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Series & Trilogias Literarias
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
43
ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
43
ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
43
ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
43
ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
43
ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
43
ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
27
POINTE MANGIN, SAINT-BARTHÉLEMY
Reuniram-se na sala de estar exterior da mansão e esparramaram-se nos divãs de lona e nas cadeiras de verga. Dina fez a primeira cafeteira de café, enquanto Lavon colou um mapa da ilha na parede. Gabriel fitou-o bastante tempo em silêncio.
Quando falou, disse uma única palavra:
— Zwaiter. — Depois olhou para Lavon. — Lembra de Zwaiter, Eli?
Lavon ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. É claro que se recordava de Zwaiter. Chefe do Setembro Negro em Itália. O primeiro a morrer por Munique. Gabriel quase podia vê-lo, um inteletual magrinho de paletó xadrez cruzando a Piazza Annibaliano em Roma, com uma garrafa de aguardente de figo numa mão e um exemplar de As Mil e Uma Noites na outra.
— Por quanto tempo o vigiou, Eli? Duas semanas?
— Quase três...
— Diga o que descobriu sobre Wadal Zwaiter antes de sequer pensarmos em matá-lo.
— Que todas as noites passava pelo mesmo mercado. Que ia sempre ao Bar Trieste fazer telefonemas e que entrava sempre no seu prédio pela entrada C. Que as luzes do hall funcionavam com um temporizador e que ficava sempre no escuro por alguns momentos, à procura de uma moeda de dez liras para fazer trabalhar o elevador. Foi onde o eliminaste, não foi, Gabriel? Na frente do elevador?
— Desculpe, o senhor é Wadal Zvaiter?
— Não! Por favor, não!
— E depois desapareceu — prosseguiu Lavon. — Dois carros de fuga. Uma equipe para cobrir a rota. De manhã estavas na Suíça. Shamron disse que tinha sido como apagar um fósforo.
— Controlamos todos os detalhes. Escolhemos a data e o local da execução e planejamos até o mais ínfimo detalhe. Nessa noite fizemos tudo bem. Mas não podemos fazer nada disso nesta ilha. Gabriel olhou para o mapa. — Trabalhamos melhor em cidades, não em sítios como este.
— Talvez seja verdade — comentou Dina —, mas não pode deixá-lo sair desta ilha vivo.
— Por que não?
— Porque ele tem os recursos de um bilionário à disposição. Porque pode fugir para o Najd a qualquer momento e nunca mais o veremos.
— Há formas corretas e formas erradas de fazer este tipo de coisas. Esta é definitivamente a forma errada.
— Não tenha medo de apertar o gatilho pelo que aconteceu na Gare de Lyon, Gabriel.
— Isto não tem nada que ver com Paris. Temos um alvo profissional. Um pequeno campo de batalha. Uma rota de fuga perigosa. E uma variável imprevisível chamada Sarah Bancroft. Continuo?
— Mas a Dina tem razão — insistiu Yossi. — Temos de o fazer agora. Talvez nunca mais voltemos a ter outra oportunidade.
— O Décimo Primeiro Mandamento. Não serás apanhado. Essa é a nossa responsabilidade máxima. Tudo o resto é secundário.
— Viste-o hoje a bordo do iate de Zizi? — perguntou Rimona. Queres ver outra vez a gravação? Viste a cara dele quando saiu? Julgas que estiveram a falar do quê, Gabriel? De investimentos? Ele tentou matar o meu tio. Ele tem de morrer.
— E o que fazemos quanto à mulher? — indagou Yossi.
— É cúmplice — ofereceu Lavon. — É óbvio que faz parte da rede. Por que será a voz dela a única que ouvimos? Não achará estranho que o marido nunca atenda o telefone?
— E então, matamo-la?
— Se não matarmos, não saímos desta ilha.
Dina sugeriu que se procedesse a uma votação. Yaakov abanou a cabeça.
— Caso não tenham percebido, isto não é uma democracia. Gabriel olhou para Lavon. Sustiveram o olhar um do outro por um instante, ao que Lavon fechou os olhos e aquiesceu uma única vez.
Não dormiram nessa noite. Pela manhã, Yossi alugou um segundo Suzuki Vitara com tração às quatro rodas, enquanto Yaakov e Rimona alugavam motos Piaggio. Oded e Mordecai dirigiram-se a uma loja de produtos náuticos em Gustavia e adquiriram dois barcos de borracha com motores de fora de borda. Dina passou boa parte do dia a telefonar para os restaurantes mais elegantes, a tentar reservar mesa para trinta. À uma e meia ficou a saber que o Le Tetou, um restaurante da moda de Saint-Jean, já fora reservado para uma festa privada e não estaria aberto ao público nessa noite.
Gabriel foi até Saint-Jean ver por si próprio. O restaurante era uma estrutura a céu aberto, com faixas de tecido colorido penduradas do teto e música de dança ensurdecedora a sair das colunas. Uma dúzia de mesas estava debaixo de um abrigo pontiagudo de madeira, e várias outras encontravam-se espalhadas ao longo da praia. Havia um pequeno bar e, como inúmeros outros restaurantes por toda a ilha, uma loja de roupa que vendia artigos femininos para a praia a preços exorbitantes. O período de almoço estava no auge e garotas descalças vestidas apenas com biquínis e saídas-de-praia que lhes davam pelo tornozelo corriam de mesa em mesa, distribuindo comida e bebida. Um modelo de fatos de banho de ar felino saiu da loja e posou para ele. Quando Gabriel não deu sinais de aprovação, a garota franziu a sobrancelha e avançou para uma mesa de americanos bem bebidos, que ulularam a sua concordância.
Gabriel foi até o bar e pediu um copo de rose, que levou até a loja de roupa. Os gabinetes de provas e as casas de banho ficavam numa passagem estreita, ao fim da qual se encontrava o estacionamento. Deixou-se ficar ali de pé por um momento, a visualizar movimentos, a calcular tempo. Depois engoliu metade do rose e saiu.
Era perfeito, pensou. Mas havia um problema. Retirar Sarah de uma mesa estava fora de questão. Os guarda-costas de Zizi estavam bem armados e eram todos antigos agentes da Guarda Nacional Saudita.
Para conseguirem retirar Sarah sem contratempos, seria necessário que ela estivesse num gabinete de provas a uma hora específica. E para o conseguirem, teriam de fazer-lhe chegar uma mensagem. Enquanto se afastava na moto, Gabriel telefonou a Lavon na mansão e perguntou-lhe se ela estava na ilha. O restaurante em Saline não tinha vista para o mar, apenas para as dunas e para um vasto paul salgado, rodeado por colinas de vegetação rasteira. Sarah estava sentada na varanda à sombra, os dedos a agarrar o pé de um copo de vinho cheio de rose gelado. Ao seu lado estava Nadia, a mulher islâmica moderna, que avançava para o terceiro daiquiri e melhorava de humor a cada segundo que passava. No lado oposto da mesa, Monique e Jean-Michel discutiam em silêncio. Os olhos do francês estavam ocultos por trás de um par de óculos de sol de fita elástica, mas Sarah podia ver que o galês observava o casal jovem que acabara de chegar de moto e subia ruidosamente a escada de acesso à varanda.
O homem era alto e magro, e vestia calções de banho até o joelho, chinelos de enfiar no dedo e uma camisola de algodão. O sotaque inglês denotava uma educação tipicamente britânica, e o mesmo se passava com o modo arrogante como inquiriu pela disponibilidade de mesa. A pronúncia da jovem era de algures do Centro da Europa. A parte de cima do biquini estava ainda molhada e colava-se sugestivamente a um par de generosos seios bronzeados. Perguntou à empregada onde ficava a casa de banho, com um tom de voz alto o suficiente para que Sarah e todos os outros presentes no restaurante a ouvissem. Depois susteve calmamente o olhar de Jean-Michel quando passou ao lado da mesa, a saída-de-praia esmeralda a esvoaçar de um par de ancas largas.
Nadia sugou mais um pouco de daiquiri, enquanto Monique olhava furiosa para Jean-Michel, como se desconfiasse que o seu interesse pela garota ia mais além do profissional. Quando a jovem surgiu, dois minutos mais tarde, mexia no cabelo e abanava-se com um ritmo provocador ao som da música reggae que vinha da aparelhagem atrás do bar. Regras do Escritório, pensou Sarah. Quando a operação decorre em locais públicos como bares e restaurantes, não se fica sossegado a um canto, nem se lê uma revista. Isso apenas faz com que pareçamos um espião. Chamamos a atenção para nós próprios. Namoriscamos. Falamos alto. bebemos em excesso. Uma discussão cai sempre bem. Mas Sarah reparou em algo que tinha certeza passara despercebido a Jean-Michel. Rimona não trazia brincos, o que significava que tinha deixado uma mensagem para Sarah na casa de banho.
Sarah observou Rimona sentar-se ao lado de Yossi e repreendê-lo por não ter uma bebida à sua espera. Uma coluna de nuvens aproximava-se sobre as dunas e o vento súbito agitou as ervas do paul.
— Parece que vem aí uma grande tempestade — comentou Jean-Michel, ao que pediu uma terceira garrafa de rose para ajudar a suportá-la. Nadia acendeu um Virgina Slims e passou o maço a Monique, que a imitou. Sarah virou-se para observar a borrasca que aí vinha. Entretanto, pensava nas horas e interrogava-se quanto tempo deveria esperar antes de se dirigir à casa de banho. E questionava-se sobre o que poderia lá encontrar.
Cinco minutos depois, as nuvens abriram-se e uma rajada de vento lançou chuva contra as costas de Sarah. Jean-Michel fez sinal à empregada e pediu-lhe que baixasse o abrigo. Sarah levantou-se, agarrou na mala de praia e fez menção de se dirigir às traseiras do restaurante.
— Onde vai? — perguntou Jean-Michel.
— Já vamos na terceira garrafa de vinho. Onde julga que vou? galês levantou-se de repente e seguiu-a.
— É muito gentil de sua parte, mas não preciso de ajuda. Já faço isto sozinha desde pequena.
Segurou-lhe no braço e levou-a à casa de banho. A porta estava entreaberta. Jean-Michel abriu-a, deu uma vista de olhos rápida, depois afastou-se e permitiu-lhe a entrada. Sarah fechou a porta, trancou-a e depois baixou o tampo do vaso com força, para que se ouvisse lá fora.
Há vários sítios onde gostamos de esconder coisas, explicara-lhe Gabriel.
Colado com fita adesiva ao interior do reservatório do autoclismo, ou escondido na caixa de toalhetes. Os caixotes do lixo são sempre bons, especialmente se tiverem tampa. Gostamos de esconder mensagens dentro de caixas de tampões, pois descobrimos que os árabes, mesmo profissionais, se sentem enojados por tocar-lhes.
Olhou embaixo da pia, viu uma lixeira de alumínio e levou o pé ao pedal. Quando a tampa se levantou, viu a caixa, parcialmente oculta por toalhas de papel. Estendeu a mão e retirou o objeto do balde do lixo. Leia depressa a mensagem, avisara Gabriel. Confie na memória. Nunca, mas nunca, leve a mensagem com você. Gostamos de usar papel de nitrocelulose, por isso, se tiver isqueiro ou fósforos, ponha fogo dentro da pia e a folha desaparece. Caso contrário, jogue no vaso. Na pior das hipóteses, volte a guardá-la na caixa e deixe-a no lixo. Depois de sair, nós levamo-la. Sarah procurou no saco de praia e viu que tinha uma carteira de fósforos. Fez menção de os tirar, mas decidiu que não tinha coragem, por isso rasgou a mensagem em pedacinhos e deitou-os para o vaso. Deixou-se ficar à frente do espelho por alguns momentos e observou o rosto, enquanto deixava a água correr para o lavatório.
É Sarah Bancroft, disse a si mesma. Não conhece a mulher que deixou a caixa no lixo. Nunca a tinha visto.
Fechou as torneiras e voltou à varanda. A chuva corria agora em ondas para as sarjetas. Yossi devolvia ruidosamente uma garrafa de Sancerre; Rimona analisava o menu como se a considerasse de fraco interesse. E Jean-Michel observava-a a atravessar a sala como se a visse pela primeira vez. Sentou-se e olhou para a tempestade que percorria o paul, sabendo que rapidamente terminaria. Vais jantar ao Le Tetou, dissera a mensagem. Quando nos vires, finge que estás maldisposta e vai à casa de banho. Não te preocupes se enviarem um guarda-costas. Nós tratamos dele. Agora só precisavam do convidado de honra. Não o viram durante grande parte do dia. Gabriel receou que Bin Shafiq pudesse ter saído sem ser detectado, e chegou a considerar a hipótese de telefonar para a mansão, para garantir que ainda estava ocupada. Mas às onze e meia viram-no sair para o terraço, onde, após as habituais braçadas vigorosas, passou uma hora ao sol.
Ao meio-dia e meia voltou a entrar e, minutos depois, o Cabriolet branco desceu o acesso à casa com a capota em baixo e a mulher ao volante. Dirigiu-se a uma charcutaria na aldeia de Lorient, passou dez minutos no interior da loja, e depois regressou à mansão em Pointe Milou, para um almoço ao ar livre. Às três horas, quando a tempestade rebentava sobre a costa, o Cabriolet voltou a sair, desta vez com Bin Shafiq ao volante. Lavon partiu atrás dele numa das scooters recentemente adquiridas, com Mordecai e Oded a servirem de apoio. Depressa se tornou óbvio que o saudita procurava sinais de vigilância, pois abandonou as estradas congestionadas da costa norte da ilha, dirigindo-se para a zona oriental menos desenvolvida. Acelerou ao longo da costa rochosa de Toiny, depois virou para o interior e atravessou uma série de aldeolas nas colinas verdes do Grand Fond. Fez uma pausa de alguns segundos no cruzamento para Lorient, o suficiente para que Mordecai o tivesse de ultrapassar. Dois minutos depois, no cruzamento com a estrada para Saint-Jean, voltou a proceder da mesma forma. Desta vez foi Oded quem teve de abandonar a perseguição.
Lavon estava convencido de que o destino de Shafiq era Gustavia. Entrou na cidade por uma rota diferente e aguardava no Hotel Carl Gustav quando o Cabriolet surgiu, vindo de Lurin. O saudita estacionou no porto. Dez minutos depois, após ter voltado a confirmar que não era seguido, desta vez a pé, juntou-se a Wazir bin Talai num café à beira de água. Lavon comeu sushi num restaurante ao fundo da rua e esperou pelos dois homens. Uma hora depois voltava à mansão, onde disse a Gabriel que tinham um problema. — Por que foi encontrar Bin Talai? Ele pertence à segurança... à segurança de Zizi. Temos de considerar a hipótese de que Sarah foi descoberta. Há vários dias que trabalhamos muito de perto. A ilha é pequena. Somos todos profissionais, mas... — Lavon calou-se.
— Mas o quê?
— Os rapazes de Zizi também são. E o mesmo se pode dizer de Bin Shafiq. Esta tarde dirigia como se soubesse que era seguido.
— É o procedimento normal — justificou Gabriel, fazendo o papel de advogado do diabo sem grande entusiasmo.
— É possível ver a diferença entre alguém que faz isso por rotina e alguém que acha que está sendo seguido. Acho que Bin Shafiq sabe que está sendo vigiado.
— Nesse caso, o que sugeres, Eli? Devemos cancelar a operação?
— Não — disse Lavon. — Mas se esta noite apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja com Sarah.
Dez minutos depois. A luz verde. O sinal de discagem. O som de um número sendo teclado.
— La Terraça.
— Gostaria de fazer uma reserva para esta noite, por favor.
— Para quantas pessoas?
— Duas.
— A que horas?
— As nove.
— Importa-se de aguardar um momento enquanto confirmo a disponibilidade?
— Claro que não.
— Pode ser às nove e quinze?
— Sim, claro.
— Muito bem, reserva para duas pessoas, às nove e quinze. Seu nome, por favor?
— Al-Nasser. Merci, Madame. Au revoir.
Clique. Gabriel acercou-se do mapa.
— O La Terrazza fica aqui — disse, batendo com o dedo nas colinas em frentes a Saint-Jean. — Só precisam de sair de casa às nove.
— A menos que tenham de ir a algum lado antes — recordou Lavon.
— O jantar de Zizi começa às oito. Isso dá-nos quase uma hora antes de termos de posicionar a Sarah para ser extraída. — A menos que Zizi se atrase — comentou Lavon.
Gabriel dirigiu-se à janela e olhou para o outro lado da enseada. O tempo melhorara e o pôr do Sol aproximava-se. O mar começava a escurecer e acendiam-se luzes nas colinas.
— Vamos abatê-los ria mansão... dentro da casa, ou atrás dos muros da estrada de acesso.
— A. eles? — indagou Lavon.
— É a única maneira de conseguirmos sair da ilha — explicou Gabriel. — A mulher também terá de morrer.
28
PORTO GUSTAVIA, SAINT-BARTHÉLEMY
Nas duas horas que se seguiram à declaração de Gabriel, teve lugar um movimento de pessoal e de material discreto, que em grande medida passou despercebido à população dócil da ilha. Sarah apenas testemunhou um elemento dos preparativos, pois estava sentada na sua coberta privada, enrolada no roupão branco de veludo, quando o Sun
Dancer iniciou a marcha e mergulhou na escuridão crescente. O vento da tarde esmorecera e apenas se sentia uma brisa quente que dançava por entre os iates fundeados. Sarah fechou os olhos. Doía-lhe a cabeça por causa do sol e tinha um gosto metálico na boca devido ao excesso de rose. Agarrou-se ao seu desconforto. Sempre era algo mais em que pensar, que não o que se avizinhava. Viu as horas no relógio Harry Winston que lhe fora dado pelo presidente e CEO da Jihad Limitada. Marcava sete e vinte. Estava quase livre.
Olhou na direção da ré do Alexandra e viu que o Sikorsky estava escuro e imóvel. Iriam para terra na lancha, com saída marcada para sete e quarenta e cinco, os preparativos a cargo de Hassan, o eficiente chefe do departamento de viagens de Zizi. E por favor, não se atrase, Miss Sarah, dissera Hassan. Zizi aconselhara que vestisse algo especial. O Le Tetou é o meu restaurante preferido da ilha, disse. Promete ser uma noite memorável.
Surgiu uma brisa e, no porto, ouviu-se o clamor de uma boia de sinalização. Voltou a olhar para o relógio e viu que eram sete e vinte e cinco. Permitiu-se imaginar o reencontro. Talvez fizessem uma refeição em família, como as que tinham partilhado na casa em Surrey que não existia. Ou talvez as circunstâncias não fossem adequadas a comida. Ansiava pelo seu abraço, qualquer que fosse o estado de espírito. Adorava-os. Adorava todos. Adorava-os pois todos os outros os odiavam. Adorava-os por serem uma ilha de sanidade cercada por um mar de fanáticos, e porque receava que as vagas da história os pudessem levar, e queria fazer parte deles, nem que por um único momento. Adorava a dor que ocultavam e a sua capacidade para sentirem alegria, a sua paixão pela vida e o desprezo que sentiam por aqueles que assassinavam inocentes. A sua vida estava ligada a um propósito e, para Sarah, cada um deles era um pequeno milagre. Pensou em Dina, a bela e marcada Dina, a última de seis filhos, um filho por cada milhão assassinado. Contara a Sarah que o pai fora o único elemento da família a sobreviver ao Holocausto. Depois de chegar a Israel, escolhera o nome Sarid, que em hebraico significa "o último", e chamou à filha que lhe restava Dina, que significa "vingada". Sou Dina Sarid, dissera. Sou a última vingada.
E esta noite, pensou Sarah, estaremos unidos.
Às sete e meia ainda não saíra da cadeira na coberta. O protelar tinha um objetivo. Queria ficar apenas com alguns minutos para se vestir, o que significaria menos tempo para dar algum sinal de que não pretendia voltar. Não tragas nada, dissera a mensagem de Rimona. Deixa o quarto desarrumado. E assim deixou-se ficar mais cinco minutos, até que se levantou e entrou na cabine. Deixou o roupão escorregar pelos ombros e cair no chão, e vestiu rapidamente cuecas e um sutiã. A roupa, um fato largo da cor do açafrão que Nadia lhe comprara nessa tarde em Gustavia, estava disposta em cima da cama por fazer. Vestiu-a depressa e foi até o toucador na casa de banho. Colocou a pulseira de ouro, mas deixou as outras joias que Zizi lhe dera em cima da bancada. Hesitou pela primeira vez ao decidir como se pentearia. Solto, ou apanhado? Decidiu mante-lo solto. Era o primeiro passo no regresso à sua vida antiga. Uma vida que Gabriel lhe dissera nunca mais poder ser a mesma.
Regressou ao quarto e deu uma última vista de olhos. Deixa o quarto desarrumado.
Missão cumprida. Não tragas nada. Nem mala, nem carteira, nada de cartões de crédito, nem de dinheiro. Mas quem precisava disso, fazendo parte do séquito de Zizi al-Bakari? Saiu para o corredor e fechou a porta, confirmando que não ficava trancada. Depois dirigiu-se para a ré, onde as lanchas aguardavam. Foi passada por Rafiq a Jean-Michel, e sentou-se entre os Abdul no compartimento de ré. Zizi estava à sua frente, ao lado de Nadia. Quando o barco se dirigiu à costa, olhavam-na atentamente na escuridão. — Devia ter colocado as pérolas, Sarah. Teriam combinado com o fato. Mas gosto de vê-la outra vez com o cabelo solto. Fica muito melhor assim. Nunca gostei de a ver de cabelo apanhado. — Olhou para Nadia. — Não achas que ela fica melhor de cabelo solto?
Mas, antes que Nadia tivesse oportunidade de responder, Hassan colocou um celular aberto na mão de Zizi e murmurou qualquer coisa em árabe que pareceu muito urgente. Sarah olhou para o porto, onde quatro Toyotas Land Cruisers pretos aguardavam no extremo do cais. Juntara-se um pequeno aglomerado de mirones, na esperança de avistar a celebridade que conseguia reunir uma caravana tão impressionante numa ilha tão pequena. A garota de cabelo escuro sentada a cinquenta metros de distância, ao abrigo de um belvedere, não se deixava incomodar pelo espetáculo da celebridade. A última vingada fitava o espaço, a mente a debater-se com assuntos mais prementes.
A praia em Saline, uma das únicas da ilha sem mansões nem hotéis, estava às escuras, salvo pelo brilho fosfóreo dos recifes ao luar. Mordecai levou o primeiro barco de borracha para terra às oito e cinco. Oded chegou dois minutos depois, a pilotar o seu próprio barco, e a rebocar um terceiro com uma corda de nylon. Às oito e dez fizeram sinal a Gabriel. A Equipa Saline estava em posição. A escotilha de emergência fora aberta.
Tal como era habitual, a praia de Saint-Jean demorara a esvaziar-se naquele fim de tarde, havendo ainda um punhado de almas resolutas sentadas na areia quando a noite começou a cair. No extremo da pista do aeroporto, perto de um sinal castigado pelos elementos que avisava da existência de aeronaves a baixa altitude, tinha lugar uma pequena festa. Eram quatro pessoas no total, três homens e uma jovem de cabelo escuro que chegara de scooter alguns momentos antes, vinda de Gustavia. Um deles trouxera cerveja Heineken, outro um pequeno leitor portátil de CD, que tocava agora uma música de Bob Marley. Os três homens preguiçavam, em vários níveis de descontração. Dois deles, um homem de aspeto duro e pele marcada pelas bexigas, e outro calmo, de olhos castanhos argutos e cabelo rebelde, fumavam cigarro atrás de cigarro por causa dos nervos. A garota dançava ao som da música, a blusa clara a brilhar suavemente ao luar.
Embora a sua atitude não o mostrasse, tinham escolhido a localização da festa com muito cuidado. Daí podiam controlar o trânsito na estrada de Gustavia, bem como a grande festa privada que tinha início a uns cem metros na praia, no restaurante Le Tetou. Às oito e meia, um dos homens, o duro de rosto marcado pelas bexigas, pareceu receber uma chamada no celular. Não era um telefone vulgar, mas sim um rádio de duas vias, capaz de enviar e de receber transmissões seguras. Momentos após ter desligado, ele e os outros dois homens levantaram-se e dirigiram-se ruidosamente à estrada, onde entraram para um Suzuki Vitara. A garota de branco deixou-se ficar na praia, a ouvir Bob Marley ao mesmo tempo que observava um pequeno avião privado que se aproximava da pista vindo das águas da baía. Olhou para o sinal marcado pelas intempéries: CUIDADO. AERONAVES EM BAIXA ALTITUDE. A jovem era rebelde por natureza e não lhe prestou atenção. Aumentou o volume da música e dançou com o avião a troar-lhe por cima da cabeça.
A praia da baía Marigot é pequena e rochosa e raramente utilizada, excepto pelos habitantes locais para guardarem os barcos. Há uma pequena beira mesmo ao lado da estrada marginal, com espaço para dois ou três carros e um lance de degraus de madeira periclitantes que vão dar à praia. Nessa noite, a beira estava ocupada por um par de motos Piaggio. Os donos estavam na praia escura, sentados no ventre de um barco a remos virado. Ambos tinham mochilas aos pés, e ambas as mochilas continham duas pistolas com silenciador. O homem mais jovem tinha duas Barak SP-21 de calibre .45. O mais velho preferia ar— mas mais pequenas e sempre fora adepto das armas italianas. As pistolas que tinha na mochila eram Beretta de 9 mm.
Ao contrário dos compatriotas em Saint-Jean, os dois homens não estavam a beber, nem a ouvir música, nem fingiam divertir-se. Ambos se encontravam em silêncio e respiravam lentamente para acalmar os corações acelerados. O homem mais velho observava o trânsito na estrada. O mais jovem contemplava as ondas calmas. Contudo, ambos imaginavam a cena que teria lugar dali a alguns minutos, na mansão do promontório. As oito e meia, o mais velho levou o rádio aos lábios e disse duas palavras:
— Vai, Dina.
A primeira a avistar a jovem foi Monique, a esposa de Jean-Michel. As bebidas tinham acabado de ser servidas. Zizi ordenara a todos que desfrutassem a refeição, pois seria o último dia em Saint-Barts. Sarah estava sentada no outro extremo da mesa, ao lado de Herr Wehrli. O banqueiro suíço comentava a sua admiração pelo trabalho de Ernst Ludwig Kirchner quando, pelo canto do olho, Sarah se apercebeu de Monique a desviar a cabeça angular e do movimento elástico do seu cabelo escuro.
— Lá está aquela garota — disse Monique, para ninguém em especial. — A que tinha uma cicatriz terrível na perna. Lembra dela, Sarah? Estava ontem, na praia de Saline. Graças a Deus hoje está de calça.
Sarah escusou-se delicadamente do banqueiro suíço e seguiu o olhar de Monique. A garota seguia pela beira da água, vestida com blusa branca e jeans de pernas enroladas até abaixo dos joelhos. Quando se aproximou do restaurante, um dos guarda-costas avançou e tentou impedir-lhe a passagem. Embora não conseguisse ouvir a conversa, Sarah pôde ver a jovem a reivindicar o seu direito a caminhar por uma extensão pública da praia, pesasse embora a festa privada de alta segurança que tinha lugar no Le Tetou. Regras do Escritório, pensou. Não tentem passar despercebidos. Façam por dar nas vistas.
O guarda-costas acabou por ceder e a garota afastou-se lentamente a coxear e desapareceu na escuridão. Sarah deixou que passassem mais alguns instantes. Depois inclinou-se sobre a mesa à frente de Monique e murmurou ao ouvido de Jean-Michel.
— Estou a ficar maldisposta.
— O que se passa?
— Demasiado vinho ao almoço. Quase vomitei na lancha.
— Quer ir à casa de banho?
— Pode levar-me, Jean-Michel? — Jean-Michel anuiu e levantou-se. — Espere — interveio Monique. — Eu vou com você. Jean-Michel abanou a cabeça, mas Monique ergueu-se repentinamente e ajudou Sarah a levantar-se. — A coitada não se sente bem — silvou-lhe em francês. — Precisa de uma mulher que trate dela.
Nesse momento, um Suzuki Vitara entrou no estacionamento do Le Tetou. Yossi estava ao volante. Yaakov e Lavon encontravam-se no banco de trás. Yaakov deixou a Beretta 9 mm pronta a fazer fogo, depois olhou para a passagem e esperou que Sarah aparecesse.
Sarah lançou um olhar por cima do ombro quando deixaram a praia e viu Zizi e Nadia a fitarem-na. Virou-se e olhou em frente. Tinha Jean-Michel à esquerda e Monique à direita. Cada um segurava-lhe um braço. Guiaram-na rapidamente pelo interior do restaurante e pela frente da loja de roupa. A passagem encontrava-se mergulhada nas sombras. Jean-Michel abriu a porta da casa de banho das senhoras e acendeu a luz, ao que lhe deu uma vista de olhos rápida e fez sinal a Sarah para que entrasse. A porta fechou-se. Muita força, pensou ela. Trancou-a e olhou-se ao espelho. O rosto que a fitava já não lhe pertencia. Poderia ter sido pintado por Max Beckmann ou por Edvard Munch. Ou talvez pelo avô de Gabriel, Viktor Frankel. Um retrato de uma mulher aterrorizada. Do outro lado da porta trancada, ouviu a voz de Monique a perguntar-lhe se estava bem. Sarah não respondeu. Segurou-se ao lavatório, fechou os olhos e aguardou.
— Raios me partam — murmurou Yaakov. — Por que ela trouxe o maldito kickboxer?
— Aguenta com ele? — perguntou Lavon.
— Acho que sim, mas se as coisas começarem a correr mal, dê-lhe um tiro na cabeça.
— Nunca dei um tiro em ninguém.
— É fácil — garantiu Yaakov. — Põe o dedo no gatilho e aperta.
Eram precisamente oito horas e trinta e dois minutos quando Gabriel subiu os degraus de madeira na praia da baía Marigot. Usava capacete de moto com visor escuro e, por baixo, microfone e receptor em miniatura. Tinha nas costas a mochila preta com as Berettas. Mikhail, logo atrás dele, estava equipado de forma semelhante. Subiram para as motos e ligaram os motores ao mesmo tempo. Gabriel acenou com a cabeça e aceleraram pela estrada vazia.
Desceram uma colina íngreme, com Gabriel a abrir caminho e Mikhail alguns metros atrás. A estrada era apertada e cercada por muros de pedra. À frente deles, no cimo de outra colina, ficava o desvio para Pointe Milou. Junto ao muro estava parada uma moto e, sentada no selim, em jeans e camiseta justa, estava Rimona, o rosto oculto pelo capacete.
Fez sinal duas vezes com o farolete, dando a indicação de que o caminho estava livre. Gabriel e Mikhail entraram na curva em grande velocidade, inclinando-se bastante no auge da manobra, e aceleraram em direção ao promontório. O mar estendia-se à sua frente, luminoso sob o luar. À sua esquerda erguia-se uma colina vazia. À direita ficava uma correnteza de pequenas vivendas. Um cão preto surgiu vindo da última casa e ladrou com vontade quando eles passaram. No cruzamento seguinte estava um poste de caixas do correio e uma pequena parada de ônibus vazia. Um carro que se aproximava fez a curva com demasiada velocidade e apanhou o lado da estrada de Gabriel, que reduziu e esperou que o automóvel passasse. Depois voltou a acelerar. Foi então que ouviu a voz de Rimona ao ouvido.
— Temos um problema — disse, calmamente.
Ao fazer a curva, Gabriel olhou para trás e viu do que se tratava. Estavam a ser seguidos por um Range Rover azul amolgado, com identificação da Gendarmerie.
No estacionamento do Le Tetou, Yaakov levava a mão ao fecho da porta quando ouviu Rimona no auricular. Olhou para Lavon e perguntou:
— Mas o que raios se está a passar?
Foi Gabriel quem lhe respondeu.
Havia dois gendarmes no Rover, um ao volante e um segundo, de ar mais velho, no lugar do morto com um rádio contra os lábios. Gabriel resistiu à tentação de se virar para ver melhor e manteve os olhos em frente.
Logo a seguir à parada do ônibus, a estrada bifurcava-se. A mansão de Bin Shafiq ficava para a direita. Gabriel e Mikhail foram para a esquerda. Segundos depois, abrandaram e olharam para trás.
Os gendarmes tinham seguido para o outro lado.
Gabriel parou e considerou as alternativas. Estariam os gendarmes a fazer uma patrulha de rotina, ou teriam respondido a um outro tipo de apelo? Seria apenas má sorte, ou algo mais? Apenas tinha certeza de uma coisa. Ahmed bin Shafiq estava ao seu alcance e Gabriel queria-o morto.
Deu meia volta, regressou à bifurcação e olhou para o extremo do promontório. A estrada encontrava-se vazia e não se viam os gendarmes. Gabriel acelerou e mergulhou na noite. Quando chegou à mansão, viu o portão aberto e o Range Rover da Gendarmerie estacionado na entrada. Ahmed bin Shafiq, o mais perigoso terrorista do mundo, carregava as malas para a traseira do Subaru.
E os dois polícias franceses estavam a ajudá-lo.
Gabriel regressou ao local onde Mikhail aguardava e informou toda a equipe em simultâneo.
— O nosso amigo vai deixar a ilha. E Zizi conseguiu uma escolta policial.
— Fomos descobertos? — perguntou Mikhail.
— Temos de partir do princípio de que foi esse o caso. Peguem Sarah e dirijam-se para Saline.
— Receio que isso não seja possível — replicou Lavon.
— O que não é possível?
— Não podemos chegar perto de Sarah — explicou. — Nós a perdemos.
Um punho esmurrou a porta três vezes. Uma voz tensa gritou que saísse. Sarah abriu a porta. Jean-Michel estava de pé na passagem, juntamente com quatro dos guarda-costas de Zizi. Agarraram-lhe os braços e levaram-na pela praia.
O Cabriolet branco atravessou o portão e virou para a estrada, seguido do Rover da Polícia. Quinze segundos depois, a caravana reduzida passava por Gabriel e Mikhail.
A capota do Subaru estava ainda baixa. Bin Shafiq tinha as mãos no volante e os olhos na estrada.
Gabriel olhou para Mikhail e falou com toda a equipe pelo rádio.
— Zarpem já para Saline. Todos. Deixem-me um barco, mas saiam da ilha.
Depois partiu atrás de Bin Shafiq e dos gendarmes.
— Estão me machucando.
— Sinto muito, Miss Sarah, mas temos que nos apressar.
— Por quê? Estão servindo o prato principal?
— Houve uma ameaça de bomba. Vamos deixar a ilha.
— Uma ameaça de bomba? Contra quem? Contra o quê?
— Por favor, não diga mais nada, Miss Sarah, Limite-se a andar depressa.
— Eu ando, mas larguem meus braços. Estão me machucando.
Gabriel permaneceu duzentos metros atrás do Range Rover e seguiu com o farolim desligado. Atravessaram a aldeia de Lorient e depois Saint-Jean. Enquanto aceleravam ao longo da baía, viu a placa que indicava o Le Tetou. Gabriel reduziu e espreitou para o estacionamento no momento em que Zizi e respetivo séquito entravam para os Land Cruisers, sob o olhar atento de outros dois gendarmes. Sarah encontrava-se entre Rafiq e Jean-Michel. Não havia mais nada que Gabriel pudesse fazer. Com relutância, acelerou atrás de Bin Shafiq.
O aeroporto estava agora mesmo à frente deles. Sem aviso, os dois veículos guinaram para a estrada de serviço e atravessaram um portão de segurança aberto, em direção à pista. Um avião a hélice aguardava ao fundo da pista, com os motores em funcionamento. Gabriel deteve -se na curva e observou Bin Shafiq, a mulher e os dois gendarmes saírem dos respetivos carros.
O terrorista árabe e a mulher entraram de imediato para o avião, enquanto os gendarmes carregavam as malas no compartimento de carga. Quinze segundos depois, a porta da cabine foi fechada, o avião deu um solavanco em frente e correu pela pista. À medida que se elevava sobre a Baie de Saint-Jean, a caravana de Zizi passou em alta velocidade e deu início à subida da colina, a caminho de Gustavia.
Às oito e quarenta, Mordecai e Oded avistaram Mikhail e Rimona a descerem as dunas para a praia de Saline. Dois minutos depois, surgiram outras quatro figuras. Às oito e quarenta e três, todos se encontravam a bordo dos barcos, exceto Lavon.
— Ouviste o que o homem disse, Eli — gritou Yaakov. — Ele quer toda a gente fora da ilha.
— Eu sei — respondeu Lavon —, mas não saio daqui sem ele. Yaakov percebeu que não valia a pena discutir. Momentos depois, os barcos de borracha cortavam as ondas em direção ao Sun Dancer. Lavon observou-os a fundirem-se com as trevas, depois virou-se e começou a percorrer a beira da água.
A caravana serpenteou em alta velocidade encosta abaixo até Gustavia. Atrás deles, Gabriel podia ver o Alexandra iluminado ao fundo do porto. Dois minutos depois, os Land Cruisers entraram no estacionamento da marina. Os guarda-costas de Zizi trataram do processo de desembarque dos veículos e embarque na lancha com a rapidez e precisão de profissionais. A tentativa de salvamento não era opção. Gabriel viu Sarah uma única vez — um lampejo alaranjado entre duas figuras grandes e escuras — e, momentos depois, estavam a caminho do santuário que era o Alexandra. Não teve escolha, a não ser voltar a Saline, onde Lavon o aguardava. Enquanto se dirigiam à baía, Gabriel permaneceu sentado na proa.
— Lembras-te do que te disse esta tarde, Gabriel?
— Lembro-me, Eli.
— Se apenas conseguirmos cumprir um objetivo, que seja a Sarah. Foi isso que eu te disse.
— Eu sei, Eli.
— Quem cometeu o erro? Fomos nós? Ou foi Sarah?
— Já não interessa.
— Certo, não interessa. Ele vai matá-la, a menos que a consigamos libertar. — Não vai fazê-lo aqui. Não, depois de ter envolvido a Polícia francesa. — Ele vai encontrar maneira. Ninguém trai Zizi e fica a rir-se. Regras de Zizi.
— Vai ter de a tirar daqui — disse Gabriel. — E, é claro, vai querer saber para quem ela trabalha.
— O que significa que talvez tenhamos uma margem de manobra ínfima, dependendo dos métodos que Zizi escolher para obter respostas.
Gabriel ficou em silêncio. Lavon conseguia ler-lhe os pensamentos. Vamos tirá-la de lá, pensava Gabriel. Esperemos apenas que ainda sobre alguma coisa quando o fizermos.
29
SEDE DA CIA
As notícias sobre o desastre em Saint-Barthélemy chegaram à Sala de Controle do Boulevard King Saul dez minutos depois do regresso de Gabriel ao Sun Dancer. Na altura,
Amos Sharret, o diretor-geral, estava no seu gabinete e foi informado dos desenvolvimentos pelo oficial de dia. Apesar do adiantado da hora, acordou de imediato o primeiro-ministro e relatou-lhe o sucedido. Cinco minutos depois foi efetuada uma segunda chamada segura do Sun Dancer, dessa vez para Langley, Virgínia. Não foi dirigida à Sala de Controle, mas sim à linha privada do gabinete do sétimo andar de Adrian Carter. Este recebeu as notícias calmamente, como agia perante quase tudo, e brincou com um clipe desgarrado enquanto Gabriel lhe fazia um pedido.
— Neste momento temos um avião em Miami — explicou Carter. — Pode estar em Saint Maarten ao nascer do Sol.
Carter desligou o telefone e olhou para as telas de televisão alinhadas no outro lado da sala. O presidente encontrava-se na Europa, a realizar a sua digressão de reconciliação. Passara o dia reunido com o novo chanceler alemão, enquanto no exterior a Polícia travara confrontos de rua por toda a cidade de Berlim com manifestantes antiamericanos. Novos confrontos eram esperados nos destinos seguintes do presidente: Paris e Roma. Os franceses preparavam-se para uma onda de motins islâmicos, e os Carabinieri previam manifestações a uma escala que não era vista na capital italiana desde há uma geração: ambos os cenários não eram, de todo, a imagem de harmonia transatlântica que a Casa Branca pretendera transmitir.
Carter desligou a televisão e trancou os seus papéis no cofre da parede, depois tirou o sobretudo do cabide na porta e saiu. As secretárias já tinham dado o dia por encerrado e o vestíbulo encontrava-se mergulhado nas sombras, exceto por um trapezoide de luz vindo de uma porta entreaberta no outro lado da divisão. Era a porta do gabinete de Shepard Cantwell, diretor-adjunto de informação, o equivalente ao cargo de Carter no lado analítico da Agência. Do interior do gabinete ouvia-se as teclas de um computador. Cantwell ainda lá estava. Dizia-se na Agência que nunca de lá saía. Limitava-se a entrar para o cofre por volta da meia-noite e emergia ao amanhecer, para estar à secretária antes da chegada do diretor. — És tu, Adrian? — perguntou Cantwell com o seu sotaque arrastado de Boston. Quando Carter espreitou para o covil de Cantwell, o DAI parou de escrever e olhou por cima de uma pilha de dossiês. Era aprumado como um prior e ainda mais ardiloso. — Credo, Adrian, até parece que viste a morte. O que te anda a consumir? Quando Carter resmungou qualquer coisa sobre o caos que rodeava a visita de boa vontade do presidente à Europa, Cantwell iniciou uma dissertação sobre os falsos perigos do antiamericanismo. Cantwell era analista, não conseguia evitá-lo. — Sabes, Adrian, sempre me senti fascinado por esta nossa necessidade ridícula de sermos poderosos e amados ao mesmo tempo. O presidente americano deu meia volta ao mundo e derrubou o líder da Mesopotâmia numa tarde. Nem mesmo César foi capaz de o fazer. E agora quer ser adorado pelas pessoas que se lhe opõem. Quanto mais depressa nos deixarmos de preocupar com o fato de não gostarem de nós, melhor ficamos.
— Andou lendo Maquiavel outra vez, Shep?
— Livro de cabeceira. — Cruzou os dedos atrás do pescoço e afastou os cotovelos, oferecendo a Carter uma panorâmica indesejável dos sovacos. — Anda por aí um boato muito chato, Adrian.
— Sério? — Carter lançou uma olhadela ao relógio que, aparentemente, passou despercebida a Cantwell.
— Segundo esse boato, você está envolvido numa operação especial contra um amigo abastado da Al-Saud. E seus companheiros nessas andanças, e lembre-se de que estou apenas repetindo o que ouvi, são os israelenses.
— Não devia dar ouvidos a boatos — admoestou Carter. — Até aonde ele chegou?
— Já saiu de Langley — retorquiu Cantwell, outra maneira de dizer que o boato chegara a agências irmãs que tinham entrado no território da CIA desde que se procedera à temível reorganização da comunidade secreta americana.
— Até que ponto?
— Ao ponto de ter deixado algumas pessoas nervosas. Sabe bem como é este jogo, Adrian. Há um oleoduto entre Riad e Washington, que jorra verdinhas. Esta cidade está mergulhada em dinheiro saudita. Entra nas firmas consultivas e de advocacia. Que raios, os grupos de pressão jantam à custa desse dinheiro. Os sauditas até conseguiram inventar um sistema para nos subornar enquanto estamos no Governo. Todos sabem que se favorecerem os Al-Saud enquanto trabalharem para o Clube Fed, os Al-Saud vão retribuir-lhes o favor quando voltarem ao setor privado. Talvez assuma a forma de um contrato de consultoria bem lucrativo, ou um qualquer trabalho legal. Pode ser a presidência de um instituto obscuro. Por isso, quando começam a surgir boatos que dizem que um cowboy de Langley anda atrás de um dos mais generosos benfeitores deste sistema profano, as pessoas ficam nervosas.
— É uma dessas pessoas, Shepard?
— Eu? — Cantwell abanou a cabeça. — Volto a Boston assim que me seja concedida a liberdade condicional. Mas há por aí outras pessoas pensando em lucrar com o negócio.
— E se os generosos benfeitores deste sistema profano também andarem a encher os cofres dos indivíduos que fazem despenhar aviões nos nossos edifícios? E se esses nossos amigos estiverem completamente mergulhados no terrorismo? E se estiverem dispostos a fazer patos com o Diabo para garantirem a sobrevivência, mesmo que isso implique a morte de americanos?
— Cumprimentamo-los e sorrimos — disse Cantwell. — E pensamos no terrorismo como uma taxa inconveniente na gasolina que metemos no depósito. Ainda tem aquele Volvo?
Cantwell sabia exatamente qual o carro de Carter. Suas vagas de estacionamento ficavam lado a lado.
— Não tenho dinheiro para comprar um carro novo — justificou Carter. — Pelo menos enquanto tiver três filhos na faculdade.
— Talvez devesse pensar no plano de reforma saudita. Estou vendo um contrato de consultoria muito lucrativo no seu futuro.
— Não faz o meu estilo, Shep.
— E quanto a esses boatos? Têm algum fundo de verdade?
— Absolutamente nada.
— Ainda bem — replicou Cantwell. — Vou esclarecer toda a gente. Boa noite, Adrian.
— Boa noite, Shep.
Carter desceu a escada do edifício. O estacionamento estava quase vazio. Entrou no Volvo e dirigiu-se ao Noroeste de Washington, através do mesmo percurso que seguira com Gabriel havia oito semanas. Ao cruzar-se com a propriedade de Zizi al-Bakari, reduziu e espiou através das barras do portão a mansão empoleirada na falésia em frente ao rio. Não toque nele, pensou Carter furiosamente. Se tocar num fio de cabelo que seja, eu o mato com minhas próprias mãos. Ao atravessar Chain Bridge, olhou para o painel. Uma luz de aviso vermelha estava a brilhar. Mas que apropriado, pensou. Tinha o tanque de combustível quase vazio. Nesse preciso momento, o Sun Dancer contornava Grande Pointe e regressava à sua posição ao largo de Gustavia. Gabriel estava sozinho na proa, com os binóculos contra os olhos, a fitar o convés de ré do Alexandra, onde a tripulação do barco servia um jantar improvisado para trinta elementos. Gabriel via-os como figuras de um quadro. Grupo no Barco, pensou. Ou seria A Última Ceia?
Lá estava Zizi, sentado com uma pose nobre à cabeceira da mesa, como se os acontecimentos do serão não tivessem passado de uma agradável diversão à monotonia de uma viagem em tudo o resto normal. À sua esquerda sentava-se a bela filha Nadia. À direita, a trespassar a comida sem apetite, estava o segundo-comandante de confiança,
Daoud Hamza. Mais ao fundo da mesa ficavam os advogados, Abdul Abdul, e Herr Wehrli, o guardião do dinheiro de Zizi. Lá estava Mansur, organizador de viagens, e Hassan, chefe das comunicações, fossem seguras ou não. Jean-Michel, encarregado da aptidão física de Zizi e guarda de segurança adicional, e a esposa taciturna, Monique. Marcavam também presença Rahimah Hamza e o amante, Hamida, atraente estrela de cinema egípcia. Um quarteto de guarda-costas de expressão ansiosa e várias mulheres bonitas de rostos inocentes. E por fim, sentada no extremo da mesa, o mais longe possível de Zizi, estava uma bela mulher vestida com seda açafrão. Ela garantia equilíbrio àquele grupo. Era a inocência contrabalançando os pecados de Zizi. E Gabriel podia ver que estava aterrorizada. Gabriel sabia que observava uma representação. Mas para quem estaria sendo encenada? Para si mesma ou para Sarah?
À meia-noite, as figuras do quadro levantaram-se e desejaram as boas noites. Sarah entrou numa passagem e desapareceu mais uma vez da vista de Gabriel. Zizi, Daoud Hamza e Wazir bin Talai entraram no gabinete de Al-Bakari. Gabriel viu nisso mais um quadro: Encontro de Três Malvados, artista desconhecido. Cinco minutos depois, Hassan entrou a correr no gabinete e entregou um celular a Zizi. Quem seria? Um dos corretores de Zizi a pedir instruções sobre o que fazer na abertura da bolsa de Londres? Ou seria Ahmed bin Shafiq, assassino de inocentes, a dizer a Zizi o que fazer com a jovem de Gabriel? Zizi aceitou o telefone e expulsou Hassan do gabinete com um aceno da mão. Wazir bin Talai, chefe da segurança, acercou-se das janelas e fechou as persianas.
Trancou a porta e acendeu todas as luzes do quarto. Ligou o sistema de televisão via satélite e sintonizou a CNN. A Polícia alemã defrontava manifestantes nas ruas. Mais uma prova do fracasso americano no Iraque, dizia um repórter ofegante.
Foi até a coberta e sentou-se. O iate que vira nessa tarde a deixar o porto voltara. Seria o de Gabriel? Estaria Bin Shafiq morto ou vivo? Estaria Gabriel morto ou vivo? Apenas sabia que algo correra mal. Estas coisas acontecem, dissera-lhe Zizi. E por isso que levamos tão a sério as questões de segurança.
Fitou o iate, em busca de movimento no convés, mas o barco encontrava-se demasiado longe para ver fosse o que fosse. Estamos contigo, Sarah. Todos nós. O vento aumentou. Abraçou as pernas e puxou os joelhos para junto do queixo. Espero que ainda aí estejam, pensou. E, por favor, tirem-me deste barco antes que me matem.
A dada altura, não se lembrava quando, o frio obrigara-a a ir para a cama. Acordou ao som da chuva na coberta privativa com a primeira luz daquela alvorada cinzenta. A televisão continuava ligada. O presidente chegara a Paris e a place de Ia Concorde era um mar de manifestantes. Pegou no telefone e pediu o pequeno-almoço, que foi entregue cinco minutos depois. Estava tudo na mesma, salvo pela mensagem escrita à mão, dobrada ao meio e encostada ao cesto dos brioches. Era um recado de Zizi. Tenho um trabalho para a si. Faça as malas e prepare-se para partir às nove. Falamos antes de partir. Serviu-se de café e foi com a xícara até a porta da coberta privativa. Foi então que se apercebeu de que o Alexandra estava em movimento, tendo deixado Saint-Barts. Voltou a olhar para a mensagem de Zizi. Não dizia para onde teria de ir.
30
AO LARGO DE SAINT MAARTEN
Sarah apresentou-se no convés de ré às nove em ponto. Chovia copiosamente, as nuvens eram baixas e escuras e o vento forte tornava o mar revolto. Zizi envergava uma capa clara e óculos de sol, apesar do mau tempo. Bin Talai estava a seu lado, com um casaco leve que lhe ocultava a arma.
— Mas que vida agitada — comentou Sarah, com um tom o mais caloroso possível. — Primeiro uma ameaça de bomba, depois um recado com o pequeno-almoço, a dizer-me para fazer as malas. — Olhou para o heliporto e viu o piloto de Zizi a sentar-se aos comandos do Sikorsky. — Para onde vou?
— Digo-lhe quando estivermos a caminho — disse Zizi, pegando-lhe no braço. — Vem comigo?
— Só até Saint Maarten — Puxou-a até a escada que davam acesso ao heliporto.
— Tem um jato privado à sua espera.
— E para onde vai esse avião?
— Vai levá-la a ver um quadro. Conto-lhe durante a viagem.
— Qual é o destino do avião, Zizi?
O árabe deteve-se a meio da descida e fitou-a, os olhos escondidos pelo vidro escuro.
— Passa-se alguma coisa, Sarah? Parece tensa.
— Não gosto de entrar em aviões quando não sei para onde se dirigem. Zizi sorriu e começou a dizer-lhe, mas as palavras foram abafadas pelo troar do motor do Sikorsky.
Gabriel estava na proa do Sun Dancer quando o helicóptero decolou. Observou-o por um momento e depois correu até a ponte, onde um tenente da marinha se encontrava ao leme.
— Estão a levá-la para Saint Maarten. A que distância estamos da costa?
— A cerca de cinco milhas. — Quanto tempo para lá chegarmos?
— Dadas as condições atmosféricas, uns trinta minutos. Talvez um pouco menos. — E os barcos de borracha?
— Não tente fazer o percurso nesses barcos, pelo menos com estas condições. — Aproxime-nos o mais possível.
O tenente aquiesceu e começou a fazer os preparativos para a mudança de rumo. Gabriel dirigiu-se ao centro de comando e entrou em contato com Carter.
— Neste preciso momento ela está a ser levada para o aeroporto de Saint Maarten.
— Está sozinha?
— Zizi e o chefe de segurança foram com ela.
— Quanto tempo demoras a lá chegar?
— Quarenta e cinco minutos para chegar a terra. Mais quinze até o aeroporto.
— Vou alertar a tripulação. O avião estará pronto quando lá chegares. — Agora só precisamos de saber para onde Zizi a vai enviar.
— Graças à Al-Qaeda, estamos ligados a todas as torres de controle do hemisfério. Quando o piloto de Zizi definir o plano de voo, ficamos a saber para onde ela vai. — Quanto tempo demora?
— Normalmente apenas alguns minutos.
— Acho que não tenho de te lembrar de que quanto mais depressa, melhor.
— Vá para terra — disse Carter. — Eu trato do resto.
— É um Manet — explicou Zizi, enquanto viajavam em direção à costa, logo abaixo das nuvens escuras. — Há vários anos que estou de olho nele. O dono não tem mostrado grande vontade em separar-se dele, mas ontem à noite telefonou para o escritório de Genebra a dizer que estava interessado em chegar a acordo.
— Que devo fazer?
— Examine o quadro e confirme que se encontra em condições razoáveis. Depois investigue cuidadosamente a proveniência. Imagino que saiba que milhares de quadros impressionistas franceses entraram na Suíça durante o pós-guerra, em circunstâncias ilícitas. A última coisa de que preciso é de uma família de judeus a bater-me à porta para reaver o quadro deles. Sarah sentiu uma pontada de medo no centro do peito. Desviou o rosto e olhou pela janela.
— E se a proveniência não apresentar problemas?
— Chegue a um preço adequado. Estou disposto a ir até os trinta milhões, mas, pelo amor de Deus, não lhe diga isso. — Entregou-lhe um cartão de visita com um número escrito à mão nas costas. — Quando tiver um valor final, telefone-me, antes de aceitar.
— Quando me encontro com ele?
— Amanhã, às dez. Um dos meus motoristas vai recebê-la esta noite ao aeroporto, para a levar ao hotel. Pode dormir a noite descansada antes de ver o quadro. — Posso saber o nome do dono?
— Hermann Klarsfeld. É um dos homens mais ricos da Suíça, o que por si só já diz muito. Alertei-o para a sua beleza. Está ansioso por conhecê-la. — Que maravilha — ofereceu ela, sem deixar de olhar para a costa que se aproximava.
— Herr Klarsfeld é um octogenário, Sarah. Não tem que se preocupar com comportamento indecente.
Zizi olhou para Bin Talai. O chefe da segurança tirou uma mala Gucci nova de baixo do banco.
— As suas coisas, Miss Sarah — informou, com um tom apologético. Sarah aceitou e abriu a mala. Lá dentro estavam os aparelhos eletrônicos que lhe tinham sido confiscados na tarde em que chegara: o celular e o PDA; o iPod e o secador; até mesmo o despertador de viagem. Nada que fosse seu permanecia a bordo do Alexandra, nem um indício de que alguma vez lá estivera. O helicóptero começou a perder altitude. Sarah olhou mais uma vez pela janela e viu que desciam na direção do aeroporto. Ao fundo da pista estava um punhado de aviões privados. Um deles estava a ser reabastecido. Zizi voltara a gabar a fortuna de Herr Klarsfeld, mas Sarah não o ouviu. Naquele momento apenas pensava na fuga. Não há nenhum Herr Klarsfeld, pensou. E não há nenhum Manet. Estava a ser embarcada num avião para ser eliminada. Recordou o aviso de Zizi na tarde em que ela aceitara o emprego. Como pode ver, sou muito generoso para com as pessoas que trabalham para mim, mas fico muito cansado quando me traem. Ela traíra-o. Traíra-o por Gabriel. E agora ia pagar com a vida. Regras do Zizi.
Olhou para a pista, perguntando-se se Zizi teria deixado alguma brecha por onde talvez pudesse escapar. Decerto haveria funcionários da alfândega verificando o passaporte. Talvez agentes de segurança do aeroporto, um policial ou dois. Ensaiou o que lhes diria. O meu nome é Sarah Bancroft. Sou uma cidadã americana e estes homens estão me levando para a Suíça contra a minha vontade.
Depois olhou para Zizi e seu chefe de segurança. Previu essa hipótese, não foi? Comprou os funcionários da alfândega e subornou a Polícia local. Zizi não tolerava atrasos, especialmente de uma infiel histérica.
As hastes do Sikorsky bateram na pista. Bin Talai abriu a porta da cabine e desceu, oferecendo a mão para ajudar Sarah. Esta aceitou-a e desceu os degraus no meio de um remoinho de vento. Um Falcon 2000 aguardava a cinquenta metros do helicóptero, os motores a rugir enquanto se preparava para decolar. Sarah olhou em seu redor: não havia funcionários da alfândega, nem polícias. Zizi fechara a única janela. Olhou para a cabine do Sikorsky e viu-o pela última vez. O árabe acenou-lhe bem-disposto e depois olhou para o Rolex de ouro, como se fosse um médico a estabelecer a hora do óbito.
Bin Talai pegou-lhe nas malas, lembrou-a de baixar a cabeça, depois segurou-lhe no braço e levou-a para o Falcon. Na escada tentou libertar-se, mas Bin Talai apertou-lhe o braço de forma dolorosa e forçou-a a subir. Gritou por ajuda, mas o som foi abafado pelo gemido dos motores a jato e pela cadência do rotor do Sikorsky. Procurou rebelar-se mais uma vez no alto da escada, mas a tentativa foi cortada por Bin Talai com um empurrão entre as omoplatas. Cambaleou para uma pequena cabine luxuosamente decorada com madeira polida e peles macias. Pensou num caixão. Pelo menos a viagem para a morte seria confortável. Recompôs-se para mais uma rebeldia e saltou furiosa para o saudita. Longe da vista do mundo exterior, a resposta não foi discreta. Desferiu-lhe um único golpe no rosto com a mão aberta, que a lançou ao chão da cabine. Os sauditas sabiam bem como tratar mulheres rebeldes.
Seus ouvidos zuniram e ficou momentaneamente cega por explosões de luz. Quando a visão clareou, viu Jean-Michel em cima dela, secando as mãos numa toalha de linho. O francês sentou-se sobre as pernas da jovem e esperou que Bin Talai lhe prendesse os braços antes de pegar a agulha. Sentiu uma picada, seguida de metal derretido correndo por suas veias. A pele do rosto de Jean-Michel escorreu do crânio e Sarah mergulhou num oceano de água negra gelada.
31
SAINT MAARTEN
O Zodiac entrou nas águas da Great Bay uma hora depois. Os quatro homens a bordo vestiam blazer e calça esportiva, e cada um levava uma pequena mala de roupa por causa das autoridades locais. Após terem atracado na Bobbys Marina, os homens entraram para um táxi que os esperava e dirigiram-se para o aeroporto a uma velocidade considerável. Uma vez. aí chegados, e depois de terem passado pela verificação de passaportes, tendo todos eles documentos falsos, embarcaram num Gulfstream V privado que os aguardava. A tripulação já apresentara o plano de voo e requisitara permissão para a descolagem. Uma hora depois, às onze e trinta e sete, hora local, o avião partiu. Tinha como destino o Aeroporto Kloten. Zurique, na Suíça. À medida que o Gulfstream ganhava altitude sobre as águas de Simpson Bay, Adrian Carter efetuou três telefonemas: um para o diretor da CIA, o segundo para o ramo da Agência que se dedicava a viagens clandestinas e um terceiro para um médico da Agência especializado no tratamento de agentes feridos em condições menos boas. Depois abriu o cofre e retirou uma das três carteiras que lá se encontravam. Continha um passaporte falso, a par da respetiva identificação, cartões de crédito, algum dinheiro e fotografias de uma família que não existia. Dez minutos mais tarde atravessava o estacionamento oeste, na direção do seu Volvo. O homem da sede voltava a ser agente de campo. E o agente ia para o cantão de Zug.
Na baixa de Munique, Uzi Navot desfrutava de um almoço tardio com um informante da BND alemã quando recebeu um telefonema urgente de Tel Aviv. A chamada não provinha do Escritório de Operações, mas sim diretamente de Amos Sharret. O monólogo foi breve. Navot escutou em silêncio, resmungando a espaços para que Amos soubesse que percebia o que estava a ser dito, após o que desligou. Navot não pretendia que o agente de segurança alemão soubesse que o Escritório se encontrava em plena crise, por isso deixou-se ficar no restaurante mais trinta minutos. Durante esse tempo desfez a unha do polegar por baixo da mesa, enquanto o alemão terminava o seu strudel acompanhado de café. Às três e quinze estava ao volante do Mercedes Classe E, e um quarto de hora depois acelerava para oeste, ao longo da auto-estrada E54.
Imagina que é uma audição, dissera-lhe Amos. Se te saíres bem, as Operações Especiais são tuas. Mas, à medida que quase voava para Zurique à luz do entardecer, a promoção pessoal era a última coisa em que pensava. Queria Sarah — e queria-a inteira.
Sarah, mergulhada numa bruma de narcóticos, não fazia ideia do que se desenrolava à sua volta. Na verdade, nem sequer tinha noção do estado do próprio corpo. Não sabia que viajava para leste, reclinada numa cadeira a bordo de um Falcon 2000, operado pela Meridian Executive Air Services de Caracas, empresa detida na totalidade pela AAB Holdings de Riad, Genebra e pontos intermédios. Não sabia que tinha as mãos algemadas e os tornozelos atados. Nem que lhe surgira um vergão roxo na face, cortesia de Wazir bin Talai. Nem que sentado à sua frente, separados por uma pequena mesa polida, Jean-Michel folheava uma revista pornográfica holandesa e beberricava um uísque de malte que comprara numa loja franca do aeroporto de Saint Maarten.
Sarah apenas tinha noção dos sonhos. Tinha a vaga sensação de que as imagens que se desenrolavam à sua frente não eram reais, mas era incapaz de as controlar. Ouviu um telefone a tocar e, quando atendeu, escutou a voz de Ben.
Mas, em vez de ter sido lançado contra a Torre Sul do World Trade Center, aterrara em segurança em Los Angeles e dirigia-se para a reunião que tinha marcada. Sarah entrou numa mansão imponente de Georgetown e foi recebida não por Adrian Carter, mas por Zizi al-Bakari. Em seguida, encontrava-se numa casa de campo inglesa, que não era ocupada por Gabriel e sua equipe, mas por uma célula terrorista saudita que planeava o ataque seguinte. Sucederam-se outras imagens, cada uma sobrepondo-se à outra. Um belo iate a cruzar um oceano de sangue. Uma galeria em Londres com quadros dos mortos. E, por fim, um restaurador de arte com têmporas grisalhas e olhos da cor de esmeraldas, à frente do retrato de uma mulher algemada a um toucador. O restaurador era Gabriel e a mulher no quadro era Sarah. A imagem irrompera em chamas e, quando estas se apagaram, apenas viu o rosto de Jean-Michel.
— Onde vamos?
— Primeiro, vamos descobrir para quem trabalhas — explicou o francês. — E depois vamos matar-te.
Sarah fechou os olhos quando sentiu a dor de uma agulha trespassar-lhe a coxa. Metal derretido. Água negra...
32
KLOTEN, SUÍÇA
O Hotel Flyaway, no número 19 da Markgasse, é um estabelecimento de conveniência e não de luxo. Tem uma fachada discreta e um hall simples e anti-séptico. Com efeito, a única qualidade de monta é a sua proximidade do Aeroporto Kloten, a apenas cinco minutos. Naquele serão nevoso, o hotel era palco de um encontro secreto, sobre o qual a gerência e a Polícia local ainda não tinham conhecimento. Dois homens chegaram de Bruxelas, outro de Roma e um último de Londres. Os quatro eram especialistas em vigilância física. Deram entrada com nomes e passaportes falsos. Um quinto homem chegou de Paris, tendo-se registrado com o nome verdadeiro, Moshe. Não era especialista de vigilância, mas um correio de campo de nível inferior, algo designado por bodel. O carro, um Audi A8, estava estacionado na rua. No porta-malas, uma grande bolsa repleta de armas, rádios, óculos de visão noturna e máscaras de esqui.
O último homem a chegar era conhecido das jovens no balcão de recepção, pois viajava com assiduidade pelo Aeroporto Kloten, e passara noites sem conta no Hotel Flyaway.
— Boa noite, Mr. Bridges — cumprimentou uma das mulheres, quando ele entrou no hall. Cinco minutos depois estava no quarto. No espaço de dois minutos os demais tinham chegado.
— Um avião está prestes a aterrissar em Kloten — informou-os. — A bordo tem uma garota. Vamos garantir que ela sobreviva a esta noite.
Sarah acordou uma segunda vez. Abriu os olhos durante o tempo suficiente para registrar o ambiente que a cercava, ao que voltou a fechá-los antes que Jean-Michel lhe trespassasse mais uma vez a perna com uma seringa cheia. Estavam a descer e tinham encontrado turbulência. A sua cabeça tombara para o lado e a cada solavanco da aeronave a fonte que latejava embatia na parede da cabine. Os dedos estavam dormentes da pressão das algemas e nas plantas dos pés pareciam espetar-se milhares de agulhas. Jean-Michel continuava reclinado na cadeira à frente dela. Encontrava-se de olhos fechados e dedos cruzados sobre os órgãos genitais. Sarah abriu os olhos uma segunda vez. Tinha a visão turva, como se estivesse envolvida por uma névoa escura. Levou as mãos ao rosto e sentiu tecido. Um capuz, pensou.
Depois olhou para baixo e viu o corpo envolto num véu preto. Jean-Michel vestira-lhe um abaya. Chorou baixinho. Jean-Michel abriu um olho e fitou-a com maldade.
— Qual é o problema, Sarah?
— Estão me levando para a Arábia Saudita, não estão?
— Vamos para a Suíça, como Zizi disse.
— Para que é o abaya?
— Vai tornar mais simples sua entrada no país. Quando os agentes da alfândega suíça veem uma mulher árabe de véu, costumam mostrar grande deferência. — Ofereceu mais um sorriso grotesco. Acho que é uma pena tapar uma garota como tu de preto, mas gostei muito de te vestir.
— Você é um porco, Jean-Michel.
Sarah nem viu o golpe a aproximar-se — um estalo com as costas da mão que aterrou exatamente na face direita inchada. Quando a visão lhe clareou, Jean-Michel voltara a reclinar-se na cadeira. O avião estremeceu com a turbulência súbita.
Sarah sentiu a bílis a chegar à garganta.
— Acho que vou vomitar.
— Como no Le Tetou?
Pensa depressa, Sarah.
— Eu me senti mal no Le Tetou, seu idiota.
— Recuperou-se muito depressa. Para dizer a verdade, parecia muito bem quando voltamos ao Alexandra.
— As drogas que está me injetando estão me enjoando. Deixe-me ir ao banheiro.
— Quer confirmar se tem mensagens?
Depressa, Sarah, depressa.
— Está falando de quê? Deixe-me ir ao banheiro para poder vomitar.
— Não vai a lugar nenhum.
— Pelo menos levante o abaya.
Jean-Michel olhou-a desconfiado, depois inclinou-se sobre a divisória e ergueu o véu, expondo-lhe o rosto ao ar fresco da cabine. Para Sarah, parecia horrivelmente um noivo que levanta o véu da nova esposa. Sentiu uma onda de raiva e atacou seu rosto com as mãos algemadas. Jean-Michel defendeu-se facilmente do golpe e agrediu-a no lado esquerdo da cabeça, derrubando-a no chão. Sem se levantar, deu-lhe um pontapé na barriga, deixando-a sem fôlego. Quanto tentou recuperá-lo, despejou o que tinha no estômago no carpete. — Vaca de merda — xingou-a furiosamente o galês. — Devia te obrigar a limpar isso.
Agarrou a corrente que lhe unia os pulsos dela e voltou a puxá-la para a cadeira, depois indo para o banheiro. Sarah ouviu o som de água correndo na pia. Quando Jean-Michel saiu, tinha na mão uma toalha de linho molhada, que usou para limpar bruscamente a boca da jovem. Depois retirou outra seringa e um frasco de líquido transparente de um pequeno estojo de pele. Encheu a seringa sem grande atenção à dose e depois agarrou-lhe no braço. Sarah tentou libertar-se, mas recebeu dois golpes na boca. Permaneceu consciente quando a droga lhe entrou na corrente sanguínea, mas sentiu-se como se um grande peso lhe esmagasse o corpo. As pálpebras fecharam-se, mas continuou aprisionada no presente.
— Ainda estou acordada — disse. — Suas drogas já não funcionam.
— Estão funcionando muito bem.
— Então por que ainda estou consciente?
— É mais fácil para obter respostas.
— Respostas a quê?
— É melhor apertar o cinto — avisou-a, irônico. — Vamos aterrissar em poucos minutos.
Sarah, a prisioneira ideal, tentou fazer o que lhe diziam, mas os braços permaneceram-lhe frouxos sobre o regaço, incapazes de obedecer a quaisquer ordens.
Encostou o rosto ao vidro frio da janela e olhou para fora. A escuridão era absoluta. Momentos depois, entraram nas nuvens e o avião atravessou onda trás de onda de turbulência. Jean-Michel serviu-se de outra dose de uísque que bebeu de um gole.
Emergiram das nuvens para uma tempestade de neve. Sarah olhou para baixo e analisou o padrão das luzes no solo. Havia uma enorme quantidade de iluminação brilhante a envolver a zona norte de uma imensa extensão de água, e fios de uma luz menos intensa ao longo da linha da costa, como joias. Tentou lembrar para onde Zizi disse que ela iria. Zurique, pensou. Sim, foi isso. Zurique... Herr KIarsfeld... O Manet pelo qual Zizi pagaria trinta milhões de dólares e nem mais um milhão...
O avião passou a norte do centro de Zurique e virou em direção ao aeroporto. Rezou por uma aterragem acidentada, mas, no entanto, esta foi obscenamente suave; tão suave, que ela não se apercebeu do momento em que o avião tocou no solo. Deslizaram pela pista durante vários minutos. Jean-Michel olhava calmamente pela janela, enquanto Sarah resvalava cada vez mais para o olvido. A fuselagem parecia tão comprida como um túnel alpino e, quando tentou falar, as palavras recusaram-se a tomar forma nos seus lábios.
— A droga que acabei de te dar dura pouco — explicou Jean-Michel num tom de voz capaz de levar à loucura, de tão tranquilizante.
— Em breve conseguirás falar. Pelo menos, assim o espero... para teu bem. O avião começou a abrandar. Jean-Michel baixou-lhe o véu preto sobre o rosto e depois soltou as algemas e as grilhetas. Quando, por fim, o avião se imobilizou, abriu a porta da traseira e espreitou para se certificar de que estava tudo em ordem. Depois pegou em Sarah por debaixo dos braços e colocou-a de pé. O sangue voltou dolorosamente aos pés e os joelhos cederam. Jean-Michel apanhou-a antes que caísse. — Um pé à frente do outro — disse. — Limite-se a andar, Sarah. Você se lembra de como se anda.
Lembrava-se, mas mal. A porta encontrava-se a uns meros três metros de distância, mas a Sarah parecia distar pelo menos um quilômetro. Após ter dado alguns passos, pisou a bainha do abaya e tombou para a frente, mas, mais uma vez, Jean-Michel impediu-a de cair. Quando finalmente chegou junto à porta, foi recebida por uma rajada de ar gelado. Nevava com intensidade e estava muito frio, sendo a noite tornada mais escura pelo tecido preto do véu. Mais uma vez, não se viam quaisquer funcionários da alfândega nem seguranças, apenas um Mercedes preto com uma matrícula diplomática. A porta de trás estava entreaberta e, através da abertura, Sarah viu um homem com um sobretudo cinzento e um chapéu de feltro. Mesmo com as drogas turvando seus pensamentos, conseguiu perceber o que estava a acontecer. A AAB Holdings e o consulado saudita em Zurique tinham pedido tratamento diplomático VIP para um passageiro que estava a chegar de Saint Maarten. Era exatamente como na partida: não havia alfândega, nem segurança, nem uma via de fuga.
Jean-Michel ajudou-a a descer a escada, a atravessar a estrada e a entrar para o banco de trás do Mercedes que aguardava. Fechou a porta e regressou de imediato ao jato. Quando o carro arrancou, Sarah olhou para o homem sentado a seu lado. Com a visão enevoada pelo véu, só lhe viu os contornos. Mãos enormes. Um rosto redondo. Uma boca pequena rodeada por um cavanhaque hirsuto. Outra versão de Bin Talai, pensou. Um gorila.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Sou insignificante. Não sou ninguém.
— Aonde vamos?
Deu-lhe um murro na orelha e disse que não voltasse a falar.
Trinta segundos mais tarde, o Mercedes com matrícula diplomática passou a toda a velocidade por uma figura coberta de neve a espreitar desoladamente para baixo do capo aberto de um carro avariado.
O homem não pareceu prestar qualquer atenção ao Mercedes quando este passou, embora olhasse para cima brevemente quando o carro subiu a rampa de acesso à auto-estrada. Obrigou-se a contar lentamente até cinco. Depois fechou o capo com força e sentou-se ao volante. Quando deu à chave, o motor arrancou quase instantaneamente. Engrenou a primeira e arrancou.
Não tinha noção de há quanto tempo estavam a andar, uma hora, talvez mais, mas sabia qual o objetivo da viagem. As paradas, os arranques, os recuos súbitos e as acelerações nauseantes: Eli Lavon tinha-se referido a tais manobras como contravigilância. Uzi Navot chamara-lhes limpar o rabo.
Olhou pela janela fortemente opaca do carro. Quando era pequena, passara vários anos na Suíça e conhecia a cidade razoavelmente bem. Aquelas não eram as ruas de Zurique que recordava da juventude. Eram as ruas pedregosas e sombrias da zona norte e da Industrie-Quartier. Armazéns feios, fábricas de tijolo enegrecido, carris fumegantes. Não se viam transeuntes nos passeios nem passageiros nos eléctricos. Parecia sozinha no mundo, apenas com o Insignificante por companhia. Perguntou-lhe de novo para onde iam. Ele respondeu com um cotovelo na barriga de Sarah que a fez gritar pela mãe. Ele olhou demoradamente por cima do ombro, depois obrigou Sarah a deitar-se no chão e murmurou algo em árabe para o motorista. Agora estava perdida na escuridão. Empurrou a dor para um canto do cérebro e tentou concentrar-se no movimento do carro. Virou à direita. Depois à esquerda. O tum-tum de carris. Uma parada abrupta que fez os pneus chiar. O Insignificante puxou-a para o banco e abriu a porta. Quando Sarah agarrou no braço do banco e se recusou a largá-lo, travaram uma breve batalha antes de ele perder a paciência e lhe desferir um golpe cortante nos rins que lhe enviou ondas de dor a todos os recantos do corpo.
Gritou em agonia e largou o banco. O Insignificante arrastou-a para fora do carro e deixou-a cair no chão. Era de cimento frio. Parecia que estavam numa garagem de estacionamento ou na zona de expedição de um armazém. Ficou deitada no chão, a contorcer-se com dores, fitando aquele que a atormentava através da gaze preta do véu. A visão que a mulher saudita tem do mundo. Uma voz mandou-a levantar-se. Sarah tentou, mas não foi capaz.
O motorista saiu do carro e, juntamente com o Insignificante, pô-la de pé. Ficou suspensa por um momento, os braços abertos, o corpo envolto no abaya, e esperou por outro golpe na barriga. Em vez disso, foi colocada no banco traseiro de um segundo carro. O homem ali sentado era-lhe familiar. Vira-o numa casa de campo em Surrey, que não existia, e uma segunda vez numa mansão em Saint-Barts, bastante real.
— Boa noite, Sarah — cumprimentou Ahmed bin Shafiq. — É um prazer vê-la novamente.
33
ZURIQUE
— O seu nome é mesmo Sarah ou devo chamá-la de outra coisa?
Tentou responder, mas tinha dificuldade em respirar.
— O... meu nome... é Sarah.
— Então Sarah será.
— Por que... está... fazendo isso?
— Vamos, Sarah.
— Por favor... solte-me
— Receio que não seja possível.
Estava agora dobrada para a frente, a cabeça entre os joelhos.
Agarrou-a pelo pescoço, endireitou-a e depois levantou o véu para examinar os estragos no rosto. Pela sua expressão, não se conseguia perceber se julgava que tinham sido demasiado severos ou demasiado brandos. Ela devolveu-lhe o olhar. Impermeável de pele, cachecol de caxemira, pequenos óculos redondos com aros de concha de tartaruga: a imagem fiel de um homem rico e bem sucedido de Zurique. Dos seus olhos negros emanava uma inteligência calculista. A expressão era idêntica à que exibira no momento em que se tinham visto pela primeira vez.
— Para quem trabalha? — questionou, num tom de voz benévolo.
— Trabalho... — Tossiu com violência — para Zizi.
— Respire, Sarah. Respire fundo e devagar.
— Não... me bata... mais.
— Não o farei — garantiu. — Mas tem de me dizer aquilo que pretendo saber.
— Eu não sei nada.
— Quero saber para quem trabalha.
— Já lhe disse. Trabalho para Zizi. O rosto traiu uma suave desilusão. — Por favor, Sarah. Não torne isto difícil. Limite-se a responder às minhas perguntas. Diga-me a verdade e todo este episódio desagradável chegará ao fim. — Vai matar-me.
— Infelizmente, isso é verdade — respondeu, como se estivesse a concordar com uma afirmação sobre o estado do tempo. — Mas se nos disser o que queremos saber, será poupada à faca e a sua morte será a menos dolorosa possível. Se insistir nessas mentiras, as suas últimas horas na Terra serão um verdadeiro inferno. A crueldade dele não tem limites, pensou. Fala da minha decapitação, mas não tem a decência de desviar o olhar.
— Não estou mentindo — disse.
— Vai falar, Sarah. Todos falam. Não vale a pena tentar resistir. Por favor, não faça isto a si mesma.
— Eu não estou fazendo nada. É você que...
— Quero saber para quem trabalha, Sarah.
— Trabalho para Zizi.
— Quero saber quem a enviou.
— Zizi veio me buscar. Enviou-me joias e flores. Enviou-me passagens de avião e comprou roupa para mim.
— Quero saber o nome do homem que falou com você na praia em Saline.
— Eu não...
— Quero saber o nome do homem que entornou vinho em minha companheira em Saint-Jean.
— Que homem?
— Quero saber o nome da garota manca que passou pelo Le Tetou durante o jantar de Zizi.
— Como vou saber o nome dela?
— Quero saber por que estava me observando na minha festa. E por que decidiu, de repente, prender o cabelo. E por que estava com o cabelo preso quando foi correr com Jean-Michel.
Soluçava agora incontrolavelmente.
— Isso é uma loucura!
— Quero saber os nomes dos três homens que me seguiram de moto mais tarde, nesse dia. Quero saber os nomes dos dois homens que foram à mansão com o objetivo de me matar. E o nome do homem que viu o meu avião decolar.
— Estou a dizer-lhe a verdade. Chamo-me Sarah Bancroft. Trabalho numa galeria em Londres. Vendi um quadro a Zizi e ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
— O Van Gogh?
— Sim!
— Marguerite Gachet no Toucador?
— Sim, seu sacana.
— E onde arranjou o quadro? Foi adquirido para si pelos seus serviços secretos?
— Não trabalho para serviços secretos. Trabalho para Zizi.
— Trabalha para os americanos?
— Não.
— Para os judeus?
— Não!
Ele suspirou profundamente, depois tirou os óculos e passou um longo momento a limpá-los com o cachecol de caxemira.
— Sabe, pouco depois da sua partida de Saint Maarten, chegaram quatro homens ao aeroporto e entraram num avião particular. Nós os reconhecemos. Imaginamos que tenham vindo para Zurique. São judeus, não são, Sarah?
— Não sei do que está falando.
— Acredite, Sarah. São judeus. É fácil de ver.
Examinou os óculos e limpou mais um pouco.
— Também quero que saiba que os colegas desses judeus tentaram segui-la esta noite, quando aterrou no aeroporto, embora de um modo um pouco desajeitado. O nosso motorista ludibriou-os facilmente. Sabe, também somos profissionais. Já desapareceram, Sarah. E agora está sozinha.
Voltou a colocar os óculos.
— Acha que esses pseudoprofissionais para quem trabalha estariam dispostos a sacrificar a vida por você? A esta altura já teriam vomitado todos os seus segredos. Mas Sarah é melhor do que eles, não é? Zizi também o viu. Foi por isso que cometeu o erro de contratá-la.
— Não foi um erro. É você quem está cometendo um erro.
Ele esboçou um sorriso lúgubre.
— Vou deixá-la nas mãos do meu amigo Muhammad. Trabalhou comigo no Grupo 205. Conhece o nome, Sarah? Grupo 205? Imagino que os seus patrões o tenham mencionado, durante o seu treino.
— Nunca o ouvi.
— O Muhammad é um profissional. É também um interrogador muito capaz. A Sarah e o Muhammad vão fazer uma viagem juntos. Uma viagem noturna. Conhece este termo, Sarah? A Viagem Noturna?
Obtendo apenas o som do choro, respondeu à sua própria questão.
— Foi durante a Viagem Noturna que Deus revelou o Corão ao Profeta. Esta noite vai ter a sua revelação pessoal. Esta noite vai dizer ao meu amigo Muhammad com quem trabalha e tudo o que eles sabem sobre a minha rede. Se lhe contar rapidamente, terá direito a um certo grau de misericórdia. Se insistir nestas mentiras, o Muhammad vai arrancar-lhe a carne dos ossos e cortar-lhe a cabeça. Está a perceber-me?
O estômago de Sarah contorceu-se de náusea. Bin Shafiq aparentava estar a ter prazer com o medo.
— Reparou que tem estado a olhar para o meu braço? Eles contaram-lhe sobre a minha cicatriz? Sobre a minha mão lesionada? — Outro sorriso entediado. — A Sarah foi traída. Traída pelos seus patrões.
Abriu a porta e saiu, ao que se baixou e voltou a olhar para ela. — Por sinal, quase conseguiram. Se os seus amigos tivessem me eliminado naquela ilha, uma grande operação nossa teria sido interrompida.
— Pensei que trabalhasse para Zizi em Montreal.
— Pois é. Já me esquecia. — Apertou o cachecol à volta do pescoço. — Muhammad não vai gostar de suas mentiras, Sarah. Algo me diz que terão uma noite muito longa e dolorosa.
Sarah ficou em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Que operação?
— Operação? Eu? Não passo de um banqueiro de investimentos.
Voltou a perguntar.
— Qual é a operação? O que vão atacar?
— Diga meu nome e eu respondo.
— Seu nome é Alain al-Nasser.
— Não, Sarah. Não o meu nome falso. O meu nome verdadeiro. Diga. Confesse seus pecados, Sarah, e eu digo o que quer saber.
Sarah começou a tremer incontrolavelmente. Tentou articular as palavras, mas não pôde reunir coragem.
— Diga! — bradou. — Diga meu nome, sua vaca!
Sarah ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos. — Seu-nome-é-Ahmed-bin-Shafiq!
O árabe jogou a cabeça para trás, como que se desviando de um golpe. Depois sorriu com admiração. — É uma mulher muito corajosa.
— E você é um covarde assassino.
— Devia matá-la com minhas próprias mãos.
— Diga-me o que vão fazer.
Bin Shafiq hesitou por momentos, e depois ofereceu-lhe um sorriso arrogante. — Basta dizer que temos um assunto por resolver no Vaticano. Os crimes do Cristianismo e do mundo ocidental contra os Muçulmanos em breve serão vingados, de uma vez por todas. Mas não estará viva para testemunhar esse ato glorioso. Nessa altura já terá morrido. Conte a Muhammad o que sabe, Sarah. Faça com que as suas últimas horas na Terra sejam fáceis.
Com estas palavras, virou-se e afastou-se. O Insignificante arrancou-a do banco de trás do carro, ao mesmo tempo que lhe segurava um trapo ensopado em éter sobre a boca e o nariz. Tentou arranhá-lo. Debateu-se. Deu vários pontapés inúteis nas canelas de aço do homem. Depois a droga começou a fazer efeito e Sarah sentiu-se caindo no chão. Foi amparada por alguém. Alguém que a colocou na bagageira de um carro. Surgiu um rosto por breves momentos que a olhou, com uma expressão inquiridora e estranhamente sincera. O rosto de Muhammad. Depois a porta fechou-se e Sarah foi envolvida pela escuridão. Quando o carro iniciou a marcha, perdeu os sentidos.
34
ZUG, SUÍÇA
Gustav Schmidt, chefe de contraterrorismo dos serviços federais de segurança suíços, era um aliado improvável na guerra americana contra o extremismo islâmico. Num país onde os políticos eleitos, a imprensa e a maior parte da população se opunham com veemência aos Estados Unidos e à sua guerra ao terror, Schmidt estabelecera laços discretos com os seus homólogos de Washington, em especial Adrian Carter. Sempre que Carter precisava de autorização para realizar uma operação em território suíço, Schmidt concedia-a invariavelmente. Quando Carter desejava fazer desaparecer da Federação um agente operacional da Al-Qaeda, regra geral Schmidt dava-lhe luz verde. E quando Carter precisava de aterrar um avião, normalmente Schmidt dotava-o de autorização de entrada. A pista aérea privada de Zug, uma cidade industrial abastada no interior do país, era a preferida de Carter, bem como a de Schmidt.
Pouco passava da meia-noite quando o Gulfstream V executivo saiu das nuvens e tocou na pista coberta de neve. Cinco minutos depois, Schmidt encontrava-se sentado à frente de Carter na cabine modestamente equipada.
— Temos um problema — admitiu Carter. — Para ser sincero, ainda não temos os detalhes. — Apontou para o companheiro de viagem. — Este é o tom. É médico. Imaginamos que os serviços dele possam vir a ser úteis nas próximas horas. Descontraia-se, Gustav. Beba alguma coisa. A noite pode ser longa.
Carter olhou então pela janela para os remoinhos de neve e não voltou a falar. Não havia necessidade. Schmidt estava agora a par da situação. Um dos agentes de Carter estava em perigo e Carter não sabia se o recuperaria com vida. Schmidt abriu a garrafa de brande e bebeu sozinho. Era nessas alturas que ficava satisfeito por ter nascido suíço.
Naquele preciso momento decorria uma vigília semelhante no terminal geral de aviação do Aeroporto Kloten. O homem que aguardava não era um oficial da Polícia suíça, mas sim Moshe, o bode de Paris. À meia-noite e quarenta e cinco, quatro homens saíram do terminal para a tempestade de neve. Moshe buzinou o Audi A8 e o grupo dirigiu-se, em uníssono, ao veículo. Yaakov, Mikhail e Eli Lavon sentaram-se no banco de trás. Gabriel instalou-se à frente.
— Onde está ela?
— Dirige-se para sul.
— Vamos embora — ordenou Gabriel.
Sarah acordou com o frio paralisante. Tinha os ouvidos a zunir devido ao silvo dos pneus no alcatrão molhado. Onde estou agora? pensou, e então lembrou-se. Estava na bagageira de um Mercedes, uma passageira involuntária na viagem noturna de Muhammad até a morte. Lentamente, pouco a pouco, foi reunindo os fragmentos daquele dia interminável e ordenou-os na sua sequência correta. Viu Zizi no seu helicóptero, a olhar para o relógio enquanto a enviava para a morte. E Jean-Michel, o seu companheiro de viagem, a fazer uma sesta pelo caminho. E finalmente viu o monstro, Ahmed bin Shafiq, a avisá-la de que o banho de sangue no Vaticano ainda não terminara. Ouvia-lhe a voz, a cadência ritmada das questões.
Quero saber o nome do homem que falou com ela na praia em Saline...
Yaakov, pensou. E é cinco vezes mais homem do que você.
Quero saber o nome da garota manca que passou no Le Tetou no jantar de Zizi...
É Dina, pensou. A última vingada.
Quero saber o nome do homem que entornou vinho em cima da minha companheira, em Saint-Jean...
É Gabriel, pensou. E um dia, em breve, ele vai matá-lo. — Já desapareceram, e agora está sozinha...
Não, não estou, pensou. Eles estão aqui comigo. Todos eles.
E imaginou-os vindo em seu auxílio pelo meio da neve. Chegariam antes que Muhammad lhe concedesse uma morte sem dor? Chegariam a tempo de descobrir o segredo que
Ahmed bin Shafiq lhe atirara à cara de modo tão arrogante? Sarah sabia que podia ajudá-los. Tinha informações que Muhammad desejava — e poderia dá-las ao ritmo, e com os pormenores que quisesse. Vai com calma, pensou. Demora o tempo que for preciso.
Fechou os olhos e voltou a perder a consciência. Dessa vez era o sono. Lembrou-se da última coisa que Gabriel lhe dissera na noite antes da sua partida de Londres.
Durma, Sarah, dissera ele. Tem uma longa viagem à sua frente.
Quando voltou a acordar, o carro dava solavancos violentos. Desaparecera o silvo dos pneus sobre alcatrão molhado. Agora parecia que atravessavam neve funda sobre um caminho acidentado. Teve a confirmação momentos depois, quando as rodas perderam a tração e um dos ocupantes do veículo foi obrigado a sair para empurrar. Quando o carro voltou a parar, Sarah ouviu vozes em árabe e em alemão suíço, seguidas do gemido arrastado de dobradiças de metal gelado. Avançaram durante mais alguns instantes, ao que pararam uma terceira vez imaginou que se tratasse da parada final, pois o motor do carro ficou de imediato em silêncio.
A bagageira abriu-se. Dois rostos desconhecidos olharam-na e quatro mãos agarraram-na e retiraram-na da mala do carro. Colocaram-na de pé e largaram-na, mas os joelhos cederam-lhe e Sarah tombou na neve. O fato pareceu divertir bastante os homens, que se deixaram rir durante algum tempo, antes de voltarem a erguê-la.
Olhou em seu redor. Estavam no meio de uma clareira vasta, cercados por abetos e por pinheiros imponentes. Havia um chalé em forma de A, com um telhado bastante inclinado e um qualquer anexo separado, ao lado do qual estavam estacionados dois jipes de tração às quatro rodas. Nevava com intensidade. Para Sarah, que continuava velada, parecia que do céu chovia cinza.
Muhammad apareceu e resmungou alguma coisa em árabe para os dois homens que a seguravam de pé. Avançaram na direção do chalé, esperando que Sarah os acompanhasse, mas a jovem tinha as pernas rígidas com o frio e não conseguia mexê-las. Tentou dizer-lhes que se sentia gelada, mas não foi capaz de falar. O frio trouxera uma vantagem: havia muito que esquecera a dor dos golpes que recebera no rosto e na barriga.
Pegaram-na pelos braços e pela cintura e arrastaram-na. As pernas, imobilizadas, faziam com que os pés deixassem sulcos gémeos na neve. Em breve ardiam, devido ao gelo. Tentou recordar-se dos sapatos que calçara nessa manhã.
Sandálias rasas, recordou-se, de súbito
— as que Nadia lhe comprara a condizer com o fato que usara no Le Tetou. Dirigiram-se às traseiras do chalé. O arvoredo era mais denso, estando a pouco mais de trinta metros da construção, e uma única sentinela gelada montava guarda. Fumava um cigarro e batia com as botas por causa do frio. Os beirais do telhado sobressaíam da parede exterior da casa, oculta por toros para a lareira. Arrastaram-na pela porta, e depois por um lance de degraus de cimento abaixo. Ainda incapaz de caminhar, os pés gelados de Sarah foram batendo em cada degrau. A jovem começou a chorar de dor, um lamento trémulo que foi ignorado pelos algozes.
Chegaram a outra porta, que se encontrava fechada e trancada com um aloquete. Um guarda abriu o ferrolho, depois a porta, e por fim acendeu as luzes. Muhammad foi o primeiro a entrar. Em seguida, os guardas levaram Sarah.
Era uma câmara pequena e quadrangular, no máximo com três metros de lado. Paredes brancas como a cal. Fotografias. Árabes em Abu Ghraib. Árabes em jaulas, na baía de Guantánamo. Um terrorista islâmico encapuzado com a cabeça decepada de um refém americano na mão. No centro da sala, uma mesa metálica aparafusada ao chão. No centro da mesa, uma argola de ferro. Preso à argola, um par de algemas. Sarah gritou e debateu-se. Foi inútil, claro está. Um dos homens prendeu-lhe os braços à mesa, enquanto o segundo lhe fechou as algemas à volta dos pulsos. Foi-lhe empurrada uma cadeira contra as pernas e duas mãos forçaram-na a sentar-se. Muhammad arrancou-lhe o véu do rosto e esbofeteou-a duas vezes. — Está pronta a falar?
— Sim.
— Acabaram-se as mentiras? Sarah anuiu.
— Diga-o, Sarah. Acabaram-se as mentiras.
— Acabaram-se... as... mentiras.
— Vai contar-me tudo o que sabe?
— Tudo.
— Tem frio?
— Gelada.
— Quer beber alguma coisa quente? Aquiesceu. — Chá? A Sarah bebe chá.
Mais um aceno.
— Como quer o seu chá, Sarah? — Deve estar... a brincar. — Como quer o seu chá?
— com cianeto.
Muhammad ofereceu-lhe um sorriso sem humor.
— Era o que queria, não era? Vamos tomar um chá, e depois falamos. Os três homens saíram da câmara. Muhammad fechou a porta e voltou a correr o ferrolho. Sarah baixou a cabeça sobre a mesa e cerrou os olhos. Na sua mente formou-se uma imagem — um relógio a contar o tempo até a sua execução. Muhammad ia trazer-lhe chá. Sarah abriu a tampa do relógio imaginário e retrocedeu os ponteiros cinco minutos.
35
CANTÃO URI, SUÍÇA
O chá foi trazido à moda árabe, dentro de um copo pequeno. As mãos de Sarah permaneceram algemadas. Para bebê-lo, foi obrigada a baixar a cabeça até a mesa e a sorver ruidosamente, com Muhammad a fitá-la com repugnância. O chá do árabe permaneceu intato. Encontrava-se entre o caderno aberto e uma pistola carregada. — Não podem fazer-me desaparecer e esperar que ninguém dê por nada — comentou Sarah.
O árabe ergueu o olhar e pestanejou várias vezes rapidamente. Liberta do abaya, Sarah observou-o à luz forte da câmara de interrogatórios. Era calvo no cimo da cabeça angulosa, e o cabelo que lhe restava e a barba tinham sido aparados exatamente ao mesmo comprimento. Os olhos escuros encontravam-se em parte ocultos por trás de um par de óculos acadêmicos, que cintilavam com a luz refletida sempre que levantava a cabeça do bloco de notas. Para interrogador, tinha uma expressão serena e estranhamente sincera, e o rosto, quando não gritava, nem ameaçava bater-lhe, era quase agradável. Por vezes, Sarah imaginava um jornalista novo a fazer perguntas a um político em cima de um palanque.
— Toda a gente em Londres sabe que fui para as Caraíbas com Zizi — recordou. — Passei quase duas semanas a bordo do Alexandra. Fui vista com ele em restaurantes de Saint-Barts. Fui à praia com a Nadia. Há registros da minha partida de Saint Maarten e da minha chegada a Zurique. Não podem fazer-me desaparecer na Suíça. Não vão safar-se.
— Mas as coisas não aconteceram dessa forma — corrigiu Muhammad. — Sabe, pouco depois da sua chegada, esta noite, deu entrada no Dolder Grand Hotel. O funcionário examinou o seu passaporte, como é habitual na Suíça, e transmitiu essa informação à Polícia suíça, como também é habitual. Daqui a algumas horas vai acordar e, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, vai até o ginásio do hotel fazer o seu exercício matinal. Depois vai tomar duche e vestir-se para o encontro que tem marcado. Um carro vai buscá-la às nove e quarenta e cinco, para levá-la à residência de Herr Klarsfeld, no Zurichberg. Aí será avistada por vários funcionários da casa de Herr Klarsfeld. Depois de ver o quadro de Manet, vai telefonar a Mr. Al-Bakari, no Caribe, altura em vai informá-lo da impossibilidade de chegar a um acordo no preço. Vai voltar ao Dolder Grand Hotel e daí vai seguir para o Aeroporto Kloten, onde vai apanhar um voo comercial para Londres. Vai passar dois dias a descansar no seu apartamento de Chelsea. Durante esse tempo vai efetuar várias chamadas do seu telefone e utilizar os cartões de crédito. Depois, infelizmente, vai desaparecer sem deixar rasto.
— Quem é ela?
— Basta saber que é parecida com você, a ponto de poder viajar com seu passaporte e entrar e sair do seu apartamento sem que os vizinhos desconfiem.
Temos ajudantes na Europa, Sarah, ajudantes de rosto branco.
— Mesmo assim, a polícia vai atrás de Zizi.
— Ninguém vai atrás de Zizi al-Bakari. A polícia terá perguntas, claro, e elas serão respondidas a seu tempo pelos advogados de Mr. Al-Bakari. A questão será tratada com discrição. É uma das grandes vantagens de ser saudita. Estamos mesmo acima da lei. Mas voltemos ao assunto que nos trouxe aqui.
Baixou o olhar e bateu com o bico da caneta na página em branco do bloco.
— Vai agora responder às minhas perguntas, Sarah? Ela aquiesceu.
— Responda, Sarah. Quero que se habitue a falar.
— Sim — disse.
— Sim, o quê?
— Sim, vou responder às suas perguntas.
— Chama-se Sarah Bancroft?
— Sim.
— Muito bem. A data e o local de nascimento mencionados rio passaporte estão corretos?
— Sim.
— O seu pai foi mesmo um executivo do Citibank?
— Sim.
— Os seus pais divorciaram-se mesmo?
— Sim.
— Frequentou a Dartmouth University, e mais tarde fez Mestrado no Courtauld Institute of Art de Londres?
— Sim.
— É Sarah Bancroft que redigiu tese muito bem recebida sobre Expressionismo alemão, que lhe valeu o doutorado?
— Sou.
— Nessa altura também trabalhava para a CIA?
— Não.
— Quando entrou para a CIA?
— Nunca entrei para a CIA.
— Está mentindo, Sarah.
— Não estou mentindo.
— Quando entrou para a CIA?
— Não pertenço à CIA.
— Então, para quem trabalha?
A jovem ficou em silêncio.
— Responda à pergunta, Sarah. Para quem trabalha?
— Sabe muito bem para quem trabalho.
— Quero ouvi-la a dizê-lo.
— Trabalho para o serviço secreto do Estado de Israel.
O árabe tirou os óculos e fitou-a por um instante.
— Está dizendo a verdade, Sarah?
— Sim.
— Se estiver mentindo eu vou descobrir.
— Eu sei.
— Quer mais um pouco de chá? Sarah anuiu.
— Responda, Sarah. Quer mais chá?
— Sim, quero mais chá.
Muhammad inclinou-se para trás na cadeira e bateu com a palma da mão na porta da câmara. Esta abriu-se de imediato e, lá fora, Sarah viu dois homens de guarda.
— Mais chá — disse-lhes Muhammad em inglês. Depois abriu uma página nova no bloco e olhou-a, com o seu rosto expressivo e sincero. Sarah levou a mão ao relógio imaginário e acrescentou mais dez minutos.
Embora Sarah não soubesse, o cenário do seu interrogatório era o em grande medida católico apostólico cantão de Uri, na região do país a que os suíços se referiam carinhosamente como Suíça Interior. O chalé ficava localizado num vale estreito, atravessado por um afluente do rio Reuss. Havia uma única estrada no vale e uma aldeia isolada no topo. Uzi Navot examinou-a rapidamente, ao que deu a volta e desceu mais uma vez o vale. Sabia por experiência própria que os Suíços eram um dos povos mais alerta do planeta.
Os sauditas tinham tentado fugir dele em Zurique, mas Navot estivera preparado. Sempre defendera que, ao seguir um profissional que espera ser vigiado, o melhor é deixá-lo pensar que está mesmo a ser seguido. Ainda mais importante, que as suas medidas preventivas estão a resultar. Navot sacrificara três dos vigias no norte de Zurique em prol dessa causa. Foi o próprio Navot quem observou o Mercedes com matrícula diplomática a entrar no armazém do Industrie-Quartier, e foi também ele quem, vinte minutos mais tarde, o seguiu para fora de Zurique.
A equipe voltara a agrupar-se ao longo das margens do Zürichsee e juntaram-se a ele na perseguição para sul, em direção ao Uri. O mau tempo garantira-lhes uma proteção adicional. Prestava agora o mesmo serviço a Navot, que saiu do carro e atravessou furtivamente o denso arvoredo até o chalé, com uma arma nas mãos esticadas. Trinta minutos depois, após ter avaliado superficialmente a propriedade e a segurança, voltara ao volante e descia ao vale do rio Reuss. Aí estacionou num desvio junto à margem, e aguardou que Gabriel regressasse de Zurique.
— Quem é o seu oficial de controle?
— Não sei o nome dele.
— Vou perguntar outra vez. Como se chama o seu oficial de controle?
— Já lhe disse, não sei o nome dele. Pelo menos o verdadeiro.
— Por qual nome o conhece?
Não diga Gabriel, pensou.
Disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Disse que se chamava Ben.
— Ben?
— Sim, Ben.
— Tem certeza? Ben?
— Não é o nome verdadeiro. Apenas disse que se chamava assim.
— Como sabe que não é o nome verdadeiro?
Sarah aproveitou os pormenores do interrogatório, pois ganhava minutos no relógio imaginário.
— Porque disse que não era o nome verdadeiro.
— E acreditou nele?
— Acho que não tinha motivo para não acreditar.
— Quando conheceu este homem?
— Em dezembro.
— Onde?
— Em Washington.
— Em que hora do dia?
— À noite.
— Foi a sua casa? Ao seu local de trabalho?
— Foi depois do trabalho. Estava a caminho de casa.
— Diga-me como aconteceu, Sarah. Conte-me tudo.
Assim fez, migalha a migalha, gota a gota.
— Onde era essa casa para onde a levaram?
— Em Georgetown.
— Que rua de Georgetown?
— Estava escuro. Não me lembro.
— Que rua de Georgetown, Sarah?
— N Street, acho.
— Acha ou tem certeza?
— Era a N Street.
— O número?
— Não tinha número.
— Qual era o quarteirão?
— Não me lembro.
— Era a leste da Winsconsin Avenue, ou a oeste, Sarah?
— Conhece Georgetown?
— Leste ou oeste?
— Oeste. Ficava a oeste.
— Qual era o quarteirão, Sarah?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro, acho eu.
— Acha?
— Entre o trinta e três e o trinta e quatro.
— De que lado da rua?
— Como assim?
— De que lado da rua, Sarah? Norte, ou sul?
— Sul. Era do lado sul.
Às duas e quarenta e cinco da madrugada, Navot avistou o Audi subindo a estrada a uma velocidade pouco compatível com as condições atmosféricas agrestes. Ao passar por ele, reduzido a uma mancha indistinta de neve e de água levantada da estrada, avistou de relance os quatro homens de ar tenso no seu interior. Agarrou no telefone e marcou um número.
— Acabaram de passar por mim — disse, calmamente. Olhou pelo espelho e viu o Audi quase saindo da pista quando reduziu a marcha. Calma, Gabriel, pensou. Calma.
— Quem foi o primeiro a falar com você? O homem da CIA ou o judeu?
— O americano.
— Que tipo de coisas lhe perguntaram?
— Falamos, de modo geral, sobre a guerra ao terrorismo.
— Por exemplo?
— Perguntou o que, na minha opinião, devia ser feito com os terroristas. Se deviam ser levados para a América para serem julgados ou se deviam ser mortos em campo por homens de negro.
— Homens de negro?
— Foi assim que os chamou.
— Referia-se a forças especiais? Assassinos da CIA? Navy SEAL?
— Imagino que sim.
— E o que respondeu?
— Quer mesmo saber?
— Caso contrário, não teria perguntado.
E Sarah contou, uma pequena colher de cada vez.
Reuniram-se em círculo junto à margem do rio, e Navot transmitiu rapidamente a Gabriel tudo o que sabia.
— Há mais guardas no terreno, ou apenas os dois na entrada?
— Não sei.
— Quantos dentro de casa?
— Não sei.
— Viu para onde a levaram?
— Não.
— Houve mais trânsito na estrada?
— É uma estrada muito calma.
— É muito pouca informação, Uzi.
— Fiz o melhor que pude. — Eu sei.
— Parece que só temos duas opções, Gabriel. Opção número um: outra operação de reconhecimento. Vai levar tempo. Acarreta riscos. Se nos virem, a primeira coisa que farão é matar Sarah.
— Opção dois?
— Avançar de imediato. Voto na segunda opção. Só Deus sabe o que Sarah está passando lá dentro.
Gabriel fitou a neve e ponderou durante um momento.
— Avançamos já — decidiu. — Você, Mikhail, Yaakov e eu.
— Salvar reféns não faz parte das minhas habilidades, Gabriel. Sou recrutador de agentes.
— Eli menos ainda, e quero pelo menos quatro homens. Moshe e Eli ficam com os carros. Quando der o sinal, vão nos buscar.
— Quando chegou o judeu?
— Não me lembro da hora exata.
— Aproximadamente?
— Não me lembro. Talvez meia hora depois de eu ter chegado, por isso talvez fosse por volta das sete.
— E apresentou-se logo como Ben?
— Não foi de imediato.
— Usou primeiro outro nome?
— Não. No início não tinha nome.
— Descreva-o, por favor. — Era um pouco baixo.
— Era gordo ou magro?
— Magro.
— Muito magro?
— Era atlético.
— Cabelo?
— Sim.
— Cor?
— Escuro.
— Comprido ou curto?
— Curto.
— Tinha alguma parte do cabelo grisalha?
— Não.
Muhammad pousou calmamente a caneta sobre o bloco.
— Está mentindo, Sarah. Se voltar a mentir, a nossa conversa termina e passaremos a outros meios. Compreende?
A jovem anuiu.
— Responda, Sarah.
— Sim, compreendi.
— Ótimo. Agora descreva com precisão o judeu que disse que se chamava Ben.
36
CANTÃO DE URI, SUÍÇA
— Voltemos ao aspecto do cabelo. Diz que era curto? Como o meu?
— Um pouco mais comprido.
— E escuro?
— Sim.
— Mas grisalho em alguns lugares, não é? Nas têmporas, por exemplo?
— Sim, as têmporas são grisalhas.
— E agora os olhos. São verdes, não são? Estranhamente verdes.
— Os olhos dele são muito verdes.
— Este homem tem algum talento especial?
— Muitos.
— Restaura quadros?
— Sim.
— E tem certeza de que nunca ouviu um nome?
— Já lhe contei. Ele disse que se chamava Ben.
— Sim, eu sei, mas alguma vez se referiu a outro nome?
— Não, nunca.
— Tem certeza, Sarah?
— Absoluta. Disse que se chamava Ben.
— Esse não é o nome dele, Sarah. O nome verdadeiro é Gabriel Allon. E é um assassino de palestinos. Agora, por favor, diga o que aconteceu quando ele chegou à casa de Georgetown.
Havia uma placa no início do caminho que dava acesso ao chalé. Dizia PARTICULAR. O portão ficava a trezentos metros para o interior do arvoredo. Gabriel e Navot avançaram de um dos lados do caminho, Mikhail e Yaakov do outro. Ao longo do vale, a neve que acompanhava a estrada era profunda, mas entre as árvores era menos espessa. Vista através dos óculos de visão noturna, brilhava com um clarão verde fantasmagórico, enquanto os troncos dos pinheiros e dos abetos eram escuros e nítidos. Gabriel avançou com cuidado, evitando ramos caídos que poderiam estalar com o seu peso. A floresta estava mergulhada num silêncio de morte. Distinguia o coração a bater-lhe no peito e o som dos passos de Navot, atrás de si. Segurava a Beretta com as duas mãos. Não tinha luvas. Quinze minutos depois de ter entrado nas árvores, avistou a casa pela primeira vez. As janelas do rés-do-chão estavam iluminadas, bem como uma única janela do primeiro andar. Os guardas abrigavam-se no calor de um dos jipes, que tinha o motor a trabalhar e os faróis apagados. O portão estava aberto.
— Tem ângulo de tiro, Mikhail?
— Sim.
— Qual é o melhor para você?
— O motorista.
— São quase cinquenta metros, Mikhail. Consegue um tiro preciso?
— Consigo.
— Na cabeça, Mikhail. Temos de fazer sem barulho.
— Consigo.
— Mire e espere meu sinal. Disparamos juntos. E que Deus nos ajude, se falharmos.
— Portanto, Allon pediu que o ajudasse?
— Sim.
— E concordou?
— Sim.
— De imediato?
— Sim.
— Sem hesitar?
— Sim.
— Por quê?
— Porque vocês são maus. E eu os odeio.
— Cuidado com a língua.
— Queria a verdade.
— O que aconteceu em seguida?
— Pedi demissão do emprego no Phillips Collection e fui para Londres.
Gabriel mirou cuidadosamente o homem no lugar do morto.
— Está pronto, Mikhail?
— Estou.
— Dois tiros, ao meu sinal, em cinco, quatro, três, dois...
Gabriel apertou duas vezes o gatilho. No para-brisas do jipe surgiram quatro orifícios quase simultâneos. Correu pela neve que chegava aos joelhos, com Navot atrás, e aproximou-se com cautela do jipe, a Beretta nas mãos estendidas. Mikhail conseguira dois tiros certeiros na cabeça do motorista, mas o alvo de Gabriel fora atingido no rosto e no peito e ainda estava semiconsciente.
Gabriel alvejou-o duas vezes pela janela do lado do passageiro e depois ficou imóvel por um instante, enquanto perscrutava o terreno, em busca de algum indício de que a sua presença tivesse sido detectada. Foi Navot quem reparou no guarda que surgiu das árvores à esquerda da casa, e Mikhail quem o abateu com um tiro único na cabeça, que lançou sangue e massa cerebral sobre a neve imaculada. Gabriel virou-se e atravessou a clareira até o chalé, com os outros três homens atrás de si.
— Fale-me desse homem, o Julian Isherwood.
— O Julian é uma pessoa muito querida.
— É judeu?
— Nunca foi referido.
— Julian Isherwood é um agente de longa data do serviço secreto israelense?
— Não lhe sei dizer.
— Portanto, assim que deixou o Phillips Collection, começou de imediato a trabalhar como diretora-adjunta de Julian Isherwood?
— Exatamente.
— Mas era totalmente amadora. Quando foi treinada?
— À noite.
— Onde?
— Numa casa de campo a sul de Londres.
— Onde ficava essa casa de campo?
— Em Surrey, creio. Nunca ouvi o nome da aldeia. — Era uma casa de segurança israelense permanente?
— Foi alugada. Muito temporariamente.
— Havia mais alguém, além do Allon?
— Sim.
— Usaram outras pessoas para ajudar a treiná-la?
— Sim.
— Diga-me alguns dos nomes.
— As pessoas que vieram de Tel Aviv nunca me disseram os nomes.
— E quanto aos restantes membros da equipe londrina de Allon?
— O que têm?
— Diga-me os seus nomes.
— Por favor, não me obrigue a fazê-lo.
— Diga-me os nomes, Sarah.
— Por favor, não.
Bateu-lhe com violência suficiente para a derrubar da cadeira. Sarah permaneceu tombada por um instante, com as algemas a cravarem-lhe os pulsos, enquanto o árabe lhe exigia os nomes aos gritos, — Diga-me os nomes, Sarah. De todos.
— Havia um homem chamado Yaakov.
— Quem mais?
— Yossi.
— Diga-me outro nome, Sarah.
— Eli.
— Outro.
— Dina.
— Outro.
— Rimona.
— E eram as mesmas pessoas que a seguiram em Saint-Barts?
— Sim.
— Quem foi o homem que a abordou pela primeira vez na praia de Saline?
— Yaakov.
— Quem foi a mulher que lhe deixou a mensagem no banheiro do restaurante em Saline?
— Rimona.
— Quem foi a garota manca que esteve no restaurante Le Tetou antes de ir ao banheiro?
— Dina.
— Essas pessoas são todas judias.
— É uma surpresa assim tão grande?
— Então, Sarah? É judia?
— Não, não sou.
— Nesse caso, por que os ajudou?
— Porque odeio vocês.
— Pois é, e veja só o que ganhou com isso.
Encontraram mais um guarda antes de chegarem ao chalé. Surgiu da direita, contornando a esquina da casa, e entrou em espaço aberto com a arma ainda de lado. Gabriel e Mikhail dispararam em conjunto. Os tiros foram abafados pelos silenciadores, mas o guarda proferiu um único grito lancinante quando a salva de tiros lhe trespassou o peito. Como figuras numa galeria de tiro, dois rostos apareceram de repente às janelas iluminadas da casa — um na janela do rés-do-chão mesmo à frente de Gabriel, e um segundo no andar de cima, no extremo do telhado. Gabriel abateu o homem da janela térrea, enquanto Mikhail se encarregou do indivíduo do piso superior.
Tinham agora perdido qualquer elemento de surpresa. Gabriel e Mikhail recarregaram as armas enquanto corriam os trinta metros finais até a porta da frente. Yaakov, com grande experiência na entrada em esconderijos terroristas na Cisjordânia e em Gaza, liderou as operações. Não se deu ao trabalho de experimentar a fechadura. Em vez disso, gastou um carregador de munições a disparar através da porta, para abater qualquer indivíduo que se encontrasse do outro lado, e depois rebentou com a tranca e perfurou a madeira da ombreira da porta. Navot, o maior dos quatro homens, lançou o corpo possante contra a porta, a qual tombou para o interior como uma peça de dominó derrubada.
Os outros três entraram rapidamente no pequeno hall de entrada. Gabriel cobriu o espaço à esquerda, Yaakov o centro e Mikhail a direita. Ainda com os óculos de visão noturna, Gabriel viu o homem que abatera pela janela caído no chão, rodeado por uma poça do seu próprio sangue. Yaakov e Mikhail dispararam de imediato e Gabriel ouviu os gritos de outros dois moribundos. Avançaram para o interior do chalé, encontraram os degraus de acesso à cave e desceram. Vamos começar por ali, indicara Gabriel. Os torturadores gostam sempre de fazer seu trabalho debaixo da terra.
Sarah descrevia o dia da venda quando lhes chegou o som de um distúrbio no piso superior. Muhammad silenciou-a com um golpe brutal no rosto, depois levantou-se e, de arma em riste, dirigiu-se rapidamente à porta. Segundos mais tarde, ouviu gritos e passos na neve. Muhammad virou-se e apontou a arma para o rosto de Sarah. Ainda algemada, a jovem baixou por instinto a cabeça entre os braços, ao mesmo tempo em que o árabe apertava duas vezes o gatilho. Na câmara minúscula, os tiros pareceram salvas de canhão. Os disparos cruzaram o espaço acima da cabeça de Sarah e cravaram-se na parede atrás de suas costas.
Muhammad gritou, enraivecido por ela ter tido a indecência de escolher a vida em vez da morte, e aproximou-se para um novo tiro. Nesse momento, a porta caiu para dentro, como se se arrebentada pelo impacto de uma bomba. Caiu nas costas de Muhammad e derrubou-o. Ainda tinha a arma na mão. Ergueu-se sobre um joelho e voltou a apontá-la para Sarah no preciso instante em que dois homens irromperam na câmara, rostos ocultos por máscaras e óculos de visão noturna. Abateram Muhammad. Continuaram a disparar até ficarem de carregadores vazios.
Cortaram as algemas e os grilhões, e levaram-na para longe dos corpos. Lá fora, aninhou-se como uma criança nos braços de Gabriel. Ele a transportou através da clareira nevada e pelo caminho até a estrada, onde Lavon e Moshe aguardavam com os carros. O silêncio da floresta foi trespassado pelos lamentos de Sarah. — Tive de contar coisas.
— Eu sei.
— Eles me bateram. Disseram que iam me matar.
— Eu sei, Sarah. Eu vi a sala.
— Eles sabem de você, Gabriel. Tentei...
— Está tudo bem, Sarah. A culpa foi nossa. Fomos nós que te deixamos mal.
— Desculpe, Gabriel. Sinto tanto.
— Por favor, Sarah. Não.
— Eu o vi novamente.
— Quem?
— Bin Shafiq.
— Onde ele estava?
— Em Zurique. Ele ainda não acabou, Gabriel.
— O que ele disse?
— Vai atacar o Vaticano outra vez.
37
ZUG, SUÍÇA
Dois dos vigias de Navot conseguiram dirigir-se para sul e atravessar a fronteira italiana antes que as condições atmosféricas cortassem as passagens da montanha.
Os outros dois viajaram para oeste, para a Áustria. Navot juntou-se a Moshe e foram para Paris, onde estabeleceram uma rede de segurança em redor de Hannah Weinberg. Gabriel levou Sarah até a pista aérea privada no exterior de Zug. Durante a viagem de carro foram sentados como amantes, Gabriel com o braço em volta dos ombros de Sarah, que mantinha o rosto molhado pelas lágrimas contra o pescoço dele. Eram quatro e trinta quando o avião levantou voo para as nuvens e desapareceu. Carter e Gabriel não se encontravam a bordo.
— Muito bem, Gabriel, sou todo ouvidos.
— A Sarah viu Bin Shafiq em Zurique. Ele disse-lhe que iam atacar novamente o Vaticano.
Carter praguejou baixinho.
— O seu presidente está em Roma, não é?
— É verdade.
— A que horas deverá chegar ao Vaticano?
— Ao meio-dia.
Gabriel olhou para o relógio. — Há uma ligação entre Zurique e Roma de hora a hora. Se nos apressarmos, podemos apanhar o avião das sete.
— Vamos embora — disse Carter.Gabriel ligou o carro e dirigiu-se a Zurique. Carter telefonou para a sede da CIA e pediu uma ligação ao chefe do Serviço Secreto americanos. Carter passou os primeiros trinta minutos da viagem ao telefone. Quando as luzes de Zurique surgiram por entre a névoa do extremo norte do lago, desligou o telefone e olhou para Gabriel.
— A Sarah vai aterrar na Base Aérea de Ramstein daqui a menos de uma hora. Vai ser levada para um hospital militar americano, onde será submetida a um exame completo.
O que diz o teu médico?
O estado é o que se poderia esperar. Escoriações e contusões no rosto. Um pequeno traumatismo. Danos no olho esquerdo. Lesões abdominais profundas. Duas costelas rachadas. Dois dedos dos pés partidos. Por que será que fizeram isso? — Arrastaram-na escadas abaixo até a cave.
— Ah, e a hipotermia. Imagino que isso se deva à viagem na bagageira. Bem vistas as coisas, podia ter sido bem pior.
— Garante que está sempre alguém com ela — avisou Gabriel.
— Só faltava que ela contasse os nossos segredos aos médicos de Ramstein.
— Não te preocupes, Gabriel. Ela está em boas mãos.
— Ela diz que falou.
— É claro que falou. Que raios, eu próprio teria falado.
— Devias ter visto a sala.
— Sinceramente, ainda bem que não vi. Isso não faz o meu gênero. Às vezes tenho saudades dos bons velhos tempos da Guerra Fria, quando a tortura e o sangue não entravam no meu jogo. — Carter olhou para Gabriel. — Imagino que sempre tenha feito parte do teu.
Gabriel ignorou-o.
— Ela disse-lhes tudo para ganhar tempo. A questão é, será que o Muhammad conseguiu relatar alguma da informação aos superiores, antes da nossa chegada?
— Tens o caderno dele?
Gabriel bateu no bolso do peito do blusão de couro.
— Questionaremos a Sarah quando ela recuperar.
— Pode não se lembrar de tudo o que lhes disse. Estava cheia cie drogas. Prosseguiram em silêncio durante alguns instantes. Embora ainda fosse cedo, havia já trânsito na estrada. Homens de negócios suíços, pensou Gabriel. Interrogou-se quantos deles trabalhariam para empresas ligadas, por mais remotamente, à AAB Holdings, de Riad, Genebra e pontos intermédios.
— Achas que vão deixar-me embarcar neste avião, Adrian?
— Gustav garantiu-me que a nossa partida não vai ter problemas.
— Talvez não tenha, mas o meu passado aqui em Zurique é bastante interessante. — O teu passado é interessante em todo o lado. Não te preocupes, Gabriel. Vão deixar-te embarcar.
— Tens certeza de que o teu amigo Gustav vai abafar o que aconteceu?
— Abafar o quê? — Carter conseguiu esboçar um sorriso fatigado.
— Neste momento temos uma equipe de limpeza a caminho de Uri. O Gustav vai manter a propriedade isolada até que lá cheguem. E depois... — Encolheu os ombros. — Vai ser como se nada tivesse acontecido.
— O que vão fazer com os corpos?
— Não temos apenas prisões secretas na Europa Oriental. Vão ter um funeral decente, o que é mais do que qualquer um deles merece. E talvez um dia, quando esta guerra sem fim acabar de vez, possamos dizer a algum dos familiares onde reclamar os corpos. — Carter alisou o bigode. — Vocês têm um, não têm?
— Um quê?
— Um cemitério secreto? Algures no vale do Jordão? Gabriel lançou um olhar demorado ao espelho retrovisor, mas não disse nada.
— Quantos corpos, Gabriel? Lembra?
— É claro que lembro.
— Quantos são? A equipe tem de saber onde procurar.
Gabriel disse. — Dois no jipe. Dois na clareira em frente ao chalé. Um na janela do térreo. Um na janela do primeiro andar. Dois no hall de entrada. Dois no fundo da escada. E Muhammad.Onze homens. Vamos descobrir quem eram e quais os seus planos. Mas creio que neste momento é lícito dizer que eliminou uma célula importante, juntamente com uma alta patente da operação de Bin Shafiq.
— Não pegamos quem queríamos.
— Algo me diz que vai encontrá-lo.
— Pelo menos dois eram europeus e Uzi ouviu um deles falando alemão com sotaque suíço.
— Receio que tenham de ser enterrados com os outros. Imagino que seja o que teriam desejado. — Carter olhou para o relógio. — Não pode ir mais depressa?
— Já estou a cento e trinta, Adrian. O que você disse ao Serviço Secreto?
— Que tinha provas bem concretas de que as forças da jihad global planejam um atentado ao presidente esta tarde, no Vaticano. Enfatizei as palavras "provas bem concretas". O Serviço Secreto entendeu a mensagem e espero ter alguns momentos a sós com o presidente ainda de manhã. Vai ficar na residência do embaixador.
— Talvez não fosse má ideia pensar em cancelar a visita.
— Isso está fora de questão — rejeitou Carter. — Neste momento o Vaticano é o símbolo mais visível no mundo dos perigos do terrorismo islâmico. Este presidente não vai desperdiçar a oportunidade de reforçar sua mensagem nesse palco.
— Ele vai ouvir um sermão do Lucchesi.
— E está pronto para isso — asseverou Carter. — Quanto à segurança, o Serviço Secreto já está reunido com os italianos para alterar os planos de viagem do presidente. Por coincidência, já pensavam nisso antes de eu telefonar. Roma está uma confusão. Esperam dois milhões de pessoas nas ruas.
— Como vai entrar no Vaticano?
— As caravanas dos chefes de Estado em visita costumam entrar pela Porta de Santa Ana, e depois sobem a Via Belvedere até o Pátio San Damaso. Aí vai ser recebido pelo comandante da Guarda Suíça e escoltado até o Palácio Apostólico. Os guarda-costas dos chefes de Estado em visita têm de ficar no pátio. É o protocolo do Vaticano. O chefe de Estado sobe sozinho, protegido apenas pela Guarda. Mas vou contar-te um pequeno segredo. Os Serviços Secretos incluem sempre alguns agentes na comitiva oficial... rapazes católicos que desejam conhecer o Santo Padre.
— Que alterações vão fazer?
— O presidente vai de helicóptero até o Vaticano e aterra no heliporto do papa.
— Fica no canto ocidental mais extremo, mesmo ao lado do muro. Se alguém estiver à espera na Viale Vaticano com outro míssil...
— Os Serviços Secretos dizem que a zona pode ser protegida.
— Quantos rapazes católicos vão introduzir na delegação oficial do presidente? — Mais do que o habitual. — Carter voltou a olhar para o relógio. — Talvez devêssemos entrar no aeroporto com alguns minutos de intervalo um do outro. Langley marcou-nos lugares separados.
— Tens vergonha de ser visto comigo, Adrian?
— Por acaso nunca estive mais orgulhoso. Tu e os teus rapazes mostraram muita coragem, lá no chalé.
— Não tínhamos alternativa, Adrian. Nunca temos alternativa. Carter fechou os olhos por um instante.
— Sabes, é possível que Bin Shafiq estivesse apenas a gabar-se, ou a enganá-la por qualquer motivo.
— Por que haveria de enganá-la, Adrian? Ia matá-la.
38
CIDADE DO VATICANO
— Ainda bem que o seu amigo monsenhor pediu que lhe desse carona — disse o capitão dos Carabinieri. — Caso contrário, nunca teria conseguido ir de Fiumicino ao Vaticano.
Gabriel olhou pela janela do helicóptero. Roma estava abaixo dele. O Villa Borghese fora ocupado como base de concentração dos manifestantes e era naquele momento um mar de humanidade. Os primeiros elementos saíam do fundo do parque para a Via Veneto.
— Conseguem mantê-los afastados do Vaticano?
— Vamos tentar. — O capitão apontou pela janela. — Está vendo aquelas barricadas? Nosso plano é guiá-los até o Parque Janiculum. Mas esperamos dois milhões de manifestantes. Se perdermos o controle... — Encolheu os ombros à italiana. — Ainda bem que já não faço serviço antimotim. Aquilo lá em baixo pode virar zona de guerra.
O helicóptero virou e encaminhou-se para a cidade-estado. A cúpula da basílica, parcialmente oculta pelos enormes taipais das equipes de trabalho, brilhava à luz do sol, enquanto o apelo de paz do papa se agitava na fachada à suave brisa matinal. Reduziram altitude sobre o Viale Vaticano, mantendo-se no espaço aéreo italiano o mais possível, após o que cruzaram a parede e aterraram no heliporto papal. Donati, de batina preta e faixa vermelha, aguardava-os, com um guarda suíço à paisana a seu lado. A expressão no rosto do sacerdote alto era sombria quando apertaram brevemente as mãos e atravessaram os Jardins do Vaticano em direção ao Palácio Apostólico.
— Qual é a gravidade desta vez, Gabriel?
— Muita.
— Pode dizer-me por quê?
— A mensageira — respondeu Gabriel. — A mensageira.
Gabriel esperou até chegarem ao gabinete de Donati, no segundo andar, antes de lhe contar mais. Donati percebeu que ouvia parte da história. Estava preocupado demais com a segurança de seu chefe para protestar.
— Quero que fique ao lado dele até que o presidente saia do Vaticano.
Dessa vez, Gabriel não se opôs.
— Gabriel, está com um aspeto horrível — comentou Donati. — Quando foi a última vez que dormiu?
— Muito sinceramente, não me lembro.
— Receio que não haja tempo para dormir — adiantou Donati —, mas temos de fazer alguma coisa quanto a sua aparência. Imagino que não tenha trazido um terno.
— Quem me dera poder explicar até que ponto essa questão me parece ridícula.
— Vai precisar de alguma roupa adequada. O destacamento de proteção papal da Guarda Suíça usa terno e gravata. Acho que o comandante poderá encontrar trajes razoáveis.
— Há uma coisa de que preciso mais do que de um terno completo, Luigi.
— De que se trata?
Gabriel disse.
— A Guarda Suíça também vai tratar disso.
Donati pegou o telefone e teclou um número.
Dez minutos depois, o mesmo guarda suíço que estivera ao lado de Donati no heliporto aguardava Gabriel no Pátio San Damaso. Tinha a mesma altura que Gabriel, com ombros largos que enchiam o casaco do fato e o pescoço musculoso de um jogador de rugby. O cabelo louro fora cortado quase rente ao escalpe da cabeça em forma de bala, o que deixava o fio do auricular perfeitamente visível.
— Já nos conhecemos? — perguntou Gabriel ao guarda em alemão, quando começaram a descer a Via Belvedere.
— Não, senhor.
— Parece-me familiar.
— Eu era um dos guardas que o ajudaram a levar o Santo Padre para o Palácio Apostólico, depois do atentado.
— Bem me parecia — disse Gabriel. — Como se chama?
— Cabo Erich Müller.
— Vem de que cantão, cabo?
— Nidwalden. É um semicantão, próximo de...
— Sei onde fica — atalhou Gabriel.
— Conhece a Suíça?
— Muito bem.
Pouco antes de chegarem à Porta de Santa Ana, cortaram à direita e entraram no aquartelamento da Guarda Suíça. Na zona de recepção, um oficial de serviço estava sentado a uma secretária em forma de meia-lua. À sua frente tinha uma série de monitores de televisão de circuito fechado. Na parede atrás dele havia um crucifixo e uma fileira de bandeiras que representavam cada um dos vinte e seis cantões suíços. Quando Gabriel e Müller passaram, o oficial de serviço fez uma anotação no registro.
— A Zona Suíça tem um controle muito estreito — explicou Müller. — Existem três pontos de entrada diferentes, mas este é o principal.
Deixaram a recepção e viraram à direita. À sua frente estendia-se um longo corredor escuro, com alojamentos minúsculos como celas para os soldados. Ao fundo do corredor ficava uma arcada e, a seguir a esta, um pátio interior de pedra, onde um sargento instrutor treinava seis noviços com espingardas de madeira. Entraram no edifício no lado oposto do pátio e desceram um lance de degraus de pedra que dava acesso à carreira de tiro. Estava silenciosa e vazia.
— É aqui que fazemos o treino de tiro. As paredes deviam ser à prova de som, mas por vezes os vizinhos queixam-se do barulho.
— Os vizinhos?
— O Santo Padre parece não se importar, mas o cardeal secretário de Estado não aprecia o som dos disparos. Não treinamos aos domingos, nem em dias santos.
— Müller dirigiu-se a um armário metálico e abriu o cadeado. — A nossa arma pessoal regulamentar é a SIG-Sauer 9 mm, com capacidade para quinze munições.
— Olhou para Gabriel quando abriu as portas do armário. — É uma arma de fabrico suíço. Muito precisa... e muito poderosa. Quer experimentá-la?
Gabriel anuiu. Müller retirou uma arma, um carregador vazio e uma caixa de munições e levou-as até o estande de tiro. Começou a carregar a arma, mas Gabriel o deteve.
— Eu faço isso. Por que não trata do alvo?
— O guarda suíço prendeu um alvo na linha e o fez chegar ao meio da pista.
— Mais longe — disse Gabriel. — No fundo, por favor. — Müller fez o que lhe era pedido. Quando o alvo chegou à parede mais distante, Gabriel introduzira quinze balas no carregador, já posicionado na coronha da pistola.
— É rápido — comentou Müller. — Deve ter boas mãos.
— Treinei muito.
Ofereceu a Gabriel proteção para olhos e ouvidos.
— Não, obrigado.
— Regras do estande de tiro.
Gabriel virou-se sem aviso e abriu fogo. Continuou a disparar até esvaziar a arma. Müller puxou o alvo enquanto Gabriel ejetava o carregador vazio e recolhia os invólucros.
— Meu Deus.
Os quinze tiros estavam agrupados no centro do rosto do alvo.
— Quer disparar outra vez? — perguntou Müller.
— Não é preciso.
— E um coldre para o ombro?
— Para isso serve a calça.
— Vou buscar mais um carregador.
— Traga dois, por favor. E outra caixa de balas.
Recolheu um embrulho com roupas no gabinete do comandante e depois apressou-se a voltar ao Palácio Apostólico. No segundo andar, Donati levou-o a um pequeno apartamento de hóspedes, com casa de banho privativa e duche.
— Roubei essa lâmina do Santo Padre — explicou Donati. — As toalhas estão no armário por baixo da pia.
O presidente só deveria chegar dali a noventa minutos. Gabriel barbeou-se com cuidado e depois passou vários minutos debaixo do chuveiro. A roupa que lhe tinha sido cedida pela Guarda Suíça assentava-lhe muito bem, e às onze horas percorria o corredor decorado com frescos que dava acesso ao apartamento privado do papa, com tão bom aspeto quanto possível.
Fizera mais um pedido a Donati antes de ter ido ao aquartelamento da Guarda Suíça: uma cópia do relatório final, redigido em conjunto pelos serviços de segurança italiano e do Vaticano, sobre o atentado de outubro. Leu-o enquanto bebia um cappucino e comia um cornetto na sala de jantar papal particular, e depois gastou alguns minutos percorrendo os canais da televisão do papa em busca de algum comentário sobre onze corpos encontrados num chalé suíço. Não houve referência ao caso nos canais noticiosos internacionais.
Imaginou que a equipe de Carter tivesse completado sua tarefa.
Donati foi buscá-lo às onze e quarenta e cinco. Percorreram o Palácio Belvedere e encontraram um gabinete vazio com uma boa vista dos Jardins. Momentos depois, as árvores começaram a contorcer-se, após o que apareceram dois enormes helicópteros de rotores duplos, que desceram no heliporto no extremo da cidade-estado. Gabriel perdeu alguma da tensão que sentia quando viu o primeiro helicóptero a desaparecer em segurança atrás das copas das árvores. Cinco minutos depois avistaram pela primeira vez o presidente americano, que avançava com confiança para o palácio, cercado por várias dezenas de agentes do Serviço Secreto, armados e nervosos.
— Os agentes vão ter de esperar no Jardim — explicou Donati. — Os americanos não gostam, mas são as regras do protocolo. Sabia que tentam introduzir agentes secretos na delegação oficial?
— Não me diga.
Donati olhou para Gabriel.
— Há alguma coisa que queira me dizer?
Sim — respondeu Gabriel. — Devíamos voltar ao Palácio Apostólico. Gostaria de lá estar antes da chegada do presidente.
Donati virou-se e abriu caminho.
Chegaram à Sala Clementina, uma imponente sala de recepção decorada com frescos no andar por baixo dos aposentos privados do papa, cinco minutos antes do presidente. O Santo Padre ainda não chegara. Havia um destacamento cerimonial de guardas suíços à porta da vasta entrada, e vários outros à paisana no interior. Duas cadeiras ornamentadas estavam de um dos lados da enorme sala retangular. Do outro encontrava-se um bando de jornalistas, fotógrafos e operadores de câmera. O estado de espírito coletivo era mais desagradável do que o habitual. As revistas do equipamento e as confirmações de segurança levadas a cabo pela Guarda Suíça e pelo Serviço Secreto tinham sido mais invasivas do que o normal, e três equipes de filmagem europeias tiveram a entrada barrada devido a pequenas discrepâncias com as credenciais. A imprensa teria autorização para registrar os primeiros momentos do encontro histórico e para transmitir em direto as imagens para todo o mundo. Depois seria encaminhada para o exterior.
Donati regressou ao corredor, para esperar pelo Santo Padre. Gabriel deu mais uma vista de olhos pelo local, depois voltou à frente da sala e posicionou-se a poucos metros da cadeira reservada ao papa. Durante os minutos seguintes, percorreu com os olhos o bando de jornalistas, à procura de sinais de agitação, ou de um rosto que parecesse deslocado. Depois fez o mesmo com a delegação de prelados curiais à sua esquerda.
Pouco depois do meio-dia, a figura de sotaina branca do Santo Padre entrou na sala, acompanhado por Donati, o cardeal secretário de Estado e quatro guardas suíços à paisana. Entre eles seguia Erich Müller, o guarda que dera a arma a Gabriel. Cruzou brevemente o olhar com Gabriel, a quem reconheceu com um ligeiro aceno de cabeça. O papa atravessou a sala e deteve-se à frente da cadeira ornamentada. Donati, alto e vistoso na sua sotaina preta e faixa vermelha, estava ao lado do seu senhor. Olhou momentaneamente para Gabriel, ao que 353 dirigiu a atenção para a entrada, quando o presidente dos Estados Unidos fez a sua aparição.
Gabriel perscrutou rapidamente a delegação oficial do presidente Imaginou que entre os elementos viessem quatro agentes do Serviço Secreto, talvez mais dois ou três. Depois o seu olhar começou a varrer a sala como um holofote: os jornalistas, os prelados curiais, os guardas suíços, o presidente e o Santo Padre. Estavam agora a apertar as mãos, a trocar sorrisos calorosos à luz ofuscante das máquinas que iam sendo disparadas.
A rapidez da ação apanhou Gabriel desprevenido. Na verdade, não fosse por Donati, talvez nem sequer se tivesse apercebido, pensaria mais tarde. Donati arregalou subitamente os olhos e depois moveu-se com celeridade para o presidente. Gabriel virou-se e avistou a arma. Uma SIG-Sauer 9 mm — e a mão que a segurava pertencia ao cabo Erich Müller.
Gabriel sacou da sua própria arma e começou a disparar, mas não sem que Müller conseguisse apertar duas vezes o gatilho. Não ouviu os gritos, nem reparou nas máquinas fotográficas a disparar. Limitou-se a disparar até que o guarda suíço tombou morto no soalho de mármore. Os agentes do Serviço Secreto misturados na delegação americana agarraram no presidente e levaram-no para a porta. Pietro Lucchesi, bispo de Roma, Pontifex Maximus e sucessor de S. Pedro, caiu de joelhos e começou a rezar sobre o corpo imóvel de um padre alto de sotaina preta.
39
ROMA
Existem divisões no décimo andar da Clínica Gemelli de que poucos ouviram falar. Despojadas e austeras, são o espaço de um padre. No quarto está uma cama de hospital. Outra divisão contém sofás e cadeiras. A terceira é uma capela privada. No corredor junto à entrada localiza-se uma secretária para os guardas. Mesmo quando as divisões estão vazias, há sempre alguém de guarda. Embora a cama de hospital esteja reservada para o líder dos bilhões de Católicos Apostólicos do mundo, nessa noite encontrava-se ocupada pelo estimado secretário particular desse líder. A rua abaixo da janela estava cheia com milhares de fiéis. Às nove horas, o silêncio instalara-se para que se ouvisse o primeiro bollettino da Sala de Imprensa do Vaticano. Dizia ele que monsenhor Luigi Donati fora submetido a sete horas de cirurgia para reparar os danos provocados por dois tiros de 9 mm. O estado do monsenhor era descrito como sendo "extremamente grave", e o bollettino deixava bem claro que a sobrevivência continuava em dúvida. Concluía dizendo que o Santo Padre estava a seu lado e que tencionava lá permanecer durante o futuro próximo. Não mencionava o fato de Gabriel também lá se encontrar.
Estavam sentados lado a lado no divã da sala. Do outro lado de uma porta de ligação aberta, jazia Donati, pálido e inconsciente. Rodeava-o uma equipe de médicos e de enfermeiras de expressão sombria. Os olhos do Santo Padre estavam fechados e ele revirava as contas de um rosário. Uma larga mancha de sangue percorria-lhe a frente da sotaina branca. Recusara-se a despi-la. Ao olhar para ele, Gabriel lembrava-se de Shamron e do seu blusão de couro rasgado. Esperava que o Santo Padre não se viesse a culpar pelo que acontecera naquele dia.
Gabriel olhou para a televisão. Imagens do atentado, um dos mais dramáticos momentos alguma vez televisionados, cintilavam na tela. Estavam a ser transmitidas sem parar. Gabriel vira-as pelo menos uma dúzia de vezes e voltava a encará-las. Viu Müller a emergir do grupo de guardas suíços, a arma nas mãos estendidas. Viu-se a si próprio a puxar da arma que tinha no casaco, e Donati a lançar o corpo grande para a frente do presidente dos Estados Unidos quando Müller abriu fogo. Uma fração de segundo, pensou. Se tivesse visto Müller uma fração de segundo mais cedo, talvez tivesse conseguido atirar primeiro. E Donati não estaria à beira da morte no décimo andar da Clínica Gemelli. Gabriel olhou para o papa. Já não tinha os olhos fechados, mas fitos na tela de televisão. — Como soube que devia colocar-se à frente do presidente e não de mim? — Imagino que tenha percebido que o Müller o poderia ter morto inúmeras vezes, se quisesse. Müller pretendia matar o presidente primeiro, e Luigi apercebeu-se disso.
— Num piscar de olhos.
— É um dos homens mais inteligentes que já conheci, Sua Santidade. — Gabriel olhou para Donati. — Salvou a vida do presidente dos Estados Unidos, e provavelmente nem tem noção disso.
— O Luigi limitou-se a deter as balas — argumentou o papa —, mas foi o Gabriel quem o salvou. Se não fosse por si, nunca teríamos ficado à espera de uma coisa destas. Como soube, Gabriel? Como soube que iam voltar a atacar-nos hoje?
— Teremos de voltar a falar sobre isto mais tarde. Muito mais tarde. — Está a meio de uma operação, não está? Gabriel ficou em silêncio. — Erich Müller, um membro da minha guarda do palácio... A voz do papa desvaneceu-se. — Ainda não acredito. Como o fizeram, Gabriel? Como introduziram um assassino na Guarda Suíça?
— Os pormenores são muito vagos, Sua Santidade, mas parece que o Müller foi recrutado algum tempo depois de ter saído do exército suíço. Não tinha um emprego à espera, por isso passou cerca de um ano e meio a viajar pela Europa e pelo Mediterrâneo. Esteve vários meses em Hamburgo, e mais alguns em Amsterdam. Sabiam que participava com frequência em manifestações antiamericanas e anti-israelenses. Poderá ter-se convertido ao islamismo. Acreditamos que terá sido recrutado para a rede terrorista por um homem chamado professor Ali Massoudi.
— Massoudi? Sério? Deus nos ajude, Gabriel, mas achei que o professor Massoudi apresentou alguns dos seus trabalhos paira o estreitar de laços entre o islamismo e o ocidente à minha comissão especial. A dada altura, poderá mesmo ter visitado o Vaticano.
— Estreitar os laços entre o islamismo e a Igreja não fazia parte das verdadeiras intenções do professor Massoudi, Sua Santidade.
— É óbvio — admitiu o papa. — Imagino que agora saibamos quem abriu a Porta da Morte aos homens-bomba suicidas em outubro. Foi Müller, não foi?
Gabriel aquiesceu e olhou para a televisão quando o vídeo do atentado recomeçou.
— Interrogo-me quantas pessoas terão visto estas imagens hoje — disse o papa.
— Bilhões, Sua Santidade.
— Algo me diz que os seus dias como agente secreto chegaram ao fim. Bem-vindo ao mundo real, Gabriel,
— Não é um mundo onde me sinta à vontade.
— O que tem em mente?
— Tenho de voltar a Israel.
— E depois?
— O meu futuro é um pouco incerto.
— Como de costume — disse o papa. — Francesco Tiepolo disse que voltou a juntar-se a Chiara.
— Sim, Sua Santidade. Neste momento está em Israel.
— Quais são os seus planos?
— Tenho de me casar com ela, antes que volte a deixar-me.
— Bem pensado. E depois?
— Um passo de cada vez, Sua Santidade. — Permite-me que lhe dê mais um conselho?
— É claro.
— Neste momento, é o homem mais famoso de Itália. Um herói nacional. Algo me diz que o país iria recebê-lo de braços abertos. E, desta vez, não como Mario Delvecchio.
— Atravessaremos essa ponte quando a ela chegarmos.
— Se fosse a si, faria uma ponte de regresso a Veneza. O papa olhou em silêncio pela porta aberta.
— Não sei o que vou fazer se Deus o levar de mim. Não consigo gerir a Igreja Católica Apostólica sem Luigi Donati.
— Lembro-me do dia em que ele foi falar comigo a Jerusalém disse Gabriel. — Quando caminhávamos pela Cidade Velha, descrevi-o tolamente como sendo um homem sem fé ao lado de um grande crente. Mas foi preciso muita fé para se colocar à frente daquelas balas.
— Luigi Donati é um homem de uma fé extraordinária. Apenas não o percebe, às vezes. Agora sou eu quem tem de ter fé. Tenho de acreditar que Deus vai permitir que o tenha comigo durante mais algum tempo... E que Ele agora vai decidir-Se a acabar com esta loucura.
A questão seguinte do papa foi a mesma que colocara a Gabriel no final do atentado de Outubro.
— Acabou?
Desta vez, Gabriel fitou o televisor e não disse nada. Não, Sua Santidade, pensou. Ainda não.
PARTE QUATRO
A Testemunha
40
WASHINGTON
A comissão especial de inquérito do Senado reuniu-se um mês após o atentado à vida do presidente. Nas declarações de abertura, os elementos responsáveis garantiram ao povo americano que a investigação seria minuciosa e implacável, mas, ao fim da primeira semana, os senadores de ambas as fações encontravam-se notoriamente frustrados com o que consideravam ser uma falta de sinceridade por parte dos chefes de segurança e do serviço secreto do presidente. Os homens do presidente explicaram detalhadamente como as forças do extremismo islâmico global tinham sido capazes de penetrar o centro da cristandade e como o professor Ali Massoudi conseguira recrutar um jovem suíço de seu nome Erich Müller, e infiltrá-lo na Guarda Suíça Pontifícia. Contudo, no que dizia respeito a quem tinha dirigido os dois ataques ao Vaticano e, ainda mais importante, quem os financiara, os homens do presidente apenas podiam emitir uma opinião. Também não eram capazes de explicar aos membros do Comitê a presença no Vaticano de um tal Gabriel Allon, o agora lendário agente e assassino israelense. Após muita discussão interna, os senadores decidiram, eles próprios, intimá-lo.
Na qualidade de cidadão estrangeiro, não seria obrigado a obedecer à intimação e, como se esperava, recusou-se peremptoriamente em comparecer. Três dias mais tarde, de súbito, mudou de opinião. Iria testemunhar, disse-lhes, mas apenas em segredo. Os senadores concordaram e pediram-lhe que fosse a Washington na quinta-feira seguinte.
Entrou sozinho na sala de audiências subterrânea. Quando o presidente do Comitê lhe pediu que se levantasse e dissesse o seu nome para que ficasse registrado, obedeceu sem hesitar. — E trabalha para quem?
— Para o primeiro-ministro do Estado de Israel.
— Existem muitas questões que gostaríamos de lhe colocar, Mr. Allon, mas o seu embaixador disse-nos que o senhor não irá responder a qualquer pergunta que considere inadequada.
— Exatamente, Sr. Presidente.
— Também fomos informados de que deseja ler uma declaração para que esta fique registrada antes de darmos início ao interrogatório.
— Também é verdade, Sr. Presidente.
— Essa declaração tem que ver com a Arábia Saudita e sua relação com a América. — Sim, Sr. Presidente.
— Só uma advertência, Mr. Allon. Embora este depoimento esteja a ser recebido em segredo, será efetuada uma transcrição dos seus comentários.
— Compreendo, Sr. Presidente.
— Muito bem. Pode continuar.
Baixou o olhar e começou a ler a declaração. No canto mais afastado da sala, um homem estremeceu visivelmente. O Hércules veio ao Senado dos Estados Unidos, pensou. E trouxe uma aljava cheia de setas embebidas em fel.
— Parabéns, Gabriel — disse Adrian Carter. — Não conseguiste resistir, certo? Oferecemos-te o palco e fizeste bom uso dele.
— Os senadores precisavam de saber da verdadeira natureza do regime saudita e do seu apoio ao terrorismo global. O povo americano tem de saber como estão a ser gastos todos aqueles petrodólares.
— Pelo menos deixaste de fora o nome de Zizi.
— Tenho outros planos para ele.
— É melhor não. Além disso, agora não podes desviar os olhos da bola.
— Os olhos da bola? O que quer isso dizer?
— É uma metáfora desportiva, Gabriel. Praticas algum desporto?
— Não tenho tempo para isso.
— A cada dia que passa estás a ficar mais parecido com Shamron. — Vou aceitar isso como um elogio — respondeu Gabriel. — De que bola não posso desviar os olhos?
— Bin Shafiq. — Carter lançou a Gabriel um olhar de soslaio. — Algum sinal dele?
Gabriel abanou a cabeça.
— E vocês?
— Para dizer a verdade, podemos ter encontrado algo.
— Alguma coisa que me queira contar?
— Ainda não.
Carter atravessou a Memorial Bridge e virou para George Washington Parkway. Fez-se silêncio durante alguns minutos. Gabriel olhou pela janela e admirou a vista de Georgetown, do outro lado do rio.
— Pelo seu itinerário de viagem percebi que vai parar em Roma na volta a Israel — disse Carter. — Está pensando em aceitar outra missão do Vaticano?
— Só quero passar algum tempo com Donati. Quando saí de Roma, ainda não estava consciente. — Gabriel olhou para o relógio.
— Para onde me leva, Adrian?
— Tem algumas horas antes do voo. Há um lugar na terra dos cavalos da Virgínia onde podemos almoçar.
— Quanto tempo falta para chegarmos?
— Cerca de uma hora.
Gabriel recostou-se no banco e fechou os olhos.
Acordou ao entrarem numa pequena vila chamada The Plains. Carter reduziu ao transpor a minúscula zona comercial da baixa, em seguida atravessou um par de velhos carris e dirigiu-se novamente para o campo. A estrada era familiar a Gabriel, como o longo caminho de cascalho no qual Carter entrou três quilômetros mais tarde.
Seguia ao 364 longo da margem de um riacho estreito. À esquerda, via-se um prado a ondular e, no cimo deste, encontrava-se uma grande casa de campo com um telhado de cobre baço e um alpendre de dois andares. Quando Gabriel visitara a casa pela última vez, as árvores estavam nuas e o chão coberto de neve. Agora os abrunheiros estavam em flor e os campos assumiam um tom verde pálido devido à nova erva primaveril. Um cavalo atravessou o pasto a meio galope na direção deles, montado por uma mulher de cabelos dourados. O inchaço no rosto dela desaparecera e as feições tinham regressado ao normal. Tudo exceto as manchas negras sob os olhos, pensou Gabriel. Nos olhos de Sarah ainda existiam vestígios do pesadelo que vivera no chalé no cantão de Uri. Conduziu habilmente o cavalo ao lado do carro e espreitou para Gabriel. Um sorriso apareceu em seu rosto e, por um instante, era a bela mulher que vira descer a Q Street, em Washington, no outono anterior. Depois o sorriso desvaneceu-se e, com duas estocadas precisas com o calcanhar, fez o cavalo galopar através do prado, em direção à casa.
— Tem dias bons e dias maus — disse Carter, enquanto a observava afastar-se.
— Mas tenho certeza de que compreende.
— Sim, Adrian, compreendo.
— Sempre considerei os ressentimentos pessoais contraproducentes em negócios como o nosso, mas nunca perdoarei Zizi pelo que fez a ela.
— Nem eu — asseverou Gabriel. — E eu guardo ressentimentos.
Almoçaram tranquilamente à luz agradável do sol, no alpendre dos fundos. Em seguida, Carter tratou da louça enquanto Gabriel e Sarah davam um passeio pelo bosque sombrio. Um agente da CIA tentou segui-los, mas Gabriel ficou-lhe com a arma e mandou-o de volta à casa. Sarah usava calça de equitação, paletó de lã e botas de montar. Gabriel continuava com o terno cinzento-escuro da audiência no Senado. Empunhava na mão direita a Browning High-Power do agente.
— Adrian não parece lá muito contente com seu desempenho no Comitê.
— Não está.
— Alguém tinha de passar a mensagem sobre os nossos amigos sauditas. Quem melhor que você? Afinal de contas, salvou a vida do presidente.
— Não, Sarah, você salvou o presidente. Talvez um dia o país descubra a dívida que tem com você.
— Não planejo aparecer em público tão depressa.
— Quais são seus planos?
— Adrian não disse? Vou entrar para Agência. Imagino que a arte consiga sobreviver sem mais uma conservadora.
— Para onde vai? Operações ou Serviço Secreto?
— Serviço Secreto — respondeu. — Já tive trabalho de campo suficiente para uma vida inteira. Além disso, nunca mais voltarei a estar segura. Zizi foi muito claro sobre o que acontece às pessoas que o traem.
— Ele vai longe. E sua segurança aqui, na América?
— Vão me dar um nome novo, uma nova identidade. Vou poder escolher o nome. Estava pensando se me daria autorização para usar o nome de sua mãe...
— Irene? — Gabriel sorriu. — Seria uma honra. Era como você: uma mulher extraordinariamente corajosa. Da próxima vez que for a Israel, deixo você ler sobre o que lhe aconteceu na guerra.
Sarah deteve-se para passar os dedos sobre uma flor e depois voltaram a caminhar entre as árvores. — E quanto a você? Quais são seus planos?
— Acho que talvez estejamos caminhando em direções opostas.
— E isso quer dizer o quê?
— Receio não poder dizer mais nada agora.
Ela fez beicinho e deu-lhe uma palmada brincalhona no braço.
— Não vai começar agora a esconder segredos, certo?
— Agora que trabalha para o serviço secreto de outro país, receio que a nossa relação tenha de assumir certos... — silenciou-se, à procura da palavra certa. — Parâmetros.
— Por favor, Gabriel. O laço que nos une vai muito além das regras de comportamento que regulam o contato entre os que trabalham para outros serviços.
— Vejo que já começaste o treino.
Pouco a pouco — confirmou. — Ajuda a aliviar o tédio de viver sozinha nesta fazenda.
— Estás bem?
— Os dias passam-se bem, mas as noites são muito difíceis.
— Vão sê-lo durante muito tempo. No entanto, trabalhar para a Agência vai ajudar. Sabes onde te vão colocar? — Na parte árabe — respondeu. — Insisti.
O bosque tremeu com o rugido de um trovão longínquo.
Sarah perguntou por Julian Isherwood.
— Neste momento, a situação dele é muito semelhante a sua.
— Onde está?
— Sarah.
— Fala, Gabriel.
— Está enfiado numa casa velha, perto de Lands End, na Cornualha.
— E a galeria?
— Agora está fechada. Sua partida de Londres causou um grande escândalo. Os rapazes no Greens sentem muito sua falta.
— Eu também sinto a falta deles. Mas tenho mais saudades da sua equipe.
— Todos mandam cumprimentos. — Gabriel hesitou. — Também me disseram para pedir desculpas a você.
— Pelo quê?
— Nós te deixamos mal, Sarah. É óbvio que fomos localizados por Bin Shafiq ou pelos seguranças de Zizi.
— Talvez a culpa tenha sido minha. — Encolheu os ombros. — Mas não interessa. Todos sobrevivemos e apanhamos onze deles naquela casa. E impedimos uma conspiração para assassinar o presidente. Nada mal, Gabriel.
Ouviu-se outro ribombar de trovão, este mais perto. Sarah olhou para o céu. — Tenho de fazer algumas perguntas, Sarah. Há certas coisas que temos de saber antes de podermos dar a operação por encerrada.
Ela continuou a olhar para cima.
— Precisam saber o que eu disse naquela casa na Suíça.
— Eu sei que estava cheia de drogas. Sei que provavelmente tentou apagar isso da memória.
Olhou-o e abanou a cabeça.
— Não tentei esquecer — disse. — Na verdade, lembro de cada palavra.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Sarah pareceu não reparar.
Continuaram a caminhar entre as árvores e ela contou tudo.
Carter levou Gabriel de carro ao Dulles Airport e guiou-o através da segurança. Sentaram-se num hall diplomático especial e esperaram que o voo fosse anunciado. Carter passou o tempo a ver o noticiário da noite. A atenção de Gabriel estava concentrada no homem sentado do outro lado do saguão: o príncipe Bashir, embaixador saudita nos Estados Unidos.
— Nem pense nisso, Gabriel.
— Os confrontos em público não são meu estilo, Adrian.
— Talvez não, mas Bashir gosta muito deles.
Como se as palavras fossem um sinal, o saudita levantou-se e atravessou o saguão. Parou perto de Gabriel, mas não lhe estendeu a mão.
— Ouvi dizer que fez um belo espetáculo no Capitólio esta manhã, Mr. Allon. Mentiras e propaganda judias, mas divertidas, não obstante.
— O depoimento deveria ter sido secreto, Bashir.
— Eu sei tudo o que acontece nesta cidade. E é príncipe Bashir. — O embaixador olhou para Carter. — Foi você o responsável por este circo hoje, Adrian?
— Os senadores emitiram a intimação, Alteza. A Agência nada teve a ver com o assunto.
— Devia ter feito alguma coisa para evitar.
— Isto não é Riad, Sr. Embaixador.
Bashir lançou um olhar furioso a Carter e depois regressou a seu lugar. — Acho que não vou ter direito a uma aposentadoria saudita.
— O quê?
— Esquece — respondeu Carter.
Dez minutos depois, o voo de Gabriel foi anunciado. Carter acompanhou-o à porta de embarque.
— Ah, quase me esquecia de uma coisa. O presidente telefonou enquanto estava com Sarah. Queria agradecer. Disse que fala com você em outra hora.
— Diga que não se preocupe.
— Também disse que quer que avance naquela questão que discutiram no Gramado Sul.
— Tens certeza?
— Certeza de quê?
— Tens certeza de que o presidente empregou essas palavras?
— Absoluta — garantiu Carter. — Afinal, sobre o que conversaram naquela noite?
— A nossa conversa foi particular, Adrian, e vai continuar assim.
— É assim mesmo — disse Carter.
Apertaram as mãos e depois Gabriel virou-se e embarcou.
41
TIBERÍADES, ISRAEL
No dia seguinte era Shabbat. Gabriel dormiu até o princípio da tarde e, em seguida, tomou uma ducha, vestiu-se e foi com Chiara de carro até o vale de Jezreel. Pararam brevemente no Tel Megiddo para ir buscar Eli Lavon e depois continuaram até o mar da Galileia. Era quase pôr do Sol quando chegaram à casa em pedra cor de mel, empoleirada sobre uma saliência que dava para o mar. Shamron cumprimentou-os da porta de entrada. Tinha o rosto magro e abatido e deslocava-se com a ajuda de uma bengala. Era de madeira de oliveira e muito bonita.
— O primeiro-ministro me deu esta manhã, quando saí do centro de reabilitação em Jerusalém. Quase caí com ela. Gilah acha que me dá um ar mais distinto. — Fez-lhe sinal para que entrassem e olhou para Gabriel. — Vejo que está usando o meu blusão. Agora que é evidente que vou viver por muito tempo, gostaria de tê-lo de volta.
Gabriel despiu o blusão e pendurou-o num cabide no hall de entrada. Ouviu a voz de Gilah vinda do interior da casa a chamá-los para a mesa do jantar. Quando entraram, já começava a acender as velas. Yonatan e a esposa estavam presentes, bem como Rimona e o marido. Ronit estava sentada ao lado do pai e enchia-lhe cuidadosamente o prato a partir das travessas, à medida que estas eram passadas à volta da mesa. Não falaram sobre a operação Bin Shafiq, nem sobre o Vaticano. Em vez disso, conversaram sobre a apresentação de Gabriel perante o Congresso Americano. A julgar pela sua expressão irritada, Shamron não a aprovava. Tal foi tornado claro a Gabriel depois do jantar, quando Shamron o conduziu à varanda para conversarem em particular. — Fizeste bem em rejeitar a inumação da primeira vez, Gabriel. Nunca devias ter mudado de ideias. O fato de pensar em ti sentado perante aquele Comitê congressista, mesmo em segredo, atrasou-me seis meses a reabilitação.
— A fonte da jihad global é a Arábia Saudita e o wahhabismo justificou Gabriel. — O Senado precisava de saber disso. Tal como o povo americano.
— Podias ter revelado os teus pensamentos através de um cabo secreto. Não tinhas de ficar ali sentado à frente deles a responder a perguntas... como um mero mortal.
Sentaram-se num par de cadeiras confortáveis viradas para a balaustrada. A lua cheia refletia-se na superfície calma do mar da Galileia e, para lá do lago, negros e informes, avultavam os montes Golan. Shamron preferia estar na varanda, pois encontrava-se virada para leste, na direção dos seus inimigos. Enfiou a mão debaixo da almofada da cadeira e retirou de lá uma cigarreira de prata e o seu velho isqueiro Zippo.
— Não devia fumar, Ari.
— Não pude enquanto estive no Hadassah e no centro de reabilitação. Este é o meu primeiro cigarro desde a noite do ataque.
— Mazel tov — disse Gabriel com amargura.
— Se disser alguma coisa à Gilah, leva com a bengala.
— Acha que consegue enganar Gilah? Ela sabe tudo.
Shamron levou novamente o tema da conversa para o depoimento de Gabriel em Washington.
Talvez tivesses um motivo secreto — disse Shamron. — Talvez desejasses fazer mais do que apenas contar ao povo americano a verdade sobre os seus amigos sauditas.
— E qual seria esse meu motivo secreto?
— Depois do teu desempenho no Vaticano, eras provavelmente o oficial de serviços secretos mais famoso do mundo. E agora... — Shamron encolheu os ombros. — O nosso negócio não aprecia a notoriedade. Fizeste com que seja quase impossível que alguma vez voltemos a usar-te de forma dissimulada.
— Não vou aceitar o lugar em Operações Especiais, Ari. Além disso, já o ofereceram a Uzi.
— Uzi é um bom oficial, mas não é como você.
— Uzi é a razão pela qual Sarah Bancroft está viva. Ele é o homem certo para liderar Operações Especiais.
— Nunca devia ter usado uma garota americana.
— Quem me dera que tivéssemos mais duas iguais a ela.
Shamron pareceu ter perdido o interesse no cigarro. Voltou a enfiá-lo na cigarreira e questionou Gabriel sobre os seus planos.
— Tenho algumas questões para encerrar, começando pelo Van Gogh. Prometi a Hannah Weinberg que o recuperaria. É uma promessa que pretendo cumprir, independentemente da minha fama recente.
— Sabe onde está?
Gabriel assentiu.
— Inseri um sistema de localização na restauração — explicou. — O quadro está na mansão de Zizi, na Île de la Cité.
— Depois de tudo o que passou com os franceses, vai roubar um quadro em Paris? — Shamron abanou a cabeça. — Seria mais fácil assaltar a casa do teu amigo, o presidente americano, do que uma das mansões de Zizi.
Gabriel rejeitou as preocupações do ancião com um gesto à Shamron.
— E depois?
Gabriel ficou em silêncio.
— A Ronit decidiu voltar para casa — disse Shamron —, mas tenho a sensação de que estás prestes a deixar-nos outra vez.
— Ainda não tomei qualquer decisão.
— Espero que tenhas tomado alguma sobre Chiara.
— Vamos casar o mais depressa possível.
— Quando vai contar a novidade a Leah?
Gabriel disse.
— Leve a Gilah — sugeriu Shamron. — Elas passam muito tempo juntas quando você está em campo. Leah precisa de uma mãe numa hora como esta. Gilah é a derradeira mãe.
Gabriel e Chiara passaram a noite na casa, num quarto com vista para o lago. De manhã, todos se reuniram para tomar o pequeno-almoço na varanda iluminada pelo sol, após o que cada um foi para seu lado. Yonatan dirigiu-se a norte, a fim de se voltar a juntar à sua unidade; Rimona, que voltara para servir em Ama, foi para sul, para se juntar à sua. Gilah acompanhou Gabriel e Chiara. Deixaram Lavon na escavação em Tel Megiddo e depois prosseguiram para Jerusalém.
A manhã chegava ao fim quando se aproximaram do hospital psiquiátrico Monte Herzl. Dr. Bar-Zvi, homem com ar de rabi com barbas compridas, esperava-os no hall. Foram para o seu consultório e passaram uma hora a discutir a melhor forma de dar a notícia a Leah. A sua ligação à realidade era, no mínimo, ténue. Durante anos, imagens de Viena tinham-se desenrolado sem cessar na sua memória, como um vídeo. Agora tendia a andar para a frente e para trás entre o passado e o presente, muitas vezes no espaço de alguns segundos. Gabriel sentia-se obrigado a contar a verdade, mas queria fazê-lo da forma menos dolorosa possível.
— Ela parece reagir a Gilah — disse o médico. — Talvez devêssemos conversar sozinhos com ela, antes de você. — Olhou para o relógio.
— Ela agora está lá fora, no jardim. É o seu lugar preferido. Por que não contamos lá?
Estava sentada na cadeira de rodas, à sombra de um pinheiro. As mãos, cheias de cicatrizes e torcidas, seguravam um ramo de oliveira. O cabelo, outrora longo e preto, fora cortado curto e estava quase todo grisalho. O olhar permaneceu vago enquanto Gilah e o médico falavam. Dez minutos depois, deixaram-na. Gabriel caminhou pelo trilho do jardim e ajoelhou-se à frente da cadeira de rodas, segurando no que restava da mão dela. Foi Leah quem falou primeiro.
— Ama esta garota?
— Sim, Leah, amo-a muito. — Vai ser bom para ela?
As lágrimas rolavam por seu rosto.
— Sim, Leah, vou ser bom para ela.
Desviou o olhar do rosto dele.
— Olha a neve, Gabriel. Não é linda?
— Sim, Leah, é linda.
— Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve a torna linda. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto chovem mísseis em Tel Aviv. — Voltou a olhá-lo. — Vai continuar a me visitar?
— Sim, Leah, eu virei visitar você.
E depois desviou o olhar uma vez mais.
— Vê se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.
— Ele está ótimo, Leah. Tenha cuidado ao dirigir.
— Eu tenho, Gabriel. Me dá um beijo.
Gabriel pressionou os lábios contra a pele cicatrizada da face e fechou os olhos.
Leah sussurrou: — Um último beijo.
As paredes do quarto de Gabriel estavam repletas de quadros. Havia três pintados pelo avô, as únicas obras que Gabriel conseguira encontrar, e mais de uma dúzia pintados pela mãe. Havia também um retrato, pintado ao estilo de Egon Schiele, o qual não continha qualquer assinatura. Mostrava um homem jovem, de cabelo grisalho prematuro e um rosto doentio assombrado pela sombra da morte. Gabriel sempre dissera a Chiara que o quadro era um autorretrato. Agora, enquanto estava deitado a seu lado, contou a verdade.
— Quando ela o pintou? — perguntou Chiara.
— Logo depois da operação Setembro Negro.
— Ela era espantosa.
— Sim — concordou Gabriel, olhando para o quadro. — Era muito melhor do que eu.
Chiara permaneceu em silêncio por um instante. Depois perguntou:
— Quanto tempo vamos ficar aqui?
— Até o encontrarmos.
— E quanto tempo demora?
— Talvez um mês. Talvez um ano. Sabe como são estas coisas, Chiara.
— Acho que vamos precisar de alguma mobília.
— Por quê?
— Porque não podemos viver só com um sofá e uma cama.
— Podemos sim — respondeu ele. — De que mais precisamos?
42
PARIS: AGOSTO
O sistema de segurança detectou o arrombamento às duas e trinta e oito. Foi o sensor número 154, localizado num de catorze pares de portas de vidro que ligavam a mansão ao jardim das traseiras. O sistema não se encontrava ligado a uma empresa de segurança privada, nem à Polícia parisiense, mas apenas a uma estação central no interior da mansão, a qual era ocupada dia e noite por um destacamento de homens de segurança, todos eles antigos membros da Guarda Nacional Saudita. O primeiro segurança chegou à porta de vidro quinze segundos depois de o alarme silencioso ter disparado e foi deixado inconsciente por um dos seis intrusos mascarados.
Outros dois guardas chegaram dez segundos depois, de armas na mão, tendo sido alvejados e mortos pelo mesmo intruso. O quarto guarda a chegar à cena, um homem de vinte e oito anos de Jeddah, que não tinha a mínima vontade de morrer pelos bens de um milionário, ergueu os braços em rendição imediata.
O homem com a arma fez com que o saudita caísse no chão e sentou-se sobre o peito deste enquanto examinava o monitor de um pequeno aparelho portátil. Embora usasse máscara de esqui, o saudita conseguia ver-lhe os olhos, os quais eram de um verde intenso. Sem falar, o homem de olhos verdes dirigiu-se à escadaria circular central.
Dois elementos da sua equipe reagiram, avançando escada acima. Trinta segundos mais tarde voltaram, transportando um único objeto. O intruso de olhos verdes olhou para o saudita e fitou-o calmamente.
— Diz a Zizi que, da próxima vez, é ele quem venho buscar avisou, num árabe perfeito. Depois a arma embateu com violência na parte lateral da cabeça do saudita e este perdeu os sentidos.
Três noites mais tarde, o Centro Isaac Weinberg para o Estudo do Anti-Semitismo na França abriu as portas na rue des Rosiers, no Marais. Tal como a maior parte das matérias sobre os judeus da França, a criação do centro não esteve isenta de controvérsia. O Partido Nacional de extrema direita de Jean-Marie Le Pen levantara questões sobre a fonte dos seus fundos, enquanto um clérigo islâmico de renome pedira um boicote e organizara uma manifestação barulhenta na noite da festa de abertura. Trinta minutos após o início da recepção, houve uma ameaça de bomba. Todos os presentes, incluindo Hannah Weinberg, a criadora e diretora do centro, foram retirados do edifício por uma unidade de polícia antiterrorista francesa e a festa foi cancelada.
Mais tarde nessa noite, reuniu-se com alguns amigos para uma ceia tranquila ao fundo da rua, no Jo Goldenberg. Passava pouco das dez horas quando regressou ao seu apartamento na rue Pavée, seguida de perto por um agente de segurança ligado à embaixada israelense. Lá em cima, destrancou a porta ao fundo do corredor central e acendeu as luzes. Ficou de pé por um momento, fitando o quadro pendurado na parede por cima do seu toucador de infância, depois apagou as luzes e foi deitar-se.
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ISTAMBUL: AGOSTO
No final, resumiu-se a uma transação comercial, que tanto Gabriel como Carter consideravam prova do Divino. Dinheiro em troca de informação: uma tradição do Oriente Médio. Vinte milhões de dólares por uma vida. A fonte era de Carter, um príncipe saudita de baixo nível com cirrose do fígado e viciado em prostitutas romenas. O dinheiro era de Gabriel, embora outrora tivesse pertencido a Zizi al-Bakari. O príncipe não conseguira fornecer-lhes um nome, apenas uma data e um lugar.
A data era a segunda segunda-feira de Agosto. O lugar era o Ceylan Inter-Continental Hotel, em Istambul.
Chegou às dez horas, com o nome de Al-Rasheed. Era mais alto do que eles se recordavam. O cabelo era comprido e bastante grisalho, como o seu grande bigode. Apesar do calor sufocante de Agosto, trajava uma camisa de manga comprida e caminhava com a mão direita enfiada no bolso. Recusou a oferta do paquete para o ajudar a levar a única mala e dirigiu-se à sua suíte, que ficava no vigésimo quinto piso. A varanda tinha uma vista imponente para o Bósforo, sendo que o quarto com vista fora uma das suas muitas exigências. Gabriel sabia delas, como sabia qual o quarto que lhe fora destinado. O dinheiro também comprara isso. Às dez e nove, o homem saiu para a varanda e olhou para as vielas. Não se apercebeu de que na rua, lá em baixo, dois homens o fitavam.
— É ele?
— É ele.
— Tem certeza?
— Tenho.
Gabriel estendeu o celular a Lavon, ao que este abanou a cabeça.
— Ligue você, Gabriel. Nunca fui muito dado a coisas violentas.
Gabriel teclou o número. Um instante depois, a varanda foi engolida por uma bola de fogo ofuscante e o corpo em chamas de Ahmed bin Shafiq surgiu na escuridão.
Gabriel esperou até o cadáver cair na rua, depois engrenou a primeira no Mercedes e arrancou para Cannes.
O restaurante conhecido como La Pizza é um dos mais populares em Cannes. Assim, a notícia de que fora reservado para uma festa particular estragou o que, de outra forma, seria um dia perfeito de Agosto. Havia muita especulação ao longo da Croisette sobre a identidade do homem responsável por aquele ultraje. Certos visitantes da cidade, contudo, sabiam que a resposta se encontrava nas águas por trás do Velho Porto. Alexandra, o enorme iate particular de Abdul Aziz al-Bakari, chegara a Cannes naquela manhã, e toda a gente sabia que Zizi comemorava sempre a sua chegada requisitando o restaurante mais popular da cidade.
O jantar estava marcado para as nove. Às oito e cinquenta e cinco, duas grandes lanchas brancas partiram do Alexandra e dirigiram-se ao porto através da luz de tom siena do pôr do Sol. Os barcos atracaram em frente ao La Pizza às oito e cinquenta e oito e, sob uma segurança privada invulgarmente intensa, o grupo desembarcou e dirigiu-se ao restaurante. A maior parte dos turistas que se juntaram para testemunhar a chegada auspiciosa não conhecia o nome Zizi al-Bakari, nem eram capazes de identificar um único membro da sua grande comitiva. Não era o caso dos três homens que observavam a partir da esplanada gramada no final do Quai Saint-Pierre.
A comitiva permaneceu no interior do La Pizza durante duas horas. Mais tarde, no rescaldo, a imprensa realçaria o fato de, ao jantar, ninguém ter bebido vinho nem fumado, o que foi tomado como prova de grande fé religiosa. Às onze e seis, saíram do restaurante e começaram a atravessar a rua, em direção às lanchas que os aguardavam.
Zizi, como era seu hábito, estava perto do final da comitiva, ladeado por dois homens. Um era um árabe grande, com um rosto redondo, olhos pequenos e uma barbicha. O outro era um francês vestido de preto, com o cabelo louro preso num rabo-de-cavalo.
Um dos homens que tinham observado a chegada do grupo a partir da esplanada encontrava-se, naquele momento, sentado no café ao lado do La Pizza. Um homem de ombros largos e cabelo castanho pressionou um botão do celular quando Zizi se aproximou do local que tinham escolhido para sua morte e, no espaço de segundos, duas motos apareceram rugindo ao longo do Quai Saint-Pierre. Ao se aproximarem, os motociclistas sacaram as armas e abriram fogo. Zizi foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Os guarda-costas a seu lado puxaram as armas e também foram abatidos de imediato. Em seguida, as motos guinaram para a esquerda e desapareceram colina acima, entrando na cidade velha.
O homem de cabelo castanho se afastou. Era a sua primeira missão importante como chefe de Operações Especiais e tudo correra muito bem. Nesse momento soube, contudo, que a matança não terminaria em Cannes: a última coisa que viu ao se afastar era Nadia al-Bakari, ajoelhada sobre o corpo do pai, gritando por vingança.
NOTA DO AUTOR
A Mensageira é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, locais e incidentes retratados neste romance são o produto da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, empresas, acontecimentos ou locais é pura coincidência. Infelizmente, Marguerite Gachet ao Toucador, de Vincent van Gogh, não existe, embora as descrições dos últimos dias de Vincent em Auvers, e a sua relação com o Dr. Paul Gachet e a sua filha sejam corretas.
Aqueles que conhecem as águas tranquilas de St. James sabem que em Masons Yard, no endereço da fictícia Isherwood Fine Arts, existe uma galeria cujo proprietário é o incomparável Patrick Matthiesen, a quem me sentirei eternamente grato. Os procedimentos de segurança do Vaticano descritos nas páginas deste romance são largamente fictícios. Os que visitarem a ilha de Saint-Barthélemy irão procurar em vão pelos restaurantes Le Poivre e Le Tetou.
Infelizmente, um aspeto central de A Mensageira é inspirado na verdade: o apoio financeiro e doutrinal da Arábia Saudita ao terrorismo islâmico global. A ligação entre as instituições de caridade religiosas sauditas e os terroristas islâmicos tem sido bem documentada. Um oficial bastante importante dos EUA disse que, depois dos ataques do onze de Setembro, oficiais americanos deslocaram-se a Riad e demonstraram à Família Real como vinte por cento de todo o dinheiro dado a instituições de caridade islâmicas de origem árabe acaba nas mãos dos terroristas. Sob pressão americana, o governo saudita exerceu um controle mais apertado sobre as atividades de angariação de fundos dessas instituições. No entanto, certos críticos acreditam que estas medidas não passam, de um modo geral, de uma fachada.
Um exemplo do recente empenho da Arábia Saudita em manter o fluxo de dinheiro para organizações terroristas surgiu em Abril de 2. Oito meses depois do onze de Setembro, com a Arábia Saudita cercada de inquéritos sobre o seu papel nos ataques, a televisão estatal saudita emitiu uma maratona televisiva que angariou mais de 100 milhões de dólares para apoiar os "mártires palestinos", o eufemismo para os homens-bomba suicidas do Hamas, a Jihad islâmica palestina, e a Brigada de Mártires Al-Aqsa. A emissão televisiva apresentava comentários do xeque Saad al-Buraik, um clérigo saudita de renome, autorizado pelo Governo, que descrevia os Estados Unidos como "a fonte de todo o mal na Terra". Este clérigo islâmico continuava:
— Irmãos muçulmanos na Palestina, não tenham piedade nem compaixão pelos judeus, pelo seu sangue, pelo seu dinheiro, pela sua carne. Têm o direito legítimo de tomar suas mulheres. Deus as fez suas. Por que não escravizam suas mulheres? Por que não empreendem a jihad? Por que não os saqueiam?
Daniel Silva
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