Biblio VT
Em sua forma primitiva, A mensagem (em francês: Le Message) era apenas um episódio sem título da novela O conselho (em francês: Le Conseil, 1832), que Balzac acabou por não incluir em A comédia humana. Outro episódio da mesma novela, sob o título de Outro estudo de mulher, foi também aproveitado.
Discute-se num salão a maneira por que a literatura deve contribuir para o melhoramento dos costumes. A dona da casa acha que os clássicos tinham razão em apresentar sublimes exemplos de virtude e censura os autores modernos por pretenderem moralizar o público mostrando-lhe as consequências extremas dos vícios e dos crimes. Um sr. de Villaines, com o intuito de impedir o namoro de um desafeto com a bela condessa d'Esther, ali presente, entra a tomar parte na discussão aparentemente para combater a tese da dona da casa. Na opinião do sr. de Villaines, as frases mais bonitas de Bossuet ou de Fénelon não teriam o menor efeito sobre uma mulher moderna, pronta a se lançar nos braços de um galanteador. "Ela nem as escutaria... Se, porém, lhe contasse uma espantosa aventura recentemente acontecida que pintasse de maneira enérgica as desgraças inevitáveis a que todas as paixões ilegítimas estão sujeitas, ela refletiria... e... talvez..."
A "aventura espantosa" em apreço é a história contada na atual A mensagem. A maioria dos ouvintes, porém, não concorda com o narrador quanto ao efeito moralizante dessa narrativa, e uma das senhoras presentes observa com muito acerto: "É um desastre, mas não uma lição. Você nos representou a condessa tão feliz, seu marido tão bem adestrado, que a moral de seu exemplo é, em consciência, pouco edificante ".
O sr. de Villaines passa então a relatar outra história ainda mais terrível (atualmente incluída em Outro estudo de mulher), com a qual consegue convencer a condessa d'Esther. "Não há felicidade tão grande", conclui ela, "que nos leve a enfrentar os secretos tormentos que as paixões ilegítimas nos fazem sofrer." Um sucesso tão completo de sua intriga faz corar o sr. de Villaines, o qual, por castigo de suas maquinações, se apaixona perdidamente pela condessa.
Esse, em resumo, é o enredo de O conselho, novela que Balzac acabou por suprimir, distribuindo-lhe as partes por A comédia humana.
Enquanto a história estava incluída em O conselho, havia uma contradição flagrante entre seu conteúdo e a pretensa moralidade do conjunto. Laure, a irmã de Balzac, constantemente preocupada com as lições morais que podiam (ou não) ser tiradas das obras do irmão, escreve a uma amiga com evidente mau humor:
Em O conselho, de que me fala, a primeira história não é um conselho, nem uma moral que possa ter efeito sobre a jovem senhora, porque ela nada demonstra, a não ser que não se deve viajar em diligência. Mas um marido pode cair do tejadilho tanto quanto um amante; não há moralidade na narrativa que tenda a justificar a mulher.
Sob sua segunda forma, A mensagem ficou uma história independente, contada em primeira pessoa não se sabe por quem e sem a moralidade anunciada na primeira redação.
Essa modificação foi das mais felizes, pois o caso relatado por Balzac não comporta lição alguma, justamente por ter um sabor de absoluta autenticidade. Nem nos lembramos de procurá-la, tão encantados ficamos com a pureza do desenho, a dosagem admirável dos pormenores, a mistura feliz do cômico e do trágico, da ironia e da emoção, que fazem desse conto de poucas páginas uma obra-prima no gênero. Entre as muitas qualidades de Balzac não figuram geralmente a sobriedade, a reserva, a economia, mas aqui aparecem elas em absoluta harmonia. Há nesse pequeno conto um equilíbrio tão perfeito de recursos e efeitos que a gente se esquece de estar lendo uma obra literária e vê a cena como realidade. Tudo ali é vivo, natural, simples, profundamente verdadeiro. Em poucas obras Balzac se terá aproximado de tal forma da elegância fina de Voltaire e da singeleza patética e empolgante do abade Prévost.
Uma carta da sra. de Berny, conservada por acaso em Hanotaux et Vicaire, La Jeunesse de Balzac, mostra-nos quanto a leitora mais fiel de Balzac - e a amante a quem tão bem se aplica o panegírico das mulheres maduras em A mensagem - ficou impressionada ao ler este belo conto:
Oh! amigo, acabo de chorar com a tua Julieta, sobretudo o trecho em que ela recebe os cabelos me fez uma impressão dolorosa. Perguntava-me qual era a dor mais viva: se a de perder o amante vivo ou a de o perder morto, e não me atrevo a dar-me uma resposta. Julieta possui naqueles cabelos um tesouro que lhe suscitará sempre lembranças puras; mas que é que se lhe poderia oferecer para consolá-la se o amante a houvesse abandonado por causa de outra mulher? Nada.
Sempre tive o desejo de contar uma história simples e verdadeira, no decorrer da qual um jovem e sua amante fossem tomados de pavor e se refugiassem um no coração
do outro, como duas crianças que se achegam ao encontrar uma serpente na orla de um bosque.
Com risco de diminuir o interesse por minha narrativa ou de passar por um presumido, começo por anunciar-lhes o fim da minha história. Eu desempenhei um papel
neste drama quase vulgar; se ele não lhes interessar; a culpa será tanto minha quanto da verdade histórica. Muitas coisas verdadeiras são soberanamente aborrecidas.
Por isso, metade do talento está em escolher no verdadeiro o que se pode tornar poético.
Em 1819, eu ia de Paris para Moulins. O estado de minha bolsa obrigava-me a viajar no tejadilho da diligência. Os ingleses, todos o sabem, consideram os lugares
situados nessa parte aérea da carruagem os melhores. Durante as primeiras léguas da estrada, eu encontrei mil excelentes razões para justificar a opinião dos nossos
vizinhos.
Um rapaz, que me pareceu ser um pouco mais rico do que eu, subiu, por gosto, ao meu lado, para a banqueta. Acolheu meus argumentos com sorrisos inofensivos. Em
breve, uma certa concordância de idade e de pensamento, o nosso idêntico amor pelo ar livre, pelos ricos aspectos das regiões que descobríamos à medida que a pesada
viatura avançava; depois, não sei que atração magnética, impossível de explicar, fizeram nascer entre nós essa espécie de intimidade momentânea a que os viajantes
se entregam com dobrada disposição porque esse sentimento efêmero parece cessar prontamente e não criar raízes para o futuro.
Não tínhamos ainda percorrido trinta léguas e já falávamos de mulheres e de amor. Com todas as preocupações oratórias requeridas em semelhantes ocasiões, conversamos
naturalmente a respeito das nossas amantes. Jovens ambos, não tínhamos chegado ainda senão à mulher de uma certa idade, quer dizer a mulher que se encontra entre
trinta e cinco e quarenta anos.
Oh! um poeta que nos tivesse escutado, de Montargis a não sei que estação de muda, teria recolhido expressões bastante inflamadas, retratos admiráveis e bem doces
confidências! Nossos temores pudicos, nossas interjeições silenciosas e nossos olhares ainda acanhados possuíam uma eloquência cujo encanto ingênuo jamais consegui
encontrar de novo. Sem dúvida é preciso permanecer jovem para compreender a mocidade. Por isso, entendemo-nos à maravilha sobre todos os pontos essenciais da paixão.
E, de início, tínhamos começado por assentar como fato e como princípio que não havia nada mais idiota na sociedade que uma certidão de nascimento; que muitas
mulheres de quarenta anos eram mais jovens que certas mulheres de vinte, e que, afinal, as mulheres tinham realmente a idade que aparentavam ter. Esse sistema não
punha termo ao amor, e nós nadávamos, ingenuamente, num oceano sem limites.
Enfim, depois de termos feito nossas amantes jovens, encantadoras, devotadas, condessas dotadas de bom gosto, espirituais, finas; depois de lhes termos dado lindos
pés, uma pele acetinada e mesmo suavemente perfumada, nós nos confessamos, ele, que a senhora tal tinha trinta e oito anos, e eu, por minha vez, que adorava uma
quadragenária.
Depois disso, libertos um e outro duma espécie de vago temor, retomamos num crescendo as nossas confidências, descobrindo que éramos colegas em amor. Discutimos
qual de nós dois revelaria mais sentimentos. Um tinha feito certa vez duzentas léguas para ver a sua amante durante uma hora. O outro tinha se arriscado a passar
por um lobo e a ser fuzilado num parque, para comparecer a um encontro noturno. Em suma, todas as nossas loucuras! Se há prazer em recordar os perigos passados,
não é também delicioso evocar os prazeres desvanecidos? É gozar duas vezes. Os perigos, as grandes e pequenas felicidades, tudo nos contávamos, até mesmo as brincadeiras.
A condessa do meu amigo fumara um charuto para lhe agradar; a minha fazia o meu chocolate e não passava um dia sem me escrever ou me ver; a sua fora morar com ele
durante três dias, com risco de perder-se; a minha tinha feito ainda melhor, ou pior, se quiserem.
Nossos maridos, aliás, adoravam as nossas condessas; viviam escravos do encanto que possuem todas as mulheres amorosas; e, mais palermas do que a lei o permite,
eles não nos ofereciam mais perigo do que o necessário para aumentar o nosso prazer. Oh, como o vento levava depressa as nossas palavras e as nossas doces risadas!
Ao chegar a Pouilly, examinei muito atentamente a pessoa do meu novo amigo. Sim, acreditei facilmente que ele devia ser seriamente amado.
Imagine-se um rapaz de estatura média, mas muito bem-proporcionado, tendo um rosto feliz e cheio de expressão. Seus cabelos eram negros e os olhos, azuis; os lábios
eram levemente rosados; os dentes, brancos e parelhos; uma palidez graciosa decorava, ainda, as suas feições finas, e um ligeiro traço de bistre cercava-lhe os olhos,
como se ele estivesse convalescendo. Acrescente-se a isso que ele tinha mãos brancas, bem modeladas, cuidadas como devem ser as de uma mulher bonita; que era inteligente,
parecia bastante instruído, e não se terá muita dificuldade em concordar que o meu amigo poderia fazer honra a uma condessa. Enfim, mais de uma moça o teria desejado
para marido, pois ele era visconde e possuía entre doze e quinze mil francos de renda, sem contar as esperanças.
A uma légua de Pouilly, a diligência virou. Meu infeliz camarada julgou dever, para sua segurança, atirar-se às bordas de um campo recentemente arado, em vez de
agarrar-se à banqueta, como eu fiz, e acompanhar o movimento da diligência. Não deu o impulso necessário ou escorregou, não sei como se passou o acidente, mas ele
foi esmagado pela viatura, que lhe caiu sobre o corpo. Nós o transportamos para a casa de um camponês.
Em meio aos gemidos que lhe arrancavam as dores atrozes, ele conseguiu incumbir-me de uma dessas missões a que os últimos desejos de um moribundo dão um caráter
sagrado. Agonizante, o pobre rapaz atormentava-se, com toda a candura de que se é tantas vezes vítima em sua idade, com a dor que sentiria sua amante, se soubesse
de repente da sua morte por um jornal. Pediu-me que eu fosse pessoalmente comunicá-la. Depois fez com que eu procurasse uma chave suspensa por uma fita que ele trazia
ao peito, pendurada. Encontrei-a meio enterrada na carne. O moribundo não proferiu o menor queixume quando eu a extraí, o mais delicadamente que me foi possível,
da chaga que ela havia produzido. No momento em que acabava de me dar todas as instruções necessárias para buscar na sua casa, em Charité-sur-Loire, as cartas de
amor que sua amante lhe havia escrito, e que me rogou insistentemente devolver a ela, perdeu a palavra em meio de uma frase; mas seu último gesto me fez compreender
que a fatal chave seria um penhor da minha missão junto à sua mãe.
Aflito por não poder formular nenhuma frase de agradecimento, porque ele não duvidava do meu zelo, fitou-me com um olhar súplice durante um instante, disse-me
adeus, saudando-me com um movimento de cílios, depois inclinou a cabeça e morreu. Sua morte foi o único acidente funesto resultante da queda da carruagem.
- Ele teve um pouco de culpa - disse-me o condutor.
Em Charité, cumpri o testamento verbal desse pobre viajante. Sua mãe estava ausente; isso foi uma espécie de felicidade para mim. Contudo, tive que consolar a
dor de uma velha empregada que cambaleou quando eu lhe contei a morte do seu jovem patrão; ela caiu semimorta numa cadeira ao ver a tal chave ainda tinta de sangue;
mas como eu estava completamente preocupado com um sofrimento maior, o de uma mulher a quem o destino arrebatava seu derradeiro amor, deixei a velha criada prosseguindo
no curso de suas prosopopeias, e levei a preciosa correspondência, cuidadosamente lacrada pelo meu amigo de um dia.
O castelo onde residia a condessa ficava a oito léguas de Moulins, e para chegar a ele era preciso ainda fazer algumas léguas em suas terras. Era-me então bastante
difícil desobrigar-me da minha mensagem. Por um concurso de circunstâncias que é inútil explicar, eu só tinha o dinheiro necessário para atingir Moulins. Entretanto,
com o entusiasmo da juventude, resolvi fazer o caminho a pé, e ir bastante ligeiro para tomar a dianteira à propagação das más notícias, que caminham tão rapidamente.
Informei-me do caminho mais curto, e fui pelos atalhos do Bourbonnais, levando, por assim dizer, um morto sobre os ombros. À medida que me aproximava do castelo
de Montpersan, eu ia ficando cada vez mais espantado com a singular peregrinação que havia empreendido. Minha imaginação inventava mil fantasias romanescas. Eu imaginava
todas as situações em que poderia encontrar a sra. condessa de Montpersan, ou, para obedecer à poética dos romances, a Julieta muito amada do jovem viajante. Forjava
respostas inteligentes às perguntas que eu supunha deverem ser-me feitas. Em cada volta de bosque, em cada caminho baixo, era uma repetição da cena de Sósia (Sósia:
personagem da comédia antiga e do Anfitrião, de Molière. Leva a Alcmena, esposa do general Anfitrião, de quem é escravo, uma mensagem. Para se desempenhar bem da
sua tarefa, Sósia faz primeiro uma repetição em que a sua lanterna substitui Alcmena.) e da sua lanterna, a quem ele presta contas da batalha. Para vergonha do meu
coração, eu não pensei de início senão em minha atitude, em meu espírito, na habilidade que eu queria desenvolver; mas, assim que entrei na região, uma sinistra
reflexão atravessou-me a alma como um raio que sulca e despedaça um véu de nuvens cinzentas. Que terrível notícia para uma mulher que, completamente ocupada nesse
momento com seu jovem amigo, esperava de hora em hora alegrias sem nome, depois de ter enfrentado mil dificuldades para levá-lo legalmente à sua casa.
Enfim, havia ainda uma caridade cruel em ser o mensageiro da morte. Por isso eu apressava o passo, enlameando-me e atolando-me nos caminhos do Bourbonnais. Em
breve alcancei uma grande avenida de castanheiros, no fim da qual as formas do castelo de Montpersan desenharam-se no céu como nuvens escuras de contornos claros
e fantásticos.
Ao chegar à porta do castelo, encontrei-a escancarada. Essa circunstância imprevista destruía os meus planos e as minhas suposições. Contudo, entrei resolutamente
e em seguida tive a meu lado dois cães que latiram como verdadeiros cães de campo. A esse ruído acorreu uma gorda criada, e, quando lhe disse que eu queria falar
à senhora condessa, ela indicou com um gesto de mão os maciços dum parque à inglesa que serpenteava em torno do castelo e me respondeu:
- A senhora condessa anda por aí...
- Obrigado - disse eu com um ar irônico.
O seu por aí podia fazer-me errar durante duas horas pelo parque.
Uma formosa menina de cabelos encaracolados, de faixa cor-de-rosa, de vestido branco e com uma capa frisada chegou nesse meio-tempo e ouviu ou adivinhou a pergunta
e a resposta. Ao ver-me, ela desapareceu gritando com leve voz aguda:
- Mamãe, está aí um senhor que lhe quer falar.
E eu a segui, através das curvas das alamedas, os saltos e os pulos da capinha branca, que, semelhante a um fogo-fátuo, indicava- me o caminho que seguia a menina.
É preciso dizer tudo: no último silvado da avenida, eu tinha levantado o colarinho, escovado o meu chapéu usado e minhas calças com as beiras do meu casaco, o
casaco com as suas mangas, e as mangas uma com a outra; depois o abotoara cuidadosamente para mostrar o pano dos reversos, sempre um pouco mais novo que o resto;
fizera descer a extremidade das calças sobre as botas, engenhosamente polidas no capim. Graças a esse trajar de gascão, eu esperava não ser tomado pelo contínuo
da subprefeitura; mas, quando hoje me transporto pelo pensamento a essa hora da minha mocidade, rio por vezes de mim mesmo.
De repente, no momento em que eu compunha a minha atitude, na volta de uma verde sinuosidade, em meio a mil flores iluminadas por um cálido raio de sol, divisei
Julieta e seu marido. A linda menina trazia a mãe pela mão, e era fácil perceber-se que a condessa apressara o passo ao ouvir a frase ambígua da filha.
Surpreendida pelo aspecto dum desconhecido que a cumprimentava com um ar bastante constrangido, ela parou e fez-me um gesto friamente polido e uma adorável expressão
de amuo que, para mim, revelava todas as suas esperanças frustradas. Procurei, mas em vão, algumas das minhas belas frases tão laboriosamente preparadas. Durante
esse momento de hesitação mútua, o marido pôde entrar em cena. Miríades de pensamentos atravessaram-me o cérebro. Para não dar a ver meu embaraço, pronunciei algumas
frases insignificantes, indagando se as pessoas presentes eram realmente o senhor conde e a sra. condessa de Montpersan. Essas tolices permitiram-me julgar num único
relance de olhos e analisar, com uma perspicácia rara na idade que eu tinha, os dois esposos cuja solidão ia ser tão violentamente perturbada.
O marido parecia ser o tipo dos gentis-homens que são atualmente o mais belo ornamento das províncias. Trazia grandes sapatos de grossas solas; apresento-os em
primeiro lugar porque eles me impressionaram ainda mais vivamente que a casaca negra envelhecida, a sua calça usada, a sua gravata frouxa e o seu colarinho enrugado.
Havia naquele homem um pouco de magistrado, muito de conselheiro municipal, toda a importância de um maire (Maire: chefe da administração comunal ou cantonal (o
cantão é uma circunscrição territorial formada por várias comunas.)) de cantão ao qual nada resiste, e o azedume de um candidato eleitoral periodicamente recusado
desde 1816; incrível mistura de bom-senso camponês e de tolices; nada de maneiras, mas a arrogância da riqueza; muita submissão à mulher, mas julgando-se o senhor,
e pronto para resistir nas pequenas coisas, sem ter nenhuma preocupação com os assuntos importantes; no mais, um rosto emurchecido, encarquilhado, crestado; alguns
cabelos grisalhos, longos e lisos, eis o homem.
Mas a condessa, ah!, que vivo e brusco contraste fazia ao lado do marido! Era uma mulherzinha delgada e graciosa, de porte encantador; franzina e tão delicada,
que se teria medo de quebrar-lhe os ossos ao tocá-la. Vestia um traje de musselina branca; na cabeça trazia um gorro com fitas cor-de-rosa; tinha um cinto também
cor-de-rosa e uma blusa tão deliciosamente cheia por suas espáduas e pelos mais formosos contornos, que ao vê-los nascia no fundo do coração uma irresistível vontade
de possuí-los. Seus olhos eram vivos, negros, expressivos; seus movimentos, suaves; seu pé, encantador. Nem um velho donjuán lhe daria mais de trinta anos, tal era
a juventude que havia em seu rosto e nos mínimos detalhes da sua cabeça. Quanto ao caráter, pareceu-me ter tanto da condessa de Lignolles como da marquesa de B...,
dois tipos de mulher sempre vivos na memória de um homem, após ter lido o romance de Louvet (Louvet: Jean-Baptiste Louvet de Couvray (1760-1797), convencional da
Gironde e romancista, autor dos Amores do cavalheiro Faublas, famoso romance dos costumes ligeiros do século XVIII. O herói é um belo rapaz, grande conquistador
de mulheres, a cuja existência são ligadas intimamente três moças, a marquesa de B..., que o inicia no amor, a condessa de Lignolles, caprichosa e apaixonada, e
Sofia de Pontis, que representa o amor ingênuo e puro. Faublas ama as três, e depois de uma série de peripécias e aventuras com outras admiradoras suas, acaba por
desposar a terceira.).
Eu penetrei logo em todos os segredos daquele casal e tomei uma resolução diplomática digna de um velho embaixador. Talvez tenha sido essa a única vez da minha
vida em que eu tive tato e compreendi em que consistia a habilidade dos cortesãos ou das pessoas da sociedade.
Depois desses dias despreocupados, eu tive que travar muitas batalhas para destilar os menores atos da vida e não fazer nada a não ser obedecendo à cadência da
etiqueta e do bom-tom, que secam as emoções mais generosas.
- Senhor conde, desejaria falar-lhe em particular - disse eu com um ar misterioso e dando alguns passos para trás.
Ele me seguiu. Julieta deixou-nos sós e afastou-se negligentemente, como mulher que tem a certeza de saber os segredos do marido no momento em que quiser.
Contei resumidamente ao conde a morte do meu companheiro de viagem. O efeito que essa notícia produziu sobre ele provou-me que ele tinha muito viva afeição pelo
seu jovem colaborador, e essa descoberta deu-me coragem para responder-lhe assim no diálogo que se seguiu entre nós dois.
- Minha mulher vai ficar desesperada - exclamou ele - e eu terei que tomar muitas precauções para comunicar-lhe esse doloroso acontecimento.
- Dirigindo-me de início ao senhor - disse-lhe eu -, cumpri um dever. Eu não queria desincumbir-me junto à senhora condessa dessa missão confiada por um desconhecido,
sem preveni-lo; mas ele me confiou também uma espécie de honroso fideicomisso, um segredo de que não tenho o direito de dispor. Pelo alto conceito que ele transmitiu
sobre o seu caráter, pensei que o senhor não se oporia a que eu cumprisse esses últimos desejos. A senhora condessa terá liberdade de romper o silêncio que me foi
imposto.
Ao ouvir o seu elogio, o gentil-homem balançou a cabeça dando mostras de agrado. Respondeu-me com um cumprimento um tanto embaraçado e terminou deixando-me o campo
livre. Voltamos pelo mesmo caminho.
Nesse momento, o sino anunciou o almoço; fui convidado a participar dele. Achando-nos sérios e silenciosos, Julieta examinou-nos furtivamente. Estranhamente surpresa
por ver seu marido usando um pretexto frívolo para nos proporcionar um colóquio, ela parou e lançou-me um desses olhares que só às mulheres é dado lançar. Havia
nesse olhar toda a curiosidade permitida a uma dona de casa que recebe um estranho, caído em seu lar como das nuvens; havia nele todas as interrogações que mereciam
a minha indumentária, a minha mocidade e a minha fisionomia, contrastes singulares, e mais o desdém da amante idolatrada, aos olhos de quem os homens nada representam,
com exceção de um só; havia ainda nele temores involuntários, medo, e o aborrecimento de ter um hóspede inesperado, quando, sem dúvida, ela dedicava ao seu amor
todas as delícias da solidão.
Compreendi aquela eloquência muda e a ela respondi com um sorriso cheio de piedade, de compaixão. Então, contemplei-a por instantes em todo o esplendor da sua
beleza, num dia sereno, no meio de uma estreita alameda bordada de flores. Vendo aquele quadro admirável, não pude conter um suspiro.
- Ah senhora, acabo de fazer uma viagem bem penosa, empreendida... unicamente por sua causa.
- Senhor! - disse-me ela.
- Oh - tornei -, eu venho em nome daquele que a chama Julieta!
Ela empalideceu.
- A senhora não o verá hoje.
- Ele está doente? - indagou ela em voz baixa.
- Sim - respondi-lhe. - Mas, por favor, modere-se... Fui encarregado por ele de confiar-lhe alguns segredos que lhe concernem, e acredite que jamais mensageiro
algum será mais discreto e mais devotado.
- Que há?
- E se ele não mais a amasse?
- Oh, isso é impossível! - exclamou ela deixando escapar um leve sorriso que não era nada menos que franco.
De súbito, sentiu uma espécie de estremecimento, lançou-me um olhar fulvo e impetuoso, corou e disse:
- Ele está vivo?
Deus meu, que frase terrível! Eu era jovem demais para sustentar-lhe a veemência; não respondi, e fitei aquela infeliz mulher com um ar apalermado.
- Responda, senhor, responda! - exclamou ela.
- Sim, senhora.
- É verdade? Oh, diga-me a verdade, eu posso ouvi-la! Diga! Qualquer sofrimento há de ser menos pungente que a incerteza para mim.
Eu respondi com duas lágrimas, que me foram arrancadas pelos estranhos acentos com que aquelas frases foram ditas.
Ela apoiou-se a uma árvore, lançando um débil grito.
- Senhora - disse-lhe eu -, olhe o seu marido.
- Terei um marido?
Dizendo isso, ela fugiu e desapareceu.
- O almoço está esfriando - exclamou o conde. - Venha, senhor.
Segui, então, o dono da casa, que me conduziu a uma sala de refeições onde vi um jantar servido com todo o luxo a que as mesas parisienses nos acostumaram. Havia
cinco talheres: os dos dois esposos, o da menina, o meu, que deveria ser o seu, e um último destinado a um cônego de Saint-Denis, que, após a oração de graças, perguntou:
- Mas onde está a nossa cara condessa?
- Oh, ela virá em seguida - respondeu o conde, que, depois de nos ter servido com solicitude a sopa, encheu o seu próprio prato, que esvaziou com uma rapidez incrível.
- Oh meu sobrinho - exclamou o cônego -, se sua mulher estivesse aqui você seria mais comedido!
- Papai vai adoecer - disse a menina com ar brejeiro.
Um instante após esse singular episódio gastronômico, e no momento em que o conde trinchava com decisão um pedaço de não sei que animal caçado, entrou uma criada
de quarto e disse:
- Senhor, não encontramos a senhora condessa!
A essa frase ergui-me com um movimento brusco temendo alguma desgraça, e a minha fisionomia exprimiu tão vivamente os meus temores, que o velho cônego me acompanhou
ao jardim. Por atenção, o marido veio até a porta.
- Fiquem, fiquem! Não se inquietem - gritou-nos ele. Mas não nos acompanhou. O cônego, a criada de quarto e eu percorremos os caminhos e os tabuleiros de relva
do parque, chamando, escutando, e tanto mais inquietos porque eu anunciei a morte do jovem visconde. Às pressas, contei as circunstâncias desse fatal acontecimento
e percebi que a criada de quarto era extremamente afeiçoada à sua ama, porque penetrou muito melhor que o cônego nos segredos do meu terror.
Fomos aos tanques, visitamos tudo sem encontrar a condessa, nem o menor vestígio da sua passagem. Enfim, na volta, seguindo ao longo de um muro, ouvi gemidos surdos
e profundamente abafados que pareciam sair de uma espécie de celeiro. Entrei nele ao acaso. Ali descobrimos Julieta, que, movida pelo instinto do desespero, sepultara-se
no meio do feno. Ela escondera a cabeça para abafar os seus gritos horríveis, obedecendo a um invencível pudor: eram soluços, choros de criança, mas mais penetrantes,
mais dolorosos. Não havia mais nada no mundo para ela. A criada puxou a patroa, que se deixou manobrar com a apática indiferença do animal moribundo. Essa rapariga
não sabia dizer outra coisa que: "Vamos, senhora, vamos...".
O velho cônego perguntava:
- Mas que tem ela? Que tem você, minha sobrinha?
Finalmente, ajudado pela criada, transportei Julieta para o seu quarto; recomendei cuidadosamente que velassem por ela e que dissessem a todos que a condessa tinha
uma enxaqueca. Depois, voltamos, o cônego e eu, para a sala de refeições.
Havia já algum tempo que tínhamos deixado o conde, e não tornei a pensar nele senão no momento em que passei no peristilo; a sua indiferença surpreendeu-me. Mas
o meu espanto aumentou quando o encontrei filosoficamente sentado à mesa: comera quase todo o almoço, para grande prazer da filha, que sorria por ver o pai em flagrante
desobediência às ordens da condessa.
A singular despreocupação daquele marido foi-me explicada pela altercação que se estabeleceu de súbito entre o cônego e ele. O conde estava submetido a uma dieta
severa que os médicos lhe haviam imposto para curá-lo de uma doença grave cujo nome me escapa; e, arrastado por essa glutoneria feroz tão familiar aos convalescentes,
o apetite do animal tinha superado nele toda a sensibilidade do homem. Num momento eu tinha visto a natureza em toda a sua verdade, sob dois aspectos bem diferentes
que colocavam o cômico no próprio seio da mais horrível dor.
A noite foi triste. Eu estava cansado. O cônego empregava toda a sua inteligência para adivinhar a causa do choro da sua sobrinha. O marido digeria silenciosamente,
depois de se ter contentado com uma explicação bastante vaga que a condessa mandou dar-lhe pela criada de quarto sobre a sua indisposição, e que foi, creio eu, atribuída
aos incômodos naturais da mulher. Todos nos deitamos cedo.
Ao passar diante do quarto da condessa para ir ao dormitório a que me conduzia um criado, eu timidamente pedi notícias suas. Reconhecendo a minha voz, ela me fez
entrar e quis falar-me; mas, não podendo nada articular, inclinou a cabeça e eu me retirei.
Apesar das emoções cruéis que eu tinha partilhado com a boa-fé da mocidade, dormi, exausto pela fadiga da marcha forçada. A uma hora avançada da noite, fui despertado
pelo áspero ruído dos anéis do meu cortinado violentamente puxados sobre as varas de ferro. Vi a condessa sentada nos pés da minha cama. Seu rosto recebia toda a
luz duma lâmpada colocada sobre a mesa.
- É mesmo verdade, senhor? - disse-me ela. - Não sei como posso viver depois desse horrível golpe que acaba de ferir-me; mas neste momento estou calma. Quero saber
tudo.
"Que calma!", pensei comigo, ao perceber a assustadora palidez do seu rosto, que contrastava com a cor castanha da cabeleira, ao ouvir os sons guturais da sua
voz, ao ficar estupefato pela devastação que denotavam as suas feições alteradas.
Ela já estava estiolada, como uma folha despojada das últimas tintas que lhe imprime o outono. Os olhos vermelhos e inchados, despidos de toda a sua beleza, refletiam
apenas uma dor amarga e profunda; onde ainda havia pouco cintilava o sol, dir-se-ia haver agora uma nuvem cinzenta.
Narrei-lhe com simplicidade, sem muito insistir em certas circunstâncias dolorosas demais para ela, o acidente rápido que a privara do amigo. Contei-lhe o primeiro
dia da nossa viagem, tão cheio pelas recordações do seu amor.
Ela não chorou: escutava com avidez, a cabeça inclinada para mim, como um médico zeloso que observa um mal. Aproveitando um momento em que ela me pareceu ter inteiramente
aberto o seu coração aos sofrimentos e querer mergulhar em sua desgraça com todo o ardor que dá a primeira febre do desespero, falei-lhe dos temores que afligiram
o pobre moribundo e disse-lhe como e por que ele me encarregara daquela fatal mensagem. Seus olhos secaram-se então ao fogo lúgubre que brota das mais profundas
regiões da alma. Ela empalideceu ainda mais. Quando lhe estendi as cartas que eu guardava debaixo do meu travesseiro, ela as agarrou maquinalmente; depois estremeceu
violentamente e disse-me numa voz cavernosa:
- E eu que queimava as suas! Nada tenho dele! Nada! Nada! - E bateu com força na fronte.
- Senhora... - disse-lhe.
Ela fitou-me com um movimento convulsivo.
- Eu cortei uma madeixa dos seus cabelos - disse eu, prosseguindo. - Ei-la aqui.
E apresentei-lhe esse último, esse incorrutível despojo daquele que ela amava.
Ah, se o leitor tivesse recebido como eu as lágrimas escaldantes que tombaram então sobre as minhas mãos, saberia o que é o reconhecimento quando está assim tão
próximo do benefício! Ela apertou-me as mãos, e, com uma voz abafada, com um olhar brilhante de febre, um olhar onde refulgia a sua frágil ventura através de horríveis
sofrimentos:
- Ah, o senhor ama! - disse ela. - Seja sempre feliz! Não perca jamais aquela que lhe é cara!
Ela não terminou e fugiu com o seu tesouro.
No dia seguinte, essa cena noturna, confundida com meus sonhos, pareceu-me ser uma ficção. Foi preciso, para convencer-me da dolorosa verdade, que eu procurasse
infrutiferamente as cartas sob o meu travesseiro.
Seria inútil narrar os acontecimentos do dia seguinte. Fiquei várias horas ainda com a Julieta que o meu companheiro de viagem tanto elogiara. As mínimas palavras,
os gestos, as ações daquela mulher provaram-me a nobreza de alma, a delicadeza de sentimentos que a tornavam uma dessas preciosas criaturas de amor e devotamento
tão raras, espalhadas pela face da terra.
À tarde, o próprio conde de Montpersan conduziu-me a Moulins. Ao chegarmos ali, disse-me ele com uma espécie de embaraço:
- Senhor, se não é abusar de sua complacência e agir indiscretamente em relação a um desconhecido a quem já devemos obrigações, quereria ter a bondade de entregar,
em Paris, pois que o senhor vai para lá, em casa do senhor... (esqueci o nome), à rue du Sentier, uma importância que eu lhe devo, e que ele mandou pedir lhe remetesse
com urgência?
- Com muito gosto - respondi.
E, na inocência da minha alma, recebi um rolo de vinte e cinco luíses, que me serviu para eu voltar a Paris e que entreguei fielmente ao pretenso correspondente
do sr. de Montpersan.
Só em Paris, ao levar a importância à casa indicada, é que compreendi a engenhosa elegância com que Julieta me tinha obsequiado. A maneira por que esse dinheiro
me foi emprestado, a discrição guardada sobre a minha pobreza fácil de adivinhar não são suficientes para revelar todo o gênio de uma mulher terna?
Que delícia ter podido contar essa história a uma mulher que, medrosa, nos apertou entre os braços e nos disse: "Oh! querido, não morras, sim?".
Paris, janeiro de 1832
Honoré de Balzac
O melhor da literatura para todos os gostos e idades