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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MONTANHA DO VAMPIRO / Darren Shan
A MONTANHA DO VAMPIRO / Darren Shan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

— Faça as malas — disse o Sr. Crepsley, tarde da noite, caminhando para seu caixão. — Saímos para a Montanha do Vampiro amanhã cedo.
Eu estava acostumado às resoluções repentinas do vampiro — ele não concordava em me consultar quando tomava uma decisão —, mas essa era extraordinária até para ele.
— Montanha do Vampiro? — exclamei, correndo atrás dele. — Por que vamos lá?
— Para apresentar você ao Conselho — disse ele. — Está na hora.
— O Conselho dos Generais Vampiros? — perguntei. — Por que temos de ir? Por que agora?
— Vamos porque é o que temos de fazer — disse ele. — E vamos agora porque o Conselho só se reúne uma vez a cada doze anos. Se perdermos este ano, teremos de esperar um longo tempo pela próxima reunião.
E foi tudo o que disse sobre o assunto. Ignorou as minhas outras perguntas e enfiou-se no caixão, antes de o sol nascer, deixando que eu me preocupasse pelo resto do dia.
Meu nome é Darren Shan. Sou meio-vampiro. Fui um ser humano até mais ou menos oito anos atrás, quando meu destino me levou ao Sr. Crepsley e com relutância me tornei seu assistente. Foi difícil me adaptar ao vampiro e a seus costumes — especialmente quando se tratava de beber sangue humano —, mas afinal me resignei, aceitei minha sina e continuei com a tarefa de viver.
Éramos parte de um grupo de artistas incríveis de um circo ambulante, dirigido por um homem chamado Hibérnio Altão. Viajamos por todo o mundo com um espetáculo maravilhoso para o público que apreciava nossos talentos estranhos e mágicos.
Seis anos se passaram desde a última vez que o Sr. Crepsley e eu nos separamos do Circo dos Horrores. Saímos para dar fim a um vampixiita louco chamado Vampirado, que aterrorizava a cidade onde moravam os vampiros. Os vampixiitas são um grupo dissidente de vampiros que matam seres humanos quando se alimentam do seu sangue. Os vampiros não fazem isso — tiramos apenas um pouco de sangue e seguimos em frente, deixando ilesos os que nos fornecem alimento. A maior parte dos mitos sobre vampiros que lemos nos livros ou vemos nos filmes na verdade foi criada pelos vampixiitas.
Foram seis bons anos. Tornei-me um artista fixo do Circo, com a Madame Octa — a aranha venenosa do Sr. Crepsley —, todas as noites, para encantar e assustar o público. Aprendi também alguns truques de mágica, que fazia no meu ato. Eu me dava bem com o resto dos artistas do circo. Acabei me acostumando com a vida nômade e estava me divertindo.
Agora, depois de seis anos de estabilidade, íamos começar uma jornada para o desconhecido outra vez. Eu sabia alguma coisa sobre o Conselho e a Montanha do Vampiro. Os vampiros eram governados pelos Generais Vampiros, que garantiam o cumprimento das suas leis. Eles matavam vampiros loucos ou malvados e mantinham o resto dos mortos-vivos na linha. O Sr. Crepsley tinha sido um General Vampiro, mas deixou o cargo há muito tempo por razões que nunca me contou.
De tempos em tempos — agora eu sabia que era de doze em doze anos —, os Generais se reuniam numa fortaleza para discutir seja o que for que aquelas criaturas que sugam sangue discutem quando se reúnem. Não só os Generais comparecem — ouvi dizer que vampiros comuns também podem tomar parte —, mas os generais constituem a maioria. Eu não sabia onde ficava a fortaleza ou por que eu tinha de ser apresentado ao Conselho — mas logo ia descobrir!


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CAPÍTULO UM
Eu estava entusiasmado e ansioso com a viagem — ia me aventurar no desconhecido e tinha o pressentimento de que não seria uma viagem fácil —, por isso passei o dia arrumando minha mochila e a do Sr. Crepsley para fazer o tempo passar mais depressa. (Vampiros completos morrem quando expostos ao sol por mais de algumas horas, mas os meios-vampiros não são afetados pela claridade solar.) Como eu não sabia aonde íamos, não sabia o que levar ou deixar. Se a Montanha do Vampiro era fria e cheia de gelo, íamos precisar de roupas e botas pesadas; se era entre quente e tropical, camisetas e shorts seriam mais adequados.
   
Perguntei a algumas pessoas do Circo, mas ninguém sabia de nada, a não ser o Sr. Altão, que disse que eu devia levar roupas para neve. O Sr. Altão, era uma dessas pessoas que parecem saber um pouco de tudo.
   
Ofídio concordou com a idéia da neve.
   
— Duvido que os vampiros, que têm medo do sol, teriam sua base no Caribe! — disse ele com desprezo.
   
Ofídio era um menino-cobra com escamas em vez de pele. Ou melhor, ele fora um menino-cobra — agora era um homem-cobra. Ofídio tinha crescido nos últimos seis anos, ficou mais alto e mais encorpado e parecia mais velho. Eu não. Como meio-vampiro, eu envelhecia apenas um quinto do que envelhece um ser humano normal. Assim, embora oito anos tivessem passado desde que o Sr. Crepsley me sugou, eu parecia só um ou dois anos mais velho.
   
Eu detestava não poder crescer normalmente. Ofídio e eu havíamos sido grandes amigos, mas agora não. Ainda éramos amigos e partilhávamos uma tenda, mas ele era um homem jovem agora, mais interessado nas pessoas — especialmente nas mulheres — da sua idade. Na verdade, eu era somente um ou dois anos mais moço do que ele, mas parecia um garoto e era difícil para ele me tratar como igual.
   
Havia benefícios em ser um meio-vampiro — eu era mais forte e mais rápido do que qualquer ser humano e viveria mais tempo —, mas teria desistido de tudo se isso significasse aparentar minha idade verdadeira e poder levar uma vida como a de todo mundo.
   
Embora Ofídio e eu não fossemos mais tão chegados, ele ainda era meu amigo e se preocupava, sabendo que eu ia à Montanha do Vampiro.
   
— Pelo que sei, essa viagem não é brincadeira — avisou ele com a voz grave adquirida há alguns anos. — Talvez eu deva ir com você.
   
Eu gostaria de aceitar a oferta imediatamente, mas Ofídio tinha sua vida. Não seria justo tirá-lo do Circo dos Horrores.
   
— Não — disse eu. — Fique e mantenha a minha rede quente.
   
Eu vou ficar bem. Além disso, cobras não gostam do frio, gostam?
   
— Isso é verdade. — Riu. — Eu provavelmente ia cair no sono e hibernar até a primavera!
   
Embora Ofídio não fosse conosco, ele me ajudou a fazer a mala. Eu não tinha muito para levar: algumas peças de roupa, um par de botas grossas, utensílios especiais de cozinha que podiam ser dobrados e, assim, eram fáceis de carregar — e outras miudezas.
   
Ofídio me disse para levar uma corda — disse que eu podia precisar, especialmente quando tivesse de escalar montanhas.
   
— Mas vampiros são grandes alpinistas — lembrei.
   
— Eu sei — disse ele —, mas você quer mesmo ficar dependurado no lado de uma montanha apoiado só nos dedos?
   
— É claro que ele quer! — disse alguém com voz tonitruante atrás de mim, antes que eu pudesse responder. — Vampiros adoram o perigo.
   
Virando para ver quem era, me vi face a face com a sinistra criatura conhecida como Sr. Tino, e minhas entranhas ficaram geladas de medo.
   
O Sr. Tino era um homem pequeno, de cabelos brancos, óculos de lentes grossas e um par de botas de cano alto na frente e cano baixo atrás. Estava sempre brincando com um relógio em forma de coração. Parecia um tio bondoso, mas era na verdade um homem cruel, de coração frio, capaz de cortar sua língua com a facilidade com que eu digo “olá”. Ninguém sabia muito a seu respeito, mas todos tinham medo dele. Seu primeiro nome era Desmond e, se o abreviássemos e o juntássemos com o sobrenome, teríamos Sr. Destino.
   
Eu não tinha visto o Sr. Tino logo que entrei para o Circo dos Horrores, mas ouvi muitas histórias sobre ele — como comia crianças no café da manhã e incendiava cidades para aquecer os pés. Meu coração se apertou quando o vi de pé a poucos metros de mim, com os olhos brilhantes, as mãos cruzadas nas costas, escutando minha conversa com Ofídio.
   
— Vampiros são criaturas peculiares — disse ele, dando um passo à frente como se tivesse feito parte da conversa o tempo todo. — Eles adoram um desafio. Certa vez conheci um que arriscava a vida ficando no sol só porque alguém tinha caçoado dele por só poder sair à noite.
   
Ele estendeu a mão e, apavorado como eu estava, automaticamente a apertei. Ofídio, não — quando o Sr. Tino estendeu a mão para o homem-cobra, ele começou a tremer, balançando a cabeça furiosamente. O Sr. Tino apenas sorriu e recolheu a mão.
   
— Então você vai para a Montanha do Vampiro — disse ele, pegando minha mochila e espiando dentro dela sem pedir permissão.
   
— Leve fósforos, Sr. Shan. O caminho é longo e os dias são frios. Os ventos que sopram em volta da Montanha do Vampiro podem cortar até um jovem de pele dura como você, até os ossos.
   
— Obrigado pelo conselho — disse eu.
   
Isso é que era confuso sobre o Sr. Tino. Ele era sempre cortês e amável, portanto, mesmo sabendo que era do tipo que nem pisca na frente da maior maldade, não se podia deixar de gostar dele pelo menos por algum tempo.
   
— Meus Pequeninos estão por perto? — perguntou ele. Os Pequeninos eram criaturas de baixa estatura que usavam mantos azuis com capuz, nunca falavam e comiam qualquer coisa que se movia (incluindo seres humanos!). Um punhado desses seres misteriosos quase sempre viajava com o Circo dos Horrores, e naquela época tínhamos oito deles conosco.
   
— Provavelmente estão na barraca — disse eu. — Levei comida para eles há uma hora, mais ou menos, e acho que ainda estão comendo. — Uma das minhas tarefas era caçar para dar comida aos Pequeninos. Ofídio costumava fazer isso comigo até crescer e exigir tarefas menos pesadas. Hoje em dia sou ajudado por duas crianças humanas ajudantes do Circo.
   
— Excelente — disse o Sr. Tino com um grande sorriso, e começou a ir embora. — Oh — disse ele —, uma última coisa. Diga a Larten para não sair sem falar comigo.
   
— Acho que estamos com pressa — disse eu. — Talvez não tenhamos tempo para...
   
— Só diga para ele que quero dar uma palavrinha — interrompeu o Sr. Tino. — Tenho certeza de que ele vai arranjar tempo para mim. — Com isso, ele apontou os óculos para nós, acenou um adeus e foi embora. Troquei um olhar preocupado com Ofídio, encontrei alguns fósforos, enfiei na mochila e saí correndo à procura do Sr. Crepsley.
 
   
 CAPÍTULO DOIS
   
 
   
 
   
O Sr. Crepsley ficou irritado quando eu o acordei — ele detestava levantar-se antes do pôr-do-sol —, mas parou de se queixar quando expliquei por que tinha perturbado seu sono.
   
— O Sr. Tino — suspirou ele, passando a mão na longa cicatriz no lado esquerdo do rosto. — O que ele pode querer?
   
— Eu não sei — respondi —, mas ele disse para não sair sem falar com ele. — Abaixei a
voz e murmurei: — Podíamos sair de fininho sem sermos vistos, se estamos com pressa. O crepúsculo não demora. Você pode aguentar uma ou duas horas de luz do sol se andarmos pela sombra, não pode?
   
— Eu poderia — concordou o Sr. Crepsley —, se quisesse fugir como um cão, com o rabo entre as pernas. Mas não sou desse tipo. Vou enfrentar Desmond Tino. Traga minha melhor capa — gosto de estar bem-vestido para os visitantes. — Era o máximo de piada que o vampiro se permitia — ele não tinha muito senso de humor.
   
Uma hora depois, com o sol se pondo, fomos para a caravana do Sr. Altão, onde o Sr. Tino regalava o dono do Circo dos Horrores com histórias do que tinha visto num terremoto recente.
   
— Ah, Larten! — disse o Sr. Tino com seu vozeirão. — Pontual como sempre.
   
— Desmond — respondeu o Sr. Crepsley, friamente.
   
— Sente-se — disse o Sr. Tino.
   
— Obrigado, prefiro ficar de pé. — Ninguém gostava de sentar quando o Sr. Tino estava por perto — para o caso de precisar sair correndo.
   
— Ouvi dizer que vai à Montanha do Vampiro — disse o Sr. Tino.
   
— Vamos partir agora — confirmou o Sr. Crepsley.
   
— Esse é o primeiro Conselho a que comparece em quase cinquenta anos, não é?
   
— Está bem informado — resmungou o Sr. Crepsley.
   
— Eu mantenho o ouvido colado ao solo.
   
Bateram na porta e o Sr. Altão fez entrar dois Pequeninos. Um deles mancava um pouco. Estava com o Circo dos Horrores quase há tanto tempo quanto eu. Eu o chamava de Esquerdinha, mas isso era só um apelido — nenhum dos Pequeninos tinha nome.
   
— Prontos, meninos? — perguntou o Sr. Tino. Os Pequeninos acenaram. — Excelente! — Sorriu para o Sr. Crepsley. — O caminho para a Montanha do Vampiro está tão perigoso como sempre, não é?
   
— Não é fácil — concordou o Sr. Crepsley com ar matreiro.
   
— Perigoso para um jovenzinho como mestre Shan, não acha?
   
— Darren sabe se cuidar — disse o Sr. Crepsley, e eu sorri com orgulho.
   
— Estou certo de que pode — respondeu o Sr. Tino —, mas é incomum para alguém tão jovem fazer essa jornada, não é?
   
— Sim, é — disse o Sr. Crepsley secamente.
   
— Por isso estou mandando estes dois com vocês como guardas.
   
— O Sr. Tino acenou para os Pequeninos.
   
— Guardas? — exclamou o Sr. Crepsley. — Não precisamos de guardas. Já fiz a viagem muitas vezes. Posso tomar conta de Darren.
   
— Sem dúvida que pode — arrulhou o Sr. Tino —, mas uma pequena ajuda nunca é demais, certo?
   
— Eles vão atrapalhar — resmungou o Sr. Crepsley. — Eu não quero a companhia deles.
   
— Meus Pequeninos? Atrapalhar? — O Sr. Tino parecia chocado. — Eles existem só para servir. Serão como pastores, tomando conta de vocês enquanto dormem.
   
— Mesmo assim — insistiu o Sr. Crepsley —, eu não quero...
   
— Isto não é uma oferta — interrompeu o Sr. Tino. Embora ele falasse suavemente, a ameaça na sua voz era inequívoca. — Eles vão com vocês. Fim de papo. Vão caçar para comer e providenciarão lugar para dormir. Tudo que você tem a fazer é procurar não perdêlos nos vastos campos de neve do caminho.
   
— E quando eles chegarem lá? — perguntou o Sr. Crepsley, zangado. — Espera que os
faça entrar? Isso não é permitido. Os Príncipes não vão admitir.
   
— Vão sim — discordou o Sr. Tino. — Não esqueça quem foi que construiu o Salão dos Príncipes. Paz Celestial e o resto sabem de que lado está a manteiga do seu pão. Eles não farão objeção.
   
O Sr. Crepsley estava furioso — praticamente tremendo de raiva —, mas a fúria desapareceu quando olhou para os olhos do Sr. Tino e compreendeu que não podia discutir com aquele intrometido. No fim ele concordou balançando a cabeça e evitou seu olhar fixo, envergonhado por ter se submetido aos desmandos deste homem.
   
— Eu sabia que ia concordar — disse o Sr. Tino com um largo sorriso, e depois voltando a atenção para mim. — Você cresceu — notou ele. — Por dentro, que é onde importa. Suas batalhas com o Homem-Lobo e o Vampirado o fortaleceram.
   
— Como sabe de tudo isso? — perguntou o Sr. Crepsley, atônito. Todo mundo sabia do meu encontro com o Homem-Lobo, mas ninguém devia saber da nossa luta com o Vampirado. Se os vampixiitas descobrissem, nos caçariam até os confins da Terra e nos matariam.
   
— Eu sei todo tipo de coisa — riu o Sr. Tino, divertido. — Este mundo não tem segredos para mim. Você percorreu um longo caminho — virou para mim outra vez —, mas ainda tem um longo caminho pela frente. A trilha nem sempre é fácil e não estou falando só da viagem à Montanha do Vampiro. Você deve ser forte e ter fé em você mesmo. Nunca admita a derrota, mesmo quando ela pareça inevitável.
   
Eu não esperava aquele discurso e ouvi atordoado, imaginando por que ele estava dizendo aquilo para mim.
   
— Isso é tudo o que eu tinha para dizer — terminou, levantando-se e esfregando seu relógio em forma de coração. — O tempo passa. Nós todos temos lugares para ir e prazos para cumprir. Eu vou embora. Hibérnio, Larten, Darren. — Fez uma mesura para cada um de nós. — Nos encontraremos outra vez, tenho certeza. — Virou e caminhou para a porta, trocou um olhar com os Pequeninos e saiu. No silêncio que se seguiu, nos entreolhamos, imaginando o que significava tudo aquilo.
   
O Sr. Crepsley não estava satisfeito, mas não podia adiar a partida — chegar a tempo para o Conselho era mais importante do que qualquer outra coisa, ele me disse. Assim, enquanto os Pequeninos esperavam no lado de fora da sua van, eu o ajudei a fazer as malas.
   
— Essa roupa não vai servir — disse ele, referindo-se à minha colorida fantasia de pirata que ainda servia depois de tantos anos de uso e abuso. — Aonde vamos, você vai sobressair como um pavão. Tome. — Jogou um embrulho para mim. Abri e encontrei um blusão e uma calça cinza-clara com um boné de lã.
   
— Há quanto tempo está se preparando para isto? — perguntei.
   
— Há algum tempo — admitiu, vestindo uma roupa da mesma cor da minha em lugar do seu usual traje vermelho.
   
— Não podia ter-me dito antes?
   
— Podia — respondeu ele com aquele seu modo irritante.
   
Vesti a roupa nova e procurei meias e sapatos. O Sr. Crepsley balançou a cabeça quando me viu procurando.
   
— Nada para os pés — disse ele. — Nós vamos descalços.
   
— Na neve e no gelo? — gemi.
   
— Vampiros têm os pés mais resistentes do que os seres humanos — disse ele. — Você mal vai sentir o frio, especialmente quando estivermos andando.
   
— E as pedras e os espinhos? — resmunguei.
   
— Eles enrijecerão suas solas mais ainda — riu, e tirou as sapatilhas. — É o mesmo para todos os vampiros. O caminho para a Montanha do Vampiro não é apenas uma jornada — é um teste. Sapatos, agasalhos, cordas, essas coisas não são permitidas.
   
— Para mim parece coisa de louco — suspirei, mas tirei a corda, as roupas e as botas da minha mochila. Quando estávamos prontos, o Sr. Crepsley perguntou onde estava Madame Octa. — Não vai levá-la, vai? — perguntei. Eu sabia quem teria de tomar conta da aranha se ela fosse, e não seria o Sr. Crepsley!
   
— Quero mostrar a Madame Octa para alguém — disse ele.
   
— Alguém que come aranhas, espero — funguei, mas tirei Madame Octa de trás do caixão dele, onde eu a guardava entre um espetáculo e outro. Ela andou um pouco para lá e para cá enquanto eu erguia a gaiola e a punha na minha mochila, mas sossegou quando se viu no escuro outra vez.
   
Então era hora de partir. Eu tinha me despedido de Ofídio antes — ele ia tomar parte no espetáculo daquela noite e precisava preparar seu número —, e o Sr. Crepsley tinha se despedido do Sr. Altão. Ninguém mais sentiria a nossa falta.
   
— Pronto? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— Pronto — suspirei.
   
Deixando a segurança da van, saímos do campo, com os silenciosos Pequeninos atrás de nós, e começamos o que seria uma aventura louca e cheia de perigos nas terras frias, estranhas e encharcadas de sangue.
 
   
CAPÍTULO TRÊS
   
 
   
 
   
Acordei um pouco antes do cair da noite, espreguicei para tirar a rigidez dos ossos — o que eu não daria por uma cama ou uma rede! — e saí do fundo da caverna para ver a terra árida por onde estávamos passando. Não tinha tido muita oportunidade de ver o campo porque viajávamos à noite. Somente durante momentos tranquilos como aqueles eu podia fazer uma pausa e ver tudo.
   
Não tínhamos chegado às terras geladas, mas a civilização já fora deixada para trás. Os seres humanos eram poucos e um distante do outro ali onde o solo era pedregoso e ameaçador. Até os animais eram poucos, mas alguns eram bastante fortes para conseguir viver ali — a maior parte gamos, lobos e ursos.
   
Estávamos viajando havia semanas, talvez um mês — perdi a noção do tempo depois das primeiras noites. Sempre que eu perguntava ao Sr. Crepsley quantos quilômetros faltavam, ele sorria e dizia: “Ainda estamos longe.”
   
Meus pés ficaram muito machucados quando chegamos ao terreno duro. O Sr. Crepsley aplicou nas minhas solas o suco de plantas herbáceas que encontrou no caminho, carregou-me por algumas noites enquanto minha pele se refazia (meu corpo cicatrizava mais depressa que o dos seres humanos) e, depois disso, fiquei bem.
   
Uma noite cu disse que era uma pena que os Pequeninos estivessem conosco, do contrário ele poderia me pôr nas costas e deslizar. (Os vampiros podem correr a uma velocidade extra, uma espécie de corrida mágica, onde correm através do espaço como enguias através de uma rede. Eles chamam de deslizar.) Ele disse que nosso passo lento não tinha nada a ver com os Pequeninos.
   
— Não é permitido deslizar no caminho para a Montanha do Vampiro — explicou. — A viagem é um meio de separar os fracos dos fortes. Os vampiros são inclementes em certos aspectos. Não acreditamos em ajudar os que não se ajudam.
   
— Isso não é muito bonito — observei. — E quando alguém é velho ou está ferido?
   
O Sr. Crepsley deu de ombros.
   
— Ou não tentam fazer a viagem ou morrem tentando.
   
— Isso é idiotice — disse eu. — Se eu pudesse deslizar, eu deslizaria. Ninguém ia saber.
   
O vampiro suspirou.
   
— Você ainda não compreende nossos costumes. Não há nobreza em enganar nossos camaradas. Somos seres orgulhosos, Darren, vivemos de acordo com códigos rígidos. Para nós é melhor perder a vida do que o orgulho.
   
O Sr. Crepsley sempre falava sobre orgulho e nobreza e sobre ser verdadeiro para si mesmo. Os vampiros eram rigorosos. Ele dizia que viviam o mais próximo possível da natureza. Sua vida raramente é fácil e é assim que eles gostam. “A vida é um desafio”, disseme ele certa vez, “e só aqueles que enfrentam o desafio sabem realmente o que significa viver.”
   
Acabei me acostumando com os Pequeninos que andavam atrás de nós, à noite, silenciosos, distantes e precisos. Caçavam para comer durante o dia, enquanto dormíamos. Quando acordávamos, já tinham comido, dormido algumas horas e estavam prontos para
partir. O passo deles nunca mudava. Marchavam atrás de nós como robôs, a alguns metros de distância. Eu pensei que o que mancava pudesse ter dificuldades, mas ainda não tinha demonstrado nem sinal disso.
   
O Sr. Crepsley e eu comíamos quase sempre carne de gamo. O sangue era quente e bom. Tínhamos garrafas de sangue humano para nos dar força — vampiros precisam de doses regulares de sangue humano para conservar a saúde e, embora prefiram beber diretamente da veia, podem engarrafar o sangue e guardar —, mas tomávamos muito pouco desse sangue, guardando para o caso de uma emergência.
   
O Sr. Crepsley não me deixava fazer uma fogueira ao ar livre — podia chamar a atenção —, mas era permitido nos postos de descanso. Esses postos eram cavernas ou subterrâneos onde eram armazenadas garrafas de sangue humano e caixões. Eram lugares de descanso, onde os vampiros podiam se abrigar por um ou dois dias. Não eram muitos — mais ou menos uma semana entre um e outro —, e alguns tinham sido destruídos ou invadidos por animais desde a última viagem do Sr. Crepsley.
   
— Como eles permitem postos de descanso mas não sapatos ou cordas? — perguntei um dia, enquanto aquecíamos os pés no fogo e comíamos carne de veado assada (na maioria das vezes comíamos a carne crua).
   
— Os postos de descanso foram criados depois da nossa guerra com os vampixiitas há setecentos anos — disse ele. — Perdemos a maioria do nosso clã na luta contra os vampixiitas, e os seres humanos mataram outros tantos de nós. Nossos números estavam perigosamente baixos. Os postos de descanso foram criados para facilitar a viagem à Montanha do Vampiro. Alguns vampiros são contra e nunca os usam, mas a maioria aceita.
   
— Quantos vampiros existem? — perguntei.
   
— Entre dois e três mil — respondeu. — Talvez algumas centenas a mais ou a menos.
   
Assobiei.
   
— É uma porção! .
   
— Três mil não é nada — butou. — Pense nos bilhões de seres humanos.
   
— É mais do que cu esperava — disse eu.
   
— Houve um tempo em que éramos mais de dez mil — disse o Sr. Crepsley. — Isso foi há muito tempo, quando dez mil era uma grande quantidade.
   
— O que aconteceu com eles? — perguntei.
   
— Foram mortos — suspirou. — Seres humanos com estacas, doenças, lutas — vampiros gostam de lutar. Nos séculos antes da separação dos vampixiitas, que nos deu verdadeiros inimigos, lutamos entre nós, e muitos morreram em duelos. Quase chegamos à extinção, mas, embora por pouco, conseguimos manter a cabeça na superfície.
   
— Quantos são os Vampiros Generais? — perguntei, curioso.
   
— Entre trezentos e quatrocentos.
   
— E vampixiitas?
   
— Uns duzentos e cinquenta ou trezentos — não tenho certeza. Enquanto eu me lembrava dessa antiga conversa, o Sr. Crepsley saiu da caverna atrás de mim e olhou para o pôr-do-sol. Tinha a mesma cor alaranjada do cabelo dele. O vampiro estava em grande forma — as noites ficavam mais longas à medida que nos aproximávamos da Montanha do Vampiro, por isso ele podia se mover por mais tempo.
   
— É sempre bonito ver a descida dele — disse o Sr. Crepsley, referindo-se ao sol.
   
— Pensei que fosse nevar mais cedo — disse eu.
   
— Logo teremos neve à vontade — respondeu —, devemos alcançar os montes de neve esta semana. — Olhou para meus pés.
   
— Você poderá sobreviver ao frio rigoroso?
   
— Cheguei até aqui, não cheguei?
   
— Esta foi a parte fácil — sorriu e bateu nas minhas costas quando viu meu desapontamento. — Não se preocupe, você ficará bem. Mas me diga se seus pés ficarem machucados outra vez. Há arbustos raros que crescem ao lado do caminho, cuja seiva pode fechar os poros da pele.
   
Os Pequeninos saíram da caverna com os capuzes cobrindo seus rostos. O que mancava carregava uma raposa morta.
   
— Pronto? — perguntou-me o Sr. Crepsley.
   
Assenti e dependurei a mochila nos ombros. Olhando para a frente, para o terreno rochoso, fiz a pergunta de sempre:
   
— Falta muito?
   
O Sr. Crepsley sorriu, começou a andar e disse, virando para trás:
   
— Ainda estamos longe.
   
Resmungando zangado, olhei para trás, para a caverna relativamente confortável, depois para a frente e segui o vampiro. Os Pequeninos seguiram atrás e, depois de algum tempo, ouvi os sons secos de coisa quebrada quando começaram a mastigar os ossos da raposa.
   
 
   
* * *
   
 
   
Quatro noites depois encontramos a neve. Por algumas noites viajamos por uma grande extensão branca e gelada, onde nada vivia, mas, depois disso, árvores, arbustos e animais apareceram outra vez.
   
Eu sentia os pés como dois blocos de gelo quando andávamos na neve, mas cerrei os dentes e continuei a andar para anular os efeitos do frio. O pior era levantar ao crepúsculo, depois de dormir com os pés debaixo do corpo o dia todo. Sempre, uma ou duas horas depois de acordar, meus pés formigavam e eu tinha a impressão de que iam cair. Então o sangue começava a circular e tudo ficava bem — até a noite seguinte.
   
Dormir ao ar livre era um tremendo desconforto. Nós dois deitávamos juntos, vestidos — não tirávamos a roupa desde que tínhamos chegado à neve —, e nos cobríamos com cobertores ásperos feitos por nós de pele de veado. Mas sentíamos o frio gelado mesmo juntando o calor dos nossos corpos. Para Madame Octa era fácil — ela dormia segura e bem agasalhada na gaiola, só acordando para comer de tempos em tempos. Muitas vezes desejei poder trocar de lugar com ela.
   
Se os Pequeninos sentiam frio, não demonstravam. Não usavam cobertores, apenas deitavam debaixo de um arbusto ou encostados numa rocha quando queriam dormir.
   
Quase três semanas depois de termos parado no último posto de descanso, encontramos outro. Eu estava ansioso para sentar ao lado de um fogo e comer carne cozida outra vez. Queria até dormir num caixão — qualquer coisa era melhor do que o solo frio e duro! Esse posto era uma caverna na parte de baixo de um rochedo, acima de uma floresta e um regato grande. O Sr. Crepsley e eu fomos direto para ele, enquanto os Pequeninos saíam para caçar. A escalada durou apenas dez minutos. Passei na frente do Sr. Crepsley quando nos aproximamos da entrada da caverna, ansioso para acender o fogo, mas ele pôs a mão no meu ombro.
   
— Espere — disse ele em voz baixa.
   
— O que foi? — perguntei, zangado. Estava irritado depois de três semanas dormindo ao ar livre.
   
— Sinto o cheiro de sangue — disse ele.
   
Parei, farejei o ar e, depois de alguns segundos, também senti o cheiro, forte e enjoativo.
   
— Fique logo atrás de mim — murmurou o Sr. Crepsley —, esteja preparado para correr assim que eu mandar. — Assenti obedientemente, balançando a cabeça, e comecei a andar atrás dele. Chegamos à entrada da caverna e ele entrou.
   
A caverna era escura, especialmente depois do brilho da lua, entramos devagar, dando aos olhos tempo para se adaptarem. Era uma caverna profunda, virando para a esquerda e voltando para trás uns vinte metros ou mais. Havia três caixões sobre um estrado, no centro, mas um estava no chão, a tampa dependurada para o lado, e outro feito em pedaços, encostado na parede à nossa direita.
   
A parede e o chão em volta do caixão despedaçado estavam escuros de sangue. Não era sangue fresco, mas pelo cheiro não devia ter mais de duas noites. Depois de examinar o resto da caverna — para garantir que estávamos sozinhos —, o Sr. Crepsley se aproximou e abaixou para examinar o sangue, pondo a ponta do dedo na mancha de sangue seco e levandoo à boca.
   
— Então? — sussurrei, enquanto ele esfregava o indicador no polegar.
   
— É sangue de vampiro — disse ele em voz baixa.
   
Senti um aperto no peito — eu esperava que fosse sangue de animal selvagem.
   
— O que você acha... — comecei a perguntar, quando ouvi um farfalhar áspero atrás de mim. Um braço forte apertou minha cintura e senti a mão pesada na garganta e — quando o Sr.
Crepsley se lançou para a frente, para ajudar — meu atacante rosnou triunfante:
   
— Ha!
 
   
 CAPÍTULO QUATRO
   
 
   
 
   
Enquanto eu estava imobilizado pelas mãos de fosse quem fosse que me segurava, o Sr. Crepsley saltou com os dedos da mão direita estendidos como uma lâmina. Brandiu a mão acima da minha cabeça. Meu agressor me soltou e abaixou no mesmo movimento, atirandose pesadamente no chão, e o Sr. Crepsley passou voando por cima de mim. Quando o vampiro se levantou e virou para desferir um segundo golpe, o homem gritou:
   
— Pare, Larten! Sou eu, Torvelinho!
   
O Sr. Crepsley parou e eu me levantei, engasgado pelo susto, mas não mais com medo. Virei e vi um homem grande com o rosto cheio de cicatrizes e círculos escuros em volta dos olhos. Estava vestido como nós, com o boné cobrindo as orelhas. Reconheci-o imediatamente, o Sr. Torvelinho, um General Vampiro. Eu o tinha conhecido anos atrás, logo depois do meu encontro com Vampirado.
   
— Torvelinho, seu tolo idiota! — gritou o Sr. Crepsley. — Eu o teria matado se tivesse acertado. Por que fez isso conosco?
   
— Eu queria surpreender vocês — disse Torvelinho. — Seguios durante quase toda a noite, e essa me pareceu a hora certa para me aproximar. Não esperava quase perder a cabeça no processo — resmungou.
   
— Você devia prestar mais atenção ao lugar em que está e menos a Darren e a mim — disse o Sr. Crepsley, apontando para as manchas de sangue na parede e no chão.
   
— Pelo sangue de um vampixiita! — sussurrou Torvelinho.
   
— Na verdade é o sangue de um vampiro — corrigiu o Sr. Crepsley secamente.
   
— Alguma ideia de qual? — perguntou Torvelinho, apressandose a experimentar o
sangue.
   
— Nenhuma — disse o Sr. Crepsley.
   
Torvelinho inspecionou a caverna toda, examinando o sangue e o caixão quebrado, procurando outras pistas. Não encontrou nenhuma, voltou para onde estávamos e coçou o queixo, pensativo.
   
— Provavelmente ele foi atacado por um animal selvagem — disse Torvelinho, como se estivesse pensando alto. — Um urso — talvez mais de um — o surpreendeu durante o dia, enquanto ele dormia.
   
— Não tenho tanta certeza disso — discordou o Sr. Crepsley.
   
— Um urso teria feito um estrago muito maior na caverna e em tudo que ela contém, mas só os caixões foram danificados.
   
Torvelinho passou os olhos pela caverna outra vez, notando a ordem de todo o resto, e balançou a cabeça, assentindo.
   
— O que você acha que aconteceu? — perguntou.
   
— Uma luta — sugeriu o Sr. Crepsley — entre dois vampiros ou entre o vampiro morto e outra pessoa.
   
— Quem poderia ter estado aqui no meio da noite? — perguntei. O Sr. Crepsley e Torvelinho trocaram um olhar preocupado.
   
— Caçadores de vampiros, talvez — murmurou Torvelinho. Senti a respiração presa na garganta — tão acostumado estava com a vida de vampiro que tinha esquecido que muita gente no mundo achava que éramos monstros e se dedicavam a nos caçar e matar.
   
— Ou talvez seres humanos que o encontraram por acidente e entraram em pânico — disse o Sr. Crepsley. — Há muito tempo não somos perseguidos agressivamente por caçadores de vampiros. Isto pode ter sido um caso de má sorte.
   
— Seja como for — disse Torvelinho —, não vamos ficar aqui esperando que aconteça outra vez. Eu estava precisando de um descanso, mas agora acho melhor não nos prendermos aqui dentro.
   
— Concordo — respondeu o Sr. Crepsley e, depois de um último olhar na caverna, saímos, com todos os sentidos alertas para o menor sinal de ataque.
   
Instalamos nossa base para a noite no meio de um círculo de grandes árvores e acendemos uma fogueira — nós três estávamos gelados ate os ossos depois da experiência na caverna. Enquanto falávamos sobre o vampiro morto e se devíamos procurar seu corpo ali por perto, os Pequeninos voltaram carregando um gamo que tinham capturado. Olharam desconfiados para Torvelinho, que olhou igualmente desconfiado para eles.
   
— O que eles fazem aqui com você? — sibilou.
   
— O Sr. Tino insistiu para que eu os trouxesse — disse o Sr. Crepsley, erguendo a mão pedindo silêncio, quando Torvelinho se preparava para mais perguntas. — Mais tarde — prometeu. — Vamos comer primeiro e falar da morte do nosso companheiro.
   
As árvores nos abrigavam do sol que subia no horizonte, por isso ficamos ali até depois do nascer do dia, falando sobre o vampiro morto — os vampiros resolveram não dar uma busca, alegando que atrasaria nossa viagem —, e finalmente passamos a falar de outros assuntos. Torvelinho perguntou outra vez por que os Pequeninos estavam ali, e o Sr. Crepsley contou como o Sr. Tino tinha aparecido e dado ordem para que eles nos acompanhassem. Então perguntou a Torvelinho por que estava nos seguindo.
   
— Eu sabia que você ia apresentar Darren aos Príncipes — disse Torvelinho —, por isso
localizei seu padrão mental e o segui por meio dele. — (Os vampiros podem se unir mentalmente uns com os outros.) — Tive de me desviar quando estava cento e sessenta quilómetros ao sul, mas detesto viajar sozinho — é chato não ter com quem conversar.
   
Enquanto falávamos, notei que faltavam dois dedos no pé esquerdo de Torvelinho e perguntei o que tinha acontecido.
   
— Queimadura de frio — respondeu alegremente, mexendo os dedos restantes. — Quebrei a perna na viagem, uns dois Conselhos atrás. Tive de me arrastar por cinco noites até chegar a um posto de descanso. Só por sorte de vampiro não perdi mais do que alguns dedos.
   
Os vampiros falaram muito sobre o passado, velhos amigos e Conselhos anteriores. Pensei que fossem mencionar Vampirado — Torvelinho tinha alertado o Sr. Crepsley sobre os vampixiitas, que podiam estar por perto —, mas nem tocaram no assunto.
   
— Como você tem passado? — perguntou-me Torvelinho.
   
— Muito bem — disse eu.
   
— A vida com esta ave de rapina rabugenta não o incomoda?
   
— Tenho administrado até agora — sorri.
   
— Alguma intenção de ser promovido? — perguntou ele.
   
— Como assim?
   
Ele ergueu os dedos para que eu visse as cicatrizes nas pontas, o sinal de um vampiro.
   
— Pretende se tornar um vampiro completo?
   
— Não — disse eu rapidamente, depois olhei de soslaio para o Sr. Crepsley. — Não tenho esses planos, não é? — perguntei, desconfiado.
   
— Não — sorriu o Sr. Crepsley. — Não antes de sair da idade humana. Se eu fizesse de você um vampiro completo agora, demoraria sessenta ou setenta anos para crescer completamente.
   
— Aposto que é horrível crescer tão devagar quando se é criança — observou Torvelinho.
   
— Sim, é — suspirei.
   
— As coisas vão melhorar com o tempo — disse o Sr. Crepsley.
   
— Claro — disse eu com sarcasmo —, quando eu acabar de crescer — daqui a trinta anos! — Levantei balançando a cabeça, aborrecido. Eu sempre ficava desanimado quando pensava nas décadas que teria de passar na estrada para a maturidade.
   
— Aonde vai? — perguntou o Sr. Crepsley quando andei em direção às árvores.
   
— Ao regato — disse eu —, para encher nossos cantis.
   
— Talvez um de nós deva ir com você — disse Torvelinho.
   
— Darren não é criança — disse o Sr. Crepsley, antes que eu tivesse tempo de dizer. — Ele estará bem.
   
Disfarcei um sorriso. Gostava das raras ocasiões em que o vampiro me elogiava, e continuei na direção do regato. A água gelada corria rápida e gorgolejou alto quando enchi os cantis, cir-cundandoos e envolvendo meus dedos. Se eu fosse humano podia ter queimadura de frio, mas os vampiros são bem mais fortes.
   
Quando estava atarraxando a tampa do segundo cantil, uma fina nuvem de respiração veio do outro lado do regato. Ergui os olhos surpreso com o fato de um animal selvagem ter se aventurado tão perto de mim, e meus olhos encontraram os olhos ferozes e brilhantes de um lobo faminto com presas afiadas.
 
   
CAPÍTULO CINCO
   
 
   
 
   
O lobo olhou demoradamente para mim em silêncio, franzindo o nariz sobre os caninos pontudos, farejando meu cheiro. Vagarosamente, deixei o cantil no chão sem saber ao certo o que fazer. Se gritasse por socorro, o lobo podia entrar em pânico e fugir — por outro lado, podia também atacar. Se eu ficasse como estava, ele podia perder o interesse e ir embora ou podia interpretar isso como sinal de fraqueza e pular em cima de mim.
   
Eu tentava desesperadamente decidir quando o lobo enrijeceu as pernas traseiras, abaixou a cabeça e atacou, atravessando o regato com um salto poderoso. Caiu em cima do meu peito, me derrubando. Tentei me livrar, mas ele sentou em cima de mim e era pesado demais para que eu conseguisse sair. Minhas mãos procuravam freneticamente uma pedra ou um pedaço de pau, qualquer coisa para bater no animal, mas não encontrei nada a não ser neve.
   
O lobo, visto de perto, era pavoroso, com a cabeça cinza-escura e olhos amarelos amendoados, o focinho negro e dentes brancos de cinco ou seis centímetros de comprimento, arreganhados, a língua dependurada no canto da boca e respirando devagar. Seu hálito fedia a sangue e carne de animal.
   
Eu não sabia nada sobre lobos — exceto que os vampiros não podem beber seu sangue —, por isso não sabia como reagir: atacar a cabeça dele ou o corpo? Ficar parado e esperar que ele fosse embora ou talvez assustá-lo com um grito? Enquanto eu fazia essas perguntas com o cérebro a mil, o lobo abaixou a cabeça, estendeu a língua longa e molhada e... me lambeu!
   
A surpresa foi tanta que fiquei imóvel, olhando para o focinho do animal amedrontador. O lobo me lambeu outra vez, saiu de cima de mim, foi até a água, abaixou e começou a beber. Fiquei onde estava mais alguns momentos, depois me sentei vendo o animal beber, notando que era um macho.
   
Quando acabou de beber, o lobo endireitou-se, levantou a cabeça e uivou. Das árvores no outro lado do regato, três outros lobos apareceram, chegaram perto da margem e começaram a beber. Eram duas fêmeas e um filhote mais escuro e menor do que os outros.
   
O macho observou os outros enquanto bebiam, depois sentou ao meu lado. Encostou em mim como um cachorro e, antes que eu soubesse o que fazia, estendi o braço e comecei a coçar atrás da orelha dele. O lobo gemeu de prazer e virou a cabeça para que eu pudesse coçar atrás da outra orelha.
   
Uma das fêmeas acabou de beber e saltou para a margem em que eu estava. Farejou meus pés, depois sentou no meu outro lado e ofereceu a cabeça para ser coçada. O macho rosnou enciumado, mas ela nem ligou.
   
Não demorou para que os outros dois se juntassem a nós no outro lado do regato. A fêmea era mais tímida do que os outros e ficou a vários metros de mim. O filhote não tinha medo nenhum e começou a passear pela minha barriga e por cima das minhas pernas, farejando como um cão de caça. Levantou uma perna para marcar o território na minha coxa esquerda, mas, antes que tivesse tempo, o lobo o jogou longe com um safanão. Ele latiu zangado, depois voltou e subiu em cima de mim outra vez. Dessa vez não tentou marcar o território — ainda bem!
   
Fiquei ali sentado por uma eternidade, brincando com o filhote e coçando o par de lobos maiores. O macho virou de costas para que eu pudesse coçar sua barriga. O pêlo era mais claro na barriga a não ser por uma faixa longa de pêlos negros, que subia até o meio do corpo. “Pintado” me pareceu um bom nome para um lobo, por isso eu o chamei assim.
   
Eu queria ver se eles sabiam alguns truques. Encontrei um graveto e joguei para longe. “Pegue, Pintado, pegue!”, gritei, mas ele nem se mexeu. Tentei fazer com que ele sentasse e prestasse atenção. “Sente, Pintado!”, ordenei. Ele olhou para mim. “Sente... assim.” Agachei sobre as pernas. Pintado recuou um pouco como se pensasse que eu era louco. O filhote estava encantado e saltou em cima de mim. Eu ri e parei de tentar fazer com que eles fizessem truques.
   
Depois disso, voltei ao acampamento para contar aos vampiros minhas novas amizades. Os lobos me acompanharam, mas só Pintado andava ao meu lado, os outros iam atrás.
   
O Sr. Crepsley e Torvelinho dormiam quando voltei, enrolados em grossos cobertores de pele de gamo. Torvelinho roncava alto. Só com as cabeças de fora, pareciam o mais feio par de bebês do mundo. Eu gostaria de ter uma câmera capaz de fotografar vampiros.
   
Eu ia me juntar a eles debaixo do cobertor quando tive uma ideia. Os lobos tinham parado perto das árvores. Eu os fiz entrar no meio das árvores, Pintado veio primeiro e examinou o local, certificando-se de que era seguro. Quando ficou satisfeito, rosnou baixinho e os outros lobos entraram, guardando distância dos dois vampiros que dormiam.
   
Deitei no lado mais distante do fogo e levantei um cobertor, convidando os lobos a deitar debaixo dele comigo — o filhote tentou, mas a mãe o puxou pela parte de cima do pescoço —, mas quando eu me deitei e me cobri, eles se aproximaram devagar e deitaram cm cima de mim, até mesmo a loba tímida. Eram pesados e o cheiro dos corpos peludos, insuportável, mas o calor dos lobos era uma dádiva dos céus e, apesar de estar tão perto da caverna onde um vampiro fora morto recentemente, dormi em completo conforto.
   
Fui acordado por rosnados furiosos. Sentei e vi os três lobos adultos formando um semicírculo na frente da minha cama, o macho no meio. O filhote procurava se esconder atrás de mim. Mais adiante estavam os Pequeninos. As mãos cinzentas abriam e fechavam ao lado do corpo, e eles se aproximavam dos lobos.
   
— Parem! — berrei, saindo da cama. No outro lado do fogo — que tinha apagado enquanto eu dormia, o Sr. Crepsley e Torvelinho acordaram e saíram debaixo dos cobertores. Pulei na frente de Pintado e rosnei para os Pequeninos. Eles olharam para mim por baixo da borda dos capuzes azuis. Vi os olhos grandes e verdes do que estava mais perto de mim.
   
— O que está acontecendo? — gritou Torvelinho, piscando rapidamente.
   
O Pequenino mais próximo ignorou Torvelinho, apontou para os lobos, depois esfregou a própria barriga. Aquele era o sinal de que ele estava com fome. Balancei a cabeça.
   
— Não os lobos — disse eu. — São meus amigos. — Ele esfregou a barriga outra vez. — Não! — gritei.
   
O Pequenino começou a avançar, mas o que estava atrás — Esquerdinha — estendeu a mão e tocou no braço dele. O Pequenino trocou um olhar com Esquerdinha, ficou parado por um momento, depois foi embora para onde estavam os ratos que tinham caçado. Esquerdinha ficou ali por algum tempo, depois se juntou ao irmão (sempre pensei neles como irmãos).
   
— Vejo que encontrou alguns dos nossos primos — disse o Sr. Crepsley, caminhando devagar para o que restava do fogo, com as mãos abertas viradas para cima para não assustar os lobos. Eles rosnaram, mas, quando sentiram seu cheiro, relaxaram e sentaram, sempre de olho nos Pequeninos que mastigavam sua refeição.
   
— Primos? — perguntei.
   
— Lobos e vampiros são parentes — explicou. — Diz a lenda que antes eram iguais, como o homem e o macaco eram originalmente um só. Alguns de nós aprenderam a andar só com duas pernas e nos tornamos vampiros — os outros continuam lobos.
   
— Isso é verdade? — perguntei. O Sr. Crepsley deu de ombros.
   
— Quando se trata de lenda, quem pode saber?— Ele abaixou na frente de Pintado e o examinou silenciosamente. Pintado endireitou o corpo e levantou a cabeça, com as orelhas e os pêlos do pescoço eriçados. — Um ótimo espécime — disse o Sr. Crepsley, acariciando o focinho longo do lobo. — Um líder nato.
   
— Eu o chamo de Pintado porque tem uma faixa de pêlos negros na barriga — disse eu.
   
— Lobos não precisam de nomes — informou-me o vampiro.
   
— Não são cães.
   
— Não seja desmancha-prazeres, Larten — disse Torvelinho, ficando ao lado do amigo. — Deixe que ele dê nomes se quiser. Não pode fazer nenhum mal.
   
— Acho que não — concordou o Sr. Crepsley. Estendeu a mão para as lobas e elas se adiantaram para lamber sua palma, incluindo a tímida. — Eu sempre tive jeito com os lobos — disse ele sem disfarçar o orgulho na voz.
   
— Por que eles são tão amistosos? — perguntei. — Sempre pensei que os lobos fugissem das pessoas.
   
— Dos seres humanos — disse o Sr. Crepsley. — Vampiros são diferentes. Nosso cheiro é igual ao deles. Eles reconhecem os espíritos irmãos. Nem todos os lobos são assim — estes já devem ter encontrado outros vampiros antes, mas nenhum deles ataca um vampiro, a não ser que esteja faminto.
   
— Viu mais alguns, deles? — perguntou Torvelinho. Balancei a cabeça. — Então provavelmente estão viajando para a Montanha do Vampiro para se juntar às outras alcatéias.
   
— Por que eles iriam à Montanha do Vampiro? — quis saber.
   
— Os lobos vêm sempre que há um Conselho — explicou. — Eles sabem por experiência que encontrarão muitos restos de comida. Os Guardiães da Montanha do Vampiro passam anos armazenando para os Conselhos. Sempre sobra comida, que eles deixam fora para as criaturas selvagens.
   
— É um longo caminho para encontrar restos de comida — comentei.
   
— Eles vão por algo mais do que a comida — disse o Sr. Crepsley. — Reúnem-se pela companhia para cumprimentar os amigos, encontrar novos companheiros ou companheiras, partilhar lembranças.
   
— Os lobos se comunicam? — perguntei.
   
— Podem transmitir pensamentos simples uns aos outros. Na verdade não falam, os lobos não têm palavras, mas podem partilhar imagens e passar mapas de onde estiveram, fazendo com que os outros saibam onde a caça é abundante ou escassa.
   
— Por falar nisso, acho melhor nos fazermos escassos — disse Torvelinho. — O sol está se pondo e está na hora de continuarmos nossa viagem. Você escolheu um longo caminho, Larten, e, se não nos apressarmos, vamos nos atrasar para o Conselho.
   
— Existem outros caminhos? — perguntei.
   
— É claro — disse ele —, dezenas deles. Por isso — exceto pelos restos do morto — não encontramos vampiros. Cada um vem por um caminho.
   
Enrolamos nossos cobertores e partimos. O Sr. Crepsley e Torvelinho atentos à procura de quem tinha matado o vampiro na caverna. Os lobos nos seguiam no meio das árvores e correram ao nosso lado por algumas horas, sempre mantendo distância dos Pequeninos, antes de desaparecerem na noite.
   
— Para onde estão indo? — perguntei.
   
— Vão caçar — respondeu o Sr. Crepsley.
   
— Vão voltar?
   
— Eu não ficaria surpreso — disse ele, e, quando amanheceu, enquanto acampávamos, os quatro lobos apareceram como fantasmas saídos da neve e se deitaram ao nosso lado e em
cima de nós. Pelo segundo dia seguido, dormi profundamente, só perturbado pelo nariz frio do filhote quando ele o enfiava debaixo do cobertor no meio do dia para se ajeitar ao meu lado.
 
   
 CAPÍTULO SEIS
   
 
   
 
   
Prosseguimos cautelosamente algumas noites, depois de encontrar a caverna cheia de sangue. Mas, quando não encontramos mais nenhum sinal do assassino do vampiro, pusemos as preocupações em tempo de espera e começamos a desfrutar os rudes prazeres do caminho do melhor modo possível.
   
Andar com lobos era fascinante. Aprendi muita coisa observando e fazendo perguntas para o Sr. Crepsley, que se considerava mais ou menos um perito em lobos.
   
Os lobos não são velozes, mas são incansáveis, às vezes percorrem quarenta ou cinquenta quilômetros num dia. Geralmente escolhem pequenos animais para caçar, mas ocasionalmente perseguem vítimas maiores, funcionando como uma equipe. Seus sentidos — visão, audição, faro — são muito desenvolvidos. Cada alcatéia tem um líder e eles dividem igualmente a comida. São ótimos alpinistas e podem sobreviver em qualquer tipo de terreno.
   
Caçávamos muitas vezes com eles. Era divertido correr na neve cintilante, ao lado deles, nas noites estreladas — atrás de um gamo ou de uma raposa, partilhando a caça quente e sangrenta. O tempo passava mais depressa na companhia dos lobos e vencíamos quilômetros quase sem sentir.
   
 
   
* * *
   
 
   
Numa noite fria e clara, chegamos a um trecho de urze-branca que cobria o solo de um vale abrigado entre duas montanhas enormes. Os espinhos eram extremamente grossos e agudos, capazes de espetar até a pele de um vampiro. Paramos na entrada do vale enquanto o Sr. Crepsley e Torvelinho decidiam o que íamos fazer.
   
— Podemos escalar o lado da montanha — disse o Sr. Crepsley —, mas Darren não é tão bom alpinista quanto nós e pode se ferir se escorregar.
   
— E se dermos a volta? — sugeriu Torvelinho.
   
— Demoraria muito.
   
— Não podemos cavar uma passagem por baixo? — perguntei.
   
— Isso também seria muito demorado — disse o Sr. Crepsley.
   
— Teremos de escolher nosso caminho com o maior cuidado possível.
   
Ele e Torvelinho tiraram a camisa e a calça.
   
— Por que estão tirando a roupa? — perguntei.
   
— Nossa roupa nos protegerá pouco — explicou Torvelinho —, mas chegaríamos no fim do vale vestidos com farrapos. O melhor é mantê-las intactas.
   
Quando Torvelinho tirou a calça, vimos a cueca de boxeador com elefantes cor-de-rosa bordados. O Sr. Crepsley olhou incrédulo para a cueca.
   
— Ganhei de presente — murmurou Torvelinho, corando furiosamente.
   
— De uma mulher humana pela qual você estava loucamente apaixonado, suponho — disse o Sr. Crepsley com os cantos da boca, normalmente severa, curvando-se para cima, ameaçando um sorriso raro e espontâneo.
   
— Era uma mulher adorável — suspirou Torvelinho, delineando um dos elefantes com a ponta dos dedos. — Só que tinha um péssimo gosto para roupa de baixo...
   
— E para namorados — acrescentei atrevidamente. O Sr.
   
Crepsley explodiu numa gargalhada dobrando o corpo para a frente com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Eu nunca tinha visto o vampiro rir tanto — nunca imaginei que pudesse! Até Torvelinho ficou surpreso.
   
O Sr. Crepsley demorou um longo tempo para se refazer do acesso de riso. Quando enxugou as lágrimas e voltou ao seu normal sombrio, pediu desculpas (como se rir fosse um crime). Então esfregou uma loção fedida na minha pele, fechando os poros, endurecendo-a. Sem perder mais tempo, avançamos. A caminhada era lenta e dolorosa. Por mais cuidadoso que fosse, eu pisava num espinho ou me arranhava. Protegi meu rosto o melhor que pude, mas, quando chegamos ao meio do vale, meu rosto estava cheio de filetes de sangue.
   
Os Pequeninos não tiraram os capuzes azuis, embora estivessem sendo despedaçados. Depois de um tempo, o Sr. Crepsley os mandou ir na frente para enfrentar os piores espinhos, abrindo caminho para nós. Quase tive pena do par silencioso, que não reclamou.
   
Para os lobos era mais fácil. Eram feitos para terrenos como aquele e passavam entre as urzes rapidamente. Mas não pareciam satisfeitos. Estavam agindo estranhamente a noite toda, encolhendo-se perto de nós, tristonhos, quietos, farejando o ar com desconfiança. Podíamos sentir sua ansiedade, mas não sabíamos a causa.
   
Eu olhava para meus pés, passando cautelosamente por uma fileira de espinhos reluzentes, e dei um encontrão nas costas do Sr. Crepsley quando ele parou de repente.
   
— O que houve? — perguntei, espiando por cima do ombro dele.
   
— Torvelinho! — disse ele, ignorando minha pergunta. Torvelinho passou por mim, respirando pesadamente (muitas vezes caçoávamos da sua respiração pesada). Ele deu um grito abafado quando chegou perto do Sr. Crepsley.
   
— O que é? — perguntei. — Deixe-me ver. — Os vampiros se separaram e vi um pequeno pedaço de tecido preso num espinho da urze. Algumas gotas de sangue seco manchavam as pontas do espinho.
   
— Por que tanto barulho? — perguntei.
   
Os vampiros não responderam imediatamente — olhavam em volta preocupados como os lobos naquela noite.
   
— Não sente o cheiro? — finalmente Torvelinho respondeu em voz baixa.
   
— O quê?
   
— O sangue.
   
Farejei o ar. O cheiro era muito fraco porque o sangue estava seco.
   
— O que tem o cheiro? — perguntei.
   
— Pense no passado, há seis anos — disse o Sr. Crepsley. Tirou o pedaço de pano do espinho — agora os lobos uivavam alto — e pôs debaixo do meu nariz. — Respire profundamente. Lembra-se de alguma coisa?
   
Não lembrei imediatamente — meus sentidos não eram tão aguçados como os dos vampiros completos —, mas então me lembrei daquela noite ha tanto tempo, no quarto de Debora Cicuta, e do cheiro do Vampirado enlouquecido caído no chão. Fiquei branco quando compreendi -era o sangue de um vampixiita!
 
   
 CAPÍTULO SETE
   
 
   
 
   
Atravessamos rapidamente o resto do vale das urzes sem nos importar com os espinhos pontudos. Na saída, paramos para nos vestir e continuamos rapidamente nossa viagem. O Sr. Crepsley estava determinado a alcançar o posto de descanso mais próximo antes do nascer do dia. Normalmente, a jornada teria levado várias horas, mas nós a fizemos em duas. Uma vez dentro do posto e seguros, os vampiros começaram uma discussão acalorada. Nunca antes tinham encontrado sinais de atividade dos vampixiitas naquela parte do mundo — havia um tratado entre os dois clãs que evitava tais atos de invasão.
   
— Talvez seja um louco perdido — sugeriu Torvelinho.
   
— Mesmo o vampixiita mais insano sabe que não deve vir aqui — discordou o Sr. Crepsley.
   
— Que outra explicação pode haver? — perguntou Torvelinho. O Sr. Crepsley pensou no problema.
   
— Pode ser um espião.
   
— Acha que os vampixiitas arriscariam uma guerra? — duvidou Torvelinho. — O que podiam ficar sabendo que justificasse esse risco?
   
— Talvez estejam atrás de nós — disse eu em voz baixa. Eu não queria interromper, mas achei que devia.
   
— Como assim? — perguntou Torvelinho.
   
— Talvez tenham descoberto sobre Vampirado.
   
Torvelinho empalideceu e o Sr. Crepsley entrecerrou os olhos.
   
— Como poderiam ter descoberto? — disse ele, irritado.
   
— O Sr. Tino sabia — lembrei.
   
— O Sr. Tino sabe da morte de Vampirado? — murmurou Torvelinho.
   
O Sr. Crepsley inclinou a cabeça lentamente, assentindo.
   
— Mas, mesmo que ele tivesse contado aos vampixiitas, como eles iam saber que escolheríamos este caminho? Podíamos ter escolhido qualquer um. Não podiam ter adivinhado.
   
— Talvez eles estejam cobrindo todos os caminhos — disse Torvelinho.
   
— Não — disse o Sr. Crepsley com segurança. — É absurdo. Seja qual for a razão da presença dos vampixiitas, não tem nada a ver conosco.
   
— Espero que esteja certo — resmungou Torvelinho sem muita convicção.
   
Discutimos o assunto por mais algum tempo, incluindo a possibilidade dos vampixiitas terem assassinado o vampiro no posto de descanso, depois dormimos umas poucas horas nos revezando na vigilância. Eu praticamente não dormi, preocupado com um ataque dos assassinos de caras roxas.
   
Quando a noite chegou, o Sr. Crepsley disse que não devíamos continuar antes de ter certeza de que estávamos seguros.
   
— Não podemos nos arriscar a dar de frente com um grupo de vampixiitas — disse ele. — Examinaremos a área para ter certeza de que é segura e então prosseguiremos nossa viagem.
   
— Temos tempo para explorar a área? — perguntou Torvelinho.
   
— Temos de arranjar tempo — insistiu o Sr. Crepsley. — Melhor gastar algumas noites do que cair numa armadilha.
   
Fiquei na caverna e eles saíram para examinar o local. Eu não queria ficar — não podia esquecer o que tinha acontecido com o outro vampiro —, mas eles disseram que eu ia atrapalhar — um vampixiita podia ouvir meus passos a centenas de metros de distância.
   
Os Pequeninos, as lobas e o filhote ficaram comigo. Pintado foi com os vampiros — os lobos tinham sentido a presença dos vampixiitas antes de nós, portanto a presença dele seria útil.
   
Senti-me solitário sem os vampiros e sem Pintado. Os Pequeninos mantinham distância como sempre — passaram grande parte do tempo costurando as capas azuis e as lobas deitaram e cochilaram. Só o filhote me fez companhia. Passamos horas brincando na caverna e entre as árvores de uma floresta próxima. Dei ao filhote o nome de Rudi, em homenagem a Rodolfo — a rena de nariz avermelhado que puxava o trenó do Papai Noel —, porque ele gostava de esfregar o nariz frio nas minhas costas quando eu dormia.
   
Peguei alguns esquilos na floresta e cozinhei para que estivessem prontos de manhã quando os vampiros voltassem. Servi frutas e raízes quente com eles — o Sr. Crepsley tinha me ensinado quais os alimentos que podíamos comer sem perigo. Torvelinho me agradeceu a refeição, mas o Sr. Crepsley parecia distante e não falou muito. Não tinham descoberto nenhum outro sinal do vampixiita e isso os preocupava — um vampixiita louco não podia ter facilmente disfarçado os traços da sua passagem. Isso significava que se tratava de um — ou mais — vampixiita com completo controle da mente.
   
Torvelinho queria ir na frente, adejando, para consultar os outros vampiros, mas o Sr. Crepsley não deixou — as leis contra deslizar a caminho da Montanha do Vampiro eram mais importantes do que nossa segurança, ele insistiu.
   
Era estranho o tato de Torvelinho aceitar quase tudo que o Sr. Crepsley dizia. Como General, ele podia nos mandar fazer qualquer coisa que quisesse. Mas eu nunca o vi usar sua patente para discordar do Sr. Crepsley. Talvez porque o Sr. Crepsley fora antigamente um General de alta patente. Estava prestes a se tornar Príncipe Vampiro quando desistiu. Talvez Torvelinho ainda o considerasse seu superior.
   
Depois de um dia inteiro de sono, os vampiros saíram para pesquisar a terra adiante de nós outra vez. Se o caminho estivesse livre, continuaríamos a viagem para a Montanha do Vampiro na noite seguinte.
   
Comi um desjejum simples, depois eu e Rudi fomos brincar na floresta. Rudi gostava de ficar longe dos lobos adultos. Podia explorar livremente, sem ninguém para gritar com ele ou dar um piparote na sua cabeça quando se comportava mal. Tentou subir em árvores, mas era muito pequeno para a maioria delas. Finalmente encontrou uma com galhos baixos e subiu até a metade. Uma vez lá em cima, olhou para baixo e começou a ganir de medo.
   
— Venha — ri. — Você não está muito alto. Não precisa ter medo. — Ele me ignorou e continuou a choramingar. Então arreganhou os dentes e rosnou.
   
Aproximei-me, intrigado.
   
— Qual o problema? — perguntei. — Você está preso? Quer ajuda? — O filhote latiu. Parecia realmente assustado. — Tudo bem, Rudi — disse. — Vou subir para...
   
Fui interrompido por um rugido de gelar os ossos. Virando, vi um enorme urso escuro saltar por cima de um monte de neve. Ele aterrissou pesadamente, balançou o focinho, rosnou, olhou fixo — e investiu contra mim, os dentes brilhando, as garras expostas, decidido a me fazer em pedaços!
 
   
 CAPÍTULO OITO
   
 
   
 
   
O urso teria me matado se não fosse por Rudi. O filhote saltou da árvore e caiu em cima da cabeça do urso, cegando-o momentaneamente. O urso rugiu e procurou atingir o filhote com a pata, mas ele se esquivou do golpe e ferrou os dentes na orelha do atacante. O urso rugiu outra vez e balançou a cabeça de um lado para outro. Rudi se aguentou por alguns segundos, antes de ser atirado no ar para cima de uma moita.
   
O urso voltou a me atacar, mas, com o tempo conseguido pelo filhote, me escondi atrás de uma árvore e agachado corri para a caverna o mais depressa possível. O urso virou e começou a me perseguir, viu que eu estava muito longe, urrou furioso, virou e começou a procurar Rudi.
   
Parei quando ouvi os ganidos assustados. Olhei para trás e vi que o filhote tinha voltado para a árvore. O urso despedaçava a casca da árvore com as garras. Rudi não corria perigo imediato, porém, mais cedo ou mais tarde, podia escorregar ou o urso podia balançar a árvore e derrubá-lo, e isso seria o fim do filhote.
   
Parei por não mais de um segundo, depois virei, apanhei uma pedra grande e o pedaço de pau mais grosso que encontrei e voltei correndo para salvar Rudi.
   
O urso desistiu da árvore quando me viu, caiu de quatro para enfrentar meu desafio. Era um animal enorme com cerca de um metro e meio de altura, pêlo negro, uma marca branca com um quarto de lua no peito e o focinho esbranquiçado. Espuma escorria das mandíbulas e os olhos ferozes pareciam ensandecidos.
   
Parei na frente do urso e bati no chão com o pedaço de pau.
   
— Venha, seu urso horrível — rosnei. Ele rosnou também e balançou a cabeça. Olhei para cima, para Rudi, esperando que ele tivesse juízo bastante para descer da árvore e fugir para a caverna, mas ele ficou onde estava, petrificado, incapaz de se mexer.
   
O urso tentou me alcançar com a pata, mas eu abaixei. Levantando-se nas pernas traseiras,
ele arremeteu pesadamente para cima de mim, tentando me esmagar com seu peso. Eu o evitei outra vez, mas foi por pouco.
   
Eu cutucava o focinho do urso com o pau, no meio dos olhos, quando as lobas entraram em cena correndo — deviam ter ouvido os ganidos de Rudi. O urso urrou quando uma das lobas saltou e cravou os dentes profundamente no seu ombro, enquanto a outra atacava as pernas com dentes e garras. Ele se livrou da loba que estava mais acima e inclinou-se para atacar a outra, e foi então que eu atingi sua orelha esquerda com o pedaço de pau.
   
Eu devia ter machucado a orelha, porque ele perdeu o interesse na loba e se atirou sobre mim. Abaixei, livrando-me do seu corpo, mas uma das patas enormes atingiu o lado da minha cabeça, derrubando-me.
   
O urso girou sobre os pés e veio para cima de mim, dispersando as lobas com as patas. Eu recuei, porém tarde demais. De repente o urso estava acima de mim, ereto, urrando triunfante — eu estava exatamente onde ele queria! Atingi o estômago dele com o pau, depois com a pedra, mas ele nem se importou com aqueles golpes fracos. Com um esgar maldoso, começou a abaixar o corpo em cima de mim...
   
... foi então que os Pequeninos saltaram sobre as costas dele, fazendo-o perder o equilíbrio. Eles não podiam ter chegado numa hora melhor.
   
O urso deve ter pensado que o mundo inteiro conspirava contra ele. Cada vez que conseguia me pegar, alguma coisa nova atrapalhava. Rugindo alto para os Pequeninos, ele
atirou-se sobre eles como um louco. O que mancava se esquivou, mas o outro ficou preso debaixo do urso.
   
O Pequenino levantou os braços curtos, bateu com eles no corpo do urso, tentando tirá-lo de cima do outro. O Pequenino era forte, mas não tinha chance contra um inimigo tão pesado, e o urso desceu o corpo sobre ele e o esmagou. Houve um barulho horrível de coisa amassada e, quando o urso levantou, vi o Pequenino em pedaços, ossos quebrados vermelhos de sangue, em ângulos impossíveis.
   
O urso levantou a cabeça e urrou para o céu, depois fixou em mim o olhar faminto. Caindo de quatro, ele avançou. As lobas saltaram para ele, mas o urso as atirou para longe, sacudindo-se como se fossem pulgas. Eu ainda estava atordoado com a pancada, incapaz de me levantar. Comecei a me arrastar na neve.
   
Quando o urso se aproximou para o golpe fatal, o segundo Pequenino — o que eu chamava de Esquerdinha — parou na frente dele, agarrou as orelhas e bateu com a cabeça na dele com toda a força. Foi a coisa mais maluca que eu já tinha visto, mas um trabalho realmente eficiente. O urso rosnou e piscou, atordoado. Esquerdinha repetiu o golpe e estava inclinando a cabeça para trás para uma terceira batida quando o urso o atacou com a pata direita como um lutador de boxe.
   
Atingiu Esquerdinha no peito e o derrubou. O capuz tinha caído durante a luta e eu vi o rosto cinzento deformado e os olhos redondos e verdes. Uma máscara cobria sua boca como as que os médicos usam para operar. Ele olhou para cima, para o urso, sem medo, esperando o golpe mortal.
   
— Não! — gritei. Ajoelhando, ainda estonteado, dei um soco no urso. Ele rosnou para mim. Dei outro soco, depois peguei um punhado de neve e joguei nos olhos dele.
   
Enquanto o urso procurava se livrar da neve nos olhos, procurei uma arma. Eu estava desesperado, qualquer coisa era melhor do que as mãos nuas. A princípio não vi nada que pudesse usar, mas então meus olhos caíram nos ossos do corpo do Pequenino morto. Instintivamente, rolei para onde estava o Pequenino, peguei um dos ossos mais compridos e puxei. Estava coberto de sangue e meus dedos escorregaram. Tentei outra vez, segurando com mais força, e balancei o osso de um lado para o outro. Depois de alguns puxões ele quebrou perto da base e de repente eu não estava mais indefeso.
   
Com os olhos livres da neve, o urso vinha na minha direção. Esquerdinha ainda estava caído. As lobas uivavam furiosamente, incapazes de fazer qualquer coisa para deter o ímpeto do urso. O filhote ganiu lá em cima da árvore.
   
Eu estava sozinho. Eu contra o urso. Ninguém podia me ajudar agora.
   
Girei o corpo, usando todas as minhas habilidades extras de meio-vampiro, e rolei para baixo das garras do urso, levantei-me de um salto, escolhi o lugar e enfiei a ponta do osso profundamente no pescoço não protegido do urso.
   
O urso parou. Arregalou os olhos. Deixou cair as pernas da frente, que estavam levantadas. Por um momento, ficou parado, ofegando dolorosamente, com o osso enfiado no
pescoço. Então desabou, estremeceu horrivelmente por alguns segundos — e morreu.
   
Caí em cima do urso morto e fiquei ali. Eu tremia e chorava mais de medo que de dor. Tinha visto a morte de perto antes, mas nunca estivera envolvido numa luta tão selvagem.
   
Finalmente uma das lobas — a tímida — encostou-se em mim e começou a lamber meu rosto para se certificar de que eu estava bem. Dei umas pancadinhas na cabeça dela para mostrar que estava bem e escondi o rosto no pescoço da loba, secando minhas lágrimas com seu pêlo. Quando senti que podia, levantei e olhei em volta.
   
A outra loba estava ao lado da árvore, tentando fazer com que Rudi descesse — o filhote estava mais abalado do que eu. O Pequenino morto estava perto, o sangue que escorria dele tingia a neve de vermelho. Esquerdinha estava sentado, verificando os próprios ferimentos.
   
Fui até ele para agradecer por ter salvo minha vida. Ele era incrivelmente feio sem o capuz: a pele era cinzenta e o rosto, uma massa de cicatrizes e pontos. Não tinha orelhas nem nariz que se pudessem ver e os olhos verdes, redondos ficavam perto do topo da cabeça, não no meio do rosto, como na maioria das pessoas. Era completamente careca.
   
Em qualquer outra ocasião eu teria sentido medo, mas aquela criatura acabava de arriscar a vida para me salvar e tudo que eu sentia era gratidão.
   
— Você está bem, Esquerdinha? — perguntei. Ele ergueu os olhos e fez que sim com a cabeça. — Foi por pouco — disse eu com um leve sorriso. Outra vez ele concordou. — Obrigado por ir em meu socorro. Eu estaria morto se você não entrasse na luta. — Sentei no chão ao lado dele e olhei para o urso, depois para o Pequenino morto. — Lamento a morte do seu parceiro — disse eu suavemente. — Devemos enterrá-lo?
   
O Pequenino balançou a cabeça, começou a se levantar e parou. Olhou nos meus olhos e eu olhei nos dele, interrogativamente. Por sua expressão, quase esperei que fosse falar.
   
Erguendo a mão, Esquerdinha puxou a máscara para baixo. Vi a boca larga, cheia de dentes aguçados. Pôs para fora a língua, de uma estranha cor cinzenta, como a pele, e lambeu os lábios. Quando estavam molhados, ele os distendeu e apertou algumas vezes, depois fez uma coisa que eu tinha certeza de que os Pequeninos jamais fariam. Com um som rascante, lento e mecânico, ele falou:
   
— Nome... não Esquerdinha. Nome... Harkat... Harkat Mulds.
   
— E seus lábios se abriram num corte irregular, na coisa mais próxima de um sorriso de que era capaz.
 
   
 CAPÍTULO NOVE
   
 
   
 
   
O Sr. Crepsley, Torvelinho e Pintado examinavam um labirinto de túneis no topo de um rochedo quando ouviram os ecos da luta. Voltaram correndo, chegando quinze minutos mais ou menos depois de eu ter matado o urso. Ficaram atônitos quando expliquei o que tinha acontecido e contei sobre Harkat Mulds. O Pequenino estava outra vez com o capuz cobrindo a cabeça e, quando perguntaram se era verdade que ele podia falar, houve um longo momento de silêncio durante o qual pensei que ele não fosse dizer nada. Então, ele inclinou a cabeça, assentindo, e disse com sua voz áspera:
   
— Sim.
   
Torvelinho saltou para trás quando ouviu o Pequenino falar. O Sr. Crepsley balançou a cabeça, perplexo.
   
— Falaremos disso mais tarde — disse ele. — Primeiro temos de resolver o que fazer com o urso. — Abaixou ao lado do animal morto e o examinou da cabeça aos pés. — Descreva como ele o atacou — disse ele, e eu contei como o urso apareceu de repente e o ataque selvagem. — Não faz sentido — disse o Sr. Crepsley, intrigado. — Ursos não agem desse modo a não ser que estejam agitados ou famintos. Não foi a fome que motivou o ataque — vejam a barriga redonda dele, e se você não fez nada para irritá-lo...
   
— Ele estava espumando — disse eu. — Acho que estava atacado de raiva.
   
— Logo veremos. — O vampiro usou as unhas aguçadas para abrir a barriga do urso. Aproximou o nariz do corte e farejou o sangue que saía. Depois de alguns segundos, ele fez uma careta e se levantou.
   
— E então? — perguntou Torvelinho.
   
— O urso estava louco — disse o Sr. Crepsley —, mas não com surto de raiva. Tinha bebido o sangue de um vampixiita!
   
— Como? — perguntei, atônito.
   
— Não tenho certeza — respondeu o Sr. Crepsley e olhou para o céu. — Temos tempo até o amanhecer. Seguiremos os rastros deste urso e talvez possamos descobrir mais alguma coisa durante o caminho.
   
— E o Pequenino morto? — perguntou Torvelinho. — Devemos enterrar?
   
— Você quer enterrá-lo... Harkat? — perguntou o Sr. Crepsley, repetindo minha pergunta de há pouco.
   
Harkat Mulds balançou a cabeça.
   
— Na verdade, não.
   
— Então deixem onde está — disse o vampiro secamente. — Os pássaros e animais carniceiros se encarregarão de limpar os ossos. Não temos tempo a perder.
   
A trilha seguida pelo urso era fácil de acompanhar. Até uma pessoa não treinada em seguir animais, como eu, podia se guiar pelas marcas profundas dos pés e pelos galhos quebrados.
   
A noite estava quase no fim quando paramos num pequeno monte de pedras e encontramos o que tinha enlouquecido o urso.
   
Meio enterrado debaixo das pedras estava um corpo de cor arroxeada com cabelos ruivos — um vampixiita!
   
— Pelo modo como sua cabeça está amassada, ele deve ter morrido de uma queda — disse o Sr. Crepsley, examinando o homem morto. — O urso o encontrou depois que ele foi enterrado e o desenterrou. Vejam os pedaços que devem ter sido tirados dele com os dentes. — Apontou para os buracos na barriga do vampixiita. — Foi isso que o enlouqueceu. O sangue dos vampixiitas e dos vampiros é venenoso. Se você não o tivesse matado, ele teria morrido dentro de uma ou duas noites.
   
— Então era aqui que estava nosso misterioso vampixiita — resmungou Torvelinho. — Não admira que não o tivéssemos encontrado.
   
— Não precisamos mais nos preocupar com ele, não é? — suspirei, feliz.
   
— Muito pelo contrário — disse o Sr. Crepsley, irritado. — Agora temos mais razão do que antes para nos preocupar.
   
— Por quê? — perguntei. — Ele está morto, não está?
   
— Está — concordou o Sr. Crepsley e depois apontou para as pedras em cima do vampixiita. — Masquem o enterrou?
   
Acampamos na base de um penhasco, usando galhos e folhas para fazer um abrigo onde os vampiros pudessem dormir protegidos do sol. Quando eles entraram, Harkat e eu sentamos na entrada e o Pequenino nos contou sua história incrível. Os lobos tinham saído para caçar, exceto Rudi, que se enrodilhou no meu colo e cochilou.
   
— Minhas lembranças... não são... completas — disse Harkat. Falar não era fácil para ele e precisava parar para respirar. — Grande parte é... obscura. Vou contar... para vocês o que... posso lembrar. Primeiro, sou um... fantasma.
   
Nossos queixos caíram.
   
— Um fantasma! — gritou o Sr. Crepsley. — Absurdo!
   
— Exatamente — concordou Torvelinho com um sorriso. — Os vampiros não acreditam em coisas malucas como fantasmas, não é, Larten?
   
Antes que o Sr. Crepsley pudesse responder, Harkat se corrigiu.
   
— O que eu devia... ter dito... é que... eu era um fantasma. Todos... os Pequeninos... eram fantasmas. Até... que concordaram com certos termos... do Sr. Tino.
   
— Não compreendo — disse Torvelinho. — Concordaram com que termos? Como?
   
— O Sr. Tino pode... falar com... os mortos — explicou Harkat.
   
— Eu não... deixei a terra... quando morri. Alma... não podia. Eu estava... preso. O Sr. Tino me... encontrou. Disse que me daria... um corpo para que eu... pudesse viver outra vez. Em troca... eu o serviria como um... Pequenino.
   
Segundo Harkat, cada um dos Pequeninos tinha feito um acordo com o Sr. Tino, e cada acordo era diferente. Não tinham de servi-lo para sempre. Mais cedo ou mais tarde, seriam libertados, alguns para viver nos seus corpos pequenos e cinzentos, alguns para renascer, outros para seguir para o Céu ou Paraíso ou seja lá para onde vão as almas.
   
— O Sr. Tino tem tanto poder assim? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
Harkat fez que sim com a cabeça.
   
— Qual foi seu acordo com ele? — perguntei, curioso.
   
— Eu não... sei — disse ele. — Não posso... lembrar.
   
Havia uma porção de coisas que ele não podia lembrar. Não sabia quem era quando estava vivo, quando ou onde tinha vivido, ou há quanto tempo estava morto. Não sabia nem se era homem ou mulher! Os Pequeninos não tinham gênero definido, o que significava que não eram machos nem fêmeas.
   
— Então como vamos nos referir a você? — perguntou Torvelinho. — Ele? Ela? A coisa?
   
— Ele... está bem — disse Harkat.
   
As capas e capuzes azuis eram para efeito. As máscaras, por outro lado, eram necessárias e eles tinham várias, algumas costuradas debaixo da pele, para segurança! O ar era letal para eles — se respirassem o ar comum por dez ou doze horas, morriam. Havia produtos químicos nas máscaras que purificavam o ar.
   
— Como vocês podem morrer se já estão mortos? — perguntei,
   
confuso.
   
— Meu corpo pode... morrer como qualquer... outro. Se acontecer... minha alma volta... a ser... como era.
   
— Não pode fazer outro contrato com o Sr. Tino? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
Harkat balançou a cabeça.
   
— Não estou certo. Mas... acho... que não. Uma oportunidade para... uma vida extra... acho que... é tudo que... podemos ter.
   
Os Pequeninos podiam ler as mentes uns dos outros. Por isso nunca falavam. Ele não tinha certeza se os outros podiam falar ou não. Quando perguntamos por que ele nunca tinha falado antes, ele deu um sorriso torto e disse que nunca teve motivo para falar.
   
— Mas deve haver uma razão — insistiu o Sr. Crepsley. — Nas centenas de anos que nós os conhecemos, nenhum Pequenino jamais falou, nem quando estão morrendo ou sentindo muita dor. Por que você teve de quebrar um silêncio tão longo? Porquê?
   
Harkat hesitou.
   
— Tenho uma... mensagem — finalmente ele disse. — O Sr. Tino... me deu... para dar... aos Príncipes Vampiros. Então eu precisava... falar... logo.
   
— Uma mensagem! — O Sr. Crepsley inclinou-se para a frente atento, mas recuou para as sombras do abrigo quando ficou exposto ao sol. — Que tipo de mensagem?
   
— É para... Príncipes — disse Harkat. — Não... acho que... devo... dizer a vocês.
   
— Ora, vamos, Harkat — insisti. — Não diremos a eles que nos contou. Pode confiar em
nós.
   
— Vocês... não vão contar? — perguntou para o Sr. Crepsley e para Torvelinho.
   
— Meus lábios estão selados — prometeu Torvelinho.
   
O Sr. Crepsley demorou mais para prometer, mas finalmente inclinou a cabeça, assentindo.
   
Harkat respirou trêmula e profundamente.
   
— O Sr. Tino me disse... para dizer... aos Príncipes que... a noite do... Senhor dos Vampixiitas... está próxima. Isso... é tudo.
   
— A noite do Senhor dos Vampixiitas está próxima? — repeti.
   
— Que espécie de mensagem é essa?
   
— Eu não... sei o que... significa — disse Harkat. — Sou apenas... o mensageiro.
   
— Torvelinho, você... — comecei a perguntar, mas parei quando vi as caras dos vampiros. Embora a mensagem de Harkat não significasse nada para mim, obviamente significava muito para eles. Estavam até mais pálidos que de hábito e tremiam de medo. De fato, não podiam parecer mais apavorados se estivessem pregados ao solo ao ar livre esperando o sol nascer!
 
   
 CAPÍTULO DEZ
   
 
   
 
   
O Sr. Crepsley e Torvelinho não explicaram imediatamente o significado da mensagem — estavam por demais atordoados para falar e a história veio aos poucos, durante as três ou quatro noites seguintes, a maior parte contada por Torvelinho.
   
Tinha a ver com alguma coisa que o Sr. Tino contara para os vampiros havia centenas de anos, quando os vampixiitas se separaram dos outros. Quando a luta terminou, ele visitou os Príncipes na Montanha do Vampiro e disse a eles que os vampixiitas não eram hierarquicamente estruturados (expressão do Sr. Crepsley), o que significava que não havia Generais nem Príncipes vampixiitas. Ninguém dava ordens ou mandava neles.
   
— Essa foi uma das razões pelas quais eles se separaram — disse Torvelinho. — Não gostaram de como as coisas funcionavam com os vampiros. Achavam injusto que vampiros comuns tivessem de dar satisfações aos Generais e os Generais aos Príncipes.
   
Abaixando a voz, para que o Sr. Crepsley não pudesse ouvir, ele disse:
   
— Para ser franco, concordo com algumas dessas coisas. Há espaço para mudança. O sistema dos vampiros vem funcionando há centenas de anos, mas isso não quer dizer que seja perfeito.
   
— Está dizendo que preferia ser um vampixiita? — perguntei, chocado.
   
— Claro que não! — riu. — Eles matam e permitem que vampixiitas loucos como Vampirado andem por aí fazendo o que querem.
   
É muito melhor ser um vampiro. Mas isso não quer dizer que algumas das ideias deles não mereçam ser levadas em conta.
   
“Não deslizar a caminho da Montanha do Vampiro, por exemplo. É uma regra ridícula, mas só pode ser mudada pelos Príncipes, que não precisam mudar nada se não quiserem, independente do que o resto de nós pensa. Os Generais têm de fazer tudo que os Príncipes mandam e vampiros comuns têm de fazer tudo que os Generais dizem.”
   
Embora os vampixiitas não acreditem em líderes, o Sr. Tino disse que numa determinada noite um paladino vai aparecer. Será conhecido como o Senhor dos Vampixiitas e eles o seguirão obedecendo cegamente as suas ordens.
   
— O que há de tão errado nisso? — perguntei.
   
— Espere até ouvir o resto da história — disse Torvelinho gravemente. — Ao que parece, não muito depois de o Senhor Vampixiita tomar o poder, ele conduzirá os vampixiitas à guerra contra os vampiros. Será uma guerra, o Sr. Tino avisou, que os vampiros não podem vencer. Eles serão dizimados.
   
— Isso é verdade? — perguntei, horrorizado. Torvelinho deu de ombros.
   
— Há setecentos anos fazemos essa pergunta a nós mesmos. Ninguém duvida dos poderes do Sr. Tino. Ele já provou que pode prever o futuro. Mas às vezes ele mente. Ele é um vermezinho maléfico.
   
— Por que vocês não atacaram e mataram os vampixiitas todos?
   
— perguntei.
   
— O Sr. Tino diz que alguns vampixiitas sobreviveriam e o Senhor Vampixiita virá como foi prometido. Além disso, uma guerra contra os vampixiitas nos custou muito. Os seres humanos nos caçavam e podiam ter acabado conosco. Foi melhor declarar uma trégua e deixar tudo como estava.
   
— Não há nenhum meio de os vampiros derrotarem os vampixiitas? — perguntei.
   
— Não tenho certeza — respondeu Torvelinho, coçando a cabeça. — Há mais vampiros do que vampixiitas e somos tão fortes quanto eles, portanto, não vejo por que não podemos vencê-los. Mas o Sr. Tino disse que os números não importam.
   
“Há uma esperança — acrescentou. — A Pedra de Sangue.”
   
— O que é isso?
   
— Você vai ver quando chegar à Montanha do Vampiro. É um símbolo mágico, sagrado para nós. O Sr. Tino diz que, se evitarmos que ela caia nas mãos dos vampixiitas, uma noite, muito depois de a batalha ter sido perdida, há uma chance de que os vampiros possam se erguer das cinzas e desenvolver-se outra vez.
   
— Como? — perguntei, intrigado. Torvelinho sorriu.
   
— Essa pergunta intriga os vampiros desde que foi feita pela primeira vez. Se você descobrir, me avise — disse ele, piscando um olho, e terminou a conversa, deixando-me preocupado.
   
Uma semana depois, chegamos à Montanha do Vampiro.
   
Não era a montanha mais alta da região, mas era íngreme e rochosa e parecia quase impossível de ser escalada.
   
— Onde fica o palácio? — perguntei, olhando para o pico do monte coberto dc neve, que parecia apontar diretamente para a lua no céu.
   
— Palácio? — respondeu o Sr. Crepsley.
   
— Onde os Príncipes Vampiros moram. — O Sr. Crepsley e Torvelinho começaram a rir. — Qual é a graça? — perguntei, zangado.
   
— Por quanto tempo poderíamos evitar ser descobertos se construíssemos um palácio no flanco da montanha? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— Então, onde... — compreendi. — É dentro da montanha!
   
— Claro — sorriu Torvelinho. — A montanha é uma colmeia gigantesca de cavernas e câmaras. Tudo que um vampiro pode desejar está lá dentro, caixões, tonéis de sangue humano, comida e vinho. Só se veem os vampiros fora da montanha quando chegam, quando partem ou quando saem para caçar.
   
— Como se entra? — perguntei.
   
O Sr. Crepsley encostou o dedo no lado do nariz.
   
— Espere e veja.
   
Demos a volta na base rochosa da montanha. O Sr. Crepsley e Torvelinho estavam excitados, embora só Torvelinho demonstrasse — o vampiro mais velho parecia mais calmo do que nunca, e só quando pensava que ninguém estava olhando sorria para si mesmo e esfregava as mãos em antecipação.
   
Chegamos a um regato com seis ou sete metros de largura. A água corria rapidamente para as planícies mais além. Enquanto subíamos o regato, um lobo solitário apareceu a pouca distância e uivou.
   
Pintado e os outros pararam imediatamente. As orelhas de Pintado se ergueram retas, ele ouviu por um momento, depois uivou também. Olhou para mim, balançando a cauda.
   
— Ele está se despedindo — informou o Sr. Crepsley, mas eu já tinha adivinhado.
   
— Eles têm de ir? — perguntei.
   
— Para isso eles vieram, para encontrar outros lobos. Seria crueldade pedir que ficassem conosco.
   
Concordei tristemente e estendi a mão para a orelha de Pintado.
   
— Foi um prazer conhecer você — disse eu. Depois passei a mão em Rudi. — Vou sentir falta de você, seu filhotinho danado.
   
Os lobos adultos começaram a se afastar. Rudi hesitou, olhando para mim e para os lobos. Por um segundo pensei que ele ia preferir ficar comigo. Mas então ele uivou, esfregou o focinho úmido nos meus pés descalços e saiu atrás dos outros.
   
— Você o verá outra vez — prometeu Torvelinho. — Nós os procuraremos antes de partir.
   
— Claro — funguei, fingindo que não me importava. — Tudo bem comigo. Eles são apenas uma cambada de lobos velhos e bobos. Não me importo.
   
— É claro que não — sorriu Torvelinho.
   
— Venham — disse o Sr. Crepsley, continuando a subir o regato.
   
— Não podemos ficar aqui a noite toda lamentando a partida de alguns lobos sarnentos. — Olhei furioso para ele e ele tossiu embaraçado. — Se você quer saber — acrescentou suavemente —, os lobos nunca esquecem um rosto. O filhote vai se lembrar de você mesmo quando for velho e grisalho.
   
— De verdade? — perguntei.
   
Sim — disse ele, virou-se e recomeçou a andar. Torvelinho e Harkat foram atrás. Olhei para trás uma ultima vez para os lobos, suspirei resignado, peguei minha mochila e os segui.
 
   
CAPÍTULO ONZE
   
 
   
 
   
Atravessamos acima da abertura por onde o regato brotava da montanha. O barulho era ensurdecedor, especialmente para ouvidos ultra-sensíveis de vampiros, por isso andamos o mais rápido possível. As rochas eram escorregadias e em alguns lugares tínhamos de nos dar as mãos, formando uma corrente. Num trecho com muita neve, Torvelinho e eu escorregamos. Eu estava na frente, segurando no Sr. Crepsley, mas a força da queda soltou nossas mãos. Felizmente, Harkat segurou a mão de Torvelinho e puxou a nós dois para cima.
   
Chegamos à entrada de um túnel quinze minutos depois. Não tínhamos subido muito, mas quando olhei para baixo vi a encosta íngreme. Fiquei satisfeito por não termos de subir mais.
   
O Sr. Crepsley entrou primeiro. Entrei atrás dele. Estava escuro dentro do túnel. Eu ia perguntar ao Sr. Crepsley se devíamos parar para acender archotes quando percebi que, à medida que nos adiantávamos, o túnel ficava mais claro.
   
— De onde vem a luz? — perguntei.
   
— Liquens luminosos — respondeu o Sr. Crepsley.
   
— Isso é uma charada ou uma resposta? — resmunguei.
   
— É uma espécie de fungo luminoso — explicou Torvelinho.
   
— Cresce em algumas cavernas e no fundo de alguns oceanos.
   
— Certo. Ele cresce em toda a montanha?
   
— Não em toda parte. Usamos archotes onde ele não existe. — Na nossa frente, o Sr. Crepsley parou e praguejou. — O que foi? — perguntou Torvelinho.
   
— Desabamento — suspirou ele. — Não podemos passar.
   
— Isso quer dizer que não vamos poder entrar? — perguntei, alarmado com a ideia de ter percorrido todo aquele caminho por nada, só para ter de voltar, quase no fim.
   
— Há outros caminhos — disse Torvelinho. — A montanha está cheia de túneis. Temos de voltar e encontrar outro.
   
— Acho melhor nos apressarmos — disse o Sr. Crepsley. — O dia está quase nascendo.
   
Voltamos, Harkat na frente dessa vez. Fora da montanha, nos movemos o mais rapidamente possível — o que não era muito rápido dadas as dificuldades da trilha — e chegamos à entrada de outro túnel alguns minutos antes de o sol começar a aparecer. Esse novo túnel não era tão grande quanto o primeiro e os dois vampiros tinham de andar meio abaixados. Harkat e eu apenas abaixamos a cabeça. A luz dos liquens não era tão forte, mas o suficiente para que pudéssemos enxergar com nossos olhos superaguçados.
   
Depois de algum tempo notei que estávamos descendo e não subindo. Perguntei a Torvelinho por quê.
   
— É assim mesmo — disse ele. — No fim ele nos levará para cima.
   
Mais ou menos meia hora depois, começamos a subir. O túnel virava para cima, quase verticalmente, e foi uma escalada difícil. As paredes eram muito estreitas e tenho certeza de que eu não era o único nervoso e com a boca seca. Logo depois o túnel ficou plano, dando para uma pequena caverna, onde paramos para descansar. Eu ouvia o regato marulhando não muito abaixo dos nossos pés.
   
Quatro túneis saíam da caverna. Perguntei para Torvelinho como o Sr. Crepsley sabia qual era o certo.
   
— O túnel certo está marcado — disse, levando-me até eles e apontando para uma seta pequenina gravada na parede no fundo de um dos túneis.
   
— Para onde vão os outros?
   
— Becos sem saída, outros túneis ou para cima, para os salões.
   
— Os salões eram as partes da montanha onde moravam os vampiros. — Muitos túneis nunca foram explorados e não constam dos mapas. Nunca ande neles sozinho — avisou. — Pode se perder facilmente.
   
Enquanto os outros descansavam, fui ver se Madame Octa estava com fome. Ela tinha dormido durante quase toda a jornada — não gostava do frio —, mas acordava de vez em quando para comer. Enquanto eu tirava o pano que cobria sua gaiola, vi uma aranha vindo em nossa direção. Não era tão grande quanto Madame Octa, mas parecia perigosa.
   
— Torvelinho! — chamei, afastando-me da gaiola.
   
— O que aconteceu?
   
— Uma aranha.
   
— Ah — riu. — Não se preocupe, a montanha está cheia delas.
   
— São venenosas? — perguntei, inclinando-me para examinar a aranha, que olhava com grande interesse para a gaiola.
   
— Não — respondeu. — A picada delas não é pior do que a de uma abelha.
   
Tirei o pano, curioso para ver o que Madame Octa ia fazer quando visse a aranha estranha. Ela a ignorou, ficou onde estava, enquanto a outra aranha andava por cima da gaiola. Eu sabia muito sobre aranhas — tinha lido muitos livros a respeito de aracnídeos e assistido a programas de vida selvagem quando era mais moço —, mas nunca tinha visto nenhuma igual àquela. Era mais peluda do que a maioria e tinha um estranho tom de amarelo.
   
Quando a aranha foi embora, alimentei Madame Octa com alguns insetos e cobri outra vez a gaiola. Deitei com os outros e cochilei por algumas horas. Em certo momento tive a impressão de ouvir risos de criança em um dos túneis. Sentei, aguçando os ouvidos, mas o som não se repetiu.
   
— Qual o problema? — gemeu Torvelinho baixinho com um olho entreaberto.
   
— Nada — disse eu, inseguro, depois perguntei se algumas crianças-vampiros moravam na montanha.
   
— Não — disse ele, fechando o olho. — Pelo que eu saiba, você é a única criança aqui.
   
— Então devo estar imaginando coisas — bocejei e deitei outra vez, mas com os ouvidos alertas.
   
Mais tarde nos levantamos e continuamos a subir a montanha, seguindo os túneis marcados com uma seta. Depois do que me pareceu uma eternidade, chegamos a uma grande porta de madeira que bloqueava a passagem. O Sr. Crepsley arrumou a roupa, depois bateu com força na porta. A resposta não foi imediata, por isso ele bateu outra vez, e outra.
   
Finalmente ouvimos sons de vida no outro lado e a porta foi aberta. A luz de archotes vinha de dentro. Ficamos praticamente cegos, depois de tanto tempo nos túneis, e protegemos os olhos com as mãos até se adaptarem à luz.
   
Um vampiro magro com roupa verde-escura apareceu e olhou para nós. Franziu a testa quando viu Harkat e eu, e apertou os dedos na lança comprida que segurava. Vi outros atrás deles, vestidos de verde também, nenhum desarmado.
   
— Digam ao guarda quem são — rosnou o guarda. Os vampiros tinham me dito que era assim que os recém-chegados eram recebidos.
   
— Eu sou Larten Crepsley, vim para o Conselho — disse o Sr. Crepsley. Era a resposta padrão.
   
— Eu sou Torvelinho, vim para o Conselho — disse Torvelinho.
   
— Eu sou Darren Shan, vim para o Conselho — disse eu para o guarda.
   
— Eu... Harkat Mulds. Vim... para o Conselho.
   
— Larten Crepsley é reconhecido pelo guarda — disse o guarda.
   
— E Torvelinho é reconhecido. Mas os outros dois... — Apontou a lança para nós e balançou a cabeça.
   
— São nossos companheiros de viagem — disse o Sr. Crepsley.
   
— O garoto é meu assistente, meio-vampiro.
   
— Você se responsabiliza por ele? — perguntou o guarda.
   
— Sim.
   
— Então Darren Shan é reconhecido. — A ponta da lança apontou com firmeza para Harkat. — Mas este não é vampiro. O que ele vem fazer no Conselho?
   
— O nome dele é Harkat Mulds. É um Pequenino. Ele...
   
— Um Pequenino! — exclamou o guarda, abaixando a lança. Agachou e examinou rudemente o rosto de Harkat (Harkat tinha tirado o capuz logo que entramos no túnel para enxergar melhor). — Uma coisinha feia, não é? — observou o guarda. Se ele não tivesse a lança, eu o teria censurado por sua falta de consideração. — Pensei que os Pequeninos não pudessem falar.
   
— Nós todos pensamos isso — disse o Sr. Crepsley. — Mas eles podem. Pelo menos este pode. Ele tem uma mensagem para os Príncipes para ser dada pessoalmente.
   
— Uma mensagem? — O guarda coçou o queixo com a ponta da lança. — De quem?
   
— Do Sr. Tino — respondeu o Sr. Crepsley.
   
O guarda empalideceu, ficou em posição de sentido e disse rapidamente:
   
— O Pequenino conhecido como Harkat Mulds é reconhecido pelo guarda. Os salões estão abertos para vocês. Entrem e passem bem.
   
Afastou-se da porta para nos dar passagem. Momentos depois, a porta se fechou e nossa jornada aos salões da Montanha do Vampiro tinha terminado.
 
   
CAPÍTULO DOZE
   
 
   
 
   
Um dos guardas vestidos de verde nos escoltou até o Salão de Osca Velm, que era um salão de boas-vindas (a maioria dos salões tinha o nome de vampiros famosos). Este era uma pequena caverna com as paredes arredondadas e negras com a fuligem e o encardido de décadas. Era aquecido e iluminado por várias fogueiras, o ar agradavelmente espesso de fumaça (a fumaça saía vagarosamente da caverna por rachaduras e orifícios naturais do teto). Havia várias mesas e bancos toscos, onde os vampiros que chegavam podiam descansar e comer (as pernas das mesas eram feitas de ossos de animais de grande porte). Havia cestos feitos à mão cheios de sapatos, nas paredes, que os recém-chegados podiam usar. Também se podia saber quem estava no Conselho — uma pedra grande e negra em uma das paredes tinha gravados os nomes de todos os vampiros que já haviam chegado. Quando nos sentamos à longa mesa de madeira, vi um vampiro subir numa escada e acrescentar nossos nomes à lista. Depois do nome de Harkat, ele escreveu entre parênteses “Pequenino”.
   
Não havia muitos vampiros no salão quieto e fumacento — nós, mais alguns recentemente chegados e vários guardas de uniforme verde. Um vampiro com cabelo comprido, sem camisa, aproximouse de nós com dois grandes barris. Um estava cheio até em cima de pão duro, o outro até a metade com pedaços grandes de carne crua e cozida.
   
Servimo-nos à vontade e sentamo-nos à mesa (não havia pratos) usando nossos dedos e dentes para partir a carne e o pão. O vampiro voltou com três grandes jarras cheias de sangue humano, vinho e água. Pedi uma caneca, mas Torvelinho disse que tínhamos de nos servir diretamente da jarra. Era difícil — molhei o queixo e o peito com água, na primeira tentativa —, mas era mais divertido do que beber numa xícara.
   
O pão era velho, mas o vampiro nos levou tigelas de caldo quente (as tigelas eram feitas dos crânios de vários animais), e o pão ficava bom quando se mergulhava um pedaço no caldo quente e espesso por alguns segundos.
   
— Isto é formidável — disse eu, mastigando o terceiro pedaço de pão molhado.
   
— O melhor — concordou Torvelinho. Ele já estava no quinto pedaço.
   
— Por que você não está tomando o caldo? — perguntei para o Sr. Crepsley, que comia o pão puro.
   
— Caldo de morcego não combina comigo — respondeu.
   
Minha mão parou no ar a caminho da boca. O pedaço de pão molhado caiu na mesa.
   
— Caldo de morcego! — exclamei.
   
— É claro — disse Torvelinho. — O que você pensou que fosse?
   
Olhei para o líquido escuro na tigela. A luz era pouca na caverna,
   
mas agora, olhando bem, vi uma asa fina e seca dentro do caldo.
   
— Acho que vou vomitar — gemi.
   
— Não seja idiota — riu Torvelinho. — Você adorou quando não sabia o que era. Trate de comer e finja que é uma boa sopa de galinha. Vai comer coisa muito pior do que caldo de morcego antes de terminar sua visita à Montanha do Vampiro!
   
Empurrei a tigela.
   
— Na verdade estou satisfeito — murmurei. — Não vou tomar mais por enquanto. — Olhei para Harkat, que molhava um grosso pedaço de pão no que restava do seu caldo. — Você não se importa de comer morcegos? — perguntei.
   
Harkat deu de ombros.
   
— Não tenho paladar... papilas. Comida é... toda igual... para mim.
   
— Não pode sentir o gosto de nada? — perguntei.
   
— Morcego... cachorro... lama... nenhuma diferença. Não tenho... o sentido do olfato... também. Por isso... meu nariz.
   
— Era uma coisa que eu queria perguntar — disse Torvelinho.
   
— Se você não pode sentir cheiro sem um nariz, como pode ouvir sem orelhas?
   
— Eu tenho... orelhas — disse Harkat. — Estão debaixo... da pele. — Apontou para dois lugares, um de cada lado dos olhos redondos e verdes. (Tinha abaixado o capuz.) Torvelinho inclinou-se sobre a mesa para examinar as orelhas de Harkat.
   
— Estou vendo! — exclamou, e nós todos nos inclinamos para olhar admirados. Harkat não se importou, até gostou da atenção. As “orelhas” dele pareciam tâmaras, quase invisíveis debaixo da pele cinzenta.
   
— Você pode ouvir com a pele esticada em cima delas? — perguntou Torvelinho.
   
— Muito bem — respondeu Harkat. — Não tão bem... como os vampiros. Mas... melhor... do que os seres humanos.
   
— Então como é que você tem orelhas mas não tem nariz? — perguntei.
   
— O Sr. Tino... não me deu... nariz. Nunca perguntei... por quê. Talvez por causa... do ar. Ia precisar... outra máscara... para o nariz.
   
Era estranho pensar que Harkat não podia sentir o cheiro almiscarado do ar do salão nem sentir o gosto do caldo de morcego. Não admira que os Pequeninos nunca se queixassem quando eu levava para eles animais apodrecidos e fedorentos, mortos havia anos!
   
Eu ia perguntar mais sobre os sentidos limitados de Harkat quando um vampiro velho vestido de vermelho sentou na frente do Sr. Crepsley e sorriu.
   
— Eu o esperava havia semanas — disse ele. — Por que demorou tanto?
   
— Sebá! — rugiu o Sr. Crepsley e inclinou-se sobre a mesa para segurar os ombros do velho vampiro. Fiquei surpreso. Nunca o tinha visto agir tão calorosamente com nenhuma pessoa. Ele sorria feliz quando largou os ombros do vampiro. — Faz muito muito tempo, velho amigo.
   
— Tempo demais — concordou o velho vampiro. — Muitas vezes procurei você mentalmente na esperança de que estivesse por perto. Quando senti que estava vindo, mal pude acreditar.
   
O velho vampiro olhou para Harkat e para mim. Ele era enrugado e encolhido pela idade, mas a luz de um homem jovem brilhava nos seus olhos.
   
— Você vai me apresentar aos seus amigos, Larten?
   
— Claro — disse o Sr. Crepsley. — Você conhece Torvelinho.
   
— Torvelinho. — O vampiro inclinou a cabeça para ele.
   
— Sebá — respondeu Torvelinho.
   
— Este é Harkat Mulds — disse o Sr. Crepsley.
   
— Um Pequenino — observou Sebá. — Não vejo um desses desde que o Sr. Tino nos visitou quando eu era menino. Saudações, Sr. Harkat Mulds.
   
— Olá — respondeu Harkat.
   
Sebá piscou lentamente.
   
— Ele fala?
   
— Espere até ouvir o que ele tem para dizer! — disse o Sr. Crepsley sombriamente. E então, voltando-se para mim, disse: — E este é Darren Shan, meu assistente.
   
— Saudações, Darren Shan. — Sebá sorriu para mim. Olhou de um modo estranho para o Sr. Crepsley. — Você, Larten, com um assistente?
   
— Eu sei — tossiu o Sr. Crepsley. — Eu sempre disse que jamais teria um.
   
— E tão jovem — murmurou Sebá. — Os Príncipes não vão aprovar.
   
— Provavelmente não — concordou o Sr. Crepsley, infeliz. Então se livrou da tristeza. — Darren, Harkat, este é Sebá Nilo, o intendente da Montanha do Vampiro. Não se deixem enganar por sua idade, ele é tão astuto, esperto e rápido quanto qualquer vampiro e vai sempre levar a melhor sobre todos que tentarem enganá-lo.
   
— Como você sabe por experiência — riu Sebá. — Lembra-se de quando você resolveu roubar metade de um tonel do meu melhor vinho e substituí-lo por uma safra pior?
   
— Por favor — disse o Sr. Crepsley, magoado. — Eu era jovem e tolo. Não precisa se lembrar disso.
   
— O que aconteceu? — perguntei, encantado com o embaraço do vampiro.
   
— Conte para ele, Larten — disse Sebá, e o Sr. Crepsley obedeceu, emburrado como uma criança.
   
— Ele chegou ao vinho antes de mim — murmurou. — Esvaziou o tonel e substituiu por vinho com vinagre. Eu tinha engolido meia garrafa quando percebi. Passei o resto da noite vomitando.
   
— Não! — Torvelinho deu uma gargalhada.
   
— Eu era jovem — rosnou o Sr. Crepsley. — Não sabia o que fazia.
   
— Mas eu ensinei, Larten, não foi? — observou Sebá.
   
— Sim — sorriu o Sr. Crepsley. — Sebá foi meu professor. Aprendi com ele quase tudo que sei.
   
Os três vampiros começaram a falar sobre os velhos tempos e eu fiquei ouvindo. A maior parte do que diziam entrava por um ouvido e saía pelo outro, nomes de pessoas e de lugares que não significavam nada para mim e, depois de algum tempo, recostei na cadeira e olhei em volta observando as luzes bruxuleantes das fogueiras e os desenhos que a fumaça fazia no ar. Só percebi que estava cochilando quando o Sr. Crepsley me sacudiu gentilmente e meus olhos se abriram.
   
— O menino está cansado — observou Sebá.
   
— Ele nunca fez essa viagem antes — disse o Sr. Crepsley. — Não está acostumado a uma vida tão dura.
   
— Venham — disse Sebá, levantando-se. — Vou arranjar quartos para vocês. Ele não é o único que precisa descansar. Conversaremos mais amanhã.
   
Como intendente da Montanha do Vampiro, Sebá estava encarregado dos armazéns e dos alojamentos. Era sua tarefa garantir que não faltassem comida, bebida e sangue para todos e que cada vampiro tivesse um lugar para dormir. Outros vampiros trabalhavam para ele, mas ele era o homem principal. Fora os Príncipes, Sebá era o vampiro mais respeitado na montanha.
   
Sebá me chamou para andar ao seu lado quando fomos do Salão de Osca Velm para nossos alojamentos. Mostrou vários salões e disse os nomes deles — muitos dos quais eu não conseguia pronunciar, muito menos lembrar — e para que eram usados.
   
— Vai levar algum tempo para se adaptar — disse ele, notando meu olhar atordoado. — Nas primeiras noites você pode se sentir perdido. Mas com o tempo vai se acostumar com a montanha.
   
A rede de túneis que ligava os salões aos alojamentos era fria e úmida, a despeito dos archotes acesos. Mas os quartos pequenos — nichos cavados na rocha — eram claros e aquecidos, cada um iluminado por um archote potente. Sebá perguntou se queríamos um quarto grande para todos ou se preferíamos quartos separados.
   
— Separados — respondeu imediatamente o Sr. Crepsley. — Estou farto de ouvir Torvelinho roncando durante a viagem.
   
— Engraçadinho! — rosnou Torvelinho.
   
— Harkat e eu não nos importamos de dormir no mesmo quarto, certo? — disse eu, porque não me agradava a ideia de ficar sozinho num lugar tão estranho.
   
— Para mim... tudo bem — concordou Harkat.
   
Todos os quartos tinham caixões em lugar de camas, mas, quando Sebá viu meu desapontamento, riu e disse que eu podia dormir numa rede, se quisesse.
   
— Vou mandar um dos meus homens para você amanhã — prometeu. — Diga a ele o que precisa e ele providenciará. Eu cuido dos meus hóspedes!
   
— Muito obrigado — disse eu, satisfeito por não ter de dormir todos os dias num caixão.
   
Sebá ia sair do quarto quando o Sr. Crepsley disse:
   
— Espere, quero que você veja uma coisa.
   
— Ah é? — sorriu Sebá.
   
— Darren — disse o Sr. Crepsley. — Vá buscar Madame Octa. Quando Sebá Nilo viu a aranha, prendeu a respiração e olhou para ela hipnotizado.
   
— Oh, Larten — suspirou —, que beleza! — Tirou a gaiola das minhas mãos — segurando-a carinhosamente — e abriu a porta.
   
— Pare! — gritei. — Não a deixe sair, ela é venenosa!
   
Sebá apenas sorriu e pôs a mão dentro da gaiola.
   
— Nunca vi uma aranha que eu não pudesse encantar — disse ele.
   
— Mas... — comecei a dizer.
   
— Está tudo bem, Darren — disse o Sr. Crepsley. — Sebá sabe o que está fazendo.
   
O velho vampiro fez a aranha subir nos seus dedos e a tirou da gaiola. Ela sentou confortavelmente na palma da mão dele. Sebá inclinou o rosto para ela e assobiou baixinho. Eu imaginei que ele devia estar se comunicando mentalmente com Madame Octa.
   
Sebá parou de assobiar e Madame Octa subiu pelo braço dele. Quando chegou ao ombro, ela se aninhou no queixo e relaxou. Eu não podia acreditar! Eu sempre tinha de assobiar continuamente — com uma flauta, não com os lábios — e me concentrar ferozmente para que ela não me picasse, mas com Sebá ela era completamente dócil.
   
— É maravilhosa — disse Sebá, acariciando-a. — Você tem de falar mais sobre ela quando tiver oportunidade. Pensei que conhecesse todas as aranhas que existem, mas esta é nova para mim.
   
— Achei que você ia gostar — sorriu satisfeito o Sr. Crepsley.
   
— Por isso eu a trouxe. Quero dar de presente a você.
   
— Você se separaria de uma aranha tão maravilhosa? — perguntou Sebá.
   
— Para você, velho amigo... qualquer coisa.
   
Sebá sorriu para o Sr. Crepsley, depois olhou para a Madame Octa. Suspirando tristemente, ele balançou a cabeça.
   
— Tenho de recusar — disse ele. — Estou velho e não tão forte quanto antes. Estou sempre ocupado tentando dar conta de trabalhos que antes fazia num instante. Não tenho tempo para cuidar de um animal de estimação tão exótico.
   
— Tem certeza? — perguntou o Sr. Crepsley, desapontado.
   
— Eu gostaria de poder ficar com ela, mas não posso. — Pôs Madame Octa na gaiola e me entregou. — Só os jovens têm energia para cuidar de aranhas deste calibre. Cuide dela, Darren, ela é bela e rara.
   
— Vou cuidar — prometi. Houve um tempo em que eu também achava a aranha uma beleza, até ela picar meu melhor amigo, o que levou a me transformar em um meio-vampiro.
   
— Agora — disse Sebá —, preciso ir. Vocês não são os únicos que acabam de chegar. Até nos vermos outra vez, adeus.
   
Os pequenos quartos não tinham portas. O Sr. Crepsley e Torvelinho nos deram boa-noite antes de se dirigirem para seus caixões. Harkat e eu entramos no nosso quarto e olhamos para nossos dois caixões.
   
— Acho que você não vai se adaptar ao caixão — disse eu.
   
— Está... tudo bem. Posso dormir... no chão.
   
— Nesse caso, vejo você de manhã. — Olhei em volta. — Ou seria à noite? Ali era impossível dizer.
   
Não gostei de entrar no caixão, mas me consolei pensando que era só por aquela noite. Deitado de costas, deixei a tampa aberta e olhei para o teto de rocha cinzenta. Pensei que, com toda a excitação de ter chegado à Montanha do Vampiro, fosse demorar uma eternidade para dormir, mas em poucos minutos caí no sono e dormi profundamente como se estivesse na minha rede no Circo dos Horrores.
 
   
 CAPÍTULO TREZE
   
 
   
 
   
Harkat estava de pé ao lado do seu caixão quando acordei, os olhos verdes abertos. Espreguicei e disse bom-dia. Depois de uma breve demora, ele sacudiu a cabeça e olhou para mim.
   
— Bom-dia — respondeu.
   
— Está acordado há muito tempo? — perguntei.
   
— Acordei... agora. Quando você... falou comigo. Adormeci... de pé.
   
Olhei para ele intrigado.
   
— Mas seus olhos estavam abertos. Ele assentiu, inclinando a cabeça.
   
— Sempre abertos. Não pálpebras... ou pestanas. Não posso fechar.
   
Quanto mais eu sabia sobre Harkat, mais estranho ele parecia.
   
— Quer dizer que pode ver as coisas enquanto dorme?
   
— Sim, mas eu... não noto o que vejo.
   
Torvelinho apareceu na entrada do nosso quarto.
   
— Hora de levantar, meninos — disse ele com seu vozeirão. — A noite já vai em meio. Temos trabalho para fazer. Alguém vai de caldo de morcego?
   
Pedi para usar o banheiro antes de comer. Torvelinho me levou a uma pequena porta com as letras WC gravadas.
   
— O que quer dizer isso? — perguntei.
   
— Water Closet — informou e depois acrescentou: — Não vá cair lá dentro.
   
Pensei que fosse brincadeira, mas quando entrei vi que era um aviso sério. Não havia vaso no banheiro, só um buraco redondo no chão, que levava a um regato da montanha. Olhei para o buraco, não tinha tamanho suficiente para um adulto cair lá dentro, mas alguém do meu tamanho era outro caso e estremeci quando vi a água escura marulhando no fundo. Não me agradava a ideia de agachar em cima do buraco, mas não tive escolha.
   
— Todos os banheiros são como este? — perguntei quando saí.
   
— São — riu Torvelinho. — É o modo mais fácil de nos livrarmos das excreções. Vários regatos grandes saem da montanha e os banheiros são construídos em cima deles. Os regatos levam tudo embora.
   
Torvelinho nos levou para o Salão de Khledon Lurt. Sebá Nilo o tinha mostrado para mim na véspera e disse que era o lugar onde as refeições eram servidas. Também me falou um pouco sobre Khledon Lurt, um General muito importante que morreu salvando outros vampiros na luta contra os vampixiitas, quando eles se separaram.
   
Os vampiros gostavam de contar histórias dos seus ancestrais. Tinham pouca coisa registrada por escrito, preferindo manter a história viva, oral, transmitindo histórias e lendas em volta das fogueiras, de uma geração para outra.
   
Cortinas vermelhas pendiam do teto, cobrindo as paredes, e havia uma grande estátua de Khledon Lurt no centro do salão. (Como a maioria das esculturas da montanha, era feita de ossos de animais.) O salão era iluminado por grandes archotes e estava quase cheio quando chegamos. Torvelinho, Harkat e eu sentamo-nos a uma mesa com o Sr. Crepsley, Sebá Nilo e mais uma porção de vampiros que eu não conhecia. As vozes eram altas e ásperas. Grande parte da conversa era sobre lutas, grandes feitos e resistência.
   
Era a primeira vez que eu via uma multidão de vampiros, e passei mais tempo olhando para eles do que comendo. Não pareciam diferentes dos seres humanos, exceto talvez pelas cicatrizes de batalhas e da vida dura, e de nenhum — nem precisa dizer — ser queimado de sol.
   
O cheiro também era forte. Não usavam desodorante, embora alguns tivessem colares e pulseiras de flores silvestres. Embora no mundo dos seres humanos os vampiros tivessem o cuidado de se lavar — um cheiro forte podia indicar a um caçador de vampiros onde estava sua presa —, ali na montanha poucos se preocupavam com esse luxo. Com toda a fuligem e a terra dos salões, não achavam necessário — era impossível se manter limpo.
   
Notei que praticamente não havia mulheres. Depois de procurar demoradamente, vi uma, sentada a uma mesa de canto, e outra servindo a comida. Fora isso, eram todos homens. Havia também poucos velhos. Sebá parecia ser o mais velho dos vampiros presentes. Perguntei a ele o porquê disso.
   
— Poucos vampiros chegam a envelhecer realmente — respondeu. — Embora os vampiros vivam mais do que os seres humanos, poucos chegam à nossa idade de vampiro de sessenta ou setenta.
   
— Como assim? — perguntei.
   
— Os vampiros medem a idade de dois modos: anos da Terra e anos dos vampiros — explicou. — A idade dos vampiros é a idade do corpo. Fisicamente tenho oitenta e poucos anos. A idade da Terra se refere a quantos anos o vampiro já viveu. Eu era jovem quando me tornei vampiro, portanto tenho setecentos anos terrestres.
   
Setecentos! Era uma idade incrível.
   
— Muitos vampiros vivem centenas de anos da Terra — continuou Sebá —, mas raramente chegam aos sessenta anos de vampiro.
   
— Por quê?
   
— Os vampiros têm uma vida dura. Nós nos obrigamos ao limite máximo com muitos testes de força, de inteligência e de coragem. Poucos ficam sentados de pijama e chinelos, envelhecendo tranquilamente. Na maioria, quando ficam velhos demais para cuidar de si mesmos, morrem de pé, em vez de permitir que os amigos cuidem deles.
   
— Então como você viveu tanto? — perguntei.
   
— Darren! — disse o Sr. Crepsley, olhando furioso para mim.
   
— Não censure o menino — sorriu Sebá. — Sua curiosidade franca é estimulante. Vivi até esta idade por causa de minha posição — disse ele. — Há muitas décadas me pediram para ser intendente da Montanha do Vampiro. Não é um trabalho invejável, pois significa
viver aqui dentro — raramente sair para caçar ou para lutar. Mas intendentes são essenciais e muito respeitados — teria sido falta de cortesia minha recusar. Se eu fosse livre, há muito tempo estaria morto. Mas os que não despendem muito esforço tendem a viver mais.
   
— Para mim parece coisa de louco — disse eu. — Por que vocês se esforçam tanto?
   
— É o nosso modo de ser. Além disso, temos mais tempo livre do que os seres humanos, por isso ele é menos precioso para nós. Se, em anos vampiros, um homem de sessenta anos se tornou vampiro quando tinha vinte, terá vivido mais de quatrocentos anos. Um homem se cansa da vida quando vive tanto.
   
Eu tentava ver com os olhos deles, mas era difícil. Talvez eu pense de modo diferente quando tiver uns cem ou duzentos anos.
   
Torvelinho levantou-se antes de terminarmos de comer e disse que tinha de sair. Pediu a Harkat para acompanhá-lo.
   
— Aonde vocês vão? — perguntei.
   
— Ao Salão dos Príncipes. Devo me apresentar aos Príncipes, contar a respeito do vampiro e do vampixiita mortos que encontramos. Quero também apresentar Harkat, para que
ele possa transmitir sua mensagem. Quanto antes melhor, eu acho.
   
Quando eles saíram, perguntei ao Sr. Crepsley por que não íamos com eles.
   
— Não nos compete apresentarmos aos Príncipes — explicou.
   
— Torvelinho é um General, por isso tem direito de pedir para falar com os Príncipes. Como vampiros comuns, devemos esperar o convite para isso.
   
— Mas você foi General. Eles não se importariam se você aparecesse para dizer olá, não
é?
   
— É claro que sim — disse o Sr. Crepsley com cara feia, depois virou-se para Sebá e suspirou. — Ele está custando a aprender nossos costumes.
   
Sebá riu.
   
— E você está custando a aprender a ensinar. Esquece com que avidez você questionava o nosso modo de vida quando se tornou vampiro. Lembro-me da noite em que você entrou afobado no meu quarto e jurou que nunca seria um General. Disse que os Generais eram imbecis retrógrados e que devíamos olhar para o futuro e não viver no passado.
   
— Eu nunca disse isso! — retrucou, ofegante, o Sr. Crepsley.
   
— Claro que disse — insistiu Sebá. — E tem mais! Você era um jovem esquentado e muitas vezes pensei que nunca ia se acalmar. Muitas vezes pensei em dispensar você, mas desisti. Deixei que fizesse suas perguntas e extravasasse sua raiva e com o tempo você aprendeu que sua cabeça não era a mais sensata do mundo e que os costumes antigos podiam realmente ser melhores.
   
“Alunos nunca apreciam os professores quando estão aprendendo. Só mais tarde, quando aprendem mais do mundo, compreendem quanto devem aos que os educaram. Os bons professores não esperam elogios ou amor dos jovens. Esperam o tempo passar, e tudo isso chega no momento certo.”
   
— Está me repreendendo? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— Estou — sorriu Sebá. — Você é um bom vampiro, Larten, mas tem muito que aprender da arte de ensinar. Não se apresse em criticar. Aceite as perguntas e a obstinação de Darren. Responda pacientemente e não o censure por dar sua opinião. Só assim ele pode amadurecer e se desenvolver como você amadureceu e se desenvolveu.
   
Senti um prazer culpado vendo o Sr. Crepsley descer um ou dois degraus na escada da importância. Eu era muito chegado ao vampiro, mas sua atitude de superioridade às vezes me dava nos nervos. Era divertido ver o Sr. Crepsley ser chamado à atenção!
   
— Pare de sorrir satisfeito! — disse ele irritado quando olhou para mim.
   
— Ora, ora — censurei-o. — Ouviu o que o Sr. Nilo disse: seja paciente, procure me compreender.
   
O Sr. Crepsley se preparava para gritar comigo quando Sebá tossiu discretamente. O vampiro olhou para o antigo professor, perdeu todo o embalo e sorriu com timidez. Em lugar de descarregar a ira, pediu-me educadamente para passar um pedaço de pão.
   
— O prazer é meu, Larten — disse eu secamente e nós três rimos enquanto os outros vampiros no Salão de Khledon Lurt falavam alto, contavam histórias e trocavam piadas à nossa volta.
 
   
 CAPÍTULO CATORZE
   
 
   
 
   
Depois do desjejum, o Sr. Crepsley e eu fomos para o chuveiro porque ainda estávamos imundos da viagem. Ele disse que não pretendia se lavar frequentemente enquanto estivesse na montanha, mas que uma chuveirada para começar era uma boa ideia. O Salão de Perta VinGrahl era uma enorme caverna com modestas estalactites e duas cachoeiras naturais, uma perto da outra, à direita da porta. A água caía de grande altura num lago feito pelos vampiros e corria para um buraco perto da parte de trás da caverna, desaparecendo para se juntar a outros regatos na montanha.
   
— O que acha das cachoeiras? — perguntou o Sr. Crepsley, erguendo a voz para ser ouvido acima do barulho da água.
   
— Lindas — disse eu, admirando o reflexo dos archotes na água que caía. — Mas onde estão os chuveiros?
   
O Sr. Crepsley sorriu sádicamente e eu entendi onde devíamos nos lavar.
   
— Sem essa! — gritei. — A água deve estar gelada!
   
— Está — concordou o Sr. Crepsley, tirando a roupa —, mas é o único banho que existe na Montanha do Vampiro.
   
Comecei a protestar, mas ele riu, foi até a cachoeira mais próxima e entrou na água. Senti um arrepio só de ver o vampiro tomando sua chuveirada, mas eu estava ansioso para me lavar e sabia que ele ia caçoar de mim o resto do tempo que estivéssemos na montanha. Então, tirei a roupa, fui até a beirada do pequeno lago, experimentei a água com a ponta dos dedos do pé — nossa! —, depois saltei para a frente e me entreguei às águas da segunda cachoeira.
   
— Meu Deus! — rugi com o choque gelado. — Isto é tortura!
   
— Ah! — gritou o Sr. Crepsley. — Agora você compreende por que tão poucos vampiros se dão ao trabalho de se lavar durante o Conselho!
   
— Há alguma lei contra água quente? — berrei, esfregando furiosamente o peito, as costas e as axilas, querendo acabar depressa com o banho.
   
— Não é bem isso — respondeu o Sr. Crepsley, saindo debaixo da sua cachoeira e passando a mão no cabelo curto cor de laranja, antes de se sacudir como um cachorro molhado. — É que a água fria é boa para outras criaturas do mundo selvagem — preferimos não aquecer, pelo menos não aqui, no coração da nossa terra.
   
Havia toalhas ásperas e grossas perto do lago e me enrolei em duas assim que saí da água. Por alguns minutos tive a impressão de que meu sangue tinha virado gelo, mas então a sensação começou a voltar e senti prazer com o calor das toalhas.
   
— Estimulante — comentou o Sr. Crepsley, esfregando a toalha no corpo.
   
— Assassinato, isso sim — resmunguei, embora secretamente gostando da originalidade daquele chuveiro primitivo.
   
Enquanto nos vestíamos, olhei para o teto e para as paredes de pedra, imaginando que idade teriam os salões. Perguntei ao Sr. Crepsley.
   
— Ninguém sabe exatamente quando os vampiros chegaram aqui ou o que encontraram — disse ele. — Os mais antigos artefatos descobertos datam de cerca de três mil anos, mas é provável que durante muito tempo só tenham sido usados ocasionalmente por pequenos bandos de vampiros nômades.
   
“Pelo que sabemos, os salões foram estabelecidos como uma base permanente há cerca de mil e quatrocentos anos. Foi quando os primeiros Príncipes se mudaram para cá e começaram os Conselhos. Os salões cresceram desse tempo para cá. Há vampiros trabalhando na estrutura o tempo todo, cavando novos quartos, aumentando os velhos, construindo túneis. É um trabalho longo e cansativo — não é permitido nenhum equipamento mecânico —, mas temos muito tempo para fazer isso.”
   
Quando saímos do Salão de Perta Vin-Grahl, a notícia da mensagem levada por Harkat tinha se espalhado. Ele disse aos Príncipes que a noite do Senhor dos Vampixiitas estava próxima e os vampiros estavam alvoroçados. Andavam em volta da montanha como formigas, transmitindo a mensagem para os que ainda não tinham ouvido, comentando acaloradamente e fazendo planos absurdos de sair e matar todos os vampixiitas que encontrassem.
   
O Sr. Crepsley tinha prometido me levar para conhecer os salões, mas adiou o passeio por causa da comoção geral. Disse que iríamos quando as coisas se acalmassem, que eu podia ser pisoteado pelos vampiros agitados se fôssemos naquele momento. Fiquei desapontado, mas sabia que ele tinha razão. Não era hora de explorar a montanha.
   
Quando voltamos ao meu nicho, um vampiro jovem havia retirado os caixões e estava armando redes. Ele se ofereceu para encontrar roupas para mim e para o Sr. Crepsley, se quiséssemos. Agradecemos e o acompanhamos a um dos depósitos para escolher novas roupas. Os depósitos da Montanha do Vampiro estavam cheios de tesouros — comida e tanques cheios de sangue e esconderijos para armas —, mas só consegui olhar rapidamente. O jovem vampiro nos levou diretamente para o local onde as roupas eram guardadas e nos deixou sozinhos para escolher à vontade.
   
Procurei alguma coisa parecida com o que eu usava, mas não havia trajes de piratas, por isso escolhi um blusão marrom e calça escura e um par de sapatos macios. O Sr. Crepsley se vestiu todo de vermelho — sua cor favorita —, embora aqueles mantos não fossem tão extravagantes quanto os que ele usava normalmente.
   
Quando eu estava ajustando seu manto, notei como o gosto dele para roupas era parecido com o de Sebá Nilo. Mencionei isso e ele sorriu.
   
— Eu copiei muita coisa de Sebá. Não apenas o modo de vestir, como também o modo de falar. Eu não usei sempre esse tom comedido e preciso. Quando tinha sua idade, juntava as palavras umas às outras como todo mundo faz. Os anos passados na companhia de Sebá me ensinaram a ir mais devagar e pensar nas palavras antes de falar.
   
— Está dizendo que posso acabar igual a você algum dia? — perguntei, alarmado com a ideia de ser tão sério e emproado.
   
— É possível — disse o Sr. Crepsley —, mas eu não apostaria nisso. Sebá sempre teve meu maior respeito, por isso eu imitava o que ele fazia. Você, por outro lado, parece resolvido a fazer sempre o oposto de tudo que eu digo.
   
— Não sou tão ruim assim — sorri, mas havia certa verdade naquelas palavras. Eu sempre fui teimoso. Eu admirava o Sr. Crepsley mais do que ele imaginava, mas detestava a ideia de parecer um bajulador, fazendo tudo que ele mandava. Às vezes eu desobedecia ao vampiro só para ele não pensar que eu prestava atenção ao que ele dizia!
   
— Além disso — acrescentou o Sr. Crepsley —, não tenho coragem nem vontade de punir você quando você erra, como Sebá me punia.
   
— Por quê? — perguntei. — O que ele fazia?
   
— Ele era um professor justo mas duro — disse o Sr. Crepsley.
   
— Quando eu disse a ele que queria imitá-lo, ele começou a prestar atenção ao meu modo de falar. Sempre que eu cometia um erro do tipo que todo mundo comete, ele puxava um fio de cabelo de dentro do meu nariz.
   
— Está brincando! — ri.
   
— É verdade — disse ele, sombrio.
   
— Ele usava pinça?
   
— Não, as unhas.
   
— Ai, ai!
   
O Sr. Crepsley assentiu.
   
— Eu pedi a ele para parar, disse que não queria mais imitá-lo, mas ele não me deu atenção. Sebá tem por princípio acabar o que começa. Depois de vários meses de ter os pelos do nariz arrancados, eu tive uma ideia brilhante e os chamusquei com um ferro em brasa — o que não recomendo que você faça — para que não voltassem a crescer.
   
— O que aconteceu? O Sr. Crepsley corou.
   
— Ele começou a arrancar os pêlos de um lugar muito mais sensível.
   
— De onde? — perguntei rapidamente. O vampiro ficou mais corado ainda.
   
— Não vou dizer, é muito embaraçoso.
   
(Mais tarde, quando fiquei sozinho com Sebá e perguntei a ele, o vampiro sorriu maliciosamente e me disse: “Das orelhas!”)
   
Quando calçávamos os sapatos, um vampiro esbelto vestido de azul entrou correndo no quarto e bateu a porta. Ficou parado, ofegante e esbaforido, sem nos ver, até o Sr. Crepsley dizer:
   
— É você, Kurda?
   
— Não! — gritou o vampiro e segurou a maçaneta da porta. Então parou e olhou para trás. — Larten?
   
— Sim — confirmou o Sr. Crepsley.
   
— Isso é diferente. — O vampiro deu alguns passos em nossa direção. Quando chegou perto, vi três cicatrizes vermelhas no lado esquerdo do rosto dele. Pareceram-me familiares, mas não conseguia lembrar por quê. — Eu estava esperando encontrar você. Queria perguntar sobre esse tal de Harkat Mulds e sua mensagem. É verdade?
   
O Sr. Crepsley deu de ombros.
   
— Eu só ouvi rumores. Ele não nos disse o que era durante a viagem. — O Sr. Crepsley não esqueceu a promessa feita para Harkat.
   
— Nem uma palavra? — perguntou o vampiro, sentando-se num barril virado de cabeça para baixo.
   
— Ele disse que a mensagem era só para os Príncipes Vampiros — disse eu.
   
O vampiro olhou curioso para mim.
   
— Você deve ser Darren Shan, de quem ouvi falar. — Apertou minha mão. — Eu sou Kurda Smahlt.
   
— Do que você estava fugindo? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— De perguntas — gemeu Kurda. — Assim que souberam do Pequenino e sua mensagem começou a circular, todo mundo correu para mim para perguntar se era verdade.
   
— Por que perguntaram para você? — quis saber o Sr. Crepsley.
   
— Porque eu sei mais sobre os vampixiitas do que qualquer outra pessoa. E por causa da minha investidura. É incrível como esperam muito mais de nós quando subimos um pouco na vida.
   
— Torvelinho me contou. Meus parabéns — disse o Sr. Crepsley secamente.
   
— Você não aprova — disse Kurda.
   
— Eu não disse isso.
   
— Não precisa dizer. Está escrito no seu rosto. Mas eu não me importo. Você não é o único. Estou acostumado com controvérsias.
   
— Com licença — disse eu —, mas o que é uma “investidura”?
   
— É como eles chamam quando você é promovido na organização — explicou Kurda. Falava com facilidade e sempre com um sorriso nos lábios e nos olhos. Ele me fazia lembrar de Torvelinho e gostei dele imediatamente.
   
— Para onde você vai agora? — perguntei.
   
— Ao topo — sorriu. — Fui promovido a Príncipe. Vai haver uma grande cerimônia e mais uma porção de coisas. — Fez uma careta. — Vai ser muito chato, mas não se pode
evitar. Séculos de tradição, padrões que devem ser mantidos etc.
   
— Você não devia fazer pouco caso da sua investidura — resmungou o Sr. Crepsley. — É uma grande honra.
   
— Eu sei — suspirou Kurda. — Eu só queria que não dessem tanta importância ao fato. Não é como se eu tivesse feito alguma coisa maravilhosa.
   
— Como você veio a ser nomeado Príncipe? — perguntei.
   
— Por quê? — respondeu Kurda com um brilho malicioso nos olhos. — Está pensando em se candidatar?
   
— Não — ri. — É só curiosidade.
   
— Não existe um modo fixo — disse ele. — Para ser General você estuda por um determinado número de anos e se submete a provas. Os Príncipes, por outro lado, são eleitos esporadicamente e por razões diferentes.
   
“Geralmente um Príncipe é alguém que se distinguiu em muitas batalhas, conquistando a confiança e a admiração dos seus companheiros. Um dos Príncipes o indica. Sc os outros Príncipes concordam, ele é automaticamente promovido. Se um deles não concorda, os Generais votam e a decisão da maioria decide seu destino. Se dois ou mais Príncipes são contra, a moção é rejeitada.
   
“Eu entrei de fininho pelo voto”, sorriu. “Cinquenta e quatro por cento dos Generais acham que eu darei um ótimo Príncipe. O que significa que quase um em dois pensa que eu não sirvo!”
   
— Foi a votação mais apertada que já houve — disse o Sr. Crepsley. — Kurda tem só cento e vinte anos da Terra, o que faz dele o Príncipe mais novo de todos os tempos e muitos Generais acreditam que ele é muito jovem para ganhar o respeito de todos. Eles o acompanharão quando for eleito — não há dúvida —, mas não podem dizer que estão gostando disso.
   
— Ora, deixe disso — riu Kurda, divertido. — Não precisa me defender para que o menino pense que eles só fazem objeção à minha idade. Veja Darren. — Eu estava ao seu lado e ele dobrou o braço direito, retesando os músculos. — O que você acha?
   
— Não são muito grandes — disse eu, francamente. Kurda deu uma gargalhada.
   
— Que os deuses dos vampiros nos livrem da sinceridade das crianças! Mas você tem
razão: não são grandes. Todos os Príncipes têm músculos do tamanho de bolas de boliche. Os Príncipes sempre foram os maiores, os mais valentes, mais duros vampiros. Sou o primeiro a ser indicado por causa disto: — bateu com a mão na cabeça. — Meu cérebro.
   
— Quer dizer que é mais inteligente do que todos?
   
— Muito mais — disse ele, depois fez uma cara triste. — Na verdade, não — suspirou. — Apenas uso mais o cérebro do que a maioria. Não acredito que os vampiros devam se ater aos rígidos costumes antigos, como fazem. Acho que devemos ir para a frente e nos adaptar à vida do século XXI. Mais do que tudo, acredito que devemos lutar para conseguir a paz com nossos irmãos que estão separados, os vampixiitas.
   
— Kurda é o primeiro vampiro desde o tratado de paz a manter contato com os vampixiitas — disse o Sr. Crepsley rispidamente.
   
— Manter contato? — perguntei, inseguro.
   
— Tenho me encontrado com eles — explicou Kurda. — Passei grande parte dos últimos trinta ou quarenta anos procurando localizá-los, conversando, tentando conhecê-los. Foi assim que consegui minhas cicatrizes. — Levou a mão ao lado esquerdo do rosto. — Tive de deixar que eles me marcassem — um modo de me oferecer a eles e ficar à sua mercê.
   
Então fiquei sabendo por que as cicatrizes me pareceram familiares. Eu tinha visto marcas semelhantes num ser humano que o louco vampixiita Vampirado escolheu como alvo seis anos atrás! Os vampixiitas eram tradicionalistas e marcavam a presa antes de matá-la, sempre os mesmos três arranhões no lado esquerdo do rosto.
   
— Os vampixiitas não são tão diferentes de nós como muita gente pensa — prosseguiu Kurda. — Muitos voltariam para nós alegremente, se tivessem oportunidade. Acordos terão de ser feitos, os dois lados devem ceder em certos assuntos, mas tenho certeza de que podemos nos entender e viver juntos outra vez.
   
— Por isso ele vai ser investido — disse o Sr. Crepsley. — Muitos Generais — 54%, pelo menos — pensam que está na hora de nos reunirmos aos vampixiitas. Os vampixiitas confiam em Kurda mas relutam em negociar com outros Generais. Quando Kurda for um Príncipe, terá controle absoluto sobre os Generais, e os vampixiitas sabem que nenhum General desobedecerá à ordem de um Príncipe. Assim, se ele mandar um vampiro para discutir os termos, os vampixiitas confiarão nele e concordarão em conversar. Pelo menos é o que dizem.
   
— Você não concorda, Larten? — perguntou Kurda. O Sr. Crepsley parecia preocupado.
   
— Admiro muita coisa nos vampixiitas, e nunca fui contrário a conversar para desfazer a separação entre nós. Mas eu não me apressaria em dar a eles um porta-voz entre os Príncipes.
   
— Acha que podem me usar para impor mais das suas crenças a nós do que nós podemos impor as nossas a eles? — sugeriu Kurda.
   
— Algo assim.
   
Kurda balançou a cabeça.
   
— Estou procurando criar uma tribo de iguais. Não imporei nenhuma mudança com a qual os Príncipes e os Generais não concordem.
   
— Se é assim, boa sorte. Mas as coisas estão acontecendo depressa demais para meu gosto. Se eu fosse General, teria feito uma campanha vigorosa contra você.
   
— Espero viver o suficiente para provar a você que sua desconfiança é infundada. — Suspirou Kurda e voltou-se para mim. — O que você acha, Darren? Está na hora de mudar?
   
Hesitei antes de responder.
   
— Não sei o bastante sobre vampiros ou vampixiitas para dar uma opinião — disse eu.
   
— Bobagem — disse Kurda, irritado. — Todo mundo tem direito a uma opinião. Vamos lá, Darren, diga o que você acha. Gosto de saber o que as pessoas pensam. O mundo seria um lugar mais simples e mais seguro se todos nós externássemos nossos verdadeiros pensamentos.
   
— Bem — disse eu. — Não estou bem certo se gosto da ideia de fazer um acordo com os vampixiitas. Acho que é errado matar um ser humano para sugar seu sangue. Mas, se você pudesse persuadi-los a parar de matar, talvez fosse uma boa coisa.
   
— O menino tem cérebro — disse Kurda, piscando para mim.
   
— O que você disse resume quase todos os meus argumentos. Matar seres humanos é deplorável e é uma das concessões que os vampixiitas terão de fazer antes de chegarmos a um acordo. Mas, a não ser que possamos fazer com que se disponham a conversar e não procuremos ganhar sua confiança, eles nunca vão parar. Não vale a pena ceder algumas das nossas regras se não podemos fazer com que parem com os assassinatos.
   
— Exatamente — concordei.
   
— Hã-hã! — resmungou o Sr. Crepsley e não quis mais falar no assunto.
   
— De qualquer modo — disse Kurda —, não posso ficar escondido para sempre. Está na hora de voltar e me preparar para mais perguntas. Tem certeza de que não pode me dizer nada sobre o Pequenino e sua mensagem?
   
— Infelizmente não — disse o Sr. Crepsley secamente.
   
— Tudo bem. Suponho que vou saber se for ao Salão dos Príncipes e o vir pessoalmente. Espero que tenha uma boa estada na Montanha do Vampiro, Darren. Precisamos nos encontrar quando terminar o caos e ter uma boa conversa.
   
— Eu gostaria muito — disse.
   
— Larten — ele saudou o Sr. Crepsley.
   
— Kurda. Ele saiu.
   
— Kurda é agradável — observei. — Gosto dele.
   
O Sr. Crepsley olhou de soslaio para mim, passou a mão na longa cicatriz no lado esquerdo do rosto, olhou pensativamente para a porta por onde Kurda acabava de sair e bufou outra vez.
   
— Hã-hã!
 
   
CAPÍTULO QUINZE
   
 
   
 
   
Duas noites longas e tranquilas se passaram. Harkat estava no Salão dos Príncipes para responder a perguntas. Torvelinho tinha suas obrigações de General e só o víamos quando ele praticamente se arrastava até seu caixão para dormir. Eu passava a maior parte do tempo com o Sr. Crepsley no Salão de Khledon Lurt. Ele tinha de pôr em dia o relacionamento com muitos amigos que não encontrava havia anos — ou nos depósitos com ele e Sebá Nilo.
   
O velho vampiro estava mais abalado com a mensagem de Harkat do que os outros. Era o segundo vampiro mais idoso na montanha — o mais velho era um Príncipe, Paz Celestial, que tinha mais de oitocentos anos — e o único que estava nela quando o Sr. Tino fez aquela declaração séculos atrás.
   
— Muitos dos vampiros de hoje não acreditam nos velhos mitos — disse ele. — Pensam que o aviso do Sr. Tino foi uma invenção para assustar os jovens vampiros. Mas eu me lembro de como ele estava e de como suas palavras ecoaram no Salão dos Príncipes e do medo que elas provocaram em todos. O Senhor dos Vampixiitas não é mera figura de lenda. Ele é real. E agora, ao que parece, ele está vindo.
   
Sebá ficou em silêncio. Tinha começado a beber uma caneca de cerveja quente mas perdeu o interesse pela bebida.
   
— Ele ainda não chegou — disse o Sr. Crepsley para animá-lo.
   
— O Sr. Tino é tão velho quanto o tempo. Quando ele diz que a noite está próxima, pode significar centenas ou milhares de anos a partir de agora.
   
Sebá balançou a cabeça.
   
— Já tivemos nossas centenas de anos, sete séculos para nos firmar e derrotar os vampixiitas. Devíamos ter acabado com eles sem nos importar com as consequências. Melhor chegar quase ao ponto de extinção pelos seres humanos do que sermos aniquilados completamente pelos vampixiitas.
   
— Está dizendo bobagem — disse o Sr. Crepsley, zangado. — Eu preferia me arriscar com um mítico Senhor dos Vampixiitas do que com um verdadeiro ser humano com uma estaca de madeira. Você também.
   
Sebá assentiu tristemente e tomou um gole da cerveja.
   
— Talvez você tenha razão. Estou velho. Minha cabeça não funciona tão bem como antes. Talvez minhas preocupações sejam as de um velho que já viveu demais. Mesmo assim...
   
Essas palavras pessimistas estavam nos lábios de todos. Mesmo os que zombavam da ideia de um Senhor dos Vampixiitas, pareciam terminar o que diziam com “mesmo assim...” ou “entretanto...” ou ainda “mas...” A tensão pesava no ar empoeirado dos túneis e nos salões, crescendo constantemente, sufocando.
   
O único que não parecia preocupado com os rumores era Kurda Smahlt. Ele apareceu no lado de fora do nosso quarto, mais animado do que nunca, na terceira noite, depois de Harkat transmitir a mensagem.
   
— Saudações — disse ele. — Tive duas noites cansativas, mas as coisas finalmente começam a se acalmar e tenho algumas horas livres. Pensei em levar Darren para conhecer os
salões.
   
— Ótimo! — disse eu, encantado. — O Sr. Crepsley ia me levar, mas até agora não levou.
   
— Não se importa se ele for comigo, Larten? — perguntou Kurda.
   
— De modo algum — disse o Sr. Crepsley. — Estou admirado por ver uma pessoa da sua importância encontrar tempo para servir de guia, tão próximo do dia da sua investidura — disse ele maliciosamente, mas Kurda ignorou o sarcasmo do vampiro mais velho.
   
— Você pode vir se quiser — Kurda ofereceu alegremente.
   
— Não, obrigado — disse o Sr. Crepsley com um brevíssimo sorriso.
   
— Tudo bem — disse Kurda. — Azar o seu. Pronto, Darren?
   
— Pronto — disse eu e saímos.
   
Kurda me levou primeiro para ver as cozinhas. Eram cavernas enormes cavadas profundamente debaixo da maioria dos salões. O fogo alto cintilava. Os cozinheiros trabalhavam em turnos, dia e noite, durante o Conselho. Precisavam fazer isso para alimentar todos os visitantes.
   
— O resto do tempo a cozinha é tranquila — disse Kurda. — Em geral não há mais de trinta vampiros hospedados aqui. Você muitas vezes tem um cozinheiro só para você, se não quiser comer com os outros nas horas certas.
   
Da cozinha fomos para os salões de criação, onde ficavam e se reproduziam os carneiros, as cabras e as vacas.
   
— Nunca conseguiríamos encomendar bastante leite e carne para todos os vampiros — explicou Kurda quando perguntei por que tinham animais vivos na montanha. — Isto não é um hotel, onde se pode telefonar para um fornecedor e se abastecer a qualquer momento. O transporte de comida é muito complicado. É mais fácil criar e abater os animais quando precisamos.
   
— E o sangue humano? — perguntei. — De onde vem?
   
— De doadores generosos — Kurda piscou um olho e continuamos a visita. (Só mais tarde percebi que ele não tinha respondido a minha pergunta.)
   
O Salão Crematório foi nossa parada seguinte. Era lá que os vampiros que morriam na montanha eram cremados.
   
— E se eles não quiserem ser cremados? — perguntei.
   
— Por mais estranho que pareça, dificilmente um vampiro pede para ser enterrado — disse ele, pensativo. — Talvez tenha a ver com todo o tempo que passam em caixões quando estão vivos. Porém, se alguém pedir um enterro, seus desejos são respeitados.
   
“Não faz muito tempo descíamos os corpos dos mortos num regato subterrâneo e deixávamos que a água os levasse. Há uma caverna muito abaixo dos salões onde vai dar um dos maiores regatos.
   
É chamado o Salão da Viagem Final, mas não é mais usado agora. Mostro para você se alguma vez formos até lá embaixo.”
   
— Para que iríamos lá embaixo? — perguntei. — Pensei que esses túneis só fossem usados para entrar e sair da montanha.
   
— Um dos meus passatempos é fazer mapas — disse Kurda. — Há décadas venho tentando fazer um mapa perfeito da montanha. Os salões são fáceis, mas os túneis são muito mais difíceis. Nunca foram mapeados e vários estão em péssimo estado. Tento ir até eles sempre que volto, para fazer o mapa das regiões mais desconhecidas, mas não tenho tanto tempo como precisaria. Terei menos ainda quando for Príncipe.
   
— Parece um passatempo interessante — disse eu. — Posso ir com você da próxima vez que for fazer mapas? Gostaria de ver como é feito.
   
— Está mesmo interessado? — Ele parecia surpreso.
   
— Por que não? Ele riu.
   
— Estou acostumado com os vampiros que caem no sono assim que começo a falar dos mapas. A maioria não se interessa por coisas tão mundanas. Há um ditado entre os vampiros: “Mapas são para os seres humanos.” A maioria dos vampiros prefere descobrir novos territórios sem ajuda — apesar dos perigos — do que seguir as direções de um mapa.
   
O Salão Crematório era grande e octogonal com teto alto cheio de rachaduras. Havia um poço no meio — onde os vampiros mortos eram cremados — e dois bancos longos e nodosos na extremidade, feitos de ossos. Duas mulheres e um homem estavam sentados nos bancos, conversando em voz baixa, e uma criança aos seus pés brincava com uma porção de ossos de animais. Não pareciam vampiros — eram magros e pareciam doentes, com cabelos escorridos e vestidos de andrajos. Sua pele tinha uma palidez mortal e era extremamente seca e os olhos tinham uma cor branca fantasmagórica. Os adultos se levantaram quando entramos, pegaram a criança e saíram por uma porta nos fundos da sala.
   
— Quem são eles? — perguntei.
   
— Os Guardiães desta câmara — respondeu Kurda.
   
— São vampiros? — insisti. — Não parecem vampiros. Pensei que eu fosse a única criança-vampiro na montanha.
   
— Você é — disse Kurda.
   
— Então quem...
   
— Pergunte mais tarde! — disse Kurda bruscamente. Estranhei o tom irritado da sua voz e
ele sorriu e pediu desculpas. — Falo sobre eles quando terminarmos a visita — disse ele suavemente. — Dá azar falar deles aqui. Embora eu não seja supersticioso por natureza, prefiro não tentar a sorte no que se refere aos Guardiães.
   
(Ele aguçou minha curiosidade mas eu só ia ouvir falar daqueles estranhos supostos Guardiães muito mais tarde, porque no fim da nossa visita eu não estava apto a fazer nenhuma pergunta e havia me esquecido completamente deles.)
   
Deixando passar o assunto dos Guardiães, examinei o poço crematório, que era apenas uma vala cavada no chão. Vi folhas e gravetos no fundo, esperando para serem acesos. Grandes potes enfileiravam-se em volta do buraco com um pedaço de pau que parecia um taco em cada um. Perguntei para que serviam.
   
— São pilões para os ossos — disse Kurda.
   
— Que ossos?
   
— Os ossos dos vampiros. O fogo não queima os ossos. Quando o fogo se apaga, os ossos são retirados, postos nos potes e amassados com os trituradores até virar pó.
   
— O que acontece com o pó? — perguntei.
   
— Usamos para engrossar a sopa — disse Kurda rapidamente, depois deu uma gargalhada, vendo que eu fiquei verde. — Estou brincando! O pó é espalhado pelo vento em volta da Montanha do Vampiro, libertando o espírito do vampiro morto.
   
— Acho que não gosto muito disso — comentei.
   
— É melhor do que enterrar uma pessoa e deixar seus ossos para os vermes — disse Kurda. — Embora eu, pessoalmente, queira ser empalhado e montado quando morrer — disse ele e caiu na risada outra vez.
   
Saímos do Salão Crematório e fomos para três salões de esportes (individualmente eram chamados Salão de Baslcer Wrent, Salão de Rush Flonx e Salão de Oceen Pird, embora a maioria dos vampiros os chame apenas pelo nome geral de Salões dos Esportes). Eu queria ver os Salões dos Jogos mas, quando íamos para lá, Kurda parou na frente de uma pequena porta, inclinou a cabeça, fechou os olhos e tocou nas pálpebras com as pontas dos dedos.
   
— Por que você faz isso? — perguntei.
   
— É o costume — disse ele e continuou a andar. Fiquei parado, olhando para a porta.
   
— Qual é o nome deste salão? — perguntei. Kurda hesitou.
   
— Você não vai querer entrar aí — disse ele.
   
— Por que não? — insisti.
   
— É o Salão da Morte — disse ele em voz baixa.
   
— Outro Salão Crematório? Kurda balançou a cabeça.
   
— Um lugar de execução.
   
— Execução? — Eu estava realmente curioso. Kurda percebeu e suspirou.
   
— Você quer entrar? — perguntou.
   
— Posso?
   
— Pode, mas não é nada bonito. Acho melhor irmos para o Salão dos Esportes.
   
Isso aguçou ainda mais minha vontade de ver o que havia atrás daquela porta. Vendo isso, Kurda abriu a porta e me fez entrar. O salão era pouco iluminado e logo que entrei pensei que estivesse deserto. Então vi um dos Guardiães de pele branca sentado na sombra, ao lado da parede, no fundo. Ele não se levantou nem deu sinal de nos ter visto. Eu ia perguntar para Kurda o que ele era, mas o General balançou a cabeça e murmurou:
   
— Definitivamente não vou falar sobre eles aqui!
   
Eu não via nada de horrível no salão. Havia um poço no centro e gaiolas leves de madeira dependuradas nas paredes, mas fora isso não tinha nada de notável.
   
— O que há de tão ruim neste lugar? — perguntei.
   
— Vou mostrar — disse Kurda e me levou para a borda do poço. Olhei para o escuro lá embaixo e vi dezenas de varas com as pontas aguçadas apontando ameaçadoramente para o teto.
   
— Estacas! — disse eu, atônito.
   
— Sim — disse ele em voz baixa. — Foi aqui que se originou a lenda da estaca de madeira. Quando um vampiro é trazido ao Salão da Morte, é posto numa gaiola — essas que estão penduradas na parede —, presa a uma corda, e ela é trazida para cima do poço. Então a gaiola é solta do alto e ele é empalado pelas estacas. A morte geralmente é lenta e dolorosa e não raro o vampiro é erguido e atirado para baixo três ou quatro vezes antes de morrer.
   
— Mas porquê? — Eu estava perplexo. — Quem eles matam aqui?
   
— Os vampiros velhos ou aleijados, os loucos e os traidores — respondeu Kurda. — Os velhos e os aleijados pedem para ser mortos. Se têm força suficiente, preferem lutar até a morte ou se embrenhar nos bosques para morrer caçando. Mas os que não têm mais força ou habilidade para morrer de pé preferem vir para cá, onde podem enfrentar a morte de frente e morrer com bravura.
   
— Isso é horrível! — exclamei. — Os velhos não deviam ser mortos!
   
— Concordo — disse Kurda. — Acho que a nobreza dos vampiros é mal interpretada. Os velhos e os enfermos têm muito a oferecer, e eu, pessoalmente, espero poder ficar vivo o maior tempo possível. Mas a maioria dos vampiros conserva a velha crença de que sua vida só vale a pena enquanto têm forças para se defenderem sozinhos.
   
“É diferente com os vampiros loucos”, continuou. “Ao contrário dos vampixiitas, preferimos não permitir que os insanos fiquem soltos no mundo, livres para atormentar e caçar os seres humanos. Uma vez que é difícil mantê-los presos — um vampiro louco é capaz de cavar uma rocha com as mãos —, a execução é o único modo humanitário de lidar com eles.”
   
— Podiam prendê-los em camisas-de-força — sugeri. Kurda sorriu amargamente.
   
— Ainda não foi inventada uma camisa-de-força capaz de prender um vampiro. Acredite, Darren, matar um vampiro louco é um ato de misericórdia para o mundo em geral e para ele próprio.
   
“O mesmo para os vampiros traidores”, acrescentou, “embora sejam poucos, a lealdade é uma das nossas principais virtudes, um dos bônus de observar com tanto rigor os velhos costumes. Fora os vampixiitas, que, quando se separaram foram chamados de traidores, muitos capturados e mortos, apenas seis traidores foram executados durante os mil e quatrocentos anos que os vampiros vivem aqui.”
   
Olhei para as estacas e estremeci, imaginando-me amarrado numa gaiola, dependurado sobre o poço, esperando a queda.
   
— Vocês vedam os olhos deles? — perguntei.
   
— Dos loucos, sim, porque é misericordioso. Os vampiros que escolhem morrer no Salão da Morte preferem não ter os olhos vendados — querem olhar a morte de frente para mostrar que não têm medo. Quanto aos traidores, são postos nas gaiolas com o rosto virado para cima, de costas para as estacas. É uma grande desonra para um vampiro morrer com ferimentos de estacas nas costas.
   
— Eu acho que preferia ser empalado pelas costas do que pela frente — disse eu com desdém.
   
Kurda sorriu.
   
— Esperemos que você nunca seja empalado de um modo ou de outro! — Deu uma batidinha no meu ombro e disse: — Este é um lugar sinistro e o melhor é evitá-lo. Vamos jogar um pouco. — E ele me levou rapidamente para fora do salão, deixando para trás o misterioso Guardião, as gaiolas e as estacas.
 
   
 CAPÍTULO DEZESSEIS
   
 
   
 
   
Os Salões dos Esportes eram cavernas gigantescas, cheias de vampiros alegres que gritavam e torciam barulhentamente. Eram exatamente o que eu precisava depois das visitas perturbadoras aos Salões Crematório e da Morte.
   
Várias partidas estavam sendo disputadas em cada um dos três salões. Eram, na maior parte, jogos de combate físico — luta livre, boxe, caratê, levantamento de peso e assim por diante —, mas também havia jogos de xadrez rápido para aperfeiçoar as reações e o raciocínio.
   
Kurda encontrou lugares para nós perto de uma arena de luta livre e vimos os vampiros tentando prender os oponentes contra o chão ou jogá-los para fora do ringue. Era preciso ficar muito atento para acompanhar toda a ação — os vampiros se movem muito mais rapidamente do que os seres humanos. Era como assistir a uma luta no vídeo apertando o botão de avançar rapidamente.
   
Os assaltos não eram apenas mais rápidos que os dos seres humanos, mas muito mais violentos também. Ossos quebrados, rostos ensanguentados e contusões eram a ordem da noite. Às vezes, Kurda me disse, os danos eram piores ainda — vampiros podiam ser mortos naqueles jogos ou ficavam tão machucados que tudo que podiam esperar era uma viagem ao Salão da Morte.
   
— Por que não usam roupas protetoras? — perguntei.
   
— Eles são contra — disse Kurda. — Preferem ter a cabeça quebrada a usar capacetes — suspirou tristemente. — Às vezes eu penso que não conheço meu povo. Talvez tivesse sido melhor ter continuado ser humano.
   
Fomos para outro ringue. Neste os vampiros lutavam com lanças. Era um pouco como esgrima — tinham de espetar ou cortar o oponente três vezes para ganhar —, só que muito mais perigoso e sangrento.
   
— É horrível — disse eu quando um vampiro recebeu um corte profundo em quase todo o
braço e apenas riu e cumprimentou o oponente pelo belo golpe.
   
— Você tinha de ver quando eles lutam de verdade — disse alguém atrás de nós. — Por enquanto estão só se aquecendo. — Virei e vi um vampiro ruivo com um olho só. Vestia túnica e calça de couro azul-escura. — Eles chamam esse jogo de tira-olho — informoume —, porque quase todos perdem um olho ou os dois.
   
— Foi assim que perdeu o seu? — perguntei, olhando para a órbita vazia e para as cicatrizes em volta.
   
— Não — riu. — Perdi o meu numa luta com um leão.
   
— Fala sério?
   
— Falo sério.
   
— Darren, este é Vanez Blane — apresentou-o Kurda. — Vanez, este é...
   
— ... Darren Shan — disse Vanez, apertando minha mão. — Eu o conheço de ouvir falar. Há muito tempo alguém da sua idade não pisava nos salões da Montanha do Vampiro.
   
— Vanez é mestre dos jogos — explicou Kurda.
   
— É o encarregado dos jogos? — perguntei.
   
— Não propriamente encarregado — disse Vanez. — Os jogos estão além do controle até dos Príncipes. Os vampiros lutam — está no nosso sangue. Se não aqui, onde os ferimentos podem ser tratados então lá fora, onde podem sangrar até morrer sem nenhuma assistência. Eu fico de olho nas coisas, isso é tudo. — Sorriu.
   
— Ele também treina vampiros para a luta — disse Kurda. — Vanez é um dos nossos instrutores mais valiosos. Quase todos os Generais dos últimos cem anos treinaram com ele. Eu inclusive. — Passou a mão na nuca e fez uma careta.
   
— Ainda sente raiva por aquela vez em que eu o deixei inconsciente com um bastão, Kurda? — perguntou Vanez cortesmente.
   
— Você não teria tido a chance se eu estivesse prevenido — disse Kurda, carrancudo. — Pensei que fosse uma tigela de incenso!
   
Vanez deu uma gargalhada, batendo com as mãos nos joelhos.
   
— Você sempre foi brilhante, Kurda, a não ser quando se trata de instrumentos de guerra. Um dos meus piores alunos — disse para mim. — Rápido como uma enguia e tão resistente, mas detestava sujar as mãos com sangue. Uma pena, pois teria sido uma maravilha com a lança, se quisesse.
   
— Não há nada de maravilhoso em perder um olho numa luta — disse Kurda, zangado.
   
— Há sim, quando você ganha — discordou Vanez. — Qualquer dano é aceitável desde que você acabe vitorioso.
   
Vimos os vampiros fazer em pedaços uns aos outros por mais meia hora — ninguém perdeu um olho enquanto estávamos lá —, então Vanez nos levou num passeio pelos salões, explicando os jogos para mim e como serviam para fortalecer os vampiros e preparálos para a vida no mundo externo.
   
Havia todos os tipos de armas dependuradas nas paredes — algumas antigas, algumas de uso geral, e Vanez me disse os nomes delas e como eram usadas. Chegou até a tirar algumas da parede para me mostrar. Eram horríveis instrumentos de destruição — lanças denteadas,
machados afiados, facas longas e brilhantes, bastões pesados, bumerangues com bordas cortantes que podiam matar a uma distância de oitenta metros, tacos com varetas pontudas na ponta, martelos de guerra, de pedra, que podiam amassar a cabeça de um vampiro com um só golpe. Depois de algum tempo, notei que não havia armas de fogo, arcos ou flechas e perguntei por quê.
   
— Os vampiros só lutam com armas brancas — disse Vanez. — Não usamos coisas como revólveres, arcos ou estilingues.
   
— Nunca? — perguntei.
   
— Nunca! — disse ele com firmeza. — Nossa confiança nas armas brancas é sagrada para nós, para os vampixiitas também. Um vampiro que recorre a uma arma de fogo é desprezado pelo resto da vida.
   
— As coisas eram mais atrasadas — disse Kurda. — Até duzentos anos atrás, um vampiro só podia usar uma arma feita por ele mesmo. Cada vampiro tinha de fazer suas lacas, lanças e bastões. Agora, felizmente, esse não é mais o caso, e podemos usar equipamento comprado nas lojas, mas muitos vampiros ainda preferem os métodos antigos e a maior parte das armas usadas durante os Conselhos é feita à mão.
   
Deixamos as armas e paramos ao lado de uma série de tábuas estreitas dispostas umas ao lado das outras. Vampiros se equilibravam nas tábuas indo de uma para outra, tentando derrubar seus oponentes com bastões longos de pontas redondas. Seis vampiros lutavam
quando chegamos. Alguns minutos depois, só um estava em cima das tábuas — uma mulher.
   
— Muito bem, Arra. — Vanez bateu palmas. — Sua noção de equilíbrio é espantosa como sempre.
   
A vampira saltou da tábua e pousou perto de nós. Usava uma camisa branca e calça bege. Tinha cabelo comprido, preso na nuca. Não era especialmente bonita — tinha o rosto endurecido e desgastado pelo tempo —, mas depois de tanto tempo olhando para os vampiros feios e cheios de cicatrizes, ela me pareceu uma estrela de cinema.
   
— Kurda, Vanez — ela cumprimentou os vampiros, depois voltou os olhos cinzentos e frios para mim. — E você é Darren Shan.
   
— Ela não parecia nem um pouco impressionada.
   
— Darren, esta é Arra Barbatanas — disse Kurda. Estendi a mão mas ela a ignorou.
   
— Arra não aperta a mão daqueles que ela não respeita — disse Vanez baixinho.
   
— E ela respeita muitos poucos de nós — disse Kurda em voz alta. — Ainda se recusa a apertar minha mão, Arra?
   
— Nunca apertarei a mão de quem não luta — rosnou. — Quando você for Príncipe, vou me curvar para você e obedecer a suas ordens, mas nunca apertarei sua mão, nem sob ameaça de execução.
   
— Não acho que Arra tenha votado em mim na eleição — disse Kurda em tom de brincadeira.
   
— Eu também não votei em você — disse Vanez com um sorriso malicioso.
   
— Está vendo como é um dia comum para mim, Darren? — gemeu Kurda. — Metade dos vampiros adora esfregar no meu nariz o fato de que não votou em mim, enquanto a metade que votou quase nunca admite isso em público com medo de ser alvo do desprezo dos outros.
   
— Não faz mal — riu Vanez. — Nós todos teremos de nos curvar para você quando for Príncipe. Estamos só provocando enquanto podemos.
   
— É ilegal caçoar de um Príncipe? — perguntei.
   
— Não propriamente — disse Vanez. — Apenas não se faz. Observei Arra enquanto ele retirava uma lasca do seu bastão. Ela parecia tão decidida quanto qualquer vampiro, não tão robusta, mas igualmente musculosa. Olhando para ela pensei nas poucas vampiras que tinha visto e perguntei por quê.
   
Fez-se um longo silencio. Os dois homens pareciam embaraçados. Eu ia desistir da pergunta quando Arra olhou para mim com ar desdenhoso e disse:
   
— As mulheres não são boas como vampiros. Todo o clã é estéril, por isso essa vida não atrai muitas de nós.
   
— Estéreis? — perguntei.
   
— Não podemos ter filhos — disse.
   
— O quê... nenhuma de vocês?
   
— Tem algo a ver com nosso sangue — disse Kurda. — Nenhum vampiro pode ter filhos. O único meio de aumentar nosso número é sugando humanos.
   
Fiquei atônito. É claro que havia muito tempo eu deixara de me perguntar por que não havia crianças vampiros e por que todos pareciam tão surpresos comigo, um jovem meiovampiro. Mas tinha tanta coisa para pensar que não me lembrei mais desse fato.
   
— Essa regra se aplica a meios-vampiros também? — perguntei.
   
— Temo que sim — disse Kurda, franzindo a testa. — Larten nunca mencionou isso?
   
Sacudi a cabeça atordoado. Eu não podia ter filhos! Não era uma coisa na qual tivesse pensado muito — uma vez que minha idade aumentava a um quinto da rapidez com que aumentava a idade de um ser humano —, mas sempre pensei que a escolha seria minha. Era alarmante saber que jamais poderia ter um filho ou uma filha.
   
— Isso não é bom — resmungou Kurda. — Nada bom.
   
— Como assim? — perguntei.
   
— Os vampiros devem informar os novos recrutas dessas coisas antes de fazer deles vampiros. É uma das razões pelas quais quase nunca sugamos crianças — preferimos que os vampiros saibam no que estão se metendo e do que estão desistindo. Fazer um garoto da sua idade se tornar um vampiro já foi bastante ruim, mas não contar todos os fatos... — Kurda balançou a cabeça soturnamente e trocou um olhar ambíguo com Arra e Vanez.
   
— Vocês têm de contar isso aos Príncipes — disse Arra com ar de desprezo.
   
— Eles devem ser informados — Kurda concordou —, mas tenho certeza de que Larten pretende contar. Vou esperar e deixar que ele fale. Seria injusto nos adiantarmos antes que ele tenha uma chance de apresentar seu lado da história. Vocês dois podem guardar segredo?
   
Vanez inclinou a cabeça assentindo e Arra fez o mesmo.
   
— Mas se ele não mencionar logo... — rosnou Arra ameaçadoramente.
   
— Não compreendo — disse eu. — O Sr. Crepsley pode ter problemas por ter feito de mim um vampiro?
   
Kurda trocou outro olhar com Arra e Vanez.
   
— Provavelmente não — disse ele, tentando fazer com que a coisa não parecesse importante. — Larten é um velho vampiro astucioso. Ele sabe o que faz. Tenho certeza de que pode explicar tudo satisfatoriamente para os Príncipes.
   
— Agora — disse Vanez, antes que eu pudesse fazer mais perguntas —, que tal tentar as barras com Arra?
   
— Quer dizer que posso subir nas tábuas? — perguntei, encantado.
   
— Tenho certeza de que podemos encontrar um bastão do seu tamanho. O que acha, Arra? Alguma objeção em lutar com um oponente menor do que você?
   
— Será uma experiência nova — disse a vampira, pensativa. — Estou acostumada a lutar com homens maiores do que eu. Será interessante enfrentar um menor.
   
Ela subiu nas tábuas e girou o bastão acima da cabeça e debaixo dos braços. O bastão
girava mais depressa do que meus olhos podiam acompanhar e comecei a encarar de modo diferente a ousadia de subir lá com ela. Mas ia parecer um covarde se desistisse agora.
   
Vanez encontrou um bastão do meu tamanho e passou alguns minutos me ensinando como usá-lo.
   
— Segure no meio do bastão — ensinou. — Desse modo pode atacar com as duas pontas. Não balance com muita força para não abrir sua guarda a um contragolpe. Procure atingir as pernas e a barriga dela. Esqueça a cabeça, você é muito baixo para acertar tão alto. Tente passar uma rasteira nela. Ataque os joelhos e os dedos dos pés, são os pontos fracos.
   
— E quanto a se defender? — interrompeu Kurda. — Acho que é o mais importante. Há onze anos Arra não é vencida nas barras.
   
Mostre a ele como evitar que ela quebre sua cabeça, Vanez, e esqueça o resto.
   
Vanez me mostrou como me defender de golpes baixos e evitar os altos.
   
— O truque é manter o equilíbrio — disse ele. — Lutar nas barras não é como lutar no chão. Você não pode apenas aparar um golpe, precisa ficar firme nos pés, pronto para o golpe seguinte. Às vezes é melhor levar um golpe do que se inclinar demais para evitálo.
   
— Bobagem — disse Kurda. — Desvie o corpo tanto quanto puder, Darren, não quero levar você de volta para Larten numa maca!
   
— Ela não vai me machucar seriamente, vai? — perguntei, alarmado.
   
Vanez riu.
   
— Claro que não. Kurda está só tentando animar você. Ela não vai facilitar as coisas para você. Arra não sabe fazer isso, mas tenho certeza de que não tem intenção de machucá-lo seriamente. — Olhou para Arra e resmungou: — Pelo menos, eu espero que não.
 
   
 CAPÍTULO DEZESSETE
   
 
   
 
   
Tirei os sapatos e subi na barra. Passei um ou dois minutos me acostumando com elas, dando alguns passos, experimentando meu equilíbrio. Era fácil sem o bastão — vampiros têm uma grande noção de equilíbrio —, mas incômodo com ele. Desferi alguns golpes no ar e quase caí imediatamente.
   
— Golpes curtos! — disse Vanez, adiantando-se para me segurar. — Golpes longos serão seu fim.
   
Segui as instruções e logo peguei o jeito da coisa. Mais alguns minutos passando de uma barra para outra, agachando e pulando, e eu estava pronto.
   
Encontramo-nos no meio das barras e tocamos um bastão no outro numa saudação. Arra sorria — evidentemente não acreditava muito nas minhas chances. Demo-nos uma cutucada, um longe do outro, e Vanez bateu palmas, dando sinal para o começo da luta.
   
Arra atacou de imediato e atingiu minha barriga com a ponta do bastão. Quando saltei para longe dela, Arra girou o bastão e o abaixou sobre minha cabeça — um golpe de abrir o crânio! Consegui erguer meu bastão a tempo de desviar o golpe, mas o impacto do encontro dos bastões nos meus dedos e no resto do corpo me obrigou a ajoelhar. Minha mão escorregou do bastão, mas eu o peguei antes que caísse.
   
— Está querendo matar o garoto? — gritou Kurda, furioso.
   
— As barras não são lugar para garotos que não sabem se proteger — respondeu Arra.
   
— Vou pôr um fim nisso — rosnou Kurda, andando em minha direção.
   
— Como queira — disse Arra, abaixando o bastão e dando as costas para mim.
   
— Não! — gritei, levantando-me e erguendo o bastão. Kurda parou.
   
— Darren, você não precisa... — começou a dizer.
   
— Eu quero — interrompi. — Virei para Arra. — Venha, estou pronto.
   
Arra sorriu para mim, mas agora com um sorriso de admiração, não mais de caçoada.
   
— O meio-vampiro tem coragem. É bom saber que os jovens não são covardes. Agora vamos ver o que é preciso para acabar com essa bravura toda.
   
Ela atacou outra vez, com golpes curtos e fortes, girando o bastão da esquerda para a direita sem aviso. Eu defendi os golpes do melhor modo possível, mas alguns atingiram meus braços e meus ombros. Recuei para a extremidade da barra devagar, protegendo-me, e então saltei para fora do alcance de um golpe dirigido às minhas pernas.
   
Arra não esperava o salto e perdeu o equilíbrio. Aproveitei o momento para desferir meu
primeiro golpe da luta e acertei com força sua coxa esquerda. Aparentemente não a machucou muito, mas ela não esperava e soltou um urro de surpresa.
   
— Um ponto para Darren! — gritou Kurda.
   
— Não marcamos pontos — rosnou Arra.
   
— Acho melhor se cuidar, Arra — riu Vanez com o único olho brilhando. — Acho que o garoto pode vencer você. Nunca mais vai poder mostrar seu rosto nos salões se um meiovampiro adolescente ganhar de você nas barras.
   
— A noite em que eu for vencida nas barras por iguais a ele é a noite em que poderão me amarrar numa gaiola no Salão da Morte e me deixar cair sobre as estacas — rosnou Arra. Agora ela estava zangada — não gostava de ser provocada pelas pessoas que estavam no chão — e, quando virou para mim outra vez, o sorriso tinha desaparecido.
   
Eu me movi cautelosamente. Sabia que um bom golpe não significava coisa alguma. Se ficasse convencido e deixasse cair a guarda, ela acabava comigo. Quando ela atravessou a barra e ficou de frente para mim, recuei. Deixei que ela avançasse alguns metros e saltei para outra barra. Depois de alguns passos em retirada, saltei para outra barra e para mais outra.
   
Eu fazia isso para frustrar Arra. Se pudesse prolongar o tempo da luta, ela podia se irritar e fazer alguma bobagem. Mas a paciência de um vampiro é lendária e Arra não era exceção. Ela me seguiu como um gato atrás de um passarinho, ignorando os gracejos dos que estavam reunidos em volta das barras para ver a luta, sem se apressar, deixando que eu fizesse meu jogo evasivo, esperando o momento certo para atacar.
   
Finalmente ela conseguiu me levar para um canto e tive de lutar. Dei alguns golpes baixos — atingindo os dedos dos pés e os joelhos, como Vanez tinha sugerido —, mas eram golpes sem força e ela os recebeu sem piscar. Quando parei para atacar outra vez, ela saltou para uma barra próxima e abaixou a parte plana do bastão nas minhas costas. Rugi de dor e caí de bruços. Meu bastão caiu no chão.
   
— Darren! — gritou Kurda, correndo para as barras.
   
— Deixe! — ordenou Vanez, segurando o General pelas costas.
   
— Mas ele está ferido!
   
— Ele vai viver. Não o envergonhe na frente de todos esses vampiros. Deixe que ele lute.
   
Kurda não gostou, mas concordou quando Vanez disse.
   
Enquanto isso, Arra decidiu que eu estava acabado. Em vez de me atacar com o bastão, ela pôs a parte redonda debaixo da minha barriga e tentou me jogar para fora da barra. Ela sorria outra vez. Deixei meu corpo rolar, mas segurei com força na barra com mãos e pés, para não cair. Girei o corpo até ficar de cabeça para baixo, peguei meu bastão do chão e bati com ele entre as pernas de Arra. Com uma virada rápida, eu a derrubei. Ela gritou e por uma fração de segundo tive certeza de que tinha ganhado a luta. Mas ela agarrou na barra quando estava caindo e ficou dependurada como eu. Mas seu bastão caiu no chão e rolou para longe.
   
Os vampiros que assistiam — uns vinte ou trinta em volta das barras, agora — bateram palmas quando voltamos a ficar de pé na barra e nos entreolhamos cautelosamente. Eu ergui o meu bastão e sorri.
   
— Parece que eu estou com a vantagem agora — disse eu, atrevidamente.
   
— Não por muito tempo — rosnou Arra. — Vou arrancar este bastão das suas mãos e amassar sua cabeça com ele!
   
— Vai mesmo? — sorri. — Pois então venha, vamos ver você tentar!
   
Arra abriu as mãos e se aproximou de mim. Eu não esperava que ela atacasse sem o
bastão e fiquei sem saber o que fazer. Não me agradava a ideia de atacar um oponente desarmado, especialmente uma mulher.
   
— Pode pegar seu bastão se quiser — ofereci.
   
— Não é permitido sair das barras — respondeu ela.
   
— Peça para alguém pegar para você então.
   
— Isso também não é permitido. Eu recuei.
   
— Não quero atingir você quando não tem com que se defender — disse eu. — Que tal jogar meu bastão e brigarmos com as mãos?
   
— Um vampiro que abandona seu bastão é um tolo — disse Arra. — Se você jogar fora seu bastão, eu o enfio por sua garganta abaixo para você aprender, quando acabarmos a luta.
   
— Tudo bem! — disse eu, irritado. — Seja como você quer. — Parei de recuar, levantei meu bastão e o abaixei em cima dela.
   
Arra estava com o corpo dobrado para a frente, tinha um centro de gravidade limitado que dificultava sua queda — por isso consegui apontar o bastão para sua cabeça. Desferi o golpe com a ponta do bastão virado para o rosto dela. Arra evitou os dois primeiros golpes, mas o terceiro a atingiu no rosto. Não tirou sangue, mas deixou uma marca visível.
   
Arra recuava agora. Cedia terreno relutantemente, levantando o corpo para meus golpes mais fracos, que atingiram seus braços e as mãos, só recuando para evitar os mais fortes. Apesar do aviso que tinha feito a mim mesmo, fiquei confiante demais. Pensei que a tinha onde queria. Em vez de esperar e acabar com ela lentamente, fui para o golpe final e isso foi minha ruína.
   
Apontei a ponta do bastão para o lado da cabeça dela, procurando atingir a orelha. Foi um golpe casual, nem tão forte nem tão rápido como devia ser. Atingi a orelha, mas com um golpe fraco.
   
Antes que tivesse tempo de recuar para o próximo, as mãos de Arra entraram em ação.
   
Agarrou com a mão direita a ponta do meu bastão. Com a mão esquerda deu um soco no meu queixo. Socou outra vez e eu vi estrelas. Quando ela levou o braço para trás para um terceiro murro, reagi automaticamente e saí do seu alcance, então ela puxou com força e tirou o bastão da minha mão.
   
— Agora! — gritou ela triunfante, girando o bastão acima da cabeça. — Agora, quem está com a vantagem?
   
— Vá com calma, Arra — disse eu, nervoso, recuando como um louco. — Eu ofereci seu bastão de volta, lembra?
   
— E eu recusei — disse ela com desdém.
   
— Dê o bastão para ele, Arra — disse Kurda. — Não pode esperar que se defenda com as mãos nuas. Não é justo.
   
— O que você acha, garoto? — perguntou. — Deixo você pedir outro bastão, se quiser. — Mas, pelo tom da sua voz, ela não ia pensar grande coisa de mim.
   
Balancei a cabeça. Eu trocaria tudo que tinha por um bastão, mas não ia pedir favores especiais, não depois de Arra ter recusado.
   
— Tudo bem — disse eu. — Continuo a lutar como estou.
   
— Darren! — urrou Kurda. — Não seja idiota. Acabe a luta se não quer outro bastão. Você lutou bravamente e provou sua coragem.
   
— Não é nenhuma vergonha desistir agora — concordou Vanez. Meus olhos encontraram os de Arra, vi que ela esperava que eu desistisse, e parei.
   
— Não — disse eu. — Nada de desistir. Só desço destas barras se for derrubado. — Avancei, com o corpo inclinado para a frente, como Arra há pouco.
   
Arra piscou os olhos surpresa, depois levantou o bastão e se preparou para acabar a luta. Não demorou muito. Defendi o primeiro golpe com a mão esquerda, levei o segundo na barriga, abaixei e me livrei do terceiro, bati no bastão com a mão quando o quarto desceu. Mas fui apanhado em cheio na nuca pelo quinto. Caí de joelhos, atordoado. Ouvi o som de ar sendo expelido, depois a parte redonda do bastão atingiu o lado esquerdo do meu rosto e eu despenquei no chão.
   
Quando voltei a mim, estava olhando para o teto cercado de vampiros preocupados.
   
— Darren? — disse Kurda com preocupação na voz. — Você está bem?
   
— O que... aconteceu? — perguntei, ofegante.
   
— Ela derrubou você — disse ele. — Você esteve inconsciente por cinco ou seis minutos. Íamos pedir ajuda.
   
Sentei com uma careta de dor.
   
— Por que a sala está girando? — perguntei. Vanez riu e me ajudou a levantar.
   
— Ele vai ficar bem — disse o mestre dos jogos. — Uma pequena concussão nunca matou nenhum vampiro. Um bom dia de sono e ele estará bom como a noite.
   
— Quanto falta para chegarmos à Montanha do Vampiro? — perguntei com voz fraca.
   
— A pobre criança não sabe se está indo ou vindo! — disse Kurda, irritado, e começou a me levar embora dali.
   
— Espere! — gritei, minha cabeça clareando um pouco. Procurei Arra Barbatanas e a vi sentada numa das barras, passando creme no rosto machucado. Livrando-me das mãos de Kurda, fui quase cambaleando até a vampira e fiquei de pé tão firme quanto podia na frente dela.
   
— Sim? — perguntou ela, olhando desconfiada para mim. Estendi a mão e disse:
   
— Aperte.
   
Arra olhou para minha mão, depois para meus olhos ainda fora de foco.
   
— Uma boa luta não faz de você um guerreiro — disse.
   
— Aperte! — repeti, zangado.
   
— E se eu não apertar? — perguntou.
   
— Subo outra vez nas barras e luto com você até você apertar minha mão — rosnei.
   
Arra olhou para mim demoradamente, depois balançou a cabeça assentindo e apertou minha mão.
   
— Força para você, Darren Shan — disse ela rispidamente.
   
— Força — repeti com voz fraca, então desmaiei nos braços dela e só acordei na noite seguinte na minha rede.
 
   
CAPÍTULO DEZOITO
   
 
   
 
   
Duas noites depois do meu encontro com Arra Barbatanas, o Sr. Crepsley e eu fomos chamados à presença dos Príncipes Vampiros. Eu estava ainda dolorido da luta e o Sr. Crepsley me ajudou a vestir a roupa. Eu gemia cada vez que levantava os braços, que estavam cheios de manchas roxas dos golpes de Arra.
   
— Eu não posso acreditar que você foi tolo a ponto de desafiar Arra Barbatanas — disse o Sr. Crepsley, incrédulo. Ele caçoava de mim desde que soube da luta, mas eu sabia que, bem no fundo, estava orgulhoso. — Até eu hesitaria em lutar com ela nas barras.
   
— Acho que isso significa que sou mais corajoso do que você — desafiei.
   
— Estupidez e bravura não são a mesma coisa — censurou. — Você podia ter acabado gravemente ferido.
   
— Você fala como Kurda — disse eu, emburrado.
   
— Não concordo com os pontos de vista de Kurda sobre os modos de luta dos vampiros — ele é um pacifista, o que vai contra nossa natureza —, mas está certo quando diz que às vezes é melhor não lutar. Numa situação sem esperança e quando não há nada importante em jogo, só um tolo vai à luta.
   
— Mas não era uma situação desesperada! — exclamei. — Eu quase a venci!
   
O Sr. Crepsley sorriu.
   
— É impossível falar com você. Mas o mesmo se dá com muitos vampiros. É sinal de que está aprendendo. Agora, acabe de se vestir e trate de se fazer apresentável. Não devemos fazer os Príncipes esperarem.
   
O Salão dos Príncipes ficava no mais alto ponto interno da Montanha do Vampiro. Tinha só uma entrada, um túnel longo e largo guardado por um verdadeiro exército de Guardas da Montanha. Eu não tinha estado ali antes. Ninguém podia usar o túnel, a não ser que tivesse de tratar de alguma coisa no salão.
   
Os guardas vestidos de verde vigiavam cada passo nosso. Não era permitido entrar no Salão dos Príncipes com armas ou com qualquer coisa que pudesse ser usada como arma. Sapatos não eram permitidos — é muito fácil esconder uma pequena adaga na sola —, e fomos revistados da cabeça aos pés em três lugares diferentes do túnel. Os guardas passaram até pentes nas nossas cabeças para o caso de termos fios finos escondidos no cabelo!
   
— Por que toda a segurança? — murmurei para o Sr. Crepsley.
   
— Pensei que os Príncipes fossem respeitados e obedecidos por todos os vampiros.
   
— Eles são. Isto é mais por tradição do que por qualquer outra coisa.
   
No fim do túnel chegamos a uma enorme caverna com um estranho teto abaulado, branco e brilhante. Era diferente de tudo que eu já tinha visto — as paredes pulsavam como se estivessem vivas e não havia juntas ou rachaduras visíveis.
   
— O que é isso? — perguntei.
   
— O Salão dos Príncipes — disse o Sr. Crepsley.
   
— Do que é feito, rocha, mármore, ferro? O Sr. Crepsley deu de ombros.
   
— Ninguém sabe. — Levou-me para o domo — os únicos guardas naquele lado do túnel estavam agrupados em volta das portas que davam para o salão — e me mandou pôr as mãos nele.
   
— É quente — disse eu, surpreso. — E está pulsando! O que é?
   
— Há muito tempo o Salão dos Príncipes era como todos os outros — respondeu o Sr. Crepsley com seu modo indireto de sempre. — Então, uma noite, o Sr. Tino chegou e disse que tinha presentes para nós. Isso foi logo depois que os vampixiitas se separaram dos vampiros. Os “presentes” eram o domo — construído por seus Pequeninos, sem que os vampiros vissem — e a Pedra de Sangue. O domo e a pedra são artefatos mágicos. Eles...
   
Um dos guardas das portas nos chamou.
   
— Larten Crepsley! Darren Shan! — Apressamo-nos a atender o chamado. — Podem entrar agora — disse o guarda e bateu nas portas quatro vezes com uma lança comprida. As portas deslizaram para os lados — como portas eletrônicas — e nós entramos.
   
Embora não houvesse nenhum archote, o Salão dos Príncipes era claro como o dia, mais claro do que qualquer lugar da montanha. A luz vinha das paredes do domo, por meio desconhecido por todos, exceto pelo Sr. Tino. Longos bancos — como de igreja — estavam dispostos em círculos em volta do domo. Havia um grande espaço no centro com quatro tronos de madeira sobre uma plataforma. Três deles estavam ocupados por Príncipes Vampiros. O Sr. Crepsley tinha dito que pelo menos um Príncipe sempre faltava ao Conselho para o caso de alguma coisa acontecer aos outros. Não havia nada nas paredes, nem retratos, nem bandeiras. Também não havia
   
estátuas. Era um lugar para tratar de negócios, não para pompa ou cerimônia.
   
A maioria dos bancos estava ocupada. Vampiros comuns estavam atrás, as partes do meio eram reservadas para o pessoal da montanha, guardas e coisas assim. Os Generais Vampiros ocupavam os bancos da frente. O Sr. Crepsley e eu fomos para a terceira fila de bancos a contar da frente e nos sentamos entre Kurda Smahlt, Torvelinho e Harkat Mulds, que nos esperavam. Fiquei contente por ver o Pequenino outra vez e perguntei o que ele andava fazendo.
   
— Respondendo... perguntas — disse ele. — Dizendo mesma coisa... uma vez, outra e outra.
   
— Alguma parte da sua memória voltou? — perguntei.
   
— Não.
   
— Mas não foi por falta de tentar — riu Torvelinho, inclinandose para a frente para apertar meu ombro. — Temos praticamente torturado Harkat com perguntas, tentando fazer com que ele lembre. E ele não se queixou nem uma vez. No lugar dele, eu teria reclamado como doido havia muito tempo. Não o temos deixado nem dormir!
   
— Não preciso... muito sono — disse Harkat timidamente.
   
— Já se refez da sua luta com Arra? — perguntou Kurda. Antes que eu tivesse tempo de responder, Torvelinho disse:
   
— Ouvi falar nisso! Que loucura! O que você estava pensando?
   
Eu preferia enfrentar um poço cheio de escorpiões do que subir nas barras com Arra Barbatanas. Eu a vi fazer picadinho de vinte vampiros experientes numa noite.
   
— Na ocasião pareceu uma boa ideia — ri.
   
Torvelinho nos deixou para conversar com um grupo de Generais — os vampiros estavam sempre debatendo assuntos sérios no Salão dos Príncipes — e, enquanto esperávamos, o Sr. Crepsley me explicou um pouco mais sobre o domo.
   
— O domo é mágico. A única entrada é por aquele conjunto de portas. Nada pode penetrar suas paredes, nenhum instrumento, explosivo ou ácido. É o material mais duro conhecido pelos seres humanos e pelos vampiros.
   
— De onde veio? — perguntei.
   
— Não sabemos. Os Pequeninos trouxeram em carroças cobertas. Levaram meses para chegar até aqui em cima, uma camada de cada vez. Não nos foi permitido ver a montagem. Nossos melhores arquitetos os têm estudado muitas vezes, mas ninguém conseguiu descobrir o mistério até hoje.
   
“As portas só podem ser abertas por um Príncipe Vampiro”, continuou. “Eles podem abrir encostando a palma da mão diretamente nos painéis das portas ou apertando as mãos nos braços dos tronos.”
   
— Devem ser eletrônicas — disse eu. — Os painéis “lêem” suas impressões digitais, certo?
   
O Sr. Crepsley balançou a cabeça.
   
— O salão foi construído há séculos, muito antes de haver sequer a ideia de eletricidade na mente do homem. É operado por meios paranormais ou por uma tecnologia muito mais avançada do que qualquer coisa que conhecemos.
   
“Está vendo a pedra vermelha atrás dos Príncipes?”, perguntou. Estava num pedestal cinco metros atrás da plataforma, uma pedra oval, duas vezes do tamanho de uma bola de futebol. “Aquela é a Pedra de Sangue. É a chave não só do domo como também da longevidade da própria raça dos vampiros.”
   
— Long... o quê? — perguntei.
   
— Longevidade, quer dizer, vida longa.
   
— Como uma pedra pode ter alguma coisa a ver com uma vida longa? — perguntei, intrigado.
   
— A pedra serve para vários fins — disse ele. — Todos os vampiros, quando aceitos no rebanho, devem ficar na frente da Pedra e encostar as mãos nela. A pedra parece macia como uma bola de vidro, mas é superáspera ao toque. Faz sangrar as mãos e o sangue é absorvido pela pedra — daí o nome —, unindo o vampiro ao coletivo mental do clã para sempre.
   
— Coletivo mental! — repeti, desejando pela milésima vez, desde que conheci o Sr. Crepsley, que ele usasse palavras simples.
   
— Você sabe como os vampiros podem procurar mentalmente aqueles com os quais estão unidos?
   
— Sei.
   
— Bem, usando o método de triangulação, podemos também procurar e encontrar aqueles
com os quais não estamos unidos, por meio da pedra.
   
— Triangu... o quê? — gemi, exasperado.
   
— Digamos que você é um vampiro completo cujo sangue foi absorvido pela Pedra — disse ele. — Quando um vampiro dá seu sangue, ele dá também seu nome, pelo qual a pedra e outros vampiros o conhecerão daí por diante. Se eu quiser procurar você depois que se tiver tornado um vampiro, basta encostar as mãos na Pedra de Sangue e pensar no seu nome. Em segundos a pedra me permite localizá-lo com exatidão em qualquer lugar da Terra.
   
— Pode fazer isso mesmo que eu não queira ser encontrado? — perguntei.
   
— Sim. Mas não vai adiantar. Quando eu chegar aonde você estava quando fiz a busca, você já terá ido embora. Daí a necessidade da triangulação, que significa simplesmente que três pessoas são envolvidas. Se eu quiser encontrar você, posso entrar em contato com alguém a quem sou unido — Torvelinho, por exemplo — e transmitir mentalmente seu paradeiro para ele. Guiado por mim por intermédio da Pedra de Sangue, ele pode encontrar você.
   
Pensei nisso em silêncio por algum tempo. Era um sistema engenhoso, mas eu via alguns inconvenientes.
   
— Qualquer pessoa pode usar a Pedra de Sangue para encontrar um vampiro? — perguntei.
   
— Qualquer pessoa capaz de procurar mentalmente — disse o Sr. Crepsley.
   
— Mesmo um ser humano ou um vampixiita?
   
— Poucos seres humanos têm a mente suficientemente avançada para usar a pedra — disse ele —, mas os vampixiitas podem.
   
— Então a pedra é perigosa? — perguntei. — Se um vampixiita puser as mãos nela pode encontrar todos os vampiros, pelo menos os que ele sabe os nomes, e levar seus companheiros até eles?
   
O Sr. Crepsley sorriu tristemente.
   
— A sova que levou de Arra Barbatanas não afetou seu poder de raciocínio. Está certo. A pedra de Sangue seria o fim da raça dos vampiros se caísse em mãos erradas. Os vampixiitas poderiam caçar nós todos. Podem também encontrar aqueles cujos nomes não conhecem — a pedra permite localizar vampiros por localidade, bem como por nome, portanto eles poderiam descobrir todos os vampiros da Inglaterra ou dos Estados Unidos ou de qualquer outro lugar e
mandar os outros atrás deles. Por isso guardamos a pedra cuidadosamente e nunca a deixamos sair da segurança do domo.
   
— Não seria mais simples quebrar a pedra? — perguntei. Kurda, que ouvia nossa conversa, riu.
   
— Apresentei essa proposta aos Príncipes há várias décadas — disse ele. — A pedra pode resistir a instrumentos e explosivos normais, bem como as paredes do domo, mas isso não quer dizer que seja impossível nos livrar dela com segurança. “Joguem essa maldita coisa na cratera de um vulcão”, pedi, “ou nas profundezas do mar.” Eles nem quiseram ouvir falar nisso.
   
— Por que não? — perguntei.
   
— Por diversas razões — respondeu o Sr. Crepsley antes que Kurda pudesse dizer alguma coisa. — Em primeiro lugar, a pedra pode ser usada para localizar vampiros que estão desaparecidos ou com problemas, ou os loucos que estão soltos. É saudável saber que somos unidos ao clã por mais do que tradição, que sempre podemos confiar na ajuda se levamos uma boa vida e no castigo se nossa vida não for boa. A pedra nos mantém na linha.
   
“Em segundo lugar, a Pedra de Sangue é necessária para operar as portas do domo. Quando um vampiro se torna Príncipe, a pedra é uma parte vital da cerimônia. O vampiro forma um círculo em volta dela com dois outros Príncipes. Cada um deles usa uma das mãos para bombear sangue nele com a outra mão encostada na pedra. O sangue flui do velho
Príncipe para o novo, depois para a pedra e volta. No fim da cerimônia, o novo Príncipe pode controlar as portas do salão. Sem a pedra, ele seria Príncipe só de nome.
   
“Há uma terceira razão para não destruir a pedra. O Senhor dos vampixiitas”, disse sombriamente. “O mito diz que o Senhor dos Vampixiitas exterminará a raça dos vampiros da face da terra quando assumir o poder, mas através da Pedra de Sangue podemos, numa noite, viver outra vez.”
   
— Como é possível? — perguntei.
   
— Não sabemos — disse o Sr. Crepsley. — Mas essas foram as palavras do Sr. Tino e, uma vez que o poder da pedra é também dele, faz sentido acreditar. Agora mais do que nunca devemos proteger a pedra. A mensagem de Harkat sobre o Senhor dos Vampixiitas atingiu o coração e o espírito de muitos vampiros. Com a pedra, há esperança. Desfazer-se dela agora seria nos entregar ao medo.
   
— Pelas entranhas de Charna! — disse Kurda com desdém. — Não tenho tempo para esses velhos mitos. Devíamos nos desfazer da pedra, fechar o domo c construir outro Salão dos Príncipes. Além de tudo o mais, a pedra é um dos motivos pelos quais os vampixiitas não querem fazer um acordo conosco. Não querem ficar presos ao instrumento mágico do Sr. Tino, e quem pode culpá-los? Eles têm medo de se ligar à pedra. Nunca mais poderiam se separar do clã dos vampiros porque, por meio da pedra, poderíamos localizá-los e caçálos. Se nos desfizéssemos da pedra, eles poderiam voltar para nós e então os vampixiitas deixariam de existir, haveria só uma família de vampiros e a ameaça do Senhor dos Vampixiitas desapareceria.
   
— Isso quer dizer que você vai procurar destruir a pedra quando for Príncipe? — quis saber o Sr. Crepsley.
   
— Mencionarei a possibilidade — concordou Kurda. — É um assunto sensível e não espero que os Generais concordem com ele, mas com o tempo, à medida que as negociações entre nós e os vampixiitas se desenvolverem, espero que eles concordem com a minha opinião.
   
— Você deixou isso claro quando estava fazendo campanha para a eleição? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
Kurda se mexeu no banco, embaraçado.
   
— Bem, não, mas isso é política. Às vezes você precisa omitir algumas coisas. Eu não menti. Se alguém tivesse perguntado minha
   
opinião sobre a pedra, eu teria dito. Eles... simplesmente... não... perguntaram — concluiu com pouca convicção.
   
— Política! — bufou o Sr. Crepsley. — É um triste dia para os vampiros quando nossos Príncipes voluntariamente se deixam apanhar nas redes desprezíveis da política. — Empinando o nariz, ele deu as costas para Kurda e olhou para a frente, para a plataforma.
   
— Eu o irritei — murmurou Kurda para mim.
   
— Ele se irrita facilmente — sorri. Então perguntei se eu teria de me unir com a Pedra de Sangue.
   
— Provavelmente não, até ser um vampiro completo — disse Kurda. — Já foi permitido a meios-vampiros se unirem a ela, no passado, mas não em circunstâncias normais.
   
Eu ia perguntar mais sobre a misteriosa Pedra de Sangue e o domo, mas então um General muito sério bateu no chão da plataforma com um bastão pesado e disse meu nome e o do Sr. Crepsley.
   
Estava na hora de conhecer os Príncipes.
 
   
 CAPÍTULO DEZENOVE
   
 
   
 
   
Os três Príncipes Vampiros presentes eram Paz Celestial, Mika Ver Leth e Arqueiro. (O Príncipe ausente era Vancha March.)
   
Paz Celestial tinha barba longa e branca, cabelo branco despenteado, não tinha a orelha direita e era o mais velho vampiro vivo com oitocentos anos-Terra ou mais. Era reverenciado pelos outros não só por sua idade e posição, mas também por suas explorações quando era jovem — segundo as lendas, Paz Celestial estivera em toda parte e tinha feito de tudo. Muitas das histórias eram imaginárias — tinha navegado com Colombo para a América e introduzido o vampirismo no Novo Mundo, lutou ao lado de Joana D’Arc (aparentemente uma simpatizante do vampirismo) e inspirou o infame Drácula, de Bram Stoker. Mas isso não significava que as histórias não fossem verdadeiras — vampiros eram, por sua própria
existência, criaturas extraordinárias.
   
Mika Ver Leth era o mais jovem dos Príncipes Vampiros com “apenas” duzentos e setenta anos. Tinha cabelos negros brilhantes e olhos penetrantes, como os de um corvo, e se vestia todo de negro. Parecia até mais severo do que o Sr. Crepsley — sua testa era cheia de rugas, bem como os lados da boca — e tive a impressão de que ele raramente sorria, se é que sorria algumas vezes.
   
Arqueiro era um homem calvo e atarracado com longas tatuagens de flechas nos braços e nos lados da cabeça. Era um lutador destemido e seu ódio pelos vampixiitas era lendário. Fora casado com uma mulher humana antes de se tornar General, mas ela foi morta por um vampixiita que apareceu para lutar contra o Arqueiro. Ele voltou ao rebanho, sombrio e fechado, e treinou para ser General. Desde então tinha se devotado exclusivamente ao trabalho.
   
Os três Príncipes eram fortes e musculosos. Até o velho Paz Celestial dava a impressão de que era capaz de atirar um boi sobre os ombros só com uma das mãos.
   
— Saudações, Larten — disse Paz para o Sr. Crepsley, passando a mão na barba longa e olhando para o vampiro carinhosamente. — É bom ver você no Salão dos Príncipes. Pensei que nunca mais ia ver seu rosto.
   
— Eu prometi que voltaria — respondeu o Sr. Crepsley, inclinando-se na frente do Príncipe.
   
— Eu nunca duvidei — sorriu Paz. — Só não pensei que eu ainda estaria vivo para receber você. Já tenho muitos anos, amigo velho. Minhas noites estão numeradas.
   
— Você sobreviverá a nós todos — disse o Sr. Crepsley.
   
— Veremos — suspirou Paz. Olhou atentamente para mim quando o Sr. Crepsley se inclinava para os outros Príncipes. Quando o vampiro voltou para o meu lado, o velho Príncipe disse: — Este deve ser seu assistente, Darren Shan. Torvelinho fala muito bem dele.
   
— Ele tem bom sangue e um coração forte — disse o Sr. Crepsley. — Um ótimo assistente, que uma noite será um vampiro de primeira classe.
   
— Uma noite, sem dúvida! — bufou Mika Ver Leth, olhando para mim de um modo que não gostei. — Ele não passa de um garoto! Não é hora para admitir uma criança nas nossas fileiras. Onde você estava com a cabeça quando...
   
— Por favor, Mika — interrompeu Paz Celestial. — Não sejamos precipitados. Todos aqui conhecem o caráter de Larten Crepsley. Devemos tratá-lo com o respeito que ele merece. Não sei por que ele resolveu transformar em vampiro uma criança, mas tenho certeza de que ele pode explicar.
   
— Eu só acho que é loucura nestas noites e nesta época — resmungou Mika Ver Leth antes de se calar. Quando ele ficou quieto, Paz se voltou para mim e sorriu.
   
— Deve nos perdoar, Darren, se parecemos descorteses. Não estamos acostumados com crianças. Há muito tempo nenhuma nos é apresentada.
   
— Na verdade não sou uma criança — murmurei. — Há oito anos sou meio-vampiro. Não é minha culpa se meu corpo não acompanhou minha idade.
   
— Exatamente! — disse Mika Ver Leth secamente. — É culpa do vampiro que fez de você um vampiro. Ele...
   
— Mika! — interrompeu Paz. — Este vampiro de longa data e seu assistente vieram à nossa presença de boa-fé procurar nossa aprovação. Seja ela dada ou não, merecem ser ouvidos cortesmente, não desafiados na frente dos seus companheiros.
   
Mika se conteve, levantou-se e se inclinou para nós.
   
— Desculpem — disse ele com os dentes cerrados. — Falei fora da hora. Não farei isso outra vez.
   
Um murmúrio espalhou-se no salão. Pelo que consegui ouvir, concluí que não era comum um Príncipe pedir desculpas a um inferior, especialmente a alguém que não era mais General.
   
— Venha, Larten — disse Paz quando puseram cadeiras na frente deles para nós. — Sente-se e conte o que tem feito desde a última vez que nos encontramos.
   
Sentamo-nos e o Sr. Crepsley contou sua história. Contou aos Príncipes sua associação com o Circo dos Horrores, os lugares em que tinha estado, as pessoas que conheceu. Quando chegou à parte sobre Vampirado, pediu para falar com os Príncipes em particular. Contou a eles, em voz baixa, a história do vampixiita louco e de como nós o matamos. Eles ficaram abalados com a notícia.
   
— Isso nos preocupa — disse Paz como se estivesse pensando alto. — Se os vampixiitas descobrirem, podem usar isso como uma desculpa para começar uma guerra.
   
— Como podem fazer isso? — disse o Sr. Crepsley. — Não faço mais parte do clã.
   
— Se ficarem com muita raiva podem ignorar isso — disse Mika Ver Leth. — Se a história sobre o Senhor dos Vampixiitas for verdade, devemos agir cautelosamente no que se refere aos nossos primos de sangue.
   
— Porém — disse Arqueiro, contribuindo para a conversa pela primeira vez —, não acho que Larten tenha errado. Seria diferente se ele fosse um General, mas, como agente independente, não está sob as nossas leis. Se eu estivesse na sua posição, teria feito o mesmo. Agiria discretamente. Não acho que podemos culpá-lo por isso.
   
— Não — concordou Mika. Olhando para mim acrescentou: — Não por isso.
   
Resolvido o caso de Vampirado, voltamos às nossas cadeiras e falamos em voz alta para que todos pudessem ouvir.
   
— Agora — disse Paz Celestial com expressão grave —, está na hora de voltarmos ao caso do seu assistente. Nós todos sabemos que o mundo mudou muito nestes últimos séculos. Os seres humanos se protegem mais mutuamente e suas leis são mais estritas do que nunca, especialmente a respeito dos seus jovens. Por isso não fazemos mais vampiros crianças. Mesmo no passado, fazíamos poucos. Há noventa anos não acrescentamos uma criança às nossas fileiras. Diga-nos, Larten, por que resolveu quebrar a tradição recente.
   
O Sr. Crepslev pigarreou e olhou para os Príncipes, um depois do outro, até parar em Mika.
   
— Não tenho nenhuma razão válida — disse ele calmamente e o salão explodiu em gritos mal contidos e conversas apressadas e abafadas.
   
— Silêncio no salão! — gritou Paz, e todo o barulho cessou de repente. Ele olhou preocupado para nós. — Vamos, Larten, nada de jogos. Você não faria do menino um vampiro por puro capricho. Deve haver uma razão. Você por acaso matou seus pais, e resolveu que era seu dever tomar conta dele?
   
— Os pais dele estão vivos — disse o Sr. Crepsley.
   
— Os dois? — perguntou Mika agressivamente.
   
— Sim.
   
— Então estão à procura dele? — perguntou Paz.
   
— Não. Nós encenamos sua morte. Eles o cremaram. Pensam que está morto.
   
— Pelo menos isso você fez direito — murmurou Paz. — Mas por que fazer dele um vampiro, para começo de conversa? — O Sr. Crepsley não respondeu e ele se virou para mim: — Darren? Você sabe por que ele fez de você um vampiro?
   
Esperando tirar o vampiro da enrascada, eu disse:
   
— Eu descobri a verdade a respeito dele, portanto talvez em parte tenha sido para se proteger. Ele deve ter pensando que teria de me fazer seu assistente ou me matar.
   
— Essa é uma desculpa razoável — observou Paz.
   
— Mas não é a verdade — suspirou o Sr. Crepsley. — Eu nunca tive medo de ser delatado por Darren. Na verdade, a única razão pela qual ele descobriu a verdade a meu respeito foi porque eu tentei transformar em vampiro um amigo dele, um menino da sua idade.
   
O salão explodiu outra vez em controvérsia, e os Príncipes precisaram gritar durante vários minutos para que os vampiros se calassem. Quando finalmente foi feita ordem, Paz retomou o interrogatório, mais abalado do que nunca.
   
— Você tentou transformar em vampiro outro menino? O Sr. Crepsley assentiu, balançando a cabeça.
   
— Mas o sangue dele estava contaminado pelo mal, ele não seria um bom vampiro.
   
— Deixe ver se entendi — rosnou Mika. — Você tentou transformar um menino em vampiro, mas não conseguiu. O amigo descobriu e por isso você fez dele um vampiro no lugar do outro?
   
— Mais ou menos isso — concordou o Sr. Crepsley. — Eu também fiz dele um vampiro num impulso, sem revelar toda a verdade sobre os nossos costumes, o que foi imperdoável. Em minha defesa, acrescentarei que o observei durante muito tempo antes de fazer isso e me convenci da sua honestidade e sua força de caráter.
   
— O que o levou ao primeiro menino? O que tinha sangue ruim? — perguntou Paz.
   
— Ele sabia quem eu era. Tinha visto um retrato meu num livro antigo, feito havia muito tempo, quando eu usava o nome de Vur Horston. Ele pediu para ser meu assistente.
   
— Você não explicou tudo para ele? — perguntou Mika. — Não disse que não fazemos isso com crianças?
   
— Eu tentei mas... — O Sr. Crepsley balançou a cabeça, arrasado. — Era como se eu não pudesse me controlar. Eu sabia que era errado, mas assim mesmo teria feito, se não fosse pela má qualidade do seu sangue. Não posso explicar por quê, pois não entendo.
   
— Você tem de arranjar um argumento melhor do que esse — avisou-o Mika.
   
— Não posso — disse o Sr. Crepsley em voz baixa —, porque não tenho nenhum.
   
Ouvi uma tosse discreta atrás de nós e Torvelinho deu um passo à frente.
   
— Posso intervir a favor do meu amigo? — perguntou.
   
— Certamente — disse Paz. — Sua intervenção é bem-vinda, se puder esclarecer as coisas.
   
— Não sei se posso fazer isso — disse Torvelinho —, mas gostaria de observar que Darren é um garoto extraordinário. Ele fez a jornada à Montanha do Vampiro — o que é uma grande coisa para alguém da sua idade — e lutou com um urso envenenado pelo sangue de um vampixiita. Tenho certeza de que ouviram falar da luta com Arra Barbatanas algumas noites atrás.
   
— Sim, ouvimos — riu Paz baixinho.
   
— Ele é brilhante e bravo, inteligente e honesto. Acredito que será um bom vampiro. Tendo oportunidade, acredito que será ótimo.
   
É jovem, mas vampiros mais jovens do que ele foram admitidos nas nossas fileiras. Você tinha só dois anos quando se tornou vampiro, não é? — perguntou para Paz Celestial.
   
— Não se trata disso! — gritou Mika Ver Leth. — Este menino podia ser o próximo Khledon Lurt que não faria nenhuma diferença.
   
Fatos são fatos. Os vampiros não transformam mais crianças em vampiros. Seria estabelecer um precedente perigoso deixarmos isso passar sem tomar nenhuma providência.
   
— Mika tem razão — disse Arqueiro suavemente. — O assunto não é a coragem e a habilidade do menino. Larten agiu errado fazendo dele um vampiro e devemos resolver isso.
   
Paz assentiu, balançando a cabeça levemente.
   
— Eles dizem a verdade, Larten. Seria um erro ignorarmos isso. Você mesmo jamais toleraria essa quebra das regras se estivesse na nossa posição.
   
— Eu sei — suspirou o Sr. Crepsley. — Não estou pedindo perdão, apenas consideração. E peço que nenhuma represália seja feita contra Darren. A culpa foi minha e só eu devo ser punido.
   
— Não entendo de punição — disse Mika embaraçado. — Não pretendo fazer de você um exemplo. Arrastar seu nome na lama é a última coisa que eu quero.
   
— Nenhum de nós quer isso — concordou Arqueiro. — Mas que escolha temos? Ele errou, devemos tratar desse erro.
   
— Mas devemos tratar misericordiosamente — disse Paz.
   
— Não peço misericórdia — disse o Sr. Crepsley com orgulho.
   
— Não sou um jovem vampiro que agiu por ignorância. Não espero nenhum tratamento especial. Se resolverem que devo ser executado, aceitarei o veredicto sem me queixar. Se...
   
— Não podem matar você por minha causa! — exclamei.
   
— ... se decidirem que devo ser testado — continuou, ignorando minhas palavras —, estou pronto para qualquer desafio que escolherem e morrerei assim, se for preciso.
   
— Não vai haver nenhum desafio — disse Paz. — Reservamos desafios para aqueles que não se comportaram bem na luta. Digo mais uma vez: sua reputação não está em jogo.
   
— Talvez... — disse Arqueiro hesitante, depois se calou. Alguns segundos depois, continuou: — Acho que descobri. Ouvindo falar em desafios, tive uma ideia. Há um meio de resolver a questão sem matar nosso velho amigo nem macular sua reputação. — Apontando para mim ele disse friamente: — Vamos determinar um desafio para o menino.
 
   
 CAPÍTULO VINTE
   
 
   
 
   
Fez-se um longo e tenso silêncio.
   
— Sim — finalmente murmurou Paz Celestial. — Um desafio para o menino.
   
— Eu disse que não quero Darren envolvido nisso! — objetou o Sr. Crepsley.
   
— Não — contradisse-o Mika. — Você disse que não queria que ele fosse punido. Muito bem, ele não será. Um desafio não é uma punição.
   
— É justo, Larten — concordou Paz. — Se o menino for bem na prova, sua decisão de fazer dele um vampiro será aceita e não se fala mais nisso.
   
— E a desonra será dele se falhar — acrescentou Arqueiro. O Sr. Crepsley passou a mão na longa cicatriz do rosto.
   
— É uma solução honesta — disse pensativo —, mas a decisão é de Darren, não minha. Não o obrigarei a aceitar o desafio. — Virou para mim: — Está preparado para provar ao clã seu valor e limpar nossos nomes?
   
Eu remexi na cadeira, pouco à vontade.
   
— Humm... de que tipo de desafio estamos falando exatamente?
   
— perguntei.
   
— Uma boa pergunta — disse Paz. — Não seria justo fazê-lo lutar com um dos nossos guerreiros, um meio-vampiro não é páreo para um General.
   
— E uma justa tomaria muito tempo — disse Arqueiro.
   
— Então só restam as Provas — murmurou Mika.
   
— Não! — alguém gritou atrás de nós. Olhei para trás e vi Kurda caminhando para a plataforma com o rosto muito vermelho.
   
“Não vou admitir isso!”, disse ele, furioso. “O menino não está pronto para as Provas. Se insistem em testá-lo, esperem até que fique mais velho.”
   
— Não vai haver espera — rosnou Mika, levantando-se e dando alguns passos em direção a Kurda. — Nós somos a autoridade aqui, Kurda Smahlt. Você ainda não é um Príncipe, portanto não aja como se fosse.
   
Kurda parou e olhou furioso para Mika, então, dobrando um joelho, inclinou a cabeça.
   
— Peço desculpas por falar fora de hora, senhor.
   
— Desculpas aceitas — resmungou Mika, voltando à sua cadeira.
   
— Tenho permissão dos Príncipes para falar? — perguntou Kurda.
   
Paz consultou Mika, que deu de ombros.
   
— Tem — disse ele.
   
— As Provas de Iniciação são para vampiros experientes — disse Kurda. — Não foram designadas para crianças. Não seria justo submeter o menino a elas.
   
— A vida nunca foi justa para os vampiros — disse o Sr. Crepsley. — Mas pode ser correta. Não me agrada a ideia de submeter Darren aos julgamentos, mas é uma decisão
correta e eu a aceitarei se ele concordar.
   
— Com licença — disse eu. — Mas o que são as provas? Paz sorriu bondosamente.
   
— As Provas de Iniciação são para vampiros que desejam ser Generais — explicou.
   
— O que terei de fazer?
   
— Realizar cinco atos de coragem física — disse ele. — As provas são escolhidas ao acaso e diferentes para cada vampiro. Uma consiste em mergulhar ao fundo de um lago e apanhar um medalhão. Em outra, você deve se desviar de grandes pedras que caem. Em outra, deve atravessar uma sala praticamente em chamas. Algumas provas são mais difíceis do que outras, mas nenhuma é fácil. O risco é grande e, embora a maioria dos vampiros sobreviva, a morte por acidente já aconteceu.
   
— Você não deve concordar com isso, Darren — protestou Kurda. — As provas são para vampiros completos. Você não é suficientemente forte, rápido ou experiente. Estará assinando sua sentença de morte se disser sim.
   
— Eu discordo — disse o Sr. Crepsley. — Darren é capaz de passar nas provas. Não vai ser fácil, e ele pode ter de lutar muito, mas eu não permitiria que ele aceitasse se não tivesse
certeza de que é capaz.
   
— Vamos votar — disse Mika. — Eu voto nas Provas. Arqueiro?
   
— Eu concordo. As provas.
   
— Paz?
   
O mais velho vampiro vivo balançou a cabeça, inseguro.
   
— Kurda tem razão quando diz que as provas não são para crianças. Confio no seu discernimento, Larten, mas temo que seu otimismo seja exagerado.
   
— Pode sugerir outra coisa? — disse Mika, agressivamente.
   
— Não, mas... — Paz suspirou profundamente. — O que os Generais acham? — perguntou aos que estavam no salão. — Ouvimos Kurda e Mika. Alguém quer acrescentar
alguma coisa?
   
Os Generais confabularam, e então uma figura familiar se levantou e tossiu discretamente — Arra Barbatanas.
   
— Eu respeito Darren Shan — disse. — Apertei a mão dele e os que me conhecem sabem o que isso significa para mim. Acredito em Torvelinho e Larten Crepsley quando dizem que ele será uma aquisição valiosa para nossas fileiras.
   
“Mas também concordo com Mika Ver Leth. Darren deve provar seu valor. Nós todos passamos por essas provas. Elas nos ajudaram a sermos o que somos. Como mulher, as probabilidades estavam contra mim, mas eu as superei e conquistei meu lugar neste salão como igual. Não deve haver exceção. Um vampiro incapaz de se impor não tem valor para nós. Não temos lugar para crianças que precisam ser cuidadas c levadas para seus caixões ao nascer do dia.
   
“Dito isso”, concluiu, “não acho que Darren vá nos desapontar. Acredito que ele passará nas provas e mostrará o próprio valor. Tenho a maior confiança nele.” Sorriu para mim, depois olhou para Kurda: “E, aos que dizem o contrário, aos que o enrolam em cobertores, não devemos dar atenção. Negar a Darren o direito às provas seria uma vergonha para ele.”
   
— Nobres palavras — disse Kurda com sarcasmo. — Vai repetir no funeral dele?
   
— Melhor morrer com orgulho do que viver com vergonha — respondeu Arra.
   
Kurda praguejou em voz baixa.
   
— O que acha, Darren? — perguntou. — Você enfrentará a morte para provar seu valor para esses tolos?
   
— Não — disse e vi a expressão de dor no rosto do Sr. Crepsley.
   
— Mas enfrentarei a morte para provar meu valor para mim mesmo — acrescentei. Quando o vampiro com a capa vermelha ouviu isso, sorriu com orgulho e ergueu o punho fechado numa saudação.
   
— Vamos consultar o salão — disse Paz. — Quantos acham que Darren deve enfrentar as Provas de Iniciação? — Todos os braços se levantaram. Kurda virou para o lado, revoltado. — Darren, está disposto a prosseguir?
   
Ergui os olhos para o Sr. Crepsley e fiz sinal para ele se abaixar. Num murmurio perguntei o que aconteceria se eu dissesse não.
   
— Você cairia em desgraça e seria mandado embora da Montanha do Vampiro debaixo de vergonha — disse ele solenemente.
   
— Você também cairia em desgraça? — perguntei, sabendo o quanto seu bom nome significava para ele.
   
O Sr. Crepsley suspirou.
   
— Aos olhos dos Príncipes, não, mas a meus olhos, sim. Tendo escolhido fazer de você um vampiro, sinto que qualquer vergonha que recaia sobre você recai também sobre mim.
   
Pensei cuidadosamente no assunto. Tinha aprendido muito sobre o Sr. Crepsley, o que ele pensava e como vivia, durante os oito anos que servi como seu assistente.
   
— Você não suportaria essa vergonha, certo? — perguntei. Sua expressão abrandou.
   
— Não — disse ele em voz baixa.
   
— Você ia sair à procura da morte. Caçar animais selvagens, lutar contra vampixiitas e se esforçar ao máximo até que um deles o matasse?
   
— Alguma coisa parecida — concordou com uma rápida inclinação da cabeça.
   
Eu não podia deixar que isso acontecesse. Há seis anos, quando Vampirado, o vampixiita louco, raptou Ofídio, o menino-cobra, o Sr. Crepsley ofereceu trocar sua vida pela dele. Ele faria o mesmo por mim se eu caísse nas mãos do assassino. Eu não gostei das tais provas, mas, se me submeter a elas significava que o Sr. Crepsley podia continuar a viver sem sentir vergonha, era meu dever para com ele enfrentar a linha de fogo.
   
Olhando para os Príncipes, fiquei de pé e disse com convicção:
   
— Aceito as provas.
   
— Então está decidido — sorriu Paz Celestial, aprovando. — Volte amanhã e escolheremos a primeira prova. Pode ir descansar agora.
   
Esse foi o fim do nosso encontro. Saí do salão com Torvelinho, Harkat e Kurda. O Sr. Crepsley ficou para discutir negócios com os Príncipes. Acho que tinham a ver com o Sr. Tino, a mensagem de Harkat e o vampixiita e o vampiro morto que encontramos no nosso caminho para a montanha.
   
— Estou feliz... por ir embora... finalmente — disse Harkat quando voltávamos para os salões. — Eu estava... ficando entediado com... o mesmo... cenário.
   
Sorri, depois olhei preocupado para Torvelinho.
   
— Essas provas são muito difíceis? — perguntei.
   
— Muito. — Suspirou.
   
— Tão duras quanto as paredes do Salão dos Príncipes — resmungou Kurda.
   
— Não são tanto assim — disse Torvelinho. — Não exagere os perigos, Kurda, vai assustar Darren.
   
— É a última coisa que quero fazer — disse Kurda, sorrindo encorajadoramente para mim. — Mas as provas são para vampiros completos. Passei seis anos me preparando para elas, como a maioria dos vampiros, e assim mesmo passei por pouco.
   
— Darren vai conseguir — Torvelinho insistiu com dúvida mal disfarçada na voz.
   
— Além disso — ri, tentando animar Kurda —, posso sempre desistir se achar que é demais para mim.
   
Kurda olhou sério para mim.
   
— Você não estava ouvindo? Não compreendeu?
   
— Compreendi o quê? — perguntei.
   
— Ninguém desiste das provas — disse Torvelinho. — Você pode não passar, mas não pode desistir, os Generais não permitem.
   
— Então eu não passo — dei de ombros. — Jogo a toalha se as coisas ficarem pretas, finjo que torci o tornozelo ou coisa assim.
   
— Ele não compreende! — gemeu Torvelinho. — Devíamos ter explicado tudo antes de deixar que ele concordasse. Agora ele deu a palavra, portanto não pode voltar atrás. Sangue negro de Harnon Oan!
   
— O que eu não compreendo? — perguntei, confuso.
   
— Falhar nas provas significa só uma coisa — morte! — disse Kurda sombriamente. Olhei para ele completamente mudo. — A maior arte dos que falham é morrer tentando. Mas, se você falhar e não morrer, será levado para o Salão da Morte, amarrado numa gaiola, levado para cima do poço e... — engoliu em seco, desviou os olhos e terminou num murmúrio terrível — ...deixado cair em cima das estacas até morrer!

 

 

                                                                                                    Darren Shan

 

 

 

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