertidos mais miseráveis que alguma vez conheci - disse. - O que fizeste à Ines merece a pena de morte. Mas eu disse-te que viverias se respondesses às minhas perguntas. E cumpro sempre as minhas promessas.
Soltou o nó. Sandstrõm caiu enrodilhado no chão, a chorar convulsivamente. Viu-a pôr um banco em cima da mesa de café, trepar para ele e tirar as roldanas do gancho do tecto. Enrolou a corda e guardou tudo na mochila. Feito isto, foi para a casa de banho. Sandstrõm ouviu a água correr. Quando voltou, tinha limpado a maquilhagem.
A cara dela parecia esfregada e nua.
- Podes soltar-te sozinho - disse, deixando cair uma faca de cozinha no chão, ao pé dele.
Sandstrõm ouviu-a demorar-se no vestíbulo. Pelos ruídos que fazia, parecia estar a mudar de roupa. Então, a porta da frente fechou-se. Sandstrõm demorou meia hora a libertar-se da fita isoladora. Começou por afundar-se no sofá, mas, passado algum tempo, pôs-se de pé e passou em revista o apartamento. A cabra tinha levado o Colt 1911 Governement.
Lisbeth chegou a casa às quatro e cinquenta e cinco. Tirou a peruca e as roupas de Irene Nesser e foi direita para a cama, sem ligar o computador para ver se Mikael conseguira resolver o mistério do relatório desaparecido.
Na terça-feira, acordou às nove e passou o dia inteiro a procurar informação sobre os irmãos Ranta.
Atho Ranta tinha um longo cadastro nos registos da polícia. Era cidadão finlandês, de uma família originária da Estónia. Chegara à Suécia em 1971. De 1972 a 1978, trabalhara como carpinteiro numa empresa de construção civil. Fora despedido, por ter sido apanhado a roubar num estaleiro, e condenado a sete meses de prisão. Entre 1980 e 1982, trabalhara para uma construtora muito mais pequena. Tinham
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corrido com ele depois de ter aparecido várias vezes embriagado no local de trabalho. Durante o resto da década de oitenta ganhara a vida como porteiro de discoteca, técnico numa empresa que fazia a manutenção de caldeiras, lavador de pratos e contínuo numa escola. Fora despedido de todos estes empregos por embriaguez e comportamento desordeiro. O emprego como contínuo durara apenas meia dúzia de meses: uma professora apresentara queixa por assédio sexual e ameaças.
Em 1987, fora multado e condenado a um mês de prisão por roubo de automóvel, conduzir sem carta e receptação de artigos roubados. No ano seguinte, fora multado por posse de uma arma ilegal. Em 1990, fora condenado por um crime sexual não especificado. Em 1991, fora acusado de intimidação, mas absolvido. Nesse mesmo ano, fora multado e posto em liberdade condicional por contrabando de bebidas alcoólicas. Cumprira três meses, em 1992, por espancar a namorada e ameaçar a irmã da agredida. Conseguira manter-se longe de sarilhos até 1997, ano em que fora condenado por receptação de artigos roubados e assalto. Dessa vez, passara dez meses na prisão.
Harry, o irmão mais novo, juntara-se-lhe na Suécia em 1982, e trabalhara durante muito tempo num armazém. Do seu cadastro criminal constavam três condenações: em 1990, por fraude de seguros; em 1992, com uma sentença de dois anos, por ofensas corporais agravadas, receptação de artigos roubados e violação. Fora deportado para a Finlândia, mas, em 1996, estava de novo na Suécia, onde fora uma vez mais condenado a dez meses de prisão por ofensas corporais agravadas e violação. Recorrera da sentença e o tribunal de segunda instância dera-lhe razão, absolvendo-o da acusação de violação. Mantivera, no entanto, a acusação de ofensas corporais, e Harry cumprira seis meses de prisão. Em 2000, fora novamente acusado, desta vez de intimidação e violação. Mais tarde, as queixas tinham sido retiradas e o caso arquivado.
Lisbeth registou os últimos endereços conhecidos dos dois irmãos: o de Atho em Norsborg, o de Harry em Alby.
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Paolo Roberto ouviu, pela décima quinta vez, a gravação do voice mail de Miriam Wu. Já passara várias vezes pela morada de Lundagatan naquele dia, mas ninguém atendera quando tocara à campainha.
Passava das oito da noite de terça-feira. Alguma vez o raio da rapariga havia de ter de ir a casa, que diabo. Compreendia que Wu quisesse manter-se longe das vistas durante algum tempo, mas a verdade é que o pior da fúria dos media já tinha passado. O melhor seria instalar-se à porta do prédio e esperar que ela aparecesse, quanto mais não fosse para mudar de roupa. Encheu um termo com café e preparou umas sanduíches. Antes de sair de casa benzeu-se diante do crucifixo e da imagem de Nossa Senhora.
Estacionou a cerca de 30 metros da porta do prédio na Lunda-gatan e puxou o banco para trás, para ter mais espaço para as pernas. Pôs o rádio a tocar baixo. Tinha colado no tablier, com fita adesiva, uma fotografia de Wu que cortara de um jornal. Era uma brasa, pensou. Observou pacientemente as pessoas que passavam. Nenhuma delas era Miriam Wu.
De dez em dez minutos ligava para o número dela. Desistiu de ligar por volta das nove, quando o telemóvel lhe disse que estava a ficar sem bateria.
Per-Ake Sandstrõm passou o dia de terça-feira num estado próximo da apatia. Tinha dormido no sofá da sala, incapaz de ir para a cama e incapaz de conter os ataques de choro que de vez em quando lhe sacudiam o corpo. Logo de manhã fora à Systembolaget, em Solna, e comprara uma garrafa de meio litro de aquavit Skâne. Voltara para o sofá e bebera quase metade.
Só ao fim da tarde chegara à conclusão da sua situação e começara a ponderar o que podia fazer. Quem lhe dera nunca ter ouvido falar dos irmãos Ranta nem das suas putas. Não podia acreditar como fora tão estúpido até ao ponto de deixar-se levar até ao apartamento de Norsborg onde Atho amarrara a muito drogada Ines Hammujãrvi a uma cama, de pernas abertas, e depois o desafiara a ver qual dos
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dois tinha uma verga maior. Tinham alternado, e ele ganhara o concurso do maior número de proezas sexuais daquela noite.
A rapariga acordara uma vez e tentara resistir. Atho passara meia hora a dar-lhe estaladas e a enchê-la de bebida, após o que ela acalmara e ele pudera convidar o amigo a continuar.
Puta de merda.
Como pudera ser tão estúpido?
Claro que não podia contar com qualquer espécie de misericórdia da parte da Millennium. Ao fim e ao cabo, ganhavam a vida a explorar aquele tipo de escândalo.
E tinha um medo de morte daquela louca, a Salander.
Para não falar do monstro loiro.
Não podia, obviamente, ir à polícia.
Não ia conseguir resolver aquilo sozinho, e o problema não ia desaparecer por obra e graça do Espírito Santo. Havia apenas uma ténue possibilidade, um lugar onde poderia encontrar um pouco de simpatia e talvez uma espécie de solução. Estava a agarrar-se a ninharias, mas era a sua única opção.
Encheu-se de coragem e ligou para o telemóvel de Harry Ranta. Ninguém atendeu. Continuou a tentar até às dez da noite. Depois de ter pensado longamente no assunto (e de se ter fortificado com o resto da aquavit), ligou para Atho Ranta Quem atendeu foi a namorada de Atho, Silvia, que lhe disse que os irmãos Ranta estavam de férias em Tallinn. Não, não sabia como contactá-los. Não, não fazia ideia de quando regressariam. Iam demorar-se algum tempo na Estónia. O facto parecia deixá-la feliz.
Sandstrõm não saberia dizer se tinha ficado deprimido ou aliviado. Significava que não teria de explicar a Atho o que se passara. Mas a mensagem subjacente, de que os irmãos Ranta tinham decidido manter-se retirados em Tallinn pelo futuro previsível, não contribuiu em nada para acalmá-lo.
CAPÍTULO 25
TERÇA-FEIRA, 5 DE ABRIL - QUARTA-FEIRA, 6 DE ABRIL
Paolo Roberto não tinha adormecido, mas estava tão absorto nos seus pensamentos que demorou um momento a reparar na mulher que, por volta das 11, descia a rua vinda dos lados da igreja de Hõ-galid. Viu-a pelo retrovisor. Foi só quando ela passou debaixo de um candeeiro, a 70 metros de distância, que voltou a cabeça e reconheceu de imediato Miriam Wu.
Endireitou-se no assento. O seu primeiro impulso fora sair do carro, mas receou assustá-la. Era preferível esperar que chegasse à porta.
No preciso instante em que tomara esta decisão, uma carrinha escura encostou ao passeio, junto de Wu. Paolo Roberto viu, horrorizado, as portas laterais de correr abrirem-se e um homem - um autêntico colosso, incrivelmente grande - saltar para o chão e agarrá-la. A mulher foi apanhada completamente de surpresa. Tentou libertar-se recuando, mas o homem prendeu-lhe os pulsos sem dificuldade.
Paolo Roberto ficou de queixo caído quando viu a perna direita de Miriam subir num rápido arco e acertar em cheio na cabeça do homem. O golpe pareceu não produzir qualquer efeito. Em vez disso, o gigante levantou a mão e acertou-lhe em cheio na cabeça. Paolo Roberto ouviu a pancada, do sítio onde estava. Miriam caiu como se tivesse sido fulminada por um raio. O homem inclinou-se, agarrou-a e atirou-a para dentro da caixa da carrinha. Foi então que Paolo Roberto se recompôs e regressou à realidade. Saltou do carro e correu para a carrinha.
Ao fim de meia dúzia de passos compreendeu a inutilidade do gesto. A carrinha para onde Miriam Wu fora atirada como um saco
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de batatas fizera inversão de marcha e já se afastava pela rua abaixo, desaparecendo na direcção da igreja de Hõgalid. Paolo deu meia-volta e voltou a correr para o carro. Também ele fez inversão de marcha. A carrinha tinha desaparecido quando chegou à esquina. Travou e olhou para a Hõgalidsgatan, e então resolveu arriscar e virou à esquerda em direcção à Hornsgatan.
Quando lá chegou, apanhou o sinal vermelho mas como não havia trânsito avançou até ao cruzamento e olhou em redor. As únicas luzes traseiras que viu estavam a virar em direcção à Liljeholmsbron, na Lângholmsgatan. Não conseguiu perceber se era a carrinha, mas era o único veículo à vista. Acelerou, mas foi detido pelo sinal vermelho na Lângholmsgatan e teve de deixar passar o tráfego vindo de Kungsholmen. Assim que pôde, acelerou a fundo, ignorando mais um sinal vermelho.
Atravessou a Liljeholsbron em alta velocidade, e acelerou ainda mais depois de passar Liljeholmen. Continuava a não saber se as luzes traseiras que vira eram da carrinha, e não sabia se tinha virado para Grõndal ou para Ârsta. Decidiu continuar em frente, e voltou a pisar o acelerador. Ia a mais de 140, passando como uma seta pelo lento tráfego respeitador da lei, sem duvidar de que um daqueles condutores acabaria por tirar-lhe a matrícula. Quando chegou a Bredáng, voltou a avistar o veículo. Aproximou-se até ficar a 50 metros, e confirmou que era a carrinha. Abrandou para os 80 e deixou-se ficar cerca de 200 metros atrás. Só então começou a respirar normalmente.
Miriam Wu sentiu o sangue a escorrer-lhe pelo pescoço quando caiu no chão da carrinha. Estava a sangrar do nariz. A pancada fendera-lhe o lábio inferior e provavelmente partira-lhe a cana do nariz. O ataque apanhara-a completamente de surpresa e vencera a sua resistência em menos de um segundo. Sentiu a carrinha arrancar mal o seu agressor fechou as portas de correr. Por um instante, quando o condutor fez a inversão de marcha, o monstro loiro perdeu o equilíbrio.
Miriam firmou as ancas contra o chão e, quando o homem se voltou para ela, disparou um pontapé, atingindo-o na cabeça. Chegou
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até a ver que o salto da bota deixara uma marca. Fora um pontapé que devia ter doído.
O homem olhou para ela, surpreendido. E então sorriu.
Jesus, que espécie de monstro é este?
Tentou novo pontapé, mas ele agarrou-lhe o tornozelo e torceu com tanta força que ela gritou de dor e teve de rolar sobre si mesma até ficar deitada de bruços.
Então, o gigante debruçou-se e voltou a bater-lhe, com a mão aberta, na cabeça. Wu viu estrelas. Foi como ter sido atingida por uma marreta. O homem sentou-se em cima das costas dela. Tentou desalojá-lo, mas não conseguiu movê-lo um milímetro sequer. Ele puxou-lhe os braços para trás e algemou-lhe os pulsos. Estava indefesa. Subitamente, foi invadida por um medo paralisante.
Mikael Blomkvist estava a passar pelo Globe, no regresso de Tyresõ. Passara a tarde e parte da noite a visitar mais três nomes da lista de Svensson. Sem qualquer resultado. Encontrara homens em pânico, que já tinham sido confrontados por Dag e estavam à espera de que o céu lhes caísse em cima da cabeça. Todos tinham suplicado, apelado à sua compreensão. Mikael riscara-os da sua lista privada de suspeitos.
Pegou no telemóvel enquanto atravessava a Skantstullbron e ligou para Erika. Ela não atendeu. Tentou Malin. A mesma coisa. Raios. Era tarde. Queria falar com alguém sobre aquilo.
Perguntou a si mesmo se Paolo Roberto teria tido algum êxito com Miriam Wu, e marcou o número dele. O telefone tocou cinco vezes até conseguir uma resposta.
- Paolo.
- Viva. Daqui Mikael Blomkvist. Estava a pensar...
- Blomkvist! Estou scrinicht scriiitch numa carrinha com a Miriam.
- Não ouço o que diz.
- Srcriitcb scraaap scraaaap.
- A ligação está péssima. Não consigo ouvi-lo. Silêncio.
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Paolo Roberto praguejou. Ficou sem bateria quando ia a passar por Fittja. Premiu o botão ON e o visor acendeu-se. Marcou o número dos serviços de emergência, mas mal eles atenderam, o telemóvel desligou-se.
Merda.
Tinha o carregador que se podia ligar à tomada do isqueiro. Mas estava em casa, na mesa do vestíbulo. Atirou o telemóvel para o banco do passageiro e concentrou-se na tarefa de não perder de vista as luzes traseiras da carrinha. Estava a conduzir um BMW com o depósito cheio, e não havia a mínima hipótese de aquela carrinha conseguir deixá-lo para trás. Mas não queria atrair atenções, de modo que aumentou a distância para algumas centenas de metros.
Um gigante carregado de esteróides espanca uma rapariga mesmo nas minhas barbas. Deixem-me só pôr as mãos naquele cabrão.
Se Erika Berger estivesse ali, ter-lhe-ia chamado uma atitude típica de cowboy macho. Paolo Roberto chamava-lhe irritação.
Mikael desceu a Lundagatan. O apartamento de Miriam Wu estava às escuras. Tentou ligar de novo para Paolo Roberto, mas recebeu a mensagem de que o assinante que desejava contactar não estava disponível. Praguejou entre dentes, foi para casa e fez café e uma sanduíche.
A viagem estava a demorar mais do que esperara. A carrinha foi até Sõdertàlje e depois virou para oeste, na E20, no sentido de Strángnás. Logo a seguir a Nykvarn, virou à esquerda, seguindo por estradas secundárias através dos campos de Sõrmland.
Quanto mais estreitas e desertas as estradas, maior o perigo de ser visto pelos homens da carrinha. Levantou o pé e deixou-se ficar ainda mais para trás.
Não conhecia bem a geografia local, mas tanto quanto conseguia perceber, estavam a passar a oeste do lago Yngern. Perdeu a carrinha de vista e acelerou. Chegou a uma longa recta.
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A carrinha desaparecera. Havia pequenas estradas de ambos os lados. Tinha-os perdido.
Doía-lhe o pescoço e a face, mas conseguira dominar o pânico de se sentir indefesa. O gigante loiro não tinha voltado a bater-lhe, e ela conseguira sentar-se no chão da carrinha, apoiada ao assento do condutor. Tinha as mãos algemadas atrás das costas e um pedaço de fita adesiva a tapar-lhe a boca. A narina entupida de sangue coagulado tornava-lhe difícil respirar.
Olhou para ele. Até ao momento, não dissera uma palavra, e parecia ignorá-la por completo. Viu a marca que o salto da bota lhe deixara na cara. Fora um golpe que deveria ter causado sérios estragos. O monstro parecera nem sequer dar por isso.
Era maciçamente constituído, a uma escala gigantesca. Tinha músculos que falavam de longas horas passadas no ginásio. Mas não era um culturista. Aqueles músculos pareciam completamente naturais. As mãos tinham o tamanho de frigideiras.
A carrinha avançava aos solavancos por um caminho cheio de buracos. Miriam pensou que tinham seguido a E4 para sul durante muito tempo até se meterem por estradas rurais.
Sabia que, mesmo com as mãos livres, não teria a mais pequena hipótese contra aquele monstro.
Malin Eriksson ligou para Mikael pouco depois das onze, quando ele acabara de chegar a casa.
- Desculpa telefonar tão tarde. Há horas que estou a tentar contactar-te, mas tu não atendeste o telemóvel.
- Tive-o desligado todo o dia, enquanto falava com alguns dos clientes.
- Descobri uma coisa que talvez seja interessante.
- Conta.
- O Bjurman. Pediste-me que investigasse o passado dele.
- E que encontraste?
- Nasceu em 1950 e começou a estudar Direito em 1970. Licenciou-se em 76, começou a trabalhar na Klang e Reine em 78 e abriu
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o seu próprio escritório em 89. Uma das oficiosas que fez foi como estagiário num tribunal distrital, por umas semanas, em 76. Logo a seguir à licenciatura, nesse ano, trabalhou dois anos, até 78, como advogado, na sede da Polícia de Segurança Nacional.
- Interessante.
- Tentei descobrir que espécie de trabalho lá fazia. Não foi fácil. Mas uma das suas funções era tratar dos assuntos legais da Sapo. Trabalhava na imigração.
- E isso diz-nos?
- Que trabalhou lá ao mesmo tempo que o teu Bjõrck.
- O grande filho da mãe. Não me disse nada a respeito de ter sido colega do Bjurman.
Paolo Roberto tinha-se deixado ficar tanto para trás, na tentativa de chamar o menos possível as atenções, que já por várias vezes deixara de ver a carrinha, mas acabara sempre por voltar a vislumbrar-lhe as luzes traseiras até as perder de novo. Fora o que acontecera um minuto antes, o que significava que não podia estar muito longe. Fez inversão de marcha na estreita estrada e voltou para trás, conduzindo lentamente, à procura de caminhos laterais.
Cento e cinquenta metros mais à frente avistou um cone de luz amarela através de uma abertura na cortina de árvores.
Viu um trilho florestal, do lado oposto da estrada, e seguiu-o durante cerca de 20 metros. Então deu a volta, estacionando com a frente voltada para a saída, e saiu do carro, sem se dar ao trabalho de trancar as portas. Correu de volta à estrada, atravessou-a e saltou uma vala. Desejou ter-se lembrado de levar a lanterna eléctrica que tinha no porta-luvas enquanto avançava por entre o mato e os ramos baixos.
As árvores limitavam-se a uma estreita faixa ao longo da estrada. Pouco depois, chegou a uma área ensaibrada e viu um grupo de edifícios escuros e baixos. Quando se aproximava, acendeu-se uma luz por cima do portão de um deles.
Deixou-se cair de joelhos e ficou imóvel. Um segundo mais tarde, acenderam-se as luzes no interior do edifício. Parecia ser uma espécie de armazém, com cerca de 30 metros de comprimento e uma
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fila de janelas pequenas, situadas muito acima, num dos lados. O pátio estava cheio de contentores e, à sua direita, viu um monta-cargas pintado de amarelo. Ao lado do monta-cargas estava um Volvo branco. Subitamente, à luz da lâmpada acesa por cima do portão, avistou a carrinha, parada a menos de 20 metros do ponto onde se encontrava agachado.
O portão abriu-se e um homem loiro, de barriga saliente, saiu do armazém e acendeu um cigarro. Paolo viu-o recortado em contraluz, e reparou que usava um rabo-de-cavalo.
Manteve-se perfeitamente imóvel. Estava bem à vista, agachado no chão a menos de 20 metros do homem, que, sem dúvida ofuscado pelo clarão do isqueiro, não o viu. Então ouviu, e aparentemente o homem do rabo-de-cavalo também, um grito meio abafado vindo do interior da carrinha. Quando o sujeito avançou para o veículo, Paolo aproveitou para se estender de bruços no chão.
Ouviu as portas laterais abrirem-se e viu o gigante loiro saltar para o chão, inclinar-se para dentro da carrinha e tirar de lá Miriam Wu. Meteu-a debaixo de um braço, presa pela cintura, e segurou-a sem dificuldade, apesar de ela se debater furiosamente. Os dois homens trocaram algumas palavras, mas Paolo não conseguiu ouvir o que diziam. Em seguida, o Rabo-de-Cavalo abriu a porta do lado do condutor e subiu para a cabina. Ligou o motor e fez uma curva apertada no pátio. A luz dos faróis varreu o saibro a poucos metros de Paolo Roberto. A carrinha afastou-se por um caminho de acesso e, pouco depois, o ruído do motor perdia-se à distância.
Entretanto, o gigante loiro tinha levado Miriam Wu para dentro do armazém. Paolo Roberto viu, através da fila de pequenas janelas, a sombra dele deslocar-se pelo interior. Parecia encaminhar-se para o extremo mais afastado do edifício.
Pôs-se cautelosamente de pé. Tinha as roupas húmidas. Sentia uma mistura de alívio e preocupação. Alívio por ter conseguido encontrar a carrinha e ter Miriam Wu ao seu alcance, preocupação ao pensar no gigante que a tirara de dentro do veículo como se ela fosse um saco de batatas.
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O mais sensato seria, certamente, retirar-se e chamar a polícia. Mas ficara sem bateria no telemóvel, e fazia apenas uma ideia muito vaga de onde se encontrava; nunca conseguiria dar indicações a outra pessoa para chegar até ali. E não sabia o que estava a acontecer à rapariga dentro do armazém.
Contornou lentamente o edifício e descobriu que havia só uma porta. Dois minutos mais tarde, estava de volta ao sítio de onde partira e consciente de que tinha de tomar uma decisão. Não havia a mínima dúvida de que o gigante era o mau. Tinha raptado Miriam Wu. Não estava exactamente com medo: tinha uma enorme confiança em si mesmo e sabia que, numa luta, conseguia dar pelo menos tanto como levar. A questão era saber se o loiro estava armado e se havia mais alguém com ele. Hesitou. Era pouco provável que houvesse mais alguém.
O portão era suficientemente largo para permitir a passagem do monta-cargas amarelo e tinha, aberta num dos lados, uma porta de tamanho normal. Paolo Roberto aproximou-se, rodou a maçaneta e abriu-a. Entrou num vasto armazém brilhantemente iluminado, cheio de materiais de construção, caixotes partidos e lixo.
Miriam Wu sentia as lágrimas escorrerem-lhe pelas faces. Chorava mais de raiva do que de dor. Durante a viagem, o gigante tratara-a como se ela não existisse. Arrancara-lhe a fita da boca quando a carrinha parara. Pegara nela e levara-a para dentro sem o mínimo esforço, e deixara-a cair no chão de cimento ignorando totalmente os seus protestos. Quando olhara para ela, os olhos dele eram frios como o gelo.
Miriam Wu sabia que ia morrer naquele armazém.
O homem voltou-lhe as costas, dirigiu-se a uma mesa e abriu uma garrafa de água mineral, que bebeu em longos tragos. Não lhe tinha amarrado as pernas, e Miriam tentou pôr-se de pé.
Ele voltou-se e sorriu. Estava mais perto da porta do que ela. Não tinha a mais pequena hipótese de fugir. Resignada, deixou-se cair de joelhos, furiosa consigo mesma. Raios me partam se vou desistir
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sem luta. Pôs-se novamente de pé e cerrou os dentes. Vá lá, anda, merda de pote de banha.
Sentia-se desajeitada e em desequilíbrio, com as mãos presas atrás das costas, mas quando ele avançou, ela recuou, descrevendo um círculo, à espreita de uma abertura. Com um movimento rapidíssimo, disparou-lhe um pontapé às costelas, rodou sobre si mesma e voltou a atacar, tentando atingi-lo entre as pernas. Acertou-lhe na anca, recuou alguns passos e trocou de perna para o golpe seguinte. Com as mãos presas, não tinha equilíbrio suficiente para atingi-lo na cara, mas desferiu-lhe um violento pontapé no esterno.
Ele estendeu a mão, agarrou-a pelo ombro, fê-la rodar e aplicou-lhe um único murro, nem sequer com muita força, nos rins. Miriam Wu uivou de dor. Voltou a cair de joelhos. Ele bateu-lhe novamente, com a mão aberta, na cabeça, e ela caiu no chão. Então, ele deu-lhe um pontapé no flanco. A violência da pancada cortou-lhe a respiração. Ouviu uma costela a estalar.
Paolo Roberto não viu nada do que se estava a passar, mas ouviu Miriam Wu uivar de dor, um grito agudo, estridente, imediatamente cortado. Olhou na direcção do som e cerrou os dentes. Havia um espaço do outro lado de uma divisória. Atravessou silenciosamente o armazém e espreitou da ombreira da porta no preciso instante em que o homem fazia rolar o corpo de Miriam até deixá-la deitada de costas. O gigante saiu do campo de visão dele durante alguns segundos. Quando voltou, trazia uma motosserra, que pousou no chão em frente dela. Paolo Roberto despiu o casaco.
- Quero resposta para uma simples pergunta - disse o loiro. Tinha uma voz estranhamente aguda, quase como se não tivesse ainda mudado, e falava com sotaque. - Onde está a Lisbeth Salander?
- Não sei - respondeu Miriam, obviamente cheia de dores.
- Resposta errada. Tens mais uma oportunidade antes de eu pôr esta coisa a trabalhar. - Acocorou-se e deu uma palmadinha na motosserra. - Onde está escondida a Lisbeth Salander?
Miriam abanou a cabeça.
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Quando o loiro estendeu a mão para a motosserra, Paolo Roberto avançou decididamente três passos e disparou-lhe um gancho de direita aos rins.
Paolo Roberto não se tornara um pugilista de fama mundial por ser meigo no ringue. Ao longo da sua carreira profissional travara 33 combates e vencera 28. Quando batia em alguém com toda a força que tinha, esperava que o seu adversário caísse e desse sinais de dor. Daquela vez, porém, fora como se tivesse esmurrado uma parede de cimento. Nunca experimentara nada parecido durante os seus anos como pugilista. Olhou, estupefacto, para o colosso que estava à sua frente.
O homem voltou-se e olhou para ele com uma expressão igualmente espantada.
- Que tal meteres-te com alguém do teu tamanho? - disse Paolo Roberto.
Lançou uma rápida série de esquerda-direita-esquerda ao tronco, empenhando-se a sério. Foram golpes pesados. O único efeito foi o gigante recuar meio passo, mais de surpresa do que em resultado dos impactes. E então sorriu.
- És o Paolo Roberto - disse.
Paolo Roberto imobilizou-se, espantado. Acabava de acertar quatro murros que deviam ter atirado o gigante ao tapete e tê-lo levado a ele a caminho do seu canto enquanto o árbitro contava até dez. Mas os seus golpes não tinham aparentemente tido qualquer efeito.
Santo Deus, isto não é normal.
Então viu, como que em câmara lenta, o homem lançar um gancho de esquerda na sua direcção. Lento, muito denunciado. Teve tempo de esquivar-se, mas o golpe apanhou-o de raspão no ombro. Foi como ter sido atingido por uma barra de ferro.
Paolo Roberto recuou dois passos, redobrando o respeito pelo seu adversário.
Há aqui qualquer coisa que não é normal. Ninguém consegue bater com tanta força.
Blocou automaticamente um novo gancho de esquerda com o antebraço, e sentiu no mesmo instante uma dor aguda. Não conseguiu
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blocar o gancho de direita que surgiu do nada e o apanhou em cheio na testa.
Foi atirado para trás, recuando aos tropeções para o outro lado da porta. Caiu em cima de um monte de paletas de madeira e sacudiu a cabeça. Sentiu o sangue a escorrer-lhe pela cara. Abriu-me o sobrolho. Vou ter de ser cosido. Outra vez!
No instante seguinte, o gigante surgiu à sua frente e Paolo Roberto torceu-se instintivamente para um lado. Escapou por uma unha negra a outro golpe demolidor daqueles punhos monstruosos. Recuou rapidamente três ou quatro passos e levantou os braços, numa posição defensiva. Estava abalado.
O gigante observava-o com uma expressão curiosa, quase divertida. E então adoptou a mesma posição de defesa. Este tipo pratica boxe. Começaram a rodar à volta um do outro, lentamente.
Os 180 segundos que se seguiram tornaram-se o mais estranho combate de toda a vida de Paolo Roberto. Não havia treinadores nem árbitros. Não havia campainha para interromper o combate e mandar os adversários para os respectivos cantos. Não havia pausas para água e sais de cheiro, nem toalhas para limpar o sangue dos olhos.
Paolo Roberto soube que estava a lutar pela vida. Todo o seu treino, todos aqueles anos a martelar sacos de areia epunching-balls, toda a experiência acumulada em todos os combates que travara convergiu na energia a que foi naquele instante capaz de fazer apelo enquanto a adrenalina lhe inundava o sangue numa onda como nunca antes tinha experimentado.
Envolveram-se numa troca de golpes em que Paolo Roberto pôs toda a sua força e toda a sua fúria. Esquerda, direita, esquerda, outra esquerda, e um jab ao lado direito da cara, esquivar o gancho de esquerda, recuar um passo, atacar com a direita. Todos os seus golpes acertavam com uma força demolidora.
Aquele era o maior combate da sua vida. Estava a lutar tanto com os miolos como com os punhos. Conseguiu esquivar-se e evitar todos os golpes que o adversário desferiu contra ele.
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Acertou um gancho de direita em cheio no queixo que lhe deu a sensação de lhe ter partido um osso da mão e que devia ter feito o adversário cair sem sentidos. Olhou para os nós dos dedos e viu que estavam ensanguentados. Via contusões e inchaços na cara do gigante, que, no entanto, parecia nem sequer sentir os golpes.
Paolo Roberto recuou, a respirar o mais regularmente possível, e avaliou a situação. Este tipo não épugilista. Mexe-se como um pugilista, mas não sabe nada de boxe. É só faz-de-conta. Não sabe blocar. Denuncia os golpes com semanas de antecedência. É lento como uma tartaruga.
No instante seguinte, o gigante conseguiu encaixar um gancho de esquerda por baixo da guarda dele e atingiu-o no tórax. Era a segunda vez que lhe acertava. Paolo Roberto sentiu a pontada de dor varar-lhe o peito quando a costela estalou. Voltou a recuar, mas tropeçou num monte de tábuas e caiu de costas. Viu o gigante de pé à sua frente, mas conseguiu rolar para um lado e pôs-se cambaleante-mente de pé.
Endireitou o tronco, tentando apelar para as forças que lhe restavam, mas o homem estava outra vez em cima dele. Esquivou-se a um golpe e recuou, sentindo dores horríveis sempre que blocava com o ombro.
Chegou então o momento que todos os pugilistas conhecem e temem. O sentimento que pode aparecer em qualquer altura de um combate. A percepção de que se vai perder.
É o ponto crucial de todos os combates, o momento em que as forças abandonam o corpo e a adrenalina corre com tanta força que se torna um fardo e a capitulação aparece como um fantasma à beira do ringue. É o momento que distingue os profissionais dos amadores, os vencedores dos perdedores. Poucos pugilistas que enfrentam este revés conseguem dar a volta ao combate e converter uma derrota certa em vitória.
Paolo Roberto foi subitamente atingido por esta certeza. O rugido que lhe atroava a cabeça entontecia-o, e teve a sensação de estar a ver a cena do exterior, de estar a olhar para aquele gigante através da objectiva de uma máquina de filmar. Aquele era o momento em que a questão que se punha era vencer ou desaparecer para sempre.
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Recuou num amplo círculo, para reunir forças e ganhar tempo. O loiro seguiu-o, mas sem pressionar, como se soubesse que o resultado estava decidido mas quisesse levar o assalto até ao fim. Pratica boxe, mas não sabe lutar. Sabe quem eu sou. É um raio de um amador. Mas tem uma força devastadora e parece insensível à dor.
Estes pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça enquanto tentava avaliar a situação e decidir o que fazer.
De repente estava a reviver aquela noite em Mariehamm, dois anos antes. A sua carreira como pugilista profissional terminara da maneira mais brutal possível quando enfrentara o argentino Sebas-tián Luján, ou melhor, quando Sebastián Luján o enfrentara a ele. Sofrera o primeiro K O da sua vida e estivera inconsciente durante 15 minutos.
Muitas vezes pensara no que tinha corrido mal. Estava no máximo da forma. Estava concentrado. Luján não era melhor do que ele. Mas o argentino acertara-lhe em cheio, e o assalto transformara-se num mar enraivecido.
Dias depois, ao estudar o vídeo, vira como andara a cambalear pelo ringue, tão indefeso como o Pato Donald. O K O acontecera 23 segundos mais tarde. Sebastián Luján não era melhor, nem mais bem treinado do que ele. Sendo as margens de erro tão pequenas, o combate podia ter pendido para qualquer um dos lados.
A única diferença que conseguira detectar fora que Luján estava mais determinado do que ele. Quando Paolo Roberto entrara no ringue em Mariehamm, naquela noite, ia decidido a ganhar, mas não estava desejoso por lutar. Para ele, deixara de ser uma questão de vida ou de morte. Perder não era nenhuma catástrofe.
Um ano e meio mais tarde, continuava a ser um pugilista. Mas já não era um profissional, e só aceitava combates amigáveis. Apesar de ter continuado a treinar. Não engordara nem deixara crescer a barriga. Já não era o instrumento perfeitamente afinado que costumava ser antes de um combate pelo título para o qual se preparava durante meses, mas continuava a ser Paolo Roberto, não um borra-botas qualquer. E, ao contrário do que acontecera em Mariehamm, o combate naquele armazém a sul de Nykvarn era uma questão de vida ou de morte.
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Tomou uma decisão. Subitamente, parou de recuar e deixou o gigante aproximar-se. Fintou com a esquerda e pôs toda a força que tinha num gancho da direita. Disparou um murro que apanhou o loiro na boca e no nariz. O ataque foi totalmente inesperado, uma vez que estivera a recuar nos instantes anteriores. Ouviu qualquer coisa ceder. Seguiu com uma esquerda-direita-esquerda, e acertou todos os três golpes na cara do gigante.
O loiro lutava em câmara lenta. Respondeu com a direita. Paolo Roberto viu o murro chegar e baixou-se, evitando o punho maciço. Viu o loiro mudar o peso do corpo para o pé direito e soube que ia lançar uma esquerda. Em vez de blocar, inclinou-se para trás e deixou o gancho passar-lhe à frente da cara. Replicou com um ataque selvagem ao corpo, logo abaixo das costelas. Quando o homem se voltou para ripostar, levantou o punho esquerdo num uppercut que apanhou o adversário novamente no nariz.
De súbito, sentiu que tudo o que fazia estava correcto e que controlava completamente o combate. O gigante recuou. Sangrava do nariz. Já não estava a sorrir.
E então o gigante deu-lhe um pontapé.
Disparou o pé para cima e apanhou Paolo Roberto de surpresa. Não estava à espera de um pontapé. Foi como se lhe tivessem batido com uma marreta na coxa, logo acima do joelho, e uma dor lancinante percorreu-lhe a perna. Não. Recuou um passo, e a perna direita cedeu. Estava caído de costas.
O gigante olhou para ele. Por um instante, os olhos dos dois encontraram-se. A mensagem era inequívoca. A luta chegou ao fim.
E então o gigante abriu muito os olhos quando Miriam Wu, por trás, lhe deu um pontapé entre as pernas.
Não havia um músculo que não lhe doesse, mas, mesmo assim, Miriam Wu conseguira passar as mãos algemadas por baixo das nádegas, e depois - dolorosamente - por baixo dos pés, de modo a ficar com os braços à frente do corpo.
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Doíam-lhe as costelas, o pescoço, as costas e os rins, e só com muita dificuldade conseguira pôr-se de pé. Por fim, cambaleou até à porta e ficou a ver, de olhos esbugalhados, Paolo Roberto - de onde diabo saiu ele? - atingir o gigante com um gancho de direita, logo seguido por uma série de esquerdas e direitas à cara, até ser derrubado por um pontapé.
Miriam Wu compreendeu que não queria saber como ou porquê Paolo Roberto aparecera ali. Era um dos bons. Mas, pela primeira vez na sua vida, foi dominada por um desejo assassino de magoar outro ser humano. Avançou rapidamente alguns passos, mobilizando toda a energia que lhe restava e todos os músculos que tinha intactos. Aproximou-se do gigante pelas costas e acertou-lhe um pontapé entre as pernas. Talvez pouco elegante em termos de boxe tailandês, mas teve o efeito desejado.
Miriam Wu felicitou-se, com um ar entendido. Os homens podiam ser grandes como uma casa, e feitos de granito, mas todos eles tinham os tomates no mesmo sítio. Pela primeira vez, o gigante pareceu abalado. Deixou escapar um gemido, levou as mãos aos testículos e caiu sobre um joelho.
Miriam hesitou um instante antes de perceber que ia ter de fazer mais qualquer coisa para pôr fim àquilo. Ia dar-lhe um pontapé na cara, mas, para seu espanto, ele levantou um braço. Não era possível recuperar tão depressa de um golpe daqueles. E fora como ponta-pear o tronco de uma árvore. O loiro agarrou-lhe o pé, atirou-a ao chão e começou a puxá-la. Miriam viu-o erguer um punho e contorceu-se desesperadamente, pontapeando com a perna livre. Atingiu-o atrás da orelha ao mesmo tempo que o murro dele lhe acertava na têmpora. Houve uma explosão de luz, e depois a escuridão.
O gigante estava a pôr-se de pé.
Foi então que Paolo Roberto lhe bateu com um barrote na nuca. O homem tombou para a frente e desabou com estrépito.
Paolo Roberto olhou em redor, como num sonho. O gigante contorcia-se no chão. A rapariga estava com uma expressão vítrea
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e parecia completamente esgotada. Os esforços combinados de ambos garantiram-lhes uma curta trégua.
Mal conseguia apoiar-se na perna ferida e receou ter uma rotura muscular acima do joelho. Coxeou até junto de Miriam e pô-la de pé. Ela começou a mover-se, mas parecia não conseguir fixar o olhar. Sem uma palavra, ele atravessou-a sobre o ombro esquerdo e dirigiu-se para a porta, a arrastar os pés. A dor na perna direita era terrível.
A brisa da noite foi uma sensação maravilhosa. Mas não podia parar. Atravessou o pátio e chegou às árvores, fazendo em sentido inverso o caminho que o levara até ali. Mal se internou no meio das árvores, tropeçou numa raiz e caiu. Miriam Wu gemeu, e Paolo ouviu a porta do armazém abrir-se e bater violentamente contra o portão de metal.
O gigante era uma silhueta monumental recortada contra o rectângulo iluminado. Paolo Roberto tapou com a mão a boca de Miriam. Em seguida, inclinou-se e murmurou-lhe ao ouvido que não fizesse barulho.
Procurou entre as raízes de uma árvore caída e encontrou uma pedra que era maior do que o seu punho. Benzeu-se. Pela primeira vez na sua pecaminosa vida estava pronto para matar outro ser humano, se fosse preciso. Estava completamente desfeito e sabia que não aguentaria mais um assalto. Mas ninguém, nem mesmo uma aberração da natureza, podia continuar a lutar com o crânio desfeito. Apertou a pedra e verificou que era oval, com uma aresta aguçada.
O loiro cambaleou até à esquina do edifício e em seguida deu lentamente a volta ao pátio. Parou a menos de dez passos do sítio onde Paolo Roberto continha a respiração. Pôs-se à escuta, olhando em redor... mas só podia tentar adivinhar em que direcção eles tinham desaparecido na noite. Ao cabo de alguns minutos, pareceu compreender que a busca era inútil. Voltou ao armazém com rápida determinação e demorou-se lá dentro cerca de um minuto. Apagou as luzes antes de voltar a sair, transportando um saco, e dirigir-se para o Volvo. Pouco depois, afastava-se pelo caminho de acesso. Paolo Roberto ficou à escuta até deixar de ouvir o barulho do motor. Quando olhou para baixo viu um par de olhos a brilhar na escuridão.
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- Olá, Miriam - disse. - Chamo-me Paolo... Não precisa de ter medo de mim.
- Eu sei.
A voz dela era fraca. Paolo deixou-se cair, exausto, contra o tronco de uma árvore e sentiu a adrenalina na sua corrente sanguínea baixar para zero.
- Não sei como é que vou conseguir pôr-me de pé - disse -, mas tenho um carro do outro lado da estrada.
Estava abalado e aturdido e sentia uma sensação estranha na cabeça. Saiu da estrada e entrou numa área de repouso a leste de Nykvarn.
Pela primeira vez em toda a sua vida tinha sido vencido numa luta. E quem o derrotara fora Paolo Roberto... o pugilista. Parecia-lhe um sonho absurdo, daqueles que costumava ter nas noites sem descanso. Não conseguia compreender de onde saíra o homem. De repente, aparecera ali, dentro do armazém.
Não fazia sentido.
Nem sequer sentira os murros. O que não o espantava. Mas sentira o pontapé da rapariga. E a pancada com o barrote que o atirara ao chão. Tacteou cuidadosamente a nuca e descobriu que tinha um enorme alto. Carregou com as pontas dos dedos, mas não sentiu dor. E no entanto, sentia-se zonzo. Tinha perdido um dente do maxilar superior, do lado esquerdo. Sentia na boca o sabor do sangue. Apertou o nariz com o polegar e o indicador da mão direita e dobrou-o para cima. Ouviu um estalido dentro da cabeça, e percebeu que estava partido.
Tinha feito o que devia ao pegar no saco e deixar o armazém antes que a polícia por lá aparecesse. Mas cometera um erro monumental. Tinha visto, no canal Discovery, como os investigadores da polícia técnica conseguiam encontrar todo o género de provas forenses. Sangue. Cabelos. ADN.
O que menos queria era regressar ao armazém, mas não podia fazer outra coisa. Era preciso limpar aquilo. Fez inversão de marcha e voltou para trás. Antes de chegar a Nykvarn, cruzou-se com um carro que seguia na direcção oposta, mas não deu importância ao facto.
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A viagem de regresso a Estocolmo foi um pesadelo. Paolo Roberto tinha sangue nos olhos e estava tão moído que lhe doía o corpo todo. Guiava como um bêbedo, ziguezagueando de um lado ao outro da estrada. Limpou o sangue com uma mão e apalpou o nariz. Doía-lhe terrivelmente, e só conseguia respirar pela boca. Mantinha-se atento à aparição de um Volvo branco, e pareceu-lhe ter-se cruzado com um pouco depois de Nykvarn.
Quando chegou à E20, a condução tornou-se mais fácil. Ainda pensou em parar em Sòdertálje, mas não sabia aonde se dirigir. Olhou para a rapariga, ainda algemada, estendida no banco traseiro do carro. Tivera de carregá-la ao ombro, e mal a deitara no banco, apagara-se como uma luz. Não sabia se tinha desmaiado por causa dos ferimentos ou se simplesmente desligara o motor por pura exaustão.
Hesitou, mas acabou por virar para a E4 e seguir para Estocolmo.
Mikael Blomkvist tinha adormecido havia menos de uma hora quando o telefone começou a tocar. Espreitou para o relógio de olhos ainda meio fechados e viu que passava pouco das quatro da manhã. Estendeu ensonadamente a mão para o auscultador. Era Erika, e ao princípio não conseguiu perceber o que ela dizia. <
- O Paolo Roberto está onde?
- No hospital de Sõder, com a rapariga, a Wu. Tentou ligar-te, mas tu não atendeste.
- Desliguei o telemóvel. Que raio está ele a fazer no hospital? A voz de Erika soou paciente, mas determinada.
- Mikael, apanha um táxi, vai até lá e descobre. Pareceu-me completamente baralhado. Falou de uma motosserra e de um edifício no meio do bosque e de um monstro que não sabia boxe.
Mikael piscou os olhos, sacudiu a cabeça e foi meter-se debaixo do duche.
Paolo Roberto estava com um ar perfeitamente miserável, ali estendido, de boxers, numa cama de hospital. Mikael esperara uma hora
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que o autorizassem a vê-lo. Tinha o nariz tapado por um penso. O olho esquerdo também estava tapado e um sobrolho fora suturado com cinco pontos. Tinha o peito envolto em ligaduras e golpes e contusões por todo o corpo. O joelho direito com talas.
Mikael ofereceu-lhe café tirado da máquina do corredor e examinou-o com um ar crítico.
- Parece saído de um acidente de viação - disse. - Conte-me o que se passou.
Paolo Roberto abanou a cabeça e enfrentou-lhe o olhar.
- O que aconteceu foi um cabrão de um monstro - respondeu.
Voltou a abanar a cabeça e inspeccionou os nós dos dedos. Estavam tão inchados que mal conseguia segurar a chávena. Tinha a mão e o pulso direitos engessados. A mulher, que nunca achara grande graça ao boxe, ia ficar furiosa.
- Sou um pugilista - continuou. - Quer dizer, quando estava activo, não tinha medo de entrar no ringue fosse com quem fosse. Levei uns bons murros, nos meus tempos, mas também sei dá-los. E quando dou um murro em alguém, espero que essa pessoa caia de cu no chão e fique magoada.
- Mas este não ficou.
Paolo Roberto abanou a cabeça pela terceira vez. E então contou a Mikael o que tinha acontecido naquela noite.
- Acertei-lhe pelo menos trinta vezes. Catorze ou quinze foram na cabeça. Acertei-lhe no queixo quatro vezes. Ao princípio, contive-me um pouco... não queria matar o sacana, só queria proteger-me. Mas, no fim, dei tudo o que tinha. Um dos meus murros devia ter partido o queixo dele. Mas o monstro limitou-se a sacudir a cabeça e voltou à carga. Aquilo não é um ser humano normal, juro.
- Como era ele?
- Como um tanque. Não estou a exagerar. Tinha dois metros de altura e pesava entre cento e trinta e cento e quarenta quilos. Tudo músculo e chapa blindada. Um cabrão de um gigante que não sabe o que é a dor.
- Nunca o tinha visto?
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- Nunca. O tipo não é pugilista. Mas, estranhamente, até parecia. Não sabia lutar. Eu fintava-o e abria-lhe a guarda, mas o sacana não fazia a mais pequena ideia do que fazer para evitar ser atingido. Estava completamente por fora. Mas, ao mesmo tempo, tentava mover-se como um pugilista. Colocava os braços da maneira certa e voltava sempre à posição de início. Talvez tenha treinado boxe, mas não ouviu uma palavra do que o treinador lhe disse. O que me salvou a vida... e a da rapariga... foi ele ser tão lento. Lançava swings que anunciava com um mês de antecedência, e eu podia evitá-los ou blocá-los. Acertou-me dois bons murros: um na cara, e o resultado é o que se vê, e outro no corpo, e rachou-me uma costela. Mas nenhum dos dois foi com a força toda. Se tivesse feito a coisa como deve ser, tinha-me arrancado a cabeça.
Paolo Roberto riu, um riso que pareceu um gorgolejo.
- Qual é a graça?
- Ganhei. O sacana tentou matar-me e eu ganhei. Atirei-o abaixo. Mas tive de usar a porra de um barrote para o deixar pronto para a contagem. - Ficou novamente sério. - Se a Miriam Wu não lhe tem acertado nos tomates, naquilo a que os franceses chamam le moment juste, nem quero pensar no que podia ter acontecido.
- Paolo... estou muito satisfeito por ter ganhado. E a Miriam Wu vai dizer-lhe o mesmo, quando acordar. Sabe alguma coisa dela?
- Está mais ou menos como eu. Traumatismo, várias costelas rachadas, nariz partido e danos nos rins.
Mikael inclinou-se para a frente e pousou a mão no joelho são de Paolo Roberto.
- Se alguma vez precisar de alguma coisa que eu possa... Paolo Roberto sorriu.
- Blomkvist... se alguma vez voltar a precisar de um favor...
- Sim...
- ... peça ao Sebastián Luján que lho faça.
CAPÍTULO 26
QUARTA-FEIRA, 6 DE ABRIL
O INSPECTOR Bublanski estava com um humor de cão quando se encontrou com Sonja Modig no parque de estacionamento do hospital, um pouco antes das sete. Blomkvist tinha-o acordado, e ele por sua vez acordara Modig. Mikael esperava-os à entrada, e foram juntos até ao quarto de Paolo Roberto.
Bublanski teve dificuldade em assimilar os confusos pormenores da história mas, por fim, ficou a perceber que Miriam Wu tinha sido raptada e que Paolo Roberto dera uma sova no raptor. Só que, a julgar pelo aspecto da cara dele, não era muito claro quem dera uma sova a quem. No que lhe dizia respeito, os acontecimentos da noite tinham elevado a investigação a respeito de Lisbeth Salander a um novo nível de complicação. Nada, naquele maldito caso, parecia ser normal.
Foi Modig quem fez a primeira pergunta pertinente. Como fora que Paolo Roberto se envolvera no assunto?
- Sou amigo da Lisbeth Salander - explicou ele. Bublanski e Modig entreolharam-se, surpreendidos e cépticos.
- E como foi que se conheceram?
- Costumávamos treinar juntos no ginásio.
Bublanski fixou o olhar algures na parede por detrás de Paolo Roberto. Modig não conseguiu conter uma gargalhada. Passado algum tempo, tinham tomado nota de todos os pormenores que ele pôde dar-lhes.
- Gostaria de deixar claro alguns pontos - disse Mikael Blomkvist, secamente.
Voltaram-se para ele.
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- Em primeiro lugar, a descrição que o Paolo faz do homem que levou a carrinha depois de terem chegado ao armazém condiz com a que eu próprio fiz do indivíduo que atacou a Lisbeth Salander no mesmo sítio, na Lundagatan. Um tipo alto, com rabo-de-cavalo e barriga de cerveja. Certo?
Bublanski assentiu.
- Segundo, o objectivo do rapto era obrigar Miriam Wu a revelar o esconderijo da Lisbeth Salander. Portanto, aqueles dois já andavam à procura dela pelo menos uma semana antes dos assassínios. Estamos de acordo?
Modig murmurou um "sim".
- Terceiro, parece menos provável que a Lisbeth Salander seja a louca solitária que tem sido descrita. E nenhum desses maníacos parece, à primeira vista, ser membro de um grupo de lésbicas satânicas.
Nem Bublanski nem Modig disseram uma palavra.
- Quarto, e para terminar, penso que esta história tem qualquer coisa que ver com um homem chamado Zala. O Dag Svensson dedicou muito tempo a tentar investigá-lo, durante as suas duas últimas semanas de vida. Toda a informação relevante está no computador dele. Conseguiu ligá-lo ao assassínio de uma prostituta chamada Irina Petrova, em Sõdertãlje. A autópsia indica que foi brutalmente espancada. Tão brutalmente que qualquer das lesões mais graves teria sido por si só fatal. Os ferimentos que apresentava eram muito semelhantes aos que tanto a Miriam Wu como o Paolo Roberto sofreram. Em ambos os casos, os instrumentos desta extraordinária violência podem ter sido as mãos de um indivíduo anormalmente corpulento.
- E o Bjurman? - perguntou Bublanski. - Suponhamos que alguém tinha motivos para silenciar o Svensson. Quem teria uma razão para matar o tutor da Lisbeth Salander?
- As peças do quebra-cabeças ainda não estão todas nos respectivos lugares, mas há uma ligação entre o Bjurman e o Zala. E a única solução credível. Aceitem começar a pensar segundo estas novas linhas. Estou convencido de que estes crimes têm alguma coisa que ver com o tráfico de mulheres e o negócio do sexo. E a Lisbeth Salander
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preferiria morrer a envolver-se numa coisa dessas. Já lhes disse que ela é um raio de uma moralista.
- Qual foi então o papel dela? Que estava a fazer no apartamento do Svensson e da Johansson?
- Não sei. Testemunha? Adversária? Talvez tenha lá ido para avisar o Dag e a Mia de que as vidas deles corriam perigo.
Bublanski pôs a engrenagem em movimento. Ligou para a polícia de Sõdertãlje e transmitiu-lhes as indicações que Paolo Roberto tinha dado sobre como chegar a um armazém degradado a sudoeste do lago Yngern. Em seguida, contactou Holmberg - vivia em Flemingsberg e era, de todos os membros da equipa, o que estava mais próximo de Sõdertalje - e pediu-lhe que fosse até lá o mais rapidamente possível e ajudasse a polícia local a investigar o local do crime.
Holmberg ligou uma hora mais tarde. Estava no local do crime. A polícia de Sõdertalje tivera dificuldade em encontrar o armazém. Tinha ardido completamente, bem como duas outras arrecadações mais pequenas. Os bombeiros estavam a fazer o rescaldo. Tinham encontrado, no pátio, duas latas de gasolina vazias.
Bublanski sentiu uma sensação de frustração que se aproximava da fúria.
Que raio se passava? Quem eram aqueles bandidos? Quem era verdadeiramente aquela Salander? E porque não conseguiam encontrá-la?
A situação não melhorou quando Ekstrõm se meteu ao barulho, na reunião das nove. Bublanski pô-lo ao corrente do que se passara e propôs que revissem as prioridades da investigação à luz dos novos e misteriosos acontecimentos, que lançavam uma sombra de dúvida sobre o cenário em que até então a equipa tinha estado a trabalhar.
A história de Paolo Roberto reforçava a veracidade do relato de Blomkvist sobre o ataque a Lisbeth Salander na Lundagatan. A hipótese de os três crimes terem sido cometidos por uma única pessoa, uma doente mental, parecia agora muito menos válida. Não podiam, claro, descartar totalmente as suspeitas que pendiam sobre Lisbeth Salander - precisavam de uma explicação para o facto de as impressões
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digitais dela aparecerem na arma -, mas tudo aquilo significava que a investigação tinha de contar com a hipótese de não ter sido ela a assassina. De momento, havia apenas uma teoria em cima da mesa: a convicção de Mikael Blomkvist de que os assassínios estavam relacionados com a denúncia do negócio do sexo que Svensson se preparava para fazer. E Bublanski apontava três pontos importantes.
A primeira coisa a fazer era encontrar e identificar o indivíduo anormalmente corpulento e o seu cúmplice de rabo-de-cavalo que tinham raptado e agredido Miriam Wu. O gigante devia ser relativamente fácil de encontrar.
Andersson recordou-lhes que também Lisbeth Salander tinha um aspecto pouco comum e que, ao cabo de três semanas, a polícia continuava a não fazer ideia de onde a encontrar.
A segunda tarefa era juntar à equipa de investigação um grupo que se concentrasse exclusivamente na lista de clientes de prostitutas que se encontrava no computador de Svensson. Havia um problema logístico associado a este ponto. A equipa tinha o computador que Svensson usava na Millennium e os CD com os back-ups do portátil desaparecido, mas tudo isso equivalia a vários anos de pesquisa e a milhares de páginas. Levaria tempo a catalogar e a estudar tanto material. A equipa precisava de reforços, e Bublanski destacou Modig para liderar o novo grupo.
A terceira tarefa era procurar a pessoa que dava pelo nome de Zala. A equipa pediria a colaboração do Departamento Nacional de Investigação Criminal, uma vez que, aparentemente, já em tempos tinham encontrado aquele nome. Atribuiu a missão a Faste.
Por fim, Andersson continuaria a coordenar a perseguição a Lisbeth Salander.
A exposição de Bublanski demorou seis minutos, mas desencadeou uma discussão que se arrastou por uma hora. Faste opunha-se veementemente às alterações propostas, e não fez segredo do facto. Opinava que a investigação devia, não obstante a nova - e periférica, como lhe chamava - informação recebida, continuar centrada em Lisbeth Salander. A cadeia de provas era tão forte que seria estupidez desperdiçar energia a investigar outros canais.
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- Tudo isso é uma treta. Temos uma chanfrada com propensão para a violência que tem vindo a agravar-se de ano para ano. Acreditam verdadeiramente que os relatórios psiquiátricos e os resultados dos exames forenses não passam de uma brincadeira? A gaja está ligada aos locais dos crimes. Sabemos que é uma pega, e tem no banco um monte de massa que ninguém sabe de onde veio.
- Estou consciente de tudo isso.
- Além disso, pertence a um estranhíssimo culto sexual lésbico. E raios me partam se aquela fufa da Cilla Norén não sabe mais do que está a dizer.
- Pára com isso, Faste - disse Bublanski, num tom irritado. -Estás completamente obcecado com a faceta gay. É muito pouco profissional.
Arrependeu-se no mesmo instante de ter falado na presença de todo o grupo. Uma conversa particular teria sido mais produtiva. Finalmente, Ekstrõm pôs fim à altercação aprovando o plano de Bublanski.
Bublanski olhou para Bohman e Hedstrõm.
- Julgo saber que só vão estar connosco mais três dias, de modo que vamos aproveitar ao máximo a situação. Bohman, podes ajudar o Andersson a procurar a Salander? Hedstrõm, tu continuas com a Modig.
Ekstrõm levantou a mão quando já todos se preparavam para sair.
- Só mais uma coisa. Vamos manter o caso do Paolo Roberto debaixo do chapéu. Os media entram em órbita se aparece mais uma celebridade nesta investigação. Portanto, nem uma palavra, seja a quem for, fora desta sala.
Depois da reunião, Modig chamou Bublanski à parte.
- Foi pouco profissional da minha parte perder a paciência com o Faste - disse ele.
- Compreendo-te muito bem - respondeu ela, com um sorriso. - Comecei a trabalhar no computador do Svensson na segunda-feira passada.
- Eu sei. Até onde avançaste?
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- Há uma dúzia de versões do livro e uma montanha de material de pesquisa, e ainda não sei o que é importante e o que devemos ignorar. Só catalogar tudo aquilo e passar os olhos pelos documentos vai levar vários dias.
- E o Hedstrõm?
Modig hesitou. Então, voltou-se e fechou a porta do gabinete.
- Para ser franca... Não quero dizer mal dele, mas não é de grande ajuda.
Bublanski franziu a testa.
- Desembucha.
- Não sei... não é um verdadeiro polícia, como o Bohman. Está sempre a dizer parvoíces, e em relação à Miriam Wu tem mais ou menos a mesma atitude que o Faste. Não mostra a mais pequena ponta de interesse pelo trabalho. E... embora não te saiba dizer o motivo... acho que tem um problema qualquer com a Salander.
- Como assim?
- Tenho a sensação de que se passou qualquer coisa entre os dois. Bublanski assentiu com a cabeça.
- É pena. O Bohman é um bom tipo, mas a verdade é que não gosto de envolver gente de fora nesta investigação.
- O que é que fazemos, então?
- Vamos ter de aguentá-lo o resto da semana. O Armanskij disse que se retiram se não houver resultados. Continua a vasculhar, e prepara-te para fazer o trabalho todo sozinha.
O trabalho de Sonja Modig foi interrompido passados apenas 45 minutos, quando Ekstrõm a chamou ao seu gabinete. Bublanski estava com ele, os dois muito vermelhos. Tony Scala, o jornalista freelancer, acabara de lançar um furo com a notícia de que Paolo Roberto tinha salvado a lésbica sadomasoquista, Miriam Wu, das mãos de raptor desconhecido. O artigo continha vários pormenores que só deviam ser do conhecimento de alguém ligado à investigação. Estava escrito de modo a sugerir que a polícia considerava a possibilidade de acusar Paolo Roberto de agressão agravada.
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Ekstrõm já recebera vários telefonemas de outros jornais que queriam saber qual fora o papel do ex-pugilista. Acusou Modig de estar na origem da fuga de informação. Modig negou veementemente a acusação, mas de nada lhe serviu. Ekstrõm queria-a afastada da investigação.
- A Sonja diz que não foi ela - disse Bublanski. - Para mim, é quanto basta. É loucura afastar uma detective experiente que está familiarizada com todos os pormenores do caso.
Ekstrõm manteve-se inabalável.
- Modig, não posso provar que foste tu, mas perdi a confiança em ti no que respeita a esta investigação. Estás fora da equipa, com efeito a partir de agora. Tira o resto da semana. Na segunda-feira, ser-te-á distribuído outro trabalho.
Modig assentiu com a cabeça e dirigiu-se para a porta. Bublanski deteve-a.
- Sonja, para que fique registado, não acredito numa palavra disto e continuas a ter toda a minha confiança. Mas não sou eu que decido. Vai ter ao meu gabinete antes de ires para casa, por favor.
O rosto de Bublanski tornara-se perigosamente sombrio. Ekstrõm tinha uma expressão furiosa.
Sonja Modig voltou ao gabinete onde tinha estado a trabalhar com Niklas Hedstrõm no computador de Svensson. Estava cheia de raiva e à beira das lágrimas. Hedstrõm percebeu que alguma coisa se passara, mas não disse nada, e ela ignorou-o. Sentou-se à secretária e ficou a olhar para o vazio. Instalou-se um silêncio opressivo.
Passado algum tempo, Hedstrõm disse que estava a precisar de um café. Perguntou-lhe se queria que lhe levasse um. Modig abanou a cabeça.
Quando ele saiu, Modig pôs-se de pé e vestiu o casaco. Pegou no saco e dirigiu-se ao gabinete de Bublanski. Ele indicou-lhe a cadeira das visitas.
- Sonja, não tenciono ceder nesta questão, a menos que o Ekstrõm me afaste também da investigação. Não aceito a decisão dele e estou a pensar em apresentar queixa. Até que eu te diga o contrário,
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continuas a fazer parte da equipa. À minha responsabilidade. Compreendeste?
Ela assentiu.
- Não vais tirar o resto da semana, como o Ekstrõm te disse. Quero que vás à redacção da Millennium e tenhas uma nova conversa com o Blomkvist. Pede-lhe que te ajude a investigar o disco rígido do Svensson. Eles têm lá uma cópia. Podemos poupar muito tempo se tivermos alguém que já conheça o material a dizer-nos o que pode ser importante.
Modig começou a respirar mais facilmente.
- Não disse nada ao Hedstrõm.
- Eu trato dele. Posso pô-lo a ajudar o Andersson. Viste o Faste?
- Não. Foi-se embora depois da reunião. Bublanski suspirou.
Mikael tinha chegado a casa, vindo do hospital, às oito da manhã. Quase não dormira e tinha de estar em forma para o encontro dessa tarde com Gunnar Bjõrck, em Smâdalarõ. Despiu-se, pôs o despertador para as dez e meia e aproveitou mais duas horas de sono profundo. Quando acordou, fez a barba, tomou um duche e vestiu uma camisa lavada. Ia a passar pela Gullmarsplan quando o telemóvel tocou. Era a inspectora Modig. Depois de ouvir o que ela tinha para dizer, explicou que estava a sair de Estocolmo e disse-lhe que falasse com Erika Berger.
Quando chegou à redacção da Millennium, Modig descobriu que gostava daquela mulher confiante e ligeiramente dominadora, com covinhas nas faces e cabelos loiros e curtos. Interrogou-se vagamente se também seria lésbica, uma vez que todas as mulheres ligadas à investigação pareciam ter, pelo menos de acordo com Hans Faste, essa preferência sexual. Mas então lembrou-se de ter lido algures que Erika Berger era casada com o artista Greger Beckman.
- Há aqui um problema - disse Erika, depois de ter ouvido o pedido.
- Qual?
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- Não é que nós não queiramos que os assassínios sejam esclarecidos ou nos recusemos a ajudar a polícia. Além disso, já têm o material que levaram daqui. O dilema é ético. Os media e a polícia não trabalham muito bem juntos.
- Acredite, foi o que descobri esta manhã - respondeu Modig, com um sorriso.
- Como assim?
- Nada, nada. Apenas um desabafo.
- Okay. Para manterem a credibilidade, os media têm necessariamente de distanciar-se das autoridades. Os jornalistas que correm para a esquadra a todo o instante e participam em investigações policiais acabam como moços de recados da polícia.
- Já conheci alguns - admitiu Modig. - Mas o oposto também pode ser verdade, e a polícia acabar a fazer recados para certos jornais. Erika riu.
- Não nego. Mas receio ter de dizer que, na Millennium, não nos podemos permitir sermos associados a esse tipo de jornalismo mercenário. Não se trata de querer interrogar alguns dos membros do nosso pessoal... o que autorizaríamos sem qualquer hesitação... mas de um pedido formal para que ajudemos a polícia colocando o nosso material jornalístico à vossa disposição.
Modig assentiu.
- O problema tem dois aspectos - continuou Erika. - Primeiro, um dos nossos jornalistas foi assassinado. Por isso, nós ajudamos em tudo o que pudermos. Mas a segunda questão é que há coisas que não podemos dar à polícia, e não daremos. E isso inclui tudo o que tenha que ver com as nossas fontes.
- Posso ser flexível. Posso garantir a protecção das vossas fontes.
- Não está aqui em causa a sua intenção nem o confiarmos ou não em si. O que acontece é que nunca revelamos uma fonte, sejam quais forem as circunstâncias.
- Compreendo.
- Depois, há o facto de a Millennium estar a conduzir a sua própria investigação sobre os assassínios, uma investigação que deve ser vista como um trabalho jornalístico. Neste caso, estou preparada para
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entregar a informação à polícia quando tivermos alguma coisa acabada e pronta para publicar... mas não antes. - Erika franziu a testa, pensativa. - Também tenho de coexistir comigo mesma. Vamos fazer o seguinte... Pode trabalhar com a Malin Eriksson. Ela conhece bem o material e tem competência para decidir até onde pode e deve ir. Ajudá-la-á com o livro do Dag... com o objectivo de compilar uma lista de todos os que possam ser suspeitos.
Quando apanhou, na estação de Sõdra, o comboio suburbano para Sõdertâlje, Irene Nesser ignorava o drama que ocorrera na noite anterior. Vestia um casaco a três quartos de couro preto, calças escuras e um camisolão de malha vermelho. Usava óculos, que empurrara para a testa.
Em Sõdertâlje, foi a pé até à paragem de autocarros de Strângnás e comprou um bilhete para Stallarholmen. Apeou-se uma paragem antes. Eram quase 11 da manhã. Não havia edifícios à vista. Visualizou mentalmente o mapa da região. O lago Málaren ficava uns poucos de quilómetros para noroeste. Era uma zona de casas de Verão, salpicada aqui e ali de algumas residências permanentes. Dali até à propriedade de Bjurman eram cerca de três quilómetros. Bebeu um golo da garrafa de água e começou a andar. Pôs-se lá em menos de 45 minutos.
Começou por dar a volta à área e estudar as casas da vizinhança. A primeira, à direita, ficava a cerca de 150 metros. Estava deserta. À esquerda, havia uma ravina. Passou por duas casas de férias e depois por um grupo de cabanas. Aí, notou sinais de vida: uma janela aberta e o som de um rádio. Estava pelo menos a 300 metros da cabana de Bjurman. Ia poder trabalhar à vontade.
Tirara as chaves do apartamento dele. Uma vez no interior, a primeira coisa que fez foi desaparafusar as portadas de uma das janelas das traseiras, garantindo deste modo uma via de fuga caso acontecesse alguma coisa desagradável na parte da frente. A coisa desagradável para que estava preparada era a possibilidade de algum agente da polícia ter resolvido investigar a cabana.
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A de Bjurman era uma das mais antigas, uma pequena construção com uma sala, um quarto e uma pequena cozinha com água corrente. A casa de banho ficava no pátio das traseiras. Passou vinte minutos a passar em revista os armários, guarda-fatos e cómoda. Não encontrou um único pedaço de papel que pudesse ter qualquer coisa que ver com Lisbeth Salander ou com Zala. Saiu e foi inspeccionar a latrina e a arrecadação. Nada de interesse. Aparentemente, a viagem fora em vão.
Sentou-se no alpendre, bebeu mais água e comeu uma maçã.
Quando voltou a entrar para aparafusar as portadas da janela, deteve-se bruscamente ao ver um escadote de alumínio com cerca de um metro de altura. Examinou o tecto, feito de placas de contraplacado. A abertura para o sótão era quase invisível entre dois barrotes. Foi buscar o escadote, empurrou o alçapão e descobriu de imediato duas caixas de arquivo em formato A4. Cada uma delas continha várias pastas e vários outros documentos.
Estava tudo a correr mal. Os desastres sucediam-se uns atrás dos outros e ele começava a ficar preocupado. Sandstrõm telefonara aos irmãos Ranta e explicara-lhes, aterrorizado, que um jornalista chamado Svensson ia denunciá-los a todos. Até aí, nada de dramático. Pouco lhe importava que a imprensa desmascarasse Sandstrõm, e os irmãos Ranta podiam continuar onde estavam o tempo que fosse preciso. Tinham apanhado o Baltic Star para a Estónia, onde se encontravam de férias. Era muito pouco provável que aquela trapalhada chegasse a tribunal, mas se acontecesse o pior, não seria a primeira vez que os dois passavam pela prisão. Eram os ossos do ofício.
Mais preocupante era Lisbeth Salander ter conseguido escapar a Lundin. Uma coisa incrível, considerando que ela parecia uma boneca de trapos comparada com Carl-Magnus. Tudo o que o cretino tinha de fazer era enfiá-la na carrinha e levá-la para o armazém a sul de Nykvarn.
Então Sandstrõm recebera outra visita, e desta vez Svensson estava interessado em Zala. O que vinha alterar radicalmente os dados da questão. Entre o pânico de Bjurman e a coscuvilhice constante de Svensson, acabara por surgir uma situação potencialmente perigosa.
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Um gangster amador é aquele que não está preparado para enfrentar as consequências. Bjurman era uma merda de um amador. Ele bem avisara Zala para não se envolver com aquele cretino, mas, para Zala, o nome "Lisbeth Salander" era como uma capa vermelha para um touro. Zala odiava Salander. Era, para falar com franqueza, um sentimento irracional. Como carregar num botão.
Fora por mero acaso que estava em casa de Bjurman quando Svensson telefonara. O sacana de jornalista que já arranjara problemas a Sandstrõm e aos Ranta. Tinha ido a casa de Bjurman para o acalmar ou para o ameaçar, dependia do que viesse a revelar-se necessário, depois da tentativa gorada de raptar Lisbeth Salander. Svensson telefonara e Bjurman entrara em pânico, uma reacção irracionalmente estúpida. E, de repente, quisera pôr-se de fora.
E, como se não fosse o suficiente, fora buscar a merda da pistola de cowboy e ameaçara-o. Ele limitara-se a olhar para Bjurman, espantado, e tirara-lhe a arma da mão. Estava de luvas, de modo que as impressões digitais não eram problema. Não podia fazer outra coisa. Bjurman tinha muito obviamente flipado.
Bjurman sabia muito a respeito de Zala, claro. Por isso constituía um tão grande risco. Não saberia verdadeiramente dizer por que o obrigara a despir-se. Talvez porque detestava o advogado e queria que ele o soubesse. Pouco faltara para largar a rir quando vira a tatuagem na barriga do tipo: "sou um porco sádico, um pervertido e um VIOLADOR." Por um instante, quase tivera pena do desgraçado. Mas estava num ramo de negócio em que não se podia permitir que sentimentos desse tipo interferissem com o que tinha de ser feito. Por isso o levara para o quarto e o obrigara a ajoelhar-se junto da cama e usara a almofada como silenciador.
Passara cinco minutos a revistar o apartamento, à procura de qualquer ligação a Zala. A única coisa que encontrara fora o número do seu próprio telemóvel. Para jogar pelo seguro, levara consigo o telemóvel de Bjurman.
Svensson era o problema seguinte. Quando o corpo de Bjurman fosse descoberto, o jornalista ia de certeza contactar a polícia e dizer-lhes
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que telefonara ao advogado para lhe fazer uma perguntas sobre Zala. E Zala ia tornar-se o objecto de interesse da polícia.
Considerava-se esperto, mas tinha um respeito enorme pelos quase sobrenaturais dotes estratégicos de Zala. Havia quase 12 anos que trabalhavam juntos. Fora uma época de êxitos, o que o fazia olhar para Zala com reverência. Era capaz de ficar horas a ouvi-lo falar da natureza humana e das suas fraquezas e de como se podia tirar proveito delas.
Inesperadamente, porém, os negócios deles estavam ameaçados.
Fora directamente da casa de Bjurman para Enskede e estacionara o Volvo a duas ruas de distância. Quisera a sorte que a porta da rua não estivesse fechada. Subira a escada e premira o botão da campainha por cima da chapa que dizia "Svensson-Johansson".
Disparara dois tiros - havia uma mulher, além de Svensson. Não revistara o apartamento nem levara quaisquer papéis. Pegara no computador que estava em cima da mesa na sala de estar, dera meia-volta, descera a escada e metera-se no carro. Queria sair dali para fora. O seu único erro fora deixar cair o revólver quando tentava segurar o portátil ao mesmo tempo que tirava do bolso as chaves do carro. Hesitara um segundo, mas a arma escorregara para as escadas da cave e ele decidira que demoraria demasiado tempo a descer e a ir buscá-la. Sabia que era alguém que as pessoas se lembrariam de ter visto, pelo que o mais importante era desaparecer o mais rapidamente possível.
A perda do revólver valera-lhe uma descompostura até que Zala se apercebera das implicações. Tinham ficado espantados quando a polícia começara a procurar Lisbeth Salander. O seu erro acabara por transformar-se num incrível golpe de sorte.
E também criara um novo problema. Lisbeth Salander passara a ser o único elo fraco que restava. Tinha conhecido Bjurman e conhecia Zala. Era capaz de somar dois e dois. Quando ele e Zala conferenciaram sobre o assunto, tinham chegado à mesma conclusão. Tinham de encontrar a rapariga e enterrá-la num sítio qualquer. O ideal seria ela desaparecer para sempre. Se a polícia não conseguisse encontr´-la, o caso acabaria por ser arquivado.
Tinham apostado na possibilidade de Miriam Wu os levar a Lisbeth. E então as coisas tinham voltado a dar para o torto. Paolo Roberto.
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Quem esperaria semelhante coisa? Surgido do nada. E, de acordo com os jornais, também ele era amigo de Lisbeth Salander.
Estava completamente baralhado.
Depois de Nykvarn, refugiara-se em casa de Lundin, a uns escassos cem metros do quartel-general do Moto-Clube de Svavelsjõ. Longe de ser o lugar ideal, não tinha muito por onde escolher, e precisava de um sítio onde pudesse manter-se escondido até que as contusões e inchaços que tinha na cara começassem a desaparecer e pudesse abandonar discretamente a região de Estocolmo. Apalpou com os dedos o nariz partido e o inchaço no pescoço, que já começara a diminuir.
Fora uma boa ideia voltar atrás e pegar fogo à porra do armazém.
Então, de repente, ficou gelado.
Bjurman. Tinha-se encontrado com ele uma vez, na cabana de Verão. No princípio de Fevereiro... quando Zala aceitara ocupar-se de Lisbeth Salander. Bjurman tinha o processo a respeito de Lisbeth que ele folheara. Como pudera esquecer-se de uma coisa daquelas? Podia levar a Zala.
Desceu à cozinha e pediu a Lundin que corresse a Stallarholmen e ateasse mais um incêndio.
O inspector Bublanski passou a hora do almoço a tentar pôr ordem numa investigação que sabia estar à beira da ruína. Falou com Andersson e Bohman, que o puseram a par dos últimos desenvolvimentos da perseguição a Lisbeth Salander. Havia pistas vindas de Gotemburgo e Norrkõping. Gotemburgo era para esquecer, mas a pista de Norrkoping tinha potencial. Informaram os colegas e fora montada uma discreta vigilância à casa onde fora vista uma rapariga um pouco parecida com Lisbeth Salander.
Tentou encontrar Faste, mas não estava no edifício e não atendeu o telemóvel. Depois da tempestuosa reunião, Hans Faste desaparecera.
Bublanski foi então falar com Ekstrõm para tentar resolver o problema criado com Sonja Modig. Expôs todas as razões que o levavam a pensar que afastá-la do caso era uma parvoíce. Ekstrõm manteve-se
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inabalável, e Bublanski optou por esperar até segunda-feira, altura em que apresentaria queixa. A situação era completamente idiota.
Pouco depois das três saiu para o corredor e viu Hedstrõm deixar o gabinete de Modig, onde era suposto estar ainda a passar a pente-fino o disco rígido de Svensson. Tarefa que, em sua opinião, perdera todo o significado, porque não havia um verdadeiro detective a vigiar o trabalho e a certificar-se de que não deixara passar nada importante. Hedstrõm ia ter de trabalhar com Andersson durante o resto da semana.
Quando tomou esta decisão, já Hedstrõm tinha desaparecido nos lavabos, no extremo mais distante do corredor. Resolveu ir até ao gabinete de Modig e esperar que ele voltasse. Viu, da porta, a cadeira vazia de Sonja.
Foi então que reparou no telemóvel de Hedstrõm, esquecido na prateleira ao lado da secretária.
Olhou para a porta dos lavabos, ainda fechada. Então, entrou no gabinete e, por puro impulso, enfiou o telemóvel no bolso, voltou rapidamente ao seu gabinete e fechou a porta. Abriu a lista de chamadas efectuadas.
Às 09:57, cinco minutos depois de a reunião ter terminado, Hedstrõm ligara para um número com o código de área 070. Pegou no auscultador do seu telefone fixo e marcou o número. Foi atendido por Tony Scala.
Desligou e ficou a olhar para o aparelho. Pôs-se de pé, com uma expressão furiosa. Tinha dado dois passos em direcção à porta quando o telefone tocou. Voltou para trás, pegou no auscultador e berrou o nome para o bucal.
- Jan? Sou eu, o Jerker. Estou outra vez no armazém, perto de Nykvarn.
- Encontraste alguma coisa?
- O fogo está extinto. Temos andado muito atarefados, nestas últimas duas horas. A polícia de Sõdertálje trouxe um cão farejador de cadáveres, para o caso de haver alguém no meio dos escombros.
- E havia?
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- Não. Mas fizemos uma pausa, para que o cão pudesse descansar o nariz. O tratador disse que era preciso, porque os cheiros no local do incêndio são muito fortes.
- Vai ao que interessa, Jerker. Estou com pressa.
- Bem, fomos dar uma volta e deixámos o cão à solta. E o bicho marcou um lugar no meio das árvores, a cerca de setenta e cinco metros das traseiras do armazém. Começámos a cavar. Dez minutos mais tarde encontrámos uma perna humana com um sapato. Parece ser um sapato de homem. Estava enterrado numa cova pouco funda.
- Oh, merda. Jerker, tens de...
-Já assumi o controlo do local e suspendi as escavações. Quero ter aqui uma equipa técnica a sério antes de continuarmos.
- Bem pensado.
- Ainda não acabei. Há cinco minutos, o cão marcou outro sítio, a cerca de oitenta metros do primeiro.
Lisbeth Salander tinha feito café no fogão de Bjurman e comido outra maçã. Passou duas horas a ler as notas que Bjurman escrevera sobre ela, página a página. A verdade era que estava impressionada. Bjurman pusera um evidente empenho na tarefa e sistematizara a informação. Descobrira material que nem ela mesma sabia que existia.
Leu o diário de Palmgren com sentimentos contraditórios. Enchia dois blocos de notas de capas pretas. Começara a escrever aquele diário mais ou menos quando ela tinha 15 anos. Acabara de fugir de casa da segunda família de acolhimento, um casal já idoso, de Sigtuna; ele era sociólogo e ela autora de livros infantis. Ficara com eles 12 dias, o suficiente para perceber que estavam tremendamente orgulhosos por terem contribuído para uma acção social acolhendo-a, e que esperavam dela que manifestasse eternamente a sua gratidão. Perdera a paciência quando ouvira a mulher gabar-se a uma vizinha, perorando sobre como era importante alguém ocupar-se dos jovens com problemas. Não sou nenhuma porra de projecto social, quisera gritar. No décimo segundo dia, roubara cem coroas do dinheiro para as despesas da casa que o casal guardava numa lata de açúcar, na cozinha, apanhara
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a camioneta para Upplands-Vãsby e em seguida o comboio suburbano para Estocolmo. A polícia encontrara-a seis semanas mais tarde, em casa de um homem de 67 anos, em Haninge.
Era um tipo decente. Oferecia-lhe comida e um sítio para viver a troco de praticamente nada. Tudo o que queria era vê-la nua. Nunca lhe tocara. Sabia que as pessoas o considerariam um pedófilo, mas nunca se sentira minimamente ameaçada por ele. Via-o como uma pessoa introvertida e socialmente deficiente. Chegara até a sentir que havia entre os dois uma espécie de parentesco. Eram ambos marginais, excluídos pelo sistema.
Alguém acabara por reparar nela, claro, e avisara a polícia. Uma assistente social tentara tudo para convencê-la a acusá-lo de abuso sexual. Recusara obstinadamente admitir a ocorrência de qualquer comportamento menos próprio da parte dele e, fosse como fosse, já tinha 15 anos, a idade legal. Que sefodessem. Então, Palmgren interviera em seu favor. Começara a escrever aquele diário no que parecia ter sido a tentativa frustrada de resolver as suas próprias dúvidas. As primeiras entradas eram de Dezembro de 1993:
Ela parece estar a tornar-se de dia para dia a jovem mais intratável com que alguma vez tive de lidar. A questão é saber se estou a proceder bem opondo-me ao seu regresso a Sankt Stefan. Já fugiu das casas de duas famílias de acolhimento no espaço de três meses e há o risco óbvio de lhe acontecer qualquer coisa durante as suas fugas. Terei em breve de decidir se devo desistir da minha tarefa e requerer que seja confiada aos cuidados de verdadeiros especialistas. Já não sei o que é certo e o que é errado. Hoje, tive uma conversa muito séria com ela.
Lisbeth recordava cada palavra daquela conversa muito séria. Fora na antevéspera de Natal. Palmgren levara-a para casa e oferecera-lhe o quarto de hóspedes. Fizera esparguete com molho de carne para o jantar, e em seguida sentara-a no sofá da sala e instalara-se no cadeirão de braços em frente dela. Lembrava-se de se ter perguntado se também ele quereria vê-la nua. Em vez disso, ele falara-lhe como se ela fosse uma adulta.
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Na realidade, a conversa fora mais um monólogo de duas horas. Ela mal dissera uma palavra. Ele expusera as realidades, que se resumiam ao facto de ela ter de decidir se queria voltar para Sankt Stefan ou viver com uma família de acolhimento. Faria todo o possível para lhe arranjar uma que lhe agradasse e insistira em que aceitasse a sua escolha. Decidira que ela passaria os feriados de Natal com ele, para ter tempo de pensar no futuro. Cabia-lhe escolher, mas, o mais tardar no dia a seguir ao Natal, teria de dar-lhe uma resposta clara, juntamente com a promessa de que, se tivesse problemas, recorreria a ele em vez de fugir. Dito isto, mandara-a para a cama e, aparentemente, sentara-se para escrever as primeiras linhas do seu diário.
A ameaça de ser novamente mandada para Sankt Stefan aterrorizara-a mais do que Palmgren pudera imaginar. Passara o Natal triste, a vigiar-lhe desconfiadamente cada gesto. No dia seguinte, ele continuara a não lhe tocar nem a dar quaisquer sinais de querer espreitá-la no duche. Pelo contrário, ficara furioso quando ela tentara provocá-lo passeando-se nua do quarto de hóspedes para a casa de banho. Fechara a porta com toda a força. Mais tarde, ela fizera as promessas que ele exigira. E mantivera a sua palavra. Bem, mais ou menos.
No seu diário, Palmgren comentava metodicamente cada encontro entre os dois. Por vezes, eram apenas três linhas, outras, enchia páginas e páginas com as suas reflexões. Volta não volta, surpreendia-a. Era muito mais arguto do que ela pensara e descrevia episódios em que ela julgara tê-lo enganado e ele lhe topara o jogo.
Depois do diário, pegou no relatório policial de 1991.
E todas as peças do quebra-cabeças encaixaram nos respectivos lugares. Foi como se o chão se tivesse posto a tremer.
Leu o relatório médico escrito por um tal Dr. Jesper H. Lõder-man, em que o Dr. Peter Teleborian figurava como referência destacada. Lõderman fora o grande trunfo do promotor público que tentara interná-la quando ela fizera 18 anos.
Em seguida, encontrou um sobrescrito que continha a correspondência entre Teleborian e um polícia chamado Gunnar Bjõrck. As cartas eram todas datadas de 1991, um pouco depois de "Todo o Mal" ter acontecido.
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Nada era claramente dito naquelas cartas, mas, de repente, foi como se um alçapão se tivesse aberto debaixo dos pés dela. Demorou vários minutos a compreender as implicações. Bjõrck referia-se a uma conversa qualquer que deviam ter tido. O fraseado era irrepreensível, mas, nas entrelinhas, dizia que, pelo seu lado, não via inconveniente em que Lisbeth Salander ficasse internada num asilo pelo resto dos seus dias.
É importante que a criança se distancie do contexto. Não sou competente para avaliar o estado psicológico dela ou que espécie de cuidados necessita, mas quanto mais tempo puder permanecer institucionalizada, menor será o risco de, involuntariamente, criar problemas no concernente ao assunto em causa.
No concernente ao assunto em causa. Lisbeth ficou a dar voltas à frase por alguns instantes.
Teleborian fora o responsável por ela em Sankt Stefan. E não se tratara de um simples acaso. O tom da correspondência indicava claramente que aquelas cartas nunca se tinham destinado a ver a luz do dia.
Teleborian conhecera Bjõrck.
Mordeu pensativamente o lábio inferior. Nunca fizera uma verdadeira pesquisa a respeito de Teleborian, mas sabia que ele começara na medicina forense, e até a Polícia de Segurança Nacional precisava ocasionalmente de consultar um perito nessa área ou um psiquiatra nas suas investigações. Se começasse a vasculhar, ia de certeza encontrar uma ligação. Num dado ponto da sua carreira, o trajecto de Teleborian cruzara-se com o de Bjõrck. E quando Bjõrck precisara de alguém que pudesse enterrá-la, recorrera a Teleborian.
Fora isso que acontecera. O que anteriormente lhe parecera puro acaso, ganhava agora uma dimensão completamente nova.
Ficou sentada durante muito tempo, a olhar para o vazio. Ninguém era inocente. Havia apenas diferentes graus de responsabilidade. alguém era responsável por Lisbeth Salander. Tinha decididamente de fazer uma visita a Smâdalarõ. Assumia que ninguém no descalabro
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total que era o sistema de justiça do Estado ia ter a mais pequena vontade de discutir o assunto com ela, e na falta de melhor interlocutor, uma conversa com Gunnar Bjõrck ia ter de servir.
Estava ansiosa por ter essa conversa.
Não precisava de levar todas as pastas consigo. À medida que as lia, ficavam-lhe indelevelmente gravadas na memória. Levou o diário de Palmgren, o relatório de Bjõrck de 1991, o relatório médico de 1996, em que era declarada interdita, e a correspondência entre Teleborian e Bjõrck. Era o bastante para lhe encher a mochila.
Fechou a porta, mas ainda não rodara a chave na fechadura quando ouviu o som de motores de motos nas suas costas. Voltou-se. Era demasiado tarde para esconder-se, e não tinha a mais pequena chance de fugir a dois tipos montados em Harley-Davidsons. Desceu lentamente os degraus do alpendre e enfrentou-os no caminho de acesso.
Bublanski marchou furiosamente pelo corredor e verificou que Hedstrõm não tinha voltado ao gabinete de Modig. Mas também não estava na casa de banho. Continuou corredor fora e encontrou-o, com um copo de café na mão, a conversar com Andersson e Bohman.
Deu meia-volta sem ter sido visto e subiu o lanço de escadas até ao gabinete de Ekstrõm. Abriu a porta de repelão, sem bater, e interrompeu o procurador a meio de uma conversa telefónica.
- Vem comigo - disse.
- Como? - espantou-se Ekstrõm.
- Desliga o telefone e vem comigo.
A expressão de Bublanski era tal que o procurador fez o que ele dizia. Era em ocasiões como aquela que se tornava fácil de compreender por que motivo Bublanski conquistara a alcunha de Inspector Bolha. A cara dele parecia um balão de defesa antiaérea, vermelho-vivo. Desceram até ao gabinete de Andersson, onde a conversa continuava. Bublanski avançou para Hedstrõm, agarrou-o pelos cabelos e voltou-o para Ekstrõm.
- Eh, que raio é isto? Enlouqueceu?
- Bublanski! - gritou Ekstrõm, alarmado. Bohman e Andersson estavam de boca aberta.
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- Isto é teu? - perguntou Bublanski, brandindo o telemóvel.
- Largue-me!
- ESTE TELEMÓVEL É TEU?
- Sim, raios! Largue-me.
- Ainda não. Estás preso.
- Estou o quê?
- Estás preso por quebra de sigilo profissional e por interferir na investigação policial. Ou isto, ou dás-nos uma explicação razoável para o facto de, segundo a tua lista de chamadas, teres ligado para um jornalista que dá pelo nome de Tony Scala às nove horas e cinquenta e sete minutos, logo a seguir à nossa reunião e momentos antes de o Scala ter tornado pública a informação que tínhamos decidido manter secreta.
Depois de ter recebido instruções para ir a Stallarholmen e atear um novo incêndio, Lundin dirigira-se à sede do clube, na gráfica, abandonada nos arredores de Svavelsjõ, e recrutara a ajuda de Nieminen. Era a primeira vez, depois do Inverno, que estava um tempo perfeito para andar de moto. Tinha indicações pormenorizadas e estudara o mapa. Vestiram as roupas de couro e percorreram rapidamente a distância de Svavelsjõ a Stallarholmen.
Lundin nem queria acreditar quando viu Lisbeth Salander no caminho de acesso diante da cabana de Bjurman. Teve a certeza de que era ela, apesar de parecer diferente. Aquilo era uma peruca? Estava ali de pé, imóvel, à espera deles. Era um bónus que ia fazer o gigante loiro vir-se de contentamento.
Continuaram a avançar e pararam a dois metros dela, um de cada lado. Quando desligaram os motores, fez-se um silêncio absoluto no bosque. Lundin não sabia muito bem o que dizer. Finalmente, conseguiu falar.
- Ora esta, quem diria! Há já algum tempo que andávamos à tua procura. Sonny, apresento-te Frõken Salander.
Sorriu. Lisbeth cravou nele uns olhos sem expressão. Reparou que ainda tinha uma cicatriz recente, muito vermelha, no rosto e no queixo, onde ela o cortara com as chaves. Ergueu os olhos para a copa
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das árvores, atrás dele. Depois, voltou a baixar o olhar. Tinha uns olhos estranhamente escuros, como carvão.
- Tive uma semana desgraçada e estou de péssimo humor - disse ela. - E sabes o que é o pior? Sempre que me volto, encontro um monte de merda barrigudo no meu caminho, a armar-se em duro. Quero ir-me embora. Desandem.
Lundin ficou de queixo caído. Julgou ter ouvido mal. Então, começou a rir involuntariamente. A situação era ridícula. Ali estava uma miúda escanzelada, que quase lhe cabia num bolso, a armar-se em esperta com dois homens adultos que usavam nos coletes de couro o logo do M-C de Svavelsjõ, o que significava que eram motards dos mais perigosos e que em breve seriam membros de pleno direito dos HelFs Angels. Qualquer deles era capaz de parti-la aos bocados e enfiá-la nas bolsas da moto.
Mas mesmo que a gaja fosse chanfrada e fufa - como obviamente era, de acordo com os jornais e com o que acabara de ver dela ali diante da cabana -, o emblema que ambos ostentavam deveria ter imposto respeito. E respeito era coisa de que ela não dava nem sinais. Um tipo de comportamento que não podia ser tolerado, por muito ridícula que fosse a situação. Lançou um olhar a Nieminen.
- Acho que a fufa está a pedir pica, Sonny - disse ele, enquanto baixava o apoio e se apeava da moto.
Deu dois passos lentos na direcção de Lisbeth e olhou-a lá do alto. Ela não se moveu um milímetro. Lundin abanou a cabeça e suspirou. E então disparou um golpe com as costas da mão, com a mesma considerável força que usara para derrubar Mikael Blomkvist nas escadas da Lundagatan.
Bateu no ar. No preciso instante em que a mão dele deveria ter-lhe atingido a cara, Lisbeth Salander recuou um passo e voltou a imobilizar-se, fora do alcance.
Sonny Nieminen estava apoiado ao guiador da Harley, a observar o amigo e camarada com um ar divertido. Lundin ficou muito vermelho e tentou atingi-la mais duas vezes. De ambas as vezes, ela limitou-se a recuar. Lundin voltou a atacar, mais rápido.
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E então, repentinamente, Lisbeth deteve-se e despejou-lhe na cara metade do conteúdo de uma lata de gás pimenta. Os olhos dele ardiam como fogo. A ponta da bota dela subiu com toda a força e transformou-se em energia cinética que lhe acertou entre as pernas com uma pressão aproximada a 120 quilos por centímetro quadrado. Lundin arquejou e caiu de joelhos, ficando a uma altura mais confortável para Lisbeth, que o pontapeou na cara, deliberadamente, como se estivesse a marcar uma grande penalidade num jogo de futebol. Ouviu-se um desagradável ruído de coisas a partirem-se e Lundin caiu como um saco de batatas.
Nieminen demorou alguns segundos a compreender que qualquer coisa de inacreditável tinha acontecido diante dos seus olhos. Tentou baixar o apoio da moto, mas falhou e teve de olhar para baixo. Então decidiu jogar pelo seguro e tentou sacar da pistola que levava no bolso interior do blusão. Quando estava a puxar o fecho, viu um movimento pelo canto do olho.
Quando ergueu os olhos, Lisbeth corria para ele como se tivesse sido disparada por um canhão. Saltou com ambos os pés e acertou-lhe em cheio na anca, o que não o magoou seriamente, mas foi o suficiente para o fazer cair, a ele e à moto. Escapou por pouco a ficar com uma perna presa debaixo da Harley e recuou alguns passos aos tropeções até recuperar o equilíbrio.
Quando voltou a vê-la, ela acabava de rodar o braço e uma pedra do tamanho do punho dele voava pelos ares. Baixou-se instintivamente, e a pedra falhou-lhe a cabeça por uma questão de centímetros.
Conseguiu finalmente sacar da pistola e tentou baixar a patilha de segurança, mas Lisbeth já estava em cima dele. Viu a fúria nos olhos dela e, pela primeira vez, teve medo.
- Boa noite - disse Lisbeth.
Espetou-lhe o taser entre as pernas e descarregou 75 mil volts, mantendo os eléctrodos em contacto com o corpo durante pelo menos 20 segundos. Nieminen ficou transformado num vegetal.
Lisbeth ouviu um barulho nas suas costas e voltou-se. Lundin estava a pôr-se penosamente em pé. Olhou para ele de sobrancelhas
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arqueadas. Viu-o agitar cegamente os braços, a tentar vê-la por entre o nevoeiro ardente do gás pimenta.
- Vou-te matar! - rosnou ele.
Andava às apalpadelas pelo chão a tentar localizá-la. Ela observava-o com curiosidade. E então ele disse:
- Puta da merda!
Lisbeth inclinou-se e apanhou do chão a pistola que Nieminen deixara cair. Reparou que era uma P-83 Wanad, polaca.
Extraiu o carregador e verificou que continha as munições adequadas. Makarov, de nove milímetros. Puxou a culatra atrás e introduziu uma bala na câmara. Passou por cima de Nieminen, aproximou-se de Lundin, segurou a arma com ambas as mãos, apontou e deu-lhe um tiro num pé. Ele uivou de dor e voltou a cair.
Lisbeth olhou para ele e ponderou se valeria a pena perguntar-lhe quem era o gigante loiro que tinha visto no Café Blomberg. Segundo Sandstrõm, o homem assassinara alguém num armazém, com a ajuda de Lundin. Devia ter perguntado o que queria antes de lhe enfiar uma bala num pé. De momento, Lundin não parecia em condições de manter uma conversa lúcida, e havia a possibilidade de alguém ter ouvido o tiro. Podia sempre encontrá-lo mais tarde e fazer a pergunta em condições menos stressantes. Colocou a patilha em posição de segurança, guardou a arma no bolso do casaco e pegou na mochila.
Tinha-se afastado cerca de dez metros quando se deteve e olhou para trás. Regressou lentamente à cabana e examinou a moto de Lundin.
- Uma Harley-Davidson - disse ela. - Porreiro.
CAPÍTULO 27
QUARTA-FEIRA, 6 DE ABRIL
MIKAEL Blomkvist viajava para sul, no carro de Erika, a caminho de Nynãsvágen. Estava um belo dia de Primavera, e já se notava umas pinceladas de verde nos campos esmaecidos e calor no ar. O tempo perfeito, pensou ele, para deitar todos os problemas para trás das costas e ir passar alguns dias em paz e sossego na sua cabana em Sandhamn.
Tinha combinado com Bjõrck estar lá à uma da tarde, mas como ia adiantado aproveitou para parar em Dalarõ e beber um café enquanto lia os jornais. Não preparara o encontro. Bjõrck tinha qualquer coisa para lhe dizer e, desta vez, estava determinado a não sair de Smâdalarõ sem informações concretas a respeito de Zala.
Bjõrck viu-o chegar e foi esperá-lo à porta. Parecia mais seguro, mais satisfeito consigo mesmo do que há dois dias atrás. Que espécie de tramóia estás tu a preparar? Mikael não lhe apertou a mão.
- Posso dar-lhe informações sobre Zala - disse Bjõrck -, mas tenho algumas condições.
- Ouçamo-las.
- Não serei referido na denúncia da Millennium.
- De acordo.
Bjõrck pareceu surpreendido. Blomkvist aceitara de imediato, sem discutir, um ponto em relação ao qual estava a contar com uma longa negociação. Era a sua única cartada. Informação sobre os assassínios em troca do anonimato. Blomkvist concordara, abrindo mão de um título fortíssimo para a revista.
- Estou a falar a sério - disse Bjõrck. - E quero que o ponha por escrito.
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- Posso pôr, mas um documento desses não lhe serviria de muito. Cometeu um crime de que eu tenho conhecimento e a minha obrigação é denunciá-lo à polícia. Mas como sabe coisas que me interessam, e está a usar a sua posição para comprar o meu silêncio. Pensei no assunto e aceito. Não referirei o seu nome na Millennium. Ou acredita na minha palavra, ou não acredita.
Enquanto Bjõrck pensava no caso, Mikael continuou:
- Também eu tenho algumas condições. O preço do meu silêncio é você dizer-me tudo o que sabe. Se descubro que está a esconder-me alguma coisa, o nosso acordo torna-se nulo e ponho o seu nome na primeira página de todos os jornais da Suécia, como fiz com o Wennerstrõm.
Só a ideia fez Bjõrck estremecer.
- Muito bem - disse Bjõrck. - Não tenho por onde escolher. Digo-lhe quem é o Zala, mas vou precisar de confidencialidade absoluta.
Estendeu a mão. Mikael apertou-a. Acabava de prometer ser cúmplice no encobrimento de um crime, mas o facto não o perturbava nem um pouco. Tudo o que prometera fora que tanto ele como a Millennium nada escreveriam sobre Bjõrck. Mas Svensson já escrevera a história toda no seu livro. E o livro ia ser publicado.
A chamada chegou à polícia de Strángnãs às 15h18. Chegou directamente à central telefónica, e não através do serviço de emergência. Um homem chamado Õberg, proprietário de uma cabana de Verão a leste de Stallarholmen, comunicava que tinha ouvido o que lhe parecera ser o som de um tiro e fora ver o que se passava. Encontrara dois homens gravemente feridos. Bem, um deles talvez não estivesse assim tanto, mas estava cheio de dores. Ah, sim, a cabana pertencia a Nils Bjurman, o advogado. O falecido Nils Bjurman, o homem de quem tanto se falara nos jornais.
A polícia de Strángnãs já tivera um dia atarefado, numa grande operação stop na área da comuna. Durante a manhã, a operação policial tivera de ser interrompida quando alguém telefonara a informar que uma mulher de meia-idâde tinha sido assassinada pelo companheiro na casa que ambos partilhavam em Finninge. Quase ao mesmo tempo,
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um incêndio que deflagrara num barracão alastrara a uma casa, em Storgãrder. Fora encontrado um corpo no meio dos escombros. E, para compor o ramalhete, dois carros tinham chocado de frente na estrada de Enkõping. Com tudo isto, a polícia de Strángnãs estava praticamente sem ninguém disponível.
No entanto, a graduada de serviço estivera a acompanhar os acontecimentos daquela manhã em Nykvarn, e deduzira que este novo incidente deveria ter alguma coisa que ver com a tal Lisbeth Salander que toda a gente procurava, sobretudo por causa da referência a Nils Bjurman. O que a levou a agir em três frentes. Em primeiro lugar, requisitou a única viatura da polícia que restava e seguiu directamente para Stallarholmen. Entretanto, ligou para os colegas de Sõdertãlje e pediu-lhes ajuda - mas também a força policial de Sõdertãlje estava com falta de efectivos, dado que uma parte dos seus membros fora destacada para um armazém incendiado a sul de Nykvarn para investigar se havia cadáveres nas imediações. Mas a possível conexão entre Nykvarn e Stallarholmen convencera o graduado de serviço a enviar dois carros-patrulha para dar uma mão à colega de Strángnãs. Por fim, ligara para o inspector Bublanski, em Estocolmo. Apanhara-o no telemóvel.
Bublanski estava na Milton Security, numa reunião com Armans-kij e dois dos seus homens, Fráklund e Bohman. Hedstrõm primava pela ausência.
Bublanski despachou imediatamente Andersson para a cabana de Bjurman, e disse-lhe que levasse Faste consigo, se conseguisse encontrá-lo. Depois de pensar um pouco, ligou também para Hol-mberg, que estava em Nykvarn e, portanto, consideravelmente mais perto de Stallarholmen. Holmberg tinha novidades' para lhe dar.
- Identificámos o corpo enterrado.
- Isso é impossível. Tão depressa?
- Torna-se tudo bastante mais fácil quando as pessoas têm a gentileza de se fazer enterrar com a carteira e o BI.
- Está bem. Quem é?
- Uma celebridade menor. Kenneth Gustafsson, conhecido como "o Vagabundo". O nome diz-te alguma coisa?
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- Deves estar a brincar! "O Vagabundo" enterrado num buraco em Nykvarn? Um malandro urbano de segunda categoria, traficante, gatuno e drogado?
- Esse mesmo. Pelo menos, de acordo com o BI na carteira. A identificação vai ter de ser confirmada pelo médico legista, e vai ser como montar um quebra-cabeças. Cortaram o desgraçado em cinco ou seis pedaços.
- Interessante. O Paolo Roberto diz que o super peso pesado com que lutou estava a ameaçar a Miriam Wu com uma motosserra.
- Pode ter sido uma motosserra, mas não olhei assim de tão perto. Começámos a cavar no segundo local. Estão agora mesmo a montar a tenda.
- Óptimo. Jerker... eu sei que tem sido um longo dia, mas podes ficar para a noite?
- Claro, tudo bem. Vou deixá-los continuar com isto aqui e dou um salto a Stallarholmen.
Bublanski desligou e esfregou os olhos.
A força de intervenção apressadamente reunida em Strãngnás chegou à cabana de Bjurman às 15h44. Na estrada de acesso, chocaram literalmente com um homem que, numa Harley-Davidson, zi-guezagueava de uma berma à outra até ir embater de frente com a carrinha. A colisão não foi muito violenta. Os polícias apearam-se e identificaram Sonny Nieminen, de 37 anos, um assassino que ganhara alguma notoriedade em meados dos anos 90. Quando lhe puseram as algemas, ficaram surpreendidos ao reparar que as costas do colete de couro tinham sido cortadas. Faltava um quadrado com cerca de 20 centímetros de lado. Era estranho. Nieminen recusou discutir o assunto.
Enfiaram-no na carrinha e percorreram os 200 metros que faltavam até à cabana. Encontraram um funcionário portuário reformado chamado Õberg a ligar o pé de um tal Carl-Magnus Lundin, de 30 anos, líder de um bando de patifes que se fazia chamar Moto-Clube de Svavelsjõ.
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O chefe da equipa policial era o inspector Nils-Henrik Johansson. Apeou-se da carrinha, ajeitou o cinturão, olhou para a triste criatura caída no chão e fez a pergunta clássica de todos os polícias:
- Que se passa aqui?
Õberg parou de enfaixar o pé de Lundin e lançou-lhe um rápido olhar.
- Fui eu que os chamei.
- Disse ter ouvido tiros.
- Disse que tinha ouvido um tiro, que tinha vindo investigar e que tinha encontrado estes tipos. Este levou um tiro num pé e apanhou uma tareia. Acho que precisa de uma ambulância. - Olhou para a carrinha da polícia. - Vejo que apanharam o outro. Estava completamente apagado quando cheguei, mas não parecia ferido. Acordou pouco depois, mas não ficou para ajudar o parceiro.
Jerker Holmberg chegou ao mesmo tempo que a polícia de Sõdertãlje, quando a ambulância já se retirava. Ouviu um breve resumo das observações da equipa. Nem Lundin nem Nieminen se tinham mostrado dispostos a explicar o que estavam ali a fazer. Lundin, aliás, mal se encontrava em condições de falar.
- Temos, portanto, dois motards vestidos de couro, uma Harley-Davidson, um ferido a tiro e nenhuma arma. Percebi bem? - disse Holmberg.
Johansson assentiu.
- Podemos descartar a hipótese de um destes heróis machões ter vindo à pendura?
-Julgo que é considerado pouco viril nos meios que frequentam - respondeu Johansson.
- Nesse caso, falta-nos uma moto. Como a arma também falta, só podemos concluir que uma terceira pessoa abandonou o local levando a moto e a arma.
- Parece razoável.
- Mas cria um enigma. Se estes dois cavalheiros de Svavelsjõ vieram de moto, falta-nos também o veículo em que a terceira pessoa chegou, sendo que essa terceira pessoa não pode ter levado o seu
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próprio veículo e a moto. E é uma longa caminhada desde a estrada de Strãngnâs até aqui.
- A menos que a terceira pessoa vivesse na cabana.
- Hum - fez Holmberg. - Mas a cabana é propriedade do falecido doutor Bjurman, e, com toda a certeza, ele já não vive aqui.
- Nesse caso, teve de haver uma quarta pessoa que levou o carro.
- Porque não iriam as duas no carro? Assumo que toda esta história não tem a ver com o roubo de uma Harley, por mais desejáveis que elas sejam.
Pensou um pouco, e então pediu ao chefe da equipa que destacasse dois agentes para procurarem um veículo abandonado nas estradas vizinhas e baterem às portas na área circundante para tentarem saber se alguém tinha visto alguma coisa de invulgar, quaisquer veículos pertencentes a desconhecidos.
- Não há muitas cabanas habitadas nesta altura do ano - respondeu Johansson, mas prometeu fazer o que fosse possível.
Holmberg empurrou a porta aberta da cabana. Viu imediatamente, em cima da mesa da cozinha, as caixas de arquivo com os relatórios de Bjurman sobre Lisbeth Salander. Sentou-se e começou a folheá-los, cada vez mais espantado.
Holmberg estava com sorte. Meia hora apenas depois de ter começado a bater à porta das cabanas esparsamente habitadas, a equipa da polícia local encontrou Anna Viktoria Hansson. Passara aquela manhã de Primavera a limpar o jardim perto da estrada de acesso à zona das cabanas. Sim, era verdade, podia ter 72 anos mas ainda via muito bem, obrigada. Sim, tinha visto uma rapariga baixinha, de casaco escuro, passar a pé, por volta da hora do almoço. Às três da tarde, tinham passado dois homens de moto. A fazer uma barulheira horrível. E, pouco depois, a rapariga tinha passado em sentido contrário, numa das motos, ou talvez numa diferente, não sabia dizer. Bem, parecia a rapariga, mas com o capacete, não podia ter a certeza absoluta. E depois tinham começado a chegar os carros da polícia.
No preciso instante em que Holmberg tomava nota deste depoimento, Andersson chegou à cabana.
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- Que se passa aqui? - perguntou. Holmberg olhou sombriamente para o colega.
- Não sei muito bem como explicar-te isto - disse.
- Jerker, estás a querer dizer-me que a Lisbeth Salander apareceu na cabana de férias do Bjurman e, sozinha, arrumou o escalão superior do Moto-Clube de Svavelsjõ?
A voz de Bublanski soou tensa.
- Bem, não esqueçamos que foi treinada pelo Paolo Roberto.
- Jerker, por favor, deixa-te de tretas.
- Okay, ouve esta. O Magnus Lundin tem um buraco de bala num pé. O que vai deixá-lo coxo para o resto da vida. A bala saiu pelo calcanhar, levando a bota.
- Pelo menos, não lhe deu um tiro na cabeça.
- Aparentemente, não era preciso. De acordo com a equipa local, o Lundin apresenta ferimentos graves no rosto: tem o queixo partido e dois dentes a menos. Os paramédicos suspeitam de traumatismo. Além do tiro no pé, tem também dores violentas no abdómen.
- E o Nieminen?
- Não tem ferimentos. Mas o velhote que chamou a polícia daqui diz que o encontrou inconsciente. Recuperou os sentidos pouco depois e estava a tentar ir-se embora quando a equipa de Strángnás chegou.
Bublanski ficou sem palavras.
- Há um pormenor misterioso... - continuou Holmberg.
- Mais um?
- O colete de couro do Nieminen... sim, veio de moto.
- E então?
- Foi cortado.
- Cortado como?
- Falta-lhe um pedaço. Um quadrado com cerca de vinte centímetros de lado, nas costas. Onde está o emblema do Moto-Clube de Svavelsjõ.
Bublanski arqueou as sobrancelhas.
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- Porque haveria a Salander de cortar-lhe um pedaço do colete? Como troféu? Por vingança? Mas vingança pelo quê?
- Não faço ideia. Mas pensei numa coisa. O Magnus Lundin é barrigudo e usa rabo-de-cavalo. Um dos tipos que raptou a amiga da Salander era barrigudo e usava rabo-de-cavalo.
Lisbeth Salander não apreciava uma sensação daquelas desde que visitara o parque de diversões de Grõna Lund, anos antes, e experimentara a Grande Queda Livre. Fora três vezes, e teria ido outras três, se tivesse dinheiro.
Uma coisa era montar uma Kawasaki de 125 cc, que, na realidade, pouco mais era do que uma motocicleta artilhada, e outra completamente diferente controlar uma Harley-Davidson de 1450 cc. Os primeiros 300 metros pela esburacada estrada florestal que dava acesso à cabana de Bjurman tinham sido uma autêntica montanha-russa, e ela sentira-se como um giroscópio vivo. Pelo menos duas vezes, quase enfiara pelo meio das árvores até conseguir recuperar o controlo da moto.
O capacete estava constantemente a escorregar para a frente, tapando-lhe a vista, apesar de o ter atulhado com um pedaço de couro que cortara do colete acolchoado de Nieminen. Não se atrevia a parar para ajustá-lo, por medo de não conseguir aguentar o peso da moto. Era demasiado baixa para chegar ao chão com os dois pés e receava que a Harley tombasse para o lado. Se isso acontecesse, nunca seria capaz de pô-la de pé.
As coisas começaram a correr melhor quando chegou à estrada de saibro que conduzia à zona das cabanas, e quando, minutos depois, voltou para a estrada de Strángnás, arriscou tirar uma mão do guiador para endireitar o capacete. Então, deu um pouco de gás à Harley. Cobriu a distância até Sõdertálje num instante, com um sorriso de êxtase estampado na cara durante todo o caminho. Um pouco antes de Sõdertálje, dois Volvos azuis e amarelos da polícia, com as sereias a uivar, passaram a toda a velocidade na direcção contrária.
O mais sensato seria abandonar a Harley em Sõdertãlje e deixar que Irene Nesser apanhasse o comboio de regresso a Estocolmo,
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mas Lisbeth não conseguiu resistir à tentação. Meteu pela E4 e acelerou. Não excedeu o limite de velocidade - bem, não muito, pelo menos -, mas, mesmo assim, foi como estar em queda livre. Só saiu da estrada em Àlvsjõ, onde, nos terrenos da Feira de Exposições de Estocolmo, conseguiu estacionar o monstro sem o deixar tombar. Teve muita pena de abandonar a moto, juntamente com o capacete e o pedaço de couro do colete de Nieminen. Foi a pé até à estação do comboio. Estava completamente gelada. Apeou-se na estação seguinte, Sõdra, fez a pé o resto do caminho até Mosebacke e encheu a banheira de água quente.
- O nome dele é Alexander Zalachenko - disse Bjõrck. - Mas, oficialmente, não existe. Não o encontrará no registo nacional.
Zala. Alexander Zalachenko. Finalmente, um nome.
- Quem é ele e onde posso encontrá-lo?
- Não é uma pessoa que queira encontrar.
- Diga-me, de todos os modos.
- O que vou dizer-lhe é informação altamente secreta. Se vem a saber-se que fui eu que lhe contei isto, mandam-me para a prisão. É um dos segredos mais profundamente escondidos de todo o sistema de defesa sueco. Tem de compreender por que motivo é tão importante que garanta o meu anonimato.
-Já o fiz - disse Mikael Blomkvist, impaciente.
- Alexander Zalachenko nasceu em Estalinegrado, em 1940. Tinha um ano quando começou a ofensiva alemã na frente leste. Ambos os pais morreram na guerra. Pelo menos, é o que ele pensa. Não sabe verdadeiramente o que aconteceu. As suas recordações mais antigas são de um orfanato, nos Urales.
Mikael tomava rapidamente notas.
- O orfanato ficava numa cidade militarizada e era gerido pelo Exército Vermelho. Pode-se dizer que o Zalachenko teve uma educação militar desde muito cedo. Depois do fim da União Soviética, foram tornados conhecidos documentos que provavam a existência de experiências para criar uma elite de soldados particularmente atléticos entre os órfãos a cargo do Estado. O Zalachenko foi um deles. Para resumir a história: quando tinha cinco anos, puseram-no numa escola
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do exército, onde deu provas de uma inteligência invulgar. Em 1955, com quinze anos, mandaram-no para a escola militar de Novosibirsk, onde, juntamente com dois mil outros rapazes, recebeu um treino igual ao dos Spetsnaz, as tropas de elite russas.
- Okay, passemos à parte adulta.
- Em 1958, foi transferido para Minsk, para receber treino especializado no GRU. Glavnoye razvedyvatelnoye upravlenie, o serviço de informações militar que está directamente subordinado ao alto comando do exército. Mas que não deve ser confundido com o KGB, a polícia secreta civil. Os agentes que se ocupam da espionagem e das operações no estrangeiro são regra geral do GRU. Com vinte anos, o Zala-chenko foi enviado para Cuba. Fazia parte do treino e ele tinha ainda o posto equivalente a alferes. Mas esteve lá dois anos, e apanhou a crise dos mísseis e a invasão da Baía dos Porcos. Em 1963, regressou a Minsk para prosseguir o treino. Depois disso, foi colocado primeiro na Bulgária e a seguir na Hungria. Em 1965, foi promovido a tenente e enviado para o seu primeiro posto na Europa Ocidental, em Roma, onde serviu durante um ano. Foi a sua primeira missão secreta. Era um civil, com um passaporte falso, claro, e sem quaisquer contactos com a embaixada.
Mikael assentia enquanto tomava notas. Ainda que a contragosto, começava a ficar interessado.
- Em 1967, foi transferido para Londres, onde organizou a execução de um trânsfuga do KGB. Ao longo dos dez anos seguintes, tornou-se um dos principais agentes do GRU. Pertencia à verdadeira elite dos soldados políticos. Fala fluentemente seis línguas. Trabalhou como jornalista, como fotógrafo, em publicidade, como marinheiro.. em tudo e mais alguma coisa. Era um artista da sobrevivência, um perito em disfarces e embustes. Comandava os seus próprios agentes e organizava ou dirigia as suas próprias operações. Várias destas operações eram contratos para eliminar certas pessoas, e muitas delas tiveram como cenário certos países do terceiro mundo, mas também estava envolvido em extorsão, intimidação e missões de muitos outros tipos de que os seus superiores o encarregavam. Em 1969, foi promovido a capitão, em 1972 a major e em 1975 a tenente-coronel.
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- Como é que veio parar à Suécia?
- Já vou chegar a essa parte. Com o passar dos anos, tornou-se corrupto, e começou a desviar uns dinheiros aqui e ali. Bebia demasiado e andava metido com mulheres. Tudo isto era do conhecimento dos superiores, mas continuava a ser um dos favoritos e perdoavam-lhe estes pecadilhos. Em 1976, foi enviado a Espanha, em missão. Não precisamos de entrar em pormenores, mas a missão foi um desastre total e, de repente, ele tinha caído em desgraça e foi chamado a Moscovo. Resolveu ignorar a ordem, o que o deixou numa situação ainda pior. O GRU ordenou ao adido militar em Madrid que o encontrasse e falasse com ele. Houve qualquer coisa que correu mal, e o Zalachenko matou o homem da embaixada. A partir daquele instante, deixou de ter alternativa. Tinha pisado o risco, e decidiu desertar. Deixou um rasto que ia de Espanha a Portugal e a um possível acidente de barco. Deixou também pistas que sugeriam a intenção de fugir para os Estados Unidos. Na realidade, a escolha dele recaiu no mais improvável país da Europa. Veio para a Suécia, onde contactou a Polícia de Segurança Nacional, a Sapo, e pediu asilo. Foi muito bem pensado, porque a probabilidade de uma equipa de execução do KGB ou do GRU o procurar aqui era praticamente nula.
Bjõrck calou-se.
-E?
- Que é suposto o governo fazer quando um dos principais espiões soviéticos resolve desertar e pedir asilo na Suécia? Acabava de ser empossado um governo conservador. Na realidade, o caso Zala foi o primeiro assunto que levámos ao conhecimento do novo ministro dos Negócios Estrangeiros. Aqueles cobardes políticos queriam livrar-se da batata quente, claro, mas não podiam mandá-lo pura e simplesmente de volta para os soviéticos... seria um escândalo de proporções inauditas, se alguma vez se soubesse. Em vez disso, tentaram despachá-lo para os Estados Unidos ou para Inglaterra. O Zalachenko recusou. Não gostava da América e sabia que a Inglaterra era um dos países onde os soviéticos tinham agentes infiltrados ao mais alto nível dos serviços de informação militares. Não queria ir para Israel, porque não gostava dos judeus. Por isso decidiu instalar-se na Suécia.
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Tudo aquilo parecia tão improvável que ocorreu a Mikael que talvez Bjõrck estivesse a mentir.
- Ficou então na Suécia?
- Exactamente. Durante muitos anos, foi um dos segredos militares mais bem guardados do país. O que aconteceu foi que recebemos excelentes informações do Zalachenko. Durante algum tempo, no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, foi a jóia da coroa dos trânsfugas, a patente mais alta de um dos comandos de elite do GRU.
- O que lhe permitia vender informação?
- Precisamente. Jogava bem as cartas de que dispunha e ia vendendo pedaços de informação à medida das suas conveniências. Permitiu-nos identificar um agente no quartel-general da NATO, em Bruxelas. Outro em Roma. O contacto de toda uma rede de espiões em Berlim. A identidade dos executores que tinha usado em Ancara e em Atenas. Não sabia grande coisa sobre a Suécia, mas nós passávamos a informação que ele nos fornecia. A troco de favores. Era uma mina de ouro.
- Portanto, começaram a cooperar com ele.
- Demos-lhe uma nova identidade, um passaporte, algum dinheiro, e ele governava-se sozinho. Era para o que tinha sido treinado.
Mikael ficou sentado e em silêncio durante algum tempo, a digerir aquela informação. Então, olhou para Bjõrck.
- Mentiu-me da última vez que cá estive.
- Menti?
- Disse-me que tinha conhecido o Bjurman no clube de tiro da polícia, nos anos oitenta. Mas conheceu-o muito antes disso.
- Foi uma reacção automática. É confidencial, e não havia qualquer razão para eu lhe explicar como tinha conhecido o Bjurman. Foi só depois de me ter perguntado sobre o Zala que fiz a ligação.
- Conte-me o que aconteceu.
- Eu tinha trinta e três anos e trabalhava para a Sapo há três. O Bjurman era bastante mais novo, e acabava de licenciar-se. Tratava de certos assuntos legais para a Sapo. Era uma espécie de estágio. O Bjurman é de Karlskrona, e o pai trabalhava nas informações militares.
- E?
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- Nem o Bjurman nem eu estávamos minimamente qualificados para lidar com alguém como o Zalachenko, mas ele entrou em contacto com a Sapo no dia das eleições, em 1976. Não havia quase ninguém na sede... estava toda a gente de folga ou em patrulhamento, e coisas assim. E o Zalachenko escolheu precisamente aquele dia para entrar na esquadra de polícia de Norrmalm e declarar que queria pedir asilo político e falar com alguém da Polícia de Segurança Nacional. Não disse quem era. Eu estava de serviço e pensei que se tratasse de um simples refugiado, de modo que levei o Bjurman comigo, como consultor legal. Encontrámo-nos com ele em Norrmalm.
Bjõrck esfregou os olhos.
- Estava lá sentado numa sala, e disse-nos muito tranquilamente quem era e no que tinha trabalhado. Eu interrompi a conversa e levei-o a ele e ao Bjurman para as imediações da esquadra. Não sabia o que fazer, de modo que aluguei um quarto no Hotel Continental, mesmo em frente da Estação Central, e enfiei-o lá. Disse ao Bjurman que ficasse a tomar conta dele enquanto eu ia telefonar ao meu superior. - Riu-se. - Penso muitas vezes que nos comportámos como autênticos amadores. Mas foi assim que aconteceu.
- Quem era o seu chefe?
- Isso não vem ao caso. Não vou dar-lhe mais nome nenhum. Mikael encolheu os ombros e não insistiu.
- O que o meu chefe me disse foi aquilo que eu já sabia: era uma situação que exigia a discrição mais absoluta e em que devíamos envolver o menor número de pessoas possível. O Bjurman nunca devia ter tido nada que ver com aquilo... estava a quilómetros acima do nível dele... mas uma vez que já estava metido, mais valia mantê-lo na jogada do que envolver mais alguém. Suponho que o mesmo raciocínio se aplicava a um agente de terceira linha, como eu. No hm, houve apenas sete pessoas associadas à Sapo que souberam da existência do Zalachenko.
- Quantas outras conheceram esta história?
- De 1976 até ao início de 1990... ao todo vinte pessoas no governo, no alto comando militar e dentro da Sapo.
- E depois do início de 1990?
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Bjõrck encolheu os ombros.
- Depois do colapso da União Soviética, o assunto deixou de ter interesse.
- Mas que aconteceu depois de o Zalachenko vir para a Suécia? Bjõrck ficou calado durante tanto tempo que Mikael começou a
sentir-se inquieto.
- Para ser franco... o Zalachenko foi um grande êxito, e os que de nós estiveram envolvidos fizeram as suas carreiras à conta disso. Não me interprete mal, era um trabalho a tempo inteiro. Eu fui nomeado mentor dele na Suécia, e durante os primeiros dez anos encontrávamo-nos pelo menos um par de vezes por semana. Isto foi durante os anos relevantes, quando ele estava cheio de informação fresca. Mas era também para mantê-lo sob controlo.
- Em que sentido?
- O Zalachenko era um malandro esperto. Conseguia ser verdadeiramente encantador, mas também paranóico e completamente louco. Apanhava enormes bebedeiras, e nessas alturas tornava-se violento. Perdi a conta às vezes que tive de intervir e livrá-lo das alhadas em que se tinha metido.
- Por exemplo...
- Por exemplo, de uma vez em que ele foi a um bar e se pôs a discutir com um tipo qualquer e ia matando à pancada dois seguranças que tentaram acalmá-lo. Era um tipo pequeno, mas extremamente hábil no combate corpo a corpo, uma habilidade que, infelizmente, demonstrou em diversas ocasiões. Uma vez, fui buscá-lo a uma esquadra de polícia.
- Com esse comportamento, corria o risco de atrair atenções. Não me parece muito profissional.
- Ele era assim. Não tinha cometido nenhum crime na Suécia e nunca foi preso. Nós tínhamos-lhe dado um nome sueco, um passaporte sueco e um BI. E tinha uma casa que a Sapo pagava. Pagávamos-lhe também um ordenado, para estar disponível. Mas não podíamos impedi-lo de frequentar bares ou de andar com mulheres. Tudo o que podíamos fazer era limpar a trampa que ele deixava para trás. Foi o meu trabalho até 1985, quando me deram outro posto e o meu sucessor herdou o Zalachenko.
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- E o papel do Bjurman?
- Para ser franco, o Bjurman era um peso morto. Não era particularmente inteligente. Na realidade, era o homem errado para o trabalho errado. Foi por puro acaso que se envolveu no caso Zalachenko, e mesmo assim foi só nos primeiros tempos e só quando precisávamos dele para tratar de qualquer pequena formalidade legal. O meu superior resolveu o problema com o Bjurman.
- Como?
- Da maneira mais fácil possível. Arranjou-lhe um emprego fora da força policial, numa empresa de advogados que tinha, digamos, estreitas relações connosco.
- A Klang e Reine.
Bjõrck olhou vivamente para Mikael.
- Sim. Ao longo dos anos, foi sempre fazendo um ou outro trabalho, pequenas investigações, para a Sapo. Portanto, de um certo modo, também ele construiu a sua carreira à conta do Zalachenko.
- Onde está actualmente o Zalachenko?
- Não sei. Os contactos entre nós começaram a abrandar a partir de 1985, e há quase doze anos que não sei nada dele. A última coisa que ouvi dizer foi que tinha saído do país, em 1992.
- Aparentemente, está de volta. O nome dele apareceu ligado a uma investigação sobre armas, drogas e tráfico de mulheres.
- Não me espanta. Mas não sabe de certeza se é este Zala que procura ou outra pessoa qualquer.
- A probabilidade de aparecerem dois Zalachenko nesta história deve ser mínima. Qual foi o nome sueco que lhe deram?
- Não vou revelar-lhe isso.
- Tinha prometido responder às minhas perguntas.
- Queria saber quem era o Zala, e eu disse-lhe. Mas não vou dar-lhe a última peça do quebra-cabeças até saber que cumpriu a sua parte do acordo.
- O Zala cometeu provavelmente três assassínios e a polícia anda atrás da pessoa errada. Se pensa que vou ficar satisfeito sem o nome do Zala, está enganado.
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- O que é que o leva a pensar que a Lisbeth Salander não é a assassina?
- Sei que não é.
Bjõrck sorriu. De repente, sentia-se muito mais seguro.
- Estou convencido de que o assassino é o Zala.
- Errado. O Zala não matou ninguém.
- Como é que pode saber uma coisa dessas?
- Porque o Zala tem agora sessenta e tal anos e é deficiente. Amputaram-lhe um pé e quase não consegue andar. Portanto, não pode ter andado a correr por Odenplan e Enskede aos tiros às pessoas. Para ir matar alguém, só se fosse de ambulância.
Malin Eriksson sorriu delicadamente à inspectora Modig.
- Vai ter de perguntar isso ao Mikael.
- Está bem, perguntarei.
- Não posso discutir a pesquisa dele consigo.
- E se este Zala for um potencial suspeito...
- Terá de discutir o assunto com o Mikael. Posso ajudá-la com o trabalho que o Dag estava a fazer, mas não posso falar-lhe da nossa própria investigação.
Modig suspirou.
- O que pode dizer-me sobre as pessoas desta lista?
- Só o que o Dag escreveu, nada a respeito das fontes. Mas posso dizer-lhe que, até agora, o Mikael já riscou cerca de uma dúzia de nomes. Talvez ajude.
Não, não ajuda nada. A polícia vai ter de falar formalmente com todos eles. Um juiz. Dois advogados. Vários políticos e jornalistas... e colegas da polícia. Um autêntico carrossel. Modig sabia que deviam ter começado a fazer aquilo logo no dia seguinte aos assassínios.
Os olhos dela pousaram num nome da lista. Gunnar Bjorck.
- Não há um endereço para este homem.
-Não.
- Porque não?
- Trabalha para a Polícia de Segurança Nacional. A morada dele não aparece registada. De momento, está de baixa por doença. O Dag nunca conseguiu encontrá-lo.
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- E vocês? - perguntou Modig, com um sorriso.
- Pergunte ao Mikael.
, Sonja Modig ficou a olhar para a parede por cima da secretária de Svensson. Estava a pensar.
- Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- Força.
- Quem acham vocês que matou os vossos amigos e o advogado? Malin desejou que Mikael estivesse ali para lidar com aquelas
perguntas. Era desconfortável ser interrogada por uma inspectora da polícia. E era ainda mais desagradável não poder explicar exactamente a que conclusões a Millennium tinha chegado. Foi então que ouviu a voz de Erika, nas suas costas.
- A nossa teoria é que os assassínios foram cometidos para impedir que uma parte da denúncia que o Dag Svensson se preparava para fazer se tornasse do conhecimento público. Mas não sabemos quem foi o assassino. Neste momento, o Mikael concentra as suas atenções num homem chamado Zala.
Modig voltou-se para olhar para a directora editorial da Millennium. Erika segurava duas canecas de café, decoradas respectivamente com os emblemas do Sindicato dos Funcionários Públicos e do Partido Democrata-Cristão. Sorriu docemente e regressou ao seu gabinete.
Voltou a aparecer três minutos mais tarde.
- Inspectora Modig, o seu chefe acaba de telefonar. Tem o telemóvel desligado. Quer que lhe ligue.
Foi emitido um alerta geral a anunciar que Lisbeth Salander tinha finalmente saído do seu buraco. O comunicado indicava que se fazia provavelmente transportar numa Harley-Davidson, que estava armada e tinha atingido a tiro alguém numa cabana de férias nas proximidades de Stallarholmen.
A polícia montou postos de controlo nas estradas em Strángnãs, Mariefred e Sõdertãlje. Nessa tarde, todos os comboios que fazem a ligação entre Sõdertãlje e Estocolmo foram revistados. Não foi encontrado ninguém que correspondesse à descrição de Lisbeth Salander.
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Por volta das 19h00, uma patrulha da polícia encontrou a Har-ley-Davidson abandonada nos terrenos da Feira de Exposições, em Àlvsjo, o que mudou o foco da perseguição de Sõdertálje para Estocolmo. O relatório de Âlvsjõ dizia que fora igualmente encontrado parte de um colete de couro com o emblema do Moto-Clube de Sva-velsjõ. A notícia da descoberta fez o inspector Bublanski empurrar os óculos para o alto da testa e olhar sombriamente para a escuridão pela janela do seu gabinete em Kungsholmen.
Os desenvolvimentos do dia não tinham levado a nada. O rapto da amiga de Lisbeth Salander, o bizarro envolvimento do pugilista Paolo Roberto, o fogo posto perto de Sõdertálje e os corpos enterrados no meio das árvores. E, para culminar, os confusos acontecimentos de Stallarholmen.
Foi até à principal sala de reuniões e olhou para o mapa de Estocolmo e arredores. Encontrou Stallarholmen, Nykvarn, Svavelsjõ e, por fim, Âlvsjõ, os quatro lugares que, por razões aparentemente diferentes, concentravam de momento as atenções. Deslocou os olhos para Enskede e suspirou. Teve a desagradável sensação de que a sua investigação estava alguns quilómetros atrasada em relação ao desenrolar dos acontecimentos. Fosse o que fosse que estava por detrás dos assassínios de Enskede, era muito mais complicado do que tinham suposto.
Mikael Blomkvist nada sabia do que acontecera em Stallarholmen. Saiu de Smâdalarõ por volta das três da tarde. Parou numa estação de serviço e bebeu um café, enquanto tentava perceber o que acabava de descobrir.
Estava surpreendido por Bjõrck lhe ter dado tantos pormenores, mas o homem recusara absolutamente revelar a última peça do quebra-cabeças: a identidade sueca de Alexander Zalachenko.
- Temos um acordo - dissera ele.
- E eu cumpri a minha parte. Disse-lhe quem é o Zalachenko. Se quiser mais do que isso, teremos de fazer um novo acordo. Tenho de ter garantias de que o meu nome será retirado de todo o vosso material de pesquisa. E também tenho de ter garantias de que nunca relacionará o meu nome à história do Zalachenko.
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Mikael estava disposto a ir até ao ponto de tratar Bjõrck como uma fonte anónima relativamente à história de fundo, mas não podia garantir que o homem não seria identificado por terceiros - a polícia, por exemplo, - como sendo a sua fonte.
- Não estou preocupado com a polícia - dissera Bjõrck.
Por fim, tinham combinado pensar no assunto durante um ou dois dias até retomarem a conversa.
Ali sentado a beber o café, Mikael tinha a sensação de que havia qualquer coisa mesmo em frente do seu nariz que não estava a ver. Estava tão perto que até conseguia sentir as suas formas, mas não era capaz de focar a imagem. Lembrou-se então de que havia outra pessoa que talvez pudesse lançar alguma luz sobre tudo aquilo. Estava muito perto do Centro de Reabilitação de Ersta. Olhou para o relógio. Ia falar com Holger Palmgren.
A conversa com Blomkvist deixara Bjõrck completamente exausto. As costas doíam-lhe mais do que nunca. Engoliu três analgésicos e foi estender-se no sofá da sala. Os pensamentos rodopiavam na sua cabeça. Passada uma hora, levantou-se, ferveu água e foi buscar uma saqueta de chá Lipton. Sentou-se à mesa da cozinha, a pensar.
Poderia confiar em Blomkvist? Estava à mercê dele, mas retivera a informação crucial: a identidade de Zala e o papel que desempenhara no drama.
Como é que se envolvera numa trapalhada daquelas? Tudo o que fizera fora pagar a umas putas. Era solteiro. Aquela pega de 16 anos nem sequer fingira gostar dele. Sentira o nojo dela.
Puta de merda. Se não fosse tão nova. Se tivesse 20 anos, nada daquilo pareceria tão mau. Blomkvist também o desprezava, e não fazia o mais pequeno esforço para disfarçá-lo.
Zalachenko.
Um chulo. Que ironia. Comera as putas de Zalachenko. Mas Zalachenko fora suficientemente esperto para se manter anónimo.
Bjurman e Salander.
E Blomkvist.
Uma saída.
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Ao cabo de uma hora de muito pensar, foi ao escritório e encontrou o pedaço de papel com o número de telefone que tinha tirado do seu gabinete na sede da Sapo, no início da semana. Não fora a única coisa que escondera de Blomkvist. Sabia exactamente onde estava Zalachenko, mas era verdade que não falava com ele havia quase 12 anos. Nem tinha a mais pequena vontade de voltar a fazê-lo.
Zalachenko era, porém, um malandro esperto. Compreenderia o problema. Saberia como desaparecer da face da Terra. Ir para o estrangeiro e reformar-se. A catástrofe absoluta seria ele ser apanhado. Se isso acontecesse, tudo desabaria.
Hesitou muito tempo até marcar o número.
- Fala Sven Jansson - disse Bjõrck. Um nome que não usava havia muito, muito tempo. Zalachenko lembrou-se imediatamente de quem ele era.
CAPÍTULO 28
QUARTA-FEIRA, 6 DE ABRIL - QUINTA-FEIRA, 7 DE ABRIL
ERAM OITO DA NOITE quando Bublanski se encontrou com Sonja Modig no Waynes, na Vasagatan, para beber um café e comer qualquer coisa. Nunca ela o tinha visto tão abatido. Ele contou-lhe tudo o que acontecera naquele dia. Ela ficou calada durante muito tempo e, por fim, estendeu a mão e pousou-a na dele. Era a primeira vez que lhe tocava, e foi um gesto de pura amizade. Bublanski sorriu tristemente e deu-lhe uma palmadinha na mão.
- Talvez fosse melhor reformar-me - disse Bublanski. Ela sorriu indulgentemente.
- Esta investigação está a desfazer-se aos bocados - continuou ele. -Já se desfez aos bocados. Contei ao Ekstrõm tudo o que aconteceu hoje, e ele limitou-se a dizer: "Faz o que achares melhor." Parece incapaz de tomar qualquer iniciativa.
- Não quero dizer mal dos meus superiores, mas no que me diz respeito, o Ekstrõm que se vá lixar.
Bublanski assentiu.
- Estás oficialmente de volta ao caso, mas não acredito que tenhas direito a um pedido de desculpas. O Faste saiu desarvorado esta manhã, e manteve o telemóvel desligado durante todo o dia. Se não aparecer amanhã, vou ter de mandar alguém procurá-lo.
- Por mim, o Faste pode ir para o diabo que o carregue. Que vai acontecer ao Hedstrõm?
- Nada. Eu queria acusá-lo, mas o Ekstrõm não se atreve. Corremos com ele e eu tive uma conversa muito séria com o Armanskij. deixámos de trabalhar com a Milton, o que, infelizmente, significa que perdemos também o Bohman. É pena. Era um bom detective.
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- Como reagiu o Armanskij?
- Ficou esmagado. O curioso foi que...
- O quê?
- Disse que a Salander nunca gostou do Hedstrõm. Lembrou-se de ela lhe ter dito, aqui há anos, que o despedisse. Que ele era um desprezível monte de merda. Mas, aparentemente, não quis explicar porquê. O Armanskij, naturalmente, não fez o que ela sugeria.
- Interessante.
- O Curt ainda está em Sõdertãlje. Vão revistar a casa do Carl-Magnus Lundin. O Jerker anda ocupado a recolher pedaços do Kenneth "o Vagabundo" Gustafsson. E pouco antes de eu chegar aqui, telefonou-me a dizer que há outro corpo numa segunda sepultura. A julgar pelas roupas, provavelmente é uma mulher. Parece que já lá está há bastante tempo.
- Um cemitério num bosque. Jan, assumo que a Salander não é suspeita dos assassínios em Nykvarn.
Bublanski sorriu pela primeira vez em horas.
- Não. Desses podemos riscá-la. Mas sabemos que está armada, e que deu um tiro no Lundin.
- Num pé, note-se, não na cabeça. No caso do Lundin, não há provavelmente grande diferença, mas não esqueças que quem cometeu os assassínios em Enskede é um excelente atirador.
- Sonja... esta coisa é totalmente absurda. O Magge Lundin e o Sonny Nieminen são dois patifes com cadastros do tamanho do meu braço. O Lundin pode ter engordado um ou dois quilos e não estar no máximo da forma, mas continua a ser perigoso. E o Nieminen é um filho da mãe brutal de quem até os durões têm medo. Não sou pura e simplesmente capaz de imaginar como conseguiu uma minorca escanzelada como a Lisbeth Salander deixá-los naquele estado. Não que ele não mereça aquilo e muito mais, não me interpretes mal. Só não consigo perceber como aconteceu.
- Vamos ter de perguntar-lhe quando a encontrarmos. Ao fim e ao cabo, temos indicações de que é uma pessoa violenta.
- Até o Curt pensaria duas vezes em enfrentar aqueles tipos, um de cada vez. E o Curt não é exactamente um mariquinhas.
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- A questão é saber se ela tinha alguma razão para atacar o Lundin e o Nieminen.
- Uma miúda com dois psicopatas numa cabana de férias abandonada. Consigo imaginar uma ou duas razões.
- Terá ela tido ajuda de alguém? Haverá outras pessoas implicadas?
- Não há nada no relatório que aponte para aí. A Salander esteve dentro da cabana. Havia uma chávena de café em cima da mesa. E, além disso, temos o depoimento da tal Anna Viktoria Hansson, que é uma espécie de guarda lá do sítio, vigia os movimentos de toda a gente. Jura que as únicas pessoas que passaram foram a Salander e os nossos dois heróis de Svavelsjõ.
- Como é que a Salander entrou na cabana?
- Com uma chave. Suponho que a tirou do apartamento do Bjur-man. Lembras-te...
- Da fita cortada. Tem andado ocupada, a rapariga.
Modig tamborilou com os dedos no tampo da mesa e tentou uma nova teoria.
- Confirma-se que foi o Lundin que participou no rapto da Miriam Wu?
- O Paolo Roberto olhou para as fotos de três dúzias de motards. Identificou-o imediatamente, sem margem para dúvidas. Foi o homem que viu no armazém em Nykvarn.
- E o Blomkvist?
- Ainda não consegui falar com ele. Não está a atender o telemóvel.
- Mas o Lundin corresponde à descrição que ele fez do homem que atacou a Salander na Lundagatan. Podemos, portanto, assumir que o Moto-Clube de Svavelsjõ anda atrás da Salander há já algum tempo. Porquê?
Bublanski levantou as mãos abertas.
- Será que a Salander tem estado a viver todo este tempo na cabana do Bjurman? - perguntou Modig.
- Também já tinha pensado nisso. Mas o Jerker acha que não. A cabana não apresenta sinais de ter sido habitada recentemente,
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e temos uma testemunha que afirma que ela chegou a pé, hoje de manhã.
- Que terá ido lá fazer? Não me parece que tivesse encontro marcado com o Lundin.
- Dificilmente. Deve ter ido procurar qualquer coisa. E a única coisa que lá encontrámos foi um par de caixas de arquivo que parecem conter os documentos da investigação privada do Bjurman sobre ela. Está lá todo o material da Assistência Social, da Agência de Tutoria e relatórios da escola. Mas parece que faltam algumas pastas. Estão numeradas. Temos a um, a quatro e a cinco.
- O que quer dizer que faltam a dois e a três.
- E talvez outras com números mais altos.
- O que suscita a questão. Por que andaria a Salander à procura de informação sobre ela.
- Ocorrem-me, assim de repente, duas razões. Ou quer esconder qualquer coisa que sabia que o Bjurman tinha escrito sobre ela, ou quer descobrir qualquer coisa. Mas há uma outra questão.
- Qual?
- Porque haveria o Bjurman de compilar um extenso relatório a respeito dela e depois ir escondê-lo na sua cabana de férias? Aparentemente, a Salander descobriu o material no sótão. Ele era o tutor dela e tinha a obrigação de tratar-lhe das questões financeiras e outras. Mas o material que encontrámos dá a impressão de que estava obcecado pela vida dela ao ponto de querer reconstituí-la.
- Esse Bjurman parece cada vez mais um sujeito duvidoso. Estava a pensar nisso, hoje, enquanto examinava a lista de clientes, na Mil-lennium. Estava na expectativa de ver o nome dele aparecer no meio dos outros.
- Bem pensado. Lembra-te da pornografia violenta que encontrámos no computador dele. Descobriste alguma coisa na Millennium?
- A verdade é que não sei. O Blomkvist anda ocupado a entrevistar os indivíduos que constam da lista, mas segundo a Malin Eriksson... uma das editoras... ainda não descobriu nada de interesse. Jan... tenho de dizer-te uma coisa.
- O que é?
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- Não acredito que a Lisbeth Salander tenha alguma coisa a ver com isto. Com Enskede e Odenplan, quero dizer. Estava tão convencida como todos os outros, quando começámos, mas agora não acredito. E não sei verdadeiramente explicar porquê.
Bublanski inclinou a cabeça. Apercebeu-se de que concordava com ela.
O gigante loiro andava de um lado para o outro na casa de Lundin, em Svavelsjõ. Deteve-se junto à janela da cozinha e olhou para a estrada. Já deviam ter regressado. Sentia um aperto no estômago: alguma coisa correra mal.
Não gostava de estar sozinho naquela casa. Não se sentia à-vontade, ali. Havia uma corrente de ar nos quartos, lá em cima, e havia sempre ruídos estranhos. Tentou afastar este mal-estar. Era uma parvoíce, bem o sabia, mas nunca gostara de estar sozinho. Não tinha a mais pequena ponta de medo de pessoas de carne e osso, mas achava as casas vazias no campo indescritivelmente horríveis. Os ruídos exacerbavam-lhe a imaginação. Não conseguia livrar-se da sensação de que qualquer coisa obscura e má estava a observá-lo através da fresta da porta. Por vezes, parecia-lhe até ouvir uma respiração.
Quando era mais novo, fora atormentado por este medo do escuro. Ou seja, fora atormentado até que começara a chegar a roupa ao pêlo aos colegas da sua idade, e até a muitos bastante mais velhos, que achavam divertida aquela sua fraqueza. Chegar a roupa ao pêlo era uma coisa em que sempre fora bom.
Mas era embaraçoso. Detestava a escuridão e estar sozinho. Detestava todas as criaturas que habitavam o escuro e a solidão. Queria que Lundin voltasse para casa. A presença dele restabeleceria o equilíbrio, mesmo que não trocassem uma palavra e não estivessem sequer na mesma divisão. Ouviria ruídos verdadeiros e saberia que estava alguém por perto.
Tentou iludir esta ansiedade ouvindo música na aparelhagem e procurou nervosamente na estante qualquer coisa que lhe agradasse ler. Os gostos de Lundin em matéria de livros deixavam muito a desejar, e teve de contentar-se com uma colecção de revistas sobre motos,
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revistas para homens e policiais de um género que nunca lhe interessara. A solidão estava a tornar-se cada vez mais claustrofóbica. Limpou e lubrificou a pistola que guardava no saco, o que teve o efeito de o acalmar durante algum tempo. Por fim, não aguentou continuar dentro de casa. Foi dar uma volta no quintal, para apanhar um pouco de ar fresco. Manteve-se fora das vistas das casas vizinhas,mas deteve-se para poder observar as janelas iluminadas onde sabia que havia pessoas. Se ficasse imóvel, conseguia ouvir música à distância.
Quando sentiu que tinha de voltar à casa de madeira de Lundin, ficou durante muito tempo parado à porta, até se abstrair daquela sensação opressiva e entrar.
Às sete, ligou o televisor para ver o noticiário na TV4. Ouviu, horrorizado, os títulos das principais notícias, e depois o relato do tiroteio na casa de Verão perto de Stallarholmen.
Subiu as escadas a correr até ao quarto que ocupava no primeiro piso e enfiou à pressa as suas coisas no saco. Dois minutos mais tarde, já se afastava no Volvo branco.
Escapara mesmo a tempo. Um par de quilómetros depois de Svavelsjõ cruzou-se com dois carros da polícia que, com as luzes azuis a rodopiar, se dirigiam para a aldeia.
Ao cabo de longas e pacientes negociações, Mikael Blomkvist foi autorizado a falar com Holger Palmgren. Fora tão insistente que a enfermeira de serviço acabara por ligar ao Dr. Sivarnandan, que, aparentemente, morava perto. Sivarnandan chegara 15 minutos depois e assumira a responsabilidade de lidar com o teimoso jornalista. Ao princípio, não se mostrara nada simpático. Durante as duas últimas semanas, vários repórteres tinham descoberto o paradeiro de Palmgren e tentado todos os truques para conseguir um depoimento. O próprio Palmgren recusara sempre recebê-los, e o pessoal tinha instruções para não permitir que se aproximassem dele.
O Dr. Sivarnandan acompanhara o caso com extrema preocupação. Ficara chocado com os cabeçalhos que Lisbeth Salander gerara
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na imprensa. E o seu paciente caíra numa profunda depressão que, suspeitava o médico, era fruto da incapacidade em que se encontrava de ajudar a sua antiga pupila. Palmgren interrompera a terapia de recuperação e passava agora os dias a ler os jornais e a seguir pela TV a perseguição a Lisbeth. Tirando isso, refugiava-se no seu quarto, mergulhado em sombrios pensamentos.
Mikael, de pé diante da secretária de Sivarnandan, explicara que, como era evidente, não desejava sujeitar Holger Palmgren a qualquer espécie de incómodo. Não estava interessado em declarações. Era amigo de Lisbeth Salander, estava convencido da inocência dela e procurava desesperadamente informação que pudesse lançar alguma luz sobre certos aspectos do seu passado.
Não fora fácil convencer o Dr. Sivarnandan. Mikael tivera de explicar em pormenor o seu próprio papel no drama. Só ao cabo de meia hora de negociações, o médico dera o seu consentimento. Pedira a Mikael que aguardasse enquanto ia perguntar a Palmgren se queria recebê-lo.
Regressara dez minutos mais tarde.
- Ele aceita falar consigo, mas se não gostar de si, põe-no na rua por uma orelha. Não o entrevistará nem escreverá na imprensa seja o que for sobre esta visita.
- Nem uma linha, juro.
Palmgren ocupava um pequeno quarto com uma cama, uma secretária, uma mesa e duas cadeiras. Era um homem de cabelos brancos, magro como um espantalho. Tinha evidentes problemas de equilíbrio, mas mesmo assim pôs-se de pé quando Mikael entrou. Não estendeu a mão, mas indicou uma das cadeiras junto à mesa. O Dr. Sivarnandan manteve-se no quarto. Ao princípio, Mikael teve dificuldade em perceber o discurso arrastado de Holger Palmgren.
- Quem é você, que se diz amigo da Lisbeth, e o que deseja?
- Não é obrigado a contar-me seja o que for. Mas peço-lhe que ouça o que tenho para dizer antes de me pôr na rua.
Palmgren assentiu secamente com a cabeça e foi, a arrastar os pés, sentar-se na cadeira do outro lado da mesa.
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- Conheci a Lisbeth Salander há dois anos. Contratei-a para fazer uma pesquisa. Ela foi ter comigo a uma cidade onde na altura eu me encontrava e trabalhámos juntos várias semanas.
Perguntou a si mesmo quanto teria de explicar a Palmgren. Decidiu manter-se o mais próximo possível da verdade.
- Durante esse tempo, aconteceram duas coisas importantes. Uma, foi que a Lisbeth me salvou a vida. A outra foi que nos tornámos muito bons amigos, por algum tempo. Acabei por conhecê-la bem e estimá-la muito.
Em seguida, sem entrar em pormenores, contou como a relação entre os dois terminara repentinamente, depois dos feriados do Natal, um ano antes, quando Lisbeth saíra do país.
Falou do seu trabalho na Millennium e explicou como Dag Svensson e Mia Johansson tinham sido assassinados e ele se vira arrastado para a perseguição ao assassino.
- Sei que tem sido incomodado por jornalistas, e que os jornais têm publicado histórias completamente idiotas umas atrás das outras. Tudo o que posso garantir-lhe agora é que não estou aqui para conseguir material para mais um artigo. Estou aqui por causa da Lisbeth, como amigo dela. Neste momento, sou provavelmente uma das poucas pessoas em todo o país que, sem hesitar e sem quaisquer reservas, se encontram do lado dela. Acredito que a Lisbeth está inocente. Acredito que o verdadeiro assassino foi um homem chamado Zalachenko.
Mikael fez uma pausa. Notara o brilho nos olhos de Palmgren quando pronunciara o nome Zalachenko.
- Se pode dizer-me qualquer coisa que ajude a lançar alguma luz sobre o passado da Lisbeth, é agora o momento. Se não quer ajudá-la, então estou a desperdiçar o meu tempo e o seu, e fico a saber qual é a sua posição.
Palmgren não dissera uma única palavra durante todo o monólogo. Quando Mikael acabou, os olhos dele voltaram a faiscar. Mas estava a sorrir. Falou o mais claramente que pôde.
- Quer verdadeiramente ajudá-la. Mikael assentiu.
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Palmgren inclinou-se para a frente.
- Descreva o sofá da sala de estar dela.
- Nas ocasiões em que a visitei, tinha uma peça de mobiliário extremamente feia e muito usada, com algum valor arqueológico. Calculo que seja do início dos anos 50. Tem duas almofadas informes de um tecido castanho com uma espécie de padrão amarelo. Da última vez que o vi, o forro apresentava vários rasgões por onde o estofo ameaçava sair.
Subitamente, Palmgren riu-se. Soou mais como se estivesse a tossir. Olhou para o Dr. Sivarnandan.
- Pelo menos, confirma que esteve no apartamento dela. Acha, doutor, que seria possível oferecer um café ao meu convidado?
- Com certeza. - O médico pôs-se de pé e saiu. Deteve-se junto à porta, para fazer um aceno de cabeça a Blomkvist.
- Alexander Zalachenko - disse Palmgren, mal a porta se fechou.
- Conhece o nome?
- Disse-mo a Lisbeth. E penso que é importante contar esta história a alguém... para o caso de eu decidir cair morto, o que não é de todo improvável.
- A Lisbeth? Como poderia ela saber alguma coisa a respeito da existência de Zalachenko?
- É o pai dela.
Ao princípio, Mikael não percebeu o que Palmgren estava a dizer. Só passado um segundo o significado das palavras se tornou claro.
- Que está a dizer?
- O Zalachenko veio para cá nos anos setenta. Era uma espécie de refugiado político... nunca percebi muito bem essa parte da história, e a Lisbeth nunca abriu a boca a esse respeito. Era um assunto sobre o qual recusava terminantemente falar.
A certidão de nascimento. Pai incógnito.
- O Zalachenko é o pai da Lisbeth - repetiu Mikael, em voz alta.
- Apenas numa ocasião, em todos os anos que a conheci, ela me contou o que tinha acontecido. Foi cerca de um mês antes de eu ter o meu AVC. Pelo que percebi, portanto, o Zalachenko veio para a Suécia
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em meados dos anos setenta. Conheceu a mãe da Lisbeth em 1977, tiveram uma relação, e o resultado foram duas filhas.
- Duas?
- A Lisbeth e a irmã gémea, Camilla.
- Santo Deus! Então há duas?
- São completamente diferentes. Mas isso é outra história. O verdadeiro nome da mãe de Lisbeth é Agneta Sofia Sjõlander. Tinha dezassete anos quando conheceu o Zalachenko. Não sei nada sobre o modo como se conheceram, mas, segundo entendi, era uma jovem muito dependente, uma presa fácil para um homem mais velho e experiente. Ficou deslumbrada e, quase de certeza, perdidamente apaixonada por ele. O Zalachenko revelou-se um indivíduo muito pouco simpático. Suponho que só procurava uma mulher fácil, e pouco mais. Naturalmente, ela sonhava com um futuro de segurança ao lado dele, mas o sujeito não estava minimamente interessado em casamento. Nunca casaram, mas, em 1979, ela alterou o nome de Sjõlander para Salander. Era, suponho, a sua maneira de mostrar que estavam juntos.
- Que quer dizer com isso?
- Zala. Salander.
- Céus - disse Mikael.
- Comecei a investigar tudo isto pouco antes de adoecer. Ela tinha o direito de adoptar o nome porque a mãe, a avó da Lisbeth, se chamava na realidade Salander. O que então aconteceu foi que, com o tempo, o Zalachenko se revelou um psicopata de todo o tamanho. Embriagava-se e agredia brutalmente a Agneta. Tanto quanto sei, estas agressões prolongaram-se por toda a infância das raparigas. Desde que a Lisbeth conseguia lembrar-se, o pai aparecia em casa de longe em longe. Por vezes, desaparecia durante muito tempo, mas acabava sempre por voltar, inesperadamente, ao apartamento da Lundagatan. E era sempre a mesma história. Começava com sexo e bebida, e acabava com ele a abusar da mãe da Lisbeth das mais variadas maneiras. A Lisbeth disse-me coisas que indicavam que era algo mais do que agressão física. Andava armado e fazia ameaças, e havia elementos de sadismo e de terrorismo psicológico. Suponho que as coisas só
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pioraram com o passar dos anos. A mãe da Lisbeth passou uma grande parte da década de oitenta aterrorizada.
- E também batia nas filhas?
- Não. Ao que parece, não tinha o mínimo interesse nelas. Mal lhes dirigia a palavra. A mãe costumava mandá-las para o quarto pequeno quando o Zalachenko aparecia, e não podiam sair de lá sem autorização. Pode, ocasionalmente, ter espancado a Lisbeth ou a irmã, mas isso era sobretudo porque elas o irritavam ou se lhe atravessavam no caminho. A violência era toda dirigida contra a mãe das raparigas.
-Jesus Cristo. Pobre Lisbeth. Palmgren assentiu.
- A Lisbeth contou-me tudo isto muito pouco tempo antes de eu ter adoecido. Foi a primeira vez que a ouvi falar abertamente do que tinha acontecido. Eu tinha decidido que era mais do que tempo de pôr fim àquela absurda declaração de interdição, e tudo isso. A Lisbeth é uma das pessoas mais inteligentes que conheço, e eu estava preparado para levar novamente o caso ao tribunal distrital. Foi então que tive a trombose... e quando acordei estava aqui.
Abarcou com um gesto o pequeno quarto. Uma enfermeira bateu à porta e levou-lhes o café. Palmgren manteve-se silencioso até ela sair.
- Há certos aspectos da história da Lisbeth que não compreendo - continuou. - A Agneta teve de ser levada para o hospital dezenas de vezes. Li os registos médicos. Era perfeitamente óbvio que era vítima de agressões agravadas, e a Segurança Social devia ter intervido, mas nada aconteceu. A Lisbeth e a Camilla tinham de ficar a cargo dos serviços sociais de emergência sempre que a mãe era internada, mas mal recebia alta, voltava a casa e ficava à espera da próxima vez. Só posso interpretar isto como um colapso de toda a rede de segurança social, e a Agneta estava demasiado aterrorizada para fazer outra coisa senão esperar pelo regresso do seu carrasco. Foi então que aconteceu qualquer coisa. A Lisbeth chama-lhe "Todo o Mal".
- O que foi?
Havia já vários meses que o Zalachenko não aparecia. A Lis acabara de fazer doze anos. Começava, ao que parece, a pensar
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que ele tinha ido de vez. Mas não tinha, claro. Um dia, voltou. A Ag-neta começou por fechar a Lisbeth e a Camilla no quarto pequeno. Depois, foi para a cama com ele. E ele começou a bater-lhe. Gostava de bater nas pessoas. Só que, dessa vez, já não eram duas crianças fechadas no quarto pequeno... As raparigas tinham reacções muito diferentes. A Camilla tinha um medo de morte de que as pessoas soubessem o que se passava no apartamento. Reprimia tudo e fazia de conta que a mãe não era espancada. Quando a pancada acabava, abraçava o pai e fingia que estava tudo bem.
- Era a sua maneira de proteger-se, sem dúvida.
- Exacto. Mas a Lisbeth era feita de uma madeira muito diferente. Daquela vez, interrompeu o espancamento. Foi à cozinha buscar uma faca e apunhalou o Zalachenko num ombro. Espetou-o cinco vezes antes de ele conseguir tirar-lhe a faca e dar-lhe um murro na cara. Os golpes não eram muito profundos, mas ele estava a sangrar como um porco, e fugiu porta fora.
- é bem da Lisbeth. Palmgren riu-se.
- Pois é. Nunca se meta numa luta com a Lisbeth Salander. A reacção dela em relação ao resto do mundo é que se alguém a ameaça com uma arma, ela tenta arranjar uma arma maior. É o que me assusta tanto no que está a acontecer neste momento.
- Foi então isso "Todo o Mal"?
- Não, não. Aconteceram então duas coisas que nunca consegui compreender. O Zalachenko estava tão ferido que teve de ser hospitalizado. Deveria ter havido um relatório policial.
- Mas...
- Mas, tanto quanto consegui descobrir, não houve quaisquer repercussões. A Lisbeth lembra-se de um homem ter ido a casa delas falar com a Agneta. Não sabia o que foi dito nem quem ele era. E então a mãe disse-lhe que o pai lhe tinha perdoado tudo.
- Perdoado?
- Foi a palavra que ela usou.
E então, de súbito, Mikael compreendeu.
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O Bjòrck. Ou um dos colegas do Bjòrck. Tratava-se de limpar a porcaria que o Zalachenko deixava para trás. Grandes filhos da puta. Fechou os olhos.
- O que foi? - perguntou Palmgren.
- Julgo saber o que se passou. E alguém vai pagar por isso. Mas continue com a sua história.
- O Zalachenko tornou a desaparecer durante meses. A Lisbeth esperou por ele e fez os seus preparativos. Faltava à escola para ficar a vigiar a mãe. O medo dela era que o Zalachenko a magoasse a sério. Tinha doze anos e sentia-se responsável pela mãe, que não ousava ir à polícia e não podia romper com o Zalachenko, ou que talvez não compreendesse a gravidade da situação. Mas no dia em que o Zalachenko finalmente apareceu, a Lisbeth estava na escola. Chegou a casa no preciso instante em que ele ia a sair. Ele não lhe disse nada. Limitou-se a sorrir para ela. A Lisbeth entrou e encontrou a mãe inconsciente no chão da cozinha.
- Mas o Zalachenko não tocou na Lisbeth?
- Não. Ela alcançou-o quando ele ia a entrar para o carro. Ele baixou o vidro da janela, talvez para dizer qualquer coisa. A Lisbeth estava pronta. Atirou uma embalagem de leite que tinha enchido de petróleo para dentro do carro. E em seguida atirou um fósforo aceso.
- Santo Deus!
- Tentou matar o pai por duas vezes. Da segunda, houve consequências. Um homem sentado dentro de um carro e a arder como uma tocha em plena Lundagatan não podia passar despercebido.
- Mas ele sobreviveu.
- Sofreu horrivelmente. Um dos pés teve de ser amputado. A cara e outras partes do corpo sofreram queimaduras graves. E a Lisbeth acabou na clínica pedopsiquiátrica de Sankt Stefan.
Apesar de já saber de cor cada palavra, Lisbeth Salander voltou a ler todo o material a seu respeito que encontrara nas caixas de arquivo de Bjurman. Sentou-se no cadeirão junto da janela e abriu a cigarreira que Miriam Wu lhe tinha oferecido. Acendeu um cigarro enquanto olhava para o Djurgârden. Tinha descoberto algumas coisas a respeito da sua vida que antes não sabia.
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Na realidade, eram tantas as peças que encaixavam nos respectivos lugares que se sentiu gelada. Estava sobretudo interessada no relatório redigido por Bjõrck em Fevereiro de 1991. Não tinha a certeza absoluta de qual dos muitos adultos que tinham falado com ela era Bjõrck, mas achava que sabia. O homem apresentara-se com outro nome. Sven Jansson. Lembrava-se de cada traço da cara dele, de cada palavra que dissera, de cada gesto que fizera nas três ocasiões em que se tinham encontrado.
Fora um desastre total.
Zalachenko ardera como um archote dentro do carro. Conseguira abrir a porta e rolar para o passeio, mas uma perna ficara presa no interior pelo cinto de segurança. Tinham acorrido pessoas de todos os lados para apagar as chamas. Pouco depois, apareceram os bombeiros e extinguiram o fogo. Aparecera uma ambulância, e ela tentara convencer os paramédicos a ignorarem Zalachenko e irem ver a mãe. Tinham-na empurrado para o lado. A polícia chegara, e havia várias testemunhas que apontaram para ela. Tentara explicar o que acontecera, mas era como se ninguém a ouvisse, e, de repente estava sentada no banco traseiro de um carro da polícia, e os minutos foram passando até que por fim, quase uma hora mais tarde, a polícia entrara no apartamento e encontrara a mãe.
Agneta Sofia Salander estava inconsciente. Sofrera traumatismos graves. O espancamento provocara a primeira de uma longa série de pequenas hemorragias cerebrais. Nunca chegara a recuperar.
Lisbeth compreendia agora por que razão ninguém lera o relatório da polícia, por que razão tinham falhado as tentativas de Palmgren para que fosse publicado, e até por que razão ainda agora, passados tantos anos, o procurador Ekstrõm, que dirigia o inquérito preliminar aos assassínios de que era suspeita, não tinha acesso ao documento. Não fora redigido segundo as normas. Quem o escrevera fora um sacana qualquer da Polícia de Segurança. Estava cheio de carimbos que o consideravam Altamente Secreto nos termos da lei da segurança nacional.
Zalachenko trabalhava para a Sapo.
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Não era um relatório. Era uma manobra de distracção. Zalachenko era mais importante do que Agneta Sofia Salander. Não podia ser identificado ou denunciado. Zalachenko não existia.
O problema não era Zalachenko. Era Lisbeth Salander, a miúda maluca que ameaçava gritar aos quatro ventos um dos segredos mais cruciais do país.
Um segredo sobre o qual nada sabia. Pensou naquilo. Zalachenko conhecera a mãe dela muito pouco tempo depois de ter chegado à Suécia. Apresentara-se usando o seu verdadeiro nome. Talvez, na altura, ainda não lhe tivessem dado um nome falso nem uma identidade sueca, ou ele resolvera não os usar com Agneta. Que só o conhecia pelo nome verdadeiro. Mas então o Governo sueco dera-lhe outro nome. O que explicava por que nunca conseguira, em todos aqueles anos, encontrar um Alexander Zalachenko em qualquer registo público.
Percebia a ideia. Se Zalachenko fosse acusado de ofensas corporais agravadas, o advogado de Agneta Salander pôr-se-ia a espiolhar-lhe o passado. Onde trabalha, Herr Zalachenko? Qual é o seu verdadeiro nome? Onde nasceu?
E se ela, Lisbeth Salander, fosse confiada à Assistência Social, era também possível que alguém começasse a fazer perguntas. Era demasiado nova, ainda uma criança, para ser levada a tribunal, mas se o ataque com a bomba de petróleo fosse investigado com demasiado pormenor, havia o risco de acontecer a mesma coisa. Imaginava os cabeçalhos nos jornais. A investigação tinha, consequentemente, de ser conduzida por uma pessoa de confiança. E em seguida carimbada com a classificação de altamente secreto e enterrada tão fundo que nunca mais ninguém a encontrasse. E Lisbeth Salander teria também de ser enterrada tão fundo que nunca mais ninguém a encontrasse.
Gunnar Bjõrck.
Sankt Stefan.
Peter Teleborian.
A explicação deixou-a louca de fúria.
Querido Governo... Vou ter uma conversa muito séria contigo, se alguma vez conseguir encontrar alguém com quem falar.
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Pensou fugazmente no que acharia o ministro da Saúde e Assuntos Sociais de um cocktail molotov atirado pelas portas de vidro do ministério. Mas, à falta de outra pessoa que pudesse ser considerada responsável, Peter Teleborian servia perfeitamente. Tomou mentalmente nota: havia de dedicar-lhe toda a sua atenção logo que acabasse de limpar o resto daquela trapalhada.
Havia, no entanto, coisas que continuava a não compreender. Zalachenko voltara subitamente à vida ao cabo de todos aqueles anos. Estava em perigo de ser desmascarado por Dag Svensson. Dois tiros, Dag Svensson e Miajohansson. Uma arma em que apareciam as impressões digitais dela...
Zalachenko, ou quem quer que tivesse levado a cabo as execuções, não tinha maneira de saber que ela encontrara o revólver dentro de uma caixa, em casa de Bjurman, e lhe pegara. Fora por puro acaso, mas para ela sempre fora evidente, desde o início, que tinha de haver uma ligação entre Bjurman e Zala.
Mas, mesmo assim, a história continuava a não bater certo. Pensou naquilo, experimentando as peças do quebra-cabeças uma a uma. Havia apenas uma resposta plausível. Bjurman.
Bjurman investigara-lhe a vida. Descobrira a ligação. E procurara Zalachenko.
Tinha o vídeo que mostrava o advogado a violá-la. Era a espada que mantinha suspensa sobre a cabeça dele. Talvez Bjurman se tivesse convencido de que Zalachenko a obrigaria a entregar-lho.
Levantou-se do sofá junto da janela, foi à secretária, abriu a gaveta e tirou de lá o DVD com a palavra Bjurman escrita com um marcador de álcool. Nem sequer o guardara numa manga de plástico. Não voltara a olhar para ele desde que o mostrara a Bjurman, dois anos antes. Sopesou-o na mão e voltou a guardá-lo na gaveta.
Bjurman era um estúpido. Bastava-lhe ter-se mantido sossegado, e ela tê-lo-ia libertado logo que ele conseguisse anular a declaração de interdição. Claro que teria continuado a ser para sempre o lambe-cus de Zalachenko, o que até seria um castigo adequado.
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A rede de Zalachenko. De que um dos tentáculos era o Moto-Clube de Svavelsjõ.
O gigante loiro. Era ele a chave.
Tinha de encontrá-lo e obrigá-lo a dizer-lhe onde estava Zalachenko.
Acendeu outro cigarro e olhou para a cidadela que se erguia ao lado de Skeppsholmen. Olhou para a montanha-russa de Grõna Lund. Estava a falar sozinha. E com a voz que ouvira certa vez num filme, disse:
- Daaaaddyyyyy, I'm coming to get yoooou.
Às sete e meia, ligou o televisor para se pôr a par dos mais recentes desenvolvimentos na perseguição a Lisbeth Salander. O que viu deixou-a aturdida.
Bublanski conseguiu finalmente apanhar Hans Faste no telemóvel, pouco depois das oito da noite. Não houve troca de amenidades. Bublanski não perguntou o que andara Faste a fazer, limitou-se a dar-lhe friamente as suas instruções.
O circo na sede da polícia naquela manhã fora mais do que Faste conseguia aguentar, e por isso fizera algo que nunca antes tinha feito. Abandonou o trabalho. Desligou o telemóvel, sentou-se no bar da Estação Central e bebeu duas cervejas enquanto fervia de raiva. Depois, fora para casa, tomara um duche e enfiara-se na cama. Precisava de recuperar o sono em atraso.
Acordou a tempo do Rapport, e os olhos quase lhe saltaram das órbitas quando ouviu anunciar os destaques principais. Corpos desenterrados em Nykvarn. Lisbeth Salander tinha ferido a tiro o líder do Moto-Clube de Svavelsjõ. A polícia lançara uma autêntica caça à mulher nos subúrbios a sul de Estocolmo. A rede fechava-se. Ligou o telemóvel.
Quase no mesmo instante, o filho da mãe do Bublanski telefonou. Disse-lhe que o foco da investigação passara a ser a identificação de um assassino ainda não identificado e mandou-o ir render Holmeberg no local do crime, em Nykvarn. Na altura em que a investigação sobre Lisbeth Salander atingia o seu ponto culminante, mandavam-no
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apanhar beatas para os bosques. Outros encarregar-se-iam de caçar Salander.
Que raio tinha o Moto-Clube de Svavelsjõ que ver com tudo aquilo?
Supondo que havia coerência no raciocínio daquela pega fufa da Modig.
Não era possível.
Tinha de ser a Salander.
Queria ser ele a apanhá-la. Queria tanto apanhá-la que lhe doíam as mãos de tanto apertar o telemóvel.
Holger Palmgren observava calmamente Mikael Blomkvist andar de um lado para o outro diante da janela do pequeno quarto. Eram quase sete e meia da noite e tinham estado a falar ininterruptamente durante quase uma hora. Finalmente, bateu com a mão no tampo da mesa para chamar a atenção de Blomkvist.
- Sente-se, antes que gaste os sapatos - disse ele. Blomkvist sentou-se. - Todos estes segredos - continuou Palmgren - Só percebi a ligação quando me explicou o passado do Zalachenko. Tudo o que sabia foi pelas avaliações da Lisbeth, afirmando que ela é mentalmente perturbada.
- Peter Teleborian.
- Deve ter um arranjo qualquer com o Bjõrck. Têm de estar a trabalhar juntos.
Mikael assentiu pensativamente com a cabeça. Acontecesse o que acontecesse, o Dr. Teleborian ia ser objecto de escrutínio jornalístico.
- A Lisbeth avisou-me para me manter afastado dele. Chamou-lhe "um sacana do pior".
Holger Palmgren ergueu vivamente a cabeça.
- Quando é que ela disse isso?
Mikael não disse nada durante algum tempo. Então, sorriu e olhou para Palmgren.
- Mais segredos, raios. Tenho estado em contacto com ela. Através do computador. Só mensagens curtas, misteriosas, do lado dela, mas tem-me sempre posto na direcção correcta.
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Palmgren suspirou.
- E, claro, não disse nada à polícia.
- Não. Não exactamente.
- Então também não me disse a mim. Ela é muito boa com computadores.
Nem faz ideia.
- Tenho uma grande fé na capacidade dela em cair de pé. Pode viver com dificuldades, mas é uma sobrevivente.
Não com tantas dificuldades como isso. Roubou quase três mil milhões de coroas. Não vai passar fome. Tem uma arca cheia de ouro, como a Pipi das Meias Altas.
- O que não compreendo - disse Mikael, em voz alta -, é porque nunca pegou no caso dela em todos estes anos.
Palmgren voltou a suspirar. Foi um suspiro infinitamente triste.
- Falhei redondamente - respondeu. - Quando me tornei curador dela, a Lisbeth era apenas mais um caso numa série de jovens difíceis e com problemas. Já tinha tratado de dezenas de outros iguais. Fui nomeado por Stefan Brádehensjõ, que era o ministro da Segurança Social. Nessa altura, já ela estava em Sankt Stefan, e no primeiro ano nem sequer cheguei a vê-la. Falei com o Teleborian um par de vezes e ele explicou-me que era uma psicótica e que estava a receber o melhor tratamento possível. Acreditei, e porque não havia de acreditar? Mas também falei com o Jonas Beringer, que na época era director clínico. Não acredito que tenha tido alguma coisa a ver com o caso. Fez uma avaliação, a meu pedido, e combinámos tentar reinseri-la na sociedade através de uma família de acolhimento. Tinha ela quinze anos.
- E sempre a apoiou ao longo dos anos.
- Não o suficiente. Defendi-a depois do episódio no metropolitano. Nessa altura, conhecia-a bem e gostava muito dela. Era uma miúda cheia de força. Impedi-os de voltarem a metê-la numa instituição. O preço disto foi ela ter sido considerada interdita e eu nomeado seu tutor.
- Presumivelmente, o Bjõrck não andava por aí a dizer ao tribunal o que decidir. Daria demasiado nas vistas. Ele queria-a trancada,
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e contava denegri-la através das avaliações psiquiátricas do Telebo-rian e outros, assumindo que o tribunal chegaria à conclusão lógica. Mas, em vez disso, o juiz seguiu a sua recomendação.
- Nunca achei que ela precisasse de estar sob tutela. Mas, para ser completamente franco, nunca me esforcei muito por anular a sentença. Devia ter agido mais cedo e mais decididamente. Mas estava encantado com a Lisbeth e... fui adiando. Andava a mexer demasiados tachos ao mesmo tempo. E então adoeci.
- Não acho que deva culpar-se. Ninguém cuidou melhor dos interesses dela ao longo dos anos.
- O problema sempre foi eu não saber o suficiente. A Lisbeth era minha cliente, mas nunca me disse uma palavra a respeito do Zalachenko. Só muitos anos depois de ter saído de Sankt Stefan demonstrou alguma confiança em mim. E só depois de ter sido nomeado tutor dela senti que estava lentamente a começar a comunicar comigo para lá das meras formalidades.
- Como foi que ela começou a falar-lhe do Zalachenko?
- Suponho que, apesar de tudo, tinha começado a confiar em mim. Além disso, eu tinha, em várias ocasiões, falado da possibilidade de anular a declaração de interdição. Aparentemente, ela pensou no assunto e, um dia, telefonou-me a marcar um encontro. Tinha tomado uma decisão. E contou-me a história toda do Zalachenko e de como via o que tinha acontecido. Tem de compreender que era demasiada coisa para eu digerir, assim tão de repente. Apesar disso, comecei imediatamente a averiguar. E não consegui encontrar um único Zalachenko em nenhuma base de dados sueca. Por vezes, perguntava a mim mesmo se ela não estaria a imaginar tudo aquilo.
- Quando adoeceu, o Bjurman tornou-se o tutor dela. Não pode ter sido por acaso.
- Pois não. Não sei se conseguiremos alguma vez prová-lo, mas tenho estado a pensar que se procurarmos bem... encontraremos o indivíduo que substituiu o Bjorck e herdou o caso Zalachenko.
- Não me espanta a recusa absoluta da Lisbeth de falar com psicólogos ou autoridades - disse Mikael. - Sempre que o fez, só serviu para tornar as coisas ainda piores. Tentou explicar o que tinha acontecido,
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e ninguém a ouviu. Ela, uma criança sozinha, tentou salvar a vida da mãe e defendê-la de um psicopata. No fim, acabou por fazer a única coisa que sentia que estava certa. E em vez de lhe dizerem "bem feito" e "linda menina", fecharam-na num asilo.
- Não é tão simples como isso. Espero que compreenda que há de facto na Lisbeth qualquer coisa que não funciona bem - disse Palmgren, severamente.
- Que quer isso dizer?
- Sabe que ela teve montes de problemas durante a infância, na escola, e tudo isso.
- Apareceu em todos os jornais. E também eu teria problemas na escola, se tivesse tido uma infância como a dela.
- O problema da Lisbeth vai muito mais além das dificuldades que tinha em casa. Li todas as avaliações psiquiátricas, e não há sequer um diagnóstico. Mas penso que estamos de acordo em que a Lisbeth Salander não é como as pessoas normais. Alguma vez jogou xadrez com ela?
-Não.
- Tem uma memória fotográfica.
- Eu sei. Apercebi-me disso quando trabalhámos juntos.
- Adora enigmas. Certa vez, quando foi a minha casa para o jantar de Natal, desafiei-a a resolver alguns problemas de um teste de inteligência da Mensa. Daqueles em que nos mostram cinco símbolos semelhantes e temos de decidir como será o sexto.
- Sei quais são.
- Eu próprio tinha tentado, e conseguira resolver cerca de metade. Depois de ter andado às voltas com aquilo duas noites inteiras. Ela olhou uma vez para o papel e respondeu correctamente a todas as perguntas.
- A Lisbeth é uma rapariga muito especial.
- Tem uma enorme dificuldade em relacionar-se com outras pessoas. Suponho que sofre de síndroma de Asperger, ou qualquer coisa no género. Se ler as descrições clínicas de pacientes a quem foi diagnosticada Asperger, há coisas que parecem encaixar perfeitamente com a Lisbeth, embora também haja muitas outras que não se aplicam.
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Note, não é minimamente perigosa para quem a deixar em paz ou a trate com respeito. Mas /violenta, isso sem a mínima dúvida - disse Palmgren, em voz baixa. - Quando se sente provocada ou ameaçada, é capaz de reagir com uma violência assustadora. Mikael assentiu.
- A questão é saber o que fazemos agora - continuou Palmgren.
- Encontramos o Zalachenko - respondeu Mikael. Nesse momento, o Dr. Sivarnandan bateu à porta e entrou.
- Não queria incomodar, mas se estão interessados na Lisbeth Salander, liguem o televisor e vejam as notícias.
CAPÍTULO 29
QUARTA-FEIRA, 6 DE ABRIL - QUINTA-FEIRA, 7 DE ABRIL
Lisbeth Salander tremia de raiva. Naquela manhã, tinha ido à casa de férias de Bjurman em busca de paz e sossego. Não entrava online desde a noite anterior, e durante o dia não tivera tempo para ouvir as notícias. Estava mais ou menos à espera de que o incidente em Stallarholmen merecesse alguma referência, mas nada a preparara para a tempestade que se lhe deparou no noticiário da TV.
Miriam Wu estava no Hospital de Sõder, atacada e gravemente ferida por um gigantesco agressor que a raptara à porta do apartamento na Lundagatan. O seu estado era descrito como grave.
Fora salva pelo ex-pugilista profissional Paolo Roberto. Como tinha ele aparecido naquele armazém em Nykvarn não era explicado. Paolo fora assaltado por uma turba de jornalistas ao sair do hospital, mas recusara fazer qualquer comentário. Olhando para a cara dele, dir-se-ia que tinha feito dez assaltos com as mãos amarradas atrás das costas.
Tinham sido encontrados dois corpos enterrados no bosque perto do lugar onde Miriam Wu fora agredida. Sabia-se que a polícia estava a investigar um terceiro local, e que podia haver outros.
E depois, havia a perseguição à fugitiva Lisbeth Salander.
O cerco, diziam, estava a fechar-se. Naquela tarde, a polícia cercara os arredores de Stallarholmen. As informações eram de que estava armada e devia ser considerada perigosa. Tinha ferido a tiro um motar ddos Hells Angels, ou talvez dois. O incidente ocorrera na cabana de férias de Nils Bjurman, o advogado assassinado. À noite, a polícia Viu-se obrigada a admitir que ela conseguira escapar ao cerco.
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Ekstrõm tinha convocado uma conferência de imprensa. As suas respostas foram vagas. Não, não podia afirmar que Lisbeth Salander tinha ligações aos Hell's Angels. Não, não podia confirmar os rumores de que Lisbeth Salander fora vista nas proximidades do armazém em Nykvarn. Não, não havia nada que indicasse tratar-se de uma guerra de gangues. Não, não podia confirmar que Lisbeth Salander fora a única responsável pelos crimes de Enskede. Continuavam a procurá-la apenas com o intuito de interrogá-la sobre as circunstâncias em que esses crimes tinham sido cometidos.
Lisbeth franziu o sobrolho. Algo mudara na investigação policial.
Entrou online e começou por ler as notícias dos jornais. Em seguida, acedeu aos discos rígidos de Ekstrõm, Armanskij e Blomkvist, sucessivamente.
O e-mail de Ekstrõm continha várias mensagens interessantes, em especial um memo enviado por Jan Bublanski, às 17h22. Redigido em termos extremamente duros, fazia uma crítica devastadora ao modo como o procurador tinha gerido o inquérito preliminar. E terminava com aquilo que era, em boa verdade, um ultimato. Exigia: (a) que a inspectora Modig fosse reintegrada na equipa, com efeitos imediatos; (b) que o foco da investigação fosse redirigido de modo a procurar soluções alternativas para os assassínios de Enskede; e (c) que se investigasse sem mais demoras uma personagem conhecida apenas como Zala.
As acusações contra Lisbeth Salander baseiam-se numa única prova directa: as impressões digitais encontradas na arma do crime. O que, faço notar, prova que ela pegou na arma, mas não que a disparou, e muito menos que a disparou contra as vítimas dos assassínios.
Sabemos agora que há outros jogadores envolvidos. A polícia de Sondertálje encontrou (até ao momento) dois corpos em covas pouco fundas perto de um armazém pertencente a um primo de Carl-Magnus Lundin. É totalmente inconcebível que Lisbeth Salander, por muito violenta que possa ser e qualquer que seja o seu perfil psicológico, tenha alguma coisa que ver com estas mortes.
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Bublanski terminava dizendo que se as suas exigências não fossem aceites, abandonaria a equipa de investigação, e não tencionava fazê-lo discretamente. Ekstrõm respondera-lhe que fizesse o que achasse melhor.
Lisbeth obteve informações ainda mais surpreendentes do disco rígido de Armanskij. Uma breve troca de e-mails com o serviço de pessoal da Milton estabelecia que Niklas Hedstrõm deixava de pertencer aos quadros da empresa, com efeitos imediatos. Receberia o equivalente ao subsídio de férias mais três meses de ordenado. E um e-mail dirigido aos serviços de segurança estipulava que se Hedstrõm aparecesse no edifício, seria acompanhado até à sua secretária, onde poderia recolher os seus objectos pessoais, e novamente acompanhado até à saída. Um outro e-mail, este enviado ao departamento técnico, determinava que o cartão-chave de Hedstrõm fosse imediatamente desactivado.
Ainda mais interessante, porém, era a troca de correspondência entre Armanskij e Frank Alenius, o advogado da Milton Security. Armanskij perguntava de que maneira poderia Lisbeth Salander ser representada na eventualidade de vir a ser capturada. Alenius respondera que não havia qualquer razão para a Milton se envolver com uma ex-colaboradora que cometera um assassínio - o facto reflectir-se-ia negativamente na empresa. A resposta de Armanskij era concisa e seca: o envolvimento de Lisbeth Salander em qualquer crime continuava a ser uma questão em aberto, e a sua preocupação era apoiar uma ex-colaboradora que considerava inocente.
Mikael não voltara a ligar o seu iBook desde a manhã do dia anterior. Portanto, nenhuma novidade por esse lado.-
Bohman pousou a pasta em cima da mesa do gabinete de Arrnanskij e sentou-se pesadamente. Frãklund abriu-a e começou a ler. Armanskij estava de pé junto à janela, a olhar para Gamla Stan.
- É o último relatório que posso entregar - disse Bohman. - Fui corrido da investigação.
- Não por culpa tua - observou Fraklund.
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- Não, não por culpa sua - disse Armanskij, e sentou-se. Juntara todo o material que Bohman entregara ao longo de duas semanas de investigação num monte no centro da mesa de reuniões. - Falei com o Bublanski. Fez um bom trabalho, Sonny. O Bublanski teve pena de o ver partir, mas não tinha outra alternativa, por causa do Hedstrõm.
- Não tem importância. Descobri que me sinto muito melhor aqui, na Milton, do que em Kungsholmen.
- Pode fazer-nos um resumo?
- Bem, se o objectivo era encontrar a Lisbeth Salander, então é óbvio que falhámos. É uma situação complicada, com muitos conflitos de personalidades, e penso que não é o Bublanski que controla verdadeiramente a investigação.
- O Hans Faste...
- O Faste é um cretino. Mas o problema não é só ele e uma investigação atabalhoada. O Bublanski certificou-se de que todas as pistas eram devidamente examinadas. O facto é que a Salander conseguiu esconder-se sem deixar rasto.
- Mas a sua missão não era apenas encontrá-la - disse Armanskij.
- Pois não, e ainda bem que não dissemos nada ao Hedstrõm sobre o meu segundo papel como infiltrado para garantir que a Lisbeth Salander não era falsamente acusada.
- E hoje, qual é a sua opinião?
- Quando começámos, tinha a certeza de que ela era culpada. Hoje, não sei. Há tanta coisa que não encaixa...
- Sim?
- Bem, já não a consideraria a principal suspeita. Inclino-me mais para pensar que há alguma virtude no raciocínio do Mikael Blomkvist.
- O que significa que temos de identificar e encontrar os assassinos. Retomamos a investigação desde o início? - disse Armanskij, enchendo as chávenas de café.
Lisbeth Salander teve uma das piores noites da sua vida. Estava a pensar na tarde em que atirara a bomba incendiária para dentro do carro de Zalachenko. Naquele instante, os pesadelos tinham cessado e sentira uma enorme paz interior. Ao longo dos anos seguintes,
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tinham surgido outros problemas, mas que lhe diziam exclusivamente respeito, e sempre soubera lidar com eles. Agora, porém, tratava-se de Mimi.
Mimi fora espancada e estava no hospital. Sem culpa. Não tinha nada a ver com aquilo. O seu único crime era conhecer Lisbeth Salander.
Amaldiçoou-se a si mesma. Sentia-se esmagada por sentimentos de culpa. A culpada era ela. A morada dela era secreta. Ela estava a salvo. E então convencera Mimi a ir viver para o seu apartamento, uma morada que toda a gente conhecia.
Como pudera ser tão estúpida? Se tivesse sido ela própria a espancar Mimi, a diferença não seria muito grande.
Sentia-se tão miserável que os olhos se lhe encheram de lágrimas. Mas Lisbeth Salander nunca chorava. Limpou-as com as costas da mão.
Às dez e meia, estava tão agitada que não conseguiu continuar no apartamento. Vestiu o casaco, calçou as botas e saiu para a noite. Foi até Ringvâgen, fugindo às ruas principais, e deteve-se no início do caminho de acesso ao Hospital de Sõder. Queria ir ao quarto de Mimi, acordá-la e dizer-lhe que ia ficar tudo bem. Então, viu as rodopiantes luzes azuis de um carro-patrulha perto de Zinken e recuou para um beco, para evitar ser vista.
Voltou a casa antes da meia-noite. Estava enregelada. Despiu-se e enfiou-se na cama. À uma da manhã ainda não tinha conseguido adormecer. Levantou-se e pôs-se a deambular, nua, pelo apartamento às escuras. Foi ao quarto de hóspedes, onde havia uma cama e uma secretária. Nunca lá tinha posto os pés. Sentou-se no chão, de costas apoiadas à parede, a olhar para a noite.
Lisbeth Salander tem um quarto de hóspedes. Que'anedota.
Ficou ali até às duas, a tremer de frio. E então, de repente, começou a chorar. Algo que não se lembrava de alguma vez ter feito.
As duas e meia, tinha tomado duche e estava vestida. Fez café, preparou o pequeno-almoço e ligou o computador. Entrou no disco rígido de Mikael. Ficou surpreendida ao descobrir que ele não actualizara o diário da pesquisa e abriu a pasta [LISBETH SALANDER].
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Continha um novo documento, chamado <Lisbeth-IMPORTANTE>. Verificou as propriedades, e viu que tinha sido criado às 00h52. Abriu-o.
Lisbeth, contacta-me urgentemente. Esta história é pior do que eu poderia imaginar. Sei quem é o Zalachenko e julgo saber o que aconteceu. Falei com o Holger Palmgren. Compreendi o papel do Teleborian e por que razão te fecharam naquela clínica. Julgo saber quem assassinou o Dag e a Mia. Acho que também sei porquê, mas faltam-me algumas peças cruciais. Não compreendo o papel do Bjurman.
TELEFONA-ME. CONTACTA-ME IMEDIATAMENTE. PODEMOS RESOLVER ISTO.
Mikael.
Voltou a ler o documento, devagar. Super Blomkvist tinha andado ocupado. O Porquinho Prático. O estupor do Porquinho Prático. Pensava que ainda havia alguma coisa a resolver.
Mas a intenção era boa. Queria ajudar.
Não compreendia que, acontecesse o que acontecesse, a vida dela estava acabada.
Acabara antes de ela fazer 13 anos.
Havia apenas uma solução.
Criou um novo documento e tentou responder, mas os pensamentos eram um turbilhão na cabeça dela e havia tanta coisa que queria dizer-lhe.
Lisbeth Salander apaixonada. Mas que anedota.
Nunca ele o saberia. Nunca lhe daria essa satisfação.
Apagou o documento e ficou a olhar para o visor vazio. Mikael mantivera-se fielmente no canto dele, como um bom soldadinho de chumbo. Criou um novo documento e escreveu:
Obrigada por teres sido meu amigo.
Antes de mais nada, tinha uma série de decisões logísticas a tomar. Precisava de um meio de transporte. Usar o Honda cor de vinho que continuava estacionado na Lundagatan era tentador, mas estava fora de questão. Não havia nada no portátil de Ekstrõm que indicasse
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que alguém na equipa encarregada da investigação soubesse que ela tinha comprado um carro, talvez por ainda não ter enviado a documentação do registo e os papéis do seguro. Mas era possível que Mimi tivesse falado a respeito disso quando a polícia a interrogara, e a rua estava seguramente sob vigilância, ainda que esporádica.
A polícia sabia que ela tinha uma moto e, de todos os modos, seria ainda mais difícil ir buscá-la à arrecadação do apartamento sem dar nas vistas. Além disso, depois de uma série de dias quase de Verão, esperava-se uma mudança das condições meteorológicas, e o que menos lhe apetecia era arriscar-se de moto por estradas que a chuva tornaria escorregadias.
Uma alternativa seria, claro, alugar um carro em nome de Irene Nesser, mas também isso envolvia riscos. Podia alguém reconhecê-la e, nesse caso, deixaria de poder utilizar a sua falsa identidade. O que seria uma catástrofe, porque era a sua única possibilidade de sair do país.
Então, torceu os lábios num sorriso. Havia outra possibilidade. Ligou o PowerBook e entrou na rede interna da Milton Security, procurou o parque automóvel que era gerido por uma secretária na área da recepção. A Milton Security dispunha de cerca de 95 viaturas, na sua maioria veículos de vigilância que ostentavam o logo da empresa e estavam espalhados por várias garagens dispersas pela cidade. Mas havia também algumas descaracterizadas que eram sobretudo usadas em deslocações de serviço, e essas encontravam-se na garagem da sede, em Slussen. Praticamente ali à esquina.
Estudou os processos individuais do pessoal e escolheu um funcionário, Marcus Collander, que acabava de partir de férias por duas semanas. Deixara o número de telefone de um hotel nas Canárias. Alterou o nome do hotel e baralhou os dígitos do número de telefone de contacto. Em seguida, introduziu uma nota a indicar que a última coisa que Collander fizera antes de ir de férias fora deixar um dos carros na oficina, para revisão. Escolheu um Toyota Corolla automático, que já tinha conduzido, e acrescentou a indicação de que o carro estava pronto dentro de uma semana.
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Finalmente, entrou no sistema de vigilância e reprogramou as câmaras por que teria de passar. Das quatro e meia às cinco da manhã, repetiriam a gravação da meia hora anterior, mas com o código horário alterado.
Às quatro e um quarto, preparou a mochila. Levava duas mudas de roupa, duas latas de gás pimenta e o taser com a carga completa. Rejeitou o Colt 1911 Government de Sandstrõm e optou pela P-83 Wanad de Nieminen, em cujo carregador faltava um cartucho. Era mais leve e adaptava-se-lhe melhor à mão. Guardou-a no bolso do casaco.
Lisbeth Salander baixou a tampa do PowerBook, mas deixou o computador em cima da secretária. Tinha transferido o conteúdo do disco rígido para um back-up encriptado na Net e em seguida apagara-o com um programa que ela própria escrevera e que garantia que ninguém, nem mesmo ela, conseguiria reconstruí-lo. Não contava ter necessidade do PowerBook, que era, ainda por cima, demasiado grande. Em vez disso, optou por levar consigo o PDA Palm Tungsten.
Olhou em redor. Tinha o pressentimento de que nunca mais voltaria ao apartamento em Mosebacke e sabia que estava a deixar para trás segredos que provavelmente deveria destruir. Mas, ao consultar o relógio, verificou que já não lhe restava muito tempo. Apagou o candeeiro da secretária.
Foi a pé até à Milton Security, entrou pela garagem e subiu no elevador até aos gabinetes administrativos. Não encontrou ninguém nos corredores desertos e não teve qualquer problema em tirar a chave do carro do armário da recepção, que nem sequer tinha porta.
Trinta segundos mais tarde estava de novo na garagem e a abrir a porta do Corolla. Atirou a mochila para o banco do passageiro e ajustou o assento do condutor e os retrovisores. Usou o seu antigo telecomando para abrir a porta da garagem.
Um pouco antes das cinco, deixava para trás a Sõder Mâlarstrand e atravessava a Vásterbron. O céu começava a clarear.
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Mikael Blomkvist acordou às seis e meia. Não pusera o despertador e dormira apenas três horas. Levantou-se, ligou o iBook e abriu a pasta [LISBETH SALANDER] para procurar a resposta dela.
Obrigada por teres sido meu amigo.
Sentiu um arrepio gelado descer-lhe pelas costas. Não era de modo algum o que tinha esperado. Parecia mais uma carta de despedida. Lisbeth Salander sozinha contra o mundo. Foi à cozinha e ligou a máquina do café antes de tomar um duche. Enfiou uns jeans já muito usados e apercebeu-se de que havia várias semanas que não tinha tempo para pôr a roupa a lavar. Não lhe restava uma única camisa em condições. Vestiu uma camisa pólo cor de vinho por baixo do casaco cinzento.
Enquanto preparava o pequeno-almoço, um brilho metálico por detrás do microondas chamou-lhe a atenção. Com a ajuda de um garfo, pescou um porta-chaves.
As chaves de Lisbeth. Encontrara-as depois do ataque na Lunda-gatan e pusera-as em cima do microondas, juntamente com o saco. Deviam ter caído para trás do aparelho sem que ele se apercebesse, e por isso não as entregara à inspectora Modig.
Ficou a olhar para as chaves. Três grandes e três pequenas. As três grandes eram provavelmente de uma porta da rua e de um apartamento com duas fechaduras. O apartamento dela. Obviamente, não o da Lundagatan. Onde era então que ela morava?
Examinou mais atentamente as três chaves pequenas. Uma era provavelmente da Kawasaki. Outra parecia ser de um cofre ou de um cacifo. Pegou na terceira. Tinha gravado o número 24914. E então compreendeu.
Uma caixa postal. A Lisbeth Salander tem uma caixa postal. Procurou na lista telefónica as estações de correios de Soder-m. Ela tinha vivido na Lundagatan. A de Ringáven ficava demasiado longe. Talvez a de Hornsgatan. Ou a de Rosenlundsgatan.
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Desligou a máquina de café, abandonou o pequeno-almoço e foi no BMW de Erika até à Rosenlundsgatan. Não havia nenhuma caixa com aquele número. Foi à Hornsgatan. A chave encaixava perfeitamente na fechadura da caixa nº 24914. Abriu-a e encontrou 22 sobrescritos, que enfiou na bolsa exterior do saco do portátil.
Foi até à Hornsgatan, estacionou perto do cinema Kvarter, tomou o pequeno-almoço no Copacabana, em Bergsunsstrand. Enquanto esperava pelo caffè latte, examinou os sobrescritos um a um. Estavam todos endereçados à Wasp Enterprises. Nove tinham sido enviados da Suíça, oito das ilhas Caimão, um das ilhas do Canal, quatro de Gibraltar. Abriu-os sem qualquer problema de consciência. Os primeiros 21 continham extractos bancários e relatórios sobre várias contas a prazo e fundos de investimento. Salander era uma rapariga muito rica.
O décimo segundo era mais grosso e ostentava um timbre e uma morada: Buchanan House, Queensway Qay, Gibraltar. O endereço fora escrito à mão. O papel da carta inclusa tinha o cabeçalho de um tal Jeremy S. MacMillan, Solicitador. A caligrafia era cuidada.
Cara Ms Salander,
Venho confirmar que o último pagamento da sua propriedade foi efectuado a 20 de Fevereiro. De acordo com as suas instruções, junto cópias de toda a documentação, mas conservo os originais.
Permita que manifeste a esperança de que tudo esteja bem consigo. Apreciei muito a sua visita surpresa no Verão passado e devo dizer que achei a sua companhia extremamente agradável. Fico na expectativa de poder voltar a ser-lhe útil.
Atentamente J.S.M.
A data era de 24 de Fevereiro. Aparentemente, Lisbeth não tinha pressa de levantar a correspondência. Mikael examinou a documentação apensa, referente à compra de um apartamento no nº da Fiskargatan, em Mosebacke.
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Então, quase se engasgou com o café. O preço fora de 25 milhões de coroas, pagos em duas prestações com um ano de intervalo.
Lisbeth Salander viu um homem forte, de cabelos escuros, abrir a porta lateral da Auto-Expert, em Eskilstuna. Era uma garagem, uma oficina e agência de aluguer de automóveis. Uma empresa como tantas outras. Faltavam dez para as sete e, segundo o cartaz escrito à mão pendurado na porta principal, a loja só abria às sete e meia. Atravessou a rua e entrou logo atrás do homem moreno. Ele ouviu-a e voltou-se.
- Refik Alba? - perguntou ela.
- Sim. Quem é a senhora? Ainda não estamos abertos. Lisbeth levantou a P-83 Wanad de Nieminen e segurou-a com
ambas as mãos apontada à cara dele.
- Não quero fazer-lhe mal. Só quero ver a lista de carros alugados. E quero vê-la já. Tem dez segundos para ma mostrar.
Refik Alba tinha 42 anos, era um curdo nascido em Diyarbakir e tinha tido mais do que a sua conta em matéria de armas. Ficou como que paralisado. Então, concluiu que se aquela louca tinha entrado na loja dele com uma pistola na mão, não havia grande coisa a discutir.
- Está no computador - disse Alba.
- Ligue-o. Ele obedeceu.
- O que há atrás daquela porta? - perguntou ela, enquanto o computador arrancava e o visor começava a tremeluzir.
- Um armário.
- Abra-o.
Continha meia dúzia de fatos-macaco.
- Muito bem. Entre para aí, mantenha-se calmo e eu não serei obrigada a magoá-lo.
Ele voltou a obedecer sem protestar.
- Tire o telemóvel, ponha-o no chão e empurre-o para aqui com o pé.
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Mais uma vez, ele fez o que ela dizia.
- Óptimo. Agora, feche a porta.
O computador era uma antiguidade, um PC com o Windows 95 e um disco rígido de 280 MB. Demorou uma eternidade a abrir o documento Excel com a lista de carros alugados. O Volvo branco tinha sido alugado em duas ocasiões. Primeiro durante duas semanas, em Janeiro, e novamente a partir de 1 de Março. Ainda não fora devolvido. O cliente estava a pagar uma taxa semanal por aluguer de longa duração.
Chamava-se Ronald Niedermann.
Passou os olhos pelas pastas de arquivo alinhadas na prateleira por cima do computador. Uma delas tinha a palavra identificação impressa na lombada. Pegou nela e folheou-a até encontrar Ronald Niedermann. Quando alugara o carro pela primeira vez, em Janeiro, usara o passaporte para se identificar, e Refik Alba fizera uma fotocópia. Reconheceu imediatamente o gigante loiro. Segundo o passaporte, era alemão, tinha 35 anos e nascera em Hamburgo. O facto de Alba ter fotocopiado o documento provava que Niedermann era apenas um cliente, não um amigo.
No fundo da página, Alba anotara o número de um telemóvel e de uma caixa postal em Gotemburgo.
Lisbeth devolveu a pasta ao seu lugar e desligou o computador. Olhou em redor e descobriu uma cunha de borracha junto à porta principal. Apanhou-a do chão, voltou para junto do armário e bateu na porta com o cano da arma.
- Ouve-me?
- Sim.
- Sabe quem eu sou? Silêncio.
Tinha de ser cego para não me reconhecer.
- Okay, sabe quem eu sou. Tem medo de mim?
- Sim.
- Não tenha, Herr Alba. Não vou fazer-lhe mal. Já acabei o que tinha de fazer aqui. Lamento ter sido obrigada a incomodá-lo.
- Hum... está bem.
- Tem ar suficiente para respirar?
- Tenho... Mas, afinal, o que é que quer?
- Queria ver se uma certa mulher lhe alugou um carro, há dois anos. Não encontrei o que procurava, mas a culpa não é sua. Vou-me embora dentro de minutos. Vou pôr a cunha de borracha debaixo da porta do armário. Não será muito difícil sair daí, mas vai demorar algum tempo. Não precisa de chamar a polícia. Não voltará a ver-me, e pode abrir normalmente e fingir que isto nunca aconteceu.
As probabilidades de ele não chamar a polícia eram mais do que remotas, mas não prejudicava dar-lhe uma alternativa em que pensar. Saiu da garagem, foi até ao Toyota, que deixara do outro lado da esquina, e transformou-se rapidamente em Irene Nesser.
Estava aborrecida por não ter encontrado um endereço para Ronald Niedermann na área de Estocolmo em vez de uma caixa postal no outro lado da Suécia. Mas era a única pista que tinha. Portanto, lá vamos para Gotemburgo.
Chegou à E20 e virou para oeste em direcção a Arboga. Ligou o rádio, mas tinha perdido o noticiário e apanhou uma estação comercial. Ficou a ouvir David Bowie a cantar "apagar o fogo com gasolina". Não sabia que era David Bowie que cantava nem conhecia a canção, mas as palavras pareceram-lhe proféticas.
CAPÍTULO 30
QUINTA-FEIRA.7 DE ABRIL
MIKAEL Blomkvist olhou para a entrada do número 9 da Fiskargatan, uma das zonas mais selectas de Estocolmo. Experimentou a chave. Rodou sem problemas. A lista de residentes, no átrio, não foi de grande ajuda. Assumiu que o prédio devia albergar sobretudo empresas, mas parecia haver também uma ou duas residências particulares. Não o surpreendeu o facto de o nome Salander não constar da lista, embora tivesse dificuldade em imaginá-la ali escondida.
Subiu andar a andar, lendo os nomes das placas das portas. Nenhum deles lhe dizia nada. Até que chegou ao último andar e leu V. Kulla.
Deu uma palmada na testa, e teve de sorrir. Talvez a escolha do nome não tivesse tido a intenção de troçar dele, pessoalmente - podia ter sido apenas uma reflexão irónica da parte de Lisbeth -, mas onde iria Super Blomkvist, uma personagem de Astrid Lindgren, procurá-la senão em casa da Pipi das Meias Altas, Villa Villekulla?
Premiu o botão da campainha e aguardou um minuto. Então, pegou nas chaves e abriu as duas fechaduras.
No instante em que empurrou a porta, o alarme anti-roubo foi activado.
Lisbeth Salander ouviu o telemóvel tocar. Estava perto de Glans-hammar, pouco depois de Õrebro. Travou e encostou à berma. Tirou o PDA do bolso do casaco e ligou-o ao telefone.
Quinze segundos antes, alguém abrira a porta do seu apartamento. O alarme não estava ligado a qualquer empresa de segurança.
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A sua única função era alertá-la se alguém arrombasse ou abrisse a porta de qualquer outra maneira. Passados 30 segundos, soaria um alarme e o intruso receberia uma desagradável surpresa sob a forma de bomba de tinta escondida numa falsa caixa de fusíveis ao lado da porta. Lisbeth sorriu à ideia e começou a contar os segundos.
Mikael Blomkvist ficou a olhar, consternado, para o mostrador do dispositivo de alarme colocado ao lado da porta. Por qualquer razão, nem sequer lhe passara pela cabeça que o apartamento estivesse protegido. Viu os números sucederem-se no mostrador digital. O alarme da Millennium disparava se alguém deixasse de introduzir o código correcto no espaço de 30 segundos, e pouco depois um par de fulanos muito musculosos, da empresa de segurança, aparecia para ver o que se passava.
O seu primeiro impulso foi fechar a porta e sair rapidamente do edifício. Mas ficou ali parado, incapaz de se mexer.
Quatro dígitos. Impossível adivinhar um código aleatório. -ri 25-24-23-22...
Raio da Pipi das Meias Altas...
19-18...
Que código terás tu usado?
15-14-13...
Sentiu o pânico a crescer.
10-9-8...
Ergueu a mão e teclou o único número de que conseguiu lembrar-se: 9277. Os dígitos que correspondiam às letras W-A-S-P no teclado alfanumérico.
Para seu espanto, a contagem decrescente cessou com seis segundos de margem. O alarme emitiu um último "bip", o contador voltou a zeros e acendeu-se uma luz verde.
Lisbeth abriu muito os olhos. Julgou estar a ver mal e chegou a sacudir o PDA, apesar de ter consciência da irracionalidade do gesto. A contagem decrescente parara seis segundos antes de a bomba de tinta explodir. E, um segundo mais tarde, o contador voltou a zeros.
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Impossível.
Nenhuma outra pessoa em todo o mundo conhecia o código.
Quem poderia ser? A polícia? Não. Zala? Inconcebível.
Marcou um número no telemóvel e esperou que a câmara de vigilância se ligasse e começasse a enviar imagens de baixa resolução. A câmara estava escondida no que parecia ser um detector de fumos, no tecto do vestíbulo, e captava imagens a intervalos de um segundo. Passou a sequência a partir do início, o momento em que a porta fora aberta e o alarme activado. Então, um sorriso torcido espalhou-se-lhe pelo rosto ao ver Mikael Blomkvist, que, durante meio minuto, representou uma sacudida pantomina até finalmente teclar o código e encostar-se à ombreira da porta com o ar de quem acabava de escapar a um ataque cardíaco.
Super Filho da Mãe Blomkvist encontrara-lhe o rasto.
Tinha na mão as chaves que ela deixara cair na Lundagatan. Fora suficientemente esperto para se lembrar do nickname dela na Net e associá-lo à Wasp Enterprises, de cuja existência tinha forçosamente de saber, uma vez que descobrira o apartamento. Viu-o avançar sacudidamente pelo vestíbulo e desaparecer do campo de visão da câmara.
Merda. Como pude ser tão previsível? E porque deixei cair aquelas chaves? Agora, todos os seus segredos estavam expostos aos olhos curiosos de Mikael Blomkvist.
Depois de pensar um pouco naquilo, decidiu que já não fazia qualquer diferença. Apagara o disco rígido. Isso era o importante. Na realidade, até podia ser uma vantagem o facto de ter sido ele a descobrir-lhe o esconderijo. Mikael já sabia mais dos seus segredos do que qualquer outra pessoa. O Porquinho Prático faria o que era correcto. Não a trairia. Esperava. Empurrou a alavanca da caixa automática e seguiu viagem em direcção a Gotemburgo, absorta em pensamentos.
Malin Eriksson encontrou Paolo Roberto à porta da Millennium quando chegou, às oito e meia da manhã. Reconheceu-o imediatamente, apresentou-se e abriu-lhe a porta. Reparou que coxeava acentuadamente. Sentiu o cheiro a café e soube que Erika Berger já lá estava.
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- Olá, Erika. Obrigado por me receberes assim de repente - disse o pugilista.
Erika estudou a impressionante colecção de contusões e inchaços que lhe decoravam a cara antes de inclinar-se para a frente e beijá-lo na face.
- Estás com um aspecto horrível - comentou.
- Não foi a primeira vez que me partiram o nariz. Onde se meteu o Blomkvist?
- Anda por aí a brincar aos detectives, à procura de pistas. Como sempre, é impossível contactá-lo. Exceptuando um estranho e-mail a noite passada, não sei nada dele desde ontem de manhã. Obrigada por... bem, obrigada.
Apontou para a cara dele. Paolo Roberto riu-se.
- Queres café? Disseste que tinhas uma coisa para me contar. Malin, junta-te a nós.
Instalaram-se nos confortáveis cadeirões do gabinete de Erika.
- É a respeito daquele filho da mãe loiro com quem tive de lutar. Disse ao Mikael que o boxe dele não valia um chavo. Mas o curioso é que assumia a posição defensiva com os punhos e movia-se em círculos, como se fosse um pugilista. Como se tivesse recebido alguma espécie de treino.
- O Mikael falou-me disso ao telefone, ontem à noite - disse Malin.
- Aquilo não me saía da cabeça, de modo que ontem, quando cheguei a casa, sentei-me e mandei e-mails para clubes de boxe um pouco por toda a Europa. Contei o que aconteceu e fiz uma descrição do tipo o mais pormenorizada que pude.
- Tiveste sorte?
- Acho que talvez.
Pousou uma fotografia enviada por fax em cima da mesa, em frente de Erika e de Malin. Parecia ter sido tirada durante uma sessão de treino num clube de boxe. Dois pugilistas escutavam as indicações dadas por um homem mais velho, de ar pesado, que vestia um fato de treino e usava um chapéu redondo de aba estreita. Havia meia dúzia
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de pessoas à volta do ringue, a ouvir. Em segundo plano, via-se um indivíduo de grande estatura, que parecia um skinhead. Alguém usara um marcador para lhe desenhar um círculo à volta da cabeça.
- Esta fotografia tem dezassete anos. O tipo em segundo plano chama-se Ronald Niedermann. Tinha dezoito anos quanto a foto foi tirada, o que quer dizer que tem hoje à volta de trinta e cinco. Condiz com o gigante que raptou a Miriam Wu. Não posso afirmar com cem por cento de certeza que é ele. A fotografia é muito antiga e a qualidade é má. Mas devo dizer que o acho bastante parecido.
- Onde arranjaste essa foto?
- Tive uma resposta de um sujeito chamado Hans Miinster, antigo treinador do Diynamic de Hamburgo. O Ronald Niedermann praticou lá, em finais dos anos oitenta. Ou melhor, tentou praticar. Recebi o e-mail hoje de manhã e liguei para o Miinster antes de vir para aqui. Resumindo o que ele me disse: o Niedermann é de Hamburgo e, nos anos oitenta, andava com um bando de skinheads. Tem um irmão uns anos mais velho, um pugilista com talento, e foi através dele que entrou para o clube. Tinha uma força incrível e um físico inigualável. Diz o Miinster que nunca tinham visto ninguém bater com tanta força, nem mesmo entre os melhores. Mediram-lhe a potência do murro, uma vez, e ultrapassou completamente a escala.
- Tudo indica que podia ter feito carreira no ringue - observou Erika.
Paolo Roberto abanou a cabeça.
- Segundo o Miinster, era impossível, por várias razões. Em primeiro lugar, não conseguia aprender. Especava-se no meio do ringue, a disparar murros capazes de abater um boi. Era fenomenalmente desajeitado, o que também condiz com o tipo de Nykvarn. E, o que era ainda pior, não sabia a força que tinha. De vez em quando acertava um e causava ferimentos horríveis durante uma simples sessão de treino. Havia narizes e queixos partidos... toda uma série de lesões desnecessárias. Não podiam deixá-lo lutar.
- Portanto, sabia boxe, mas ao mesmo tempo não sabia - disse Malin.
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- Exacto. Mas a principal razão de o terem afastado foi médica.
- Médica como?
- Era aparentemente invulnerável. Por mais murros que apanhasse, sacudia a cabeça e continuava a lutar. Acabaram por descobrir que sofria de uma doença rara chamada analgesia congénita. Fui ver à Net. É uma deficiência genética hereditária que significa que a substância transmissora nas sinapses nervosas não funciona como deve ser. Por outras palavras, não sente a dor.
- Parece óptimo, para um pugilista. Paolo Roberto abanou a cabeça.
- Pelo contrário, pode ser uma doença mortal. A maior parte das pessoas que sofre de analgesia congénita morre relativamente cedo, entre os vinte e os vinte e cinco anos. A dor é o sistema de alarme do corpo, que avisa o cérebro quando alguma coisa está mal. Se tocamos num ferro em brasa, dói-nos e retiramos a mão. Mas quando se tem esta doença, não se dá por nada até começar a cheirar a carne queimada.
Erika e Malin trocaram um olhar.
- Isso é a sério? - perguntou Erika.
- Absolutamente. O Niedermann não sente a dor e anda por aí como se estivesse a apanhar uma dose maciça de anestésico local vinte e quatro horas por dia. Tem conseguido lidar com a situação porque tem outra característica genética que, de certo modo, compensa a primeira. É extraordinariamente bem constituído, com um esqueleto excepcionalmente forte, o que o torna quase invulnerável. Tem uma força física que é quase única. E, acima de tudo, os ferimentos devem cicatrizar facilmente.
- Começo a compreender que deve ter sido um combate de boxe muito interessante.
- Foi, sem a mínima dúvida. Não gostaria de ter de o repetir. A única coisa que causou algum efeito foi quando a Miriam Wu lhe deu um pontapé nos tomates. Chegou a cair de joelhos por um segundo... talvez por haver uma espécie qualquer de reacção física ligada a uma pancada desse tipo, uma vez que ele não sente dor. E, acredita... até eu teria ficado arrumado, se ela me tivesse dado um pontapé daqueles.
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- Como foi então que conseguiste vencê-lo?
- As pessoas que sofrem desta doença podem ser feridas como as outras. Esquece que o Niedermann parece ter ossos de betão armado. Quando lhe cheguei com o raio do barrote, caiu como uma pedra. Provavelmente, sofreu um traumatismo craniano.
Erika olhou para Malin.
- Vou ligar para o Mikael - disse Malin.
Mikael ouviu o telemóvel, mas estava tão aturdido que só atendeu ao quinto toque.
- Sou eu, a Malin. O Paolo Roberto acha que identificou o gigante.
- Isso é bom - disse Mikael, distraidamente.
- Onde estás tu?
- É difícil de explicar.
- Pareces esquisito.
- Desculpa. Que estavas a dizer?
Malin resumiu a história de Paolo Roberto.
- Óptimo. Vê se consegues descobrir alguma coisa numa base de dados. Penso que é urgente. Liga-me para o telemóvel.
E, para grande surpresa de Malin, desligou sem sequer se despedir.
Naquele momento, Mikael estava junto de uma janela a contemplar a magnífica vista que se estendia de Gamla Stan na direcção de Saltsjõn. Estava atordoado. Havia uma cozinha, à direita do vestíbulo. E depois havia uma sala, um escritório, um quarto de dormir e até um pequeno quarto de hóspedes que parecia nunca ter sido utilizado. O colchão continuava embrulhado em plástico e não havia lençóis. Todo o mobiliário era novinho em folha, acabado de sair da IKEA.
Mas não era esse o problema.
O que tanto atordoava Mikael era o facto de Lisbeth ter comprado a casa que pertencera a Percy Barnevik, um magnata da indústria. O apartamento tinha 350 metros quadrados e valia 25 milhões de coroas.
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Deambulou pelos corredores fantasmagoricamente desertos, e pelas divisões com soalhos de parquet de várias espécies de madeira e paredes forradas com os papéis pintados Tricia Guild que Erika tanto cobiçava. No centro do apartamento havia uma sala enorme, magnificamente luminosa, com uma lareira aberta onde Lisbeth nunca acendera o lume. Havia uma varanda imensa, com uma vista fantástica. E havia uma lavandaria, e uma sauna, e um ginásio, e arrecadações, e uma casa de banho com uma banheira gigante. Havia até uma adega, vazia, exceptuando uma única garrafa de porto Quinta do Noval - Nacional! - de 1976. Mikael esforçou-se por imaginar Lisbeth com um cálice de porto na mão. Um requintado cartão indicava que fora uma oferta de boas-vindas da imobiliária.
A cozinha estava magnificamente equipada, incluindo um refulgente fogão francês com forno a gás. Era a primeira vez que Mikael via um Corradi Chateau 120. Provavelmente, Lisbeth usava-o para ferver água para o chá.
Em contrapartida, admirou com reverência a máquina de café, colocada numa mesa à parte. Era uma Jura Impressa X7, com arrefecedor de leite incorporado. A máquina não tinha ar de ser muito usada e provavelmente já ali estava quando Lisbeth comprara o apartamento. Mikael sabia que ajura era o Rolls-Royce do mundo do café espresso - uma máquina industrial para uso doméstico que custava à volta de 70 mil coroas. Ele próprio tinha uma máquina de café que comprara na John Wall por 3500 coroas - uma das poucas extravagâncias que se permitira ao equipar a sua nova cozinha e que não se aproximava sequer da grandeza da de Lisbeth.
O frigorífico continha uma embalagem de leite aberta, um pedaço de queijo, manteiga, caviar e um boião de pepinos de conserva, meio vazio. No armário da cozinha encontrou quatro frascos de comprimidos vitamínicos, saquetas de chá, café para uma máquina das vulgares, dois pães e um pacote de bolachas. Em cima da mesa havia uma tigela com maçãs. Havia três empadas de presunto e uma embalagem de peixe no congelador. Foi toda a comida que encontrou no apartamento. No caixote do lixo, por baixo da bancada ao lado do fogão, encontrou várias embalagens vazias de Billys Pan Pizza.
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Tudo aquilo era completamente desproporcionado. Lisbeth roubara muitos milhões de coroas e comprara um apartamento com espaço para acolher a corte inteira. Mas só precisava das quatro divisões que tinha mobilado. As outras 18 estavam vazias.
Terminou a ronda no escritório. Não havia flores em parte alguma. Não havia quadros, ou sequer posters, nas paredes. Não havia tapetes nem alcatifas. Não viu um único objecto de decoração, um candelabro, ou até uma bugiganga qualquer guardada por razões sentimentais.
Sentiu-se como se alguém estivesse a apertar-lhe o coração. Sentiu que tinha de encontrar Lisbeth e abraçá-la com força.
O mais certo era ela mordê-lo, se o tentasse.
Maldito Zalachenko.
Então, sentou-se à secretária e abriu a pasta que continha o relatório de Bjõrck de 1991. Não o leu de uma ponta à outra, mas passou os olhos por ele, tentando absorver o essencial.
Ligou o PowerBook com o monitor de 17 polegadas, o disco rígido de 200 GB e os 1000 MB de RAM. Estava vazio. Lisbeth tinha-o limpado. Era um mau sinal.
Abriu a gaveta e descobriu um Colt 1911 Government de 9 mm, de acção simples, com um carregador completo: sete cartuchos. Era a arma que Lisbeth trouxera de casa de Sandstrõm, embora Mikael nada soubesse a esse respeito. Ainda não tinha chegado à letra S na lista de clientes.
E então encontrou um DVD em que estava escrito Bjurman.
Introduziu-o na drive do iBook e assistiu, horrorizado, ao desfilar das imagens. Ficou ali, aturdido, a ver Lisbeth Salander ser agredida, violada e quase assassinada. A gravação parecia ter sido feita com uma câmara escondida. Não viu tudo. Saltou de uma parte para a seguinte, cada uma pior do que a outra.
Bjurman.
O tutor de Lisbeth tinha-a violado, e ela documentara o evento até ao último pormenor. Uma data digital indicava que a gravação fora feita dois anos antes. Antes de ele a ter conhecido. As peças do quebra-cabeças continuavam a encaixar nos respectivos lugares.
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Bjõrck e Bjurman juntos com Zalachenko nos anos 70.
Zalachenko e Lisbeth e um cocktail molotov feito com uma embalagem de leite no início dos anos 90.
Depois, novamente Bjurman, agora como tutor dela, tendo substituído Palmgren. O círculo fechara-se. Bjurman atacara a sua pupila. Tratara-a como se ela fosse uma rapariga indefesa, mentalmente deficiente. Mas Lisbeth Salander era tudo menos indefesa. Era a rapariga que, com 12 anos, entrara em guerra com um assassino do GRU e o deixara estropiado para o resto da vida.
Lisbeth Salander era a mulher que odiava os homens que odeiam as mulheres.
Recordou a altura em que a conhecera, em Hedestad. Devia ter sido poucos meses depois da violação. Não se lembrava de ela ter dado a entender, por uma palavra que fosse, que alguma coisa lhe acontecera. Nunca revelara muito a respeito de si mesma. Mikael não sabia o que Lisbeth fizera a Bjurman... mas não o matara. O que era estranho. Caso contrário, Bjurman teria morrido dois anos antes. Ela devia ter estado a controlá-lo de algum modo e com um objectivo que ignorava. Então compreendeu que o meio de controlo estava ali mesmo, naquela secretária. O DVD. Enquanto ela o tivesse, Bjurman era um escravo indefeso. E Bjurman voltara-se para o homem que julgava ser seu aliado. Zalachenko. O pai dela. O pior inimigo dela.
Seguira-se toda uma cadeia de acontecimentos. Bjurman fora o primeiro a morrer. Depois, Dag e Mia.
Mas como? Que poderia ter feito de Svensson uma tão grande ameaça?
E subitamente, soube o que devia ter acontecido em Enskede.
Encontrou um papel no chão, por baixo da janela. Lisbeth imprimira uma página, amarrotara-a e deitara-a fora. Apanhou-o e alisou-o. Era uma página da edição online do Aftonbladet e falava do rapto de Miriam Wu.
Não sabia que papel desempenhava Wu em todo aquele drama -se algum desempenhava -, mas sabia que fora uma das poucas amigas de Lisbeth. Talvez a única amiga. Lisbeth dera-lhe o seu antigo
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apartamento. E agora Miriam Wu estava no hospital, gravemente ferida.
Niedermann e Zalachenko.
Primeiro a mãe. Depois Miriam. Lisbeth devia estar louca de ódio.
Aquela provocação fora a gota de água.
E agora andava à caça.
À hora do almoço, Dragan Armanskij recebeu um telefonema da clínica de reeducação, em Ersta. Contara que Palmgren o contactasse muito mais cedo e resolvera não tomar a iniciativa, temendo ter de ser ele a dizer-lhe que Lisbeth Salander era culpada, sem a mais pequena margem para dúvida. Agora, ao menos, poderia dizer que havia na realidade dúvidas mais do que razoáveis quanto à culpa dela.
- Até onde chegaste? - perguntou Palmgren, sem mais rodeios.
- Em quê?
- Na tua investigação a respeito da Lisbeth.
- O que é que te leva a pensar que estou a fazer essa investigação?
- Não desperdices o meu tempo, Dragan. Armanskij suspirou.
- Tens razão, desculpa.
- Quero que venhas ver-me.
- Vou este fim-de-semana.
- Não. Quero que venhas esta noite. Temos muito que falar.
Mikael fez café e uma sanduíche na cozinha de Lisbeth. Estava na expectativa de ouvi-la meter a chave à porta, mas não se sentia particularmente optimista. O disco rígido vazio no PowerBook provara-lhe que ela já deixara definitivamente o seu esconderijo. Encontrara-a demasiado tarde.
Às duas e meia, ainda estava sentado à secretária de Lisbeth. Lera três vezes o "não-relatório" de Bjõrck. Fora redigido sob a forma de memo dirigido a um superior cujo nome não era referido. A recomendação era simples: arranjar um psiquiatra complacente que internasse Lisbeth numa clínica. A rapariga estava sem a mínima dúvida perturbada, como o seu comportamento claramente demonstrava.
Mikael prometeu a si mesmo prestar uma atenção especial a Bjõrck e a Teleborian, num futuro próximo. Sim, uma atenção muito especial. O toque do telemóvel interrompeu-lhe os pensamentos.
- Olá, outra vez. Sou eu, a Malin. Acho que descobri qualquer coisa.
-Diz.
- Não há nenhum Ronald Niedermann nos registos da Segurança Social. Não consta de nenhuma lista telefónica, nem das bases de dados das finanças, do registo automóvel ou quaisquer outras. Mas ouve isto. Em 1998, foi registada uma empresa na Conservatória Comercial. Chama-se KAB Import A.B., e o endereço é uma caixa postal em Gotemburgo. Importam equipamento electrónico. O presidente do conselho de administração é Karl Axel Bodin... daí o KAB... nascido em 1941.
- Não me diz nada.
- Nem a mim. O conselho inclui um contabilista, que aparece também numa dúzia de outras empresas. Parece ser um desses directores financeiros nominais que as pequenas empresas são obrigadas a ter. Mas esta tem estado mais ou menos inactiva desde que foi criada. Agora a parte interessante: o terceiro membro do conselho de administração é um tal R. Niedermann. Não tem número de contribuinte na Suécia. Nasceu a 18 de Janeiro de 1970 e está registado como o representante da empresa junto do mercado alemão.
- Bom trabalho, Malin. Muito bom. Temos alguma morada, além da caixa postal?
- Não, mas consegui encontrar o Karl Axel Bodin. Está registado na Suécia ocidental e vive no endereço correspondente à caixa postal número 612, em Gosseberga. Verifiquei; parece ser uma propriedade rural, não muito longe de Nossebro, a nordeste de Gotemburgo.
- O que é que sabemos sobre ele?
- Declarou um rendimento de 260 mil coroas há dois anos. Segundo os nossos amigos na polícia, não tem cadastro criminal. Tem licença para uma espingarda de caça ao alce e uma caçadeira. Tem dois carros, um Ford e um Saab, ambos já com muitos anos. Nenhum registo na carta de condução. É solteiro e diz-se agricultor.
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- Um homem a respeito de quem não sabemos nada e que não tem cadastro policial. - Mikael pensou durante alguns segundos. Tinha de tomar uma decisão.
- Mais uma coisa. O Dragan Armanskij telefonou várias vezes, a perguntar por ti.
- Obrigado, Malin. Ligo-te mais tarde.
- Mikael... está tudo bem contigo?
- Não, não está tudo bem comigo. Eu volto a ligar.
Como bom cidadão, o seu dever era telefonar a Bublanski. Mas se o fizesse, teria de contar-lhe a verdade sobre Lisbeth ou atascar-se numa confusa situação de meias verdades e factos escondidos. Não era esse, porém, o verdadeiro problema.
Lisbeth fora à procura de Niedermann e Zalachenko. Não fazia ideia de até onde tinha chegado, mas se Malin Eriksson fora capaz de descobrir o endereço da caixa postal 612 em Gosseberga, não havia a mínima dúvida de que Lisbeth também o conseguiria. O mais certo era ela ir a caminho de Gosseberga naquele preciso instante. Era o passo natural.
Se telefonasse à polícia e lhes dissesse onde Niedermann se escondia, teria de dizer-lhes que, muito provavelmente, Lisbeth Salander ia para lá. Lisbeth era procurada por três assassínios e uma cena de tiros em Stallarholmen, o que significava que a polícia de intervenção, ou qualquer outro corpo equivalente, seria encarregada de capturá-la.
E Lisbeth ia com toda a certeza resistir à captura.
Pegou numa caneta e numa folha de papel e fez uma lista das coisas que não queria ou não podia dizer à polícia.
Em primeiro lugar, o endereço em Mosebacke.
Lisbeth dera-se a muito trabalho para garantir a privacidade do seu apartamento. Era onde tinha a sua vida e os seus segredos. Não seria ele a traí-la.
Em seguida, escreveu Bjurman e pôs um ponto de interrogação à frente do nome.
Olhou pelo canto do olhou para o DVD que estava em cima da secretária. Bjurman tinha violado Lisbeth. Quase a matara. Abusara vergonhosamente da sua posição como tutor dela. Devia ser denunciado
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como o porco que era. Mas havia ali um dilema ético. Lisbeth não dissera nada à polícia. Mas ver-se exposta nos media por uma investigação policial que traria a lume, numa questão de horas, os pormenores mais sórdidos? Nunca ela lho perdoaria. O DVD constituía prova, e as imagens acabariam inevitavelmente por aparecer nos jornais.
Cabia a Lisbeth decidir o que queria fazer. Mas se ele conseguira descobrir o apartamento, mais cedo ou mais tarde a polícia consegui-lo-ia também. Meteu o DVD no bolso.
Em seguida escreveu: Relatório de Bjorck. Em 1991, fora considerado segredo de Estado. Esclarecia tudo o que tinha acontecido. Referia Zalachenko e explicava o papel de Bjorck e, juntamente com a lista de clientes do computador de Svensson, ia proporcionar ao homem da Sapo algumas horas de aperto diante de Bublanski. E, à luz da correspondência trocada, também Teleborian ia ver-se em maus lençóis.
O documento ia levar a polícia até Gosseberga, mas ao menos ele teria algumas horas de avanço.
Abriu o Word no iBook e descreveu, sob a forma de resumo, os principais factos que descobrira nas últimas 24 horas através das conversas que tivera com Bjorck e Palmgren e do material que encontrara no apartamento de Salander. Demorou cerca de uma hora. Gravou tudo num CD, juntamente com a sua própria pesquisa.
Debateu a hipótese de ligar a Armanskij, mas desistiu. Já tinha mais do que o suficiente com que se entreter.
Entrou na redacção da Millennium e foi direito ao gabinete de Erika.
- O nome dele é Zalachenko - disse, sem qualquer espécie de preâmbulo. - É um ex-assassino de um dos serviços de espionagem soviéticos. Desertou em 1976, obteve asilo na Suécia e passou a receber um salário da Sapo. Depois do fim da União Soviética tornou-se, como tantos outros, gangster a tempo inteiro. Agora, está envolvido em tráfico de mulheres e contrabando de armas e de droga.
Erika pousou a caneta.
- Porque é que não me espanta que o KGB esteja metido na história?
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- Não é o KGB. É o GRU. Os militares.
- Então é sério. Mikael assentiu.
- Estás a dizer que foi ele que matou o Dag e a Mia?
- Não, não foi ele. Foi outra pessoa. Ronald Niedermann, o monstro que a Malin tem andado a investigar.
- Podes provar tudo isso?
- Mais ou menos. Uma parte ainda é dedução. Mas o Bjurman foi assassinado por ter pedido ao Zalachenko que tratasse da Lisbeth.
Explicou o que tinha visto no DVD que Lisbeth deixara na gaveta da sua secretária.
- O Zalachenko é o pai dela...
- Santo Deus!
- O Bjurman trabalhou formalmente para a Sapo em meados dos anos setenta e foi um dos encarregados de facilitar a vida ao Zalachenko, quando ele desertou. Mais tarde, tornou-se advogado com o seu próprio escritório e um patife de pleno direito, que trabalhava para uma elite dentro da Polícia de Segurança Nacional. Arriscaria dizer que existe um círculo íntimo que reúne de vez em quando na sauna dos homens para controlar o mundo e manter secreta a história do Zalachenko. Aposto que o resto da Sapo nunca ouviu sequer falar do filho da mãe. A Lisbeth ameaçava fazer estourar o segredo. De modo que eles a fecharam numa clínica psiquiátrica para crianças.
- Isso não pode ser verdade.
- Oh, mas é. Aconteceram várias coisas, e a Lisbeth, já naquela altura, era tão incontrolável como hoje... Desde os doze anos que constitui uma ameaça para a segurança nacional.
Fez um rápido resumo da história.
- Isto é muita coisa para digerir - disse Erika, no fim. - E o Dag e a Mia...
- Foram assassinados porque o Dag descobriu a ligação entre o Bjurman e o Zalachenko.
- E agora? Temos de contar à polícia, não temos?
- Uma parte, sim. Mas não tudo. Copiei a informação mais importante neste disco, como medida de segurança, pelo sim, pelo não.
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A Lisbeth anda à procura do Zalachenko. Eu vou tentar encontrá-la a ela. Nada disto deve ser partilhado seja com quem for.
- Mikael... não gosto disto. Não posso reter informação num caso de assassínio.
- Nem vais fazê-lo. Vou telefonar ao Bublanski. Mas a minha aposta é que a Lisbeth vai a caminho de Gosseberga. Continua a ser procurada por três assassínios, e se chamamos a polícia, eles largam-lhe aos calcanhares a unidade de operações especiais, equipada com munições de caça, e há o risco muito real de ela resistir à captura. E nessa altura tudo pode acontecer. - Interrompeu-se e sorriu sombriamente. - Quanto mais não seja, temos de manter a polícia fora disto para que a unidade de operações especiais não sofra algum dissabor. É imperioso que seja eu a encontrá-la.
Erika olhava para ele, com uma expressão de dúvida.
- Não tenciono revelar os segredos da Lisbeth. O Bublanski vai ter de descobri-los sem a minha ajuda. Quero que me faças um favor. Esta pasta contém o relatório do Bjõrck, de 1991, e alguma correspondência entre ele e o Teleborian. Quero que faças uma cópia e a ofereças ao Bublanski e à Modig. Parto para Gotemburgo dentro de vinte minutos.
- Mikael...
- Eu sei. Mas estou com a Lisbeth até ao fim.
Erika apertou os lábios com força e ficou calada. Então assentiu.
- Tem cuidado - disse, mas Mikael já tinha saído.
Devia ir com ele, pensou Erika. Era a única coisa decente que podia fazer. Mas ainda não lhe dissera que ia deixar a Millennium e que estava tudo acabado, acontecesse o que acontecesse. Pegou na pasta e dirigiu-se à fotocopiadora.
A caixa postal ficava na estação de correios de um centro comercial. Lisbeth não conhecia Gotemburgo, nem sabia em que parte da cidade se encontrava, mas descobrira a estação de correios e fora instalar-se num café de onde podia manter o local sob vigilância, através de um estreito espaço vazio na montra quase completamente tapada por posters de publicidade aos Svensk Kassatjánst, o novo sistema postal sueco.
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Irene Nesser maquilhava-se mais discretamente do que Lisbetr Salander. Usava um colar ridículo e estava a ler Crime e Castigo, que encontrara na livraria do centro. Lia devagar, virando regularmente as páginas. Iniciara a vigilância à hora do almoço e não fazia a mínima ideia de se ia alguém buscar o correio todos os dias, uma vez por semana ou de duas em duas semanas, se já tinham ido buscá-lo naquele dia ou até se nunca havia correio. Mas aquela era a sua única pista, de modo que bebia caffè latte enquanto esperava.
Estava quase a dormitar quando, de repente, viu a porta da caixa postal ser aberta. Olhou para o relógio. Um quarto para as duas. Era do caraças.
Levantou-se rapidamente e aproximou-se da montra, de onde viu um homem de blusão de couro preto sair da área das caixas postais. Alcançou-o na rua. Era um jovem magro, de vinte e poucos anos. Viu-o contornar a esquina, dirigir-se a um Renault e abrir a porta. Decorou o número da matrícula e correu para o Toyota, estacionado a menos de cem metros de distância, na mesma rua. Voltou a avistar o Renault quando metia pela Linnégatan. Seguiu-o, descendo a Avenyn em direcção a Nordstan.
Mikael Blomkvist chegou à Estação Central mesmo a tempo de apanhar o X2000 das 17h10. Comprou o bilhete a bordo, com o cartão de crédito, instalou-se no vagão-restaurante e encomendou um almoço tardio.Sentia uma estranha sensação de mal-estar na boca do estômago,] e receou que fosse já demasiado tarde. Pedia aos deuses que Lisbeth lhe telefonasse, mas sabia, lá no fundo, que não o faria.
Em 1991, Lisbeth tentara matar Zalachenko. Agora, passados todos aqueles anos, ele ripostara.
Holger Palmgren, que a conhecia tão bem, tinha razão. Lisbeth Salander aprendera à própria custa que não valia a pena falar com as autoridades.
Olhou para o estojo do iBook. Tinha levado consigo o Colt que encontrara na secretária de Lisbeth. Não sabia muito bem
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por que razão levara a arma, mas sentira instintivamente que não devia deixá-la ficar no apartamento. Sabia que não era um argumento muito lógico.
Quando o comboio atravessava a Árstabron, pegou no telemóvel e ligou para Bublanski.
- O que é que quer? - perguntou o inspector, claramente irritado.
- Atar as pontas soltas - respondeu Mikael.
- As pontas soltas de quê?
- De toda esta embrulhada. Quer saber quem assassinou o Bjur-man, o Dag Svensson e a Mia Johansson?
- Se tem alguma informação, gostaria de ouvi-la.
- O assassino chama-se Ronald Niedermann. É o gigante que lutou com o Paolo Roberto. É um cidadão alemão, tem trinta e cinco anos e trabalha para um monte de merda que dá pelo nome de Alexander Zalachenko, também conhecido como Zala. - Bublanski não disse nada durante algum tempo, e então Mikael ouviu-o suspirar, virar uma folha de papel e clicar a esferográfica.
- E isto são factos, não é especulação jornalística?
- São factos.
- Muito bem. Onde estão o Niedermann e esse tal Zalachenko?
- Isso ainda não sei. Mas mal o descubra, informo-o. Daqui a pouco, a Erika Berger vai entregar-lhe um relatório policial de 1991-Logo que acabe de copiá-lo, para ser mais exacto. Encontrará nele todo o género de informações a respeito do Zalachenko e da Lisbeth Salander.
- Que espécie de informações?
- Que o Zalachenko é o pai da Lisbeth, por exemplo. Que é um operacional dos serviços secretos soviéticos que desertou durante a guerra fria.
- Um operacional soviético? - repetiu Bublanski.
- Uma facção dentro da Sapo tem estado a apoiá-lo e a encobrir toda uma série de actividades criminosas.
Mikael ouviu Bublanski puxar uma cadeira e instalar-se.
- Julgo que o melhor é vir até aqui e fazer um depoimento formal.
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- Lamento, mas não tenho tempo para isso.
- Como?
- Não estou em Estocolmo, de momento. Mas aviso-o logo que encontre o Zalachenko.
- Blomkvist... não precisa de provar coisa nenhuma. Também eu tenho dúvidas sobre a culpabilidade da Salander.
- Mas eu sou apenas um simples investigador particular que não sabe nada de nada sobre o trabalho da polícia.
Foi infantil, tinha consciência disso, mas desligou sem esperar pela resposta de Bublanski. Ligou para Annika Giannini.
- Olá, mana.
- Viva. Alguma novidade?
- É muito possível que amanhã precise de um bom advogado.
- O que foi que fizeste?
- Nada de grave, por enquanto, mas é possível que venha a ser detido por obstrução a uma investigação policial. Mas não foi por isso que telefonei. Não poderias representar-me, de todos os modos.
- Porque não?
- Porque quero que te encarregues da defesa da Lisbeth Salander, e não podes ocupar-te de ambos.
Resumiu rapidamente a história. Annika ficou ominosamente silenciosa. Por fim, perguntou:
- E tu tens a documentação que comprova tudo isso...
- Tenho.
- Tenho de pensar. Do que a Lisbeth realmente precisa é de um bom advogado criminal.
- Tu serias perfeita.
- Micke...
- Escuta, mana, lembras-te de teres ficado furiosa comigo por não te ter pedido ajuda quando precisei?
Depois de terem terminado a conversa, Mikael ficou sentado, a pensar. Então, voltou a pegar no telefone e ligou para Holger Palm-gren. Não tinha qualquer razão especial para o fazer, mas achava que o velho tinha o direito de saber que ele estava a seguir uma ou duas
pistas, e que esperava que tudo aquilo ficasse resolvido nas próximas horas.
O problema era que também Lisbeth seguia as suas próprias pistas.
Lisbeth Salander tirou uma maçã da mochila sem desviar os olhos da casa. Estava na orla do bosque, deitada de bruços em cima de um dos tapetes do Corolla. Tirara a peruca e vestira umas calças de sarja verdes com bolsos, um grosso camisolão de lã e um corta-vento de meio corpo com forro térmico.
A quinta de Gosseberga ficava a cerca de 400 metros da estrada e consistia em dois grupos de edifícios. O principal, uma vulgar casa de dois pisos, pintada de branco, erguia-se a 120 metros do lugar onde ela se encontrava. Setenta metros mais atrás havia uma arrecadação e um celeiro. Viu, pela porta aberta do celeiro, o capot de um carro branco. Pareceu-lhe um Volvo, mas estava demasiado longe para ter a certeza.
Entre ela e a casa havia um campo enlameado que se estendia cerca de 200 metros para a direita, até a um charco. O caminho de acesso atravessava-o e desaparecia por entre um pequeno grupo de árvores, para o lado da estrada, à beira da qual havia um casinhoto que parecia abandonado; as janelas estavam tapadas com folhas de plástico. A norte do casinhoto, um pequeno bosque tapava a vista à vizinhança mais próxima, um grupo de construções a mais de 600 metros de distância. O que garantia um relativo isolamento à quinta que tinha à sua frente.
Estava perto do lago Anten, uma região de arredondados vales glaciares onde os campos alternavam com pequenas comunidades e zonas densamente arborizadas. O mapa da área não dava pormenores, mas ela tinha seguido o Renault preto pela E20, a partir de Gotemburgo, e virado para oeste na direcção de Sollebrunn, no distrito de Alingsâs. Cerca de 40 minutos mais tarde, o Renault metera repentinamente por uma estrada florestal assinalada por uma placa que dizia Gosseberga. Lisbeth seguira em frente e estacionara o Corolla atrás de um celeiro no meio de um arvoredo, cem metros mais à frente.
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Nunca ouvira falar de Gosseberga, mas, tanto quanto conseguia perceber, o nome referia-se à casa e ao celeiro que estava a ver. Na estrada, passara por uma caixa de correio que tinha pintada a indicação "CP 612 - K. A. Bodin". O nome não lhe dizia nada.
Depois de descrever um largo semicírculo à volta dos edifícios, acabara por escolher o seu posto de vigia. Tinha o sol da tarde pelas costas. Desde que ocupara aquela posição, por volta das três e meia, só acontecera uma coisa: às quatro, o condutor do Renault saíra da casa, trocara algumas palavras com alguém que estava no interior, metera-se no carro e partira. Tirando isso, não houvera qualquer outro movimento. Lisbeth esperou pacientemente, vigiando o objectivo por uns binóculos Minolta 8x.
Mikael Blomkvist tamborilava irritadamente com os dedos no tampo da mesa do vagão-restaurante. O X2000 tinha parado em Katrineholm e já ali estava havia quase uma hora. Uma avaria qualquer, numa das carruagens, que tinha de ser reparada. Um comunicado feito através dos altifalantes pedira desculpa pelo atraso.
Suspirou, frustrado, e pediu mais um café. Por fim, passados outros 15 minutos, o comboio arrancou com uma sacudidela. Mikael olhou para o relógio. Oito horas.
Devia ter apanhado o avião, ou alugado um carro.
O pressentimento de que ia chegar demasiado tarde era cada vez mais forte.
Por volta das seis horas, alguém acendera um candeeiro numa das divisões do piso térreo, e logo a seguir acendera-se a luz exterior, por cima da porta.
Pouco depois, o gigante chamado Ronald Niedermann aparecera. Vestia calças escuras e uma cingida camisola de gola alta que lhe realçava a poderosa musculatura. Lisbeth assentiu para si mesma que, finalmente, tinha a confirmação de que estava no sítio certo. Confirmou, mais uma vez, que Niedermann era verdadeiramente maciço. Mas era feito de carne e osso, como qualquer outra pessoa, por muito que tivesse magoado Paolo Roberto e Miriam Wu. Niedermann
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contornou a casa e dirigiu-se ao celeiro onde o carro estava guardado. Voltou a sair pouco depois, transportando um pequeno saco, e regressou à casa.
Passados alguns minutos tornou a aparecer, desta vez acompanhado por um homem mais velho, de pequena estatura, que usava uma muleta. Estava demasiado escuro para distinguir as feições, mas Lisbeth sentiu um arrepio gelado a descer-lhe pela nuca
Daaaaddyyy, I'm heeere...
Viu Zalachenko e Niedermann atravessarem o caminho de acesso e dirigirem-se à arrecadação, de onde Niedermann tirou um braçado de lenha. Voltaram a casa e fecharam a porta.
Permaneceu imóvel durante vários minutos. Então, baixou os binóculos e recuou até ficar completamente escondida entre as árvores. Abriu a mochila, tirou de lá uma garrafa-termo e bebeu um golo de café. Pôs um torrão de açúcar na boca e começou a chupá-lo. Comeu a sanduíche de queijo que comprara horas antes, a caminho de Gotemburgo. Enquanto comia, avaliou a situação.
Quando acabou, tirou da mochila a P-83 Wanad. Ejectou o carregador e verificou que nada obstruía a culatra nem o cano. Fez um disparo em seco. Tinha seis cartuchos Makarov de 9 mm. Devia ser o suficiente. Encaixou o carregador no respectivo lugar e introduziu uma bala na câmara. Pôs a patilha em posição de segurança e enfiou a arma no bolso direito do casaco.
Começou a avançar para a casa, descrevendo um círculo por entre as árvores. Tinha percorrido cerca de 150 metros quando, de repente, se deteve.
Encontrei uma demonstração desta proposição, realmente maravilhosa, mas a margem do livro é demasiado estreita para a conter, rabiscara Pierre de Fermat na margem do seu exemplar de Aritmética.
O quadrado fora convertido em cubo, x3 + y3 = z3, e os matemáticos tinham passado séculos à procura da resposta para este enigma. Quando encontrara a solução, nos anos de 1990, Andrew Wiles tinha-lhe dedicado mais de dez anos de trabalho, com a ajuda dos programas informáticos mais avançados da época.
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E, de repente, compreendeu. A resposta era tão desconcertantemente simples. Um jogo de números que se alinhavam e que depois se encaixavam nos respectivos lugares numa simples fórmula muito semelhante a um logogrifo.
Fermat não dispunha de computadores, claro, e a solução de Wiles baseara-se numa matemática que ainda não fora inventada quando o francês formulara o seu teorema. Fermat nunca teria podido produzir a prova que Wiles apresentara. A sua solução era muito diferente.
Ficou tão aturdida que teve de sentar-se num cepo. Ficou a olhar para o vazio, enquanto confirmava a equação.
Era então isso que ele queria dizer. Não admira que os matemáticos tenham arrancado os cabelos.
Riu-se.
Um filósofo teria tido mais facilidade em resolver este enigma.
Desejou ter conhecido Fermat.
Que sacaninha descarado.
Pôs-se de pé e continuou a aproximar-se por entre as árvores, mantendo o celeiro entre ela e a casa.
CAPÍTULO 31
QUINTA-FEIRA, 7 DE ABRIL
LISBETH Salander entrou no celeiro pela saída exterior de uma antiga calha de descarga de estrume. Não havia animais na quinta. Viu três carros: o Volvo branco da Auto-Expert, um velho Forde um Saab um pouco mais recente. Mais ao fundo, havia um ancinho enferrujado e outras ferramentas dos tempos em que a quinta funcionava.
Deixou-se ficar escondida na sombra, a observar a casa. O crepúsculo adensava-se e havia luzes acesas em todas as divisões do piso térreo. Não viu qualquer movimento, mas notou o brilho tremeluzente do ecrã de um televisor. Olhou para o relógio. Sete e meia. Horas do Rapport.
Espantava-a que Zalachenko tivesse optado por viver num lugar tão remoto, numa casa tão isolada. Não condizia nada com o homem que conhecera há tantos anos. Nunca esperara encontrá-lo no campo, numa pequena casa de quinta. Numa pequena comunidade anónima, talvez, ou num gueto de férias, no estrangeiro. Ao longo da vida devia ter feito mais inimigos do que ela própria. Perturbava-a o facto de o sítio parecer tão acessível. Mas não duvidava de que ele tinha armas em casa.
Passado algum tempo saiu do celeiro para a quase escuridão do fim da tarde. Atravessou o pátio com passos rápidos e deteve-se, de costas para a parede. Então, ouviu, muito fraco, o som de música. Contornou silenciosamente a casa, mas não se atreveu a espreitar pelas janelas.
Sentia um mal-estar instintivo. Vivera toda a primeira metade da sua vida no pavor do homem que estava dentro daquela casa. Durante
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a segunda metade, desde que falhara a tentativa de o matar, esperara pelo momento em que ele reaparecesse. Desta vez, não vou cometer erros.
Zalachenko podia estar velho e aleijado, mas era um assassino treinado que sobrevivera a muitos campos de batalha. Além disso, havia que ter em conta Ronald Niedermann. Teria preferido surpreender Zalachenko no exterior, onde estaria desprotegido. Não tinha a menor vontade de falar com ele, e uma espingarda com mira telescópica seria, para ela, a solução ideal. Mas não tinha essa espingarda, e era pouco provável que ele fosse dado a passeios antes do jantar. Se quisesse esperar por uma melhor oportunidade, teria de retirar-se e passar a noite no bosque. Não tinha saco-cama e, apesar de a tarde ter estado amena, a noite iria ser fria. Agora que o tinha ao seu alcance, não ia correr o risco de o deixar fugir outra vez. Pensou em Miriam Wu, e na mãe.
Ia ter de entrar na casa, mas esse era o pior cenário possível. Claro que podia bater à porta e disparar logo que ela se abrisse, e depois entrar e ir à procura do outro filho da mãe. Mas ele estaria alerta, e quase de certeza armado. Era tempo de fazer a análise dos riscos. Quais são as opções?
Viu a silhueta de Niedermann passar por uma janela, a poucos metros dela. Falava, por cima do ombro, com alguém que se encontrava atrás dele.
Estavam os dois na divisão à esquerda da entrada.
Tomou uma decisão. Tirou a pistola do bolso do casaco, pôs a patilha na posição de fogo e subiu silenciosamente para o alpendre. Empunhava a arma com a mão esquerda enquanto, muito devagar, fazia pressão na maçaneta da porta e a empurrava. Não estava fechada à chave. Franziu o sobrolho e hesitou. A porta tinha duas fechaduras de segurança.
Zalachenko não deixaria a porta aberta. Aquilo estava a deixar-lhe os cabelos eriçados.
Não batia certo.
O vestíbulo estava escuro como breu. À direita, distinguiu as escadas que davam acesso ao primeiro piso. Havia duas portas em frente e uma à esquerda. Viu uma frincha de luz filtrar-se por uma fresta
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no topo dessa porta. E então ouviu, vindo do interior, uma voz e o arrastar de uma cadeira.
Avançou dois passos rápidos, abriu a porta de rompante e apontou a arma para... a sala estava vazia.
Ouviu um restolhar nas suas costas e voltou-se, rápida como um lagarto. Quando tentou erguer a arma e disparar, uma das mãos enormes de Niedermann fechou-se como um aro de ferro à volta do pescoço dela, enquanto a outra lhe apertava o pulso. O monstro agarrou-a pela cabeça e ergueu-a no ar, como se fosse um boneco.
Por instantes, Lisbeth ficou a espernear no vazio. Então, torceu o corpo e tentou dar-lhe um pontapé nos testículos. Acertou-lhe na anca, e foi como ter batido com o pé numa árvore. Começou a perder a visão quando ele apertou com mais força, e percebeu que tinha deixado cair a arma.
Filhos da mãe.
Niedermann atirou-a para o outro lado da sala. Caiu com estrépito em cima de um sofá, de onde escorregou para o chão. Sentiu o sangue afluir-lhe de novo à cabeça, enquanto se punha cambaleantemente de pé. Viu um pesado cinzeiro de vidro em cima de uma mesa, pegou nele e tentou atirá-lo. Niedermann agarrou-lhe o braço a meio do gesto. Lisbeth procurou no bolso das calças com a mão livre, tirou de lá o taser e contorceu-se para o espetar no baixo-ventre do gigante. Sentiu a sacudidela do choque eléctrico percorrer o braço com que ele a segurava. Estava à espera de o ver cair, a torcer-se de dores. Em vez disso, Niedermann olhou para ela com uma expressão surpreendida. Lisbeth abriu muito os olhos, assustada. Niedermann parecia experimentar uma sensação desagradável, mas se sentia alguma dor, conseguia ignorá-la. Este tipo não é normal.
Niedermann inclinou-se, tirou-lhe o taser da mão e examinou-o com um ar intrigado. Então, voltou a olhar para ela e bateu-lhe na cabeça com a mão aberta. Foi como ter sido atingida por uma marreta. Caiu no chão, ao lado do sofá. Ergueu os olhos e viu que Niedermann estava a observá-la com curiosidade, como que a perguntar-se o que iria ela fazer a seguir. Como um gato a preparar-se para brincar com a sua presa.
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Nesse instante, Lisbeth apercebeu-se de um movimento junto à porta. Voltou a cabeça.
O homem surgiu lentamente à luz.
Apoiava-se a uma muleta, e tinha uma prótese na perna direita. A mão esquerda era uma bola atrofiada a que faltavam dois dedos.
Lisbeth ergueu os olhos para o rosto dele. Metade do lado esquerdo era um emaranhado de cicatrizes. A orelha era um pequeno coto e as sobrancelhas tinham desaparecido. Lisbeth recordava-o como um homem viril e atlético, de cabelos negros ondulados. Tinha cerca de um metro e sessenta e cinco de altura e estava descarnado como um cadáver.
- Olá, papá - disse ela, numa voz átona.
Alexander Zalachenko olhou para a filha com um rosto sem expressão.
Ronald Niedermann acendeu a luz do tecto. Verificou que ela não tinha mais armas passando-lhe as mãos pelas roupas, e em seguida pôs a patilha da P-83 Wanad na posição de segurança e extraiu o carregador. Zalachenko passou por eles a arrastar os pés, sentou-se num cadeirão de braços e pegou no controlo remoto.
Os olhos de Lisbeth pousaram no ecrã do televisor colocado atrás dele. Zalachenko premiu um botão e ela viu uma tremeluzente imagem verde da área por detrás do celeiro e de parte do caminho de acesso à casa. Câmaras de infravermelhos. Viram-me chegar.
-Já começava a pensar que não ias ousar aproximar-te - disse Zalachenko. - Temos estado a vigiar-te desde as quatro da tarde. Accionaste praticamente todos os alarmes da quinta.
- Sensores de movimento - disse Lisbeth.
- Dois junto à estrada e quatro na clareira, do outro lado do campo. Estabeleceste o teu posto de observação precisamente no sítio onde montámos os alarmes. É de onde se vê melhor a casa. Geralmente, são alces ou veados, e, de vez em quando, apanhadores de amoras que se aproximam demasiado. Mas é muito raro vermos alguém tentar chegar à porta da frente de arma na mão. - Fez uma pequena pausa.
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- Acreditaste verdadeiramente que Zalachenko estaria sentado na sua casinha de campo completamente desprotegido?
Lisbeth massajou a nuca e começou a pôr-se de pé.
- Fica onde estás - ordenou Zalachenko.
Niedermann parou de brincar com a pistola e olhou tranquilamente para ela. Arqueou uma sobrancelha e sorriu-lhe. Lisbeth lembrou-se da cara amassada de Paolo Roberto na televisão e decidiu que seria boa ideia continuar no chão. Suspirou e apoiou as costas no sofá.
Zalachenko estendeu a mão direita. Niedermann tirou uma pistola do cinto, introduziu uma bala na câmara e estendeu-lha. Lisbeth notou que era uma Sig Sauer, a arma regulamentar da polícia. Zalachenko fez um gesto com o queixo e Niedermann pôs-se de pé e pegou no casaco. Saiu da sala, e Lisbeth ouviu a porta da frente abrir-se e fechar-se.
- Para o caso de te pores com ideias estúpidas, se tentares sequer levantar-te, enfio-te uma bala na barriga.
Lisbeth relaxou. Zalachenko teria tempo para disparar duas, talvez três vezes antes que ela conseguisse alcançá-lo, e, muito provavelmente, estava a usar balas de ponta oca que a fariam sangrar até à morte numa questão de minutos.
- Estás com um aspecto de merda - disse ele. - Pareces uma puta. Mas tens os meus olhos.
- Dói-te? - perguntou ela, fazendo um gesto de cabeça na direcção da prótese.
Zalachenko ficou a olhar para ela durante muito tempo.
- Não. Agora já não. Lisbeth olhava-o fixamente.
- Querias mesmo matar-me, não querias? - perguntou ele. Ela não respondeu. Ele riu-se.
- Tenho pensado em ti durante todos estes anos. Na realidade, quase sempre que olho para o espelho.
- Devias ter deixado a minha mãe em paz.
- A tua mãe era uma puta.
Os olhos de Lisbeth puseram-se negros como o carvão.
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- Não era nenhuma puta. Trabalhava como caixa num supermercado e tentava aguentar-nos com o pouco que ganhava.
Zalachenko voltou a rir.
- Podes ter as fantasias que quiseres a respeito dela. Mas eu sei que era uma puta. Tratou de engravidar logo ao princípio e depois quis obrigar-me a casar com ela. Como se alguma vez eu casasse com uma puta.
Lisbeth olhava para o cano da arma, na esperança de que ele se desconcentrasse por um instante que fosse.
- Aquilo da bomba incendiária foi bem pensado. Na altura, odiei-te pelo que me fizeste. Mas, com o tempo, deixei de me importar. Tu não valias o esforço. Devias ter deixado as coisas como estavam.
- Tretas. O Bjurman pediu-te para me liquidares.
- Isso foi um caso completamente diferente. Ele precisava de um filme que tu tinhas, de modo que fizemos um negociozito.
- E pensaste que eu te daria o filme a ti.
- Sim, minha querida filha. Estou convencido de que mo darias. Não imaginas como as pessoas ficam cheias de vontade de cooperar quando o Ronald lhes pede qualquer coisa. Especialmente quando ele põe a motosserra a trabalhar e lhes corta um pé. No teu caso, teria sido uma compensação adequada: um pé por um pé.
Lisbeth pensou em Miriam à mercê de Niedermann, naquele armazém. Zalachenko interpretou mal a expressão dela.
- Não precisas de te preocupar. Não tencionamos cortar-te aos pedaços. Mas diz-me: o Bjurman violou-te? - Ela ficou calada. -Raios, que merda de gosto o tipo devia ter. Li nos jornais que és fufa. Não me espanta. Não pode haver um homem que te queira. - Lisbeth continuou calada. - Talvez deva dizer ao Ronald que te coma. Tens ar de quem está a precisar. - Pensou um momento naquilo. - Apesar de o Ronald não fazer sexo com mulheres. Não, não é maricas. Só não faz sexo.
- Nesse caso, talvez devas comer-me tu - disse ela, para o provocar.
Aproxima-te. Comete um erro.
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- Não. Mas obrigado, de todos os modos. Seria demasiado perverso, até para mim.
Ficaram em silêncio por instantes.
- Do que é que estamos à espera? - perguntou Lisbeth.
- O meu companheiro já volta. Só teve de ir tirar o teu carro de onde o deixaste e fazer uma coisita. Que é feito da tua irmã? - Lisbeth encolheu os ombros. - Responde.
- Não sei, e, para ser franca, não quero saber. Ele riu-se novamente.
- Amor fraternal, eh? A Camilla sempre foi a esperta... tu não passas de uma trampa inútil. Mas tenho de admitir que é muito bom voltar a ver-te.
- Zalachenko - disse ela -, és um filho da puta chato. Foi o Niedermann que matou o Bjurman?
- Claro. O Ronald é o soldado perfeito. Não só obedece às ordens, como toma a iniciativa quando é necessário.
- Onde é que foste desenterrá-lo?
Zalachenko lançou-lhe um olhar estranho. Abriu a boca, como se fosse dizer qualquer coisa, mas decidiu que não. Olhou para a porta da frente e sorriu a Lisbeth.
- Quer dizer que ainda não percebeste? - disse ele. - Segundo o Bjurman, és uma boa investigadora. - Lançou uma sonora gargalhada. - Costumávamos andar juntos, em Espanha, no início dos anos noventa, quando eu estava a convalescer da tua bombinha incendiária. Ele tinha vinte e dois anos e tornou-se os meus braços e pernas. Não é um empregado... é um sócio. Temos um negócio florescente.
- Eu sei. Tráfico de mulheres.
- Pode-se dizer que diversificámos bastante, com uma grande variedade de produtos e serviços. A filosofia do negócio é permanecer nos bastidores e nunca sermos vistos. Mas já deves ter percebido quem é o Ronald. - Lisbeth não fazia a mínima ideia de aonde queria ele chegar. - É teu irmão.
- Não - exclamou ela, estupefacta.
Zalachenko riu novamente. Mas o cano da pistola continuava firmemente apontado para ela.
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- Bom, devo dizer que é teu meio-irmão - continuou ele. - O resultado de um breve divertimento durante uma missão na Alemanha, em 1970.
- Transformaste o teu filho num assassino.
- Oh, não, limitei-me a ajudá-lo a reconhecer o seu potencial. Ele já tinha a capacidade de matar muito antes de eu começar a treiná-lo. E vai ficar a dirigir o negócio da família quando eu morrer.
- Ele sabe que somos meios-irmãos?
- Claro. Mas se estás a pensar em fazer apelo ao amor fraternal, esquece. Eu sou a única família que ele tem. Tu não passas de um zumbido no horizonte. Além disso, não é o teu único irmão. Tens pelo menos mais quatro, e três irmãs, em vários países. Um deles é um idiota chapado, mas o outro tem potencial. Dirige o ramo do negócio em Tallinn. Mas o Ronald é o único que faz verdadeiramente jus aos genes de Zalachenko.
- Julgo que as minhas irmãs não desempenham qualquer papel no negócio da família? - Ele pareceu sobressaltado pela ideia. - Zalachenko, não passas de um vulgaríssimo filho da puta que odeia as mulheres. Porque mataste o Bjurman?
- O Bjurman era um cretino. Ficou de boca aberta quando eu lhe disse que eras minha filha. Ele era uma das poucas pessoas neste país que conhecia o meu passado. Tenho de admitir que fiquei nervoso quando me contactou assim de repente, mas tudo acabou por se resolver da melhor maneira. Ele morreu e tu ficaste com as culpas.
- Mas porquê matá-lo?
- Bem, não foi exactamente uma coisa planeada. Dava sempre jeito ter uma porta das traseiras para a Sapo. Apesar de não me ter feito falta durante anos. E apesar de ele ser um cretino. Mas aquele jornalista de Enskede tinha, não sei como, descoberto a ligação entre nós os dois e telefonou-lhe quando o Ronald estava com ele. O Bjurman entrou em pânico e perdeu a cabeça. O Ronald teve de tomar uma decisão ali mesmo. Agiu correctamente.
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Lisbeth sentiu que o coração se lhe afundava como uma pedra ao ouvir o pai confirmar o que já suspeitava. Svensson tinha encontrado uma ligação. Tinha conversado com ele e com a companheira durante mais de uma hora. Gostara imediatamente da mulher, mas fora um pouco mais fria com o jornalista. Lembrava-lhe demasiado Mikael Blomkvist: um desses insuportáveis salvadores do mundo convencidos de que podem mudar tudo com um livro. Mas reconhecera-lhe as boas intenções.
No fim, a visita fora uma perda de tempo. Nenhum dos dois sabia dizer-lhe como chegar até Zalachenko. Dag Svensson tropeçara no nome dele e começara a escavar, mas não conseguira identificá-lo.
Em contrapartida, ela cometera um erro terrível. Sabia que tinha de haver uma ligação entre Bjurman e Zalachenko, e fizera perguntas sobre o advogado na tentativa de descobrir se Svensson já tinha encontrado o nome. Não tinha, mas ficara imediatamente alerta. Apontara baterias a Bjurman e apertara-o com perguntas.
Tinha revelado muito pouco, mas mesmo assim Svensson percebera que também ela desempenhava um papel no drama. E percebera que tinha informação que ela queria. Tinham combinado um novo encontro depois da Páscoa, para discutirem o assunto. Depois disso, fora para casa dormir. Acordara na manhã seguinte com a notícia de que duas pessoas tinham sido assassinadas num apartamento em Enskede.
Só tinha dado a Svensson uma peça de informação utilizável: o nome de Nils Bjurman. E ele devia ter ligado para o advogado mal ela saíra do apartamento.
E ela era a ligação. Se não os tivesse visitado, ele e a companheira ainda estariam vivos.
- Não imaginas como ficámos espantados quando a polícia começou a associar-te àquelas mortes - disse Zalachenko.
Lisbeth mordeu o lábio. Zalachenko observava-a atentamente.
- Como é que me encontraste?
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Ela encolheu os ombros.
- Lisbeth... o Ronald está de volta não tarda. Posso pedir-lhe que te parta os ossos um a um até responderes. Poupa-nos o trabalho.
- A caixa postal. Descobri o rasto do carro do Niedermann através da agência de aluguer e esperei até que aquele merdas borbulhento fosse levantar o correio.
- Ah. Tão simples. Obrigado. Hei-de lembrar-me disso. O cano da pistola continuava apontado para o peito dela.
- Estás mesmo convencido de que isto vai ficar assim? - perguntou Lisbeth. - Cometeste demasiados erros, a polícia vai apanhar-te.
- Eu sei. O Bjõrck telefonou ontem a dizer que um jornalista da Millennium anda por aí a meter o nariz e que é apenas uma questão de tempo. É possível que tenhamos de fazer qualquer coisa em relação a esse tipo.
- Vai ser uma lista comprida. O Mikael Blomkvist e a Erika Berger, que é a directora editorial, uma assistente editorial e mais meia dúzia de outros, só na Millennium. E depois tens o Dragan Armanskij e alguns dos membros do pessoal da Milton Security. E o inspector Bublanski e todos os que estão envolvidos na investigação. Quantas pessoas terias de matar para encobrir isto? Não! Vão apanhar-te.
Zalachenko sorriu-lhe, um horrível sorriso irónico.
- E depois? Não matei ninguém, e não há a mais pequena prova contra mim. Podem identificar quem quiserem. Acredita... podem revistar esta casa de alto a baixo e não encontram um grão de pó que me ligue a qualquer actividade criminosa. Foi a Sapo que te fechou num asilo, não fui eu, e podes apostar que não vão estar interessados em pôr as cartas em cima da mesa.
- O Niedermann - recordou-lhe Lisbeth.
- Amanhã de manhã, o Ronald parte para umas férias no estrangeiro, onde esperará para ver o que acontece. - Zalachenko dirigiu-lhe um sorriso de triunfo. - Tu continuas a ser a principal suspeita. O melhor para todos é desapareceres pura e simplesmente, sem alarido.
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Passou quase uma hora até que Niedermann voltasse. Tinha calçado botas.
Lisbeth olhou para o homem que, segundo o pai, era seu meio-irmão. Não notou a mais pequena semelhança. Na realidade, eram diametralmente opostos. Mas sentia com muita intensidade que havia nele qualquer coisa de errado. A constituição física, o rosto fraco e a voz ridiculamente aguda, tudo apontava para deficiências genéticas graves. Não reagira ao taser, e as mãos dele eram enormes. Nada em Ronald Niedermann parecia normal.
Há todo o género de deficiências genéticas na família do Zalachenko, pensou amargamente.
- Pronto?
Niedermann assentiu. Estendeu a mão para a Sig Sauer.
- Eu também vou - disse Zalachenko. Niedermann hesitou.
- Ainda é uma boa caminhada.
- Não importa, também vou. Traz-me o casaco. Niedermann encolheu os ombros e obedeceu. Começou a fazer
qualquer coisa com a arma enquanto Zalachenko vestia o casaco e desaparecia por uns instantes na sala contígua. Lisbeth viu-o atarraxar um adaptador com o que parecia ser um silenciador improvisado.
- Muito bem, vamos - disse Zalachenko, da porta. Niedermann inclinou-se e obrigou Lisbeth a pôr-se de pé. Ela
olhou-o nos olhos.
- Vou-te matar a ti também - disse ela.
- És muito segura de ti, tenho de admitir - comentou Zalachenko.
Niedermann devolveu-lhe o olhar, sorriu quase docemente e empurrou-a na direcção da porta e do pátio. Mantinha-a firmemente agarrada pela nuca. Os dedos dele quase lhe rodeavam o pescoço. Encaminhou-a para o bosque, nas traseiras do celeiro.
Avançavam devagar, e Niedermann parava de vez em quando para que Zalachenko os alcançasse. Ambos levavam potentes lanternas
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eléctricas. Quando chegaram à orla do bosque, Niedermann largou o pescoço de Lisbeth. Manteve a pistola apontada às costas dela.
Seguiram por um trilho difícil com cerca de 400 metros. Lisbeth tropeçou duas vezes, e de ambas Niedermann pô-la de pé.
- Vira aqui à direita - ordenou ele.
Quinze metros mais à frente chegaram a uma clareira. Lisbeth viu um buraco no chão. À luz da lanterna de Niedermann, viu uma pá espetada num monte de terra. Compreendeu então o que o monstro loiro estivera a fazer. Niedermann empurrou-a para o buraco, mas ela tropeçou e caiu de gatas, com as mãos enterradas na terra arenosa. Pôs-se de pé e olhou inexpressivamente para ele. Zalachenko tardava em chegar, mas Niedermann esperava, paciente. O cano da pistola não se desviava um milímetro do peito dela.
Zalachenko estava ofegante. Teve de esperar mais de um minuto até conseguir falar.
- Devia dizer-te qualquer coisa, mas acho que não tenho mais nada a acrescentar - declarou.
- Por mim, tudo bem - respondeu Lisbeth. - Também não tenho mais nada para te dizer. - E dirigiu-lhe um sorriso de esguelha.
- Acabemos com isto - disse Zalachenko.
- Mas estou contente por o meu último acto ter sido mandar-te para sempre para a prisão - continuou ela. - A polícia vai chegar aqui esta noite.
- Isso é tanga. Já esperava que tentasses uma dessas. Vieste até aqui para me matar, e nada mais. Não disseste nada a ninguém.
O sorriso de Lisbeth rasgou-se. E então, de repente, tornou-se malévolo.
- Posso mostrar-te uma coisa, papá?
Lentamente, levou a mão ao bolso traseiro esquerdo das calças e tirou de lá um objecto rectangular. Niedermann vigiava-lhe todos os movimentos.
- Todas as palavras que disseste nas últimas horas foram difundidas na rádio da Net.
Mostrou-lhe o Palm Tungsten T3.
A testa de Zalachenko cavou-se numa funda ruga.
- Mostra cá isso - disse, estendendo a mão direita. Lisbeth atirou-lhe o PDA. Ele apanhou-o no ar.
- Conversa. Isto é um vulgar Palm.
Quando Niedermann se inclinou para olhar para o computador, Lisbeth atirou-lhe um punhado de areia para os olhos. A areia cegou-o mas, instintivamente, Niedermann disparou um tiro. Mas ela já se tinha desviado dois passos para o lado e a bala passou, inofensiva, pelo sítio onde estivera. Então, pegou na pá e desferiu um golpe na mão que empunhava a arma. Acertou-lhe com toda a força nos dedos, com o bordo afiado, e viu a Sig Sauer voar pelos ares e ir cair no meio de uns arbustos. Esguichou sangue de um golpe fundo por cima do indicador direito dele.
Devia estar a gritar de dor.
Niedermann procurava-a às apalpadelas com a mão ferida, enquanto tentava desesperadamente esfregar os olhos com a outra. Lisbeth pensou que a sua única hipótese era causar o maior estrago possível no mais curto espaço de tempo. Se chegassem a uma luta física, estaria irremediavelmente perdida. Precisava de cinco segundos para chegar até às árvores. Ergueu a pá acima do ombro esquerdo. Tentou torcer o cabo de modo a bater com o gume, mas estava na posição errada. Foi a face achatada da pá que embateu na cara de Niedermann.
Niedermann rosnou quando a pancada lhe partiu a cana do nariz pela segunda vez no espaço de dias. Continuava cego pela areia, mas agitou o braço direito e conseguiu afastar Lisbeth com um empurrão. Lisbeth foi atirada para trás e tropeçou numa raiz. Por um segundo, ficou estendida no chão, mas levantou-se no mesmo instante. Niedermann estava momentaneamente fora de acção. Vou conseguir.
Tinha dado dois passos na direcção do matagal quando, pelo canto do olho - clic -, viu Zalachenko erguer o braço direito. O velho sacana também está armado. A descoberta foi como uma chicotada a rasgar-lhe o cérebro.
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Mudou de direcção no instante em que o tiro partiu. A bala atingiu-a na parte exterior da anca e desequilibrou-a.
Não sentiu dor.
A segunda bala atingiu-a nas costas e foi detida pela omoplata esquerda. Uma guinada de dor paralisante trespassou-lhe o corpo.
Caiu de joelhos. Durante uns segundos não conseguiu mover-se. Tinha consciência de que Zalachenko estava atrás dela, a seis, talvez sete metros de distância. Com uma derradeira explosão de energia levantou-se e avançou teimosamente alguns passos, cambaleando na direcção das árvores.
Zalachenko teve tempo para apontar.
A terceira bala apanhou-a a cerca de dois centímetros acima da orelha esquerda. Penetrou na cabeça, atingindo a cavidade craniana. O chumbo ficou cravado a cinco centímetros do córtice cerebral, junto ao cerebelo.
Para Lisbeth Salander, os pormenores médicos eram académicos. O projéctil provocou um traumatismo imediato e maciço. A última sensação que teve foi de um ofuscante choque vermelho que se transformou numa luz branca.
Depois, foi a escuridão.
Clique.
Zalachenko tentou disparar mais uma vez, mas as mãos tremiam-lhe tanto que não conseguia apontar. A cabra quase conseguiu fugir. E então compreendeu que ela estava morta e baixou a arma, a tremer devido à adrenalina que lhe corria nas veias. Olhou para a arma. Ainda tinha pensado deixá-la em casa, mas voltara atrás e enfiara-a no bolso do casaco, como se precisasse de uma mascote. Um monstro. Dois homens adultos, e um deles era Ronald Niedermann, armado com a sua Sig Sauer, e mesmo assim a cabra quase conseguira fugir.
Olhou para o corpo da filha. À luz da lanterna, parecia uma boneca de trapos coberta de sangue. Pôs a patilha na posição de segurança, guardou a arma no bolso do casaco e aproximou-se de Niedermann, que continuava impotente e indefeso, com as lágrimas a correrem-lhe dos olhos cheios de areia e o sangue a escorrer-lhe da mão e do nariz.
- Acho que voltei a partir o nariz - disse o gigante loiro.
- Idiota - rosnou Zalachenko. - Ela quase conseguiu escapar. Niedermann continuava a esfregar os olhos. Não sentia dor, mas
as lágrimas impediam-no de ver.
- Põe-te direito, raios! - Zalachenko abanou desdenhosamente a cabeça. - Não sei o que seria de ti sem a minha ajuda.
Niedermann continuava a piscar os olhos, desesperado. Zalachenko coxeou até ao lugar onde a filha estava caída e agarrou-a pela gola do casaco. Arrastou-a até à sepultura, que não passava de um buraco aberto no chão, demasiado pequeno até para Lisbeth ficar estendida. Levantou o corpo de modo a que os pés ficassem suspensos por cima do buraco e deixou-o cair. Ficou em posição fetal, voltado para baixo e com as pernas dobradas sob o ventre.
- Enche essa merda para podermos ir para casa - ordenou.
Niedermann, ainda meio cego, demorou algum tempo a encher o buraco. Em seguida, espalhou a terra pela clareira, com poderosas pazadas.
Zalachenko fumou um cigarro enquanto via Niedermann a trabalhar. Ainda tremia, mas o nível de adrenalina começara a baixar. Sentiu um súbito alívio por ela ter desaparecido. Ainda conseguia ver os olhos dela quando lhe atirara a bomba incendiária, tantos anos antes.
Eram nove e meia quando Zalachenko passou o feixe de luz da lanterna pela clareira e se declarou satisfeito. Não foi fácil encontrar a Sig Sauer no meio do matagal. Regressaram à casa. Zalachenko sentia-se maravilhosamente satisfeito. Tratou da mão de Niedermann. A pá deixara um golpe profundo e teve de procurar agulha e linha para coser a ferida - uma habilidade que aprendera no colégio militar em Novosibirsk, quando tinha 15 anos. Pelo menos, não havia necessidade de anestésicos. Mas era possível que o ferimento fosse suficientemente grave para que Niedermann precisasse de ir ao hospital. Pôs uma tala na mão e ligou-a. Decidiriam de manhã.
Quando acabou, abriu uma cerveja, enquanto Niedermann lavava repetidamente os olhos na casa de banho.
CAPÍTULO 32
QUINTA-FEIRA, 7 DE ABRIL
Mikael Blomkvist chegou à Estação Central de Gotemburgo um pouco depois das nove. O X2000 recuperara algum tempo, mas mesmo assim estava atrasado. Mikael passara a última hora de viagem a ligar para empresas de aluguer de automóveis. A sua primeira ideia fora alugar um carro em Alingsâs e começar a partir dali, mas já estava tudo fechado. Por fim, conseguiu reservar um Volkswagen através da recepção de um hotel. Podia ir buscar o carro a Járntorget. Decidiu não tentar o complicado serviço de transportes públicos de Gotemburgo, com um sistema de bilhetes tão confuso que era preciso ser, no mínimo, engenheiro espacial para perceber alguma coisa. Apanhou um táxi.
Quando entrou no carro, reparou que não havia nenhum mapa no porta-luvas. Comprou um numa estação de gasolina, e uma lanterna eléctrica, e uma garrafa de água mineral, e uma embalagem de café, cujo copo de papel enfiou na argola do painel de instrumentos. Eram dez e meia quando saiu da cidade a caminho de Alingsâs.
Uma raposa deteve-se e olhou em redor, inquieta. Sabia que estava ali qualquer coisa enterrada, mas ouviu, perto, o restolhar furtivo de um animal nocturno e ficou instantaneamente alerta. Avançou um cauteloso passo. Antes de continuar a sua caçada levantou a pata traseira e urinou no local, para marcar o território.
Não era habitual o inspector Bublanski telefonar aos colegas a partir de certa hora, mas daquela vez não conseguiu resistir. Pegou no telefone e marcou o número de Sonja Modig.
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- Desculpa telefonar tão tarde. Estás a pé?
- Não há problema.
- Acabo de ler o relatório do Bjõrck.
- Não duvido de que tiveste tanta dificuldade em digeri-lo como eu.
- Sonja, como é que vês isto, o que é que achas que está a acontecer?
- O que eu acho é que o Gunnar Bjõrck, um nome destacado da lista de clientes do Dag Svensson, se bem te recordas, mandou pôr a Lisbeth Salander num asilo depois de ela ter tentado proteger a mãe de um louco sádico que trabalhava para a Sapo. Foi ajudado nesta tarefa pelo doutor Teleborian, entre outros, sobre cujo testemunho se baseou em parte a nossa própria avaliação do estado mental dela.
- Isto muda completamente a imagem que tínhamos.
- E explica muita coisa.
- Sonja, podes passar a buscar-me amanhã às oito?
- Claro.
- Vamos até Smâdalarõ ter uma conversa com este Gunnar Bjõrck. Fiz umas perguntas. Está de baixa por doença.
- Mal posso esperar.
Greger Beckman olhou para a mulher, de pé junto à janela da sala, a olhar para a baía. Tinha o telefone na mão, e Greger soube que esperava uma chamada de Mikael. Tinha um ar tão triste que se aproximou e lhe passou um braço pelos ombros.
- O Mikael é um rapazinho crescido - disse. - Mas se estás assim tão preocupada, devias telefonar ao tal polícia.
Erika suspirou.
- Já o devia ter feito há horas, mas não é por isso que estou infeliz.
- Passa-se alguma coisa que eu deva saber?
- Tenho andado a esconder-te uma coisa. E do Mikael. E de toda a gente na revista.
- A esconder? A esconder o quê?
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Erika voltou-se para o marido e contou-lhe que lhe tinham oferecido o lugar de directora editorial do Svenska Morgon-Posten. Greger arqueou as sobrancelhas.
- Não compreendo porque não me disseste nada? Mas isso é óptimo. Parabéns.
- É porque me sinto uma traidora. Acho...
- O Mikael há-de compreender. Toda a gente tem de seguir em frente, quando chega a altura. E neste momento chegou a tua altura.
- Eu sei. -Já decidiste?
- Sim. Já decidi. Mas não tive coragem de dizer a ninguém. E dá a impressão de que estou a sair no meio de um enorme desastre.
Greger abraçou-a com força.
Dragan Armanskij esfregou os olhos e olhou para a escuridão.
- Devíamos telefonar ao Bublanski - disse ele.
- Não - respondeu Palmgren. - Nem o Bublanski nem qualquer outra figura da autoridade mexeu alguma vez um dedo para ajudá-la. Deixa-a tratar dos seus próprios problemas.
Armanskij olhou para o ex-tutor de Lisbeth Salander. Ainda estava espantado com a melhoria do estado do amigo desde a última vez que o vira, no Natal. Continuava a arrastar um pouco as palavras, mas havia nos olhos uma nova vitalidade. E também uma fúria que não se lembrava de alguma vez lhe ter visto. Palmgren contara-lhe toda a história que Mikael Blomkvist desvendara. Armanskij estava chocado.
- Ela vai tentar matar o pai.
- É possível - respondeu tranquilamente Palmgren.
- Ou o Zalachenko vai tentar matá-la.
- Também é possível.
- E nós? Ficamos de braços cruzados à espera?
- Dragan... tu és boa pessoa. Mas o que a Lisbeth Salander faz ou deixa de fazer, se sobrevive ou se morre, não é responsabilidade tua.
Palmgren ergueu os braços ao céu. Inesperadamente, reencontrara a coordenação motora que não tinha havia muito tempo.
Era como se o drama daquelas últimas semanas lhe tivesse reavivado os sentidos.
- Nunca simpatizei com as pessoas que fazem justiça por suas próprias mãos. Mas também nunca conheci ninguém que tivesse tão boas razões para o fazer. Correndo o risco de parecer cínico... o que tiver que acontecer esta noite vai mesmo acontecer, independentemente do que tu ou eu achemos ou pensemos. E a única coisa que nos resta decidir é como nos vamos comportar perante a Lisbeth se ela voltar.
Armanskij suspirou e olhou sombriamente para o velho advogado.
- E se a Lisbeth tiver de passar os próximos dez anos na prisão, ao menos terá sido ela a escolher esse caminho. Eu continuarei a ser seu amigo - disse Palmgren.
- Nunca imaginei que tivesses uma visão tão libertária da humanidade.
- Nem eu.
Miriam Wu olhava fixamente para o tecto. Havia uma luz de vigília acesa e o rádio do hospital tocava "On a Slow Boat to China" com o volume muito baixo.
No dia anterior, acordara e dera por si no hospital para onde Paolo Roberto a tinha levado. Dormira e acordara, agitada, e voltara a adormecer sem se aperceber verdadeiramente pela passagem do tempo. Os médicos tinham-lhe dito que sofrera um traumatismo cerebral. Fosse como fosse, precisava de descansar. Tinha o nariz partido, três costelas rachadas, contusões e hematomas por todo o corpo. O sobrolho esquerdo estava tão inchado que o olho era pouco mais do que uma fenda. Doía-lhe quando tentava mudar de posição. Doía-lhe quando inspirava. Doía-lhe o pescoço e tinham-lhe posto um colar cervical, pelo sim pelo não. Os médicos tinham-lhe garantido que recuperaria totalmente.
Quando acordara, à tarde, Paolo Roberto estava sentado numa cadeira ao lado da cama. Sorrira-lhe e perguntara-lhe como se sentia. Miriam bem gostaria de saber se estaria com um aspecto tão horrível como o dele.
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Fizera perguntas, e ele respondera. Por qualquer razão, não lhe parecia nada estranho que fosse um bom amigo de Lisbeth Salander. Era um malandro descarado. Lisbeth gostava tanto de malandros descarados como detestava cretinos pomposos. A diferença era por vezes subtil, mas Paolo Roberto pertencia à primeira categoria.
Tinha agora uma explicação para o facto de ele ter aparecido de repente naquele armazém. Estava surpreendida por Paolo ter seguido tão determinadamente a carrinha. E estava assustada pelas notícias de que a polícia andava a desenterrar cadáveres à volta do armazém.
- Obrigada - dissera. - Salvou-me a vida.
Ele abanara a cabeça e ficara calado durante algum tempo.
- Tentei explicar ao Blomkvist. Ele não percebeu. Mas talvez a Miriam perceba, uma vez que também pratica boxe.
Miriam sabia o que ele queria dizer. Só quem tivesse passado por aquilo podia verdadeiramente compreender o que era enfrentar um monstro insensível à dor. Lembrava-se de como se sentira indefesa.
Depois disso, limitara-se a segurar a mão entrapada dele. Não havia mais nada a dizer. Quando acordara, ele já lá não estava. Gostaria que Lisbeth a contactasse.
Era a ela que o tal Niedermann procurava.
Miriam teve medo de que conseguisse encontrá-la.
Lisbeth Salander não conseguia respirar. Não tinha a noção do tempo, mas sabia que fora atingida a tiro e apercebia-se - mais por instinto do que por qualquer pensamento racional - de que estava debaixo de terra. O braço esquerdo estava inutilizado, não podia mexer um músculo sem que violentas pontadas de dor lhe trespassassem o ombro, e caía constantemente num estado de enevoada semiconsciência. Preciso de ar. A cabeça parecia querer explodir com uma dor terrível, latejante, como nunca experimentara.
Ficara com a mão direita debaixo da cara, e começou, quase instintivamente, a afastar a terra da boca e do nariz. A terra era arenosa e relativamente seca. Conseguiu criar um espaço do tamanho aproximado do seu punho diante do rosto.
Não fazia ideia de há quanto tempo estava ali enterrada. Por fim, conseguiu formular um pensamento lúcido que a encheu de pânico. Não conseguia respirar. Não conseguia mexer-se. Um grande peso de terra mantinha-a imobilizada. Ele enterrou-me viva.
Tentou mexer uma perna, mas mal conseguiu contrair os músculos. Então, cometeu o erro de tentar levantar-se. Fez força com a cabeça para cima, e no mesmo instante a dor foi como uma descarga eléctrica a passar-lhe pelas têmporas. Não posso vomitar. Voltou a mergulhar numa quase inconsciência.
Quando conseguiu pensar de novo verificou, com extrema cautela, que partes do seu corpo estavam funcionais. O único membro que conseguia deslocar um ou dois centímetros era a mão direita, a que estava em frente da cara. Preciso de ar. Mas o ar estava lá em cima, fora da sepultura
Pôs-se a raspar. Fez força com o cotovelo e conseguiu arranjar um pequeno espaço de manobra. Com as costas da mão alargou, pouco a pouco, a área diante da cara, empurrando a terra para a frente. Tenho de cavar.
Descobriu que a posição fetal em que caíra criara uma espécie de bolsa entre os joelhos e os cotovelos. Era aí que se encontrava retida a maior parte do ar que estava a permitir-lhe viver. Começou a torcer desesperadamente o tronco de um lado para o outro e sentiu que a terra caía para o espaço por debaixo dela. A pressão no peito aliviou um pouco. Conseguiu mexer o braço.
Trabalhou num estado próximo do automatismo. Afastava da cara a terra arenosa e empurrava-a, punhado a punhado, para a cavidade entre os cotovelos e os joelhos. Pouco a pouco,"conseguiu libertar o braço o suficiente para escavar o solo por cima da cabeça. Centímetro a centímetro, alargou esse espaço. Tocou numa coisa dura. Era uma pequena raiz, ou um galho. Cavou por cima. O solo estava ainda cheio de ar e pouco compacto.
A raposa deteve-se junto à sepultura de Lisbeth no seu caminho de regresso ao covil. Tinha encontrado dois ratos do campo e sentia-se
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saciada quando, de súbito, sentiu outra presença. Imobilizou-se e arrebitou as orelhas, com os pêlos no nariz a vibrar.
Os dedos de Lisbeth Salander surgiram como uma coisa morta a sair das trevas. Se estivesse algum ser humano a observar, teria muito provavelmente reagido como a raposa: fugiu a sete pés.
Lisbeth sentiu a corrente de ar fresco descer-lhe pelo braço. Conseguia respirar de novo.
Demorou mais meia hora a libertar-se da sepultura. Parecia-lhe estranho não poder usar a mão esquerda, mas continuava a esgarava-tar mecanicamente com a direita.
Precisava de qualquer coisa que a ajudasse a cavar. Voltou a enfiar o braço no buraco e conseguiu chegar ao bolso interior do casaco e tirou de lá a cigarreira. Abriu-a e usou-a como concha. Por fim, conseguiu mover o ombro direito e fazer força para cima. E em seguida raspou mais areia e terra e conseguiu endireitar a cabeça. Tinha agora o braço direito e a cabeça acima do nível do solo. Quando libertou o tronco, pôde finalmente contorcer-se para cima, centímetro a centímetro, até que a terra deixou de prender-lhe as pernas.
Rastejou para fora da sepultura de olhos fechados e só parou quando bateu com o ombro no tronco de uma árvore. Voltou o corpo de modo a poder apoiar-se à árvore e limpou a terra dos olhos com as costas da mão antes de os abrir. A escuridão era absoluta à sua volta e estava um frio intenso. Estava a suar. Sentia uma dor surda na cabeça, no ombro esquerdo e na anca, mas não desperdiçou energias a perguntar-se porquê. Ficou sentada no chão, imóvel, durante dez minutos, a respirar. Subitamente, compreendeu que não podia continuar ali.
Pôs-se penosamente de pé, e o mundo rodopiou à sua volta.
Inclinou-se para a frente e vomitou.
Então, começou a andar. Não fazia ideia de que direcção seguia. A dor na perna esquerda era lancinante, e estava constantemente a cair de joelhos. De cada vez que caía, uma dor ainda mais terrível trespassava-lhe a cabeça.
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Não sabia há quanto tempo caminhava quando avistou uma luz pelo canto do olho. Mudou de direcção. Foi só quando chegou junto à arrecadação, no pátio, que se apercebeu de que tinha voltado à casa de Zalachenko. Cambaleou, como se estivesse embriagada.
Células fotoeléctricas no caminho de acesso e na clareira. Ela tinha vindo da direcção oposta. Não a tinham visto chegar.
Estava confusa. Sabia que não poderia enfrentar Niedermann e Zalachenko. Olhou para a casa pintada de branco.
Clic. Madeira. Clic. Fogo.
Imaginou uma lata de gasolina e um fósforo.
Com um esforço enorme, voltou-se para a arrecadação e cambaleou até à porta, fechada por uma tranca. Conseguiu levantá-la fazendo força com o ombro direito. Ouviu o barulho quando a tranca caiu no chão e bateu na parede. Avançou um passo na escuridão e olhou em redor.
Era uma arrecadação de lenha. Não ia encontrar gasolina ali dentro.
Sentado à mesa da cozinha, Zalachenko ergueu a cabeça quando ouviu o barulho da tranca a cair no chão. Afastou a cortina e espreitou para fora. Os olhos dele demoraram alguns segundos a adaptarem-se à escuridão. A meteorologia previra um fim-de-semana tempestuoso. Viu então que a porta da arrecadação da lenha estava aberta. Tinha lá ido com Niedermann, naquela tarde, buscar lenha. Não que precisassem. O único objectivo fora confirmar a Lisbeth que estava no sítio certo e atraí-la para a armadilha.
Niedermann não tinha, obviamente, posto a tranca como devia ser. Conseguia ser fenomenalmente desajeitado. Olhou para a porta da sala, onde Niedermann dormitava no sofá. Ainda pensou acordá-lo, mas decidiu que não.
Para encontrar gasolina, Lisbeth teria de ir ao celeiro, onde os carros estavam guardados. Sentou-se no cepo de rachar a lenha, a respirar pesadamente. Precisava de descansar. Ainda não tinha passado um minuto quando ouviu o som arrastado da prótese de Zalachenko.
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Na escuridão, Mikael Blomkvist enganou-se no caminho em Mellby, a norte de Sollebrunn. Em vez de sair em Nossebro, seguira em frente e só se apercebera do erro um pouco antes de chegar a Trõkorna. Encostou à berma e consultou o mapa.
Rosnou uma praga e voltou para trás.
Com a mão direita, Lisbeth pegou no machado encostado ao cepo um segundo antes de Zalachenko entrar na arrecadação. Não tinha força para erguê-lo acima da cabeça, mas fê-lo girar num amplo arco de baixo para cima, apoiando todo o seu peso na perna boa e rodando o corpo num semicírculo.
No preciso instante em que Zalachenko acendia a luz da arrecadação, a lâmina do machado apanhou-o na cara, estilhaçando o malar e penetrando alguns milímetros no osso da testa. Não sabia o que tinha acontecido, mas no instante seguinte o cérebro registou a dor, e ele uivou como um possesso.
Ronald Niedermann acordou sobressaltado e endireitou-se no sofá, confuso. Ouviu um grito que, ao princípio, não acreditou ser humano. Vinha lá de fora. Compreendeu então que era Zalachenko. Pôs-se rapidamente de pé.
Lisbeth firmou os pés no chão e voltou a brandir o machado, mas o corpo não lhe obedecia. O objectivo era cravar a lâmina na cabeça do pai, mas tinha esgotado as forças que lhe restavam e o golpe acertou longe do alvo, logo abaixo do joelho. Mesmo assim, o peso do machado fizera-o cravar-se tão fundo que lhe foi arrancado das mãos quando Zalachenko caiu para a frente, a arquejar e a gritar.
Lisbeth inclinou-se para agarrar o cabo de madeira. A terra tremeu quando um relâmpago lhe estourou dentro da cabeça. Teve de sentar-se. Estendeu a mão e apalpou os bolsos do homem caído. Ainda tinha a arma, e Lisbeth tentou focar o olhar enquanto o chão dançava.
Uma Browning.22.
Uma merda de uma arma de escuteiro.
Era por isso que ainda estava viva. Se tivesse sido atingida pela Sig Sauer de Niedermann, ou por qualquer outra arma de maior calibre, teria agora um buraco enorme na cabeça.
Ouviu os passos pesados de Niedermann, cuja figura maciça encheu o rectângulo da porta. Niedermann deteve-se e registou a cena à sua frente com uns olhos que se recusavam a compreender. Zalachenko uivava, caído no chão. A cara dele era uma máscara ensanguentada. Tinha um machado cravado no joelho, e uma Lisbeth coberta de terra e de sangue estava sentada por terra, ao lado dele. Parecia uma cena saída de um filme de terror, como os que costumavam passar-lhe pela imaginação.
Ronald Niedermann, insensível à dor e com a constituição de um tanque, nunca gostara da escuridão. Desde que se lembrava, a escuridão sempre fora sinónimo de ameaça.
Com os seus próprios olhos, tinha visto criaturas saídas das trevas, e um terror indefinido estava sempre à espreita, à espera dele. E agora, o terror materializara-se.
A rapariga sentada no chão estava morta. Disso não tinha a mínima dúvida.
Ele mesmo a enterrara.
Consequentemente, a rapariga sentada no chão não era real, era um ser vindo do outro mundo, que não podia ser derrotado por forças humanas nem por armas conhecidas do homem.
A transformação de ser humano em cadáver já tinha começado. A pele dela transformara-se numa espécie de carapaça de lagarto. Os dentes arreganhados eram presas aguçadas destinadas a arrancar pedaços de carne à sua vítima. A língua reptiliana projectava-se para fora da boca, a lamber o ar. As mãos ensanguentadas tinham compridas garras, afiadas como navalhas. Via-lhe o brilho nos olhos. Ouviu-a rosnar baixo e contrair os músculos para lhe saltar à garganta.
Viu com toda a nitidez que ela tinha uma cauda, que varria ameaçadoramente o chão.
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Então, Lisbeth ergueu a pistola e disparou. A bala passou tão perto da orelha de Niedermann que ele a ouviu silvar. Viu a boca dela cuspir chamas.
Era demasiado, Niedermann deixou de pensar.
Rodou sobre os calcanhares e fugiu. Ela disparou outro tiro, que não lhe acertou mas pareceu dar-lhe asas. Saltou por cima de uma sebe e foi engolido pela escuridão do campo enquanto corria para a estrada principal.
Lisbeth ficou a vê-lo desaparecer, estupefacta.
Arrastou-se até à porta e olhou para o negrume da noite, mas não o viu. Passado algum tempo, Zalachenko parou de gritar, mas continuou a gemer, em estado de choque. Lisbeth extraiu o carregador e verificou que lhe restava um cartucho. Ainda pensou em enfiar aquela última bala na cabeça do pai, mas então lembrou-se de que Niedermann continuava lá fora, no escuro, e resolveu poupá-la. Ia precisar de mais do que uma bala .22. Mas sempre era melhor do que nada.
Demorou cinco minutos a pôr a tranca no lugar. Atravessou o pátio aos tropeções, entrou na casa e encontrou o telefone em cima de um pequeno armário, na cozinha. Marcou um número que não usava havia dois anos. Respondeu-lhe o atendedor automático.
"Olá. Ligou para Mikael Blomkvist. Não posso atender, de momento, mas deixe o seu nome e número de telefone, e ligar-lhe-ei logo que possível."
Bip.
- Mir-g-kral - disse ela, e apercebeu-se de que a sua voz parecia puré. Engoliu. - Mikael. Sou eu, a Lisbeth.
E então não soube o que lhe dizer.
Desligou. A Sig Sauer de Niedermann estava em cima da mesa, desmontada para limpeza, e ao lado dela a P-83 Wanad. Deixou cair a Browning de Zalachenko no chão, aproximou-se da mesa, pegou na Wanad e verificou o carregador. Encontrou também o Palm PDA e enfiou-o no bolso. Em seguida, cambaleou até ao lava-louça e encheu de água fria uma chávena suja. Bebeu quatro chávenas. Quando ergueu a cabeça, viu-se reflectida num velho espelho de barbear
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pendurado na parede. Quase disparou um tiro, de puro susto. O que viu fazia-lhe lembrar mais um animal do que um ser humano. Viu uma louca de rosto contorcido e boca muito aberta. Coberta de sujidade. A cara e o pescoço eram uma pasta de sangue coagulado e terra. Agora fazia uma ideia do que Niedermann encontrara ao entrar na arrecadação.
Aproximou-se mais do espelho e teve subitamente consciência de que arrastava uma perna. Sentia uma dor aguda na anca, onde a primeira bala de Zalachenko a atingira. A segunda acertara-lhe no ombro e paralisara-lhe o braço esquerdo. Doía-lhe.
A dor na cabeça, porém, era tão violenta que a fazia cambalear. Levantou lentamente a mão direita e tacteou a nuca. Encontrou com as pontas dos dedos o orifício de entrada.
Enquanto explorava o buraco com as pontas dos dedos, compreendeu subitamente que aquilo em que estava a tocar era o seu próprio cérebro, que estava tão gravemente ferida que ia morrer, ou talvez já estivesse morta. Não percebia como ainda conseguia manter-se de pé.
Foi invadida por um enorme cansaço. Não sabia muito bem se estava à beira de desmaiar ou de adormecer, mas arrastou-se até ao banco da cozinha, estendeu-se nele e apoiou o lado direito da cabeça numa almofada.
Tinha de descansar e recuperar as forças, mas sabia que não podia deixar-se adormecer enquanto Niedermann andasse por perto. Mais cedo ou mais tarde, ele ia voltar. Mais cedo ou mais tarde, Zalachenko ia conseguir sair da arrecadação e arrastar-se até à casa. Mas já não tinha forças para continuar de pé. Pôs a'patilha da Wanad em posição de fogo.
Niedermann deteve-se, indeciso, na berma da estrada de Sollebrunn para Nossebro. Estava sozinho. Na escuridão. Tinha recomeçado a pensar racionalmente e envergonhava-se por ter fugido. Não compreendia como podia aquilo ter acontecido, mas chegou à conclusão lógica de que ela devia ter sobrevivido. Conseguiu sair da cova.
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Zalachenko precisava dele. O que devia fazer era voltar à casa e torcer o pescoço àquela cabra. Ao mesmo tempo, tinha uma forte sensação de que estava tudo acabado. Havia já muito tempo que tinha aquela sensação. As coisas tinham começado a dar para o torto, e tinham continuado a dar para o torto, no momento em que Bjurman os contactara. Zalachenko ficara irreconhecível ao ouvir o nome de Lisbeth Salander. Todas as regras a respeito de cautela e moderação que lhe pregara durante anos tinham-se desfeito em fumo.
Hesitou.
Zalachenko precisava de cuidados médicos.
Se ela não o tivesse já matado.
O que significava que haveria perguntas.
Mordeu o lábio inferior.
Havia muitos anos que era sócio do pai. Tinham sido uns anos bons. Tinha dinheiro posto de parte e, além disso, sabia onde Zalachenko escondia a sua fortuna. Tinha os recursos e os conhecimentos necessários para levar o negócio para a frente. O mais sensato seria afastar-se de tudo aquilo e nem sequer olhar para trás. Se havia coisa que Zalachenko lhe tinha ensinado era a importância de conservar sempre a capacidade de afastar-se, sem sentimentalismos, de uma situação que considerasse insustentável. Não mexas um dedo por uma cama perdida.
Ela não era sobrenatural. Mas era perigosa. Era a sua meia-irmã.
Tinha-a subestimado.
Não sabia o que fazer. Uma parte dele queria voltar à casa e torcer-lhe o pescoço. Outra parte queria continuar a fugir.
Tinha o passaporte e a carteira no bolso das calças. Não queria voltar. Não havia na quinta nada de que precisasse.
Excepto talvez um carro.
Ainda hesitava quando viu a luz de uns faróis que se aproximavam vindos do outro lado da colina. Voltou a cabeça. Tudo o que precisava era de um carro que o levasse a Gotemburgo.
Pela primeira vez na vida - pelo menos desde que era muito pequenina - Lisbeth Salander via-se incapaz de controlar a sua própria situação. Ao longo dos anos, envolvera-se em lutas, fora sujeita a abusos,
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fora vítima de injustiças de organismos públicos e privados. Sofrera muitos mais golpes no corpo e na alma do que qualquer pessoa deveria ter de suportar.
Mas sempre fora capaz de rebelar-se. Recusara responder às perguntas de Teleborian, e sempre que fora sujeita a qualquer espécie de violência física, fora capaz de fugir.
Podia viver com o nariz partido, mas não com uma bala na cabeça.
Desta vez, não podia arrastar-se até sua casa, puxar as mantas até às orelhas, dormir dois dias seguidos e depois levantar-se e voltar à rotina diária como se nada tivesse acontecido.
Estava tão gravemente ferida que não podia lidar sozinha com a situação. Estava tão exausta que o corpo recusava obedecer-lhe.
Tenho de dormir um pouco, pensou. E, de repente, percebeu que se fechasse os olhos e se se abandonasse havia a altíssima probabilidade de não voltar a acordar. Analisou calmamente as consequências e chegou à conclusão de que não se importava. Pelo contrário. Sentia-se estranhamente atraída pela ideia. Descansar. Não ter de acordar.
Os seus últimos pensamentos foram para Míriam Wu.
Perdoa-me, Mimi.
Ainda segurava a arma de Niedermann, com a patilha de segurança em posição de fogo, quando fechou os olhos.
Mikael Blomkvist viu Niedermann ao longe, à luz dos faróis, e reconheceu-o imediatamente. Era difícil não reconhecer um gigante loiro com mais de dois metros de altura. Niedermann corria para ele, a agitar os braços. Mikael abrandou. Enfiou amão na bolsa exterior do estojo do portátil e tirou de lá o Colt 1911 Government que encontrara na secretária de Lisbeth. Parou a cinco metros de Niedermann e desligou o motor antes de abrir a porta do carro e apear-se.
- Obrigado por ter parado - dizia Niedermann, ofegante. - Tive... um acidente. Pode dar-me uma boleia até à cidade?
Tinha uma voz surpreendentemente aguda.
- Claro que posso levá-lo até à cidade - disse Mikael. Apontou-lhe a arma. - Deite-se no chão.
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Parecia não haver fim para as tribulações por que Niedermann tivera de passar naquela noite. Ficou a olhar para Mikael, espantado.
Não tinha ponta de medo da pistola nem do homem que a empunhava. Por outro lado, respeitava as armas. Tinha vivido com armas e violência toda a sua vida. Assumia que se alguém lhe apontava uma arma, era porque essa pessoa estava preparada para usá-la. Semicerrou os olhos e tentou avaliar o homem por detrás da arma, mas os faróis do carro tornavam-no uma silhueta indistinta. Polícia? Não parecia ser da polícia. Em geral, os agentes da polícia identificavam-se. Pelo menos, era o que faziam nos filmes.
Ponderou as suas possibilidades. Sabia que se atacasse o homem conseguiria tirar-lhe a pistola. Mas o tipo parecia perfeitamente controlado e estava atrás da porta do carro. Poderia atingi-lo com uma, talvez duas balas. Se fosse muito rápido, talvez o homem falhasse, ou pelo menos não conseguisse acertar num órgão vital, mas, mesmo que sobrevivesse, as balas dificultar-lhe-iam a fuga, se não a tornassem de todo impossível. O melhor era esperar por melhor oportunidade.
- deita-te! Já! - gritou Mikael.
Desviou o cano um par de centímetros e disparou um tiro para a valeta.
- A próxima é para o teu joelho - anunciou Mikael, numa clara e firme voz de comando.
Niedermann pôs-se de joelhos, ofuscado pela luz dos faróis.
- Quem és tu? - perguntou.
Mikael procurou com a mão livre na bolsa da porta do carro e pegou na lanterna que tinha comprado na estação de serviço. Apontou o feixe de luz à cara de Niedermann.
- Mãos atrás das costas - ordenou. - E abre as pernas. Esperou que Niedermann obedecesse relutantemente às suas ordens.
- Sei quem tu és. Se começares a pensar em fazer qualquer coisa estúpida, dou-te um tiro sem mais avisos. Estou a apontar para o teu pulmão, por baixo da omoplata. Talvez consigas apanhar-me... mas vai custar-te.
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Pousou a lanterna no chão, tirou o cinto e fez com ele um nó corredio, exactamente como aprendera 20 anos antes em Kiruna, onde fizera o serviço militar. Colocou-se entre as pernas do gigante, passou-lhe o nó pelos braços e apertou-o acima dos cotovelos. O poderoso Niedermann estava, para todos os efeitos práticos, indefeso.
E agora? Mikael olhou em redor. Estavam completamente sozinhos na estrada, no meio da escuridão. Paolo Roberto não exagerara ao descrever Niedermann. O homem era enorme. A questão era saber o que poderia ter levado aquele monstro a fugir como se fosse perseguido pelo próprio diabo.
- Procuro a Lisbeth Salander. Presumo que a conheces. Niedermann não respondeu.
- Onde está a Lisbeth Salander?
O gigante olhou para ele, confuso. Não compreendia o que estava a acontecer-lhe naquela estranha noite em que tudo parecia correr mal.
Mikael encolheu os ombros. Regressou ao carro, abriu a bagageira e encontrou uma corda. Não podia deixar Niedermann amarrado no meio da estrada, de modo que se pôs a olhar em redor. Trinta metros mais à frente viu um sinal rodoviário iluminado pelos faróis. "ATENÇÃO: PASSAGEM DE ALCES."
- De pé.
Encostou o cano da arma ao pescoço de Niedermann, levou-o até ao sinal e obrigou-o a descer para a berma. Mandou-o sentar-se com as costas apoiadas ao poste do sinal. Niedermann hesitou.
- É tudo muito simples - disse Mikael. - Mataste o Dag Svensson e a Mia Johansson. Eles eram meus amigos. Não vou deixar-te à solta na estrada, de modo que ou te sentas aqui enquanto eu te amarro, ou dou-te um tiro num joelho. Agora escolhe.
Niedermann sentou-se. Mikael passou-lhe a corda à volta do pescoço e prendeu-lhe firmemente a cabeça no poste. Depois, usou 15 metros de corda para amarrar também o tronco, do pescoço à cintura. Reservou os últimos três metros para os antebraços, e rematou o serviço com vários nós de marinheiro.
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Quando acabou, voltou a perguntar-lhe onde estava Lisbeth. Não obteve resposta, de modo que encolheu os ombros e afastou-se. Foi só quando já estava de novo sentado ao volante que sentiu o fluxo de adrenalina e se apercebeu verdadeiramente do que tinha feito. A imagem de Mia Johansson passou-lhe fugazmente diante dos olhos.
Acendeu um cigarro e bebeu água directamente da garrafa. Olhou para a figura sentada na valeta, amarrada ao poste do sinal rodoviário. Em seguida, consultou o mapa e verificou que lhe faltava menos de um quilómetro para chegar ao caminho de acesso à quinta de Karl Axel Bodin. Ligou o motor e passou por Niedermann.
Passou lentamente pelo desvio que indicava Gosseberga e estacionou o carro junto a um celeiro numa estrada florestal, cem metros mais a norte. Pegou na pistola e acendeu a lanterna. Encontrou marcas recentes de pneus na lama e decidiu que outro carro tinha estado ali estacionado pouco antes, mas não se deteve a considerar as implicações. Voltou a pé ao desvio para Gosseberga e apontou a luz da lanterna para a caixa de correio. "CP 612 - K. A. Bodin." Continuou pela estrada.
Era quase meia-noite quando viu as luzes da quinta. Manteve-se imóvel durante vários minutos, mas não ouviu nada, excepto os ruídos habituais da noite. Em vez de seguir o caminho directamente para a quinta, avançou ao longo da orla do campo e aproximou-se pelo lado do celeiro. Deteve-se no pátio, a cerca de 30 metros da casa. Tinha todos os sentidos em estado de alerta. O simples facto de ter encontrado Niedermann a correr pela estrada principal era razão suficiente para acreditar que tinha acontecido ali uma catástrofe.
Ia a meio do pátio quando ouviu um som. Voltou-se e caiu sobre um joelho, com a arma levantada. Demorou alguns segundos a identificar a origem do som: uma arrecadação. Alguém a gemer. Avançou rapidamente e parou diante da pequena construção. Espreitando da esquina, viu que havia uma luz acesa no interior.
Escutou. Alguém se movia lá dentro. Mantendo a pistola apontada à sua frente, levantou a tranca, empurrou a porta com a mão
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esquerda e foi confrontado por um par de olhos aterrorizados numa cara ensanguentada. Viu o machado no chão.
- Santo Deus! - exclamou.
Então viu a prótese.
Zalachenko.
Lisbeth tinha-lhe, definitivamente, feito uma visita, mas não conseguia imaginar o que podia ter acontecido. Fechou a porta e voltou a pôr a tranca no lugar.
Com Zalachenko fechado na arrecadação e Niedermann amarrado de pés e mãos na berma da estrada para Sollebrunn, Mikael atravessou rapidamente o pátio. Era possível que houvesse uma terceira pessoa que se encontrasse em perigo, mas a casa parecia deserta, quase abandonada. Apontando a arma para o chão, empurrou a porta da frente. Entrou num vestíbulo escuro e viu um rectângulo de luz vindo da cozinha. O único som era o tiquetaquear do relógio de parede. Quando chegou à cozinha, viu Lisbeth estendida em cima do banco. Por um instante, ficou petrificado, a olhar para o maltratado corpo. Reparou que Lisbeth tinha uma pistola na mão que pendia molemente da beira do banco. Aproximou-se dela e ajoelhou-se no chão. Lembrou-se de como tinha encontrado Dag e Mia e pensou que também ela estava morta. Então, notou um ligeiríssimo movimento do peito e ouviu uma respiração fraca, sibilante.
Estendeu a mão e, com todo o cuidado, tentou tirar-lhe a pistola de entre os dedos. Subitamente, o punho fechou-se à volta da coronha. Lisbeth entreabriu os olhos, reduzidos a duas estreitas fendas, e olhou para ele durante longos segundos. Pareciam desfocados. Depois, ouviu-a murmurar, numa voz tão baixa que só com muita dificuldade conseguiu perceber as palavras: - Super Sacana Blomkvist.
Lisbeth fechou os olhos e largou a arma. Mikael pousou-a no chão, pegou no telemóvel e ligou para as emergências.
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