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A MONTANHA MÁGICA - P.3 / Thomas Mann
A MONTANHA MÁGICA - P.3 / Thomas Mann

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MONTANHA MÁGICA

Terceira Parte

 

         Neve

Cinco vezes por dia manifestava-se em torno das sete mesas o descontentamento unânime com o tempo que o inverno ia oferecendo esse ano. Julgavam que ele não se desempenhava senão insuficientemente dos deveres de um inverno alpino, que estava longe de proporcionar os recursos meteorológicos aos quais a região devia a sua fama, na medida garantida pelo prospecto e na intensidade a que os veteranos estavam acostumados, e que os novatos haviam imaginado encontrar. Registrava-se um grave déficit de sol, de radiação solar, esse importante fator do tratamento, e sem o concurso do qual a cura indubitavelmente seria retardada... Pensasse o que pensasse o Sr. Settembrini quanto à sinceridade com que os hóspedes da montanha se empenhavam em recuperar a saúde e em regressar da “pátria” à planície – em todo caso reclamavam eles os seus direitos, reivindicavam o que se lhes devia pelo seu bom dinheiro ou por aquele com que seus pais ou seus maridos pagavam a sua estadia, e não cessavam de resmungar nas suas conversas à mesa, no elevador e no vestíbulo. Também a direção geral demonstrou estar plenamente inteirada da sua obrigação de remediar a falta e de indenizar os pensionistas. Foi adquirido um novo aparelho de “sol artificial”, porque os dois que o sanatório já possuía não bastavam para corresponder às necessidades dos pensionistas desejosos de bronzear a pele pelos raios ultravioleta, o que favorecia muito as garotas e as mulheres moças e dava ao mundo masculino, apesar da sua vida horizontal, a aparência de magníficos desportistas e conquistadores. E essa aparência trazia frutos reais: as mulheres, embora estivessem perfeitamente a par da origem técnica e cosmética dessa virilidade, eram bastante tolas ou matreiras, bastante ávidas de miragens sensuais, para deixar-se embriagar por essa ilusão. – Meu Deus! – disse a Srª. Schönfeld, uma enferma ruiva, de olhos avermelhados, procedente de Berlim, quando, certa noite, encontrou no vestíbulo um cavalheiro de pernas compridas e peito encovado, que no seu cartão de visitas se apresentava como “aviateur diplomé et enseigne de la marine allemande”, fora submetido ao pneumotórax, vestia o smoking para o almoço e tirava-o para o jantar, afirmando que o regulamento da marinha o prescrevia assim. – Meu Deus! – repetiu ela, enquanto contemplava o enseigne com os olhos cúpidos. – Como ele está tostado pelos raios ultravioleta! Que maravilha! Parece um caçador de águias esse diabo!

– Cuidado, ondina! – murmurou ele ao seu ouvido, no elevador, e ela arrepiou-se toda. – Você me pagará seus olhares sedutores! – E pelas sacadas, contornando as divisões de vidro, o diabo caçador de águias foi unir-se à ondina...

Contudo, faltava muito para que o sol artificial fosse considerado compensação satisfatória do saldo devedor de genuína luz solar que exibia o balanço desse ano. Dois ou três dias de sol puro por mês – dias que brilhavam, na verdade, sobremodo esplêndidos, com um profundíssimo azul de veludo atrás dos cumes alvos, com uma cintilação de diamantes, e com uma deliciosa ardência na nuca e na face dos homens, dias livres do confuso cinzento das brumas e dos véus espessos – dois ou três dias assim, no curso de semanas inteiras, eram muito pouco para a alma de pessoas cujo destino justificava exigências excepcionais em matéria de consolo, e que intimamente insistiam no cumprimento de um pacto que lhes assegurava, em troca da renúncia aos prazeres e às atribuições da humanidade dos países planos, uma existência inerte, sem dúvida, mas sumamente fácil e divertida, despreocupada até a abolição do tempo e favorecida sob todos os aspectos. Pouco adiantava que o conselheiro lhes chamasse à memória que, mesmo sob essas circunstâncias, a vida no Berghof estava longe de se parecer com um calabouço ou uma mina siberiana, e elogiasse o ar da região, tão leve e tão fino, semelhante ao éter vazio do universo, pobre em acréscimos terrestres, em elementos bons ou maus, esse ar que até na ausência do sol levava enormes vantagens sobre a fumaceira e as emanações da planície. Apesar disso, generalizavam-se o mau humor e os protestos. Ameaças de partidas “em falso” tornavam-se comuns, e acontecia mesmo que se realizassem, apesar de haver exemplos como o bem recente da melancólica volta da Srª. Salomon, cujo caso a princípio não era grave, embora demorado, mas que em conseqüência da estadia não autorizada na úmida e ventosa Amsterdam transformara-se em incurável...

Em lugar do sol, porém, veio a neve, enormes quantidades de neve, uma abundância tamanha como Hans Castorp nunca vira em toda a sua vida. O inverno anterior não deixara realmente nada a desejar a esse respeito; mas a sua produção fora exígua em comparação com a do ano em curso. O que este oferecia era monstruoso, desmesurado, e fazia a alma consciente da natureza excêntrica e aventureira dessa região. Nevava dia e noite, ora neve fininha, ora torvelinhos densos; caía neve sem cessar. Os poucos caminhos que estavam sendo mantidos em estado praticável pareciam desfiladeiros, com muralhas de neve mais altas do que um homem de ambos os lados. Exibiam superfícies lisas de alabastro, agradáveis à vista no seu esplendor granuloso e cristalino, e que serviam aos hóspedes da montanha para rabiscos, desenhos, e para transmissão de toda espécie de recados, brincadeiras e motejos. No entanto, mesmo entre essas muralhas caminhava-se sobre uma camada de neve bastante elevada, por profundas que fossem as escavações. Isso se notava nas partes fofas do solo e nos buracos em que o pé subitamente afundava, às vezes até o joelho. Era preciso andar com muito cuidado, para não quebrar, de repente, uma perna. Os bancos haviam desaparecido, submersos. Algum pedaço do espaldar emergia aqui ou ali da sepultura branca. Lá embaixo, na aldeia, o nível das ruas modificara-se tão estranhamente que as lojas tinham baixado do rés-do-chão ao subsolo, que se alcançava descendo da calçada, por degraus talhados na neve.

E continuava nevando sobre as massas já amontoadas, todos os dias, com a neve caindo mansinha e com um frio moderado de dez a quinze graus abaixo de zero, que não chegava a congelar a medula da gente. Sentia-se pouco esse frio. Era como se não se registrassem mais dois ou cinco graus, uma vez que a calmaria e a secura do ar não permitiam que o frio cortasse. Pela manhã reinava muita obscuridade. Tomava-se o café sob o luar artificial dos lustres que pendiam do teto da sala com os arcos alegremente coloridos das abóbadas. Lá fora estendia-se o vácuo sombrio. O mundo estava embrulhado num algodão alvacento, que se comprimia de encontro às vidraças, e totalmente oculto pela neve e pela cerração. Desaparecera a cordilheira. O máximo que se divisava, de tempos em tempos, eram algumas das coníferas mais próximas; erguiam-se carregadas de neve e rapidamente se perdiam na bruma. De vez em quando um abeto, agitando-se, desembaraçava-se do excesso de carga e despejava uma poeira branca no ambiente gris. Pelas dez horas, o sol surgia por cima da montanha, qual uma fumarada vagamente luzente; era como se tencionasse dar uma vida débil e fantasmagórica, um tênue reflexo de realidade, à paisagem anulada e irreconhecível. Mas tudo permanecia diluído numa espectral delicadeza e palidez, sem contornos que os olhos pudessem traçar com segurança. As linhas dos picos confundiam-se, dissolviam-se na névoa, desapareciam na bruma. Os lençóis de neve, iluminados por uma luz lívida, estendendo-se uns ao lado e acima dos outros, guiavam o olhar ao nada. Às vezes, uma nuvem irradiada, fumacenta, pairava por muito tempo diante de um paredão rochoso, sem modificar a sua forma.

Por volta do meio-dia, o sol, penetrando parcialmente a neblina, costumava fazer um esforço de converter a bruma em azul. A tentativa, entretanto, ficava longe de se transformar em realidade. Mas havia momentos em que se vislumbravam traços do azul celeste, e a luz escassa bastava para fazer cintilar ao longe com reflexos diamantinos a paisagem estranhamente desfigurada pela aventura da neve. A essa hora, geralmente, cessava a nevada, como para permitir uma visão de conjunto dos resultados obtidos. Os raros e esparsos dias de sol pareciam servir à mesma finalidade. Descansavam então os torvelinhos, e o repentino calor celestial procurava derreter a superfície deliciosamente pura das massas de neve recém-caída. O aspecto do mundo era feérico, infantil e burlesco. Os espessos e macios almofadões que jaziam, como que afofados, sobre os galhos das árvores; as corcovas do solo, sob as quais se escondiam arbustos rasteiros ou rochas salientes; a aparência agachada, submersa, grotescamente mascarada, da paisagem – tudo isso originava um “ridículo” mundo de gnomos, que parecia ter saído de um livro de contos de fadas. Mas, ao passo que o cenário imediato, através do qual as pessoas se movimentavam laboriosamente, despertava idéias fantásticas e picarescas, eram de magnificência e de santidade as sensações que inspirava o fundo longínquo, com a alterosa estatuária dos Alpes envoltos em neve.

De tarde, das duas às quatro, Hans Castorp achava-se estendido no seu compartimento da sacada, e muito bem agasalhado, com a cabeça apoiada no espaldar nem baixo demais nem excessivamente alto da excelente espreguiçadeira, deixava os olhos vagar, por sobre o parapeito almofadado, em direção aos bosques e às montanhas. A plantação de pinheiros, verde-negra e carregada de neve, escalava as encostas, e entre as árvores o solo estava em toda parte coberto de neve, que se apresentava fofa como um coxim. Mais para cima levantava-se a serra rochosa, de um cinza esbranquiçado, com imensas áreas de neve, interrompidas aqui e ali por proeminentes penedos de cor mais escura, e com as cristas delicadamente veladas. Nevava silenciosamente. O quadro ia-se tornando mais e mais borrado. O olhar, perdendo-se num vazio suave, passava facilmente para o cochilo. Um estremecimento acompanhava o instante da transição, mas depois não podia haver sono mais puro do que esse em meio ao frio glacial, sono sem sonhos, não afetado por qualquer reminiscência do peso da vida orgânica, uma vez que a respiração do ar rarefeito, inconsistente e inodoro, não era mais difícil para o corpo vivo do que a não-respiração para o morto. Na hora do despertar, a cordilheira sumira por completo atrás da bruma nevosa, e só por alguns momentos apontavam certos fragmentos dela, um pico aqui, uma rocha saliente ali, que logo tornavam a ocultar-se. Esse jogo silencioso de espectros era sumamente divertido. Precisava-se muita atenção para acompanhar todas as fases dessa fantasmagoria de véus. Bravio e grandioso, desprendendo-se da cerração, exibia-se um grupo de penhascos, cujos cumes e bases permaneciam invisíveis; mas o olhar que os abandonasse por um minuto apenas já não os tornaria a encontrar.

De quando em quando desencadeavam-se tempestades de neve que impossibilitavam absolutamente a permanência na sacada, porque o torvelinho branco, invadindo o compartimento em grandes quantidades, cobria tudo, tanto o chão como os móveis, com uma camada espessa. Sim, havia até tempestades nesse vale alto, cercado de montanhas. Tumultuava então a atmosfera inconsistente; os flocos pululavam nela com tamanha abundância que nada se enxergava a um passo de distância. Rajadas de um vigor sufocante imprimiam à neve um movimento selvagem, flutuante, oblíquo, arrastando-a de baixo para cima e fazendo-a remoinhar numa dança louca. Isso já não era nevada, era um caos de trevas alvas, uma monstruosidade, a extravagância fenomenal de uma região distante da zona temperada, onde somente os tentilhões brancos que de repente apareciam em enormes bandos eram capazes de sentir-se em casa e de orientar-se.

Não obstante, Hans Castorp amava aquela vida na neve. Achava-a, sob diversos aspectos, muito parecida com a vida à beira-mar. A monotonia primitiva da natureza era comum aos dois ambientes. A neve, aquele pó de neve, profundo, fofo, imaculado, desempenhava ali o mesmo papel que lá embaixo cabia à areia de brancura amarelada. O conluio com uma e outra era igualmente limpo. O pó seco e frio era sacudido dos sapatos e das roupas, como na planície os pulverizados detritos de conchas e pedras, oriundos do fundo do mar, sem que deixasse nenhum vestígio. Caminhar pela neve era laborioso, tal e qual um passeio pelas dunas, a não ser que as superfícies derretidas de dia pelo ardor do sol tivessem endurecido em virtude do frio da noite. Então se andava ali mais ligeiro e mais agradavelmente do que sobre um assoalho, com a mesma facilidade e o mesmo prazer que sente quem passeia sobre a areia lisa, firme, úmida e elástica à beira-mar.

Esse ano, porém, trouxera consigo nevadas e quantidades de neve depositada que restringiam fortemente as possibilidades de exercícios ao ar livre, para todos, exceção feita nos esquiadores. Mourejavam os arados limpa-neves, mas só a muito custo conseguiam manter as veredas mais freqüentadas e a rua principal de Davos num estado de precária praticabilidade. Os poucos caminhos que continuavam abertos, e rapidamente acabavam em zonas intransitáveis, estavam abarrotados de pessoas sadias ou enfermas, nativas ou pertencentes à sociedade internacional dos hotéis. As pernas dos pedestres eram atropeladas pelos trenós que, gingando e jogando, precipitavam-se encosta abaixo, guiados por homens e mulheres que lançavam gritos de advertência, cujo tom patenteava o quanto essa gente, no seu veículo infantil, estava compenetrada da importância das suas atividades. Chegados embaixo, logo voltavam a subir, arrastando atrás de si, numa corda, o seu brinquedo da moda.

Hans Castorp estava mais do que farto desse tipo de passeio. Tinha dois desejos, entre os quais o mais forte era ficar a sós com seus pensamentos e sonhos. Para esse fim, o seu compartimento de sacada poderia bastar-lhe, embora de um modo superficial. O outro desejo, porém, que acompanhava o primeiro, fazia-o anelar vivamente um contato mais íntimo e mais livre com as montanhas assoladas pela neve, a qual o jovem começara a querer bem. Mas esse desejo era irrealizável, enquanto o peito que o abrigava pertencesse a um pedestre desprovido de asas e de instrumentos. Pois imediatamente mergulharia até o pescoço no elemento branco, se tentasse avançar além dos caminhos habituais, abertos com a pá, e cujo fim se alcançava depressa em toda parte.

Assim, aconteceu, um belo dia desse segundo inverno que Hans Castorp passava ali em cima, que o jovem decidiu comprar um par de esquis e aprender a servir-se deles, na medida que o exigiam as suas necessidades reais. Não era desportista; nunca o fora, por falta de uma mentalidade preocupada com a educação física, e tampouco fingia sê-lo, à maneira de certos pensionistas do Berghof que, para corresponder à moda e ao espírito do lugar, fantasiavam-se excentricamente. Sobretudo as mulheres faziam isso; Hermine Kleefeld, por exemplo, que, embora a respiração insuficiente lhe tingisse de um constante azul a ponta do nariz e os lábios, gostava de aparecer, à hora do lanche, trajando calças de lã, e depois da refeição costumava refestelar-se assim numa das poltronas de vime do vestíbulo, abrindo as pernas de modo bastante inconveniente. Se Hans Castorp tivesse solicitado a autorização do conselheiro para o seu extravagante intento, decerto teria recebido uma resposta negativa. Atividades desportivas estavam rigorosamente proibidas à comunidade de enfermos, tanto no Berghof como em outros lugares, nos estabelecimentos do mesmo gênero. Pois aquela mesma atmosfera que aparentemente era aspirada com muita facilidade exigia dos músculos cardíacos esforços violentos, e no que dizia respeito à pessoa de Hans Castorp, continuava em pleno vigor a sua atilada frase sobre “o hábito de não se habituar”. A tendência febril que Radamanto atribuía a uma mancha úmida persistia obstinadamente. Não fosse ela, que é que Hans Castorp ia fazer ali em cima? Seu desejo e seu projeto eram, portanto, incoerentes e ilícitos. Mas convém procurar compreendê-lo. Hans Castorp não estava aguilhoado pela ambição de igualar-se aos almofadinhas do ar livre e aos pseudodesportistas que, se a moda o mandasse assim, jogariam cartas numa sala abafada com o mesmo zelo ardoroso. Sentia-se estreitamente ligado a uma outra comunidade, menos livre do que a pequena comunidade dos turistas. Sob um ponto de vista mais amplo e mais novo, devido a certo senso de dignidade, que o distanciava dos demais, e a consciência das suas obrigações, que lhe restringia os planos, tinha a impressão de que não lhe cabia brincar nas alturas como aquela gente e rolar pela neve feito um louco. Não tencionava realizar escapadas; propunha-se proceder com moderação, e Radamanto bem poderia permitir-lhe o que desejava fazer. Mas Hans Castorp previa que o médico, em nome do regulamento do sanatório, não deixaria de vetar a realização do intento, e por isso decidiu agir à revelia dele. Numa oportunidade, comunicou o seu projeto ao Sr. Settembrini. Este quase o abraçou de tanta alegria. – Sim, senhor! Claro! Faça isso, engenheiro, por amor de Deus! Não consulte ninguém e faça-o. Foi o anjo da guarda quem lhe deu essa idéia. Faça-o imediatamente, antes de perder a vontade saudável! Irei com o senhor, vou acompanhá-lo até a loja, e juntos adquiriremos sem demora esses abençoados utensílios! Gostaria até de acompanhá-lo através das montanhas, de correr a seu lado, com os esquis alados nos pés, como Mercúrio, mas não me é permitido... Ora, permitido! Se apenas se tratasse da “permissão”, pouco me importaria, mas não posso, porque sou um homem perdido. Mas o senhor... Isso não lhe fará mal nenhum, absolutamente, desde que se mostre prudente e não abuse. Tolice, mesmo que lhe fizesse um pouquinho de mal, seria ainda o seu anjo da guarda quem... Não quero dizer mais nada. Que plano excelente! Encontra-se aqui faz dois anos e ainda é capaz de ter idéias assim! Sim, senhor, sua natureza íntima é boa. Não temos motivos para desespero. Bravos, bravos! O senhor pregará uma peça ao príncipe das trevas. Compre os esquis e mande-os para minha casa, ou para Lukacek, ou para o merceeiro que mora embaixo. Ali pode buscá-los, quando quiser exercitar-se e deslizar sobre a neve...

E assim foi feito. Sob os olhos do Sr. Settembrini, que se fingia de crítico perito, embora nada entendesse de esportes, Hans Castorp adquiriu, numa loja especializada da rua principal, um par de bonitos esquis, de boa madeira de freixo, lustrados com verniz castanho-claro e providos de magníficas correias e de pontas levantadas. Também comprou os necessários bastões de pontas de ferro e munidos de pequenas rodas, e fez questão de levar tudo isso nos seus próprios ombros até o domicílio de Settembrini, onde não teve dificuldade em combinar com o merceeiro as condições do depósito dos utensílios. Pela observação freqüente de outros esquiadores inteirara-se do modo de usar os esquis, o bastante para que, longe das multidões reunidas nos campos de exercício, começasse sozinho a dar os primeiros e malsucedidos passos numa encosta quase despida de árvores e situada nas proximidades do Sanatório Berghof. De vez em quando, o Sr. Settembrini ia assistir às suas tentativas, de alguma distância, apoiando-se na bengala, com as pernas graciosamente cruzadas, e premiando com brados de elogio a progressiva habilidade do jovem. Tudo se passou sem incidentes, mesmo aquele momento em que Hans Castorp, ao descer pela curva da estrada aberta a pá, na intenção de encaminhar-se à “aldeia” e de deixar os esquis na casa do merceeiro, encontrou-se com o conselheiro. Behrens não o reconheceu, embora isso se desse em pleno meio-dia e o principiante quase se chocasse com ele; passou pelo jovem, envolvendo-se numa nuvem de fumaça de charuto.

Hans Castorp verificou que depressa adquire uma técnica quem a necessita intimamente. Não tinha pretensões de perícia. O que precisava, podia aprendê-lo em poucos dias, sem se esfalfar nem perder o fôlego. Tratava de manter os pés juntos e de traçar sulcos paralelos; experimentava dirigir-se por meio dos bastões, durante as descidas; aprendia a franquear obstáculos e pequenos acidentes do terreno, num só arranco, com os braços abertos, elevando-se e mergulhando como um navio no mar agitado. Após a vigésima tentativa já não caía, quando, em plena corrida, freava com o auxílio do telemark, avançando uma das pernas e curvando o joelho da outra. Aos poucos foi ampliando os seus exercícios. Um belo dia, o Sr. Settembrini viu-o desaparecer nas brumas alvacentas. Com as mãos em concha à guisa de alto-falante, enviou-lhe algumas palavras de advertência, depois do quê foi para casa, pedagogicamente satisfeito.

Era linda a paisagem da montanha hibernal – linda não de um modo suave e agradável, senão assim como o é o ermo do mar do Norte nos dias de um forte vento oeste. Não havia na verdade estrondo de trovões; pelo contrário, reinava um silêncio de morte, que no entanto despertava os mesmos sentimentos de reverência. As solas compridas, elásticas, de Hans Castorp levavam-no em muitas direções, ao longo da encosta esquerda, rumo a Clavadel, ou à direita, passando por Frauenkirch e Glaris, por trás das quais os sombrios contornos do maciço de Amselfluh surgiam nas brumas, qual um fantasma. Entrou também no vale de Dischma e, subindo pelos fundos do Berghof, tomou a direção do arborizado monte Seehorn, do qual apenas o cume envolto em neve ultrapassava o limite da vegetação, e da floresta de Drusatscha, por trás da qual se enxergava a pálida silhueta da cordilheira Rética, revestida de espessa camada de neve. Por meio do teleférico, transportou-se com seus esquis até Schatzalp, onde, erguido a dois mil metros de altura, pôs-se a vaguear calmamente através da neve poeirenta, por sobre faiscantes planos inclinados, que em dias claros ofereciam uma vista grandiosa do campo das suas aventuras.

Regozijava-se com seus novos recursos, que lhe abriam zonas antes inviáveis e aniquilavam quase todos os obstáculos. Proporcionavam-lhe o manto da desejada solidão, a mais profunda solidão que se possa imaginar, a solidão que inspirava à alma a sensação do desconhecido e do perigo dessas paragens. Havia ali, por exemplo, um precipício coberto de pinheiros, que se perdia na cerração da neve, e do outro lado subia uma vertente rochosa com enormes massas de neve, ciclópicas, gibosas e arqueadas, que formavam cavernas e cúpulas. Quando Hans Castorp parava, a fim de não ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, com o menor traço de som como que abafado por meio de algodão, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primevo, aquele que Hans Castorp ouvia ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e com a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava caindo, numa queda calma, sem ruído algum.

Não, esse mundo, no seu silêncio insondável, não tinha nada de hospitaleiro. Admitia o visitante por sua própria conta e risco. Em realidade não o recebia nem acolhia, mas apenas lhe tolerava a intrusão e a presença, sem se responsabilizar por nada. A impressão que despertava era a de uma ameaça muda e elementar, baseada não em hostilidade, senão antes numa indiferença mortal. O rebento da civilização, que pela sua origem fica alheio e distante da natureza selvagem, é muito mais acessível à sua grandiosidade do que o seu filho rude, que depende dela desde a infância e mantém com ela relações de prosaica familiaridade. Este mal conhece o temor religioso com que aquele, arregalando os olhos, a enfrenta. Esse temor forma o âmago de toda a relação sentimental entre os filhos da civilização e a natureza, fazendo constantemente vibrar na sua alma uma espécie de emoção piedosa e de desassossego tímido. Hans Castorp, com seu suéter de lã de camelo, de mangas compridas, com suas grevas e seus esquis de luxo, no fundo sentia-se audacioso ao contemplar a paz primeva, o ermo hibernal com aquela funesta ausência de sons; e a sensação de alívio que se apresentava, quando, no caminho de volta, apontavam nas brumas as primeiras habitações humanas, tornava-o consciente do seu estado anterior e instruía-o sobre o terror secreto e sagrado que, durante horas, dominara o seu coração. Na ilha de Sylt, de calças brancas, seguro, elegante e reverente, detivera-se à beira da formidável rebentação como diante de uma jaula de leões, atrás de cujas grades as feras mostram a bocarra aberta com as terríveis presas. A seguir, banhara-se, enquanto um salva-vidas advertia, por meio de um toque de cometa, aqueles que temerariamente procuravam franquear a primeira onda, a fim de se aproximar da ressaca que se revolvia em sua direção. Ainda os derradeiros golpes daquela catarata lhe tinham ferido a nuca como uma patada. Naquela região, o jovem travara conhecimento com aquela entusiástica felicidade que propiciam os ligeiros contatos amorosos com as potências cujo abraço pleno seria fatal. Mas o que nunca chegara a conhecer era a veleidade de levar esse inebriante contato com a natureza mortífera ao ponto em que estivesse iminente o abraço pleno, e a fascinação de penetrar – débil criatura que era, apesar das armas e do equipamento sofrível que lhe fornecera a civilização – dentro do monstruoso mistério, ou, ao menos, evitar a fuga até o momento em que a aventura beirasse o perigo e seus limites se tornassem independentes da vontade humana, o momento em que já não se tratasse de espumas lançadas à praia e de leves pancadas com a pata, mas sim do vagalhão, da fauce do mar.

Numa palavra: Hans Castorp tinha coragem ali em cima – se se entende por coragem frente aos elementos não a objetividade obtusa nas relações com eles, mas o abandono consciente e o triunfo sobre o medo da morte, obtido por meio da simpatia. Simpatia? Com efeito, Hans Castorp simpatizava com os elementos, no íntimo do seu frágil peito civilizado, e existia certa ligação entre essa simpatia e a nova convicção da sua dignidade, que o invadira diante do aspecto daquela turba a brincar com seus trenós, e lhe apresentara como desejável e conveniente uma solidão mais profunda e mais grandiosa, menos provida de um conforto de hotel, do que aquela que se encontrava no seu compartimento de sacada. Fora dali que ele contemplara as cristas envoltas em brumas e a dança da nevada, envergonhando-se, no fundo da sua alma, desse divertimento de ser mero espectador por cima do parapeito da comodidade. Era por isso – e não por um capricho desportivo, nem tampouco devido a um prazer inato na educação física – que aprendera a usar os esquis. Se não se sentia seguro nessas alturas, com a grandiosidade e o silêncio mortal da neve que caía – e de fato esse filho da civilização estava longe de tal estado de sossego , era também inegável que seu espírito e sua alma, desde muito, iam saboreando alimentos pouco seguros. Um colóquio com Naphta e Settembrini não era precisamente o que existia de mais seguro; também ele levava a regiões ínvias e altamente perigosas. E se cabia dizer que Hans Castorp simpatizava com o vasto ermo hibernal, é porque este, apesar do terror piedoso que lhe inspirava, afigurava-se-lhe como a arena própria para as contendas que travavam os seus pensamentos complexos, e como o lugar indicado para uma pessoa que, sem saber por quê, estava incumbida de negócios de “rei”, relativos à situação e ao estado do Homo Dei.

Aqui não havia ninguém cujo toque de cometa avisasse o incauto do perigo iminente, a não ser que o Sr. Settembrini fosse esse homem, ao advertir, pelas mãos em concha, Hans Castorp, que sumia na cerração. Mas este, cheio de coragem e de simpatia, não prestava à advertência maior atenção do que dedicara àquela outra que ressoara atrás dele, na noite de carnaval, enquanto avançava em determinada direção: “Eh, ingegnere, un po’ di ragione, sa!” “Ai de ti, Satana pedagógico, com tua ragione e tua rebellione!”, pensou o jovem. “E, contudo, gosto de ti. Embora sejas um doidivanas e um tocador de realejo, tens boas intenções, melhores e mais simpáticas a mim pessoalmente do que as do pequeno e penetrante jesuíta e terrorista, esse algoz e flagelador espanhol com seus óculos relampejantes, se bem que ele tenha quase sempre razão, quando vocês estão discutindo... quando brigam, pedagogicamente, pela minha pobre alma, como Deus e o Diabo lutavam pelo homem na Idade Média...”

Com as pernas salpicadas de neve, apoiando-se nos bastões, ia escalando descoradas vertentes, cujos lanços se elevavam em forma de terraço, cada vez mais alto, e não se sabia aonde conduziam. Parecia que não levavam a parte alguma. A região superior confundia-se com o céu, o qual mostrava o mesmo branco nevoento que eles, de modo que era impossível dizer onde ele começava. Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o “nada” brumoso em cuja direção Hans Castorp avançava penosamente, e, como também atrás dele o mundo, aquele vale habitado por criaturas humanas não tardasse a fechar-se e a subtrair-se à vista, e como som algum chegasse dali até ele, a sua solidão, o seu isolamento tornou-se, antes que o jovem o percebesse, o mais profundo possível, tão profundo que chegou a dar-lhe aquele susto que é a condição prévia da coragem. “Praeterit figura hujus mundi”, disse de si para si, num latim de espírito nada humanístico. Aprendera essa locução de Naphta. Estacou e olhou a seu redor. Não se via nada em parte alguma, exceção feita a esparsos e minúsculos flocos de neve, que, vindos da brancura do céu, desciam até a brancura do solo. O silêncio em volta dele era impressionantemente vazio. Enquanto o seu olhar se refrangia no vácuo alvo que o deslumbrava, Hans Castorp sentiu como o seu coração, agitado pela subida, começava a latejar – esse órgão musculado, cuja forma animalesca e cujo mecanismo ele espreitara, talvez nefandamente, por entre os crepitantes relâmpagos do gabinete de radioscopia. E uma espécie de comoção apoderou-se dele, uma singela e devota simpatia por esse seu coração, o coração palpitante do homem, que pulsava, nesse ermo glacial, tão sozinho com seus problemas e seus enigmas.

Prosseguiu no seu vagaroso avanço, sempre subindo, rumo ao céu. Às vezes mergulhava na neve a extremidade superior do bastão e observava como no fundo do buraco era lançada uma luz azul, que perseguia o bastão, cada vez que este se retirava. Isso divertia Hans Castorp, que se deixava ficar muito tempo parado a fim de reproduzir uma e outra vez o pequeno fenômeno óptico. Era uma luz singular e delicada, luz das montanhas e das profundidades, entre esverdeada e azul, clara como o gelo e entretanto sombria, uma luz que o atraía misteriosamente, recordando-lhe a luz e a cor de certos olhos oblíquos, prenhes de destino, que o Sr. Settembrini, do ponto de vista humanístico, qualificara desdenhosamente de “fendas tártaras” e de “olhos de lobo de estepe”, olhos que Hans Castorp contemplara em tempos remotos e reencontrara forçosamente, os olhos de Hippe e de Clávdia Chauchat. – Com muito prazer – disse a meia voz no silêncio. – Cuidado para não quebrá-lo! Il est à visser, tu sais. – E no seu íntimo ouviu, atrás de si, eloqüentes exortações no sentido de levá-lo à razão.

À sua direita, não muito distante, um bosque desenhou-se na bruma. Hans Castorp encaminhou-se até lá, para ter em mira um objetivo terrestre, em vez da alvura transcendente, e logo resvalou em brusca descida, sem ter previsto a menor depressão do solo. O deslumbramento impedia-o de reconhecer a formação do terreno. Nada se enxergava, tudo se confundia diante dos olhos. Obstáculos completamente inesperados obrigaram-no a nova subida, antes que pudesse abandonar-se ao declive, e sem que os seus olhos fossem capazes de distinguir o grau de inclinação.

O bosque que o atraíra estava situado além do barranco onde Hans Castorp entrara inopinadamente. O fundo dessa garganta, coberto de neve fofa, pendia para o lado da montanha, como o jovem verificou após ter seguido alguns instantes nessa direção. O caminho descia, e as vertentes laterais tornavam-se cada vez mais altas; como um desfiladeiro, a dobra do terreno parecia conduzir ao seio da montanha. Depois, os esporões do seu veículo voltaram a apontar para cima. O terreno subia, e já havia parede lateral para escalar. Novamente, a carreira sem destino de Hans Castorp realizava-se sobre a encosta aberta da montanha, rumo ao céu.

A seu lado, atrás e abaixo de si, viu o bosque de coníferas. Tomando essa direção, alcançou em rápida descida os pinheiros carregados de neve, que, dispostos em forma de cunha, representavam, nessa zona despida de vegetação, uma espécie de vanguarda da encosta arborizada, cujos contornos se perdiam nas brumas. Sob a ramagem, Hans Castorp descansou, fumando um cigarro. Sua alma não deixava de experimentar uma sensação de angústia, tensão, ansiedade, que tinha a sua origem no silêncio por demais profundo, na solidão cheia de aventuras. Ao mesmo tempo, o jovem sentia-se orgulhoso da sua conquista e soberbo na plenitude dos direitos que sua dignidade lhe conferia sobre essa região.

Era por volta das três da tarde. Logo depois da refeição, Hans Castorp pusera-se a caminho, na intenção de gazear parte do repouso principal e a merenda, e estar de volta antes do escurecer. Encheu-se de alegria ao pensar que tinha ainda à sua frente algumas horas que poderia passar vagando ao ar livre, através da natureza grandiosa. Na algibeira de sua calça de golfe levava um pouco de chocolate, e no bolso do casaco um pequeno frasco de vinho do Porto.

Mal se podia divisar a posição do sol, tão densa era a cerração que o escondia. Mais atrás, na outra extremidade do vale, onde a montanha formava um ângulo que não se via, as nuvens e as brumas iam escurecendo e davam a impressão de avançar. Era um sinal de neve, de mais neve, como se ainda houvesse falta dela. Parecia iminente uma nevada em regra, e realmente os pequenos e silenciosos flocos já estavam caindo mais copiosamente sobre a encosta.

Hans Castorp deu um passo à frente a fim de recolher alguns sobre a manga e examiná-los com os olhos peritos de um naturalista amador. Assemelhavam-se a farrapinhos informes, mas já tivera outros sob a sua magnífica lente e sabia muito bem de que jóia minúsculas, delicadas e precisas se compunham: alfaias, insígnias, broches de diamantes, como o mais hábil joalheiro não poderia fazer mais ricos e mais minuciosos. Aquele pó branco, tão leve e tão fofo, cujas massas oprimiam o bosque e cobriam as áreas abertas, aquele pó por cima do qual o carregavam seus esquis, muito diferia, em realidade, da areia do seu país, na qual fazia pensar. Era coisa sabida que não constava de grãos de pedra, mas de miríades de partículas de água, que, ao congelar-se, haviam-se associado como cristais numa harmoniosa multiplicidade; tratava-se de parcelas da mesma substância inorgânica que intumescia o plasma vital, o corpo das plantas e do homem. E entre as miríades de estrelinhas mágicas, no seu esplendor secreto, invisível, miúdo e não destinado aos olhos humanos, não havia duas que fossem iguais. Um infinito capricho de inventor empenhava-se na modificação e no mais refinado desenvolvimento de um mesmo esquema fundamental, que era o hexágono de lados e ângulos iguais. Mas cada qual desses artefatos frios, em si, mostrava a mais absoluta simetria e uma regularidade glacial, e justamente nisso estava o inquietante, o antiorgânico, o hostil à vida; eram eles regulares em excesso, num grau jamais alcançado pela substância organizada para a vida. A esta repugnava uma precisão tão exata, que se lhe afigurava mortal, como o mistério da própria morte. Hans Castorp julgava compreender por que os construtores de templos, na Antigüidade, costumavam introduzir propositada e clandestinamente pequenas alterações de simetria na disposição das suas colunas.

Pôs-se em movimento por meio dos bastões; resvalando sobre os esquis, ao longo da beira do bosque, desceu cerração adentro, pela vertente oculta por espessa camada de neve. Subindo ou deslizando, sem objetivo nem pressa, continuou a vagar através da região morta. Com as suas extensões vazias e onduladas, com a vegetação árida de esparsos e definhados arbustos, que ressaltavam como manchas escuras, e com o horizonte limitado por elevações suaves, o ambiente parecia-se estranhamente com uma paisagem de dunas. Hans Castorp sacudia a cabeça em sinal de aprovação, enquanto se detinha para admirar essa semelhança. Suportava mesmo com simpatia o calor do rosto, o tremor dos membros, a singular e perturbadora mescla de excitação e fadiga que experimentava. Pois tudo isso lhe chamava à memória impressões familiares de efeitos parecidos que produzira o ar das praias do mar, igualmente estimulante e ao mesmo tempo saturado de substâncias soporíferas. Sentia satisfação ao perceber a sua independência alada, a liberdade das suas andanças. Não tinha à sua frente nenhum caminho que se visse obrigado a seguir; tampouco atrás dele havia um que o levasse ao ponto de partida. A princípio, Hans Castorp encontrara sinais, paus cravados no solo, sinais da neve, mas de propósito libertara-se da sua influência, que lhe recordava o homem da corneta e lhe parecia em desacordo com a relação íntima que existia entre ele e o grande ermo hibernal.

Atrás de outeiros rochosos, cobertos de neve, por entre os quais o jovem se infiltrava, dirigindo-se alternadamente para a direita ou a esquerda, estendia-se um plano inclinado, seguido por outro, horizontal, e em seguida surgiram vastos montes, cujos barrancos e desfiladeiros, estofados de almofadas macias, pareciam transitáveis e atraentes. Sim, a sedução das alturas e das distâncias, das sempre novas solidões que se ofereciam, dominava fortemente a alma de Hans Castorp, e ele, arriscando-se a voltar tarde, procurou penetrar mais a fundo o silêncio selvagem, a zona do perigo, a ameaça. Nem se preocupava com o fato de que a tensão e a ansiedade reinantes no seu interior se iam transformando em autêntico medo, diante da escuridão prematura e crescente do céu, que se abaixava, qual um véu cinzento, sobre a região. Esse medo fe-lo notar que até agora se empenhara secretamente em perder o rumo e em esquecer a direção onde se achavam situados o vale e a aldeia, empresa na qual, aliás, tivera pleno êxito. Sabia, no entanto, que, se voltasse imediatamente e prosseguisse sempre descendo, alcançaria depressa o vale, mesmo que fosse num lugar distante do Berghof. Depressa demais, porque nesse caso chegaria muito cedo e não aproveitaria todo o tempo de que dispunha. Se, porém, fosse surpreendido pela tempestade de neve, talvez não conseguisse encontrar o caminho de volta. Nem por isso resolveu-se a fugir antes da hora, por mais que o acossasse o medo, o pavor sincero que lhe inspiravam os elementos. Isso não era proceder à maneira de um desportista; pois este não entraria em luta com os elementos sem ter certeza de poder dominá-los; agiria com prudência e seria bastante sensato para ceder. Mas o que se passava na alma de Hans Castorp só pode ser designado por uma única palavra: desafio. Pode ser que essa palavra encerre sentimentos censuráveis, mesmo – ou sobretudo – nos casos em que a mentalidade petulante que lhe corresponde ande acompanhada de muito medo sincero. Bastam, contudo, algumas reflexões humanas para compreender vagamente que no âmago da alma de um jovem e de uma pessoa que durante anos viveu como o nosso herói se deposita ou, segundo diria o engenheiro Hans Castorp, “se acumula” muita coisa que um belo dia deve explodir em forma de um elementar “Ora bolas!” ou de um “Custe o que custar!”, cheio de impaciência exasperada. Numa palavra, achamo-nos à frente de um desafio, de uma atitude negativa oposta à prudência razoável. E assim Hans Castorp continuou avançando sobre os seus compridos tamancos. Deslizou por mais uma encosta e escalou outra vertente, onde, a alguma distância, se via um chalezinho – um galpão talvez ou a choupana de um pastor – com o teto carregado de pedras. Tomou a direção da montanha seguinte, com a encosta hirsuta de pinheiros, atrás dos quais altos picos assomavam como torres no meio da bruma. À sua frente, o paredão salpicado de raros grupos de árvores elevava-se muito íngreme. Mais para a direita, porém, era possível contorná-lo a meio sobre um declive moderado, e passar para trás dele, a fim de ver o que viria depois. Hans Castorp tomou a si essa tarefa de explorador, depois de ter descido, perto da plataforma do chalé, por uma garganta bastante profunda, que se inclinava da direita para a esquerda.

Mal retomara a subida, quando o esperado se tornou realidade: bruscamente estalaram a nevada e a ventania. Tinha chegado a tempestade de neve que por tanto tempo o ameaçara, se é que se pode falar de “ameaça” com relação a elementos cegos e ignorantes que não pretendem de modo algum aniquilar-nos – o que seria relativamente reconfortante –, mas mostram a mais absoluta indiferença quanto a essa conseqüência eventual da sua ação. “Opa!”, pensou Hans Castorp e estacou, quando a primeira rajada, revolvendo o denso torvelinho, lhe feriu o corpo. “Esse tipo de sopro vai até a medula.” E de fato, o vento era de uma espécie bastante enjoada. O frio espantoso que reinava – uns vinte graus abaixo de zero – não se tornava sensível e parecia moderado, enquanto o ar desprovido de umidade se conservava tão calmo e tão imóvel como de costume; mas, logo que se agitava sob o efeito do vento, cortava a carne como uma navalha, e quando isso acontecia com tamanha intensidade como nesse instante (pois o primeiro pé-de-vento a varrer a região não passara de um precursor), nem sete casacos teriam bastado para resguardar os ossos do terror glacial da morte. Hans Castorp, por sua vez, não trajava sete casacos, senão apenas um suéter de lã, que em circunstâncias normais teria sido suficiente e até já se manifestara incômodo, quando brilhava o sol. A borrasca fustigava-o pelo lado e por parte das costas, de maneira que não era recomendável voltar-se e recebê-la em pleno rosto; como esse raciocínio se aliasse à sua teimosia e àquela atitude de “Ora bolas!” que ele adotara no seu íntimo, o audacioso jovem prosseguiu no seu avanço por entre os pinheiros isolados, na intenção de chegar ao outro lado da montanha que acabava de escalar.

Nisso, porém, não havia nenhum prazer, pois nada se enxergava além da dança dos flocos, que, aparentemente sem cair, enchiam o espaço com sua abundância turbilhonante. As lufadas glaciais que os remexiam faziam arder as orelhas numa dor aguda, tolhiam os membros e entorpeciam os dedos, de modo que Hans Castorp já não sabia se ainda segurava o bastão ou se não tinha nada nas mãos. Por detrás a neve lhe entrava no colarinho e, derretendo, descia pelas costas. Também se amontoava nas suas espáduas e lhe cobria o flanco direito. Parecia-lhe que ia transformar-se num homem de neve, com o bastão na mão enrijecida. E todos esses inconvenientes eram as conseqüências de uma situação relativamente favorável. Se ele desse meia-volta a coisa pioraria, e não obstante convinha empreender sem demora aquela tarefa laboriosa que constituía o caminho de volta.

Parou; furiosamente encolheu os ombros e dirigiu os esquis para o lado oposto. O vento contrário logo lhe impediu a respiração, de maneira que mais uma vez se submeteu à penosa manobra da meia-volta, a fim de retomar fôlego e de enfrentar o inimigo impassível numa disposição melhor. Com a cabeça abaixada, respirando econômica e cautelosamente, conseguiu, com efeito, pôr-se em movimento na direção desejada. Embora esperasse o pior, mostrou-se surpreendido pelas dificuldades da marcha, que tinham a sua origem antes de mais nada no ofuscamento e na falta de fôlego. A cada instante via-se obrigado a deter-se, em primeiro lugar para respirar ao abrigo da tempestade, e ainda porque, olhando para cima com a cabeça baixa, nada enxergava naquelas trevas brancas e devia andar com cautela, para evitar choques com árvores ou quedas causadas por obstáculos. Flocos em massa fustigavam-lhe o rosto e nele se derretiam, de modo que a pele gelava. Entravam-lhe na boca, onde se fundiam com sabor insípido e aquoso; voavam contra as pálpebras, que se cerravam convulsivamente; inundavam os olhos, estorvando a visão, que, por outro lado, teria sido inútil, uma vez que o campo visual estava velado por uma cortina espessa e o sentido da vista achava-se obstruído pelo deslumbramento resultante de toda essa brancura. Quando Hans Castorp fazia um esforço para ver, deparava com o nada, o remoinho branco do nada. E só de tempos em tempos assomavam fantasmagóricas sombras do mundo real, um arbusto definhado, um grupo de pinheiros, e também a pálida silhueta do galpão pelo qual passara havia pouco.

Hans Castorp deixou-o para trás e procurou encontrar o caminho de volta, atravessando a vertente, a cuja beira se erguia o chalé. Ora, não existia caminho. Conservar um rumo, a direção aproximada do sanatório, era uma questão de sorte antes que de raciocínio, já que a vista, que talvez conseguisse enxergar a mão diante dos olhos, nem sequer alcançava as pontas dos esquis, e mesmo que se divisasse mais, existiam ainda numerosos óbices que se opunham ao avanço: o rosto estava coberto de neve; a tempestade lutava contra ele, impedindo, tolhendo a respiração, tornando quase impossíveis tanto o ato de aspirar como o de expelir o ar, e forçando o jovem a cada instante a virar-lhe as costas para resfolegar. Quem poderia progredir desse modo? Nem Hans Castorp, nem outro mais forte do que ele. Era preciso parar, tomar alento, apertar as pálpebras para fazer a água sair dos olhos piscos, sacudir a couraça de neve que se formara sobre a parte anterior do corpo. Não deixava de ser insensata a pretensão de avançar em tais condições.

Apesar de tudo, Hans Castorp avançou, isto é: continuou marchando. Mas restava saber se se tratava de uma marcha profícua, de um avanço na direção certa, e se não seria mais indicado para ele permanecer no lugar onde se encontrava – o que, no entanto, tampouco parecia útil. A probabilidade teórica inclinava-se para o contrário, e do ponto de vista prático, Hans Castorp, dentro em breve, teve a impressão de que alguma coisa não andava bem no solo em que pisava, que não era mais aquela encosta pouco inclinada que ele realcançara a muito custo, subindo do barranco, e que urgia transpor antes de mais nada. O trecho plano fora muito curto, e logo recomeçou a subida. Evidentemente, a tempestade, que vinha do sudoeste, da região da extremidade oposta do vale, desviara-o da sua rota, pela furiosa pressão contrária. Já fazia algum tempo que o jovem se esfalfava num avanço errado. Às cegas, envolto na turbilhonante noite branca, apenas se esforçara por penetrar mais fundo no elemento indiferente, ameaçador.

– Vejam só! – murmurou entre dentes, enquanto estacava. Não se serviu de uma expressão mais enfática, se bem que, por um momento, tivesse a sensação de que uma mão gélida lhe agarrava o coração, fazendo-o sobressaltar-se e bater de encontro às costelas num ritmo acelerado, como naquele dia em que Radamanto lhe descobrira o lugar úmido no peito. Hans Castorp compreendia que não lhe cabia pronunciar palavras altissonantes, pois ele mesmo lançara o desafio e era responsável por tudo quanto a situação tivesse de inquietante. – Essa é boa! – disse de si para si, e sentiu que suas feições, os músculos faciais, já não obedeciam à alma e nada sabiam reproduzir, nem medo, nem raiva, nem desdém, por estarem enregelados. – Que fazer agora? Descer obliquamente por aí, direto para a frente, sempre contra o vento. Na verdade, é mais fácil dizer do que fazer – continuou, ofegante, proferindo palavras entrecortadas, a meia voz, enquanto voltava a pôr-se em movimento. – Mas é preciso que aconteça alguma coisa. Não posso sentar-me e esperar. Nesse caso ficaria coberto por toda essa simetria hexagonal, e Settembrini, se me procurasse com a corneta na mão, haveria de me achar acocorado aqui, com os olhos vidrados e com um boné de neve de través na cabeça... – Hans Castorp percebeu que estava falando sozinho, e de um jeito um tanto esquisito. Proibiu-se, pois, de falar assim, mas fez também isso à meia voz e em palavras expressas, embora seus lábios estivessem tão atordoados que renunciou a utilizá-los e falou sem pronunciar aquelas consoantes que são formadas com o auxílio deles, o que lhe chamou à memória uma situação anterior na qual ocorrera o mesmo. – Cala-te e trata de livrar-te! – prosseguiu e acrescentou: – Parece-me que estás desvairando e já não tens o cérebro muito claro. Isso é triste, sob certos aspectos.

Que isso fosse triste, do ponto de vista da sua salvação, constituía, entretanto, uma simples verificação do juízo controlador, feita, por assim dizer, por uma pessoa estranha, desinteressada, ainda que invadida de preocupações. Quanto à sua inclinação natural, Hans Castorp sentia-se muito disposto a abandonar-se àquela confusão que se queria apoderar dele com o aumento do cansaço. Todavia, deu-se conta dessa tendência e refletiu sobre ela. – É a modificação que se produz no modo de sentir de um homem que nas montanhas foi surpreendido por uma tempestade de neve e não encontra o caminho para casa – raciocinou penosamente, pronunciando, em voz trêmula, partes dos seus pensamentos, e evitando, por discrição, expressões mais claras. – Quem ouve falar disso imagina que é horroroso, mas esquece que a enfermidade – e a minha situação é de certo modo uma enfermidade – prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, narcoses providenciais, medidas da natureza para dar-nos alívio; sim, senhor!... No entanto, devemos lutar contra elas, uma vez que têm duas caras e são sumamente equívocas. A sua apreciação depende inteiramente do ponto de vista. São bem-intencionadas e benéficas para quem não está destinado a regressar; mas são prejudiciais e devem ser combatidas, enquanto ainda se pode ter esperança de regresso, como no meu caso. Eu não penso em... No meu coração, que palpita tumultuosamente, não tenho a mínima intenção de me deixar enterrar aqui por essa cristalometria estupidamente regular.

De fato, já se sentia bastante esgotado e, de modo confuso e febril, ia debelando a incipiente perturbação dos seus sentidos. Não se assustou, assim, como o teria feito se tivesse estado em seu juízo, quando notou que novamente se afastara da pista plana; dessa vez, provavelmente, na direção oposta, para onde o declive era mais forte. Pois tornara a descer, tendo o vento oblíquo contra si. Embora isso fosse errado, parecia-lhe mais cômodo agir assim, pelo menos por enquanto. – Não faz mal – opinou. – Um pouco mais abaixo voltarei a tomar o rumo certo. – E foi o que fez, ou acreditou fazer, ou talvez nem sequer o acreditasse, ou – o que era ainda mais inquietante – já não ligava importância à diferença entre fazer ou não fazer. Tal era o efeito daquelas equívocas diminuições da sensibilidade, contra as quais Hans Castorp se debatia apenas debilmente. A mescla de excitação e fadiga que formava o estado familiar e constante de um pensionista cuja aclimatação consistia no hábito de não se habituar intensificara-se nos seus dois componentes de tal maneira que já não se podia falar de uma reação sensata contra os desfalecimentos do espírito. Tonto e cambaleante, estremecia de ebriedade e de emoção semelhantes àquelas que experimentava depois de um colóquio com Naphta e Settembrini, porém num grau muito mais forte. Daí lhe sucedia justificar a sua preguiça na luta contra os desfalecimentos narcóticos por meio de desordenadas reminiscências daquelas discussões. Apesar da sua desdenhosa revolta contra a idéia de se ver soterrado pela simetria hexagonal, balbuciava de si para si qualquer coisa cujo sentido ou não-sentido era o seguinte: o senso do dever que procurava induzi-lo a combater as diminuições de consciência suspeitas não era pura ética, mas sim o mísero modo de viver burguês e a mentalidade de filisteus irreligiosos. O desejo e a tentação de deitar-se e descansar insinuavam-se na sua alma e faziam com que raciocinasse que a sua situação era semelhante a uma tempestade de areia no deserto, e nesse caso os árabes costumavam estender-se com o rosto para baixo, puxando o     albornoz por cima da cabeça. Unicamente o fato de não possuir albornoz e de ser impossível envolver a cabeça numa blusa de lã constituía para ele uma objeção incisiva contra tal modo de agir, se bem que já não fosse criança e estivesse inteirado, por muitas narrativas, da maneira como se processava a morte por congelamento.

Depois de uma descida moderadamente rápida e de um trecho plano, reiniciou-se a subida, desta vez bastante íngreme. Isso não implicava necessariamente que ele se achasse num caminho errado, pois o que conduzia para o vale forçosamente incluía trechos que subiam, e quanto ao vento, era provável que tivesse mudado, obedecendo a um capricho, já que Hans Castorp o recebia, desde havia pouco, pelas costas, e esse fato, encarado isoladamente, parecia-lhe simpático. Era a tempestade que o dobrava, ou o declive macio, branco e velado pelo torvelinho crepuscular, que exercia uma atração sobre o seu corpo, fazendo-o inclinar-se para a frente? Bastaria ceder, abandonando-se a essa tendência, e a sedução era grande, tão grande como os livros a descrevem, qualificando-a como perigosa e típica. Mas essa noção não diminuía em nada a força viva e atual da atração. Reivindicava ela direitos individuais, não queria deixar-se classificar entre as coisas conhecidas, não admitia confronto, insistia em ser única e incomparável na sua urgência, sem que, no entanto, pudesse negar a sua origem numa sugestão emanada de certa pessoa, criatura vestida de preto, à espanhola, com uma alvíssima golilha pregueada, e cuja imagem ou concepção fundamental evocava toda sorte de conceitos sombrios, penetrantemente jesuíticos, hostis à humanidade, visões de escravidão torturada e flagelada, coisas de que o Sr. Settembrini tinha horror, embora na sua guerra contra elas só se tornasse ridículo, com seu realejo e sua ragione...

Não obstante, Hans Castorp comportou-se valentemente e resistiu à tentação de se deixar cair. Não enxergava nada, mas continuava lutando e ganhando terreno; com ou sem proveito, cumpria o seu dever e trabalhava, desprezando os grilhões cada vez mais pesados, com os quais a tempestade glacial lhe prendia os membros. Como a subida se mostrasse extraordinariamente escarpada, enveredou para o lado, sem se dar conta disso, e seguiu algum tempo ao longo da vertente. Abrir as pálpebras convulsas e espreitar em torno de si exigia um esforço cuja inutilidade comprovada pouco o animava a repeti-lo. Mesmo assim deparava com alguma coisa, de vez em quando: uns pinheiros aglomerados, um arroio ou riacho, cuja negrura ressaltava na paisagem, entre os rebordos cobertos de neve. E quando, para variar, se encontrou novamente num trecho de descida, dessa vez contra a ventania, descobriu, a alguma distância, flutuando livremente na confusão de véus varridos, a sombra de uma habitação.

Que vista simpática, reconfortante! Pela sua energia, em que pese a todos os obstáculos, Hans Castorp conseguira avançar até onde assomavam moradas humanas, indicando a proximidade do vale habitado. Talvez houvesse homens ali; talvez lhe permitissem entrar, para aguardar, sob a proteção do teto, o fim da tormenta; talvez fosse possível arranjar um companheiro ou um guia, o que se tornaria necessário no caso de a escuridão natural sobrevir nesse meio tempo. O jovem encaminhou-se para aquela coisa quimérica, que a todo instante desaparecia nas trevas borrascosas. Teve ainda que realizar uma exaustiva ascensão contra o vento, antes de alcançá-la. Uma vez chegado, verificou, com um misto de revolta, pasmo, susto e vertigem, que era aquela cabana que conhecia, o galpão com o teto carregado de pedras, que, por inúmeros rodeios e à custa dos mais intensos esforços, acabava de reconquistar.

Que diabo! Violentas pragas saíram, com omissão dos sons labiais, da boca enregelada de Hans Castorp. Para orientar-se, deu volta à choça, apoiando-se nos bastões, e constatou que dessa vez chegara até ela por trás, e que, por conseguinte, durante mais de uma hora – segundo as suas avaliações – cometera tolices das mais perfeitas e das mais infrutuosas. Mas isso costumava acontecer, conforme se podia ler nos livros. A gente movimentava-se em círculo, labutava, com o coração cheio da quimera de um esforço útil, e em realidade descrevia vastas e estúpidas curvas que reconduziam ao ponto de partida, tal e qual a órbita falaz do ano. Destarte, as pessoas extraviavam-se e não encontravam o caminho de volta. Hans Castorp reconheceu o fenômeno tradicional com certa satisfação, embora também com algum terror. Deu na coxa uma palmada de raiva e espanto, ao ver que a experiência geral se reproduzira tão pontualmente no seu caso particular e presente.

O galpão solitário era inacessível; a porta estava chaveada; não se podia entrar em parte alguma. Contudo, Hans Castorp resolveu permanecer, por enquanto, onde estava, porque o telhado saliente dava a ilusão de um certo abrigo. Realmente, a própria choça, no lado dirigido para a montanha, lá onde o jovem buscou refúgio, oferecia boa proteção contra a tempestade a quem se apoiasse com o ombro à parede construída de tábuas, uma vez que não era possível encostar-se, devido ao comprimento dos esquis. Aconchegando-se obliquamente à construção, deixou-se ficar ali, depois de haver cravado o bastão na neve, a seu lado; afundou as mãos nos bolsos, levantou a gola da blusa de lã e escorou-se na perna de fora. A cabeça estonteada repousava, de olhos fechados, nas tábuas do galpão. Só de quando em quando Hans Castorp lançava olhares piscos por cima do barranco, em direção à vertente oposta que às vezes assomava vagamente por entre os véus da neve.

A sua situação era relativamente cômoda. “Desse jeito poderei agüentar de pé a noite toda, se for necessário”, pensou. “Basta mudar, de tempos em tempos, de pé, e virar-me, por assim dizer para o outro lado. É apenas indispensável que me mexa um pouco nos intervalos. Sinto-me transido exteriormente, mas acumulei bastante calor graças a caminhada que dei, e assim o desvio não foi completamente inútil, embora eu tenha andado perdido, dando voltas em torno da cabana... Perdido? De que expressão acabo de servir-me? Não é necessária nem cabe como referência àquilo que me aconteceu. Servi-me dela arbitrariamente, porque não tenho a cabeça muito clara. E todavia, em certo sentido, parece-me que é uma palavra apropriada... Ainda bem que tenho resistência, pois o torvelinho, a nevada, o caos, podem perfeitamente prolongar-se até amanhã de manhã, e mesmo que se estendam apenas até o escurecer, já seria bem grave, porque de noite o perigo de a gente perder-se e dar voltas à toa é tão grande como no meio de uma tempestade de neve... Agora já deve ser de tardezinha, seis horas, pouco mais ou menos. Desperdicei muito tempo errando pela região. Que horas são, afinal?” Procurou o relógio, se bem que não fosse fácil tirá-lo do bolso com os dedos gelados, insensíveis. Olhou o relógio de ouro, com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico do tórax...

Eram quatro e meia. Puxa! não passara muito tempo desde que começara a tempestade. Podia-se acreditar que suas andanças houvessem durado apenas um quarto de hora? “O tempo me pareceu longo”, pensou. “Ao que parece, essa coisa de andar perdido é meio fastidiosa. Mas é indiscutível que às cinco ou às cinco e meia entra a noite. Terminará a tempestade bastante depressa para evitar que me perca outra vez? Que tal um gole de porto para me fortificar?”

Trouxera essa bebida de diletantes pelo único motivo de haver no Berghof um estoque de garrafas chatas, que eram vendidas aos excursionistas, embora, naturalmente, não se pensasse em pessoas que ilicitamente se desgarrariam na neve e no frio glacial das montanhas e aguardariam a noite em tais condições. Se as suas faculdades mentais estivessem menos esgotadas, deveria ter dito a si próprio que, sob o ponto de vista das probabilidades de regresso, o vinho do Porto era aproximadamente a pior coisa que se podia beber. Foi o que notou após ter engolido alguns tragos que lhe produziram um efeito semelhante àquele que tivera a cerveja de Kulmbach, na noite do primeiro dia após a sua chegada, quando seu palavrório desordenado e incontido sobre molhos para peixe e outras coisas do mesmo quilate havia chocado o Sr. Lodovico Settembrini, o pedagogo cujo olhar reconduzia à razão até mesmo os loucos mais varridos. Precisamente nesse instante Hans Castorp ouvia através dos ares o harmonioso som da corneta do italiano, sinal de que o eloqüente educador se aproximava em marcha forçada, a fim de libertar dessa situação maluca e de guiar pelo caminho de volta o discípulo que tantas preocupações lhe causava, o filho enfermiço da vida... Tudo isso, naturalmente, era absurdo e tinha a sua origem na cerveja de Kulmbach, que Hans Castorp bebera por distração. Em primeiro lugar, o Sr. Settembrini não dispunha de corneta, mas apenas de um realejo com uma perna de pau, plantado no calçamento da rua, e cujas melodias animadas acompanhava de olhares humanísticos na direção das fachadas; e em segundo, nada sabia nem notara do que estava acontecendo, visto que deixara de morar no Sanatório Berghof e se achava na casa de Lukacek, costureiro de senhoras, naquele cubículo com a garrafa de água, acima da cela forrada de sedas do Sr. Naphta. Além disso, tinha tão pouco direito e oportunidade de intervir quanto tivera em certa noite de carnaval, quando Hans Castorp se encontrara numa posição igualmente maluca e arriscada, ao devolver à enferma Clávdia Chauchat son crayon, seu lápis, o lápis de Pribislav Hippe... Que posição era essa, afinal de contas? A posição adequada à sua existência devia ser horizontal e não vertical, no sentido genuíno, próprio e não apenas metafórico da palavra. Horizontal, como convinha a um membro veterano da sociedade aqui de cima. Não estava ele acostumado a ficar estendido ao ar livre, num ambiente de neve e de frio, tanto de dia como de noite? E já se ia deixando cair ao chão, quando o penetrou uma percepção, agarrando-o pela gola e mantendo-o de pé, a percepção que toda essa lengalenga íntima sobre a “posição” devia ser atribuída à cerveja de Kulmbach e provinha exclusivamente do seu desejo de deitar-se e dormir, desejo impessoal, tipicamente perigoso, que procurava seduzi-lo por meio de sofismas e de trocadilhos.

“Acaba-se de cometer um erro”, reconheceu. “O vinho do Porto não era recomendável; esses poucos goles me puseram chumbo na cabeça, de modo que ela me cai sobre o peito. Os meus pensamentos não passam de coisas confusas e de gracejos insípidos. Não devo fiar-me neles, nem nos primeiros que me ocorrem, nem tampouco nas observações críticas que faço a seu respeito. Aí é que está o mal. ‘Son crayon’... Quer dizer, o crayon dela e não dele; ‘son’ se diz, somente porque ‘crayon’ é masculino. Todo o resto é apenas um jogo de palavras. Nem vale a pena perder tempo com isso. No momento acho muito mais urgente a circunstância de a minha perna esquerda, na qual me apoio, recordar-me, de modo surpreendente, a perna de pau do realejo de Settembrini, que ele empurra à frente com o joelho, sobre a calçada, cada vez que se aproxima da janela e estende o chapéu de veludo, na esperança de que a moça lá de cima lhe atire alguma moeda. E ao mesmo tempo sinto qualquer coisa assim como mãos a me atrair impessoalmente para a neve. O único remédio contra isso é o movimento. Preciso movimentar-me, como castigo por ter bebido a cerveja de Kulmbach, e para desentorpecer a perna de pau.”

Afastou-se da parede, tomando impulso com o ombro. Mas apenas se distanciou do galpão, dando um único passo para a frente, o vento feriu-o com verdadeiros golpes de foice e rechaçou-o até o abrigo. Indiscutivelmente era esse o lugar mais indicado para ele. Por enquanto, o jovem devia conformar-se com isso, além do quê, tinha plena liberdade de encostar o ombro esquerdo, para variar, de apoiar-se na perna direita e de sacudir a outra para revigorá-la. “Com um tempo destes”, disse de si para si, “a gente não deve sair de casa. Um pouco de variação pode ser admissível, mas não a mania de inovações nem o desafio da Dona Borrasca. Fica quietinho e deixa pender a tua cabeça, uma vez que está muito pesada. A parede é boa. As tábuas são de madeira. Parece mesmo que se desprende delas um certo calor, se é que aqui se pode falar de calor. Um discreto calor natural da madeira, ou talvez apenas um produto da imaginação, coisa subjetiva... Vejam só todas essas árvores! Ah, esse clima vivo dos homens vivos! Que perfume!...”

Um parque estendia-se a seus pés, sob a sacada onde ele se encontrava; um vasto parque de luxuriante verdor, formado de árvores frondosas – olmos, plátanos, faias, bordos, bétulas – levemente matizadas quanto ao colorido da folhagem abundante, fresca, lustrosa, com as copas agitando-se num suave sussurro. Um ar delicioso, úmido, embalsamado pelas árvores, envolvia a região. Um aguaceiro quente vinha se abatendo, mas a chuva parecia iluminada. Até as alturas do céu via-se a atmosfera resplandecer de gotinhas cintilantes. Que beleza! Ah, esse sopro do torrão natal, o aroma e a plenitude da planície, depois de tão prolongada privação! O ar ressoava com vozes de aves, pios, silvos, gorjeios, chilidos e soluços, cheios de fervor, de graça e de doçura, sem que se enxergasse um único passarinho. Hans Castorp sorriu, respirando gratamente. E o quadro tornava-se ainda mais belo. Um arco-íris curvava-se sobre um lado da paisagem, um arco completo e nítido, puro na sua magnificência, com o brilho úmido de todas as suas cores, que, untuosas como óleo, inundavam o verde espesso e reluzente. Mas isso parecia música, era como o som intenso de harpas, mesclado de flautas e violinos! O azul e o violeta, sobretudo, espalhavam-se maravilhosamente. Tudo se confundia com eles, como por um feitiço, transformando-se, evoluindo de modo sempre reluzente. Mas isso parecia música, era como o som intenso de harpas, mesclado de flautas e violinos! O azul e o violeta, sobretudo, espalhavam-se maravilhosamente. Tudo se confundia com eles, como por um feitiço, transformando-se, evoluindo de modo sempre novo e cada vez mais belo. Lembrava aquele dia, anos atrás, quando Hans Castorp tivera ensejo de ouvir um cantor de fama mundial, um tenor italiano, de cuja garganta partiam sons de uma arte benéfica e de uma força abençoada, inundando os corações dos homens. Sustentara esse homem uma nota aguda, linda desde o começo; aos poucos, porém, de momento a momento, a harmonia apaixonada descortinara-se, ampliara-se, tomando volume, iluminara-se com um esplendor mais e mais deslumbrante. Um a um, os véus que antes ninguém percebera se haviam desfeito; caíra mais um, o último, revelando, segundo o pensamento de todos, a luz suprema, a luz mais pura, mas seguira-se outro e ainda outro – incrível! –, o derradeiro, desencadeando tamanha exuberância de fulgor e de perfeição banhada em lágrimas, que um rumor surdo de arrebatamento, soando quase como um protesto ou uma objeção, elevava-se do seio da multidão. Ele próprio, o jovem Hans Castorp, fora tomado de soluços. E o mesmo lhe acontecia agora, em face dessa paisagem que se metamorfoseava, se desdobrava em progressiva transfiguração. O azul a pairar em toda parte... Os véus luzentes da chuva iam caindo. Eis que surgiu o mar, um mar, o mar do sul, de um azul profundo e saturado, refulgindo de luzes argentinas, com uma belíssima enseada a abrir-se vaporosa, para um lado, enquanto o outro estava engastado em montanhas de azul cada vez mais pálido. No meio da baía emergiam ilhas, onde cresciam palmeiras e resplandeciam casinhas brancas por entre bosques de ciprestes. Oh, oh! Eram demais. Ele não merecia tudo isso. Que bem-aventurança de luz, de absoluta pureza do céu, de frescor de águas ensolaradas! Hans Castorp jamais vira aquilo, nem coisa semelhante. Nas suas viagens de férias mal passara pelas regiões do sul. Conhecia o mar áspero, o mar cinzento, ao qual se apegava com sentimentos vagos e pueris. Mas nunca chegara a ver o Mediterrâneo, Nápoles, a Sicília ou a Grécia. E todavia recordava-se. Sim, por estranho que pareça, o que Hans Castorp fazia nesse momento era reconhecer. “Ah, sim! É isso!”, exclamou nele uma voz, como se tivesse levado no seu coração, desde tempos imemoriais, às escondidas e sem confessá-lo a si próprio, toda essa alegria azul, irradiada pelo sol. E esses “tempos imemoriais” eram vastos, infinitamente vastos, tal e qual o mar que se abria à sua esquerda, ali onde o céu, num tom delicado de violeta, descia até as águas.

O horizonte era alto; o espaço dava a idéia de elevar-se, o que se devia ao fato de Hans ver o golfo de cima, de certa altura. Em forma de promontórios abraçavam-no as montanhas coroadas de selvas; entravam no mar, retrocediam em semicírculo, do centro do quadro, até o ponto onde se encontrava o jovem e mais longe ainda. Era uma costa rochosa, em cujos degraus de pedra aquecidos pelo sol se achava acocorado. À sua frente inclinava-se a ribeira pedregosa, escadeada, coberta de musgos e brenhas, até uma praia plana, onde o cascalho, por entre os juncos, formava angras azuladas, pequenos portos e lagoas avançadas. E essa região banhada pelo sol, essas margens de fácil acesso, essas bacias risonhas no meio de rochedos, bem como o mar até as ilhas distantes entre as quais iam e vinham embarcações – tudo estava povoado. Homens, filhos do sol e do mar, mexiam-se ou repousavam em toda parte, uma humanidade bela e jovem, sensata e jovial, tão agradável de se ver que o coração de Hans Castorp se dilatava todo num sentimento amplo, quase doloroso, de amor.

Mancebos adestravam cavalos; corriam, com a mão no cabresto, ao lado dos animais que trotavam relinchando e sacudindo a cabeça; montavam-nos sem sela e forçavam-nos a entrar na água, batendo com os calcanhares desnudos os flancos da cavalgadura, enquanto os músculos das espáduas, sob a pele trigueira, jogavam ao sol. Os gritos que trocavam entre si ou dirigiam às montarias tinham qualquer coisa de mágico. À margem de uma enseada que penetrava profundamente na terra firme, e cujas ribanceiras se espelhavam como num lago alpino, havia moças dançando. Uma delas, cujos cabelos atados na nuca tinham um encanto singular, estava sentada, com os pés enterrados numa concavidade do solo, e tocava uma flauta pastoril. Por cima dos dedos ágeis, seu olhar vagava em direção às companheiras, que, nos seus largos e flutuantes vestidos, executavam os passos da dança, ora isoladas, sorridentes, com os braços abertos, ora aos pares, com as fontes graciosamente coladas umas nas outras. Atrás das costas da flautista, costas alvas, longas, delgadas, que a posição dos braços tornava redondas, viam-se outras irmãs, sentadas ou em pé, de mãos dadas, conversando calmamente e contemplando a cena. A maior distância, alguns jovens exercitavam-se no tiro de arco. Que aprazível e ameno quadro! Os mais velhos ensinavam a uns adolescentes de cabelos encaracolados como retesar o arco e apontá-lo ao alvo; rindo, amparavam os novatos cambaleantes sob o rechaço da corda, quando a seta se desprendia dela com um sussurro. Outros pescavam com anzol. Achavam-se de bruços nas lajes dos penedos da costa, com uma das pernas balouçando no ar, enquanto mergulhavam a linha na água. Palestrando calmamente voltavam a cabeça para o vizinho, que reclinava o corpo para lançar muito longe a isca. Ainda outros estavam ocupados em transportar ao mar, arrastando, empurrando, levantando, um barco de alto bordo, provido de mastro e vergas. Crianças brincavam e exultavam no meio da rebentação. Uma jovem mulher, estendida no solo, de costas, olhava para trás, enquanto com uma das mãos apertava contra os seios o vestido floreado, e com a outra, avidamente, procurava alcançar um fruto ornado de folhas, que um moço de ancas estreitas, de pé atrás dela, brincando lhe oferecia e retirava. Havia vultos recostados nos nichos dos rochedos. Outros hesitavam à beira d'água, experimentando-lhe o frescor com a ponta do pé e segurando os ombros com os braços cruzados. Alguns casais passeavam ao longo da praia, e perto da orelha da jovem encontrava-se a boca de quem a guiava carinhosamente. Cabras felpudas saltavam de rocha em rocha, guardadas por um jovem pastor que se quedava sobre uma elevação, com uma mão na cintura, apoiando a outra num comprido cajado; um chapeuzinho de abas dobradas para trás cobria-lhe os crespos cabelos castanhos.

“Mas isso é um encanto!”, pensou Hans Castorp com toda a sinceridade. “É realmente delicioso e cativante! Como são formosos, sadios, sensatos e felizes! Sim, não somente têm beleza, mas também seriedade e graça íntima. É isso o que tanto me comove e faz com que me apaixone por eles: o espírito e a mentalidade que formam a base do seu ser e lhes determinam a união e a convivência!” Referia-se àquela grande amabilidade e às considerações iguais para todos, que os filhos do sol usavam nas suas relações recíprocas. Existia ali um respeito natural, escondido sob o sorriso que uns demonstravam aos outros, a cada passo, um respeito manifestado quase imperceptivelmente, e que todavia tinha a sua raiz numa formação comum a todos, numa idéia arraigada neles. Havia até um quê de dignidade e de rigor, mas todo diluído na alegria, e que se tornava sensível nos seus atos somente em forma de certa inefável influência espiritual, fundada numa seriedade nada sombria e numa piedade razoável, embora não faltasse a tudo isso o lado cerimonioso. Pois ali, numa pedra redonda coberta de musgo, estava sentada uma jovem mãe, que retirara de um dos ombros o vestido pardo e saciava a sede do filhinho. E todos os que passavam perto dela saudavam-na de um modo especial que resumia tudo quanto ficava tão expressivamente inexprimido na atitude geral dessas criaturas. Os jovens, voltando-se para a mãe, cruzavam ligeiramente os braços sobre o peito, num gesto rápido e formal, e inclinavam a cabeça com um sorriso. As moças apenas esboçavam uma genuflexão, semelhante àquela com que os devotos na igreja passam pelo altar-mor; mas, ao mesmo tempo, faziam-lhe cordiais, alegres e vivos sinais com a cabeça, e essa mistura de reverência comedida e de amizade jovial, assim como a vagarosa brandura com que a mãe, que apertava o seio com o indicador, para ajudar o pequerrucho, tirava dele os olhos e retribuía os cumprimentos com outro sorriso – tudo isso arrebatava a alma de Hans Castorp. Não se cansava de olhar e, contudo, se perguntava, angustiado, se lhe era permitido olhar, se esse ato de encarar aquela felicidade civilizada, cheia de sol, não era um crime para ele, o intruso, que se sentia lerdo com os seus sapatos, e falta de nobreza e garbo.

Parecia não haver inconveniente. Um belo menino, cuja espessa cabeleira penteada para um lado avançava além da testa e caía sobre a fronte, achava-se embaixo do lugar onde Hans Castorp estava sentado. Com os braços cruzados sobre o peito, mantinha-se distante dos companheiros, sem dar mostras de tristeza ou de rancor, senão apenas de perfeita calma. E o rapaz divisou Hans Castorp; fixou nele o olhar, e seus olhos passaram entre o homem que estava à espreita e as imagens da praia, observando o espião. De repente, porém, levantou a vista, enxergando ao longe, por cima do estranho, e de um instante para outro desapareceu do lindo rosto de linhas clássicas, ainda meio pueris, o sorriso comum a toda essa gente que tinha a sua origem numa consideração cortês e fraternal. Sem que o cenho se tivesse anuviado, assomou-lhe no semblante uma gravidade como que pétrea, inexpressiva, insondável, um retraimento frio como a morte, que encheu o desassossegado Hans Castorp de pálido terror, mesclado de um vago pressentimento da significação dessa atitude.

Também ele virou a cabeça... Poderosas colunas sem base, compostas de blocos cilíndricos e de cujas junturas brotava musgo, erguiam-se atrás dele; as colunas de um pórtico de templo, até o qual conduziam duas escadarias, com um vão entre si. Hans Castorp encontrava-se sentado num dos degraus. Com o coração opresso, levantou-se, desceu a escada, dirigindo-se para o lado, e entrou numa extensa galeria. Atravessou-a e seguiu um caminho lajeado que o conduziu até outros propileus. Passou também por estes e defronte de si viu o templo maciço, cinzento-esverdeado, corroído pela inclemência do tempo. Escadas íngremes levavam às fundações. O largo frontão repousava sobre os capitéis de vigorosas e quase atarracadas colunas, que se adelgaçavam pata cima, e em cuja estrutura um ou outro dos tambores canelados, que se deslocara, formava uma saliência lateral. Laboriosamente, às vezes recorrendo ao apoio das mãos, por entre suspiros que lhe arrancava a crescente angústia do coração, Hans Castorp galgou os altos degraus e alcançou a floresta das colunas do peristilo. Esta era muito profunda, e o jovem passeou por ela como por entre os troncos de um bosque de faias à beira do mar descorado. Evitou penetrar-lhe no âmago e esquivou-se do centro. Mas terminou voltando-se para ele e chegou ao lugar onde se separavam as fileiras de colunas. Ali deparou com um grupo de estátuas, duas figuras de mulheres talhadas em pedra, sobre um pedestal, mãe e filha, segundo parecia; uma, sentada, mais idosa, mais digna, muito branda e divina, mas com sobrancelhas lamentosas acima dos olhos vazios, sem pupilas, trajava uma túnica flutuante, um manto pregueado e um véu que lhe cobria os cabelos ondulados de matrona; a outra, de pé, abraçada maternalmente pela primeira, com um rosto redondo de donzela, ocultava braços e mãos juntos nas dobras do vestido.

Enquanto Hans Castorp contemplava o grupo, o seu coração, por motivos obscuros, fazia-se ainda mais pesado, mais temeroso e mais opresso de presságios. Mal se animava e, contudo, se via forçado a contornar as figuras para franquear, atrás delas, a segunda colunata dupla. Aí encontrou aberta a porta brônzea do santuário, e os joelhos do pobre jovem quase cederam diante do espetáculo que se lhe oferecia aos olhos estarrecidos. Duas mulheres grisalhas, seminuas, de cabelos desgrenhados, com seios pendentes de bruxa e mamilos do comprimento de um dedo, entregavam-se lá dentro, no meio de chamejantes braseiros, a manipulações horrorosas. Por cima de uma bacia esquartejavam uma criancinha. Dilaceravam-na com as mãos, num furioso silêncio – Hans Castorp divisou os finos cabelos louros poluídos de sangue –, e devoravam os pedaços. Os frágeis ossinhos estalavam entre as suas presas, e o sangue pingava dos lábios selvagens. Um pavor gélido paralisou Hans Castorp. Fez menção de tapar os olhos com as mãos e não conseguiu. Quis fugir e não pôde. E elas acabavam de descobri-lo, no meio da sua atividade abominável. Agitaram os punhos ensangüentados, ralhando sem voz, mas com extrema vulgaridade, em termos obscenos, na gíria da terra de Hans Castorp. Este se sentiu mal, pior do que nunca. Desesperadamente esforçou-se por sair do lugar – e na mesma posição em que, durante essa tentativa, caíra de lado junto a uma coluna, encontrou-se na neve, ao pé do galpão, deitado sobre um braço, com a cabeça encostada e as pernas providas de esquis estendidas à sua frente. Ainda lhe ecoavam nos ouvidos aquelas vozes surdas, proferindo invectivas medonhas, e o terror glacial que se apoderara dele continuava a possuí-lo.

No entanto, não chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os olhos, aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e também pouco lhe importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de templo ou a um galpão. Em certo sentido prosseguia sonhando, se não em imagens, ao menos em pensamentos, porém de forma não menos atrevida e curiosa.

“Logo vi que isso era um sonho!”, devaneou de si para si. “Um sonho encantador e pavoroso. No fundo o percebia desde o começo. Tudo foi concepção minha, o parque de árvores frondosas e a chuva deliciosa e todo o resto, as imagens lindas e as monstruosas. Quase o sabia de antemão. Mas como é possível saber uma coisa dessas e concebê-la para si mesmo, tornando-se a um tempo feliz e perplexo? Donde tirei aquele belo golfo semeado de ilhas e depois o recinto do templo, ao qual me guiaram os olhares do simpático rapaz que se mantinha isolado? Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta. Aqui me acho ao pé da minha coluna e ainda sinto em mim os vestígios reais do meu sonho, o horror frio que experimentei ante a ceia sangrenta, e também a alegria íntima originada pelas cenas anteriores, quando vi a felicidade e os costumes piedosos da humanidade branca. Cabe-me – afirmo eu –, tenho o genuíno direito de me deitar aqui e de me entregar a esse tipo de sonhos. Fiquei sabendo muita coisa no convívio com a gente daqui, sobre a deserção e a razão. Perdi-me com Naphta e Settembrini numa montanha perigosíssima. Sei tudo a respeito do homem; conheci a sua carne; devolvi o lápis de Pribislav Hippe à enferma Clávdia. Mas quem conhece o corpo e a vida conhece a morte. Isso, entretanto, não é tudo, mas apenas o começo, pedagogicamente falando. É preciso acrescentar a outra metade, o oposto. Pois todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de exprimir aquele que se tem pela vida, como demonstra a humanística Faculdade de Medicina, que sempre se dirige à vida e à sua enfermidade num latim muito cortês e não é senão um matiz desse grande e urgentíssimo assunto cujo nome pronuncio com a maior simpatia: é o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu estado e sua posição. Não o desconheço; aprendi muito aqui em cima; desde a planície deixei-me arrastar a tamanhas alturas que quase perdi o fôlego. Mas agora, do pé da minha coluna, abre-se uma vista nada má... Sonhei com a posição do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam uma conclusão muito sutil e elegante. Quero, com toda a minha alma, aderir a eles e não a Naphta, nem tampouco a Settembrini. Ambos são charlatães. Um é devasso e malicioso, ao passo que o outro não deixa de tocar a corneta da razão e imagina ser capaz de desenlouquecer os próprios doidos, o que me parece absurdo. É o espírito filisteu, é mera ética, é irreligiosidade, disso tenho certeza. Mas também não desejo tomar o partido do pequeno Naphta, com a sua religião que é apenas um guazzabuglio de Deus e do Diabo, do bem e do mal, que só serve para fazer o indivíduo atirar-se de cabeça, a fim de mergulhar misticamente no todo. Esses dois pedagogos! Suas próprias divergências e oposições não passam de um guazzabuglio e de um confuso fragor de batalha, que não pode aturdir a quem tiver o cérebro mais ou menos livre e o coração piedoso. A questão da aristocracia! A distinção! Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza – há oposição entre elas? Eu pergunto se constituem problema. Não! Não são problemas, e tampouco o é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsistente. É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição, cumpre-lhe viver de um modo fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições que existem por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isso constitui a liberdade do seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre para ela, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom. Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, nas pontas dos pés, quando ela está perto. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e volúpia. A volúpia – clama o meu sonho –, não o amor! A morte e o amor, não, isso não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e ‘reinar’ bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com isso vou acordar... Pois segui o meu sonho até o fim. Alcancei o meu objetivo. Há muito que eu procurava essa idéia, no lugar onde me apareceu Hippe, no meu compartimento de sacada, e em toda parte. A minha busca me levou às montanhas cobertas de neve. Agora a possuo. Meu sonho revelou-a para mim com tanta nitidez que sempre a guardarei na memória. Sim, ela me encanta e me dá calor. Meu coração bate com força e sabe por quê. Não pulsa somente por razões físicas, assim como as unhas de um cadáver continuam crescendo; pulsa de um modo humano e certo, devido ao espírito feliz. É como uma poção, esta idéia do meu sonho, melhor do que vinho do Porto ou cerveja inglesa. Circula pelas minhas veias como o amor e a vida, e me induz a arrancar-me do sono e dos devaneios, que, como não ignoro, põem em gravíssimo perigo a minha jovem vida... Levanta-te, levanta-te! Abre os olhos! Essas pernas aí na neve são os teus próprios membros! Domina-te e coloca-te de pé! Olha só, faz bom tempo!”

Era imensamente difícil a libertação dos laços que o enredavam e procuravam mantê-lo deitado. Mas o impulso que Hans Castorp soubera tomar era mais forte. Bruscamente soergueu-se no cotovelo; com um esforço enérgico dobrou os joelhos; puxando, apoiando-se, fazendo ginástica, conseguiu pôr-se de pé. Calcou a neve com os esquis; bateu os braços em torno das costelas e sacudiu os ombros, enquanto lançava olhares nervosos e forçados em todas as direções e para o céu, onde um pálido azul assomava entre nuvens cinzento-azuladas, fininhas como um véu, que singravam devagar, descobrindo o delgado crescente da lua. Leve crepúsculo. Nada de tempestade nem de nevada. A parede rochosa do outro lado, com a encosta hirsuta de pinheiros, era plena e claramente visível, e jazia em paz. A sombra subia até meia altura, ao passo que a metade superior estava iluminada num delicadíssimo cor-de-rosa. Que é que havia? Que se passava com o mundo? Era manhã? E ficara ele deitado na neve durante toda a noite, sem morrer de congelamento, ao contrário do que se lia nos livros? Nenhum dos seus membros estava entanguido, nenhum deles se fragmentava com um ruído agudo, enquanto ele calcava o solo, agitando-se e batendo-se, o que fazia sem cessar. Mas ao mesmo tempo seus pensamentos esforçavam-se por examinar a fundo a situação. Sem dúvida, as orelhas, as extremidades das mãos e os dedos dos pés achavam-se entorpecidos, não, porém, num grau mais intenso do que muitas vezes lhe acontecera em noites de inverno, durante o repouso na sacada. Uma tentativa de tirar o relógio foi coroada de êxito. Ele andava. Não parara, como costumava fazer quando Hans Castorp se esquecia de lhe dar corda à noite. Estava ainda longe de marcar cinco horas. Faltavam doze ou treze minutos. Inacreditável! Seria possível que somente houvesse levado uns dez minutos ou pouco mais, estendido na neve, remoendo tantas imagens deleitantes ou medonhas, tantos pensamentos ousados, enquanto o tumulto hexagonal sumia com a mesma rapidez com que chegara? Nesse caso tivera uma sorte notável, do ponto de vista do regresso seguro. Pois duas vezes os seus sonhos e as suas fantasias haviam tomado um rumo que o fizera sobressaltar-se reanimado: a primeira vez, de horror; a segunda, de alegria. Parecia que a vida tinha boas intenções com seu filho enfermiço, extraviado nas alturas...

Fosse como fosse, raiasse para ele a manhã ou a tarde – indubitavelmente tratava-se ainda do crepúsculo –, em todo caso não existia nenhum obstáculo, nas circunstâncias gerais ou no estado particular de Hans Castorp, que o pudesse impedir de regressar. E foi o que fez. Com um arranco grandioso, quase em linha reta, encaminhou-se ao vale, onde, ao chegar, já encontrou as lâmpadas acesas, embora os restos da luz do dia, conservada pela neve, lhe tivessem bastado plenamente durante o caminho. Desceu pelo Bremenbühl, ao longo do bosque, e às cinco e meia alcançou a “aldeia”, onde deixou os esquis na casa do merceeiro. Foi descansar no cubículo de Settembrini, no sótão, e contou como se deixara surpreender pela tempestade de neve. O humanista mostrou-se sumamente alarmado. Ergueu a mão por cima da cabeça; censurou-o energicamente pela perigosa imprudência e não tardou em acender o crepitante fogareiro de álcool, a fim de preparar para o jovem exausto um café, cuja força, no entanto, não impediu que Hans Castorp adormecesse na cadeira.

Uma hora mais tarde, a atmosfera ultracivilizada do Berghof circundava-o com sua aura acariciadora. Por ocasião do jantar, Hans Castorp mostrou enorme apetite. O que sonhara estava em vias de apagar-se. O que pensara já não o compreendia naquela mesma noite.

 

         Como um soldado, como um valente

Hans Castorp recebia freqüentemente breves notícias de seu primo; boas e jubilosas no começo, menos favoráveis depois, e finalmente outras que mal disfarçavam fatos muito tristes. A série dos cartões-postais começara por uma mensagem humorística que comunicava a chegada de Joachim ao regimento e a cerimônia romântica, na qual, como Hans Castorp o expressou no seu cartão de resposta, o primo prestara o juramento de pobreza, castidade e obediência. E as missivas continuavam alegres, assinalando as etapas de uma carreira fácil e favorecida, aplainada pela dedicação apaixonada à profissão e pela simpatia dos superiores. Tudo isso vinha descrito em poucas palavras acompanhadas de saudações e votos de felicidade. Como Joachim cursara a universidade durante alguns semestres, haviam-no dispensado dos estudos na Escola Militar e do serviço de aspirante. No dia de Ano-Novo foi promovido a sargento e mandou uma fotografia que o mostrava numa farda guarnecida de galões. Cada um dos seus concisos relatos refletia o prazer que Joachim experimentava em face do espírito da hierarquia pundonorosa com sua disciplina férrea, que no entanto não o impedia de levar em conta as fraquezas humanas, sob a forma de um humor rude. Contou anedotas a respeito da conduta esquisita e complexa do subtenente, soldado carrancudo e fanático, que tratava o jovem e inexperiente subordinado como se já visse na sua pessoa o futuro chefe, que Joachim seria efetivamente, uma vez que já freqüentava a mesa dos oficiais. Tudo isso era turbulento e engraçado. Depois se falava da admissão ao exame para oficial. Em princípios de abril, Joachim foi promovido a tenente.

Aparentemente não existia homem mais feliz do que ele. Não se podia imaginar pessoa alguma cuja natureza e cujos desejos correspondessem mais completamente a essa forma de vida. Entre deliciado e ruborizado contava Joachim como pela primeira vez passara, no seu esplêndido uniforme novo, em frente da prefeitura e dera sinal de desfazer a continência à sentinela que apresentava armas. Descrevia as pequenas contrariedades e as satisfações do serviço; elogiava a simpática e brilhante camaradagem; falava da lealdade astuta da ordenança, de incidentes cômicos que se haviam passado durante os exercícios e as horas de instrução, de revistas e de ágapes. Também mencionava, de vez em quando, assuntos sociais, visitas, banquetes e bailes. Nunca, porém, se referia à sua saúde.

Isso durou até começos do verão. Foi quando comunicou que se achava acamado e tivera, infelizmente, de dar parte de doente. Uma febre catarral, coisa de poucos dias. Em princípios de junho voltou ao serviço, mas já por meados do mês sentiu-se novamente derreado. Queixava-se amargamente da sua má sorte e não escondia o receio de, talvez, não estar em condições por ocasião das grandes manobras que se realizariam em agosto, e das quais ansiava participar. Tolices! Em julho sentia-se perfeitamente bem, até o dia em que surgiu no horizonte a necessidade de um exame, em virtude daquelas malditas oscilações da sua temperatura. Desse exame dependeria tudo. Decorreu bastante tempo sem que Hans Castorp tivesse notícias quanto ao resultado, e quando as recebeu não foram de Joachim, que deixara de escrever, ou porque era incapaz de fazê-lo, ou porque se envergonhava. Quem telegrafou foi a mãe, a Srª. Ziemssen; anunciava que os médicos julgavam indispensável que o filho tirasse uma licença de algumas semanas, recomendavam a montanha e aconselhavam a partida imediata; pedia a reserva de dois quartos. Resposta paga. Assinado: Tia Luise. Foi em fins de julho que Hans Castorp recebeu esse telegrama no seu compartimento de sacada. Percorreu-o com os olhos, releu-o uma e duas vezes, sacudindo levemente não só a cabeça, mas também o tronco. Por fim disse entre dentes: – Sim, sim, sim! – à maneira do Sr. Settembrini. – Joachim volta! – observou, sentindo-se invadido de repentina alegria. Mas logo tornou a acalmar-se e pensou: “Hum, hum! São notícias graves. Também se poderia dizer: uma bela surpresa! Puxa, mas foi depressa! Já precisa regressar à ‘pátria’. E a mãe viaja com ele... (Disse ‘a mãe’ e não ‘tia Luise’, visto o seu senso de parentesco e de relações familiares ter-se desvanecido aos poucos.) Isto é uma circunstância agravante. E justamente na véspera das manobras, nas quais o bom Joachim tanto desejava tomar parte. Hum, hum! Tudo isso é mesmo infame; parece ironia e obra de um fator antiidealístico. O corpo triunfa, quer outra coisa que não a alma e se impõe, desmentindo aqueles arrogantes que nos ensinam que a alma reina sobre ele. Tenho a impressão de que não sabem o que dizem; pois, se tivessem razão, a alma ficaria bastante comprometida num caso como este. Sapienti sat. Já formei a minha opinião. Pois o problema que eu estou ventilando é precisamente saber até que ponto está errado opor a alma ao corpo e até onde ambos estão em conluio e jogam uma partida cujo resultado combinaram de antemão. Essa idéia, felizmente, não ocorre àquela gente presunçosa. Meu caro Joachim, ninguém quer censurar você por causa do seu zelo excessivo. É sincero, mas de que adianta a sinceridade – pergunto eu – se o corpo e a alma estão em conluio? Será possível que você seja incapaz de esquecer certos perfumes refrescantes, certos seios opulentos e certos risinhos não motivados que o esperam à mesa da Srª. Stöhr?... Joachim volta!”, pensou de novo, estremecendo de alegria. “Chegará em mau estado, evidentemente, mas estaremos juntos outra vez e não precisarei mais viver num isolamento completo. Está bem assim. Verdade é que haverá algumas modificações. O quarto dele está ocupado por Mrs. Macdonald, que ali não pára de tossir a sua tosse surda, sempre com a fotografia do filhinho na mão ou na mesinha a seu lado. Mas já se acha na fase final, e se o quarto ainda não estiver reservado... Por enquanto terão outro disponível. Se não me engano, o 28 está desocupado. Vou logo à ‘administração’ e sobretudo falarei com Behrens. Que novidade! De um lado é triste, e do outro é maravilhoso. Mas em todo caso é uma novidade e tanto. Quero apenas esperar o camarada Krokowski, que deve passar daqui a pouco, pois, como vejo, já são três e meia. Vou perguntar-lhe se também nesse caso se aferra à sua opinião de que o corpo deve ser considerado secundário ...”

Ainda antes do chá da tarde dirigiu-se ao escritório da “administração”. O referido quarto, situado no mesmo corredor que o seu, estava à sua disposição. Para a Srª. Ziemssen tampouco faltariam aposentos. Hans Castorp apressou-se a falar com Behrens. Encontrou-o no laboratório. O médico tinha um charuto numa das mãos e uma proveta com líquido de cor duvidosa na outra.

– Senhor conselheiro, já sabe da última? – começou Hans Castorp.

– Sim, que as encrencas nunca acabam – respondeu o tisiólogo. – Aí está o Sr. Rosenheim, de Utrecht – prosseguiu, apontando com o charuto para o vidro. – Tem Gaffky 10. E agora veio o fabricante Schmitz, berrando e queixando-se de que o Rosenheim escarrou durante o passeio, com Gaffky 10. Quer que eu lhe faça uma reprimenda. Mas nesse caso o homem teria um chilique, porque é sumamente irritadiço, e ele e a família ocupam três quartos. Não posso ofendê-lo, pois se fosse embora a diretoria cairia em cima de mim. Está vendo os conflitos que surgem a cada instante, ainda que a gente queira seguir seu caminho com calma e imparcialidade.

– É uma história estúpida – disse Hans Castorp com a compreensão de um veterano traquejado. – Conheço os dois senhores. O Schmitz é extremamente correto e diligente, e o Rosenheim bastante relaxado. Mas pode ser que existam ainda outros motivos de atritos, de caráter não higiênico. É o que me parece provável. Schmitz e Rosenheim são ambos amigos de Dona Perez, de Barcelona, aquela que come à mesa da Kleefeld. Acho que nisso reside a causa da desavença. Em seu lugar, eu recordaria aos pensionistas, de uma forma geral, a proibição existente, e quanto ao resto fecharia os olhos.

– Claro que fecharei. Já ando com blefarospasmo de tanto fechar. Mas por que se apresenta o senhor aqui?

E Hans Castorp comunicou a notícia triste e ao mesmo tempo maravilhosa.

Não se pode dizer que o médico se tenha mostrado surpreendido. Não o estaria em caso algum, menos ainda no presente. Hans Castorp, ou respondendo às suas perguntas ou por iniciativa própria, sempre o mantivera a par do estado de Joachim e já em maio lhe dera a notícia de que o primo caíra de cama.

– Hã, hã! – fez Behrens. – Pois então, não lhe disse? Que é que eu disse a ele e ao senhor, não dez vezes, mas cem? Durante nove meses, o homem teve tudo que desejava e gozou o seu paraíso. Mas não era um paraíso cem por cento desintoxicado, e nesse caso falta a bênção; é o que esse desertor nunca quis acreditar no velho Behrens. Convém sempre acreditar no velho Behrens. Do contrário, a gente apanha e cria juízo quando é tarde. Afinal, ele chegou a ser tenente; sim, senhor, não se discute. Mas que lhe adianta? Deus vê o coração e não se importa com graus e posição. Perante Ele aparecemos despidos de tudo, tanto o general como o soldado raso... – E desatou a tagarelar. Por fim esfregou os olhos com a manzorra, cujos dedos comprimiam o charuto, e pediu que Hans Castorp agora lhe desse uma folga. Um cômodo para Ziemssen seria coisa fácil de encontrar, e quando o primo chegasse, que o metesse na cama, imediatamente. Quanto a ele, Behrens, não guardava rancor a ninguém. Abriria paternalmente os braços e estava disposto a matar um bezerro por ocasião da volta do filho pródigo.

Hans Castorp telegrafou. Falou a todo o mundo da volta iminente do primo, e quem conhecia Joachim ouvia a nova com pesar e contentamento. Ambos esses sentimentos eram sinceros, pois o caráter limpo e cavalheiresco do jovem oficial lhe havia conquistado a simpatia geral. A opinião íntima, não expressa, de muitos ali de cima, achava que ele fora o melhor de todos. Não nos referimos a ninguém em particular, mas cremos que mais de um experimentou uma certa satisfação ao ficar sabendo que Joachim se via forçado a trocar o serviço militar pela posição horizontal] e, com toda a sua correção, tornaria a ser “um dos nossos”. Como sabemos, a Srª. Stöhr previra tudo isso desde o princípio. Os acontecimentos acabavam de consolidar-lhe o ceticismo ordinário que ela manifestara quando da partida de Joachim para a planície. Não deixou de vangloriar-se dos seus pressentimentos. – A coisa está ruim – dizia. Logo vira que a coisa cheirava mal, e agora esperava apenas que Ziemssen, com a sua teimosia, não a tivesse feito feder. (Realmente, na sua imensa vulgaridade, empregou o verbo “feder”.) Valia mais ficar no seu posto, como fazia ela, apesar de ter interesses vitais na planície, em Cannstatt, onde viviam seu marido e seus dois filhos. Mas sabia dominar-se... Não chegou mais nenhuma resposta da parte de Joachim ou da Srª. Ziemssen. Hans Castorp permaneceu na ignorância do dia e da hora da sua chegada. Por esse motivo não houve recepção na estação. Três dias após a remessa do telegrama de Hans simplesmente apareceram, e com um risinho nervoso o tenente Joachim aproximou-se da espreguiçadeira onde o primo estava cumprindo o regulamento.

Foi pouco depois do começo do repouso noturno. Trouxera-os o mesmo trem em que chegara Hans Castorp, havia anos, anos que não tinham sido nem breves nem longos, senão desprovidos de duração, anos extremamente ricos em experiências e todavia nulos e vazios. Até a estação do ano era a mesma: um dos primeiros dias de agosto. Como já dissemos, Joachim entrou alegremente. Sim, experimentou de fato uma emoção alegre, quando entrou no aposento de Hans Castorp, ou melhor, quando saiu dele, depois de ter medido o quarto a passo rápido, para ganhar a sacada. Sorrindo, saudou o primo. Em voz abafada proferiu algumas palavras entrecortadas pela respiração acelerada. Acabava de realizar a longa viagem de regresso, atravessando diversos países e o lago que parece um mar, e subindo por estreitas sendas até grandes alturas. E agora estava ali como se jamais se tivesse afastado, e seu parente, que num sobressalto se soerguera da sua posição horizontal, recebeu-o com muitos “Olá” e “Ora essa”. Joachim tinha o rosto corado, fosse devido à vida ao ar livre que levara, fosse em virtude da excitação da viagem. Diretamente, sem procurar o seu próprio quarto, precipitara-se para o número 34, a fim de cumprimentar o companheiro de dias passados que novamente se tornavam presentes. Enquanto isso, sua mãe achava-se ocupada em arrumar-se. Tinham a intenção de jantar dentro de dez minutos, naturalmente no restaurante. Hans Castorp, sem dúvida, seria capaz de comer mais alguma coisinha na sua companhia, ou pelo menos de tomar um gole de vinho. E Joachim arrastou-o ao número 28, onde tudo se passou como naquela noite da chegada de Hans Castorp, só que com os papéis trocados; Joachim, conversando febrilmente, lavava as mãos na pia lustrosa, e Hans Castorp contemplava-o, surpreendido e mesmo desapontado por ver o primo à paisana. Disse-lhe que a sua carreira militar em nada se refletia no seu exterior. Sempre o visionara como oficial de uniforme, e agora se apresentava numa roupa cinzenta como qualquer outro. Joachim riu-se, achando-o muito ingênuo. Não, senhor! A farda tinha ficado em casa, como lhe convinha. Hans Castorp devia saber que o uniforme tinha caráter bem especial. Com ele não se ia a qualquer parte. – Ah, sim. Muito obrigado – respondeu Hans Castorp. Mas Joachim não parecia dar-se conta do sentido aviltante da sua explicação. Pediu informações acerca das pessoas e dos acontecimentos do Berghof, não somente sem a menor presunção, mas com toda a intensa ternura que é própria de quem volta ao lar. A seguir, a Srª. Ziemssen apareceu na porta de comunicação. Saudou o sobrinho da maneira que certas pessoas acham adequada a essa espécie de ocasião; quer dizer, fingiu uma surpresa jovial por encontrá-lo nesse lugar. Mas a sua alegria achava-se empanada pelo cansaço e por uma silenciosa mágoa que evidentemente se ligava a Joachim. E desceram ao andar térreo.

Luise Ziemssen tinha os mesmos olhos formosos, negros e meigos de Joachim. Os cabelos igualmente pretos, mas já entremeados de muitos fios brancos, estavam presos por uma rede quase invisível, e isso harmonizava com o seu modo de ser, que era ponderado, simpaticamente comedido e controlado com brandura, o que lhe conferia uma dignidade agradável, apesar da singeleza do seu espírito. Era claro – e Hans Castorp não se admirou nem um pouquinho com esse fato – que ela não compreendia a animação de Joachim, o aceleramento da sua respiração e sua fala precipitada, fenômenos que provavelmente estavam em desacordo com a conduta que o filho tivera em casa e durante a viagem, e não correspondiam à sua situação. A mãe achou tal atitude um tanto chocante. Como essa chegada se lhe afigurasse triste, julgava conveniente adaptar a sua atitude ao caráter da situação. Era incapaz de participar dos sentimentos de Joachim, essas turbulentas emoções despertadas pela volta, cuja embriaguez no momento sobrepuja quaisquer pensamentos opostos, e que talvez fossem ainda estimuladas pela renovada aspiração do ar alpino, esse “nosso” ar incomparável, leve, inconsistente e excitante. Tudo isso, forçosamente, ficou ininteligível para a Srª. Ziemssen. “Meu pobre filho!”, pensou ela, e ao mesmo tempo via como o coitado se abandonava, junto com o primo, a uma hilaridade transbordante, ressuscitando mil recordações, fazendo mil perguntas e rindo-se das respostas, reclinado na cadeira. Diversas vezes disse: – Ora, ora, meus filhos! – E com a observação que finalmente formulou, pretendeu manifestar alegria, mas na realidade o que expressou foi estranheza e leve censura: – Joachim, faz tempo que não te vejo assim. Será possível que tivéssemos de vir aqui para que te sentisses novamente como no dia da tua promoção? – Bem! ao ouvir isso, acabou-se a alegria de Joachim. Seu bom humor transformou-se em depressão. Recobrou a consciência. Não tocou na sobremesa, embora se tratasse de um saborosíssimo suflê de chocolate com nata batida. (No seu lugar, Hans Castorp fez todas as honras ao prato, apesar de mal ter decorrido uma hora desde o fim do abundante jantar.) Joachim terminou por não mais levantar os olhos, certamente porque os tinha cheios de lágrimas.

Sem dúvida não fora essa a intenção da Srª. Ziemssen. No fundo era antes por causa das conveniências que queria obter um pouco mais de seriedade e de moderação, sem saber que tudo que é meio-termo e medida ficava estranho nesse lugar, onde só se oferecia a escolha entre os extremos. Quando viu o filho de tal maneira abatido, esteve ela mesma a ponto de chorar e sentiu-se grata ao sobrinho pelos esforços que fazia no sentido de reanimar o primo desolado. – Sim – disse –, entre os pensionistas você encontrará muitas modificações e novidades, mas alguns outros já voltaram durante a sua ausência e estão como antes. A tia-avó, por exemplo, com a sua companhia, há tempos que está de volta. Como sempre, as senhoras comem à mesa da Stöhr, e Marusja ainda gosta muito de rir.

Joachim permanecia calado. À Srª. Ziemssen, porém, essas palavras chamaram à memória um encontro e certas saudações que ela não devia esquecer de transmitir. Tratava-se de um encontro com uma senhora nada antipática, embora viajasse sozinha e tivesse sobrancelhas excessivamente regulares. Num restaurante de Munique, onde se haviam demorado um dia entre dois trajetos noturnos, essa senhora aproximara-se da mesa para cumprimentar Joachim. Era uma antiga paciente do sanatório... E pediu a Joachim que a ajudasse a lembrar o nome.

– Mme. Chauchat – disse Joachim baixinho. Por enquanto, ela se achava numa estação climatérica no Allgäu e pensava passar o outono na Espanha. No inverno, provavelmente, voltaria para ali. Mandava muitas lembranças...

Hans Castorp já não era nenhum menino. Sabia dominar os nervos vasculares que o poderiam ter feito empalidecer ou ruborizar.

– Ah, era ela? – disse. – Vejam só; saiu então do Cáucaso. E quer ir à Espanha?

Aquela senhora falara de um lugar nos Pireneus. – Mulher bonita ou pelo menos atraente. Voz agradável e gestos também agradáveis. Mas tem maneiras muito livres e negligentes – observou a Srª. Ziemssen. – Abordou-nos sem mais aquela, embora Joachim, segundo ouvi, nunca lhe houvesse sido apresentado. Que costumes estranhos!

– Aquilo vem do Oriente e da doença – explicou Hans Castorp, acrescentando que não se devia aplicar a essas coisas o padrão da civilização humanística. Isso seria erro grave. E lhe dava que pensar que Mme. Chauchat tivesse a intenção de ir à Espanha. Hum! A Espanha... Esta se encontrava na direção oposta, igualmente distante do “meio” humanístico, não ao lado da moleza, mas ao lado do rigor. Ali não havia falta de forma, senão excesso. A morte considerada como forma, por assim dizer. Não a dissolução da morte, mas a sua austeridade, de preto, distinta e sangrenta, a Inquisição, a golilha engomada, Loyola, o Escorial... Seria interessante saber qual a impressão que Mme. Chauchat teria da Espanha. Sem dúvida perderia ali o costume de bater as portas, e talvez resultasse da sua permanência um certo equilíbrio dos dois elementos anti-humanísticos, que a tornasse mais humana. Mas também era possível que surgisse um terrorismo maldoso, quando o Oriente fosse à Espanha...

Não, Hans Castorp nem empalidecera nem se ruborizara, mas a impressão que lhe haviam causado as inopinadas notícias de Mme. Chauchat traduzia-se em palavras que não podiam esperar outra resposta a não ser um silêncio penoso. Joachim mostrou-se pouco espantado, por conhecer de outras ocasiões aquela argúcia que o primo exibia ali em cima. Nos olhos da Srª. Ziemssen, porém, refletia-se a mais vasta estupefação. Comportou-se ela exatamente como se Hans Castorp acabasse de pronunciar palavrões indecentes. Depois de uma pausa cheia de embaraço, levantou-se com algumas palavras discretas, destinadas a disfarçar o incidente. Antes de se separarem, Hans Castorp comunicou a ordem do conselheiro, segundo a qual Joachim deveria passar ao menos o dia seguinte na cama, até que o médico o tivesse examinado. O mais se veria. Depois, os três parentes dirigiram-se aos seus quartos, e dentro em breve estavam estendidos, gozando o frescor da noite de verão alpino, que entrava pelas portas abertas. Cada um se entregava aos seus pensamentos. Os de Hans Castorp giravam principalmente em torno da perspectiva de rever Mme. Chauchat daí a seis meses.

E assim o pobre Joachim regressara à “pátria” para um pequeno tratamento suplementar, que julgavam oportuno. Evidentemente a expressão “pequeno tratamento suplementar” era a senha emitida na planície, e que servia também ali em cima. O próprio Dr. Behrens adotou-a, ainda que fossem logo quatro semanas de repouso na cama que pespegou a Joachim como início da cura. Estas seriam necessárias, segundo a sua opinião, para consertar os estragos mais graves, para ajudar o paciente a reaclimatar-se e para lhe regular a combustão interior. Quanto à duração do tratamento, o conselheiro soube esquivar-se a todas as tentativas de lhe marcar um prazo fixo. A Srª. Ziemssen, sisuda, compreensiva, de um temperamento nada sangüíneo, sugeriu, longe do leito de Joachim, o outono, o mês de outubro, por exemplo, como termo final. Behrens concordou com ela, pelo menos no sentido de declarar que então já se poderia ver mais claro do que agora. Causou, aliás, uma impressão excelente à mãe de Joachim. Mostrava-se muito galante; dizia “Minha prezada senhora”, fitando-a com os olhos túrgidos e estriados de sangue à maneira de vassalo leal, e usava com tanta perfeição o linguajar excêntrico dos estudantes alemães, que a Srª. Ziemssen, apesar da sua mágoa, não podia deixar de rir. – Sei que meu filho se acha em boas mãos – disse ela. Oito dias após a chegada, partiu para Hamburgo, visto não haver nenhuma necessidade séria da sua presença e o filho dispor de um parente para fazer-lhe companhia.

– Pois então! Fique contente. Você sairá no outono – dizia Hans Castorp, sentado ao pé da cama do primo, no número 28. – O Velho comprometeu-se até certo ponto. Você sabe a quantas anda e tem uma data com que pode contar. Outubro – com isso temos um termo. É a época em que certa gente vai à Espanha, e você também poderá voltar para a sua bandera, a fim de se distinguir enormemente...

Sua incumbência diária era consolar Joachim, principalmente por ter este de faltar, devido ao tratamento, às grandes manobras que começavam nesses dias de agosto. Era coisa com que o primo não se conformava. Joachim chegava ao ponto de desprezar-se a si próprio, por causa da maldita fraqueza que o fizera sucumbir no último instante.

– Rebellio carnis – explicava Hans Castorp. – Que é que se vai fazer? O mais valente oficial nada pode contra ela, e o próprio Santo Antão tinha experiência de sobra a seu respeito. Meu Deus, há manobras todos os anos, e você já sabe como corre o tempo aqui. Ele realmente não existe. Você nem sequer se ausentou o bastante para que lhe fosse difícil pegar novamente o ritmo, e num abrir e fechar de olhos o seu pequeno tratamento suplementar estará terminado.

Não obstante, o senso de tempo de Joachim havia sido reavivado pela vida na planície, e isso num grau demasiado forte para que as quatro semanas que ele tinha à sua frente não lhe inspirassem medo. Mas muita gente o ajudava a percorrê-las. A simpatia que todos sentiam por esse homem de caráter limpo manifestava-se em vista de pessoas familiares ou distantes. Veio Settembrini; mostrou-se compadecido e encantador; e como sempre houvesse tratado Joachim de tenente, passou agora a chamá-lo de capitão. Também Naphta apresentou-se, e aos poucos foram comparecendo todos os velhos conhecidos dentre os próprios pensionistas da casa, aproveitando um quarto de hora da liberdade concedida pelo regulamento, para sentar-se na beira da sua cama. Repetiam então a expressão “pequeno tratamento suplementar” e faziam-no contar o que lhe acontecera: as Sras. Stöhr, Levi, Iltis e Kleefeld, os Srs. Ferge, Wehsal e outros. Alguns até lhe levavam flores. Decorridas as quatro semanas, Joachim levantou-se, já que a febre baixara o suficiente para que pudesse caminhar. Deram-lhe o seu lugar na sala de refeições entre o primo e a Srª. Magnus, esposa do cervejeiro, o qual ficava à sua frente. Era o mesmo lugar na extremidade lateral que durante certo tempo haviam ocupado o tio James e, mais tarde, a Srª. Ziemssen.

Dessa forma, os jovens viviam de novo lado a lado, como outrora. Para que a situação anterior ressuscitasse de modo mais completo ainda, Joachim voltou a receber o seu quarto antigo, o quarto pegado ao de Hans Castorp, logo depois de Mrs. Macdonald, com o retrato do filhinho na mão, ter exalado o último suspiro, e naturalmente após uma cuidadosa desinfecção com H2CO. No fundo, e do ponto de vista sentimental, as coisas haviam mudado no sentido de que desta vez era Joachim quem vivia ao lado de Hans Castorp, e não vice-versa. Hans Castorp era agora o veterano, de cujo estilo de vida o outro participava passageiramente, como visitante. Pois Joachim aferrava-se com toda a sua energia ao termo final em outubro, ainda que no seu sistema nervoso central existissem certos pontos que se recusavam a conduzir-se em conformidade com as normas humanísticas e estorvavam a radiação compensatória da sua pele.

Os dois recomeçaram também as suas visitas a Settembrini e Naphta, bem como os passeios em companhia desses homens unidos pelo seu antagonismo. Quando A. K. Ferge e Wehsal igualmente tomavam parte, o que não raro acontecia, eram seis, e aqueles adversários no espírito tinham então um público numeroso, perante o qual travavam os seus intermináveis duelos, que não poderíamos descrever de uma forma completa sem nos perdermos num labirinto desolador, como todos os dias acontecia a eles próprios. Apesar do número crescente de ouvintes, Hans Castorp tendia a considerar a sua pobre alma o objetivo principal daquela contenda dialética. Soube por Naphta que Settembrini era maçom, o que lhe causou impressão não menos viva do que as revelações do italiano relativas ao fato de pertencer Naphta à ordem dos jesuítas e ser mantido por ela. De novo experimentou surpresa ao inteirar-se de que coisas tão fantásticas ainda existiam na realidade, e com insistência interrogava o terrorista quanto à origem e à natureza dessa curiosa instituição, que em breve celebraria o seu bicentenário. Ao passo que Settembrini, à revelia de Naphta, costumava falar da natureza intelectual do seu vizinho num tom de enfática advertência contra uma coisa diabólica, Naphta zombava francamente, na ausência do outro, da esfera que o humanista representava; dava a entender que aí predominava um espírito muito estreito e atrasado, o esclarecimento burguês e o liberalismo de antanho, que nada mais eram senão uma mísera fantasmagoria, se bem que fomentassem a ridícula ilusão de estar ainda animados de vida revolucionária. – Que quer o senhor? Seu avô já era carbonaro, quer dizer, carvoeiro – expunha Naphta. – É dele que herdou essa fé dos carvoeiros na razão, na liberdade, no progresso da humanidade e em todo esse baú cheio das virtuosas velharias da ideologia classista-burguesa... Veja, o que perturba o mundo é a desproporção entre a rapidez do espírito e a imensa lerdice, morosidade e inércia da matéria. É preciso admitir que essa desproporção basta para desculpar qualquer espírito que se desinteresse da realidade. Pois, via de regra, os fermentos que produzem as revoluções reais de há muito lhe repugnam. Com efeito, o espírito morto causa maior repulsa ao espírito vivo do que quaisquer basaltos, que, pelo menos, não pretendem ser espírito e vida. Tais basaltos, restos de realidades antigas, que o espírito deixou atrás de si tão longe que se recusa ligar a elas o conceito do real, conservam-se pela inércia, e devido a sua persistência bruta, inanimada, impedem infelizmente o insípido de se dar conta da sua insipidez. Expresso-me de um modo geral, mas o senhor pode tirar dessas generalidades conclusões a respeito daquele liberalismo humanitário que ainda crê encontrar-se numa posição heróica em face do mando e da autoridade. Ah, sim! E ainda aquelas catástrofes por meio das quais ele quer comprovar que ainda está vivo, e aqueles triunfos atrasados e espetaculares que prepara e espera realizar um dia! Só de pensar nisso, o espírito vivo seria capaz de morrer de tédio, se não soubesse que em realidade quem surgirá dessas catástrofes como vencedor e quem as aproveitará será ele mesmo, que funde no seu seio os elementos do vetusto com os do mais longínquo porvir, para fazer uma revolução de verdade... Como vai seu primo, Hans Castorp? O senhor sabe que sinto grande simpatia por ele.

– Obrigado, Sr. Naphta. Acho que todo mundo tem por Joachim uma simpatia sincera, porque é de fato excelente rapaz. Também o Sr. Settembrini gosta dele especialmente, embora desaprove certo terrorismo fanático que é peculiar ao ofício de Joachim. E agora o senhor me diz que ele é maçom. Imaginem! Não nego que isso me dê que pensar. Sua pessoa me aparece sob uma luz diferente, e muitas coisas tornam-se mais claras para mim. Será que ele coloca às vezes os pés em ângulo reto e aperta a mão da gente de um modo especial? Nunca notei nada de tudo isso...

– Creio – opinou Naphta – que o nosso simpático Irmão Tripingado já passou da idade de tais criancices. Suponho que o cerimonial das lojas tenha sido adaptado, embora de um modo bastante incompleto, ao prosaico espírito cívico dos nossos tempos. Provavelmente sentiriam vergonha do ritual de outrora como de charlatanices indignas de gente civilizada e com razão, pois seria deveras absurdo disfarçar de mistério o republicanismo ateu. Não sei por que série de atrocidades foi posta à prova a constância do Sr. Settembrini; pode ser que o hajam levado com os olhos vendados através de uma porção de galerias ou feito esperar em calabouços escuros, antes de lhe abrirem a sala do conclave, deslumbrante de luzes refletidas por espelhos. Talvez o tenham catequizado solenemente. Quem sabe se não lhe ameaçaram com espadas o peito desnudo, em frente de uma caveira e de três velas acesas! Isso o senhor deve perguntar a ele mesmo, mas receio que o encontre pouco loquaz; pois ainda que tudo tenha decorrido de modo muito mais civil, em todo caso o mandaram fazer juramento de silêncio.

– Juramento de silêncio? Então é verdade?...

– Claro. Silêncio e obediência.

– Obediência também? Escute, professor, nesse caso me parece que ele absolutamente não tem motivos de se escandalizar da exaltação e do terrorismo inerentes à profissão do meu primo. Silêncio e obediência! Eu nunca teria imaginado que um homem tão liberal como Settembrini pudesse sujeitar-se a condições e votos tão tipicamente espanhóis. Realmente, farejo na maçonaria um elemento militar ou jesuítico...

– E seu faro não engana – respondeu Naphta. – Sua varinha mágica estremece e inclina-se. A idéia da associação é inseparável e tem raiz comum com a do incondicional. Por conseguinte é terrorística, isto é, antiliberal. Exonera a consciência individual e santifica, em nome da finalidade absoluta, todos os meios, também os sangrentos, inclusive o crime. Existem indícios de que antigamente a união dos irmãos costumava ser selada com sangue também nas lojas maçônicas. Uma união nunca é contemplativa, mas sempre é essencialmente organizadora, sob a direção de um espírito absoluto. Ignora o senhor que o fundador da Sociedade dos Iluminados, que durante algum tempo esteve a ponto de fundir-se com a maçonaria, era antigo membro da Companhia de Jesus?

– De fato, eu não sabia nada disso.

– Adão Weishaupt organizou a sua ordem secreta e humanitária na mais completa conformidade com o sistema dos jesuítas. Ele mesmo era maçom, e os mais conceituados membros das lojas daquela época faziam parte dos iluminados. Refiro-me à segunda metade do século XVIII, que Settembrini não hesitaria em qualificar de fase de decadência da sua irmandade. Na realidade, porém, foi o período de maior florescimento, como foi para todas as sociedades secretas, o tempo em que a maçonaria de fato se alçava a uma vida superior, vida que foi extinta mais tarde por homens da laia do nosso filantropo, que, se tivesse vivido naquela época, indubitavelmente teria pertencido aos que a tachavam de jesuítica e obscurantista.

– E havia motivos para isso?

– Sim, se assim quiser. O liberalismo trivial tinha suas razões para pensar dessa forma. Era o tempo em que os nossos padres procuravam encher a associação de vida hierárquico-católica; então florescia em Clermont, na França, uma loja de jesuítas maçons. Era, além disso, a época em que as lojas foram penetradas pelo espírito da Rosacruz, essa confraria bem singular, a cujo respeito o senhor pode gravar na memória que ela aliava objetivos de aperfeiçoar e afortunar o mundo, objetivos puramente racionalistas e político-sociais, a estranhas relações com as ciências secretas do Oriente, com a sabedoria índica e árabe, e com o conhecimento mágico da natureza. Foi naquele período que se realizaram a reforma e a emenda do sistema de muitas lojas maçônicas, no sentido da estrita observância, sentido expressamente irracional e misterioso, mágico e alquimista, ao qual os graus elevados do rito escocês da maçonaria devem a sua origem. Aí se trata de graus de ordens de cavaleiros, que foram acrescentados à velha hierarquia militar de aprendiz, oficial e mestre, graus de grão-mestres, que embocavam na esfera hierática e estavam compenetrados da sabedoria secreta da Rosacruz. Deparamos nesse ponto com uma volta para certas ordens de cavaleiros a serviço da religião, principalmente os templários, que, como o senhor sabe, prestavam diante do patriarca de Jerusalém o juramento de pobreza, de castidade e de obediência. Ainda hoje existe um grau elevado da maçonaria que se intitula “Príncipe de Jerusalém”.

– Tudo isso é novo para mim, Sr. Naphta, totalmente novo. Mas assim consigo entender os truques do nosso amigo Settembrini... “Príncipe de Jerusalém!” Nada mau. O senhor deveria chamá-lo assim, numa boa ocasião, por brincadeira. Ele o tratou, outro dia, de “Doctor Angelicus”, e isto exige vingança.

– Ora, há ainda uma porção de títulos igualmente altissonantes para os graus elevados, de origem templária, que a maçonaria criou. Encontramos um Mestre Perfeito, um Cavaleiro do Oriente, um Grão-Sacerdote, e o grau 31 até se intitula “Augusto Príncipe do Mistério Real”. O senhor pode notar que todas essas denominações’ revelam relações com a mística oriental. A própria ressurreição dos templários significa nada mais nada menos que o reatamento de tais relações, e representa a irrupção de fermentos irracionais num mundo de idéias empenhado em melhorar a sociedade por meios razoáveis e utilitaristas. Desse modo, a maçonaria ganhou novos atrativos e um brilho inédito, que explicam o sucesso que teve naquela época. Aliciava todos os elementos que estavam fartos do racionalismo do século, com seu esclarecimento e comedimento humano, e sentiam sede de filtros mais potentes. O êxito da ordem foi tal que os filisteus se lamentavam de ela alhear os maridos da felicidade doméstica e da dignidade feminina.

– Bem, professor, nesse caso é compreensível que o Sr. Settembrini não goste de se recordar dessa fase de florescimento da sua ordem.

– Pois é. Não gosta mesmo de recordar-se de épocas em que a sua associação atraía sobre si todas aquelas antipatias que o liberalismo, o ateísmo e a razão enciclopédica devotam normalmente ao complexo Igreja, catolicismo, monge, Idade Média. Já lhe disse que os maçons foram censurados por seu obscurantismo...

– Por quê? Eu desejaria que o senhor me explicasse isso.

– Já lhe digo. A estrita observância equivalia a um aprofundamento e a uma ampliação das tradições da ordem. Fazia remontar as suas origens históricas ao mundo dos mistérios, às chamadas trevas da Idade Média. O grau de grão-mestre pertencia nas lojas a pessoas iniciadas na physica mystica, a portadores do conhecimento mágico da natureza, e na maior parte a grandes alquimistas...

– Agora tenho que fazer um esforço brutal para lembrar-me mais ou menos bem das finalidades da alquimia. Acho que alquimia significa fazer ouro, a pedra filosofal, aurum potabile...

– Sim, senhor, em termos populares. Numa linguagem mais erudita, porém, trata-se de purificação, transformação e refinamento da matéria, de transubstanciação, e isso para uma forma mais elevada, mais sublime. O lapis philosophorum, o produto hermafrodita de enxofre e mercúrio, a res bina, a prima materia bissexual, nada mais era senão o princípio da sublimação, do impulso para o alto, dado por meio de agentes exteriores. É pedagogia mágica, se assim quiser.

Hans Castorp permaneceu calado.

– Sobretudo a sepultura –- prosseguiu Naphta – era símbolo da transmutação alquimística.

– O túmulo?

– Sim, o local da putrefação. A tumba é o protótipo de tudo quanto é hermético. Não é outra coisa a não ser o receptáculo, o alambique de cristal, cuidadosamente conservado, onde a matéria é comprimida até se conseguir a sua derradeira metamorfose e depuração.

– “Hermético”, muito bem, Sr. Naphta. Sempre gostei do adjetivo “hermético”. É uma verdadeira palavra mágica, com associações de idéias vagas e distantes. O senhor me desculpe, mas eu não posso deixar de pensar nos vidros Weck que a nossa governanta, Schalleen – assim se chama, sem senhora nem senhorita, simplesmente Schalleen –, esses vidros que ela guarda enfileirados nas prateleiras da despensa da nossa casa em Hamburgo. São uns vidros hermeticamente fechados, que contêm frutas, carne e outras coisas mais. Ficam ali durante muitos anos, e quando se abre um, segundo as necessidades, o conteúdo está fresco e perfeito. O tempo não consegue prejudicá-lo. Qualquer deles é comestível. Verdade é que aí não se trata de alquimia e de purificação. É apenas conservação, como indica o nome “conservas”. Mas o que há de mágico nessa história é que o conteúdo dos vidros Weck se acha subtraído à influência do tempo. Fica separado dele de um modo hermético. O tempo passa a seu lado. Para esses vidros não existe tempo; encontram-se fora dele nas suas prateleiras. Bem, basta de vidros Weck! Não é lá grande coisa o que eu disse. Perdão, Sr. Naphta, creio que o senhor queria prosseguir nas suas deduções.

– Desde que o senhor o deseje. Para adaptar-me ao estilo do nosso assunto: o aprendiz deve ser ávido de saber e livre de temor. A tumba, o túmulo, sempre tem sido o símbolo principal da iniciação na ordem. O aprendiz, o calouro que pretende ser admitido à sabedoria, precisa passar pelos calafrios da sepultura, para comprovar a sua impavidez. A tradição da ordem requer que, a título de experiência, ele seja levado ao sepulcro e tenha de permanecer nele, até sair guiado pela mão fraternal de um desconhecido. Aí temos a origem dos labirintos e dos calabouços escuros que o noviço tem de atravessar, do pano negro de que estava revestido o próprio conclave da estrita observância, o culto do ataúde, que desempenhava um papel muito importante nas cerimônias de iniciação e nas reuniões. O caminho dos mistérios e da purificação achava-se flanqueado de perigos; passava através do terror da morte, através do reino da decomposição, e o aprendiz, o neófito, é a juventude desejosa de conhecer os milagres da vida, impaciente por ser dotada da capacidade de suportar experiências demoníacas, a juventude guiada por homens mascarados que são apenas sombras do mistério.

– Muito obrigado, Professor Naphta. Magnífico! Então é isso o que se chama pedagogia hermética. Não me pode fazer mal ter ouvido essas coisas.

– Tanto mais que se trata de uma senda que leva à esfera extrema, ao reconhecimento irrestrito do transcendente, e com isso ao nosso destino final. Ainda nos decênios posteriores, a observância alquimística das lojas conduziu rumo a esse objetivo muitos espíritos nobres e investigadores. Não preciso pronunciar o nome desse objetivo, uma vez que não pode ter escapado ao senhor que a seqüência de graus do rito escocês é apenas um sucedâneo da hierarquia; que a sabedoria alquimística do mestre-pedreiro culmina no mistério da metamorfose, e que a orientação secreta que a loja dá aos seus discípulos se encontra nos recursos da graça, tão nitidamente como os joguinhos simbólicos do cerimonial maçônico reaparecem na simbólica litúrgica e construtiva da nossa Santa Igreja Católica.

– Ah, sim!

– Com licença! Isto não é tudo. Já tomei a liberdade de observar que é apenas uma superficialidade histórica derivar a maçonaria da honrada corporação dos pedreiros. A estrita observância, pelo menos, proporcionou-lhe alicerces muito mais profundos, no sentido humano. Os segredos das lojas têm em comum com os mistérios da nossa Igreja as relações evidentes com as solenidades ocultas e os excessos sagrados da humanidade mais remota... Quanto à Igreja, refiro-me à ceia, ao ágape, ao consumo sacramental da carne e do sangue, e no que diz respeito às lojas...

– Um instante, por favor! Deixe-me fazer uma observação à margem! Também naquela comunidade exclusiva a que pertence meu primo existem ágapes. Diversas vezes, ele me escreveu sobre eles. Abstração feita de alguns que se embriagam um pouco, o resto se passa de modo bem correto, muito mais do que nos festins de grêmios estudantis...

–... e no que diz respeito às lojas, refiro-me ao culto da tumba e do ataúde, sobre o qual há pouco chamei a sua atenção. Em ambos os casos trata-se do simbolismo das coisas derradeiras e extremas, de elementos de uma religiosidade primitiva, orgíaca, de desenfreados sacrifícios noturnos em honra dos processos de morrer e de nascer, da morte, da metamorfose e da ressurreição... O senhor se lembra talvez de que os mistérios de Isis bem como os de Elêusis costumavam ser celebrados à noite e em tenebrosas cavernas. Bem, na maçonaria existiram e ainda existem muitas reminiscências egípcias, e entre as sociedades secretas houve algumas que se denominaram alianças eleusinas. Efetuavam-se solenidades de lojas, sob o nome de festas dos mistérios eleusinos e dos segredos afrodisíacos, e nessas ocasiões até as mulheres desempenhavam importante papel. E as festas das rosas, às quais aludem as três rosas azuis do avental de maçom, e que, segundo parece, terminavam em bacanais...

– Ora veja, Professor Naphta, que está me dizendo? E tudo isso faz parte da maçonaria? E a essas coisas devo associar, no meu espírito, o nosso amigo Settembrini, esse homem esclarecido...

– Nesse caso, seria muito injusto para com ele. Não, senhor! De todos esses costumes antigos Settembrini não sabe absolutamente nada. Eu já lhe disse que os homens da sua laia tornaram a expurgar as lojas de quaisquer elementos de vida superior. Meu Deus, a maçonaria humanizou-se e modernizou-se. Tem-se livrado de aberrações dessa espécie e reencontrou o caminho do proveito, da razão e do progresso, da luta contra príncipes e padres, numa palavra: o caminho do aperfeiçoamento social. As lojas voltaram a ocupar-se da natureza, da virtude, da moderação e da pátria, e como suponho, também dos negócios. Em suma: é a mísera mentalidade da burguesia, sob a forma de um clube...

– Que lástima! Quanto às festas das rosas, é mesmo uma pena. Vou perguntar a Settembrini se realmente ignora essas coisas.

– O honrado cavaleiro do esquadro! – exclamou Naphta sarcasticamente. – Não esqueça que ele teve de trabalhar muito para ser admitido a participar das obras do Templo da Humanidade. Settembrini é pobre como um rato de igreja, e naquela roda não somente se exige cultura, isto é, cultura humanística, mas também se faz questão de que os membros pertençam às classes abastadas, para que sejam capazes de pagar as jóias e mensalidades nada modestas. Cultura e bens – nisso se resume o burguês! Aí temos os alicerces da república universal e liberal...

– Com efeito! – confirmou rindo Hans Castorp. – Aí temos tudo isso em plena evidência.

– Mesmo assim – acrescentou Naphta, depois de um pequeno silêncio – dou-lhe o conselho de não fazer pouco-caso desse homem e da sua causa. Uma vez que estamos falando desse assunto, gostaria até de recomendar-lhe que se ponha em guarda. O absurdo nem por isso é inocente. A estreiteza não é necessariamente inofensiva. Aquela gente deitou muita água no seu vinho, que em outros tempos foi capitoso. Mas a própria idéia da ordem permanece bastante forte para suportar uma boa dose de diluição; conserva restos de um mistério fecundo; é indubitável que as lojas influem sobre o jogo do mundo, e tampouco se pode duvidar de que esse simpático Sr. Settembrini representa mais do que apenas a sua própria pessoa, e que atrás dele agem forcas formidáveis das quais ele é parente e emissário...

– Emissário?

– Sim, um fazedor de prosélitos, um pescador de almas.

“E que tipo de emissário é você?”, pensou Hans Castorp, mas em voz alta disse:

– Muito obrigado, Professor Naphta. Fico-lhe sinceramente grato pelos seus conselhos e pela sua advertência. Quer saber uma coisa? Vou subir ao andar superior, se é que aquilo pode ser qualificado de andar, e sondarei um pouquinho aquele maçom disfarçado. Um aprendiz deve ser ávido de saber e livre de temor... Claro que a prudência também é indicada. Quem trata com emissários necessita dela...

Hans Castorp não precisava ter receios de solicitar informações mais pormenorizadas ao Sr. Settembrini, visto que este não tinha nenhum motivo para censurar a Naphta alguma falta de discrição. Além disso, o humanista jamais se esforçara por manter em segredo o fato de pertencer àquela sociedade harmoniosa. A Rivista della Massoneria Italiana achava-se aberta sobre a sua mesa; Hans Castorp, porém, até esse momento nunca dera por ela. E quando, avisado por Naphta, encaminhou a conversa na direção da “arte real”, como se as relações de Settembrini com a maçonaria fosse coisa indiscutível, encontrou muito pouca reserva. Verdade é que havia pontos a respeito dos quais o literato não se expressava, mas preferia cerrar os lábios ostensivamente, decerto forçado por aqueles votos terroristas que Naphta mencionara. Mostrava-se misterioso quanto aos costumes exteriores e à sua própria posição dentro dessa organização notável. Quanto ao mais, porém, armou sua roda e esboçou para o seu interlocutor curioso um vasto quadro da extensão da sua liga, que estava difundida pelo mundo inteiro, com mais de vinte mil lojas e cento e cinqüenta grã-lojas, e tinha representação até em países como o Haiti e a república negra da Libéria. Citou também uma porção de nomes de grandes homens que haviam sido, ou na atualidade eram, maçons: Voltaire, Lafayette e Napoleão, Franklin e Washington, Mazzini e Garibaldi, e, entre os vivos, o próprio rei da Inglaterra, bem como numerosas personalidades em cujas mãos se achavam os destinos dos Estados europeus, membros de governos e de parlamentos.

Hans Castorp manifestou respeito, mas nenhuma surpresa. Segundo a sua opinião, o mesmo se dava com os grêmios estudantis. Estes também se mantinham unidos durante toda a vida e sabiam colocar a sua gente, de maneira que dificilmente alguém conseguia abrir caminho na hierarquia administrativa sem pertencer a um desses corps. Por isso, talvez não fosse coerente da parte do Sr. Settembrini enumerar tantos nomes célebres de irmãos de loja, na intenção de apresentar um fato lisonjeiro para a Maçonaria. Pelo contrário, devia-se argumentar que a ocupação de tantos cargos importantes por membros de lojas demonstrava precisamente o poder da associação, que exercia decerto sobre o jogo do mundo maior influência do que o Sr. Settembrini queria admitir.

Settembrini sorriu. Chegou a se abanar com o exemplar da Massoneria que tinha na mão. – Será que o senhor me quer armar uma cilada? – perguntou. – Ou tem, porventura, a intenção de me induzir a dizer coisas imprudentes acerca da natureza política e do espírito essencialmente político das lojas? Quanta astúcia desnecessária, engenheiro! Professamos a política, sem rodeios, abertamente. Desprezamos o cunho odioso que certos idiotas, sobretudo na sua terra, engenheiro, e quase em nenhum outro país, gostam de imprimir a essa palavra e a essa atividade. Um filantropo absolutamente não pode reconhecer a diferença entre política e não-política. Não existe a não-política. Tudo é política.

– Sumariamente?

– Eu sei muito bem que há pessoas que julgam necessário chamar a atenção sobre a natureza primitivamente apolítica da idéia da maçonaria. Mas essa gente joga com as palavras e traça fronteiras que de há muito devem ser consideradas fictícias e absurdas. Em primeiro lugar, as lojas espanholas, ao menos, tiveram desde o início caráter político...

– É o que eu pensava.

– O senhor pensa pouco, engenheiro. Não imagine ser capaz de pensar muita coisa sozinho, mas procure ser receptivo e assimilar. Rogo-lhe isso no seu próprio interesse tanto como no interesse do seu país e da Europa. Assimile o que estou a ponto de lhe ensinar, em segundo lugar: a idéia maçônica jamais tem sido apolítica, em época alguma; não podia sê-lo, e se acaso acreditasse sê-lo, andaria equivocada com respeito à sua natureza. Que é que somos? Pedreiros e ajudantes que trabalham numa obra de construção. Todos perseguem um mesmo objetivo; o bem da totalidade é a lei básica da fraternização. Qual é esse bem, essa construção? O edifício social artisticamente construído, a perfeição da humanidade, a nova Jerusalém. Que tem que ver com isso, afinal de contas, a distinção entre política e não-política? A questão social, a própria questão da co-existência são política, cem por cento política, nada mais que política! Quem se consagra a elas – e quem deixasse de fazê-lo não mereceria o nome de homem – pertence à política, à exterior tanto quanto à interna, e compreende que a arte do maçom é a arte de reger...

– De reger?

– ... que a maçonaria dos iluminados conhecia o grau de Regente...

– Muito bem, Sr. Settembrini. A arte de reger, o grau de Regente. Isto me agrada. Mas agora me diga uma coisa: os senhores são cristãos, lá na sua loja?

– Perchè?

– Perdão, quero formular a pergunta de outra forma, mais geral e mais simples: os senhores acreditam em Deus?

– Vou lhe responder. Mas por que pergunta assim?

– Não é minha intenção provocá-lo, mas há uma história na Bíblia, na qual alguém tenta o Salvador com uma moeda romana e recebe a resposta de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. A mim me parece que essa maneira de distinguir nos leva à diferença entre política e não-política. Se Deus existe, existe também essa diferença. Acreditam os maçons em Deus?

– Eu me comprometi a responder-lhe. O senhor fala de uma unidade que se procura criar, mas que por enquanto ainda não se tornou realidade, para o maior pesar dos bem-intencionados. Não há liga universal dos maçons. Se ela se realizar um dia – e repito que se trabalha silenciosa e assiduamente nessa grande obra – terá indubitavelmente uma confissão religiosa uniforme, nos seguintes termos: Écrasez l’infame!

– De modo obrigatório? Isto não seria tolerante.

– Acho, meu caro engenheiro, que o senhor não é capaz de discutir o problema da tolerância. Mas, pelo menos, grave na sua memória que a tolerância se torna crime quando se devota ao mal.

– E Deus seria o mal?

– A metafísica é o mal. Não serve para nada a não ser para adormecer a energia que deveríamos consagrar à construção do Templo da Sociedade. Por isso é que o Grande Oriente da França, já faz vinte e cinco anos, abriu caminho, riscando o nome de Deus de todos os seus documentos. Nós, os italianos, seguimos esse exemplo...

– Como isso é católico!

– Que disse o senhor?

– Que eu acho sumamente católica a idéia de riscar Deus.

– Aonde é que o senhor quer chegar?

– A nada especialmente interessante, Sr. Settembrini. Não preste demasiada atenção às minhas palavras! Só que durante um momento eu tive a impressão de que o ateísmo era coisa enormemente católica, e que riscavam Deus apenas para que pudessem ser melhores católicos.

A isso, o Sr. Settembrini intercalou uma pausa; mas era evidente que só o fazia devido a ponderações pedagógicas. Após um silêncio comedido, respondeu:

– Meu caro engenheiro, longe de mim a intenção de fazê-lo vacilar no seu protestantismo ou de melindrar-lhe os sentimentos de protestante. Estávamos falando de tolerância... É supérfluo salientar que eu sinto pelo protestantismo mais do que mera indulgência; encaro-o com profunda admiração, como o oponente histórico do estrangulamento da consciência. A invenção da imprensa e a Reforma são e permanecerão os dois méritos supremos que a Europa central teve na causa da humanidade. Isso não se discute. Mas, depois das palavras que o senhor acaba de proferir, não duvido de que me compreenderá, quando lhe indicar que este é apenas um dos aspectos do assunto, e que existe ainda um outro aspecto. O protestantismo encerra em si elementos que... A própria pessoa do seu reformador encerrava em si certos elementos... Eu me refiro aos elementos do quietismo e do ensimesmamento hipnótico, que não são europeus, que são estranhos e hostis à lei vital deste continente altivo. Olhe-o bem, esse Lutero! Contemple os retratos dele, os da sua juventude e os posteriores! Que tipo de crânio é esse? Que significam essas maçãs? Que significa a singularidade dos olhos? É a Ásia, meu amigo! Eu ficaria admirado, sumamente admirado, se não houvesse nele uma mistura de sangue vênedo, eslavo ou sármata, e se o fenômeno inegavelmente grandioso que representa esse homem significasse que um dos pratos da balança, que no seu país se acham equilibrados de forma muito precária, recebe uma sobrecarga fatal. Nesse caso, um peso formidável teria caído no prato oriental, fazendo com que o outro, o ocidental, ainda hoje esteja subindo até o céu...

Settembrini abandonara a papeleira de humanista, junto à janelinha, e aproximara-se da mesa redonda com a garrafa de água. Acercou-se então de seu discípulo, que estava sentado no divã, sem se recostar, apoiando o cotovelo no joelho e o queixo na mão.

– Caro – disse.o Sr. Settembrini. – Caro amico! Será necessário tomar decisões, decisões de importância inestimável para a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberão ao seu país. Situado entre o Oeste e o Leste, terá de escolher, terá de declarar-se definitiva e conscientemente por uma ou outra das duas esferas que lhe disputam a natureza. O senhor é jovem. O senhor participará dessa decisão. Sua vocação é contribuir para ela. Bendigamos, pois, o destino, embora o tenha arrastado até estas paragens medonhas. Mas ao mesmo tempo me proporcionou uma oportunidade para exercer influência sobre a sua juventude maleável, por meio das minhas palavras, que não são inteiramente desprovidas de experiência e de vigor, uma oportunidade para fazê-lo sentir a responsabilidade que pesa sobre essa juventude, sobre a sua pátria, perante a civilização...

Hans Castorp continuava sentado, com o queixo apoiado na mão cerrada. Olhava para fora, através da janelinha do sótão, e nos singelos olhos azuis podia-se perceber uma certa recalcitrância. Permaneceu calado.

– O senhor não responde? – perguntou o Sr. Settembrini, comovido. – O senhor e o seu país guardam um silêncio cheio de reserva, um silêncio cuja falta de transparência não permite avaliar-lhe a profundidade. Não gostam da palavra, ou não sabem servir-se dela, ou ainda a tratam, de modo pouco amistoso, como coisa sagrada; em todo caso, o mundo articulado ignora e não está sendo informado a quantas anda. Isso é perigoso, meu amigo. A língua é a própria civilização... Toda palavra, até a mais antagônica, estabelece contato... Mas o mutismo isola. Os outros chegam a suspeitar que vocês procurarão romper esse isolamento por meio de atos. Vocês farão avançar o primo Giacomo (Settembrini, para maior comodidade, tinha o costume de chamar Joachim de “Giacomo”)... farão o primo Giacomo marchar à frente do seu silêncio, “e com golpes poderosos, mata dois; os outros fogem”...

Como Hans Castorp se pusesse a rir, também o Sr. Settembrini esboçou um sorriso, satisfeito, pelo menos momentaneamente, com o efeito das suas palavras plásticas.

– Muito bem, riamo-nos! – disse. – O senhor sempre me encontrará disposto para a alegria. “O riso é o reflexo resplandecente da alma”, diz um escritor antigo. Além disso, perdemos o fio da conversa e nos desviamos para assuntos que, não o nego, estão em conexão com as dificuldades que se opõem aos nossos trabalhos preparatórios em prol da fundação da liga universal maçônica, dificuldades que têm sua origem sobretudo na Europa protestante... – E o Sr. Settembrini prosseguiu falando com ardor acerca da idéia dessa liga, que nascera na Hungria, e cuja esperada realização estava destinada a outorgar à maçonaria um poder decisivo nas questões mundiais. A essa altura apontou para cartas relativas ao assunto, que recebera de próceres estrangeiros da associação; mostrou um bilhete do próprio punho do Grão-Mestre da Suíça, o irmão Quartier la Tente, do grau 33, e comentou o projeto de fazer do esperanto o idioma oficial da organização. Elevado por seu zelo até a esfera da alta política, dirigiu os olhos para todas as direções imagináveis e avaliou as probabilidades de triunfo que a idéia republicano-revolucionária tinha no seu próprio país, bem como na Espanha e em Portugal. Afirmou corresponder-se também com os dirigentes da grã-loja desse último reino, onde indubitavelmente as coisas se encaminhavam para uma decisão. Que Hans Castorp se lembrasse das suas palavras, quando, dentro em breve, os acontecimentos ali começassem a precipitar-se. O jovem prometeu fazê-lo.

Convém observar que essas palestras maçônicas, mantidas entre o discípulo e cada um dos mentores em separado, se haviam efetuado numa época anterior à da volta de Joachim. A discussão que relataremos agora teve lugar depois dessa data na sua presença, umas nove semanas após o regresso, em princípios de outubro. Se Hans Castorp conservou na memória a referida reunião sob o sol outonal, em frente da estância de “Platz”, com bebidas refrescantes na mesa, é porque naquele dia se preocupava secretamente com Joachim. Essa preocupação era causada por indícios e fenômenos que normalmente não costumam inspirar cuidados, a saber, dores de garganta e rouquidão. Tratava-se, pois, de moléstias inofensivas, mas que se apresentavam ao jovem Hans Castorp sob uma luz especial, que era precisamente aquela que ele pensava descobrir no fundo dos olhos do primo, esses olhos que sempre haviam sido grandes e meigos, mas precisamente nesse dia, e não antes, lhe apareciam maiores e mais profundos. Era como se tivessem assumido expressão meditativa e – deve-se acrescentar a estranha palavra – ominosa, além daquela já mencionada iluminação que lhes vinha de dentro. Seria absolutamente errado afirmar que Hans Castorp não gostava dessa expressão; pelo contrário, ela até lhe agradava muito, deixando-o, entretanto, preocupado. Numa palavra, não se pode falar dessas impressões de outra forma a não ser daquela maneira confusa que correspondia ao seu próprio caráter.

A palestra, ou melhor, a controvérsia – travada, naturalmente, entre Naphta e Settembrini – girava em torno de um assunto diferente e tinha um nexo apenas frouxo com a maçonaria. Além dos primos, Ferge e Wehsal também se achavam presentes, e o interesse de todos era grande, embora alguns não estivessem à altura da discussão. O Sr. Ferge, por exemplo, observou isso expressamente. Contudo, uma luta disputada, como se a própria vida estivesse em jogo, mas cujo espírito e esmero faziam supor que não se tratava da vida, senão de um torneio elegante – como acontecia em todas as contendas de Naphta e Settembrini –, tal luta é obviamente e de per si interessante, mesmo para quem pouco entende do assunto e apenas vagamente lhe enxerga o alcance. Até pessoas estranhas, nas mesas vizinhas, escutavam a troca de palavras, admiradas e atraídas pela paixão e pela graça do diálogo.

Como já dissemos, isso se deu defronte à estância, depois do chá da tarde. Ali os quatro pensionistas do Berghof haviam-se encontrado com Settembrini e, por casualidade, Naphta se reunira a eles. Estavam todos agrupados em volta de uma mesinha de metal, na qual se achavam diversas bebidas diluídas com água de soda, bem como cálices com anis e vermute. Naphta, que nesse local costumava tomar a merenda, pedira vinho e doces, que evidentemente constituíam uma reminiscência do seu noviciado. Joachim umedecia, com muita freqüência, a garganta enferma com limonada, que tomava muito concentrada e bem azeda, porque assim ela lhe contraía os tecidos e lhe dava algum alívio. Settembrini bebia simples água açucarada, mas servia-se de um canudo com tanto prazer como se saboreasse o mais fino de todos os refrescos.

– Que é que ouvi, engenheiro? – disse ele, caçoando. – Que rumor acaba de chegar aos meus ouvidos? Voltará a sua Beatriz? A sua guia através das nove esferas giratórias do Paraíso? Bem, espero que, apesar disso, o senhor não rejeite por completo a mão amiga e orientadora de seu Virgílio. Aqui o nosso eclesiástico lhe pode confirmar que o mundo do medio evo não é completo enquanto falta à mística franciscana o pólo oposto do conhecimento tomista.

Todos riram de tanta erudição bem-humorada. Olharam Hans Castorp, que também se riu e levantou o cálice de vermute à saúde do “seu Virgílio”. Parece incrível que um interminável conflito de idéias enchesse a hora seguinte em resultado dessas palavras inofensivas, se bem que rebuscadas, de Settembrini. Naphta, que em certo sentido se julgava provocado, passou imediatamente ao ataque e investiu contra o poeta latino, notoriamente idolatrado pelo humanista, que o colocava acima de Homero. Naphta, por sua vez, já demonstrara em diversas ocasiões o maior desdém por ele como por todos os demais poetas latinos, e com presteza e malícia aproveitou-se também dessa oportunidade para fazê-lo. Observou que da parte do grande Dante era uma atitude parcial, muito bondosa e arraigada na época, essa de cercar de tanta solenidade um versejador medíocre e de outorgar-lhe no seu poema um papel tão importante, ainda que o Sr. Lodovico atribuísse a esse papel caráter demasiado maçônico. Que valor tinha, afinal, esse cortesão laureado, bajulador da Casa Júlia, com sua retórica pomposa, mas desprovida da menor centelha de espírito criador, esse literato de cidade grande, cuja alma, se é que possuía uma, era indiscutivelmente de segunda mão e que de maneira alguma era poeta, mas apenas um francês de peruca empoada em plena era de Augusto?

O Sr. Settembrini não duvidou de que o seu interlocutor soubesse encontrar meios e caminhos para conciliar o menosprezo que sentia pela fase da mais alta civilização romana com as suas funções de professor de latim. No entanto, pareceu-lhe necessário indicar a Naphta outra contradição mais grave, em que o enredavam as suas opiniões; punham-no em desacordo com os seus séculos prediletos, que não somente de forma alguma haviam desprezado Virgílio, senão feito justiça, ingenuamente, à sua grandeza, convertendo-o num mago poderoso e sábio.

Era em vão, retrucou Naphta, que o Sr. Settembrini chamava em seu auxílio a ingenuidade daquela época matutina, triunfante, que conservara a sua força inventiva até no endemoniamento daquilo que vencera. Por outra parte, os doutores da jovem Igreja não se haviam cansado de advertir os seus alunos contra as mentiras dos filósofos e poetas antigos, e especialmente contra o perigo de serem maculados pela exuberante eloqüência de Virgílio. E nos nossos dias, quando novamente uma era se aproximava do túmulo, e mais uma vez raiava a aurora proletária, cumpria ter compreensão dessa sua atitude! E para liquidar a questão, acrescentou que o Sr. Lodovico podia ficar persuadido de que ele, Naphta, exercia com toda a necessária reservatio mentalis aquela profissãozinha burguesa a que o outro tivera a bondade de aludir. Não era sem ironia que se enquadrava num sistema de ensino clássico-retórico, ao qual nem os maiores otimistas podiam prometer mais que alguns decênios de duração.

– Vocês, o senhor e seus amigos – exclamou Settembrini –, os têm estudado, com o suor do seu rosto, a esses poetas e filósofos antigos. Vocês procuraram apoderar-se da sua preciosa herança, assim como exploraram o material dos edifícios antigos para a construção das suas igrejas. Ora, vocês sentiram claramente que não seriam capazes de produzir uma nova forma de arte apenas com as próprias forças da sua alma proletária. Vocês esperaram derrotar a Antigüidade com as armas dela. Isso se repetirá, sempre e sempre! O espírito matutino de vocês, em toda a sua bronquice, terá de freqüentar a escola daqueles que vocês querem desprezar e fazer os outros desprezarem. Pois, sem cultura, vocês não poderiam existir ante os olhos da humanidade, e não há senão uma única cultura, aquela que vocês qualificam de burguesa, e que em realidade é humana! – O fim da educação humanística, uma questão de decênios? Somente a polidez impedia o Sr. Settembrini de dar uma gargalhada tão despreocupada quanto zombeteira. Uma Europa que sabia guardar os seus bens eternos passaria, com toda a calma, à ordem do dia da razão clássica, sem se importar com os apocalipses proletários com que sonhavam certas pessoas.

Mas era precisamente a ordem do dia, replicou Naphta sarcasticamente, o que o Sr. Settembrini parecia ignorar. Nela se achava como problema o que o seu interlocutor preferia tratar como fato consumado, a questão de saber se a tradição mediterrâneo-clássico-humanista era uma causa da humanidade e por conseguinte humana e eterna, ou se não passava de uma forma espiritual e de um acessório de uma determinada época, a época burguesa e liberalista, morrendo com esta. À história caberia decidir essa questão, e o Sr. Settembrini faria muito bem não se fiando muito seguramente numa sentença favorável ao seu conservantismo latino.

Chamar Settembrini, o servidor declarado do progresso, de conservador era uma insolência particular do pequeno Naphta. Todos perceberam isso, e o humanista assim melindrado o fez com particular amargura. Cofiando nervosamente o sinuoso bigode, preparava o golpe de vingança. Dessa forma deixou ao adversário o tempo suficiente para novas investidas contra o ideal de formação clássica, contra o espírito retórico-literário do ensino e da pedagogia europeus, e contra o seu spleen gramático-formal que nada mais era senão um acessório conservado no interesse da supremacia da classe burguesa, mas que desde havia muito parecia ridículo ao povo. Sim, poucos se davam conta de quanto o povo se divertia com aqueles títulos de doutor, com todo o mandarinato de formação e com a escola primária pública, esse instrumento da ditadura da classe burguesa, que o manejava na ilusão de que cultura popular era forma diluída da cultura erudita. O povo sabia muito bem onde encontrar aquela cultura e aquela educação de que precisava na luta contra a burguesia caduca, e não a procurava nessas casas de correção do ensino oficial. Já não era segredo para ninguém que o próprio tipo das nossas escolas, tal como se desenvolveu das escolas dos conventos medievais, representava um anacronismo, uma grotesca velharia; que ninguém, em todo o vasto mundo, devia à escola a sua verdadeira formação, e que um ensino livre, acessível a todos, por meio de conferências públicas, de exposições, do cinema, etc, era muitíssimo superior a qualquer ensino escolar.

O Sr. Settembrini respondeu que nessa mistura de revolução e de obscurantismo, que Naphta acabava de oferecer aos seus ouvintes, a parte obscurantista predominava de forma pouco apetitosa. A satisfação que se sentia ao vê-lo tão preocupado com a iluminação do povo era diminuída pelo receio de que, na realidade, agisse nele a instintiva tendência de envolver o povo e o mundo nas trevas do analfabetismo.

Naphta sorriu. O analfabetismo! Com isso pensava o seu interlocutor, sem dúvida, ter pronunciado uma palavra verdadeiramente horripilante, persuadido de que todo mundo empalideceria devidamente em face dessa cabeça de Górgona. Ele, Naphta, lamentava ter de desapontar o seu oponente ao dizer-lhe que o pavor que os humanistas experimentavam diante do conceito do analfabetismo simplesmente o fazia rir. Era preciso ser um literato renascentista, um precioso, um homem do Secento, um marinista, um palhaço do estilo culto, para atribuir às artes de ler e de escrever toda essa primazia pedagógica, a ponto de se imaginar que as trevas do espírito reinavam onde faltasse conhecimento dessas disciplinas. Recordava-se o Sr. Settembrini de que o maior poeta da Idade Média, Wolfram von Eschenbach, tinha sido analfabeto? Naquela época haviam julgado vergonhoso na Alemanha enviar à escola um menino que não quisesse ser sacerdote, e esse menosprezo aristocrático e popular pelas artes literárias fora em todos os tempos um sinal de nobreza fundamental da alma, ao passo que o literato, esse filho genuíno do humanismo e da burguesia, sabia, na verdade, ler e escrever, o que o fidalgo, o guerreiro e o povo ignoravam ou sabiam apenas mal. Mas era só isso que ele sabia e entendia de todas as coisas do mundo. Continuava sendo um doidivanas latinista que dominava a língua e abandonava a vida às pessoas honradas. Por isso transformava a política num saco cheio de vento, isto é, cheio de retórica e de belas-letras, o que no linguajar dos partidos se chamava radicalismo ou democracia, etcétera, etcétera...

Ao ouvir isso, o Sr. Settembrini não se conteve mais. Exclamou que era excessiva a temeridade com que o outro exibia o seu gosto pela piedosa barbárie de certas épocas, escarnecendo do amor à forma literária, sem a qual de fato se tornaria impossível e inimaginável a humanidade. Sim, senhores, impossível e inimaginável! Tinha sido pronunciada a palavra “nobreza”. Unicamente quem odiasse o gênero humano era capaz de dar esse nome à ausência do Verbo, ao materialismo brutal e mudo. Deveras nobre era apenas um certo luxo distinto, a generosità, que se manifestava na atitude de conceder à forma um valor humano próprio, independente do conteúdo, o culto da oratória como arte pela arte, essa herança da civilização greco-romana, que os humanistas, os uomini letterati, haviam devolvido pelo menos aos países neolatinos, e que era a fonte de todo o idealismo ulterior, relacionado com o conteúdo também do idealismo político. – Sim, senhor! – continuou Settembrini. – O que o senhor deseja envilecer, qualificando-o como divórcio entre a língua e a vida, não é outra coisa que uma unidade superior no diadema da beleza, e eu prevejo sem temor qual dentre os dois partidos a juventude valorosa tomará numa luta cujas alternativas se chamam literatura ou barbárie.

Hans Castorp acompanhara a conversa com atenção não muito grande, visto se preocupar com a pessoa do guerreiro e representante de uma essencialidade distintíssima, que se achava perto dele. No fundo, o que mais lhe dava que pensar era a expressão nova que se via nos olhos do primo. Por isso sobressaltou-se um pouquinho ao sentir-se chamado e interpelado pelas últimas palavras do Sr. Settembrini. A seguir fez uma cara igual àquela que fizera na ocasião em que o italiano o quisera obrigar solenemente a escolher entre o “Oriente” e o “Ocidente”, quer dizer, uma cara cheia de reserva e de recalcitrância. Permaneceu calado. Esses dois levavam tudo ao extremo, como talvez fosse necessário, quando se queria discutir. Disputavam encarniçadamente em torno de alternativas irreconciliáveis, ao passo que a ele próprio parecia patente que em alguma parte entre essas posições incompatíveis, entre o humanismo retórico e a barbárie analfabeta, devia encontrar-se aquilo que ele, pela sua pessoa, podia reputar de humano. Não se manifestou, porém, para não exasperar os dois antagonistas. Envolto em reticências, observou como continuavam borboleteando de assunto em assunto, como um estendia a mão ao outro, na intenção hostil de guiá-lo por sempre novos desvios, desde o momento em que Settembrini desencadeara a controvérsia com sua gracinha sobre o latino Virgílio.

O humanista ainda não largara a palavra, brandia-a, fazia com que ela triunfasse. Arvorou-se em guardião do gênio literário; glorificou a história das letras a partir do instante em que, pela primeira vez, um ser humano gravara na pedra sinais simbólicos, a fim de conferir a durabilidade de um monumento ao seu saber e sentir. Falou de Tot, deus egípcio, com o qual o grande Hermes do helenismo se identificava, e que tinha sido venerado como o inventor da escrita, como padroeiro das bibliotecas e como animador de todos os esforços intelectuais. Ajoelhou-se, metaforicamente, diante desse Trismegisto, o Hermes humanista, ao qual a humanidade devia os presentes sublimes da palavra literária e da retórica agonística. Com isso levou Hans Castorp a ponderar que esse egípcio nato, evidentemente, fora um estadista e desempenhara, em maior escala, o papel do Sr. Brunetto Latini, o primeiro que esmerilou a cultura dos florentinos e ensinou-lhes a oratória, bem como a arte de dirigir a sua república conforme as regras da política. Ao que Naphta redargüiu que o Sr. Settembrini desfigurava levemente as coisas e que Tot-Trismegisto saíra muito “favorecido” no seu retrato. Em realidade, tratava-se de uma divindade dos macacos, da lua e das almas, representada pela figura de um babuíno coroado de um crescente. Sob o nome de Hermes fora antes de tudo um deus da morte e dos mortos, dominador e guia das almas; já na fase derradeira da Antigüidade havia sido transformado em arquifeiticeiro, ao passo que a Idade Média cabalística o considerara o pai da alquimia hermética.

Que era isso? Na oficina dos pensamentos e das representações de Hans Castorp reinava plena desordem. Havia ali a morte no seu manto azul, e essa morte era um setor humanista; mas quando se olhava mais de perto esse deus da literatura, pedagogo e amigo dos homens, achava-se acocorada em seu lugar a imagem grotesca de um mono que levava sobre a fronte o símbolo da noite e da magia... Procurou afastar a visão com a mão. A seguir cobriu os olhos. Mas pelas trevas onde se refugiara na sua confusão ressoava a voz de Settembrini, que prosseguia encomiando a literatura. Não somente a grandeza contemplativa, senão também a grandeza ativa, assim bradou o italiano, andara em todos os tempos ligada a ela. E citou os nomes de Alexandre, César, Napoleão; mencionou Frederico da Prússia e outros heróis, inclusive Lassalle e Moltke. Não se intimidou quando Naphta lhe opôs a China, onde reinava a mais ridícula idolatria do abecedário que se conhecia, e onde uma pessoa chegava a ser generalíssimo quando sabia traçar com tinta nanquim todos os quarenta mil ideogramas, o que devia agradar muito ao coração de um humanista. Ora, Naphta sabia perfeitamente que aqui não se tratava do uso de tinta nanquim, mas da literatura como impulso humano, do seu espírito; sim, pobre zombeirão, do seu espírito que era o espírito em si, o milagre da fusão de análise e forma. Era ele que despertava a compreensão de tudo quanto é humano, que se empenhava em debilitar e em aniquilar os preconceitos tolos e as convicções estúpidas, e que purificava, enobrecia e melhorava o gênero humano. Ao criar o mais intenso refinamento moral e a mais sutil sensibilidade, conduzia os homens, longe de fanatizá-los, ao ceticismo, à justiça, à tolerância. O efeito purificante e santificador da literatura, a destruição das paixões pelo conhecimento e pela palavra, a literatura como caminho à compreensão, à indulgência e ao amor, o espírito literário como o fenômeno mais nobre do espírito humano em geral, o poder salvador da língua, o literato como homem perfeito, como santo – era nessa tonalidade exaltada que decorria o panegírico apologético do Sr. Settembrini. Ai dele, o seu adversário tampouco se deixou amedrontar. Soube interromper o aleluia angélico com argumentos maliciosos e brilhantes, optando pelo partido da conservação e da vida, contra o espírito dissolvente que se escondia atrás dessa falácia seráfica. Aquela fusão milagrosa que o Sr. Settembrini decantara em voz trêmula não passava, segundo se ouviu agora, de um embuste e de uma trapaça. Pois a forma que o espírito literário se vangloriava de saber conciliar com o princípio do exame e da divisão era apenas uma forma fictícia e mentirosa; não, porém, uma forma genuína, natural, cheia de vida. Sim, o pretenso aperfeiçoador do homem apregoava a pureza e a santificação, mas em realidade visava à castração e à sarjadura da vida. O espírito, o zelo da teoria profanavam a vida, e quem se esforçava por destruir as paixões desejava o nada, o puro nada, sendo “puro” o único adjetivo adequado para qualificar o nada. E precisamente nesse ponto o literato Settembrini patenteava o que era; revelava-se partidário do progresso, do liberalismo e da revolução burguesa. Pois o progresso era mero niilismo. O burguês liberalista era propriamente o homem do nada e do Diabo, e chegava a negar Deus, o absoluto conservador e positivo, professando o absoluto contrário, demoníaco, e arvorando-se em modelo de piedade, por causa do seu pacifismo letal. No entanto, o que menos havia nele era piedade; pelo contrário, atentava de um modo sumamente criminoso contra a vida, a cuja inquisição merecia ser entregue; e assim por diante...

Com semelhantes alfinetadas argumentava Naphta, dando ao panegírico aspectos satânicos e apresentando-se a si próprio como a encarnação do amor austero e conservador, de maneira que mais uma vez se tornava completamente impossível distinguir onde se achava Deus e onde o Diabo, onde a morte e onde a vida. Ninguém duvidará quando afirmarmos que o seu antagonista se mostrou à altura e não ficou devendo resposta, que foi notável e provocou uma réplica não menos boa, depois da qual a discussão prosseguiu por algum tempo, antes de a conversa embocar naquela confusão já mencionada. Hans Castorp, entretanto, já deixara de prestar atenção, porque Joachim, nesse ínterim, lhe comunicara que tinha certeza de se ter resfriado e de estar com febre, e que não sabia o que fazer, uma vez que os resfriados não eram reçus ali em cima. Os duelistas haviam passado por cima dessa novidade, mas Hans Castorp, que, como já dissemos, velava diligentemente pelo primo, retirou-se em sua companhia, no meio de uma tréplica, sem se importar com a questão de saber se o público restante, composto de Ferge e Wehsal, seria ou não capaz de produzir o estímulo pedagógico necessário para a continuação da contenda.

Durante o caminho combinou com Joachim que em matéria de resfriado e dores de garganta trilhariam a via hierárquica; quer dizer, encarregariam o massagista de avisar a Superiora, depois do que provavelmente seriam tomadas algumas medidas em benefício do enfermo. Assim fizeram bem. À mesma noite, logo depois do jantar, quando Hans Castorp casualmente se encontrava no quarto de Joachim, Dona Adriática bateu à porta e informou-se, em voz esganiçada, sobre os desejos e as moléstias do jovem oficial. – Dores de garganta? Rouquidão? – repetiu a enfermeira. – Que lhe deu na veneta, rapaz? – E fez uma tentativa de fitar o doente com olhar penetrante. Não era culpa de Joachim que os olhares não se encontrassem, pois era o da Superiora que se esquivava obstinadamente. Coisa estranha que ela insistisse nessa manobra, apesar de a experiência lhe demonstrar que era incapaz de realizá-la! Mediante uma espécie de calçadeira de metal, que tirou da bolsa presa à cintura, examinou a goela do paciente, enquanto Hans Castorp a alumiava com a lâmpada de cabeceira. Mantendo-se nas pontas dos pés, a Superiora espiava a úvula de Joachim. – Agora me diga, prezadíssimo rapaz – continuou –, já se engasgou alguma vez?

Que responder? No momento, isto é, durante o exame, era impossível dar explicações, mas também depois de ela soltar o enfermo era difícil acertar a resposta. Claro que já lhe acontecera engasgar-se uma ou outra vez, enquanto comia ou bebia, mas isso ocorria a toda gente e certamente não era o que ela queria saber. Assim, Joachim perguntou: – Por quê? – e acrescentou que não se lembrava quando aquilo se dera pela última vez,

– Está bem – disse ela. – Foi apenas uma idéia que me veio. Então o senhor se resfriou – concluiu para a maior surpresa dos primos, visto a palavra “resfriado” normalmente não ser tolerada no sanatório. Para um exame mais minucioso, se preciso fosse, seria indispensável o laringoscópio do conselheiro. Ao sair, a Superiora deixou comprimidos de formaminto, bem como uma atadura e um pedaço de gutapercha, para que Joachim pudesse fazer compressas durante a noite. Joachim serviu-se de ambas as coisas e teve a nítida impressão de que lhe traziam alívio. Por isso continuou com o tratamento, já que a rouquidão não fazia menção de ceder; pelo contrário, até se intensificou nos dias seguintes, embora as dores de garganta desaparecessem às vezes quase por completo.

O tal resfriado febril não passava, aliás, de pura imaginação. O resultado objetivo do exame era o de sempre, justamente aquele que, em combinação com os diagnósticos anteriores do conselheiro, requeria do ambicioso Joachim um “pequeno tratamento suplementar”, antes que ele pudesse voltar às fileiras do exército. O prazo de outubro, que acabava de expirar, era tratado com a maior discrição possível. Ninguém o mencionou, nem o conselheiro, nem os primos entre si. Silenciosos, com os olhos baixos, passaram uma esponja nessa data. Depois do que Behrens ditara ao assistente-psicanalista, por ocasião da última consulta mental, e do que a chapa radiográfica mostrava, era mais do que evidente que uma partida “em falso” seria arriscadíssima. E dessa vez tratava-se de perseverar ali em cima, com disciplina de aço, no trabalho da cura, até que se obtivesse a definitiva imunidade, necessária para suportar as exigências do outro trabalho, lá na planície, e para cumprir o juramento.

Tal era a divisa a respeito da qual haviam chegado a um tácito acordo. Na realidade, porém, um não tinha certeza se o outro, no âmago da sua alma, acreditava nessa divisa. Se baixavam os olhos, era devido a essa dúvida, e isso não se dava sem que antes os seus olhares se tivessem encontrado. Tais encontros ocorriam freqüentemente, desde o referido colóquio sobre literatura, quando Hans Castorp notara, pela primeira vez, aquela luz nova no fundo dos olhos de Joachim, bem como a sua expressão “ominosa”. Ocorriam antes de tudo à mesa, quando o primo, rouco de repente, se engasgava de modo sumamente violento, a ponto de mal recobrar o fôlego. Certa vez, enquanto Joachim ofegava atrás do guardanapo, e sua vizinha, a Srª. Magnus, lhe dava palmadas nas costas, segundo um velho costume, os olhos dos primos encontraram-se de um modo que espantou Hans Castorp, mais do que o próprio engasgamento, que afinal podia acontecer a qualquer um. A seguir, Joachim cerrou os olhos e, com o rosto oculto pelo guardanapo, abandonou a mesa e a sala, a fim de esperar lá fora o fim do acesso de tosse.

Sorrindo, embora ainda um pouco pálido, voltou uns dez minutos depois. Desculpou-se pelo susto que dera aos comensais e participou, como antes, da abundante refeição. Mais tarde, os primos até se esqueceram totalmente de comentar o incidente banal. Mas alguns dias após, não durante o jantar, senão por ocasião do fartíssimo segundo café da manhã, produziu-se o mesmo fenômeno. Dessa vez não se encontraram os olhares, ao menos não os dos primos. Hans Castorp, inclinado para o prato, continuou comendo com aparente indiferença. Terminada a refeição, parecia contudo conveniente dizer algumas palavras sobre o ocorrido. Joachim deblaterou contra a Mylendonk, cuja pergunta feita à queima-roupa o fizera ficar com a pulga atrás da orelha. Essa mulher lhe sugerira alguma coisa; embruxara-o. – Que o diabo a carregue! – Hans Castorp respondeu que evidentemente se tratava do efeito de uma sugestão e achou o fato divertido, apesar do seu caráter desagradável. E Joachim, depois de ter achado uma denominação para a coisa, daí por diante defendeu-se com êxito contra ela. Precavia-se, enquanto comia, e não se engasgava com maior freqüência do que qualquer outra pessoa não embruxada. Somente uns nove ou dez dias mais tarde repetiu-se o incidente, o que, afinal de contas, não era anormal.

Não obstante foi chamado por Radamanto, embora ainda não fosse a sua vez. A Superiora avisara o médico e sem dúvida fizera bem. Uma vez que a casa dispunha de um laringoscópio, existiam motivos suficientes para tirar do armário o instrumento engenhosamente construído: aquela rouquidão obstinada, que às vezes degenerava em afonia total, e também a dor de garganta que voltava a manifestar-se, cada vez que Joachim omitia lubrificar a goela com remédios salivantes, sem contar que, se agora se engasgava menos amiúde, era só devido à imensa cautela que usava durante as refeições, o que sempre o atrasava em relação aos vizinhos.

E o conselheiro, servindo-se de espelhos e reflexos, perscrutou profunda e demoradamente a garganta de Joachim. A seguir, o paciente, em obediência aos rogos de Hans Castorp, encaminhou-se logo à sacada do primo, para relatar-lhe pormenores do exame. A coisa lhe havia causado muitas cócegas e fora bastante desagradável, segundo contou cochichando, porque estavam na hora do repouso principal, com silêncio obrigatório. Behrens fizera um grande palavrório sobre um estado de irritação e dissera que convinha pincelar todos os dias. Logo no dia seguinte começaria a causticar. Era apenas preciso preparar o remédio. Pois então, estado de irritação e causticações... Hans Castorp tinha a cabeça cheia de associações de idéias, que iam muito longe e se referiam a pessoas quase estranhas, como, por exemplo, o porteiro coxo e aquela senhora que passara uma semana inteira comprimindo a orelha e todavia não tivera motivos para preocupar-se. Estava a ponto de fazer mais algumas perguntas, porém não conseguiu pronunciá-las. Resolveu então pedir informações ao próprio conselheiro, quando estivessem a sós. Por enquanto limitou-se a expressar a Joachim a satisfação que experimentava ao ver que aquela moléstia se achava agora sob controle e que o Dr. Behrens se encarregara do assunto. Era “bamba” nessas coisas e saberia, sem dúvida, remediar. Joachim fez um sinal de aprovação, sem encarar o primo; deu meia-volta e passou para o seu compartimento.

Que é que havia com o honrado Joachim? Nesses últimos dias, seus olhos tinham-se tornado inseguros e esquivos. Fazia pouco tempo que a Superiora, Srta. von Mylendonk, malograra no seu esforço de lhe penetrar o olhar meigo e tristonho; mas, se agora repetisse a tentativa, ninguém poderia dizer com certeza o que sucederia. Em todo caso, Joachim evitava esse tipo de encontros, e quando se produziam apesar disso – pois Hans Castorp olhava-o com muita freqüência – não contribuíam para diminuir o desassossego. Angustiado, Hans Castorp permanecia estendido na sua sacada, e no íntimo crescia-lhe a tentação de ir ter com o conselheiro imediatamente. Isso, entretanto, não era possível, já que não se poderia levantar sem que Joachim o notasse. Dessa forma, era necessário esperar e ver se lograva falar com Behrens no decorrer da tarde.

Mas não teve êxito. Coisa estranha! Absolutamente não conseguiu encontrar o conselheiro, nem nessa tarde, nem durante os dois dias seguintes. Claro que Joachim o estorvava um pouco, uma vez que não devia perceber nada; mas isso não bastava para explicar por que Hans Castorp não chegava a obter essa entrevista e tinha tamanhas dificuldades em apanhar Radamanto. Procurava-o e perguntava por ele em toda a casa. Mandavam-no de cá para lá, a lugares onde era certo que encontraria o médico. No entanto, nunca o achava ali. Behrens assistiu a uma das refeições, mas estava sentado muito longe, à mesa dos “russos ordinários”, e sumiu antes da sobremesa. Algumas vezes, Hans Castorp tinha a impressão de que o poderia agarrar pela manga do casaco; via-o na escada ou num corredor, a conversar com Krokowski, com a Superiora ou com um enfermo, e punha-se à espreita. Mas logo que desviava o olhar, Behrens desaparecia.

Não foi senão no quarto dia que realizou o seu propósito. Da sua sacada descobriu o médico no jardim, ocupado em dar ordens ao jardineiro. Rapidamente, Hans Castorp desembaraçou-se dos cobertores e correu ao seu encontro. O conselheiro, com a nuca saliente e com as mãos remando, já se afastava em direção ao seu apartamento. Hans Castorp pôs-se a correr e até tomou a liberdade de chamá-lo, mas não foi ouvido. Finalmente, ofegando, conseguiu detê-lo.

– Que é que o senhor perdeu aqui? – interpelou-o o conselheiro desabridamente, com seus olhos lacrimosos. – Será preciso que lhe mande entregar um exemplar especial do regulamento da casa? Ao que saiba é hora de repouso. Sua curva de temperatura e sua radiografia absolutamente não o autorizam a bancar o cavalheiro independente. Deveríamos colocar aqui um espantalho engenhoso para ameaçar pessoas que folgam no jardim entre as duas e as quatro. Afinal de contas, que é que o senhor quer?

– Senhor conselheiro, é indispensável que lhe fale um momento.

– Já sabia que o senhor meteu essa idéia na cabeça, há algum tempo. Corre atrás de mim, como se eu fosse uma donzela e lhe prometesse não sei que prazeres. Que deseja de mim?

– Perdão, doutor, trata-se do meu primo. Agora lhe pincelam a garganta... Estou convencido de que com esse tratamento se endireitará aquela coisa. Ela é inofensiva; não é? Era só isso que lhe desejava perguntar...

– O senhor sempre quer que tudo seja inofensivo, Castorp. É essa a sua índole. Às vezes não se mostra avesso ao contato com coisas nada inofensivas, mas então as trata como se fossem perfeitamente inocentes, e com isso pensa agraciar a Deus e aos homens. O senhor é uma espécie de covarde e de hipócrita, meu caro, e quando seu primo o chama de civil, usa termo bastante eufêmico.

– Pode ser que tudo isso seja assim, doutor. Ora, ninguém discute as fraquezas do meu caráter. Mas o caso é precisamente que no momento elas não estão em discussão, e o que lhe queria pedir, faz três dias, é apenas...

– ...que eu lhe ministre uma poção agradavelmente açucarada e diluída! O senhor quer me importunar e maçar, para que eu o confirme na sua maldita hipocrisia e para que o senhor possa dormir o sono dos justos, enquanto outras pessoas velam e se expõem à tempestade.

– Olhe, doutor, o senhor é muito severo comigo. Eu queria, pelo contrário...

– Sim, senhor, a severidade não é propriamente o seu forte. Seu primo é um tipo bem diferente, é feito de outro estofo. Ele está a par de tudo. Está a par e fecha-se, compreende? Não se agarra ao avental da gente, pedindo que o iluda com miragens e histórias inofensivas. Sabia o que estava fazendo e o que arriscava. É um homem que se mantém firme e sabe calar o bico, o que é uma arte viril, na qual infelizmente não são peritos os simpáticos bípedes da sua espécie. Mas uma coisa lhe digo, Castorp; se o senhor começar a fazer uma cena aqui, a lamentar-se e a entregar-se ao seu sentimentalismo civil, mandarei que o ponham no olho da rua. O que precisamos aqui são homens, compreende?

Hans Castorp permaneceu silencioso. Também a sua tez assumia agora aquela cor terrosa, ao empalidecer. Sua pele estava por demais bronzeada para tornar-se totalmente lívida. Finalmente disse, com os lábios trêmulos:

– Muito obrigado, senhor conselheiro. Eu também estou a par, agora. Acho que o senhor não falaria comigo com... (não sei como expressar-me)... com tanta solenidade, se o caso de Joachim não fosse grave. Também detesto cenas e gritarias; nesse ponto o senhor não me julga bem. E quanto à discrição, não faltarei a ela. Disso pode estar certo.

– O senhor quer bem a seu primo, Hans Castorp? – perguntou o médico, agarrando de repente a mão do jovem e fixando nele os olhos azuis, lacrimosos e injetados, por entre as pestanas brancas.

– Não sei que lhe responder, senhor conselheiro. É um parente próximo, um bom amigo e meu camarada aqui em cima. – Hans Castorp deixou escapar um breve soluço, fazendo um dos pés girar sobre a ponta.

O médico apressou-se a soltar-lhe a mão.

– Pois então trate-o com gentileza durante estas seis ou oito semanas – disse. – Proceda com a sua costumeira ingenuidade. Sem dúvida é isso o que ele preferirá. Eu também estarei presente e providenciarei para que as coisas decorram, na medida do possível, de modo elegante e confortável.

– É a laringe, não é? – perguntou Hans Castorp, sacudindo a cabeça.

– Laryngea – confirmou o conselheiro. – A destruição progride rapidamente. E a mucosa da traquéia também já se acha em mau estado. Pode ser que as vozes de comando, lá no serviço, hajam criado um locus minoris resistentiae. Sempre devemos estar preparados para tais deslocamentos da doença. Há pouca esperança, meu filho. No fundo, não há nenhuma. Claro que lançaremos mão de todos os recursos...

– A mãe... – disse Hans Castorp.

– Mais tarde, mais tarde. Por enquanto não há pressa. Empregue o seu tato e sua delicadeza para informá-la gradativamente. E agora volte ao seu posto. Ele está notando o que se passa, e com certeza lhe será desagradável saber que a gente fala dele pelas costas.

Todos os dias Joachim se deixava pincelar. O outono era lindo. Correto e marcial, nas calças de flanela branca e na jaqueta azul, o jovem chegava freqüentemente atrasado às refeições. Cumprimentava os comensais com amabilidade, de um modo discreto e másculo, e pedia desculpas pela sua pouca pontualidade. Sentava-se então para tomar a comida especial que lhe preparavam agora, uma vez que não podia engolir os alimentos normais, devido ao perigo de se engasgar. Serviam-lhe sopas, mingaus e picadinhos. Os companheiros de mesa compreenderam rapidamente a situação. Retribuíam-lhe a saudação com enfática cortesia e extraordinário calor. Tratavam Joachim de “tenente”. Na sua ausência interrogavam Hans Castorp, e também das outras mesas acorriam pessoas para se informar. A Srª. Stöhr acudiu, torcendo as mãos e choramingando no seu jeito vulgar. Mas Hans Castorp limitava as suas respostas a monossílabos. Admitia a gravidade do caso, mas ao mesmo tempo negava-a até certo ponto. Agia assim por causa das aparências, sentindo no seu íntimo que não devia abandonar Joachim antes do tempo.

Passeavam juntos; cobriam três vezes por dia a distância regulamentar, a que o conselheiro acabava de restringir Joachim rigorosamente, para evitar qualquer desgaste desnecessário de forças. Hans Castorp ia à esquerda do primo. Antes haviam caminhado assim ou também de outra maneira, conforme a ocasião. Mas agora, Hans Castorp mantinha de preferência a esquerda. Falavam pouco; proferiam as palavras que o dia normal do Berghof lhes punha na boca, e nada mais. Sobre o assunto que se erguia entre eles nada era preciso dizer, sobretudo entre pessoas de mentalidade reservada, que só em casos extremos se tratam pelo nome de batismo. Mesmo assim havia instantes em que o sentimento borbulhava e efervescia no peito civil de Hans Castorp a ponto de extravasar. Mas isso era impossível. O que se agitara dolorosa e violentamente acalmava-se, e ele permanecia calado.

Joachim caminhava a seu lado, com a cabeça baixa. Tinha os olhos fixos no solo, como se contemplasse a terra. Era muito esquisito: ali andava ele, correto e asseado, saudando os transeuntes na sua maneira cavalheiresca, cuidava do seu exterior e da sua bienséancei como sempre – e, contudo, pertencia à terra. Bem, nós todos pertenceremos a ela, mais cedo ou mais tarde. Mas, quando se é tão jovem e tão cheio da boa e ardorosa vontade de servir sob a bandeira da pátria, é muito amargo pertencer a ela dentro de pouquíssimo tempo. E é ainda mais amargo e mais incompreensível para quem, como Hans Castorp, caminha a seu lado, sabendo de tudo aquilo, do que para o próprio homem destinado à terra, cuja sabedoria reticente e discreta tem, no fundo, natureza muito acadêmica, carece para ele de caráter realístico e interessa mais aos outros do que a ele mesmo. Com efeito, a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios. Quer a conheçamos, quer não, conserva pleno valor para a alma aquela sentença de um sábio espirituoso que reza: enquanto existimos, não existe a morte, e quando ela existe, nós já deixamos de existir; por conseguinte, não há, entre nós e a morte, nenhuma relação real, e ela é uma coisa que para nós absolutamente não tem interesse e que, quando muito, afeta ao mundo e à natureza; motivo por que todas as criaturas a contemplam com grande calma, com indiferença, com certa ingenuidade egoística, e sem assumir responsabilidades. Durante as semanas a que nos referimos, Hans Castorp encontrava na atitude de Joachim muito de ingênuo e de irresponsável, e compreendia que o primo, embora sabendo de tudo, não tivesse dificuldade em guardar um silêncio correto a respeito desse seu saber, porque as relações íntimas que o ligavam a ele eram apenas frouxas e teóricas, ou, na medida em que requeriam consideração prática, estavam sendo reguladas e determinadas por um sadio senso das conveniências, que não admitia a discussão dessa sabedoria, tanto como a de muitas outras independências funcionais, das quais a vida tem consciência, e que a condicionam, mas que não a impedem de guardar as aparências.

Assim, passeavam e guardavam silêncio sobre os assuntos indecorosos da natureza. Também aquelas lamentações furiosas e exaltadas que Joachim no começo proferira, por ter de faltar às manobras e ao serviço militar em geral, haviam cedido ao mutismo. Mas, por que as substituía com tanta freqüência, e apesar de toda a referida ingenuidade, aquela expressão turva de pavor nos olhos meigos de Joachim, aquela insegurança que provavelmente decidiria a vitória da Superiora, se esta fizesse nova investida? Era porque sabia que tinha as órbitas cavas e as faces encovadas? Pois era esse o aspecto que seu rosto assumia quase a olhos vistos, no curso dessas semanas, e que piorara muito em comparação com aquele que tivera quando da sua volta da planície. Dia a dia, sua tez trigueira ia adquirindo uma aparência mais parecida com couro amarelo. Era como se tivesse razões de envergonhar-se e de desprezar-se a si próprio num ambiente que, em conformidade com a atitude do Sr. Albin, não tinha outras preocupações a não ser as de desfrutar as imensas vantagens oferecidas pela ignomínia. Diante de que e de quem se abaixava e fugia, então, o seu olhar outrora tão franco? Que coisa singular, esse pudor que a criatura sente em face da vida, e que a faz refugiar-se num esconderijo para morrer, convencida de que não pode esperar da natureza exterior nenhum respeito e nenhuma piedade para com o seu sofrimento e a sua agonia; e com razão, uma vez que até um bando de pássaros orgulhosos das suas asas não somente não costuma honrar o companheiro enfermo, mas até o maltrata com bicadas violentas e desdenhosas. Mas esse exemplo é tirado da natureza ordinária. O peito de Hans Castorp, porém, enchia-se de uma compaixão carinhosa e sumamente humana, quando notava nos olhos do pobre Joachim esse obscuro e instintivo pudor. Caminhava à esquerda do primo, fazia-o cada vez mais propositadamente, e como Joachim começasse a andar um tanto trôpego, apoiava-o desde que se tratasse de galgar uma pequena encosta coberta de capim. Então o cingia com o braço, e certa vez até lhe aconteceu esquecer de retirar a mão do ombro do primo, que sacudiu com alguma irritação, dizendo:

– Escute, deixe disso! Parecemos uns bêbados quando andamos assim.

Mas veio um momento em que a perturbação do olhar de Joachim se apresentou ao jovem Hans Castorp sob um outro aspecto ainda. Em princípios de novembro, quando a neve estava muito alta, Joachim recebeu ordem de meter-se na cama. Naquela época já se lhe tornara excessivamente difícil ingerir os picadinhos e os mingaus, porque se engasgava a cada instante. Parecia indicada uma alimentação exclusivamente líquida, e ao mesmo tempo Behrens prescreveu repouso ininterrupto na cama, para poupar as forças do doente. Foi, portanto, na véspera de Joachim acamar-se definitivamente, a última noite que passou de pé, que Hans Castorp o surpreendeu... o surpreendeu conversando com Marusja, aquela moça injustificadamente risonha, com o lencinho perfumado de flor de laranjeira e com os seios exteriormente formosos. Deu-se isso depois do jantar, durante a reunião noturna, no vestíbulo. Hans Castorp, que se demorara no salão de música, saiu para procurar Joachim e encontrou-o em frente à lareira revestida de azulejos, ao lado da cadeira de Marusja. Era uma cadeira de balanço, e com a mão esquerda sobre o espaldar, Joachim inclinava-a para trás, de maneira que Marusja se achava numa posição semideitada, erguendo os olhos redondos e castanhos para o rosto do jovem, que este aproximava do seu. Enquanto isso, falava ele em voz baixa e entrecortada, ao passo que ela às vezes dava de ombros, com um sorriso entre desdenhoso e emocionado.

Hans Castorp afastou-se apressadamente, não sem ter notado que outros pensionistas observavam a cena divertidos, como era de esperar; Joachim, entretanto, não os percebia ou, pelo menos, não lhes prestava atenção. Esse espetáculo do primo abandonando-se sem a menor reserva a uma conversa com a Marusja dos seios opulentos, a cuja mesa estivera sentado tanto tempo sem nunca trocar com ela uma única palavra; diante de cuja pessoa e existência sempre baixara razoável e honestamente os olhos com expressão austera, embora empalidecesse e sua tez se tornasse terrosa, quando se falava dela – esse espetáculo comoveu Hans Castorp muito mais do que qualquer outro sinal de debilidade que nessas últimas semanas notara em seu primo. “Sim, ele está perdido!”, pensou, e sentou-se em silêncio numa das cadeiras do salão de música, a fim de deixar a Joachim o tempo necessário para o que ele se concedia, lá no vestíbulo, na derradeira noite de que dispunha.

A partir de então Joachim tomou a posição horizontal, e Hans Castorp avisou Luise Ziemssen desse fato. Escreveu-lhe, na sua excelente espreguiçadeira, que havia uma coisa a acrescentar às notícias dadas anteriormente, a saber, que Joachim se achava acamado, e que o desejo de ver a mãe perto de si podia ler-se nos olhos dele, embora nada dissesse a esse respeito. O Dr. Behrens apoiava expressamente esse tácito desejo, segundo Hans Castorp comunicava de uma forma delicada, mas clara. Não era, portanto, de admirar que a Srª. Ziemssen recorresse aos meios mais rápidos de transporte para se unir ao filho. Três dias após a remessa da carta alarmante apesar dos termos carinhosos, já estava em Davos. Em meio a uma tempestade de neve, Hans Castorp foi de trenó à estação da “aldeia”, a fim de esperá-la. Na plataforma, enquanto o trenzinho entrava na estação, compôs o semblante, para que a mãe não se assustasse em excesso, mas também para que o seu primeiro olhar não descobrisse nele qualquer alegria falaz.

Quantas vezes encontros desse caráter se haviam realizado nesse lugar, quantas vezes os que desciam do trem tinham examinado insistente e angustiadamente as feições de quem os recebia, enquanto um se lançava nos braços do outro! A Srª. Ziemssen dava a impressão de ter corrido a pé de Hamburgo a Davos. Com o rosto ardente, apertou contra o peito a mão de Hans Castorp. Olhou em torno como que amedrontada e cochichou apressadas perguntas, como se se tratasse de um segredo. Hans Castorp esquivou-se às respostas, agradecendo-lhe por ter vindo tão depressa. Ótimo! Como não estaria contente o Joachim! Bem, o primo, infelizmente, achava-se acamado. Era porque só tomava alimentos líquidos, o que, naturalmente, não deixava de exercer influência sobre o estado de suas forças. Mas, para tais casos existiam certos recursos, como, por exemplo, a alimentação artificial. Ora, ela perceberia por si mesma...

Percebeu, e a seu lado Hans Castorp percebeu também. Até esse instante não se dera conta, com tamanha clareza, das mudanças que se haviam produzido em Joachim. Gente moça não costuma observar essas coisas. Agora, porém, perto da mãe vinda de longe, contemplou-o, por assim dizer, com os olhos dela, como se não o visse desde muito tempo, e reconheceu com absoluta segurança o que ela, sem dúvida, reconhecia também, e que Joachim, decerto, sabia melhor do que ninguém, isto é, que o primo era um moribundo. O jovem oficial comprimia a mão da Srª. Ziemssen na sua, essa mão tão definhada e amarela como o seu rosto, no qual, justamente devido ao emagrecimento, as orelhas, aquela ligeira contrariedade dos seus anos felizes, haviam-se despegado mais intensamente do que outrora, desfigurando-o de modo lamentável. Mas, à parte esse defeito, e apesar dele, o semblante de Joachim parecia antes embelezado e mais viril pelo cunho do sofrimento e pela expressão grave, austera e mesmo orgulhosa, se bem que os lábios, encimados pelo bigodinho negro, fossem um tanto grossos em confronto com as sombras das faces encovadas. Dois sulcos se haviam aberto na pele amarelada da testa, entre os olhos. Estes, embora profundamente sumidos nas órbitas ossudas, eram maiores e mais belos do que nunca, e deliciavam Hans Castorp. Desde que Joachim se acamara, desaparecera deles o menor traço de perturbação, tristeza e insegurança. Unicamente aquela luz continuava perceptível no seu fundo calmo e escuro, e também aquele quê “ominoso”. Joachim não sorriu, ao estreitar a mão da mãe e ao dar-lhe, em voz baixa, as boas-vindas. Não sorria tampouco por ocasião da sua entrada, e essa impassibilidade, esse ar imutável da sua fisionomia revelavam tudo...

Luise Ziemssen era uma mulher corajosa. Não se desfez em pranto à vista de seu valente filho. A rede quase invisível que lhe prendia os cabelos era um símbolo da sua atitude controlada e comedida. Com aquela fleuma e energia peculiares às pessoas da sua terra, tomou a si cuidar de Joachim, cujo aspecto precisamente lhe estimulava a combatividade materna e a enchia com uma fé em que, se ainda havia alguma possibilidade de salvação, esta só poderia proceder da sua força e vigilância. Decerto não foi para a sua própria comodidade, senão apenas por causa das aparências, que consentiu alguns dias após em contratar uma enfermeira para o filho gravemente enfermo. Foi a Irmã Berta, em realidade Alfreda Schildknecht, que surgiu, com sua maleta negra, à cabeceira do leito de Joachim. Mas, nem de dia nem de noite, a zelosa atividade da Srª. Ziemssen lhe deixava muito que fazer, de modo que Irmã Berta tinha tempo de sobra para deter-se no corredor e para lançar olhares curiosos em todas as direções, com o cordão do pince-nez atrás da orelha.

A diaconisa protestante era uma alma prosaica. A sós no quarto com Hans Castorp e com o doente, que absolutamente não dormia, mas jazia de costas, com os olhos abertos, foi capaz de dizer:

– Eu nunca teria imaginado que um dia me chamariam para velar junto ao leito de morte de um dos senhores.

Hans Castorp, horrorizado, ameaçou-a furiosamente com o punho cerrado. Mas ela mal compreendia por quê. Estava longe, e com razão, de pensar que talvez fosse conveniente poupar Joachim, e tinha um espírito por demais realista para supor que alguém, e muito menos o mais interessado, pudesse nutrir ilusões sobre o caráter e as perspectivas desse caso. – Tome – dizia ela, deitando água-de-colônia num lenço e aproximando-o do nariz de Joachim. – Goze mais um pouco da vida, tenente! – E de fato, a essa altura dos acontecimentos teria sido pouco razoável procurar enganar o bom Joachim, a não ser que fosse na intenção de exercer sobre ele uma influência tonificante; o que visava a Srª. Ziemssen, quando lhe falava da cura, em voz enfática e comovida. Pois duas coisas eram evidentes, e ninguém se podia equivocar a seu respeito: a primeira, que Joachim ia ao encontro da morte com plena consciência, e a segunda, que o fazia em paz e satisfeito consigo próprio. Somente na última semana, em fins de novembro, quando se manifestou o enfraquecimento do coração, abandonava-se, durante horas, ao esquecimento, deixando-se embalar por doces e vagas esperanças quanto ao seu estado. Falava então da iminência da sua volta ao regimento e da sua participação nas grandes manobras, que pensava ainda não terem terminado. Foi na mesma época que o Dr. Behrens desistiu de alentar as esperanças dos parentes e declarou que o passamento era questão de horas.

É um fenômeno tão patético quanto formal essa auto-ilusão esquecidiça e crédula a que se entregam mesmo os espíritos viris numa fase em que, na realidade, o processo destruidor se aproxima do seu fim; é normal, impessoal e superior a toda e qualquer consciência, na mesma medida que a tentação de adormecer, que seduz os que estão a ponto de morrer congelados, ou a marcha circular de quem perdeu o caminho. Hans Castorp, a quem a mágoa e a dor do coração não impediam de encarar esse fenômeno de modo objetivo, associou a ele algumas observações mal formuladas, mas sutis, numa palestra com Naphta e Settembrini, na qual os informara sobre o estado de seu parente. E o humanista censurou-o por ter julgado errôneo o conceito comum, segundo o qual a fé filosófica e a confiança num exitus favorável eram expressão de boa saúde, ao passo que o pessimismo e a condenação do mundo constituíam sinais de morbidez; se fosse assim, não seria possível que a fase final, desesperadora, produzisse um otimismo de um cor-de-rosa tão sinistro, comparado com o qual a depressão precedente parecia revelar uma vitalidade sadia. Graças a Deus que ele podia comunicar aos amigos compassivos que Radamanto, no meio de toda essa desolação, não excluía a esperança, profetizando um exitus suave e, apesar da juventude de Joachim, livre de sofrimentos.

– É o coração, uma história idílica, minha excelentíssima senhora – disse enquanto segurava a mão de Luise Ziemssen entre as suas manzorras do tamanho de uma pá, e fitou-a com os olhos azuis, saltados, lacrimosos e estriados de sangue. – Estou satisfeito, estou satisfeitíssimo de que o caso vá tomando um curso cordial, fazendo o rapaz escapar ao edema da glote e a outras infâmias. Dessa forma, poupam-se-lhe muitos tormentos. O coração decai rapidamente. É melhor assim para ele e para nós. Podemos cumprir o nosso dever e aplicar-lhe injeções de cânfora, sem o perigo de expô-lo a prolongadas complicações. Quando o fim se aproximar, ele dormirá muito e terá sonhos amenos. Acho que lhe posso prometer isso, e mesmo se não dormir nos últimos instantes, o trespasse será breve e imperceptível. Então tudo se tornará indiferente para ele. Disso a senhora pode ter certeza. Aliás, é sempre assim. Eu conheço a morte, sou um dos seus velhos empregados. Creia-me, em geral a gente a receia demais. Posso afirmar-lhe que é quase insignificante. Pois aquela trabalheira que às vezes a precede não pode ser considerada como parte dela; é o que há de mais vivo, e pode conduzir à vida e à saúde. Mas ninguém que voltasse da morte seria capaz de lhe contar coisas interessantes a seu respeito, uma vez que ela não se percebe. Saímos das trevas e entramos nas trevas. Entre elas há experiências, mas o começo e o fim, o nascimento e a morte não são coisas que notamos, não têm caráter subjetivo; como processos pertencem inteiramente à esfera do objetivo. Assim é a coisa...

Era dessa maneira que o conselheiro consolava. Esperemos que tenha feito algum bem à sisuda Srª. Ziemssen. As profecias do médico realizaram-se quase por completo. Joachim, debilitado, dormia horas a fio durante esses últimos dias; era provável que também sonhasse com o que gostava de sonhar, isto é, assuntos da planície e da vida militar; quando acordava e lhe perguntavam como se achava, respondia sempre, embora indistintamente, que se sentia muito bem e feliz, apesar de ter o pulso quase imperceptível e não mais notar as picadas das agulhas de injeções. Seu corpo tornara-se insensível; poderiam beliscá-lo ou queimá-lo, sem que isso interessasse o honrado Joachim.

Entretanto, passara por grandes mudanças, desde a chegada da mãe. Como lhe era muito incômodo barbear-se, não o fazia desde oito ou dez dias. Tinha a barba cerrada, e seu rosto amarelo como cera, com os olhos meigos, estava agora emoldurado por uma barba negra, espessa, de guerreiro, como aquelas que os soldados deixam crescer nas campanhas, e que, segundo a opinião de todos, tornava-o mais belo e mais viril. Sim, subitamente Joachim se transformara de um jovem num homem maduro, devido a essa barba, e não só devido a ela. Como um relógio cujo balancim está estragado, sua vida precipitava-se para a frente; a galope percorria as idades que não lhe fora dado alcançar no tempo real, e no curso das últimas vinte e quatro horas Joachim converteu-se em ancião. A debilidade do coração produziu-lhe no rosto certa turgidez, que lhe deu uma fisionomia cansada e causou a Hans Castorp a impressão de que a morte devia ser, pelo menos, um grande trabalho, posto que Joachim, graças aos desfalecimentos e às diminuições da sensibilidade, não parecesse notá-lo. Essa inchação afetava mais intensamente a parte dos lábios, e certa secura ou enervação do interior da boca tinha relação evidente com ela. O resultado era que Joachim balbuciava como um velho, e essa fraqueza irritava-o seriamente. Se ao menos se pudesse libertar dela – dizia tartamudeando –, tudo estaria bem; mas assim, era uma contrariedade terrível.

O que queria dizer com esse “tudo estaria bem” não era muito claro. Cada vez mais nitidamente evidenciava-se a típica tendência para a ambigüidade que fazia com que várias vezes dissesse coisas equívocas. Parecia saber e não saber. Em certa ocasião manifestamente foi abalado pela sensação do iminente ocaso, de maneira que declarou, meneando a cabeça, com alguma contrição: – Nunca na vida me senti tão mal como hoje.

Em seguida, tornou-se reservado, austero, retraído e mesmo descortês. Já não admitia ficções e paliativos. Deixava de corresponder a tentativas nesse sentido; olhava para a frente com ar abstrato. Rezou, assistido por um jovem pastor que Luise Ziemssen mandara chamar, e que, para grande pesar de Hans Castorp, não usava golilha engomada, senão apenas um simples colarinho. Foi sobretudo depois dessa visita que Joachim começou a assumir uma atitude oficial, de militar, expressando os seus desejos em forma de comandos lacônicos.

Pelas seis da tarde entregou-se a uma atividade esquisita: com a mão direita, cujo pulso estava guarnecido de uma corrente de ouro, esfregou várias vezes a colcha, à altura dos quadris; a seguir, ao retirá-la, ergueu-a e fez um gesto de quem ajunta ou recolhe alguma coisa com um ancinho.

Às sete horas morreu... Alfreda Schildknecht encontrava-se no corredor; somente a mãe e o primo estavam presentes. Joachim resvalara do travesseiro e ordenara brevemente que o apoiassem. Enquanto a Srª. Ziemssen lhe enlaçava os ombros com um dos braços, para executar essa ordem, o enfermo mencionou com certa pressa que devia imediatamente redigir e despachar um requerimento, solicitando a prorrogação da sua licença. No meio dessas palavras realizou-se o “trespasse imperceptível”, observado com reverência por Hans Castorp, à luz que se coava pelo quebra-luz vermelho da lâmpada de cabeceira. Vidraram-se os olhos de Joachim; desapareceu a inconsciente tensão do rosto; sumiu a olhos vistos a turgidez esforçada dos lábios, e a beleza viril da primeira mocidade tornou a estender-se por sobre o semblante mudo. Estava tudo acabado...

Como Luise Ziemssen virasse a cabeça, soluçando, foi Hans Castorp quem, com a ponta do dedo anular, cerrou as pálpebras do corpo imóvel e inanimado. Também lhe juntou suavemente as mãos sobre a colcha. Em seguida se ergueu e chorou, deixando correr sobre as faces lágrimas como aquelas que tanto haviam ardido no rosto do oficial da marinha inglesa; esse líquido claro, que jorra neste mundo a toda hora e em toda parte, com tanta abundância e com tanta amargura que os poetas deram o seu nome ao “vale” terreno; esse produto alcalino e salgado das glândulas que o abalo dos nervos, causado por uma dor penetrante, arranca ao nosso corpo, e que, como Hans Castorp sabia, continha além disso traços de mucina e de albumina.

Chegou o conselheiro, avisado pela Irmã Berta. Meia hora antes ainda estivera no quarto, para dar no moribundo uma injeção de cânfora. Apenas lhe escapara o instante do “trespasse imperceptível”. – Pois é, para este já terminou tudo – disse simplesmente, enquanto se levantava, afastando o estetoscópio do peito silenciado de Joachim. E com um aceno de cabeça, apertou as mãos dos dois parentes. Depois deteve-se ainda alguns momentos com eles à frente da cama, contemplando o rosto petrificado de Joachim, com a barba de guerreiro. – Que sujeito incrível, este rapaz! – prosseguiu falando por cima do ombro, apontando com a cabeça para aquele que ali descansava. – Quis forçar a natureza; sabem? Claro, aquele serviço lá embaixo só constava de coação e de violência. Apesar da febre, ele cumpriu o seu dever, a todo transe. É o campo de honra, compreendem? Fugiu para o campo de honra, esse desertor! Mas, no seu caso, a honra significava a morte, e a morte... Bem, pode-se inverter a frase, à vontade. Seja como for, ele nos disse: “Tenho a honra de me despedir”. Incrível, esse rapaz! – E foi-se, alto, encurvado, com a nuca saliente.

Era coisa decidida que o corpo de Joachim seria transportado para o seu torrão natal, e o Sanatório Berghof encarregava-se de tudo o que era necessário, e que a dignidade da situação exigia. A mãe e o primo não precisavam mover uma palha. No dia seguinte, Joachim, deitado com uma camisa de seda, sob a colcha adornada de flores, rodeado de uma luminosidade baça e nívea, parecia ainda mais belo do que logo após o trespasse. O menor vestígio de cansaço sumira do seu rosto. Ao esfriar, este adquirira uma forma silenciosa e pura. Mechas crespas de cabelo escuro caíam-lhe sobre a testa imóvel, macilenta, e que parecia plasmada de matéria nobre, mas delicada, misto de mármore e cera. Na barba igualmente encrespada ressaltavam os lábios cheios e altivos. Um capacete antigo assentaria bem a essa cabeça, segundo achavam alguns dentre os visitantes presentes na hora da despedida.

A Srª. Stöhr chorava entusiasticamente ao ver a forma que assumira aquele que fora Joachim. – Um herói! Um herói! – exclamava repetidas vezes, e fazia questão que no enterro se tocasse a “Erótica” de Beethoven.

– Cale-se, finalmente! – sibilou Settembrini a seu lado. Entrara no quarto ao mesmo tempo que ela, acompanhado de Naphta. Estava sinceramente comovido. Com ambas as mãos designava Joachim aos presentes, exortando-os a partilharem a sua tristeza. – Un giovanotto tanto simpatico, tanto stimabile! – clamava uma e outra vez.

Embora conservando a sua atitude recolhida, e sem olhar o italiano, Naphta não se pôde abster de observar mordazmente, em voz baixa:

– Folgo em ver que o senhor não só se preocupa com a liberdade e o progresso, mas também tem o senso das coisas sérias...

Settembrini engoliu a pílula. Talvez se apercebesse de que as circunstâncias davam temporariamente a Naphta uma posição superior à sua; talvez fosse essa supremacia provisória do adversário o que ele procurava contrabalançar pela intensidade do seu luto, e o que agora o fazia guardar silêncio mesmo quando Naphta, abusando das vantagens transitórias que lhe oferecia a situação, acrescentou em tom cortante e sentencioso:

– O erro dos literatos consiste na crença de que somente o espírito torna as pessoas decentes. O que se dá em realidade é antes o contrário. Somente onde falta o espírito existe decência.

“Hum!”, pensou Hans Castorp. “Aí temos mais um desses oráculos píticos. Basta pronunciá-lo e cerrar os lábios em seguida, para intimidar os outros por algum tempo...” Pela tarde chegou o ataúde de metal. Ao mesmo tempo veio um homem que deu a entender que cabia exclusivamente a ele transferir Joachim para esse suntuoso receptáculo enfeitado de alças e de cabeças de leões. Era funcionário da empresa funerária e trajava uma espécie de sobrecasaca preta e curta. Na sua mão plebéia exibia uma aliança encravada na carne exuberante do dedo, que cobria quase por completo. Tinha-se a impressão de que dos seus trajes se desprendia um cheiro cadavérico, o que não passava de uma opinião preconcebida. Mas esse homem manifestava aquela pretensão peculiar aos especialistas, os quais pensam que todo o seu trabalho se deve realizar atrás de cortinas e que não convém expor aos olhares dos sobreviventes senão os resultados piedosos e edificantes do seu esforço. Justamente essa sugestão despertou, entretanto, a desconfiança de Hans Castorp, que não concordava com ela. Consentiu em que a Srª. Ziemssen se retirasse, mas não admitiu que ele mesmo fosse mandado embora. Permaneceu no quarto e colaborou ativamente. Pegou o corpo pelas espáduas e ajudou a carregá-lo da cama até o caixão. Depositaram então os restos mortais de Joachim sobre a mortalha e uma almofada guarnecida de borlas, onde repousaram altos e solenes, entre os castiçais emprestados pelo Sanatório Berghof.

No dia seguinte, porém, patenteou-se um fenômeno que determinou Hans Castorp a se distanciar e libertar intimamente dessa forma morta e a abandonar em definitivo o campo ao profissional, esse guardião antipático da piedade. Joachim, cuja expressão antes fora grave e pudica, acabava de esboçar um sorriso no meio da barba de guerreiro, e Hans Castorp não se iludia quanto ao fato de que esse sorriso encerrava o germe da degeneração. Essa percepção fez com que o seu coração sentisse a urgência do caso. Ainda bem que estava iminente a hora em que iriam buscar o féretro, que logo seria fechado e parafusado. Vencendo os seus inatos hábitos reservados, Hans Castorp roçou delicadamente com os lábios a testa gelada daquele que outrora tinha sido Joachim, e não obstante a sua desconfiança contra o homem sinistro, saiu obedientemente do quarto, em companhia de Luise Ziemssen.

Deixemos cair o pano, pela penúltima vez. Mas enquanto ele desce ruidosamente, mantenhamo-nos em espírito ao lado de Hans Castorp, que continua na sua montanha; olhemos com ele ao longe e agucemos os ouvidos; depararemos então com um campo-santo úmido, lá na planície, onde resplandece e se abaixa uma espada, ressoam vozes de comando e estrondeiam três salvas de fuzil, saudações fanáticas, ecoando sobre o túmulo do soldado Joachim Ziemssen, túmulo que as raízes das plantas acabam de invadir...

 

         Passeio pela praia

Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola. Uma história que rezasse: “O tempo decorria, escoava-se, seguia o seu curso” e assim por diante – nenhum homem de espírito são poderia considerá-la história. Seria como se alguém tivesse a idéia maluca de manter durante uma hora um mesmo tom ou acorde e afirmasse ser isso música. Pois a narrativa se parece com a música no sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo; “enchem-no de uma forma decente”, “assinalam-no” e fazem com que ele “tenha algum valor próprio” e que “nele aconteça alguma coisa”, para citarmos, com a melancólica piedade que se costuma devotar aos ditos dos defuntos, algumas. observações ocasionais do saudoso Joachim, palavras essas que há muito se perderam no espaço; nem sabemos se o leitor é capaz de dizer claramente quanto tempo se passou desde que foram pronunciadas. O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso. Nesse ponto, como já mencionamos, assemelha-se à narrativa e difere da obra de arte plástica que surge diante de nós de uma vez, em todo o seu esplendor, e não se acha relacionada com o tempo senão à maneira de todos os corpos. A narrativa, porém, não se pode apresentar senão sob a forma de uma seqüência de fatos, como algo que se desenvolve, e necessita intimamente do tempo, mesmo que deseje estar toda presente a cada instante que transcorre.

Isso é evidente. Mas é igualmente óbvio que há uma diferença entre a narrativa e a música. Nesta, o elemento do tempo é um só: um setor do tempo humano e terrestre que ela inunda para exaltá-lo e enobrecê-lo de modo indizível. A narrativa, porém, tem dois tipos de tempo: em primeiro lugar, o seu tempo próprio, o tempo efetivo, igual ao da música, o tempo que lhe determina o curso e a existência; e em segundo, o tempo do seu conteúdo, que é apresentado sob uma determinada perspectiva, e isso de forma tão variável que o tempo imaginário da narração tanto pode coincidir quase por completo, e mesmo inteiramente, com seu tempo musical, quanto dele diferir infinitamente. Uma peça de música, denominada Valsa dos cinco minutos, dura cinco minutos; nisso, e em nada mais, consiste a sua relação com o tempo. Uma história, entretanto, cujo conteúdo abrangesse um lapso de cinco minutos poderia ter duração mil vezes maior, devido à extrema meticulosidade empregada na descrição desses cinco minutos e todavia parecer bem curta, embora fosse bastante longa em proporção a seu tempo imaginário. Por outro lado é possível que o tempo do conteúdo da história ultrapasse enormemente a duração da narrativa, em virtude de um processo de “redução”. Servimo-nos desse termo para assinalar um elemento ilusório, ou, para falar com maior clareza, um elemento mórbido que se manifesta nesse caso. A narrativa usa então um feitiço hermético, uma perspectiva exagerada, quanto ao tempo, e isso nos chama à memória certos fatos anormais da experiência real, que evidentemente entram no campo transcendental. Existem diários de fumadores de ópio, relatando que a pessoa entorpecida passou, durante o breve período da embriaguez, por sonhos cuja extensão no tempo abrangia dez, trinta e até sessenta anos e mesmo transpunha os limites traçados à experiência humana, no que se refere à exploração do tempo. Trata-se, pois, de sonhos cuja duração imaginária excede consideravelmente a real, e nos quais se efetua uma redução incrível da experiência do tempo, que faz com que as imagens se precipitem com tamanha velocidade que se poderia crer, segundo a expressão de um consumidor de haxixe, que do cérebro do ébrio “houvesse sido tirada uma peça parecida com o balancim de um relógio”.

É de modo congênere ao desses sonhos oriundos do vício que a narrativa pode proceder para com o tempo; é dessa forma que ele pode ser tratado numa história. Mas, uma vez que é possível “tratá-lo”, é lógico que o tempo, além de ser o elemento da narrativa, também pode tornar-se o seu assunto. Embora seja exagero afirmar que se pode “narrar o tempo”, não constitui certamente empresa tão absurda, como nos parecia de início, a de querer narrar coisas do tempo. Destarte poderíamos atribuir uma singular ambigüidade de sonho ao conceito de um “romance do tempo”. Com efeito, ventilamos os problemas de saber se é possível ou não narrar o tempo exclusivamente para confessar que, na presente história, temos coisa semelhante em mente. E se ainda, de passagem, pusemos em dúvida que os leitores agrupados em torno de nós fossem capazes de dizer claramente quanto tempo decorreu desde o momento em que o honrado e já falecido Joachim intercalou na palestra aquela observação acerca da música e do tempo – observação que demonstra certa sublimação alquimística da sua natureza, que normalmente não se inclinava para esse tipo de pensamentos –, não nos mostraríamos nem um pouco contrariados ao inteirar-nos de que, de fato, reina confusão a esse respeito; ao invés de contrariados, estaríamos até satisfeitos, pela simples razão de termos um interesse natural em que todos participem das experiências do nosso herói, Hans Castorp, o qual, de há muito, deixou de estar seguro sobre a questão em apreço. Isso faz parte do seu romance, que é um romance do tempo, tanto num como noutro sentido.

Afinal, quanto tempo passara Joachim ali em cima, ao lado de Hans Castorp, até a sua partida “em falso”, e quanto ao todo? Em que época do calendário se realizara aquela primeira partida arbitrária? Por quanto tempo estivera ausente? Quando voltara? E havia quanto tempo se achava o próprio Hans Castorp em Davos, na data do regresso do primo, e naquela outra, posterior, em que este se despediu do tempo? Por quanto tempo, para deixarmos Joachim de lado, ausentara-se Mme. Chauchat? E desde quando, ou pelo menos desde que ano, estava ela de volta (pois que estava mesmo de volta), e quanto tempo decorrera entre o dia do seu regresso e aquele da chegada de Hans Castorp ao Berghof? Se alguém fizesse todas essas perguntas a Hans Castorp – o que em realidade ninguém fazia, nem sequer ele próprio, provavelmente por ter receio de tais indagações –, o jovem teria tamborilado com os dedos na fronte, sem saber dar uma resposta precisa; fenômeno não menos inquietante do que aquela passageira incapacidade de dizer a sua idade ao Sr. Settembrini, logo na primeira noite da sua estadia ali. E desde então essa falta de memória até se havia agravado, uma vez que Hans Castorp já ignorava séria e constantemente quantos anos tinha.

Isso talvez pareça fantástico, mas está longe de ser surpreendente ou inverossímil porque, sob determinadas condições, pode acontecer a cada um de nós a qualquer instante; supostas tais condições, nada nos resguardaria de mergulharmos na mais profunda ignorância quanto ao curso do tempo, e de perdermos, por conseguinte, a noção da nossa idade. Esse fenômeno é possível, já que não temos no nosso interior um órgão para perceber o tempo, o que nos torna incapazes de avaliá-lo, em termos absolutos, pelas nossas próprias forças e sem nos basear em indícios exteriores. Alguns mineiros soterrados e impossibilitados de observar a sucessão de dias e noites calcularam, quando salvos, fosse de três dias o tempo que haviam passado nas trevas, entre a esperança e o desespero. Na realidade se haviam escoado dez dias. Seria natural se, nessa situação angustiosa, o tempo se lhes houvesse afigurado longo. No entanto, se reduzira para eles a menos de um-terço da sua duração objetiva. Parece, portanto, que sob condições desconcertantes a impotência humana tende antes a subestimar do que a exagerar o tempo por que acaba de passar.

Certo, ninguém põe em dúvida que Hans Castorp, querendo, teria podido sem grandes dificuldades escapar dessa incerteza e ganhar clareza por meio de um cômputo; da mesma forma como o leitor o poderia fazer sem nenhum trabalho, se, porventura, a confusão e o vazio repugnassem ao seu espírito sadio. No que toca a Hans Castorp, talvez não se sentisse muito à vontade na sua ignorância, mas tampouco se animava a fazer um esforço para livrar-se daquele vazio e daquela confusão, e para conhecer a idade que alcançara ali em cima. O que o impedia era um receio arraigado na sua consciência, apesar de ser a mais crassa falta de consciência o não se preocupar com o tempo.

Não sabemos se convém alegar a seu favor que as circunstâncias fomentavam bastante a sua falta de boa vontade, para não o acusar de aberta má vontade. Quando voltou Mme. Chauchat – de modo bem diferente do que imaginara Hans Castorp, mas disso trataremos noutra parte –, estava-se novamente na época do Advento, e o dia mais curto do ano, o princípio do inverno, astronomicamente falando, achava-se iminente. Em realidade, porém, não se levando em conta tais subdivisões teóricas e considerando-se o frio e a neve reinantes, era inverno sabe Deus desde quando, e este inverno não fora interrompido senão passageiramente por abrasadores dias de verão, com um azul celeste de uma intensidade tão exagerada que tocava as raias do preto, dias estivais, portanto, como também costumavam ocorrer no inverno, abstração feita da neve, que por sua vez caía em todos os meses de verão. Quantas vezes não conversara Hans Castorp com o malogrado Joachim sobre essa grande confusão, que misturava e embrulhava as estações, que privava o ano das suas cisões naturais e destarte o fazia decorrer rápida mas tediosamente, ou também devagar, mas de modo divertido, de maneira que no fundo nem se podia falar de tempo, conforme observara Joachim com desgosto numa ocasião muito remota. O que realmente se misturava e se baralhava em virtude dessa grande confusão eram certos conceitos emocionais ou estados de consciência, como os do “ainda” e do “de novo”. Achamo-nos diante de uma experiência das mais perturbadoras, complexas e mágicas que se podem imaginar, experiência para cujo gozo Hans Castorp, logo no primeiro dia da sua estadia ali em cima, mostrara inclinação imoral. Fora em face das cinco refeições fartas em excesso, na sala alegremente colorida, que pela primeira vez, sentira vertigem desse gênero, inofensiva em comparação com as posteriores.

Desde então, essa ilusão dos sentidos e do espírito assumira proporções muito mais vastas. O tempo, por mais enfraquecida ou aniquilada que esteja a sensação subjetiva que se tem a seu respeito, possui uma realidade objetiva, enquanto age, enquanto “traz consigo”. É um problema que compete a pensadores profissionais, embora Hans Castorp, em certa ocasião, o tivesse atacado, impelido por uma presunção juvenil, o problema de saber se a conserva hermeticamente fechada e posta na prateleira se acha ou não fora do tempo. Mas sabemos que o tempo age até mesmo sobre os hibernantes. Um médico relata o caso de uma menina de doze anos que um belo dia adormeceu e prosseguiu dormindo treze anos; mas ao despertar já não era criança, senão mulher feita. Nem poderia ser de outra forma. O morto está morto; entrou no eterno descanso; tem muito tempo, quer dizer, o tempo não existe, quanto à sua pessoa. Isso todavia não impede que suas unhas e seus cabelos continuem a crescer, e que em suma... Mas não queremos recordar a locução um tanto rude que Joachim usou certa vez, falando desse assunto, e com a qual Hans Castorp então se escandalizou à maneira dos habitantes da planície. Também a ele, Hans Castorp, lhe cresciam as unhas e os cabelos; cresciam depressa, como parecia, pois seguidamente se encontrava envolto num pano branco, na cadeira da barbearia na rua principal da “aldeia”, para que lhe cortassem o cabelo, que mais uma vez acabava de formar franjas ao redor das orelhas. Na verdade, sempre se achava ali, ou melhor, quando estava sentado ali e conversava com o barbeiro hábil e obsequioso, que se desincumbia da sua tarefa, depois de o tempo se ter desincumbido da sua, ou também quando se quedava junto à porta da sacada, a fim de encurtar as unhas mediante a tesourinha e a lima, tiradas de um belo estojo forrado de veludo – nessas ocasiões experimentava uma espécie de susto mesclado com curioso prazer, e de súbito sentia-se tomado daquela vertigem que já mencionamos; essa vertigem que o tornava inseguro física e psiquicamente, causando um remoinho no meio do qual Hans Castorp já não sabia distinguir o “ainda” e o “de novo”, de cuja mistura e confusão resulta o “sempre” isento de tempo.

Temos afirmado freqüentemente que não tencionamos apresentar o nosso herói nem melhor nem pior do que era, e por isso não queremos deixar de contar que muitas vezes se empenhava em compensar a complacência censurável em face dessas tentações místicas, provocadas por ele consciente e propositadamente, com esforços em sentido contrário. Era capaz de ficar sentado com o relógio na mão – o relógio de algibeira, chato, liso e de ouro fino, cuja tampa com o monograma gravado estava aberta. Contemplava então o mostrador redondo, de porcelana, rodeado por uma dupla fileira de cifras árabes, pretas e vermelhas, e em cima do qual os dois ponteiros de ouro, enfeitados de suntuosos arabescos, apontavam em diferentes direções, enquanto o delgado ponteiro dos segundos, tiquetaqueando, dava pressurosas voltas à sua areazinha especial. Hans Castorp fixava-o, como para deter e esticar alguns minutos, na intenção de agarrar o tempo pela cauda. A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com as cifras que alcançava, percorria, ultrapassava, deixava longe atrás, voltava a demandar e alcançava de novo. Era insensível a objetivos, divisões e marcos. Deveria demorar-se por um instante no 60 ou pelo menos dar um pequeno sinal de que alguma coisa terminava ali. Mas, pelo jeito como passava por cima desse ponto assim como por qualquer outra risca não marcada, reconhecia-se que toda essa marcação e subdivisão do seu caminho era apenas acessória, e que o ponteiro se limitava a caminhar, a caminhar para a frente... Diante dessa percepção, Hans Castorp tornava a abrigar o relógio no bolsinho do colete e abandonava o tempo à sua própria sorte.

Como tornar plausíveis aos honrados cidadãos dos países planos as transformações que se efetuavam na economia íntima do nosso jovem aventuroso? A escala dessas identidades perturbadoras ia crescendo. Desde que, para uma pessoa não muito concentrada, era difícil distinguir o “agora” de hoje do de ontem, de anteontem, de três dias atrás, o presente já se mostrava inclinado e capaz de se confundir com aquele presente que existira havia um mês ou um ano, e de unir-se com ele para formar o “sempre”. Mas, ainda que se mantivesse a distinção entre os casos de consciência moral, que se chamam “ainda”, “de novo”, “no futuro”, poderíamos sentir-nos tentados a ampliar o alcance das denominações relativas, com que o “hoje” se isola do passado e do porvir, as denominações de “ontem” e de “amanhã”, e a aplicá-las a períodos mais longos. Seria fácil imaginar seres – os habitantes de um planeta menor que o nosso, por exemplo – que lidassem com um tempo em miniatura, e para cuja vida “curta” os saltinhos velozes do nosso ponteiro dos segundos representassem o mesmo que para nós a progressão lenta e tenaz do ponteiro das horas. Mas também seria possível idear criaturas a cujo espaço correspondesse um tempo que avançasse tão majestosamente que os conceitos de “há um instante”, de “em breve”, de “ontem” e de “amanhã”, adquirissem, para a sua experiência, um significado muito mais amplo. Segundo a nossa opinião, isso não somente seria admissível, senão até legítimo, sadio e respeitável, quando o julgássemos sob o ponto de vista de um relativismo indulgente e em conformidade com o provérbio: “Cada terra com seu uso”. Que, porém, pensar de um filho desta nossa terra – e ainda de um para cuja idade um dia, uma semana, um mês, um semestre deveriam ter suma importância, uma vez que acarretam muitas modificações e grandes progressos para a sua vida –, que pensar, pois, se esse moço um dia adquirisse o hábito vicioso, ou pelo menos cedesse às vezes ao prazer de dizer “ontem” ou “amanhã”, em lugar de “faz um ano” ou “no ano que vem”? Não há dúvida de que nos acharíamos diante de um caso de anomalia e de perturbação, que justificaria o mais vivo desassossego.

Há neste mundo uma situação, há certos fatores cênicos – se é que se pode falar de “cenário” no caso que temos em vista – que fazem com que a confusão e a mistura das distâncias do tempo e do espaço, que vão a ponto de criar uma uniformidade vertiginosa, se produzam de forma natural e lógica, de maneira que, pelo menos para um período de férias, parece tolerável o abandono ao seu enleio mágico. Pensamos em passeios à beira-mar – ocupação da qual Hans Castorp nunca deixava de lembrar-se com a maior simpatia – e já sabemos que a vida na neve lhe recordava de modo ameno e grato as dunas do seu torrão natal. Esperamos que a experiência e a memória dos nossos leitores também não falhem, quando nos referimos a esse isolamento maravilhoso. As pessoas caminham, caminham... e de uma excursão dessas nunca voltarão a tempo, já que se desgarraram do tempo e este se desgarrou delas. Ó mar, nós que contamos esta história achamo-nos longe de ti, mas te devotamos os nossos pensamentos e a nossa afeição. Expressamente e em voz alta te dirigimos a nossa invocação, para que estejas presente no nosso livro como sempre tens estado e como continuarás eternamente... Ó deserto marulhante, sob a cúpula de um pálido céu cinza, ó ermo impregnado de acre umidade cujo sabor perdura em nossos lábios! Caminhamos, caminhamos sobre o solo levemente elástico, salpicado de sargaço e de pequenas conchas. O vento nos envolve os ouvidos, esse vento imenso, vasto, brando, que livremente, sem freio nem maldade, atravessa o espaço e produz no nosso cérebro um ligeiro atordoamento. Marchamos, marchamos, e vemos os nossos pés lambidos pelas línguas espumantes do mar, que é impelido para a frente e, fervilhando, torna a recuar. Agita-se a rebentação. Vaga após vaga, com um murmúrio agudo e surdo, choca-se com a terra, antes de deslizar, sedosa, pela praia rasa. Aqui se dá o mesmo que ali e que nos bancos de areia, lá fora, e esse rumor confuso, generalizado, do suave marulho, sobrepuja, em nossos ouvidos, todas as demais vozes do mundo. Bastamo-nos a nós mesmos e de propósito olvidamos o resto... Ah, cerremos os olhos, abrigados na eternidade! Não! Olha ali! Naquela vastidão glauca, espumante, que, com enormes escorços, se perde no horizonte, surge uma vela. Ali? Que significa esse “ali”? Quão longe? Quão perto? Não sabes dizer. De modo vertiginoso, isso se subtrai à tua avaliação. Para computar a distância que separa esse navio da praia, deverias saber qual o seu tamanho. Pequeno e próximo? Grande e longínquo? Tua vista turva-se em dúvida, pois nenhum dos órgãos e dos sentidos que possuis te informa sobre o espaço... Caminhamos, caminhamos... Desde quando? Até onde? Tudo incerto. Nada se modifica, por mais que avancemos. O “ali” é igual ao “aqui”, o passado é idêntico ao presente e ao futuro. Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece, já não existe o tempo.

Os sábios da Idade Média afirmavam que o tempo era uma ilusão, que seu curso, entre causa e efeito, não passava do produto de um dispositivo dos nossos sentidos, e que o verdadeiro ser das coisas era um presente imutável. Terá passeado à beira-mar aquele doutor que foi o primeiro a conceber esse pensamento, saboreando nos seus lábios a leve amargura da eternidade? Seja como for, repetimos que aqui se falou de liberdades tais como a gente se permite nas férias, de fantasias inspiradas pelo ócio da vida, e das quais o espírito decente se farta tão depressa como um homem forte, do repouso na areia cálida. Criticar os meios e as formas do conhecimento humano, pôr em dúvida a sua validade objetiva, seria absurdo, desprezível e hostil, se tal atitude se baseasse numa outra intenção além da de designar à nossa razão limites que ela não pode transpor sem incorrer em negligência para com suas próprias funções. Devemos a nossa gratidão a um homem como o Sr. Settembrini, por ter tachado a metafísica de o “mal”, ao instruir com a intransigência de um pedagogo o jovem cujo destino nos preocupa, e que ele mesmo, em certa ocasião, qualificara acertadamente de “filho enfermiço da vida”. E a melhor maneira de honrarmos a memória de determinada pessoa a quem queremos muito é declarar que o sentido, o objetivo, o fim do princípio crítico não devem nem podem ser outros senão a idéia do dever e a lei da vida. Sim, a sabedoria do legislador, traçando criticamente os limites da razão, içou, nesses mesmos limites, a bandeira da vida e proclamou como um dever militar do homem servir sob essa bandeira. Será que devemos levar a crédito de Hans Castorp e considerar como circunstância atenuante ter ele sido confirmado na sua viciosa administração do tempo e no seu perigoso namoro com a eternidade, por ver que aquilo que certo palrador melancólico chamara de “excesso de entusiasmo” apenas conduzira o seu primo guerreiro ao exitus letalis?

 

         Mynheer Peeperkorn

Mynheer Peeperkorn, um holandês de certa idade, esteve durante algum tempo hospedado no Sanatório Berghof, que com muita razão usava no seu prospecto o epíteto “internacional”. Pieter Peeperkorn – era este o seu nome, e assim falava de si próprio dizendo, por exemplo: “E agora Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha” – era um holandês colonial, nascido em Java, um plantador de café. Sua nacionalidade um tanto desbotada mal bastaria por si só para nos decidir a introduzi-lo à última hora na nossa história. Pois, meu Deus, quanta variedade de cores e matizes não existia na sociedade do renomado instituto que o Conselheiro Dr. Behrens, com sua facúncia poliglota, dirigia como médico! Recentemente chegara até uma princesa egípcia – a mesma que em outra ocasião oferecera ao conselheiro aquele notável aparelho de café e os cigarros adornados com uma esfinge; era uma personagem sensacional, com os dedos amarelos de nicotina e enfeitados de anéis, que usava o cabelo curto e, exceção feita às refeições principais em que ostentava toaletes de Paris, trajava paletó e calças bem frisadas. De resto não se interessava pelo mundo masculino e concedia seus favores mesclados de displicência e de paixão, com exclusividade, a uma judia rumena, que se chamava simplesmente Landauer; isso embora o Promotor Paravant tivesse abandonado as matemáticas, para dedicar-se a Sua Alteza, e se conduzisse feito um idiota de tanto amor. Mas, como se a presença da princesa não fosse suficiente, achava-se no seu séquito um eunuco negro, homem doente e débil, que, não obstante seu defeito básico, do qual Karoline Stöhr gostava de zombar, parecia amar a vida mais do que ninguém e se mostrava inconsolável em face da imagem que a radiografia exibia do seu interior, depois de ter lançado luz sobre a sua negrura...

Comparado com tais figuras, Mynheer Peeperkorn poderia aparecer como que desprovido de cores. E posto que essa parte da nossa narração pudesse, tal e qual outra, anterior, ser intitulada “Mais alguém”, não há motivos para recear que entre em cena uma nova fonte de perturbações espirituais e pedagógicas. Não, Mynheer Peeperkorn absolutamente não era talhado para criar no mundo confusões lógicas. Como veremos, era homem muito diferente. Que, apesar disso, a sua pessoa tenha perturbado gravemente o nosso herói, explica-se pelo que se segue.

Mynheer Peeperkorn chegou à estação da “aldeia” no mesmo trem noturno que trouxe Mme. Chauchat, e dirigiu-se no mesmo trenó que ela ao Sanatório Berghof, em cujo restaurante jantaram juntos. Tratava-se, em suma, não somente de uma chegada simultânea, mas também de uma chegada em comum, e esse caráter comum, que continuava manifestando-se, por exemplo, no fato de Mynheer receber um lugar à mesa dos “russos distintos”, ao lado da recém-vinda, em frente ao lugar do médico, ali onde outrora o Professor Popov se conduzira daquele modo desenfreado e equívoco – esse caráter comum deixava perplexo o bom Hans Castorp, que não previra pudessem os acontecimentos tomar esse rumo. O conselheiro anunciara-lhe à sua maneira o dia e a hora do regresso de Clávdia: – Pois então, Castorp, meu velho, a fidelidade na espera será recompensada. Depois de amanhã, à noite, a gatinha estará de volta. Recebi um telegrama. – Mas nas suas palavras nada transparecera de que Mme. Chauchat não chegaria sozinha, talvez porque o próprio Behrens ignorasse que ela e Peeperkorn viriam juntos e formavam um par. Pelo menos fingiu-se surpreendido, quando Hans Castorp, no dia seguinte à chegada em comum, pediu-lhe, por assim dizer, satisfações.

– Eu também não sei dizer onde ela arranjou este – declarou. – Devem ter-se conhecido na viagem, lá nos Pireneus, suponho eu. Pois é, meu pobre e desiludido Celadon, por enquanto o senhor terá de se conformar com ele. Não há remédio. São amicíssimos; compreende? Parece que até existe comunhão de bens. O homem é imensamente rico, segundo ouvi dizer. Um rei do café, aposentado, sabe? Tem criado malaio. Estilo de vida opulento. Não veio, aliás, para se divertir. Além de um forte catarro com base alcoólica, sofre evidentemente de uma febre maligna que contraiu nos trópicos. Uma febre intermitente, compreende? Doença mal tratada e pertinaz. É necessário que o senhor se arme de paciência.

– Pois não – disse Hans Castorp, condescendentemente. “E tu?”, acrescentou de si para si. “Como te sentes? Afinal de contas não estás completamente desinteressado. Se não me engano muito, houve lá qualquer coisa no passado, com um viúvo de faces azuladas, que sabia pintar convincentemente a óleo. Acho que tuas palavras revelam certa alegria maliciosa, e contudo somos, em certo sentido, companheiros de infortúnio no que se refere a Peeperkorn.” – Um tipo curioso e decididamente uma personalidade original – prosseguiu em voz alta, com um gesto displicente. – É robusto e delicado, eis a impressão que se tem dele, ou pelo menos a que eu tive hoje, quando tomamos o café da manhã. Robusto e ao mesmo tempo delicado. São esses os adjetivos que o caracterizam, segundo a minha opinião, se bem que normalmente sejam considerados contraditórios. Ele é alto e espadaúdo, isso sim, e gosta de ficar de pé, com as pernas abertas e as mãos enterradas nos bolsos da calça, que são verticais... Achei necessário mencionar que nas calças dele os bolsos afundam verticalmente e não se encontram aos lados, como nas minhas, nas do senhor e nas da maioria das pessoas pertencentes às classes superiores da sociedade... E quando ele se mantém nessa posição e fala guturalmente, à maneira dos holandeses, não há como negar que tem aspecto robusto. Mas seu cavanhaque é ralo; embora comprido, é tão ralo que bem se poderia contar-lhe os fios. Também os olhos são pequenos, apagados e quase sem cor. Que se pode fazer? Não lhe adianta arregalá-los constantemente; com isso só cria rugas pronunciadas na testa, que lhe sobem pelas têmporas e atravessam em sentido horizontal a fronte, essa fronte alta e vermelha, emoldurada por cabelos brancos, que são igualmente compridos e ralos. Mesmo que os arregale assim, os olhos continuam pequenos e apagados. E o colete de peito alto lhe imprime um cunho de clérigo, apesar da sobrecasaca xadrez. Bem, é essa a impressão que tive hoje de manha.

– Estou vendo que o senhor o examinou atentamente – respondeu Behrens. – Estudou o homem em todas as suas particularidades, o que me parece muito acertado, uma vez que o senhor terá de habituar-se à sua existência.

– Pois é, devemos habituar-nos – disse Hans Castorp.

Deixamos a seu cargo a descrição aproximada da figura do novo e inesperado hóspede, e ele não se desincumbiu mal da sua tarefa. Nós mesmos, provavelmente, não teríamos obtido melhor resultado. Verdade é que seu posto de observação era sumamente favorável. Como sabemos, Hans Castorp avizinhara-se, durante a ausência de Clávdia, da mesa dos “russos distintos”; visto a sua ficar paralela à outra, que apenas avançava um pouco mais em direção à porta do avarandado, e visto Hans Castorp tanto como Peeperkorn ocuparem as pontas dirigidas para o interior da sala, achavam-se, por assim dizer, colocados lado a lado, o nosso herói um pouco atrás do holandês, o que facilitava uma inspeção discreta, enquanto enxergava obliquamente diante de si o rosto de Mme. Chauchat a três quartos. Para completar o talentoso esboço de Hans Castorp, poderíamos acrescentar que Peeperkorn tinha o bigode raspado, o nariz grande e carnudo, e a boca igualmente grande, com os lábios irregulares, como que gretados. Apesar de as mãos serem bastante largas, as unhas eram compridas e pontudas. Quando Peeperkorn falava – o que fazia quase sem cessar, embora Hans Castorp não conseguisse entender claramente o conteúdo das suas palavras –, servia-se dessas mãos para gestos elegantes, que mantinham os ouvintes em suspenso, esses gestos delicadamente matizados, esmerados, precisos e nítidos que revelam a cultura de um diretor de orquestra; curvava então o dedo indicador, para que formasse um círculo com o polegar, ou estendia a mão espalmada – larga, mas de unhas pontudas – num movimento protetor, tranqüilizante, que exigia atenção. Contudo, a atenção sorridente que ele conquistava era logo transformada em decepção pela vagueza das exposições tão intensamente preparadas. Ou melhor: não era transformada em decepção, mas em uma alegre surpresa, pois o vigor, a fineza, a ênfase dos preparativos não somente substituíam com perfeição, e ainda posteriormente, aquilo que faltava, mas eram em si satisfatórios, interessantes e mesmo preciosos. Às vezes nem sequer chegava a pronunciar palavras. Acontecia-lhe pôr suavemente a mão sobre o antebraço de seu vizinho da esquerda, um jovem sábio búlgaro, ou de Mme. Chauchat, à sua direita; depois erguia a mesma mão obliquamente, reclamando silêncio e curiosidade para o que desejava dizer; franzia então as sobrancelhas a tal ponto que as rugas que desciam em ângulo reto da testa para as comissuras exteriores dos olhos se aprofundavam como numa máscara, e baixava o olhar sobre a toalha, ao lado da pessoa assim agarrada, enquanto os lábios grandes e gretados pareciam dispostos a formular qualquer coisa altamente importante. Alguns instantes após, porém, afrouxava a respiração e renunciava a falar, dando, por assim dizer, o comando “Descansar armas!” Sem ter proferido palavra alguma, tornava a ocupar-se com o seu café, que mandava fazer especialmente forte, e que lhe serviam na sua própria cafeteira. Depois de ter bebido, procedia da seguinte maneira: com um gesto de mão coibia a conversa, obtendo silêncio, assim como um regente faz calar a confusão dos instrumentos que estão sendo afinados e procura, por meio de um mando imperioso, concentrar a orquestra, a fim de começar uma peça. Sua cabeça grande, rodeada de labaredas de cabelos brancos, com os olhos sem cor definida, as poderosas rugas da fronte, o comprido cavanhaque e a boca desnuda e dolorida, eram indiscutivelmente impressionantes, de modo que todos costumavam obedecer-lhe ao gesto. Os comensais emudeciam, olhavam-no sorrindo, esperando, e aqui ou ali havia quem lhe desse um sinal alentador. E Peeperkorn dizia numa voz bastante abafada:

– Senhoras e senhores. Muito bem. Tudo vai bem. Queiram, no entanto, observar e não perder de vista em nenhum momento, que... Nada mais sobre este ponto... O que me cumpre declarar não é aquilo, mas principal e exclusivamente o seguinte: temos o dever... É de uma forma inelutável... Repito e faço questão de usar essa expressão: é de uma forma inelutável que se reivindica de nós... Não, senhoras e senhores, não! Esse não é o sentido... Não me interpretem como se eu... Que erro grave não seria pensar que... Basta, senhoras e senhores! Basta amplamente! Sei que estamos de acordo sobre todas essas questões, e por isso entremos no assunto!

Não dissera nada, mas a majestade da sua cabeça parecia tão indiscutível, o jogo de fisionomia e a gesticulação eram de tal modo enérgicos, imponentes, expressivos, que todos, inclusive Hans Castorp, empenhado em escutar, criam ter ouvido algo de grande peso, ou, se é que se davam conta de que o discurso carecia por completo de conteúdo e de coerência, não se ressentiam dessa falta. Seria interessante saber qual teria sido a reação de um surdo. Talvez ele se afligisse, porque a apresentação o faria tirar conclusões erradas quanto à alocução apresentada, e porque imaginaria perder, devido à surdez, uma informação valiosa. Tal gente é propensa à desconfiança e à amargura. Mas havia à outra extremidade da mesa um jovem chinês, que ainda não chegara a adquirir bons conhecimentos de alemão. Em certa ocasião, esse moço acabava de ver e de ouvir um desses discursos, sem compreendê-lo, e manifestou alegre satisfação exclamando “Very well!” e batendo palmas.

E Mynheer Peeperkorn “entrou no assunto”. Empertigou-se, dilatou o largo peito, abotoou a sobrecasaca xadrez por cima do colete de gola alta. Sua cabeça branca, nesse momento, lembrava um rei. Com um aceno chamou uma criada – era a anã – e esta, embora atarefadíssima, atendeu imediatamente ao sinal peremptório. Com o jarro de leite e o bule de café nas mãos, colocou-se ao lado da sua cadeira. Também ela não pôde deixar de fazer um gesto alentador, enquanto no rosto grande de velhota lhe aflorava um sorriso. Parecia toda atenção, como que imobilizada pelo olhar apagado que Peeperkorn lhe lançava de sob as poderosas rugas da testa, e por sua mão erguida, cujo indicador se reunia com o polegar, para formar um círculo, ao passo que os três outros dedos se esticavam para o alto, dominados pelas pontas de lança das unhas.

– Minha filha! – disse ele. – Bem. Por enquanto tudo vai bem. Você é pequena. Não há de ser nada. Pelo contrário. Vejo nisso uma vantagem e dou graças a Deus por você ser assim como é, e devido à sua baixa altura que é tão característica... Pois então! O que desejo da sua parte também é pequeno, pequenino, e característico. Antes de tudo, como se chama?

Ela atrapalhou-se, sempre sorrindo, e disse por fim que seu nome era Emerentia.

– Ótimo! – exclamou Peeperkorn, recostando-se à cadeira e estendendo o braço em direção à anã. Dera à exclamação um tom de quem pretende dizer: “Por que se preocupa? Tudo vai às mil maravilhas”. – Minha filha – prosseguiu então, seriamente e quase com severidade. – Isso ultrapassa todas as minhas expectativas. Emerentia... Você pronunciou este nome com modéstia, mas ele, unido à sua pessoa... Numa palavra, isso abre as mais belas perspectivas. Vale a pena deter-se e concentrar tudo quanto o peito contém de sentimento, para que... Acho que você me entende, minha filha... Na forma familiar e abreviada pode-se dizer Rentia, mas também Emezinha soa simpático. No momento não hesito em escolher Emezinha. Muito bem, Emezinha, minha filha, preste atenção: quero um pouco de pão, minha querida. Pare! Não se afaste! Que não se insinue na nossa conversa nenhum mal-entendido! Percebo na sua cara relativamente grande que esse perigo... Pão, Rentinha, mas não pão assado. Este se acha aqui em abundância, e dos mais diversos tipos. Desejo o pão de Deus, meu anjo, pão destilado, pão transparente, minha pequena forma carinhosa, a fim de me regalar com ele. Não tenho certeza se o sentido dessa palavra lhe... Estou disposto a substituí-la por “tônico do coração”, não surgisse com isso o novo perigo de me ver interpretado com a leviandade habitual... Basta, Rentia, Basta! Liquidado! Prefiro, consciente dos nossos deveres e das nossas obrigações sagradas... Inclusive, por exemplo, o dever moral de me regozijar cordialmente da sua característica estatura... Uma genebrinha, querida! Regozijar-me, era isso que eu queria dizer. Genebra de Schiedam, Emerentinha! Apresse-se e me traga uma.

– Uma genebra genuína – repetiu a anã e deu meia-volta, na intenção de se desembaraçar do bule e do jarro. Finalmente depositou-os na mesa de Hans Castorp, ao lado do seu talher, evidentemente para não incomodar o Sr. Peeperkorn. Foi-se correndo, e sem demora o hóspede recebeu a bebida desejada. O cálice estava tão cheio que o “pão” se derramava por todos os lados e molhava o prato. O holandês pegou-o entre o polegar e o dedo médio e ergueu-o contra a luz. – Feito isso – declarou –, Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha. – E engoliu o trigo destilado, depois de o mastigar rapidamente. – E agora – acrescentou – contemplo todo o mundo com os olhos reconfortados. – Em seguida pegou da mão de Mme. Chauchat, que estava na mesa, levou-a aos lábios e recolocou-a sobre a toalha, mantendo-a ainda durante alguns instantes na sua.

Um homem singular, uma personalidade vigorosa, se bem que pouco clara. A sociedade do Berghof interessava-se vivamente por ele. Diziam que acabava de retirar-se dos negócios coloniais, depois de ter enriquecido bastante. Falavam da sua esplêndida casa em Haia e da sua vila em Scheveningue. A Srª. Stöhr qualificou-o de “magnete de dinheiro” – a infeliz queria dizer “magnata” – e aludiu a um colar de pérolas que Mme. Chauchat, desde a sua volta, usava com o vestido de gala, e que, segundo a opinião de Dona Karoline, dificilmente podia ser considerado como sinal da galanteria de um marido caucasiano, senão que devia ter a sua origem na “comunhão de bens”. Ao dizer isso, piscou um olho e fez um gesto na direção do seu vizinho Hans Castorp, baixando os cantos da boca, numa paródia de pesar. Nem a enfermidade nem o sofrimento haviam contribuído para refinar a Srª. Stöhr, de modo que ela se aproveitou da situação incômoda do nosso herói para seus escárnios brutais. Hans Castorp não perdeu a linha. Corrigiu-lhe até com certa graça o lapso a que a induzira a ignorância. Ela acabava de confundir duas palavras – explicou –, queria dizer “magnata de dinheiro”. Mas o termo “magnete” também não estava mal escolhido, uma vez que Peeperkorn, evidentemente, possuía grande força de atração. Também respondeu com bem fingida indiferença à professora, Srta. Engelhart, quando esta, com um sorriso amarelo e sem o encarar, perguntou-lhe que tal ele achava o novo hóspede. Mynheer Peeperkorn, replicou, era uma personalidade esfumada. Personalidade, sem dúvida, mas esfumada. E essa classificação precisa documentava a sua objetividade tanto como a calma do seu espírito e desconcertava por completo a professora. E quanto a Ferdinand Wehsal e à sua indireta relativa às circunstâncias inesperadas em que voltara Mme. Chauchat, Hans Castorp demonstrou-lhe que existem olhares cuja clareza inequívoca nada fica devendo às palavras mais nitidamente articuladas. “Miserável!”, dizia o olhar com que mediu de alto a baixo o homem de Mannheim; dizia-o, excluindo qualquer interpretação levissimamente ambígua, e Wehsal compreendeu esse olhar, engoliu-o e até o aprovou, meneando a. cabeça e exibindo os dentes cariados. Mas, a partir desse incidente, desistiu de carregar o sobretudo de Hans Castorp nos passeios que faziam em companhia de Naphta, Settembrini e Ferge.

“Vá lá que seja!”, pensou Hans Castorp. “Posso carregá-lo sozinho. Até prefiro fazê-lo, e era pura amabilidade minha entregá-lo de vez em quando a esse coitado.” Mas ninguém de nós pode enganar-se quanto ao fato de Hans Castorp sentir-se ferido por aquelas circunstâncias totalmente imprevistas, que aniquilavam todos os preparativos íntimos que fizera para a ocasião do reencontro com o objeto das suas aventuras carnavalescas. Ou melhor: que os tornavam supérfluos, e era isso o que mais o humilhava.

Seus propósitos haviam sido os mais delicados e sensatos. Longe dele pensar num procedimento precipitado ou importuno. Nunca tivera a intenção de ir esperar Clávdia na estação. Ainda bem que jamais tivesse ventilado tal idéia! Em todo caso ficara na dúvida se essa mulher, à qual a doença outorgava tamanha liberdade, julgaria verdadeiros os fantásticos acontecimentos de uma remota noite de carnaval, cheia de sonhos, de máscaras e de conversas em língua estrangeira, ou, ainda, se ela desejaria que isso fosse recordado de um modo direto. Não, nada de petulâncias, nada de reivindicações impertinentes. E mesmo admitindo que as suas relações com a enferma dos olhos oblíquos houvessem ultrapassado, pela sua natureza, os limites traçados pela razão e pelas convenções ocidentais, cumpria observar, quanto às formas, a mais perfeita civilidade e, por enquanto, até a ficção do esquecimento. Um cumprimento cortês de uma mesa para a outra, e nada mais, no momento!. Mais tarde aproveitaria uma oportunidade para se aproximar com toda a discrição e para perguntar, incidentalmente, como a viajante tinha passado desde aquele dia... O verdadeiro reencontro poderia produzir-se numa ocasião oportuna e trazer consigo a recompensa dessa coibição cavalheiresca.

Mas, como já dissemos, toda essa delicadeza parecia vã nesse instante, já que deixara de ser o resultado de uma escolha livre e por isso não tinha méritos. A presença de Mynheer Peeperkorn excluía de uma forma mais que completa a possibilidade de uma tática que não consistisse em extrema reserva. Na noite da chegada, Hans Castorp tinha observado, da sacada, como o trenó subira em marcha lenta pela curva da rampa. Na boléia achava-se o criado malaio, um homenzinho amarelado com um chapéu-coco e com uma gola de peles no sobretudo. No assento de trás, ao lado de Clávdia, instalara-se o homem estranho, com o chapéu puxado sobre os olhos. Naquela noite, Hans Castorp dormira muito pouco. No outro dia, não tivera grande dificuldade em saber o nome desse desconcertante companheiro de viagem, e como brinde lhe haviam dado a notícia de que ambos acabavam de ocupar uns aposentos luxuosos e vizinhos no primeiro andar. Viera então o café da manhã. Hans Castorp encaminhara-se bem cedo ao seu lugar e, muito pálido, esperara pelo momento em que a porta envidraçada se fechasse com estrondo. Mas isso não se realizara. A entrada de Clávdia decorrera sem ruído nenhum, pois atrás dela Mynheer Peeperkorn tinha fechado a porta. Alto, espadaúdo, com a fronte ampla e com as labaredas brancas em torno do crânio imponente, ia seguindo os passos da companheira de viagem, que, no seu costumeiro andar felino, avançando a cabeça, se aproximava da sua mesa. Sim, era ela; não mudara em nada! Contra os seus propósitos, esquecido de tudo, Hans Castorp devorava-a com os olhos tresnoitados. Reencontrava o cabelo ruivo, penteado sem muita arte e enrolado, numa trança simples, em volta da cabeça; revia os “olhos de lobo de estepe”, a curva da nuca, os lábios que pareciam mais cheios do que eram em realidade, devido àquelas maçãs acentuadas que produziam uma graciosa concavidade das próprias faces... “Clávdia!”, pensou Hans Castorp estremecendo, e fitou o desconhecido, com a cabeça atirada para trás, num gesto de desafio e de mofa em face da grandiosidade teatral do seu aspecto; fê-lo exortando o próprio coração a que não levasse a sério o poderio de uma posse cuja segurança era posta em dúvida por certos fatos do passado; e tratava-se de fatos reais, não de coisas vagas, obscuras, acontecidas no terreno da pintura diletante, como aquelas que outrora haviam sido capazes de inquietá-lo... Mme. Chauchat também conservara aquele hábito de exibir-se sorrindo a toda a sala, antes de se sentar, como para apresentar-se à sociedade, e Peeperkorn secundava-a, deixando que Clávdia celebrasse a pequena cerimônia, enquanto ele se mantinha de pé atrás dela, antes de se instalar, a seu lado, à extremidade da mesa.

Não houvera oportunidade para um cumprimento cortês de uma mesa para a outra. Quando da “cerimônia de apresentação”, os olhos de Clávdia tinham vagueado para além da pessoa de Hans Castorp e da parte da sala onde ele se achava, em busca de regiões mais distantes. O encontro seguinte no refeitório dera-se da mesma forma, e quanto mais refeições se realizavam, sem que os seus olhares se cruzassem de outro modo a não ser num resvalo cego e indiferente da parte de Mme. Chauchat, tanto menos indicado parecia aquele cumprimento cortês. Durante a breve reunião noturna, os companheiros de viagem mantinham-se na saleta. Juntos ocupavam o sofá, rodeados pelos comensais. Peeperkorn, cujo rosto majestoso, intensamente avermelhado, se destacava do alto dos cabelos e do cavanhaque, esvaziava a garrafa de vinho tinto que lhe fora servida no jantar. Pois em cada refeição principal emborcava uma garrafa, às vezes até uma e meia ou duas, sem falar do “pão” que já vinha acompanhando o café da manhã. Evidentemente, o homem majestoso tinha extraordinária necessidade de se regalar. Para o mesmo fim usava várias vezes por dia um café extremamente forte, que tomava numa xícara grande, não somente de manhã, mas também por ocasião do almoço, e não depois da refeição, senão durante a mesma e ao mesmo tempo que o vinho. Ambas essas coisas – conforme Hans Castorp ouviu o holandês explicar – eram boas contra a febre, além do seu efeito regalador; um remédio muito bom para a febre intermitente que contraíra nos trópicos, e que já no segundo dia da sua estadia o reteve na cama durante algumas horas. O conselheiro qualificava-a de quarta, visto acometer o holandês de quatro em quatro dias; no começo o fazia bater os dentes, depois lhe causava um violento ardor e por fim abundante transpiração. Ao que dizia o médico, a enfermidade originara também uma congestão do baço.

 

         “Vingt et un”

Assim transcorreu algum tempo, umas três ou quatro semanas, segundo julgamos, uma vez que absolutamente não nos podemos fiar nas avaliações e no senso de tempo de Hans Castorp. Escoaram-se sem acarretar novas mudanças. Na alma do nosso herói produziram certo rancor contra as circunstâncias imprevistas que o obrigavam a uma discrição pouco meritória; rancor que se ia tornando habitual e se dirigia particularmente contra aquela circunstância que se chamava a si própria Pieter Peeperkorn, cada vez que tomava uma cachacinha, contra a presença importuna desse homem majestoso, imponente e pouco claro, que realmente o constrangia de um modo muito mais brutal do que fizera o Sr. Settembrini quando “era demais ali”. Rugas de descontentamento e de irritação sulcavam verticalmente a testa de Hans Castorp, entre as sobrancelhas, e de sob essas rugas contemplava cinco vezes ao dia a mulher que regressara. Mesmo assim se sentia feliz por poder contemplá-la e cheio de desdém pela poderosa presença de alguém que ignorava até que ponto a sua segurança era posta em jogo pelo passado.

Certa noite, porém, a reunião noturna no vestíbulo e nos salões foi mais animada do que em geral, o que acontecia de vez em quando sem nenhum motivo especial. Houvera música; algumas canções ciganas briosamente executadas ao violino por um estudante húngaro. A seguir, o Conselheiro Behrens, que estivera presente por um quarto de hora, em companhia do Dr. Krokowski, obrigara um pensionista a tocar nos baixos do piano a melodia do “Coro dos peregrinos”, enquanto ele, de pé a seu lado, maltratava o instrumento com uma escova que fazia saltitar pelos agudos, para parodiar um acompanhamento de rabeca. Isso fez rir. Sob vivos aplausos, meneando a cabeça como se a sua própria brincadeira o surpreendesse agradavelmente, o conselheiro abandonou os salões. Mas a reunião se prolongou; continuaram a fazer música, sem que se exigisse dos ouvintes nenhuma atenção concentrada; formaram-se partidas de dominó e de bridge, com bebidas nas mesas; outros se divertiam com os brinquedos ópticos; aqui e ali se viam pensionistas conversando. Também a roda da mesa dos “russos distintos” se havia misturado com os grupos do vestíbulo e do salão de música. Mynheer Peeperkorn aparecia em diferentes lugares; era impossível não o perceber, já que sua cabeça majestosa dominava os que o cercavam, triunfando devido a sua importância e sua força principesca. Aqueles que o rodeavam, embora a princípio houvessem sido atraídos pela mera fama da sua riqueza, logo começavam a sentir o encanto da sua personalidade; deixavam-se ficar, sorriam, faziam-lhe com a cabeça acenos alentadores, esqueciam-se de si próprios, fascinados pelos olhos sem cor sob as poderosas rugas da testa; com a atenção presa aos gestos elegantes e insistentes das mãos de unhas compridas, não experimentavam a menor decepção em face das palavras abruptas, incoerentes, ininteligíveis, confusas e realmente gratuitas que seguiam essa gesticulação.

Quem procurasse Hans Castorp nesse ambiente, encontrá-lo-ia no salão de leitura, naquele mesmo recinto onde ele outrora – esse “outrora” é vago; o autor, o herói e o leitor já não percebem claramente a distância – recebera importantes informações sobre a organização do progresso humano. Nesse lugar estava-se mais tranqüilo. Somente umas poucas pessoas o partilhavam com Hans Castorp. A uma das escrivaninhas duplas, iluminadas por uma lâmpada suspensa, alguém redigia uma carta. Uma senhora, com dois pincenês sobre o nariz, achava-se sentada junto à biblioteca e folheava um volume ilustrado. Nas proximidades da passagem aberta que dava para a sala do piano, Hans Castorp ocupava uma cadeira que casualmente se encontrava ali; era uma cadeira em estilo Renascença, forrada de veludo, com espaldar alto e reto, e sem braços. O jovem voltava as costas ao reposteiro e tinha nas mãos um jornal, na posição de quem lê; mas, em vez de ler, escutava, com a cabeça inclinada obliquamente, os sons de música entrecortados e mesclados de vozes. No entanto, o seu cenho sombrio indicava que ele tampouco prestava muita atenção a esses sons, e que seus pensamentos trilhavam veredas pouco musicais; as veredas espinhosas da desilusão causada pelos acontecimentos que zombavam de um moço que se sujeitara a um longo período de espera, e quando chegara o fim desse período, se vira ignominiosamente logrado; as veredas ásperas do desafio, pelas quais avançara a um ponto em que pouco faltava para a decisão de depositar o jornal nessa cadeira incômoda, que o acaso lhe oferecera, sair pela porta do vestíbulo e substituir essa vida social sem graça pela solidão glacial do compartimento de sacada, onde Maria Mancini lhe faria companhia.

– E seu primo, monsieur? – perguntou de trás dele, por cima da sua cabeça, uma voz. Era uma voz feiticeira para os seus ouvidos fadados a achar extremamente agradável o agridoce daquele timbre velado, levando dessa forma ao extremo o conceito do agradável. Era a voz que dissera uma vez: “Com muito prazer. Mas cuidado para não quebrá-lo!” Uma voz dominadora, a voz do destino, e que, se ele não se enganava, perguntara por Joachim.

Lentamente, Hans Castorp desceu o jornal e levantou um pouquinho o rosto, de modo que apenas o topo da cabeça se encostava ao espaldar reto da cadeira. Até fechou os olhos durante um momento, mas logo os reabriu, para dirigi-los ao alto, na direção que a posição da cabeça impunha ao seu olhar, e pôs-se a fitar o vazio. Dir-se-ia que a expressão do bom rapaz tinha algo de um visionário ou de um sonâmbulo. Bem desejava ele que a pergunta fosse repetida, mas isso não se deu. Dessa forma nem sequer tinha certeza de que ela ainda se encontrava atrás dele, quando respondeu, depois de algum tempo, com bastante atraso, e a meia voz:

– Está morto. Foi servir na planície e morreu.

O próprio Hans Castorp notou que “morto” era a primeira palavra com expressão a ser pronunciada entre eles. Notou ao mesmo tempo que ela, por falta de familiaridade com a língua alemã, escolhia termos excessivamente fracos para expressar os seus sentimentos, quando disse de trás dele e por cima da sua cabeça:

– Coitado! Que pena! Completamente morto e enterrado? Desde quando?

– Faz algum tempo. Foi levado para baixo pela mãe. Tinha-lhe crescido uma barba de guerreiro. Deram três salvas fúnebres por cima do túmulo.

– Ele as mereceu. Foi um homem muito bom. Muito melhor do que outros, do que certos outros.

– Sim, era bom. Radamanto sempre falava de seu excesso de entusiasmo. Mas seu corpo não estava de acordo. Rebellio carnis, como dizem os jesuítas. Sempre ligara grande importância ao corpo, de um modo honroso. Mas seu corpo permitiu que substâncias desonrosas o penetrassem e pregou-lhe uma peça ao excessivo entusiasmo. É, aliás, mais moral perder-se e perecer do que preservar-se.

– Vejo que certa pessoa continua sendo um valdevinos filosófico. Quem é esse Radamanto?

– Behrens. Settembrini o chama assim.

– Ah, já sei, Settembrini. Aquele italiano... Eu não simpatizava com ele. Sua mentalidade não era humana. (A voz arrastava a palavra “humana” de modo lânguido e ao mesmo tempo enfático.) Era altivo. Não está mais aqui? Ora, sou ignorante. Não sei o que quer dizer Radamanto.

– Qualquer coisa humanística. Settembrini mudou-se. Temos filosofado bastante nestes últimos tempos, ele, Naphta e eu.

– Quem é Naphta?

– O adversário dele.

– Se é o adversário dele, gostaria de conhecê-lo... Mas eu não lhe disse que seu primo morreria se descesse à planície para ser soldado?

– Sim, tu o sabias.

– O que o senhor está pensando?

Silêncio prolongado. Ele não se retardou. Comprimindo o alto da cabeça contra o espaldar reto, com o olhar visionário cravado no ar, ficou esperando que a voz tornasse a soar. Novamente não sabia com certeza se ela ainda se achava atrás dele. Receava que os sons entrecortados de música, que entravam da sala vizinha, pudessem ter abafado o ruído de passos que se afastassem. Até que enfim a voz voltou:

– E monsieur nem sequer foi assistir ao enterro de seu primo?

– Não – respondeu ele –, disse-lhe adeus aqui mesmo, antes de fecharem o caixão, quando ele começou a sorrir. Tu não imaginas como estava fria a sua testa.

– Outra vez? É assim que se fala com uma senhora que mal se conhece?

– Será que devo falar humanisticamente e não humanamente? – Sem querer, também ele arrastou a palavra de uma forma sonolenta, como quem se espreguiça e boceja.

– Quelle blague!... E o senhor esteve aqui todo esse tempo?

– Sim, tenho esperado.

– Por quem?

– Por ti.

Uma risada soou por cima dele, lançada simultaneamente com a palavra “Louco!”

– Por mim? Provavelmente não o deixaram sair.

– Ao contrário. Em certa ocasião, Behrens me teria deixado sair, num acesso de raiva. Mas isso seria apenas uma partida em falso. Pois, além das cicatrizes que tenho de há muito, desde os meus tempos de colégio, sabes?, existe ainda o ponto recente que Behrens descobriu e que me está causando a febre.

– Febre ainda?

– Sim, tenho sempre um pouquinho. Quase sempre. Com intermitências, mas não é uma febre intermitente.

– Des allusions?

Ele permaneceu calado, franzindo o cenho, por cima do olhar visionário. Depois de algum tempo perguntou:

– E tu, onde tens andado?

Uma mão deu uma pancada no espaldar da cadeira.

– Mais c’est un sauvage!... Por onde tenho andado? Por toda parte. Em Moscou (a voz pronunciava “Muoscou”, arrastando o nome do mesmo modo lânguido como fizera com a palavra “humana”), em Baku, em estações balneárias da Alemanha, na Espanha.

– Ah, na Espanha? Que tal a Espanha?

– Assim, assim. Viaja-se mal ali. O povo de lá é meio mouro. Castela é muito seca e rígida. O Kremlin é mais belo do que aquele palácio ou convento ao pé da montanha...

– O Escorial?

– Sim, o castelo de Filipe. Um castelo inumano. O que me agradou muito mais foi uma dança popular na Catalunha, a sardana, acompanhada por gaita de foles. Eu mesma entrei nela. Todos se dão as mãos e dançam à roda. A praça inteira fica cheia de gente. C’est charmant. É humano. Comprei um pequeno barrete azul como ali usam todos os homens e meninos do povo; é quase um fez, a barretina. Ponho-a durante o repouso e em outras ocasiões. Monsieur poderá julgar se ela me assenta bem.

– Que monsieur?

– O que está sentado nesta cadeira.

– Eu pensava que se tratasse de Mynheer Peeperkorn.

– Ele já julgou. Diz que fico encantadora com ela.

– Ele disse isso? Até o fim? Terminando a frase de maneira a se poder compreendê-la?

– Ah, parece que alguém está mal-humorado. Procura ser malicioso e mordaz. Procura zombar de personalidades que são muito maiores, melhores e mais humanas do que certa pessoa, junto com seu... avec son ami bavard de la Méditerranée, son maitre grand parleur... Mas não tolerarei que meus amigos sejam...

– Tens ainda meu retrato interior? – interrompeu ele, melancolicamente.

Ela riu.

– Vou ver se o guardei.

– Eu trago o teu aqui comigo. Além disso tenho um cavaletezinho em cima da minha cômoda, e de noite...

Não chegou a acabar a frase. À sua frente achava-se Peeperkorn. Andara à procura da sua companheira de viagem. Entrara vindo de trás do reposteiro e surgira diante da cadeira do interlocutor a cujas costas ela se encontrava. Quedava-se ali qual uma torre, tão perto dos pés de Hans Castorp que este só com dificuldade conseguiu levantar-se entre os dois outros, quando verificou, apesar do seu estado sonâmbulo, que o momento exigia dele tal gesto de cortesia. Teve de resvalar lateralmente da cadeira, que ficou no meio das três pessoas dispostas num triângulo.

Mme. Chauchat obedeceu às regras do Ocidente civilizado apresentando-os um ao outro. Com referência a Hans Castorp disse que se tratava de um conhecido de tempos passados, da sua última estadia no Berghof. A existência do Sr. Peeperkorn dispensava comentários. Pronunciou o nome do holandês, e este fixou no jovem os olhos apagados, sob os arabescos das rugas da testa e das fontes, que estavam mais profundas devido à atenção, e davam a seu rosto o aspecto de um ídolo. Estendeu a Hans Castorp a mão, cujas costas eram largas e sardentas; uma mão de capitão, pensou Hans Castorp, abstração feita das unhas pontudas. Pela primeira vez entrava em contato com a poderosa personalidade de Peeperkorn. “Personalidade” – constantemente lhe ocorria essa palavra à vista do holandês; quem o via sabia de repente o que era uma personalidade, e mais ainda: estava convencido de que uma personalidade não podia ser diferente dele. Os anos vacilantes do jovem Hans Castorp sentiam-se esmagados pelo peso dos sessenta desse homem espadaúdo com o rosto vermelho emoldurado de labaredas brancas, com a boca gretada e dolorida, e com o cavanhaque que pendia, comprido e ralo, sobre o colete clerical. Doutro lado, esse Peeperkorn era a amabilidade em pessoa.

– Meu caro senhor – disse. – Inteiramente... Não, permita-me... Inteiramente! Acabo de travar conhecimento com o senhor... conhecimento com um moço que inspira confiança... Faço-o conscientemente, meu caro senhor, estou compenetrado disso. O senhor me agrada. Não há de quê. Basta! O senhor me é simpático.

Não adiantava fazer objeções. Seus gestos eram peremptórios. Hans Castorp lhe era simpático. E desse fato Peeperkorn tirou conseqüências que expressou em forma um tanto vaga, mas que por intermédio da sua companheira de viagem se tornaram coerentes e compreensíveis.

– Minha filha – disse ele. – Muito bem. Que tal?... Por favor, não me interprete mal... A vida é breve, e a nossa capacidade de satisfazer as suas exigências é, infelizmente... Isso são realidades, minha filha, são leis. Inexoráveis! Numa palavra, minha filha, sem perda de tempo... – E fez perdurar um gesto expressivo de sugestão declinando toda a responsabilidade para o caso de se cometer, apesar do seu conselho, um erro decisivo.

Ao que parecia, Mme. Chauchat tinha prática na interpretação de tais desejos apenas esboçados.

– Por que não? – disse ela. – Nós poderíamos permanecer juntos por algum tempo. Quem sabe se jogamos um pouco e tomamos uma garrafa de vinho? Ora, que espera o senhor? – continuou, voltando-se para Hans Castorp. – Mexa-se! Não vamos ficar aqui só nós três. Precisamos ter companhia. Quem mais está no salão? Mande vir a quem encontrar! Vá buscar alguns dos nossos amigos que já estão nas sacadas! Convidaremos também o Dr. Ting-Fu, nosso companheiro de mesa.

Peeperkorn esfregava as mãos.

– Ótimo! – disse. – Perfeito! Excelente! Vá depressa, meu jovem amigo! Obedeça! Formaremos uma roda. Vamos jogar, comer e beber. Vamos sentir que... Absolutamente, meu caro rapaz!

Hans Castorp serviu-se do elevador e subiu ao segundo piso. Bateu à porta de A. K. Ferge, que por sua vez tirou Ferdinand Wehsal e o Sr. Albin das suas espreguiçadeiras no alpendre do andar térreo. O Promotor Paravant e o casal Magnus haviam sido encontrados no vestíbulo, a Srª. Stöhr e a Kleefeld, no salão. Foi ali, embaixo do lustre central, que abriram uma espaçosa mesa de jogo. Cercaram-na de cadeiras e de mesinhas auxiliares. Cada convidado que se reunia ao grupo era cumprimentado por Mynheer, com o olhar apagado, mas cortês, e com os arabescos da fronte içados em sinal de atenção. Sentaram-se doze à mesa. Hans Castorp recebeu o lugar entre o majestoso anfitrião e Clávdia Chauchat. Foram distribuídas cartas e fichas. Segundo haviam combinado, seriam jogadas algumas partidas de vinte-e-um. Peeperkorn, com aquele seu jeito imponente, mandou chamar a anã e pediu vinho, um Chablis de 1906, três garrafas por enquanto, acompanhadas de doces, tudo o que ela pudesse encontrar de passas de frutas e de confeitos. O modo como esfregava as mãos para saudar os quitutes que lhe serviam patenteava a sua satisfação; foi também por meio de palavras, que de um modo impressionante terminavam no meio das frases, que o holandês procurou comunicar o que sentia; conseguiu isso perfeitamente, pelo menos no sentido de impor a sua personalidade. Pondo as mãos nos antebraços dos vizinhos, reclamou, com pleno êxito, a mais intensa atenção de todos para a maravilhosa cor de ouro do vinho, para o açúcar exsudado pelas passas de Málaga, e para certo tipo de rosquinhas salgadas e polvilhadas com sementes de papoula. Qualificou-as de divinas, sufocando de vez, com um gesto imperioso, o menor germe de oposição que porventura se levantasse contra o emprego de uma palavra tão exaltada. Foi o primeiro a encarregar-se da banca, mas prontamente a cedeu ao Sr. Albin; conforme disse, se é que o entendemos bem, a função de banqueiro impedia-o de gozar livremente a festa.

Era visível que o jogo de azar representava para ele um assunto secundário. Jogava-se por nada, segundo a sua opinião. Por proposta dele haviam fixado a aposta mínima em cinqüenta centavos, mas isso representava muito dinheiro para a maioria dos parceiros. O Promotor Paravant tanto como a Srª. Stöhr empalideciam e coravam alternadamente. Esta sobretudo remexia-se na cadeira, presa de terríveis lutas interiores, quando, tendo dezoito pontos, se lhe deparava o problema de comprar ou não comprar. Dava gritos lancinantes, quando o Sr. Albin, com um gesto frio e rotineiro, lhe atirava uma carta muito alta que lhe aniquilava por completo os projetos. Peeperkorn ria-se jovialmente.

– Grite, madame, grite! – dizia. – É um som agudo, cheio de vida, que vem do fundo de... Beba e regale o seu coração, para que novamente... – E enchia-lhe a taça. Encomendou mais três garrafas. Bebeu à saúde de Wehsal e da obtusa Srª. Magnus, porque um e outra lhe pareciam ter suma necessidade de animação. O vinho, que era realmente ótimo, coloriu em pouco tempo os rostos, exceção feita ao Dr. Ting-Fu, que permanecia invariavelmente amarelo, com os olhos rasgados, pretos como azeviche, soltando discretos risinhos cacarejantes, enquanto fazia elevadas apostas com uma sorte escandalosa. Os outros não queriam ficar atrás. O Promotor Paravant, com o olhar turvo, desafiou o destino, arriscando dez francos numa entrada que despertava apenas moderadas esperanças; empalideceu ao ver que havia comprado demais, e todavia ganhou, uma vez que o Sr. Albin, confiando num ás traiçoeiro, fizera dobrar todas as apostas. Eram emoções que não se limitavam à pessoa de quem as causava a si próprio. Toda a roda tomava parte nelas; nem o Sr. Albin, embora rivalizasse, em matéria de fria circunspecção, com os croupiers do Cassino de Monte Carlo, que afirmava ter freqüentado muito, conseguia dominar a sua excitação senão insuficientemente.

Também Hans Castorp jogava alto, bem como a Kleefeld e Mme. Chauchat. Do vinte-e-um passaram, sucessivamente, ao tours, ao chemin de fer, ao campista e à perigosa différence. Revezavam-se arrebatamentos de exultação e de desespero, explosões de cólera e gargalhadas histéricas, tudo isso provocado pelo estímulo que a sorte falaz exercia sobre os nervos; e essas manifestações eram sérias e sinceras – não teriam sido diferentes se se tratasse de vicissitudes da vida real.

Mas não eram somente – e nem sequer em primeiro lugar – o jogo e o vinho os fatores que produziam a tensão psíquica dessa roda, as faces quentes, a dilatação das pupilas nos olhos brilhantes, ou que davam origem àquilo que poderia ser definido como a dedicação esforçada do pequeno grupo, a respiração embargada, a concentração quase dolorida no que trazia o momento. Em realidade, isso se devia à influência de uma individualidade soberana que se encontrava entre os presentes, à “personalidade” que os dominava, a Mynheer Peeperkorn, que mantinha as rédeas na sua mão gesticulante e fazia sentir a todos o feitiço dessa hora, pelo espetáculo da sua grandiosa fisionomia, pelo olhar apagado sob o drapejamento monumental da fronte, pela sua fala e pela mímica impressionante. Que dizia ele? Coisas pouquíssimo claras, e que se tornavam tanto menos distintas quanto mais bebia. Mas o grupo estava suspenso de seus lábios, fitava, sorrindo, o círculo que seu indicador formava com o polegar, é a cujo lado se eriçavam, pontudos como lanças, os outros dedos, enquanto o rosto majestoso efetuava uma ação altamente expressiva. Sem resistência, todos se submetiam a uma servidão sentimental que deixava longe os limites de paixão abnegada que essa gente se impunha em tempos normais, e ultrapassava as forças de alguns. A Srª. Magnus, ao menos, começou a sentir-se mal. Esteve a ponto de desmaiar, mas recusou obstinadamente subir ao quarto e contentou-se com a chaise longue, onde lhe puseram um guardanapo molhado sobre a testa. Mas, depois de ter descansado um pouco, voltou a fazer parte da roda.

Peeperkorn teve a idéia de atribuir o seu desfalecimento a uma alimentação insuficiente. Com o indicador erguido proferia palavras significativamente abruptas nesse sentido. Era preciso comer, comer copiosamente – assim deu a entender – para ser capaz de satisfazer as exigências da vida. E logo encomendou mantimentos para a roda, uma refeição composta de carne, fiambre, língua, peito de ganso, assados, salames e presunto. Chegaram travessas cheias de suculentos quitutes, guarnecidos de bolinhas de manteiga, de rabanetes e de salsa, a ponto de se assemelhar a exuberantes canteiros de flores. Apesar de que se fizesse muita honra aos pratos, não obstante o jantar precedente cuja abundância é escusado mencionar, Mynheer Peeperkorn declarou, depois de ter provado alguns bocados, que essas coisas não passavam de “frioleiras”, e isso com uma cólera que documentava o caráter pavorosamente imprevisível da sua natureza de soberano. Chegou até a enfurecer-se quando alguém se atreveu a defender a refeição. A cabeça imponente quase explodia de raiva, enquanto Peeperkorn, com o punho cerrado, dava um murro na mesa. Gritou que tudo isso era uma “grande droga”, com o resultado de os comensais emudecerem constrangidos, uma vez que ele, como anfitrião, devia ter o direito de julgar aquilo que oferecia e pagava.

Mas essa ira, por inexplicável que possa parecer, condizia perfeitamente com a fisionomia do holandês, como Hans Castorp, mais do que ninguém, teve de reconhecer. Não o desfigurava nem diminuía de modo algum. Na sua incompreensibilidade, que pessoa alguma ousava nem intimamente relacionar com as quantidades de vinho que ele acabara de ingerir, não deixava de revelar grandeza e majestade, de maneira que todos se inclinaram diante dele e evitaram servir-se mais uma vez dos frios. Foi Mme. Chauchat quem tranqüilizou o companheiro de viagem. Acariciou-lhe a larga mão de capitão, que depois do murro repousava na mesa, e sugeriu em voz meiga que talvez se pedisse outra coisa, um prato quente, se assim lhe agradasse, e se fosse possível obtê-lo do chefe de cozinha a essa hora.– Minha filha – disse Peeperkorn – muito bem. – E sem nenhum esforço, cheio de dignidade, passou da fúria desenfreada para um estado de moderação. Beijou a mão de Clávdia. Encomendou omeletes para si próprio e para os seus convidados, uma boa omelette aux fines herbes, para que se pudessem satisfazer as exigências da vida. E junto com o pedido mandou à cozinha uma nota de cem francos, a fim de determinar o pessoal a fazer serão.

Seu bom humor ressuscitou inteiramente, quando apareceram diversas travessas com a fumegante iguaria, amarela qual um canário e salpicada de verde, impregnando o recinto com o cheiro suave e morno de ovos e manteiga. Os comensais serviram-se, ao mesmo tempo que Peeperkorn, e sob a sua vigilância jovial. Em frases confusas e com gestos irresistíveis obrigou todos a saborear com atenção e até com fervor essa dádiva de Deus. Fê-la acompanhar de genebra holandesa, uma rodada de cálices cheios, e insistiu em que ninguém deixasse de sorver com intensa devoção o líquido claro, do qual se desprendia um olor sadio de trigo com um leve toque de zimbro.

Hans Castorp fumava. Também Mme. Chauchat servia-se de cigarros de ponta de papelão, guardados numa caixa russa, de verniz, ornada de uma tróica em plena corrida, e que para a sua maior comodidade pusera na mesa diante de si. Peeperkorn, embora não censurasse os seus vizinhos por se entregarem a esse prazer, não fumava nunca. Pelo que se podia deduzir das suas explanações, o consumo do tabaco já fazia parte de gozos por demais refinados, cujo cultivo representava um agravo à majestade das dádivas simples da vida, dessas dádivas e funções que a nossa sensibilidade mal e mal conseguia apreciar devidamente.

– Meu caro jovem! – disse a Hans Castorp, fascinando-o com o olhar apagado e o gesto imperioso. – Meu caro jovem, o que é simples, o que é sagrado... Bem, o senhor me compreende. Uma garrafa de vinho, um prato fumegante de ovos, um cálice de trigo puro... Dediquemo-nos a isso em primeiro lugar e desfrutemo-lo, esgotemos o que nos oferece e façamos-lhe a honra a que tem direito, antes de... Absolutamente, meu prezado senhor! Basta! Encontrei pessoas, homens e mulheres, cocainômanos, fumadores de haxixe, morfinômanos... Bem, meu amigo. Pois não! Se assim quiserem... Não devemos julgar. Mas àquelas coisas que merecem a primazia, as coisas singelas, grandes, que têm sua origem em Deus, essa gente lhes ficava... Chega, meu amigo. Condenados! Reprovados! Ficava devendo tudo! Meu caro jovem, não importa como se chama... Sim, eu já sabia o seu nome, mas esqueci-me dele... A perversidade não consiste nem na Cocaína nem no ópio, nem no vício em si. O pecado imperdoável reside...

Estacou. Alto e espadaúdo, voltando-se para o vizinho, persistiu num silêncio poderoso e expressivo, que reclamava compreensão. Tinha o indicador levantado; a boca entreabria-se, irregular e gretada, sob o lábio superior desnudo, rubro e um tanto arranhado pela navalha; o drapejamento linear da vasta fronte emoldurada de labaredas brancas estava franzido com esforço; os olhinhos sem cor definível achavam-se dilatados, e Hans Castorp divisou neles um quê de horror que Peeperkorn experimentava em face do crime, do grave pecado, do irremissível fiasco a que acabava de aludir, e cuja extensão monstruosa todos deviam perceber, obedecendo à ordem silenciosa que lhes dava com toda a força fascinante da sua personalidade soberana, ainda que indistinta... “É um horror objetivo”, pensou Hans Castorp, “porém mesclado de um elemento particular, de um pavor que se apossou desse homem dominador.” Tratava-se mesmo de medo, não de um medo insignificante e pequeno, senão de um pavor pânico que ali parecia bruxulear por alguns instantes. Hans Castorp era, por índole, demasiado reverencioso – não obstante todos os motivos que poderiam originar uma atitude hostil da sua parte contra o majestoso companheiro de viagem de Mme. Chauchat – para que essa observação deixasse de comovê-lo.

Baixou os olhos e fez que sim, para dar ao seu augusto vizinho a satisfação de sentir-se compreendido.

– Acho que isso é certo – disse. – Pode ser um pecado, e um sinal de insuficiência, abandonar-se a prazeres refinados, sem fazer justiça às dádivas simples e naturais da vida, que são grandes e sagradas. Tal é a opinião do senhor, Mynheer Peeperkorn, se o compreendi bem. Embora essa idéia nunca me tenha ocorrido, aprovo-a sinceramente, desde o momento em que o senhor chamou a minha atenção sobre ela. Pode ser que sejam muito raras as ocasiões em que essas dádivas saudáveis e singelas da vida recebam a plenitude das honras que lhes são devidas. Certamente a maioria das pessoas é por demais negligente, distraída, irresponsável e gasta para lhes prestar essas honras, penso eu...

O potentado pareceu muito contente. – Meu caro jovem! – exclamou. – Ótimo. Queira permitir... Não falemos mais nisso. Peço-lhe que beba comigo, que esvazie a sua taça na minha companhia, com os braços enlaçados. Isso não quer dizer que já lhe ofereço o “tu” fraternal... Estive a ponto de fazê-lo; verifiquei, porém, que esse ato seria um pouco precipitado. Vou provavelmente, dentro de um tempo não muito longo... Conte com isso. Mas se o senhor o desejar e insistir em que nós dois imediatamente...

Hans Castorp concordou com o adiamento sugerido por Peeperkorn.

– Muito bem, meu filho. Muito bem, camarada. Insuficiência? Ótimo! Ótimo e também horrível. Irresponsável? Excelente! Dádivas? Não estou de acordo. Exigências! Exigências sagradas, femininas, que a vida faz à honra e ao vigor masculino.

Hans Castorp não pôde esquivar-se à súbita percepção de que Peeperkorn estava totalmente embriagado. Mas também o seu inebriamento não era nem vil nem vergonhoso, não se manifestava como um estado de humilhação, senão que se associava à majestade da sua natureza, formando um fenômeno grandioso que impunha respeito. “O próprio Baco”, pensou Hans Castorp, “apoiava-se nos seus companheiros, quando estava bêbado, sem detrimento da sua divindade. É sumamente importante saber quem está embriagado, se é uma personalidade ou um pobre-diabo.” E o jovem evitou, no seu íntimo, diminuir o respeito que lhe inspirava a esmagadora figura do companheiro de viagem, cujos gestos esmerados se haviam tornado vagos e cuja língua balbuciava.

– Irmão! – disse Peeperkorn, presa de uma embriaguez livre e altiva. Atirou para trás o corpo potente, e estendendo o braço por sobre a mesa, golpeou-a com o punho frouxamente cerrado. – Está projetado... Projetado para breve, embora a ponderação, por enquanto... Bem, basta! A vida, meu caro jovem, é uma mulher, uma mulher estatelada, com os seios exuberantes e apertados, com o ventre amplo e macio entre os quadris salientes, com braços delgados, coxas opulentas e olhos semicerrados, uma mulher que nos desafia magnífica e zombeteiramente e reivindica todas as energias da nossa virilidade, que se deve confirmar ou perecer perante ela... Perecer, jovem! O senhor percebe o que isso significaria? A derrota do sentimento em face da vida, eis o que é a insuficiência para a qual não há nem perdão, nem compaixão, nem dignidade, mas que é inexorável e sardonicamente reprovada, liquidada – compreende, jovem? – e vomitada... Ignomínia e desonra são palavras brandas em comparação com essa ruína e bancarrota, com essa pavorosa vergonha. Ela é o ponto final, o desespero do inferno, o fim do mundo...

Enquanto falava, o holandês lançara mais e mais para trás o poderoso corpo. Ao mesmo tempo, a majestosa cabeça inclinava-se para o peito, como se ele estivesse a ponto de adormecer. Ao pronunciar a última palavra, porém, deixou o punho frouxo recair sobre a mesa num murro vigoroso, de maneira que o frágil Hans Castorp, nervoso devido ao jogo, ao vinho e à peculiaridade das demais circunstâncias, sobressaltou-se e fixou no potentado um olhar respeitoso e espantado, “Fim do mundo”, como essas palavras se harmonizavam com o rosto de Peeperkorn! Hans Castorp não se recordava de as ter ouvido, fora, talvez, das aulas da religião, e isso não era por acaso, segundo pensava, pois, a quem dentre todas as pessoas que conhecia cabia pronunciar tal palavra fulminante? Quem, para formular a pergunta com mais acerto, tinha a necessária envergadura? Seria possível que o pequeno Naphta se servisse dela de vez em quando; mas isso não passaria de uma usurpação e de uma bravata agressiva, ao passo que na boca de Peeperkorn a locução atroadora adquiria a plenitude do seu poder esmagador, vibrava com o clangor de trombetas e alcançava a grandiosidade bíblica. “Cruzes, uma personalidade!”, sentiu o jovem pela centésima vez. “Travei conhecimento com uma personalidade e ela é o companheiro de viagem de Clávdia.” Meio tonto, também ele próprio, fazia girar a taça em cima da mesa. Tinha a outra mão no bolso da calça e fechava um olho para que não entrasse a fumaça do cigarro que lhe pendia no canto da boca. Não seria melhor permanecer calado, depois dessas palavras terem sido proferidas por uma pessoa que tinha vocação para atroá-las? Para que fazer ouvir a sua voz débil? Mas ele estava acostumado a discussões por seus dois educadores democratas – ambos democratas por natureza, se bem que um não gostasse de sê-lo. Assim, se deixou arrastar e acrescentar um daqueles seus comentários ingênuos, e disse:

– Suas observações, Mynheer Peeperkorn – (Que expressão era essa? Porventura se faziam “observações” sobre o fim do mundo?) –, suas observações reconduziram os meus pensamentos até isso que o senhor acaba de dizer a respeito do vício, isto é, que constitui um insulto às dádivas simples e, segundo disse o senhor, sagradas, ou como eu prefiro dizer, às dádivas clássicas da vida, as dádivas de vulto, em certo sentido, antepor-lhes as dádivas posteriores, requintadas, os refinamentos aos quais as pessoas “se abandonam”, para repetir uma expressão usada por um de nós dois, ao passo que “se consagram” ou “fazem honra” àquelas grandes dádivas. Mas nesse ponto, precisamente, me parece residir a desculpa – o senhor me perdoe, mas a minha natureza é propensa a desculpas, se bem que elas careçam de envergadura, como sinto nitidamente –, a desculpa do vício, porque este, conforme verificamos, se baseia na insuficiência. O senhor pronunciou sobre os horrores da insuficiência palavras de tamanho peso que me deixou sinceramente emocionado. No entanto, acho eu que a pessoa viciada absolutamente não se mostra insensível a esses horrores, mas sim os reconhece plenamente, uma vez que o fracasso do seu sentimento em face das dádivas clássicas da vida a impele em direção ao vício. De modo que nisso não há, ou não precisa haver, nenhuma ofensa à vida, desde que essa atitude pode, com a mesma razão, ser considerada como uma homenagem à vida, tendo-se em conta que os refinamentos são meios de embriagar-se e de exaltar-se, stimulantia, como se costuma dizer, usados para o apoio e a elevação da sensibilidade, de maneira que, apesar de tudo, a vida é a sua finalidade e o seu objetivo, o amor ao sentimento, o desejo de sentimento que experimenta a insuficiência... Parece-me...

Que é que estava dizendo? Não bastava aquela insolência democrática de empregar as palavras “um de nós dois” ao referir-se de um lado a uma personalidade e do outro a si próprio? Vinha-lhe a coragem necessária para tal ousadia de um passado que punha em dúvida certos direitos de posse? Que lhe dera na veneta quando se metia nessa análise igualmente petulante do “vício”? A única coisa que agora lhe restava fazer era sair do apuro, pois tornou-se evidente que acabava de desencadear uma tempestade terrível.

Enquanto o seu convidado falava, Mynheer Peeperkorn tinha permanecido na sua posição anterior, com o corpo atirado para trás e a cabeça curvada sobre o peito, de modo que não se podia saber se as palavras de Hans Castorp lhe penetravam na consciência. A essa altura, porém, pouco a pouco, quanto mais se confundia o jovem, mais se empertigava o holandês, afastando-se do espaldar e aparecendo em toda a sua grandeza; ao mesmo tempo, a majestosa cabeça tornava-se rubra e congestionada; subiam, entesando-se, os arabescos da fronte; os olhinhos dilatavam-se numa ameaça indistinta. Que estava se preparando? Um acesso de raiva parecia a ponto de se desencadear, comparado com o qual o anterior não passava de um ligeiro agastamento. O lábio inferior de Mynheer comprimia-se contra o superior numa expressão de ira violenta, fazendo descer os cantos da boca e avançar o queixo. Lentamente, o braço direito ia se distanciando da mesa; levantou-se até a altura da cabeça, com o punho cerrado, tomando um magnífico impulso para o golpe que aniquilaria o palrador democrático. Tomado de susto, mas também cheio de um fantástico prazer devido a essa imagem expressiva da indignação de um rei, este apenas era capaz de ocultar o medo e a vontade de fugir que sentia.

– Sem dúvida me expressei mal – apressou-se a dizer conciliadoramente. – Tudo isso depende da envergadura e de nada mais. Não se pode qualificar de vício o que tem grandeza. O vício não a tem nunca, nem tampouco os prazeres refinados. Mas em todos os tempos, o homem ávido de sentimentos tem disposto de um recurso, de um meio de se exaltar e embriagar, que faz parte das dádivas clássicas da vida, e cujo caráter é simples, sagrado, e por conseguinte oposto ao vício. É um recurso de grande envergadura, por assim dizer. Falo do vinho, um presente divino feito aos homens, segundo já afirmavam os povos humanísticos da Antigüidade, a invenção filantrópica de um deus, relacionada com a própria civilização. Não se diz que graças à arte de plantar a vinha e de se espremer a uva os homens abandonaram o estado de selvageria e se civilizaram? Ainda hoje, os povos em cujos países há parreiras são considerados mais civilizados, ou pelo menos julga-se assim, do que aqueles que não têm vinho, os cimérios; e isso me parece realmente notável, porque significa que a civilização, em vez de ser um assunto do intelecto e da sobriedade ponderada, depende do entusiasmo, da ebriedade e da sensação de deleite. Não é essa também a sua opinião, se posso tomar a liberdade de lhe fazer a pergunta?

Um sabido, esse Hans Castorp! Ou, como o Sr. Settembrini o formulara com certo requinte literário, um “maganão”. Imprudente e até atrevido no contato com “personalidades”, e ao mesmo tempo hábil, quando se tratava de se livrar da “encrenca”. Agora, numa situação complicadíssima, acabava de improvisar, com muita graça, um discurso em homenagem ao alcoolismo; além disso mencionara, de passagem, a “civilização”, da qual, na verdade, pouco se notava na primitividade formidável da atitude de Mynheer Peeperkorn; e finalmente conseguira abrandar e tornar inoportuna essa atitude aterradora, ao fazer uma pergunta à qual era impossível responder com o punho erguido. E de fato, o holandês suavizou o seu gesto de rancor antediluviano. Descendo lentamente, o braço se aproximava da mesa; a cabeça se descongestionava. “Tiveste sorte”, lia-se na sua fisionomia, que mostrava apenas restos da ameaça anterior. Dissipara-se a tempestade, e para liquidar o caso, interveio Mme. Chauchat, chamando a atenção do seu companheiro de viagem sobre o declínio da animação que se verificava entre os comensais.

– Meu amigo, você se esquece dos seus convidados – disse em francês. – Está se dedicando com demasiada exclusividade a esse senhor, por mais importantes que sejam os assuntos a tratar. Mas nesse meio tempo o jogo parou quase completamente, e receio que os outros se aborreçam. Quer que encerremos a sessão?

Imediatamente Peeperkorn voltou-se para a roda dos convidados. Com efeito, a desmoralização, a letargia, o marasmo, haviam-se alastrado entre eles, que se encontravam entregues às mais diferentes ocupações, como uma classe de colegiais quando falta a autoridade do professor. Alguns estavam a ponto de adormecer. Peeperkorn não tardou a retomar as rédeas que lhe tinham escapado da mão. – Senhoras e senhores! – gritou com o indicador levantado, e esse dedo pontudo qual uma lança parecia uma espada que desse um sinal, ou uma bandeira. Seu apelo, por sua vez, recordava o “Siga-me quem não for covarde!” de um caudilho que fizesse parar um princípio de debandada. A intervenção da sua personalidade teve o efeito imediato de unir e de reanimar o grupo. Os comensais reagiram. Compuseram as fisionomias que antes estavam frouxas. Entre sorrisos e acenos, fitaram os olhos do anfitrião, esses olhos apagados sob as rugas lineares da fronte, que davam a seu rosto a aparência de um ídolo. E o holandês fascinou-os a todos, obrigando-os a se dedicar novamente ao serviço, apenas abaixando a ponta do indicador em direção ao polegar e elevando os demais dedos com as unhas compridas. Com um gesto que ao mesmo tempo protegia e moderava, espalmou as mãos de capitão, enquanto dos lábios doloridos e gretados se desprendiam palavras cuja indistinção e falta de nexo exerciam, graças ao apoio da sua personalidade, uma poderosa influência sobre os espíritos.

– Senhoras e senhores! Muito bem. A carne, senhoras e senhores, é infelizmente... Basta! Não, permitam-me que... “Fraca”, reza a Escritura. “Fraca”, isto é, propensa a esquivar-se às exigências que... Mas eu apelo à sua... Numa palavra, senhoras e senhores, eu a-pe-lo. Talvez me digam que o sono... Muito bem, senhoras e senhores, ótimo, excelente. Eu amo o sono e honro-o. O sono faz parte das... Como o formulou o senhor, meu caro jovem?... das dádivas clássicas da vida, e entre elas ocupa o primeiro, o primeiríssimo... Perdão, senhoras e senhores... O supremo. Queiram, porém, observar e lembrar-se... Getsêmani! “E, tendo tomado consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu... Disse-lhes então: Ficai aqui e velai comigo”. Os senhores se lembram? “Depois foi ter com seus discípulos, e encontrou-os dormindo, e disse a Pedro: Visto isso, não pudestes velar uma hora comigo?” E intenso, senhoras e senhores! Pungente, emocionante! “E foi novamente, e encontrou-os dormindo; porque seus olhos estavam pesados por causa do sono... E disse-lhes: Dormi agora e descansai; eis que está próxima a hora...” Senhoras e senhores, é lancinante, dilacera o coração...

De fato, todos estavam comovidos e envergonhados até o fundo da alma. O holandês tinha as mãos juntas sobre o peito, por cima do cavanhaque ralo, e inclinava obliquamente a cabeça. Seu olhar apagado turvara-se em face da tristeza solitária e mortal que lhe brotara dos lábios gretados. A Srª. Stöhr soluçava. A Srª. Magnus soltou um profundo suspiro. O Promotor Paravant, na qualidade de representante dos convidados, como uma espécie de delegado, viu-se induzido a dirigir, em voz abafada, algumas palavras ao venerado anfitrião, para garantir-lhe a lealdade de todos os seus vassalos. Devia haver um equívoco. Ninguém estava cansado; todos se sentiam alegres, dispostos, animados, cheios de bom humor e plenamente atentos. Era uma noite tão linda, tão festiva, uma noite simplesmente extraordinária; todos compreendiam isso e tinham a mesma sensação. Ninguém pensava por enquanto em lançar mão daquela dádiva da vida que era o sono. Mynheer Peeperkorn podia contar com os seus convidados em conjunto e com cada um em particular.

– Perfeitamente! Magnífico! – exclamou Peeperkorn, empertigando-se. Suas mãos se desligaram, separaram-se e subiram. Ficou com os braços abertos, dirigidos para cima, e com as palmas viradas para fora como numa oração pagã. Sua fisionomia grandiosa, que havia poucos instantes ainda vibrara de mágoa gótica, abriu-se, exuberante e jovial. Até mesmo uma covinha de sibarita assomou-lhe subitamente na face. “Eis que está próxima a hora...” E pediu o cardápio. Colocou no nariz um pincenê com aros de chifre, e cuja ponte se erguia na altura da testa. Encomendou champanha, três garrafas de Mumm & Cia., Cordon rouge, très sec, acompanhadas de petits fours, pequenas guloseimas, deliciosas e coniformes, com uma saborosa massa cor de barro, revestida de um glacê de açúcar, recheadas de cremes de chocolate e de pistache, e oferecidas sobre papeizinhos com beiras rendadas. A Srª. Stöhr lambia os dedos ao prová-las. O Sr. Albin, com uma calma displicente, libertou a primeira rolha da sua gaiola de arame e deixou o cogumelo de cortiça desprender-se do gargalo adornado, com o estalo de uma pistola de criança, e saltar até o teto. Em seguida, conforme a tradição elegante, embrulhou a garrafa num guardanapo, antes de despejar o vinho. A nobre espuma molhou o linho das toalhas que cobriam as mesinhas auxiliares. Fizeram tinir as taças, e esvaziaram-nas de um só trago. O estômago sentia-se eletrizado pelas cócegas do líquido gelado e aromático. Os olhos começaram a brilhar. O jogo ficara interrompido, sem que se dessem o trabalho de recolher as cartas e o dinheiro espalhado na mesa. A roda abandonou-se a um deleitoso far niente, mesclado com uma conversação sem nexo, cujos elementos cada um extraía da sua sensibilidade aguçada; elementos sumamente promissores na sua fase primitiva, mas que no caminho à expressão se haviam transformado numa algaravia fragmentária, entaramelada, entre indiscreta e incompreensível, capaz de envergonhar ou enfurecer qualquer pessoa sóbria que a ouvisse. A essa altura, porém, os comensais suportavam-na sem nenhuma objeção, visto se acharem todos no mesmo estado. Até a Srª. Magnus tinha as orelhas rubras e alegava sentir como a vida pulsava nas suas veias; afirmação de que o marido parecia gostar pouco. Hermine Kleefeld, recostando-se ao ombro do Sr. Albin, estendia-lhe a taça para que a enchesse de vinho. Peeperkorn dirigia a bacanal com esmerados gestos dos dedos de unhas pontudas. Também providenciou o abastecimento e os reforços. Depois do champanha, mandou trazer café, moca fortíssimo, que vinha novamente acompanhado de “pão” e, para as senhoras, de licores doces, mas picantes, como são apricots brandy, chartreuse, creme de vanille e maraschino. Mais tarde apareceram ainda filés de peixe avinagrado e cerveja, e finalmente chá, de duas espécies, chá chinês e chá de macela, para quem não preferisse conservar-se fiel ao champanha ou aos licores, ou ainda voltar a beber um vinho genuíno. Assim fazia Mynheer, cujo processo de purificação íntima progredira, depois da meia-noite, em direção a um tinto suíço de um bouquet ingênuo, que tomava em companhia de Mme. Chauchat e de Hans Castorp, e do qual emborcava taça após taça, como para saciar uma sede real.

À uma hora, a sessão festiva ainda se arrastava, prolongada ora pela paralisia plúmbea da embriaguez, ora pelo prazer singular de desperdiçar a noite, ora enfim pela influência da personalidade de Peeperkorn e pelo exemplo infausto de São Pedro e dos seus, cuja fraqueza ninguém queria imitar. De modo geral, o belo sexo parecia menos exposto a tal perigo; pois, ao passo que os homens, corados ou pálidos, bufando, com as pernas esticadas, bebiam apenas mecânica e esporadicamente, sem revelar o verdadeiro entusiasmo no cumprimento do dever, as mulheres mostravam-se mais ativas. Hermine Kleefeld, com os cotovelos desnudos apoiados na mesa e com o rosto fincado entre as mãos, exibiu rindo a brancura dos seus dentes ao cacarejante Ting-Fu, enquanto a Srª. Stöhr, achegando o queixo ao ombro avançado, lançava ao Promotor Paravant olhares faceiros que lhe deviam fomentar a vontade de viver. A Srª. Magnus chegara ao ponto de instalar-se sobre os joelhos do Sr. Albin e de puxá-lo pelas orelhas, o que o Sr. Magnus observava com manifesto alívio. Anton Karlovitch Ferge foi solicitado a contar a história do choque pleural, mas a língua embargada impediu-o de realizar o intento; assim ele confessou francamente o seu fracasso, que os outros unanimemente consideraram motivo para beber mais. Durante alguns instantes, Wehsal verteu lágrimas amargas, que brotavam de certos abismos da miséria, cuja profundeza a sua língua já não estava em condições de desvendar à humanidade; mas, por meio de café e de conhaque, conseguiram endireitá-lo espiritualmente. Os gemidos que se arrancavam de seu peito e o queixo rugoso, trêmulo, inundado de lágrimas despertaram, por outro lado, o mais vivo interesse de Peeperkorn, que, erguendo o polegar e alçando os arabescos da fronte, chamou a atenção de todos sobre o estado de Wehsal.

– Isto é... – disse. – Realmente, isto é... Não, permita-me: sagrado! Seque-lhe o queixo, minha filha! Tome o meu guardanapo! Não! Melhor deixá-lo em paz! Ele mesmo não quer. Senhoras e senhores! Sagrado! Sagrado sob todos os aspectos, no sentido cristão como no pagão! Um fenômeno primevo! Um fenômeno de primeira... de suprema... Não, não, isto é mesmo...

Essas palavras “Isto é...” e “Isto é mesmo...” formavam o Leitmotiv das explicações e dos comentários que acompanhavam os seus gestos precisos, ainda que estes, com o tempo, tivessem assumido caráter levemente grotesco. Tinha ele um jeito de manter à altura da orelha o anel que o polegar formava com o indicador, e de afastar dele a cabeça inclinada, com uma expressão humorística que despertava sensações iguais àquelas que originaria um sacerdote idoso de um culto estranho, que dançasse diante do altar de sacrifícios, arregaçando a vestimenta com uma graça refinada. Em outra ocasião, refestelando-se em toda a sua grandeza, com os braços a cingir os espaldares das cadeiras vizinhas, obrigou os comensais, para grande perplexidade de todos, a evocar, junto com ele, a visão viva e intensa da manhã, uma gélida e sombria manhã de inverno, com a luz amarela da lâmpada de cabeceira espelhando-se na vidraça, sobre um fundo de ramaria calva, que lá fora se ouriçava na madrugada brumosa, glacial, áspera como o grito das gralhas... Pela descrição sugestiva, soube dar tanta força a esse quadro singelo e cotidiano, que os convidados ficaram todos arrepiados, principalmente quando lhes recordou a água gelada espremida de uma grande esponja sobre a nuca, e que qualificou de sagrada. Tudo isso era apenas uma digressão, um exemplo destinado a ensinar-lhes a atenção em face das coisas da vida, um improviso fantástico, que ele logo abandonou, para novamente devotar a sua fervorosa ênfase e a presença dos seus sentimentos a essa hora noturna, festivamente desenfreada. Mostrou-se apaixonado por tudo quanto era mulher que se achava a seu alcance, sem preferências nem discriminação. Fez à anã declarações tais que o rosto envelhecido, excessivamente grande, da desgraçada criatura se enrugou todo num vasto sorriso. Disse à Srª. Stöhr galanteios de tal calibre que essa mulher, já naturalmente vulgar, avançando ainda mais o ombro, levou a sua costumeira afetação às raias da perfeita loucura. Pediu à Kleefeld lhe desse um beijo na boca ampla e gretada, e perseguiu até a insípida Srª. Magnus – tudo isso sem detrimento da terna dedicação que demonstrava à sua companheira de viagem, cuja mão freqüentemente levava aos lábios, com um ardor cavalheiresco. – O vinho... – disse. – As mulheres... Isto é... Isto é mesmo... Permitam-me... Fim do mundo... Getsêmani...

Por volta das duas horas espalhou-se o boato de que o “Velho”, quer dizer, o Dr. Behrens, se aproximava a passo acelerado das salas de reunião. No mesmo instante produziu-se grande pânico entre os pensionistas enervados. Cadeiras e baldes de gelo foram derrubados. Os convidados fugiram pela porta da biblioteca. Peeperkorn, tomado de raiva majestosa, ao ver o brusco encerramento da festa, deu com o punho na mesa e gritou: “Escravos medrosos!” por trás do pessoal que se sumia. Mas Hans Castorp e Mme. Chauchat conseguiram que ele se conformasse, até certo ponto, com a idéia de que esse festim, depois de quase seis horas de duração, tinha de terminar, afinal. Também aquiesceu quando lhe relembraram o sagrado regalo do sono, e permitiu que o levassem para a cama.

– Ampare-me, minha filha! Ampare-me do outro lado, jovem – disse a Mme. Chauchat e a Hans Castorp. E eles ajudaram-no a levantar da cadeira o corpo pesado. Ofereceram-lhe o braço, e escorado por ambos começou a trilhar o caminho que o levaria ao repouso. Caminhava com as pernas abertas, inclinando a enorme cabeça para um dos ombros levantados, e empurrava ora um ora outro dos seus guias devido a seu andar cambaleante. Na realidade era um luxo real que se permitia ao exigir que o pilotassem e apoiassem dessa forma. Se o achasse necessário, provavelmente teria sido capaz de caminhar sozinho. Mas Peeperkorn desdenhou tal esforço, que, em todo caso, só poderia ter o sentido mesquinho e inferior de dissimular pudicamente a sua ebriedade, ao passo que ele, evidentemente, não tinha a mínima vergonha dela, exibindo-a de modo magnífico e exuberante. Dava-lhe um prazer régio, quando aqueles cambaleios dirigiam os seus servidores ora para a direita ora para a esquerda. Ele mesmo disse, enquanto avançavam assim:

– Meus filhos... Bobagem... Não estamos nem um pouquinho... Se nesse momento... Vocês veriam... Ridículo...

– Ridículo! – confirmou Hans Castorp. – Não existe a menor dúvida! Tributa-se à dádiva clássica da vida o que se lhe deve, quando se cambaleia dessa forma sem dissimulação, em sua homenagem. Seriamente... Eu também bebi bastante, mas apesar da minha pretensa embriaguez sinto com absoluta clareza a honra especial que me coube por poder conduzir à cama uma autêntica personalidade. Tão fraco é o efeito que a embriaguez exerce sobre mim, cuja envergadura nem sequer pode ser comparada com...

– Ora, ora, pequeno tagarela – disse Peeperkorn, enquanto, a passo vacilante, o comprimia contra o corrimão da escada, arrastando consigo Mme. Chauchat.

O rumor de que o conselheiro se aproximava não passava, como se manifestou, de um rebate falso. Talvez tivesse sido posto em circulação pela anã fatigada, na intenção de dar cabo da reunião. Nessas circunstâncias, Peeperkorn estacou e fez menção de voltar para continuar com a bebedeira. Mas de ambos os lados recebeu sugestões em contrário, e assim consentiu em que o pusessem novamente em movimento.

O criado malaio, aquele homenzinho com gravata branca e sapatos de seda preta, esperava o patrão no corredor, diante da porta do apartamento. Acolheu-o com uma mesura, levando uma das mãos ao peito.

– Beijem-se! – ordenou Peeperkorn. – Meu caro jovem, dê um beijo de despedida na fronte dessa encantadora mulher! – acrescentou, dirigindo-se a Hans Castorp. – Ela não fará objeções e lhe retribuirá. Façam isso à minha saúde e com a minha licença! – terminou; mas Hans Castorp se negou a executar a ordem.

– Não, Majestade – disse. – Desculpe, mas não é possível.

Peeperkorn, encostado ao malaio, alçou os arabescos da fronte e quis saber por que isso não era possível.

– Porque não posso trocar com a sua companheira de viagem beijos na fronte – explicou Hans Castorp. – Desejo-lhe uma boa noite. Não, isso seria sob todos os aspectos uma grande tolice.

E como também Mme. Chauchat se encaminhasse à porta do seu quarto, Peeperkorn consentiu em que se afastasse o jovem obstinado. Verdade é que o acompanhou ainda algum tempo com os olhos, tendo a testa franzida. Tamanha surpresa lhe causava essa insubordinação que sua natureza de soberano não estava acostumada a encontrar.

 

         Mynheer Peeperkorn

         (Continuação)

Mynheer Peeperkorn residiu no Sanatório Berghof durante todo esse inverno – quer dizer, durante os meses que ainda restavam dele – e ainda uma parte da primavera, de modo que antes do fim se pôde realizar uma notável excursão coletiva – também Naphta e Settembrini tomaram parte nela – ao vale de Fluela e à cascata que ali existe... Antes do fim? Quer dizer que não ficou mais tempo? Não, não ficou mais tempo. Partiu, então? Sim e não. Sim e não? Nada de mistérios, por favor! É preciso resignar-se. Também o Tenente Ziemssen faleceu, sem falar de muitas outras pessoas menos honradas que entraram na dança da morte. De maneira que o confuso Peeperkorn morreu daquela febre maligna? Não, assim não se deu. Mas por que tanta impaciência? Deve-se respeitar a condição da vida e da narrativa, segundo a qual as coisas não podem acontecer todas ao mesmo tempo. Cumpre não rebelar-se contra as formas do conhecimento humano que Deus nos conferiu. Prestemos ao tempo pelo menos tanta honra quanta ainda permite a natureza da nossa história! De todo modo não sobra mais muita. A narração precipita-se, aos trambolhões, ou – se essa expressão, porventura, soa por demais barulhenta – vai deslizando com a rapidez do vento. Quem indica o nosso tempo é um ponteirozinho que saltita como se medisse segundos, mas cada vez que passa pelo vértice, friamente e sem se demorar, significa sabe Deus o quê. Já faz anos – isto é indiscutível – que nos achamos aqui em cima. Sentimo-nos tomados de vertigem. Sonhamos um sonho vicioso, sem ópio nem haxixe, e o censor que vela pelos bons costumes não deixará de condenar-nos. E todavia nos empenhamos, propositadamente, em opor à névoa perniciosa a mais intensa clareza de raciocínio e o máximo de agudeza lógica. Não é por acaso – convém reconhecer esse fato – que nos rodeamos de inteligências como as dos senhores Naphta e Settembrini, ao invés de nos cercarmos exclusivamente de esfumados Peeperkorns. Verdade é que isso nos leva a uma comparação que, sob certos pontos de vista, principalmente no que se refere à envergadura, resultaria vantajosa para a personagem posteriormente apresentada. Também Hans Castorp chegava a essa conclusão, quando se achava estendido no seu compartimento de sacada e refletia sobre os dois educadores excessivamente articulados, que lhe disputavam a pobre alma. Verificava então que eles pareciam anões em confronto com Pieter Peeperkorn, a ponto de sentir-se inclinado a qualificá-los de “pequenos tagarelas”, da mesma forma como o holandês, na sua regia ebriedade, fizera humoristicamente com ele mesmo. Julgava feliz e proveitoso o contato com uma autêntica personalidade, que a pedagogia hermética lhe proporcionava, além do mais.

Que essa personalidade fosse o companheiro de viagem de Clávdia e como tal constituísse imenso obstáculo, era problema à parte, que no entanto não perturbava a objetividade de Hans Castorp. A simpatia sinceramente respeitosa, embora às vezes um tanto atrevida, que lhe inspirava esse homem de grande envergadura não era perturbada – repetimo-lo – pela simples circunstância de ele viver em comunhão de bens com uma mulher que emprestara um lápis a Hans Castorp numa noite de carnaval. Nosso jovem não era de índole a deixar-se influenciar por essas coisas. Não duvidamos de que certos leitores ou leitoras se escandalizarão com tamanha “falta de temperamento” e prefeririam que ele odiasse e evitasse Peeperkorn, que o tratasse, no seu íntimo, de velho burro e de beberrão tartamudo, em vez de visitá-lo por ocasião dos seus ataques de febre intermitente, de sentar-se à beira da sua cama, de conversar com ele (esse verbo naturalmente só se refere às contribuições que o colóquio recebia da parte de Hans Castorp, e não às do grandioso Peeperkorn) e de sujeitar-se ao influxo dessa personalidade, com o espírito curioso de quem viaja para se instruir. Mas era precisamente o que ele fazia, e relatamos o fato indiferentes ao perigo de que diante disso alguém se possa recordar de Ferdinand Wehsal, que costumava carregar o sobretudo de Hans Castorp. Essa reminiscência não demonstra coisa alguma. O nosso herói não era nenhum Wehsal. Nada tinha que ver com os abismos da miséria. Apenas não era “herói”, quer dizer, a mulher não lhe determinava as relações para com tudo quanto é homem. Fiéis ao nosso princípio de não o apresentar nem melhor nem pior do que era, constatamos que ele se recusava simplesmente – não de forma intencional e expressa, mas de modo todo ingênuo – a consentir que influências romanescas o impedissem de ser justo no julgamento do seu próprio sexo e o privassem da capacidade de apreciar experiências realizadas nessa esfera, e que pudessem ser proveitosas para a sua formação. Pode ser que essa atitude não agrade às mulheres, e, se não nos enganamos, Mme. Chauchat, sem querer, a achava chocante; certas indiretas que lhe haviam escapado, e que assinalaremos no que se segue, indicam isso. Mas talvez fosse justamente devido a essa qualidade que Hans Castorp era objeto bastante próprio para disputas pedagógicas.

Peeperkorn achava-se freqüentemente acamado. Não causará espécie que estivesse doente também no dia seguinte àquela noite de jogo e de champanha. Quase todos os que haviam participado da sessão prolongada e exaustiva sentiam-se mal, inclusive Hans Castorp, que sofria de forte dor de cabeça. Mas nem por isso deixou de visitar o anfitrião da véspera no seu quarto de enfermo. Fez-se anunciar pelo malaio, que encontrou no corredor do primeiro andar, e foi introduzido.

Entrou no dormitório do holandês, onde havia duas camas. Antes atravessara um salão que o separava do quarto de Mme. Chauchat. Pôde verificar que esses aposentos diferiam das peças normais que o Berghof alugava aos pensionistas, tanto pelas dimensões como pela elegância da mobília. Existiam ali poltronas forradas de seda e mesas de pernas arqueadas. Um tapete fofo cobria o chão, e também as camas não pertenciam ao tipo vulgar de higiênicos leitos de morte. Eram até suntuosas, feitas de cerejeira polida, com guarnições de latão, e tinham um pequeno dossel comum, sem cortinas pendentes; apenas um baldaquinozinho protetor que as unia.

Peeperkorn estava estendido sobre um dos dois leitos. Na colcha de seda vermelha viam-se livros, cartas e jornais. Com o pincenê de aros de chifre colocado muito alto na testa, lia o Telegraaf. Sobre uma cadeira ao lado da cama havia um serviço de café e uma garrafa de vinho tinto meio vazia; era o mesmo da noite anterior, com o bouquet ingênuo. Na mesinha-de-cabeceira achavam-se vidros de remédios. Para discreta surpresa de Hans Castorp, a camisola que o holandês usava não era branca, mas de lã, com mangas compridas, abotoadas nos punhos, e tinha, em vez de gola, um decote redondo; ajustava-se estreitamente aos largos ombros e ao peito imponente do velho. A grandiosidade humana da cabeça que jazia sobre o travesseiro ressaltava em virtude desse traje, que a distanciava da esfera burguesa e imprimia à figura de Peeperkorn um cunho que fazia pensar num homem do povo, num proletário, como nos traços imortalizados de um busto.

– Perfeitamente, meu caro jovem – disse, enquanto pegava no arco do pincenê para tirá-lo. – Faça-me o favor... Absolutamente. Pelo contrário. – E Hans Castorp sentou-se junto dele, escondendo o seu assombro compassivo – a não ser que fosse admiração real aquilo que lhe impunha o seu senso de justiça. Para dissimular esse sentimento, recorreu a lugares-comuns amistosos e animados, que Peeperkorn secundava com frases impressionantemente abruptas e com uma gesticulação enfática. O holandês não tinha bom aspecto. Seu rosto estava amarelo e mostrava traços de sofrimento e fadiga. Pela manhã, tivera violento acesso de febre, e o subseqüente cansaço aliava-se à ressaca provocada pela embriaguez da véspera.

– Ontem fomos um tanto longe – disse. – Não, permita-me... Foi exagerado e prejudicial... O senhor ainda está... Bem, no seu caso não faz mal. Mas na minha idade e para a minha abalada... Minha filha – prosseguiu, dirigindo-se com terna mas decidida severidade a Mme. Chauchat, que acabava de entrar pela porta do salão –, está tudo muito bem, mas eu lhe repito que teria sido melhor vigiar-me e impedir-me de... – Enquanto proferia essas palavras, vibravam-lhe nas feições e na voz os prenúncios de um ataque de raiva soberana. Mas bastava imaginar a tempestade que teria irrompido se alguém houvesse feito uma tentativa de estorvar-lhe seriamente a bebedeira, para avaliar a totalidade da injustiça e da insensatez dessa censura. Essas coisas talvez sejam inerentes à grandeza. Com efeito, a sua companheira de viagem passou por cima do assunto e cumprimentou Hans Castorp, que se levantara. Não lhe deu a mão, mas limitou-se a sorrir e a pedir “que não se incomodasse, por favor” e que “de maneira alguma” interrompesse o seu tête-à-tête com Mynheer Peeperkorn. Logo se entregou a uma série de atividades. Mandou o criado retirar o serviço de café. Desapareceu por alguns instantes e voltou com aquele seu andar felino. Sem sentar-se, procurou tomar parte na conversa, ou – se queremos aderir à opinião vaga de Hans Castorp – empenhou-se em controlá-la um pouquinho. Claro! Tinha plena liberdade de regressar ao Sanatório Berghof em companhia de uma personalidade de grande envergadura; mas, quando o homem que tanto esperara por ela prestava a essa personalidade as devidas honras, de homem para homem, ela se mostrava inquieta e mesmo sarcástica, com todos esses “por favor” e “de maneira alguma”. Hans Castorp sorriu disso, baixando bem a cabeça, a fim de ocultar o sorriso. Ao mesmo tempo sentiu-se abrasado de alegria interior.

Peeperkorn serviu-lhe uma taça de vinho, da garrafa que se encontrava na mesinha-de-cabeceira. Nas atuais circunstâncias – opinava o holandês –, o melhor que se podia fazer era continuar no ponto onde haviam parado à noite anterior, e esse vinho leve tinha o mesmo efeito que água de soda. Bebeu à saúde de Hans Castorp, e este, enquanto bebia, observou como a sardenta mão de capitão, com as unhas pontudas e com o punho abotoado da camisola de lã a estreitar-lhe o pulso, erguia o copo, como os lábios amplos e gretados pousavam-lhe na borda, e como o vinho deslizava pela garganta proletária ou escultural, que alternadamente se levantava e descia. Depois vieram a falar do remédio que se via no criado-mudo, um líquido pardo do qual Peeperkorn engoliu uma colherada, a conselho e com o auxílio de Mme. Chauchat. Tratava-se de um antipirético à base de quinina. Peeperkorn fez com que o visitante o provasse para conhecer o gosto característico, amargo e contudo aromático do preparado. A seguir manifestou seu elogio ao quinina, que não somente era uma bênção por destruir os germes e por exercer um efeito salutar sobre o centro regulador da temperatura, mas também merecia ser apreciado como tônico: reduzia o metabolismo da albumina, favorecia a assimilação dos alimentos; numa palavra, constituía uma poção feita para regalar a gente, um remédio magnífico, que fortalecia, estimulava e reavivava. Também era inebriante, e seria fácil uma pessoa embriagar-se de quinina – acrescentou, pilheriando e esboçando gestos sugestivos com a cabeça e a mão, que novamente o assemelhavam a um sacerdote pagão a dançar.

Que substância maravilhosa, essa casca febrífuga! Não fazia, aliás, nem três séculos que a farmacologia européia sabia da sua existência, e não haviam decorrido cem anos desde que a química descobrira o alcalóide ao qual essa casca devia as suas virtudes, isto é, o próprio quinina. Descobrira-o e analisara-o até certo ponto, mas não podia pretender ter elucidado completamente a sua composição e não conseguira produzi-lo artificialmente. Falando de modo geral, a nossa farmacologia faria bem em não se gabar blasfemamente da sua sabedoria, pois em face de muitas outras matérias acontecia-lhe o mesmo. Tinha ela certos conhecimentos a respeito do dinamismo, dos efeitos das substâncias, mas o problema de encontrar a causa exata desses efeitos freqüentemente lhe criava sérios embaraços. Se o jovem se ocupasse um pouquinho com a toxicologia, verificaria que ninguém era capaz de informá-lo acerca das qualidades elementares que determinavam os efeitos dos chamados venenos. Havia, por exemplo, os venenos das serpentes, dos quais se sabia apenas que essas secreções animais pertenciam ao grupo dos compostos de albumina, constavam de diversos tipos de albuminóides e produziam os seus efeitos fulminantes somente numa combinação determinada, que no entanto permanecia totalmente indeterminada. Quando introduzidas na circulação do sangue, originavam conseqüências pasmosas, uma vez que ninguém estava acostumado a ver a albumina agir como peçonha. Mas, quanto ao mundo das substâncias químicas – dizia Peeperkorn, que se soerguera no travesseiro e elevava o anel da precisão e os dedos lanciformes ao lado da cabeça com os olhos apagados e com os arabescos da fronte –, quanto às substâncias químicas, a verdade era esta: todas elas eram ao mesmo tempo medicamentos e venenos; a farmacologia e a toxicologia eram a mesma coisa; os doentes se curavam por meio de tóxicos, e o que era considerado como portador da vida podia, sob certas circunstâncias, produzir um espasmo que matava no lapso de um segundo.

O holandês falava, com muita insistência e de modo mais coerente do que em geral, sobre remédios e peçonhas. Hans Castorp escutava-o, sacudindo a cabeça obliquamente inclinada. O que lhe interessava era menos o conteúdo das palavras de Peeperkorn, que parecia intimamente preocupado com o seu assunto, do que o estudo silencioso dos fatores que originavam aquela influência da sua personalidade, que no fundo era tão inexplicável quanto os venenos das cobras. O dinamismo – expunha Peeperkorn – era o que importava no mundo das substâncias; todo o resto era condicionado a ele. Também o quinina era um veneno medicativo, de natureza sumamente poderosa. Quatro gramas dele bastavam para causar surdez e vertigens, para cortar a respiração, para turvar a vista à maneira da tropina, e para embriagar o paciente tal e qual o álcool. Os operários que trabalhavam nas fábricas de quinina tinham os olhos inflamados e os lábios inchados, além de sofrer erupções da pele. Pôs-se a tratar da cinchona, da árvore da quina, das florestas virgens das cordilheiras, onde, a três mil metros de altura, estava o seu habitat, e donde a sua casca, sob a denominação de “pó dos jesuítas”, chegara à Espanha numa época muito tardia, ao passo que os indígenas da América do Sul conheciam-lhe havia muito a força. Descreveu as enormes plantações de cinchona que o governo holandês explorava em Java, de onde anualmente eram embarcados para Amsterdam e Londres muitos milhões de quilos dessas cascas tubulares, avermelhadas e parecidas com a canela... De forma generalizada podia-se dizer que as cascas, o tecido que envolvia as árvores, desde a epiderme até o cerne, eram muito interessantes; quase sempre possuíam extraordinárias qualidades dinâmicas, tanto para o bem como para o mal. Os conhecimentos que os povos de cor haviam desenvolvido com respeito às drogas eram muito superiores aos nossos. Em algumas ilhas a leste da Nova Guiné, os jovens preparavam um filtro de amor, pulverizando a casca de determinada árvore provavelmente venenosa, como a antiaris toxicaria de Java, que tal e qual a mancenilheira empestava o ar a seu redor pelas suas exalações e aturdia mortalmente homens e animais. Aqueles jovens pulverizavam, pois, a casca dessa árvore, misturavam o pó com pedacinhos de coco, enrolavam a mistura numa folha e fritavam-na. Enquanto a adorada esquiva dormia, esguichavam-lhe no rosto o caldo assim obtido, e ela acordava apaixonada pelo homem que a borrifara. Às vezes era a casca da raiz que tinha poderes singulares, como, por exemplo, a de um cipó do arquipélago malaio, o strychnos tieuté, ao qual os indígenas adicionavam veneno de cobras, para preparar o upas-radcha, uma droga que, introduzida na circulação do sangue, por meio de uma flechada, tinha por resultado a morte instantânea, sem que ninguém soubesse explicar de que modo isso se dava. Apenas se esclarecera que o upas, no que se refere ao seu dinamismo, era parente da estricnina... E Peeperkorn, que acabava de sentar-se na cama e de vez em quando apanhava a taça de vinho com a mão de capitão ligeiramente trêmula, a fim de levá-la aos lábios gretados e de sorver grandes e ávidos tragos, falou da árvore “dos olhos de gralha”, strychnus nux-vomica, da costa do Coromandel, de cujas bagas alaranjadas, as nozes-vômicas, se extraía o mais poderoso dentre os alcalóides, a estricnina. Abafando a voz a ponto de torná-la um simples murmúrio, e içando as rugas da fronte, descreveu a ramaria cinzenta, a folhagem estranhamente lustrosa e as flores amarelo-esverdeadas dessa árvore, fazendo com que o jovem Hans Castorp tivesse dela uma imagem mesclada de melancolia e de cores histericamente exageradas, que lhe causou leves arrepios.

A essa altura, Mme. Chauchat interveio na conversação, fazendo notar que falar muito não fazia bem a Peeperkorn, que a palestra o cansava e talvez lhe acarretasse um novo acesso de febre. Por maior que fosse o desgosto que sentia ao interromper a entrevista, via-se obrigada a pedir que Hans Castorp a desse por terminada esse dia. Este obedeceu, naturalmente, mas no curso dos meses seguintes eram freqüentes as ocasiões em que se achava sentado à beira da cama do homem majestoso, nos dias seguintes aos acessos de quarta, enquanto Mme. Chauchat, controlando discretamente o colóquio ou também intercalando umas poucas palavras, andava de cá para lá pelo apartamento. Também nos dias em que o holandês estava sem febre, o jovem passava muitas horas com ele e com sua companheira de viagem, adornada de pérolas. Quando o holandês não se encontrava acamado, raras vezes deixava depois do jantar de reunir em torno de si uma pequena seleção dos pensionistas do Berghof, cuja composição mudava de uma vez para outra. Iam então jogar, beber e regalar-se com boas coisas, ora no salão, como da primeira vez, ora no restaurante, e Hans Castorp ocupava o seu lugar habitual entre a mulher displicente e o homem magnífico. Até se uniam para o exercício tradicional ao ar livre; davam passeios dos quais participavam os senhores Ferge e Wehsal, e mais tarde também Settembrini e Naphta, os antagonistas no espírito, que forçosamente encontraram um dia, e que Hans Castorp se sentiu feliz de poder apresentar a Peeperkorn e – até que enfim! – a Clávdia Chauchat. Era-lhe totalmente indiferente que essa apresentação e essas novas relações fossem ou não agradáveis aos dois adversários, pois tinha a secreta convicção de que ambos necessitavam de um objeto pedagógico e prefeririam conformar-se com um séquito indesejável a renunciar às disputas travadas em sua presença.

Com efeito, não se enganou na esperança de que os membros do seu variegado círculo de amigos terminariam por habituar-se ao fato de não se poderem habituar uns aos outros. Era inevitável que entre eles houvesse atritos e divergências sem conta, e até uma tácita hostilidade; e nós mesmos ficamos admirados ao ver como o nosso insignificante herói conseguia agrupá-los à sua volta. Explica-se esse êxito por certa lhaneza hábil, peculiar ao seu caráter, que lhe afigurava tudo quanto se dizia como “digno de nota” e não somente ligava a si pessoas e personalidades das mais diversas, mas também produzia uma certa ligação entre elas.

Como era curioso o enredo dos fios produzidos por essas relações! Sentimo-nos tentados a mostrar por um instante essa trama complexa, assim como o próprio Hans Castorp a contemplava com olhares astutos e benevolentes, durante os referidos passeios. Havia ali o mísero Wehsal, que desejava Mme. Chauchat com ardorosa cobiça e devotava uma veneração humilde a Peeperkorn e a Hans Castorp; ao primeiro por causa do presente dominador, e ao segundo por causa do passado. Havia Clávdia Chauchat, a enferma viajante, com seu andar graciosamente felino, escrava de Peeperkorn, por sua espontânea vontade, e que, apesar de tudo, parecia um tanto desassossegada e agressiva, cada vez que observava as boas relações que existiam entre o seu senhor e o cavalheiro de uma remota noite de carnaval. Não fazia essa irritação pensar naquela outra que se manifestava na sua atitude para com o Sr. Settembrini? Esse eloqüente falador e humanista, com o qual antipatizava, e que tachava de presumido e desumano? O amigo pedagógico do jovem Hans Castorp, que Mme. Chauchat gostaria imensamente de interrogar sobre o significado de certas palavras da sua língua mediterrânea, que ela ignorava tão completamente quanto ele a dela, embora com menos desdém: as palavras que o italiano gritara atrás do atraente moço alemão, quando esse burguesinho bonito, de boa família e com a sua mancha úmida, fazia menção de se aproximar dela? Hans Castorp, que andava, como se costuma dizer, “perdido de amor”, não no sentido pejorativo que às vezes se dá a essa expressão, mas assim como amam os que são acometidos de uma paixão proibida e insensata, que não poderia ser decantada nas inocentes cantigazinhas da planície – Hans Castorp, embora malferido por esse amor, que o tornara dependente, servo, sofredor e submisso, era todavia capaz, em plena escravidão, de guardar uma boa dose de malícia, o suficiente para saber quanto valor a sua dedicação tinha e continuaria tendo para com a lânguida enferma de encantadores olhos tártaros e rasgados. E não obstante toda a sua submissão sofredora, o jovem sabia que era possível demonstrar esse valor a Mme. Chauchat. Bastaria para isso que ela observasse a atitude do Sr. Settembrini com relação à sua pessoa, atitude que logo lhe confirmaria claramente quaisquer suspeitas, por ser tão hostil como o permitia a polidez humanística. Mas o pior – ou, sob o ponto de vista de Hans Castorp, o mais vantajoso – era que ela tampouco se viu compensada pelas suas relações com Naphta, das quais esperara muito mais. Verdade é que ali não encontrava a animosidade que por princípio o Sr. Lodovico opunha à sua maneira de ser, e as condições para uma conversa eram mais favoráveis. Com efeito, de vez em quando, Clávdia e o baixinho sutil mantinham palestras em separado, sobre livros ou sobre problemas da filosofia política, que ambos encaravam da mesma forma radical. Hans Castorp, à sua maneira singela, costumava tomar parte nesses colóquios. No entanto não podia Mme. Chauchat deixar de perceber certa reserva aristocrática nas atenções que lhe prestava aquele adventício, prudente como todos do seu tipo. O terrorismo espanhol de Naphta tinha, na verdade, pouco em comum com sua mentalidade “humana”, propensa a vagar pelo mundo e a bater as portas. A isso acrescia um derradeiro fator de natureza sumamente delicada: uma ligeira malquerença, dificilmente definível, cuja aura Mme. Chauchat, com sua sensibilidade feminina, forçosamente sentia, cada vez que lidava com um dos dois adversários, seja Naphta, seja Settembrini (assim como também a notava o seu galã de carnaval), e cuja origem se encontrava nas relações que ambos mantinham com Hans Castorp. Tratava-se da antipatia do educador contra a mulher como elemento que perturba e distrai, e esse antagonismo tácito e primitivo unia-os, já que a sua discórdia pedagógica era neutralizada por ele.

Não havia traços dessa mesma aversão na conduta que os dois dialéticos adotavam ante Pieter Peeperkorn? Hans Castorp cria observá-la, talvez porque previra maliciosamente que tal aconteceria. Desejara bastante reunir o majestoso tartamudo com os seus dois “ministros”, como às vezes os chamava chistosamente no íntimo. Achara interessante ver o que resultaria desse encontro. Ao ar livre, Mynheer era menos grandioso do que num recinto fechado. O chapéu de feltro macio que ele costumava repuxar sobre os olhos, e que encobria as labaredas brancas dos cabelos e os imponentes arabescos da fronte, reduzia-lhe as feições, fazendo com que se encolhessem em certo sentido, e rebaixava a própria majestade do nariz vermelho. Além disso, Peeperkorn impressionava menos quando caminhava do que quando permanecia imóvel. Dava passos muito curtos, e a cada um deles inclinava obliquamente todo o seu corpo pesado e mesmo a cabeça, lançando a carga inteira sobre o pé que avançava no respectivo momento, o que fazia pensar antes num velho bonachão do que num rei. Em vez de empertigar-se ao andar, como costumava fazer quando se detinha, assumia postura um tanto encurvada. Mesmo assim, ultrapassava por mais de um palmo o Sr. Lodovico, sem falar do pequeno Naphta, e esse não era o único motivo por que a sua presença pesava muito, e da mesma forma como o pressentira Hans Castorp, sobre a existência dos dois políticos.

Do confronto resultava uma pressão, uma diminuição, um prejuízo, e tudo isso era perceptível não somente para um observador sagaz, mas também para as próprias personagens comparadas, os baixotes eloqüentes tanto como o magnífico tartamudo. Peeperkorn tratava Naphta e Settembrini com extraordinária cortesia e com extrema atenção; devotava-lhes um respeito que Hans Castorp qualificaria de irônico, não o impedisse a plena compreensão da incompatibilidade desse adjetivo com o conceito da grande envergadura. Os reis não conhecem a ironia, nem sequer como meio correto, clássico, de retórica, e ainda menos num sentido mais complexo. Aquilo que, escondido sob uma camada de seriedade um tanto exagerada, ou também de forma patente, caracterizava a atitude do holandês em face dos amigos de Hans Castorp era antes uma zombaria delicada e grandiosa ao mesmo tempo. – Pois é! Pois é! – dizia então, enquanto os ameaçava com o dedo e inclinava a cabeça com os lábios gretados abertos num sorriso jovial. – Isto é... Isto são... Senhoras e senhores, eu chamo a sua atenção... Cerebrum, cerebral! Compreendem? Não, não, ótimo! Esquisito! Isto é... Já se vê... – E eles vingavam-se trocando olhares que, depois de se terem encontrado, se elevavam ao céu, numa expressão de desespero. A seguir procuravam os olhos de Hans Castorp, mas este se esquivava.

Acontecia, então, o Sr. Settembrini pedir diretamente explicações do seu discípulo, manifestando assim a sua inquietação pedagógica.

– Mas, por amor de Deus, engenheiro! Esse homem é um velho estúpido! Que é que o senhor acha nele? De que forma lhe pode ser útil? Simplesmente não posso entender. Tudo seria claro, embora não digno de elogios, se o senhor se resignasse com a existência dele e procurasse na sua companhia apenas a da sua atual amante. Mas é impossível não perceber que o senhor quase dedica mais atenção a ele do que a ela. Ajude-me a compreender, peço-lhe!

– Perfeitamente – respondeu Hans Castorp, rindo. – Ótimo! Isto é... Permita-me... Muito bem. – E fez uma tentativa de arremedar os gestos esmerados de Peeperkorn. – Sim, senhor – continuou, ainda rindo. – Isso lhe parece estúpido, Sr. Settembrini, e indiscutivelmente não é claro, coisa que, a seus olhos, deve ser pior do que estúpido. Ora, a estupidez... Há tantos tipos de estupidez, e a argúcia não é o melhor dentre eles... Upa! Tenho a impressão de que acabo de formular um bon mot. Que acha disso?

– Excelente. Aguardo ansiosamente a publicação do seu primeiro livro de aforismos. Talvez ainda não seja tarde para rogar-lhe que, ao escrevê-lo, leve em consideração certas idéias que ventilamos certa vez, com referência ao perigo que o paradoxo encerra para o homem.

– Não deixarei de seguir o seu conselho, Sr. Settembrini. É o que farei, sem falta. Quando me ocorreu aquele mot, eu absolutamente não andava caçando paradoxos. Desejava apenas assinalar as enormes dificuldades que cria – sim, trata-se mesmo de criar – a definição de estupidez e de argúcia. É tão difícil distingui-las, porque uma se confunde com a outra... Sei perfeitamente que o senhor detesta o guazzabuglio místico e opina pelo valor, pelo juízo, pela apreciação dos valores. Quanto a isso, concordo inteiramente. Mas, quanto à “estupidez” e à “argúcia”, isto constitui às vezes um completo mistério, e deve ser lícito a gente se ocupar de mistérios, contanto que haja o sincero esforço de desvendá-los, se possível. Quero perguntar-lhe uma coisa. Pergunto: pode o senhor negar que ele nos mete a todos no chinelo? Sirvo-me de uma locução meio vulgar; mas, como vejo, o senhor não pode negá-lo. Ele nos mete no chinelo, e por esta ou aquela razão tem o direito de nos ridicularizar. De onde? Por quê? Em que sentido? Claro que esse direito não lhe veio em virtude da sua argúcia. Admito que no caso dele mal se pode falar de argúcia. Pelo contrário, o seu forte é o inarticulado e o sentimento. O sentimento é mesmo o seu cavalo de batalha; perdoe-me essa expressão da linguagem popular. Eu repito: não é devido à argúcia que nos mete no chinelo, quer dizer, não o faz pelas suas qualidades intelectuais. O senhor protestaria, se eu afirmasse o contrário, e de fato isso não entra em questão. Não é tampouco por causa das suas qualidades físicas. Por causa das suas espáduas de capitão, por respeito à força brutal dos seus braços, e porque ele seria capaz de derrubar qualquer um de nós com um só murro. Mas nem pensa em fazer isso, e se alguma vez pensasse, bastariam algumas palavras civilizadas para acalmá-lo... Não é, portanto, por causa das suas qualidades físicas. E, todavia, não há dúvida de que fatores físicos desempenham um certo papel no seu caso; não no sentido da força dos braços, senão num outro, místico. Cada vez que o corpo desempenha um papel, entra-se no terreno do místico. O elemento corporal confunde-se então com o espiritual, e vice-versa, de maneira que é impossível distingui-los. Mas nota-se o efeito, o dinamismo, e já nos achamos metidos no chinelo. Para explicar esse fato, dispomos de uma única palavra: personalidade. Empregamo-la também num sentido mais racional, para dizer que se tem personalidade jurídica ou moral ou não sei que personalidades mais. No entanto, não é a isso que me refiro, mas a um mistério que ultrapassa os limites da estupidez e da argúcia. Acho que as pessoas devem ter o direito de se ocupar com esse mistério, ora para desvendá-lo, se possível, ora, se isso for impossível, para edificar-se com ele. E – uma vez que o senhor é a favor dos valores – a personalidade não deixa de ser, afinal de contas, um valor positivo, segundo me parece. Mais positivo do que a estupidez e a argúcia. Positivo no mais alto grau, absolutamente positivo, tal qual a vida. Numa palavra, um valor vital, feito para ocupar-nos intensamente com ele. Foi isso o que achei indicado ponderar, como resposta àquilo que o senhor disse acerca da estupidez.

Nos últimos tempos, Hans Castorp já não se atrapalhava nem perdia, o fio ao fazer explanações desse gênero. Deixara de estacar no meio do discurso. Chegava até o fim da sua réplica, baixava a voz, punha um ponto final e seguia o seu caminho como um homem, se bem que ainda se ruborizasse ao falar e tivesse, no fundo do coração, um pouco de medo do silêncio crítico que se seguiria quando emudecesse, a fim de lhe dar o tempo necessário para se envergonhar. Com efeito, Settembrini interpôs esse silêncio, antes de dizer:

– O senhor nega que anda à caça de paradoxos. Sabe muito bem, no entanto, que eu também não gosto de vê-lo caçando mistérios. Ao fazer da personalidade um enigma, corre perigo de entregar-se à idolatria. O senhor venera uma máscara. Está vendo mística onde se trata de mistificação, de um daqueles enganosos receptáculos vazios, por meio dos quais o demônio do elemento corporal-fisionômico gosta de iludir-nos. O senhor nunca freqüentou o ambiente de atores? Não conhece esses rostos de histriões, onde se combinam os traços de Júlio César, de Goethe e de Beethoven, e cujos portadores felizes se revelam como os mais lamentáveis cretinos, desde que abrem a boca?

– Ora, um jogo da natureza – disse Hans Castorp. – Mas não é apenas isso, não se limita a uma ilusão. Visto esses homens serem atores, devem ter talento, e o próprio talento vai além da estupidez e da argúcia; constitui, ele mesmo, um valor vital. Também Mynheer Peeperkorn tem talento, por mais que o senhor proteste, e com ele nos mete no chinelo. Coloque o Sr. Naphta num canto da sala e deixe-o fazer uma conferência sobre Gregório Magno e a Cidade de Deus, que seja muito digna de nota; mas no outro canto encontra-se Peeperkorn com sua boca estranha, alçando as rugas da testa e dizendo apenas: “Perfeitamente! Permita-me... Basta!” O senhor vai ver que as pessoas se reunirão em torno de Peeperkorn, todas elas, e que Naphta ficará sozinho com sua argúcia e sua Cidade de Deus, ainda que se expresse com tanta clareza que nos penetre até a medula, para empregar uma locução de Behrens.

– Não tem vergonha de adorar o êxito? – indagou o Sr. Settembrini. – Mundus vult decipi. Não faço questão que as pessoas se aglomerem ao redor do Sr. Naphta. Ele é um desgraçado espírito de contradição. Mas sinto-me tentado a tomar o partido dele, à vista da cena imaginária que o senhor acaba de descrever com uma aprovação absolutamente censurável. Desdenhe, se quiser, a forma distinta, precisa, lógica, a palavra humana e coerente! Desdenhe-as e prefira qualquer embrulhada de alusões e de charlatanice sentimental, e logo se achará nas mãos do Diabo.

– Mas lhe asseguro que ele pode falar de modo bem coerente, quando se anima – disse Hans Castorp. – Certa vez me falou do dinamismo das drogas e de árvores venenosas da Ásia; contou fatos tão interessantes que quase me causou uma impressão sinistra. O interessante sempre é um pouco sinistro. E tudo aquilo era menos interessante em si, do que em relação com o efeito produzido pela sua personalidade, que tornava as palavras ao mesmo tempo sinistras e interessantes...

– Naturalmente. Já é conhecido o seu fraco pelas coisas asiáticas. É verdade que eu não lhe posso oferecer esse tipo de maravilhas – retrucou o Sr. Settembrini com tanta amargura que Hans Castorp se apressou a declarar que as vantagens da sua palestra e dos seus ensinamentos eram de ordem totalmente diferente, e que ninguém tinha a idéia de fazer comparações injustas para ambas as partes. Mas o italiano rejeitou e fez como se não ouvisse esses cumprimentos.

– Em todo caso – continuou –, deve o senhor permitir que eu admire a sua objetividade e a calma do seu espírito. Elas tocam as raias do grotesco, como o senhor deve admitir. Afinal de contas, esse bravateiro lhe surrupiou a sua Beatriz. Chamo as coisas pelos nomes. E o senhor? Isso não tem precedentes...

– Há diferenças de temperamento, Sr. Settembrini. Diferenças quanto ao calor do sangue e ao cavalheirismo da raça. O senhor, como filho do sul, naturalmente recorreria ao veneno ou ao punhal, ou talvez desse ao caso um aspecto passional e convencional. Numa palavra, tudo acabaria numa rinha de galos. Isso seria, sem dúvida, muito viril, viril no sentido convencional, e muito galante. Mas comigo a coisa é diferente. Eu absolutamente não sou viril a ponto de ver num outro homem apenas o macho rival. Pode ser que eu não seja viril sob nenhum aspecto, mas tenho certeza de não o ser daquele modo que eu, sem querer, chamei de “convencional”, não sei por quê. No meu coração pachorrento pergunto-me a mim mesmo se existe alguma coisa de que eu possa censurar Peeperkorn. Será que ele me fez algum mal intencionalmente? Ofensas devem ser feitas de propósito, do contrário não são ofensas. E no que toca ao “fazer mal”, seria preciso que eu me ativesse a ela, e a isso não tenho direito. Não tenho direito em geral, e em especial não o tenho com relação a Peeperkorn. Pois, em primeiro lugar, é uma personalidade, o que de per si já é uma coisa que atrai as mulheres; e em segundo não é civil, como eu, e sim uma espécie de militar, como o pobre do meu primo; quer dizer, ele tem um point d’honneur, uma mania, que se refere ao sentimento, à vida... Estou dizendo tolices, mas prefiro desvairar um pouquinho e exprimir, mais ou menos claramente, uma idéia complicada, do que limitar-me a proferir lugares-comuns perfeitamente formulados. Quem sabe se isso não é uma espécie de traço militar do meu caráter, se assim se pode dizer...

– Diga-o – tornou Settembrini, sacudindo a cabeça em sinal de aprovação. – Isso é, inegavelmente, um traço digno de louvor. A coragem do conhecimento e da expressão, eis o que é a literatura, o espírito humano...

Nessas ocasiões, eles costumavam separar-se em bons termos. O Sr. Settembrini dava um fim conciliador a conversas desse gênero, e tinha excelentes razões para proceder assim. A sua própria posição absolutamente não era tão inatacável que houvesse sido prudente levar muito longe o rigorismo. Uma palestra que tivesse por assunto o ciúme constituía para ele terreno um tanto escorregadio. Num determinado ponto, o humanista deveria ter respondido que, em virtude da sua veia pedagógica, sua relação com o sexo masculino também não era inteiramente convencional e semelhante àquela dos galos, e que, por isso, o imponente Peeperkorn o atrapalhava da mesma forma como Naphta e Mme. Chauchat. E finalmente não podia escapar ali o seu discípulo da influência e da superioridade natural de uma personalidade, à qual nem ele mesmo nem o seu parceiro em assuntos cerebrais eram capazes de se subtrair.

A sua situação costumava melhorar quando se respirava uma atmosfera intelectual, quando havia discussões, quando era possível prender a atenção das pessoas que tomavam parte nos passeios a um daqueles seus debates elegantes e ao mesmo tempo apaixonados, acadêmicos e todavia conduzidos num tom que faria supor tratar-se de questões tremendamente atuais e vitais. Essas contendas eram travadas quase exclusivamente pelos dois adversários, e enquanto duravam ficava neutralizada até certo ponto a presença da “grande envergadura”, que não as podia acompanhar senão alçando as rugas da testa em sinal de pasmo, e intercalando exclamações zombeteiras, porém abruptas. E mesmo sob essas circunstâncias exercia ela a sua peculiar pressão. Lançava uma sombra sobre a palestra, que assim se via diminuída no seu brilho. Privava-a da sua essência. De uma forma perceptível a todos, embora Peeperkorn não se desse conta de tudo isso, ou só o fizesse num grau dificilmente apreciável, a sua presença opunha à discussão algo que não favorecia nenhuma das duas causas, ofuscava a querela, que assim parecia desprovida de importância decisiva, e imprimia-lhe – mal nos atrevemos a dizê-lo – o cunho da futilidade. Ou, para formulá-lo de outra maneira: essa engenhosa luta de vida e morte relacionava-se secretamente, de um modo subterrâneo e indefinível, com a “grande envergadura” que caminhava lado a lado com ela, e cujo magnetismo lhe absorvia a força. É impossível precisar mais claramente esse processo misterioso, bem desagradável para os dois antagonistas. Só se pode dizer que, não existisse Pieter Peeperkorn, teria sido muito mais difícil esquivar-se à necessidade de tomar partido, quando, por exemplo, Leo Naphta defendia a natureza total e basicamente revolucionária da Igreja contra a doutrina do Sr. Settembrini, o qual via nessa potência histórica unicamente a protetora da mais sinistra estagnação e do mais obscuro conservantismo, pretendia mostrar que todas as forças vivas e futurosas, dirigidas para a revolução e a reforma, se baseavam nos princípios opostos do esclarecimento, da ciência e do progresso, princípios oriundos de uma época gloriosa de renascimento da cultura antiga, e sustentava essa opinião por meio de gestos primorosos e palavras brilhantes. A isso respondeu Naphta fria e incisivamente. Afirmou ser capaz de demonstrar – e de fato o demonstrou com evidência quase deslumbrante – que a Igreja, como encarnação da idéia religioso-ascética, estava intimamente muito longe de ser partidária e amparo daquilo que queria persistir, isto é, da formação secular e das leis do Estado; que, pelo contrário, arvorava a bandeira da revolução mais radical, da revolução completa; que, de um modo geral, tudo o que se considerava digno de ser mantido e o que os tíbios, os covardes, os conservadores, os burgueses procuravam manter – o Estado, a família, a arte e a ciência seculares –, sempre estivera em oposição consciente ou inconsciente à idéia religiosa, à Igreja, cuja tendência inata e cujo objetivo inalterável eram a dissolução de tudo quanto existia de ordem secular e a reorganização da sociedade, segundo o modelo do Estado ideal e comunista de Deus.

Em seguida, Settembrini tomou a palavra, e soube aproveitá-la – e como soube! Tal confusão da idéia revolucionária, luciferiana, com a revolta geral de todos os maus instintos – disse ele – era deplorável. O espírito inovador da Igreja consistira durante séculos inteiros em perseguir, por meio da Inquisição, o pensamento fecundo, em estrangulá-lo, em sufocá-lo na fumaceira dos holocaustos. Recentemente, porém, mandava os seus emissários declarar que simpatizava com a revolução, e afirmava ser seu objetivo substituir a liberdade, a cultura, a democracia, pela ditadura do populacho e pela barbárie. Sim, aquilo representava realmente um caso pavoroso de conseqüência contraditória ou de conseqüente contradição...

Naphta objetou que entre os argumentos do seu oponente não faltavam exemplos semelhantes de contradição e de incoerência. Embora o Sr. Settembrini se julgasse um democrata, revelava pouca simpatia pelo povo e pela igualdade; pelo contrário, manifestava a altivez censurável de um aristocrata, ao qualificar de populacho o proletariado universal, chamado a exercer a ditadura temporária. Mas era como autêntico democrata que evidentemente se comportava em face da Igreja, a qual, na verdade – era preciso admiti-lo com orgulho –, representava a potência mais nobre da história humana; nobre no sentido supremo e mais lato, no sentido espiritual. Pois o espírito ascético – se lhe permitiam empregar esse pleonasmo –, o espírito da negação e do aniquilamento do mundo era a nobreza por excelência, o princípio aristocrático na sua forma mais pura. Esse espírito não poderia nunca ser popular, e, com efeito, também a Igreja sempre tinha sido impopular. Bastaria que o Sr. Settembrini se ocupasse um pouquinho com a cultura da Idade Média para que deparasse com esse fato, com a antipatia rude que o povo, na acepção mais ampla da palavra, sentia pelas coisas eclesiásticas. Existiam, por exemplo, entre as invenções da imaginação dos poetas populares, certas figuras de monges que, de modo bem luterano, opunham à idéia ascética o vinho, a mulher e o canto. Todos os instintos do heroísmo mundano, todo o espírito guerreiro, bem como a poesia cortesã, tinham sido adversários mais ou menos abertos da idéia religiosa e, por conseguinte, da hierarquia. Pois tudo isso fora o “mundo” e a mentalidade do populacho, em comparação com a nobreza do espírito, representada pela Igreja.

O Sr. Settembrini agradeceu ao seu antagonista por lhe ter refrescado a memória. A figura do monge Ilsan, no Jardim das rosas, tinha muitos traços simpáticos, em confronto com esse aristocratismo de tumba que acabava de ser apregoado. Embora ele, Settembrini, não fosse um partidário do reformador alemão ao qual se aludira, estava disposto a defender com o máximo ardor todo o individualismo democrático que formava a base da sua doutrina, contra quaisquer ambições eclesiástico-feudais de domínio sobre a personalidade.

– Vejam só! – exclamou Naphta. Porventura se queria acusar a Igreja de falta de espírito democrático e de compreensão do valor da personalidade humana? E que diziam da tão humana ausência de preconceitos no direito canônico? Ao passo que no direito romano a capacidade jurídica dependia da posse dos direitos civis, e no germânico, da nacionalidade e da liberdade pessoal, o direito canônico exigia apenas que o indivíduo pertencesse à Igreja e tivesse a verdadeira fé, libertando-se de todas as considerações políticas e sociais e declarando capazes de testar e de herdar os próprios escravos, prisioneiros de guerra e servos.

Settembrini observou causticamente que essa declaração talvez não houvesse sido feita, se não se tivesse secretamente em mira a porção “canônica” cobrada sobre cada herança. A seguir pôs-se a falar da “demagogia dos padrecos”. Chamou de “afabilidade”, peculiar à irrestrita ambição, a maneira como a Igreja punha em movimento o submundo, visto que os deuses, por motivos compreensíveis, nada queriam saber dele. Opinou que, evidentemente, ela ligava maior importância à quantidade das almas do que à sua qualidade, o que implicava uma grande falta de distinção espiritual.

A Igreja desprovida de distinção de espírito? Mas como? Que o Sr. Settembrini dirigisse a sua atenção para o aristocratismo inexorável em que se baseava a idéia da hereditariedade da tara, a transmissão de uma culpa grave para os descendentes que – democraticamente falando – eram inocentes, como acontecia no caso dos filhos naturais, sobre os quais pesavam o opróbrio vitalício e a privação de quaisquer direitos. Mas o italiano rogou que não se insistisse nesse ponto, uma vez que o seu sentimento humano se revoltava contra tal procedimento. Além disso estava farto de rodeios e reconhecia claramente nos truques da apologética do adversário o infame e diabólico culto do nada que pretendia ser considerado como espírito e fazia aparecer como algo de legítimo e de sagrado a confessada falta de popularidade do princípio ascético.

A essa altura, Naphta pediu licença para dar uma estrondosa gargalhada. Falava-se de um niilismo da Igreja! Do niilismo do sistema de governo mais realista de toda a história universal! O Sr. Settembrini, acaso, nunca sentira o sopro da ironia humana mediante a qual a Igreja constantemente fazia concessões ao mundo e à carne, ocultando, com prudente transigência, as derradeiras conseqüências do princípio, e deixando reinar o espírito como influência reguladora, sem tratar a natureza com excessivo rigor? Não ouvira tampouco falar desse elegante conceito eclesiástico que era a indulgência, a qual incluía até mesmo um sacramento, o do matrimônio, que, ao contrário dos demais sacramentos, não era um bem positivo, senão apenas uma proteção contra o pecado, outorgada unicamente para restringir os desejos sensuais e a intemperança, de maneira que se conservava o princípio ascético, o ideal da castidade, sem que se opusesse à carne uma severidade pouco política?

Diante disso, o Sr. Settembrini não podia deixar de protestar contra essa concepção abominável da “política” e contra o gesto presunçoso de condescendência e sisudez que se arrogava o espírito, ou melhor, aquilo que nesse caso se julgava por tal, e que era usado com relação ao seu contrário. Pretendia-se que esse contrário era pejado de culpa e tinha de ser tratado “politicamente”; mas em realidade não precisava daquela indulgência peçonhenta. A seguir, o humanista investiu contra o maldito dualismo de uma interpretação do mundo, que diabolizava o universo, a vida tanto como o seu imaginário oposto, a saber, o espírito. Pois, desde que aquela era ruim, necessariamente o era também este, por ser a mera negação. E ele quebrou lanças em defesa da inocência da volúpia – o que fez Hans Castorp pensar naquele cubículo de humanista, no sótão, com a papeleira, as cadeiras de palha e a garrafa de água. Naphta, por sua vez, afirmou que a volúpia jamais podia ser livre de culpa, e exigiu da natureza que em face do espírito ela sentisse um peso na consciência. Definiu a política eclesiástica e a indulgência do espírito como sendo “o amor”, a fim de refutar o niilismo do princípio ascético (e Hans Castorp teve a impressão de que a palavra “amor” formava um estranho contraste com a cara daquele homem magrinho e sutil que era o pequeno Naphta...).

A discussão prosseguia nesse tom. Conhecemos o jogo, e também Hans Castorp o conhecia. E nós, como ele, escutamos por alguns instantes, para observar as formas que assumia tal luta peripatética à sombra da personalidade que passeava ao lado dos digladiantes, e de que maneira mal perceptível essa presença emasculava os debates. Era como se uma secreta coação os obrigasse a relacionar-se com ela e apagasse assim a faísca que saltava de um a outro interlocutor; impunha-se a reminiscência daquela sensação de desanimadora falta de vida que experimentamos, quando está interrompida a corrente elétrica. Era mesmo assim. As contradições já não produziam nem crepitação, nem chispas, nem contato; a presença neutralizava o espírito, ao invés de ser neutralizada por ele; Hans Castorp verificou esse fato com surpresa e curiosidade.

Revolução e conservação! E os olhares fixavam-se em Peeperkorn; via-se como ele avançava a passo lerdo. Não era bom marchador, com o seu andar oscilante para os lados, e com o chapéu desabado na testa. Moviam-se os lábios amplos, irregulares e gretados, e ouvia-se como ele, apontando humoristicamente com a cabeça em direção aos adversários, dizia: “Pois é, pois é... Cerebrum, cerebral; compreendem? Isso é... Nisso se manifesta...” E vejam só: não havia corrente na chave de luz. Os antagonistas faziam nova tentativa; lançavam mão de exorcismos mais fortes; começavam a falar do “problema aristocrático”, da popularidade e da distinção. Não saltava nenhuma faísca. Como por influência magnética, a conversa tomava um caráter pessoal. Vinha então a Hans Castorp a imagem do companheiro de viagem de Clávdia, estendido sobre a cama, debaixo da colcha vermelha, na sua camisola de malha, desprovida de gola, metade operário velho, metade busto de um rei – e numa convulsão débil extinguia-se a vida da discussão. Outras tensões mais fortes! De um lado a negativa, o culto do nada, e do outro o eterno “sim”, a inclinação afetuosa do espírito para a vida! Mas onde ficavam a vida, a chispa, a corrente, quando se encarava Peeperkorn, o que sucedia inevitavelmente, mercê de uma secreta atração? Numa palavra, elas permaneciam ausentes, e isto era, para empregar o termo de Hans, nada mais nada menos que um mistério. Para o seu livro de aforismos podia ele anotar que se deve expressar um mistério pelas palavras mais simples possíveis ou deixar de expressá-lo. Quem fizesse uma vaga tentativa de formulá-lo poderia afirmar exclusiva, mas decididamente, que Pieter Peeperkorn, com sua máscara enrugada de soberano e sua boca dolorosamente gretada, era sempre ambas as coisas, que ambas as coisas se aplicavam à sua pessoa e nela pareciam anuladas a todos os que o viam; era isto e aquilo, um e outro. Pois sim, esse velho estúpido, esse zero majestoso! Ele é que paralisava a energia dos argumentos, não, porém, por meio de confusões e chicanas como Naphta. Peeperkorn não era ambíguo à maneira do jesuíta; era-o de modo totalmente oposto, positivo – ele, esse mistério cambaleante, patentemente ultrapassara os limites não só da estupidez e da argúcia, mas também os de muitos outros binômios, aos quais recorriam Settembrini e Naphta, a fim de produzir a alta tensão necessária para os seus fins pedagógicos. A personalidade – tinha-se essa impressão – carecia de caráter educador, e contudo, quantas oportunidades não oferecia a quem viajava em busca de formação! Que coisa estranha observar essa ambigüidade na figura de um rei, na ocasião em que os digladiantes começavam a falar do casamento e do pecado, do sacramento da indulgência, da culpabilidade e da inocência da volúpia! Peeperkorn inclinava a cabeça para o ombro e o peito; descerravam-se-lhe os lábios doloridos; numa expressão de langoroso lamento fendia-se-lhe a boca, enquanto as narinas se distendiam e alargavam como sob o efeito de alguma dor; as rugas da fronte subiam e os olhos assim dilatados lançavam olhares incertos, cheios de sofrimento; era a imagem perfeita da amargura. Mas, eis que num instante o semblante de mártir se abria, se tornava sensual! A inclinação oblíqua da cabeça modificava o seu sentido, começava a significar malícia; os lábios, ainda entreabertos, esboçavam um sorriso pouco pudico; a covinha de sibarita, que conhecemos em outras ocasiões, ressurgia numa das bochechas; e já estava ali o sacerdote pagão a dançar. Enquanto a cabeça apontava humoristicamente para o lado daqueles homens cerebrais, ouvia-se como ele dizia: “Ah, sim! Pois é, pois é. Perfeitamente. Isto é... Isto são... Nesse caso manifesta-se... O sacramento da volúpia; compreendem?...”

Mas, como já mencionamos, os amigos e mentores de Hans Castorp, embora prejudicados, achavam-se numa situação relativamente favorável, sempre que podiam discutir. Nessas ocasiões estavam no seu elemento, ao passo que o contrário se dava com a “grande envergadura”, e quanto ao papel que Peeperkorn então representava, podia, afinal de contas, haver opiniões diferentes. Era, entretanto, indiscutível que a posição dos dois adversários se tornava menos favorável, quando já não se tratava de engenho, de palavras, de spiritus, senão de objetos reais, de assuntos terrenos, práticos, numa palavra, de questões e de coisas diante das quais uma natureza de soberano costuma ser posta à prova. Quando isso sucedia, estavam liquidados, sumiam-se na sombra, pareciam insignificantes, e Peeperkorn apossava-se do cetro, determinava, resolvia, dava ordens, encomendava, delegava... Não é de admirar que se empenhasse em obter esse estado de coisas e em sair da logomaquia para chegar a ele. Sofria enquanto ele perdurava, ou, pelo menos, quando se prolongava. Mas o que o fazia sofrer não era vaidade; disso Hans Castorp tinha certeza. A vaidade não possui grande envergadura, e a grandeza não é vaidosa. Não, o desejo de realidade que experimentava o holandês brotava de fontes muito diversas: do “medo”, para dizê-lo de forma grosseira e exagerada; daquele senso do dever e daquela mania do pundonor, que Hans Castorp procurara explicar ao Sr. Settembrini e considerara uma espécie de traço militar.

– Meus senhores – dizia o holandês, erguendo a mão de capitão com as unhas pontudas, num gesto imperioso e insistente. – Muito bem, senhores, perfeitamente, ótimo! A ascese, a indulgência, o prazer dos sentidos. Quanto a isso, eu queria... Absolutamente. Muitíssimo importante! Bem discutível! Mas permitam... Receio que estejamos a ponto de cometer... Esquivamo-nos, senhores, esquivamo-nos de um modo imperdoável ao mais sagrado... – E respirando profundamente acrescentou: – Esse ar, senhores, o ar característico deste dia de Föhn, com sua dose de aroma primaveril, cheio de pressentimentos e de recordações, que delicadamente nos entibia... Não deveríamos aspirá-lo, só para soltá-lo em forma de... Insisto, senhores, não deveríamos fazer isso. É um insulto. É unicamente a ele que se deveria dedicar toda a nossa... a suprema e a mais intensa... Basta, senhores! E o nosso peito que o respira deveria louvar irrestritamente... Detenho-me, senhores, detenho-me em homenagem a esse... – Detinha-se; inclinava-se para trás, com o chapéu dando sombra aos olhos, e todos lhe imitavam o exemplo. – Chamo a sua atenção – prosseguia o holandês – para as alturas, essas grandes alturas, onde gira aquele ponto negro, no meio desse delicado azul que puxa para o preto... É uma ave de rapina, uma enorme ave de rapina. É, se não me engano muito... Meus senhores, e você, minha filha, é uma águia. É sobre ela que chamo decididamente... Olhem! Isto não é nem gavião nem abutre... Se os senhores fossem tão presbitas como eu, na minha avançada... Pois sim, minha filha, na minha avançada... Meus cabelos são brancos; como não? Bem, os senhores veriam tão nitidamente como eu, pela curva obtusa das asas... Uma águia, senhores. Uma águia real. Diretamente acima de nós descreve os seus círculos. Sem bater as asas adeja em alturas grandiosas por cima das nossas... Decerto nos espia com seus olhos poderosos, que enxergam ao longe, sob os ossos salientes das órbitas... A águia, senhores, a ave de Júpiter, o rei da sua estirpe, o leão dos ares! Usa calças de plumas e um bico de ferro, curvo na ponta, e tem garras de uma força incrível, dobradas para dentro, de maneira que as traseiras, muito compridas, passam por cima das dianteiras como um gancho férreo. Olhem, é assim! – E a mão de capitão com as unhas compridas esforçava-se por representar as garras da águia. – Compadre, por que andas girando e espiando? – continuava, voltando-se para a ave. – Desce! Crava o bico de aço na cabeça e nos olhos do homem, dilacera-lhe o ventre, àquela criatura que Deus te... Perfeitamente! Basta! Tuas garras devem enredar-se nas entranhas, e o sangue, gotejar do teu bico...

Falava com entusiasmo. Sumira o interesse dos companheiros pelas antinomias de Naphta e Settembrini. Além disso, a visão da águia continuou influenciando silenciosamente as decisões e as iniciativas que se seguiram, sob a direção de Mynheer. Entraram num restaurante, comeram e beberam, completamente fora de hora, mas com um apetite inflamado pela tácita recordação da águia. Houve um banquete e uma bebedeira daquele tipo que Mynheer freqüentemente organizava, também fora do Berghof, onde quer que se encontrassem, em Platz ou na “aldeia”, ou numa estalagem de Glaris ou de Kloters aonde haviam ido num trenzinho de excursão. Sob as suas ordens de soberano, consumiam então dádivas clássicas, como café com creme, acompanhado de pães rústicos, de suculentos queijos e da aromática manteiga dos Alpes, que conservava o mesmo sabor excelente quando servida com castanhas assadas. Tudo isso era regado a vinho tinto de Valtelina, que se tomava à vontade. Peeperkorn temperava os manjares improvisados com grandiosos e abruptos discursos, ou convidava Anton Karlovitch Ferge a falar, esse sofredor bonachão, alheio a quaisquer assuntos sublimes, mas que sabia contar coisas realísticas sobre a fabricação de galochas na Rússia: a massa de borracha era mesclada de enxofre e de outras substâncias, e os sapatos acabados, cobertos de uma camada de verniz, eram “vulcanizados” a uma temperatura de cem graus. Também tratava do círculo polar, onde estivera diversas vezes no decorrer das suas viagens de negócios. O sol da meia-noite e o inverno constante da região do cabo Norte eram descritos em palavras que brotavam da garganta nodosa, de sob o bigode hirsuto. Ali – narrava Ferge – o vapor aparecia minúsculo em confronto com os imensos rochedos e a vastidão do mar azul-ferrete. Zonas amareladas de luz estendiam-se por sobre o céu; a luz da aurora boreal. E tudo isso causara a ele, Anton Karlovitch, uma impressão fantasmagórica, tanto a paisagem como a sua própria presença no meio dela.

Assim falava o Sr. Ferge, a única personagem do nosso pequeno grupo que se achava fora da rede de relações que ligavam os outros entre si. Quanto a estas relações, porém, convém relatar dois breves diálogos, duas conversas estranhas que, a essa altura dos acontecimentos, o nosso herói pouco heróico manteve com Clávdia Chauchat e com o seu companheiro de viagem, cada qual em separado; uma no vestíbulo, à noite, enquanto o “obstáculo” se achava acamado com febre, no seu quarto, e a outra, de tarde, à cabeceira do leito de Mynheer...

Àquela noite, o vestíbulo achava-se envolto em penumbra. A costumeira reunião tinha sido breve e pouco animada. Já muito cedo os pensionistas se haviam recolhido aos compartimentos de sacada, para o repouso noturno, exceção feita daqueles que trilhavam caminhos proibidos pelo regulamento, em direção ao “mundo”, onde se dançasse ou jogasse. Uma lâmpada solitária continuava acesa em qualquer parte do teto do recinto abandonado, e também as saletas contíguas estavam quase completamente escuras. Hans Castorp sabia, porém, que Mme. Chauchat, depois de ter jantado sem a companhia do seu senhor, ainda não regressara ao primeiro andar, mas se demorava na sala de leitura. Por esse motivo também ele hesitara em subir. Encontrava-se na parte dos fundos do vestíbulo, um degrau mais alta do que o resto, e separada do recinto principal por alguns arcos brancos, que repousavam sobre pilares forrados de madeira. Estava sentado junto à lareira revestida de azulejos, numa cadeira de balanço igual àquela na qual se embalara Marusja, enquanto Joachim conversava com ela a primeira e única vez. Fumava um cigarro, o que a essa hora era a rigor permitido.

Ela vinha chegando. Hans Castorp ouviu-lhe os passos, ouviu atrás de si o farfalhar do vestido. Abanando-se com uma carta que segurava num canto, Mme. Chauchat pôs-se ao lado do jovem e disse naquela sua voz de Pribislav:

– O concierge já se foi. Dê-me um timbre-poste.

Trajava, àquela noite, um vestido leve, de seda escura, com um decote redondo e com mangas amplas, cujos punhos abotoados se estreitavam em torno dos pulsos. Era um vestido de que Hans Castorp gostava especialmente. Clávdia se adornara com o colar de pérolas que esplendia palidamente no crepúsculo. Ele ergueu os olhos, e fitando o rosto de quirguiz, disse:

– Timbre? Não tenho.

– Mas como? Não tem? Tant pis pour vous. Não está preparado para ser útil a uma senhora? – Fez uma careta de desdém e deu de ombros. – Isso me decepciona. Vocês, pelo menos, deveriam ser pessoas eficientes a quem se pudesse sempre recorrer. Eu imaginava que o senhor tivesse, numa repartição da sua carteira, uns blocos bem dobrados de todos os tipos de selos, classificados segundo os valores.

– Não. Para quê? – respondeu ele. – Nunca escrevo cartas. A quem as dirigiria? Às vezes, mas só raramente, mando um cartão-postal que já se compra selado. A quem poderia eu remeter uma carta? Não tenho mais nenhuma relação com a planície. Perdi o contato. No nosso cancioneiro popular temos uma canção que diz: “Estou perdido para o mundo”. É o meu caso.

– Bem, então dê-me um cigarro, seu homem perdido – disse ela. Sentou-se à sua frente, ao pé da lareira, num banquinho coberto com uma almofada. Cruzou as pernas e estendeu uma das mãos. – Parece que o senhor tem. – E displicentemente, sem dizer “obrigada”, tirou da caixinha de prata o cigarro que Hans Castorp lhe oferecia, e do mesmo modo serviu-se do isqueiro dele, cuja chama se levantava próxima do seu rosto inclinado para a frente. Na indolência desse “dê-me” e nesse jeito de aceitar sem agradecer revelaram-se a incúria da mulher mimada e, ao mesmo tempo, o senso da camaradagem humana e da propriedade comum, a naturalidade enérgica e todavia meiga dos atos de dar e de receber. Hans Castorp criticou essa atitude na sua alma amorosa. Depois disse em voz alta:

– Sim, cigarros tenho sempre. Realmente, nunca deixo de andar munido deles. É coisa que se precisa ter. Como seria possível passar sem fumar? Isso se chama uma paixão, não é? Francamente, não sou um homem passional, mas tenho algumas paixões, paixões fleumáticas.

– Tranqüiliza-me extraordinariamente – disse ela, soltando, ao falar, uma baforada – saber que o senhor não é homem passional. Aliás, como poderia ser? Do contrário, o senhor seria diferente dos outros da sua espécie. Paixão é viver por amor à vida. Mas é coisa sabida que vocês vivem por amor à experiência. Paixão significa esquecer-se de si próprio. Mas tudo o que vocês desejam é enriquecer. C’est ça. E o senhor absolutamente não se dá conta de que isso constitui um egoísmo abominável que um dia fará de vocês os inimigos da humanidade?

– Ora, ora! Logo os inimigos da humanidade? Que é que dizes aí, Clávdia, de uma forma tão generalizada? Em que coisas concretas e pessoais estás pensando, ao afirmar que nós não nos empenhamos em viver, mas só em enriquecer? Vocês, mulheres, não costumam pregar moral assim a esmo. Ah, essa história da moral! Isto é antes um tema de discussão para Naphta e Settembrini. Isso nos leva ao terreno da grande confusão. Nem a própria pessoa sabe se vive por amor a si própria ou por amor à vida, e ninguém pode dizê-lo com precisão e com certeza. Eu acho que os limites são móveis. Existe uma abnegação egoística e um egoísmo abnegado... Creio que é mais ou menos a mesma coisa como no caso do amor. Indiscutivelmente é contrário à moral que eu seja incapaz de prestar atenção ao que me dizes a respeito dela, mas me sinto antes de mais nada feliz por estarmos reunidos, assim como nos achamos uma única vez, e como nunca nos encontramos desde o teu regresso. E que eu te possa dizer que esses punhos justos te assentam às mil maravilhas, e essa seda transparente que flutua ampla ao redor dos teus braços... desses braços que eu conheço...

– Já me vou.

– Não vás, por favor! Terei em consideração as circunstâncias e as personalidades.

– É o menos que se pode esperar de um homem sem paixão.

– Estás vendo? Fazes troça de mim e ralhas comigo, se eu... E queres ir embora, quando eu...

– Rogo-lhe o favor de falar de forma menos incoerente, se quiser ser compreendido.

– Então não poderei tirar nenhum proveito da habilidade que tens em adivinhar incoerências? É injusto, diria eu, se não compreendesse que aqui não se trata de justiça...

– Não, senhor. A justiça é uma paixão fleumática. Ao contrário do ciúme, que torna inevitavelmente ridículas as pessoas fleumáticas.

– Estás vendo? Ridículas. Então tolera a minha fleuma. Repito: como poderia eu passar sem ela? Sem ela, como poderia ter suportado essa espera?

– Como disse?!

– Essa espera por ti.

– Voyons, mon ami. Não quero perder tempo criticando a forma de tratamento de que o senhor, com uma obstinação absurda, se serve para comigo. Acho que há de se cansar disso, e eu, afinal de contas, não me ofendo facilmente, não sou nenhuma burguesa indignada...

– Não, porque estás enferma. A doença te confere a liberdade. Torna-te... Espera, agora me ocorre uma palavra que nunca ainda empreguei: torna-te genial!

– Deixemos a genialidade para outra ocasião! Não era isso o que eu queria dizer. Exijo uma única coisa. Não pretenda que eu, de uma forma ou outra, seja culpada da sua espera, se é que realmente esperou; que haja sido encorajado por mim para tal atitude, ou apenas que eu o tenha autorizado a agir assim. O senhor deve admitir, sem rodeios, que se deu precisamente o contrário...

– Com muito prazer, Clávdia. Como não! Não me mandaste esperar. Esperei por livre e espontânea vontade. Compreendo perfeitamente que ligues importância a isso...

– Até as suas concessões têm qualquer coisa de impertinente. Geralmente falando, o senhor é homem impertinente, sabe Deus por quê. Não só nas suas relações comigo, mas também noutras circunstâncias. Mesmo na sua admiração e na sua humildade há algo de impertinente. Não pense que não percebo! Nem me convém falar com o senhor, de uma vez por todas, por causa da sua impertinência e também porque se atreve a me falar da sua espera. É imperdoável que ainda se encontre aqui. Há muito tempo que deveria ter voltado para o seu trabalho, sur le chantier, ou onde quer que fosse...

– Agora estás falando sem genialidade e de modo totalmente convencional, Clávdia. Isso não passa de um lugar-comum. Tu não podes ter a mesma opinião que Settembrini, e que outro sentido poderiam ter as tuas palavras? Tu as disseste sem pensar; não as posso levar a sério. Eu não partirei “em falso” como o coitado do meu primo, que morreu, assim como previste, quando tentava cumprir o seu dever na planície. Talvez soubesse que morreria, mas preferiu a morte ao regime do tratamento. Muito bem, para isso era soldado. Mas eu não sou; sou civil. No meu caso seria deserção se me comportasse como ele e fizesse questão, apesar dá proibição de Radamanto, de me dedicar lá embaixo ao progresso e a outras coisas úteis. Isso seria a mais profunda das ingratidões e a maior infidelidade para com a doença e o gênio, e também para com o meu amor a ti, do qual tenho cicatrizes antigas e feridas recentes, e para com os teus braços que conheço, se bem que deva admitir que foi apenas num sonho, num sonho genial, que travei conhecimento com eles, de maneira que daí não resulta, naturalmente, para ti nenhuma conseqüência, nenhum compromisso, nenhuma restrição da liberdade...

Ela riu, com o cigarro na boca, a ponto de se contraírem os olhos tártaros. Reclinou-se ao forro de madeira, apoiando as mãos no banquinho; com as pernas cruzadas, balouçava o pé calçado com um sapato preto de verniz.

– Quelle générositê! Oh là, là, vraiment, meu pobre pequeno, é exatamente assim que eu sempre imaginei un homme. de génie!

– Deixa disso, Clávdia. Claro que por natureza não sou nenhum homme. de génie, como não sou tampouco um homem de grande envergadura. Não, meu Deus! Mas o acaso – dize que foi o acaso – levou-me muito alto, até essas regiões geniais... Numa palavra, talvez não saibas que existe uma coisa que se chama pedagogia alquimístico-hermética, a transubstanciação, rumo ao mais sublime, e por conseguinte uma ascensão, se bem me compreendes. Mas é óbvio que a matéria suscetível de ser impelida e empurrada, por influências exteriores, em direção a uma esfera mais elevada, necessita para isso ter certas qualidades próprias. E quanto às qualidades que eu possuía, sei muito bem que eram as seguintes: desde muito tempo estava familiarizado com a doença e com a morte, e já nos meus tempos de menino cometi o disparate de te pedir emprestado um lápis, tal como se deu aqui naquela noite de carnaval. Mas o amor disparatado é genial, pois a morte – sabes? – é o princípio genial, a res bina, o lapis philosophorum, e é também o princípio pedagógico, uma vez que o amor a ela conduz ao amor à vida e ao homem. É realmente assim; descobri-o no meu compartimento de sacada, e me sinto feliz por ter uma ocasião de te dizer isso. Há dois caminhos que conduzem à vida: um é o caminho ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e este é o caminho genial.

– És um filósofo abstruso – disse ela. – Não pretendo compreender todos esses teus pensamentos confusos e alemães; mas eles soam humanos, e certamente és um bom rapaz. Doutro lado te comportaste en philosophe, Não há como negá-lo.

– Excessivamente en philosophe, para o teu gosto; não é, Clávdia?

– Deixa de impertinências! Isso começa a ficar maçante. Essa coisa de esperar foi estúpida e ilícita. Mas não me queres mal porque esperaste em vão?

– Hum, foi um pouco duro, Clávdia, mesmo para um homem de paixões fleumáticas. Duro para mim e duro da tua parte, por teres chegado na companhia dele; pois sabias naturalmente por intermédio de Behrens que eu estava aqui à tua espera. Mas eu já te disse que só a considero uma noite de sonho, essa nossa noite, e que te concedo a tua liberdade. Afinal de contas não esperei em vão, já que estás novamente aqui; estamos sentados um perto do outro, como aquela outra vez; ouço a maravilhosa aspereza da tua voz, que há tanto tempo é familiar ao meu ouvido, e sob essa seda flutuante estão os teus braços que conheço – embora lá em cima se ache num ataque de febre o teu companheiro de viagem, o grande Peeperkorn que te deu essas pérolas...

– E com o qual manténs boas relações para o teu próprio proveito.

– Não leves isso a mal, Clávdia! Também Settembrini censurou-me pelo mesmo motivo, mas essa mentalidade não passa de um preconceito convencional. Aquele homem é uma aquisição valiosa. É uma personalidade, ora essa. Que sua idade já seja avançada, vá lá. Mesmo assim acho bem compreensível que tu, como mulher, o ames loucamente. Tens muito amor a ele?

– Rendo homenagem ao teu espírito de filósofo, meu pequeno Hans alemão – disse ela, acariciando-lhe o cabelo –, mas nem por isso acho humano falar-te do amor que tenho por ele.

– Ora, Clávdia, por que não? Creio que o humano começa onde os homens sem gênio pensam que ele termina. Falemos tranqüilamente dele! Tu o amas com paixão?

Ela inclinou-se para a frente, a fim de jogar na lareira o cigarro acabado. Deixou-se então ficar com os braços entrelaçados.

– Ele me ama – respondeu – e seu amor faz com que eu me sinta orgulhosa, grata e dedicada a ele. Tu deves compreender isso, ou não serias digno da amizade que te concede... Seu sentimento obrigou-me a segui-lo e a servi-lo. Como poderia ser diferente? Julga tu mesmo! Achas humanamente possível desprezar os sentimentos dele?

– É impossível – confirmou Hans Castorp. – Não, é lógico que isso não entrava na questão. Que mulher seria capaz de desprezar os sentimentos dele, o temor por esses sentimentos, e de abandoná-lo, por assim dizer, no Getsêmani?

– Não és nada bobo – disse ela, e seus olhos oblíquos imobilizaram-se numa expressão pensativa. – És inteligente. O temor pelos sentimentos...

– Não se precisa muita inteligência para compreender que tinhas de segui-lo, ainda que – ou melhor, porque – no seu amor deve haver muita coisa angustiante.

– C’est exact... Angustiante... A gente tem muitas preocupações por causa dele, sabes? e muitas dificuldades... – Ela pegara a mão do jovem e brincava inconscientemente com as articulações. Mas de repente ergueu o olhar e, com o cenho carregado, perguntou:

– Um momento! Não achas infame falarmos sobre ele desta maneira?

– De modo algum, Clávdia. Não, longe disso! É apenas humano. Tu gostas dessa palavra, que arrastas com uma ênfase fanática. Sempre me interessa ouvi-la pronunciada pela tua boca. Meu primo Joachim detestava-a por motivos militares. Dizia que ela significava indolência e negligência geral, e quando a considero sob esse aspecto, como um irrestrito guazzabuglio de tolerância, também eu não posso deixar de fazer algumas objeções; isso admito francamente. Mas quando ela expressa liberdade, genialidade, bondade, é uma grande coisa, e, segundo me parece, não faz mal que a empreguemos a favor da nossa conversa sobre Peeperkorn e sobre as preocupações e as dificuldades que ele te causa. Claro que elas são a conseqüência da sua mania de pundonor, do medo de que o sentimento possa fracassar, esse medo que o faz amar tanto as dádivas clássicas e os meios de se regalar. Podemos falar disso com toda a reverência, pois nele tudo tem grande envergadura, a envergadura grandiosa de um rei, e nós não aviltamos nem a ele nem a nós próprios fazendo reflexões humanas sobre esse assunto.

– Não se trata de nós – disse ela, voltando a cruzar os braços. – Não seria ser mulher, se, pelo amor de um homem, não se quisesse aceitar também aviltamentos, pelo amor de um homem de grande envergadura, como dizes, e para o qual se é um objeto de sentimentos e do temor pelos sentimentos...

– Perfeitamente, Clávdia. Formulaste isto muito bem. Também o aviltamento tem grande envergadura nesse caso, e a mulher, das alturas do seu aviltamento, pode dirigir-se para os que não têm a envergadura de um rei, e falar-lhes com tanto desdém como tu acabas de fazer, quando te referiste aos timbres-poste, e naquele tom em que me disseste: “Vocês, pelo menos, deveriam ser pessoas eficientes a quem se pudesse sempre recorrer!”

-– És melindroso? Deixa disso! Mandemos às favas todos os melindres! Não estás de acordo? Também eu me melindrei às vezes; quero reconhecê-lo hoje, que nos achamos assim um perto do outro. Irritei-me por causa da tua fleuma e porque te entendias tão bem com ele, só para satisfazeres a tua experiência egoística. E contudo via com prazer e com gratidão que o tratavas com reverência... Havia na tua conduta muita lealdade, e ainda que nela se mesclasse um pouquinho de impertinência, não podia deixar de apreciar essa tua atitude.

– Foi muita bondade da tua parte.

Ela fitou-o.

– Tenho a impressão de que és incorrigível. Vou te dizer uma coisa: és um rapaz malicioso. Não sei se tens espírito, mas indiscutivelmente és cheio de malícia. Aliás, não faz mal nenhum; isso se pode suportar. Pode-se até manter amizade com uma pessoa assim. Queres que mantenhamos amizade? Que façamos uma aliança a favor dele, assim como normalmente se faz contra alguém? Queres dar-me a tua mão para selar isso? Muitas vezes me sinto angustiada... Acontece que eu sinto medo de estar a sós com ele, medo da solidão interior, tu sais... É angustiante mesmo... Às vezes receio que ele acabe mal... Às vezes fico horrorizada... Eu gostaria de ter a meu lado um homem bom... Enfin, se te interessa saber, talvez seja por causa disso que voltei para cá com ele...

Seus joelhos se tocavam, enquanto estavam sentados assim, ele na cadeira inclinada para a frente, e ela no banquinho. Ao proferir essas últimas palavras bem perto do rosto dele, ela lhe apertara a mão.

– Por mim? – exclamou ele. – Mas isso é maravilhoso! É realmente extraordinário! Ó Clávdia, então voltaste para cá, com ele, porque eu estava aqui? E queres ainda pretender que a minha espera foi estúpida, ilícita e totalmente vã? Seria muito mesquinho da minha parte, se eu não soubesse apreciar o oferecimento da tua amizade, da amizade contigo e por ele...

Foi então que ela o beijou na boca. Era um daqueles beijos russos, do tipo dos que se trocam nesse vasto país cheio de alma, nas mais importantes festas cristãs, como uma consagração do amor. No nosso caso, porém, esse beijo foi trocado entre um jovem notoriamente “malicioso” e uma mulher também jovem, de andar sedutoramente felino; e enquanto descrevemos essa cena, não podemos deixar de pensar, sem querer, e de um modo vago, na maneira engenhosa, embora um tanto suspeita, pela qual o Dr. Krokowski costumava falar do amor num sentido ligeiramente ambíguo, de modo que ninguém sabia com certeza se se referia a um assunto piedoso ou a algo físico, passional. E nós não fazemos o mesmo, ou talvez o fizessem Hans Castorp e Clávdia Chauchat, quando trocavam esse beijo russo? Ora, que diria o leitor, se nos recusássemos redondamente a resolver esse problema? A nosso ver, seria um procedimento analítico, mas – para repetir a expressão de Hans Castorp – “muito mesquinho” e francamente hostil à vida, fazer, em matéria de amor, uma distinção “limpa” entre elementos piedosos e elementos passionais. Que significaria “limpo” nesse caso? E o que “sentido ambíguo” e “caráter equívoco”? Ridicularizamos abertamente esses conceitos. Não será bom e grande o fato de a língua não possuir senão uma única palavra para tudo quanto aquilo pode abranger, desde o sentimento mais piedoso até o desejo mais carnal? O equívoco torna-se, pois, plenamente unívoco, uma vez que o amor não pode ser separado do corpo, nem sequer no auge da piedade, como não é ímpio nem nos momentos de carnalidade extrema. O amor continua sempre sendo ele mesmo, tanto sob a forma de conduta amistosa em face da vida, como sob a forma da mais sublime paixão; é a simpatia pela espera orgânica, o abraço comoventemente voluptuoso daquilo cujo destino é apodrecer. Decerto há caritas até na paixão mais furiosa e na paixão mais reverente. Sentido ambíguo? Pois que seja ambíguo o sentido do amor! Nessa indistinção se manifestam a vida e a humanidade. Revelaríamos uma desoladora falta de “malícia” se nos inquietássemos diante dessa ambigüidade.

Enquanto os lábios de Hans Castorp e de Mme. Chauchat se encontram juntos no beijo russo, apagamos as luzes do nosso pequeno teatro, para mudança de cena. Pois agora trataremos do segundo dos dois diálogos que prometemos relatar. Restabelecida a iluminação, a iluminação crepuscular de uma tardezinha de primavera, na época do degelo, deparamos com o nosso herói numa situação que já nos é familiar, à beira da cama do grande Peeperkorn, palestrando com ele submissa e amigavelmente. Ao chá das quatro horas, servido no refeitório, Mme. Chauchat comparecera sozinha, como já se dera nas três refeições anteriores, e logo depois se encaminhara a Davos-Platz para efetuar algumas compras. Diante disso Hans Castorp fizera anunciar ao holandês uma das suas costumeiras visitas, em parte para mostrar-se atencioso e para distrai-lo um pouco, em parte para edificar-se com a irradiação dessa personalidade; numa palavra: por motivos tão ambíguos como a vida. Peeperkorn pôs o Telegraaf de lado, pegou pelo arco o pincenê de aros de chifre e atirou-o em cima do jornal. A seguir estendeu ao visitante a mão de capitão, enquanto os lábios largos e gretados se moviam vagamente, com uma expressão dolorosa. Como sempre, tinha a seu alcance vinho tinto e café. O serviço de café achava-se numa cadeira junto à cama, e o fundo pardo da xícara deixava perceber que fora usada havia pouco. Mynheer acabava de tomar o trago de todas as tardes, forte e quente, com açúcar e creme que o fazia transpirar. O rosto de rei, emoldurado de labaredas brancas, estava corado, com pequenas bagas de suor assomando na testa e no lábio superior.

– Estou suado – disse. – Seja bem-vindo, jovem. Pelo contrário! Sente-se! É um sinal de fraqueza, quando a gente, logo depois de ter ingerido uma bebida quente, começa a... Tenha a bondade de... Sim, senhor. O lenço. Muito obrigado. – A cor vermelha do rosto ia desaparecendo rapidamente, dando lugar àquele palor amarelado que depois de um ataque de febre maligna costumava cobrir o rosto desse homem soberbo. A quarta fora muito violenta durante a manhã, com as suas três fases, a fria, a abrasadora e a úmida. Os olhinhos apagados de Peeperkorn pareciam cansados, sob o enrugamento da fronte, que lhe dava o aspecto de um ídolo.

– Meu caro jovem – continuou ele –, é sumamente... Eu queria expressar a minha... Absolutamente. É muito gentil da sua parte dar a um velhote enfermo o prazer da sua...

– Da minha visita? – perguntou Hans Castorp. – De maneira alguma, Mynheer Peeperkorn. Quem deve agradecer sou eu, por ter uma oportunidade de me sentar aqui. Pois eu tiro muito mais proveito dessa visita do que o senhor. Venho por razões puramente egoísticas. Mas como pode o senhor qualificar-se de “velhote enfermo”? Ninguém seria capaz de adivinhar que isso se refere à sua pessoa. Está traçando de si uma imagem completamente falsa.

– Está bem – respondeu Peeperkorn, e fechou os olhos por alguns instantes, recostando no travesseiro a majestosa cabeça com o queixo erguido. Os dedos com as unhas compridas jaziam entrelaçados sobre o amplo peito de rei, que se delineava sob a camisola de malha. – Está bem, jovem. Ou melhor: suas intenções são boas; disso não duvido. Estava agradável ontem de tarde – pois sim, foi recém-ontem – naquele lugar hospitaleiro... me esqueci do nome ... lá onde comemos o delicioso salame com ovos mexidos e com esse vinho saudável da terra...

– Foi uma maravilha! – confirmou Hans Castorp. – Nós todos saboreamos esse prato de um modo vergonhoso. O mestre de cozinha do Berghof ficaria ofendido e com razão, se nos tivesse visto. Todos, sem exceção, entramos de rijo a comer! Era um salame de lei. O Sr. Settembrini estava até comovido e comia-o por assim dizer, com os olhos cheios de lágrimas. É um patriota, como o senhor deve saber, um patriota democrático. Consagrou a sua lança de cidadão sobre o altar da humanidade, para que de futuro os direitos alfandegários do salame sejam pagos na fronteira do Brenner.

– Isto não tem importância – declarou Peeperkorn. – É um homem distinto, que sabe conversar de forma alegre; um perfeito cavalheiro, ainda que não lhe seja dado mudar de roupa com muita freqüência.

– Não lhe é dado de modo algum – disse Hans Castorp. – De modo algum! Já o conheço faz muito tempo e me dou bem com ele; quero dizer que ele se interessa por mim de uma maneira pela qual lhe devo a minha maior gratidão, só porque achava que eu era um “filho enfermiço da vida”; é uma dessas locuções que empregamos entre nós, e que terceiros não podem compreender sem explicação. Settembrini dá-se o trabalho de exercer sobre mim uma influência corretiva. Mas nunca, nem no verão nem no inverno, o vi em outros trajes que não aquelas calças de tecido xadrez e o jaquetão puído. Ele usa, aliás, essas roupas velhas com uma correção notável, de modo muitíssimo distinto. Nesse ponto concordo inteiramente com o senhor. A maneira como se veste é um triunfo sobre a pobreza, e quanto a mim, prefiro essa pobreza à própria elegância do pequeno Naphta, em face da qual nunca me sinto muito à vontade, porque ela é o Diabo, em certo sentido, e os recursos necessários para ela lhe vêm de uma fonte escusa; estou mais ou menos bem informado a respeito da sua situação.

– É um homem distinto e alegre – repetiu Peeperkorn, passando por cima da observação que Hans Castorp fizera com referência a Naphta – ainda que – permita-me esta restrição – ainda que não esteja livre de preconceitos. Madame, a minha companheira de viagem, não o aprecia muito, como o senhor talvez tenha notado. Fala dele sem simpatia, indubitavelmente porque esses preconceitos se manifestam na atitude que ele toma para com ela. Nenhuma palavra, jovem! Quanto ao Sr. Settembrini e aos sentimentos amistosos que o senhor tem por ele, estou longe de... Basta! Nem penso em afirmar que, em relação àquela cortesia que um cavalheiro deve a uma dama, ele possa jamais... Perfeito, meu caro amigo, irrepreensível! Mas existem ali um limite, uma reserva, uma certa es-qui-van-ça que tornam a animosidade de madame contra ele, humanamente falando, muito...

– Compreensível. Que a tornam natural. Que a justificam plenamente. Desculpe, Mynheer Peeperkorn, que eu tenha tomado a liberdade de terminar a sua frase. Pude arriscar-me a isso na certeza de estar inteiramente de acordo com o senhor. Sobretudo quem considera o quanto as mulheres – o senhor talvez se ria porque eu, com a minha pouca idade, falo das mulheres de modo generalizado –, quem considera o quanto as mulheres, na sua conduta, perante o homem, dependem do modo como o homem se conduz para com elas, não se pode admirar. As mulheres – é assim que eu gostaria de formular a idéia – são criaturas reativas, sem iniciativa própria, criaturas indolentes, no sentido de passivas... Permita-me, por favor, que eu desenvolva, embora sem habilidade, esse meu ponto de vista. A mulher, pelo que pude observar, considera-se, nos assuntos amorosos, em primeira linha como simples objeto; espera que os acontecimentos cheguem até ela; não escolhe livremente; só chega a escolher à base da escolha prévia do homem e mesmo então – deixe que eu acrescente ainda isto – a liberdade da sua escolha é restrita e influenciada pelo fato de ela ter sido escolhida, a não ser que se trate de um espécime excessivamente mísero de homem; e nem essa condição vigora em todos os casos... Deus meu, acho que as coisas que digo são banalidades, mas quando somos jovens tudo nos parece novo, novo e surpreendente. Pergunte a uma mulher: “Você o ama?” e ela lhe responderá, com os olhos erguidos ou mesmo baixos: “Ele me ama tanto!” Agora imagine uma resposta dessas na boca de um de nós. (Perdoe-me por me ter posto no mesmo plano com o senhor!) Talvez haja homens que devem responder dessa forma, mas se tornariam perfeitamente ridículos, seriam vassalos do amor feminino, para me expressar de uma forma epigramática. Eu desejaria saber que importância se atribui uma mulher que dá aquela resposta. Será que julga dever uma dedicação sem limites ao homem que concede a uma criatura tão humilde o favor da sua escolha amorosa, ou vê ela no amor que o homem tem à sua pessoa um sinal infalível da perfeição dele? Ventilei esse problema muitas vezes nas minhas horas solitárias.

– São os primórdios das coisas, são fatos clássicos, meu caro jovem! Suas palavras singelas e fluentes tocam em fundamentos sagrados – replicou Peeperkorn. – O homem é embriagado pelo seu próprio desejo; a mulher exige e espera ser embriagada pelo desejo dele. Disso nos provém a obrigação de sentir. Daí resulta a pavorosa ignomínia da insensibilidade, da impotência de tornar a mulher capaz de desejar. O senhor toma uma taça de vinho tinto em minha companhia? Eu tomarei. Estou com sede. Perdi muita água hoje.

– Muito obrigado, Mynheer Peeperkorn. Embora eu não tenha o hábito de beber a esta hora, estou sempre disposto a tomar um trago à sua saúde.

– Então sirva-se da taça. Temos uma só. Eu me arranjarei com o copo de lavar dentes. Acho que este zurrapa não se ofenderá, quando for bebido de um recipiente simples... – Com a mão de capitão levemente trêmula, encheu os copos, ajudado pelo visitante, e avidamente esvaziou o seu. O vinho tinto descia-lhe pela garganta escultural como se fosse água pura.

– Isso refresca – disse ele. – O senhor não bebe mais nada? Então permita que eu tome mais um... – Derramou um pouco de vinho ao encher o copo. O lençol de cima estava salpicado de manchas vermelho-escuras. – Eu repito – prosseguiu com o dedo indicador em riste, enquanto na outra mão tremia o copo cheio –, repito: daí resulta a nossa obrigação, o nosso dever religioso de sentir. Nosso sentimento – compreende? – é a força viril que desperta a vida. A vida está dormindo. Quer ser acordada para celebrar bodas orgiásticas com o sentimento divino. Pois o sentimento, jovem, é divino. O homem é divino, desde que sente. É o sentimento de Deus. Deus o criou para sentir por intermédio dele. O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria. O homem que fracassasse quanto ao sentimento aviltaria a Deus, seria a causa da derrota da força viril de Deus, a causa de uma catástrofe cósmica, de um horror inimaginável... – Tornou a beber.

– Deixe que eu segure o copo, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp. – Acho muito instrutivo seguir o curso dos seus pensamentos. O senhor acaba de desenvolver uma teoria teológica na qual atribui ao homem uma função religiosa muito digna, se bem que, talvez, um pouco unilateral. Nas suas idéias, se me posso permitir esta observação, há um certo rigorismo que é – perdoe-me – que é angustiante. Todo rigor religioso é por natureza angustiante para pessoas de uma envergadura mais modesta. Nem penso em me atrever a corrigir o senhor, mas queria apenas desviá-lo desses problemas e voltar ao que o senhor disse acerca de certos “preconceitos” que, segundo a sua opinião, o Sr. Settembrini tem com referência a madame, sua companheira de viagem. Não é de ontem que conheço o Sr. Settembrini; conheço-o faz muito tempo, há anos e anos. E posso lhe assegurar que os seus preconceitos – se é que existem – não são em absoluto os preconceitos mesquinhos de um pequeno burguês. No caso dele só se pode tratar de preconceitos de um estilo mais elevado e por conseguinte de caráter impessoal, de princípios pedagógicos gerais, que o Sr. Settembrini defende, visando, para falar com franqueza, a mim, na minha qualidade de “filho enfermiço da vida”... Mas isso nos leva muito longe. É um assunto excessivamente vasto para que poucas palavras o possam...

– E o senhor ama madame? – perguntou Mynheer de repente, voltando para o visitante o rosto de soberano, com a boca dolorosa e gretada e com os olhinhos apagados sob os arabescos drapejados da fronte... Hans Castorp sobressaltou-se. Balbuciando, respondeu:

– Se eu... Quer dizer... Sinto naturalmente grande respeito por Mme. Chauchat, já pelo fato de ela ser...

– Por favor! – disse Peeperkorn, refreando-o com um esmerado gesto da mão estendida e obtendo, desta forma, o necessário “espaço” para as palavras que tencionava pronunciar. – Permita-me – continuou –, deixe-me repetir que estou longe de culpar esse senhor italiano por uma infração real das leis do cavalheirismo... Não acuso ninguém de tal infração, ninguém! Mas notei... Neste momento, por exemplo, tenho o prazer de... Bem, meu caro jovem! Está tudo muito bem. Tenho nisso grande prazer; não se discute; de fato me é sumamente agradável. Mesmo assim digo de mim para mim... Numa palavra, digo de mim para mim: o senhor conhece madame há mais tempo do que eu. Já esteve aqui com ela na outra temporada. Além disso, madame é uma mulher cheia de encantos, e eu sou apenas um velhote enfermo. Como se explica então... Por eu estar indisposto, ela desceu hoje de tarde à vila para fazer compras, sozinha e sem ninguém que a acompanhasse... Não há mal nenhum nisso. Absolutamente! Mas não há dúvida de que seria... Será que devo atribuir à influência dos – como se expressou o senhor? – dos princípios pedagógicos do Signor Settembrini o fato de o senhor não ter seguido o impulso cavalheiresco... Peço que me entenda literalmente...

– Literalmente, Mynheer Peeperkorn. Não, senhor. Nem um pouquinho. Agi espontaneamente. Pelo contrário, em certa ocasião o Sr. Settembrini até me... Mynheer Peeperkorn, lastimo ver no seu lençol umas manchas de vinho. Não acha que se deveria... Lá em casa costumavam pôr sal, enquanto a mancha estava fresca...

– Isso não tem importância – volveu Peeperkorn, sem perder de vista o visitante.

Hans Castorp corou.

– As coisas – prosseguiu com um sorriso amarelo – apresentam-se aqui sob um aspecto diferente do normal. O espírito que reina neste lugar, se me posso expressar assim, não é o espírito convencional. O doente tem a primazia, quer seja homem quer seja mulher. O senhor está passageiramente indisposto, Mynheer Peeperkorn. Trata-se de uma indisposição aguda, de uma coisa atual. A sua companheira de viagem está melhor, em comparação. Creio agir de acordo com as intenções de madame, quando na ausência dela o substituo um pouquinho aqui – se é que num caso desses pode haver substituição, ah, ah – em vez de representar o senhor junto dela e de lhe oferecer a minha companhia no caminho para a vila. Com que direito imporia eu os meus serviços de cavalheiro à sua companheira de viagem? Para isso me faltam títulos e autorização. Posso afirmar que tenho um senso sadio dos direitos positivos. Numa palavra, acho que a minha situação é correta; ela corresponde ao estado geral das coisas, e sobretudo corresponde aos sentimentos sinceros que tenho pela sua pessoa, Mynheer Peeperkorn. Com isso creio que a sua pergunta – o senhor acaba de fazer uma pergunta, não? – recebeu uma resposta satisfatória.

– Uma resposta muito agradável – replicou Peeperkorn. – Ouço com sincero prazer as suas frases leves e ágeis, meu caro jovem. Elas saltam por cima de todos os obstáculos, e removem de um modo simpático as arestas das coisas. Mas satisfatória? Não, a sua resposta não me satisfaz. Desculpe-me se com isso lhe causo uma decepção. “Rigoroso”, meu caro amigo! Há poucos instantes o senhor empregou esse termo com referência a certas concepções que eu acabava de expor. Mas também nas suas palavras há um certo rigorismo, uma austeridade, uma atitude forçada, que não me parecem em harmonia com a sua natureza, se bem que, em certo sentido, já os tenha encontrado na sua conduta. Durante os nossos passeios e outros empreendimentos que realizamos em comum, o senhor costuma tomar essa mesma atitude em face de madame, e de mais ninguém. Isto o senhor me deve explicar. É um dever, jovem, uma obrigação! Não me engano. Vi a minha observação confirmada em muitas ocasiões. É improvável que outras pessoas não a tenham feito também, com a única diferença de que elas talvez, ou mesmo provavelmente, saibam a razão desse fenômeno.

Essa tarde, Mynheer proferia períodos extraordinariamente precisos e acabados, apesar do cansaço causado pela febre maligna. Quase não havia incoerências. Meio sentado na cama, voltava para o visitante os imponentes ombros e a grandiosa cabeça; estendia um dos braços por cima da colcha, e a mão sardenta de capitão, saindo verticalmente do punho da manga de lã, exibia aquele característico anel da exatidão, flanqueado pelos dedos lanciformes, enquanto a boca formava frases tão claras, tão incisivas e mesmo tão plásticas, que o próprio Sr. Settembrini deveria ter ficado contente. Os “erres” de palavras como “provavelmente” ou “razão” eram guturais e carregados.

– O senhor está sorrindo – continuou. – Pisca os olhos e vira a cabeça de cá para lá. Parece entregar-se a reflexões sem resultado positivo. E todavia não há nenhuma dúvida de que sabe a que me refiro e de que se trata. Não quero dizer que nunca dirija a palavra a madame ou lhe fique devendo a resposta, quando a ocasião requer o contrário. Mas repito que o faz de modo forçado, ou para ser mais exato: esquiva-se, evita alguma coisa, e quando se observa mais de perto, vê-se que esta coisa é um determinado tratamento. Quanto ao seu procedimento, tem-se a impressão de que o senhor fez uma aposta, de que partilhou uma filipina com madame, e não pode, segundo as condições estipuladas, dirigir-lhe diretamente a palavra. Como conseqüência lógica disso, evita qualquer forma de tratamento. Nunca lhe diz “a senhora”.

– Mas, Mynheer Peeperkorn... Que filipina seria essa?

– Posso chamar a sua atenção para o fato que o senhor certamente notou também: acaba de empalidecer até os lábios.

Hans Castorp não ergueu o olhar. Inclinado para a frente, ocupava-se intensamente com as manchas vermelhas no lençol. “Isso tinha que acontecer!”, pensou. “Tudo tendia nessa direção. Acho que eu mesmo fiz o que estava a meu alcance para que chegássemos a este ponto. Em certo sentido, tinha isso em mira, como percebo agora. Será que realmente empalideci? É possível, porque está iminente o momento decisivo. Não se sabe o que acontecerá. Posso ainda mentir? Poderia, mas não quero. Por enquanto continuarei olhando essas manchas de sangue, essas manchas de vinho tinto no lençol...”

De cima dele também não vinha palavra alguma. O silêncio prolongou-se por dois ou três minutos, tornando perceptível a enorme extensão que essas unidades minúsculas podem adquirir em tais circunstâncias.

Quem reencetou a conversa foi Pieter Peeperkorn.

– Naquela noite em que tive o prazer de travar conhecimento com o senhor – começou em tom cantante, baixando a voz como se terminasse a primeira frase de uma longa história. – Acabávamos de celebrar uma pequena festa. Havíamos saboreado comidas e bebidas. A altas horas da noite, numa disposição animada, com o espírito livre e empreendedor, dirigíamo-nos, de braços dados, para os nossos quartos. Sucedeu então o seguinte: diante desta minha porta, no momento da despedida, ocorreu-me a idéia de convidar o senhor a tocar com os lábios a fronte da mulher que o tinha apresentado a mim como um bom amigo de uma temporada anterior, e de deixar ao critério dela se queria retribuir, na minha presença, esse ato solene e alegre, como consagração da hora sublime. O senhor rejeitou redondamente a minha sugestão; rejeitou-a alegando que lhe parecia absurdo trocar beijos na fronte com a minha companheira de viagem. O senhor não vai negar que aquilo era uma explicação que por sua vez necessitava de um comentário, e esse comentário o senhor me ficou devendo até agora. Está o senhor disposto a pagar essa dívida?

“Ora, ora, ele percebeu até isso”, pensou Hans Castorp e pôs-se a estudar ainda mais intensamente as manchas de vinho, chegando até a arranhar uma com a ponta curva do dedo médio. “Pode ser que naquele instante eu desejasse, no fundo do coração, que ele percebesse e tomasse nota do fato. Caso contrário, eu não teria dito essas coisas. Mas que haverá agora? Meu coração bate violentamente. Terei de enfrentar uma enorme explosão de fúria real? Quem sabe se eu não faria bem em vigiar o seu punho, que talvez já esteja erguido por cima da minha cabeça? Uma situação esquisitíssima e sumamente crítica, essa em que me encontro.”

De chofre sentiu a mão de Peeperkorn agarrar-lhe o pulso direito.

“Agora me pega pelo pulso!”, pensou. “Que bobagem, ora essa! Por que me comporto aqui como um cão surrado? Cometi alguma falta contra ele? Nenhuma. O primeiro que teria direito de se queixar seria aquele homem em Daghestan. E depois mais este ou aquele. E finalmente eu mesmo. Ao que saiba, ele não tem motivo nenhum para queixar-se. Pois então, por que meu coração bate tanto? Já é tempo que me aprume e olhe franca, mas também reverentemente, para o seu rosto majestoso.”

Foi o que fez. O rosto majestoso estava amarelo. Os olhos pareciam apagados sob o enrugamento içado da testa. Os lábios gretados mostravam uma expressão amarga. Um lia nos olhos do outro, o grande ancião e o jovem insignificante, enquanto um prosseguia segurando o pulso do outro. Finalmente Peeperkorn disse em voz baixa:

– O senhor foi amante de Clávdia durante a outra temporada.

Hans Castorp mais uma vez inclinou a cabeça, mas logo voltou a levantá-la, respondendo, depois de respirar profundamente:

– Mynheer Peeperkorn! Repugna-me no mais alto grau mentir-lhe. Esforço-me por encontrar uma possibilidade de evitar esse recurso. Não é fácil. Eu exageraria se confirmasse o que o senhor acaba de dizer, e mentiria se o negasse. Isso se explica assim: durante muito tempo, durante muitíssimo tempo mesmo vivi nesta casa com Clávdia – perdão! – com a sua atual companheira de viagem, sem conhecê-la no sentido convencional. A convenção não tinha lugar nas nossas relações, ou melhor: nas minhas relações com ela, sobre as quais quero acrescentar que sua origem está envolta em obscuridade. Nos meus pensamentos, nunca tratei Clávdia de outra forma a não ser de “tu”, e tampouco o fiz em realidade. Pois aquela noite em que me desembaracei de certas peias pedagógicas que mencionei de passagem, e me aproximei dela, sob um pretexto que um fato longínquo me sugeria, era uma noite de mascarada, noite de carnaval, noite sem responsabilidade, noite do “tu”, em cujo decorrer esse “tu” adquiriu, inconscientemente e como num sonho, a plenitude do seu significado. Ao mesmo tempo, porém, era a véspera da partida de Clávdia.

– A plenitude do seu significado – repetiu Peeperkorn. – O senhor disse isso de forma muito gentil... – Soltou o pulso de Hans Castorp, e com as palmas das mãos de capitão, de unhas compridas, começou a esfregar ambos os lados do rosto, as órbitas, as bochechas e o queixo. A seguir juntou as mãos sobre o lençol enlaivado de vinho e voltou a cabeça para a esquerda, a direção onde se achava o visitante, parecendo, contudo, desviar o rosto.

– Respondi-lhe com a maior clareza possível, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp –, e procurei escrupulosamente não dizer nem de menos nem de mais. O que mais me importava era fazer-lhe notar que, sob certo aspecto, se tem plena liberdade de levar ou não levar em conta aquela noite, a noite do “tu” consumado e da despedida; fazer notar que essa noite se achava completamente fora do normal e quase que fora do calendário, um hors d’oeuvre, por assim dizer, uma noite extra, noite bissexta, 29 de fevereiro, e que, por conseguinte, seria apenas meia mentira se eu negasse o que o senhor acaba de afirmar.

Peeperkorn não deu resposta.

– Preferi – recomeçou Hans Castorp depois de uma pequena pausa – falar a verdade, não obstante o perigo de perder assim as suas simpatias, o que, digo francamente, seria para mim uma perda sensível; posso assegurar que seria um golpe, um verdadeiro golpe, que bem se poderia comparar com aquele que significou para mim o fato de Mme. Chauchat não voltar sozinha, mas como sua companheira de viagem. Arrisquei correr esse perigo, porque desde muito desejava que houvesse clareza entre nós, entre o senhor, por quem sinto tão extraordinário respeito, e a minha pessoa; isso me parecia mais bonito e mais humano... O senhor conhece o modo como Clávdia pronuncia essa palavra, com aquela sua voz encantadoramente velada, arrastando-a com tanta graça... Bem, isso me parecia mais humano do que a discrição ou o fingimento. Sob esse aspecto experimentei grande alívio quando o senhor há pouco fez aquela afirmação.

Nenhuma resposta.

– Não é só isso, Mynheer Peeperkorn – prosseguiu Hans Castorp. – Há mais uma coisa que me inspirou o desejo de lhe falar com toda a franqueza. Trata-se da experiência pessoal que me ensinou quão irritantes são, numa situação dessas, a incerteza e a necessidade de se guiar por conjecturas. Agora o senhor é que sabe com quem Clávdia – antes de se estabelecer a atual situação de direito, que seria a mais rematada loucura desrespeitar – teve, ou passou, ou cometeu... sim, cometeu um... um dia 29 de fevereiro. Eu por mim nunca cheguei a adquirir essa clareza, apesar de me dar conta de que todos os que tenham ensejo de refletir sobre essas coisas devem incluir nos seus cálculos esse tipo de precedentes, o que no fundo quer dizer predecessores, e apesar de saber, além disso, que o Conselheiro Behrens, o qual, como o senhor talvez não ignora, é pintor diletante, fez dela, no curso de muitas sessões, um excelente retrato a óleo, com uma representação tão realística da pele que existem, cá entre nós, motivos de sobra para suspeitas. Aquilo me causou muitos tormentos e muita dor de cabeça, e ainda hoje causa.

– O senhor ainda a ama? – perguntou Peeperkorn, sem mudar de posição, isto é, com o rosto desviado... O quarto espaçoso ia desaparecendo mais e mais na penumbra.

– Perdão, Mynheer Peeperkorn – replicou Hans Castorp –, mas os sentimentos que nutro pelo senhor, sentimentos da mais alta estima e admiração, não me permitiriam falar-lhe dos sentimentos que nutro pela sua companheira de viagem.

– E ainda hoje – perguntou Peeperkorn em voz abafada – ela continua a corresponder a esses sentimentos?

– Não digo – tornou Hans Castorp –, não digo que em algum momento tenha correspondido a eles. Isso me parece pouco provável. Acabamos de frisar esse assunto teoricamente quando tratamos da natureza reativa das mulheres. Claro que na minha pessoa não há muita coisa que se possa amar. Que envergadura tenho eu? Julgue o senhor mesmo! A possibilidade de um... de um dia 29 de fevereiro só pode ser atribuída ao fato de a mulher se deixar influenciar pela escolha prévia do homem. Quero acrescentar que tenho a impressão de cometer um ato de vaidade e de mau gosto, quando falo de mim como de um “homem”, mas Clávdia é indiscutivelmente mulher.

– Ela obedeceu aos seus sentimentos – murmuraram os lábios gretados de Peeperkorn.

– Como o fez no caso do senhor, com muito mais obediência ainda – retrucou Hans Castorp – e como, segundo todas as probabilidades, já o deve ter feito umas quantas vezes... Disso se devem dar conta os que têm ensejo de...

– Um momento! – disse Peeperkorn, continuando com os olhos desviados, mas detendo o seu interlocutor com um gesto da palma da mão. – O senhor não acha infame falarmos assim sobre ela?

– Não acho, Mynheer Peeperkorn. Não, senhor, nesse ponto me parece que o posso tranqüilizar completamente. Estamos falando de coisas humanas – humanas no sentido da genialidade e da liberdade. Desculpe essa expressão que talvez seja um pouco pomposa; mas uma emergência, há poucos dias, me fez lançar mão dela.

– Está bem. Continue! – ordenou Peeperkorn, baixinho.

Também Hans Castorp abafava a voz. Sentado na borda da cadeira, junto à cama, com as mãos apertadas entre os joelhos, inclinava-se para o ancião majestoso.

– Pois ela é uma criatura genial – disse – e aquele homem que vive lá além do Cáucaso – o senhor deve saber que ela tem um marido por lá – permite-lhe a liberdade, a genialidade, seja por embotamento, seja por inteligência. Não sei dizê-lo, porque não conheço aquele sujeito. Em todo caso anda acertado fazendo-lhe essa concessão, já que é a doença que a torna livre, o princípio genial da doença, ao qual ela está sujeita. E quem tiver ensejo de fazê-lo estará certo em imitar o exemplo dele, sem se queixar nem do passado nem do futuro...

– O senhor não se queixa? – perguntou Peeperkorn, voltando o rosto para o jovem... Parecia pálido na penumbra, com o olhar fixo, apagado e lasso, sob as rugas da fronte que lhe davam a aparência de um ídolo. A boca ampla, gretada, estava semi-aberta, como numa máscara trágica.

– Eu não pensava – respondeu Hans Castorp com modéstia – que se tratasse de mim. Minhas palavras tinham por objetivo evitar que o senhor se queixasse, Mynheer Peeperkorn, e que me privasse da sua benevolência, por causa de ocorrências passadas. É isso o que me preocupa nesta hora.

– Mesmo assim – disse Peeperkorn – deve ter sido uma dor profunda aquela que lhe causei sem saber.

– Se isto é uma pergunta – volveu Hans Castorp – e se dou uma resposta afirmativa, isso não significa de forma alguma que eu não saiba apreciar o enorme privilégio de conhecê-lo, uma vez que esse privilégio não pode ser separado da decepção a que se refere.

– Obrigado, jovem, obrigado. Gosto da gentileza das suas palavras ágeis. Mas, abstração feita das nossas relações...

– É difícil fazer abstração delas – disse Hans Castorp – e também não preciso fazê-la, para responder à sua pergunta com um simples “sim”. Pois o fato de ter Clávdia voltado em companhia de uma personalidade da envergadura do senhor só podia aumentar e complicar o desgosto que constituía para mim a própria circunstância de ela ter voltado em companhia de um homem. Esse fato me deu muito que fazer e continua dando até hoje; não o nego. De propósito me empenhei o mais que pude em ver o lado positivo da coisa, quer dizer: os sentimentos de sincera reverência que tenho pelo senhor, Mynheer Peeperkorn. Isso incluía, aliás, uma pequena malícia contra a sua companheira de viagem; pois as mulheres absolutamente não gostam de que os seus amantes se entendam.

– De fato... – disse Peeperkorn, e escondeu um sorriso, passando a mão em concha por sobre a boca e o queixo, como se houvesse o perigo de Mme. Chauchat vê-lo sorrir. Também Hans Castorp esboçou um sorriso discreto, e a seguir ambos sacudiram a cabeça num entendimento tácito.

– Afinal de contas – prosseguiu Hans Castorp –, eu tinha direito a essa pequena vingança; pois, quanto a mim, não me faltam motivos para me queixar, não de Clávdia, nem tampouco do senhor, Mynheer Peeperkorn, mas num sentido geral, por causa da minha vida e do meu destino. Uma vez que tenho a honra de gozar da, sua confiança, e que essa hora crepuscular é tão agradável, quero pelo menos esboçar esses motivos.

– Pois não – disse Peeperkorn cortesmente, e Hans Castorp continuou:

– Estou aqui em cima faz muito tempo, Mynheer Peeperkorn, há vários anos já, nem sei dizer quantos. Mas são anos da minha vida, e por isso mencionei a “vida”, assim como também voltarei oportunamente a falar do “destino”. Meu primo, ao qual eu desejava fazer uma pequena visita, um militar com intenções decentes e honradas, que no entanto pouco lhe adiantaram, meu primo foi-me arrebatado, e eu continuo aqui. Eu não era soldado; tinha uma profissão civil, como o senhor talvez tenha ouvido falar, uma profissão sólida e sensata, que, segundo dizem, tem até funções de ligar os povos entre si. Não nego que nunca tenha sentido uma afeição especial por ela, e isso por razões sobre as quais só quero dizer que se acham envoltas em obscuridade. Acham-se ali lado a lado com as origens dos sentimentos que tenho pela sua companheira de viagem – sirvo-me desse termo para demonstrar expressamente que nem penso em discutir direitos adquiridos –, meus sentimentos por Clávdia Chauchat e o tratamento de “tu” que lhe dou no meu íntimo, como nunca deixei de fazer, desde que os olhos dela encontraram os meus pela primeira vez, enfeitiçando-me imediatamente. Enfeitiçando-me num sentido insensato, compreende? Por amor a ela, a despeito do Sr. Settembrini, sujeitei-me ao princípio oposto à razão, ao princípio genial da doença, ao qual talvez já tenha estado sujeito desde muito ou desde sempre. Fiquei aqui em cima, já não sei com certeza há quanto tempo. Esqueci tudo e me desliguei de tudo, dos meus parentes, e da minha profissão, e do meu futuro na planície. E quando Clávdia partiu, esperei por ela, esperei sempre aqui em cima, de modo que estou perdido para a planície, que me considera morto. Era isso que eu tinha em mente, quando me referi ao “destino” e tomei a liberdade de alegar que eu enfim tinha certo direito de me queixar da atual situação jurídica. Certa vez li uma história... Não, vi-a no teatro. Havia lá um rapaz que não fazia mal a ninguém. Era, aliás, um soldado, tal qual meu primo. Trava conhecimento com uma encantadora cigana, um verdadeiro encanto de mulher fatal e selvagem, com uma flor atrás da orelha, e ela domina-o de tal maneira que o rapaz se desnorteia completamente e chega a sacrificar-lhe tudo, a desertar das fileiras, a associar-se em sua companhia a um bando de contrabandistas, e a desonrar-se sob todos os aspectos. Ao cabo de tudo isso, ela se cansa dele e arranja um toureiro de personalidade poderosa com uma magnífica voz de barítono. A história termina assim: o soldadinho, com o rosto branco que nem giz, e com a camisa aberta, esfaqueia-a em frente a um circo. Por outro lado, a mulher o havia provocado a esse ato. É uma história que não vem ao caso, essa que acabo de contar. Mas, afinal, por que me ocorreu?

Quando Hans Castorp falara em “esfaquear”, Peeperkorn modificara a sua posição semi-sentada. Retrocedera um pouco na cama, voltando rapidamente o rosto ao visitante e lançando nele um olhar perscrutador. A seguir, empertigou-se, apoiado no cotovelo, e disse:

– Jovem, ouvi as suas palavras e agora estou a par de tudo. Permita que, à base do que me comunicou, lhe ofereça uma explicação leal! Se os meus cabelos não fossem brancos e eu não me achasse acometido por uma febre maligna, o senhor me veria disposto a dar-lhe, de homem para homem, com a arma na mão, satisfação pelo mal que lhe causei sem saber, e ao mesmo tempo pelo outro que lhe infligiu a minha companheira de viagem, e do qual também lhe devo contas. Perfeitamente. O senhor me veria disposto. Mas, sendo as coisas como são, permita que eu lhe faça uma outra proposta. Trata-se do seguinte: lembro-me de um momento sublime, logo no início das nossas relações... Lembro-me dele, embora naquela ocasião tivesse feito muita honra ao vinho. Foi o momento em que eu, agradavelmente impressionado pelo seu caráter, estive a ponto de lhe propor o “tu” fraternal. No entanto, não pude deixar de perceber que esse passo seria um tanto precipitado. Muito bem, hoje me refiro àquele instante, transporto-me novamente para ele e dou por terminado o prazo então estabelecido. Meu caro jovem, somos irmãos; declaro-nos irmãos. O senhor falou do significado pleno de um “tu”. Também o nosso terá significado pleno, o significado da fraternidade no sentimento. A satisfação que não lhe posso dar com a arma, devido à minha idade e à doença, ofereço-a sob a forma de uma aliança fraternal, assim como às vezes se concerta contra terceiros, contra o mundo ou contra quem quer que seja, o que nós faremos no sentimento comum por alguém. Toma a tua taça, jovem, enquanto eu volto a usar do meu copo de lavar dentes, que afinal de contas não ofende de forma alguma essa zurrapazinha...

E com a mão de capitão ligeiramente trêmula encheu os copos, ajudado pelo reverente e perplexo Hans Castorp.

– Serve-te! – repetiu Peeperkorn. – Cruza o braço comigo e bebe assim! Esvazia o copo!... Ótimo, jovem! Feito! Aqui tens a minha mão. Estás contente?

– Essa palavra é, naturalmente, muito fraca para expressar o que sinto, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, que tivera algumas dificuldades em emborcar a taça de um só gole e enxugava os joelhos com o lenço, porque derramara um pouco de vinho. – Prefiro dizer que estou infinitamente feliz. Nem posso ainda compreender como pude ser distinguido dessa maneira. Francamente, é como se eu estivesse sonhando. É uma imensa honra para mim, e não sei como a mereci, a menos que de um modo passivo, porque não pode ser de outra forma. Não será de admirar que no começo me pareça um tanto excêntrico empregar esse novo tratamento, e que eu tropece de vez em quando, sobretudo em presença de Clávdia, que, à maneira das mulheres, provavelmente não gostará deste arranjo...

– Deixa isto comigo – replicou Peeperkorn. – E o resto é uma questão de prática e de hábito. E agora vai-te, meu caro jovem! Deixa-me sozinho, meu filho! Está escuro; já é noite cerrada, e nossa amiga pode voltar a qualquer instante. Um encontro de vocês, neste momento, talvez não seja conveniente.

– Desejo-te uma boa noite, Mynheer Peeperkorn – disse Hans Castorp, enquanto se levantava. – Como o senhor está vendo, procuro vencer a minha legítima timidez e exercito-me nesse tratamento audacioso. Escureceu; é verdade. Seria bem possível que o Sr. Settembrini entrasse neste quarto e acendesse a luz, para que reinasse a razão e as convenções; é o fraco dele. Até amanhã! Saio daqui tão alegre tão orgulhoso como nem de longe teria imaginado. Estimo tuas melhoras. Tens à frente pelo menos três dias sem febre, durante os quais o senhor não precisa temer nenhum esforço. Isto me dá tanto prazer como se eu fosse tu. Boa noite!

 

         Mynheer Peeperkorn

         (Fim)

Uma cascata não deixa de ser objetivo atraente para excursões, e dificilmente se explica por que Hans Castorp, apesar de sentir inclinação particular pelas quedas-d’água, ainda não visitara o pitoresco salto situado na floresta do vale de Fluela. Essa omissão talvez fosse perdoável durante o tempo em que convivera com Joachim; o rigoroso senso do dever, peculiar ao primo, que não viera para divertir-se, e nunca perdia de vista a finalidade da sua estadia, havia limitado o horizonte de ambos aos arredores próximos do Sanatório Berghof. E depois do decesso de Joachim – sim, também depois dele, as relações entre Hans Castorp e a paisagem alpina haviam guardado, abstraindo os passeios de esqui, o caráter de conservadora monotonia, que contrastava fortemente com o vasto alcance das suas experiências interiores e dos seus afazeres de “regente”. Esse contraste exercia sobre o jovem um encanto que ele, em certo sentido, saboreava com plena consciência. Mesmo assim aprovou vivamente um projeto de excursão de coche até aquele lugar famoso, projeto que um dia foi ventilado no pequeno círculo dos seus amigos, entre as referidas sete pessoas (inclusive ele próprio).

Nesse ínterim chegara o mês de maio, mês das delícias, segundo as ingênuas cantilenas da planície. Aqui em cima, o ar de maio costumava ser bastante frio e não muito convidativo; mas ao menos podia-se dizer que o degelo estava terminado. Verdade é que diversas vezes no decorrer dos últimos dias haviam caído grossos flocos, mas a neve derretia-se logo, deixando atrás apenas um pouco de umidade. As massas compactas do inverno acabavam de fundir-se, de esvair-se, de desaparecer, com exceção de alguns restos isolados, e o verdor do mundo novamente transitável constituía um convite a todo espírito empreendedor.

No curso das semanas passadas, as atividades sociais do grupo tinham sido influenciadas pela indisposição do seu chefe supremo, o majestoso Pieter Peeperkorn, cuja febre maligna, lembrança dos trópicos, não queria ceder nem aos efeitos de um clima excepcional, nem aos antídotos de um médico tão competente como era o Conselheiro Behrens. O holandês passara muito tempo na cama, e não somente nos dias em que a quarta reivindicava cruelmente os seus direitos. O baço e o fígado davam-lhe muito trabalho, conforme o médico explicava em particular aos amigos mais chegados do enfermo. Também o estômago não se achava em estado perfeito, e Behrens não se esqueceu de indicar o perigo de um enfraquecimento progressivo, a que estava exposta, sob essas circunstâncias, até mesmo uma constituição tão robusta como a de Peeperkorn.

Durante todas essas semanas, Mynheer não presidira senão um único festim noturno, e também os passeios em comum tinham sido cancelados, exceção feita de um só, de pouca extensão. Por outra parte – contamos isso aqui entre nós – Hans Castorp experimentava uma espécie de alívio graças a esse afrouxamento dos laços que ligavam o grupo; pois a nova fraternidade com o companheiro de viagem de Mme. Chauchat causava-lhe dificuldades. Nas conversas que ele mantinha com Peeperkorn em presença de terceiros voltavam a aparecer aquela “atitude forçada”, aquela “evitação” e “esquivança”, que o holandês percebera na sua conduta para com Clávdia, e que pareciam ter a sua origem numa obrigação de partilhar a filipina. Hans Castorp servia-se de estranhos circunlóquios para não empregar o tratamento direto, nos casos em que este se impunha. Era o mesmo dilema, ou talvez o dilema inverso, que pesava sobre as palavras que ele trocava com Clávdia na frente de outras pessoas ou apenas do próprio Peeperkorn. Devido à satisfação que este lhe havia dado, esse dilema colocava o jovem entre Cila e Caribdes.

Mas agora estava na ordem do dia o projeto da excursão à cascata. Peeperkorn em pessoa fixara o itinerário e sentia-se disposto a tentar a empresa. Era o terceiro dia depois de um ataque de quarta, e Mynheer comunicou que tinha a intenção de aproveitá-lo. Não almoçara no refeitório; como nesses últimos tempos acontecia freqüentemente, tomara as primeiras refeições no salão do seu apartamento, em companhia de Mme. Chauchat. Mas já na hora do café da manhã Hans Castorp recebera, por intermédio do porteiro coxo, a ordem de se aprontar para um passeio de coche, uma hora depois do almoço, de transmitir essa ordem aos senhores Ferge e Wehsal, e finalmente de comunicar a Settembrini e Naphta que o carro passaria pela sua casa para buscá-los. Além disso devia Hans Castorp arranjar dois landôs para as três da tarde.

A essa hora encontraram-se diante do portão do Sanatório Berghof. Enquanto Hans Castorp, Ferge e Wehsal esperavam ali os donos do apartamento principesco, distraíram-se acariciando os cavalos, que com os grossos e úmidos beiços pretos lhes tiravam das palmas da mão pedaços de açúcar. Com um pequeno atraso apenas os companheiros de viagem surgiram na escadaria. Peeperkorn, cuja cabeça de rei parecia mais magra, e que trajava um sobretudo comprido, um pouco gasto, deteve-se no patamar, ao lado de Clávdia, tirando o chapéu redondo e macio, e seus lábios articularam um ‘Bom-dia!” inaudível. A seguir apertou as mãos de cada um dos três senhores, que haviam ido ao encontro do casal, até o pé da escada.

– Meu caro jovem! – disse então dirigindo-se a Hans Castorp e pondo-lhe a mão esquerda sobre o ombro. – Como vais, meu filho?

– Vou indo aqui muito bem. Obrigado. E desse lado aí, como vão as coisas? – respondeu o jovem.

O sol brilhava. Era um dia lindo, sem nuvens. Mesmo assim tinham agido com acerto vestindo casacões de meia-estação, porque era provável que durante o passeio o frio se tornasse sensível. Também Mme. Chauchat trajava um sobretudo quente, cinturado, de uma fazenda felpuda, com grandes quadrados de xadrez, e com uma gola de pele que lhe cobria os ombros. No chapéu de feltro trazia um véu cor de azeitona, atado por baixo do queixo, e que dobrava as abas em torno do rosto. Ficava tão encantadora com esse chapéu que literalmente fazia sofrer a maioria dos cavalheiros presentes, exceção feita de Ferge, o único que não estava apaixonado por ela. Foram distribuídos os lugares, provisoriamente, já que mais tarde os externos se reuniriam ao grupo, e a indiferença de Ferge teve por conseqüência caber-lhe o assento de costas, no primeiro landô, na frente de Mynheer e de madame, ao passo que Hans Castorp embarcou junto com Wehsal no segundo carro, não sem ter apanhado um sorriso irônico de Clávdia. O vulto frágil do criado malaio também participava da excursão. Com um volumoso cesto, sob cuja tampa apontavam os gargalos de duas garrafas de vinho, e que foi depositado debaixo de um dos assentos de costas do primeiro landô, o homenzinho aparecera atrás dos seus amos, e quando se achava instalado na boléia, com os braços cruzados, deu-se aos cavalos o sinal de partida. Com os freios apertados, os carros começaram a descer pela curva da rampa.

Também Wehsal notara o sorriso de Mme. Chauchat. Mostrando os dentes cariados, fez comentários acerca dele para Hans Castorp.

– Viu – perguntou – como ela se riu do senhor, porque tem de ir sozinho comigo? Primeiro o dano, depois o escárnio. Não acha o senhor irritante e repulsivo estar assim a meu lado?

– Controle-se, Wehsal, e deixe de falar desse jeito miserável – repreendeu-o Hans Castorp. – As mulheres sorriem a qualquer instante, pelo prazer de sorrir. Não vale a pena refletir sobre todos os seus sorrisos. Por que insiste o senhor em rebaixar-se deste modo? Como nós todos, o senhor tem suas qualidades e seus defeitos. Por exemplo, toca bastante bem o Sonho de uma noite de verão, coisa que nem todos sabem fazer. O senhor deveria tocá-lo novamente qualquer dia destes.

– Pois sim! – respondeu o pobre-diabo. – O senhor me fala com muita condescendência e nem sequer percebe o desaforo que está contido no seu consolo e que somente me humilha ainda mais. Para o senhor é fácil dizer essas coisas e reconfortar a gente do alto dos seus tamancos; pois, se hoje se encontra numa situação um tanto ridícula, pelo menos teve a sua vez, Santo Deus, e esteve no sétimo céu! Sentiu os braços dela em torno do pescoço, e tudo aquilo, Santo Deus! me queima a garganta e o fundo do coração quando me volta à memória. E o senhor, com plena consciência do que gozou, pode contemplar desdenhosamente os meus tormentos de mendigo...

– Não é bonita essa sua maneira de expressar-se, Wehsal. É até sumamente repugnante. Não acho necessário ocultar-lhe esta minha opinião, uma vez que o senhor me tachou de desaforado. E tenho a impressão de que o senhor fala de propósito dessa forma repulsiva. Faz tudo para parecer asqueroso e avilta-se a cada momento. Sua paixão por ela é realmente violenta?

– É terrível – replicou Wehsal, meneando a cabeça. – São indescritíveis as torturas que sofro pela sede e pela cobiça de possuí-la. Quem me dera dizer que isso será a minha morte! Mas num estado desses não se pode nem viver nem morrer. Enquanto ela estava ausente, comecei a me sentir melhor. Aos poucos consegui me preocupar menos. Mas desde que voltou e a vejo todos os dias, a minha paixão me faz morder o braço e agarrar miragens. Já não sei o que fazer. Uma coisa assim não deveria existir. Mas não é possível desejar que desapareça. Quem sofre de tal paixão não pode ter esse desejo, porque seria o mesmo que desejar que desaparecesse a própria vida, que se amalgamou com a paixão; é coisa que não se pode... Que adiantaria morrer? Depois, sim; com prazer! Nos braços dela; com a maior satisfação! Mas antes, seria absurdo; pois a vida é o desejo, e o desejo é a vida e não pode voltar-se contra si próprio; nisso é que consiste o maldito dilema. E quando digo “maldito”, isto não passa de uma maneira de falar. É como se um terceiro falasse, porque eu mesmo absolutamente não posso ter essa opinião. Há muitos tipos de tormentos, Castorp, e quem está sendo torturado quer se ver livre, quer simplesmente, incondicionalmente, que o soltem. Eis o que é o seu único objetivo. Mas quando se trata da tortura da cobiça carnal, não se pode desejar a libertação, a não ser pelo caminho e sob a condição de a ver saciada. Não há outro meio, por preço algum! Assim são as coisas, e quem não sofre disso não perde tempo com reflexões desse gênero, mas quem sofre chega a ver estrelas e a compreender o Senhor dos Passos. Deus do Céu! Que instituição curiosa é essa de a carne cobiçar tão violentamente uma outra carne, só porque esta não é a própria, mas pertence à alma de outrem! Como é singular esse desejo, e para bem dizer, como é modesto, na sua bondade pudica! É o caso de dizer: se a carne deseja apenas isso, vá lá, que o tenha! Afinal de contas, que é que eu quero, Castorp? Quero, acaso, matá-la? Quero derramar o sangue dela? Quero apenas é acariciá-la! Castorp, meu caro Castorp, desculpe que me lamente dessa forma, mas, afinal, ela poderia muito bem entregar-se a mim! Haveria nisso algo de sublime, Castorp! Eu não sou nenhum animal; à minha maneira, também sou um ser humano! O desejo da carne espalha-se em todas as direções; não tem limites e não se fixa, e por isso o chamamos bestial. Mas quando se concentra numa única criatura, com um rosto humano, então os nossos lábios começam a falar de amor. Mas o que eu desejo não é apenas o torso dela, o manequim de carne que é o seu corpo; pois, se no seu rosto uma coisinha de nada tivesse uma forma diferente, talvez deixasse eu de cobiçar todo o resto do corpo. Assim se vê claramente: o que eu amo é a sua alma e a amo com a alma. Pois o amor ao rosto é o amor da alma ...

– Mas que é que o senhor tem, Wehsal? Parece fora de si e nem sabe em que tom está falando...

– Mas, precisamente isso, precisamente isso é a desgraça – prosseguiu o coitado –, a desgraça é ter ela uma alma, ser ela uma criatura humana, dotada de corpo e alma! Ora, a sua alma nada quer saber da minha, e o seu corpo nada do meu. Que miséria, que grandíssima miséria! Daí acontece que o meu desejo está condenado à vergonha, e meu corpo tem de se retorcer eternamente! Por que ela não quer saber de mim, Castorp, nem com o corpo nem com a alma? Por que lhe causa horror o meu desejo? Porventura não sou homem? Um homem repugnante não é homem? Sou homem no mais alto grau; juro que ultrapassaria tudo que já se viu, se ela me abrisse o paraíso dos seus braços, que são tão formosos porque pertencem ao rosto da sua alma! Eu seria capaz de lhe dar todas as volúpias do mundo, Castorp, se se tratasse apenas dos corpos e não das almas também; se não existisse a maldita alma dela, que nada quer saber de mim, mas sem a qual eu não lhe cobiçaria o corpo. E neste nojento dilema dos diabos debato-me eternamente!

– Psiu, Wehsal! Fale mais baixo! O cocheiro entende o que está dizendo. De propósito não volta a cabeça, mas vejo pelas costas dele que escuta.

– Ele me entende e escuta; aí está, Castorp! Aí temos novamente aquela coisa, aquela instituição com a sua particularidade e seus característicos. Se eu falasse de palingenesia ou... ou de hidrostática, ele não entenderia patavina; não saberia de que se trata, não escutaria e não mostraria o menor interesse. Pois esses assuntos não são populares. Mas a coisa mais sublime, a mais extrema e a mais secreta, num sentido sinistro, o assunto da carne e da alma, olhe, essa coisa é ao mesmo tempo a mais popular. Todos a entendem, todos podem zombar de quem sofre dela e a quem ela transforma os dias em torturas voluptuosas, e as noites num inferno ignominioso! Castorp, meu caro Castorp, deixe que eu me lamente um pouco; pois que noites são estas que eu tenho! Noite após noite sonho com ela; ah, com quanta coisa dela não sonhei! A garganta e o estômago me queimam, quando recordo. E todos os sonhos terminam assim: ela me esbofeteia, me bate em pleno rosto e às vezes me cospe na cara, me cospe na cara, com o rosto da sua alma crispado de asco, e então acordo, coberto de suor e de vergonha e de volúpia...

– Muito bem, Wehsal, e agora vamos fazer uma pequena pausa e tomar a decisão de calar a boca até que cheguemos à casa do merceeiro e alguém venha nos fazer companhia. É da minha parte uma sugestão e uma ordem. Não quero ofendê-lo e admito que o senhor se encontra em graves apuros. Mas lá em casa contavam a história de um indivíduo que tinha recebido o seguinte castigo: quando falava, saíam-lhe da boca serpentes e sapos, a cada palavra uma serpente ou um sapo. O livro não rezava o que aquela personagem fazia diante disso, mas sempre fui de opinião que ela deve ter calado a boca.

– Mas falar é uma necessidade humana, meu caro Castorp – tornou Wehsal melancolicamente –, uma necessidade humana. É preciso desabafar, quando se está em tais apuros.

– É até um direito que o homem tem, Wehsal, se assim quiser. Mas, a meu ver, existem direitos que sob certas circunstâncias não convém usar.

Assim guardaram silêncio, conforme a ordem de Hans Castorp. Ademais, o coche não tardou a alcançar a casinha coberta de vinhas do merceeiro, onde não os deixaram esperar nem um instante. Naphta e Settembrini já se achavam na rua; o humanista trajava aquela jaqueta puída, forrada de peles, e o jesuíta, um sobretudo amarelo-esbranquiçado, de meia estação, pespontado em toda parte, e que lhe dava aparência de janota. Acenaram uns aos outros. Trocaram cumprimentos, enquanto os carros faziam meia-volta, e os dois senhores embarcaram também. Naphta ocupou o quarto assento do primeiro landô, ao lado de Ferge, ao passo que Settembrini., de humor radiante, transbordando de piadas esplêndidas, se associou a Hans Castorp e Wehsal. Este lhe cedeu o seu lugar no fundo do carro, onde o Sr. Settembrini se instalou com a mais elegante displicência, na atitude de quem costuma passear em corsos.

E celebrou o prazer de andar de carro, quando o corpo se encontra em confortável estado de repouso e todavia é transportado através de um cenário que sempre se modifica. Demonstrou a Hans Castorp sentimentos de complacência paternal, e até acariciou com palmadinhas a face do pobre Wehsal, enquanto o convidava a esquecer-se do seu próprio eu antipático e de abandonar-se à admiração desse mundo luminoso, que lhe designava num amplo gesto da mão direita, revestida com uma surrada luva de couro.

Tiveram uma viagem excelente. Os quatro cavalos, todos eles malacaras, animais vivos, fortes, bem alimentados e de pêlo lustroso, pisavam com ritmo firme a magnífica estrada, que a essa época estava livre de poeira. Às vezes se aproximavam das margens rochedos anfractuosos, com flores e capim crescendo entre as juntas das pedras. Postes telegráficos corriam em sentido oposto. Surgiam bosques nas encostas. Curvas amenas, almejadas primeiro e em seguida percorridas, mantinham alerta a curiosidade. Em regiões distantes, iluminadas pelo sol, via-se sempre a cordilheira parcialmente coberta de neve. Já haviam perdido de vista a paisagem familiar do vale, e a mudança do cenário cotidiano produzia sobre os espíritos um efeito animador. Pouco depois, os coches pararam à beira da floresta. Tinha sido combinado que a partir desse ponto os excursionistas prosseguiriam a pé até a meta do passeio; essa meta com a qual os seus sentidos, sem se dar conta disso, tinham desde havia muito estabelecido um contato frouxo no início, mas que se tornava cada vez mais intenso. Terminada a viagem de carro, todos notaram um ruído longínquo, um suave rumor sibilante, vibrante, murmurante, que de vez em quando tornava a esquivar-se à percepção. Os membros do grupo estacaram para ouvir melhor, e uns chamavam a atenção dos outros.

– Por enquanto – disse Settembrini, que já conhecia o lugar – o ruído parece fraquinho. Mas lá na cascata é fortíssimo nesta época do ano. Os senhores vão ver que não poderemos ouvir as nossas próprias vozes.

Penetraram no bosque, por uma vereda coberta de úmidas agulhas de pinheiro. Peeperkorn ia na frente, apoiado no braço da sua companheira, com o macio chapéu preto repuxado sobre a testa, e com o seu típico andar oscilante. Atrás deles seguia Hans Castorp, sem chapéu como todos os demais, com as mãos nos bolsos; inclinando a cabeça obliquamente, olhava em torno e assobiava baixinho. Logo após vinham Naphta e Settembrini, depois Ferge com Wehsal, e por fim o malaio, caminhando sozinho, com o cesto de víveres no braço. Falava-se do bosque.

Aquele bosque não era como todos os outros. Oferecia um aspecto singularmente pitoresco, um aspecto exótico e ao mesmo tempo lúgubre. Existia ali em abundância uma espécie de líquen musgoso, que pendia das árvores, carregava-as, envolvia-as por completo. Em longas barbas incolores, as emaranhadas teias da planta parasita desciam bambaleando da ramagem como que embrulhada e estofada. Quase não se viam agulhas; tudo desaparecia sob as grinaldas de musgo. Era uma degeneração grave e esquisita, uma visão mágica e mórbida. O bosque não ia bem de saúde, sofria da moléstia desse líquen exuberante, que ameaçava sufocá-lo, segundo a opinião que todos manifestavam, enquanto o pequeno cortejo avançava pela vereda coberta de agulhas, ouvindo o ruído que significava a meta da qual se aproximavam, aquele rebôo e sussurro que aos poucos se transformava em estrondo e prometia confirmar a predição de Settembrini.

Numa curva descortinava-se o panorama do desfiladeiro penhascoso que se abria no meio do bosque e era atravessado por uma ponte. No seu fundo caía a catarata. No momento em que os excursionistas depararam com ela, chegavam ao auge os efeitos acústicos. Era um barulho infernal. A massa de água precipitava-se verticalmente, num único salto, de sete ou oito metros de extensão e de considerável largura, e em seguida se lançava, branca, por sobre os rochedos. Sua queda produzia um estrépito medonho, no qual pareciam mesclar-se todos os tipos de ruídos e de tonalidades possíveis, trovões e silvos, bramidos, berros, fanfarras, estouros, estalidos, ribombos e badaladas de sinos. Realmente, aquilo era capaz de aturdir os sentidos. Os visitantes tinham-se adiantado muito sobre as rochas escorregadias, para chegar bem perto. Açoitados e salpicados por um sopro úmido, envoltos no vapor de água, com os ouvidos abarrotados e obstruídos pelo fragor, trocavam olhares e sacudiam a cabeça, sorrindo timidamente, ao contemplarem esse espetáculo, essa catástrofe contínua, formada de espuma e de alarido, cujo marulhar insensato e excessivo os estonteava, lhes causava medo e provocava ilusões acústicas. Tinham a impressão de ouvir de trás, de cima, de todos os lados gritos de ameaça ou de advertência, clarinadas ou vozes rudes de homens.

Agrupados atrás de Mynheer Peeperkorn – Mme. Chauchat encontrava-se entre os cinco convidados – contemplavam com ele o turbilhão. Não divisavam o rosto do holandês, mas viam como descobria a cabeça rodeada de labaredas brancas e inflava o peito, enchendo-o daquele ar fresco. Comunicavam-se entre si por meio de olhares e de sinais, uma vez que quaisquer palavras, inclusive as que se gritassem diretamente ao ouvido do vizinho, seriam, sem dúvida, abafadas pelo fragor da queda. Os lábios articulavam expressões de surpresa e de admiração, que no entanto permaneciam inaudíveis. Mediante acenos de cabeça, Hans Castorp, Settembrini e Ferge combinaram escalar a encosta do desfiladeiro a cujo sopé se encontravam, a fim de chegar à ponte superior e de ver as águas de cima. Não era difícil. Uma escada íngreme, com degraus estreitos, talhados na rocha, conduzia a uma espécie de pavimento superior da floresta. Galgaram-na um após outro; avançaram pela ponte; chegados ao meio, por cima do jorro curvo da cascata, acenaram para os amigos que se achavam embaixo. A seguir atravessaram o resto da pontezinha e realizaram a laboriosa descida pelo outro lado, até a outra margem da torrente, de onde partia mais uma ponte, pela qual voltaram a reunir-se ao grupo.

A essa altura, a mímica referia-se à merenda. Alguns opinavam que seria conveniente distanciarem-se, para esse fim, da zona do barulho, a fim de saborearem a refeição vesperal com os ouvidos descansados e não à maneira de surdos-mudos. Mas não podiam deixar de perceber que Peeperkorn não concordava com isso. Sacudiu a cabeça, repetidas vezes apontou com o indicador para o chão, e os lábios gretados, repuxados com esforço, articularam um “Aqui!” Que se podia fazer? Nessas questões de encenação, Peeperkorn era o diretor e o mestre. O peso da sua personalidade teria sido decisivo, mesmo que não fosse ele, como sempre, o organizador e o dono da empresa. Homens de tamanha envergadura foram e serão em todos os tempos tiranos e autocratas. Mynheer tencionava merendar à vista da cascata, em plena trovoada. Assim mandava o seu capricho soberano, e quem não quisesse renunciar à comida teria de ficar. A maioria estava pouco satisfeita. O Sr. Settembrini, que via eliminada a possibilidade de um intercâmbio humano, de uma palestra democrático-distinta ou ao menos de uma discussão, ergueu a mão por cima da cabeça, com aquele seu peculiar gesto de resignação e desespero. O malaio apressou-se a executar a ordem do amo. Levara consigo duas cadeiras dobradiças que armou junto à parede rochosa, para Mynheer e madame. Depois estendeu uma toalha aos seus pés e espalhou sobre ela o conteúdo do cesto – um aparelho de café, copos, garrafas térmicas, doces e vinho – que foi avidamente disputado. Os convidados instalaram-se nas pedras ou na balaustrada da ponte, com a xícara de café quente na mão e o prato cheio de bolo sobre os joelhos. Silenciosos, no meio do fragor, começaram a comer a merenda.

Peeperkorn, com a gola do sobretudo levantada, e com o chapéu depositado no chão, perto de si, bebia vinho do Porto num copo de prata, guarnecido de um monograma, e que esvaziou várias vezes. E de repente se pôs a falar. Que homem estranho! Não era possível que ouvisse a própria voz, e muito menos que os outros entendessem uma sílaba sequer daquilo que lhes comunicava sem comunicá-lo. Levantou, entretanto, o dedo indicador. A seguir, mantendo o copo na mão direita, estendeu o braço esquerdo, com a palma da mão voltada obliquamente para cima. Viu-se então o rosto majestoso movimentar-se ao falar; viu-se a boca articulando palavras que permaneciam desprovidas de som, como se fossem proferidas num vácuo. Todos pensavam que logo desistiria desse esforço inútil, ao qual assistiam com um sorriso perplexo. Mas ele, com uma gesticulação esmerada, fascinante, imperiosa, continuava, a arengar o fragor, fixando os olhinhos lassos, apagados e muito abertos, ora num, ora noutro espectador, de modo que a pessoa a quem parecia dirigir-se se via obrigada a dar-lhe um sinal de aprovação, com as sobrancelhas alçadas, abrindo a boca e pondo a mão em concha na orelha, como se isso bastasse para resolver a situação irremediável. A seguir, Mynheer até se levantou. Tinha ainda o copo na mão. No surrado sobretudo de viagem que quase lhe ia até os pés, e cuja gola se achava erguida, com a cabeça descoberta, e com a alta e rugosa testa de ídolo rodeada pelas labaredas brancas do cabelo – assim se quedava junto ao penhasco e movia o semblante, à cuja frente elevava, doutrinando, o anel do polegar e do indicador, dominado pelos outros dedos em riste, como para remediar a indistinção do brinde mudo pelo sugestivo signo da exatidão. Compreendiam-se através dos gestos e liam-se-lhes dos lábios algumas palavras isoladas que habitualmente saíam da sua boca: “Absolutamente!”, “Basta!” e nada mais. A cabeça pendia para um lado, com uma expressão de amargor nos lábios gretados: a perfeita imagem de um mártir. Em seguida, porém, desabrochou a lasciva covinha, sinal do espírito sibarita, galhofeiro, e do impudor sagrado de um sacerdote pagão que ao dançar arregaça as vestes. E Peeperkorn ergueu o copo, descreveu com ele um semicírculo em direção aos seus convidados, e esvaziou-o completamente em dois ou três tragos, de maneira que o fundo se voltava para o céu. Por fim, com o braço estendido, passou-o ao malaio, que o recebeu com uma mesura, e deu o sinal de partida.

Depois de se terem inclinado diante dele, para expressar a sua gratidão, todos se dispuseram a obedecer-lhe a ordem. Os que se achavam acocorados no chão levantaram-se de um pulo; quem estava sentado na balaustrada da pontezinha desceu depressa. O delgado javanês, com o chapéu-coco e a gola de peles, apanhou a baixela e os restos de comida. Na mesma ordem de marcha que haviam observado na ida, voltaram pela vereda úmida, coberta de agulhas de pinheiro, através da floresta desfigurada pelas grinaldas de líquen, até a estrada onde os esperavam os coches.

Desta vez, Hans Castorp embarcou no carro do mestre e da sua companheira. Ocupou um lugar em frente ao casal, ao lado do bom Ferge, que continuava alheio a quaisquer assuntos elevados. Quase não se falou durante a viagem de regresso. Mynheer mantinha as mãos espalmadas sobre o cobertor que envolvia as suas pernas e as de Clávdia, e deixava pender a mandíbula inferior. Settembrini e Naphta desceram e despediram-se antes que os carros atravessassem os trilhos e o curso de água. Wehsal permaneceu sozinho no segundo coche, enquanto este subia pela curva da rampa e alcançava o portal do Berghof, onde todos se separaram...

Na noite que se seguiu a esse dia, que é que houve com o sono de Hans Castorp? Foi ele mais leve e mais superficial devido a uma certa prontidão interior, da qual a sua alma não se dava conta, mas que tinha por conseqüência que a menor modificação do costumeiro silêncio noturno do Sanatório Berghof – um alarma por mais abafado que fosse e a mal perceptível repercussão de passos rápidos à distância – bastasse para tornar desperto e lúcido e para fazê-lo sobressaltar-se na cama? O fato é que acordou muito antes que alguém batesse à sua porta, o que se deu pouco depois das duas horas. Respondeu sem demora, clara e energicamente, com plena presença de espírito. Ouviu então a voz aguda e hesitante de uma das enfermeiras auxiliares, ocupadas na casa, e que lhe solicitava, em nome de Mme. Chauchat, que comparecesse imediatamente ao primeiro andar. Com redobrada energia mandou dizer que logo iria. Levantou-se de um salto; enfiou rapidamente as roupas; passou os dedos pelos cabelos, a fim de afastá-los da testa, e desceu sem pressa, mas também não devagar, mais incerto quanto às circunstâncias do que ao próprio fato que havia causado tal convite.

Encontrou aberta a porta do salão de Peeperkorn, bem como aquela que dava para o quarto do holandês, onde todas as luzes estavam acesas. Ambos os médicos, a Superiora von Mylendonk, Mme. Chauchat e o criado malaio achavam-se presentes. Este não estava vestido como de costume, mas trazia uma espécie de traje nacional: uma jaqueta parecida com uma camisa, de listras largas e com mangas muito amplas e compridas; uma saia de muitas cores em lugar das calças; e um chapéu cônico de pano amarelo. Além disso se adornara com um colar de amuletos que lhe pendiam sobre o peito. Mantinha-se imóvel, com os braços cruzados, à esquerda da cabeceira da cama, na qual jazia Pieter Peeperkorn, de costas, com os braços estendidos ao longo do corpo. Empalidecendo, o jovem abrangeu a cena com a vista, enquanto entrava. Mme. Chauchat voltava-lhe as costas. Estava sentada numa poltrona baixa, ao pé da cama, apoiando o cotovelo na colcha, com o queixo fincado na mão e os dedos cravados no lábio inferior, e contemplava o rosto do seu companheiro de viagem.

– Boa noite, meu rapaz – disse Behrens, que acabava de conversar baixinho com o Dr. Krokowski e com a Superiora. Sacudiu melancolicamente a cabeça e torceu o lábio com o bigodinho branco. Trajava o avental de médico, com o estetoscópio sobressaindo do bolso de cima. Calçava chinelos bordados e estava sem colarinho. – Não há remédio – acrescentou num murmúrio. – Trabalho perfeito. Pode ir mais perto e examiná-lo com olhar de perito. O senhor deve admitir que aí se fez tudo para sabotar a arte médica.

Sobre as pontas dos pés, Hans Castorp aproximou-se da cama. Os olhos do malaio vigiavam cada um dos seus movimentos; acompanhavam-nos, sem que o homem virasse a cabeça, de modo que se via o branco do globo ocular. Com um olhar de esguelha, o jovem verificou que Mme. Chauchat não dava atenção à sua presença. Postou-se ao lado do leito, na sua posição típica, com o peso do corpo a repousar sobre uma das pernas, as mãos juntas à frente da barriga, inclinando a cabeça para o lado, numa contemplação reverente e pensativa. Peeperkorn achava-se estatelado sob a colcha de seda vermelha, naquela camisola de malha que Hans Castorp tantas vezes o vira usar. As mãos, bem como partes do rosto, mostravam manchas de um roxo enegrecido, o que contribuía consideravelmente para desfigurar o holandês, se bem que, fora isso, as feições majestosas permanecessem inalteradas. Também em estado de descanso, e apesar das pálpebras cerradas, ressaltavam fortemente as rugas da alta fronte circundada de labaredas brancas, essas rugas pregueadas como num ídolo, que se estendiam horizontalmente em quatro ou cinco fileiras, antes de descerem em ângulo reto por ambas as têmporas, e pareciam acentuadas pelos esforços habituais de uma vida inteira. Os lábios gretados e amargurados estavam entreabertos. A cianose indicava uma interrupção brusca, um impedimento veemente, apoplético, das funções vitais.

Hans Castorp quedou-se alguns instantes imóvel, observando tudo isso com reverência. Vacilava em modificar a sua posição e esperava que a “viúva” lhe dirigisse a palavra. Mas, como tal não se desse, preferiu não incomodá-la por enquanto e voltou-se para o grupo das outras pessoas que se achavam atrás dele. O conselheiro fez um sinal de cabeça em direção ao salão. Hans Castorp seguiu-o até ali.

– Suicidium? – perguntou baixinho, com objetividade profissional.

– Se é! – respondeu Behrens, dando de ombros; e acrescentou: – Cem por cento. No superlativo. O senhor já viu uma coisa destas numa casa de miudezas? – E puxou do bolso do avental um estojo de forma irregular, do qual tirou um pequeno objeto que apresentou ao jovem. – Eu, nunca. Mas vale a pena olhá-lo. Vivendo e aprendendo. Um troço fantástico e muito engenhoso. Tirei-o das mãos dele. Cuidado! Basta que uma gota lhe caia sobre a pele para que o senhor fique com bolhas.

Hans Castorp revolveu entre as mãos o objeto misterioso. Era feito de aço, marfim, ouro e borracha e oferecia aspecto bem estranho. Viam-se dois dentes de garfo, recurvos, de aço polido, e com pontas muito afiadas; havia uma parte central, de marfim, levemente retorcida e incrustada de ouro, cujo mecanismo elástico permitia mover os dentes até certo ponto e aproximá-los um do outro; e tudo terminava numa espécie de saquinho de borracha preta e meio dura. O tamanho do objeto não ia além de umas poucas polegadas.

– Que é isto? – perguntou Hans Castorp.

– Isto – respondeu Behrens – é a encarnação de uma seringa hipodérmica. Ou, sob um outro ponto de vista, é a cópia mecânica das presas da naja. O senhor me compreende? Parece que não – continuou ao ver que Hans Castorp não deixava de fitar, como que hipnotizado, aquele objeto curioso. – Aqui estão os dentes. Não são completamente maciços, mas passa por eles um tubo capilar, um canal finíssimo, cuja extremidade exterior se vê nitidamente, na parte dianteira, um pouco acima das pontas. Claro que os tubinhos têm outro orifício na raiz dos dentes e ali comunicam-se com o conduto excretor da glândula de borracha, que se estende através da peça central de marfim. No momento da mordida, os dentes executam um movimento elástico de contração, como é fácil perceber, e exercem uma pressão sobre o depósito de veneno, que então impele o seu conteúdo para dentro dos canais, de maneira que no mesmo instante em que as pontas entram na carne a dose de veneno penetra na circulação do sangue. É muito simples quando já se vê pronto. Difícil era inventá-lo. Provavelmente foi feito segundo as próprias indicações dele.

– Acho que sim – disse Hans Castorp.

– A carga não pode ter sido muito grande – prosseguiu o conselheiro. – O que lhe faltava em quantidade, sobrava-lhe em...

– ...dinamismo – completou Hans Castorp.

– Certo. Já verificaremos do que se trata. Pode-se esperar com certa curiosidade o resultado da análise, porque não duvido de que nos dará uma oportunidade para aprender alguma coisa. Aposto que aquela personagem exótica que ali está de sentinela e se endomingou para a ocasião saberia perfeitamente informar-nos. Na minha opinião foi usada uma combinação de substâncias animais e vegetais, o melhor que existe no ramo, pois o efeito deve ter sido fulminante. Tudo leva a crer que lhe cortou imediatamente a respiração; paralisia do centro respiratório, entende? Asfixia rápida, sem esforços nem dores, segundo todas as probabilidades.

– Quisera Deus! – disse Hans Castorp piamente. Com um suspiro devolveu ao conselheiro o sinistro instrumentozinho e voltou ao quarto do holandês.

Unicamente o malaio e Mme. Chauchat encontravam-se ainda ali. Desta vez, Clávdia levantou a cabeça e olhou o jovem, que novamente se aproximava da cama.

– O senhor tinha direito a que eu o mandasse chamar – disse ela.

– Foi muito gentil da sua parte – respondeu Hans Castorp. – E a senhora tem razão. Éramos amigos e nos tratávamos de “tu”. Tenho vergonha até o fundo do meu coração de me ter esquivado a tuteá-lo na frente de terceiros e de ter recorrido a subterfúgios... A senhora achava-se a seu lado durante os últimos instantes?

– O criado me avisou quando tudo estava terminado – explicou ela.

– A envergadura dele era tamanha – recomeçou Hans Castorp – que o fracasso do sentimento em face da vida lhe causava a sensação de uma catástrofe cósmica e de um aviltamento de Deus. Pois a senhora deve saber que ele se considerava o órgão nupcial de Deus. Era uma fantasia de rei... Quando estamos comovidos, temos a coragem de empregar expressões que soam rudes e desapiedadas, mas são mais solenes do que as palavras da devoção convencional.

– C’est une abdication – disse ela. – Sabia ele da nossa loucura?

– Não me foi possível negá-la, madame. Ele adivinhara tudo, quando me recusei a beijar-lhe a fronte na presença dele. Embora esta presença seja antes simbólica do que real neste momento, a senhora me permitirá que o faça agora?

Num movimento breve, como que de convite, ela elevou até o jovem a cabeça, com os olhos fechados. E Hans Castorp aproximou os lábios da sua testa. Os olhos castanhos, de animal, do malaio observavam a cena, mirando de esguelha, a ponto de mostrar o branco do globo ocular.

 

         O grande tédio

Mais uma vez ressoa a voz do Conselheiro Behrens. Prestemos-lhe atenção! Talvez seja a última vez que a ouça-mos. Até mesmo esta história deve ter um fim; já se prolongou por bastante tempo, ou melhor: o tempo do seu conteúdo vai se precipitando de tal forma que também a sua duração musical está na iminência de se esgotar. Assim pode ser que não se nos ofereça mais nenhuma oportunidade para escutar as alegres cadências da pitoresca linguagem de Radamanto.

– Castorp, meu velho – disse ele –, o senhor se aborrece. Diariamente vejo como anda entediado. O mau humor está escrito na sua cara. O senhor é um sujeito blasé, Castorp. Tem sido mimado por experiências sensacionais, e quando não lhe apresentamos todos os dias uma novidade de primeira ordem, torce o nariz e resmunga contra a época das vacas magras. Tenho ou não tenho razão?

Hans Castorp permaneceu calado, e em face desta atitude é de supor que realmente reinassem trevas no seu interior.

– Tenho razão como sempre – respondeu Behrens à sua própria pergunta. – Olhe, cidadão carrancudo, antes de espalhar por aqui o veneno do descontentamento alemão, deveria dar-se conta de que absolutamente não se acha abandonado por Deus e pelos homens, mas que as autoridades velam pelo seu bem, velam sem cessar; sim, senhor! e não param de procurar meios de diverti-lo. O velho Behrens está a postos. E agora vamos deixar de brincadeiras, meu filho. Tive uma idéia para resolver o seu caso, ocorreu-me uma coisa nas minhas noites de vigília. A gente poderia falar de uma inspiração. Com efeito, espero muito da minha idéia, quer dizer, espero nada mais nada menos do que a desintoxicação do senhor e o seu regresso triunfal para muito mais cedo do que pensa.

“Está arregalando os olhos, heim?”, prosseguiu, depois de uma pausa bem calculada, se bem que Hans Castorp absolutamente não arregalasse os olhos, mas o fitasse com uma expressão entre sonolenta e distraída. “Não pode imaginar o que o velho Behrens quer dizer com isso. Quero dizer é o seguinte: há no seu interior qualquer coisa que não está certa, Castorp. Isso não pode ter escapado à sua prezada inteligência. Não está certa, no sentido de que os seus fenômenos de intoxicação há muito tempo não correspondem ao estado local, que incontestavelmente melhorou muito. Não é apenas desde ontem que esse fato me dá que pensar. Temos aqui a sua última radiografia... Vamos olhar esse troço contra a luz. Como o senhor está vendo, nem os piores resmungões e pessimistas, para usar uma das expressões prediletas do nosso imperador, poderiam encontrar aqui muitos defeitos. Alguns focos acham-se completamente resolvidos, a área diminuiu e tem contornos mais nítidos, o que, como o senhor na sua sabedoria não ignora, indica a cura progressiva. Esse estado de coisas não explica a irregularidade da sua temperatura doméstica, meu caro rapaz. E o médico vê-se na obrigação de procurar outras causas.”

Um movimento de cabeça de Hans Castorp evidenciou um esforço moderado de mostrar alguma curiosidade cortês.

– Pois é, meu caro Castorp, sem dúvida pensa o senhor agora que o velho Behrens deve admitir ter cometido um erro no tratamento. Nesse caso, o senhor estaria redondamente enganado e julgaria mal tanto a situação como o velho Behrens. O seu tratamento não foi errado; apenas pode ser que a sua orientação tenha sido unilateral. Cheguei a ventilar a possibilidade de os seus sintomas não terem, desde o começo, a sua origem exclusiva na tuberculosis; e isso porque hoje me parece improvável que ainda continuem tendo a sua origem nela. Deve existir uma outra fonte de perturbações. A meu ver, o senhor tem “cocos”...

“Sim!”, repetiu o conselheiro enfaticamente, depois de ter registrado o sinal de aprovação que Hans Castorp lhe devia por esse diagnóstico, “segundo a minha íntima convicção, o senhor tem ‘estreptos’, o que, aliás, não é nenhum motivo para se assustar desta forma.”

(Absolutamente não se podia falar de susto. A fisionomia de Hans Castorp expressava antes certa admiração irônica, ou antes a agudeza que se lhe deparava ou antes a nova dignidade que lhe conferia a hipótese do conselheiro.)

– Não há razão para pânico – volveu o médico, variando o seu consolo. – Todo mundo tem “cocos”. Qualquer burro tem “estreptos”, de maneira que o senhor não precisa gabar-se. Não faz ainda muito tempo que sabemos que o homem pode ter estreptococos no sangue, sem que se produzam fenômenos mais ou menos perceptíveis que indiquem a infecção. Achamo-nos em presença de um fato que muitos dos meus colegas ignoram, por enquanto, a saber: que o sangue pode conter tubérculos, sem que estes causem as menores conseqüências. Já não estamos muito, distantes da teoria de que a tuberculose é, na verdade, uma doença do sangue.

Hans Castorp achou isso muito interessante.

– Bem, quando falo de estreptos – recomeçou Behrens – o senhor não deve pensar na forma grave da doença, que é a mais conhecida. A análise bacteriológica do seu sangue deve demonstrar se esses bichinhos simpáticos realmente se instalaram no seu interior. Mas não será senão pelos efeitos de um tratamento de estreptovacina que constataremos se seu estado febril provém ou não provém deles. É este o caminho, meu caro amigo, que seguiremos, e, como já lhe expliquei, espero dele resultados dos mais imprevisíveis. Embora a tuberculose seja de cura muitíssimo demorada, enfermidades desse tipo podem ser curadas em pouco tempo. Se o senhor mostrar a menor reação a estas injeções, em seis semanas o senhor estará tão bem quanto um peixe dentro d’água. Que me diz agora? O velho Behrens está ou não está alerta?

– Por enquanto só se trata de uma hipótese – disse Hans Castorp sem energia.

– Uma hipótese que pode ser comprovada. Uma hipótese sumamente fecunda – retrucou o conselheiro. – O senhor vai ver até que ponto é fecunda, quando os cocos se multiplicarem nas nossas culturas. Amanhã de tarde, Castorp, vai entrar na faca; faremos uma sangria segundo as regras da arte dos barbeiros de aldeia. Isso é um prazer sui generis e pode exercer sobre o corpo e a alma os mais milagrosos efeitos...

Hans Castorp declarou-se disposto a submeter-se a essa diversão e agradeceu polidamente pela atenção que lhe era dedicada. Com a cabeça inclinada para o ombro, acompanhou com o olhar o conselheiro, que se afastava remando. A intervenção do médico-chefe realizara-se precisamente num momento crítico. Radamanto interpretara de modo bastante acertado a fisionomia e o estado de espírito do pensionista, e sua nova experiência destinava-se – destinava-se expressamente, sem disfarçar a intenção – a fazer Hans Castorp avançar além do ponto morto em que o paciente se encontrava havia pouco, segundo se podia concluir do seu semblante, que recordava exatamente o que mostrara o saudoso joachim na época em que certas decisões bruscas e indisciplinadas se haviam preparado no seu íntimo.

E mais: parecia a Hans Castorp que não somente ele próprio chegara a esse ponto morto, mas que ao mundo na sua totalidade acontecera o mesmo, ou melhor: tornava-se-Ihe difícil distinguir nesse caso os fatores particulares dos gerais. Suas relações com uma autêntica personalidade tinham acabado de forma excêntrica, que produzira múltipla agitação no sanatório. Clávdia Chauchat abandonara novamente a sociedade dos pensionistas, depois do beijo de despedida que, à sombra de uma grande e trágica renúncia, e num espírito de reverente devoção, fora trocado entre ela e o grande amigo do seu senhor. E desde aquele clímax o jovem sentia que alguma coisa não andava certa no mundo e na vida; tudo lhe dava a impressão de ter saído dos eixos; de um modo singular e cada vez mais intenso, tudo se lhe afigurava angustiante; era como se um demônio se tivesse apossado do poder, um demônio cuja influência perigosa e tola desde muito tempo já se fizera bastante sensível, mas que, a essa altura, se arrogava uma autoridade irrestrita, capaz de inspirar um secreto terror e de sugerir pensamentos de fuga: o demônio que se chamava “tédio”.

Decerto julgarão que o narrador exagera crassa e romanticamente ao estabelecer uma relação entre o conceito de tédio e o princípio demoníaco, e ao atribuir ao primeiro o efeito de um pavor místico. E todavia não contamos histórias da carochinha; pelo contrário, atemo-nos exatamente às experiências pessoais do nosso singelo herói, experiências essas que – não podemos relatar como – chegamos a conhecer, e que nos fornecem a prova cabal de ser possível, sob certas circunstâncias, que o tédio assuma tal caráter e inspire sentimentos desse gênero. Hans Castorp olhava em torno de si... Via coisas perfeitamente sinistras, perniciosas, e sabia o que se lhe deparava: era a vida sem tempo, a vida sem cuidados nem esperanças, a vida que estagnava sob a forma de uma atividade abastardada, a vida morta.

Achava-se ela num movimento constante; ocupações de toda espécie existiam lado a lado, mas de vez em quando uma dentre elas degenerava a ponto de se tornar uma loucura geral à qual todos se entregavam freneticamente. O diletantismo fotográfico, por exemplo, ocupara sempre lugar importante no mundo do Berghof; duas vezes, porém – quem vivia bastante tempo ali em cima podia presenciar a volta periódica de tais epidemias –, a paixão pela fotografia transformara-se em mania geral que se prolongara por semanas e meses. Não houvera então ninguém que não inclinasse com uma expressão preocupada a cabeça por cima de uma máquina fotográfica fincada no estômago, que não fizesse o obturador piscar e não passasse cópias de mesa em mesa. De repente faziam questão de revelar as suas fotografias sozinhos. A câmara escura que se achava à disposição dos pensionistas nem de longe bastava para satisfazer as necessidades. As janelas dos quartos e as portas de sacada eram então revestidas de cortinas pretas e, à luz de lâmpadas vermelhas, os amadores lidavam com banhos químicos até um belo dia produzir-se um incêndio que quase devorou o estudante búlgaro da mesa dos “russos distintos”; em conseqüência disso, as autoridades do sanatório proibiram esse tipo de atividade. Não tardaram em desinteressar-se da fotografia simples. Entrou a moda dos instantâneos a magnésio e das fotografias coloridas pelo processo de Lumière. Começaram então a deleitar-se com retratos de pessoas que, bruscamente surpreendidas pelo relâmpago de magnésio, mostravam os olhos fixos e os rostos lívidos, contraídos, de cadáveres de assassinados que alguém tivesse assentado numa cadeira, depois de lhes abrir os olhos. E Hans Castorp guardava um diapositivo emoldurado em papelão, que se devia manter contra a luz para vê-lo com o rosto cor de cobre, numa clareira verde-gaio, pintalgada de dentes-de-leão muito amarelos, um dos quais lhe luzia na lapela; ladeavam-no a Srª. Stöhr e a Srta. Levi, com a tez de marfim, a primeira num pulôver azul-celeste e a segunda numa blusa vermelha como sangue.

Havia também a filatelia. Sempre existiam pensionistas que se dedicavam a ela, mas em determinadas épocas alastrava-se, originando uma verdadeira mania coletiva. Todo mundo trocava, regateava, colava selos em álbuns. Tomavam assinaturas de revistas filatélicas; entabulavam correspondências com casas especializadas da Suíça e do estrangeiro, com associações e colecionadores. Até mesmo pessoas cuja situação financeira mal lhes permitia passar meses ou anos nesse luxuoso sanatório gastavam importâncias pasmosas na aquisição de selos raros.

Essa epidemia durava até se impor uma outra tolice, como, por exemplo, a compra e o consumo de enormes quantidades de chocolates de todas as marcas, que um dia entrou em voga. Todos andavam com os lábios pardos, e os mais apetitosos produtos da cozinha do Berghof encontravam uma acolhida desdenhosa e crítica, já que os estômagos estavam entulhados e indispostos por milka-nut, chocolat à la creme d’amandes, marquis-napolitains e línguas de gato salpicadas de ouro.

A arte de desenhar porquinhos com os olhos fechados, introduzida pela mais alta autoridade numa longínqua noite de carnaval, e muito cultivada desde então, transformara-se aos poucos em exercícios geométricos de paciência, aos quais se dedicavam em certa época as forças intelectuais de todos os pensionistas do Berghof e mesmo os últimos pensamentos e as derradeiras demonstrações de energia dos moribundos. Durante semanas a fio, a casa viu-se sob o signo do desenho de uma figura complicada que se compunha de nada mais nada menos que oito círculos grandes e pequenos e de diversos triângulos inscritos uns nos outros. Tratava-se de esboçar a mão livre e num só traço o intrincado multilátero; mas a mestria suprema consistia em realizar essa proeza com os olhos espessamente vendados, o que, em última análise, e abstração feita a deslizes de menor monta, foi unicamente conseguido pelo Promotor Paravant, o campeão absoluto dessa excentricidade engenhosa.

Sabemos que ele se consagrava à matemática; sabemo-lo pela boca do próprio conselheiro, e também conhecemos a casta motriz do seu zelo; ouvimos elogios às qualidades mitigantes dessa ciência que embotava o aguilhão da carne. Se todos houvessem imitado o exemplo do promotor, provavelmente teriam sido desnecessárias certas medidas de precaução, cuja introdução nos últimos tempos se tornara inevitável. Procedera-se antes de tudo à obstrução de todas as passagens que existiam nas sacadas para quem contornasse aquelas divisões de vidro fosco, que não se estendiam até a balaustrada. Nessas passagens foram colocadas pequenas portas que, de noite, se fechavam à chave, sob os largos sorrisos de todo mundo. A partir de então eram muito procurados os quartos do primeiro andar, acima do avarandado, onde se podia saltar a balaustrada, caminhar por cima do teto de vidro e passar de um compartimento a outro, evitando as portinhas. Mas não era por causa do promotor que fora preciso introduzir essa inovação disciplinar. A veemente tentação que a figura da egípcia Fatme exercera sobre Paravant havia muito que estava dominada, e esta tinha sido a última agitação da sua virilidade natural. Com redobrado ardor lançara-se ele então nos braços da deusa de olhos claros, cujo poder calmamente o conselheiro costumava celebrar com palavras cheias de elevada moral. Outrora, antes da sua licença muitas vezes prorrogada, e que ameaçava converter-se em aposentadoria definitiva, empenhara-se com afinco em comprovar a culpa dos desgraçados pecadores. Agora dedicava toda essa persistência, toda a sua tenacidade desportiva a um único problema que dia e noite lhe absorvia os pensamentos. Esse problema era a quadratura do círculo.

O funcionário deslocado adquirira no curso dos seus estudos a convicção de que as provas com que a ciência queria demonstrar a impossibilidade dessa construção não eram sólidas, e que por esta razão é que a bondosa providência o distanciara do mundo dos vivos, lá de baixo, e o transportara até aquelas alturas, sendo ele, Paravant, escolhido para arrancar o objetivo sublime da esfera do transcendente e para colocá-lo no terreno firme da solução exata. E assim chegara a traçar círculos, a calcular onde quer que se encontrasse. Cobria imensas quantidades de papel com figuras, letras, algarismos, símbolos algébricos. Seu rosto bronzeado, aparentemente o rosto de um homem de perfeita saúde, mostrava a expressão visionária, obstinada, de um maníaco. Sua conversa referia-se exclusivamente, com pavorosa monotonia, ao fator pi, essa fração desesperante, que o gênio inferior de um calculador chamado Zacharias Dase calculara um dia até duzentas decimais, e isso por um capricho gratuito, já que nem duas mil decimais aumentariam de modo apreciável as possibilidades de nos aproximarmos da precisão inatingível. Não havia quem não procurasse escapar do pensador atormentado, pois todos os que ele conseguia agarrar pela manga do casaco tinham de suportar torrentes de palavras fervorosas, destinadas a lhes despertar a sensibilidade humana, para que percebessem a vergonha com que a irracionalidade irremediável dessa proporção mística poluía o espírito do homem. O promotor executava inúmeras multiplicações do diâmetro do círculo e do quadrado do raio por pi, na intenção de encontrar respectivamente a circunferência e a área, e a inutilidade de todos esses esforços levava-o a alguns acessos de dúvida. Perguntava-se então se a humanidade, desde os dias de Arquimedes, não complicara desnecessariamente a solução do problema, e se esta solução não era, em realidade, incrivelmente fácil. Ora, por que não seria possível retificar o contorno de um círculo e por conseguinte curvar uma reta a ponto de fazê-la assumir a forma circular? Às vezes, Paravant pensava estar na iminência de uma revelação. Era visto freqüentemente, altas horas da noite, na sala de refeições vazia e mal iluminada, onde permanecia sentado à sua mesa, sobre cuja superfície nua dispunha cuidadosamente em forma de círculo um pedaço de barbante, ao qual bruscamente, como que para surpreendê-lo, dava a forma de quadrado. Em seguida, costumava apoiar a cabeça na mão e entregar-se a sombrias meditações. O conselheiro acudia-lhe de vez em quando nessas brincadeiras melancólicas e animava-o a persistir na sua mania. Acontecia também dirigir-se o coitado a Hans Castorp para desabafar a sua querida mágoa, e isso se repetia, já que encontrava compreensão amistosa e bastante simpatia pelo mistério do círculo. O promotor explicava ao jovem a desgraça de pi, exibindo um desenho sumamente exato, onde com extremo esmero a circunferência de um círculo estava traçada entre dois polígonos de inúmeros lados minúsculos, um inscrito e outro circunscrito, desenho que representava o máximo de aproximação a que o homem pode chegar. O resto, porém, a curva que de um modo etéreo-espiritual se esquivava à racionalização por parte das retas que a comprimiam, este resto – dizia Paravant com a maxila inferior a tremer – este resto era pi! Hans Castorp, apesar da sua índole receptiva, mostrava-se menos irritado com pi do que o seu interlocutor. Dizia que aquilo não passava de uma quimera; aconselhava o Sr. Paravant a que não se inflamasse em excesso com aquela busca ilusória; falava dos pontos de inflexão, sem extensão alguma, de que se compunha o círculo, desde o seu início inexistente até o seu fim, que também não existia, bem como da soberba melancolia que se manifestava nessa eternidade, a qual, sem nunca guardar um rumo constante, sempre voltava ao ponto de partida. Suas palavras revelavam tanta religiosidade sossegada que produziam passageiramente um efeito tranqüilizador sobre o Sr. Paravant.

Em conseqüência do seu caráter complacente, o bom Hans Castorp estava predestinado a receber as confidencias de vários dos seus companheiros que se achavam possuídos de alguma idéia fixa e sofriam por não encontrar na maioria leviana dos pensionistas pessoas que os quisessem ouvir. Um antigo escultor, natural de uma província da Áustria, homem de certa idade, com um bigode branco, nariz adunco e olhos azuis, concebera um projeto político-financeiro, que caligrafara, sublinhando os trechos decisivos com pinceladas de tinta nanquim. Esse projeto tinha o seguinte objetivo: cada assinante de jornal deveria ser obrigado a entregar no primeiro dia de cada mês uma quantidade de papel de jornal velho que correspondesse a quarenta gramas por dia. Isso importaria anualmente em cerca de mil e quatrocentos gramas, e em vinte anos em nada menos de duzentos e oitenta e oito quilos, os quais, à base de um preço de vinte Pfennige por quilo, representariam um valor de cinqüenta e sete marcos e sessenta Pfennige. Cinco milhões de assinantes – assim prosseguia o memorando – entregariam, portanto, em vinte anos, a soma formidável de duzentos e oitenta e oito milhões de marcos, dois terços da qual poderiam ser deduzidos das assinaturas, ao passo que o resto, aproximadamente cem milhões de marcos, seriam aproveitados para fins humanitários, como, por exemplo, o financiamento de sanatórios populares para tísicos, subvenções para talentos, pobres, etc. O plano estava elaborado em todos os pormenores. Inclusive uma coluna que permitia ao funcionário encarregado de recolher mensalmente o papel verificar o valor do mesmo pela altura da pilha. Havia formulários perfurados para servir de recibo. Era um projeto sólido e fundado sob todos os aspectos. O gesto insensato e a destruição de papel de jornal, que gente mal-avisada ainda desperdiçava em cloacas ou fogões, constituía alta traição às nossas florestas e um golpe contra a economia nacional. Poupar papel, economizar papel, significaria poupar e economizar celulose, florestas e o material humano usado na fabricação da celulose e do papel – material humano e capital. Acrescia a isso o fato de o papel de jornal velho adquirir facilmente o quádruplo valor pela transformação em papel de embrulho ou em papelão, de maneira que seria capaz de se converter num fator econômico de vasta importância e em fundamento de rendosos impostos estaduais ou municipais, ao passo que os leitores de jornais veriam as suas contribuições aliviadas. Numa palavra, o projeto era bom, era, em realidade, inatacável, e se no entanto tinha algo de sinistra ociosidade e mesmo de obscura tolice, era somente por causa do fanatismo excêntrico com que o ex-artista defendia e apregoava uma idéia econômica, exclusivamente esta e mais nenhuma, apesar de levá-la, evidentemente, tão pouco a sério que não fazia a menor tentativa para realizá-la... Sacudindo a cabeça obliquamente inclinada, Hans Castorp escutava as exposições do homem, cada vez que este, com palavras febrilmente exaltadas, propagava a sua idéia de salvação. Ao mesmo tempo o jovem analisava a natureza do desdém e da repulsa que o impediam de tomar o partido do inventor contra a indolência do mundo.

Alguns pensionistas do Berghof estudavam esperanto e compraziam-se em conversar à mesa nessa geringonça artificial. Hans Castorp observava-os de cenho franzido, se bem que opinasse de si para si que eles não eram os piores. Desde algum tempo encontrava-se por ali um grupo de ingleses que haviam introduzido um jogo de salão que consistia apenas no seguinte: formavam um círculo e um dos participantes dirigia ao vizinho a pergunta: “Did you ever see the devil with a night-cap on?” O assim interrogado devia responder: “No! I never saw the devil with a night-cap on”, e em seguida passar adiante a pergunta, que sem cessar percorria a roda. Era espantoso! Mas o pobre Hans Castorp assustava-se ainda mais diante dos companheiros que jogavam paciência, e que se podiam ver a qualquer hora e em todo lugar. A mania dessa distração alastrara-se nos últimos tempos a tal ponto que não é exagerado dizer que transformara o Berghof num antro de vício. Hans Castorp tinha motivos para experimentar diante disso uma sensação de horror, tanto mais que ele mesmo temporariamente fizera parte das vítimas da epidemia, sendo talvez o caso mais grave de todos. Entusiasmara-se pela paciência dos “onze”; nesse jogo, usa-se o baralho completo; dispõem-se na mesa três filas de três cartas cada uma; duas cartas vizinhas cuja soma for onze ou três figuras que se encontrarem numa fila, podem ser substituídas por outras cartas, até a paciência, bafejada pela sorte, dar certo. Parece incrível que de um procedimento tão simples possa resultar uma verdadeira fascinação. Entretanto Hans Castorp, tal e qual muitos outros, deparava com essa possibilidade; fazia-o com uma expressão carrancuda, visto o excesso jamais levar à alegria. Sentia-se dominado pelos caprichos do demônio das cartas, encantado pelos fantásticos e volúveis favores da Fortuna. Às vezes, esta, num gracioso gesto de simpatia, acumulava logo de início as parelhas de onze pontos e de grupos de valete-dama-rei, de modo que o jogo estava ganho ainda antes do começo da terceira mão – triunfo fugaz que apenas estimulava os nervos para novas tentativas. Outras vezes, não oferecia até a nona e última carta nenhuma oportunidade para retirar parelhas ou grupos, ou ainda contrariava, numa reviravolta brusca, no último momento, o êxito que já parecera garantido. E Hans Castorp tirava paciências a toda hora, onde quer que se achasse; tirava-as tanto de noite, à luz das estrelas, como pela manhã, ainda de pijama, à mesa e mesmo durante os seus sonhos. Horrorizava-se diante dessa mania, mas continuava a fazê-lo. Sucedeu, assim, que um belo dia, por ocasião de uma visita, o Sr. Settembrini o encontrou jogando, e logo o “importunou”, conforme a missão que lhe coubera desde o começo das suas relações.

– Accidente! – disse o humanista. – O senhor tira a sorte, engenheiro?

– Não é precisamente essa a minha intenção – respondeu Hans Castorp. – Jogo apenas paciência, estou desafiando o acaso inconstante. Suas extravagâncias me intrigam, sua obsequiosidade que se reveza com uma obstinação incrível. Esta manhã, quando me levantei, a paciência deu certo três vezes seguidas, uma vez até em duas mãos apenas, o que representa um recorde. Acredita o senhor que hoje de tarde já fiz trinta e duas tentativas, sem que nenhuma vez chegasse apenas à metade do baralho?

O Sr. Settembrini mirou-o com uma expressão triste dos olhos negros, como tantas vezes fizera no decorrer dos anos.

– Em todo caso, o senhor me parece atarefado – disse. – Não tenho a impressão de que encontrarei na sua companhia consolo para as minhas preocupações e bálsamo para aliviar o conflito interior que me atormenta.

– Conflito? – repetiu Hans Castorp, e tirou uma carta.

– A situação mundial me deixa perturbado – suspirou o maçom. – A Liga Balcânica está a ponto de se realizar. Todas as minhas informações confirmam isso. A Rússia trabalha assiduamente nesse sentido, e a ponta da combinação dirige-se contra a monarquia austro-húngara, sem a destruição da qual nenhuma parte do programa russo pode se tornar realidade. O senhor compreende o meu dilema? Odeio Viena de todo o coração, como o senhor sabe. Mas será esse um motivo para que a minha alma dê apoio ao despotismo sármata, que está prestes a lançar a tocha incendiaria contra o nosso nobre continente? Por outro lado, uma colaboração diplomática entre o meu país e a Áustria, por mais passageira que fosse, não deixaria de me ferir como uma ofensa. Esses são os escrúpulos de consciência que...

– Sete e quatro – disse Hans Castorp. – Oito e três. Valete, dama, rei. Já vai melhor. O senhor me traz sorte, Sr. Settembrini.

O italiano emudeceu. Hans Castorp sentiu como os olhos negros, o olhar cheio de razão e de moral, pousavam sobre a sua pessoa, profundamente entristecidos. Mesmo assim prosseguiu por algum tempo ainda tirando cartas, antes de firmar o queixo na mão, com aquela fisionomia teimosa de fingida inocência que as crianças arteiras exibem. Ergueu então o olhar para o mentor, que estava de pé à sua frente.

– Seus olhos – disse este – procuram em vão dissimular que o senhor sabe muito bem aonde chegou.

– Placet experiri – foi a petulante resposta de Hans Castorp, em virtude da qual o Sr. Settembrini o abandonou. Verdade é que o jovem deixado sozinho permaneceu por muito tempo diante da sua mesa, no meio do quarto branco, sem tirar cartas; com a cabeça apoiada na mão, cismava e, no seu íntimo, sentia-se tomado de horror em face do estado macabro e inseguro em que se lhe apresentava tudo; espantava-o a careta cinicamente risonha do demônio, do deus-macaco, sob cujo domínio insensato e desenfreado se achava o mundo, e que se chamava o “Grande Tédio”.

Um nome mau, apocalíptico, próprio para inspirar uma secreta angústia. Hans Castorp, continuando sentado, esfregou com as mãos a fronte e a zona do coração. Tinha medo. Parecia-lhe que “tudo aquilo” não podia acabar bem, que uma catástrofe devia ser o seu fim lógico, uma revolta da natureza paciente, um temporal, um tufão que varresse o mundo, desfazendo o feitiço que o paralisava, arrancando a vida do “ponto morto” e dando cabo da “época das vacas magras” num terrível dia do juízo. Não lhe faltava, como já dissemos, vontade de fugir. Ainda bem que as autoridades “velavam sem cessar”, sabiam interpretar a sua fisionomia e se esforçavam por diverti-lo mediante novas e fecundas hipóteses!

No linguajar característico dos acadêmicos universitários, as autoridades haviam declarado que se achavam na pista das verdadeiras causas da temperatura irregular de Hans Castorp, causas que, segundo a sua afirmação científica, seria tão fácil remediar que a cura, a alta efetiva e o regresso à planície pareciam de súbito iminentes. O coração do jovem batia mais depressa, assaltado pelas mais diversas emoções, enquanto estendia o braço para a sangria. Levemente pálido, com os olhos piscos, admirava a maravilhosa cor de rubi da sua seiva vital, que, subindo aos poucos, enchia o receptáculo transparente. O conselheiro em pessoa, assistido pelo Dr. Krokowski e por uma enfermeira, efetuou a pequena operação cujas conseqüências podiam ser grandes. Depois se escoou uma série de dias que Hans Castorp passou curioso por saber que papel faria o sangue dado, fora de seu corpo, perante os olhos da ciência.

No começo, o conselheiro dizia que o tempo não era suficiente para que alguma coisa pudesse germinar. Depois, dizia que infelizmente não germinara ainda nada. Mas chegou a manhã em que, na hora do café, se aproximou da mesa de Hans Castorp, o qual a essa época tinha o seu lugar entre os “russos distintos”, na extremidade superior, lá onde outrora seu grande amigo costumara sentar-se. Entre felicitações temperadas de floreios, o médico lhe comunicou que numa das culturas por ele preparadas tinha sido descoberta, de modo inegável, a presença de estreptococos. Era um problema de cálculo de probabilidades saber se os fenômenos de intoxicação tinham a sua origem na tuberculosezinha que em todo caso ainda persistia, ou nos “estreptos”, cuja proporção também não era mais que modesta. Era preciso examinar o material mais detida e mais cuidadosamente. A cultura ainda não estava completamente desenvolvida. No laboratório, mostrou-a a Hans Castorp. Era uma geléia vermelha, de sangue, no meio da qual se distinguiam uns pontinhos cinzentos. Aquilo eram os cocos. (Qualquer burro tinha cocos, da mesma forma que tubérculos, e não houvesse os sintomas, a descoberta não teria muito valor.)

Fora do corpo de Hans Castorp, e sob os olhos da ciência, o sangue coagulado do seu coração continuava a desempenhar o seu papel. E raiou a manhã em que o conselheiro, servindo-se de palavras emocionadas, cheias de locuções pitorescas, o informou do seguinte: não somente numa única cultura, mas também em todas as demais, acabavam de desenvolver-se cocos, e em grandes quantidades. Era difícil dizer se todos eles eram estreptococos, mas parecia agora sumamente provável que os fenômenos de intoxicação fossem causados por eles, posto que não se pudesse dizer até que ponto contribuía para esses fenômenos a tuberculose que indiscutivelmente existira e ainda não se dera por totalmente vencida. Que conclusão se devia tirar de tudo isso? Um tratamento de estreptovacina! O prognóstico? Extraordinariamente favorável, e além disso não haveria o menor risco em fazer uma tentativa que de forma alguma prejudicaria o paciente. Uma vez que o soro seria tirado do próprio sangue de Hans Castorp, a injeção não introduziria no corpo nenhum elemento de enfermidade que já não se encontrasse nele. Na pior das hipóteses seria inútil, sem nenhum efeito. Mas era essa hipótese realmente tão má assim, dado o fato de que Hans Castorp de qualquer jeito teria de ficar ali?

Hans Castorp não queria ir tão longe a ponto de afirmar o contrário. Submeteu-se ao tratamento, embora o achasse ridículo e desonroso. Essas vacinas com a sua própria substância afiguravam-se-lhe como uma diversão terrivelmente desagradável, um horroroso incesto do eu com o eu, de natureza estéril e desprovida de esperança. Assim o fazia julgar a sua ignorância hipocondríaca, que tinha razão somente no que se referia à esterilidade do processo, a qual se manifestou completa. A diversão prolongou-se através de várias semanas. Às vezes parecia prejudicá-lo, o que não podia ser outra coisa que um engano; outras dava a impressão de lhe trazer proveito, o que também se revelou ilusório. O resultado foi zero, sem que isso fosse proclamado expressamente. A experiência morreu um belo dia de morte natural, e Hans Castorp continuou a jogar paciência, cara a cara com o demônio, cujo reinado descomedido estava – o jovem sentia-o claramente – fadado a um fim horroroso.

 

         Abundância de harmonia

Qual foi a nova aquisição do Sanatório Berghof que salvou o nosso velho amigo da mania das cartas, para lançá-lo nos braços de uma paixão diferente, mais nobre, embora na verdade não menos estranha? A ponto de falar dessa inovação, nós mesmos sentimos o misterioso encanto que o assunto irradia, e que nos inspira o sincero desejo de comunicar os fatos ao leitor.

Tratava-se de um acréscimo feito ao número de aparelhos de diversão que se achavam no maior dos salões da casa. A compra, cuja idéia era fruto dos incessantes cuidados da gerência, tinha sido resolvida no seio do grêmio administrativo do sanatório e exigira despesas que não queremos computar, mas devemos qualificar de generosas por parte da direção desse estabelecimento, que merece a nossa irrestrita recomendação. Seria um brinquedo engenhoso do tipo da caixa estereoscópica, do caleidoscópio em forma de luneta e do tambor cinematográfico? Sim e, sob certos aspectos, também não. Pois, em primeiro lugar não era óptico mas acústico aquele instrumento com que os pensionistas certa noite depararam no salão de música e que os fez bater as mãos em sinal de aplauso e de surpresa. Além disso, as referidas atrações levianas absolutamente não podiam ser comparadas a ele quanto à classe, ao nível e ao valor. Isso não era um espetáculo infantil, monótono, do qual todos estavam fartos e que ninguém olhava depois de mais de três semanas de permanência no sanatório. Era uma opulenta cornucópia de prazeres artísticos que alegravam ou entristeciam a alma. Era um instrumento de música. Era um fonógrafo.

Receamos seriamente que essa palavra possa ser interpretada num sentido indigno e obsoleto, e associada a idéias que talvez correspondam aos primitivos precursores daquilo que temos em mente, não, porém, à realidade, essa realidade que a técnica consagrada ao serviço das musas desenvolvera, num infatigável esforço burilador, até a mais elevada perfeição. Não, meus amigos! Não falamos de um daqueles míseros caixotes a manivela que em tempos remotos enchiam os ouvidos pouco exigentes do público de restaurantes com seus berros fanhosos, esses caixotes coroados pelo prato giratório e pelo braço da agulha, e que pareciam apêndices de um monstruoso funil de trombeta. A arca preta, de madeira mate, um pouco mais comprida do que larga, que ali, em cima de uma estantezinha, exibia as suas linhas simples e nobres, e que um fio revestido de seda ligava a uma tomada elétrica embutida na parede, absolutamente não se parecia com aquelas máquinas toscas, antediluvianas. Abria-se a tampa graciosamente chanfrada, guarnecida no seu interior de um suporte metálico dobradiço que, ao levantar-se do fundo do aparelho, fixava-a automaticamente numa posição oblíqua, protetora; e numa concavidade pouco profunda via-se o prato giratório, forrado de pano verde, cingido de um aro niquelado, com o pino central igualmente de níquel, que se enfiaria no furo dos discos de ebonite. Notava-se, além disso, bem na frente, ao lado direito, um dispositivo cifrado à maneira de relógio, e que servia para regular a velocidade. À esquerda, havia uma alavanca, mediante a qual se podia pôr em marcha ou travar o mecanismo, e mais para trás, ao mesmo lado, o braço oco, niquelado, sinuoso e claviforme, que se movia em articulações macias e tinha na sua extremidade o diafragma redondo, achatado, com o torninho destinado a segurar a agulha. Abriam-se também os batentes da porta da frente. Atrás dela descobria-se uma espécie de gelosia, formada por fasquias enviesadas de madeira preta – e nada mais.

– É o modelo mais recente – disse o conselheiro, que acabava de entrar. – A última conquista da técnica. Pois é, meus filhos, de primeiríssima qualidade! Ultrafino! Não há coisa melhor nesse gênero. – Procurou arremedar de maneira cômica a linguagem de um vendedor ignorante que apregoa a sua mercadoria. – Isto não é aparelho, não é máquina – continuou, enquanto tirava uma agulha de uma caixinha colorida, de lata, que se achava na mesa, e a fixava no diafragma –, isso aí é um instrumento, é um Stradivarius, um Guarneri, com ressonâncias e vibrações do mais extremo refinamento! A marca é Polyhymnia, segundo nos informa esta inscrição no interior da tampa. Fabricada na Alemanha. Nesse ramo ninguém nos ganha, sabem? O sentimentalismo musical em forma moderna, mecanizada! A alma alemã up to date! E aí está a discoteca – acrescentou, designando um pequeno armário com fileiras de álbuns volumosos. – Entrego todo esse tesouro ao uso e prazer irrestrito dos senhores e das senhoras, mas pede-se ao público que zele por ele. Que tal se ouvíssemos uma peça, a título de experiência?

Os enfermos imploraram-lhe que o fizesse. E Behrens apanhou um daqueles livros mágicos, de valioso conteúdo, virou as páginas pesadas e de uma das bolsas de cartolina, cujos buracos circulares deixavam ver os rótulos multicores, tirou um disco que colocou no aparelho. Com uma única manobra acionou o prato giratório, esperou alguns segundos, até o movimento alcançar a velocidade desejada, e aplicou a delicada ponta da agulha de aço cautelosamente à beira do disco. Ouviu-se um leve chiado. O médico desceu a tampa, e no mesmo instante irrompeu pelos batentes abertos da porta, por entre as fasquias da gelosia, um turbilhão orquestral, uma melodia alegre, barulhenta, apressada, os primeiros compassos saltitantes de uma abertura de Offenbach.

Todos escutavam, sorrindo, boquiabertos. Não podiam dar crédito a seus ouvidos, tão puros e tão naturais saíam os trinados dos sopros de madeira. Um violino, sozinho, preludiava fantasiando. Ouviam-se o toque do arco, o tremolo da mão esquerda, a suave transição de uma posição a outra. O violino encontrou a melodia que procurara, uma valsa, Ai de mim, perdi a amada. Graciosamente, a orquestra acompanhava a ária insinuante, e era delicioso quando esta, honrosamente acolhida pelo conjunto dos músicos, se repetia sob o estrondo dos tutti. Não era, naturalmente, a mesma coisa como se uma verdadeira orquestra tocasse no salão. O som não sofria a menor desfiguração, mas o seu volume estava diminuído pela perspectiva; se nos é permitido empregar diante desse fenômeno acústico uma comparação tirada do terreno da óptica: era como se olhássemos um quadro por um binóculo às avessas, de modo que aparecesse distante e reduzido, sem detrimento da nitidez do desenho e da luminosidade das cores. A peça musical, engenhosa e picante, ia sendo reproduzida com todo o brilho inerente a essa composição frívola. O final era a leveza pura e simples, um galope comicamente hesitante no começo, um lascivo cancã, evocando a visão de cartolas brandidas no ar, de joelhos sacudidos e de saias farfalhantes, e cujo desenlace humorístico-triunfal parecia não ter fim. A seguir, o mecanismo desligou-se automaticamente. Terminara tudo. Houve sinceros aplausos.

Reclamaram mais música e receberam-na. Uma voz humana brotou da arca, voz máscula, ao mesmo tempo macia e poderosa, acompanhada por uma orquestra. Era um barítono italiano de grande fama. Desta vez já não se podia falar de distância e de véus abafadores. A magnífica voz ressoava na plenitude natural do seu volume e vigor. Quem passasse para uma das salas vizinhas, cujas portas estavam abertas, e não visse o aparelho, poderia pensar que o cantor em carne e osso estivesse presente, e cantasse com as músicas na mão. Cantava na sua língua materna, uma ária di bravura: “Sono un barbieri, di qualità, di qualità! Figaro qua, Figaro la, Figaro, Figaro, Figaro!” Os ouvintes quase morriam de riso, ao escutar o parlando em voz de falsete e ao notar o contraste entre a voz potente e a vertiginosa desenvoltura da língua. As pessoas mais competentes talvez fossem capazes de observar e de apreciar a arte do fraseado e da técnica respiratória. Mestre na apresentação irresistível, virtuose do gosto latino que exige o “da capo”, o cantor sustentou por muito tempo a penúltima nota, antes da tônica final. Parecia aproximar-se da ribalta e erguer uma das mãos, a ponto de o público bater palmas ainda antes do fim da ária. Era esplêndido.

E isso não era tudo. Uma trompa de caça executou com escrupulosa delicadeza variações sobre uma canção popular. Um soprano fez vibrar as clarinadas, os staccati e os gorjeios de uma ária de La traviata com a mais encantadora frescura e precisão. O fantasma de um violinista de celebridade mundial tocou, como se se achasse por trás de alguns véus, uma romança de Rubinstein, com acompanhamento de um piano que soava tão duro como um cravo. A arca milagrosa fervia aos poucos, mas ainda saíam dela badaladas de sinos, glissandi de harpas, clangores de trombetas e rufos de tambores. Finalmente tocaram discos de dança. Já havia até algumas amostras da importação mais recente, ao gosto das tavernas de portos exóticos: o tango, destinado a relegar a valsa vienense ao baile dos avós. Dois pares que sabiam executar os passos da moda exibiram-se sobre o tapete. Behrens acabava de retirar-se, depois de recomendar-lhes que não usassem uma agulha mais de uma vez e que tratassem os discos como se fossem ovos frescos. Hans Castorp encarregou-se do aparelho.

Por que justamente ele? Isso se dera com a maior naturalidade. Falando laconicamente, em voz abafada, opusera-se àqueles que, depois da saída do conselheiro, queriam tomar a si a incumbência de mudar os discos ou as agulhas e de acionar ou desligar o motor elétrico. – Deixem isto comigo! – dissera, afastando-os do aparelho, e eles, indiferentes, lhe haviam obedecido; primeiro, porque ele dava a impressão de ser entendido no assunto desde havia muito tempo, e segundo, porque não faziam questão de trabalhar na fonte do prazer, ao invés de se deixar servir comodamente e sem responsabilidade, até o momento em que isso lhes causasse tédio.

Hans Castorp era diferente. Enquanto o conselheiro apresentava a nova aquisição, o jovem mantivera-se silenciosamente no fundo da sala; não se ria, não batera palmas, mas prestara intensa atenção às peças oferecidas, torcendo uma sobrancelha entre dois dedos, como às vezes tinha por hábito. Tomado de certa inquietação, de quando em quando mudara de lugar, sem que o público o notasse. Entrara na biblioteca, a fim de escutar ali. Mais tarde plantara-se ao lado de Behrens, com as mãos nas costas e com a cara fechada. Examinara a arca, para lhe aprender o fácil manejo. Uma voz dizia nele: “Alto! Alerta! Começa uma época! Isso veio para mim!” Estava cheio do infalível pressentimento de mais uma paixão, de outro encantamento, do peso de um novo amor. Um jovem da planície, que ao primeiro olhar lançado a uma garota sente-se ferido pela flecha farpada do amor, não experimenta sensações diferentes. Os atos subseqüentes de Hans Castorp foram determinados pelo ciúme. Propriedade comum? Qual nada, a curiosidade indolente não tem nem o direito nem a força necessária para possuir! “Deixem isto comigo!”, disse Hans Castorp entre dentes, e eles pareciam muito satisfeitos. Dançaram mais um pouco ao som das músicas fúteis que ele lhes oferecia. Pediram ainda um disco de canto, um dueto de ópera, a barcarola dos Contos de Hoffmann, cuja graça lhes enfeitiçava os ouvidos, e quando Hans Castorp chaveou a tampa, recolheram-se ao repouso, tagarelando, superficialmente animados pelo novo brinquedo. Era precisamente isto o que o jovem esperava. Haviam abandonado tudo na mais completa desordem, as caixinhas de agulhas e os álbuns abertos, os discos espalhados por toda parte. Era típico! Hans Castorp fez como se os seguisse, mas, clandestinamente, separou-se deles na escada. Voltou ao salão, cerrou todas as portas e permaneceu ali durante grande parte da noite, intensamente atarefado.

Ia se familiarizando com a inovação. Sem que ninguém o incomodasse, examinava os tesouros musicais que acompanhavam o aparelho, o conteúdo de todos os pesados álbuns. Havia doze, de dois tamanhos diferentes, e cada qual continha doze discos. Muitas dessas chapas pretas, com os angustos sulcos circulares, eram gravadas dos dois lados. Certas peças estendiam-se por sobre o disco inteiro, e não eram raros os casos em que o mesmo disco continha duas obras diferentes. Assim parecia, no início, difícil e mesmo perturbadora a tarefa de obter uma visão de conjunto desse terreno cheio de belas possibilidades, que lhe cabia conquistar. Hans Castorp experimentou aproximadamente uns vinte e cinco discos, servindo-se de certo tipo de agulhas finas que tocavam em surdina, para não molestar ninguém e para não ser ouvido através da noite. Mas isso representava apenas a oitava parte de tudo quanto se lhe oferecia e clamava por ser experimentado. Por enquanto, Hans Castorp se contentou com uma rápida leitura dos títulos, e só de vez em quando escolhia a esmo uma amostra das silenciosas gravações circulares, para incorporá-la na arca que a faria soar. Era só pelo colorido que lhes cobria a parte central, e por nada mais, que esses discos de ebonite se distinguiam à primeira vista. Um era igual ao outro. Todos estavam cobertos até quase o centro por um sem-número de círculos concêntricos, e no entanto esse lineamento delicado continha tudo o que se pudesse imaginar de música, os mais felizes achados de todas as regiões da alma, em esmerada interpretação.

Existiam ali numerosas aberturas e movimentos avulsos, pertencentes ao mundo sublime da sinfonia, tocados por orquestras famosas, cujos regentes eram designados pelo nome. Seguia-se uma série de Lieder cantados por membros de grandes óperas, com acompanhamento de piano; tratava-se em parte de obras elevadas, produtos do esforço consciente de artistas individuais, em parte de singelas cantigas do povo, e ainda de outras peças que, por assim dizer, constituíam um meio-termo entre ambos os gêneros: embora frutos de uma arte intelectual, representavam, quanto à inspiração e à forma, a alma e o gênio do povo no que possuía de mais puro e mais piedoso; eram canções populares artificiais, se é possível usar o epíteto “artificial” sem lhes diminuir o caráter genuíno da invenção. Referindo-nos sobretudo a uma canção que Hans Castorp conhecia desde criança, mas pela qual só agora começava a sentir um amor misterioso, rico em associações, canção essa de que falaremos noutra parte... Que mais havia, ou, para tornar a resposta mais fácil: que faltava, afinal? Havia abundância do gênero lírico. Um coro internacional de festejados cantores e cantoras, acompanhados por orquestras discretamente refreadas, empregava o dom divino das suas vozes afeitas ao bel canto, na interpretação de árias, duetos, ensembles, provenientes das mais diversas regiões e épocas do repertório operístico: a beleza meridional, com o seu arrebatamento ao mesmo tempo generoso e frívolo; o mundo dos povos germânicos, mescla de espírito brincalhão e demoníaco; a grande ópera e a ópera cômica, de origem francesa. Era tudo? Ah, não! Vinha ainda o grupo de músicas de câmara, os quartetos e os trios, os solos instrumentais de violinos, violoncelos e flautas, os cantos de concerto, com acompanhamento obligato de violino ou flauta, as peças puramente pianísticas, para não falar das diversões leves, como os couplets e os discos de serventia concreta, gravados por orquestras de dança, e que requeriam uma agulha grossa.

Hans Castorp examinava e classificava tudo isso. Manobrando em completa solidão, entregou parte do tesouro ao instrumento que o despertava para uma vida sonora. Com a cabeça ardendo, recolheu-se ao quarto numa hora tão avançada como aquela em que terminara o primeiro festim organizado pela saudosa personalidade do majestoso e fraternal Peeperkorn. Das duas da madrugada até as sete da manhã, sonhou com a arca mágica. No seu sonho via o prato giratório dar voltas em torno do pino, tão depressa que não se podia distinguir nenhum pormenor, e todavia sem o mínimo ruído, num movimento que consistia não somente no turbilhonante fluxo circular, mas também numa estranha ondulação lateral, de maneira que ao braço articulado, portador da agulha, que passava por cima, era imprimida uma oscilação elástica, muito proveitosa, segundo tudo fazia crer, ao vibrato e ao portamento dos instrumentos de corda e das vozes humanas. Mas, tanto em sonho como em estado de vigília, continuava incompreensível por que o simples ato de acompanhar uma linha fina como um cabelo, por cima de uma caixa de ressonância, e com o único auxílio da membrana do diafragma, era capaz de reproduzir a vasta complexidade das composições que enchiam os ouvidos interiores do adormecido.

De manhã cedo, ainda antes do café, voltou ao salão e, com as mãos postas, sentado numa poltrona, fez sair da arca a voz maravilhosa de um barítono que cantava, com acompanhamento de harpa, a ária de Wolfram von Eschenbach, da ópera Tannhäuser. A harpa tinha um som perfeitamente natural; eram arpejos autênticos, não adulterados, que partiam da arca, junto com a voz humana, ampla, suave, bem-articulada. Era pasmoso. E nada podia haver de mais terno no mundo do que um dueto de uma ópera italiana de um compositor moderno, que Hans Castorp tocou a seguir – essa aproximação sentimental, cheia de humildade e ternura, que se produz entre uma voz de tenor mundialmente famosa, que muitas vezes figurava nos álbuns, e um sopranozinho meigo, cristalino; era impossível imaginar coisa mais delicada do que esse “Dami il braccio, mia piccina...”, cantado pelo homem, e aquela pequena frase simples, doce, de melodia pressurosa com que ela lhe respondia...

Hans Castorp sobressaltou-se, quando a porta se abriu às suas costas. Era o conselheiro, que lançava um olhar ao salão. Em avental de médico, o estetoscópio no bolso do peito, permaneceu um instante com o trinco da porta na mão, acenando para o alquimista de sons. Depois que este retribuiu o aceno por cima do ombro, o rosto do chefe, com as faces azuladas e o bigodinho torto de um lado, logo sumiu atrás da porta cerrada. E Hans Castorp tornou a dirigir a atenção ao harmonioso casalzinho de namorados invisíveis.

Mais tarde, no decorrer do dia, após o almoço e o jantar, havia ouvintes a observar-lhe as atividades, um público que se renovava constantemente – uma vez que consideramos o próprio Hans Castorp, não como parte do auditório, senão como autor do divertimento oferecido. Também ele tendia para esse ponto de vista, e os habitantes do Berghof admitiram-no tacitamente desde o início, não se opondo ao ato enérgico com que o jovem se nomeara a si próprio administrador e guardião da nova instituição pública. Para essa gente, isso não representava nenhum sacrifício. Verdade é que manifestavam certo arrebatamento superficial quando aquele idolatrado tenor, extasiando-se em harmonia e doçura, derramava a voz que encantava o mundo, em cantilenas e efusões de paixão altamente artísticas. Mas, não obstante o seu júbilo ruidoso, faltava-lhes o verdadeiro amor, e por isso estavam muito dispostos a deixar os cuidados do aparelho a quem quisesse encarregar-se deles. Era Hans Castorp quem mantinha em ordem o tesouro dos discos; era ele quem anotava no interior da capa o conteúdo do respectivo álbum, de maneira a se poder encontrar imediatamente qualquer música desejada; era ele quem lidava com o instrumento. Dentro de pouco tempo, isso já se notava pelos seus gestos rápidos, precisos e delicados. Realmente, que teriam feito os outros? Teriam violado os discos, maltratando-os com agulhas gastas; tê-los-iam abandonado nas cadeiras, sem invólucro protetor; teriam abusado do aparelho para brincadeiras estúpidas, tocando uma peça sublime com a velocidade de cento e dez ou colocando o ponteiro em zero, de modo a tirarem da caixa ora um trilo histérico ora um grunhido sufocado... Já haviam chegado a fazer tudo isso. Embora doentes, eram rudes. Eis por que Hans Castorp, ao cabo de algum tempo, confiscou simplesmente a chave do armário que continha os álbuns e as agulhas. Daí por diante andava com ela no bolso, e quem quisesse ouvir um concerto teria de chamá-lo.

Pela noite, depois da reunião, quando os pensionistas acabavam de se recolher, vinham as suas melhores horas. Permanecia então no salão ou voltava ali clandestinamente, para tocar músicas, sozinho, até altas horas da noite. Verificou que o perigo de perturbar com isso o sossego da casa era menor do que acreditara. O alcance desses sons espectrais era evidentemente pequeno. As vibrações, por mais surpreendente que fosse o efeito por elas causado perto da sua fonte, enfraqueciam a alguma distância, mostrando-se débeis e desprovidas de verdadeiro poder, como toda fantasmagoria. Hans Castorp achava-se entre as quatro paredes, a sós com as maravilhas da arca, com as exuberantes produções desse ataudezinho truncado, de madeira de violino. Diante dos batentes abertos desse pequeno templo de fosca negrura, instalava-se numa poltrona, com as mãos postas, inclinando a cabeça para um ombro, e com a boca entreaberta banhava-se em melodias.

Os cantores e as cantoras que estava ouvindo – não os via. Sua forma humana encontrava-se na América, em Milão, em Viena, em São Petersburgo. Não fazia mal que não se encontrassem ali, pois aquilo que Hans Castorp possuía era o que neles havia de melhor, era a sua voz, e o jovem apreciava essa depuração e abstração que restava bastante acessível aos sentidos para permitir-lhe um bom controle humano – sobretudo quando se tratava de artistas alemães, compatriotas seus – com eliminação de todos os inconvenientes que acarretaria a excessiva proximidade física. Podia-se distinguir o dialeto, a dicção, a origem étnica dos artistas. O caráter vocal revelava fatos relacionados com a envergadura espiritual de cada um deles. Pela maneira como aproveitavam ou desperdiçavam as possibilidades de interpretação, evidenciava-se o grau da sua inteligência. Hans Castorp exasperava-se quando fracassavam. Também sofria e mordia os lábios cada vez que ocorriam imperfeições da reprodução técnica. Sentia-se como sobre brasas quando, no meio de um disco muitas vezes tocado, uma nota de canto soava estridente ou berrante, o que sucedia freqüentemente com as delicadas vozes femininas. Mesmo assim se conformava, pois quem ama tem de sofrer. Às vezes se inclinava por sobre o mecanismo que girava, palpitando, como sobre um ramalhete de lilases, com a cabeça sumida numa nuvem de sons. Mantinha-se à frente da arca aberta, e saboreava o prazer soberano de um regente, enquanto com um gesto de mão, no momento preciso, dava aos clarins o sinal de ataque. Tinha alguns favoritos na coleção, números de canto e peças instrumentais, que nunca se cansava de ouvir. Não podemos deixar de citá-los.

Um pequeno grupo de discos apresentava as cenas finais daquela ópera pomposa, transbordante de gênio melódico, que fora composta por um grande compatriota do Sr. Settembrini, o velho mestre da música dramática meridional, na segunda metade do século passado, por encomenda de um potentado oriental, e devia a sua origem à circunstância solene da entrega à humanidade de uma obra da técnica destinada a aproximar os povos. Devido à sua formação, Hans Castorp sabia pouco mais ou menos do que se tratava. Conhecia em linhas gerais os destinos de Radamés, Amnéris e Aída, que cantavam para ele em italiano, no interior da caixa, e assim entendia praticamente tudo quanto diziam o incomparável tenor, o majestoso contralto com a magnífica mudança de timbre na meia-voz, e o soprano cristalino. Não os entendia palavra por palavra, mas apanhava uma ou outra frase, graças ao seu conhecimento das situações e à simpatia que experimentava por elas, essa afeição íntima que se intensificava à medida que tocava aqueles quatro ou cinco discos, a ponto de se transformar num autêntico sentimento amoroso.

Em primeiro lugar havia uma discussão entre Radamés e Amnéris. A filha do rei mandara conduzir à sua presença o homem acorrentado, a quem amava e desejava ardentemente salvar, se bem que ele tivesse renegado a pátria e a honra por amor à escrava bárbara. (Verdade é que o próprio Radamés afirmava que “puro se conservara o seu pensamento e intata a sua honra”.) Mas essa integridade íntima, sem embargo da gravidade da sua culpa, pouco lhe adiantava. Em virtude do seu crime evidente, ele estava sujeito à jurisdição dos sacerdotes, que eram inexoráveis quanto às fraquezas humanas. Parecia certo que não fariam cerimônias, se no último instante não alterasse a sua atitude e renunciasse à escrava, para lançar-se nos braços do majestoso contralto com a mudança de timbre, que, do ponto de vista acústico, merecia isso plenamente. Amnéris fazia os mais fervorosos esforços em prol do tenor harmonioso, o qual, porém, tragicamente obcecado e avesso à vida, se limitava a cantar “Não posso” ou “Em vão”, cada vez que lhe implorava, com súplicas desesperadas, que abandonasse a escrava, porque a sua vida estava em jogo. “Não posso.” “Rogo-te mais uma vez: renuncia a ela!” “Em vão!” A cegueira desejosa de morrer e o mais ardente pesar de amor reuniam-se num diálogo, que era extraordinariamente belo, mas não deixava nenhuma esperança. A seguir, Amnéris acompanhava com seus gritos de dor as medonhas fórmulas das réplicas do tribunal religioso, cujos sons surdos subiam das profundezas, e às quais o infausto Radamés absolutamente não reagia.

“Radamés, Radamés!”, cantava com insistência o Sumo Sacerdote, e de uma forma muito sutil lhe fazia ver o crime de traição.

“Desculpa-te!”, exigia o coro dos sacerdotes.

E como o Sumo Sacerdote verificava que Radamés permanecia mudo, todos, com cavernosa unanimidade, declaravam-no culpado de traição.

“Radamés, Radamés!”, recomeçava o presidente, “desertaste do acampamento na véspera da batalha.”

“Desculpa-te!”, cantava novamente o coro. “Ele se cala”, constatava pela segunda vez o presidente muito mal impressionado, e em conseqüência disso, todos os votos dos juizes tornavam a reunir-se na sentença: “Traição!”

“Radamés, Radamés!”, ouvia-se pela terceira vez a voz do implacável acusador. “Violaste o juramento à pátria, à honra e ao rei.” “Desculpa-te!”, ressoava novamente o coro. E “Traição!” era o veredicto definitivo que o grêmio dos sacerdotes pronunciava com horror, depois de sua atenção ter sido chamada para o fato de Radamés calar-se teimosamente. Destarte era impossível evitar o inevitável. O coro, cujas vozes nem sequer se haviam retirado para deliberar, promulgava a sentença, segundo a qual a sorte do criminoso estava decidida. Teria ele de morrer a morte dos malditos; entraria vivo na tumba, sob o templo da divindade irada. A indignação que Amnéris manifestava diante dessa crueldade clerical era coisa que o ouvinte devia imaginar o melhor que pudesse; pois a reprodução interrompia-se nesse ponto. Hans Castorp teve que mudar o disco, o que fez com movimentos silenciosos, precisos, e, por assim dizer, com os olhos baixos. Quando voltou a instalar-se na poltrona para escutar, já se desenrolava a última cena do melodrama, o dueto final entre Aída e Radamés, cantado na profundeza da sua sepultura subterrânea, enquanto por cima das suas cabeças os sacerdotes fanáticos, desapiedados, celebravam o seu culto no templo e, com as mãos espalmadas, proferiam surdas ladainhas... “Tu, in questa tomba?”, clamava entre espanto e delícia a voz de Radamés, essa voz incrivelmente insinuante, meiga e ao mesmo tempo heróica. Sim, ela se juntara a ele, a bem-amada, pela qual sacrificara a vida e a honra; esperara-o nesse lugar; deixara-se enterrar com ele, para morrer a seu lado. Os cantos em que os amantes comentavam esse fato, ora dialogando, ora unindo as suas vozes, esses cantos interrompidos de quando em quando pelo ruído surdo do cerimonial, que vinha do pavimento superior – eram eles em última análise o que enfeitiçara até o fundo da alma o ouvinte solitário e noturno, devido tanto às circunstâncias como à expressão musical. Falava-se do céu nesse dueto, mas ele mesmo era celeste, e cantavam-no divinamente. A linha melódica que as vozes de Radamés e Aída, isoladas ou reunidas, não cessavam de traçar, essa curva singela e feliz em torno da tônica e da dominante, que subia desde a nota fundamental até a prolongação em marcato, a um semitom da oitava, e depois de um contato fugidio com esta se voltava para a quinta –, essa linha afigurava-se ao ouvinte mais pura, mais maravilhosa do que tudo o que já lhe ocorrera. No entanto, Hans Castorp teria demonstrado muito menos entusiasmo pelos meros sons, não existisse a situação que os inspirava, e que tornava o seu espírito sensível para a doçura que dela se desprendia. Era tão belo o fato de Aída se ter juntado ao condenado Radamés, a fim de partilhar com ele, para toda a eternidade, o destino sepulcral! Com razão protestava o sentenciado contra a imolação de uma vida tão graciosa. Mas, através do seu grito terno e desesperado “No, no! troppo sei bella!” transparecia o encanto que experimentava ante a definitiva união com Aída, que pensara nunca mais ver. Hans Castorp não precisava forçar a sua imaginação para participar desse encanto e dessa gratidão. Mas, o que sentia, compreendia e gozava antes de mais nada, enquanto, com as mãos postas, olhava a portinhola negra de cujas fasquias partia toda essa beleza, era o alto e idealístico vôo da música, da arte, da alma humana, o sublime e irrefutável embelezamento que esse idealismo outorgava aos horrores vulgares das coisas reais. Bastava visionar com os olhos da razão o que se passava nessa cena. Duas pessoas enterradas vivas, com os pulmões cheios de gases mefíticos, pereceriam juntas, ou, o que seria ainda pior, uma depois da outra, torcendo-se de fome; a seguir, a putrefação exerceria sobre os corpos os seus indescritíveis efeitos, até que no fundo da tumba repousassem dois esqueletos, cada um dos quais ficaria completamente indiferente e insensível à questão de saber se jazia ali sozinho ou acompanhado. Este era o aspecto realista e objetivo das coisas – um aspecto e uma coisa à parte, que o idealismo do coração nem sequer levava em conta, e que o espírito da beleza e da música ofuscava triunfalmente. Para as almas operísticas de Radamés e Aída não existia a realidade que os ameaçava. Suas vozes elevavam-se em uníssono até aquela jubilosa appoggiatura à oitava, afirmando que nesse momento se abria o céu, e que suas almas errantes voavam ao encontro dos raios do dia eterno. O poder consolador desse paliativo fazia bem ao ouvinte e contribuía muito para que esse número do seu programa predileto se lhe tornasse especialmente caro.

Costumava ele descansar desses sustos e êxtases, escutando uma outra peça breve, mas cheia de concentrada magia, peça de conteúdo muito mais plácido do que o da primeira, um idílio, porém um idílio refinadíssimo, ideado e colorido com o aproveitamento dos meios parcos e ao mesmo tempo complexos da arte contemporânea. Era uma peça puramente orquestral, sem canto, um prelúdio sinfônico de origem francesa, composta com uma instrumentação relativamente reduzida para a nossa época, mas com o mais perfeito conhecimento da polifonia moderna, e habilmente elaborada para envolver a alma numa teia de sonhos.

O sonho a que Hans Castorp se entregava ao tocar esse disco era o seguinte: achava-se ele deitado de costas num prado banhado pelo sol e semeado das estrelas variegadas de um sem-número de flores. Tinha por baixo da cabeça um montículo de terra. Estava com as pernas encolhidas, uma cruzada por cima da outra. Mas deve-se observar que essas pernas eram pernas de bode. Só para o seu próprio prazer – pois a solidão do prado era completa – suas mãos dedilhavam um pequeno instrumento de sopro, que mantinha diante da boca, clarineta ou charamela, da qual extraía sons pacatos e fanhosos, um após outro, assim como lhe ocorriam, e todavia numa seqüência agradável. E esses balidos despreocupados subiam ao céu intensamente azul, sob o qual fremia ao sol a delicada folhagem de isolados freixos e bétulas, que uma leve aragem agitava. Mas esta musiqueta contemplativa, inconsciente, semimelodiosa, estava longe de ser a única voz que ressoava pela solidão. Os zumbidos dos insetos no ar quente do verão, por cima do capim; a própria luz do sol, a suave brisa, a agitação das copas das árvores, a cintilação das folhas – todo o movimento brando da paz estival que reinava em redor transformava-se numa mescla de sons que dava ao singelo toque da charamela um sentido harmônico, sempre renovado e sempre cheio de surpresas. De vez em quando recuava ou emudecia o acompanhamento sinfônico; mas Hans, com suas pernas de bode, continuava a soprar no seu instrumento, e a monotonia ingênua da sua música despertava novamente a magia sonora, de requintado colorido, da natureza; essa magia que, depois de uma nova interrupção, voltava finalmente, superando-se a si mesma. Juntavam-se-lhe instrumentos novos, mais agudos, atacando em rápida sucessão. Por um momento fugaz, cuja plenitude deliciosa, perfeita, encerrava, todavia, a eternidade, era-lhe dada a exuberância de que a orquestra dispunha e que lhe negara até então. O jovem fauno sentia-se muito feliz no seu prado, nesse dia de verão. Ali não havia ninguém que exigisse: “Desculpa-te!”, não havia responsabilidades, não havia sacerdotes reunidos num tribunal de guerra, julgando um homem que se esquecera da honra e estava perdido para o mundo. Nesse lugar reinava o próprio esquecimento, a bem-aventurada imobilidade, o estado inocente da ausência de tempo. Era o relaxamento praticado com a melhor das consciências, a miragem apoteótica de todo tipo de negação do imperativo ocidental da ação, e a sensação de calma que esse disco inspirava conferia-lhe valor especial aos olhos do nosso músico noturno.

Existia uma terceira peça... Na realidade eram outra vez diversas peças, três ou quatro, formando um grupo e revezando-se entre si. A ária do tenor, que fazia parte do conjunto, enchia sozinha uma face do disco. Novamente se tratava de música francesa, trechos de uma ópera que Hans Castorp conhecia bem, que ouvira e vira diversas vezes no teatro, e a cujo enredo até aludira de passagem num colóquio, e num colóquio de importância decisiva... A cena passava-se no meio do segundo ato, numa taverna espanhola, baiuca espaçosa, enfeitada de panos. O edifício de estilo mourisco já estava um tanto danificado. A voz de Carmem, cálida, levemente rouca mas atraente pelo timbre peculiar à sua raça, declarava que queria dançar em homenagem ao sargento, e já se ouvia o tatalar das suas castanholas. No mesmo instante, porém, ressoavam a alguma distância trombetas, clairons, um sinal militar que se repetia e fazia o rapaz sobressaltar-se violentamente. “Espera um pouco. Só um momento!”, gritava ele, aguçando os ouvidos qual um cavalo. E quando Carmem perguntava: “Por quê? Que é que há?”, exclamava o sargento: “Não ouves?”, todo surpreendido porque a clarinada não a impressionava tanto como a ele. E explicava que esse sinal era dado pelas trombetas do quartel. “Do regresso se aproxima a hora”, dizia em estilo operístico. Mas a cigana era incapaz de compreender aquilo, e também não queria fazê-lo. Tanto melhor, argumentava ela, entre tola e insolente, nesse caso não havia necessidade de castanholas; o próprio céu lhes mandava música para dançar: “tá-rá-tá-rá...” O rapaz estava fora de si. A mágoa que lhe causava a decepção eclipsava-se diante do esforço de explicar a ela de que se tratava e que nenhuma paixão do mundo podia resistir a esse sinal. Como era possível que ela não compreendesse uma coisa tão fundamental e tão absoluta? “É preciso que eu volte já ao quartel, para a revista”, clamava ele, desesperado diante da ignorância da mulher, que lhe tornava o coração ainda mais triste do que normalmente. E imaginem o que Carmem lhe respondia a isso! Estava furiosa, indignada até o fundo da alma. Era em cada nota a personificação do amor enganado e ofendido; ou, ao menos, fingia sê-lo. “Ao quartel? Para a revista?” e o seu coração? Seu coração meigo e carinhoso que, na sua fraqueza – sim, ela não o negava: na sua fraqueza! – se dispusera a diverti-lo com danças e cantos? “Tá-rá-tá-rá!” Com um gesto de escárnio selvagem conduzia à boca a mão em funil, para arremedar o clarim. “Tá-rá-tá-rá!” Mais não era necessário para que o imbecil se levantasse de um pulo e fizesse menção de sair correndo. Pois então, que se fosse! E lhe estendia o capacete, o sabre, o cinturão. Que não perdesse tempo, que se apressasse para voltar ao quartel!... E ele pedindo misericórdia. Mas a mulher prosseguia com o seu sarcasmo cáustico, representando o papel dele, que perdera a pouca razão que tinha ao ouvir as clarinadas. “Tá-rá-tá-rá, para a revista!” Deus do Céu! chegaria tarde. Depressa, chamavam-no para a revista, e por isso era natural sobressaltar-se feito um louco, no momento em que Carmem queria dançar para ele. Ora, se aquilo era o amor que sentia por ela!...

Que situação angustiosa! Ela não o compreendia. Essa mulher, essa cigana não podia nem queria compreender. Não queria, pois isso era indubitável: na sua fúria e no seu sarcasmo havia algo que ia além dos fatos atuais e particulares, um ódio, uma inimizade primitiva contra o princípio que se servia desses clairons franceses – ou dessas trompas espanholas – para chamar o soldadinho apaixonado. Triunfar sobre esse princípio era a sua ambição suprema, inata, ultra-pessoal. Para esse fim fazia uso de um recurso muito simples: afirmava que, se ele ia embora, era porque não a amava. Era precisamente isso o que José, lá no interior da arca, não podia suportar. Conjurava-a a que o deixasse falar. Ela não queria. Então obrigavá-a a escutá-lo. Era um momento infernalmente sério. Sons trágicos desprendiam-se da orquestra, um motivo sombrio, cheio de ameaça, que, como Hans Castorp sabia, se alastrava através de toda a ópera, até a catástrofe final, e também constituía a introdução da ária do soldadinho, num outro disco que se seguia a este.

“A flor que me atiraste...”, José cantava às mil maravilhas. Hans Castorp tocava o disco também isoladamente, fora do conjunto familiar, e sempre o ouvia com a mais atenta simpatia. Quanto ao conteúdo, a ária não valia grande coisa, mas o sentimento expressado nessas súplicas era comovente. O soldado falava da flor que Carmem lhe atirara no começo das suas relações, e que significara tudo para ele no cárcere onde fora metido por causa dela. Profundamente emocionado, confessava que em certos momentos amaldiçoara o destino por ter admitido que Carmem cruzasse os seus caminhos. Mas em seguida se arrependera dessa blasfêmia e ajoelhara-se para rogar a Deus lhe permitisse revê-la. Pois – e este “pois” era a mesma nota aguda com que imediatamente antes iniciara a frase “Rever-te, Carmem...” – pois... (e agora se desencadeava no acompanhamento toda a magia instrumental apropriada para descrever o pesar, a saudade, a ternura frustrada e o doce desespero do soldadinho) pois bastara que Carmem lhe surgisse ante os olhos, na sua beleza simplesmente fatal, e lançasse um olhar sobre ele (“sobre mim”, com uma appoggiatura breve, soluçante, de tom inteiro, na primeira palavra) para que José sentisse com a mais absoluta clareza que ela se apoderara de todo o seu ser – “para possuíres todo o meu ser”, cantava ele, desolado, numa seqüência melódica reiterada, que a orquestra, lamentando-se por sua própria conta, repetia, subindo da tônica dois tons e voltando-se ardorosamente para a quinta inferior. “Meu coração te pertence”, afirmava desnecessariamente o rapaz, com palavras triviais, mas muitíssimo carinhosas, servindo-se mais uma vez dessa figura musical. A seguir galgava a escala até o sexto grau, para acrescentar: “E eu era teu!” Com isso a voz deixava cair dez tons e confessava com a mais profunda emoção: “Carmem, eu te amo!”, retardando dolorosamente o fim dessa frase por um prolongamento com harmonia modulada, antes que a última sílaba da palavra “amo” se fundisse com a primeira no acorde fundamental.

– Está bem – dizia então Hans Castorp, entre melancólico e agradecido, e punha ainda no aparelho o disco do final, em que todos felicitavam o jovem José por ter-lhe o encontro com o oficial impossibilitado o regresso, de maneira que não podia senão desertar, como Carmem, para o seu maior espanto, já lhe sugerira antes.

 

        “Segue-nos através dos campos,

         Vai conosco às montanhas ”

 

cantavam em coro. Era fácil entender a letra.

 

         “Como é bela a vida errante;

           O universo por país; tua vontade por lei,

           E sobretudo aquela coisa inebriante

           Que é a liberdade, a liberdade!”

 

– Está bem – dizia Hans Castorp novamente e passava para uma quarta peça, que o comovia pela bondade e pelo sentimento.

Nós não somos responsáveis de que fosse outra vez uma composição francesa, como tampouco nos pode ser imputado o espírito militar que também nela se manifestava. Era uma melodia intercalada, um solo de canto, uma “Oração” da ópera Fausto de Gounod. Aparecia um indivíduo ultra-simpático, de nome Valentim; mas Hans Castorp, no seu íntimo, chamava-o de outra forma, por um nome mais familiar, cheio de recordações aflitivas, cujo portador identificava completamente com a personagem que ali se manifestava no interior da arca, se bem que este tivesse voz muito mais bela. Era um vigoroso e cálido barítono, e sua ária se dividia em três partes. Havia duas estrofes muito semelhantes uma à outra, de caráter piedoso, compostas quase no estilo de um hino sacro protestante, e que emolduravam uma terceira de espírito destemido, cavalheiresco, um canto guerreiro, frívolo, e não obstante também piedoso. Era precisamente isso o que havia nessa ária de francês e militar. A personagem invisível cantava:

 

           “Antes de deixar estes sítios,

           A terra natal dos meus antepassados...”

 

e nessas circunstâncias dirigia a sua prece ao Senhor dos Céus, confiando-Lhe a irmã para que a protegesse durante a sua ausência. Iria ele para a guerra – e com isso mudava o ritmo, tornando-se enérgico. Que as preocupações e as tristezas fossem para o diabo! Ele, o invisível, queria procurar o lugar onde houvesse a mais encarniçada batalha e o maior perigo, e arrojar-se intrépida, piedosa, francesmente, contra o inimigo. “Mas, se Deus me chamar para o Céu”, cantava, “velarei fielmente sobre ti.” Embora esse “ti” se referisse à irmã, comovia profundamente Hans Castorp, e essa sua emoção não o abandonava até o fim da ária, quando o homem valente no interior do aparelho repetia, acompanhado por poderosos acordes corais:

 

         “A ti, Senhor e Rei dos Céus,

           Margarida eu confio”.

 

Esse disco não apresentava nenhum outro interesse. Achamos indicado dedicar-lhe umas poucas palavras, porque Hans Castorp o apreciava especialmente, mas também porque ele desempenhou mais tarde um certo papel em circunstâncias bastante estranhas. E agora falaremos da quinta e última das peças que pertenciam ao grupo dos discos prediletos. Dessa vez não nos referimos a uma obra francesa, mas a uma música específica e inteiramente alemã. Não era um trecho de ópera, senão um Lied, uma daquelas canções que são simultaneamente patrimônio popular e obra-prima, e devem a essa simultaneidade o seu caráter peculiar e espiritual... mas, para que todos esses circunlóquios? Era A tília de Schubert; era simplesmente aquela canção que todos conhecem e que começa com as palavras: “Recordo a velha tília bem junto do portão...”

Cantava-a um tenor, com acompanhamento de piano, rapaz cheio de tato e de bom gosto, que sabia tratar com grande inteligência, com muita delicadeza musical e com esmerada técnica de recitação, o seu assunto singelo e ao mesmo tempo sublime. Ninguém ignora que essa maravilhosa canção, quando cantada por uma criança ou pela boca do povo, soa diferente da composição artística. Na sua forma popular, simplificada, as estrofes de oito versos seguem a melodia principal, ao passo que, no Lied de Schubert, já a segunda estrofe é variada; o tom passa para menor, mas no quinto verso volta a maior, de um modo lindíssimo. Na frase que se segue – a dos “ventos frios” e do chapéu arrancado da cabeça – a melodia é dramaticamente resolvida, não sendo reencontrada senão nos últimos quatro versos da terceira estrofe, que são repetidos, para dar um remate à canção. A inflexão realmente arrebatadora da melodia ocorre três vezes, na sua segunda metade modulada; a terceira vez, por conseguinte, na repetição da última semi-estrofe, a partir do verso “E agora vou tão longe...” Essa inflexão mágica que não ousamos analisar por meio de palavras realiza-se nos fragmentos de frases “Mil coisas que senti...”, “Falando para mim...” e “Daquele lugar ali...” A clara e cálida voz de tenor, soluçante sem exagero, e de magnífica técnica respiratória, cantava-a sempre com uma compreensão tão inteligente da sua beleza que o ouvinte sentia o coração indizivelmente comovido. E o artista sabia intensificar esse efeito por um falsete extremamente suave que usava ao cantar os versos: “E sempre estava lá” e “A paz está aqui”. Na repetição da última frase, porém, naquele “Encontrarás a paz”, cantou o primeiro “encontrarás” com a plenitude da sua voz cheia de nostalgia, e o segundo, num delicadíssimo flageolet.

Isso quanto ao Lied e à sua interpretação. Nos casos anteriores podíamos jactar-nos de ter comunicado aos nossos leitores uma vaga compreensão da simpatia íntima que Hans Castorp experimentava pelas peças favoritas dos seus concertos noturnos. Mas tornar compreensível o que significava para ele essa última, essa canção, a velha Tília, é realmente empresa das mais complexas, que requer da nossa parte um tratamento de extraordinária delicadeza, porque o contrário nos levaria antes a comprometer do que a esclarecer a questão.

É assim que queremos colocá-la: um assunto espiritual, isto é, um assunto significativo torna-se “significativo” precisamente porque designa algo fora dos seus próprios limites, porque é expressão e expoente de uma esfera espiritual mais vasta, de um mundo inteiro de sentimentos e pensamentos, que encontrou nele um símbolo mais ou menos perfeito – o que dá então a medida da sua importância. Além disso é “significativo” em si o amor que se sente por tal assunto. Esse amor nos informa sobre a pessoa que ama, caracteriza as relações que ela mantém com aquela esfera mais vasta, com o referido mundo que o assunto representa, e que é, consciente ou inconscientemente, amado junto com ele.

Poderá o leitor nos dar crédito se afirmarmos que o nosso singelo herói, depois de tantos anos de desenvolvimento hermético-pedagógico, penetrara bastante fundo na vida espiritual para ter consciência do “significado” do seu amor e do objeto amado? Afirmamo-lo e asseguramos que ele teve essa consciência. Aquela canção significava muito para Hans Castorp, um mundo inteiro e justamente um mundo que ele amava, não há dúvida; pois, não fosse assim, não se enamoraria a tal ponto do símbolo que o substituía. Sabemos o que estamos dizendo quando acrescentamos – talvez sob forma um tanto obscura – que o seu destino teria tomado um rumo diferente, se a sua alma não houvesse sido particularmente receptível às tentações da esfera sentimental, da atitude espiritual que esse Lied resumia de um modo mágico e insinuante. Esse mesmo destino, porém, trouxera consigo progressos, aventuras, descobertas, e colocara-o diante de problemas “governamentais” que o haviam tornado capaz de criticar intuitivamente esse mundo, bem como o símbolo que o representava, por mais admirável que fosse, e também o amor que sentia por ele; e tudo isso fazia com que o jovem tivesse escrúpulos de consciência com respeito a todos os três, o mundo, o símbolo e o amor.

Ora, nada entenderia do amor quem supusesse que tais escrúpulos poderiam prejudicá-lo. Pelo contrário, dão-lhe o verdadeiro sabor. Eles é que conferem ao amor o incentivo da paixão, de maneira que se poderia definir a paixão, de um modo absoluto, como o amor que duvida. E em que consistiam os escrúpulos que acossavam a consciência e o “reino” de Hans Castorp e o levavam a duvidar da legitimidade superior da afeição que nele despertavam aquela encantadora canção e o mundo de que ela tratava? Qual era o mundo que se abria atrás dela e que, segundo os pressentimentos íntimos de Hans Castorp, devia ser o mundo do amor proibido?

Era a morte.

Mas isso é rematada loucura! Uma canção tão maravilhosa! Uma obra-prima das mais puras, nascida nas derradeiras e mais sagradas profundezas do gênio popular! Um patrimônio sublime, a mais alta expressão do sentimento genuíno, a graça personificada! Que calúnia!

Está bem! Está tudo muito bem! É assim que pessoas bem-intencionadas devem falar. Entretanto, por trás dessa formosa obra de arte levantava-se a morte. O Lied mantinha relações com esta, relações que era possível amar, não, porém, sem se dar conta – de um modo intuitivo e na função de um “rei” – do caráter ilícito de tal amor. Pela sua natureza primitiva, a canção talvez não expressasse simpatias pela morte, senão algo muitíssimo popular e vital. Mas a simpatia espiritual por isso era, apesar de tudo, uma simpatia pela morte. No início, sim, havia a mais pura piedade, o decoro em pessoa – absolutamente não o negamos. O que se seguia, porém, eram os produtos das trevas.

Afinal, que coisas são essas de que Hans Castorp procurava persuadir-se? Ninguém teria sido capaz de dissuadi-lo delas. Produtos das trevas! Produtos sinistros! O espírito de algozes e a inimizade aos homens, trajando roupas pretas, à espanhola, e uma golilha engomada! A volúpia em lugar do amor – como resultado da piedade de olhos leais?

Embora a confiança que Hans Castorp dedicava ao literato Settembrini nunca tivesse sido irrestrita, o jovem lembrava-se de algumas lições que outrora lhe ministrara o lúcido mentor, em tempos remotos, logo no começo da sua carreira hermética, quando lhe falara do “retrocesso” espiritual em direção a certos mundos. O discípulo achava oportuno aplicar cautelosamente aqueles ensinamentos ao assunto em apreço. O Sr. Settembrini qualificara de “doença” o fenômeno desse retrocesso. O próprio conceito do mundo e a época espiritual buscados pelo retrocesso talvez se afigurassem “mórbidos” ao seu intelecto pedagógico. Mas como? A nostálgica e meiga canção de Hans Castorp, a esfera sentimental de que ela fazia parte, e a afeição a essa esfera seriam então – sintomas de “doença”? Nada disso! Eram o que havia de mais sadio no mundo da psique. E todavia tratava-se de um fruto que, se bem que no momento aparecesse fresco e viçoso, tendia fortemente à decomposição e à putrefação. Para quem o saboreava no momento oportuno representava um regalo puríssimo da alma; mas, num instante inoportuno, que já podia ser o próximo, difundia podridão e ruína no seio da humanidade que o ingeria. Era um fruto da vida, gerado pela morte e prenhe de morte. Era um milagre da alma – o mais sublime talvez sob o ponto de vista da beleza irresponsável e abençoado por esta; mas havia motivos ponderáveis para que fosse considerado com desconfiança pelos olhos de quem amasse a vida, de quem “reinasse” com senso de responsabilidade e tivesse afeição à esfera orgânica; segundo o veredicto definitivo da consciência, requeria um triunfo sobre o próprio eu.

Sim, um triunfo sobre o próprio eu – talvez fosse esta a essência do triunfo sobre esse amor, sobre o sortilégio que enleava a alma, com sinistras conseqüências! Os pensamentos, ou melhor, os semipensamentos intuitivos de Hans Castorp alçavam um alto vôo, enquanto, em meio à noite e à solidão, se achava sentado à frente do truncado ataúde de música. Voavam para além do alcance da sua razão; eram pensamentos alquimisticamente desenvolvidos. Ah, como era poderoso aquele sortilégio! Nós todos éramos seus filhos e, obedecendo-lhe, podíamos realizar grandes coisas neste mundo. Não era preciso mais gênio, senão apenas muito mais talento do que tivera o autor da canção da Tília, para conferir, como artista da magia da alma, proporções gigantescas ao Lied e para conquistar o mundo por meio dele. Provavelmente seria até possível fundar impérios sobre essa base, impérios terrestres, por demais terrestres, impérios rudes, progressistas, e que no fundo não sofriam da menor nostalgia, impérios em cujo seio o Lied degenerava para uma música de vitrola elétrica. Mas o melhor dentre os filhos do sortilégio talvez fosse aquele que consumisse a sua vida no esforço de triunfar sobre ele e falecesse esboçando com os lábios a nova palavra do amor, que ainda não sabia pronunciar. Valia a pena morrer por essa canção mágica! Mas, quem morria por ela, em realidade já não o fazia e era um herói somente porque, em última análise, já morria por uma coisa nova, fomentando no seu coração a nova palestra do amor e do futuro.. .

Eram, pois, aqueles os discos preferidos de Hans Castorp.

 

         Coisas muito problemáticas

Quanto às conferências de Edhin Krokowski, produzira-se, no decorrer dos anos, uma modificação surpreendente. Suas pesquisas dedicadas à análise das almas e à vida dos sonhos sempre haviam revelado um caráter subterrâneo, catacumbal. Recentemente, porém, numa transição suave que o público mal percebera, acabavam de tomar o rumo para o mágico, inteiramente misterioso. As palestras que o médico, trajando sobrecasaca e sandálias, postado atrás de uma mesinha coberta, fazia de duas em duas semanas, na sala de refeições, como a atração principal da casa e o orgulho do prospecto, essas palestras, apresentadas numa voz arrastada e com sotaque estrangeiro ao auditório que as escutava imóvel, já não se ocupavam dos disfarces da atividade erótica e da reconversão da doença no afeto tornado consciente. Tratavam a essa altura dos profundos segredos do hipnotismo e do sonambulismo, dos fenômenos da telepatia, do sonho revelador e da deuteroscopia, bem como dos milagres da histeria. Enquanto o Dr. Krokowski comentava tudo isso, ampliavam-se os horizontes filosóficos de tal maneira que de repente os olhos dos ouvintes vislumbravam enigmas tais como o da relação entre a matéria e a esfera psíquica, ou ainda o próprio enigma da vida, que parecia mais acessível por sendas dúbias, mórbidas, do que pelo caminho da saúde...

Mencionamos esses fatos por achar que é nosso dever refutar as afirmações de espíritos levianos, segundo as quais o assistente recorrera às coisas ocultas apenas para salvar as conferências do perigo de uma irremediável monotonia, isto é, para fins puramente emocionais. Assim diziam as más línguas, que não faltam em parte alguma. É verdade que, durante as conferências de segunda-feira, os cavalheiros coçavam mais apressadamente do que nunca as orelhas para ouvir melhor, e a Srª. Levi parecia-se ainda mais do que antes com aquela figura de cera com mecanismo interior. Mas esses efeitos eram tão legítimos quanto o desenvolvimento por que passara o espírito do sábio, que podia defender não somente a lógica mas até a necessidade do caminho intelectual por ele transposto. Sempre haviam sido o seu campo de estudos aquelas regiões vastas e obscuras da alma humana, que são designadas pelo nome de inconsciente, se bem que fosse mais acertado falar de um “superconsciente”, já que dessas esferas procede às vezes, de um modo fantástico, um conhecimento que ultrapassa grandemente o saber consciente do indivíduo, e sugere a idéia da existência de relações ou laços entre as tenebrosas zonas interiores da psique individual e uma alma universal, perfeitamente consciente. A região do inconsciente, “oculta” no sentido próprio da palavra, imediatamente se mostra oculta também no sentido mais limitado e constitui uma fonte da qual emanam os fenômenos que assim chamamos por falta de outro termo melhor. Isso não é tudo. Quem considera o sintoma orgânico da doença o produto de afetos relegados da vida consciente da alma e transformados em histeria reconhece um poder criador das forças psíquicas, exercido sobre a matéria – esse poder que se deve qualificar de segunda fonte dos fenômenos mágicos. Quem pensa assim é um idealista do patológico, para não dizer um idealista patológico, e há de encontrar-se no ponto de partida de raciocínios que rapidamente alcançarão o problema do ser em si, quer dizer, o problema das relações existentes entre o espírito e a matéria. O materialista, filho de uma filosofia da força bruta, jamais renunciará a declarar que o espiritual é o produto fosforescente do material. O idealista, porém, partindo do princípio da histeria criadora, divergirá, e dentro em breve estará decidido a resolver num sentido totalmente oposto a dúvida acerca da primazia. Em suma, trata-se aqui nada mais nada menos que da velha controvérsia sobre a questão de saber o que existiu antes, se o ovo ou a galinha; controvérsia que conduz a uma embrulhada completa precisamente pelo duplo lato de não se poder imaginar ovo que não haja sido posto por uma galinha nem galinha que não tenha saído de um ovo hipotético.

Eram, pois, esses os assuntos que nos últimos tempos o Dr. Krokowski explanava nas suas conferências. Alcançara-os por caminhos orgânicos, legítimos, lógicos – não cessamos de insistir nisso, e nos parece até supérfluo acrescentar que já começara a comentá-los muito antes de Ellen Brand entrar em cena. Com a sua chegada, porém, as coisas passaram à fase empírica e experimental.

Quem era Ellen Brand? Estávamos ao ponto de nos esquecer que os nossos leitores o ignoram, ao passo que para nós o seu nome é naturalmente familiar. Quem era ela? À primeira vista, quase ninguém. Uma coisinha querida de dezenove anos, com cabelos louros como trigo; chamavam-na Elly; era dinamarquesa, mas nem sequer natural de Copenhague, senão de Odense, na ilha de Fiônia, onde o pai se dedicava ao comércio de manteiga. Ela mesma tivera durante alguns anos um emprego como funcionária da sucursal provincial de um banco da capital, onde trabalhara, sentada numa banqueta giratória, diante de livros volumosos, com uma manga protetora no braço. No curso dessa atividade teve sintomas de elevação de temperatura. O caso não era grave. No fundo tratava-se apenas de suspeitas. Mas Elly era frágil, bastante frágil e evidentemente anêmica, embora tão gentil que dava à gente vontade de lhe pôr a mão nos cabelos louros, o que o conselheiro fazia regularmente, quando falava com ela na sala de refeições. Um frescor nórdico parecia envolvê-la, tinha uma castidade cristalina, uma atmosfera entre infantil e virginal, muito atraente, tal como o olhar franco, puro, dos seus olhos azuis, de criança, e como a sua voz branda, aguda, fininha. Falava um alemão levemente estropiado, com certos errinhos típicos de pronúncia. Nas feições não havia nada,de particular. O queixo era muito curto. Tinha o seu lugar à mesa da Kleefeld, que a protegia como uma mãe.

Em torno da donzela Elly Brand, essa amável ciclistazinha e bancária dinamarquesa, havia, no entanto, coisas que ninguém teria imaginado à primeira ou segunda vista da sua pessoa transparente, mas que poucas semanas após a sua chegada a essas alturas começaram a revelar-se. Coube ao Dr. Krokowski patentear a plenitude do mistério.

Certas diversões coletivas, durante a reunião noturna, deram ao sábio os primeiros motivos de perplexidade. Os pensionistas faziam jogos de adivinhações. Também procuravam encontrar objetos escondidos, guiando-se por sons de piano que se tornavam mais fortes, à medida que a pessoa se aproximava do esconderijo, e mais fracos quando ela se desviava do caminho. A seguir, passaram a exigir a execução correta de determinadas ações complexas de quem esperava atrás da porta, enquanto os outros deliberavam; combinava-se, por exemplo, que essa pessoa deveria trocar os anéis de dois outros participantes do jogo, ou convidar alguém a dançar, mediante três reverências, ou retirar certo livro da biblioteca, para entregá-lo a Fulano ou Sicrano, etc. Convém observar que jogos desse tipo não eram habitualmente praticados entre os pensionistas do Berghof. Não foi possível averiguar de quem partira a idéia. Certamente não fora de Elly. Mas foi somente depois da sua chegada que esse jogo entrou em moda.

Os que tomavam parte nele – eram quase todos velhos conhecidos nossos, e também Hans Castorp achava-se no meio do grupo – mostravam-se ora mais ora menos hábeis nas suas tentativas, ou fracassavam por completo. A aptidão de Elly Brand, porém, manifestou-se como extraordinária, sensacional e mesmo chocante. A segurança infalível com que a moça encontrara quaisquer esconderijos apenas lhe valera aplausos e risadas cheias de admiração. Mas quando começou a executar ações mais complicadas, os espectadores ficaram boquiabertos. Realizava ela tudo quanto lhe houvessem imposto secretamente; realizava-o, logo que voltava ao recinto, com um leve sorriso, sem a menor hesitação e também sem nenhuma música que a guiasse. Ia à sala de refeições para buscar uma pitada de sal; espargia-a sobre a cabeça do Promotor Paravant; em seguida, tomava-o pela mão e levava-o ao piano, onde tocava com o dedo indicador dele as primeiras notas de uma canção infantil; feito isso, reconduzia-o até o seu lugar, cumprimentava-o com uma mesura, aproximava um tamborete e sentava-se, por fim, a seus pés – exatamente assim como, depois de muita deliberação, fora combinado em segredo.

Claro, ela tinha escutado!

Elly ruborizou-se. Como que aliviados ao vê-la confundida, todos se puseram a censurá-la em coro, quando afirmava que não escutara. Não, não! Que não pensassem isso! Palavra de honra que não escutara lá fora, atrás da porta!

Não escutara lá fora atrás da porta?

– Não! – respondeu ela, desculpando-se, e acrescentou que era ali mesmo, dentro da sala que escutava. Quando entrava, não podia evitar fazê-lo.

Dentro da sala? Não podia evitá-lo?

Alguém lhe sussurrava aos ouvidos – soprava-lhe o que devia fazer, falava baixinho, mas com muita precisão e nitidez.

Isso era uma confissão, evidentemente. Elly tinha, sob certos aspectos, consciência de ter cometido uma falta; fizera trapaça. Deveria ter dito que não se prestava a um jogo dessa espécie, já que alguém lhe sussurrava tudo aos ouvidos. Uma competição perde todo o seu sentido humano quando um dos participantes dispõe de vantagens sobrenaturais. Do ponto de vista desportivo, Elly estava subitamente desqualificada, mas de uma forma que causava arrepios a muitos que souberam do fato. Várias vozes, simultaneamente, clamaram pela presença do Dr. Krokowski. Saíram correndo para buscá-lo, e ele veio, atarracado, esboçando um sorriso enérgico. Ficara logo a par do assunto, e todo o seu ser inspirava alegre confiança. Ofegando, os mensageiros lhe haviam comunicado que uma coisa de crassa anormalidade acabava de acontecer, que surgira uma criatura onisciente, uma donzela que ouvia vozes. – Não digam! E daí? Calma, meus amigos! Vamos ver. – O assistente achava-se no seu próprio terreno, um terreno perigoso, alagadiço, instável para todos os outros, mas onde ele se movimentava com simpática segurança. Fez perguntas. Pediu que lhe contassem a história. – Não digam! Ora vejam! – E, como todos gostavam de fazer, pôs a mão na cabeça da pequena. Explicou que havia muitos motivos para atenção e nenhum para espanto. Cravou os olhos castanhos, exóticos, nos olhos azuis, claros, de Ellen Brand. Ao mesmo tempo descia a mão suavemente da cabeça, pelo ombro, até o braço. A jovem devolveu o olhar com uma expressão mais e mais piedosa, fitando-o por baixo, enquanto a cabeça se inclinava para a espádua e o peito. Quando os olhos da moça começaram a velar-se, o sábio levantou a mão, displicentemente, diante do rosto dela, e declarou que tudo ia muito bem. Mandou que o grupo excitado fosse repousar, com exceção de Elly Brand, com a qual tencionava “charlar” alguns instantes.

“Charlar!” Já se sabia o que isso significava. Ninguém se sentia à vontade ao ouvir essa palavra, uma palavra peculiar ao jovial camarada Krokowski. Todos tinham a impressão de que uma mão fria lhes tocava o fundo do coração, também Hans Castorp, quando, com grande atraso, se instalou na sua excelente espreguiçadeira. Lembrou-se de como o solo lhe oscilara sob os pés, quando vira as proezas anormais de Elly e ouvira-a dar, toda ruborizada, a explicação do fato. Também recordou o leve mal-estar, a angústia física, o como que enjôo que o acometera nesse instante. Nunca havia assistido a um terremoto, mas estava convencido de que tal fenômeno devia produzir sensações análogas de inconfundível pavor, abstraindo-se a curiosidade que as faculdades fatais de Ellen Brand lhe inspiravam além disso; uma curiosidade que encerrava em si a sensação da sua própria inutilidade, num sentido superior, isto é, a consciência da inacessibilidade espiritual do domínio que ela procurava alcançar, e por conseguinte a dúvida de saber se ela era apenas ociosa ou também pecaminosa; o que, entretanto, não a impedia de permanecer o que era, quer dizer, curiosidade. No curso da sua vida, Hans Castorp, como todo mundo, tinha ouvido isto ou aquilo acerca de coisas de natureza ou “sobrenatureza” oculta. Já se mencionou aquela tia vidente, cuja lenda melancólica lhe fora transmitida. Mas não sentira tão próximo da sua própria pessoa esse mundo que, teórica e desinteressadamente, jamais deixara de reconhecer. Nunca fizera experiências particulares nesse terreno, e sua aversão contra tais experiências, oposição de gosto, antipatia estética, reação do orgulho humano – se é que podemos empregar termos tão elevados com referência ao nosso insignificante herói –, tudo isso igualava quase a viva curiosidade que elas lhe despertavam. Hans Castorp pressentia, pressentia com absoluta nitidez, que essas experiências, fosse qual fosse o rumo que tomassem, não poderiam levar a um fim não insípido, não incompreensível, não desprovido de dignidade humana. Assim ardia por fazê-la. Percebia que “ociosa ou pecaminosa”, essa alternativa já de per si bastante triste, não constituía em realidade nenhuma alternativa, mas era uma mesma coisa, e que a inutilidade espiritual não era senão a forma de expressar, fora da moral, o caráter proibido da experiência. O princípio do placet experiri, porém, que lhe inculcara certa pessoa que indubitavelmente desaprovaria com a maior veemência tentativas dessa espécie, continuava arraigado em Hans Castorp. Aos poucos coincidia a sua ética com a sua curiosidade, o que, na verdade, sempre fizera; com essa mesma curiosidade irrestrita, própria de um viajeiro ávido de formação, que, ao saborear o mistério da personalidade, talvez já se achasse próxima do domínio que agora se lhe deparava, e a qual revelava uma espécie de espírito militar, por não se esquivar da esfera vedada, desde que esta se oferecia a ela. Em conseqüência disso resolveu Hans Castorp permanecer no seu posto e não se afastar, quando surgissem novas aventuras relacionadas com Ellen Brand.

O Dr. Krokowski proibira estritamente que continuassem, por parte dos leigos, quaisquer experimentos com as faculdades ocultas da Srta. Brand. Requisitara a garota para a ciência; tinha sessões com ela no calabouço analítico; hipnotizava-a, segundo se dizia, e esforçava-se por lhe desenvolver e disciplinar as possibilidades latentes e por investigar-lhe os antecedentes psíquicos. Hermine Kleefeld, a amiga maternal e a protetora de Elly, fazia, aliás, o mesmo e inteirava-se, sob sigilo, de uma porção de coisas, que logo ia espalhando, sob o mesmo sigilo, por toda a casa, inclusive o gabinete do porteiro. Soube ela, por exemplo, que aquele ou aquilo que sussurrava à pequena as respostas certas por ocasião dos jogos, se chamava Holger; era o jovem Holger, um espectro muito familiar a ela, um ser etéreo do outro mundo, e uma espécie de guardião fantasma de Ellen. Era então este quem lhe revelara aquela história da pitada de sal e do dedo indicador do Promotor Paravant? Sim, com os lábios de sombra acariciando-lhe a orelha, a ponto de ela sentir cócegas e se ver forçada a sorrir, o fantasma lhe segredara tudo. “Deve ter sido muito agradável na escola, quando Holger soprava as lições que você não tinha preparado, não é?” A essa pergunta, Ellen não dera resposta, segundo contava a Kleefeld. Mais tarde explicara que Holger talvez não tivesse o direito de fazer isso. Não lhe cabia intrometer-se em assuntos tão sérios. Além disso, era possível que ele mesmo não soubesse as lições.

Manifestou-se em seguida que Ellen, desde criança, embora com grandes intervalos, tivera aparições, tanto visíveis como invisíveis. Que significava aquilo, aparições invisíveis? Por exemplo, o seguinte: quando tinha dezesseis anos, achava-se certo dia, em plena tarde, sozinha diante da mesa redonda na sala de estar da casa paterna, ocupada em fazer um trabalho manual. A seus pés, perto dela, estava deitada no tapete uma cadela dinamarquesa do pai, de nome Freia. A mesa estava coberta por uma toalha de muitas cores, espécie de xale turco, daquele tipo que as mulheres velhas usavam dobrado triangularmente. O xale estava estendido em diagonal sobre a superfície da mesa, com as pontas pendentes das bordas. E, de repente, Ellen viu como a ponta à sua frente se enrolava devagar; alguém enrolava-a calma, cuidadosa, regularmente, até quase o centro da mesa, de maneira que o rolo formado era bastante comprido. Enquanto isso acontecia, Freia, num violento sobressalto, soergueu-se bruscamente, com as patas dianteiras muito tesas e o pêlo eriçado. A seguir precipitou-se uivando, para o quarto vizinho, onde se escondeu debaixo do sofá. Durante um ano inteiro foi impossível induzi-la a entrar novamente na sala de estar.

– Foi Holger quem enrolou o xale? – perguntou a Srta. Kleefeld. A pequena Brand não sabia. – E que pensou você quando aquilo se deu? – Ora, como era completamente impossível pensar o que quer que fosse a esse respeito, Elly não pensara nada em particular. – Informou seus pais do acontecido? – Não. Era estranho. Ainda que nada houvesse que pensar acerca dessa ocorrência, tinha Elly a sensação de que era conveniente, nesse caso como em outros semelhantes, calar-se e guardar tudo em pudico e rigoroso segredo. – Sofreu muito com isso? – Não, muito não. Afinal de contas, uma toalha que se enrola não era para fazer a gente sofrer. Mas houvera outras coisas mais difíceis de suportar. Por exemplo:

Fazia um ano, também no lar paterno em Odense, saíra ela de manhã cedo, muito animada, do seu quarto situado no rés-do-chão. Estava a ponto de atravessar o vestíbulo, a fim de subir a escada e encaminhar-se para a sala de jantar, para preparar o café, como de costume, antes da entrada dos pais. Já alcançara quase o patamar, onde a escada dava uma volta, quando viu nele, junto à beira, diante do primeiro degrau, sua irmã mais velha, Sophie, que era casada e morava nos Estados Unidos. Viu-a realmente, em carne e osso. Sophie trajava um vestido branco e – coisa singular! – uma coroa de nenúfares úmidos. Tinha as mãos postas perto dos ombros e acenava com a cabeça para Elly. Esta, como que petrificada, perguntou, entre alegre e atônita: – Mas como, Sophie? Tu aqui? – E Sophie novamente fez que sim. Em seguida sumiu; tornou-se transparente; depois de pouco tempo era visível somente assim como se percebe a flutuação do ar quente, e por fim não se viu mais nada, de maneira que Ellen pôde passar livremente. Mais tarde, porém, ficou sabendo que àquela mesma hora a mana Sophie morrera de endocardite em Nova Jersey.

– Bem – opinou Hans Castorp, quando a Kleefeld lhe contara a história –, isso tinha um sentido e parecia plausível. A aparição aqui, o óbito lá... Inegavelmente havia entre as duas coisas algum nexo que se devia reconhecer. E ele consentiu em tomar parte num passatempo social de natureza espírita, uma tentativa de fazer um copo trepidar, que alguns impacientes haviam resolvido realizar com Ellen Brand, contornando a proibição ciumenta do Dr. Krokowski.

Só algumas poucas pessoas foram admitidas à sessão que teria lugar no quarto de Hermine Kleefeld; além da anfitriã, de Hans Castorp e da pequena Brand, havia ainda as senhoras Stöhr e Levi, bem como o Sr. Albin, o tcheco Wenzel e o Dr. Ting-Fu. À noite, às dez em ponto, reuniram-se discretamente e examinaram, falando baixinho, os preparos feitos por Hermine e que eram os seguintes: numa mesa redonda de tamanho médio, sem toalha, colocada no centro do aposento, encontrava-se uma taça de vinho, virada, com o pé para cima, e em torno dela, nas bordas, estavam espalhadas, a intervalos convenientes, umas vinte e cinco chapinhas de osso, normalmente usadas como fichas de jogo, e nas quais haviam sido desenhadas a tinta as letras do alfabeto. Antes de mais nada, a Kleefeld serviu chá, o que foi acolhido com agrado, uma vez que as senhoras Stöhr e Levi, não obstante a inocência infantil da empresa projetada, já se queixavam de ter palpitações e as extremidades frias. Depois de ingerir a bebida quente, sentaram-se em redor da mesinha. Sob uma luz rosada – para criar uma atmosfera apropriada, a anfitriã apagara a luz do teto e deixara acesa somente a lampadazinha de cabeceira, envolta por um abajur –, todos encostaram um dedo da mão direita levemente ao pé da taça. Assim prescrevia o método. Aguardaram então o momento em que o copo se pusesse a trepidar.

Isso podia produzir-se facilmente, pois a superfície da mesa era lisa, e o bordo do copo, bem polido; a pressão exercida pelos dedos trêmulos, por mais leve que fosse o contacto, seria naturalmente irregular, mais vertical aqui, mais lateral ali, o que bastaria, com o tempo, para determinar o copo a abandonar a sua posição central. Na periferia do seu campo de ação, a taça iria ao encontro de letras, e se aquelas com que se encontrasse compusessem palavras com algum sentido, isso representaria um fenômeno intimamente complexo até a impureza, um conglomerado de elementos conscientes, semiconscientes, inconscientes, um produto em que se mesclavam a ajuda ativa de alguns, instigada pelo desejo – quer se dessem ou não conta de que o tinham – e o consentimento secreto de extratos não-iluminados da alma coletiva, uma colaboração subterrânea, visando resultados aparentemente estranhos, para os quais contribuiriam em grau maior ou menor as esferas obscuras de cada um, sobretudo as da graciosa garota Elly. Todos sabiam disso de antemão, e Hans Castorp, segundo o seu costume, chegou até a comentar o fato, enquanto estavam sentados, esperando, com os dedos trêmulos. E, com efeito, as extremidades frias e as palpitações das senhoras, bem como a alegria constrangida dos homens, tinham o seu motivo dada a circunstância de todos saberem disso e de ninguém ignorar que se haviam reunido no seio da noite para um brinquedo impuro com a natureza de cada um, para uma experiência, entre tímida e curiosa, com partes ignotas do seu eu, aguardando aquelas ilusões ou semi-realidades que chamamos de mágicas. Era quase só para dar uma certa forma ao assunto e, por conseguinte, por mera convenção, que se admitia que espíritos de defuntos se serviriam do copo para dirigir-se ao grupo. O Sr. Albin ofereceu-se para ser o interlocutor e para interpelar os fantasmas que porventura se manifestassem, porque já participara em outras ocasiões de sessões espíritas.

Decorreram vinte minutos ou talvez mais. Esgotaram-se os temas para conversas cochichadas. A curiosidade inicial diminuiu. Apoiavam com a mão esquerda o cotovelo do braço direito. O tcheco Wenzel estava a ponto de adormecer. Ellen Brand, com o dedinho ligeiramente encostado na taça, fixava os grandes e puros olhos de criança além das coisas mais próximas, na luz da lampadazinha de cabeceira.

De repente o copo oscilou, bateu na mesa e fugiu das mãos das pessoas que o cercavam e só com muita dificuldade conseguiram acompanhá-lo com os dedos. Deslizou até à borda da mesa, correu um bom pedaço ao longo dela e voltou em linha reta ao centro. Ali tornou a bater na mesa e permaneceu imóvel.

O espanto que todos sentiam era um misto de alívio e de pavor. A Srª. Stöhr declarou com voz chorosa que preferia parar com aquilo. No entanto lhe fizeram ver que devia ter-se decidido antes, e que agora lhe cabia ficar quietinha. As coisas pareciam em pleno desenvolvimento. Foi estipulado que, para responder “sim” ou “não”, era desnecessário que o copo fosse ao encontro das letras, mas bastaria que batesse na mesa uma ou duas vezes, respectivamente.

– Está presente algum espírito? – perguntou o Sr. Albin com uma fisionomia séria, dirigindo-se por cima das cabeças ao vazio... Seguiu-se um instante de vacilação. Depois o copo bateu, dando uma resposta afirmativa.

– Como te chamas? – perguntou o Sr. Albin num tom quase rude, acentuando a energia das palavras por um gesto de cabeça.

O copo pôs-se em movimento. Correu resolutamente, em ziguezague, de ficha em ficha, embora recuando em certos intervalos um bom pedaço em direção ao centro da mesa. Aproximou-se do H, do O, do L; em seguida deu a impressão de estar cansado, de confundir-se, de não saber como continuar; mas, concentrando-se novamente, encontrou também o G, o E e o R. Justamente como se esperava! Era Holger em pessoa, o mesmo fantasma Holger que soubera aquelas coisas da pitada de sal, etc, porém não interviera em assuntos escolares. Achava-se ali, flutuava na atmosfera, pairava em torno do grupo. E agora? Que iam fazer com ele? Um certo acanhamento reinava na roda. Deliberaram em voz abafada, por assim dizer falando atrás da mão, sobre o que queriam saber do espírito. O Sr. Albin decidiu-se a perguntar qual havia sido a atividade e a profissão de Holger em vida. Fez a pergunta da mesma maneira que antes, em tom de interrogatório, severamente, com o cenho cerrado.

A taça permaneceu silenciosa durante alguns instantes. A seguir, encaminhou-se cambaleando e tropeçando no P; recuou e designou o O. Que sairia disso? A tensão era forte. Cacarejando, o Dr. Ting-Fu manifestou o receio de que Holger talvez houvesse sido um policial. A Srª. Stöhr rebentou numa gargalhada histérica, sem contudo interromper o trabalho do copo, que, embora num avanço coxo e barulhento, deslizou até o E e depois, evidentemente com omissão de uma letra, terminou no A. Acabava de soletrar “poea”.

Imaginem! Holger tinha sido um poeta! Sem necessidade e por puro orgulho, segundo parecia, o copo oscilou e bateu o sinal afirmativo. – Um poeta lírico? – perguntou a Kleefeld, pronunciando a palavra afetadamente, como Hans Castorp notou com indignação... Holger deu a impressão de não estar disposto a entrar em pormenores. Não respondeu. Limitou-se a repetir a resposta anterior, soletrando depressa com segurança e clareza e acrescentando o T que esquecera da outra vez.

Muito bem, um poeta. O embaraço foi crescendo, um embaraço singular, relacionado com as manifestações de esferas não controladas da vida interior, mas ao qual a atualidade falaz, semi-objetiva, dessas manifestações imprimia o rumo para a realidade exterior. Desejaram saber se Holger se sentia à vontade e feliz no seu estado. De um modo sonhador, o copo percorreu a palavra “sereno”. Ah, sim, sim, “sereno”. Hum, isso não teria ocorrido a ninguém, mas uma vez que o copo a soletrara, acharam todos que a resposta era plausível e bem formulada. E havia quanto tempo se encontrava Holger nesse estado sereno? Agora vinham novamente palavras inopinadas, sonhadoras, ensimesmadas, as palavras: “Vagar apressado”. Ótimo! Também poderia ter dito “Pressa vagarosa”. Era um oráculo vindo do além, pela boca de um poeta ventríloquo. Hans Castorp, sobretudo, achou-o excelente. Um “vagar apressado” era, pois, o elemento de tempo em que vivia Holger. Claro, ele não podia senão falar por meio de oráculos para satisfazer a curiosidade dos interlocutores, já que, provavelmente, se esquecera de lidar com os conceitos e com as medidas exatas deste mundo... E agora, que mais informações queriam? A Levi confessou estar curiosa por saber qual era, ou qual havia sido outrora, o aspecto de Holger. Se ele era um jovem formoso? Que ela mesma perguntasse – ordenou o Sr. Albin que considerava uma pergunta dessas indigna da sua função. Assim indagou ela, tateando o fantasma, se Holger tinha cabelos louros.

– Lindos cabelos castanhos, castanhos – diziam as curvas descritas pelo copo, que repetia propositadamente duas vezes a palavra “castanhos”. Uma satisfação animada reinava no círculo. As senhoras mostravam-se francamente apaixonadas. Atiravam beijos obliquamente em direção ao teto. O Dr. Ting-Fu observou, entre risinhos cacarejantes, que Holger lhe parecia muito faceiro.

Nesse momento o copo enfureceu-se, tornou-se louco de cólera. Meteu-se a percorrer a mesa, a esmo, feito doido; virou raivosamente; caiu e rolou no regaço da Srª. Stöhr, que o olhou, lívida de susto, com os braços abertos. Cautelosamente, com muitas desculpas, reconduziram-no ao seu lugar. Censuraram o chinês. Como podia ele atrever-se a dizer uma coisa dessas? Aí estava vendo aonde levava o atrevimento! Que fariam se Holger, na sua indignação, sumisse e emudecesse por completo? Empenharam-se o mais que puderam em sossegar o copo. Perguntaram se Holger não queria, talvez, recitar um poema. Afinal de contas fora poeta, antes de adejar pelos ares num vagar apressado. Ah, como desejavam todos eles conhecer uma das suas obras! Ficariam encantados se...

Vejam só, o bom copo fez que sim. Com efeito, havia algo de bonacheirice e de espírito conciliador na maneira como o fazia. E em seguida o fantasma Holger começou a poetar. Poetou copiosamente, circunstancialmente, sem interrupção, quem sabe quanto tempo, dando a impressão de que nunca mais pararia com aquilo. Era um poema de todo surpreendente o que proferiu à maneira de um ventríloquo, enquanto os componentes da roda, cheios de admiração, repetiam as palavras; era matéria mágica, sem limites como o mar que constituía o seu assunto predileto... Algas em montes extensos ao longo da augusta praia, na ampla baía da ilha com as dunas escarpadas. Oh, vede como a imensa vastidão esverdeada se confunde, morrendo, com a eternidade, onde o sol de verão, encoberto pelas largas tiras dos véus nebulosos de turvo carmesim e de luzes leitosas, retarda o seu ocaso! Não há palavras que possam expressar quando e como o reflexo argentino, movediço, da água se transformou na cintilação pura de madrepérola, toda envolta no inefável jogo de cores do brilho desmaiado, cambiante, opalino, de pedras da lua... Ai de nós, imperceptivelmente como nasceu esvai-se o silencioso encantamento. O mar adormece. Mas os suaves vestígios da despedida do sol remanescem aqui e ali. Não escurece até tardias horas da noite. Uma meia-luz espectral paira sobre o bosque de pinheiros no alto das dunas e dá uma aparência de neve à pálida areia das profundidades. Ilusão de uma floresta hibernal, em completo silêncio através do qual se ouvem os estalos dos ramos roçados pelo lerdo vôo de uma coruja! Acolhe-nos a esta hora! Tão elástico o andar, tão alta e branda a noite! E o mar lá embaixo respira lenta, profundamente; devaneando, murmura sons arrastados. Estás com saudade de revê-lo? Então aproxima-te da desbotada vertente da duna e sobe-a, afundando-te nessa substância macia que te inunda os sapatos. Rígida e íngreme, a terra coberta de arbustos desce até a praia pedregosa, e os resquícios do dia continuam fazendo o seu jogo fantasmagórico à beira da vastidão esmaecida... Estende-te na areia aqui em cima! Que frescor de morte, que maciez de seda ou de farinha! Ela te corre por entre os dedos da mão cerrada, num esguicho descorado, fininho, e forma no chão a que pertence um montículo delicado. Não reconheces aquele fio de areia? É o fluxo silencioso, estreito, através da angústia da ampulheta, o utensílio solene e frágil que adorna a cela do ermitão. Um livro aberto, uma caveira, e na estante a dupla concavidade de vidro, com sua armação delgada. E dentro dela, um pouquinho de areia tirada da eternidade a fazer o papel do tempo, de um modo secreto e sagrado que inspira pavor...

Dessa forma, as improvisações líricas do fantasma Holger haviam percorrido uma seqüência de associações estranhas, desde o mar do seu país natal até um ermitão e o instrumento do seu espírito contemplativo. E ele veio a falar de muitas coisas mais, decantando o humor e o divino em palavras sonhadoras e audaciosas que causaram enorme admiração ao grupo que as soletrava. Mal tinham tempo de intercalar aplausos entusiásticos, tão rápida era a marca ziguezagueante de um assunto a outro, e que não fazia menção de terminar. Depois de uma hora ainda não se podia prever o fim dessa torrente poética que tratava inesgotavelmente das dores do parto, do primeiro beijo dos namorados, da coroa do sofrimento, da benevolência paternal e grave de Deus; sondava as atividades da criatura; perdia-se nos tempos, nas paisagens, no espaço sideral, mencionando até o zodíaco e os caldeus. Sem dúvida ter-se-ía prolongado através da noite inteira, não houvessem os seus invocadores finalmente afastado os dedos do copo. Agradeceram cordialmente a Holger e declararam que era bastante por essa vez, que a beleza de tudo aquilo ultrapassava as suas mais arrojadas expectativas. Que lástima que ninguém tivesse tomado nota do poema, cujo destino inexorável seria agora cair no esquecimento, o que infelizmente já tinha acontecido em grande parte, devido a uma certa inconsistência peculiar aos sonhos. Na próxima vez não deixariam de nomear em tempo um secretário, para ver o efeito que isso produziria transladado a escrita e recitado de um modo fluente. De momento, porém, e antes que Holger voltasse à serenidade do seu vagar apressado, seria melhor e, em todo caso, muito amável da sua parte, se respondesse ainda a uma ou outra pergunta precisa que lhe fizessem os componentes do grupo. Não sabiam ainda o que indagariam dele, mas pediam que lhes comunicasse ao menos se, em princípio e por uma especial deferência, estava disposto a responder.

– Sim – foi a resposta. Mas, a essa altura, revelou-se a desorientação geral. Que deviam perguntar? Era como nas histórias da carochinha, quando a fada ou o anão permitem que se faça um pedido e a pessoa contemplada corre o risco de desperdiçar a oportunidade preciosa. Havia muita coisa no mundo e no futuro que parecia digna de se saber, e a responsabilidade de quem escolhia era grande. Como ninguém se arriscasse a tomar uma decisão, Hans Castorp, com um dedo encostado na taça, e com a face esquerda apoiada no punho, disse que gostaria de ouvir quanto tempo duraria a sua permanência aqui em cima, em vez das três semanas prefixadas para ela.

Bem, visto não se encontrar outra pergunta melhor, vá lá que o fantasma, da plenitude da sua sabedoria, satisfizesse essa curiosidade qualquer! Depois de alguma hesitação, o copo começou a trepidar. Traçou uma resposta bem estranha e, segundo parecia, incoerente, que ninguém era capaz de interpretar. Soletrou a sílaba “vai” e em seguida a palavra “através”, que era ainda menos aproveitável. Feito isso, mencionou alguma coisa acerca do quarto de Hans Castorp, de maneira que a ordem lacônica na sua forma completa rezava que aquele que perguntara “fosse através do seu quarto”. Através do seu quarto? Através do número 34? Que significava isso? Enquanto estavam ali sentados, deliberando e meneando a cabeça, um murro formidável fez estremecer a porta.

Todos ficaram atônitos. Era um assalto? Estava lá fora o Dr. Krokowski para levantar a sessão proibida? Olharam-se consternados. Aguardaram a entrada do médico enganado. Mas, no mesmo instante, houve outro murro estrondoso no centro da mesa, novamente aplicado com toda a força do punho, como para esclarecer que também o primeiro não tinha sido dado fora da sala, senão dentro.

Fora uma brincadeira de mau gosto do Sr. Albin? Ele negou, sob palavra de honra, desnecessariamente, porque todo mundo tinha quase certeza de que ninguém da roda era culpado disso. De maneira que foi Holger? Atiraram um olhar para Elly, cuja atitude quieta todos haviam notado simultaneamente. Achava-se sentada, recostando-se no espaldar e apoiando na borda da mesa as pontas dos dedos, enquanto os pulsos pendiam para baixo. Inclinava a cabeça para um dos ombros, e alçava as sobrancelhas, ao passo que baixava as comissuras dos lábios, formando uma boca bicuda. Esboçava um levíssimo sorriso que tinha algo de fingido e ao mesmo tempo inocente. Os olhos azuis de criança miravam o vazio, sem nada perceber. Chamaram-na pelo nome, mas ela não deu nenhum sinal de vida. Nesse momento apagou-se a lampadazinha de cabeceira.

Apagou-se? A Srª. Stöhr, incapaz de conter-se por mais tempo, começou a lançar gritos estridentes, pois acabava de ouvir o estalido da luz. Esta tinha sido apagada por uma mão que seria eufemístico qualificar de estranha. Fora a mão de Holger? Até então se mostrara tão brando, tão disciplinado e tão poético, mas a essa altura a sua natureza estava a ponto de degenerar em puerilidade e traquinice. Quem poderia garantir que a mão que golpeava a porta e os móveis e apagava travessamente a luz não agarraria qualquer pessoa pela garganta? No escuro, clamaram por fósforos, por uma lanterna. A Levi deu um berro, alegando que alguém a puxara pelos cabelos da frente. De tanto medo, a Srª. Stöhr não se envergonhava de invocar Deus em alta voz. – Ah, Deus nosso Senhor, salvai-nos pelo menos desta vez! – gritava e suplicava gemendo que lhes fosse concedida a graça, apesar de terem tentado o inferno. Foi o Dr. Ting-Fu quem teve a idéia razoável de acender a luz do teto, de modo que o quarto logo se achou banhado de claridade. Verificaram então que a lâmpada de cabeceira de fato não se apagara sozinha, mas que alguém dera volta à chave; bastava repetir com mãos humanas essa manobra realizada por meios ocultos, para que voltasse a luzir. Enquanto isso, Hans Castorp teve, por sua vez, uma surpresa que podia considerar uma atenção especial das forças obscuras e pueris que ali se manifestavam. Encontrou sobre os joelhos um objeto leve, a “lembrança” que em certa ocasião espantara o seu tio, quando a descobrira na cômoda do sobrinho: o diapositivo de vidro que mostrava o retrato de Clávdia Chauchat, e que ele, Hans Castorp, certamente não introduzira no quarto da Kleefeld.

Guardou-o no bolso, sem mencionar o fenômeno. Os outros estavam ocupados com Ellen Brand, que continuava sentada no mesmo lugar, na posição que acabamos de descrever, com os olhos cegos e com uma expressão estranhamente afetada. O Sr. Albin soprou-lhe na cara e imitou diante dos seus olhos o gesto com que o Dr. Krokowski movera a mão de baixo para cima. Com isso, ela recobrou os sentidos e chorou um pouco, sem que ficasse claro por quê. Acariciaram-na, beijaram-lhe a fronte e mandaram-na dormir. A Levi dispôs-se a passar a noite em companhia da Srª. Stöhr, já que de tanto pavor a mulher vulgar não sabia como encontrar a cama. Hans Castorp, com o apport no bolso interno, não fez objeção nenhuma, quando foi convidado para terminar aquela noite irregular, tomando um conhaque no quarto do Sr. Albin, junto com os demais cavalheiros; pois tinha notado que incidentes desse gênero exerciam um certo efeito, não sobre o coração nem tampouco sobre o espírito, mas sobre os nervos do estômago; efeito prolongado, parecido com o do enjôo nas viagens marítimas, cujas vítimas sentem ainda em terra firme durante horas a fio as oscilações causadoras das náuseas.

Por enquanto, a sua curiosidade estava satisfeita. No primeiro instante, o poema de Holger não lhe parecera mau, mas nitidamente se lhe impusera a vacuidade íntima e a insipidez, aliás prevista, de tudo isso, de maneira que resolveu contentar-se com essas poucas faíscas dos fogos do inferno que haviam esvoaçado em torno dele. O Sr. Settembrini, como era de se esperar, confirmou-o o mais possível nessa intenção, quando Hans Castorp lhe falou das suas experiências. – Era só o que faltava! – exclamou o humanista. – Que miséria! Que miséria! – E sem rodeios declarou que a pequena Elly era uma impostora das mais ladinas.

A isso, o seu discípulo não disse nem sim nem não. Dando de ombros, opinou que não existia clareza inequívoca sobre o que era realidade, e, por conseguinte, não se sabia o que era impostura. Os limites talvez fossem instáveis. Podia ser que houvesse transições de uma à outra, graus de realidade, no seio da natureza muda e neutra, esquivando-se a distinções que, a seu vez, tinham manifestamente um caráter moralizante. Que pensava o Sr. Settembrini, por exemplo, da palavra “ilusão”, esse estado em que elementos do sonho e elementos da realidade formavam uma mescla que talvez fosse menos alheia à natureza do que aos nossos toscos pensamentos cotidianos? O mistério da vida era literalmente insondável, e não era de admirar que de vez em quando surgissem do abismo ilusões que... E assim por diante, no estilo amável, complacente e bastante vago que era peculiar ao nosso herói.

O Sr. Settembrini ministrou-lhe a ensaboadela que merecia e realmente conseguiu fortalecer-lhe a consciência ao menos de momento. Obteve até uma espécie de promessa de que o seu discípulo nunca mais participaria de tamanhas perversidades. – Respeite a parte de humanidade que encerra em si, engenheiro – exortou-o. – Tenha confiança no raciocínio claro, humano, e abomine as contorções do cérebro, o atoleiro espiritual! Ilusões? Mistério da vida? Qual nada, caro mio! Quando entra em decomposição a coragem ética de optar e de fazer uma distinção entre conceitos como a impostura e a realidade, acaba-se a vida em geral, da mesma forma que o juízo, os valores e o ato civilizante. Começa então a obra atroz de um processo de putrefação, causado pelo ceticismo moral. – Acrescentou ainda que o homem era a medida de todas as coisas e tinha o direito imprescindível de se pronunciar sobre o bem e o mal, sobre a verdade e a mentira. Ai de quem se atrevesse a desviar a humanidade da fé nesse direito criador! Para ele era melhor ser afogado no mais profundo de todos os poços, com uma mó em volta do pescoço.

Hans Castorp aprovou tudo isso com um gesto de cabeça. De fato começou a distanciar-se, por enquanto, desse tipo de empresa. Ouviu dizer que o Dr. Krokowski, no seu subterrâneo analítico, organizava sessões com Ellen Brand, às quais era admitida uma parte seleta dos pensionistas. Mas o jovem declinou do convite com indiferença, o que naturalmente não impedia que os componentes da roda e o próprio Dr. Krokowski o mantivessem mais ou menos a par dos êxitos alcançados no curso das suas experiências. Manifestações de forças no gênero das que se haviam produzido no quarto da Kleefeld, de um modo arbitrário e brutal – murros aplicados à mesa e aos móveis, lâmpadas apagadas, e outras coisas semelhantes – eram obtidas e praticadas durante essas reuniões, sistematicamente, e com todas as garantias possíveis da sua autenticidade. Para esse fim o camarada Krokowski hipnotizava a pequena Elly conforme as regras da arte, a fim de transportá-la a um estado de sonambulismo. Evidenciara-se que um acompanhamento musical facilitava os exercícios. Por isso, a vitrola mudava de lugar naquelas ocasiões, requisitada pelo círculo mágico. Mas como o tcheco Wenzel, que então se encarregava do serviço, fosse um homem dotado de senso musical, que certamente não maltrataria nem danificaria nada, Hans Castorp podia confiar-lhe o instrumento sem grande inquietude. Para essa finalidade especial tirava do tesouro de discos um álbum com uma seleção de peças leves – danças, pequenas aberturas e outras bagatelas musicais –, que punha à disposição do grupo. Elly não fazia questão de ouvir sons mais sublimes, de maneira que esses discos lhe bastavam.

Acompanhado por esse tipo de música – assim se inteirava Hans Castorp – levantara-se um lenço do chão, por iniciativa própria, ou melhor, guiado por uma “garra” escondida nas suas dobras; o cesto de papéis do doutor esvoaçara rumo ao teto; o pêndulo de um relógio de parede fora, alternadamente, detido e acionado “por ninguém”; uma sineta tinha sido “apanhada” e agitada; e outros fatos obscuros e insignificantes do mesmo calibre. O erudito diretor dessas experiências achava-se na situação feliz de saber designar tais proezas por um nome grego cheio de decoro científico. Tratava-se – segundo explanava nas suas conferências e em colóquios particulares – de fenômenos telecinéticos, de casos de levitação. O doutor classificava-os numa categoria que recebera da ciência o nome de “materializações”. Era precisamente a elas que visavam os seus esforços nas tentativas realizadas com Ellen Brand.

Conforme a terminologia usada por ele, estavam à frente de complexos inconscientes, projetados biopsiquicamente para a esfera objetiva. O estado sonambúlico e a constituição mediúnica deviam ser considerados a fonte dessas projeções, que tinham de ser qualificadas de representações de sonho objetivadas, uma vez que nelas agia uma faculdade ideoplástica da natureza. Sob certas condições, o pensamento era capaz de atrair a matéria e de configurar-se nela, adquirindo uma realidade efêmera. Essa matéria emanava do corpo do médium, para adquirir, fora dele, a forma transitória de extremidades biologicamente vivas, como tentáculos ou mãos, que efetuavam justamente essas insignificâncias admiráveis, presenciadas pelos convidados no laboratório do Dr. Krokowski. Às vezes, esses membros eram visíveis e palpáveis, e suas formas podiam ser conservadas em parafina ou em gesso. Em outros casos, porém, o seu desenvolvimento não se limitava a isso. Diante dos olhos das pessoas que faziam as experiências, surgiam cabeças, semblantes de homens com feições individuais, fantasmas de corpo inteiro, e, dentro de certos limites, entabulavam relações com a roda.

Era nesse ponto que a teoria do Dr. Krokowski começava a tornar-se estrábica, a olhar em duas direções ao mesmo tempo, e a assumir o mesmo caráter vacilante, ambíguo, que haviam revelado as suas expectorações acerca do “amor”, porque daí em diante já não se podia falar, de forma inequívoca, inteiramente científica, de subjetividades de médium e de seus ajudantes passivos, que eram refletidas para a esfera real; entravam em jogo, ao menos participando ou contribuindo, “eus” estranhos, vindos de fora ou do além; tratava-se – possivelmente, embora não confessadamente – de algo não-vivo, de seres que aproveitavam a oportunidade complexa e secreta do momento para voltar à matéria e para comunicar-se com quem os chamava; tratava-se, em suma, da evocação espiritista dos mortos.

Eram, pois, esses os resultados que o camarada Krokowski, assistido pelos seus, trabalhava por obter. Atarracado, com um sorriso enérgico nos lábios, inspirando confiança alegre, dedicava-se a esse trabalho. Uma vez que ele pessoalmente estava familiarizado com aquele terreno suspeito, pantanoso, subumano, prestava-se muito bem para guiar através da região até os espíritos tímidos ou céticos. Graças aos dons extraordinários de Ellen Brand, que o doutor se empenhava em desenvolver e treinar, parecia sorrir-lhe pleno êxito, segundo contavam a Hans Castorp. Diversos componentes da roda já haviam sido tocados por mãos materializadas. O Promotor Paravant recebera das esferas transcendentes uma violenta bofetada, que aceitara com satisfação científica, levando a curiosidade a ponto de oferecer a outra face, não obstante a sua condição de cavalheiro, de jurista e de sócio veterano de um grêmio de estudantes, cujo código de duelo o teria obrigado a uma atitude muito diferente, se o golpe houvesse partido de mãos vivas. A. K. Ferge, o singelo sofredor que ficava alheio a todas as coisas sublimes, mantivera na mão uma das tais extremidades de fantasma e verificara pelo tato que era bem-conformada e completa, antes de ela se esquivar de um modo indescritível ao seu aperto cordial nos limites prescritos pelo respeito. Escoou-se um período bastante longo – quase dois meses e meio, com duas sessões por semana – até que uma mão do outro mundo, mão de um jovem, segundo parecia, mostrou-se aos olhos de todos, irradiada pela luz rosada de uma lampadazinha de mesa, revestida de papel encarnado. Tateando, a mão passou por sobre a superfície da mesa e deixou seu rastro num pote de barro, cheio de farinha. Mas oito dias depois aconteceu que um grupo de colaboradores do Dr. Krokowski, o Sr. Albin, a Stöhr e o casal Magnus, irromperam por volta da meia-noite no compartimento de sacada de Hans Castorp, que ali cochilava no meio do frio glacial. Com todos os sinais de entusiasmo desenfreado e de arrebatamento febril, relataram em palavras precipitadas o seguinte: o Holger da Elly acabava de aparecer, sua cabeça surgira por cima do ombro da sonâmbula; ele tinha realmente “lindos cabelos castanhos, castanhos”; sorrira com uma expressão inesquecível pela brandura e pela melancolia, antes de sumir novamente.

Como se harmonizava – assim ponderou Hans Castorp – essa aflição distinta com a conduta que Holger manifestava em outras ocasiões, com certas criancices sem graça e com aquela molecagem simples e pura, que constituía a bofetada nada melancólica que vibrara ao promotor? Evidentemente não se podia exigir nesse caso uma coerência lógica de caráter. Talvez se encontrassem em face de uma mentalidade semelhante à do Corcundinha da canção popular, com sua malícia patética e sua ânsia de que se reze por ele. Os admiradores de Holger não pareciam preocupados com tudo isso. O que tencionavam fazer era que Hans Castorp se determinasse a abandonar o seu isolamento. Insistiram em que ele não deixasse de assistir à próxima sessão, agora que tudo ia às mil maravilhas. Pois Elly prometera, enquanto dormia, que da próxima vez apresentaria qualquer defunto cuja presença o círculo reclamasse.

Qualquer defunto? Mesmo assim, Hans Castorp persistiu na sua atitude negativa. Mas o fato de se poder chamar qualquer pessoa falecida continuou a absorvê-lo durante os três dias seguintes, a ponto de chegar ele a decisões completamente opostas. No fundo não eram necessários três dias, senão apenas alguns minutos para produzir esse resultado. A mudança de opinião realizou-se a uma hora solitária da noite, no salão de música, enquanto ele ouvia mais uma vez aquele disco ao qual a personalidade ultra-simpática de Valentim imprimira o seu cunho peculiar. Sentado na sua cadeira ouviu Hans Castorp aquela prece guerreira, a despedida de um homem de valor, cujo coração o arrastava ao campo da honra, e que cantava: “E se Deus me chamar para junto de si, velarei fiel por ti, ó Margarida!” Como acontecia sempre que tocava essa ária, sentiu-se possuído de uma veemente emoção, que dessa vez, aumentada por certas possibilidades, se condensou a ponto de transformar-se em desejo. E ele pensou: “Seja ou não pecaminoso e ocioso, em todo caso seria uma coisa maravilhosa e uma aventura muito desejável. E ele, tal como o conheci, não me guardará rancor, se estiver metido no assunto”. Lembrou-se então da maneira amável e displicente como fora pronunciada a resposta: “Pois não!”, nas trevas do gabinete de radioscopia, quando achara necessário pedir licença para certas indiscrições ópticas.

Na manhã do dia seguinte avisou que tomaria parte na sessão marcada para a noite. Uma hora após o jantar reuniu-se aos outros, que se encaminhavam ao andar subterrâneo, conversando sem nervosismo, habituados como estavam ao sobrenatural. Na escada encontrou o Dr. Ting-Fu e o tcheco Wenzel, mas também os outros que se associaram no calabouço do Dr. Krokowski eram membros fundadores do grupo ou pelo menos veteranos traquejados, como, por exemplo, os senhores Ferge e Wehsal, o promotor público, as senhoras Levi e Kleefeld, para não falar das pessoas que o haviam informado da aparição da cabeça de Holger, e naturalmente da médium, Elly Brand.

A garota nórdica já se achava sob a guarda do médico, quando Hans Castorp passou pela porta guarnecida de um cartão de visita. Enquanto Krokowski, trajando o avental preto de trabalho, lhe cingia paternalmente o ombro, esperava ela os convidados ao sopé dos degraus que no nível do andar subterrâneo conduziam à habitação do assistente, e cumprimentava-os um a um, tal qual o doutor. Essas saudações mostravam de ambas as partes um caráter despreocupado, alegre e cordial. Visivelmente tinham todos o firme propósito de não deixar entrar no ambiente a menor angústia solene. Conversavam entre si em voz alta, gracejavam, trocavam cotoveladas animadoras, para demonstrar das mais diversas maneiras a falta de acanhamento. Entre a barba do Dr. Krokowski apareciam constantemente os dentes amarelados, com aquela peculiar expressão máscula, tranqüilizadora, enquanto convidava os componentes da roda a “entrrar”. E essa expressão intensificou-se quando deu as boas-vindas a Hans Castorp, que se mostrava taciturno e cuja fisionomia parecia indecisa. O anfitrião saudou-o com um enérgico aceno de cabeça, apertando-lhe a mão com força quase brutal. Era como se lhe quisesse dizer: “Ânimo, meu amigo! Não há motivo para andarmos cabisbaixos. Aqui não existe nem pusilanimidade nem beatice, mas unicamente o bom humor viril, próprio da pesquisa livre de preconceitos”. Mas o jovem exortado por essa pantomima nem por isso se sentiu mais à vontade. Como já mencionamos, chegara Hans Castorp à sua decisão lembrando-se do gabinete de radioscopia; mas essa associação de idéias absolutamente não basta para definir os seus sentimentos. Pelo contrário, estes lhe evocavam antes a recordação daquele singular e inesquecível estado de alma – mescla de nervosismo, petulância, curiosidade, menosprezo e devoção – que tomara conta dele fazia muitos anos, no momento em que pela primeira vez entrara, levemente tocado, em companhia de alguns amigos, num bordel do bairro de Sankt Pauli.

Como estivessem presentes o Dr. Krokowski e duas ajudantes, que eram, dessa vez a Srª. Magnus e a Srta. Levi com a tez de marfim, retiraram-se à sala vizinha, a fim de revistar a médium. Enquanto isso, Hans Castorp permaneceu com os nove outros componentes da roda no consultório do assistente, aguardando o fim dessa cerimônia cientificamente rigorosa, que se celebrava antes de todas as sessões e sempre sem resultado nenhum. A peça era-lhe familiar, desde certas horas que ali passara, às escondidas de Joachim, “charlando” com o analista. Nos fundos, à esquerda, perto da janela, havia uma escrivaninha com uma cadeira de braços e outra poltrona para o paciente; a ambos os lados da porta lateral via-se uma biblioteca de consulta; um biombo de vários painéis separava a escrivaninha e as cadeiras de uma chaise longue forrada de oleado, colocada diagonalmente no ângulo direito do gabinete, onde também se achava uma vitrine de instrumentos; num outro canto erguia-se um busto de Hipócrates, ao passo que acima da lareira a gás, na parede direita, estava pendurada uma gravura reproduzindo a Anatomia de Rembrandt. Em suma, era uma sala de consultas típica, semelhante a muitíssimas outras. Mas para a finalidade especial dessa noite haviam sido feitas algumas modificações na mobília. A mesa redonda, de acaju, que normalmente se encontrava cercada de poltronas, no centro da peça, embaixo do lustre elétrico, sobre o tapete vermelho que cobria a quase totalidade do soalho, fora deslocada para o primeiro plano, em direção ao ângulo esquerdo, junto do busto de gesso, ao passo que outra mesinha revestida de uma toalha leve, e na qual se achava um abajur de lâmpada vermelha, tinha sido colocada nas proximidades da lareira acesa, que irradiava um calor seco. Por cima dessa mesinha pendia do teto outra lâmpada escondida atrás de véus vermelhos e negros. Na mesa e a seu pé viam-se alguns objetos de vasta notoriedade: a sineta, ou melhor, duas sinetas de construção diferente, uma de badalo e a outra parecida com uma campainha; havia, além disso, um prato com farinha e um cesto de papéis. Cerca de uma dúzia de cadeiras e poltronas de diversos tipos circundavam a mesinha, formando um semicirculo, desde os pés da chaise longue quase até o centro da sala, onde se achava o lustre. Era ali, perto da última cadeira, a meio caminho da porta lateral, que o fonógrafo encontrara o seu lugar. O álbum com as peças frívolas jazia numa banqueta próxima. Tais eram os preparativos feitos. Ainda não haviam acendido as lâmpadas vermelhas. O candelabro central difundia uma luz branca e clara. A janela, para a qual a escrivaninha dirigia um dos lados curtos, estava oculta atrás de duas cortinas, uma escura e outra rendilhada, de cor creme.

Ao cabo de dez minutos, o doutor voltou do gabinete vizinho, acompanhado das três senhoras. O aspecto da pequena Elly mudara consideravelmente. Em lugar do vestido usava uma espécie de traje de sessão, algo semelhante a um chambre de crepe branco, com um cordão em torno da cintura, e que deixava desnudos os braços delgados. Os seios de moça desenhavam-se macios e soltos sob a fazenda, dando a impressão de que pouca roupa havia por baixo dessa vestimenta.

Cumprimentaram-na vivamente. – Olá, Elly! Está encantadora, outra vez! Uma verdadeira fada! Faça força, meu anjinho! – Ela sorriu tanto das aclamações como da fantasia, que, como não ignorava, lhe ficava muito bem. – Inspeção prévia negativa – anunciou o Dr. Krokowski. – Pois então, mãos à obra, camaradas! – acrescentou, com seus peculiares rr palatais, exóticos, produzidos por um simples golpe de língua. Hans Castorp, mal impressionado por esse tratamento, estava a ponto de escolher um lugar, tal como faziam os demais, entre gritos, conversas e palmadinhas no ombro. Mas, nesse instante, o médico dirigiu-se a ele pessoalmente.

– Meu amigo – disse –, uma vez que o senhor se encontra hoje no nosso meio como visitante, ou, em certo sentido, como novato, gostaria de outorgar-lhe por esta noite um direito especialmente honroso. Confio-lhe o encargo de controlar a nossa médium. Praticamos esse controle da seguinte maneira. – E rogou ao jovem que se aproximasse de uma das extremidades do semicírculo. Era aquela que ficava próxima do biombo e da chaise longue. Ellen Brand instalara-se ali numa simples cadeira de vime, voltando o rosto mais para a porta da entrada com os degraus do que para o centro do aposento. O doutor sentou-se em outra cadeira igual, logo à sua frente, e apanhou-lhe as mãos, enquanto apertava os joelhos da garota entre os seus. – Imite isto! – ordenou, cedendo o lugar a Hans Castorp. – O senhor deve admitir que ela está totalmente presa. Mas o senhor terá ainda uma assistente. Tenha a bondade, minha prezada Srta. Kleefeld! – A moça, mobilizada por essas palavras urbanas e exóticas, juntou-se ao grupo, para agarrar com ambas as mãos os pulsos frágeis de Elly.

Hans Castorp não pôde abster-se por completo de contemplar o rosto, tão próximo do seu, da donzela prodígio que mantinha estreitamente aprisionada. Encontraram-se os olhos, mas os de Elly, fugindo, abaixaram-se em sinal de um pudor bem compreensível em vista daquela situação. Ao mesmo tempo esboçou ela um sorriso um tanto afetado, com a cabeça obliquamente inclinada e com a boca levemente bicuda, como fizera durante a sessão da taça. No jovem encarregado de vigiá-la, isso evocou, aliás, uma outra recordação mais remota: fora mais ou menos assim que sorrira Karen Karstedt, quando, em companhia dele e de Joachim, se achara diante do jazigo ainda intacto no cemitério da “aldeia”...

Os componentes do semicírculo acabavam de sentar-se. Compunha-se ele de treze pessoas, sem incluir o Sr. Wenzel, que tinha o hábito de consagrar a sua pessoa ao serviço da Polyhymnia. Depois de ligar o aparelho, o tcheco ocupou um tamborete nas proximidades, às costas do auditório, que ficava com os rostos voltados para o centro da sala. Tinha também consigo o violão. Sob o lustre central, na outra extremidade da fileira curva, o Dr. Krokowski tomou assento, depois de ter aceso, com uma só manobra, as duas lâmpadas vermelhas, e de ter apagado, com outra, a luz do teto. Uma escuridão suavemente avermelhada envolvia o aposento, cujas zonas e recantos mais afastados se esquivavam ao olhar. Somente a superfície da mesinha e o que lhe ficava em torno estavam iluminados por uma débil luz rubra. Durante os minutos que se seguiram, mal se enxergava o vizinho mais próximo. Apenas lentamente os olhos acomodaram-se às trevas e aprenderam a aproveitar a pouca luz que lhes era concedida, e que as pequenas labaredas, dançando na lareira, intensificavam até certo ponto.

O Dr. Krokowski dedicou algumas palavras à iluminação, cuja insuficiência do ponto de vista científico procurou desculpar. Estaria redondamente enganado quem a interpretasse como destinada a criar uma atmosfera sugestiva, propícia a mistificações. Apesar da melhor boa vontade não se podia, infelizmente, trabalhar com uma luz mais forte. A natureza das forças em apreço, que lhes cabia estudar, era inerente a incapacidade de se desenvolver e de produzir efeitos com luz branca. Esse era um fato fundamental com que deviam conformar-se... Hans Castorp, por sua vez, estava muito satisfeito com isso. A escuridão lhe fazia bem. Atenuava a singularidade da situação. Para justificar a escuridão, o jovem chamou, além disso, à memória aquelas outras trevas do gabinete de radioscopia, que faziam a gente concentrar-se piedosamente, e nas quais eram banhados os “olhos ordinários”, antes de se “ver”.

A médium, prosseguia o assistente na sua introdução, que evidentemente se dirigia a Hans Castorp em particular, já não tinha necessidade de ser adormecida por ele, o médico. Como o controlador logo teria oportunidade de verificar, Elly caía espontaneamente no estado de transe, e feito isso, o guardião fantasma, o famoso Holger, falava por intermédio da sua boca. Era a ele, e não a ela, que se deviam expressar os respectivos desejos. Por outra parte, seria um erro, que até poderia causar o malogro da tentativa, crer que fosse preciso concentrar a vontade e os pensamentos, com todas as forças, no fenômeno esperado. Pelo contrário, o mais indicado era uma atenção ligeira, distraída por meio de conversas. Recomendou a Hans Castorp que não perdesse o controle perfeito das extremidades da médium.

– Formem a cadeia! – ordenou por fim o Dr. Krokowski, e assim fizeram, rindo, quando não encontravam, na escuridão, as mãos dos vizinhos. O Dr. Ting-Fu, que tinha o lugar ao lado de Hermine Kleefeld, deitou a mão direita no ombro dela, e estendeu a esquerda ao Sr. Wehsal, que era o elo seguinte da cadeia. Junto do médico achavam-se o Sr. e a Srª. Magnus, seguidos por A. K. Ferge, que, se Hans Castorp não se enganava, segurava a mão da Levi com a tez de marfim; e assim por diante... – Música! – comandou o Dr. Krokowski, e o tcheco, às costas do assistente e dos seus vizinhos, pôs o aparelho em ação e colocou a agulha no disco. – Conversem! – ordenou Krokowski novamente, enquanto ressoavam os primeiros compassos de uma abertura de Millöcker. E docilmente todos se esforçaram por entabular uma palestra, que tratava de nada, absolutamente nada; falaram ora da neve caída nesse inverno, ora do cardápio da última refeição, ora da chegada de um novo pensionista, ora enfim de partidas autorizadas ou “em falso”. Meio abafada pela música, interrompendo-se e recomeçando, a conversa mantinha-se numa animação artificial. Assim se passaram alguns minutos.

O disco ainda não chegara ao fim, quando Elly sobressaltou-se violentamente. Um tremor percorreu-a toda. Gemeu. O tronco inclinou-se para a frente, de maneira que a testa tocava a de Hans Castorp. Ao mesmo tempo começaram os braços a mover-se de um modo estranho, avançando e recuando bruscamente, como se acionassem uma bomba.

– Transe! – anunciou a Kleefeld com perícia. A música emudeceu. A conversa parou. Através do silêncio repentino ouvia-se a branda e arrastada voz de barítono do doutor, que perguntava:

– Holger está presente?

Elly estremeceu novamente. Gingou na cadeira. Então sentiu Hans Castorp como ambas as mãos da médium apertavam as suas forte e rapidamente.

– Ela me aperta as mãos – comunicou aos outros.

– Ele – corrigiu-o o médico. – Foi ele quem as apertou. De modo que se acha presente. Salve, Holger – continuou com fervor. – Sejas bem-vindo de todo o coração, companheiro! E permite que te recorde isto: a última vez que estiveste entre nós, prometeste que chamarias qualquer defunto, fosse qual fosse o irmão ou a irmã que te citasse alguém da nossa roda, e que o tomarias visível aos nossos olhos mortais. Estás disposto e te sentes capaz de cumprir hoje esta promessa?

Elly tremeu outra vez. Suspirou. Hesitou antes de responder. Vagarosamente, levou as suas mãos e as do seu assistente até a testa, onde as manteve imóveis por alguns instantes. Depois segredou ao ouvido de Hans Castorp um “sim” ardente.

O sopro dessa palavra, penetrando diretamente na sua orelha, causou ao nosso amigo aquele arrepio epidérmico que o povo chama de “pele de galinha” e cuja natureza o conselheiro lhe explicara certa vez. Falamos de um arrepio instintivo, para distinguir o fenômeno puramente corporal do psíquico, uma vez que aquilo nada tinha que ver com um verdadeiro horror. O que o jovem pensou nesse momento foi mais ou menos o seguinte: “Ora vejam, ela promete mundos e fundos!” Mas ao mesmo tempo sentiu-se comovido e consternado; sim, invadiu-o um sentimento confuso que tinha a sua origem na circunstância enganadora de que essa moça tão nova, cujas mãos segurava, lhe sussurrara ao ouvido a palavra “sim”.

– Ele disse “sim” – informou Hans Castorp, embaraçado.

– Muito bem, Holger! – disse o Dr. Krokowski. – Nós te pegaremos na palavra. Temos confiança em que farás lealmente tudo quanto estiver em teu poder. Logo saberás o nome do ente querido cujo comparecimento desejamos... Camaradas – continuou, dirigindo-se ao grupo –, digam de uma vez! Quem é que tem um desejo? Qual é a criatura que nosso amigo Holger deve fazer aparecer?

Seguiu-se profundo silêncio. Todos esperavam que o vizinho se manifestasse. Verdade é que cada qual, individualmente, escrutara nesses últimos dias o seu íntimo, para saber em que direção e para que pessoa rumavam os seus pensamentos. Mas a volta de defuntos, isto é, a desejabilidade de tal volta nunca deixa de ser coisa problemática e delicada. Em última análise, e falando com franqueza, essa desejabilidade não existe; é uma ilusão; à luz do dia, é tão impossível como a própria coisa, o que se tornaria evidente se a natureza, num caso particular, abolisse esta impossibilidade. O que chamamos “luto” talvez não seja a dor que nos inflige a impossibilidade de ver os nossos mortos voltarem à vida, senão a outra, que experimentamos diante do fato de sermos incapazes de desejar tal coisa.

Todos tinham, vagamente, essa sensação. Embora dessa vez não se tratasse de uma volta séria e verdadeira à vida, mas apenas de um arranjo puramente sentimental e teatral, cuja única finalidade era ver o finado; embora, por conseguinte, o ato fosse inofensivo do ponto de vista da vida, apavoravam-se diante da idéia de encarar o ente em que pensavam, de maneira que cada um preferia abandonar ao vizinho o privilégio de expressar um desejo. Também Hans Castorp não se adiantou, ainda que ouvisse através das trevas aquele “Pois não” bondoso e complacente. No último instante, estava disposto a deixar a primazia a outrem. Mas, como aquilo se prolongasse por muito tempo, voltou a cabeça para o presidente da sessão e disse com voz velada:

– Eu queria ver meu falecido primo Joachim Ziemssen.

Foi um alívio para todos. Dos componentes do grupo, somente o Dr. Ting-Fu, o tcheco Wenzel e a própria médium não tinham conhecido pessoalmente o defunto citado. Os demais – Ferge, Wehsal, o Sr. Albin, o promotor, o casal Magnus, a Stöhr, a Levi e a Kleefeld – demonstraram ruidosa e alegremente a sua aprovação. Até mesmo o Dr. Krokowski fez um gesto de satisfação, se bem que as suas relações com Joachim sempre houvessem sido um tanto frias, pois este se mostrara recalcitrante em matéria de análise.

– Ótimo – disse o doutor. – Ouviste, Holger? Em vida, não conhecias a pessoa que te foi designada. Será que a reconheces no além e estás disposto a guiá-la até nós?

A tensão foi grande. A adormecida gingava, dava suspiros, estremecia. Parecia procurar e lutar, enquanto se deixava cair ora para um ora para outro lado, murmurando palavras incompreensíveis ao ouvido de Hans Castorp ou da Kleefeld. Finalmente recebeu Hans Castorp de ambas as mãos de Elly o aperto que significava “sim”. Comunicou o fato aos demais e...

– Pois bem! – exclamou o Dr. Krokowski. – Mãos a obra, Holger!... Música! – ordenou. – Conversem! – E mais uma vez lhes recomendou que para servir à causa nada adiantava concentrar-se convulsivamente e fixar todas as idéias na visão esperada, senão prestar uma atenção vaga, desembaraçada.

Seguiram-se então horas mais estranhas do que a vida curta do nosso herói continha até esse momento. Ainda que não possamos vislumbrar com absoluta clareza os seus destinos ulteriores e o percamos de vista em determinado ponto da nossa história, sentimo-nos inclinados a crer que foram as mais estranhas que chegou a viver.

Havemos por bem avisar os nossos leitores previamente de que se trata de horas inteiras, mais de duas, inclusive uma pequena interrupção do “trabalho” que agora começava; esse trabalho de Holger ou, na realidade, da donzela Elly, que se prolongava terrivelmente, de maneira que todos já estavam prestes a desesperar de um resultado positivo. Acrescia a isso que, por pura misericórdia, muitas vezes se sentiam tentados a resignar-se e a abreviar o trabalho, que de fato parecia imensamente difícil e dava a impressão de ultrapassar as forças débeis da moça a quem fora solicitado. Nós, os homens, a não ser que nos esquivemos às coisas humanas, conhecemos, de uma determinada situação da vida, aquela compaixão intolerável, mas ridícula, porque ninguém a aceita, e provavelmetne inoportuna; conhecemos aquele grito indignado: “Basta!” que tende a se desprender do nosso peito, posto que “aquilo” não possa, nem deva “bastar” e que seja preciso terminá-lo desta ou daquela forma. Já devem ter compreendido que nos referimos à nossa função de esposo e de pai, bem como ao processo do parto, ao qual a luta de Elly se assemelhava tão inequívoca e inconfundivelmente, que mesmo aqueles que ainda não o conheciam tinham de reconhecê-lo. Tal era o caso do jovem Hans Castorp, visto também ele não se ter esquivado à vida. Foi, pois, sob essas condições que travou conhecimento com aquele ato cheio de misticismo orgânico. Sob que condições? E com que finalidade? Era impossível qualificar com outro adjetivo que não escandalosos os pormenores e as particularidades dessa animada sala de partos, banhada em luz vermelha. Isso se aplicava tanto à pessoa virginal da parturiente, com o roupão flutuante e os bracinhos desnudos, como ao resto do ambiente, a saber, a incessante e leviana música que partia da vitrola, as conversas artificiais que o semicírculo mantinha para cumprir a ordem recebida, as aclamações joviais e estimulantes que os componentes da roda dirigiam sem cessar à garota que ali se contorcia: “Vamos, Holger! Coragem! Já vai melhor! Continua assim! Mais um pouco e vencerás!” E absolutamente não excetuamos a figura e a posição do “marido” – desde que podemos considerar Hans Castorp como tal, por ter ele manifestado o desejo –, o marido que comprimia os joelhos da “mãe” com os seus e lhe segurava as mãos; essas mãozinhas que estavam tão úmidas como haviam sido as da pequena Leila, de maneira que era preciso apertá-las sempre, para evitar que lhe escapassem.

Pois a lareira a gás, às costas das pessoas sentadas nas suas proximidades, irradiava forte calor.

Misticismo e solenidade? Nada disso! Era barulhento e banal aquilo que se passava nas trevas vermelhas, às quais os olhos, pouco a pouco, haviam-se habituado a ponto de dominarem a maior parte do aposento. A música e os gritos recordavam os. métodos que emprega o Exército de Salvação, com o fim de galvanizar o auditório; recordação essa que se impunha até a quem, como Hans Castorp, jamais assistira a um serviço divino desses fanáticos jubilosos. Não era num sentido fantasmagórico que essa cena parecia mística, misteriosa, capaz de inspirar pensamentos piedosos a pessoas sensíveis, senão unicamente num sentido natural, orgânico, e já mencionamos o parentesco próximo e íntimo que era a fonte dessa associação de idéias. Os esforços de Elly produziam-se à maneira de dores do parto, depois de intervalos de repouso, durante os quais ela pendia frouxamente para o lado da cadeira, num estado inacessível que o Dr. Krokowski definiu como “transe profundo”. Em seguida tornava a sobressaltar-se; revolvia-se; lutava com os vigilantes; sussurrava-lhes nos ouvidos palavras ardentes, sem nexo; fazia bruscos movimentos laterais como se quisesse expulsar alguma coisa do seu próprio corpo; rangia os dentes; em certa ocasião até mordeu a manga de Hans Castorp.

Isso durou uma hora ou talvez mais. Por fim, o presidente da sessão julgou indicado intercalar uma pausa. O tcheco Wenzel, que, para variar um pouco, terminara poupando o aparelho e tocando o violão com grande habilidade, pôs o instrumento de lado. Com um suspiro de alívio, soltaram-se as mãos. O Dr. Krokowski encaminhou-se à parede, para acender a luz do teto. A claridade branca se fez tão deslumbrante que todos piscavam estonteados os olhos acostumados à noite. Elly dormia, muito inclinada para a frente, com o rosto quase tocando as coxas. Via-se como se entregava a uma atividade estranha que parecia familiar aos outros, mas que Hans Castorp contemplou com atenção e surpresa: durante alguns minutos passou ela a mão cava, de cá para lá, pela zona dos quadris, estendendo-a e recolhendo-a num gesto de quem, ao trabalhar com uma concha ou um ancinho, procurasse juntar e puxar para si alguma coisa. Por fim estremeceu várias vezes e acordou. Piscando estonteada, também ela, com os olhos sonolentos, esboçou um sorriso.

Foi um sorriso gracioso, um tanto alheado. A compaixão que haviam sentido ao vê-la penar parecia realmente desperdiçada. A moça não dava a impressão de estar particularmente exausta. Talvez nem sequer se lembrasse dos seus trabalhos. Estava sentada na poltrona dos enfermos, perto da janela, entre a escrivaninha e o biombo que escondia a chaise longue. Dera meia-volta à cadeira, de modo que pudesse apoiar o braço na superfície da escrivaninha e olhar para dentro da sala. Deixava-se estar assim, alvo de olhares comovidos, recebendo de vez em quando um aceno alentador, e guardando silêncio durante todo esse intervalo que se prolongou por quinze minutos.

Tratava-se de um verdadeiro recreio que dava oportunidade para descansar e para contemplar, com suave satisfação, a obra já realizada. Abriram-se as cigarreiras dos homens. Fumavam com prazer. Aqui e ali se formavam grupos que discutiam o caráter da sessão. Estavam longe de desanimar ou de encarar o fracasso definitivo. Existiam sintomas próprios para deter tal ceticismo. Todos aqueles que ocupavam os lugares na extremidade oposta do semicírculo, vizinho ao do médico, afirmavam unanimemente que haviam sentido, diversas vezes e com absoluta nitidez, aquela aura fria que costumava partir da médium e avançar numa determinada direção, cada vez que se preparavam aparições. Outros pretendiam ter notado fenômenos luminosos, manchas brancas, aglomerações movediças de energias que acabavam de se manifestar nas proximidades do biombo. Numa palavra: nada de relaxamento! Nada de pusilanimidade! Holger empenhara a sua palavra, e não tinham direito de duvidar de que a cumpriria.

O Dr. Krokowski deu o sinal para recomeçar a sessão. Enquanto todos voltavam aos lugares, reconduziu a médium pessoalmente até a cadeira dos seus tormentos, acariciando-lhe os cabelos. Tudo se passou como antes. Hans Castorp pediu que o substituíssem no cargo de primeiro vigilante, mas o presidente se opôs. Disse que fazia questão de oferecer à pessoa que expressara o desejo o contato físico com a médium, a fim de garantir-lhe que praticamente não havia possibilidade de manipulações fraudulentas por parte desta. Foi assim que Hans Castorp voltou a ocupar a sua estranha posição à frente de Elly. A luz transformou-se nas trevas vermelhas. Recomeçou a música. Novamente se produziram depois de poucos minutos os bruscos tremores de Elly e o movimento de dar impulso a uma bomba. Dessa vez foi Hans Castorp quem anunciou o transe. O parto escandaloso continuaria.

Como era terrivelmente penoso! Parecia não querer realizar-se – como seria possível? Que loucura! De onde viria a maternidade nesse caso? Dar à luz? Como e o quê? “Acudam! Acudam!”, gemia a garota, enquanto as dores ameaçavam converter-se naquele estado desfavorável e perigoso de espasmo constante, ao qual os peritos da obstetrícia deram o nome de “eclampsia”. Em dado momento chamou o doutor, pedindo que lhe impusesse as mãos. O assistente assim o fez, encorajando-a energicamente. O efeito magnético, se é que se tratava de tal, fortaleceu-a para novas lutas.

Desta forma transcorreu a segunda hora, durante a qual se alternavam os arpejos do violão e as peças fúteis da vitrola, ressoando pelo recinto, a cuja semi-escuridão os olhos acabavam de se reacostumar. Então ocorreu um incidente. Foi Hans Castorp quem o provocou, ao dar uma sugestão ou ao pronunciar um desejo, uma idéia, que fomentara havia muito, ou melhor, desde o início da sessão, e que talvez devesse ter manifestado antes. A essa altura, Elly se achava num transe profundo, apoiando o rosto nas mãos agarradas, e o Sr. Wenzel estava a ponto de mudar ou de virar o disco. Nesse instante, o nosso amigo pôs-se a falar resolutamente, dizendo que queria fazer uma proposta – nada de importância, aliás, mas cuja realização poderia ser útil. – Eu disponho... isto é, a discoteca da casa dispõe de uma peça do Fausto de Gounod, a “Oração” de Valentim, uma ária muito bonita, para voz de barítono com acompanhamento de orquestra. Seria conveniente experimentar esse disco.

– E por quê? – perguntou o médico através das trevas vermelhas.

– Por motivos sentimentais. Questão de atmosfera – respondeu o jovem, explicando que o espírito da referida peça era estranho e muito particular. Valeria a pena fazer uma tentativa. A seu ver não era impossível que esse espírito ou caráter da ária abreviasse o processo em que se achavam empenhados.

– O disco está aqui? – indagou o doutor.

Não, não estava. Mas Hans Castorp poderia ir buscá-lo.

– Isso não! – Krokowski rejeitou peremptoriamente essa idéia. Mas como? Será que Hans Castorp tencionava ir e vir sem mais aquela, procurar um objeto e reencetar depois o trabalho interrompido? Nisso se demonstrava a sua inexperiência. Não, aquilo era impraticável. Tudo ficaria anulado, e seria preciso voltar ao ponto de partida. Também a exatidão científica vedava essas idas e vindas arbitrárias. Ele, o doutor, estava com a chave no bolso. Numa palavra, se o disco não se achasse disponível, melhor seria... Ainda prosseguia falando, quando o aparteou o tcheco, do seu lugar ao pé do fonógrafo:

– O disco está aqui.

– Aqui? – perguntou Hans Castorp...

Sim, aqui mesmo. Fausto, “Oração” de Valentim. Às ordens! Excepcionalmente, o disco tinha sido colocado no álbum das peças fúteis e não no álbum verde número II, o das árias, onde devia encontrar-se segundo a sua categoria. Por casualidade, por relaxamento, por uma circunstância extraordinária e, em todo caso, feliz, fora misturado com as bagatelas, de maneira que tudo o que se precisava fazer era pô-lo no aparelho.

Que havia Hans Castorp de dizer a isso? Não disse nada. O médico observou: “Tanto melhor!”, e algumas pessoas repetiram essas palavras. A agulha pôs-se a chiar. A tampa foi abaixada. E uma voz máscula começou a cantar, entre os acordes de um hino sacro: “Antes de deixar este lugar...”

Ninguém falava. Todos escutavam. Com as primeiras notas cantadas, Elly reiniciara o seu trabalho. Sobressaltou-se; lançou gemidos; executou o movimento de dar impulso a uma bomba, e tornou a levar à testa as mãos úmidas, escorregadias. O disco continuava a girar. Veio a estrofe intermediária, com a modificação do ritmo, o trecho que tratava, de modo intrépido, pio, francês, de combates e perigos. Terminado este, seguiu-se o fim, a repetição orquestralmente reforçada do começo. Com sons poderosos ressoava a frase: “Ó Senhor Deus, ouve minhas preces...”

Hans Castorp estava ocupado com Elly. A moça corcoveava, lutava por aspirar pela garganta angustiada. A seguir entrou em colapso, com um suspiro, e daí por diante permaneceu imóvel. Hans Castorp, desassossegado, estava se curvando por cima dela, quando ouviu a voz chorosa, pipilante, da Srª. Stöhr, que disse:

– Ziem...ssen!

O jovem não se aprumou. Sentiu na boca um sabor amargo. Ouviu uma outra voz profunda e fria, que replicava:

– Já faz tempo que o vejo.

O disco chegara a seu fim. Perdera-se no ar o derradeiro acorde dos sopros. Mas ninguém fez o aparelho parar. Chiando em vão através do silêncio, a agulha prosseguia a percorrer a parte central do disco. Então Hans Castorp levantou a cabeça, e seus olhos, sem necessidade de procurar, tomaram a direção certa.

Havia no aposento uma pessoa mais. Ali, a alguma distância do grupo, nos fundos do gabinete, no ponto em que os restos da luz vermelha quase se confundiam com a escuridão, de modo que a vista mal avançava até ele, ali entre o lado comprido da escrivaninha e o biombo, na poltrona dos pacientes do médico, que Elly ocupara durante o intervalo, estava sentado Joachim. Era Joachim, com as sombras das faces encovadas e com a barba de guerreiro dos seus últimos dias, essa barba no meio da qual ressaltavam, cheios e altivos, os lábios. Recostava-se ao espaldar e tinha uma perna cruzada sobre a outra. Não obstante a coberta da cabeça que lhe obscurecia as feições, distinguia-se novamente no seu rosto o cunho do sofrimento, bem como aquela expressão grave, austera, que lhe conferira tanta beleza viril. Duas rugas sulcavam a testa entre os olhos afundados nas órbitas ossudas; mas isso não diminuía a brandura do olhar desses olhos belos, grandes, escuros, que se dirigia, numa interrogação calma, amistosa, para Hans Castorp, e só para ele. A sua pequena aflição de tempos passados – as orelhas de abano – continuava perceptível sob a coberta da cabeça, essa coberta estranha que ninguém sabia explicar. O primo Joachim não estava à paisana. Um sabre, cujo punho segurava com ambas as mãos, parecia encostado na coxa da perna cruzada. Na cintura podia-se distinguir um coldre. Mas aquilo que usava não era um verdadeiro uniforme. Nada havia nele de brilhante nem de colorido. Era uma espécie de túnica, de gola virada e com bolsos laterais. Na parte inferior do peito achava-se uma cruz. Os pés de Joachim pareciam bastante grandes e as pernas, muito finas; estavam enroladas em grevas, o que lhes dava um aspecto desportivo antes que militar. E que significava aquela coberta da cabeça? Tinha-se a impressão de que Joachim se cobrira com uma marmita de soldado, com uma panela de cozinha, que fixara sob o queixo por meio de uma correia. Mas, coisa estranha! aquilo lhe emprestava ares antigos, de lansquenete, e essa marcialidade assentava-lhe bem.

Hans Castorp sentiu nas mãos o hálito de Ellen Brand. A seu lado ouviu a respiração da Kleefeld, que era acelerada. Fora disso não se percebia nenhum som, a não ser o chiar incessante do disco, que ainda girava sob a agulha, e que ninguém se lembrava de parar. Não procurou com os olhos nenhum dos companheiros; não desejava vê-los nem saber deles. Obliquamente, por cima das mãos e da cabeça de Elly, que jaziam sobre os seus joelhos, seu olhar atravessava as trevas vermelhas e fixava-se no visitante que se achava na poltrona. Durante um momento, o seu estômago pareceu a ponto de revoltar-se. Contraía-se-lhe a garganta, fazendo-o soluçar quatro ou cinco vezes profunda e convulsivamente. – Perdoe-me! – murmurou de si para si. Em seguida, seus olhos transbordaram de lágrimas, de modo que não enxergava mais nada.

Ouviu como murmuravam: – Dirija-lhe a palavra. – Ouviu a voz de barítono do Dr. Krokowski, em tom solene e ao mesmo tempo jovial, pronunciar-lhe o nome e repetir a solicitação. Ao invés de obedecer, Hans Castorp retirou as mãos de baixo do rosto de Elly e levantou-se.

Novamente o Dr. Krokowski chamou-o pelo nome, dessa vez num tom severo de admoestação. Mas Hans Castorp já alcançara com poucos passos os degraus da porta de entrada e acendeu, numa manobra rápida, a luz branca do lustre.

Ellen Brand sobressaltou-se num choque violento. Torcia-se nos braços da Kleefeld. A poltrona estava vazia.

Hans Castorp aproximou-se de Krokowski que protestava, de pé. Quis falar, mas nenhuma palavra lhe saiu dos lábios. Com um gesto brusco, imperioso, da cabeça, estendeu a mão. Depois de receber a chave, acenou várias vezes ameaçadoramente na cara do médico. Deu meia-volta e abandonou o gabinete.

 

         A grande irritação

À medida que se sucediam os anos, um certo quê começou a pairar sobre o Sanatório Berghof, um espírito que, como Hans Castorp vagamente sentia, era o descendente direto do demônio cujo nome maligno já citamos em outra ocasião. O jovem estudara aquele demônio com a curiosidade irresponsável de um viajeiro em busca de formação e até descobrira na sua própria alma perigosas aptidões para desempenhar um papel importante no culto abominável que todo mundo lhe devotava. Segundo a sua índole, o nosso herói não era feito para se entregar ao vício que a essa altura dos acontecimentos se pôs a grassar, ao passo que antes só existira, tal e qual aquele outro, endemicamente ou em surtos espaçados. Contudo notou Hans Castorp, com espanto, que bastava relaxar um pouquinho para que, também ele, na sua fisionomia, nas suas palavras, no seu comportamento, sucumbisse a uma infecção à qual ninguém, nesse ambiente, conseguia subtrair-se.

Que se passava, afinal? Que havia no ar? Um espírito rixento. Uma irritação aguda. Uma impaciência indizível. Uma tendência geral para discussões venenosas, para acessos de raiva e mesmo para lutas corporais. Querelas ferozes, gritarias desenfreadas de parte a parte surgiam todos os dias entre indivíduos ou grupos inteiros, e o característico era que aqueles que não tomavam parte nos conflitos, ao invés de sentir-se desgostosos diante da conduta dos respectivos adversários ou de servir de pacificadores, simpatizavam com a explosão de sentimentos e intimamente se abandonavam à mesma vertigem. Ficavam pálidos ou estremeciam ao ver uma cena dessas. Os olhos brilhavam agressivamente. As bocas crispavam-se de tanta paixão. Invejava-se aos protagonistas do momento o direito, a oportunidade de berrar. O premente desejo de imitá-los atormentava as almas e os corpos, e quem não tinha a força necessária para refugiar-se na solidão era irresistivelmente arrastado pelo torvelinho. As brigas por motivos fúteis, as recriminações mútuas em presença das autoridades empenhadas em reconciliar os digladiantes, mas que sucumbiam elas próprias, com espantosa facilidade, vítimas da tendência geral para a gritaria grosseira – tudo isso se tornara freqüente no Sanatório Berghof. Os que saíam de casa mais ou menos tranqüilos eram incapazes de prever em que estado voltariam. Uma pensionista que tinha o seu lugar à mesa dos “russos distintos”, moça muito elegante da cidade provinciana de Minsk, ainda jovem e apenas levemente enferma – só três meses lhe haviam sido impostos –, desceu certo dia à vila para comprar alguma coisa na loja francesa de blusas. Ali teve um atrito tão violento com a modista que, ao regressar possuída da mais viva excitação, teve uma forte hemoptise e, tendo chegado a esse ponto, era agora incurável. Mandaram vir o marido e informaram-no de que ela estava condenada a permanecer para sempre ali em cima.

Este é um exemplo do estado de espírito que se alastrava. Muito a contragosto citaremos outros casos. Um ou outro leitor talvez se lembre ainda de certo colegial, ou ex-colegial, que usava óculos de aros redondos e comia à mesa da Srª. Salomon, aquele rapaz macilento que tinha o hábito de cortar toda a comida em pedaços, a ponto de obter uma espécie de picadinho, que então engolia vorazmente, com os cotovelos apoiados na mesa, interrompendo-se apenas para passar de vez em quando o lenço por trás das lentes espessas. Assim fizera durante todo o tempo, continuando a ser um colegial, ou um ex-colegial, sempre abarrotando-se de comida e enxugando os olhos, sem dar motivo para se prestar à sua pessoa uma atenção mais do que passageira. Um belo dia, porém, durante o café da manhã, teve, inopinadamente, sem mais nem menos, um ataque de cólera que causou escândalo geral e agitou o ambiente da sala de refeições. Ouviu-se um barulho que partia do lugar onde se achava o rapaz. E ali estava ele sentado, lívido, a gritar, dirigindo-se à anã que se encontrava de pé a seu lado. – É mentira sua! – gritou em voz esganiçada. – O chá está frio! O chá que me trouxe está frio como gelo. Não o quero! Prove-o você mesma antes de mentir. Então vai ver que é uma água morna e já usada, intragável para gente que se preze. Como se pode atrever a servir-me um chá gelado assim, como pode ter a ousadia de me oferecer essa porcaria morna na esperança de que eu beba?! Eu não! Não tomarei isso! – vociferou e meteu-se a esmurrar a mesa com ambos os punhos, de modo que a baixela tinia e dançava. – Eu quero é chá quente! Quero chá fervendo. Tenho direito a isso perante Deus e os homens! Não aceito isto. Faço questão que me sirvam chá quentíssimo! Antes morrer imediatamente do que tomar um só gole de... Maldita aleijada! – uivou de repente, abandonando, por assim dizer, de golpe, os últimos restos de controle e avançando com arrebatamento até os derradeiros limites da raiva. Ameaçou Emerentia com os punhos cerrados e mostrou-lhe literalmente os dentes cobertos de espuma. Prosseguiu dando murros na mesa, batendo o pé no chão e urrando aqueles “Eu quero” ou “Eu não quero”, enquanto na sala se repetia o espetáculo de sempre. Uma simpatia veemente, de alta intensidade, estava sendo dedicada ao colegial raivoso. Alguns pensionistas acabavam de se levantar de um pulo. Enquanto contemplavam o rapaz, também eles tinham os punhos cerrados, os dentes rilhando e os olhos chamejantes. Outros permaneciam sentados, pálidos, com os olhos baixos, sacudidos de tremor. E esse estado persistia ainda, quando o colegial, completamente exausto, havia muito se achava diante de uma xícara de chá novo, sem tocar nela.

Que era isso?

Um homem entrou na comunidade do Berghof, um trintão, antigo comerciante, febril desde muito tempo e que passava os anos indo de sanatório em sanatório. Era inimigo dos judeus, anti-semita por princípio e por esporte; era-o com um fanatismo soberbo, e essa atitude negativa constituía todo o seu orgulho e o conteúdo da sua vida. Tinha sido comerciante; já não o era, não era nada no mundo a não ser inimigo dos judeus. Estava gravemente enfermo; sofria de penosos ataques de tosse; às vezes dava a impressão de espirrar pelos pulmões, um só espirro agudo, breve, sinistro. Mas não era judeu, e precisamente isso é que nele havia de positivo. Chamava-se Wiedemann, tinha um nome cristão e não um nome impuro. Era assinante de uma revista intitulada A Tocha Ariana, e dizia coisas como as seguintes:

– Hospedei-me no Sanatório X., em B... Estou a ponto de me instalar no alpendre de repouso. Quem é que vejo na espreguiçadeira à minha esquerda? O Sr. Hirsch! E quem está deitado à direita? O Sr. Wolf! Claro que parti imediatamente... – E assim por diante.

“Logo você!”, pensou Hans Castorp, cheio de aversão, ao ouvir isso.

Wiedemann tinha um característico olhar rápido e insidioso. Literalmente, era como se andasse com uma borla suspensa diante do nariz, em que cravasse os olhos com malícia, sem nada enxergar atrás dela. A idéia fixa, absurda, que o acossava, convertera-se numa desconfiança pruriente, numa constante mania de perseguição, que o impelia a catar qualquer impureza oculta ou disfarçada que porventura existisse a seu redor, e a expô-la ao desprezo público. Fosse onde fosse, remoqueava, suspeitava, detratava. Em suma, o que lhe absorvia os dias era a tarefa de levar ao pelourinho todas as criaturas vivas que não tivessem aquela qualidade única que ele possuía.

As circunstâncias internas que estamos empenhados em descrever agravaram extraordinariamente a birra desse homem, e como fosse inevitável que topasse também aqui em cima com criaturas que padecessem do defeito de que ele, Wiedemann, estava livre, essas circunstâncias contribuíram para provocar uma cena lamentável que Hans Castorp não pôde deixar de presenciar, e que nos oferece mais um exemplo daquilo que estamos explanando.

É que existia por ali um outro homem. Não havia nada que desmascarar nele. O caso era claro. O homem chama-se Sonnenschein, e como não se pudesse imaginar nome mais imundo, a pessoa de Sonnenschein formava, desde o primeiro dia, a borla suspensa diante do nariz de Wiedemann, e que este olhava de esguelha, com olhares rápidos e maliciosos; a borla em que batia com a mão, menos para afastá-la do que para fazê-la balouçar a fim de se irritar ainda mais com ela.

Sonnenschein tinha sido comerciante, tal qual o outro. Também ele estava gravemente enfermo e distinguia-se por uma suscetibilidade doentia. Era homem amável, nada estúpido, de índole bem-humorada. Mas odiava Wiedemann, devido àquelas indiretas e batidas na borla; odiava-o cegamente. E certa tarde, todo mundo acudiu correndo ao vestíbulo onde Wiedemann e Sonnenschein se engalfinhavam de modo desregrado e bestial.

Era um espetáculo medonho, deplorável. Os dois atracavam-se como meninos, mas com o desespero de homens adultos que chegaram até esse ponto. Arranhavam-se a cara; agarravam-se pela garganta e pelo nariz, enquanto se golpeavam mutuamente; cingiam-se com os braços; revolviam-se pelo chão, com uma seriedade pavorosa, radical; cuspiam, davam pontapés, puxões e socos, espumando de raiva. O pessoal da “administração”, que acorreu às pressas, teve muito trabalho em separar os contendores enlaçados e ferrenhos. Wiedemann, babando e deitando sangue, com o rosto atoleimado de tanta cólera, apresentava o fenômeno dos cabelos eriçados. Hans Castorp nunca vira tal coisa e pensava que aquilo não acontecesse em realidade. O Sr. Wiedemann, cujos cabelos conservavam-se eriçados, abandonou o recinto precipitadamente, enquanto o Sr. Sonnenschein, com um dos olhos desaparecido sob uma mancha azul, e com uma lacuna sangrenta na coroa de cabelos pretos que lhe rodeava a calva, era conduzido ao escritório, onde se sentou e chorou amargamente com o rosto enterrado entre as mãos.

Foi o que se deu entre Wiedemann e Sonnenschein. Todos os que haviam assistido a essa cena continuaram trêmulos durante horas a fio. Em confronto com tal miséria, é relativamente agradável falar de um autêntico ajuste de honra, que se desenrolou nesse mesmo período e merece essa qualificação até as raias do ridículo, por causa da solenidade formal com que foi tratado. Hans Castorp não presenciou as diferentes fases do caso, mas informou-se sobre seu curso complicado e dramático por meio de documentos, declarações e termos referentes à questão, cujas cópias eram difundidas no Sanatório Berghof e fora dele, não só em Davos, no cantão e no país, mas também no estrangeiro, inclusive na América, e remetidas mesmo a pessoas a quem certamente essa história não despertaria o menor interesse.

Era um assunto polaco, uma querela de honra, originada num grupo de poloneses que recentemente se reunira no Berghof. Era uma verdadeira coloniazinha que ocupava a mesa dos “russos distintos”. (Hans Castorp – seja dito de passagem – já não tinha o seu lugar, ali, mas passara, no decorrer do tempo, pelas mesas da Kleefeld e da Salomon, indo parar na da Srta. Levi.) Aquela roda era de tal modo elegante, cavalheiresca e polida, que o observador só podia arregalar os olhos e preparar-se intimamente para toda sorte de incidentes. Havia lá um casal, bem como uma senhorita que mantinha relações amigáveis com um dos cavalheiros. O resto do grupo era formado exclusivamente por cavalheiros. Chamavam-se Von Zutawski, Cieszynski, Von Rosinski, Michael Lodygowski, Leo von Asarapetian, etc. Ora, aconteceu que no restaurante Berghof um certo Japoll, ao beber champanha em companhia de dois outros cavalheiros, fizera com respeito à esposa do Sr. von Zutawski e à Srta. Krylow, amiga íntima do Sr. Lodygowski, considerações que não é possível repetir. Disso resultaram as providências, os atos e as formalidades que constituíam o conteúdo das atas distribuídas e remetidas a todo mundo. Hans Castorp lia o seguinte:

 

“Declaração traduzida do original polonês: A 27 de março de 19..., o Sr. Stanislav von Zutawski dirigiu-se aos senhores Dr. Antoni Cieszynski e Stefan von Rosinski, solicitando-lhes que fossem em seu nome ter com o Sr. Kasimir Japoll, para pedir-lhe, em conformidade com o código de honra, satisfação pela grave ofensa e difamação que o Sr. Kasimir Japoll infligiu à Srª. Jadwiga von Zutawski, sua esposa, por ocasião de uma conversa com os senhores Janusz Teofil Lenart e Leo von Asarapetian.

“Quando o Sr. von Zutawski há poucos dias teve por via indireta conhecimento da referida conversa, ocorrida em fins de novembro do ano passado, fez imediatamente o necessário para obter a mais absoluta certeza quanto aos fatos e ao caráter da ofensa perpetrada. No dia de ontem, a 27 de março de 19..., a difamação e a ofensa foram confirmadas pela boca do Sr. Leo von Asarapetian, testemunha auricular da conversa no decorrer da qual foram pronunciadas as palavras e insinuações ofensivas. Em virtude disso, o Sr. von Zutawski viu-se induzido a dirigir-se, sem perda de tempo, aos abaixo-assinados, a fim de confiar-lhes o mandato para instaurar um processo contra o Sr. Kasimir Japoll perante um tribunal de honra.

“Os abaixo-assinados fazem a seguinte declaração:

“1.° – Baseando-se no termo lavrado à instância de uma das partes no dia 9 de abril de 19..., redigido em Lemberg pelos Srs. Zdzistaw Zygulski e Tadeusz Kadyi, na demanda do Sr. Ladislaw Goduleczni contra o Sr. Kasimir Japoll, atendo-se, outrossim, à declaração do Tribunal de Honra, pronunciada a 18 de junho de 19..., em Lemberg, no mesmo caso, verificam que ambos esses documentos acham-se em completo acordo quanto ao fato de que o Sr. Kasimir Japoll, em virtude das suas reiteradas faltas às exigências da honra, não pode ser considerado cavalheiro.

“2.° – Os abaixo-assinados tiram as últimas conseqüências do acima relatado, deduzindo ser absolutamente impossível julgar o Sr. Kasimir Japoll capaz de dar uma satisfação de qualquer espécie.

“3.° – No que se refere às suas próprias pessoas, os abaixo-assinados são de parecer que é inadmissível instaurar perante um tribunal de honra um processo contra um homem que se colocou fora do terreno da honra, e intervir num assunto dessa espécie.

“Em face dessa situação, os abaixo-assinados chamam a atenção do Sr. Stanislaw von Zutawski para o fato de ser inútil defender os seus direitos contra o Sr. Kasimir Japoll mediante um processo de honra e aconselham-no a recorrer à justiça criminal, a fim de evitar futuros prejuízos que lhe possam ser causados por parte de uma personalidade tão incapaz de dar a devida satisfação como o é o Sr. Kasimir Japoll. – Datado e assinado: Dr. Antoni Cieszynski, Stefan von Rosinski.”

 

Além disso, Hans Castorp teve oportunidade de ler o seguinte:

 

“Ata das testemunhas do incidente havido entre os senhores Stanislaw von Zutawski e Michael Lodygowski, de um lado, e os senhores Kasimir Japoll e Janusz Teofil Lenart, do outro, no bar do cassino de D., a 2 de abril de 19..., entre as 7,30 e as 7,45 da tarde.

“O Sr. Stanislaw von Zutawski, depois de refletir maduramente sobre as declarações feitas pelos seus representantes, os senhores Dr. Antoni Cieszynski e Stefan von Rosinski, com referência ao caso do Sr. Kasimir Japoll, chegou à convicção de que a recomendada denúncia criminal contra o Sr. Kasimir Japoll não lhe poderia dar plena satisfação pela grave ofensa e difamação de sua esposa Jadwiga,

“1.° – considerando que há justas razões para temer que o Sr. Kasimir Japoll no momento preciso deixe de comparecer perante o tribunal, e que a sua perseguição ulterior se possa tornar não somente difícil, senão até impossível, dada a sua nacionalidade austríaca, e

“2.° – considerando que uma condenação judicial do Sr. Kasimir Japoll não poderia expiar a ofensa pela qual este senhor procurou aviltar caluniosamente o nome e a estirpe do Sr. Stanislaw von Zutawski e de sua esposa Jadwiga;

“em vista disso, o Sr. Stanislaw von Zutawski escolheu o caminho mais breve, que, segundo a sua convicção, era também o mais radical e, devido às circunstâncias, o mais oportuno, especialmente após ter recebido, por via indireta, a informação de que o Sr. Kasimir Japoll tencionava partir desta cidade no dia seguinte.

“Assim sendo, encaminhou:se a 2 de abril de 19..., entre as 7,30 e as 7,45 da tarde, ao American Bar do cassino daqui, acompanhado de sua esposa Jadwiga e dos senhores Michael Lodygowski e Ignaz von Mellin. Ali encontrou o Sr. Kasimir Japoll, que consumia bebidas alcoólicas, em companhia do Sr. Janusz Teofil Lenart e de duas moças desconhecidas, e esbofeteou-o diversas vezes.

“Imediatamente depois, o Sr. Michael Lodygowski esbofeteou o Sr. Kasimir Japoll, acrescentando que isso era a punição das graves ofensas infligidas à Srta. Krylow e a ele mesmo.

“A seguir, o Sr. Michael Lodygowski esbofeteou o Sr. Janusz Teofil Lenart, em desforra das inqualificáveis injúrias que este senhor assacara contra o casal Von Zutawski, depois do que,

“sem perda de um instante, também o Sr. Stanislaw Zutawski esbofeteou repetidas vezes o Sr. Janusz Teofil Lenart, por ter manchado caluniosamente a honra de sua esposa e da Srta. Krylow.

“Os senhores Kasimir Japoll e Janusz Teofil mantiveram-se completamente passivos durante todo esse incidente.

“Datado e assinado: Michael Lodygowski, Ign. von Mellin.”

 

O estado de espírito em que Hans Castorp se achava a essa altura dos acontecimentos não lhe permitia rir-se dessa metralha de bofetadas oficiais, como o teria feito em outros tempos. Estremeceu ao ler o relatório. O pundonor inatacável de uma das partes e a desonra vil, desprezível, da outra, que os documentos patenteavam aos olhos do leitor – tudo isso o emocionou intensamente pelo contraste pouco vivo e todavia impressionante. O mesmo ocorreu a todo mundo. Onde quer que se fosse, eram vistas pessoas que estudavam apaixonadamente e comentavam com os dentes a rilhar a querela de honra dos polacos. Uma réplica do Sr. Kasimir Japoll, difundida por meio de um folheto, esfriou algum tanto os espíritos. Dizia ele que, tempos atrás, em Lemberg, alguns almofadinhas presunçosos o haviam declarado incapaz de dar satisfação, e que Zutawski tivera perfeito conhecimento desse fato, de maneira que todas as suas medidas tomadas de inopino tinham sido pura comédia, visto ele saber de antemão que não teria necessidade de se bater em duelo. Por outro lado renunciara Zutawski a fazer queixa contra ele, Japoll, unicamente porque sua esposa Jadwiga, como ninguém ignorava, nem sequer o próprio Zutawski, o presenteara com uma verdadeira coleção de cornos, coisa que ele, Japoll, com a maior felicidade, poderia ter provado perante a justiça. Também com respeito à Srta. Krylow, uma citação em juízo teria sido pouco honrosa, dada a sua conduta habitual. De resto, existiam provas da incapacidade de dar satisfação somente no que se referia à pessoa do autor dessas linhas, o próprio Japoll, e não com respeito a seu interlocutor, Lenart; mas Zutawski servira-se de um pretexto para não correr perigo. Do papel que o Sr. Asarapetian desempenhara em toda essa história nem era bom falar. E quanto àquela cena no bar do cassino, convinha levar em conta que ele, Japoll, embora mordaz e propenso a pilhérias, era homem muitíssimo débil. Zutawski, por sua vez, chegara acompanhado dos seus amigos e da esposa, mulher de grande robustez, de modo que tinha a seu favor a superioridade física. Acrescia a isso que as duas senhoritas que se encontravam junto com ele, Japoll, e Lenart, eram criaturas muito alegres, sim, mas medrosas como galinhas. Para evitar um pugilato brutal e um escândalo público, ele mesmo rogara a Lenart, que fazia menção de reagir, que se mantivesse tranqüilo e tolerasse, por amor de Deus, o contato passageiro e inconvencional com os senhores Von Zutawski e Lodygowski, uma vez que esse contato não era doloroso e os vizinhos julgariam que se tratava de uma brincadeira de amigos.

Assim rezava o folheto de Japoll, que, naturalmente, poucas possibilidades tinha de salvar as aparências. Suas emendas não conseguiram anular senão superficialmente o belo contraste entre a honra e a covardia que as declarações da outra parte acabavam de estabelecer, tanto mais que ele, não dispondo dos meios de ampla divulgação do partido de Zutawski, se limitava a espalhar pelo público algumas cópias datilografadas da sua réplica. Aquelas atas que acabamos de transcrever eram, por sua vez, acessíveis a todo mundo, sendo remetidas até a pessoas completamente desinteressadas, como, por exemplo, Naphta e Settembrini, que também as tinham recebido. Hans Castorp viu-as nas suas mãos e notou com surpresa que até eles as liam com fisionomias contraídas, singularmente arrebatadas. A zombaria alegre que ele mesmo, devido à mentalidade que reinava no Berghof, era incapaz de forjar – esperara-a ao menos da parte do Sr. Settembrini. Mas aquela epidemia que Hans Castorp via grassar a seu redor contagiara também o espírito claro do maçom com uma força que lhe tirava a vontade de rir e o tornava facilmente acessível à fascinação provocante da história das bofetadas. Além disso, sentia-se ele, o lutador, deprimido em face do seu estado de saúde, que piorava lenta, porém inexoravelmente, apenas com melhoras passageiras e ilusórias. O humanista praguejava contra essa miséria, tinha vergonha e desdém de si próprio, e no entanto, já por essa época, não podia evitar de se acamar de vez em quando.

Naphta, o seu vizinho e adversário, tampouco ia melhor. Minando-lhe interiormente o organismo, ia em progresso a doença que havia sido a causa física – ou deve-se dizer o pretexto? – de ter a sua carreira na ordem chegado a um fim prematuro. As virtudes do ar rarefeito das alturas em que se vivia ali em cima não conseguiam deter o andamento do mal. Também ele tinha de ir para a cama com muita freqüência, e a sua voz soava mais rachada do que nunca, cada vez que falava. E, à medida que a aumentava, tornava-se ainda mais loquaz, mais penetrante e mais cáustico. Aquela oposição idealista à doença e à morte, cuja derrota diante da superioridade esmagadora da natureza infame tanto afligia o Sr. Settembrini, tinha de ser alheia ao pequeno Naphta, e a sua maneira de reagir contra a piora do seu estado de saúde não consistia, por conseguinte, em mágoa e pesar, senão numa animação sarcástica, numa agressividade sem limite, numa necessidade maníaca de duvidar, de negar, de criar confusão, que irritava gravissimamente a melancolia do italiano e incitava cada vez mais as divergências intelectuais. Era claro que Hans Castorp só podia falar das discussões a que assistia. Mas o jovem tinha quase certeza de não perder nenhuma delas, pois a sua presença, ao tratar-se de um tema pedagógico, era indispensável para dar grandeza aos colóquios. E conquanto não se pudesse poupar ao Sr. Settembrini o desgosto de ver que Hans Castorp se interessava pelos ditos maliciosos de Naphta, era forçoso admitir que estes ultrapassavam nos últimos tempos todas as medidas e amiúde os próprios limites de um raciocínio são.

Esse enfermo não tinha nem a força nem a boa vontade de se elevar acima da doença, senão que via o mundo sob a imagem e o signo dela. Para desespero do Sr. Settembrini, que gostaria de mandar para fora do quarto o discípulo atento ou de tapar-lhe os ouvidos, declarava Naphta que a matéria era uma substância por demais imprestável para que o espírito pudesse completar-se numa habitação feita dela. Esforçar-se por conseguir isso não passava de tolice. Em que dava tal esforço? Numa caricatura! O resultado prático da tão elogiada Revolução Francesa era o Estado capitalista burguês – deveras um belo produto que alguns esperavam melhorar universalizando essa abominação! A república universal traria a felicidade, pois sim. O progresso? Infelizmente podia-se comparar este com o famoso caso do enfermo que sempre estava mudando de posição porque nisso esperava encontrar algum alívio. Um desejo não confessado, mas muito difundido, secretamente, o de ver rebentar uma guerra, era a expressão dessa atitude. Ela não deixaria de vir, essa guerra, e isso era bom, se bem que acarretasse efeitos bem diferentes daqueles que aguardavam seus autores. Naphta menosprezava o Estado burguês, preocupado exclusivamente com a sua segurança. Veio a falar nisso num dia de outono, durante um passeio pela rua principal, quando começava a chover e todo mundo de repente, como a uma ordem de comando, abriu os guarda-chuvas. Aquilo se lhe afigurava como um símbolo da covardia e da efeminação vulgar que a civilização produzia. Um incidente como o naufrágio do navio Titanic tinha um sentido atávico e todavia edificante. Depois reclamavam todos, em altos brados, maior segurança dos meios de transporte. Em geral reinava a mais violenta indignação sempre que a “segurança” se via ameaçada. Isso era miserável, e essa moleza humanitária formava uma harmonia curiosa com a crueldade perversa e bestial daquele campo de batalha econômica que constituía o Estado burguês. Guerra, guerra! Ele, por si, era a favor, e a impaciência com que todos a almejavam parecia-lhe relativamente honrosa.

Mas, quando o Sr. Settembrini introduziu na conversa a palavra “justiça” e recomendou esse sublime princípio como meio preventivo contra catástrofes políticas, tanto externas como internas, evidenciou-se que o mesmo Naphta que acabava de julgar o espírito por demais elevado para que fosse possível e desejável a sua encarnação numa forma terrena punha agora em dúvida precisamente o espírito e se empenhava em denegri-lo. Justiça? Era ela uma idéia digna de adoração? Uma idéia divina?Uma idéia de primeira categoria? Deus e a natureza eram injustos, tinham favoritos, selecionavam segundo as suas simpatias, concediam perigosas distinções a um e preparavam a outro uma sorte fácil e banal. E o homem dotado de vontade? Para ele, a justiça era, de um lado, uma franqueza paralisante, a dúvida em si, e de outro, uma fanfarra que o chamava para atos inescrupulosos. Desde que o homem, para manter-se dentro da esfera da moral, tinha de corrigir esta “justiça” por aquela – onde ficavam a incondicionalidade e o radicalismo da idéia? Ademais, era-se “justo” para com um ou outro dos dois pontos de vista. O resto não passava de liberalismo, e com isso não se arranjava mais nada hoje em dia. Numa palavra, a justiça era um termo oco da retórica burguesa, e para chegar à ação era preciso saber de que justiça se tratava – daquela que desejava conceder a cada um o que lhe pertencia ou da outra que queria dar parte igual a todos.

Escolhemos a esmo, das discussões sem fim, um exemplo para demonstrar a maneira como Naphta trabalhava por perturbar a razão. No entanto, era ainda pior o modo como falava da ciência, na qual não acreditava. Não tinha fé na ciência – dizia – visto o homem ter plena liberdade de crer ou não crer nela. Essa era uma crença como qualquer outra, apenas mais tola e mais prejudicial. A própria palavra “ciência” era a expressão do mais estúpido realismo que não se envergonhava de aceitar e gastar como moeda sonante os reflexos mais que duvidosos que os objetos sofriam do intelecto humano, e de preparar com eles a mais lamentável e a mais insossa doutrina que já se impingiu à humanidade. Não constituía, porventura, o conceito de um mundo material existente por si só a mais ridícula de todas as autocontradições? Ora, a ciência natural moderna, como dogma, baseava-se exclusivamente no postulado metafísico, segundo o qual o tempo, o espaço e a causalidade – a saber, as formas de conhecimento dentro das quais se passam os fenômenos do mundo – eram condições reais, existentes independentemente do nosso conhecimento. Essa afirmação monista era o mais berrante desaforo que já foi pespegado ao espírito. Em linguagem monista, o tempo, o espaço e a causalidade chamavam-se evolução, e com isso estava-se à frente do dogma central da pseudo-religião livre-pensadora e ateística, por meio da qual se tencionava abolir o primeiro Livro de Moisés e opor a sabedoria esclarecedora a uma fábula estultificante, como se Haeckel tivesse estado presente no momento em que nascia a Terra. Empirismo? O éter universal era, acaso, exato? O átomo, essa graciosa brincadeira matemática em torno da “parcela menor e indivisível” – existia uma prova que o demonstrasse? A teoria do espaço e do tempo infinitos fundava-se certamente na experiência; ou talvez não? Com efeito, qualquer pessoa que soubesse pensar logicamente seria levada a experiências curiosas e a resultados divertidos com esse dogma do espaço e do tempo infinitos e reais; obteria precisamente o resultado: nada. Perceberia que o tal realismo era genuíno niilismo. Por quê? Pela simples razão de a relação entre qualquer grandeza e o infinito ser zero. No infinito não existia medida, e na eternidade não havia nem duração nem modificação. No espaço infinito, onde todas as distâncias seriam matematicamente iguais a zero, não era possível conceber nem sequer dois pontos situados um ao lado do outro, e ainda menos dois corpos, para não falar de um movimento. Ele, Naphta, fazia questão de constatar isso, para contrariar o atrevimento com que a ciência materialista apresentava os disparates astronômicos e o seu palavrório frívolo acerca do universo como se fossem conhecimentos absolutos. Coitada da humanidade, que, em face de uma exposição ostensiva de cifras vazias, deixou que lhe impingissem o sentimento da sua própria nulidade e admitiu que a privassem do sentido patético da sua importância! Talvez fosse ainda tolerável que a razão e o conhecimento humanos se mantivessem dentro da esfera terrena e nesse campo tratassem como reais as suas experiências na exploração do objetivo e do subjetivo. Mas quando ultrapassassem esses limites e estendessem a mão para o enigma eterno, dedicando-se à chamada cosmologia ou cosmogonia, levariam a brincadeira um pouco longe, e a sua presunção chegaria ao cúmulo do grotesco. Que absurdo blasfemo querer calcular a “distância” entre um astro e a Terra em trilhões de quilômetros ou também em anos-luz e imaginar que por meio dessas mentiras matemáticas se pudesse abrir ao espírito humano a vista para o infinito e o terreno, quando, em realidade, o infinito nada, absolutamente nada tinha que ver com grandezas, e a eternidade, nada com a duração e com os lapsos de tempo. Pelo contrário, o infinito e a eternidade, longe de serem conceitos da ciência natural, representavam justamente a abolição daquilo que chamamos natureza. A ingenuidade de uma criança que tomasse as estrelas por buracos no dossel celeste, através dos quais penetrasse a claridade eterna, lhe parecia mil vezes preferível a toda aquela lengalenga oca, disparatada, presunçosa, que a ciência monista produzia com respeito ao “universo”.

Settembrini perguntou se Naphta, por sua parte, partilhava dessa crença quanto às estrelas, ao que o jesuíta respondeu que se reservava o direito da humildade e da liberdade do ceticismo. Essas palavras davam mais um ensejo para formar uma idéia daquilo que ele entendia por “liberdade”, e deixavam entrever aonde conduziria esse conceito. Se ao menos o Sr. Settembrini não tivesse motivos ponderáveis para recear que Hans Castorp achasse essas coisas dignas de serem ouvidas!

A malícia de Naphta ficava à espreita de oportunidade para descobrir as fraquezas do progresso dominador da natureza e para demonstrar que os seus pioneiros e campeões sofriam recaídas muito humanas no irracional. Os aviadores, dizia ele, eram na maioria uns indivíduos suspeitos, de pouco valor, e sobretudo muitíssimo supersticiosos. Costumavam levar consigo a bordo dos aviões mascotes ou uma gralha, cuspiam três vezes em todas as direções e calçavam as luvas dos seus predecessores afortunados. Tal insensatez primitiva era, porventura, compatível com a concepção do mundo em que se alicerçava a sua profissão?... A contradição que Naphta acabava de revelar divertia-o, causava-lhe prazer, de maneira que insistia nessa tecla por muito tempo. Mas todos esses exemplos não são senão casos isolados do sem-número de ditos hostis proferidos por Naphta. Abandonemo-los para contar fatos infelizmente muito reais.

Certa tarde de fevereiro, os cavalheiros se reuniram para uma excursão a Monstein, localidade situada a uma hora e meia de trenó da sua morada habitual. O grupo era formado por Naphta, Settembrini, Hans Castorp, Ferge e Wehsal. Foram em dois trenós, cada qual tirado por um só cavalo. No primeiro embarcaram Hans Castorp e o humanista, no segundo Naphta, Ferge e Wehsal, que se instalou na boléia, ao lado do cocheiro. Todos estavam bem agasalhados. Às três horas partiram do domicílio dos externos. Os guizos soavam simpaticamente através da paisagem silenciosa sob a sua coberta de neve, enquanto os trenós seguiam ao longo da encosta direita, passando por Frauenkirch e Glaris, rumo ao sul. Nuvens carregadas de neve aproximavam-se rapidamente, vindas dessa mesma direção, de modo que pouco depois desapareceu todo o azul do céu, salvo uma estreita nesga atrás deles, por cima da cordilheira Rética. O frio era intenso. As montanhas estavam envoltas em bruma. A estrada que percorriam, essa plataforma angusta, sem balaustrada, construída entre a parede e o abismo, subia uma vertente íngreme, coberta de abetos. Os cavalos avançavam a passo. Freqüentemente vinham a seu encontro desportistas com trenós, deslizando pela encosta, e que desmontavam para dar-lhes passagem. Por detrás das curvas ressoavam em delicada advertência guizos estranhos. Trenós puxados por dois cavalos atrelados um atrás do outro passavam por eles, sendo então preciso esquivar-se com muita cautela. Perto da meta da viagem descortinava-se uma linda vista sobre um trecho rochoso da estrada de Zügen. Defronte ao pequeno hotel de Monstein, que se chamava Kurhaus, desembrulharam-se dos cobertores e caminharam alguns passos para poder contemplar o Stulsergrat. A gigantesca escarpa, de três mil metros de altura, estava escondida na bruma. Só se via em alguma parte um pico alto como o céu, superterreno, por assim dizer, recordando um longínquo Valhala, sagrado e inacessível. Hans Castorp estava cheio de admiração por esse espetáculo e exortou os outros a partilhar com ele desse sentimento. Foi ele quem, tomado de uma sensação de humildade, pronunciou a palavra “inacessível”, dando com isso ao Sr. Settembrini uma oportunidade para observar que aquele cume já havia sido escalado. Era, aliás, uma coisa que quase não existia mais, essa da inacessibilidade e dos lugares em que o homem ainda não houvesse posto o pé. Naphta retrucou que isso era um pequeno exagero e uma gabolice. E citou o monte Everest, que por enquanto opunha uma negativa glacial à arrogância dos homens e parecia querer obstinar-se nessa reserva. O humanista mostrou-se agastado. O grupo voltou ao Kurhaus, à frente do qual se achavam além dos seus próprios trenós mais alguns outros, desatrelados.

No primeiro andar havia quartos numerados, onde a gente podia hospedar-se. Era também ali que estava situada a sala de refeições, de aspecto rústico, bem aquecida. Os excursionistas encarregaram a hoteleira solícita de lhes trazer uma pequena refeição: café, mel, pão branco e bolo de peras, a especialidade do lugar. Mandaram servir vinho tinto aos cocheiros. As outras mesas estavam ocupadas por turistas suíços e holandeses.

Gostaríamos de afirmar que em torno da mesa dos nossos cinco amigos o café quente, muito digno de elogios, houvesse originado uma conversa mais elevada. Mas isso seria inexato, uma vez que essa conversa era em realidade um solilóquio de Naphta, que a monopolizou depois de umas poucas palavras com que os outros haviam contribuído para ela, um monólogo pronunciado de forma bastante estranha, censurável do ponto de vista das convenções, visto o ex-jesuíta se dirigir exclusivamente a Hans Castorp, doutrinando-o com muita amabilidade, ao passo que voltava as costas a seu outro vizinho, que era o Sr. Settembrini, e também não prestava a menor atenção aos dois outros senhores.

Seria difícil definir qual era o tema das suas improvisações, que Hans Castorp acompanhava sacudindo a cabeça em sinal de meia aprovação. Não havia, em realidade, um assunto único. A palestra vagava livremente pela esfera do espírito, roçando isto e aquilo, empenhada, essencialmente, em demonstrar, de forma desanimadora, a ambigüidade dos fenômenos espirituais da vida, bem como a natureza irisante e a debilidade combativa das grandes idéias derivadas deles. Esforçava-se por tornar evidente que o absoluto se apresentava neste mundo em roupas muitíssimo cambiantes.

A rigor se poderia dizer que a sua conferência se ocupava do problema da liberdade, que ele tratava com o propósito de criar confusão. Entre outras coisas, mencionamos o Romantismo e o fascinante sentido duplo, inerente a esse movimento europeu de princípios do século XIX, em face do qual fracassariam conceitos como “reação” ou “revolução”, a não ser que se reunissem num conceito superior. Naturalmente era ridículo querer associar o conceito do “revolucionário” apenas ao progresso e ao esclarecimento vitorioso. O Romantismo europeu tinha sido, antes de mais nada, um movimento libertador, de caráter anticlassicista e antiacadêmico, dirigido contra o gosto da França antiga, contra a velha escola da razão, cujos paladinos eram ridicularizados como cabeças de perucas empoadas.

E Naphta veio a falar das Guerras de Libertação, do entusiasmo fichteano, do levantamento delirante, poético, de um povo contra uma tirania insuportável, que, desgraçadamente (ah, ah!), era a encarnação da liberdade, quer dizer, das idéias da Revolução. Que coisa divertida! Cantando a altas vozes, o povo erguera o braço para esmagar a tirania revolucionária em prol da opressão reacionária dos príncipes; e isso tinha sido feito em nome da liberdade!

Aí o jovem ouvinte podia notar a diferença ou talvez a oposição existente entre a liberdade exterior e a interior. E ao mesmo tempo achava-se diante da escabrosa questão de saber que forma de servidão era mais ou (ah, ah!) menos compatível com a honra de uma nação.

Em última análise, a liberdade era um conceito do Romantismo antes do que da Época das Luzes, pois com aquele tinha em comum o entrelaçamento inextricável dos impulsos de expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico. A sede individualística de liberdade originara o culto histórico-romântico do nacional, culto esse que era belicoso e que o liberalismo humanitário tachava de sinistro, posto que ele mesmo nada fizesse senão pregar o individualismo, somente de maneira um pouco diversa. O individualismo era romântico-medieval na sua concepção da infinita, da cósmica importância do indivíduo; dela resultavam a doutrina da imortalidade da alma, a teoria geocêntrica e a astrologia. Por outro lado, era o individualismo um aspecto do humanismo de tendências liberalísticas, que inclinava para a anarquia e queria, em todo caso, proteger o querido indivíduo contra o destino de ser imolado à coletividade. Um e outro aspecto eram individualismo, e esse termo servia para muita coisa.

Mas devia-se admitir que o entusiasmo libertador tinha produzido os mais brilhantes adversários da liberdade, os mais engenhosos campeões do passado, no combate ao progresso impiamente destrutor. Naphta citou Arndt, que amaldiçoara o industrialismo e enaltecera a nobreza; mencionou também Görres, o autor da Mística cristã. A mística, acaso, nada tinha que ver com a liberdade? Não fora ela antiescolástica, antidogmática, anticlerical? Embora fosse forçoso considerar a hierarquia uma potência libertadora, desde que opusera um dique à monarquia absoluta... A mística da última fase da Idade Média pusera à prova o seu caráter liberal como precursora da Reforma. Sim, da Reforma (ah, ah!), que, por sua vez, havia sido um amálgama indissolúvel de liberdade e de reação medieval...

E a obra de Lutero? Ah, sim, esta obra tinha o mérito de patentear com a mais crua nitidez a natureza dúbia da própria ação, da ação em geral. Sabia o ouvinte de Naphta o que era uma ação? Uma ação fora, por exemplo, o assassínio do Conselheiro de Estado Kotzebue pelo estudante Sand. Que fora aquilo que, para empregar a linguagem da criminologia, pusera a arma na mão do jovem Sand? O amor à liberdade, naturalmente! Mas, diante de uma observação mais detida, manifestava-se que, em realidade, não tinha sido esse amor, senão o fanatismo moral e o ódio à estrangeirice frívola. Por outro lado estivera Kotzebue a serviço dos russos, isto é, a serviço da Santa Aliança, de maneira que Sand talvez, apesar de tudo, o tivesse apunhalado em prol da liberdade... O que, no entanto, também parecia improvável, em face da circunstância de haver jesuítas entre os seus amigos mais íntimos. Em suma, fosse o que fosse a ação, em todo caso era um meio pouco adequado para expressar-se com clareza e contribuía pouco para resolver os problemas espirituais.

– Posso me permitir a pergunta: quando o senhor tenciona terminar com essas indecências?

Quem perguntara assim era o Sr. Settembrini, e isso num tom muito veemente. Mantivera-se quieto na sua cadeira, tamborilando na mesa e torcendo os bigodes. Mas aquilo lhe enchia as medidas. Sua paciência estava esgotada. Empertigava-se, numa posição mais do que ereta, com o rosto empalidecido. Era como se, apesar de sentado, se colocasse nas pontas dos pés, de modo que apenas as coxas tocavam o assento. Com os olhos brilhantes encarava o inimigo que acabava de voltar-se para ele com fingida surpresa.

– Como houve por bem o senhor expressar-se? – foi a pergunta com que Naphta protestou.

– Eu houve por bem... – disse o italiano, engolindo em seco – eu hei por bem declarar que estou decidido a impedir que o senhor continue a importunar a juventude indefesa com suas palavras equívocas!

– Convido o senhor a ponderar o que diz.

– Senhor, dispenso tal convite. Estou acostumado a ponderar o que digo, e a minha expressão corresponde exatamente às circunstâncias, quando afirmo que o seu jeito de perturbar o espírito da juventude já de per si vacilante, de seduzi-la e de debilitar-lhe a moral, é uma infâmia e que palavras não são suficientes para castigá-lo devidamente...

Ao pronunciar a palavra “infâmia”, Settembrini golpeou a mesa com a palma da mão. A seguir empurrou a cadeira para trás e levantou-se, dando dessa forma aos outros o sinal para imitá-lo. As pessoas que se achavam nas outras mesas observavam a cena com perplexidade; eram os holandeses, visto os suíços já terem partido.

Todos os componentes do nosso grupo encontravam-se, pois, de pé, em atitude tensa, Hans Castorp e os dois adversários, e em frente deles Ferge e Wehsal. Todos os cinco estavam pálidos, com os olhos arregalados e as bocas crispadas. Não poderiam os três desinteressados ter feito uma tentativa para intervir num sentido conciliador, afrouxando a tensão por meio de uma piada e arranjando tudo mediante um apelo humano? Não fizeram tal tentativa. O seu estado de espírito opunha-se a isso. Quedavam-se de pé, trêmulos, e, sem querer, suas mãos se fechavam. O próprio A. K. Ferge, que declaradamente nada entendia de quaisquer coisas sublimes e de antemão renunciava a imaginar o alcance da querela – também ele estava convencido de que desta vez não havia lugar para transigências e que as pessoas que, elas mesmas fascinadas, presenciavam a contenda, nada podiam fazer senão deixar as coisas tomarem seu curso normal. Seu bigode hirsuto e bonachão subia e descia em movimentos rápidos.

Reinava completo silêncio, de forma que se podia ouvir como Naphta rangia os dentes. Isso representava para Hans Castorp uma experiência semelhante àquela dos cabelos eriçados de Wiedemann. Pensara ele que “ranger os dentes” fosse somente uma locução e não um fato que se pudesse produzir. Mas, nesse momento, o rangido ressoava realmente através do silêncio, um ruído bastante desagradável, selvagem e fantástico, que, no entanto, dava a prova de um formidável domínio de si próprio; pois, longe de gritar, o jesuíta disse em voz baixa, apenas com uma quase risada ofegante:

– Infâmia? Castigar? Será que os burros virtuosos se metem a dar coices? Levamos a polícia pedagógica da civilização a desembainhar a espada? Eis o que chamo um êxito, facilmente obtido, logo de início, como acrescento com desdém, visto que uma ironia leve foi suficiente para mobilizar a virtude vigilante! Quanto ao resto, senhor, virá a seu tempo. Inclusive o tal castigo, sim, senhor! Espero que os seus princípios sociais não o impeçam de saber o que me deve. Caso contrário, ver-me-ei forçado a pôr esses princípios à prova por meios que...

Um gesto terminante de Settembrini fez com que Naphta continuasse:

– Ah, já vejo que isso não será necessário. Eu estou no seu caminho, o senhor está no meu. Muito bem, liquidemos essa pequena diferença num lugar adequado. De momento só quero dizer uma coisa: o seu temor devoto pela ideologia escolástica da revolução jacobina vê um crime pedagógico na minha maneira de induzir a juventude a duvidar, de derrubar as categorias e de privar as idéias da dignidade acadêmica da virtude. Esse temor é por demais compreensível, pois a sua humanidade saiu de moda – tenha certeza disso – saiu de moda, acabou-se! Hoje em dia já não passa de um rabicho, uma sensaboria classicista, um ennui espiritual que faz bocejar, e que a nova revolução, a nossa, senhor, está a ponto de abolir. Quando, na nossa função de educadores, semeamos a dúvida, uma dúvida mais profunda do que jamais imaginou o seu modesto espírito esclarecido, sabemos perfeitamente o que estamos fazendo. Unicamente do ceticismo radical, do caos moral nasce o absoluto, o terror sagrado de que carece o nosso tempo. Isso lhe digo para justificar-me e para instruí-lo. O resto pertence a um outro capítulo. O senhor terá notícias minhas.

– Estou ansioso por recebê-las, senhor! – gritou Settembrini por trás de Naphta, que, abandonando a mesa, se encaminhava ao cabide para apanhar o seu casaco de pele. A seguir, o maçom deixou-se cair pesadamente na cadeira e apertou o coração com ambas as mãos.

– Distruttore! Cane arrabiato! Bisogna ammazzarlo! – sibilou arfando.

Os outros continuavam de pé em torno da mesa. Os bigodes de Ferge prosseguiam subindo e descendo. Wehsal deixava pender obliquamente a mandíbula inferior. Hans Castorp arremedava o jeito do avô quando escorava o queixo no colarinho, porque sentia a nuca tremer. Todos estavam pensando no inesperado desfecho da sua excursão. Todos, sem exceção do Sr. Settembrini, pensavam também na circunstância feliz de terem alugado dois trenós em vez de um em comum, o que pelo menos facilitava o regresso. Mas que haveria depois?

– Ele provocou o senhor para um duelo – disse Hans Castorp com o coração angustiado.

– Com efeito – respondeu Settembrini, erguendo o olhar para o jovem que se achava de pé à sua frente. Mas logo o desviou dele e descansou a cabeça na mão.

– O senhor aceita? – quis Wehsal saber.

– Que pergunta! – retrucou Settembrini, lançando também a ele um rápido olhar. – Senhores – continuou então, levantando-se completamente controlado –, lastimo que o nosso passeio tenha chegado a este fim, mas, na vida que vivemos, todo homem deve andar preparado para essa espécie de incidentes. Teoricamente desaprovo o duelo. Por índole sou obediente à lei... Na prática, porém, o caso é diferente, e existem situações onde... existiam contrastes que... Numa palavra, estou à disposição desse cavalheiro. Ainda bem que na minha juventude pratiquei um pouco de esgrima. Algumas horas de treino hão de me devolver a agilidade do punho. Vamos embora! A respeito de tudo o mais a gente se porá de acordo. Acho que aquele senhor já terá dado ordem para atrelar.

Durante o regresso e mais tarde, Hans Castorp teve momentos em que se sentia tomado de vertigens diante da monstruosidade daquilo que tinham à sua frente; sobretudo quando se manifestou que Naphta não queria saber de floretes ou de sabres, senão insistia num duelo a pistola, e que realmente lhe cabia escolher as armas, já que, segundo os conceitos do código de honra, era ele o ofendido. Houve, pois, momentos em que o jovem conseguiu até certo ponto libertar-se daquele espírito que lavrava no ambiente, envolvendo e perturbando a todos. Dizia-se então que aquilo era rematada loucura e devia ser evitado.

– Se, pelo menos, houvesse uma ofensa real! – exclamou numa conversa com os senhores Settembrini e Ferge, e com Wehsal, a quem Naphta, já durante a viagem de volta, escolhera para padrinho e que servia de intermediário entre as partes. – Um insulto de caráter meramente convencional! Se o nome honrado de um fosse enxovalhado pelo outro, se se tratasse de uma mulher ou de qualquer outro ponto vital, de uma situação em que não se visse nenhuma outra possibilidade de compensação! Bem, num caso desses existe o duelo como último recurso. Depois, quando se lavou a honra, quando tudo terminou sem grandes danos e se verifica que “os adversários se separaram reconciliados”, pode-se até opinar que se trata de uma boa instituição, de uma coisa salutar e prática em certos casos complicados. Mas que fez Naphta, afinal? Absolutamente não quero defendê-lo. Pergunto apenas: que fez ele para ofender o senhor? Ele derrubou as categorias. Privou, segundo a sua própria expressão, as idéias da sua dignidade acadêmica. O senhor sentiu-se ofendido por isso. Com razão, vamos admiti-lo...

– Admiti-lo? – repetiu o Sr. Settembrini, encarando-o.

– Com razão, com razão! Ele ofendeu o senhor com isso. Mas não o insultou. Aí está a diferença, permita-me que o diga! Trata-se de coisas abstratas, espirituais. Com coisas espirituais pode-se ofender, mas não insultar uma pessoa. Esse é um axioma que todos os tribunais de honra aceitariam, posso lhe garantir. E pelo mesmo motivo não há tampouco um insulto naquela resposta do senhor, em que falou de “infâmia” e de “castigar devidamente”, já que também esses termos estavam sendo empregados em sentido espiritual. Tudo se mantinha na esfera espiritual e nada tinha que ver com a esfera pessoal. O espiritual nunca pode ser pessoal; este é o complemento e a interpretação do axioma, e por isso...

– O senhor está enganado, caro amigo – replicou o Sr. Settembrini com os olhos fechados. – Está enganado em primeiro lugar ao afirmar que o espiritual não pode assumir caráter pessoal. O senhor não deveria pensar assim – continuou com um sorriso singularmente frouxo e doloroso. – Antes de tudo, porém, equivoca-se na apreciação que faz do espírito em geral, que evidentemente considera demasiado fraco para provocar conflitos e paixões da mesma intensidade daqueles que acarreta a vida real e que não toleram outra solução que não a luta armada. All’ incontro! O elemento abstrato, purificado, ideal, é ao mesmo tempo o absoluto, é o que há de realmente rigoroso e encerra em si possibilidades muito mais profundas e mais radicais de ódio, de oposição irrestrita e irreconciliável, do que a vida social. Admira-se o senhor ao ver que o abstrato conduz, por caminhos mais diretos e mais inelutáveis do que esta, à situação em que se trata de “um de nós dois, tu ou eu”, a situação propriamente radical, a do duelo, da luta corporal? O duelo, meu amigo, não é uma “instituição” como qualquer outra. É um último recurso, é a volta ao estado primevo da natureza, apenas levemente suavizada por certo código cavalheiresco que não deixa de ser superficial. O característico dessa situação é o seu cunho totalmente primitivo, a luta corporal, e cabe a todo homem, por mais que se distancie da natureza, manter-se preparado para essa emergência. Ela pode ocorrer a qualquer instante. Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal não é digno dele. Em que pese a nossa espiritualização, cumpre sermos homens.

Dessa forma, Hans Castorp recebera uma lição. Que se podia opor a isso? O jovem permaneceu calado, meditando com o coração opresso. As palavras do Sr. Settembrini fingiam ser calmas e lógicas, e todavia soavam estranhas, pouco naturais na sua boca. Esses pensamentos não eram seus, como tampouco fora ele quem tivera a idéia do duelo, senão a aceitara daquele terrorista que era o pequeno Naphta. Eram, sim, a expressão da mentalidade reinante em toda parte, e que se apossara também de Settembrini, reduzindo a sua bela inteligência ao papel de seu servo e instrumento. Mas como? O espírito, por ser rigoroso, deveria conduzir, inexoravelmente, à bestialidade, à solução encontrada por meio da luta corporal? Hans Castorp.revoltava-se contra essa concepção, ou melhor, tentava revoltar-se; e para maior espanto seu, verificava que também ele era incapaz de fazê-lo. Também no seu próprio íntimo, ela se mostrava forte, essa mentalidade, e ele tampouco era talhado para distanciar-se dela. Daquela zona das suas recordações onde Wiedemann e Sonnenschein, desnorteados, se revolviam numa contenda bestial, vinha-lhe uma inspiração tremenda, definitiva, e com horror percebia Hans Castorp que ao fim de todas as coisas não restavam outros meios a não ser os do corpo, as unhas e os dentes. Sim, sim, parecia necessário bater-se, porquanto assim se podia garantir aquela suavização do estado primevo por meio do código cavalheiresco... E o jovem ofereceu ao Sr. Settembrini seus serviços como padrinho.

Sua oferta foi rejeitada. Não, isso não convinha; não podia ser, foi a resposta que recebeu, primeiramente do próprio Settembrini com um sorriso macio e doloroso, e, a seguir, após um momento de reflexão, também de Ferge e de Wehsal, sem que ninguém justificasse essa opinião. Achavam impossível Hans Castorp assistir ao duelo nessa função. Talvez pudesse ele comparecer ao campo de luta como árbitro, pois a presença de uma pessoa com esse encargo estava prevista nas regras cavalheirescas, destinadas a suavizar a bestialidade. O próprio Naphta, pela boca de Wehsal, seu representante em assuntos de honra, manifestou-se nesse sentido, e Hans Castorp conformou-se com isso. Padrinho ou árbitro, fosse o que fosse, em todo caso teria uma oportunidade para exercer influência sobre as modalidades do combate, coisa que se manifestou sumamente necessária.

As propostas de Naphta ultrapassavam todos os limites. Exigiu ele cinco passos de distância e três trocas de balas, no caso de se tornar preciso. Na mesma noite do incidente mandou transmitir essa loucura por Wehsal, que se identificava por completo com a tarefa de ser porta-voz e representante dos caprichos selvagens do jesuíta e se aferrava a tais condições ora porque recebera ordem de agir assim, ora porque correspondiam ao seu próprio gosto. Settembrini, naturalmente, nada tinha que objetar, mas Ferge, como seu padrinho, e Hans Castorp, o árbitro, mostraram-se indignados. Este chegou mesmo a ralhar com o desgraçado Wehsal. Não tinha vergonha – perguntou – de trazer à baila essas sugestões desumanas e antipáticas, embora se tratasse de um duelo puramente convencional, sem base em nenhum insulto real? A exigência das pistolas já era muito forte, mas esses pormenores sanguinários eram o cúmulo. Aí não se podia mais falar em espírito cavalheiresco. Por que não atirariam logo à queima-roupa? Para Wehsal era fácil manifestar tamanha sede de sangue, porque não seria contra ele que se daria um tiro de cinco metros de distância. E assim por diante. Wehsal encolheu os ombros, indicando pelo seu silêncio que se achavam numa situação radical, e desarmando dessa forma os seus oponentes, inclinados a esquecer esse fato. Mesmo assim conseguiram estes, no decorrer das negociações do dia seguinte, reduzir as três trocas de tiros a uma única e chegar a um acordo na questão da distância: os combatentes ficariam separados um do outro por quinze passos e teriam o direito de avançar cinco passos antes de atirar. Mas também essa concessão não foi obtida senão pela promessa de que não se fariam tentativas de reconciliação. Descobriram então que nenhum deles possuía pistolas.

O Sr. Albin, porém, tinha. Além do pequeno e lustroso revólver, com o qual gostava de assustar as senhoras, dispunha ainda de um par de pistolas de oficial, fabricadas na Bélgica e guardadas num estojo comum. Eram Brownings automáticas com coronhas de madeira marrom, que continham os depósitos das balas, com um mecanismo de aço azulado e com canos polidos, sobre cujas bocas se achavam as miras. Em outra ocasião, Hans Castorp vira essas armas nas mãos do fanfarrão, e contra as suas próprias convicções, por puro senso de imparcialidade, ofereceu-se para pedi-las emprestado. E assim fez, não escondendo a finalidade em si, mas envolvendo-a naquele segredo peculiar aos casos de honra e invocando, com êxito fácil, a discrição cavalheiresca do rapaz. O Sr. Albin mesmo lhe ensinou como carregar as armas e disparou-as diversas vezes ao ar livre, a título de experiência.

Tudo isso requereu tempo, e assim sucedeu que até a data do encontro transcorreram dois dias e três noites. O lugar do duelo tinha sido proposto por Hans Castorp: era aquele sítio pitoresco, que no verão se cobria de flores azuis, e onde o jovem costumava retirar-se para “reinar”. Era ali que; na terceira manhã após a desinteligência, se liquidaria a querela, logo que houvesse bastante luz. Somente na véspera, a altas horas da noite, Hans Castorp, que andava muito nervoso, teve a idéia de que era necessário levar um médico ao campo de luta.

Foi imediatamente deliberar com Ferge sobre esse problema cuja solução se apresentou bem difícil. Verdade era que Radamanto pertencera a um grêmio de estudantes que mantinha o código de duelo, mas parecia impossível pedir ao chefe do estabelecimento que desse o seu apoio a semelhante ato ilegal, tanto mais que se tratava de doentes. De modo geral, havia pouca esperança de encontrar em Davos um médico que se dispusesse a assistir a um duelo a pistola entre dois homens gravemente enfermos. No que se referia a Krokowski, não se sabia ao certo se esse espírito refinado tinha muita prática na medicação de ferimentos.

Wehsal, igualmente consultado, declarou que Naphta já se opusera à presença de um médico, alegando que não ia ao lugar do duelo para ser untado e pensado, mas para bater-se e fazê-lo seriamente. Pouco se lhe dava o que acontecesse depois. Isso ficaria para mais tarde. Embora essas palavras parecessem sinistras, Hans Castorp esforçou-se por interpretá-las no sentido de que Naphta era intimamente de opinião que não haveria necessidade de um médico. Não respondera também Settembrini, interpelado por Ferge, que achava melhor abandonar a idéia, uma vez que não lhe interessava? Não era totalmente insensato esperar que os adversários, no fundo do coração, tivessem ambos a intenção de não causar derramamento de sangue. Haviam dormido duas noites desde aquela rixa, e tinham à sua frente uma terceira. O tempo aclara o ambiente e arrefece os ânimos. Não há exaltação que resista à corrente das horas, sem sofrer alterações. Amanhã de madrugada, com a arma na mão, nenhum dos dois brigões seria o mesmo homem que fora na tarde do incidente. Agiriam automaticamente, sob o ditame da honra, e não por viva e espontânea vontade, como teriam feito se tivessem agido na própria ocasião. Deveria ser possível evitar que renegassem o seu espírito atual, a favor daquilo que pertencia ao passado.

Hans Castorp não se enganava nessas suas reflexões; quer dizer que não se enganava num sentido que jamais poderia ter imaginado. Tinha até perfeitamente razão no que tocava ao Sr. Settembrini. Porém, se houvesse previsto em que sentido Leo Naphta no decorrer do tempo ou no próprio momento decisivo modificaria os seus desígnios, nem sequer a situação íntima em que tudo isso tinha a sua origem teria sido capaz de induzi-lo a admitir o que estava se preparando.

Às sete horas da manhã, o sol estava longe de surgir atrás da sua montanha, mas o dia raiava penosamente por entre as brumas, quando Hans Castorp, após uma noite inquieta, saía do Sanatório Berghof, a fim de se encaminhar ao lugar do encontro. As criadas que limpavam o vestíbulo olharam-no com surpresa. No entanto achou aberto o portão principal. Ferge e Wehsal, juntos ou separadamente, já o tinham transposto, um para guiar Settembrini e o outro para acompanhar Naphta ao campo de combate. Hans Castorp ia sozinho, visto a sua função de árbitro não lhe permitir associar-se a nenhuma das partes.

Ia maquinalmente, sob a coação da honra, forçado pelas circunstâncias. Era natural e necessário que ele assistisse ao duelo. Seria impossível manter-se afastado a aguardar o resultado na cama, em primeiro lugar porque... Mas o jovem, ao invés de desenvolver o primeiro motivo, logo acrescentou o segundo: não se devia deixar que as coisas chegassem a seu termo. Por enquanto não acontecera nada de grave, graças a Deus, e não era inevitável, era até mesmo inverossímil que algo de grave acontecesse. Tiveram de se levantar à luz artificial e de sair, sem terem tomado café, para reunir-se ao ar livre, no frio cortante da madrugada, já que assim havia sido combinado. Mas Hans Castorp pensava que depois, sob o influxo da sua própria presença, tudo tomaria rumos mais favoráveis e menos tristes, não se podia antever de que modo, e que era melhor não querer adivinhar, porquanto a experiência ensinava que mesmo os mais simples dos acontecimentos sempre transcorriam de forma diferente à antecipada pela imaginação.

Ainda assim, era a manhã mais desagradável de todas de que se recordava. Hans Castorp sentia-se lasso e tresnoitado; seus dentes tendiam a bater nervosamente. Não precisava inquirir seu íntimo para desconfiar dos pensamentos com que acabava de tranqüilizar-se. Os tempos que corriam eram tão invulgares... A senhora de Minsk, arruinada pela cólera, o colegial enfurecido, Wiedemann e Sonnenschein, a história das bofetadas polacas – tudo isso se revolvia confusamente no seu cérebro. Não podia imaginar que à sua frente, na sua presença, dois homens fossem trocar tiros e derramar o sangue um do outro. Mas quando se lembrava do que, ante os seus olhos, ocorrera entre Wiedemann e Sonnenschein, desconfiava de si próprio e do seu mundo e arrepiava-se sob o casaco forrado de peles, não obstante a sensação do extraordinário e do patético do momento, que o exaltava e animava, da mesma forma que os elementos vivificadores do ar da manhã.

Tomado de sentimentos contraditórios, que variavam a cada instante, o jovem saía da “aldeia”, através do lusco-fusco que lentamente se aclarava. Partindo do fim da pista de trenó, galgava a encosta, subindo por uma vereda muito estreita. Alcançou o bosque oculto por espessa camada de neve. Atravessou as pontes de madeira, por baixo das quais se estendia a pista, e avançou, por entre as árvores, num caminho aberto antes pelos pés dos transeuntes do que pelas pás. Como caminhasse velozmente, passou depois de pouco tempo por Settembrini e Ferge. Este levava a caixa de pistolas sob a ampla capa. Hans Castorp não vacilou em unir-se a eles. Mal chegara a seu lado, deparou com Naphta e Wehsal, que se achavam a pouca distância na frente.

– Que manhã fria! Menos dezoito graus – disse na melhor das intenções, mas, assustando-se ele mesmo com a frivolidade das suas palavras, acrescentou: – Senhores, estou convencido...

Os outros permaneceram silenciosos. Os bigodes joviais de Ferge subiam e desciam. Alguns segundos após Settembrini estacou e, tomando a mão de Hans Castorp entre as suas, disse:

– Meu amigo, eu não matarei. Não farei isso. Vou me expor à bala dele. É tudo o que a honra pode exigir de mim. Mas eu não matarei, fique sossegado!

Soltou a mão do jovem e prosseguiu o caminho. Hans Castorp estava profundamente emocionado, mas, depois de alguns passos, objetou:

– Acho maravilhoso da sua parte, Sr. Settembrini, mas... Se ele, da sua parte...

O Sr. Settembrini limitou-se a menear a cabeça. Hans Castorp, ponderando que, quando um não atirava, o outro de modo algum poderia atrever-se a fazê-lo, chegou à conclusão de que os auspícios eram felizes e suas esperanças começavam a confirmar-se. Sentiu-se bastante aliviado.

Transpuseram a passadeira que cruzava a ravina, onde no verão caía a pitoresca cachoeira, congelada e muda a essa época do ano. Naphta e Wehsal iam de cá para lá, pela neve, diante do banco escondido sob espessa, camada branca. Era o mesmo banco em que Hans Castorp, certa vez, se vira acossado por recordações singularmente vivas, enquanto esperava o fim de uma hemorragia do nariz. Naphta fumava um cigarro, e Hans Castorp perguntou a si mesmo se não sentia vontade de imitá-lo, mas verificou que absolutamente não estava disposto a fazê-lo e deduziu disso que a atitude do outro tinha um fundo de afetação. Com a sensação de agrado que sempre o invadia ali, contemplou a intimidade fria desse sítio que lhe pertencia e não era menos formoso sob aquele aspecto glacial do que na época em que aparecia inundado de flores azuis. O tronco e a ramagem do pinheiro, que formava uma linha diagonal através do quadro, dobravam-se sob a carga de neve.

– Bom dia! – exclamou o jovem com voz alegre, inspirado pelo desejo de introduzir no ambiente, desde o começo, um tom natural, destinado a dissipar as nuvens. Mas teve pouca sorte com essa intenção, pois ninguém respondeu. As saudações trocadas consistiam em reverências mudas, tão cerimoniosas que se tornavam quase imperceptíveis. Mesmo assim, Hans Castorp continuou decidido a lançar mão, sem demora, da emoção inicial, do aceleramento cordial da sua respiração, do calor originado pela caminhada rápida através da manhã de inverno, e a aproveitá-los em prol da finalidade boa. Por isso começou dizendo:

– Senhores, estou convencido...

– O senhor tratará das suas convicções em outra oportunidade – atalhou-lhe Naphta friamente a palavra. – As armas, por favor – acrescentou com a mesma arrogância. E Hans Castorp, como se tivesse levado um tapa na boca, teve de ver Ferge tirar o estojo fatal de sob a capa. Wehsal, que se aproximara dele, recebeu das suas mãos uma das pistolas, a fim de passá-la a Naphta. A seguir, Ferge entregou a outra a Settembrini. Feito isso, pediu em voz baixa que desembaraçassem o lugar e pôs-se a medir a passos o terreno e a marcar a distância. Riscou na neve os limites externos com o tacão e assinalou as barreiras internas com duas bengalas, a sua e a de Settembrini.

Que fazia ali o sofredor bonachão? Hans Castorp mal podia dar crédito a seus olhos. Ferge tinha as pernas compridas e dava largas passadas, de maneira que os quinze passos resultaram numa extensão considerável. Mas havia ainda as malditas barreiras, que realmente não distavam muito uma da outra. Sem dúvida, Ferge estava bem intencionado. E todavia – que perturbação forçava-o a dedicar-se a esses preparativos monstruosos?

Naphta atirara na neve a peliça, de modo que se via o forro de pele de marta do Canadá. Com a pistola na mão, pôs o pé numa das marcações externas, logo que esta foi traçada, enquanto Ferge ainda tratava das demais. Quando terminou, também Settembrini, com a jaqueta surrada, amplamente aberta, ocupou a sua posição. Hans Castorp despertou da sua letargia e apressadamente tornou a avançar.

– Senhores – disse em voz opressa –, não se precipitem! Apesar de tudo é do meu dever...

– Cale-se! – gritou Naphta em tom imperioso. – Exijo o sinal.

Mas ninguém dava o sinal. Haviam esquecido de se pôr de acordo sobre esse ponto. Era lógico que alguém ordenasse: “Fogo!”, mas não tinham pensado, ou pelo menos não tinham declarado que caberia ao árbitro pronunciar o comando terrível. Hans Castorp permaneceu silencioso, e ninguém fez menção de substituí-lo.

– Vamos começar! – declarou Naphta. – Avance e atire, senhor! – gritou ao adversário, e começou a avançar ele mesmo, com o braço estendido, apontando a pistola para o peito de Settembrini. Foi um espetáculo fantástico. Settembrini fez o mesmo. Ao terceiro passo – o outro, sem disparar, já alcançara a barreira – levantou a pistola muito alto e apertou o gatilho.

A detonação provocou um eco múltiplo. As montanhas repercutiram sucessivamente o som. O vale encheu-se de vibrações com o choque, e Hans Castorp pensou que aquilo devia alarmar os habitantes.

– O senhor atirou para o ar – disse Naphta, controlando-se, enquanto baixava a arma.

Settembrini replicou:

– Eu atiro como quero.

– Atire o senhor novamente.

– Nem penso nisso. Agora é a sua vez. – Com a cabeça erguida, o Sr. Settembrini olhava o céu. Colocara-se quase de lado, não expondo o peito em cheio ao outro, o que era comovente de se ver. Evidentemente alguém lhe aconselhara não oferecer ao adversário toda a largura do corpo, e ele se inspirava por essa advertência.

– Covarde! – bradou Naphta, e com esse grito humano admitiu que era preciso maior coragem para atirar do que para servir de alvo. Levantou então a pistola de um modo que nada mais tinha em comum com um combate, e descarregou-a na própria cabeça.

Que cena trágica, inesquecível! Enquanto os cumes jogavam bolas com o ruído seco da sua façanha medonha, Naphta cambaleou ou precipitou-se alguns passos para trás, arremessando as pernas para o alto. Deu bruscamente meia-volta à direita e caiu com o rosto na neve.

Todos permaneceram imóveis durante um momento. Settembrini, depois de arrojar a pistola para longe de si, foi o primeiro a aproximar-se de Naphta.

– Infelice! – exclamou. – Che cosa fai, per l’amor di Dio?

Hans Castorp ajudou-o a virar o corpo. Via-se o buraco vermelho, enegrecido, ao lado da têmpora. Cobriram-lhe o rosto com o lenço de seda cuja ponta sobressaía do bolsinho do casaco de Naphta.

 

         O trovão

Sete anos passou Hans Castorp com a gente ali de cima. Não é um número redondo ao gosto dos partidários do sistema decimal, é todavia um número bom, prático à sua maneira; um lapso de tempo com um cunho mítico e pitoresco, não há negá-lo, e mais satisfatório para a alma do que, por exemplo, uma árida meia dúzia. Comera ele em cada uma das sete mesas da sala de refeições, aproximadamente um ano em cada lugar. Por último achava-se à mesa dos “russos ordinários”, junto com dois armênios, dois fineses, um bucarense e um curdo. Achava-se ali, arvorando uma barbicha que deixara crescer nesse meio tempo, um cavanhaquezinho louro como o trigo, de forma indefinível, cuja existência devemos considerar como a expressão de certa indiferença filosófica quanto à sua apresentação. Temos até de ir mais longe, relacionando a idéia de uma tendência particular para descuidar-se de si próprio, com uma tendência análoga que o mundo exterior manifestava no que se referia a ele. As autoridades haviam cessado de inventar novas diversões para a sua pessoa. Verdade é que o conselheiro continuava a perguntar-lhe todas as manhãs se havia dormido bem. Mas, exceção feita dessa pergunta retórica, de caráter coletivo, só raras vezes lhe dirigia a palavra, e Adriática von Mylendonk – que na época de que tratamos andava com um terçol totalmente maduro – já não falava com ele nem sequer de vez em quando. Deixavam-no em paz, pouco mais ou menos como se faz com um aluno que goza do estado singularmente feliz de já não ser examinado nem ter necessidade de trabalhar, porque a “bomba” é um fato consumado e ninguém mais se preocupa com ele; um tipo orgiástico de liberdade – digamos isso de passagem, perguntando-nos se a liberdade pode jamais ter outra natureza que não precisamente esta. Fosse como fosse, Hans Castorp constituía um caso pelo qual as autoridades já não precisariam velar, visto ser certo que no seu peito nunca mais evoluiriam decisões indisciplinadas, subversivas. Era um paciente garantido, definitivo, que desde muito tempo cessara de saber para onde mais poderia ir e se tornara completamente incapaz de sequer ventilar a idéia do regresso à planície... Não se demonstrava um certo descuido com respeito à sua pessoa no simples fato de o terem transferido para a mesa dos “russos ordinários”? Com isso nada, absolutamente nada queremos dizer contra a chamada mesa dos “russos ordinários”. Não havia entre as sete mesas vantagens ou desvantagens manifestas. Era uma democracia de mesas de honra, para empregar uma metáfora audaciosa. A mesma comida superabundante era servida nessa mesa como em todas as demais. O próprio Radamanto jantava ali às vezes, conforme o turno, as manzorras gigantescas diante do seu prato, e os povos que em torno dela tomavam as refeições eram honrados membros da humanidade, se bem que não entendessem latim e não comessem com gestos excessivamente elegantes.

O tempo – mas não aquele que marcam os relógios de estação, cujo ponteiro grande dá saltos bruscos, de cinco em cinco minutos, senão o indicado por relógios pequeninos, cujo movimento de agulhas permanece imperceptível, ou o tempo que a relva leva para crescer, sem que nenhum olho o perceba, apesar de ela fazê-lo constantemente, o que um belo dia se torna um fato inegável; o tempo, uma linha composta de um sem-número de pontos sem extensão – o malogrado Naphta perguntaria provavelmente como coisas desprovidas de extensão conseguem produzir uma linha –, o tempo, à sua maneira silenciosa, imperceptível, secreta e contudo ativa, havia continuado a trazer consigo transformações. O pequeno Teddy, para citar apenas um exemplo, deixara um dia – o que, naturalmente, não significa um dia determinado, senão uma época cujo começo é vago – de ser pequeno. As senhoras já não podiam sentá-lo no colo, nas ocasiões em que se levantava, trocava o pijama por uma roupa esporte e descia para ir ter com elas. Insensivelmente mudara a situação; agora era ele quem as sentava no seu colo, e isso produzia a ambas as partes o mesmo prazer, ou talvez ainda mais. Tornara-se adolescente; não queremos dizer que tivesse desabrochado, mas pelo menos espigara depressa. Hans Castorp não o notara, porém agora notou-o. Nem o tempo nem o espigamento trouxeram proveito ao adolescente Teddy, que não era talhado para eles. A vida temporal não lhe fez bem. Aos vinte e um anos sucumbiu à enfermidade, para a qual se mostrara predisposto, e o seu quarto foi desinfetado. Contamos a sua história em voz calma, já que não houve grande diferença entre o novo estado e o antigo.

Houve, entretanto, óbitos mais importantes, óbitos na planície que interessavam mais ao nosso herói ou, ao menos, o teriam feito em outras épocas. Pensamos no passamento recente do velho Cônsul Tienappel, tio-avô e pai de criação de Hans, de remota lembrança. Evitando cuidadosamente expor-se a condições atmosféricas pouco saudáveis, deixara ele a tio James a oportunidade de tornar-se ridículo. Mesmo assim não lograra esquivar-se indefinidamente à apoplexia, e a notícia do seu finamento, transmitida num telegrama lacônico, porém redigido em termos delicados e cautelosos – em consideração ao defunto antes do que ao destinatário da mensagem –, essa notícia subiu um belo dia até a excelente espreguiçadeira de Hans Castorp. Depois de recebê-la, o jovem comprou papel tarjado de preto e escreveu aos tios-primos que ele, órfão de pai e mãe, tinha de considerar-se órfão pela terceira vez e sentia-se ainda mais aflito porque as circunstâncias não lhe permitiam e até lhe vedavam estritamente interromper a sua estada nessas alturas para acompanhar o tio-avô à sua última morada.

Falar em luto seria exagerar as coisas. Contudo, mostravam os olhos de Hans Castorp, naqueles dias, expressão mais pensativa do que em geral. Essa morte, cujo efeito sentimental em época alguma teria sido grande e pelos aventurosos anos de separação quase chegara a ser nulo, significava sem embargo a ruptura de mais um laço, de mais uma relação que o ligava à esfera lá de baixo e completava aquilo que Hans Castorp, com razão, chamava de liberdade. Com efeito, nessa fase final a que nos referimos, estava totalmente interrompido o contato entre ele e a planície. Não escrevia cartas nem as recebia. Já não mandava vir os Maria Mancini. Encontrara ali em cima uma marca que lhe agradava, e à qual demonstrava a mesma fidelidade que àquela amiga de tempos passados. Era um produto que teria ajudado um explorador polar a suportar as piores privações no gelo eterno. Dispondo dele, podia-se ficar estendido como na praia e agüentar tudo quanto sucedesse. Tratava-se de um charuto especialmente bem-acabado, de nome Rütlischwur, um pouco mais grosso do que o Maria, de cor cinzenta como a do camundongo, com um anel azulado em torno, e que tinha caráter muito dócil e suave; ao consumir-se, convertia-se numa cinza branca que guardava a forma originária, na qual se salientavam as nervuras do invólucro. Esse processo realizava-se com tamanha regularidade, que o fumante podia servir-se do charuto em lugar de uma ampulheta, o que Hans Castorp realmente fazia, em caso de necessidade, pois deixara de usar o relógio de bolso. Este já não trabalhava. Certo dia caíra da mesinha-de-cabeceira, e Hans Castorp não tratara de mandar consertá-lo, para que reassumisse aquela cadenciada marcha circular, pela mesma razão por que havia muito renunciara a recorrer à folhinha, quer arrancando diariamente a folha, quer se informando de antemão acerca de certos dias ou festas. Agia assim em prol da “liberdade”, em homenagem ao “passeio pela praia”, a esse “sempre” constante e imóvel, ao feitiço hermético para o qual o jovem arrebatado a essas alturas se mostrara predisposto e que fora a aventura fundamental do seu espírito, aquela em cujo curso se haviam desenrolado todas as aventuras alquimísticas dessa singela matéria.

Assim o jovem deixou-se estar, e assim o ano completou mais uma vez o seu ciclo, em pleno verão, época da sua chegada; era a sétima vez, mas o nosso herói não se deu conta do fato.

Foi quando estrondeou...

Mas a reserva e o pudor impedem-nos de empregar termos exagerados ao contar o que então ressoou e sucedeu. Justamente nesse ponto não cabem nem bravatas nem fanfarrices. Abafemos a voz para comunicar que de fato estrondeou aquele trovão, de que todo mundo tem conhecimento, a ensurdecedora detonação da sinistra mistura de tédio e de irritação de há muito acumulados; um trovão histórico – seja dito com discreta reverência – que abalou os alicerces da terra, e, para nós, o trovão que fez explodir a montanha mágica e arremessou o nosso dorminhoco brutalmente diante das portas. Estupefato, o jovem se acha sentado na relva e esfrega os olhos, como faz quem se omitiu, em que pesem numerosas admoestações, de ler os jornais.

Seu amigo e mentor do Mediterrâneo sempre procurara remediar esse mal e se esforçara por informar o filho enfermiço dos seus esforços pedagógicos em grandes linhas a respeito daquilo que acontecia lá embaixo. Mas encontrara ouvidos moucos por parte de um discípulo que, ao “reinar”, imaginava, na verdade, isto ou aquilo das sombras espirituais das coisas, mas não se preocupava com as próprias coisas, devido a uma tendência arrogante para tomar as sombras pelas coisas e para ver nestas apenas sombras. E não devemos censurá-lo severamente por causa disso, visto a relação entre sombras e coisas não estar definitivamente esclarecida.

Outrora, o Sr. Settembrini enchia o ambiente de repentina clareza, sentava-se à beira da cama do jovem e empenhava-se em exercer sobre ele uma influência corretiva em assuntos da vida e da morte. Agora já não era assim. Agora era Hans Castorp quem sentava, com as mãos entre os joelhos, à beira da cama do humanista, no pequeno cubículo, ou ao pé do divã onde Settembrini repousava de dia, no simpático gabinete do sótão, com as cadeiras do carbonário e com a garrafa de água. Fazia companhia ao italiano e escutava cortesmente seus comentários sobre a situação mundial. Haviam-se tornado raras as ocasiões em que o Sr. Lodovico se achava de pé. Para a natureza sensível do humanista, o fim cruento de Naphta, essa façanha terrorista do disputante sagaz e desesperado, tinha sido um choque violento do qual não conseguia refazer-se. Desde então sentia-se muito fraco e decrépito. Sua colaboração na Patologia sociológica estava interrompida. O dicionário de todas as obras beletrísticas relativas ao sofrimento humano deixara de progredir, e aquela liga esperava em vão pelo respectivo tomo da sua enciclopédia. O Sr. Settembrini via-se forçado a limitar à palavra falada as suas contribuições para a organização do progresso, e precisamente para esse fim lhe ofereciam as visitas amistosas de Hans Castorp uma oportunidade de que, sem elas, teria sentido falta.

Embora em voz débil, dizia muitas coisas formosas que lhe vinham do coração. Falava sobre o aperfeiçoamento social que a própria humanidade devia realizar. Seu discurso avançava como sobre pés de pomba, mas quando chegava a tratar de assuntos como o da união dos povos liberados em prol da felicidade geral, ressoava logo nas suas palavras, sem que ele mesmo o quisesse ou soubesse, o rumor de asas de águia. A causa disso era sem dúvida a política, a herança do avô, que, unindo-se à herança humanística do pai, formava na alma de Lodovico o ideal das belas-letras, exatamente como a humanidade e a política se uniam no ideal sublime da civilização, essa idéia mansa como as pombas e denodada como as águias, que aguardava o dia de tornar-se realidade, a manhã dos povos em que o princípio da reação caísse derrotado e se efetuasse a santa aliança da democracia burguesa... Contudo, havia nesse ponto algumas desarmonias. O Sr. Settembrini era humanitário, mas, ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, era quase explicitamente belicoso. Por ocasião do duelo com o sanguinário Naphta comportara-se humanamente; porém, em assuntos de maior importância, em que o espírito humano se aliava com entusiasmo à política, para gerar o ideal triunfante e dominador da civilização, e onde se glorificava o cidadão no altar da humanidade, tornava-se duvidoso saber se o Sr. Settembrini, objetivamente falando, desejava ou não evitar que sua mão derramasse sangue. E a situação íntima tinha por conseqüência que na sua bela alma o elemento do denodo aquilino se impusesse cada vez mais à brandura columbina.

Freqüentemente, a sua atitude em face das grandes constelações do mundo era contraditória, acossada de escrúpulos e perturbada por embaraços. Recentemente, fazia apenas ano e meio ou dois anos, a cooperação diplomática do seu país com a Áustria, na questão da Albânia, enchera de desassossego as suas explanações; essa cooperação que o satisfazia por ser dirigida contra a Semi-Ásia antilatina, contra o cnute e contra Schlüsselburg, ao mesmo tempo o atormentava por ser a mésalliance com o inimigo hereditário, com o princípio da reação e do avassalamento dos povos. No outono passado, o grande empréstimo que a França fizera à Rússia para a construção de uma vasta rede ferroviária na Polônia despertara nele sentimentos igualmente heterogêneos; ora, o Sr. Settembrini pertencia ao partido francófilo da sua terra, o que não nos deve admirar se nos lembrarmos que o avô comparara os dias da Revolução de Julho aos da criação do universo; e, no entanto, o acordo entre a república iluminada e o bizantinismo cítico deixava-o com dúvidas morais e lhe oprimia o peito. Mas também essa angústia não tardava em converter-se em esperança e alegria que lhe aceleravam a respiração, sempre que se recordava do significado estratégico dessas vias férreas. Então teve lugar o atentado contra o príncipe-herdeiro, que para todos, exceção feita de alguns dorminhocos alemães, constituía um sinal de tempestade, um aviso aos iniciados, entre os quais temos toda a razão de incluir o Sr. Settembrini. Hans Castorp, na verdade, viu-o horrorizar-se como indivíduo diante desse ato terrorista, mas observou como o peito do humanista vibrava com o pensamento de que se tratava de uma façanha libertadora, brotada do seio de uma nação e dirigida contra a cidadela que ele mais odiava, posto que, ao mesmo tempo, tivesse de considerar esse feito como fruto de atividades moscovitas, o que o inquietava, porém não impedia de qualificar de insulto a humanidade e de crime hediondo o ultimato que a monarquia, três semanas mais tarde, endereçou à Sérvia. Assim agia em face das conseqüências que previa como conhecedor do assunto, e com as quais se regozijava, a ponto de respirar mais depressa de tanta exaltação...

Numa palavra, os sentimentos do Sr. Settembrini eram tão complexos quanto a fatalidade que ele via precipitar-se com imensa rapidez, e para a qual procurava por meio de palavras veladas preparar o seu discípulo, se bem que uma espécie de cortesia e de compaixão nacional o impedisse de falar sem rebuços a esse respeito. Nos dias das primeiras mobilizações e da primeira declaração de guerra adquirira o hábito de estender ambas as mãos ao visitante e de apertar as do nosso jovem simplório, como se lhe quisesse falar, senão ao cérebro, pelo menos ao coração. – Meu amigo! – dizia o italiano. – A pólvora e a imprensa, sim, é incontestável que foram inventadas por vocês. Mas se o senhor pensa que nós marcharemos contra a Revolução... Caro...

Durante os dias de expectativa, os dias mais carregados de eletricidade, enquanto os nervos da Europa se achavam num verdadeiro leito de Procusto, Hans Castorp não foi ter com o Sr. Settembrini. Os jornais cheios de horrores chegavam agora diretamente da planície ao seu compartimento de sacada, empestando com o seu cheiro de enxofre a sala de refeições e mesmo os quartos dos doentes graves ou moribundos. Referimo-nos àqueles momentos em que o dorminhoco, sem saber o que lhe acontecera, se soerguia lentamente na relva, antes de sentar-se e de esfregar os olhos... Desenvolvamos essa imagem para analisar devidamente o que se passava no seu espírito. Encolheu-se, levantou-se e olhou em torno. Viu-se desencantado, redimido, livre – não pelo seu próprio esforço, como teve de confessar a si mesmo, envergonhado, senão expulso por forças elementares, exteriores, para as quais a libertação do nosso herói era um efeito completamente secundário. Mas, embora o seu pequeno destino se perdesse no destino geral, não se expressavam, contudo, nesse fato certa bondade e justiça que o miravam pessoalmente e portanto eram de origem divina? Se a vida uma vez mais acolhia o seu pecaminoso filho enfermiço, não podia fazê-lo por um preço barato, mas somente dessa forma grave e severa, impondo-lhe uma prova que para ele, o pecador, talvez não significasse a vida, mas justamente nesse caso extremo equivaleria a três salvas fúnebres. E assim Hans Castorp se pôs de joelhos, erguendo o rosto e as mãos ao céu, que estava sombrio, sulfurino, mas já não era o teto da gruta da montanha dos pecados.

Foi nessa posição que o encontrou o Sr. Settembrini. É óbvio que falamos metaforicamente; pois, em realidade, o caráter reservado do nosso herói não permitia tal atitude teatral. Na fria realidade, o mentor encontrou-o ocupado a fazer as malas, porquanto Hans Castorp, desde o momento em que acordava, se via arrastado por uma torrente remoinhosa de partidas “em falso”, que o trovão abalador desencadeara no vale. A “pátria”, o Berghof, assemelhava-se a um formigueiro em pânico. De cinco mil pés de altura, seus habitantes precipitavam-se de cabeça para baixo em direção à planície, onde os aguardava a prova. Suspendiam-se nos estribos do trenzinho tomado de assalto, deixando atrás, se assim fosse necessário, as bagagens que em pilhas enfileiradas cobriam a plataforma da estação – a estação apinhada de gente, a cuja altura parecia chegar o bafo abrasador do incêndio da planície. E Hans precipitava-se tal qual os outros. No meio do tumulto abraçou-o Lodovico; abraçou-o literalmente, cingiu-o com os braços e beijou-lhe ambas as faces, à maneira meridional, mas também à maneira russa, o que, não obstante a emoção, não deixou de acanhar o nosso viajante “em falso”. Mas este quase perdeu a serenidade, quando, no último instante, o Sr. Settembrini o chamou pelo primeiro nome, a saber “Giovanni” e, abandonando a forma de tratamento habitualmente usada no Ocidente civilizado, serviu-se do “tu”.

– E cosi in giù – disse – in giù finalmente! Addio, Giovanni mio! Eu teria preferido ver-te partir de outra forma. Mas vá lá que seja, uma vez que os deuses dispuseram assim e não de um modo diferente. Eu esperava despedir-me de ti, quando voltasses ao trabalho, e agora lutarás no meio da tua gente. Deus meu, é a ti que isso coube em sorte, e não ao nosso tenente. Como é estranho o jogo da vida!... Vai lutar valentemente, lá para onde te mandam os laços do sangue! Ninguém pode fazer mais, a esta hora. Mas perdoa-me se emprego o resto das minhas forças para concitar também o meu país à luta, ao lado daqueles que lhe indicam o espírito e o sagrado egoísmo. Addio!

Hans Castorp enfiou a cabeça entre dez outras que enchiam o vão da janelinha. Abanou com a mão por cima delas. Também o Sr. Settembrini abanou com a direita, enquanto a ponta do dedo anular da esquerda tocava delicadamente o canto de um olho.

 

Onde estamos? Que é isso? Aonde nos levou o sonho? Crepúsculo, chuva e barro, rubros clarões de fogo no céu turvo que sem cessar estruge atroadoramente; os úmidos ares invadidos e dilacerados por silvos agudos, por uivos raivosos que avançam como o cão dos infernos e terminam a sua órbita, entre estilhaços, jatos de terra, detonações e labaredas, por gemidos e por gritos, por clarinadas estridentes e pelo rufar de tambores, clamando depressa, cada vez mais depressa... Ali há um bosque do qual brotam enxames incolores, correndo, caindo, pulando. Acolá se estende uma cadeia de colinas diante do longínquo incêndio, cujas brasas às vezes se condensam em chamas flutuantes. Ao nosso redor espraiam-se campos aráveis, ondulosos, encharcados, revolvidos. Uma estrada rústica, barrenta, coberta de ramos quebrados alonga-se paralela ao bosque. Um atalho, sulcado e alagadiço, desvia-se dela e conduz em vasta curva rumo às colinas. Troncos de árvores erguem-se, nus e desgalhados, na chuva fria... Aí se vê um poste indicador. Não vale a pena consultá-lo. A penumbra velaria as inscrições, mesmo que da tabuleta não houvessem sido arrancadas lascas por um impacto direto. Leste ou oeste? É a planície, é a guerra. E nós somos tímidas sombras à beira do caminho, envergonhando-nos da segurança de sombras que gozamos, e não temos a menor intenção de nos entregar a bravatas e fanfarrices. Quem nos guiou até aqui foi o espírito da nossa história, para que possamos ver mais uma vez, antes de perdê-lo de vista, o rosto singelo de um dentre os camaradas cinzentos que ali correm e caem, impelidos pelos tambores, um rosto conhecido, o rosto do pecador ingênuo que acompanhamos pelo seu caminho durante tantos anos, e cuja voz tantas vezes ouvimos.

Eles têm sido procurados, esses companheiros de armas, a fim de pôr o ponto final num combate que já se prolongou pelo dia inteiro e visa à reconquista das posições nas colinas e das aldeias em chamas, que se acham situadas atrás delas e dois dias antes haviam sido abandonadas ao inimigo. É um regimento de voluntários, composto de jovens, na maioria estudantes, com pouco tempo na frente de batalha. Foram avisados em plena noite, viajaram de trem até a madrugada e marcharam através da chuva até a tarde por caminhos péssimos, que nem eram caminhos. As estradas estavam atravancadas de veículos, de modo que tiveram de avançar por campos e pântanos, sete horas a fio, com o equipamento completo, e isso não foi absolutamente um passeio agradável, pois quem não quisesse perder as botas tinha de curvar-se quase a cada passo, para enfiar o dedo no puxador e livrar assim o pé do solo encharcado. Assim gastaram mais de uma hora para atravessar um pequeno prado. Finalmente alcançaram a meta; seu sangue jovem tem suportado todas as fadigas; os corpos, excitados e já exaustos, mas ainda mantidos num estado de tensão pelas mais íntimas reservas vitais, não se preocupam com a alimentação nem com o sono de que foram privados. Os rostos molhados, salpicados de lodo, emoldurados pela correia, ardem sob os capacetes revestidos de pano cinzento e revirados pela corrida. Estão inflamados pelo esforço e também pelo aspecto das baixas que sofreram durante a marcha através do bosque alagado. O inimigo, sabendo que eles estão próximos, lançou sobre o seu caminho uma barragem de Schrapnells e de granadas de grosso calibre; já no meio do bosque, estes se estilhaçaram, irrompendo nos seus grupos, e agora açoitam a vasta campina arada, uivando, vomitando chamas, arrojando terras para todos os lados.

E eles devem passar por isso, esses três mil rapazotes febris; são os reforços que têm de decidir, com suas baionetas, o assalto às trincheiras cavadas diante e atrás da cadeia de colinas e às aldeias incendiadas; cabe-lhes levar o ataque até determinado ponto que se encontra assinalado na ordem que seu chefe traz no bolso. Há três mil deles, para que sobrem dois mil, quando chegarem às colinas e às aldeias, e aí está a explicação de serem em tão grande número. Formam um só corpo, composto de tal maneira que mesmo depois de graves perdas possam ainda agir, vencer e saudar o triunfo com um hurra de milhares de vozes, sem se importar com aqueles que se houverem desagregado, saindo de forma. Muitos já fizeram isso, não agüentando a marcha forçada para a qual eram demasiado jovens e fracos. Empalideciam cada vez mais; cambaleavam; cerrando os dentes, exigiam de si energias de homens, e todavia ficavam para trás. Arrastavam-se ainda por algum tempo ao lado da coluna em marcha; pelotão após pelotão ultrapassava-os, e por fim desaparecia, ficando estendidos onde não era bom deitar-se. Depois, veio o bosque despedaçado. Mesmo assim há ainda muitos que dele saem enxameando; três mil podem suportar uma boa sangria e continuam sendo uma multidão. Já estão inundando a terra açoitada pela chuva, a estrada, o atalho, os campos lamacentos. Nós, as sombras observadoras, à beira do caminho, achamo-nos entre eles. Na orla do bosque todos calam a baioneta com manobras destras. Os clarins clamam com insistência, os tambores rufam, ribombam num baixo profundo, e os homens, soltando gritos roucos, precipitam-se para a frente, o melhor que podem, como num pesadelo, com os pés chumbados pelos torrões que se grudam nas toscas botas.

Atiram-se de bruços, para esquivar-se aos projéteis que se aproximam ululando. Novamente se levantam, avançam às pressas, encorajando-se com estridentes brados juvenis, cada vez que escapam ilesos. São alvejados, caem, agitando os braços, com um tiro na testa, no coração, nas entranhas. Jazem, com as faces na lama, imóveis já. Jazem, com as cabeças enterradas no barro, as costas despegadas da mochila, e agarram o ar com ambas as mãos. Mas o bosque envia outros que se atiram, que saltam, gritam ou avançam mudos, a passo trôpego, por entre os feridos.

Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e baionetas, com as capas e as botas enlameadas! Sonhando de modo humanístico-estético, poderíamos imaginá-la num quadro diferente. Poderíamos ter a seguinte visão: esses jovens montando e banhando cavalos numa enseada do mar, caminhando pela praia em companhia da namorada, achegando os lábios à orelha da meiga noiva, ou talvez ensinando uns aos outros, numa amizade feliz, o tiro de arco. Em lugar disso, jazem ali, com o nariz no barro bombardeado. Que façam isso com alegria, ainda que transidos de medo e cheios de saudades da mãe, é assunto à parte, que nos orgulha e envergonha, mas nunca nos deveria induzir a colocá-los nesta situação.

Eis aí o nosso amigo, Hans Castorp! Já de longe o reconhecemos pela barbicha que deixou crescer, enquanto comia à mesa dos “russos ordinários”. Arde e está ensopado como os demais. Corre com os pés pesados, agarrando o fuzil com o braço caído. Vejam só: pisou na mão de um camarada que se desagregou; com a bota ferrada afunda essa mão no solo lamacento, salpicado de galhos lascados. E todavia é ele! Mas como? Ele canta? Canta, assim como se faz sem saber, de si para si, numa excitação surda, vazia de pensamentos, aproveitando a respiração ofegante para cantarolar a meia voz:

 

         “Talhei em sua casca

           Mil coisas que senti...”

 

Caiu. Não, atirou-se ao chão, porque um cão dos infernos chega uivando, um enorme obus, um asqueroso pão de açúcar, saído das trevas. Acha-se estendido, comprimindo o rosto no barro frio com as pernas escancaradas e os pés torcidos, colados ao chão. O produto de uma ciência barbarizada abate-se como o Diabo em pessoa a trinta passos dele, penetrando obliquamente no solo, onde explode com espantosa violência e joga à altura de uma casa um jorro de terra, fogo, chumbo, ferro e de humanidade despedaçada; pois nesse lugar havia dois jovens estendidos, eram amigos que se haviam atirado um ao lado do outro, no momento de perigo, e agora estão mesclados, sumidos.

Ó vergonha da nossa segurança de sombras! Vamos embora! Não desejamos narrar isso. O nosso conhecido recebeu algum ferimento? Durante um momento, ele mesmo acreditou que sim. Um grande torrão lhe batera na canela. Aquilo doía, mas não era sério! Ele se põe em marcha; coxeando, prossegue a cambalear para a frente, com os pés pesados de barro. E canta inconscientemente:

 

         “Os galhos sussurra-avam,

           Falando para mim...”

 

E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo, o perdemos de vista.

Felicidade, Hans Castorp, enfermiço e cândido filho da vida! Tua história terminou: contamo-la até o fim. Ela não foi nem breve nem longa; é uma história hermética. Contamo-la por amor a ela e não a ti, pois tu eras simples. Mas, afinal, era tua essa história, e como ela te coube em sorte, deves ter certas qualidades. Não dissimulamos a simpatia pedagógica que, ao narrá-la, começamos a nutrir por ti, e que seria capaz de nos induzir a tocar delicadamente o canto de um olho com a ponta do dedo, ao pensar que nunca mais tornaremos a te ver nem ouvir.

Adeus – para a vida ou para a morte! Tens poucas probabilidades a teu favor. O macabro baile ao qual te arrastaram durará ainda vários anos malignos. Não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. Para falar com franqueza, não sentimos grandes escrúpulos ao deixar indecisa essa questão. Certas aventuras da carne e do espírito, sublimando a tua singeleza, fizeram teu espírito sobreviver ao que tua carne dificilmente poderá resistir. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de “rei”, viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?

 

                                                                                Thomas Mann  

 

                      

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