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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MENINA QUE SE ALIMENTAVA DE DOR / Eduardo Kasse
A MENINA QUE SE ALIMENTAVA DE DOR / Eduardo Kasse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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– Vovó, corre! – Eu estava eufórica, pois acabara de ver a vaca parir um bezerrinho. – Ele nasceu lá atrás das parreiras. O bezerro nasceu!
– Para que a pressa, Amalina? Se acalme, menina! – Ela veio devagar, enxugando as mãos no vestido grosso de linho. – Os animais sabem o que fazer, não precisamos interferir.
– Mas se ele não conseguiu se levantar? Ou não alcançá as tetas? – Comecei a pular no lugar, aflita. – Ele tá cheio de sujeira. E se não consegui respirá direito?
– Então ele vai morrer – ela tinha a voz rouca, mas carinhosa. – A vaca vai lambê-lo por um tempo, tentando reanimá-lo, vai mugir para ver se ele reage e logo vai embora tocar a sua vida. E, depois de alguns meses, vai permitir que o touro a monte novamente e na primavera vai nascer um novo bezerro, que, se tudo der certo, vai vingar e crescer forte.
– Credo, vovó – fiz uma careta e segui emburrada, pisando duro, até o local do nascimento.
Na imensa sabedoria do alto dos meus cinco anos de idade, achei que minha avó tinha sido muito cruel. Sinto falta daquela menininha ingênua que nada sabia sobre a morte. Ou a ausência dela.
– Está vendo, Amalina, mãe e filhote estão bem. – A vaca lambia as sujeiras do corpo do bezerro e já havia comido o cordão umbilical. – Ficou nervosinha sem precisar.
Não prestei atenção na minha avó, estava encantada com o bichinho. Nunca havia presenciado algo tão belo. Já havia visto pintos saírem dos ovos, mas não era a mesma coisa.

 


 


O bezerro arriscava os primeiros passos desengonçados sobre a grama fofa, as pernas compridas ainda trêmulas, trançando-se antes dos vários tombos. A vaca o estimulava com a cabeça sob o olhar atento de mais de uma dezena de reses que pastavam logo adiante, na beira do rio que margeava o bosque. Até os gansos grasnavam no remanso como se comemorassem o momento.

– Quando eu nasci a mamãe me lambeu? – Cocei a cabeça ao ver a grande língua envolver o pescoço do bezerro. – É meio nojento.

A velha senhora riu a ponto dos olhos lacrimejarem e de perder o fôlego. Dobrou-se com as mãos na barriga.

Eu também comecei a rir, apesar de não entender direito o porquê. Vê-la feliz me fazia bem. Ela era tudo o que eu tinha após a morte dos meus pais.

As vacas mugiram logo adiante, de um jeito diferente, alvoroçado. Virei-me para olhar e então gritei, desesperada: um berro tão agudo, tão sofrido, que causou uma debandada, fazendo o chão tremer sob meus pés descalços.

O gado fugiu por uma centena de passos. Até mesmo o grande touro correu sem olhar para trás.

A mãe vaca permaneceu e tentou espantar três lobos cinzentos que mordiam violentamente sua cria. O pobrezinho tinha os olhos arregalados de puro pavor.

Os mesmos olhos que hoje vejo naqueles dos quais me alimento. O mesmo pavor que nutre o meu espírito, assim como o sangue nutre o meu corpo.

Tentei correr para resgatar o filhote, mas minha avó me segurou pelo ombro, com força. Ela me puxou e me manteve à frente do seu corpo enquanto eu, em vão, debatia-me com o rosto coberto de lágrimas.

Vi o grande lobo esmagar a garganta do bezerro enquanto os outros dois mantinham a mãe longe, numa dança coordenada e precisa.

– Por que as outras vacas não vêm ajudá ela? – A minha voz saiu entrecortada pelos soluços.

– Porque essa é a natureza das vacas, Amalina. – Vovó afrouxou um pouco o abraço, pois sabia que eu já não tinha forças para correr.

– Elas são mais grandes e são várias... – Meus olhos ardiam e o ranho salgava a minha boca. – Elas podiam pisá neles tudo e ajudá o bezerrinho.

– Vacas são presas, e lobos, predadores. – Ela acariciou meus braços com as mãos ásperas. – Assim é a vida, minha neta, uns caçam, outros são caçados. Tal como o mato não reage às mordidas delas, elas não reagem ao serem comidas. No fundo, aquelas vacas que saíram correndo devem estar aliviadas por não terem sido elas o almoço dos lobos. Mas amanhã, quem sabe?

– Eu não entendo...

Naquela época eu realmente não compreendia.

*

Os anos se passaram e com eles a minha ingenuidade se foi. Vi muitas presas entre as mandíbulas dos lobos e muitos corpos trespassados pelas espadas e lanças dos povos que formaram o que viria a ser a França.

Como a vovó, um punhado de criados e eu vivíamos em uma fazenda isolada, longe da estrada que margeava o Loire e ia até a cidade de Poitiers, a maioria das escaramuças entre as tribos não nos prejudicava. Víamos as fumaças dos incêndios ou mesmo a marcha de pequenos exércitos pelas trilhas das colinas distantes, mas até agora permanecíamos incólumes e em paz.

Poucas pessoas chegavam à fazenda,. Eram, geralmente, mercadores conhecidos que vinham até nós para comprar queijos, vinho e couro e para nos vender ferramentas, roupas e sal.

– As coisas estão ficando feias – Armand, um velho amigo da vovó arrancou a coxa da galinha assada com cebolas, cenouras e ovos e mordeu-a com gosto, fazendo a gordura escorrer pela barba grisalha. – Clóvis continua investindo contra as tribos e matando todos aqueles que o refutam como rei. E a cada dia seu exército cresce. Mais e mais homens se juntam a ele na esperança de ganhar terras e riquezas.

– Eu o conheci quando menino e nunca imaginaria que o filho de bochechas rosadas de Childerico se tornaria esse homem tão implacável. – Vovó mastigava as ervilhas fritas na manteiga de que tanto gostava. – O tempo muda mesmo as pessoas.

– Várias aldeias foram incendiadas, e nós, mercadores, estamos tendo dificuldade para vender os produtos. Nunca sabemos quando encontraremos os vilarejos em chamas – Armand arrotou depois de beber todo o vinho da sua caneca. – Isso quando os malditos saqueadores não nos roubam tudo. Eu mesmo tive uma carga de lingotes de ferro levada na semana passada.

Gailavira, uma jovem da minha idade que também perdera a mãe, após uma agonia de semanas com febre e tosse, trouxe-nos um pouco de doce de amoras silvestres. Enquanto eu tinha os cabelos dourados como o trigal sob o Sol, ela tinha as madeixas escuras como o carvão. Eu a considerava quase como uma irmã, e ela dormia junto comigo no meu aposento quando seu marido não estava em casa.

– Sente-se conosco. – Vovó convidou-a para nos acompanhar na refeição. – Sirva-se.

Armand sorriu para ela enquanto terminava de devorar os pedaços de galinha no seu prato.

– Gailavira, Eurico não está junto com o bando de Alarico? – Vovó já não tinha mais tanta firmeza nas mãos e tremeu quando foi pegar o doce com uma colher.

– Sim senhora – a jovem pegou dois ovos e uma cenoura e regou-os com a gordura da galinha. – Há anos ele fez um juramento para um dos comandantes de Alarico e agora foi convocado a cumprir suas obrigações.

– Não precisa se justificar – a vovó sorriu. – Só quero saber se ouviu algo sobre o exército deles.

– Bem... – hesitou. – Pelo que sei é um bando grande, com centenas de homens bem armados. E eles pretendem combater Clóvis.

– Muitos vão morrer. – Encarei Gailavira, tão aflita quanto eu.

– Como sempre morreram, minha neta. – Vovó se levantou com dificuldade e foi até a fogueira que ficava no centro do nosso salão. Colocou as mãos perto das chamas para aquecer os dedos endurecidos. – Nessas terras, as batalhas nunca cessaram: primeiro contra os romanos, agora contra os Francos. Amanhã, quem sabe?

– Sorte dos ferreiros e dos mercadores de armas – Armand riu.

– Seu velho matuto! – Vovó se virou. – Eu bem sei que você é o maior embebedador de soldados que existe.

– Não posso negar. – Enfiou uma colherada do doce na boca. – Mas é o seu vinho que vai para a garganta dos sedentos.

Os velhos amigos riram.

Gailavira e eu estávamos preocupadas. Ela com o marido, eu por causa de uma sensação estranha que me apertava o peito.

Como se adivinhasse qual seria o meu destino.

507 D. C. – próximo ao rio Loire.

– Então os cães vieram mesmo – Alarico II deixara Poitiers para observar pessoalmente o avanço do exército de Clóvis I, que ainda atravessava o rio, tal como uma serpente colorida e de escamas reluzentes sob o sol da manhã. – O bastardo do Jacques falou mesmo a verdade.

– Nisso ele foi sincero, mas mentiu em todo o resto. Mereceu morrer. Agora veja, parece que Clóvis reuniu mais homens – Geberic, um dos comandantes do seu exército, cuspiu para o lado. – Há pelo menos uma dezena de novos estandartes. E muitos eu desconheço.

– Vai ser uma batalha difícil – o rei dos visigodos cofiou a barba. – Bem difícil...

– E me diga alguma que foi fácil, meu amigo? – O comandante tocou-lhe o ombro. – Agora vamos voltar. – Apontou para três cavaleiros que vinham em sua direção.

Os batedores de Clóvis os viram, mas, como tanto o rei quanto Geberic estavam vestidos tais como camponeses, não chamaram atenção. Até mesmo seus imponentes cavalos de batalha ficaram no acampamento; eles montavam jumentos de carga.

Andaram por seis milhas até se encontrarem com seus homens.

.

.

.

– Amanhã...

– Não entendi, meu senhor. – Beremud, outro comandante, um velho atarracado e peludo como um urso, testou o fio da espada ao cortar uma corda grossa. Deu-se por satisfeito. – Depois que tomei aquela pancada em Narbonne, nunca mais ouvi direito com o ouvido esquerdo.

– Amanhã lutaremos. – O rei desabou sobre um banco de madeira forrado de peles e logo uma criada lhe trouxe vinho e queijo. – Amanhã marcharemos até a planície de Vouillé e os confrontaremos. E, se conseguirmos matar o desgraçado do Clóvis, venceremos essa guerra.

Ele deu um tapa na bunda da criada, que soltou risinhos e saiu da tenda. Ao cair da noite ela voltaria e ajudaria o rei a se aliviar de todas as tensões do dia.

Beremud sorriu, pois adorava a guerra. Estava ansioso para poder usar a sua espada até que ficasse completamente suja de sangue e tripas. Quando a lâmina ficasse rombuda demais, pegaria a arma de um morto qualquer e continuaria sorrindo e mandando seus inimigos para o outro mundo.

Geberic, ao contrário, permanecia sisudo, pois vira o poderio do exército Franco e tinha certeza de que era superior ao de Alarico. Se ele fosse o rei, tentaria alguma forma de negociação, de acordo de paz, ou mesmo buscaria juntar mais forças e fazer alianças. Contudo ele sabia que seu velho amigo nunca recuaria.

Assim são os reis, pensou.

O comandante se levantou, fez uma mesura ao rei e saiu da tenda. Tentaria dormir um pouco, estava exausto e sua cabeça latejava como se ratos mordiscassem os seus miolos.

– Essa batalha vai decidir os rumos da... – murmurou, e se virou quando sentiu alguém tocar-lhe o ombro. – Liuva!

A bela mulher sorriu.

– Você parece preocupado, meu querido. – Ela segurou as mãos calejadas do soldado.

– Amanhã combateremos Clóvis.

– Eu sei.

– Como?

– Vocês homens não sabem o que significa a palavra segredo distinção. – Ela guiou o comandante para a sua tenda. – Mas não pense nisso, meu querido, não agora.

Liuva tirou as roupas simples que ele usava e limpou-o com um pano embebido em uma água de flores. Serviu-lhe um pouco de vinho e o alimentou com um pão de frutas recém-assado. Bebericou um pouco também, só o suficiente para aquecer o corpo e o espírito. Despiu-se, e logo ele já estava dentro dela, vigoroso, as mãos fortes, mas gentis apertando os seios fartos, as bocas duelando ao sabor das frutas e do vinho. Ela o abraçou com as pernas e cravou as unhas nas costas cobertas de cicatrizes. Também queria deixar as suas marcas.

Um cão espiou dentro da tenda, entrou devagarinho, roubou o que restara do pão e correu para degustar a iguaria em segurança, enquanto Geberic devorava incansavelmente a mulher que gemia satisfeita. Ele sempre fora um amante formidável.

O guerreiro rosnou, estocou pela última vez e deixou seu corpo ficar sobre o dela, suado, já não tão rígido.

Liuva sorriu e gentilmente tocou o ombro do comandante, que desabou para o lado, adormecendo logo em seguida sobre a manta de lã. Ela se levantou, limpou-se e se vestiu. Foi até o saco de couro preso ao cinturão dele e pegou três moedas de prata.

Podia pegar tantas quanto quisesse.

Bebeu o restante do vinho e saiu.

O cão que roubou o pão veio e lhe cheirou as pernas. Ganhou um afago nas orelhas. Deitou-se feliz de barriga para cima e começou a se esfregar na terra para tentar se livrar das pulgas.

Liuva sorriu. Acabara de encontrar mais uma presa – e caminhou, sinuosa, até o jovem Gesaleico, filho bastardo do rei. Ele lhe beijou o pescoço, que ainda tinha o suor do outro homem.

A noite estava apenas no começo e Liuva queria fazer um bom dinheiro, porque amanhã, ao fim da batalha, ela poderia não ter mais nenhum dos seus fiéis amantes.

*

– Acorde avó, foi apenas um pesadelo. – Segurei os braços finos da velha senhora que se debatia e gritava, de olhos abertos, apesar de ainda permanecer no mundo dos sonhos.

Coloquei a mão sobre a testa enrugada salpicada de suor e aos poucos ela foi se acalmando até despertar por completo. Num dos caibros do telhado uma gata cinza observava tudo em silêncio, o rabo comprido e serpenteado pendendo para baixo. Ao seu lado, a poucos palmos de distância, uma aranha preta enrolava em sua teia uma barata, que, em vão, se debatia.

– Que horrível, Amalina! – Vovó começou a chorar. – Eu vi mortos, vi fogo e destruição. Ouvi os lamentos dos agonizantes e o choro dos órfãos. E você foi arrancada dos meus braços e...

– Calma! – Dei-lhe um abraço e afaguei seus cabelos fininhos. – Está tudo bem.

– Eles te levaram de mim, minha neta, meu amorzinho...

Permaneci em silêncio e apenas a ninei, tal como se faz com uma criança que desperta assustada. Logo ela adormeceu, o semblante sereno.

Respirei profundamente e deitei-me ao lado de Gailavira, que também acordara assustada com os gritos, mas já dormia outra vez.

Não consegui pregar os olhos e vi os raios brilhantes do Sol entrarem pelas frestas nas paredes de madeira. Sabia que vovó tinha tido apenas um pesadelo, mas o que me intrigava é que eu mesma havia sonhado, momentos antes de acordar com os gritos dela, que tinha sido capturada por estranhos, em meio à guerra e a terra em chamas.

*

O servo de Beremud acabara de polir sua espada e a ponta da sua lança com vinagre e areia e elas brilhavam sob o Sol fraco da manhã. O exército de Alarico já estava a postos, assim como o de Clóvis.

Entre eles, um chão enlameado pela chuva da madrugada.

Pouquíssimos homens ostentavam cotas de malha, alguns usavam gibões de couro encerado, a maioria vestia apenas camisas grossas. Em ambos os exércitos havia um punhado de soldados, mas a grande massa era formada por homens comuns: fazendeiros, artesãos, camponeses e jovens em cujos rostos tinham acabado de despontar os primeiros fiapos de barba.

As armas também eram raras devido ao seu preço; portar uma espada era um luxo para poucos. Podões, foices, garfos e bastões de madeira compunham a força de ataque dos combatentes. E, quando essas armas se quebrassem, pedras, paus e as mãos nuas serviriam. A morte era generosa e não fazia distinções.

Os comandantes sonhavam com poder e terras. Os soldados, com a captura de nobres a fim de conseguir polpudos resgates. Os demais, com se manter vivos. E havia aqueles que já pensavam em como fugir sem precisar desferir nenhum golpe.

Os cavalos já estavam alimentados e aguardavam pacientemente a batalha começar, cagando montes pastosos e relinchando de vez em quando. Alguns homens bebiam as últimas gotas dos seus odres e outros aliviavam as tripas. Logo mais o campo relvado ficaria coberto da lama pegajosa formada pelo mijo, sangue e merda dos combatentes.

– Vamos atacar logo ou vai haver aquela viadagem de mensageiros? – Beremud olhou para os inimigos que se encontravam a uns trezentos passos e rosnou. – Por mim eu avançava e fazia o tal Clóvis fugir com uma lança enfiada no rabo.

Alarico, apesar da tensão, riu.

– Calma meu amigo, não seja tão afoito. Pelo que conheço de Clóvis, sei que ele vai avançar em breve. – Olhou para cima e viu um falcão voar em círculos. – O único mensageiro que mandará será o fio da sua espada.

– Então, que os nossos escudos estejam firmes e nossas lanças apontadas para a frente – Beremud afastou-se do rei e foi ter com seus homens.

Ao contrário de Geberic e de Alarico, ele preferia combater a pé, lado a lado com seus companheiros, os escudos feitos com tábuas de tília e recobertos por couro, com as bordas de ferro tão coladas que mal passava um fio de cabelo. Ele gostava de avançar lentamente, entoando hinos de guerra, as botas afundando na terra molhada, o suor escorrendo pela testa, fazendo os olhos arderem.

Beremud amava a matança.

– Fique ao meu lado, meu amigo. – O rei montou e se aproximou de Geberic, que acariciava o pescoço de sua égua castanha. Tocou-lhe o ombro, o semblante pesado de quem mal dormira.

– Vou aonde o senhor for, meu rei. – O comandante ajustou o elmo na cabeça e vestiu as luvas de couro.

– Mesmo até o inferno? – Alarico encarou o amigo com os olhos cansados.

O rei não esperou a resposta: virou-se e avançou, sendo ovacionado pelos seus homens.

Do outro lado da planície de Vouillé, Clóvis instigava o seu exército. Os padres já haviam rezado, distribuído bênçãos e proferido que Deus lhes daria a vitória. Como de costume, ganharam algumas moedas dos fiéis agradecidos pelo bom augúrio.

Então as cornetas soaram e os homens dos dois lados que haviam se tornado cristãos fizeram o sinal da cruz. Havia ainda uns poucos que rezaram aos seus deuses ancestrais, tocavam amuletos escondidos sob as camisas e os bagos sob as calças.

Ao fundo mulheres e filhos observavam tudo, aflitos, impotentes. Uns comemorariam a vitória, outros sepultariam corpos destroçados. Os mercadores arrumavam suas coisas e rumavam para lugares mais seguros, assim como as prostitutas, ferreiros, bardos e toda a população que vivera nos acampamentos nos últimos dias.

A sorte estava lançada: as massas começaram a avançar.

O chão tremeu e os cavalos relincharam.

Nos galhos das árvores os corvos observavam.

Em breve teriam um banquete de carne fresca.

*

– Estou com uma sensação estranha, Gailavira. – Parei de ordenhar a vaca, enxuguei o suor da testa e limpei as mãos no vestido.

– Como assim?

– Sinto um aperto no peito... Uma coisa ruim na cabeça.

– Não deve ser nada. A jovem amarrou as patas traseiras de uma vaca, sentou-se num banquinho e apertou as tetas, fazendo o leite espumoso sair em esguichos fortes. Ao seu lado um cãozinho esperava os esporádicos esguichos na sua boca.

– É, não deve ser mesmo... – Levantei-me e coloquei o balde de leite sobre a pequena carroça. O jumento continuava pastando tranquilo, o rabo balançando para espantar as moscas que teimavam em passear pelo seu cu e lhe pinicar as pregas.

Gailavira terminou a ordenha e também colocou o seu balde sobre a carroça, junto com outros cinco. Já tínhamos leite suficiente para fazer os queijos encomendados por Armand.

Voltamos ao salão, ao mesmo tempo que vimos homens fugindo pelas colinas distantes, tais como formigas que escalam montes de terra. Ao longe a fumaça preta denunciava incêndios.

– O que será que está acontecendo? – Coloquei a mão sobre os olhos para sombreá-los. – Vejo que alguns homens estão ficando pelo caminho. Estão feridos? Mortos?

– A batalha deve ter começado – Gailavira cruzou as mãos em prece. – Deus proteja o meu marido.

– Entrem. – A avó abriu a porta do salão de supetão, assustando-nos, e fez um sinal apressado. – Rápido.

O cãozinho correu para dentro e se aninhou sobre um tapete. Entramos e logo em seguida minha avó, com a ajuda de um homem, passou a pesada barra de madeira pelos encaixes atrás da porta.

Gailavira sorriu e correu para os braços do seu marido, que estava sentado numa cadeira, a cabeça enrolada em panos manchados de vermelho. No chão, pelo menos uma dúzia de homens recebia tratamento de uma das nossas criadas.

Alguns não veriam o pôr do sol.

*

Beremud tinha um talho na testa por onde o sangue escorria e embaçava a sua visão. A barba grossa perdera os tons cinza e agora era vermelho vivo. E, mesmo assim, ele sorria. Acabara de destruir a mandíbula de um ferido caído no chão com um chute bem dado. Tropeçou num morto do seu exército, mas antes de se desequilibrar conseguiu fincar a espada na barriga de um jovenzinho insolente que tentava atacá-lo com um machado de cortar madeira. O fedelho guinchou e caiu para trás com as mãos sobre a barriga.

Geberic lutava ao seu lado. Perdera sua égua havia pouco tempo: o animal levou uma bela pancada na cabeça e cambaleou alguns passos antes de desabar, desorientado, derrubando o comandante e esmagando um velhote que tentava espetá-lo com um garfo enferrujado.

– Cadê Alarico? – Beremud berrou e socou o nariz de um soldado que acabara de estocar contra o seu escudo, fazendo voar lascas de madeira.

– Eu não sei – Geberic resmungou, e então sentiu uma pedrada nas costas. Seu agressor, um menino, colocava outra pedra na funda quando teve a garganta trespassada por uma lança de ponta torta. Ele revirou os olhos, gorgolejou uma espuma sanguinolenta e, antes de cair de joelhos no chão, seu espírito já deixara o corpo inerte.

A batalha ainda estava quente, e os corvos já se empanturravam dos mortos e de alguns agonizantes. Muitos soldados, principalmente os mais novos, pararam de lutar e reviravam os corpos em busca de algum butim. Os mais covardes – ou espertos – aproveitavam-se da desatenção dos comandantes e fugiam. Esses viveriam para contar a história.

Alarico II continuava montado, estocando, cortando, berrando ordens. Ao seu lado, um punhado de fiéis cavaleiros matava e morria. Os homens estavam sendo cada vez mais envolvidos pelos Francos, presos em uma armadilha sem saída.

Mas nenhum deles cogitava fugir. Os mais experientes já faziam suas preces silenciosas. Sabiam que logo estariam junto dos seus antepassados.

Poucos passos separavam os dois reis, e Clóvis também atacava com imensa ferocidade, apesar dos cortes nas pernas e nos braços. Guerreiros afoitos tentavam a todo custo matar o rei dos Francos. Quem conseguisse teria fama e riquezas. Todos tinham as carnes e os ossos trespassados pelo aço.

Ao longe era possível ouvir os uivos desesperados daquelas que acabaram de se tornar viúvas. Outras simplesmente recolhiam suas trouxas e partiam em um luto estampado nas posturas curvadas.

– Teodorico! – Clóvis ofegava. – Vá ajudar Abellio. Ele está cercado. Anda!

O filho assentiu e cavalgou com dez homens, abrindo espaço em meio ao exército fragmentado dos visigodos, os cavalos pisoteando e mordendo.

Clóvis enxugou o suor da testa. Podia ver claramente os olhos de Alarico, que, apesar de estar em desvantagem, não esmorecia. Ele era um guerreiro valoroso, era o coração do exército.

E se o coração parasse de pulsar, todo o resto morreria.

– Por São Denis! – Clóvis ergueu sua espada e avançou contra Alarico, que, ao ver seu inimigo, rosnou e investiu em sua direção, derrubando todos aqueles que ousavam ficar no caminho do seu grande cavalo de batalha. Sua guarda tentou segui-lo, mas foi envolvida pela massa de Francos.

Os dois reis trocaram golpes até que Alarico socou o rosto de Clóvis, fazendo um dente voar e ele se desequilibrar. O franco segurou o braço do visigodo e ambos caíram das montarias. Ao redor deles, a batalha cessou, e os homens dos dois exércitos passaram a assistir à luta lado a lado, numa quase trégua gerada pela curiosidade. Uns até desabaram no chão, sentando-se, tamanho o cansaço.

Clóvis e Alarico se levantaram rapidamente e, por um tempo, apenas se encararam, os semblantes tensos, as pernas e braços pesados. Havia muito em jogo, mas naquele momento eles apenas pensavam em se manter vivos.

O rei dos Francos cuspiu sangue e firmou as botas no chão enlameado. O outro pegou o escudo de um morto e preparou-se. Sobre suas cabeças um falcão pairava. Para ele, a guerra pouco importava: havia avistado um ratinho do campo que saíra correndo da sua toca pisoteada e se enfurnara debaixo do gorro de um velhote morto. Assim que a bagunça diminuísse, ele desceria num voo rasante e se fartaria com as carnes macias do roedor.

Então o duelo recomeçou.

*

– Segurem com força! – Vovó olhou para Gailavira e eu enquanto esquentava a lâmina de um facão no braseiro até o metal se tornar incandescente. – Dê um pouco de vinho para ele.

A criada trouxe um jarro com a bebida e o soldado a tomou toda em quatro longos goles. Arrotou.

– Pronto? – vovó perguntou, e ele assentiu com a cabeça. Retirei as bandagens improvisadas e o sangue escorreu por onde deveria estar a sua mão esquerda, decepada por uma machadada precisa. Tive de respirar fundo para não vomitar.

O metal se encostou à carne, que chiou e fumegou. Ele fez uma careta horrenda e gemeu, mas não gritou e tampouco tentou puxar o braço. Desmaiou ao final e foi carregado até a minha cama pelos amigos, também feridos, mas ainda com condições de fazer algum esforço.

Vovó estava exausta. Tratar de todos aqueles homens era cansativo, ainda mais na sua idade. Contudo, suas artes de cura eram indispensáveis naquele momento. De tempos em tempos ela rezava aos antigos deuses para ter forças para ajudar aquela gente.

– Nós vamos perder essa guerra. – Eurico aprumou-se na cadeira e a sua cabeça latejou. – Clóvis trouxe muitos homens, fez muitas alianças e...

Parou e soltou uma golfada de vômito amarelo.

– Já não importa mais. – Gailavira segurou as mãos calejadas do marido. – Você está em casa.

– Abra a porta! – Três pancadas fortes na madeira deixaram os homens sobressaltados. – Agora!

Minha avó limpou as mãos no vestido e tomou a dianteira, a cabeça erguida e a postura ereta, apesar do peso dos anos. Pediu que a ajudassem com a pesada trava de madeira. Assim que abriu a porta, foi empurrada com violência e caiu no chão, batendo a nuca com força num baque seco, quase um estalo.

Homens com armas em punho invadiram o salão.

E o massacre começou.

*

– Ele está morto? Alarico está morto? – Geberic estava exausto, assim como os homens ao seu lado. Eles haviam acabado de rechaçar uma onda de camponeses inimigos que tentara matá-los.

– Sim, senhor. – O jovem que trouxe a mensagem tinha o braço esquerdo pendente ao lado do corpo e um talho logo abaixo do ombro. – Clóvis o matou.

– Merda... – O comandante cuspiu.

Beremud, coberto de sangue, ainda golpeava aqueles que ousavam se aproximar.

– Alarico morreu. – Geberic matou dois antes de se aproximar do amigo. Seu braço formigava e ele já não sentia o punho da espada entre os dedos.

– Então eu vou segui-lo até o outro mundo. – O guerreiro sorriu, a boca inchada, os beiços rasgados. – Um dia nos reencontraremos, Geberic.

Ele berrou e avançou contra uma nova leva de inimigos que se aproximava. Matou três antes de ser espetado na barriga por uma lança. Tombou de joelhos e logo começaram a saqueá-lo: botas, facas, moedas e até mesmo um pedaço de toucinho defumado foram levados por mãos ávidas.

– Senhor, vamos embora! – O cavalariço trouxe uma égua para Geberic.

Muitos do exército de Alarico fugiam ao descobrir a morte do seu rei. Do outro lado, muitos Francos comemoravam, deixando de lado a matança.

– Pode ir. – Geberic encarou os olhos suplicantes do jovem. – Vá e cuide da sua família.

– Mas senhor...

– Vá agora, enquanto há tempo. – Geberic tirou uma bolsinha de couro do cinto, cheia de moedas e joias, e a entregou ao cavalariço. – Obrigado por tudo.

O comandante se virou respirou fundo e fez suas últimas orações. Seu senhor estava morto, a batalha estava perdida, mas enquanto houvesse sangue nas suas veias ele lutaria. Quanto mais cicatrizes deixasse no exército de Clóvis, melhores as chances de Gesaleico, filho de Alarico II, reverter a situação.

Geberic reuniu os homens próximos que ainda estavam dispostos a lutar, uns cinquenta, alguns deles feridos. Colocou a espada na bainha e pegou o escudo e a lança de um morto, sendo seguido pelos demais. Uniram-se lado a lado e avançaram, entoando uma antiga canção:

Martele o ferro e este se torna espada

Faça um escudo de uma boa madeira

Amarre bem as sandálias e vá pela estrada

Siga em frente rumo à jornada derradeira

O inimigo espera irrequieto e ansioso

Farejando o medo do soldado temeroso

Que pede aos deuses um pouco de sorte

Para lutar bravamente e adiar sua morte

Os homens de Clóvis também se prepararam e aqueles que comemoravam empunharam as armas para o último embate. E, quando ambos os lados podiam sentir os hálitos podres e o fedor do sangue seco e do suor, houve a pancada, som de metal contra metal, da madeira estalando e dos ossos sendo partidos.

A melodia da morte voltou ao campo de batalha.

*

Eu chorava.

Vovó não aguentou a pancada na nuca ao cair e morreu depois de estrebuchar com os olhos virados e a boca espumando. Enxuguei as lágrimas e vi os homens de Clóvis acabarem de matar todos os sobreviventes, tal como se fossem porcos sangrados pelas lâminas frias.

Somente a criada, Gailavira e eu fomos poupadas.

– Veja só que belezinhas! – Um deles se agachou ao lado de Gailavira que tinha o marido morto nos braços. – São belas recompensas pela nossa vitória, não acha, Dagoberto?

Um grandalhão de nariz torto assentiu e escarrou.

A minha amiga tremeu quando teve o rosto acariciado. Mas logo se recompôs e cuspiu na cara do homem, que retribuiu com um tabefe com as costas da mão enluvada, fazendo um filete de sangue escorrer pelo canto da sua boca, que inchou de imediato.

– Desculpe, querida, eu me exaltei. – Ele tirou a luva e limpou o sangue dos lábios dela.. – Fui rude e...

Gailavira tentou mordê-lo, mas ele foi mais rápido: puxou a mão no último instante.

– A cadelinha morde! – riu. – Mas eu sei como cuidar de cadelas bravas.

Ele a pegou pelo pulso e arrastou-a até a cama no outro aposento. A nossa criada tentou ajudá-la, mas os homens a contiveram, rasgando suas roupas e fazendo fila para desfrutar dela.

A minha dor pela morte da vovó se transformou em ódio e a fúria dominou o meu espírito. Peguei uma faca caída no chão e avancei o mais rápido que pude. O primeiro homem tombou quando furei o seu pescoço. O sangue esguichou, pulsante, salpicando de vermelho os seus companheiros ainda absortos. O segundo desgraçado me encarou com os olhos arregalados assim que cravei a lâmina na sua boca aberta quase sem dentes.

Antes de conseguir puxar a faca, levei uma pancada na cabeça e vi tudo rodar.

Tudo ficar escuro.

.

.

.

Fedor.

Dor.

Grunhidos.

Silêncio.

Abri um dos olhos. O outro estava inchado demais, o que turvava a minha visão.

Tentei me sentar, senti uma pontada nas costelas e me dobrei de dor.

Pisquei e, ao respirar fundo, inalei fumaça. O grande salão estava em chamas, o calor quase insuportável.

Vi Gailavira morta, a criada também, e comecei a chorar e a tossir enquanto me arrastava para fora, a dor nas costelas me açoitando, os braços e pernas tremendo quase sem força. Saí, e logo depois o teto desabou, lançando ao ar lascas e brasas que feriram ainda mais as minhas pernas cheias de marcas arroxeadas.

– Vovó... – Meus olhos ardiam. – Malditos! Eu os amaldiçoo.

Eu estava nua e sangrava muito, inclusive na minha intimidade até aquele dia intocada. Vi marcas de mordidas em meus seios e barriga, senti dor, senti raiva e nojo. Odiei-me por ser tão impotente e não ter conseguido me defender.

– Malditos – tentei gritar, mas a minha voz saiu em um sussurro rouco.

Meu corpo estava muito machucado, contudo meu espírito estava destroçado.

– Por que ainda estou viva? – A minha garganta queimava por causa da fumaça aspirada.

Coloquei-me de joelhos, usando minhas últimas forças, lutando contra a dor e a vontade de fechar os olhos e ficar imóvel para sempre. Peguei um pedaço de madeira afilado tal como uma estaca e apertei-o com as mãos. Olhei para o céu azul-escuro, salpicado com as primeiras estrelas da noite.

Lindo.

Perfeito.

Imenso.

– Eu não quero mais... – Estoquei contra o meu próprio estômago e, quando a ponta se encontrava a menos de um dedo da minha pele, o tempo parou.

O vento já não soprava.

As chamas não crepitavam.

E até mesmo meu corpo estava imóvel. Somente a minha mente e os meus olhos se mantinham ativos.

Então, uma densa escuridão me envolveu, fria, vazia e profundamente triste.

Tão triste que senti como se o meu coração congelasse.

Na minha mente vi a vovó, Gailavira, a criada e todos os homens mortos. Vi vários bastardos sobre o meu corpo inerte, arfando e babando. Senti o fedor deles e a dor das estocadas violentas. Tive ânsia. Tudo era tão real, tão vívido como se estivesse acontecendo naquele exato momento.

– Amalina, a dor... – Uma voz ecoou na minha cabeça, tão intensa que quase desmaiei. – Não sofrerá mais. Basta aceitar o meu presente.

Eu estava ofegante como se todo o ar tivesse sido sugado dos meus pulmões.

E me sentia oca.

– Você nunca mais sentirá medo. – Uma bela mulher de cabelos claros, quase brancos, aproximou-se lentamente e, com um simples gesto da mão, pôs-me de pé. – Você nunca mais se prostrará de joelhos para alguém. E nenhum homem terá força para subjugá-la. Você será uma deusa das trevas.

– Eu não entendo. – Eu estava confusa. Falava com ela sem emitir nenhum som, sem mexer meus lábios. – Quem é você?

– Syn é o meu nome – a mulher sibilou. – Há tempos os povos do norte, seus ancestrais, me adoravam, vinham até mim para conhecer os segredos da magia e do outro mundo. Clamavam meu nome para pedir proteção e iluminar seus caminhos. Mas a cada dia que se passa, tal como Sága previu, faço parte de uma casta de deuses que logo será esquecida.

– Você é uma deusa? – Senti o meu corpo estremecer, apesar de ainda não conseguir me mover.

– Sim, Amalina, eu sou. – Syn sorriu, e agora sua voz era terna. – E, antes de partir para o meu retiro eterno, posso lhe dar um pouco do meu poder. Posso tirar a morte do seu espírito e do seu corpo e fazê-la viver para sempre.

– Viver para sempre?

– Nem a doença, nem o tempo irão afetar você. – A deusa me beijou e o meu corpo começou a se aquecer. – Basta nutrir a sua carne com o sangue dos homens e a sua alma com a dor daqueles que fazem o mal.

Aos poucos retomei o controle do meu corpo e consegui abraçá-la. O nosso beijo se prolongou, e eu me sentia cada vez mais leve, como se todos os meus ferimentos estivessem sendo curados. Eu a sentia dentro de mim como se nossas almas estivessem unidas. E a minha pele formigava.

– Não poderá mais andar sob o Sol, pois serão as sombras que lhe trarão força e nas sombras você reinará. – Syn sugava a minha língua, o que me deixou eufórica, feliz. – Não mais nos veremos, não em breve, mas o meu cerne viverá em você. Aceita esse presente, Amalina?

Ela me afastou delicadamente e me encarou. Vi que seus lábios estavam vermelhos como rosas na primavera, assim como deviam estar os meus depois de tão intenso beijo. Eu já não sentia mais dor, e mesmo o ódio no meu coração esmoreceu. Era como se a minha carne e o meu espírito tivessem sido reconstruídos.

– Eu aceito o seu presente, minha deusa.

Syn sorriu, gargalhou, mas logo se recompôs.

– Fique bem, jovem Amalina. – A deusa me abraçou ternamente. – Não permita que o mal e a injustiça reinem. Você agora tem o meu poder, guarde e vigie quem merece, e viva pelos milênios até o momento do nosso reencontro.

A deusa se afastou lentamente e sumiu.

Eu permaneci sob as estrelas, meu corpo completamente curado e o meu espírito forte como nunca antes estivera. A noite parecia dia à frente dos meus olhos e eu podia distinguir perfeitamente cada som. Mesmo o bater das asas de uma mariposa que sobrevoava o salão em chamas era totalmente perceptível aos meus ouvidos.

Eu havia mudado.

O cãozinho sujo de fuligem correu até mim. Peguei-o no colo e ele me lambeu o rosto, o rabinho fino balançando.

– Agora somos somente nós dois – afaguei o seu focinho úmido.

Coloquei-o no chão assim que ouvi passos, pisadas pesadas na grama. Ele, como se entendesse o que eu desejava, correu e se enfiou atrás de um monte de feno. Permaneceu quietinho.

– Olha só o que o temos aqui, Castor! – um soldado magricela e muito alto falou para o companheiro dentuço. – Acho que o Chefe se enganou, nem todos morreram. Viemos atrás de restos, mas encontramos algo muito melhor.

– Deliciosa – Castor babava pelo canto da boca enquanto lambia os beiços.

– Estou louco para passar a minha espada em carnes rosadas! – O magricela veio até mim e apertou meus seios. – Não vai reagir? Gostou de mim?

Senti imensa sede, como se não bebesse nada há dias. E algo mudou na minha boca: minhas presas cresceram e começaram a roçar na minha língua.

O soldado começou a me lamber, o hálito rançoso de vinho ruim. Permiti que ele continuasse, pois somente as veias pulsantes do seu pescoço suarento me interessavam.

– Ela quer foder conosco. Que cadela! – Castor começou a tirar a roupa enquanto observava o outro me lambuzar com a sua baba.

– Ela gosta disso – o magricela soltou o cinto com a espada e, quando veio me beijar, mordi o seu pescoço. Ele gritou de dor, e o sangue esguichando na minha boca me extasiou. Era maravilhoso. E, quanto mais ele sofria e tentava se desvencilhar, mais eu desfrutava e me sentia bem. Nunca havia vivido tão intensas sensações.

Lembrei-me das palavras de Syn:

Nem a doença, nem o tempo irão afetar você. Basta nutrir a sua carne com o sangue dos homens e a sua alma com a dor daqueles que fazem o mal.

O sangue preenchia as minhas veias, a dor alegrava o meu espírito.

Castor ficou imóvel, os olhos esbugalhados e a boca entreaberta exibindo os dentões tortos. Drenei todo o sangue do magricela e soltei-o. Ele desabou no chão e morreu logo em seguida, quando o seu coração parou.

Encarei o outro.

– Proteja-me, São Denis! – Pegou a sua espada e foi se afastando, pelado, tremendo como o mato ao vento.

Avancei e ele atacou, fazendo um corte feio no meu braço. Doeu demais, mas num piscar de olhos o ferimento se curou.

Ele gritou, eu sorri.

Castor estocou, segurei o seu pulso, e com um aperto forte senti seus ossos se partirem. Ele guinchou, eu me deliciei e dei a ele o mesmo fim do amigo: jaziam no chão, duas carcaças secas e com os semblantes aterrorizados.

Começou a chover e a trovejar, os raios azulados iluminando a noite. Num desses clarões vi o rosto de Syn, terrivelmente lindo.

A água limpou todas as imundícies do meu corpo, a morte daqueles dois fortaleceu-me, extasiou-me. Senti vontade de correr. E corri como o vento. Primeiro rodeei o salão em chamas cujas últimas paredes acabavam de desabar, depois corri até o Loire, mergulhando em suas águas frias, mas que não me causavam qualquer incômodo.

Eu estava feliz.

Eu havia renascido. A Amalina frágil e temerosa não existia mais e, apesar de não compreender a plenitude dos meus poderes, eu sabia que a minha força era imensa.

Voltei aos escombros. A chuva apagara o incêndio, restando somente poucas brasas e muita fumaça. Fiz uma prece pela alma das minhas queridas que haviam sido mortas.

– Que vocês encontrem o caminho até o outro mundo – olhei para o céu e logo a chuva parou, como se os antigos deuses tivessem aceitado o meu pedido.

Assoviei e o cãozinho apareceu.

– Você precisa de um nome. – Afaguei a sua barriga inchada de tantos vermes. – Que tal Vigia?

Ele latiu.

– Então, Vigia – peguei-o no colo. – Você será o meu companheiro de jornada e vai zelar por mim enquanto eu descansar.

O cãozinho me lambeu o nariz.

– Mas, antes que essa noite acabe, ainda preciso realizar a minha vingança.

Farejei o ar, tal como um cão faria, e senti um sutil aroma de carne assada trazido pelo vento. Lá devia ser o acampamento daqueles que destruíram as vidas daquelas que eu amava. Lá estariam os bastardos covardes, provavelmente barbarizando outras criadas e meninas.

Para lá eu corri e, quando vi o brilho do fogo em outra fazenda invadida, rosnei.

A batalha que decidiu os rumos do que veio a se tornar a França havia acabado.

O sofrimento daqueles que subjugaram os indefesos logo começaria.

Gargalhei.

 

 

                                                   Eduardo Kasse         

 

 

 

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