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"Obra concebida, escrita e impressa dentro de uma só noite", A missa do ateu (em francês: La messe de l'athée) é um dos contos mais perfeitos e mais sugestivos de Balzac.
Teve o autor visível empenho em ligar esta novela a outras narrativas de A comédia humana, e os dois protagonistas, sobretudo Bianchon, desempenham papel importante em todo o ciclo. No entanto, esta breve narrativa é tão independente, tão inteira em si como, por exemplo, A mensagem, que já conhecemos.
O assunto é a contradição entre os princípios e as ações de um homem eminente, mistério que excita a curiosidade do leitor. O autor faz explicar o mistério pelo próprio protagonista; depois de obtida essa explicação é que entrevemos, atrás dela, outro enigma, bem mais profundo que o primeiro.
Além de abrir grandes perspectivas ante o pensamento do leitor, Balzac o cativa pela sua serenidade. O respeito de Balzac católico ao ateísmo de Desplein não é menor que o de Desplein à fé do seu pobre e humilde benfeitor. Essa imparcialidade, uma das qualidades mais notáveis do romancista, faz com que o sigamos com inteira confiança em suas tortuosas peregrinações pelas consciências humanas como a um guia leal e seguro.
Paul Bourget, um dos melhores conhecedores de Balzac, julga com acerto (em Études et portraits, vol. III) essa novela um modelo do gênero. "A novela", escreve ele , "é o gênero menos apropriado para demonstrar. Em compensação é o gênero mais capaz de inquietar o pensamento. Releiam A missa do ateu, por exemplo. Admirarão com que vigor Balzac faz brotar de um incidente o problema de consciência que nele se esconde... Balzac não disserta. Não é um silogismo que expõe. Mas, ao acabar a leitura dessas poucas páginas, um mundo de ideias tem-se agitado em nós. Todo o problema do além se levantou ante nosso espírito: a fé simples e humilde vale mais do que a ciência orgulhosa? Até que ponto um ímpio tem o direito de tocar em crenças que despreza, mas de que outros vivem? Não existe uma reversibilidade da graça que age sobre nós à nossa revelia?"
É raro uma personagem balzaquiana ter, na realidade, um modelo identificável; o romancista instintivamente formava suas criaturas mais importantes com traços pedidos emprestados a vários contemporâneos. Não é esse o caso de Desplein, em quem os leitores facilmente reconheciam o famoso dr. Guillaume Dupuytren (1777-1835), renovador da cirurgia e cirurgião da família real, figura marcante morta havia menos de um ano e ainda presente a todas as memórias. Vários itens do seu vasto anedotário estão aqui atribuídos pelo autor à pessoa fictícia de Desplein. (Guy Sagnes, prefácio à novela na edição Pléiade.)
Quanto à figura do dr. Bianchon, das que mais vezes reaparecem no decorrer de A comédia humana, da qual é um dos persongens mais atraentes, Herbert J. Hunt lembra oportunamente que ele não é protagonista de nenhum conto ou romance. Seu caráter vai se revelando aos poucos em aparições sucessivas e se gravando com relevo numa sucessão de obras. Segundo a lenda, foi a ele que Balzac teria invocado em sua agonia.
Um médico a quem a ciência deve uma bela teoria fisiológica e que, jovem ainda, se colocou entre as celebridades da Escola de Paris, centro de luzes ao qual todos
os médicos da Europa prestam homenagem, o dr. Bianchon (O dr. Bianchon é uma das personagens preferidas de Balzac: encontramo-lo estudante em O pai Goriot.) praticou
durante muito tempo a cirurgia antes de se dedicar à medicina. Seus primeiros estudos foram dirigidos por um dos grandes cirurgiões franceses, o ilustre Desplein
(Foi o cirurgião Desplein que operou com êxito a sra. Mignon, restituindo-lhe a vista (Modesta Mignon).), que passou como um meteoro pela ciência. Segundo declaram
seus inimigos, ele levou para o túmulo um método intransmissível. Como todas as pessoas de gênio, não tinha herdeiros; carregava tudo consigo e tudo consumia. A
glória dos cirurgiões assemelha-se à dos atores, que só existem por sua própria vida e cujo talento deixa de ser apreciado logo que desaparecem. Os atores e os cirurgiões,
bem como os grandes cantores, os grandes artistas que por sua execução decuplicam o poder de música, são todos heróis do momento. Desplein dá a prova da semelhança
entre os destinos desses gênios transitórios. Seu nome, ontem tão famoso, hoje quase esquecido, permanecerá dentro da especialidade sem lhe transpor os limites.
Não são necessárias, aliás, circunstâncias excepcionais para que o nome dum sábio passe do domínio da ciência para a história geral da humanidade? Tinha Desplein
essa universalidade de conhecimentos que faz dum homem o verbo e o vulto dum século? Desplein possuía uma visão divina; penetrava o doente e sua doença por uma intuição
adquirida ou natural que lhe permitia surpreender os diagnósticos particulares ao indivíduo, determinar o momento preciso, a hora, o minuto em que era necessário
operar, levando em conta as circunstâncias atmosféricas e as peculiaridades do temperamento. Para acompanhar assim a natureza, estudara ele a incessante conjugação
dos seres e das substâncias elementares contidas na atmosfera ou fornecidas pela terra ao homem, que as absorve e as elabora para tirar delas uma expressão particular?
Procedia ele com essa potência de dedução e de analogia a que se deve o gênio de Cuvier? Como quer que fosse, esse homem fizera-se o confidente da carne, surpreendia-a
no passado como no futuro, apoiando-se no presente. Mas resumiu ele toda a ciência em sua pessoa, como fizera Hipócrates (Hipócrates (460-370 a.C.): o maior médico
da Antiguidade; seu sistema se baseia na alteração dos humores.), Galeno (Galeno (131-201): médico e filósofo grego; criador da doutrina dos quatro humores (sangue,
bílis, fleuma e atrabílis), cujo equilíbrio constituiria a saúde, ao passo que seu desequilíbrio redundaria em doença.), Aristóteles (Aristóteles (384-322 a.C.):
grande filósofo grego, fundador da escola peripatética, autor de obras de Filosofia, Metafísica, Física, História Natural etc.)? Conduziu ele toda uma escola para
mundos novos? Não. Se é impossível negar a esse constante observador da química humana a antiga ciência do magismo, isto é, o conhecimento dos princípios em fusão,
as causas da vida, a vida antes da vida, o que ela será por suas preparações antes de ser, é preciso confessar, para ser justo, que infelizmente nele tudo foi pessoal;
isolado em sua vida pelo egoísmo, o egoísmo hoje mata sua glória. Seu túmulo não está encimado pela estátua eloquente que revela para o futuro os mistérios que o
gênio busca por seu próprio esforço. Talvez o talento de Desplein fosse solidário com suas crenças e, consequentemente, mortal. Para ele, a atmosfera terrestre era
uma bolsa geradora; via a terra como um ovo dentro da casca e, como não pudesse saber qual dos dois aparecera primeiro, se o ovo ou a galinha, não admitia o galo
nem o ovo. Não acreditava nem no animal anterior nem no espírito posterior ao homem. Não vivia na dúvida, afirmava. Seu ateísmo puro e franco assemelhava-se ao de
muitos outros sábios, as melhores criaturas do mundo, mas, invencivelmente ateus, ateus como as pessoas religiosas não admitem que possa havê-los. Esta opinião era
natural num homem habituado desde a mocidade a dissecar o ser por excelência, antes, durante e depois da vida, a sondar-lhe todos os órgãos sem neles encontrar essa
alma única, tão necessária às teorias religiosas. Reconhecendo nele um centro cerebral, um centro nervoso e um centro aerossanguíneo, os dois primeiros dos quais
se substituem a tal ponto um ao outro que o cirurgião, nos últimos dias da vida, chegou à convicção de que o sentido do ouvido não é absolutamente necessário para
ouvir nem o sentido da vista absolutamente necessário para ver, e que o plexo solar indubitavelmente os substituía, Desplein, ao encontrar duas almas no homem, corroborou
seu ateísmo por esse fato, embora ele ainda nada prejulgue sobre Deus. Esse homem morreu, segundo dizem, na impenitência final em que desgraçadamente morreram muitos
belos gênios, a quem Deus queira perdoar.
A vida desse homem tão grande apresentava muitas pequenezas, para empregar a expressão de que se serviam seus inimigos, desejosos de diminuir sua glória, mas que
seria mais conveniente denominar absurdos aparentes. Na falta completa de conhecimento das determinações pelas quais agem os espíritos superiores, os invejosos e
os tolos logo se armam de algumas contradições superficiais para estabelecer um libelo pelo qual fazem julgá-los no momento. Se, mais tarde, o êxito coroa as combinações
atacadas, mostrando as correlações entre os preparativos e os resultados, sempre subsiste um pouco das calúnias anteriores. Assim, Napoleão foi condenado por nossos
contemporâneos quando estendia as asas de sua águia sobre a Inglaterra; foi necessário 1822 para explicar 1804 e as barcaças de Boulogne (1804 e as barcaças da Boulogne:
alusão ao desembarque na Inglaterra, projetado por Bonaparte; como acabasse por se convencer da impossibilidade do empreendimento, restringiu-se ele a passar em
revista as tropas, que festejaram com entusiasmo o imperador recém-eleito.).
Em Desplein, como a glória e a ciência fossem inatacáveis, seus inimigos criticavam seu temperamento singular, seu caráter, embora ele possuísse apenas essa qualidade
que os ingleses denominam excentricity. Vestindo-se soberbamente, algumas vezes, como Crébillon, o Trágico (Crébillon, o Trágico: Prosper Crébillon (1674-1762),
autor de tragédias, famoso pelas suas excentricidades, seu cinismo e seu orgulho. Assim chamado para não ser confundido com o filho, Claude, romancista, conhecido
como Crébillon fils.), manifestava, dum momento para o outro, uma singular indiferença em matéria de vestuário; era visto ora em carruagem, ora a pé. Ora brusco,
ora bondoso, aparentemente ríspido e avarento, mas capaz de oferecer sua fortuna a seus patrões (A seus patrões: especialmente Carlos X. Gesto semelhante era atribuído
a Dupuytren em relação ao rei deposto numa anedota da época.) exilados, que lhe deram a honra de aceitá-la por alguns dias, nenhum homem inspirou maior número de
julgamentos contraditórios. Embora fosse capaz, para conseguir uma condecoração que um médico não precisaria disputar, de deixar cair do bolso, na Corte, um livro
de orações, podeis estar certo de que intimamente zombava de tudo. Tinha um profundo desprezo pelos homens, após havê-los observado de alto a baixo, após tê-los
surpreendido em sua verdadeira expressão, no meio dos atos mais solenes e mais mesquinhos da existência. Num grande homem, frequentemente as qualidades são solidárias.
Se, entre esses colossos, um tem mais talento que espírito, seu espírito ainda é mais amplo do que o daqueles de quem se diz simplesmente: tem espírito. Todo gênio
supõe uma visão moral. Essa visão pode-se aplicar a alguma especialidade; mas quem vê a flor também vê o sol. Aquele que ao ouvir um diplomata salvo por ele perguntar
"Como vai o imperador?", lhe responde: "O cortesão reaparece, o homem continuará!" não é apenas cirurgião ou médico, é também prodigiosamente espirituoso. Assim,
o observador paciente e assíduo da humanidade legitimará as pretensões exorbitantes de Desplein e o julgará, como ele próprio se julgava, capaz de ser tão grande
ministro como cirurgião.
Entre os enigmas que a vida de Desplein apresenta aos olhos de vários contemporâneos, escolhemos um dos mais interessantes, porque sua chave se encontrará no fim
da narrativa e o vingará de algumas acusações tolas.
De todos os alunos que Desplein teve no hospital, Horácio Bianchon foi um daqueles a que mais intensamente se ligou. Antes de ser interno do Hôtel-Dieu, Horácio
Bianchon era um estudante de medicina que morava numa miserável pensão do Quartier Latin, conhecida sob o nome de Casa Vauquer. O pobre rapaz sofria lá os golpes
dessa ardente miséria, espécie de crisol do qual os grandes talentos devem sair puros e incorruptíveis como diamantes que podem ser submetidos a todos os choques
sem se quebrar. Ao fogo violento de suas paixões desenfreadas, eles adquirem a mais inalterável probidade e contraem o hábito das lutas que preparam o gênio, pelo
trabalho constante dentro do qual aprisionaram seus apetites frustrados. Horácio era um rapaz correto, incapaz de tergiversar nas questões de honra, que ia diretamente
aos fatos, pronto a pôr a capa no prego pelos amigos, como a dar-lhes seu tempo e suas vigílias; Horácio era, enfim, um desses amigos que não se preocupam com o
que recebem em troca do que dão, certos de que receberão, por sua vez, mais do que deram. A maioria de seus amigos tinha por ele esse respeito íntimo inspirado por
uma virtude sem ênfase, e muitos dentre eles temiam sua censura. Essas qualidades, porém, Horácio as manifestava sem pedantismo. Nem puritano nem moralista, discordava
amavelmente dando um conselho e gostava de tomar parte numa patuscada quando se apresentava uma ocasião. Bom companheiro, não mais recatado que um couraceiro, sincero
e franco, não como um marinheiro, pois o marinheiro de hoje é um diplomata finório, mas como um bravo rapaz que não tem nada a esconder na vida, caminhava de cabeça
erguida e mente alegre. Enfim, para tudo resumir numa frase, Horácio era o Pílades de mais de um Orestes (Pílades e Orestes: personagens da mitologia grega, cuja
amizade se tornou proverbial.), nesta época em que os credores são considerados a personificação mais real das fúrias antigas. Carregava sua pobreza com essa jovialidade
que é, talvez, um dos maiores elementos de coragem e, como todos os que nada têm, contraía poucas dívidas. Sóbrio como um camelo, alerta como um cervo, era firme
nas ideias e na conduta. A vida feliz de Bianchon começou no dia em que o ilustre cirurgião adquiriu a prova das qualidades e dos defeitos que, tanto uns como os
outros, tornam o dr. Horácio Bianchon duplamente precioso para seus amigos. Quando um chefe de clínica toma um rapaz sob sua proteção, esse rapaz fica, como se diz,
com o pé no estribo. Desplein não deixava de levar Bianchon para ajudá-lo nas casas opulentas, onde, quase sempre, caía alguma gratificação no bolso do interno e
onde insensivelmente se desvendavam ao provinciano os mistérios da vida parisiense: conservava-o no gabinete durante as consultas e dava-lhe ocupações; às vezes,
mandava-o acompanhar um doente rico às águas; preparava-lhe, enfim, uma clientela. Disso resulta que ao fim dum certo tempo o tirano da cirurgia passou a ter um
dedicado admirador. Os dois homens, um no apogeu das honrarias e da ciência, desfrutando uma imensa fortuna e uma imensa glória, o outro, modesto ômega, sem fortuna
nem glória, tornaram-se íntimos. O grande Desplein contava tudo a seu interno; o interno sabia se tal mulher se sentara numa cadeira junto ao mestre ou sobre o famoso
canapé que havia no gabinete e no qual Desplein dormia; Bianchon conhecia os mistérios daquele temperamento de leão e de touro que acabou por alargar, ampliar exageradamente
o busto do homem e causou sua morte por hipertrofia do coração. Estudou as singularidades daquela vida tão atarefada, os projetos daquela avareza tão sórdida, as
esperanças do político oculto sob o sábio; pôde prever as decepções que esperavam o único sentimento oculto naquele coração menos de bronze que bronzeado.
Um dia Bianchon disse a Desplein que um pobre carregador de água do Faubourg Saint-Jacques estava com uma doença horrível causada pelas fadigas e pela miséria;
o pobre auvernês comera somente batatas durante o rigoroso inverno de 1821. Desplein deixou todos os seus doentes. Com risco de inutilizar seu cavalo, correu, acompanhado
de Bianchon, à casa do pobre homem e ele mesmo o transportou para a casa de saúde fundada pelo famoso Dubois, no Faubourg Saint-Denis. Tratou do homem, a quem deu,
quando se restabeleceu, a quantia necessária para comprar um cavalo e uma pipa. O auvernês distinguiu-se por uma ação original. Um de seus amigos adoeceu e ele o
levou imediatamente a Desplein, dizendo a seu benfeitor:
- Eu não admitiria que ele fosse procurar outro médico.
Por mais rabugento que fosse, Desplein apertou a mão do carregador de água e disse-lhe:
- Traga todos para cá.
E internou o homem de Cantal (Cantal: departamento formado por parte da Auvergne.) no Hôtel-Dieu, onde o tratou com o maior desvelo. Bianchon já notara várias
vezes no chefe uma predileção pelos auverneses e sobretudo pelos carregadores de água; mas, como Desplein se orgulhava de seus casos do Hôtel-Dieu, o aluno não via
nisso nada de estranho.
Um dia, ao atravessar a praça de Saint-Sulpice, Bianchon viu seu mestre entrando na igreja às nove horas da manhã. Desplein, que então não dava um passo sem o
cabriolé, ia a pé e esgueirava-se pela rue Petit-Lion como quem tivesse entrado numa casa suspeita. Naturalmente tomado de curiosidade, o interno, que conhecia as
opiniões do mestre e que era cabanista endyabrado, com y (o que em Rabelais (Cabanista: discípulo de Pierre-Georges Cabanis (1757-1808), médico e político, famoso
por seu ateísmo. Rabelais: François Rabelais (1494-1553), autor de Gargantua e de Pantagruel, obras que se distinguem, entre outras qualidades, por um estilo pitoresco,
saboroso, cheio de invenções originais.) representa um diabo em alto grau), introduziu-se furtivamente na igreja e não ficou pouco admirado ao ver o grande Desplein,
esse ateu sem compaixão pelos anjos que não oferecem campo aos bisturis nem podem ter fístulas nem gastrites, enfim, esse intrépido trocista, humildemente ajoelhado,
e onde...? no altar da Virgem, diante do qual ouviu missa, deu dinheiro para as despesas do culto e para os pobres, mantendo-se sério como se se tratasse duma operação.
"Certamente ele não veio cá para esclarecer as questões relativas ao parto da Virgem", dizia consigo Bianchon, cujo espanto não teve limites. "Se eu o visse segurando
um dos cordões do pálio na procissão de Corpus Christi, a coisa seria apenas para rir; mas, a esta hora, sozinho, sem testemunhas, não há dúvida de que isso dá que
pensar!"
Bianchon não quis dar a impressão de andar espionando o primeiro cirurgião do Hôtel-Dieu e saiu. Por acaso, nesse mesmo dia, Desplein o convidou para jantar num
restaurante. Entre um prato e outro, Bianchon conseguiu, por hábeis preparativos, falar sobre a missa, qualificando-a de palhaçada e de farsa.
- Uma farsa - disse Desplein - que custou mais sangue à cristandade que todas as batalhas de Napoleão e todas as sanguessugas de Broussais (Broussais: François-Joseph-Victor
Broussais (1772-1838), célebre médico francês, inventor de um sistema fisiológico baseado na irritabilidade dos tecidos.)! A missa é uma invenção papal que não data
de antes do século VI e que se baseia sobre o Hoc est corpus. Quantas torrentes de sangue não foi preciso derramar para instituir a festa de Corpus Christi, com
a qual a corte de Roma quis comprovar sua vitória na questão da presença real, cisma que durante três séculos agitou a Igreja! As guerras do conde de Tolosa (O conde
de Tolosa, Raimundo VI, era protetor dos albigenses; foi despojado de suas possessões por Simão de Montfort depois de derrotado na batalha de Muret.) e os albigenses
foram os últimos episódios do caso. Os valdenses e os albigenses (Os albigenses: seita religiosa, cujo nome provém da cidade de Albi. Espalhou-se no Sul da França,
no século XII. Seus sequazes negavam a Igreja de Roma, e contra eles o papa Inocêncio III organizou uma cruzada em 1209, comandada por Simão de Montfort. Os albigenses
foram vencidos em várias batalhas, entre as quais a de Tolosa em 1213; a guerra só terminou em 1229, pelo tratado de Paris. Os valdenses formavam outra seita, fundada,
depois de 1170, por Pedro Valdo, a qual pretendeu fazer voltar a Igreja à pureza primitiva. Perseguida e exterminada na França, a seita sobreviveu no Norte da Itália
até os nossos dias.) recusavam-se a reconhecer essa inovação.
Desplein divertiu-se, enfim, em dar largas a seu ateísmo, do que resultou uma torrente de gracejos "voltaireanos" ou, para ser mais exato, uma detestável imitação
do Citateur (Le Citateur: famoso libelo anticlerical de Pigault-Lebrun.).
"Ué!", disse Bianchon consigo. "Onde está meu devoto desta manhã?"
Ficou em silêncio, duvidando se realmente vira seu chefe em Saint-Sulpice. Desplein não se teria dado ao trabalho de mentir a Bianchon; conheciam-se ambos muito
bem, já haviam trocado ideias sobre assuntos igualmente graves, discutindo sistemas de natura rerum (De natura rerum (em latim): "da natureza (das coisas)". Estas
palavras servem de título ao grande poema didático do poeta latino Lucrécio (século I a.C.), em que explica o sistema filosófico e físico de Epicuro.), sondando-os
ou dissecando-os com as facas e o escalpelo da incredulidade. Passaram-se três meses. Bianchon nunca falou no fato, embora ele continuasse gravado em sua memória.
Um dia, no mesmo ano, um médico do Hôtel-Dieu tomou Desplein pelo braço, diante de Bianchon, para interrogá-lo.
- Então, que foi fazer em Saint-Sulpice, meu caro mestre? - disse-lhe.
- Ver um padre que tem uma cárie no joelho e a quem a sra. duquesa d'Angoulême (Duquesa d'Angoulême: filha de Luís XVI, esposa do filho primogênito de Carlos X.)
me deu a honra de me recomendar - disse Desplein.
O médico deu-se por satisfeito com a resposta, mas não Bianchon.
"Ah! Então vai ver joelhos doentes na igreja!", pensou Bianchon. "Ele vai é assistir à missa!"
Bianchon resolveu espiar Desplein. Lembrou-se do dia e da hora em que o surpreendera entrando em Saint-Sulpice e decidiu ir lá no ano seguinte, no mesmo dia e
na mesma hora, para ver se o encontraria novamente. Em tal caso, a periodicidade de sua devoção autorizaria uma investigação científica, pois num homem como aquele
não podia haver uma contradição direta entre o pensamento e a ação. No ano seguinte, no dia e na hora marcados, Bianchon, que já não era mais interno de Desplein,
viu o cabriolé do cirurgião parar à esquina da rua Tournon com a do Petit-Lion, de onde o amigo se esgueirou jesuiticamente ao longo das paredes de Saint-Sulpice,
onde tornou a ouvir a missa no altar da Virgem. Era realmente Desplein, o cirurgião-chefe, o ateu in petto (In petto: expressão italiana que significa "de si para
si", "no fundo do coração", "secretamente".), o devoto inesperado. O caso complicava-se. A persistência do ilustre sábio atrapalhava tudo. Quando Desplein saiu,
Bianchon aproximou-se do sacristão e perguntou-lhe se aquele senhor costumava frequntar a igreja.
- Estou aqui há vinte anos - disse o sacristão - e desde esse tempo o sr. Desplein vem quatro vezes por ano ouvir esta missa. Foi ele que a instituiu.
- Missa instituída por ele! - disse Bianchon, afastando-se. - É tão grave como o mistério da Imaculada Conceição, uma coisa que, por si só, basta para tornar um
médico incrédulo.
Decorreu algum tempo sem que o dr. Bianchon, embora fosse amigo de Desplein, tivesse uma oportunidade de falar-lhe nessa particularidade de sua vida. Encontravam-se
em conferências médicas e em reuniões sociais, onde era difícil estabelecer um desses momentos de confiança e de solidão em que, com os pés à borda da estufa, a
cabeça apoiada no encosto da poltrona, dois homens fazem confidências. Finalmente, sete anos mais tarde, após a revolução de 1830, quando o povo se arremessava contra
o arcebispado, quando as inspirações republicanas o incitavam a destruir as cruzes douradas que brilhavam, como focos de luz, na imensidade daquele oceano de casas,
quando a incredulidade aliada à revolta agitava as ruas, Bianchon surpreendeu novamente Desplein entrando em Saint-Sulpice. O doutor seguiu-o e colocou-se a seu
lado, sem que o amigo lhe fizesse o mínimo gesto ou testemunhasse a mínima surpresa. Ambos ouviram a missa instituída por Desplein.
- Quer dizer-me, meu caro - disse Bianchon a Desplein, quando saíram da igreja -, a razão dessa sua devoção fingida? Já é a terceira vez que o surpreendo na missa!
O senhor vai esclarecer-me esse mistério e explicar-me o flagrante desacordo entre suas opiniões e sua conduta. O senhor não acredita em Deus e vai à missa! Meu
caro mestre, está obrigado a responder-me.
- Faço como muitos devotos, homens profundamente religiosos na aparência, mas tão ateus como possamos ser eu e você.
E desencadeou uma torrente de epigramas sobre algumas personalidades políticas, a mais conhecida das quais nos oferece, neste século, uma nova edição do Tartufo
(O Tartufo: personagem da peça de igual nome de Molière, o tipo mais perfeito do hipócrita.), de Molière.
- Não é isso que estou perguntando - disse Bianchon. - Quero saber apenas o que é que vem fazer aqui e por que instituiu esta missa.
- Está bem, meu caro - disse Desplein. - Já me encontro à beira da sepultura e posso muito bem falar-lhe sobre o começo da minha vida.
Nesse momento, Bianchon e o grande homem passavam pela rue Quatre-Vents, uma das mais horríveis de Paris. Desplein mostrou o sexto andar duma dessas casas que
parecem um obelisco, cuja porta bastarda dá para uma área no fim da qual existe uma escada tortuosa iluminada por minúsculas janelas erroneamente denominadas óculos,
pois, na verdade, não deixam ver quase nada. Era uma casa esverdeada, em cujo pavimento térreo morava um comerciante de móveis e que parecia hospedar em cada pavimento
uma miséria diferente. Erguendo o braço num gesto enérgico, Desplein disse a Bianchon:
- Morei lá em cima dois anos!
- Eu sei. D'Arthez (D'Arthez: personagem de primeiro plano de A comédia humana, já encontrado em Memórias de duas jovens esposas, onde foi padrinho de casamento
de Maria-Gastão.) morou lá também e eu ia lá quase todos os dias, quando rapazinho. Nós chamávamos essa casa de toca dos grandes homens! E então?
- A missa que acabo de ouvir está ligada aos acontecimentos que se verificaram quando eu morava na mansarda onde você me diz que morou d'Arthez, aquela em cuja
janela se balança uma corda com roupa por cima dum vaso de flores. Tive um começo de vida tão duro, meu caro Bianchon, que posso disputar a qualquer um a palma dos
sofrimentos parisienses. Suportei tudo: fome, sede, falta de dinheiro, falta de roupa, de calçado e de camisas, tudo o que a miséria tem de mais rude. Assoprei nos
dedos entorpecidos de frio nessa toca dos grandes homens que eu gostaria de rever com você. Trabalhei durante um inverno vendo minha cabeça fumegar e distinguindo
o ar de minha respiração como se vê a dos cavalos num dia de geada. Não sei onde é que se toma um ponto de apoio para suportar uma vida dessas. Era sozinho, sem
recursos, sem dinheiro para comprar livros nem para pagar as despesas do meu curso médico; como não tinha amigos, meu gênio irascível, sombrio, inquieto, me prejudicava.
Ninguém queria ver nas minhas irritações a penúria e o esforço dum homem que, do fundo da situação social em que está, se agita para chegar à superfície. Tinha,
porém, e posso dizê-lo a você, diante de quem não tenho necessidade de fingir, essa reserva de bons sentimentos e de intensa sensibilidade que será sempre o apanágio
dos homens suficientemente fortes para galgar uma elevação qualquer, após ter patinhado durante muito tempo nos lodaçais da miséria. Eu não podia arrancar nada da
minha família nem da minha terra além da insuficiente pensão que me enviavam. Naquela época, portanto, eu comia pela manhã um pãozinho que o padeiro da rue Petit-Lion
me vendia mais barato porque era da véspera ou da antevéspera e que eu amolecia no leite; assim, minha refeição da manhã não me custava mais de dois sous (Sou: cinco
cêntimos, a vigésima parte de um franco.). Jantava somente de dois em dois dias, numa pensão onde o jantar custava dezesseis sous. Desse modo, não gastava mais de
nove sous por dia. Você pode calcular, tão bem como eu, o cuidado que podia dar à roupa e ao calçado! Não sei se mais tarde experimentamos tanto pesar pela traição
dum colega como o que sentimos, você e eu, ao ver a ridícula careta dum sapato que se descose, ao ouvir ranger a cava duma sobrecasaca. Só bebia água, tinha o maior
respeito pelos cafés. Zoppi (Zoppi: café do Quartier Latin.) me aparecia como uma terra prometida onde somente os Lúculos (Lúculo: general romano que se tornou famoso
pelo seu luxo e sua glutonaria.) da terra latina tinham direito de presença. "Poderei alguma vez", dizia comigo, "ir lá tomar uma taça de café com creme e jogar
uma partida de dominós?" Assim, aplicava aos meus estudos a raiva que a miséria me inspirava. Tratava de adquirir conhecimentos positivos a fim de conquistar um
imenso valor pessoal, para merecer o lugar que atingiria no dia em que saísse do meu nada. Gastava mais óleo que pão; a luz que me iluminava durante essas noites
obstinadas custava mais que minha alimentação. Esse duelo foi longo, teimoso, sem consolo. Não despertava simpatia alguma em torno de mim. Para ter amigos, é preciso
juntar-se com os moços, possuir algum dinheiro para ir beber com eles, acompanhá-los a todos os lugares onde vão os estudantes! Eu não tinha nada! E ninguém em Paris
compreende que nada é nada. Quando tinha de pôr a descoberto minha miséria, sentia na garganta a contração nervosa que lembra esses doentes que se queixam duma bola
que sobe do estômago à laringe. Encontrei mais tarde muita gente nascida rica e que, nunca tendo sentido falta de nada, não conhece este problema da regra de três:
Um rapaz está para o crime como uma moeda de cem sous está para x. Esses imbecis pintados de ouro me diziam: "Mas por que fazia dívidas? Por que contraía obrigações
onerosas?". Fazem-me pensar naquela princesa que, ao saber que o povo estava morrendo de fome, dizia: "Mas por que é que não compram brioches?". Eu gostaria de ver
um desses ricos que se queixam de que cobro muito caro para operá-los, sim, gostaria de vê-lo sozinho em Paris, sem eira nem beira, sem um amigo, sem crédito, e
obrigado a trabalhar com os cinco dedos para viver. Que faria? Onde iria acalmar a fome? Bianchon, se algumas vezes você me viu amargo e ríspido é porque nessas
ocasiões eu sobrepunha meus antigos sofrimentos à insensibilidade, ao egoísmo de que tenho milhares de provas nas altas esferas ou porque estava pensando nos obstáculos
que o ódio, a inveja, o ciúme e a calúnia ergueram entre o êxito e mim. Em Paris, quando certa gente nos vê prontos a pôr o pé no estribo, uns nos puxam pela aba
do casaco, outros afrouxam a barrigueira, para que quebremos a cabeça ao cair; este arranca as ferraduras do cavalo, aquele nos rouba o chicote; o menos pérfido
é aquele que fica à nossa espera para dar-nos um tiro à queima-roupa. Você tem talento suficiente, meu caro, para que logo venha a conhecer a batalha terrível, incessante,
que a mediocridade move ao homem superior. Se você perder vinte e cinco luíses numa noite, no dia seguinte será acusado de ser jogador e seus melhores amigos dirão
que você perdeu na véspera vinte e cinco mil francos. Se estiver com dor de cabeça, passará por louco. Se tiver um pouco de vivacidade, dirão que é insaciável. Se,
para enfrentar esse batalhão de pigmeus, você se armar de forças superiores, seus melhores amigos sairão a gritar que você quer devorar tudo, que tem a pretensão
de dominar, de tiranizar. Enfim, suas qualidades se transformarão em defeitos, seus defeitos se transformarão em vícios e suas virtudes serão crimes. Se salvar alguém,
dirão que poderia tê-lo matado; se seu doente se restabelece, constará que você conseguiu curá-lo à custa de sua saúde futura; se não morreu, há de morrer um dia.
Cometa um erro e ficará liquidado! Invente o que quiser, reclame seus direitos, e será considerado um sujeito intratável, um finório, que não quer deixar os jovens
subir. Por isso, meu caro, se não creio em Deus, muito menos nos homens. Você não conhece em mim um Desplein inteiramente diferente do Desplein que todos imaginam?
Mas não vamos remexer este montão de lodo. Como estava dizendo, morava nessa casa, estava estudando para fazer meu primeiro exame e não tinha dinheiro algum. Você
compreende! Chegara a um desses extremos em que a gente se diz: Vou alistar-me! Tinha uma esperança. Esperava de minha terra uma mala cheia de roupa branca, um presente
dessas velhas tias que, como não conhecem nada de Paris, pensam em nossas camisas, imaginando que com trinta francos por mês seu sobrinho vive a pão de ló. A mala
chegou numa ocasião em que eu estava na escola. O frete custara quarenta francos, e o porteiro, um sapateiro alemão que morava num sótão, os pagara e ficara com
a mala em seu poder. Saí a passear pela rue Fossés-Saint-Germain-des-Prés e pela rue de l'École de Médecine sem poder descobrir um estratagema que fizesse a mala
vir ter a minhas mãos sem ser obrigado a entregar os quarenta francos que, naturalmente, eu pagaria após vender a roupa. Minha estupidez me convenceu de que minha
única vocação era a cirurgia. Meu caro, as almas delicadas, cuja energia se exerce numa esfera elevada, não possuem esse espírito de intriga, fértil em expedientes,
em planos; seu engenho é o acaso; elas não procuram, encontram. Finalmente, voltei para casa à noite, no momento em que também voltava meu vizinho, um carregador
de água chamado Bourgeat, um homem de Saint-Flour. Nós nos conhecíamos como se conhecem dois locatários que têm os quartos no mesmo andar, que se ouvem ressonar,
tossir, vestir-se, e que acabam habituando-se um ao outro. Meu vizinho informou-me que o proprietário, a quem eu devia três aluguéis, me mandara embora e que eu
devia abandonar a casa no dia seguinte. Ele próprio tinha sido expulso devido à sua profissão. Passei a noite mais penosa da minha vida. Onde arranjar um carregador
para levar meus pobres trastes, meus livros? Como pagar o carregador e o porteiro? Para onde ir? Estas perguntas sem respostas, eu as repetia entre lágrimas, como
os loucos repetem seus estribilhos. Dormi. A miséria tem a seu favor um sono divino, cheio de belos sonhos. Na manhã seguinte, enquanto comia minha tigela de pão
molhado no leite, Bourgeat entrou e me disse:
- Sr. estudante, sou um homem pobre, criança achada no hospital de Saint-Flour, sem pai nem mãe, e não tenho dinheiro que chegue para me casar. O senhor não é
mais cheio de parentes do que eu, nem tem dinheiro. Escute, tenho lá embaixo um carrinho de mão que aluguei a dois sous por hora e as nossas coisas todas podem caber
dentro dele; se o senhor quiser, daremos um jeito para morar juntos, pois fomos postos para fora daqui. Isto aqui, afinal, não é nenhum paraíso terrestre.
- Sei disso - respondi -, meu bravo Bourgeat, mas estou muito embaraçado, porque tenho lá embaixo uma mala que contém uns cem escudos em roupa branca, com os quais
poderia pagar o senhorio e o porteiro, e não tenho cem sous.
- Ora! Tenho uns cobres - respondeu-me alegremente Bourgeat, mostrando uma velha e suja bolsa de couro. - Fique com sua roupa.
Bourgeat pagou meus três aluguéis, o seu, e deu o dinheiro do porteiro. Depois, meteu meus trastes e minha roupa no carrinho e saiu a empurrá-lo pelas ruas, detendo-se
diante de cada casa que tivesse um letreiro. Eu subia para ver se o quarto nos convinha. Ao meio-dia errávamos ainda pelo Quartier Latin sem ter encontrado nada.
O preço era um grande obstáculo. Bourgeat convidou-me para almoçar na casa dum comerciante de vinho, e deixamos o carrinho à porta. À tarde, descobri no beco de
Rohan, passage du Commerce, num sobrado, logo abaixo do telhado, dois quartos separados pela escada. E os alugamos, por sessenta francos anuais cada um. E eis-nos
instalados, eu e meu humilde amigo. Jantamos juntos. Bourgeat, que ganhava cerca de cinquenta sous por dia, possuía uns cem escudos e logo ia poder realizar sua
ambição, comprando uma pipa e um cavalo. Ao saber da minha situação, pois arrancou meus segredos com uma astúcia admirável e uma simplicidade cuja recordação ainda
hoje me sacode o coração, renunciou por algum tempo ao sonho de toda sua vida: Bourgeat vendia água carregando os baldes nas costas, havia vinte e dois anos, e sacrificou
seus cem escudos a meu futuro.
Nesse ponto, Desplein apertou violentamente o braço de Bianchon.
- Deu-me o dinheiro necessário para meus exames! Esse homem, meu amigo, compreendeu que eu tinha uma missão, que as necessidades da minha inteligência eram mais
importantes que as dele. Ocupou-se de mim, chamava-me seu menino, emprestou-me dinheiro para comprar livros e às vezes vinha de mansinho espiar-me estudar. Tomou
precauções maternais para que eu substituísse a alimentação insuficiente e má a que estava condenado por uma alimentação sadia e abundante. Bourgeat, homem de cerca
de quarenta anos, tinha uma fisionomia burguesa da Idade Média, uma fronte arqueada, uma cabeça que um pintor poderia aproveitar para modelo dum Licurgo (Licurgo:
segundo a tradição, antigo legislador de Esparta.). O pobre homem sentia o coração transbordante de afeição a empregar; nunca fora estimado a não ser por um cachorro,
morto havia pouco tempo e do qual sempre me falava, perguntando-me se eu achava que a Igreja consentiria em rezar missas pelo repouso da alma do animal. Seu cachorro,
dizia ele, era um verdadeiro cristão que, durante doze anos, o acompanhara à igreja sem nunca ter latido, ouvindo o órgão sem abrir a boca e permanecendo agachado
ao lado dele numa atitude que dava a impressão de estar rezando com ele. Esse homem transferiu para mim toda sua afeição; acolheu-me como uma criatura solitária
e sofredora; tornou-se para mim a mãe mais atenciosa, o benfeitor mais delicado, o ideal, enfim, dessa virtude que se satisfaz por si mesma. Quando eu o encontrava
na rua, ele me dirigia um olhar de inteligência, cheio duma inconcebível dignidade; fingia, então, caminhar como se não carregasse nada nas costas e mostrava-se
contente por me ver sadio e bem-vestido. Foi uma dedicação como a do povo, uma afeição de rapariga transportada para uma esfera elevada. Bourgeat levava meus recados,
despertava-me à noite às horas marcadas, limpava meu lampião, esfregava o patamar da escada; era tão bom criado como bom pai, e asseado como uma criada inglesa.
Tomava conta de casa. Como Filopêmen (Filopêmen: chefe da liga acaia (253-183 a.C.), cognominado "o último dos gregos". Procurou manter a unidade da Grécia ante
os progressos ameaçadores de Roma; famoso também pelas privações que passou na mocidade.), cortava nossa lenha e comunicava a todos os seus atos uma simplicidade
absoluta, conservando a dignidade, pois parecia compreender que o objetivo enobrecia tudo. Quando deixei esse bravo homem para ingressar no Hôtel-Dieu como interno,
ele ficou triste, porque não poderia continuar vivendo comigo; consolou-se, porém, com a perspectiva de juntar dinheiro para custear minha tese e me fez prometer
que iria visitá-lo nos dias de saída. Bourgeat orgulhava-se de mim, estimava-me por mim e por ele. Se você examinar minha tese, verá que é dedicada a ele. No último
ano do meu internato, eu já ganhara dinheiro suficiente para pagar tudo quanto devia a esse digno auvernês e comprei-lhe um cavalo e uma pipa; ele ficou furioso
por ver que eu me privava de meu dinheiro e, contudo, estava encantado por ver seus sonhos realizados; ria e censurava-me, olhava para a pipa e o cavalo e enxugava
uma lágrima ao dizer-me: "Não é direito! Ah! que bela pipa! O senhor fez mal... O cavalo é forte como um auvernês". Nunca vi nada mais patético que essa cena. Bourgeat
fez questão cerrada de comprar para mim aquele estojo de cirurgião guarnecido de prata que você viu no meu consultório e que é a coisa mais preciosa para mim. Embora
ele ficasse inebriado pelos meus primeiros êxitos, nunca lhe escapou a mínima palavra, o mínimo gesto que quisessem dizer: É a mim que se deve esse homem! E, no
entanto, se não fosse ele, a miséria teria acabado comigo. O pobre homem consumira-se por mim: não comera mais que pão com alho para que eu pudesse ter café a fim
de suportar minhas vigílias. Caiu doente. Como você bem pode imaginar, passei as noites à sua cabeceira e consegui salvá-lo na primeira vez; mas teve uma recaída
dois anos mais tarde, e, a despeito dos cuidados mais constantes, dos maiores esforços da ciência, sucumbiu. Nunca um rei foi tratado como ele o foi. Sim, Bianchon,
para arrancar aquela vida à morte, tentei coisas incríveis. Queria que ele vivesse o suficiente para ser testemunha de sua obra, para realizar-lhe todos os desejos,
para satisfazer a única gratidão que até agora me encheu o coração, para extinguir uma chama que ainda hoje me queima.
- Bourgeat - continuou Desplein após uma pausa, visivelmente comovido -, meu segundo pai, morreu nos meus braços, deixando-me tudo quanto possuía, por um testamento
que fizera num cartório e datado do ano em que fomos morar juntos no beco de Rohan. Esse homem tinha uma fé inabalável, amava a Santa Virgem como teria amado sua
esposa. Católico ardoroso, nunca me disse uma única palavra sobre minha religião. Quando percebeu que ia morrer, pediu-me que não poupasse nada para que ele tivesse
o socorro da Igreja. Mandei rezar missa por ele todos os dias. Muitas vezes, durante a noite, manifestava receios pelo futuro, temia que não tivesse levado uma vida
suficientemente santa. O pobre homem! Trabalhava da manhã à noite. A quem mais há de pertencer o paraíso, se é que há um paraíso? Recebeu os últimos sacramentos
como um santo que era e sua morte foi digna de sua vida. Seu enterro foi acompanhado apenas por mim. Quando acabei de sepultar meu único benfeitor, comecei a pensar
num meio de saldar minha dívida com ele. Verifiquei que ele não tinha família, nem amigos, nem esposa, nem filhos. Mas tinha fé! Possuía uma convicção religiosa,
e teria eu o direito de discuti-la? Ele me falara timidamente em missas celebradas pelo repouso dos mortos, mas não queria impor-me esse encargo, considerando que
isso seria exigir um pagamento por seus favores. Logo que consegui dinheiro suficiente para um legado, dei à igreja de Saint-Sulpice a quantia necessária para mandar
rezar quatro missas por ano. Como a única coisa que posso oferecer a Bourgeat é a satisfação de seus desejos piedosos, no dia em que se reza essa missa no começo
de cada estação, vou lá em seu nome e recito para ele as orações de costume. Digo com a boa-fé do médico: "Meu Deus, se há uma esfera onde colocas depois da morte
os que foram perfeitos, pensa no bom Bourgeat; e, se ele tem de sofrer alguma coisa, dá-me seus sofrimentos, para que ele entre mais depressa nisso que se chama
paraíso". Aí está, meu caro, tudo quanto um homem que tem minhas opiniões se pode permitir. Deus deve ser um bom diabo, não há de me querer mal por isso. Juro-lhe
que daria minha fortuna para que a crença de Bourgeat entrasse na minha cabeça.
Bianchon, que atendeu Desplein em sua última enfermidade, não ousa afirmar hoje que o ilustre cirurgião tenha morrido ateu. Os crentes não gostarão de imaginar
que o humilde auvernês lhe tenha aberto a porta do céu, como outrora lhe abriu a porta do templo terrestre em cujo pórtico se lê: Aos grandes homens a pátria agradecida
(Aos grandes homens a pátria amada agradecida: inscrição no frontão do Panthéon de Paris, ("Aux grands hommes la patrie reconnaissante"), monumento onde se enterram
os grandes homens.)?
Paris, janeiro de 1836
Honoré de Balzac
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