Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A MORTALHA DE ALZIRA
A cela misteriosa
No ano de 17**, Paris então muito governado pela Pompadour e um pouco por Luís XV, palpitava de entusiasmo com um escândalo original.
Por um instante, a grande cidade libertina distraía‑se dos seus desregramentos habituais e esquecia a ordem dos Aphrodites e dos Hermaphrodites, e esquecia as picantes palhaçadas de Taconnet e o obsceno macaco de Nicolet e os expressivos fogos de vista de Torré, e esquecia Ruggieri com a sua exibição de pernas e colos importados da América, e esquecia les spetacles pyrrhiques e o Wauxhall, e esquecia as velhacas e célebres representações do barão d'Esclapon e da duquesa de Mazarin, e esquecia‑se até de ouvir as pilhérias da magra, feia e adorada Guimard, para só ter atenção para o novo escândalo que acabava de surgir inesperadamente.
Era o caso que o famoso pregador La Rose tinha como todos os anos, de pregar o seu sermão da quinta‑feira santa na capela real, e fôra acometido por um formidável ataque de asma, justamente na véspera dêsse dia. Escreveu logo ao vigário‑geral, seu amigo particular, dando‑lhe parte do fato e pedindo‑lhe que, sem perda de tempo, tratasse de descobrir alguém que o substituísse.
Ora, o caso era deveras apertado! Quem teria a coragem de ir, à última hora substituir La Rose no púlpito da capela real, num dos sermões mais importantes da quaresma?. . .
Substituir La Rose!... La Rose, "o segundo Bossuet", como lhe chamavam seus inúmeros admiradores! La Rose, o amimado pregador da côrte, o protegido de Antoinette Poison, o querido tanto por parte dos Molinistas como por parte dos Jansenistas, o aclamado por todo o alto e baixo público de Paris! La Rose, o indispensável! La Rose, o insubstituível!
E era preciso que êle com efeito estivesse deveras doente, para faltar ao sermão de quinta‑feira santa, porque La Rose prezava muito aos seus triunfos na tribuna sacra, e não esperdiçaria fàcilmente uma boa ocasião de orar perante o rei e tôda sua côrte de fidalgos e tôda a sua côrte de letrados.
Entretanto, sabia‑se também que La Rose, desde que sentisse a menor alteração na voz, não seria capaz de falar em público, nem à mão de Deus Padre, porque era precisamente na maneira especial de jogar com a sua bela e sedutora voz, que consistia o grande segrêdo dos seus incomparáveis triunfos.
É inútil dizer que, por melhores esforços empregados, nenhum pregador se descobriu, bom ou mau, que quisesse ir tomar o lugar do querido mestre. Davam‑se todos por igualmente atacados da garganta, como se a asma de La Rose, à semelhança do que sucedia com o seu estilo oratório, se estendesse de improviso por todos êles, desde o mais pretensioso até ao mínimo dos numerosos pregadores sagrados, que nesse piedoso e alegre tempo enchiam os púlpitos de Paris com as suas frases retumbantes e com os seus eloqüentes e artísticos soluços.
O rei aborreceu‑se e chegou a franzir as sobrancelhas. Luís XV, se era folgazão, era também devoto. E se era devoto era também homem de gosto exigente; não compreendia uma quinta‑feira santa sem La Rose. Além disso, tinha na véspera abusado da sua suntuosa adega, e a melhor água de Selters para as suas ressacas era ainda La Rose.
Que diabo! O caso era sério.
Empregaram‑se os últimos recursos para descobrir alguém que, sem grande escândalo, fosse capaz de improvisar um sermão digno da real ressaca; ofereceram‑se bonitas somas, fizeram‑se as mais lindas promessas. O cabido inteiro agitou‑se, remexeu‑se, sorveu consecutivas pitadas, esfregou mil vezes o lenço encarnado no nariz, mas ninguém teve coragem para aceitar a espinhosa missão.
As salas do palácio arquiepiscopal pareciam formigueiros; as batinas esfervilhavam irrequietas, entrando e saindo, trazendo e levando recados. Cochichava‑se daqui, cochichava‑se dali, bichanava‑se por todos os cantos e recantos do palácio, sem nada se resolver que aproveitasse.
E, no entanto o tempo fugia e era preciso tomar uma resolução.
O arcebispo, já desesperado, ia estender o braço para tomar ao acaso o primeiro dos seus sufragâneos, e ordenar‑lhe que subisse ao púlpito e despejasse, com um milhão de raios! um sermão qualquer, quando de improviso rasgou‑se o reposteiro da sala, em que êle se achava entre uma negra nuvem de batinas, e viu‑se surgir a veneranda figura de frei Ozéas, com as suas grandes barbas brancas e a sua enorme calva de profeta.
Encaminhou‑se diretamente para o arcebispo e disse‑lhe, depois das reverências do estilo:
—Comprometo‑me, se mo permitirem, a apresentar hoje no púlpito da capela real alguém a que irá dignamente substituir o padre La Rose.
Fez‑se em tôrno destas simples palavras um profundo silêncio de pasmo e de desabafo.
Bastava só, porém, a presença do frei Ozéas naquela sala do paço arcebispal para levantar a suprêsa do cabido inteiro, porque todos lhe conheciam a vida obscura e solitária, e todos sabiam que era muito e muito raro vê‑lo fora do seu modesto convento a não ser para algum ato de caridade.
Frei Ozéas era um homem singularíssimo, como mais adiante apreciará o leitor. Havia vinte e tantos anos que em tôrno dêle se formara, de dia para dia a mais sólida reputação de virtude e santidade.
De quem disporia o singular frade para fazer substituir La Rose?...
E começou logo o sussurro dos comentários.
O arcebispo, entretanto, tomara‑o àvidamente pelo braço, e desaparecera com êle pela porta que conduzia ao interior do palácio.
Pouco depois, descia frei Ozéas as escadas do paço, metia‑se no carro que o esperava à entrada do jardim, dizia ao cocheiro que tocasse depressa para o convento de S. Francisco de Paulo, e daí a meia hora, atravessava o longo pátio ladrilhado de pedra e subia a pesada escada do claustro, em que ele se havia condenado a viver para sempre em dura penitência.
Apesar do tremor dos seus setenta anos, venceu ligeiro os extensos corredores abobadados, galgou uma estreita escada que conduzia a um sombrio mirante, e, tendo várias vezes volvido os olhos para trás, como se temesse ser acompanhado por alguém, chegou‑se a uma pequena porta inteiriça, e bateu três pancadas sêcas com as falanges dos seus dedos ossudos e pálidos.
A porta abriu‑se sem ruído. Êle entrou, e a porta fechou‑se de novo, silenciosamente.
O lugar em que o venerando religioso acabava de penetrar, era uma triste cela, sombria e espaçosa, com uma janela gradeada e fechada, e apenas frouxamente esclarecida por uma clarabóia do teto. As paredes, nuas de alto a baixo, tinham uma côr sinistra de osso velho. Em uma delas havia um grande nicho com a imagem da Virgem da Conceição, quase de tamanho natural; a um dos cantos, uma negra estante tôscamente feita, pejada de grossos alfarrábios amarelecidos pelo tempo; no centro, uma mesa de madeira escura com um breviário em cima, ao lado de uma candeia de azeite, um pedaço de pão duro e um cilício cru; junto à mesa, um banco de pau
Ozéas fora recebido à porta por um mancebo de uns vinte anos, muito pálido, ainda imberbe, vestido com uma esfarrapada batina de seminarista.
Não havia mais ninguém na cela.
O mancebo beijou‑lhe a mão. Ozéas abraçou‑o e disse‑lhe depois, tocando‑lhe carinhosamente no ombro:
—Meu filho, vais hoje pela primeira vez atravessar as ruas de Paris e entrar na capela real.
—Para que, meu pai?
—Para pregar o sermão de quinta‑feira santa.
—Eu? mas o que vou dizer?. . .
—Vais dizer pura e simplesmente o que sabes e o que sentes a respeito da paixão de Jesus Cristo. . . Não te preocupes com a multidão que lá encontrares, não te preocupes com o que vires. Fecha‑te contigo mesmo e fala como se conversasses com o teu anjo da guarda. Abre o teu coração, quando abrires os teus lábios, e deixa dele sair, imperturbável e cristalina, a tua alma de bem‑aventurado.
—Bem, meu pai.
—Daqui a pouco virá a roupa com que tens de ir. Dentro de uma hora virei buscar‑te.
—Estarei pronto e às suas ordens, meu pai.
—Reza a Nossa Senhora enquanto me esperas. Adeus.
—Sua bênção, meu pai.
—Deus te abençoe.
E frei Ozéas tornou a sair, fechando‑se de novo sobre ele a porta, silenciosamente.
Frei Ozéas e o enjeitado
As máscaras de hipocrisia que escondiam a corrupção da corte de Luís XIV, caíram com a morte desse príncipe. Os fidalgos e cortesãs pareciam impacientes por sair da forçada e falsa compostura, em que se mantinham durante a velhice devota do Rei Sol.
Até aí fingiu‑se ainda; daí em diante ninguém mais procurou ocultar os seus vícios.
A ferocidade e a perfídia dos tempos bárbaros, os crimes do feudalismo, todos os erros, todos os abusos e todos os desregramentos de um governo cínico e perverso e de uma magistratura e uma jurisprudência feitas de ignomínia e adulação, eis do que se compunham os costumes desse infeliz começo de século.
A administração da polícia criava e dirigia casas de jogo e casas de prostituição.
Paris era policiado por malfeitores, vestidos de farda. Só uma cousa divertia o público:—a crápula.
Mas o que caracterizava particularmente essa época, era o dourado verniz de elegância, com que o escol da sociedade de então disfarçava a libertinagem mais desenfreada e brutal.
A duquesa de Bourbon, apesar de casada, vivia publicamente com Du Chayla. Law levava a sua amante à corte. A princesa de Conti, filha do rei, posto que devota, já velhusca e cheia de aparentes escrúpulos, confessava não poder dispensar a consolação de seu sobrinho La Vallière. A outra princesa de Conti, a moça, essa, a despeito dos ciúmes que mantinha pelo marido, só deixou o seu amante La Fare, quando o substituiu por Clermont; a irmã dela, M'le de Charolais, dava os mais terríveis escândalos com o duque de Richelieu. As filhas do duque de Orléans, então regente, levaram mais longe a sua depravação, porque tinham no próprio pai 0 principal cúmplice das suas orgias. A irmã da duquesa de Bourbon, Mlle de la Roche‑surYon, célebre pela sua beleza, não se separava de Marton, estivesse onde estivesse, e ameaçava de furar os olhos com um punhal, que ela trazia sempre na liga, àquela que lho roubasse ainda que por um instante. Mme du Maire, tendo aliás como amante vitalício o cardeal de Polignac, íntimo de seu esposo, disfarçava‑se freqüentemente em regateira, para correr as ruas e vielas de Paris em busca de aventureiros de todo o gênero.
O pior no entanto, estava no que não se pode contar nestas páginas. Toute chair étail détournée de sa voie, como disse Voltaire a esse respeito, e como o provaram com os fatos mais indecorosos as próprias delfinas de Luís XIV e Mme de Maintenon, e o chevalier de Vendôme, e o Sr. de Chambonas, e, mais que todos e que todas, a formosa duquesa de Chartres, que se recolheu ainda moça ao convento de Chelles, não para se penitenciar dos seus pecados contra a natureza, porém, sim, para poder, ali, naquele doce e obscuro viveiro de almas adolescentes, agravá‑los mais à farta e mais à vontade.
Frei Ozéas tinha nessa época vinte e cinco anos.
Havia feito seus estudos e recebera as primeiras ordens no seminário de Borgonha, sua província natal; depois atirou‑se para Paris, onde se ordenou, justamente no começo da regência do Duque de Orléans.
Dotado de temperamento bastante sensual para arrastá‑lo, e sem força na sua fé para poder resistir à corrente de perdições desse tempo ele, se não foi tão ferozmente devasso como Dubois ou tão friamente libertino como Dorat, acompanhou todavia o exemplo dos seus confrades e com eles arrastou a batina pelos antros mais escorregadios do jogo, da embriaguez e da prostituição.
Chegou a fazer parte dessas ridículas e terríveis sociedades secretas, que infestavam o reinado de Luís XV, centros criados com o fim exclusivo de exercer o gozo, mas o gozo requintado, torturado, burilado a ponta de agulha; gozo como só se inventou nesse tempo, gozo à Chambonas e à Pompadour, de quem ele tirou 0 estilo complicado e extravagante. Vintimille, então arcebispo de Paris, devasso como os demais parisienses dessa época, mas enfim arcebispo, esteve a ponto de mandar Ozéas para a Bastilha, como sucedeu com o padre Tencin, com Adrien Aubert, com Chegny, Pierre de Galon e outros muitos religiosos de sangue quente.
Mas quando Ozéas chegou aos quarenta e cinco a cinqüenta anos, começou a cair em si, e pela primeira vez pensou na perdição da sua alma, tão comprometida; e, ou fosse que os requintados prazeres lhe desfibrassem as energias da carne, ou fosse que uma grande e miraculosa transformação moral se operasse com efeito em todo o seu ser, o fato é que ele, fulminado de súbito pela consciência dos seus pecados sem remissão, desabou em fundo arrependimento e protestou nunca mais, nunca mais cometer a menor ação que de longe pudesse envergonhar a sua responsabilidade de sacerdote.
Era tarde. Nada mais hipotético do que apagar um passado. Por mais brilhante e intensa que fosse a luz do seu arrependimento, lá estava o gigantesco espectro dos crimes cometidos, para antepor-se entre eles, e encher de sombra o remorso aquela consciência de sacerdote pecador. Por mais sincera e convicta que fosse a sua nova lei de conduta, por mais leal e verdadeira a sua nova linha de virtude, sua alma chorava perdida para sempre, porque para sempre se sentia corrompida e suja.
Então Ozéas começou a dar‑se todo, de espírito e corpo, à sua reabilitação.
Cegava‑o ardente desejo de conseguir o seu fim.
Principiou por deixar de ser padre, para meter‑se na ordem dos missionários de S. Francisco de Paulo, denominados—"Os mínimos". Fez voto de pobreza absoluta e abriu mão de tudo, tudo que possuía; o que, aliás, não era pouco, porque além dos seus bens de família, Ozéas metera‑se a especular no jogo feroz que Law criara sob a regência, e chegara a acumular uma bonita soma de seis milhões de francos.
Desde então, noite e dia, hora a hora, instante a instante, a sua única preocupação era expurgar a alma das passadas conspurcações. E nunca ninguém se mostrou tão empenhado em reabilitar‑se do passado. Por mais escabroso que fosse o ato de piedade, Ozéas não desdenhava afrontá‑lo, como se a sua fé, por muito tempo adormecida, acordasse de súbito, à vida de sacrifícios e provações.
Quer onde houvesse soluços e dores, chagas e lágrimas a suster, aflições a reprimir, ali estava ele apresentando os ombros para todas as cruzes, que os seus semelhantes não pudessem suster.
A sua velha túnica, de sarja grossa e sem dobras, não lhe pertencia mais do que ao primeiro mendigo que sentisse frio; o seu pão só lhe chegava à boca, depois de rejeitado pelos que já tinham matado a fome; a sua luz só alumiava o seu covil de santo, quando nenhum gemido suspirava na treva.
Para esse arrependido egresso, criado nas orgias do começo do século passado; para esse arrependido devasso, que se embriagava com os restos do incestuoso prazer do duque de Orléans, a febre do arrependimento converteu‑se em loucura, converteu‑se numa nevrose que o arrastava de joelhos, com o rosto na terra, a todos os delírios da fé, a todos os heroísmos da abnegação.
A peste de Marselha foi um dos mais brilhantes teatros para 0 seu desespero de ser santo. Como um verdadeiro revolucionário do bem, fez dos farrapos do seu burel uma bandeira de caridade e agitou‑a pelos alcouces abandonados, em que era vergonha entrar, ainda que fosse para socorrer os que morriam.
À última e mais leprosa das perdidas não negava sua boca o beijo da consolação, enviado por Deus aos desamparados pelos homens.
E assim, no fim de alguns anos de arrependimento, Ozéas ganhara reputação de santo; e, com efeito, se nenhum religioso até antes fora mais culpado, nenhum também levou tão longe o esforço da sua reabilitação.
Mas, apesar de tamanhas provações, Ozéas não se sentia purificado. Sua alma sangrava ainda, pedindo mais sacrifícios, e ele caía de joelhos, arranhando as carnes do peito com as unhas, e suplicando a Deus que lhe inspirasse um meio de resgatar‑se, completamente, aos olhos da sua própria consciência vergonhosa.
Que meio poderia ser esse que ele exigia de Deus?
Eis ao que nem o próprio Ozéas seria capaz de responder.
Todavia, não cessava de pedir ao senhor misericordioso que lhe mandasse dos céus uma luz guiadora do caminho da completa salvação, certo de que Deus, onipotente e compassivo, havia de achar, nos segredos de sua bondade, recursos para apagar aquela dor incurável e profunda.
Foi nessa conjuntura que ele uma vez de madrugada, saindo do seu convento para uma piedosa excursão, encontrou à porta do jardim uma pequena cesta, de onde um fraco e quase imperceptível vagido partia como de um berço.
Abaixou‑se logo, apoderou‑se da cesta, e verificou que dentro dela havia uma criança do sexo masculino.
Um enjeitado!
Tomou‑o nos braços.
Mas um enjeitado de quem?. . . Por aquelas alturas não lhe apontava a memória qualquer pessoa que fosse capaz desse crime.
Além disso, porque o depunham à porta de um mosteiro, frio lugar onde só havia alguns pobres religiosos sem recursos para nada?. . .
Era como se o lançassem ao surdo portão de um cemitério!
Qual seria a mães tão néscia, que, procurando passar seu filho às mãos de quem o pudesse fazer viver, fosse procurar um lugar onde eram crime a voz e o choro desses anjinhos da terra?...
Então uma estranha idéia acudiu ao espírito sobressaltado do infeliz frade.
Quem sabe, pensou ele; se esta inocente criatura, será um enviado de Deus?. . . Sim! Sim! bem pode ser o Senhor misericordioso, compenetrado da sinceridade do meu arrependimento e da amargura da minha dor, me enviasse dos céus este meio de resgate para minha alma! . . . Sim! Sim! eu, que não consegui ser um padre digno e puro; eu, a quem faltaram amparo e forças para lutar com as tentações mundanas, tenho aqui, nesta pequena porção de carne imaculada, o cabedal para fazer um sacerdote casto e sagrado, como eu devia ter sido e não fui!
E Ozéas como que se encontrava a si mesmo, encontrando aquela criatura angélica.
Era Deus, sem dúvida, que o restituía ao berço e ao seu supremo estado de pureza, para que ele começasse de novo a viver, armado, entretanto, para todas as lutas.
—Sim! Sim! exclamou ele erguendo nas mãos trêmulas a criancinha, e cobrindo‑lhe os pés de beijos e de lágrimas de alegria. Sim! Sim! Desta cera virgem poderia fazer um sacerdote digno de Deus! Obrigado, obrigado, meu Pai de bondade, que ouviste as minhas súplicas e me enviaste do teu peito de amor um meio de salvação!
E louco de contentamento, despiu sem hesitar o seu velho capote, envolveu nele a criança e correu à casa mais próxima, para pedir que a ela prestassem os primeiros socorros.
Logo que pôde, levou‑a à igreja, batizou‑a com o nome de Ângelo; depois tratou de descobrir uma mulher honesta, que se quisesse encarregar da aleitá‑la até a época competente.
E, quando o pequenino Ângelo pode enfim dispensar os cuidados da ama, Ozéas carregou com ele para o seu convento, e encerrou‑o misteriosamente numa cela ignorada e sombria.
A bem poucos dos seus confrades confiou o segredo do que ele chamava "a criação do Messias da sua alma". E, desde essa época, Ângelo viveu sem nunca sair do convento e nem sequer chegar a uma janela para ver a rua.
Ozéas foi o seu companheiro, e o seu guia, e o seu mestre, e o seu pai espiritual. Só o confiava a algum dos outros religiosos ou a algum professor do seminário, quando as exigências do ensino assim o determinavam.
O sigilo da existência e da criação de Ângelo no convento, não foi quebrado por nenhum dos frades que o conheciam. Uma cadeia de respeitoso interesse formou‑se em torno dessa criança, que todos eles acreditavam predestinada, pelos mistérios do céu, a cumprir na terra uma alta e sagrada missão.
Ângelo cresceu, pois, fechado na sua religiosa estufa, sem ter nem ao menos desconfiança do que se passava lá fora, nessa cidade do prazer e do vício. Cresceu casto como uma flor, que as abelhas e as borboletas não alcançam.
Apenas conhecia a religião e a Bíblia. Até aos vinte anos, fez todos os seus estudos e recebeu as ordens ao lado do pai espiritual. Mas tal era a confiança que o velho Ozéas tinha no seu discípulo, que não hesitou em apresentá‑lo para substituir La Rose no sermão de quinta‑feira santa na capela real.
Ângelo ia sair à rua pela primeira vez.
Virgindade no homem
Logo que Ozéas deixara a sombria cela do convento de S. Francisco de Paulo e a porta se fechara sobre ele silenciosamente, Ângelo, em obediência às suas ordens, ajoelhara‑se defronte do oratório e começara a rezar.
Na sua alma inocente não passava a idéia da responsabilidade que o esperava. Sem nunca ter saído à rua, sem conhecer Paris e os parisienses, não podia desconfiar sequer do que era nesse tempo um sermão pregado na capela real, defronte do rei e da corte.
Não sabia que nesse tempo, piedoso e devasso, fazia‑se da religião um prazer requintado, e que o púlpito era, como o palco, ou como o livro, ou como o salão e o álbum, um meio de exibições de talento esquisito e complicações de arte. Não sabia, o pobre Ângelo, que o pregador do que menos precisava, nesse bom tempo do estilo equilibrado em cinco palitos, era de ser sincero e convicto, mas sim de ter originalidade na maneira, graça na exposição da frase, elegância nos gestos e naturalidade galante nos soluços e nos gemidos de pecador.
Essa mistura do sagrado áspero com o profano macio, do prazer aveludado com a devoção capitosa, produziu as célebres festas híbridas, que então se organizavam em uma das salas das Tulherias durante a quaresma, e as quais deram gamenhamente, o nome de Concertos espirituais.
Luís XV gostava de presenciá‑las, sentado a um canto entre algumas formosas mulheres, e bebendo vinho da Síria, que era o seu vinho predileto. Pestanejava e sorria para todos os lados. Liam‑se versos ternos e religiosos, cantavam‑se o Miserere, o De profundis, o Stabat, e outras cousas tristes, mas tudo com muita graça e requebros faceiros.
Era o amor temperado com óleo cheiroso de Santa Luzia.
Havia sempre para estrear, no púlpito desses concertos, um ou mais jovens eclesiásticos, sempre moços bonitos, aos quais, durante o sermão, serviam água rosada e licor de violetas. E o que deles se exigia, era apenas voz doce, olhar meigo, dentes bem claros, lábios vermelhos, rendas alvíssimas na camisa, e mãos brancas de unhas limpas. Às vezes criava‑se uma bela reputação e fazia‑se uma bonita carreira, só com uma palavra feliz ou com um gemido suspirado com chiste em ocasião oportuna. O caso era que as gentis devotas se impressionassem. E só se falava à meia voz, só se namorava a meio sorriso e só se andava lentamente aos pulinhos, abafando os passos nos arminhosos tapetes a que Pompadour deu o seu nome.
Ângelo, coitado, nada conhecia disso nem por notícia sequer; como igualmente não conhecia o outro gênero de pregadores, não menos comum nesse tempo, o do pregador terrível, de pulso forte e cabeça dura, que ia para o púlpito de cacete escondido debaixo do capote, e cujos sermões eram por via de regra uma descarga política e uma tremenda descompostura, contra o partido dos Jansenistas ou contra o partido dos Molinistas, conforme a filiação do orador, e que, em geral, acabavam também por soluços e gemidos, mas estes agora bem sinceros e bem reais, e grossa pancadaria no átrio da igreja.
Até certa idade, Ângelo chegou a acreditar que o mundo se resumia no seu convento, e que a humanidade se compunha apenas daquela meia dúzia de frades, ingênuos e quase santos, que ele conhecia. Ozéas, com um cuidado enorme, um zelo de guarda do Paraíso, isolava‑o dos seminaristas e dos empregados do seminário, e lhe não deixava cair nas mãos a mais inofensiva página de qualquer livro que não fosse religioso.
E, no entanto, Ângelo era dotado de um poderoso talento de assimilação e devorava sofregamente tudo, bom ou mau, que lhe davam para ler. As matérias religiosas que plantaram no fundo do seu espírito, desabrocharam logo, produzindo uma intrincada floresta de filosofia teológica, que abismava aos próprios seus professores.
Aquela criança, diziam estes, estava destinada a fazer o verdadeiro renascimento da religião cristã.
E cresciam os desvelos em torno de Ângelo, orçando já pelo fanatismo. Não lhe permitiam olhar para o pátio do convento, onde havia uma criação de galinhas e coelhos. Receavam, e com razão, que o espetáculo dos instintos procriadores dos inocentes bichos despertasse no outro inocente idéias que a igreja reprovava. Escondiam‑lhe o próprio sol em dias de grande calor, como se a exibição daquela vida que se derramava sobre a terra para fecundar com a luz germinadora e benéfica, fosse bastante para acordar na carne pálida do seminarista a revolucionária centelha do amor.
Entretanto, Ângelo bem pouco se impressionava com essas cousas, e tinha para todas essas lubrificações com que a natureza estimula a vida, um profundo olhar de indiferença, como se todo ele estivesse perenemente voltado para a fria religião ideal e azul, em que os anjos, únicos que a povoam e habitam, não têm idade nem sexo.
Não era uma criatura humana, não era um moço que ia entrar na adolescência; era a sombra incolor de um obscuro beijo que se fizera carne, e que o crepúsculo da tarde, pedia‑lhe que o não deixasse corromper‑se à sensual e perturbadora luz do sol.
As vezes, ao cair da noite, quando a natureza parece abrir o peito, para chorar em gotas de orvalho as misteriosas dores do seu parto de todos os dias, ele o pálido enjeitado, que vivia à sombra das paredes sonolentas e úmidas de um claustro, saía a passear pelo maltratado jardim que havia nos fundos do convento. E aí, entre as cheirosas moitas das rosas silvestres, tépidas ainda do derradeiro sol que as dourara no último poente, o seu vulto triste e meigo transparecia, como um sonho de poeta ou um fugitivo devaneio de donzela.
Pobre Ângelo! De tudo que sua alma podia conceber, só uma cousa lhe não esconderam—a Bíblia. E era com o auxílio desse poema quente e cheiroso como os perfumes de Cedar, que ele, o infeliz, enchia de estrelas os seus devaneios de sonhador impúbere.
Nesses momentos, o canto que o seu coração cantava chorando, e chorando lhe fazia agitar da boca as pétalas trementes, era o Cântico dos Cânticos, o livro do poeta rei, amante de todas as mulheres formosas do Oriente.
Ironia dolorosa! Ângelo, o casto, arrebatava‑se nas asas da inspiração do poeta de mil amantes!
"Eu durmo e o meu coração vela; eis a voz do meu amado que bate, dizendo:—Abre‑me, irmã minha, amiga minha, pomba minha, imaculada minha; porque a minha cabeça está cheia de orvalho, e me estão correndo pelos anéis do cabelo as gotas da noite."
"Eu abri a minha porta ao meu amado, mas ele já se tinha ido, era já passado a outra parte. A minha alma se derreteu, assim que ele falou: busquei‑o, mas não o achei; chamei‑o, e ele me não respondeu."
E Ângelo, quando estes versetes lhe vinham ao espírito, misturados com os suspiros da vaga saudade, que ele mal definia e em que mal acreditava, caía em fundas cismas, para as quais só havia uma consolação: —escrever. Não versos, desses que o público exige dos poetas mundanos, porque Ângelo não conhecia regras de arte, mas lançava sobre o papel frases como as que lia no livro de Salomão, ao correr da pena, e impregnados da quente virgindade de sua alma.
Quem roubasse da escura cela as tiras de papel, esquecidas sobre a tosca mesa de pinho, leria nas trêmulas linhas, aí traçadas todas as noites com mão nervosa, estranhos pensamentos como os que foram o capítulo a seguir.
Vem! Que te chamo!
"Amado da minha alma, aponta‑me onde é que apascentas o teu gado, onde te encostas pelo meio‑dia, para que não entre eu a andar feito uma vagabunda atrás dos rebanhos dos teus companheiros.
"O meu amado é para mim como um ramilhete de mirra. Ele morrerá entre meus peitos.
"Meu amado, vem comigo pelos campos, dá‑me a tua mão; que eu perfume nela os meus cabelos e que eu sorva tremente o cheiro da tua boca, como a cabra montesa que morde os lírios da ladeira.
"Tu és belo e forte como o cedro, suave como a ribeira, e tua voz é como o gemido das pombas.
"As tuas faces têm toda a maravilha de um prado iluminado por dois sóis, e onde os meus beijos, como um rebanho, descansam à sombra dos teus cabelos.
"Vem, amado meu do meu coração, que eu por ti definho de amor e morro de tristeza.
"O amado do meu coração é bonito que nem essa cabra arisca, que grimpa à tardinha pelos escaldados outeiros sem relva, e que de noite e de manhã a gente não bispa mais. ele é como o veadinho branco, que corre mais depressa e se some, se lhe querem pôr a mão em cima. ele é como aquilo que nós mais queremos, e que não está dentro dos nossos braços e junto dos nossos lábios.
"Mas não, alma minha mentirosa, ei‑lo que ali está ele, todo amoroso e rubicundo, posto de pé por detrás da parede do meu quarto, olhando o meu leito pelas frestas da janela, chorando de amor e estendendo a vista dos seus olhos por entre as gelosias.
"Lavei os meus pés assentada no meu leito. Como os hei de sujar agora?
"O sândalo e a murta estão recendendo.
"Vem, amado de minha alma, as vinhas já puseram o primeiro cacho de seus frutos, e as moças de Jerusalém estão dormindo à sombra das parras, para sonhar com aqueles que as querem para amar.
"Eu só, amado das minhas entranhas; eu só, a mais mesquinha entre filhas de Jerusalém, não durmo o sono da noite, e estou à espera que a minha vinha amadureça e tome cor, para te puxar para meu lado e repartir contigo a minha uva doce.
"Virás, que te chamo com as minhas mãos, e te abro meus peitos.
"Tu és, amado de minha vida, o escolhido do meu coração. Tua cabeça é como a espiga de ouro que o sol beija de manhã, pensando que beija a mesma cabeça de seu filho, os teus cabelos são como as fibras que as palmeiras choram, quando lhe arrancam as pencas dos seus frutos que elas produziram. São leves, macios, correntes e ondulosos, são como os cabelos do milho doce, e mais doce que o mel gostoso da flor da banana.
"Eu te amo, porque tu és formoso. Mira‑te, tu, nos meus olhos amorosos, e verás se te mentem minhas palavras. Não me fujas como a ave que deseja a irmã sozinha no ninho, sem o companheiro para cobrir os ovos. Teu rebanho não se perderá na montanha, enquanto tu dormires com a cabeça entre meus peitos de amor.
"Vem, amado meu. As nossas noites serão como os regatos tranqüilos, em que se abrem os nenúfares, brancos e perfumados como sonhos de amor. Teus lábios serão dos meus lábios, teus cabelos serão dos meus cabelos, teu seio do meu seio, como a raiz é da terra, como a flor é da abelha. Vem, põe a cabeça em cima de mim e dorme o teu sono, que eu também dormirei, mas desfalecida de amor. Dá o teu último pensamento vivo para os meus lábios, para que eu o guarde dentro de mim, e te o restitua depois na tua boca. Fala‑me para dentro, e minha alma te ouvirá cativa e amorosa.
"Conjuro‑te, amado meu, que desças da montanha pelo teu pé e venhas até a mim, que te quero. Traze tu o teu rebanho branco, e iremos, nós juntos, apascentá‑lo muito longe pelas campinas, até que morra o sol e a noite chegue sacudindo os cabelos orvalhados de estrelas.
"Junta‑te comigo, que eu sou o mel de que teus lábios gostam. Bebe a doçura da minha boca, e tu me pedirás o favo inteiro.
"A asa procura a flor, porque a flor esconde o mel doce nos seus seios. Vem; vem e fecha nas tuas asas de sol as pétalas do meu desejo.
"Desce donde estiveres, vem, que te espero eu, sem poder fechar o meu tormento, enquanto não chegares para me amar.
"Mas quem és tu, amado de minha alma, que meus olhos te não distinguem por entre as sombras da minha vida, nem meu braço te alcança, quando de noite te busco nos meus sonhos?. . . Quem és tu, amada visão, que eu busco e que me acompanha?. . . Quem és tu, que te evoco e me não vales, quando todo meu desejo é que me desejes e me tenhas?
"Minha porta dorme tão aberta como meu peito. Meu leito não tem muros, e meus braços não se cruzarão para o teu encontro, posto sejas tu o senhor e eu escrava que te espera.
"Tu me reconhecerás na sombra, se chegares; basta que ponhas a mão sobre minha carne. E isso será um selo para que tu nunca mais me percas.
"Vem, amado do meu coração! Vem! Vem, que toda eu te quero!"
E, no entanto, Ângelo era um inocente, ou, pelo menos, nunca tinha visto uma mulher.
Triunfo
inconsciente
Dotado, como ficou dito, de grande atividade intelectual e poderoso talento de assimilação, Ângelo aos quinze anos já embasbacada os seus ingênuos professores, com as argúcias das suas réplicas e com os engenhosos comentários que fazia do Velho e do Novo Testamento.
Ozéas, cada vez mais profundamente convencido da procedência divina do seu pupilo, guardava‑o e escondia‑o afinal com o respeitoso carinho e desvelo com que se guarda uma relíquia consagrada.
E a crença de que Ângelo era um inspirado por Deus, foi ganhando o espírito de todos que com ele praticavam no convento.
Havia com efeito no ar daquele pobre adolescente prisioneiro de um claustro, alguma cousa que impressionava a quem o observasse de perto. Os seus grandes olhos azuis, muito escuros, quase negros, tinham uma híbrida expressão feita de inocência e perspicácia; eram vivos como os da águia, mas transparentes e doces como os de uma criança, e tinham, ao mesmo tempo que deixavam transluzir toda a virgindade daquela alma imaculada, súbitos clarões, Inteligentes, que denunciavam um espírito agudo e forte. Na suavidade das suas faces de moço, havia a sombra das duras penitências e das grandes vigílias místicas sobre as páginas do breviário, ou defronte do altar da Virgem Santíssima, mas havia também uma juvenil frescura de flor, dessas misteriosas e pálidas, que só à noite desabrocham e recendem. A sua boca imberbe era um conjunto fascinador de graça e de tristeza, seus lábios, um tanto cheios e sangüíneos, pareciam todavia talhados mais para os beijos de amor do que para o frouxo balbuciar das orações. Seus cabelos negros, crescidos à nazarena, como então usavam os religiosos de França, derramavam‑se‑lhe em fartos anéis sobre a brancura do pescoço e caíam‑lhe em trêmulas madeixas de lado a lado do rosto.
Devia ter sido um rapaz muito forte, se não fora a enervadora clausura a que o condenara seu infeliz destino. Era de natural esbelto e airoso, tinha os dentes brancos e rijos, o queixo enérgico, o nariz feito de uma só linha, a fronte alta e severa.
As macerações dos jejuns e das ásperas disciplinas não conseguiram desfibrar‑lhe de todo a sólida compleição com que a natureza o dotara. Apesar de tudo, era ainda, nos seus cândidos vinte anos, uma garbosa e gentil figura, que havia fatalmente de impressionar às damas sensuais da corte de Luís XV.
Efetivamente assim foi.
Conduzido até ao púlpito por seu pai espiritual, Ângelo, mal se mostrou e percorreu com os olhos inexperientes o auditório que o aguardava ansioso, um súbito rumor de simpatia percorreu toda a igreja. As mulheres, instaladas nas tribunas, alongaram o pescoço para o ver melhor. O rei sorriu interessado, e logo toda a sua corte sorriu também.
A capela, completamente cheia, palpitava de curiosidade. Paris elegante estava todo ali, entre aquelas bonitas paredes de mármore cor-de-rosa, guarnecida de florões e filetes de ouro rebrilhante. Sentia‑se o tilintar dos pingentes de cristal dos imensos lustres de mil velas, e sentia‑se por entre o farfalhar dos veludos e das sedas, o fremir dos leques de tartaruga e madrepérola, suavemente agitados contra os adereços preciosos. O cheiro sagrado da mirra e do incenso confundia‑se no espaço com os voluptuosos perfumes do toucador.
Ângelo, imóvel, de pé, mãos pousadas no retordo do púlpito, olhos postos no alto e lábios entreabertos, fazia a sua oração preparadora, inteiramente alheio a toda aquela luzida e refulgente corte que o cercava.
Compreendia‑se que sua alma, arrebatada no enlevo da prece, vagava naquele instante pelos infinitos páramos do céu.
Toda a sua fé, toda a sinceridade das suas crenças e toda a pureza do seu corpo e do seu espírito, vieram‑lhe ao semblante naquele momento de profundo êxtase.
Parecia um arcanjo em dulcíssimo idílio com a Divindade. Dir‑se‑ia que ele, de um instante para outro, ia desprender‑se da terra e partir lentamente para Deus, como a própria suplica que lhe agitava as rosas da boca e se evaporava como um perfume.
Quando as suas primeiras palavras saíram-lhe do coração, num doce murmúrio de voz angélica, houve em todas aquelas pobres criaturas, estafadas pelo vício e pela libertinagem, uma inesperada comoção que lhes umedecia os olhos.
E ele, sempre arrebatado no vôo do seu enlevo religioso, continuava a falar, como se estivesse sonhando, cercado de uma nuvem de anjos.
A sua voz, de cristal e ouro, virgem e sonora, enchia o recinto, produzindo naquele extático e maravilhado auditório o efeito de uma estranha música desconhecida, que baixasse dos céus para acordar‑lhe, no corrompido e morto coração, uma idéia generosa e consoladora.
Foi geral e profunda a comoção. As mulheres arfavam, sem despregar os olhos da encantadora figura de Ângelo. O rei deixara pender a cabeça sobre o peito e cismava, possuído de uma expressão de bondade, que até aí ninguém lhe tinha jamais visto. A condessa de Pampadour, debruçada no seu genuflexório de veludo carmesim, tinha a fisionomia paralisada e parecia orar contritamente.
Entretanto, Ângelo falava sempre, e sempre alheio ao que o cercava. Suas frases vinham‑lhe aos lábios naturalmente, sem que houvesse nele a mais ligeira preocupação de agradar ao público ou armar ao efeito. Era nada mais do que a confissão do seu entranhado amor pelo mártir do Gólgota, um descrever de dores cruciantes, que ele sofria dizendo‑as ali, como se naquela ocasião as experimentasse possuído de uma revolta de arcanjo fiel e cheio de piedoso entusiasmo por esse Deus humilde, que abandonou o seu trono celeste para vir padecer, na terra ingrata, como o derradeiro dos homens.
Falava de Jesus como se falasse de um desgraçado companheiro, a quem arrancaram de seus braços para levá‑lo de rastos por essas ruas, cuspindo‑lhe sobre as feridas, rasgando‑lhe as carnes nas pedras do caminho, e matando‑o afinal num poste infame, onde se justiçaram os ladrões e os assassinos.
A sua dor era sincera, e por isso se apoderava do coração de todos que o escutavam; tanto que Ângelo, ao terminar a prédica, lançando o derradeiro lamento de desespero pela morte do Redentor, e pedindo a Deus que o fulminasse também naquele mesmo instante, para nunca mais ter olhos, nem boca, nem ouvidos para este mundo de maldades, viu erguerem‑se todos em volta dele e um grito de entusiasmo acompanhar as suas últimas palavras, como se de repente acordassem em sobressaltos, depois da embriaguez em que os lançara aquela estranha e capitosa eloqüência.
Mas, antes que tivessem tempo de apoderar‑se dele, e antes que as damas descessem das tribunas para felicitá‑lo, já frei Ozéas, cioso do seu tesouro, arrastava‑o pelos corredores da sacristia e metia‑se com ele no carro, mandando tocar a toda pressa para o convento.
Quando o rei lhe mandou dizer pelo seu primeiro criado particular, o Sr. de Laborde, que viesse à sua presença para falar‑lhe, já a sege de praça em que ele ia com o frade, havia desaparecido muito tempo antes.
Um homem paro discutido por mulheres
O sermão de Ângelo foi um verdadeiro acontecimento, que logo se apoderou da curiosidade de Paris inteiro.
Por toda a parte se falava em tal, e se comentava aquele pálido e meigo seminarista, que vinha, da sombra silenciosa de um pobre mosteiro, abalar o coração de toda a corte de Luís XV.
Discutiam‑lhe os olhos, a boca, os cabelos. Falava‑se do seu ar angélico, da sua encantadora expressão de santo inspirado, e da maravilhosa doçura da sua voz.
Formaram‑se logo mil lendas a respeito dele, e sabia‑se que o rei, depois de lhe oferecer um lagar na capela real, o que foi imediatamente recusado pelo velho Ozéas, propôs‑se a assistir à sua missa nova, graça que não tinha até aí concedido a nenhum outro iniciado, e prometeu também presenteá‑lo com as vestes e paramentos que o seminarista tinha de pôr nesse dia, o que equivalia a dizer que Ângelo iria ordenar‑se cercado de todos os esplendores.
E começaram, tanto os que presenciaram o famoso sermão de quinta‑feira santa, como os que apenas ouviram falar dele com insistência, a esperar o dia da iniciação de Ângelo, para ter, ao menos, o prazer de ver esse imberbe e afortunado pregador, que assim abalava escandalosamente o alto e baixo público de Paris.
Ângelo era o assunto de todas as palestras da rua e das salas. No teatrinho que o duque de Orléans tinha no seu palácio de Bagnolet, célebre pelas cenas licenciosas que aí se representavam, tratava‑se já de fazer subir à ribalta uma peça com o nome dele, na qual o duque desempenharia um dos principais papéis.
No salão teatral da duquesa de Villeroi, onde o rei da Dinamarca viera uma vez para ouvir declamar o popularíssimo Le Kain e MºClairon, pensava‑se também em montar uma comédia de assunto sacro, cuja ação se passava na capela real, e cujo protagonista era um pregador de vinte anos.
E, assim, no teatro do barão de Esclapon, no da duquesa de Mazarin, no do Sr. de Magnaville, no do príncipe de Condé, no da Guimard, e nas salas alegres de Sofia Arnoud, pontos esses de reunião em que melhor se fazia espírito e, com mais graça e mais picante maldade, se discutiam as novidades e os escândalos do dia, era ainda Ângelo o assunto da palestra e o objeto de mil epigramas, sátiras e trocadilhos.
Mas onde incontestavelmente o assunto despertou maior escândalo, foi no salão da condessa Alzira, bela, cínica e espirituosa cortesã, célebre por ser nessa época a mulher mais insensível e mais fria de Paris. Juravam todos que a formosa condessa jamais sentira por ninguém a menor partícula de amor, e que o seu melhor momento de alegria era quando, por causa dela, algum dos seus inúmeros apaixonados caía morto em duelo ou metia uma bala nos miolos.
Começando pelo rei, que fora o seu primeiro amante, pertencera ela depois simultaneamente, ora mais ora menos tempo, a toda a gente da corte capaz de manter mulheres caras.
Tinha uma virtude: a ninguém enganava, porque, não só confessava francamente ao seu dono da ocasião toda a sua insensibilidade, fosse lá por quem fosse, como não repartia com um segundo aquilo que um primeiro houvesse arrematado já e pago à vista.
Esta sinceridade original em uma pessoa das suas condições, valeu‑lhe a estima de alguns homens de espírito. De sorte que as quintas‑feiras de Alzira eram freqüentadas por boa roda de rapazes, e a gente se não aborrecia entre as quatro paredes das suas riquíssimas salas.
Como fiéis, reuniam‑se lá todas as semanas suas amigas, a cantora Sofia Verriére, Gabriela Vanguyon, Margarida Duclos, o conde de Saint‑Malô, Artur Bouvier, e, principal e invariavelmente, o seu velho amigo, o único homem para quem Alzira tinha às vezes um sorriso de amizade, o Dr. Cobalt, médico de nomeada, que fazia algum ruído em volta do próprio nome com os seus estudos sobre o materialismo, então apenas nascente em França.
E as reuniões eram boas quase sempre. Na imediata ao sermão de quinta‑feira santa, era Ângelo o assunto forçado em todos os grupos.
—Um triunfo! exclamava Sofia; um verdadeiro triunfo! Em alguns dias o tal discípulo do velho Ozéas tornou‑se quase tão popular como a Pompadour!
—É exato! confirmou o conde de Saint‑Malô; depois de Bossuet, não se ouviu em Paris uma prédica tão notável. Nem as melhores de La Rose!
—Ah! interveio Artur Bouvier; o sermão de quinta‑feira foi com efeito uma obra‑prima no seu gênero! Vi desfazerem‑se em pranto criaturas, a quem eu supunha fosse impossível arrancar uma lágrima!
—Pois se até a Guimard chorou!. . . disse Margarida, mostrando os seus dentes grandes como os de uma inglesa.
Bouvier replicou:
—A Guimard não admira, é uma mulher! Feia é verdade; magríssima, não há dúvida; sarapintado de marcas de bexiga, ninguém o nega; mas afinal é uma mulher! Comover, porém, o duque de Fronsac e o marquês de Sade até à lágrima. . . isso é que é verdadeiramente extraordinário!. . .
—Pois esses dois monstros choraram?... perguntou Gabriela, afetando grande surpresa. Oh! como hoje em dia a lágrima está ao alcance de todas as bolsas! . . .
—Pois choraram. . . insistiu Bouvier. Tanto que a propósito Sofia Arnoud disse que o jovem pregador, fazendo brotar água de tais rochedos, conseguira maior milagre do que o seu legendário colega Moisés.
—Ah! suspirou Margarida. Não há dúvida que o talento sabe fazer todos os milagres!. . .
O Dr. Cobalt, que a um canto da sala conversava com Alzira, mas aplicava meio ouvido à palestra dos outros, exclamou de lá:
—Não! não! perdão! não foi o talento que fez o milagre, minhas gentis amigas; não foi o talento, nem tampouco a ilustração teológico do jovem seminarista, o que tão profundamente impressionou Paris...
Estas palavras do médico abriram na sala um silêncio de surpresa e indignação.
—Como? Pois o Dr. Cobalt tinha a coragem de negar talento ao pregador de quinta‑feira santa? . . . Oh!
O conde de Saint‑Malô aprumou‑se ainda mais sob os bofes bordados da sua camisa de rendas. Bouvier cerrara os lábios revoltado, e Gabriela assentara sobre o doutor o seu lorgnon de tartaruga.
—Negar talento ao pobre moço!. . . Com efeito!
Cobalt sorriu, levantou‑se, e, indo colocar‑se entre eles, respondeu com a sua fleuma habitual, afagando o ventre:
—Sim senhor, sim senhor; não foi o talento, nem foi a ilustração do seminarista, o que impressionou Paris inteiro. Há por aqui milhares de teólogos, muito mais fortes na matéria e mais oradores do que Ângelo, que não conseguem abalar um só dos seus ouvintes.
—Então o que é que foi?... interrogou a formosa Gabriela, sem abaixar o lorgnon.
—Uma cousa muito simples, minha querida senhora, uma cousa extremamente simples. . .
Todos se aproximaram dele, vencidos pela curiosidade.
—Que foi — Que foi?—Que foi então?. . .
—A sinceridade, respondeu o médico.
—A sinceridade?. . . exclamaram em coro.
—Sim, meus caros amigos. A verdadeira convicção nas suas crenças, o verdadeiro sentimento do que ele afirmou no púlpito. Foi só daí que lhe veio aquela poderosa e dominadora eloqüência. Ângelo falou mais com o coração do que com a cabeça, e só por isso Paris o ouviu tão comovido.
E depois de uma pausa:—Sim, porque é preciso confessarmos uma cousa, meus idolatrados amigos: os parisienses de hoje dispõem de muito espírito e de muita enciclopédia, mas, em questão de sentimento e de sinceridade. . . são de uma pobreza franciscana.
—Não é tanto assim!. . . arriscou Artur.
—Nós, os parisienses de hoje, prosseguiu o médico, somos muito corteses, muito engraçados, sim senhor, mas. . . falsos e hipócritas como ninguém. . .
—Ora essa, doutor!. . . resmungou o conde com um trejeito de ressentimento.
Cobalt acrescentou, torcendo para baixo a linha fria da sua boca barbeada:
— Paris admirou em Ângelo o que Paris já não possui e só por isso considera extraordinário. Foi o assombro do homem desfibrado e gasto, produzido pelo homem ainda forte e perfeito. Admirou a fresca e delicada flor do sentimento, que ele supunha há muito tempo extinta; admirou esse estranho Ângelo como se admirasse uma raridade preciosa, uma das nossas armaduras dos tempos gauleses por exemplo.
—Não sou dessa opinião! opôs Gabriela, voltando o rosto.
Alzira, que não deixara o canto do seu divã, ia cada vez mais se mostrando empenhada no que dizia o médico. Agora tinha o cotovelo fincado na almofada, a mão amparando o rosto, e os olhos espetados no teto.
—Era muito natural, continuou aquele; muitíssimo natural que, em meio de uma sociedade devassa, em meio da França da Pompadour, aquele verbo sincero, ingênuo, convicto e apaixonado, a todos fulminasse, como se fora ele raios de luz vingadora enviada diretamente por Deus. Paris, meio eletrizado de Champagne, havia adormecido embalado por uma canção de Bouflers, guinchada por qualquer espalier do teatro de Audinot, e acordou estremunhado no dia seguinte à voz cristalina e matinal de uma criança, que vinha repetir em linguagem bíblica o que há quase dezoito séculos apregoavam em Galiléla os discípulos de Cristo. É natural que se comovesse... e foi isso justamente o que sucedeu. Paris, que há tanto tempo só sabe fazer uma cousa bem feita e com graça,—a orgia,—ficou embasbacado defronte da casta e simples palavra de um pobre seminarista sem pretensões. Nada mais justo! Mas o que lhes afianço, meus amigos, é que, se o simplório do padreca visasse a qualquer efeito; se desconfiasse, ao menos, da impressão que ia produzir no público, a ninguém teria comovido. Se ele conhecesse a sociedade que hoje o aclama; se ele tivesse tido a menor aspiração de glória; se ele não fosse, enfim, coitado! mais inocente e mais puro do que a menina mais inocente de Paris, juro‑lhe que não conseguiria o triunfo que obteve. O choque foi grande, porque foi inesperado. Os parisienses morrem pelo imprevisto e pela novidade; e ninguém, hoje em dia, lhes poderia proporcionar melhor novidade, do que o singularíssimo caso de um rapaz de vinte anos perfeitamente imaculado e puro!
—Mas, doutor, ele será com efeito tão puro como se diz por aí?... perguntou Gabriela em ar de riso. Não creio!
—O que há de mais puro, confirmou o médico.
—Um homem virgem em pleno século dezoito! . . . Qual! disse Sofia Verrière, soltando uma risada. Também não acredito!
—Nem eu! reforçou Margarida, sem rir.
—O Dr. Cobalt exagera com certeza. . . observou Gabriela.
—Não exagero, tornou o materialista; e digo mais, que ele nenhum mérito revela com semelhante raridade, porque tal pureza não é obra sua, mas sim de frei Ozéas.
—Mas, afinal, perguntou Alzira, saindo da sua abstração e encaminhando‑se para o doutor; afinal, qual dessas mil e uma lendas, que correm por aí a respeito de Ângelo, é a verdadeira?
—Quais sejam as mil e uma, não sei. . . disse o médico, sentando‑se no meio do grupo; mas a verdadeira é esta que vou contar:
—Pois venha a lenda!
—Venha a lenda!
—Atenção!
Frágil como uma lágrima!
O Dr. Cobalt. com o espírito alegre de que era dotado e com a sua pitoresca e original maneira de contar as cousas, narrou às damas e cavalheiros que se achavam no palpitante salão da condessa Alzira, a curiosa e singela história de Ângelo.
Foi escutado com o máximo interesse. A formosa e fria dona da casa, essa mulher que diziam de coração surdo a todas as ternuras e de olhos secos e fechados para todas as dores, era todavia a que se mostrava presa dos lábios do narrador, e a que mais avidamente lhe bebia as palavras.
—Ozéas, disse o médico, concluindo, queria enfim fazer um padre perfeito, para poder dar alguém por si, quando, despido da traiçoeira carne, tivesse, como sacerdote, de prestar contas do que praticara nesta vida. Queria fazer um grande coração, muito forte e muito amoroso; amoroso para Deus, forte para o mundo. Queria que o seu discípulo amado fosse uma torre de cristal, invulnerável e incorruptível, mas tão alta e tão sólida que ligasse a terra ao céu e o homem a Deus!
Dito isto, calou‑se por um instante; depois sorriu para o atento grupo que o cercava silencioso, e acrescentou, pondo‑se de pé e abrindo os braços, na galante reverência de uma quase mesura:
— Ora aí tem, meus adoráveis amigos, tudo o que sei de fonte pura a respeito do singular moço, que tão formidável impressão deixou sobre Paris na quinta‑feira santa.
Alzira quebrou o seu silencio para perguntar, com os olhos fitos no médico:
—E ele, antes de quinta‑feira, nunca então havia saído à rua?. . .
—Nunca, afirmou aquele. Fez todos os seus estudos e recebeu as ordens sem arredar pé do convento, ao qual o seminário é anexo. Seus dias, desde a mais tenra idade, foram todos, dedicados de corpo e alma aos livros santos e aos misteres da igreja.
—Então é um ente perfeitamente puro? interrogou ela.
—Puro como um anjo.
—É extraordinário! exclamou Margarida, sem poder conter o seu entusiasmo.
—É inacreditável! disse Sofia, meneando a cabeça com um gesto de incredulidade.
Gabriela Vanguyon soltou um suspiro e deixou escapar esta frase, que fez rir a sociedade:
—Um homem puro em Paris! A dois passas de nós!. . .
E o Dr. Cobalt, que saboreava o efeito da notícia da castidade de Ângelo sobre aquelas mulheres, cujo olfato já de há muito se tinha esquecido do delicioso perfume da flor de laranjeira, acrescentou, para alfinetar‑lhes as fibras da admiração:
—Um homem puríssimo, virginal! Imaculado como a Virgem Santíssima! Um homem completamente inocente, sem a menor idéia do que seja sociedade, nem paixões mundanas, nem sexos, nem. . .
—Nem sexos?! inquiriu Gabriela, escancarando os olhos, sinceramente pasmada.
—Nem nada! nada! nada! respondeu o médico, sorrindo e apertando os lábios. Nada, minhas adoráveis pecadoras! Mas o que se chama "nada"!
— Estudava e lia muito, não é verdade, Dr. Cobalt?. . . quis saber Margarida Duclos.
—Sim, mas só cousas sagradas. . . biografias de santos, anedotas religiosas e dissertações espirituais. . . Ora, sucedeu por acaso que essa mísera criança, que o mesmo acaso atirou às mãos do padre Ozéas. dispusesse das mais valentes faculdades mentais, e, não conhecendo ela outro meio além daquele em que vegetou, e, não tendo outro pasto para seu espírito além da doutrina cristã e da manhosa teologia, deu‑se todo inteiro a estas duas estéreis e sedutores senhoras, e no fim de contas apresentou escandalosamente aquele imprevisto tipo, que fez as nossas delícias da corte na quinta‑feira passada.
—Ah! disse o conde de Saint‑Malô; não há dúvida, porém, de que ele tem muito talento oratório; é uma capacidade em matéria de religião. . .
—Qual! desdisse o materialista em ar de pouca importância. Acho que aquele pobre moço é mais uma inteligência aproveitável que se perde, e mais um infeliz doente que ganham os hospitais!
—E por quê?... exclamou Alzira vivamente.
—Ora! desdenhou aquele. Porque toda a sua ciência, se é que ele a tem, baseia‑se nos mais falsos princípios. A sua filosofia é bonita, não há dúvida, mas completamente inútil. Não passará nunca de um metafísico. Construiu o seu edifício intelectual sobre areia movediça; e no dia em que o primeiro sopro quente de vida real cair‑lhe em cima, lá se irá por terra a igrejinha! No dia em que a natureza, indefectível nas suas leis, o chamar friamente à verdade das cousas e exigir que ele cumpra com o seu destino fisiológico de homem, o seu próprio talento há de revolucionar‑se com o seu sangue, e ele terá de abrir guerra aos falsos e arbitrários princípios em que o educaram. E então, o desespero e a decepção daquela pobre vítima do visionário Ozéas. serão tamanhos e tão fortes, que o desgraçado talvez não tenha forças para resistir ao golpe!
Alzira estremeceu.
—Infeliz. . . balbuciou ela.
Artur Bouvier tinha‑se aproximado do Dr. Cobalt, e disse‑lhe pousando‑lhe a mão no ombro:
—Pode ficar tranqüilo, meu amigo, que o inocente Ângelo não conservará por muito tempo as suas penugens de anjo. A questão foi pôr o nariz à primeira vez fora do convento, ainda que para pregar sermão; respirou este ar de Paris, está pronto! Um átomo desta complicada atmosfera, composta da exalação de todos os luxos e de todas as misérias, de todas as febres e de todas as paixões, é o bastante para revolucionar‑lhe o espírito e corromper‑lhe o corpo até à medula. Além de que, o rei, com certeza, já o tem de olho, e não deixara escapar uma jóia tão rara; é natural que a cobice para a sua corte. Não dou muito tempo para vermos o tal santinho de olhos bonitos entrando para o quadro da capela real, com uma boa sinecura e um bom ordenado que lhe chegue para ter carruagem e para pagar uma gentil preceptora, encarregada de completar‑lhe a educação. E juro‑lhe que essa terá tanta paciência e tanta solicitude, quanta teve o santarrão do velho Ozéas. mas para lhe ensinar aquilo justamente que este lhe não quis velar. . .
—E não será difícil encontrar quem se queira encarregar de completar‑lhe a educação.. observou Sofia; porque, segundo a opinião geral, o tal anjo de pureza é notavelmente simpático. . .
—Sim, tornou Cobalt, mas para isso era preciso que o "Santarrão", como disse aqui o nosso Bouvier, não estivesse de olhos bem abertos.
—Ora! opôs Margarida por detrás do seu leque; o velho Ozéas tem mais de setenta anos! Já deve estar com a vista curta. . .
—E as pernas trôpegas. . . acrescentou Gabriela.
—E não viverá eternamente. . . completou Sofia. Se o santinho não tiver por si outra guarda, pode ir desde já rezando por alma da sua virginal capela!. . .
—Sim! apoiou o conde. Não há dúvida que está aí, está cantando a primeira missa e entrando logo em seguida para a capela real. E há de fazer carreira!
—Pois engana‑se, caro conde, acudiu o doutor; engana‑se redondamente. Ângelo não entrará para o quadro da capela real, posto que o rei já o convidasse. O velho Ozéas. tenciona carregar com ele para Roma, depois para Jerusalém, com o fim de alargar‑lhe quanto possível o cabedal das suas luzes; e, quando o rapaz estiver bem homem, bem forte, completamente desenvolvido, então o velho Ozéas o atirará sobre Paris, opondo o discípulo como um terrível protesto vivo contra a grande e desenfreada decadência moral dos nossos tempos. Conta que a luta se travará um dia afinal, tremenda e sem tréguas. De um lado, o invencível apóstolo, fechado na armadura da sua virtude e armado até aos dentes com a sua sabedoria divina; do outro lado, Paris, Paris friamente inabalável nos seus vícios e na sua libertinagem, Paris crápula, Paris abjeção, Paris lodo!
—Ah! essa luta há de ser fatal! disse Artur Bouvier no meio do silencio dos outros.
—Não! acrescentou o materialista, perdendo por um instante a sua fleuma natural e deixando escapar dos olhos uma estranha cintilação, que lhe transformou o ar bondoso da fisionomia. Não há de ser com súplicas e sermões que a França se resgatará, mas a metralha, a canhão e a ponta de baionetas!
—A sangue?! exclamou o conde.
—Sim, a sangue. . . confirmou o médico, sacudindo a cabeça.
E calaram‑se.
O sorriso havia desaparecido de todos os lábios; as mulheres tinham desmaiado de cor ligeiramente. Cobalt acrescentou em voz cava, como se falasse consigo mesmo:
—O que talvez não esteja longe!. . .
E um indeciso sobressalto agitou‑lhes o sangue e oprimiu‑lhes vagamente o coração, nem que naquele momento entrasse ali, como um sopro pressagio, agitando as cortinas da sala e empalidecendo a luz das velas, um clarão vermelho vindo das bandas setentrionais da América.
Era o anélito da revolução que se aproximava lentamente da França.
Se prestassem ouvidos, quem sabe? talvez escutassem um surdo ruído subterrâneo: Diderot e d'Alembert abriram já a sua mina por debaixo da terra, para depois Voltaire lançar‑lhe fogo.
Só Alzira não parecia sobressaltada. Encaminhando‑se para o Dr. Cobalt, tomou‑o pelo braço, afastou‑o para um canto da sala e perguntou‑lhe, reclinando no ombro dele a sua formosa cabeça:
—Já sabe qual é o dia marcado para a missa nova do padre Ângelo?. . .
— Segunda‑feira.
—Onde?
—Em Notre‑Dame.
—Quer ir comigo?
— Com mil desejos, minha encantadora amiga.
— Obrigada. Iremos juntos.
Fulminação
No dia marcado para a missa nova de Ângelo, a catedral de Paris, onde devia ela efetuar‑se, começou desde muito cedo, a encher‑se de gente de todas as classes, desde a mais alta até à mais baixa camada social.
Iria o rei, e com ele lá estaria, sem dúvida, a corte em peso. A corte arrastaria o que de mais brilhante houvesse no alegre círculo das loureiras; estas, por sua vez, chamariam atrás de si um mundo de namorados, de poetas, de artistas e folgazões, aos quais acompanharia espontâneo o povo, sempre curioso e ávido de festas.
Num dos longos corredores laterais da sacristia, corredor abobadado e feito todo de pedra, o Dr. Cobalt conversava tranqüilamente com um padre velho chamado Azarias, e com um sacristão que se mostrava muito entusiasmado com a escandalosa e original fortuna do seminarista.
O médico não tinha perdido a sua calma habitual; dir‑se‑ia que ele estava ali mais para observar do que para se divertir. Com os seus frios lábios sempre contraídos, parecia abstrato e afagava o queixo escanhoado, cheirando de vez em quando uma pitada. O sacristão, esse não ficava quieto um só instante, ia e vinha de carreira, furando por toda a parte, e procurando saber quem estava na igreja.
—Chih! exclamava ele esfregando as mãos defronte o padre Azarias. Que furor! Que furor! Não imaginam que de gente cada vez mais chega, para assistir à missa nova do discípulo de frei Ozéas! Já vi a Sr.a marquesa de Vandenesse e a sua encantadora irmã: a Sr.a De Conti, a Sr.a condessa de Laranguais, de quem dizem que o rei. . .
E interrompeu‑se para declarar, dando um salto e apontando para uma das portas por onde se via quem chegava:
—Olhem! Olhem! ali vai o poeta Bouflers!. . . vai com o conde de Saint‑Malo e com o cavalheiro Artur Bouvier. Agora entrou a Sra. marquesa de Tourneles!
—Ora! disse Azarias. Pois se até a rainha, que agora pouco sai à rua, aposto que há de vir!. . .
O sacristão, depois de novas carreiras e novo esfregar de mãos, veio segredar quase ao ouvido do padre:
—E veio também, reverendo, o que há de mais espaventoso entre o mulherio parisiense!. . .
—Ó maroto! resmungou o velho sacerdote. Alguém aqui te perguntou por isso? Anda! Sai de junto de mim, tinhoso!
O sacristão voltou‑se então para o médico, e disse, contando pelos dedos:
—Está aí a falada Dutê, com o seu eterno vestido cor-de-rosa e com o seu atual amante, o duque de Durfort! Está aí Sofia Arnould com o seu cãozinho— o duque de Chartres!
—Não te calarás?! bradou o padre velho, tornando‑se vermelho.
O sacristão não fez caso e continuou, dirigindo‑se ao médico, como se esse lhe desse atenção:
—Vieram também as Barrière, com as quais confesso que embirro solenemente, a Dervieux, de quem eu cada vez mais gosto, a Guimard, a Cleofile, e, mais bela que todas, mais sedutora e mais diabólica, a célebre condessa Alzira, a mulher mais insensível de Paris! veio com o seu amante destes últimos tempos, o marquês de Florans!
—liste sacristão é entendido no gênero!... Observou o materialista a rir‑se.
O padre resmungou, em resposta, coçando a calva:
—Ah! Paris! Paris das Pompadours!...
—Também acaba de chegar! exclamou o endemoninhado sacristão. Está na primeira tribuna da esquerda, com o príncipe de Henin e o conde de Aranda.
O velho tornou a coçar a cabeça e disse com azedume.
—Não sei que tem a cheirar na casa de Deus semelhante gente!... Mas que quer? Fizeram desta missa um divertimento! O culpado é o rei. Aposto que está aí também o duque de Fronsac, esse maldito libertino, que herdou todos os vícios de seu pai, o cardeal de Richelieu, sem herdar nenhuma das virtudes! Vem ao faro das aventuras, o desavergonhado!
—E o que aí está de homens ilustres. . . observou Cobalt ao ouvido do padre. Já avistei Favart, Gentil Bernard, Condorcet, Luchot, Fréron, d'Alembert, Diderot, Beaumarchais, Mali, Lavoisier...
— Este seminarista, declarou o outro, é com efeito de uma fortuna inacreditável! Creia, meu doutor Cobalt, que nunca vi tanta gente boa reunida numa igreja para ouvir missa! E uma missa nova! É extraordinário!
Mas Ângelo nesse momento saltava do carro para entrar com Ozéas na porta lateral da sacristia, e um rumor geral se levantava provocado pela sua chegada.
O Dr. Cobalt afastou‑se de carreira, a ver se arranjava um lugar na capela, em que devia ser a iniciação do adorado presbítero.
A capela, suntuosamente preparada para a cerimônia, refulgia, fulgurando de luzes e de ouro, de alvas rendas preciosas, brilhantes colgaduras de damasco e riquíssimas alfaias de mil cores.
Grande esplendor! Grande riqueza! Grande deslumbramento!
O altar‑mor, onde Ângelo ia celebrar, parecia sair de dentro de um imenso ramalhete, tão grande era a profusão de rosas, que as damas lançavam nos seus degraus à medida que iam chegando.
As tribunas regurgitavam de mulheres luxuosamente vestidas, e venustamente decotadas à moda caprichosa do tempo. Viam‑se formidáveis penteados, em que cintilavam diamantes por entre pérolas e plumas de cristal finíssimo.
Legros, então o mais querido entre os mil e duzentos cabeleireiros do bom‑tom, passara três noites em claro a aviar toucados, sem conceder mais de dez minutos a nenhuma cabeça, e ocupando sob suas ordens, naqueles últimos dias, mais de quinhentos ajudantes.
E toda aquela gamenha gente, com as suas fantasiosas roupas de sedas multicores; as mulheres de saia e panier à Pompadour; os homens de casaca à la Ramponneau, com as suas cabeleiras empoladas, de três e quatro canudos, à la Sartines, grandes bofes de cambraia, chapéu de três bicos debaixo do braço e florete à cinta; toda essa gente, aglomerada, sussurrante e irrequieta, apresentava, no interior daquela austera e formosa catedral, o folião e brilhante aspecto de um luxuoso carnaval da corte.
Conversava‑se e ria‑se.
Mas, de repente, calaram‑se todos e todos se agitaram. Os que estavam assentados puseram‑se rápido de pé.
Era o rei que chegava, acompanhado por sua pomposa comitiva.
Com um gesto frio e distraído Luís XV fez um ligeiro cumprimento de cabeça, e deixou‑se cair na cadeira à frente da real tribuna, cruzando as pernas negligentemente e bocejando de tédio.
O olhar que ele lançou para os sorrisos e para as reverências, que de todos os lados 0 recebiam, foi um pálido olhar de desdém e cansaço. A ceia da véspera devia ter sido prolongada.
Ouviram‑se, então, do lado do coro, as primeiras notas, severas e plangentes, do órgão.
Ia começar a missa.
Algumas pessoas preparavam‑se já para a contrição. Muitos ajoelhavam, de mãos postas e cabeça baixa. O silencio estendia‑se respeitoso. Vieram do alto vozes de cantores, e o vermelho cabido respondeu cá de baixo, também cantando, junto às suas estreitas cadeiras de alto espaldar de madeira negra.
Ângelo, ricamente paramentado com as vestes talares com que o presenteara o rei, tinha chegado ao altar, e, dentre uma nuvem de incenso, erguia‑se no êxtase da sua oração, com os braços abertos, os olhos postos na doce imagem de Cristo crucificado. Estava belo como um jovem Deus!
Assim, nos seus suntuosos damascos bordados, parecia um anjo todo vestido de ouro. E o seu formoso rosto era bem o rosto de marfim, de que falava na Bíblia a triste e voluptuosa filha de Jerusalém, decantando o seu amado.
Ozéas servia‑lhe de acólito. E a sua curva figura, detrás daquele moço, lembrava, no trêmulo arrebatamento da contrição, o vulto de um velho rei louro, irmão de Lear, guardando com os olhos ansiosos o seu lindo príncipe desejado por todas as mulheres.
E, com efeito, sobre Ângelo, de todas as tribunas, desciam raios de tentação.
Alzira fitava‑o como uma serpente paradisíaco.
A missa, entretanto, seguia o seu curso, inalteravelmente, por entre o vago murmúrio dos colos que arfavam, não de piedade, mas de desejo e de amor.
Mas, quando Ângelo, terminado o divino sacrifício, erguia o olhar pela derradeira vez, procurando o céu, seus olhos de repente se fecharam fulminados, e todo o seu corpo estremeceu da cabeça aos pés.
Em vez do céu, seus olhos tinham encontrado o olhar de Alzira.
Ozéas, soltando um grito, correu para ele, tomou‑o violentamente nos braços, escondeu‑lhe a cabeça entre as suas mãos trêmulas, tapando‑lhe o rosto contra seu peito.
E ficou por longo tempo a fitar, ameaçadoramente, a linda cortesã.
A multidão precipitou‑se para junto dos dois eletrizada de curiosidade. Todos queriam saber no mesmo instante o que havia acontecido.
Mas os sinos começaram a repicar alegremente; a orquestra tocava já uma música profana; nuvens de incenso ergueram‑se de novo. A missa estava terminada.
E Ângelo, sem levantar a cabeça do colo de seu pai, afastou‑se do altar e saiu da capela, vagarosamente, arrastando os pés como um cego.
Não se lhe ouviam os soluços, mas todo o seu corpo se agitava nas convulsões do choro.
Um olhar de mulher
Ângelo, de volta da igreja, assim que se achou no carro a sós com Ozéas, abriu a soluçar, numa convulsa explosão de todo o seu ser.
Não podia, entretanto, determinar o que se passava em sua alma. Era uma agonia estranha e dolorosa, que a revolucionava sem dizer porque; um íntimo martírio, feito de vagas apreensões, que a atordoavam de terror por iminentes e desconhecidos perigos.
Sem ter a menor idéia da vida comum, sem desconfiar sequer do maravilhoso efeito que o seu sermão de quinta‑feira santa produzira sobre o público, que poderia o mísero compreender de todo aquele ruidoso entusiasmo que o cercara, e de todos aqueles ávidos olhares feminis que o devoravam de curiosidade?
Seu próprio nome, ouvira‑o ele repetido por tantas bocas ao mesmo tempo, que agora lhe chegava à memória como o estribilho de uma singular canção, falada em língua alheia.
Ozéas, ao seu lado, meditava sem erguer a cabeça, recolhido em profunda preocupação.
Não deram ambos uma só palavra durante a viagem, até chegar ao mosteiro.
Entraram na cela como duas sombras.
O presbítero foi direito ao altar da Virgem, caiu de joelhos defronte dela e quedou‑se a fitá‑la, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, agora silenciosamente.
Depois ergueu‑se e começou a considerar, abstrato, tudo que o cercava ali, como se visse aqueles objetos pela primeira vez.
E tudo aquilo nunca lhe pareceu tão miserável, tão ermo e turvo, como naquele instante. Aquela dura prisão, onde surdamente se escoara a triste mocidade, nunca lhe pareceu tão árida e tão mesquinha. Aquelas nuas paredes, empalidecidas pelo tempo, nunca lhe pareceram tão apertadas, e aquele sombrio teto, tão baixo e tão sufocante.
Olhou longamente para as suas velhas estantes carregadas de pesados livros religiosos, olhou para a sua tosca e tranqüila mesa de estudo, para a sua pobre enxerga de condenado, e ficou a considerar o cilício pendido da parede junto ao altar da Virgem.
Ozéas observava‑o, imóvel até ali, de braços cruzados, com uma inconsolável e funda expressão de mágoa no olhar.
Afinal, foi ter com ele, e tocou‑lhe no ombro.
Ângelo despertou sobressaltado.
—Então, meu filho, disse o velho com voz segura; continua a tua perturbação?. . .
Ângelo não deu resposta.
—Vamos! Fala!
—Sim, meu pai, tartamudeou o pobre moço, volvendo para ele os olhos inocentes. E peço‑lhe que me deixe a sós; preciso concentrar‑me, até voltar à minha primitiva tranqüilidade. . .
O velho insistiu, segurando‑lhe as mãos e fitando‑o, como se procurasse arrancar‑lhe pelos olhos a confissão da revolta que lhe ia na alma.
—Mas como explicar semelhante perturbação?. . . exclamou ele. Pois então justamente hoje, hoje que tua alma devia, melhor que nunca, resplandecer de santo júbilo; hoje, que deste o teu último passo para chegar ao coração da igreja; hoje, que deste o teu supremo voto; hoje é que te sentes conturbado e aflito?!... Como explicar semelhante anomalia?!. ..
—Não sei. . . não sei. . . balbuciou Ângelo. Deixe‑me ficar só, meu pai! Deixe‑me conversar com a minha pobre alma!. . .
—Mas tu nunca faltaste a nenhum dos teus deveres. . . tornou o frade. Tu nunca pecaste, por palavras, nem por obras, nem por pensamentos. . . tu, que foste por bem dizer educado pela mão de Deus, porque até hoje te não afastaste uma linha do seu divino ritual. . . tu, que não tens sequer a idéia da culpa. . . tu, és tão inocente e tão puro como no dia em que te trouxe em meu colo para este convento. . . tu, que vieste das mãos de Deus para as minhas, e das minhas tornaste hoje diretamente para as mãos de Deus... porque tremes agora e por que me olhas desse modo, Ângelo?!
—Não sei, não sei, meu pai!
E Ângelo, como se receasse a traição dos próprios olhos, sentou‑se no banco e escondeu o rosto nas mãos.
Ozéas chegou‑se mais para ele e disse, depois de contemplá‑lo em silêncio por algum tempo:
—Acaso estará o demônio a cercar‑te, cobiçoso de tua alma tão branca e tenra?. . . ou a tua perturbação será causada pelo eco profano dessa capital que te admira e te aclama, e cuja multidão só hoje atravessaste pela primeira vez?. . .
Ângelo ergueu‑se e descobriu o rosto.
A sua fisionomia tinha‑se transformado.
—Não sei! exclamou. Não posso explicar o que sinto, o efeito que me produz o confuso rumor que ouço em torno de mim!. . . Não posso determinar qual é o fato que me perturba, qual é o ponto de onde me vem esta agonia, mas sinto‑me espavorido e frio, como se estivesse abandonado sobre o píncaro de um rochedo nu, em torno do qual se agitam todos os mares do globo. Sinto em derredor do meu cérebro o terrível vozear desse interminável oceano... E no arruído das suas vozes ameaçadoras, há como que a repercussão de um inferno sufocado pelas águas! Afigura‑se‑me a cada instante que o oceano se vai abrir defronte dos meus olhos, e que então o inferno aparecerá com as suas goelas de fogo, pronto a devorar‑me. Não compreendo, nem distingo uma só dessas vozes, não consigo destacar uma palavra ou uma nota musical de todo esse murmurar de espetros, não sei o que é que me preocupa e consterna, mas sinto a alma pequena e transida de medo, como se em volta dela girasse rosnando um bando de leões esfaimados!
E lançando os braços em torno do pescoço de Ozéas, terminou com uma explosão de soluços, deixando cair a cabeça sobre o peito dele.
—Não sei o que me cerca! não sei o que me ameaça! Mas tenho medo, meu pai! Tenho medo! Salve‑me, por piedade!
—Tens medo! bradou Ozéas. Entretanto, hoje não devias ouvir, nem ver, nem sentir outras vozes que não fossem as vozes do céu! Tua alma devia estar toda voltada para ele e só a ele refletindo, como um grande lago quieto, cristalino e límpido, cuja superfície não toldasse sequer a asa de uma abelha. . .
—Bem sei, bem sei, meu pai! soluçou Ângelo; mas, a despeito dos meus esforços, outras vozes vinham ainda há pouco misturar‑se às vozes celestiais, outros perfumes perturbavam os aromas da igreja, outras idéias distraíam minha alma, outro sangue me pulsava em todo o corpo! Afigurava‑se‑me até ter dentro do peito outro coração que não o meu, dentro do cérebro pensamentos que me não pertenciam!
Ozéas, ouvindo estas palavras, teve um forte sobressalto de terror, e apossou‑se de Ângelo como se o quisesse resguardar do mundo inteiro.
—Oh! bramiu ele, aterrorizado. É preciso que fujas, quanto antes, deste covil de tentações diabólicas! É preciso deixar Paris, imediatamente, já! É preciso que te refugies na paróquia mais humilde, mais pobre, mais miserável, e onde só possas encontrar sacrifícios e dores a sofrer! E se aí mesmo, arredado de tudo que for brilhante e fascinador, isolado das perdições mundanas, aproximar‑se outra vez de ti o demônio e fizer com que o sangue te volva ao cérebro, ameaçando estrangular os teus votos sagrados, então agarra aquele cilício e fustiga e martiriza com ele a tua carne, até que a faças calar para sempre!
E, chegando‑lhe a boca ao ouvido, segredou‑lhe misterioso, a tremer, a tremer, convulsionadamente, como se naquele instante todo o seu passado se erguesse de novo, para vir, ainda, como dantes, pedir mais punição para os desvarios da sua juventude:
—E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas. . . bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas até sangrares de todo o veneno da tua mocidade! Esmaga, à força de penitência, toda a animalidade que em ti exista! aperta os teus sentidos dentro do voto de ferro da tua castidade, até lhes espremeres toda a seiva vital! Fecha‑te, enfim, dentro do teu voto de castidade, como se te fechasse dentro de um túmulo!
Ângelo soltou um grito e caiu de joelhos, balbuciando uma prece por entre os seus soluços.
Ozéas acalmou‑se e estendeu o braços abençoando‑lhe a cabeça com a mão aberta.
—Sim, reza! disse; reza, meu filho, ao pai misericordioso o maior tempo que puderes!
E depois acrescentou, inspirado por uma súbita idéia:
—O velho cura de Monteli acaba de sucumbir à peste que se manifestou nessa pobre aldeia. Vou ter com o arcebispo e peço‑lhe que te nomeie para lá. Em Monteli não terás tentações!
E saiu vivamente, enquanto Ângelo, ajoelhado ao meio da cela, de braços e olhos erguidos para o céu, em vão procurava alar‑se como dantes no vôo dos seus êxtases.
Era inútil. Seu pensamento caía por terra e ia arrastando‑se até à esplêndida catedral, à procura de um bem, em busca de uma ventura, que ele não sabia qual era, mas tão doce e tão irresistível que lhe deixava alma e coração vagamente enleados de desejo.
Acedo
Ângelo não conseguira concentrar‑se.
—Mas que estranha perturbação será esta?... exclamou ele desistindo da súplica e erguendo‑se dos joelhos. Que teria eu feito para estar assim?. . . Que teria eu cometido, sem consciência minha, para que a oração já não exerça no meu espírito a eficácia consoladora que tinha dantes?. . .
E nada respondia às suas palavras ansiosas. E em torno da sua aflição era tudo cada vez mais surdo, mais fechado e mais morto. Voz amiga não lhe acudia nenhuma em seu socorro, quer viesse ela de dentro dele mesmo, quer baixasse do céu para ampará‑lo.
O mísero lançou em torno do seu abandono os olhos suplicantes, e deu com a Bíblia.
Correu a buscá‑la, tomou‑a nas mãos sofregamente, levou‑a aos lábios e beijou‑a.
—Minha boa amiga! disse apertando‑a contra o peito; minha fiel companheira de tantos e tantos anos! foste tu a minha doce consolação, o meu refúgio carinhoso, o meu confidente, o escrínio das minhas primeiras lágrimas e dos meus últimos sorrisos; foste tu a discreta testemunha dos meus êxtases e o grande manancial das minhas alegrias religiosas, vale‑me também agora! vale‑me tu, que me abrigaste durante o longo tempo, em que vivemos os dois encerrados com as minhas mágoas nesta prisão sombria! Ah! como eu era então feliz! . . . como tinha a alma tranqüila e descuidosa!. . . Vale‑me amada minha, que talvez consigas o que a oração não pode!
E, sentando‑se no banco, abriu a Bíblia sobre os joelhos e leu, ao acaso, alguns versículos do primeiro capítulo que seus olhos encontraram.
Era o livro de Jó.
"A minha alma tem tédio à minha vida; soltarei a minha língua contra mim; falarei na amargura de minha dor desconhecida.
"Direi a Deus: As tuas mãos me fizeram, e me formaram todo em roda, e assim de repente me despenhas?
"Lembra‑te, eu te peço, que com barro me formaste e que me hás de reduzir a pó.
"Vida e misericórdia me concedeste, e a tua assistência conservou o meu espírito.
"Se eu pequei, tu me perdoaste na mesma hora; porque não permitiste tu que eu esteja limpo da minha iniqüidade?
"Tu multiplicas contra mim a tua ira, e as penas combatem contra mim.
"Por que me tiraste tu do ventre de minha mãe? Oxalá que eu tivesse perecido, para que nenhuns olhos me vissem. Que tivera sido como se não fora, desde o ventre transladado para a sepultura.
"Deixa‑me, pois, que eu chore um pouco a minha dor!
"Antes que vá para não tornar para aquela terra tenebrosa, e coberta da escuridade da noite. Terra da miséria e do terror."
Mas o seu espírito rebelado fugia da página da Bíblia, e punha‑se a cantar‑lhe ao ouvido as palavras do velho Ozéas: "E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas . . . "
Ângelo estremecia, tornava à página e punha‑se a ler. Mas aqueles lamentosos versículos, que dantes o arrebatavam para Deus, agora nada mais conseguiam do que deixá‑lo num vago entorpecimento de desanimo.
E vinha‑lhe uma frouxa vontade de morrer, ou pelo menos de envelhecer logo, de repente, ali mesmo; um desejar que seu corpo se fizesse de súbito alquebrado e frio, que seu cabelo, de preto e lustroso se tornasse branco e desbotado, que os seus dentes amarelecessem, e que a sua fronte se despojasse naquele mesmo instante, e abrisse toda em rugas.
Desejava refugiar‑se covardemente na velhice, como dentro de um abrigo seguro contra a feroz matilha que lhe rosnava no sangue. Mas a misteriosa frase de seu pai, vinha‑lhe de novo à superfície dos pensamentos furando e abrindo caminho por entre todas as outras idéias.
"E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas, bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas, até sangrares de todo o veneno da tua mocidade!"
—Mas que estranhas venturas serão essas que as mulheres nos levam a sonhar?. . . interrogou‑se ele, erguendo o rosto e cruzando as mãos sobre a página da Bíblia. Então a mulher não é também uma criatura de Deus?. . . um ente, tão abençoado e protegido por ele, que até foi por ele escolhido para servir de mãe a seu filho Jesus?. . . Pois tão grande honra se concederia a um ente desprezível, posto neste mundo só para tentar os justos e desviá‑los do caminho da virtude?... Se a mulher é má, por que existe?. . . Se existe, por que Deus a fez má e perigosa?.. . Por que me é vedado amá‑la tanto quanto me cumpre amar aos homens?. . . A ela ainda devia amar muito mais, porque é mais fraca, mais mesquinha, mais amorosa e mais desamparada. Por que não devo amar as mulheres?... Não serão minhas irmãs?... Não seremos todos filhos do mesmo pai?. . .
Fechou os olhos, como se quisesse fugir a estes pensamentos; mas a idéia da frase de Ozéas alastrava‑se‑lhe pelo cérebro, estrangulando todas as outras, que nem a planta egoísta e daninha que não permite viver e crescer ao seu lado nenhuma outra planta.
—Se a mulher é produto dos infernos. . . continuou ele a pensar; todos temos em nós um pouco de Deus e um pouco do demônio, porque todo o homem nasce, tanto do homem como da mulher. Não compreendo bem este fenômeno do nascimento. .. nunca mo explicaram. . . Mas sei que o homem nasce da mulher, como Jesus nasceu do ventre de Maria... Não mo explicaram, e todavia ensinaram‑me a odiar a mulher. . . Por que?
Nisto, entrou na sombria cela um alegre casal de borboletas brancas, e começou a cruzar‑se no ar, doudejando em volta da cabeça de Ângelo. Depois uma delas, enquanto a outra a perseguia, foi pousar tranqüilamente na amarelenta página da Bíblia, que ele conservava aberta e esquecida sobre os joelhos.
O presbítero pôs‑se a fitá‑la. A borboleta fugiu para o teto, à procura da companheira, e ele a seguiu com a vista.
—Um casal de borboletas!... disse consigo. Duas!. . . Um par!. . . E por que duas?. . . Por que andam juntas? Por que não veio uma só?. . .
Elas interromperam de novo o seu aéreo e irrequieto idílio, e foram pousar, uma ao lado da outra, na pequena cruz latina que encimava o oratório da Virgem.
Ângelo continuava a pensar:
—Se o sexo é uma imundície condenada por Deus, por que Deus então fez as suas criaturas aos pares, e por que fez o sexo?. . . Por que os homens não continuam a nascer como Adão e Eva?... "Por castigo" diz a Escritura Sagrada... Logo, a procriação não é um bem, é um mal; logo, o mundo inteiro é um purgatório, e a vida um tormento!. . .
As borboletas começaram de novo a doudejar no espaço.
—E estas desgraçadinhas, interrogou Ângelo a si mesmo; estas também pecaram no Paraíso, para que Deus as obrigasse a viver e procriar?. . .
As borboletas, redobrando de impaciência' iam e vinham por toda a cela, à procura de uma saída.
O padre compadeceu‑se delas e quis dar‑lhes o ar livre. Foi abrir a janela, mas encontrou resistência; os gonzos oxidados não queriam acordar do seu ferruginoso sono de vinte anos. Ângelo empregou toda a força e conseguiu afinal abri‑la.
Um jacto de luz alegre e cantante inundou a fria prisão. Um mundo de vida patenteou‑se no ar, à doiradora claridade que vinha lá de fora.
O presbítero correu às grades da janela.
—Que belo! Que belo! exclamou ele, defrontando com extensa paisagem que se descortinava aos seus olhos deslumbrados.
Estava a uns cem metros de altura. O ponto de vista era esplêndido. Primeiro, o grande parque do convento, todo cercado de altos muros; depois, as ruas da cidade, as praças e os jardins, e logo em seguida o Sena, coberto de barcos, e afinal as longínquas árvores do campo, que se perdiam suavemente nas tintas duvidosas do horizonte.
—Que belo! Que belo!
E vendo o casal de borboletas, que fugia espaço afora:
— Oh! Como vão ligeiras. . . Como brincam no espaço... Agora dizem um segredo... Voam de novo... Desaparecem...
Abaixando o olhar, descobriu sobre um telhado um casal de pombos que arrulhava.
—Como são lindos! pensou. Como são brancos e amorosos! Agora se beijam! Que belo! Que belo!
Na rua descobriu um homem de braço dado a uma mulher, levando ele um pequenito pela mão.
— São casados!... A criança parece com ambos!... Oh! agora conversam... ele tomou as mãos dela entre as suas; ela sorri, abaixa os olhos... São felizes!
Afastou‑se bruscamente da janela. O espetáculo daquela tranqüila ventura fazia‑lhe mal, e quase o irritava.
Não sabia dizer por que, mas num íntimo e profundo malquerer, contra tudo e contra todos, principiava a torturá‑lo com uma dura e secreta agonia de inveja.
— São felizes! são felizes! soluçou de punhos cerrados e com o coração oprimido. E por que hão de eles rir e eu chorar! Qual é o meu crime?! Por que todos nesta vida tem uma companheira e eu não a posso ter?! Por que hei de ser só, eternamente só, quando a natureza deu um par a cada uma das suas criaturas?!. . .
Mas caiu logo em si, e derramando pela cela um olhar de quem desperta de traiçoeiro sonho, deu com a imagem da Virgem, que, de dentro do seu nicho de pedra, parecia lançar‑lhe um triste sorriso de ressentimento.
—Não! bradou ele, atirando‑se de joelhos e arrastando‑se até os pés da Santa. Não estou só! nunca estarei só! Sou um padre e a minha esposa sois vós, Senhora amorosíssima, lírio celeste, perfeição dos céus! Perdoai‑me se por um instante de delírio me esqueci do nosso amor!
E correndo à janela, bramiu, ameaçando lá fora, com a mão fechada:
—Oh! Bem te compreendo, natureza pérfida e sedutora! bem compreendo os teus embustes! És pior ainda que a tua rival, a sociedade! Mas em vão te enfeitas com as tuas galas e com os teus sorrisos de amor! Não me seduzirás, pântano de lama coberto de flores! Não me corromperás, porque tenho na alma bastante energia para governar os meus sentidos, e tenho o meu coração cercado por uma muralha de fé! Atira‑me aos pés o ouro do teu sol, atira‑me o perfume das tuas flores, o mel dos teus frutos, o mistério dos teus crepúsculos, a música das tuas florestas, os deslumbramentos das tuas auroras! tudo será baldado! Hei de resistir a todas as tuas provocações! hei de lutar contra todos os inimigos da minha pureza, e, ou cairei morto, ou hei de suportá‑los a todos, um por um!
E sentindo‑se arrebatado no delírio da sua fé, bradou como um louco:
—Venham! Venham filhos do inferno! Podem vir todos, que me encontrarão armado e de pé firme!
Em seguida atirou‑se de novo aos pés da Virgem e começou a rezar fervorosamente.
Quatro horas depois foi surpreendido pelo velho Ozéas, que lhe bateu no ombro.
Ângelo voltou para ele os olhos desvairados.
—Amanhã, disse aquele, partiremos de madrugada para Monteli.
—Estou às suas ordens, meu pai.
Ângelo ameaçado
Era a antecâmara da formosa Alzira rigorosamente posta ao caprichoso gosto da época.
Guarneciam‑na móveis de madeira, esculpida e pintada de branco, com arabescos de ouro, que variava entre o fusco e o luzente, formando torturados desenhos de ornato. Pombas aos pares e anjinhos rechonchudos serviam de adorno às guarnições das portas. Sobre peanhas e cantoneiras havia jarras de Sevres, com pinturas assinadas, em que se viam pastores enfeitados de fitas azuis e cor-de-rosa, na cinta, nos joelhos, no pescoço e nos tornozelos, tocando avena e flauta, ao lado de roliças raparigas de saia curta listrada com sobre‑saia de tufos de seda clara, chapéu de palha, coberto de flores, uma corbelha enfiada no braço, sapatinhos quase invisíveis, e um dos peitos à mostra, branco e levemente rosado, como trêmula gota de leite sobre uma pétala de rosa.
As cortinas de estofo alvadio, adamascado de prata, eram arrepanhadas ao meio por grandes florões de penas multicores.
Os espelhos tinham cercaduras de florinhas de porcelana, primorosamente acabadas e coloridas com muita arte. Era uma recordação do luxo de Luís XIV.
Em cima do fogão, dourado quase todo, havia um grande relógio de Boule, tirado por leões de ouro, entre várias lâmpadas e espevitadores também de ouro.
Nas paredes, forradas de uma tapeçaria azul celeste, destacavam‑se suavemente, por cima das portas e contornando os móveis, desenhos do mesmo azul um pouco mais escuro, representando alegorias pastoris.
Prendiam a tapeçaria cordões de arame de prata entrançando, com grandes nós de espaço a espaço, terminando em amplas borlas do mesmo metal, que afinavam admiravelmente com os bordados das cortinas.
O tapete era felpudo e azul sombrio, à moda dos voluptuosos tapetes da Turquia. Os batentes das portas eram forrados de veludo cor de pérola e fechavam como tampas de estojo.
Alzira, ainda em penteador, estendida negligentemente num divã fofo e rasteiro, fumava uma dourada cigarrilha oriental, e acompanhava distraída as espirais do fumo com as pálpebras semicerradas.
O relógio marcava meio‑dia. Ela acabava de levantar‑se do leito, onde fizera a sua refeição da manhã; uma pequena xícara de chocolate e dois biscoitos de Reims.
Um rico dominó de seda negra, arremessado sabre uma cadeira, e uma meia máscara caída sobre o tapete, diziam que nessa madrugada se recolhera ela depois de um baile; e um pobre lenço de rendas preciosas, que jazia a um canto estraçalhado em tiras, denunciava todo o frenesi de tédio com que a linda condessa, à volta do baile, entrara nos seus aposentos.
Mas agora, sozinha no perfumado e tépido remanso da sua antecâmara, parecia já esquecida dos aborrecimentos da véspera, alheia a tudo que a cercava, e só entregue e abandonada, voluptuosamente, à memória do venturoso sonho dessa manhã.
Pensava em Ângelo. Via o em meio dos esplendores da igreja, cercado de ávidos olhares, surgindo, todo paramentado de ouro, dentre uma nuvem de incenso. Via‑o, formoso e cândido, de braços abertos, defronte do altar, com os olhos virginais voltados para o céu. Via o trêmulo sorrir da sua boca de anjo, via o melancólico balancear dos seus negros cabelos de meridional. Tinha‑o todo inteiro e todo vivo defronte da sua alma, pela primeira vez enamorada; tinha‑o ali, defronte dela, com a sua misteriosa palidez de flor de estufa; tinha‑o com aqueles lábios tão divinos e tão puros, com aqueles gestos donairosos e tranqüilos, com aquela voz embriagadora, que parecia sair de uma garganta de cristal e sândalo.
Tinha‑o todo inteiro, e sentia‑lhe até os perfumes do damasco da sua vestimenta, o aroma do seu hábito e o bálsamo dos seus cabelos.
E Alzira espreguiçou‑se com um profundo suspiro, de olhos fechados e lábios entreabertos, dilatando o pescoço, como se procurasse alcançar com a boca a sombra de uma outra boca fugitiva.
E deixou‑se cair sobre a almofada do divã, suspirando de novo, inconsolável na sua deliciosa mágoa de amor.
O que em Ângelo a fascinava daquele modo, o que a arrastava para ele tão irresistivelmente não era, todavia, a singular formosura do pálido presbítero, mas a sua fenomenal pureza de corpo e de alma; era aquela sedutora virgindade, ligada a tão altiva e clara inteligência.
Ela, que vira rendida a seus pés a fina flor de espírito parisiense e a flor brilhante de toda a fidalguia do seu tempo, e que nunca se deixara escravizar pelo ouro dos nababos, nem pela vermelha glória dos heróis vitoriosos, ou pela glória azul dos poetas endeusados; ela, que até aí jamais entregara os pulsos, sequer por um instante, a uma dessas paixões, que fazem da pessoa amada o dono e senhor exclusivo da nossa vida e dos nossos pensamentos; ela, a insensível Alzira, a cortesã de mármore, sentia‑se agora cativa de Ângelo, o casto; e seria capaz de trocar, por um beijo daqueles lábios imaculados, todos os seus tesouros, todas as suas jóias, todas as suas baixelas e todo o valimento do seu corpo escultural.
Era a primeira vez que amava, era a primeira vez que todo o seu ser desejava alguém; a primeira vez que ela se sentia pequena, humilde, miserável, defronte de um homem; a primeira vez que se supunha capaz de ajoelhar‑se aos pés do seu amante e beijá‑lo doida de amor, pedindo ternura como um cão pede carícias aos pés do dono, suplicando‑lhe que a fizesse morrer sufocada nos seus braços, para que fosse dele a última vibração daquela frágil carne de mulher, e dele fosse o extremo beijo daquela pobre alma apaixonada.
E começou a soluçar.
Era mulher pela primeira vez: pela primeira vez chorava.
Daí a instantes, agitou‑se o reposteiro de uma das portas, e um negro, de libré vermelha, entrou na antecâmara, com os braços cruzados e os olhos baixos.
—Que é, Amilcar?. . . perguntou Alzira sem tirar o lenço dos olhos.
—O Dr. Cobalt. .. respondeu o africano com a sua acentuação etíope.
—Cobalt, sim, pode entrar. . . E mais ninguém, ouviste? nem o marques!
O negro retirou‑se. E o médico entrou pouco depois, risonho e prazenteiro como sempre.
Foi logo beijar a mão da condessa e ficou a tomar‑lhe o pulso.
—Então?... indagou, olhando‑a no fundo dos olhos. O mal tem progredido?
Ela respondeu com um suspiro, e ofereceu‑lhe um lugar a seu lado no divã.
Cobalt assentou‑se e deu um estalo com a língua.
—Não estou nada contente com isto, sabe?... declarou ele, em ar de paternal censura. No seu melindroso estado de sobreexcitação nervosa, produzida pelo excesso dos prazeres, pode ser‑lhe fatal este singular capricho da fantasia, porque nunca poderá ser satisfeito. Ângelo, como homem, é um caso perdido. . . não podemos contar com ele para nada E receio que esta circunstância traga perigosas conseqüências. . . Ora, a condessa nunca amou, nunca sofreu esse adorável gênero de loucura; o seu organismo não tem por conseguinte a menor prática da moléstia de que agora se sente atacado, e aquilo que para outra mulher nada valeria, pode nestas condições transformar‑se em cousa muito séria! . . .
—Mas que hei eu de fazer, meu amigo?
—Oh! Se fosse possível, receitava‑lhe: "Ângelo em estado simples, duas doses por dia, uma antes e outra depois do sono. E' bom sacudir o remédio antes de o tomar." E pronto! Afianço que ficaria boa!
Alzira teve um gesto de impaciência, e o médico, percebendo‑o, tomou‑lhe as mãos e disse, como se falasse com uma criança caprichosa e doente:
—O que há de fazer?. .. Ora essa! nada mais simples: evitar semelhante preocupação!. . .
— É impossível!
—Viaje! Vá até à Itália! Corra o mundo inteiro, se for preciso; e leve o marquês. . .
—Não me fale no marquês!
—Aqui é que não convém ficar, deixando‑se consumir por um desejo, que naturalmente nunca será satisfeito. .. Pelos seus olhos, percebe‑se que já hoje chorou! É muito bonito, não há dúvida!
—Não ralhe comigo, doutor!
—Ralho com razão! Sempre lhe perdoei as fantasias, mas. ..
—Sabe se é verdade o que disseram?
—A respeito de que?
—A respeito dele. Parte?
— Sim. É exato; parte para Monteli.
—Quando?
—Não sei. Por estes dias.
—Monteli! Irei também!
—Está sonhando, condessa?... Monteli é hoje o lugar de mais peste! Não irá, que não consinto!
—Há de consentir e até há de acompanhar‑me. . .
—Eu?! qual! —Nesse caso irei só. Vai ver! E foi ao tímpano e vibrou‑o. Reapareceu Amílcar.
—O marquês já está visível?... perguntou‑lhe ela. Vai a ver, e, se estiver, dize‑lhe que faça o favor de vir cá.
Quando daí a pouco o marques, com a sua desafinada figura de homem muito alto e muito gordo, entrou na perfumada antecâmara de Alzira, esta, antes que ele tivesse tempo de apresentar‑lhe uma galanteadora frase de saudação, e antes que ele correspondesse ao cumprimento do Dr. Cobalt, disse‑lhe sem mais preâmbulos e no tom de quem dá uma ordem irrevogável.
—Meu amigo, de hoje até depois de amanhã o mais tardar, preciso de uma casa de campo nas imediações de Monteli! Vá! não se descuide! É caso urgente!
O marques contentou‑se, na sua surpresa, de fazer uma cara de assombrado.
E sorriu constrangidamente.
O médico também sorriu, mas sem nenhum constrangimento.
Florans em telas de aranha
Na subseqüente quinta‑feira achava‑se no salão de Alzira a roda do costume, e conversava‑se ainda a respeito de Ângelo e da sua perturbação ao terminar a missa em Notre‑Dame, quando Amilcar apareceu para anunciar que a ceia estava servida.
—Meus amigos, disse a condessa, não faço
Afastaram‑se os comensais para a sala de jantar, e o Dr. Cobalt correu a encontrar‑se com a dona da casa.
—Sente alguma cousa, minha amiga?... perguntou‑lhe solìcitadamente, apoderando‑se de uma das mãos dela.
—Não, doutor. E diga‑me: sabe se ele partiu ontem, como estava previsto?
—Ainda não. Foi detido por uma febre.
—Moléstia grave?...
—Qual! Sobreexcitação nervosa, produzida naturalmente pelo fanatismo.
—E quando parte?
—Não sei, condessa, Logo que possa fazer a viagem. O marques já comprou a casa?
—Já.
—Onde?
—Em Raismes.
—Bom.
E vendo que o marques se aproximava:
—Aí vem o seu verdugo. Vou tomar chá. . .
Afastou‑se.
—Pensei que não nos deixassem um momento em liberdade!. . . disse o amante de Alzira, encaminhando‑se para ela.
—Ah! Estava aí, marques? Não vai à mesa?. . . perguntou a formosa mulher, afetando um gesto de interesse.
Florans franziu a testa.
—Minha presença a incomoda, condessa, segredou ele, chegando‑se mais. Impacientava‑me por me ver a seu lado. . . sozinhos. . .
—Está no seu direito...
—Não me fale em direito, minha flor. Não é por um direito que eu desejo privá‑la dos seus momentos de solidão . . .
—Então por que mais é?...
—Desejava que fosse por seu gosto, pelo prazer que a condessa, encontrasse em conversar a sós comigo. . .
—Isso não é cousa que dependa só da vontade. . .
E como o marques fizesse um triste ar de ressentimento:—Não se pode queixar, meu amigo, creio que, depois que estamos juntos, ainda não deixei uma só vez transparecer má vontade em suportar a sua companhia . . .
—Suportar!. . . repetiu o pobre marques com um suspiro. Suportar!... eis um termo que, só por si, patenteia toda a indiferença que a senhora tem por minha pessoa. . .
—Suportá‑lo é a minha obrigação, e faço por cumpri‑la o melhor que me é possível. . . Repito que o marques não tem o direito de queixar‑se...
—Ah! suspirou ele de novo. Não! não tenho! Sou tão infeliz que nem esse direito possuo. . . Juro‑lhe, entretanto, que preferia menos zelo no que fala, e um pouco mais de escrúpulo no que me diz às vezes. A franqueza, minha cara amiga, em certos casos e usada de certo modo, é ofensa. . . e a senhora, creio eu. . . não tem motivo algum para me ofender. . .
—Ah! que o senhor hoje está num dos seus maus dias! . . . respondeu ela, meneando a cabeça com impaciência.
E, notando que ele se afastava, acrescentou a meia voz, como se receasse detê‑lo com as palavras:—Desculpe se o ofendi. . .
Mas o marques voltou, e ela então acudiu desabridamente: —Se a sua intenção é dizer‑me qualquer cousa, ou exigir de mim seja o que for, fale logo com franqueza e por uma vez. Bem sabe que estou às suas ordens! . . .
—Às minhas ordens!... resmungou o infeliz. Às minhas ordens!. . . Tem graça! Preferia estar eu às suas, como estou, mas que lhe não ouvisse a cada instante palavras duras apoquentadoras. . .
Alzira perdeu a paciência.
—Oh! Basta! Exclamou. Que impertinência! Está sempre a queixar‑se. . .
—Queixo‑me com razão—retorquiu ele, por sua vez irritado, e fazendo‑se vermelho. A condessa bem sabe que a minha ligação com a senhora não foi um simples impulso dos sentidos!...
—E que tenho eu com isso?... interrogou ela, apertando os olhos. Que tenho eu com os motivos que o levaram a ligar‑se comigo?. . .
O marquês, coitado! já se não podia conter, e prosseguiu com a voz trêmula:
—A senhora bem sabe que, para ficar a seu lado, tive de sacrificar tudo que de melhor e mais sagrado possuía no mundo! Sabe que esse amor invencível que a senhora me inspirou, foi a causa da morte de minha esposa e será a desgraça de meus filhos.
—Mas o marquês também sabe e há de convir, replicou Alzira, que eu não tenho culpa alguma em tudo isso! Há de convir que não dei o menor passo, nem empreguei o menor esforço, para provocar esta união!. . . O marques viu‑me um dia, apaixonou‑se; fez uma proposta, que eu aceitei porque me convinha. . . Nesse contrato não me comprometi a amá‑lo, comprometi‑me apenas a não pertencer a outro, enquanto estivesse na sua dependência. . . Ora, creio que até hoje ainda não faltei com a minha palavra!. . .
—Tem razão, condessa... disse o marquês, já vencido. Tem toda a razão. Mas tudo isso é porque a amo, muito, loucamente!
Quis tomar‑lhe as mãos; ela não deixou, e respondeu virando‑lhe as costas:
—Ama‑me muito! Isso não diminui a impertinência de suas palavras! Não é a primeira vez que o senhor me lança em rosto a morte de sua mulher e o futuro de seus filhos!. . .
—Perdoe, Alzira...
— Se lhe não convenho, se lhe sou perniciosa, afaste‑se de mim! Ninguém o obriga a ficar a meu lado!
E arredou‑se dele, para ir assentar‑se em um divã. O marquês acompanhou‑a.
—Se o traísse, vá! continuou ela; se lhe desse ocasião de ter ciúmes, ainda vá; mas, que diabo, eu cumpro lealmente com o que prometi e, quando não estivesse disposta a fazê‑lo, di‑lo‑ia com franqueza, porque afinal sou livre! Como, pois, admitir que me exprobre fatos, pelos quais não sou responsável O senhor, se fez sacrifícios para obter‑me, não foi sem dúvida com o intuito de praticar uma boa ação, mas simplesmente para proporcionar a si mesmo um prazer que lhe apetecia. Se fez sacrifícios, não foi por mim, foi pela sua própria pessoa; e, se não tinha elementos para a empresa, por que a empreendeu?. . .
—Porque a amava!
—E amava‑me, porque sou bela, sou moça e estou na moda! Ora, meu caro marquês, há de convir que com isso não teve originalidade alguma!... (E soltou uma risada de escárnio). Original seria se tivesse a desvairada pretensão de ser, durante algum tempo, o amante exclusivo da condessa Alzira, sem despender alguns milhões de francos!. . .
—A senhora bem sabe que não é o dinheiro despendido o que eu deploro. . .
—Pois eu com o resto nada tenho que ver!... São‑me indiferentes a morte de sua mulher e o futuro de seus filhos!. . . Quando o senhor se descuidou deles, quanto mais eu! . . . O senhor que fosse melhor marido e melhor pai! Se há um criminoso entre nós, não sou eu decerto: na minha qualidade de cortesã, sou lógica, não me afasto uma linha do meu programa; o senhor é que se afastou dos seus deveres, na qualidade de chefe de família. Queixe‑se por conseguinte de si mesmo e não me aborreça!
—E é a senhora quem me diz isto?!. . . exclamou o marques, abrolhando os olhos.
—Certamente, respondeu Alzira, com toda a calma.
—No entanto, volveu ele, a condessa, sabe perfeitamente que eu a tudo me resignaria, se a senhora fosse para mim um pouco mais amorosa... eu tudo perdoaria, se. . .
—Perdoaria?. . . mas eu é que não quero o seu perdão para cousa alguma. . . Não me sinto absolutamente culpada.
—Pois devia sentir‑se! disparatou o fidalgo, fazendo‑se outra vez vermelho. Tenho o direito de ser tratado melhor nesta casa!
Alzira olhou para ele sem voltar o rosto.
—Minhas palavras são amargas?... disse. É o senhor quem as provoca. . . Quantos aos meus atos— são irrepreensíveis!...
Esta última frase teve o encanto de transformar 0 marquês.
—Tudo isso, resmungou o queixoso, prova que a senhora nunca sentiu por mim o menor vislumbre de amor . . .
Alzira soltou uma gargalhada sincera.
—Ora, marquês, não me faça rir! disse depois, cobrindo o rosto com o lenço.
—Não é debalde que todos a citam como a mulher mais insensível do mundo!
—Mas por que razão queria o marquês que o amasse? . . .
—Quando por mais não fosse, por gratidão. . .
A condessa, já séria, mediu‑o de alto a baixo.
—Nunca lhe pedi obséquios! disse
—Mas aceitou‑os. ..
—Engana‑se!
—Com a senhora despendi o necessário para enriquecer cinco famílias!. . .
—Basta! (E ela desta vez bateu com o pé). Já me tardava que o senhor me lançasse também em rosto esse dinheiro que supõe ter gasto comigo!
E encaminhou‑se lentamente até ao tímpano e vibrou‑o com força.
—A senhora vai pôr‑me fora?... gaguejou o marques, fazendo‑se pálido.
—Não, explicou ela, muito tranqüila. Vou ordenar ao criado que não o receba quando o senhor voltar. Não tenho o direito de o mandar sair, mas tenho o de nunca mais o receber!
Um raio não fulminaria tanto o marques como estas palavras. De pálido passou novamente à cor de cereja. Hesitou um instante, limpou o suor da testa e, afinal, foi ter com Alzira, e disse empregando todo o esforço para sorrir:
—A senhora dessa forma obriga‑me a não voltar. .. (Ela sacudiu os ombros.) E, para evitar que isso aconteça. . . só vejo um meio. . . é não sair mais daqui . . .
Foram interrompidos pelo criado, que exclamou da porta, fazendo uma continência:
—O cavalheiro Bouflers!
—Bouflers?. . . repetiu Alzira.
—Bouflers aqui!... resmungou entredentes o marquês.
E acrescentou, dirigindo‑se à condessa:
—Eis aí um. . . com quem a senhora não usaria da franqueza que usa comigo. . .
—Por que não?
—Porque é moço, é belo e tem talento. . .
Alzira gritou para o pajem:
—Dizer‑lhe que ainda desta vez o não recebo. . .
—Não lhe convém recebê‑lo em minha presença condessa?. . .
—Ah! Sim?. . . disse ela.
E voltou‑se de novo para o criado:
—Faze‑o entrar.
O criado saiu.
—Mas eu, exigiu o marquês, quero ficar ali, por detrás daquela cortina. . .
—Com uma condição, propôs a condessa, haja
o que houver, o senhor não se baterá com ele. . .
—Prometo, mas a senhora não lhe dirá que o ama. . .
—Ah! Não! Isso não direi com certeza. . .
—Pois então juro que me não baterei.
—Pode esconder‑se.
O criado reapareceu, erguendo o reposteiro, para dar entrada ao satírico e famoso poeta Bouflers.
Ah, mulheres!
mulheres!
Bouflers entrou aos pulinhos. Estacou no meio do salão e fez a mais extraordinária mesura que é possível imaginar, mesmo conhecendo os complicados e genuflexórios salamaleques desse tempo galante. Os altos e empoados canudos da sua cabeleira roçaram‑lhe três vezes pelos joelhos, e o rabicho, guarnecido por um laço de fita preta, três vezes se agitou no ar, como a irrequieta cauda de um cãozinho fraldiqueiro.
Vinha vestido a rigor e com extrema elegância.
Trazia uma casaca de seda cor de pérola. forrada de branco e guarnecida de botões de prata. Bofes de rendas de Veneza, nobremente salpicados de pó de tabaco espanhol, saltavam‑lhe do peito por entre um colete de veludo cor de âmbar; tinha calções da mesma seda da casaca e meias bordadas a ouro, sapatos de salto vermelho, e espada, não de barba de baleia, como então alguns usavam, mas de bom e bem temperado aço de Toledo, com bainha de couro, forrada de veludo branco, e guarda coberta de vistosa pedraria multicor.
Deu alguns passos para Alzira, e, assim que se viu defronte dela, perfilou‑se de novo e pôs a mão esquerda sobre o punho da espada, de modo a arrebitar com a ponta desta a grande aba da sua casaca à la Ramponeau.
E, empertigado, conservou‑se um instante com o chapéu de três bicos debaixo do braço, e disse depois fazendo um passo de minuete:
"Ora graças a Cupido,
Neste empíreo da beleza
Enfim me foi permitido
Entrar, sem maior
despesa!..."
— Trazia a musa em sua companhia Bouflers?. . . Nesse caso devia ter pedido licença para dois. . . —Descanse, formosa estrela; minha musa é rapariga discreta. . . não contará ao marquês o que entre nós dois se passar aqui... —Discreta?... —Não diz mal de ninguém. . . — Informe a pobre senhora de Dufort. . . —Uma sátira inocente. . . —Oh! muito inocente! . . . — Tão inocente como o padre Ângelo. —Ah! Já o conhece?. . . —Pudera!
E, armando de novo a sua coreográfica mesura, improvisou:
"Dizem que Paris
inteira,
Após o célebre sermão
Da sagrada quinta‑feira,
Anda toda em
devoção...
Traz no peito as mãos cruzadas, Os olhos fitos no céu, Calça meias encarnadas, Põe estola e solidéu!
Até consta que a
marquesa
De Pompadour vai além;
Quer obrigar sua alteza
A tomar ordens
também..."
E, chegando‑se mais para Alzira, segredou intencionalmente:
"Que certa moça galante, Ouvindo a missa, fitou Por tal modo o celebrante, Que o celebrante... corou!
E ficaria engasgado
Com o próprio corpo de
Deus,
Se não bebesse, coitado!
Duas gotas de Bordéus..."
—Isto é uma sensaboria de mau gosto!. . . declarou a condessa.
—Por que? Dar‑se‑á o caso de que a insensível e tirana condessa Alzira também esteja com o peito ferido pelo casto pregador de quinta‑feira?...
—Como "também"?... Há então muitas que o estejam?
— Oh! Oh!
"Foi o caso que o sujeito,
Tendo as damas convertido,
Tanto as fez bater no peito,
Que o peito lhes pós ferido!.. ."
—Fale antes em prosa Bouflers! O verso fatiga muito.
—Pois seja! exclamou ele, encaminhando‑se para a condessa com um belo sorriso de namorado, e disse tomando‑lhe uma das mãos que levou aos lábios: Eu te amo, Alzira, flor insensível! flor dos meus sonhos! flor das minhas desventuras! e quero saber quando será o dia venturoso em que receba eu de tua formosa boquinha . . .
—Um sorriso?...
—Não! Uma palavra de animação. . .
—Bravo!
—Bravo?!
—Não conheço melhor palavra de animação. . .
—Não zombe de mim, condessa!...
—Zombar de Bouflers!. . . Oh!. . . Se o conseguisse, vingaria meia humanidade, tão ferozmente satirizada pelos seus versos maus e pelos seus maus versos!
—Conclua‑se destes trocadilhos, que sairei daqui sem ouvir uma palavra de esperança. . .
—Está falando sério, meu pobre amigo?. . .
—Juro‑lhe que sim, condessa. Juro‑lhe pelas musas, que a minha maior felicidade seria merecer‑lhe uma palavra de amor. . .
—E por que razão havia eu de amá‑lo?. . .
—Ora essa! Por que razão é que os outros se amam? . . .
—Mulheres da minha espécie, caro poeta, só amam, quando as fascina qualquer cousa extraordinária, muito extraordinária! Seja o que for, mas que seja— extraordinária!
—Paciência!. . . Todavia, quero crer que o marquês de Florans nada tem em si de extraordinário, e no entanto. . .
—É meu amante... Ah! O caso é outro! O marquês é muito rico... pode dar‑se a esse luxo!... Ama‑me, daí porém a ser amado—vai um abismo!
—Se o marquês a ouvisse?. . .
Alzira sacudiu os ombros.
—Ele sabe disso tão bem como eu; a ninguém engano! . . .
—Nem ama, tampouco!
—Quem sabe lá?.. . Talvez...
—A condessa? Qual! Duvido! A senhora não é mulher! Não tem coração!. . .
—Então que sou eu?. . .
—E um lindo cofre de marfim rosado, com o competente orifício para receber o ouro dos papalvos.
—E era para dizer‑me semelhante galanteria, que o poeta há tanto tempo fazia empenho de vir à minha casa?
—Não! Era na esperança de ser correspondido no meu amor. . .
—O cavalheiro às vezes não me parece um homem de espírito...
—Em questões de amor todos os homens são igualmente estúpidos!...
—Mas, valha‑me Deus, Bouflers! por que razão havia eu de amá‑lo?.. . O senhor é um bonito rapaz, não há dúvida; está na flor da idade, não lhe falta talento, mas. . . é só isso!. . .
—E acha pouco?. . . moço bonito e com talento. Tenho os encantos das três graças—mocidade, amor e beleza, e ainda me sobra um!
—Não—dois—o talento e a vaidade.
—Ou isso!
—Mas falta‑lhe o principal. . .
—O que não falta ao marquês. . . dinheiro?. . .
—Qual! O dinheiro não se conta. . .
—Não se conta?. . .
—Gasta‑se!
—Então que me falta? Juízo, talvez. ..
—Ainda menos! O juízo é a negação do espírito! . . .
—Então não sei que me falta!...
—Sei‑o eu! exclamou uma voz grossa.
E o marquês surgiu defronte de Bonflers, fulo e trêmulo de raiva.
—Oh! Oh! interjeicionou este, zombeteiramente e sem se alterar. Estava escondido, senhor marquês?. . . Divertia‑se a escutar‑nos. . . Magnífico!
E voltando para Alzira:—Obrigado, condessa! Depois resmungou de si para si:
—Pagá‑lo‑ão bem caro!
O marques, sem poder domar a cólera que o sufocava, prosseguiu no tom em que começou:
—A qualidade que lhe falta, senhor poeta, não é dinheiro, nem juízo; é prudência! É grande temeridade dizer mal de quem quer que seja à própria amante dessa pessoa!
—Não é só temeridade... respondeu Bouflers, pondo a mão na cintura e empinando a cabeça: é insolência. Estou às suas ordens! Avie‑se!
A condessa correra para junto de Florans.
—Lembre‑se do que me prometeu!... disse‑lhe ela rapidamente e em voz baixa.
—Só não me baterei. . . segredou o marquês ao ouvido da amante, se a senhora não me fechar a sua porta. . .
—Não fecharei, marquês!
—Pois não me baterei, Alzira!
Bouflers, que durante este curto diálogo, media os dois com ar de desprezo, entortando a cabeça e sacudindo a perna gritou para o marquês, como se falasse ao seu cocheiro:
—Olá, senhor pregador de prudência, é esta que o aconselha a consultar a sua amante, antes de pôr a limpo as injúrias que lhe fazem. . . Creio ter dito bem alto que estou às suas ordens!
—Não me bato com o senhor... balbuciou o outro.
—Ah! Ah! escarneceu o poeta. Já o desconfiava! . . .
E calçando de novo a luva, que ele havia principiado a despir: — Pois chega‑me a vez de dar‑lhe também um conselho: quando não se reconhecer com animo de assumir dignamente a responsabilidade dos seus atos, meça melhor as palavras e não se apresente como se apresentou defronte de mim!
—Insolente! bradou o marquês, avançando de punho fechado sobre Bouflers.
—Então!... interveio Alzira, metendo‑se entre os dois.
—Mas este atrevido afronta‑me! exclamou Florans.
—Pois é desafrontar‑se! retorquiu o poeta. Para isso tem uma espada à cinta!
Alzira chegou os lábios ao ouvido do marquês.
— Se aceitar o duelo, disse‑lhe; não ponha mais os pés aqui!
O fidalgo fez cor de cera e murmurou imperceptivelmente:
—Esta mulher despoja‑me de tudo!. . .
Bouflers sorriu e acrescentou:
—Registre, condessa, mais esta qualidade a meu favor:—a coragem!
—Vale menos que as outras neste instante... desdenhou Alzira.
E tomando as mãos do marquês: —Em certos casos, o forte é aquele que resiste à provocação. Obrigado, meu amigo! Poupou‑me remorsos!... Ah! já os tenho em demasia!. . . Creia que lhe estou grata!. . . Quanto ao senhor, cavalheiro. . .
E voltou‑se para Bouflers, fazendo‑lhe um gesto de despedida.
—Obrigado! respondeu este. Antes, porém, de sair, permita que a felicite pela bela escolha que fez para seu amante!... liste adorável palerma merece bem uma cínica da sua ordem!
E pondo o chapéu na cabeça, encaminhou‑se para a saída.
—Miserável! exclamou o marquês, correndo sobre ele.
—Infame! disse Alzira acompanhando‑o.
Mas foram detidos pelo conde de Saint‑Malô, Artur Bouvier, Cobalt e as damas que acudiram lá de dentro em sobressalto.
—Que foi?!
— Que significa isto?!
—Bouflers!
—Um escândalo?!
—Que sucedeu?!
— Covarde! covarde! covarde! exclamou Alzira, procurando chegar até onde estava Bouflers.
—Todos os teus insultos, respondeu este. armando a carreira para fugir, não valem uma palavra, uma só, que qualquer homem tem o direito de atirar‑te à cara!
E rápido, chegando a boca ao rosto dela, segredou um termo que a fulminou.
E fugiu.
—Ah! gritou a cortesã, levando as mãos ao peito e cambaleando.
E correu ao marques para bradar‑lhe, segurando‑lhe o braço:
—Vá! Siga‑o! Alcance‑o ainda que no inferno! Não me volte aqui sem o haver matado!
—Oh! Obrigado, condessa! exclamou Florans.
E, desembainhando a espada, desapareceu da sala e bateu pelas escadas, ligeiro como um raio.
Era o amor
Quando Bouflers chegou à rua, lançou para o palácio de Alzira um olhar de indiferença e disse, cruzando a capa sobre os ombros:
—Ora! Não perdi grande cousa! Alzira e o marquês que vão para o diabo!
E depois cantarolou, seguindo em direção da tavolagem do conde de Charolais, príncipe de sangue:
"Corramos ao
jogo,
Que o provérbio
diz:
Amor sem ventura,
—É jogo feliz!..."
Mas, ao dobrar a esquina, o marquês, que desgalgara a escada a quatro e quatro, assomou à porta da rua e gritou‑lhe, correndo:
—Olá! Ó poeta bêbado! Se não és um covarde, espera!
Bouflers voltou‑se incontinenti e levou a mão aberta sobre os olhos.
—Quem é?!
Reconheceu o marquês, e perguntou com impaciência:
—Que queres de mim, basbaque?. . .
—Castigar‑te, miserável, como se castiga um perro!
—Ah! Ah! Chegou‑te afinal a indignação?. .. Ainda bem! (E desembainhou a espada). Vá lá! Antes tarde do que nunca!. . . Já fizeste a tua oração, bruto?. . . Não te quero despachar para a eternidade com a alma suja! Vamos! Dei‑te tempo de sobra!
—A rua é escura e deserta!... considerou o marquês. Não precisamos ir mais longe. Aqui defronte da porta de Alzira, temos a claridade suficiente. . .
Aproximaram‑se da porta, procurando colocar‑se no foco da luz que vinha do corredor.
—Vê lá onde queres que te fira, fanfarrão! exclamou Bonflers pondo‑se em guarda.
Artur Bouvier, o conde de Saint‑Malô e o Dr. Cobalt tinham descido a escada do palácio.
As damas o seguiram.
—Marquês, disse o conde, tem em mim uma testemunha.
—E eu por ti, Bouflers! exclamou Artur.
—E o médico, pronto! acrescentou Cobalt.
—Não é preciso!... faceciou Bouflers. De qualquer modo se mata o cão! . . .
—Defende‑te, poeta libertino! bramiu o marquês; porque a minha intenção é matar‑te!
O outro retrucou, aparando‑lhe destramente os golpes:
—Antes guardasses tanto empenho para defender tua mulher, alma de Menelau!
E gritou, caindo‑lhe em cheio:—Toma!
Florans desviou o tiro e fez‑lhe pontaria de fundo. —Toma tu lá este. em paga da tua insolência, bandido!
Mas Bouflers soltou uma risada, e, depois de um salto para trás, desferiu‑lhe um bote certeiro, que lhe atravessou o peito.
—Ai! gemeu o marquês
E caiu estatelado no chão.
—Já?... perguntou o poeta, inclinando‑se. É
pena! Principiava a tomar interesse pela brincadeira!
E tirou do bolso o seu lenço de rendas, para limpar a lamina da espada que escorria sangue.
Alzira acudira com um grito e lançara‑se de joelhos ao lado do amante, beijando‑lhe a fronte.
—Meu bom amigo, dizia entre soluços; perdoe‑me! perdoe‑me! Oh! Quanto sou desgraçada!
Bouvier, o conde e o médico aproximaram‑se também e cercaram o ferido.
—Ai! Eu morro! gorgolejou o marquês, aflito virando a cabeça de uma banda para outra.
—Agradece‑o a esse demônio que aí tens a teu lado! . . . exclamou Bouflers, lançando fora o lenço com que limpara a espada.
E voltando‑se para as damas: —Boas noites, gentis mulheres!
Depois falou aos outros: — Cavalheiros, boas noites!
E bateu no ombro de Artur:—Obrigado, Bouvier!
Em seguida traçou a capa e perdeu‑se na sombra da rua, cantarolando de novo:
Corramos ao jogo,
Que o provérbio
diz:
Amor sem ventura,
—É jogo feliz!..."
E desapareceu.
—Marquês! marques! chamava o conde de Saint-Malô, enquanto Alzira, desesperada, levantava soluçando os braços para o céu.
—Ó meu Deus! ó meu Deus! lamentava‑se ela. É mais um que me vai pesar na consciência! É mais um que morre por minha causa!
Nesse instante, do lado contrário ao que Bouflers tomara, surgiam na treva da noite dois vultos negros, que lentamente se aproximavam, silenciosos e tristes como duas sombras.
Vinham envoltos, da cabeça aos pés, em grandes capas talares, que lhes davam ao aspecto um tom sinistro.
—Anda, meu filho. . . dizia um deles ao companheiro. Tem resignação, e apresse os passos, que precisamos alcançar a diligência de Raismes, para chegarmos a Monteli antes de raiar o dia. . .
—Sim, meu pai. . .
—Ai! gemeu de novo o marquês, debatendo‑se no seu estertor. Morro sem confissão! Morro sem confissão! . . .
Ouvindo isto, um dos dois embuçados precipitou‑se sobre o moribundo, exclamando aflito:
— Que vejo?.. . Um corpo coberto de sangue!
E, arriando o capuz, para mostrar a sua veneranda cabeça de cabelos brancos, interrogou ao grupo que o cercava:
—Quem feriu este homem?
—Um adversário em duelo. . . murmurou o próprio marquês. Ai! morro! morro!
O misterioso velho arrancou do seio um crucifixo, e levou‑o com a mão trêmula à boca do agonizante.
—Pede a Deus perdão das tuas culpas. . . segredou ele com a voz comovida. Entrega‑lhe a tua alma em plena confiança, porque eu rogarei por ela ao Senhor misericordioso!
E ouviu‑se o débil sussurro de um gemido de amor esvoaçar entre os lábios do moribundo.
Era o nome de Alzira, que ele chamava pela última vez.
O médico abaixou‑se para auscultar‑lhe o coração.
—Está morto. . . disse.
Houve uma triste concentração em que se ouviram prantos abafados.
E o negro vulto de barbas brancas pôs‑se a rezar, ao lado do cadáver, com as mãos postas, o pálido rosto pendido sobre o seio.
Entretanto, Alzira, num transporte de aflição, correra a ter com a outra sombra, que se quedava à distancia, de cabeça baixa e rosto escondido sob o capuz, e exclamou entre soluços, estendendo‑lhe os braços suplicantes:
—Meu padre! Meu padre! Sou eu a culpada de tudo isto! Sou muito, muito desgraçada! Peça perdão a Deus por mim!
O vulto se agitou e tremeu todo, através do mistério da sua negra túnica.
Ouvia‑se‑lhe o ansioso arquejar do peito.
Depois, como se precisasse de ar, arremessou para traz o capelo do hábito e recuou aterrado.
Alzira soltou um grito.
—Ele!
E teria caído no chão, desfalecida, se Ângelo a não amparasse nos braços.
Acudiram todos e se apoderaram dela.
O presbítero puxou de novo o seu capuz sobre o rosto, deu o braço à outra sombra, e começaram os dois de novo a seguir o seu caminho.
Ângelo tinha afinal compreendido bem a verdadeira causa da sua perturbação.
A sua perturbação era o amor.
Duas vezes
enjeitado
Ângelo chegou a Monteli, acompanhado por Ozéas, às sete da manhã.
Veio recebê‑lo à porta da casa uma velha chamada Salomé, antiga criada que fora do falecido pároco do lugar.
—Então? então, meu filho?... perguntou‑lhe o egresso. Que em ti significa tamanha tristeza?... Pareces‑me um vil criminoso sobrecarregado de remorsos!. . . Vamos! Não te convém esse aspecto! Dize‑me com franqueza o que sentes. . .
—Nada! Nada, meu pai! São íntimas tristezas sem razão de ser!. . . são desgostos só meus, que só eu mesmo compreendo! . . . A viagem fatigou‑me. Preciso repousar... Bem sabe que ainda não estou bom de todo . . .
—Pois sim, recolhe‑te! Ali está o teu quarto. Já mandei pôr lá a imagem da Virgem. Eu ficarei aqui. Até breve.
—Até breve, meu pai.
E Ângelo, arrastando a sua melancolia, entrou no pequeno aposento que lhe era destinado.
Um triste quarto, em que a formosa imagem da Virgem se destacava, como na outra cela do convento de S. Francisco de Paulo. Paredes nuas e velhas, teto esborcinado e sem forro.
Ângelo sentou‑se no catre que havia a um canto, e começou a soluçar, com o rosto afogado nas mãos.
Chorava, e não sabia dizer por quê. Sofria e não se animava a confessar a si mesmo de onde lhe vinha aquela dor, que assim lhe arrancava tão quentes lágrimas do coração.
Mas seu desejo era poder naquele momento apertar nos braços alguém, cujo nome seus lábios não se atreviam a balbuciar, receosos de magoarem a candidez da sua alma virginal, branca noiva de Deus! O seu desejo era poder dizer o que lhe ensinara a Bíblia, era poder cantar a capitosa música do Cântico dos Cânticos, que nunca alma nenhuma jamais no mundo sonhou e repetiu sozinha. O seu desejo era poder dizer: "Eu te amo!" e sentir a miragem desta doce palavra refletida inteira nuns lábios de mulher, que lhe não falavam, porque já não tinham voz senão para soluçar de amor.
O seu desejo era Alzira!
Era Alzira de carnes brancas e olhos negros! O seu desejo eram longos cabelos nus, soltos no vendaval de todos os desejos. O seu desejo eram lábios trementes e vermelhos, eram doces braços de veludo, eram a funda morte do supremo gozo, bebido de barco sabre um níveo colo de Eva paradisíaco!
O seu desejo era o pecado.
E Ângelo chorava.
Mas, de repente, como se o espetro do dever lhe tocara no ombro, ele ergueu‑se estremunhado e trocou um olhar, ansioso e suplicante, com o triste e quieto olhar da Virgem.
Correu para junto dela e ajoelhou‑se a seus pés, mesquinho de remorso e trêmulo de arrependimento.
—Valei‑me! disse, erguendo para a imagem os olhos lacrimosos. Valei‑me a mim, a mais desgraçada de todas as vossas criaturas!
E soluçava.
—Maria! Maria puríssima! exclamou ele depois, como um desprezado amante aos pés da sua cruel amada. Vede! Atendei, flor dos céus! Vede bem que sou eu quem aqui vos fala e quem vos chama neste momento!
E arrastando‑se de joelhos, com os lábios estendidos para alcançar‑lhe a fímbria do vestido:—Mãe casta! mãe sempre virgem, valei‑me! Vós sois o meu último recurso, a minha última salvação! Escondei dentro da urna de marfim da vossa misericórdia a pureza da minha pobre alma, que a besta imunda a cerca, farejando! Salvai‑me, virgem mãe sem mácula; abrigai‑me numa das dobras do vosso manto azul, constelado de estrelas! Defendei‑me contra mim próprio e contra o meu sangue traiçoeiro! Vós, que sois o eterno prodígio da castidade, protegei a minha castidade contra os meus íntimos inimigos! Não me deixeis cair em pensamentos depravados! Exorcizai de dentro do meu corpo o demônio que me morde as carnes e cospe fogo no meu sangue! Enxotai a luxúria, que baba minha alma para sorvê‑la depois!
Salvai‑me! Salvai‑me, rainha de bondade! Se quereis abandonar‑me assim, à mercê dos meus sentidos, por que pois me aninhastes carinhosa, durante tanto tempo, sob as asas brancas da vossa divina graça?. . . Se a vossa intenção era atirar‑me assim às garras do pecado, por que pois, me ensinastes a amar‑vos tão castamente desde a minha infância mais inocente?. . . Dormi tão confiante em vossa guarda, respirando as rosas místicas do vosso divino amor, e de repente acordo, sobressaltado, entre uivos de fera que me cerca, para devorar‑me!
"Onde estais vós, mãe puríssima, onde, que desde aqueles malditos olhos tão formosos e tentadores, já me não ouvis as súplicas e já me não enxugais, com o vosso alvo sudário cor de neve, as lágrimas deste desespero?
''Ó peito de amor! entranhas de piedade! como é que assim vos fechais para quem vos ama?... Oh! volvei para mim os vossos lindos olhos misericordiosos! Voltai a ter comigo, a sós, na minha cela, como dantes, quando eu era um dos anjos rubicundos do vosso trono de nuvens!... Tornai a ter comigo, Maria, cheia de graça!
"Se tínheis de abandonar‑me e perder‑me num segundo, para que então vos dei toda a minha existência de vinte anos, mais brancos do que a torre de David?. . . Se assim tinha de ser, amada minha, não valia a pena então conservar‑me tão puro e tão cândido!. . .
"Maria! Virgem amorosíssima! vida e doçura' esperança nossa! se não quereis vir em meu socorro, matai‑me! eu aqui estou a vossos pés, e não me levanta rei dos meus joelhos senão por um ar da vossa divina graça! . . . "
E Ângelo, de olhos fitos na Virgem, esperava um milagre, esperava alguma cousa que lhe restituísse a sua antiga tranqüilidade de espírito.
Nada! A imagem parecia surda ao seu desespero de salvação.
"Oh! por piedade! por piedade, minha mãe querida! envia‑me do vosso peito de amor a inspiração do meu resgate!"
Nada! Nada!
Ângelo deixou cair o rosto para a terra; abandonou os braços, com as mãos entre os joelhos, e quedou‑se pensativo.
Infeliz! infeliz!
Não era a primeira mãe que o enjeitada! . . .
E as lágrimas de abandonado correram‑lhe tristes pelo mármore das faces, e o mísero deixou‑se levar de rastos pelas garras da sua dor imensa, para o inferno da sua desesperança sem consolo.
Foi despertado pela velha criada, que, depois de bater várias vezes, resolveu‑se a entrar no quarto.
— Perdão, senhor vigário. Queira desculpar interromper as suas orações, mas. . .
—Fale, minha irmã. . .
—É que está aí uma dama toda vestida de negro e coberta por um longo véu, que deseja falar a vossa mercê. . .
—‑ Uma mulher?. . . E não disse quem era?. . .
—Não quis dizer, senhor vigário.
—Bem, minha filha, faça‑a entrar para a capela e diga a frei Ozéas que tenha a bondade de vir cá.
A criada saiu e o egresso apareceu pouco depois.
—Há, aí, disse‑lhe o presbítero, uma mulher que me procura. Devo escutá‑la, meu pai?. . .
—Que estranha pergunta, Ângelo!... Deves, decerto! É talvez alguma desgraçada que precisa de quem a conduza ao arrependimento. A consciência pura e bem apoiada na fé jamais teme as ciladas do inferno. Vai! Fala‑lhe! E, se for uma pecadora, suplica a Deus, noite e dia, até conseguires o perdão para sua alma.
—Bem, meu pai. . .
E Ângelo afastou‑se lentamente, tomando a direção da capela.
Diabo, mundo e carne
Ângelo aproximou‑se vagarosamente da misteriosa mulher que o esperava na capela, e perguntou‑lhe a que vinha.
Ela, cuja comoção se percebia, apesar do espesso véu que a ocultava da cabeça aos pés, respondeu indicando‑lhe o confessionário. Ele encaminhou‑se então para lá, sentou‑se, e, com um gesto, convidou‑a a que se ajoelhasse a seus pés.
O vulto tremia todo, quando vergou os joelhos e abaixou o rosto, para rezar entredentes o confiteor.
—Não se amedronte, minha pobre irmã. . . disse o presbítero com a voz amiga; não trema desse modo, que por mais fundas que sejam as chagas do seu coração? e por maior que seja o remorso da sua alma, a misericórdia divina há de chegar até lá, se o arrependimento já lhe abriu o caminho e franqueou as portas. Não se assuste, porque não é a mim que vai falar, é a Deus, cujo seio de amor e de bondade jamais se fechou uma só vez aos que sofrem e pedem a remissão das suas culpas. Vamos! Abra‑me a sua alma de par em par. Confie‑me as suas dores, que eu as farei minhas, e ajudá‑la‑ei a carregá‑las até aos pés do nosso pai supremo!
A embuçada, em vez de responder às palavras do confessor, deixou cair a cabeça sobre os joelhos dele, e abriu a soluçar desesperadamente.
Era um pranto convulso e sem tréguas, que lhe agitava o corpo inteiro, e que menos parecia a dor silenciosa e triste dos arrependidos, do que a explosiva revolta de quem chora pela ausência de uma ventura sensual e terrestre.
Ângelo, por sua vez, estremeceu perturbado e tolhido de alheios sobressaltas. Daquela misteriosa carne de mulher que palpitava a seus pés, erguia‑se um quente eflúvio, traiçoeiro e lascivo, que lhe entontecia a alma, um odorante e luxurioso vapor de estranhos vinhos que o enleavam. Dir‑se‑ia que aquelas lágrimas recendiam a volúpia e que aqueles soluços eram soluços de amor, chorados no sigilo de uma alcova.
Ele ergueu‑se, a embuçada segurou‑lhe as mãos, cobrindo‑as de beijos apaixonados.
Ângelo quis fugir. Ela, com um gesto rápido,
rejeitou o véu que lhe rebuçava as formas, e ali, no sagrado retiro daquela pobre capela de aldeia, surgiu a perigosa Alzira, a terrível condessa de gelo, mais pálida e mais sedutora do que nunca, assim humilde e triste sob a dura violência daquelas queixas de amor.
— Ó meu Deus!. . . balbuciou Ângelo de si para si, abaixando os olhos, como se estivesse defronte do demônio. Ó meu Deus, dá‑me coragem! dá‑me coragem!
E recuou alguns passos, estendendo o braço, como para isolar‑se daquele abismo.
Nesse instante, Ozéas acabava de surgir ao fundo da capela, observando os dois, escondido por detrás de um altar. Seu peito arfava tão convulso como o peito de seu filho, mas nele o sobressalto era de outra espécie.
Ângelo, todavia, parecia calmo e senhor absoluto de si mesmo. Apenas o traíam a súbita palidez das faces e um ligeiro tremor de lábios.
—Creio, minha irmã, que nada mais tem que fazer aqui. . . disse ele pausadamente, apontando‑lhe a saída. Queira retirar‑se... não é este o lugar que convém às suas lágrimas... Vamos... saia, e, em benefício de sua própria alma, não torne a cometer semelhante desatino, que a faz muito mais culpada do que todas as outras maldades cometidas. Vamos! Retire‑se! Este sagrado e tranqüilo recanto pertence somente aos arrependidos que sofrem!. . .
—Mas eu sofro! exclamou ela. Eu sofro muito! sofro infernalmente!
—Sofre?! inquiriu o padre, transformando‑se. É talvez o arrependimento! Fale, minha irmã!
—Não! não sofro pelos delitos cometidos, não sofro pelas mortes que provoquei: sofro porque te amo, Ângelo! porque te amo loucamente!
E quis chegar‑se para ele. Ângelo tornou a apontar‑lhe a saída.
—Retire‑se! Eu pedirei a Deus que se compadeça dos seus desvarios...
—Oh! eu te amo! eu te amo! eu te amo! soluçou ela, caindo novamente de joelhos, e procurando beijar‑lhe a fímbria da samarra. Amo‑te: eis o meu crime! Eis a minha grande culpa! Perdoe‑me, já que tens um coração de santo! Sei que devia esconder o meu segredo e morrer com ele fechado dentro dos lábios!. . . Sei que nenhuma esperança tenho de ser algum dia correspondida no meu desgraçado amor, porque nada mereço de um ente tão puro como és!... Mas perdoe‑me! sou uma fraca mulher que nunca a mais ninguém amou, e tu o homem que pela primeira vez me acordaste o coração, e me encheste a alma de sonhos de ternura! Perdoe‑me, se te amo tanto, Ângelo.
Ele escutava‑a, imóvel e pálido como um cadáver. Não se lhe percebia nas feições a luta homicida que se lhe travava na alma.
—Se me amas... disse, quase em segredo cumpre com o que te vou pedir. Volta para Deus, minha desgraçada irmã, todo o teu amor de mulher! . . . Ama‑o! ama‑o extremosamente, e no seu peito de pai encontrarás perene manancial de consolações! Sê honesta, e serás feliz! . . . Se tens medo de ti mesma e dos que te cercam, recolhe‑te a um asilo religioso e faze‑te monja! E principalmente nunca mais tornes aqui, nunca mais me procures ver, se queres possuir o meu amor de irmão e o meu reconhecimento de sacerdote. Vai, e não tornes nunca mais. Adeus.
Dito isto, voltou‑lhe as costas e afastou‑se vagarosamente, como tinha vindo.
— Ângelo! exclamou ela com a voz suplicante.
Ele virou‑se, pôs o dedo nos lábios, impondo silencio, e saiu.
Alzira, ainda de joelhos, conteve‑se um instante; depois ergueu‑se e precipitou‑se de carreira para alcançá‑lo.
Mas a veneranda figura de Ozéas cortou‑lhe a passagem, surgindo‑lhe de improviso pela frente.
A formosa cortesã estacou defronte daquelas barbas brancas, abaixando a cabeça e cravando os olhos no chão.
Ozéas, sem dizer palavra, alongou o braço, apontando‑lhe a saída, e quedou‑se imóvel nessa postura, até que ela desapareceu, lenta e silenciosamente.
Por esse tempo Ângelo ganhava o seu quarto e, caindo de joelhos aos pés da Virgem, agradecia‑lhe a vitória que ele alcançara sobre os seus próprios sentidos, postos naquele dia em tamanha provação.
— Ó mãe de bondade! dizia ele com as mãos cruzadas no peito; fazei com que ela nunca mais volte a ter comigo, que nunca mais soluce sobre os meus joelhos!... Se soubesses, mãe querida, como lutei para não tomá‑la nos braços e estancar‑lhe com a minha boca os seus dolorosos soluços de amor!... Se soubesses como o meu coração chorava enquanto meus lábios a repeliam!... Oh, por piedade! que ela nunca mais, nunca mais me volte a ver!
E, deixando cair o rosto sabre os pés da Virgem, pôs‑se a rezar com todo o fervor e reconhecimento da sua alma dolorida.
Alzira, entretanto, ao sair da capela, metera‑se no carro que a esperava lá fora, c atirara‑se para o fundo das almofadas, a soluçar aflita. O carro tinha de seguir para Raismes; ela mandou tocar para Paris.
Ia com o coração despedaçado. Já lhe não restava a menor esperança!. . . Ângelo a repudiava. . . Ângelo, o primeiro homem que ela amava, repelia‑a, como quem repele um réptil venenoso!
Todos os sonhos daquele seu primeiro amor ruíram por terra, antes mesmo de bem vingados.
Oh! como nesse momento Alzira desejava ser pura! Como desejava ser casta!. . .
Doía‑lhe fundo aquele tranqüilo desprezo com que o padre rejeitara os seus sinceros protestos de amor, acendendo‑lhe, sem saber, o desejo da luta para conquistá‑lo.
Se Ângelo a tivesse recebido com palavras duras, se a enxotasse da sua presença como o arcanjo do Paraíso enxotou a Eva pecadora, é possível que ela não levasse tão longe o empenho de ser amada por ele; mas só a idéia daquela frieza, daquela inalterável superioridade de ente puro e forte, que não teme solução de espécie alguma, só isso era o bastante para levá‑la a não desistir da campanha e lutar até vencer ou cair morta.
—Sim! disse ela, cerrando os punhos, desesperada. Agora, dê por onde der, sofra quem sofrer, hei de vencê‑lo, hei de possuí‑lo, ou buscarei na. morte o completo esquecimento desta fatal paixão!
Si nous révions toutes les nuits la même chose, elle nous affecterais peut‑être autant que les objets que nous voyons tous les jours.
PASCAL — Pensées.
Emurchecer de uma flor
Seis meses são decorridos depois que Ângelo foi para Monteli, e poucas cousas extraordinárias se têm passado com as personagens que figuram nesta amorosa narrativa.
O Dr. Cobalt, durante esse tempo, apresentou à Academia Francesa um livro de fisiologia e de filosofia, revolucionando a ciência de então com as suas novas idéias materialistas. A obra fez grande alvoroço e foi condenada a um tempo pela Sorbona, pelo Papa e pelo Parlamento. Mas ele, sustentado entusiasticamente pelos discípulos de Moraud, Picard e Hecquet, não desanimou e prometeu voltar a campo, armado agora para a luta com um novo trabalho, ainda mais formidável que o primeiro, em que se propunha provar que as famosas convulsões, provocadas pelo milagroso diácono Paris, no cemitério de Saint‑Médard, nada mais eram do que fenômenos nervosos da histeria, moléstia que só então começou a ser estudada e conhecida em França.
Bouflers, esse, coitado! havendo escrito uma sátira contra o duque de Choiseul, que nunca mais o perdeu de vista, caiu na tolice de aceitar os ternos favores de demoiselle Tiercelin, então mantida pelo rei no seu famoso serralho do Parc‑aux‑cerfs, e teve a infelicidade de ser descoberto nos seus amores por aquele ministro, que o denunciou a Luís XV, e o fez prender e encerrar na Bastilha. Lá ficou.
Frei Ozéas, pelo seu lado, três meses depois de permanecer em Monteli, fora acometido pela peste; esteve à morte, e vira‑se forçado a separar‑se do filho por algum tempo. Persistia muito enfermo, e ainda em perigo de vida, num hospital para onde o levara o Dr. Cobalt.
Quanto a Alzira, depois de novas e inúteis tentativas para conseguir arrastar Ângelo a seus braços, precipitara‑se de novo na antiga vida dos prazeres largos, e continuava em Paris a servir de retorta ao ouro dos libertinos, cada vez mais terrível e funesta para os seus amantes.
Diziam que a devorava uma implacável sede de orgias e loucuras, a qual nenhuma virtude, por mais sólida, resistia.
Ângelo, entretanto, ia resignadamente cumprindo o seu estreito e obscuro destino de pobre pároco de aldeia.
Estava, porém, muito mais magro, mais pálido, mais concentrado e mais triste.
Fugira‑lhe das faces a cândida frescura da sua mocidade, fugira‑lhe dos olhos aquele puro e ardente brilho, que era como o reflexo da sua apaixonada alma de inspirado asceta, fugira‑lhe dos lábios a purpurina flor dos seus sorrisos virginais, e agora todo ele nada mais era do que a trêmula sombra do que dantes fora.
Sombra lenta e misteriosa, que em silêncio se arrastava pela vida, ofegante e curvada, como se sobre ela andasse a pairar eternamente o anjo da melancolia, roçando‑lhe os cabelos com as suas asas úmidas de pranto.
Impressionava vê‑lo, à hora do crepúsculo, errar no jardim entre as lousas mortuárias, com a fronte pendida para a terra, como se estivesse a procurar o derradeiro abrigo no seio dessa mãe melhor que as outras, que nunca enjeita os filhos.
Impressionava aquele negro vulto, arrastando a túnica pela areia dos caminhos, para levar, aos que sofriam menos do que ele, a misericórdia da sua consolação e do seu amor.
Uma noite, já nove horas tinham dado, e Ângelo não aparecia em casa.
A velha Salomé, aflita, ia de vez em quando à janela e voltava desapontada, agitando os ombros e sacudindo a cabeça.
— Que digo eu?. . . exclamou ela sozinha, olhando a estrada deserta. São quase dez horas, e o senhor vigário ainda fora!. . . Vão ver que está por aí à cabeceira de alguma vítima da peste, sem se lembrar de que não tem no estômago mais do que uma xícara de leite e um pedaço de pão! Ah! definitivamente. . .
Um relâmpago cortou‑lhe a palavra.
—Chih! Santa Bárbara! Vamos ter tempestade! E o pobre homem por onde andará?...
Ia a sair da janela. Mas uma voz gritou‑lhe lá de fora, estrangulada pela ventania.
—Ó tia Salomé!
—Ah! disse ela. É você, mestre Jerônimo?...
—Não pensei achá‑la acordada!
—Pois se o senhor vigário ainda não chegou!. . . Entre.
Foi abrir a porta, e mestre Jerônimo, um hortelão da vizinhança, penetrou na modesta sala, trazendo seguro pelo braço um rapazola de uns doze anos, que mal se podia ter nas pernas de tão ébrio que estava.
—É que, declarou o hortelão, encontrei no caminho este mariola no bonito estado em que o vê, e
trouxe‑o porque calculei que ele com certeza não acertaria com a casa!
—O Robino como vem!... Virgem santíssima! . . . exclamou a velha, pondo as mãos nas cadeiras.
Não sei quando este rapaz tomará caminho! Por isso é que o maroto, mal acabou de ajudar a missa, desapareceu até agora!.. .
—Vinha da taverna do Bruxo, explodiu Jerônimo. Que quer? Os fidalgos do Roudier gostam de o ver assim, e não largam de lhe dar o que beber enquanto não o põem por terra! Súcia da vadios!
E, como Robino, no seu persistente cabecear, lhe desse um empurrão:—Fica quieto, ó rapaz! Ora já se viu que mona?. . . A este não leva a peste!
Robino empertigou‑se e resmungou alguma cousa entredentes.
—Cala‑te, gritou‑lhe Salomé. Merecias é que te deixassem na rua como a um cão sem dono! Mal faz o Sr. vigário em conservar em casa semelhante biltre! . . .
—Ora! gaguejou o emborrachado. Ele o próprio vigário quem todos os dias me abre o apetite!. . . Ele à missa escorropicha a sua pinga com tanto gosto!. . .
—Cala‑te, demônio! ralhou Salomé. Se estivéssemos no tempo do padre René, andarias mais direito! Isto te afianço eu!
—Ah! com certeza! afirmou o hortelão.
—O padre René bebia muito mais do que eu! . . . tartamudeou Robino.
—Não te calarás, cousa ruim?. . .
E Salomé voltou‑se para o outro enquanto o pequeno, depois de um longo bocejo, adormecia encostado à parede.
—Tenho saudades do defunto vigário. .. declarou ela, com suspiro. Era uma boa alma!. . . Sempre bem disposto, alegre, amigo de pilheriar. . . E' o que não tem este agora, o padre Ângelo! . . . Não há dúvida que é muito santa pessoa, mas nunca vi criatura tão triste! . . . Até mete pena, coitado! . . .
—Ainda o não vi rir uma só vez. . . considerou Jerônimo.
—Muito! muito triste!... continuou a velha. As vezes, fica horas esquecidas à mesa, com os olhos pregados no teto, a cismar!... E a comida às moscas!.. Vão lá tirá‑lo dali! Doutras vezes dá‑lhe pra passear no jardim ou no cemitério, e então, adeus! E' preciso ir buscá‑lo quase à força pra dentro de casa!
Põe‑se então a andar pra baixo e pra cima, que nem uma alma penada, Deus me perdoe!
É que talvez esteja rezando... disse o hortelão, muito interessado com o que lhe contava a tia Salomé.
—Ainda ontem fui chamá‑lo para falar ao filho do Mongol, que aí veio pedir‑lhe que o casasse com a pequena do tio Jorge, e toquei‑lhe no ombro. Pois acredita você, mestre Jerônimo, que o senhor vigário soltou um grito e ficou a olhar‑me espantado, como se eu cá fosse algum fantasma?...
—E por que, tia Salomé?
— Ora! sei cá por quê?. . . Ficou mais branco que aquela cal da parede! E todo a tremer!. . . Já se vê, pois, que não rezava, porque ele quando reza, ouve‑se‑lhe a oração e vê‑se‑lhe o movimento dos lábios... Nessas ocasiões é até quando fica ao contrário um poucochito mais tranqüilo e de melhor humor. Cá pra mim, ninguém me tira da cabeça que ali anda tentação do cão!. . . Ali anda rabo de demônio!
— Ou talvez de saia!. . . acudiu o hortelão, coçando a cabeça.
—Credo, mestre Jerônimo! Não diga isso nem brincando, que brada aos céus! Aquilo é um santo! Olhe! Se frei Ozéas estivesse ainda aqui, juro‑lhe que o senhor vigário não chegaria ao estado a que chegou! Até o acho meio apatetado! Deus me perdoe!
—Apatetado, tia Salomé? . . .
—Pois se lhe disser que de uma feita o deixei ajoelhado no altar depois da missa e que, voltando só à tardinha à igreja, para reformar o azeite da Virgem, encontrei o homem ainda na mesma posição!... Os braços abertos, os olhos ferrados na santa, e tremendo de frio, coitadinho! que metia dó! Chamei‑o, qual "Senhor vigário! Ó senhor vigário!" Respondeu você, que lá não estava?. . . Pois assim respondeu ele! Afinal agarrei‑o pelo braço e disse‑lhe que aquilo não tinha jeito!
—Não tinha, decerto tia Salomé!
—Acompanhou‑me tiritando. Você sabe como a capela é fria!. . . E mal deu alguns passos pelas lajes, desatou num pranto de choro, como eu nunca vi!
—Chorando?! Que me diz! tia Salomé?!
—Como uma criança, mestre Jerônimo! Nunca vi chorar tanto! Ao depois, meteu‑se ali no quarto, não quis comer nada, e levou toda a noite a andar de um para outro lado, até que. . .
Mas interrompeu‑se, porque a porta acabava de abrir‑se, e Ângelo entrava na sala, com o seu passo lento e o seu ar triste e acabrunhado.
Fez‑se silencio.
Mal secreto
Ângelo vinha profundamente pálido e abatido, mas com a fisionomia serena. Um quê de tranqüilo cansaço imobilizava‑lhe o rosto, não deixando distinguir bem qual a fonte da expressão que nele predominava. Seria a piedosa resignação do justo que, seguro da sua fé, caminhava de olhos fitos no divino ideal, passando, sem rasgar os vestidos da alma, por entre todos os espinhais mundanos; ou seria o surdo desfalecimento de quem, a pura violência, esmaga dentro do próprio peito a fecunda semente das suas mágoas, como a mãe desnaturada sufoca nas entranhas o palpitante fruto dos seus amores?
Vagarosamente atravessou a sala e foi sentar‑se numa velha cadeira, ao lado da tosca mesa de carvalho.
A criada e o hortelão acompanhavam‑lhe os movimentos com um lastimoso olhar.
—Boas noites, tia Salomé, boas noites, mestre Jerônimo, disse ele, cumprimentando‑os humildemente.
—Deus Nosso Senhor lhe dê as mesmas, senhor vigário! respondeu a criada, quase que ao mesmo tempo que o hortelão.
E a boa velha, pensando em Robino, que continuava a dormir a um canto, foi tratar de afastá‑lo dali, para poupar a Ângelo o espetáculo daquela imoralidade.
Mal, porém, lhe pôs as mãos em cima, 0 pequeno gritou acordando:
—É de virar! É de virar! Hup! Hup! Hurra!
— Que é isto?. . . perguntou Ângelo, voltando o rosto.
— Ora! Que há de ser?... explicou a criada, enquanto Jerônimo carregava o pequeno lá para dentro. É o mariola do Robino que está que se não pode ter nas pernas! Se não fosse o hortelão, ficaria aí estendido pelo caminho e talvez se afogasse na enxurrada, que vamos ter muita chuva! Seria bem feito!
—Coitado!. . . murmurou Ângelo.
—Coitado?! Ainda o Sr. vigário diz: "Coitado!"?. . . nunca vi cousa assim! Isto já não é bondade é tolerância demais! ter pena de um maroto que se vai meter na taverna do Bruxo até ficar a cair!. . . O Sr. vigário faz mal em proteger semelhante biltre, que para nada serve! Queria ver se o despedissem daqui, onde ele encontraria quem o aturasse!. . .
—Por isso mesmo não devemos despedi‑lo... Observou o cura. Se ele não tem para onde ir, como quer a tia Salomé que o ponhamos fora de casa? Seria matá‑lo de penúria!. . .
A criada abaixou a cabeça e disse, de si para si, a endireitar o seu avental:—E mesmo um coração de anjo! . . .
—Ouça, minha boa Salomé. . . acrescentou Ângelo, pousando‑lhe a mão no ombro; você às vezes finge‑se má... aposto que, se eu expulsasse daqui o Robino, seu coração, minha irmã, sofria com isso mais CO que o dele próprio. . .
—Não digo o contrário, Sr. vigário, mas. . .
—Por que então há de fingir‑se aquilo que não é?... por que há de dizer o que não sente?... por que fazer‑se má, quando os seus sentimentos são humanos e compassivos?. . . Saiba, pois, que tanto se ofende a Deus com a falsa maldade, como com a verdadeira. Com a falsa ainda mais se ofende, porque a outra tem a sua absolvição na fatalidade dos instintos, ao passo que esta é toda produto do raciocínio, e como tal deve ser punida. Se Robino é um miserável, é um perdido, por isso mesmo devemos socorrê‑lo; se não dispõe de ninguém por si, devo eu estar ao lado dele e, se eu também o abandonasse, ainda ficaria Deus, que não abandona nunca os desgraçados.
E prosseguiu, depois de uma pausa, deixando‑se arrebatar no vôo do seu amoroso enlevo pelas cousas místicas:
— O santo missionário Francisco Xavier, quando percorreu a longa Índia com a sua esfarrapada sotaina, tocava uma campainha para atrair o povo, e entre este ia escolhendo os desgraçados de toda a espécie, para socorrê‑los e dividir com eles a melhor parte do seu pão e do seu coração. Schwartz, Marshman, e quantos outros soldados de Jesus, afagaram toda a escala das misérias humanas, como se percorressem o doce teclado de um órgão, entoando hino de amor à Virgem Puríssima! Vicente de Paulo, reduzido à escravidão em Argel, humilhou‑se de tal modo e com tamanha devoção, que acabou convertendo o seu herético senhor à fé católica. E mais tarde, em Marselha, ei‑lo que desdenha a honrosa companhia do conde de Joigny, para ir coabitar com os galés, até chamá‑los, a todos, um por um, ao caminho da moral e da religião de Cristo! Mas o próprio Cristo?.. . Não foi ele quem recolheu nos seus braços a pecadora das pecadores, a desgraçada repelida por todas as multidões? Não foi ele quem fez de Madalena o louro arcanjo da regeneração?... Não foi ele quem dela fez uma santa? Sim! Sim, Jesus, meu Mestre! toda a tua religião e toda a tua sabedoria se reduzem a esta palavra:—Amor!
E um longo suspiro saiu‑lhe do fundo da alma.
Salomé, que do meio para o fim da divagação do presbítero se fora comovendo progressivamente dava agora repetidos soluços, limpando os olhos com ò avental.
—Perdoe‑me!... gaguejou ela; perdoe‑me, Sr. vigário!. . . Vossa reverendíssima tem toda a razão. . . Vossa reverendíssima é um santo. . . mas que quer?. . . Eu estava contrariada... Eu estou muito zangada! Tenho que ralhar!
—Por que, minha boa irmã?. . .
—Ora, porque! porque vossa reverendíssima pelo modo que vai, dá cabo de si!. . . Tem lá jeito! Levar até a estas horas com o estômago vazio, a andar por aí todo o santo dia, em risco de lhe acontecer como ao frei Ozéas!...
—E todavia não tenho fome. ..
—Mas há de sempre comer alguma cousa, senão é que me zango deveras!...
—Tenho é muito cansaço...
E assentou‑se.
—Pudera não! Fazendo destas!... Isto até ofende a Deus!
E, de carreira, foi lá dentro em busca do que havia para cear.
Ângelo, mal se viu a sós, deixou pender a cabeça e pousou as mãos sobre os joelhos.
—Ah!... pensou ele. Como estou transformado, meu Deus! . . . Como eu próprio me desconheço! . . . Como sou miserável e fraco!. . . (E agarrando o peito, desesperado). Carne traiçoeira e maldita! de que lama és tu feita?. . . E não poder quebrar‑te num instante, imundo barro sensual e pobre!
Mas Salomé voltava com a ceia.
—Ingrato! exclamou ela. Eu que lhe havia preparado uma sopa tão apetitosa! . . . Vamos! Coma alguma cousa. . .
E enchendo‑lhe o copo com o vinho que trouxe num cangirão:—Beba, Sr. vigário! beba um bom trago de vinho! Este ainda é da colheita do defunto padre René... Ah! o padre René!... Esse é que tinha sempre um apetite. . . que metia gosto vê‑lo comer!. . . Comia tão bem o santo homem que, às vezes, vendo‑o jantar, jantava segunda vez! Um dia pregou‑me uma formidável indigestão!... Santa criatura!...
—Você o estima muito, não é verdade, tia Salomé?... perguntou Ângelo, tomando uma colherada de sopa.
—Como não?. . . Pois se o servi durante dezoito anos seguidos! . . . Se não fosse a congestão que o raspou, ainda. ..
—A congestão?! interrompeu o vigário. Pois ele não morreu atacado pela peste?. . .
—Qual o que! negou a criada, rindo. Isso foi uma balela que se arranjou aqui em Monteli!... Os amigos dele entenderam que lhe não ficava bem, como sacerdote, morrer de congestão, havendo tanta peste na aldeia. . .
—Ah!
—Coitado! Foi lástima! Belo homem! Não parecia ter setenta anos! Forte, sadio e trabalhador como gente!. . . As vezes, depois do almoço, agarrava‑se a uma enxada e dava‑lhe para labutar, que três ou quatro trabalhadores não lhe levariam a melhor! Não vê o senhor vigário toda aquela parte do muro do cemitério que está reconstruída?. . . Pois quem foi que a levantou?. . .
—Ah! Ele também trabalhava de pedreiro?. . .
— Se trabalhava! Queria que o visse em mangas de camisa e calças arregaçadas, pé no chão, a fazer barro e a carregar terra! Mas também, quando caía na cama, era aquela certeza!
—Dormia bem?. . .
—E roncava, senhor vigário! roncava, que se ouvia de longe! Uma vez. . .
Um trovão mais forte estalou no espaço, fazendo tremer as folhas da janela.
—Chih! gritou Salomé, correndo até à porta; que tempestade vamos ter! Olha se o senhor vigário se demora mais um pouco!... Felizmente tenho aí alecrim bento para queimar!. . .
Mas Ângelo já não a ouvia. Tinha os olhos cravados no teto.
—Então que é isso?. . . perguntou ela, tocando‑lhe familiarmente do ombro. Já caiu na cisma?... Vamos! coma ainda alguma cousa! Vá uma fatia de queijo. (Ângelo repeliu o prato). Sempre queria que me dissessem o que foi que o senhor vigário comeu!. . . Não sei do que se sustenta!. . . Se isto continua assim, mando pedir ao boticário o remédio que ele deu ao filho do tio Curvado. Aquele também não comia, nem à mão de Deus Padre, mas o boticário deu‑lhe uns papelinhos, e o rapaz endireitou logo! Hoje, de gordo, não passa por aquela porta!
Interrompeu‑a um novo trovão, mais forte ainda que o primeiro.
—Valha‑me São Jerônimo e Santa Bárbara! Parece que vem hoje o mundo abaixo! Vou acender uma vela benta!
E saiu da sala, a correr, benzendo‑se com ambas as mãos, estonteada de medo.
Ângelo, imóvel na posição em que cairá esquecido, só daí a pouco moveu com os lábios, para murmurar entredentes:
— "E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas. . ."
—Oh! disse em voz alta; meu pai tinha razão!. . . tinha toda a razão!. . .
E erguendo‑se, como se acordasse de um letargo:
—Pois eu não terei energia bastante para reagir contra esta fraqueza?... Não poderei estrangular a matilha que me rosna no sangue?. . . Pois a idéia daquele demônio matará em mim todas as outras idéias?. . . Oh, meu Deus, não é possível! seria uma injustiça! Uma tremenda injustiça!
Salomé reapareceu, para perguntar:
—Então, Sr. vigário! que faz que se não recolhe?. . . Vamos! Deite‑se, que precisa de repouso. Já acendi o oratório da Virgem. Não fique aí a cismar!
—Vá! vá descansada, tia Salomé, que eu me recolho imediatamente. Boa noite.
Ângelo, uma vez recolhido ao quarto, começou a passear de um para outro lado, entregue todo à sua implacável preocupação.
—Não! protestou ele, estacando no meio do aposento, depois de longo meditar. Não! A idéia daquela mulher não matará meu coração e minha alma! Preciso não pensar nela! preciso arrancar daqui de dentro esta terrível loucura, que me absorve, gota a gota, toda a substância do meu espírito!. . .
E circunvagou em torno o olhar ansioso e desvairado.
—Mas, prosseguiu o mísero, como poderei não pensar nela, se, mal me vejo a sós, sinto‑a comigo?. .
Sim! Sim! Ela aqui está e em tudo se denuncia!... Sinto‑a perfeitamente; sinto‑a no perfume dos seus cabelos, no farfalhar do seu vestido, na tentadora luz de seus olhares!... Parece‑me que, ao voltar‑me, darei com ela, face a face, a sorrir‑me de amor e a estender para mim seus braços pecadores. . .
E atirou‑se de joelhos defronte da Virgem com a cabeça pousada no rebordo do altar. Depois ergueu o rosto, e, de mãos postas, tentou dizer uma oração. Mas o seu espírito não acompanhava a religiosa palavra que seus lábios proferiam, e o desgraçado, louco de desespero, deixou‑se cair por terra, soluçando, estendido ao longo do chão, como um cadáver.
Perdeu os sentidos.
Lá fora a tempestade continuava, roncando no espaço.
No fim de algumas horas, Ângelo passou da síncope ao sono, e começou a sonhar:
—Alzira minha amada... sussurrava ele, entreabrindo os lábios; teu rosto é formoso como o rosto da Virgem, teus olhos são como os dela—fonte de amor e de ternura, são negros, são doces, augustos e suplicantes; teus cabelos cor de ouro valem pelo seu diadema de rainha dos céus, a carne do teu colo é tão macia como o cetim do seu manto constelado. . . mas eu não te posso dar o meu amor, adorável pecadora, porque me casei com a igreja e dei o meu coração a Maria. . .
Nisto, bateram lá fora três fortes pancadas com a aldrava da porta.
—Não! não me chames!. . . continuava a sonhar o pároco. Não te aproximes de mim, flor de perdição! que eu morreria de pena se te fugisse, mas também morreria de remorsos, se tu ficasses nos meus braços. (Bateram de novo e mais forte). Não! não irei abrir‑te a porta! mas não desesperes, minha pobre amada!... Ainda nos havemos de reunir no Paraíso!. . . Seremos dois espíritos inseparáveis, que percorrerão abraçados os páramos de Deus! Então, como duas asas de anjo, viveremos unidos para sempre e sempre acordes.
Bateram de novo, ferozmente, e Salomé gritou lá de dentro:
— Quem é?
—Queremos falar ao Sr. cura, respondeu uma voz de fora.
—Agora não é possível! Voltem pela manhã!
— É caso urgente!
—Mas ele está dormindo!. . .
—Precisamos falar‑lhe no mesmo instante!
E no entanto... sonhava o pároco; o teu amor deve ser mais doce que o mel das flores. . . mais suave que o perfume da mirra, e melhor e mais saboroso do que os vinhos de Canaã!. . .
Salomé, deveras contrariada, entrou na sala de jantar, trazendo na mão uma candeia acesa, e foi até à porta do quarto de Ângelo.
—Tem lá jeito!. . . resmungava ela a gesticular com o braço que trazia livre. Tem lá jeito! . . . Incomodarem o pobre homem, que ainda não há muito se recolheu tão cansado!. . .
E bateu na porta do quarto.
Ângelo acordou sobressaltado, ergueu‑se e correu a saber quem era.
—Estão aí dois desalmados, que querem por força falar ao senhor vigário. Eu disse logo que não era possível; eles, porém, insistiram tanto, que...
—Fez bem em chamar‑me, tia Salomé. Faça‑os entrar imediatamente. São, com certeza, viajantes que precisam de agasalho!. . . Que entrem sem demora!. . . Veja o que há aí para comer. Eles devem trazer fome. . .
A criada pousou a candeia sobre a mesa, e afastou‑se resmungando.
Daí a pouco penetravam na sala dois homens corpulentos, envolvidos em longas capas de pano escuro.
Um deles era negro e tinha os olhos vermelhos de chorar.
—Com licença! disse o outro sacudindo o chapéu encharcado de chuva. Por Baco! pensei não chegar aqui! Boa noite, senhor cura!
Ângelo cumprimentou‑os.
—Os senhores, disse, são sem dúvida forasteiros e querem agasalho, não é verdade? Vou dar as providências para. . .
—Não, senhor cura, muito obrigado, agradeceu aquele, detendo o pároco. Não queremos agasalho, temos até de voltar incontinenti!. . .
—Por este tempo?. . . observou Ângelo.
—Viemos pedir a vossa reverendíssima para ir dar a extrema‑unção a uma agonizante, que a reclama com insistência
—Pois não! pois não! respondeu o padre, correndo a tomar o chapéu e a capote. Estou pronto! Vamos! Onde é?...
—Logo ao entrar na avenida de Blancs‑Manteaux, castelo d'Aurbiny.
—Avenida de Blancs‑Manteaux! exclamou a criada que até aí estivera de mãos nas cadeiras, a sacudir a cabeça furiosa. Quase uma légua de distancia! Isso não pode ser! Não consinto!
Ângelo foi ter com ela e disse‑lhe em voz baixa:
—Cale‑se, boa Salomé. . . Não me queira desviar das minhas obrigações!
E foi ainda lá dentro buscar o necessário para dar a extrema‑unção.
—Mas é uma imprudência o que o senhor vigário quer fazer! . . . insistiu aquela. Sair de casa a estas horas e com este tempo!. . .
Ouviu‑se um trovão.
—Valha‑me Deus! exclamou ela. Os caminhos com certeza estão piores que o mar!
—Trouxemos um cavalo para o senhor cura.
—Nem sequer trouxeram um carro! Não! Definitivamente o senhor vigário não vai, porque eu não consinto!
—Então, Salomé! disse Ângelo; cale‑se, minha irmã. . . O dever não deve olhar maus tempos e perigos mesquinhos . . .
A boa velha, em vez de calar‑se, colocou‑se defronte dele, com os braços erguidos, e exclamou:
— Mas, por amor de Deus! repare que esta loucura vai fazer‑lhe muito mal!. . . Lembre‑se de que não está bom de saúde!. . . Lembre‑se de que. . .
Ângelo interrompeu‑a:
—E supõe que eu poderia ficar aqui tranqüilo, sabendo que alguém morre, pedindo inutilmente a confissão?... que eu poderia dormir descansado, lembrando‑me que nesse momento um moribundo me amaldiçoava, porque lhe faltei com os derradeiros socorros à sua alma!. . .
E voltando‑se para os dois homens:
—Vamos! vamos, irmãos! Estou às vossas ordens!
E traçou a capa e saiu, acompanhado pelos outros dois.
Daí a pouco, três cavaleiros negros cortavam a estrada e entranhavam‑se na floresta, galopando na treva, como fantasmas.
Pareciam voar nas asas da tempestade. E, a cada relâmpago, os cavalos aterrados relinchavam, acelerando a vertigem do galope.
Só pararam defronte do velho e sombrio castelo d'Aurbiny.
Ângelo apeou‑se, e ao transpor o largo portão de pedra, em cujo frontal havia ainda as armas fidalgas de uma grande família extinta, sentiu a alma tolhida por uma vago e áspero pressentimento de desgraça.
Mas entrou sem hesitar e subiu a longa e esborcinada escadaria de mármore, conduzido por um pajem de libré vermelha, que o veio receber à porta.
Primeiro beijo de amor
Em uma desarranjada alcova do velho castelo, entre mesas cobertas de frascos de remédio e estojos de cirurgia, há uma cama com um cadáver de mulher.
Esse cadáver é de Alzira.
Tem soltos os cabelos, que lhe correm de um e de outro lado do rosto. Os braços saem‑lhe das largas mangas de uma túnica branca, e cruzam‑se piedosamente sobre o frio e apagado peito.
Ela, de tão serena que tem a fisionomia, parece dormir um sono que não é o derradeiro, e nos seus lábios gélidos, para sempre unidos pela morte, há como que a sombra do último sorriso que por eles passou.
Ao lado da cama, enterrado no fundo de uma poltrona e com o rosto escondido no lenço, Artur Bouvier chora silenciosamente; junto dele o conde de Saint-Malô, também mudo, contempla o cadáver. E o Dr. Cobalt, com ar prostrado e a roupa em desordem, arruma a sua carteira de médico e prepara‑se para sair.
—Não me surpreendeu esta morte. . . disse afinal o conde. Há muito que a previa. . .
—Foi um verdadeiro suicídio!... declarou o doutor. Não é impunemente que se leva a vida de extra vagâncias, a que esta pobre rapariga se atirara por último... Não há dúvida que queria dar cabo de si!
—Pobre louca!... murmurou Bouvier com um suspiro. Dir‑se‑ia que uma implacável sede de comoções a devorava incessantemente!. . . Quantas vezes, nestas últimas orgias da sua vida, a vi ardendo em febre, a tossir, a escarrar sangue, sem animo todavia de recolher‑se à cama. Pobre Alzira!
O médico, que acabava de arrumar os seus ferros, disse, aproximando‑se dos outros dois:
—Moralmente, coitada! foi sempre enferma... Sofreu muito! sofreu muito, porque só desejava o que não podia obter. Fingia‑se a mulher mais insensível do mundo, quando, em verdade, era de uma delicadíssima sensibilidade nervosa. Se vivesse ainda por muito tempo, acabaria lonca sem dúvida!
—Pobre Alzira' repetiu Bouvier.
—Mas o caso é que está morta, disse o conde; e nós, últimos amigos que a acompanham, precisamos completar a obra, dando‑lhe um enterro condigno da sua beleza.
E, vendo que acabava de assomar à porta a figura de Ângelo:
—Aí está o padre!
Ângelo cumprimentou‑os com um respeitoso movimento de cabeça, e parou à entrada.
O conde foi ter com ele e apertou‑lhe a mão.
—Já chega tarde, Sr. padre Ângelo... não encontra uma agonizante, encontra um cadáver...
—Expirou há duas horas... declarou Bouvier, pondo a mão sobre o rosto da morta. Já principiava a enregelar. . .
O pároco, que lentamente se aproximara do cadáver, ao dar com aquela branca figura de mármore estendida sobre a cama, soltou um grito e começou a tremer, arquejante e lívido.
Bouvier e o conde acercaram‑se dele enquanto o Dr. Cobalt, a certa distancia, atentamente o observava com os seus olhos de médico apaixonado pela sua ciência.
—Não é nada... não é nada... tartamudeou Ângelo,, procurando esconder a sua tremenda comoção. O espetáculo da morte produz‑me sempre este abalo. Não é nada!. . . Peço‑vos que me deixeis um instante só com o cadáver. . . Vou encomendá‑lo a Deus.
—Pois não. . . Pois não. . .
Fique à vontade, senhor cura, acrescentou o materialista. Nós passamos à sala de jantar, mesmo porque temos necessidade de comer alguma cousa. Desde pela manhã que aqui estamos a lutar com a morte. Fique, e desejo que os seus esforços sejam mais proveitosos que os meus. Até logo.
Os três saíram da alcova.
Ângelo foi acompanhá‑los à porta, afetando grande tranqüilidade, mas, logo que o pesado reposteiro de damasco se fechou sobre eles, explodiu‑lhe do peito uma onda de soluços, e o mísero precipitou‑se para junto do cadáver e caiu de joelhos, abraçando‑lhe o pescoço e beijando‑lhe as mãos.
—Ah! exclamou transportado pela paixão. Posso enfim estreitar‑te agora nos meus braços! Já não és uma mulher, és simples matéria inerte! Já não és o fruto proibido! já não és o ente perigoso que nos leva a sonhar estranhas venturas!. . . lis pó! és nada! Posso agora ao teu cadáver dizer tudo, confessar‑lhe o meu pobre amor, o muito que sofri, as longas horas de amargura que arrastei na minha negra solidão! Deus não me castigará por isso! Minhas palavras de amor ficarão contigo, adorável despejo, sepultadas debaixo da terra! Não! não estou pecando, porque não é à tua carne que eu me dirijo, é à tua alma, e essa não pertence ao mundo, essa não tem sexo!
E, alucinado, acrescentou, como se a morta pudesse ouvi‑lo:
—Sim! sim! Eu te amo, eu te adoro, alma que te partiste para sempre! corpo que vais para sempre desaparecer da superfície da terra! Eu te amo, Alzira! Eu te amei sempre!
E uma vertigem se apoderou dele, e o seu sangue enlouqueceu, acendendo‑lhe os sentidos, e apagando‑lhe naquele instante a luz da razão.
Soltou um grito. Aos seus olhos desvairados, Alzira acabava de erguer‑se a meio no leito, e abriu as pálpebras, estendendo‑lhe os braços com um fugitivo e triste sorriso nos lábios.
—Meu Deus! meu Deus! exclamou ele, trêmulo e aterrorizado. Que significa isto?... Ainda vives, Alzira?. . . mas como é que vives, se o teu corpo tem a gelidez da morte?. . .
E Ângelo viu distintamente que os lábios dela se moviam, para lhe responder com uma voz quase indistinguível:
—Sim, vivo ainda... um instante apenas, um ligeiro instante; o que baste para encher minha alma com a tua imagem imaculada e santa, antes que eu parta eternamente para as margens desconhecidas que já daqui avisto...
—Meu Deus! soluçou Ângelo: perdoa‑me! perdoa‑me!
—Descansa, segredou ela, afagando‑lhe os cabelos; Deus, que é bom pai, não amaldiçoará o nosso amor. . .Ele quer que as suas criaturas vivam aos pares e se amem como nós nos amamos. . . E eu te amei tanto, meu Ângelo, tanto, que Deus perdoou todos os meus crimes só pelo muito que te amei e pelo muito que sofri com ser repelida do teu seio! Eu, a mais depravada de todas as mulheres, eu, que só causei mal durante a minha existência, não tenho animo de levar minha alma à presença de Deus, se para sempre não me fechar os lábios um beijo do homem mais puro entre todos os que a terra habitam! É isso que vim pedir‑te! Dá‑me um beijo e minha alma voará purificada aos pés do Criador! Um só beijo dos teus, tão puro e divino, me resgatará de todos os outros, cínicos e vis, que dei durante a vida inteira!
—Eu te amo, Alzira! respondeu Ângelo.
E seus lábios colaram‑se aos lábios dela, no êxtase de um primeiro beijo de amor.
Depois, Alzira soltou um fundo e doloroso suspiro e deixou‑se cair de novo para trás, outra vez cadáver.
O alucinado passou‑lhe então a mão no rosto, sacudiu‑a pelos braços e, sentindo‑a de novo tão hirta e tão gelada, soltou um formidável grito de agonia e perdeu os sentidos, caindo com a cabeça sobre o colo da morta.
Com o grito de Ângelo acudiram os que estavam lá dentro, vindo na frente o Dr. Cobalt, que correu logo para junto do padre e começou a observá‑lo radiante como se nesse momento acabasse de descobrir um tesouro preciosíssimo.
—Está sem sentidos! disse, e acrescentou entredentes, enquanto o apalpava. Que achado! Que rico achado!. . . Já não o largo!. . . É meu! Creio que afinal encontrei o caso que eu há tanto tempo procuro! . . .
O conde e Artur Bouvier entreolharam‑se, interrogando‑se mutuamente que significaria aquele singular sacerdote que diziam santo, assim desfalecido sobre um inanimado corpo de mulher.
Ângelo, entretanto, continuava tão imóvel, tão pálido e morto sobre a morta, que parecia um cadáver perseguindo em silencio outro cadáver.
Por fora de horas
O Dr. Cobalt, ajudado pelo conde e por Bouvier, tratou de remover Ângelo do fúnebre leito de Alzira, para um divã que havia na alcova.
O pároco continuava inanimado.
O médico que estivera a tentear‑lhe o rosto e as mãos, disse, sem deixar de observá‑lo minuciosamente:
— O cadáver comunicou‑lhe o terrível frio da morte... Vejam como ele tem as faces e as mãos geladas!
—E como está hirto e pálido!. .. considerou o conde. Parece morto . . .
—Não! não está morto!... declarou Cobalt, pondo‑lhe o ouvido sobre o peito.
—Sente pulsar‑lhe o coração? perguntou‑lhe aquele
—Não! Não se ouve absolutamente pulsar‑lhe o coração mas afianço‑lhe que está vivo.
—É extraordinário!... notou Artur Bouvier, apalpando a fronte do desfalecido.
—Mas, afinal, doutor, que tem esse pobre homem? indagou o conde.
—Nada mais simples, explicou o médico; tem um ataque de letargia. . . ou cousa que o valha!. . .
—Ah!
—Produto sem duvida de um profundo abalo nervoso. Vou tratar dele. Hei de curá‑lo e estudar o caso, que me parece muito bonito. O que me convém saber é qual era o seu estado patológico antes desta crise, e qual o valor dos agentes estranhos que poderiam ter contribuído para ela. Como sabem, a nossa ciência neste ponto ainda está muito atrasada em toda a Europa. Quase nada se conhece desse grande mundo, extraordinário, fantástico, impalpável, quase incompreensível; esse mundo de fenômenos psíquicos fornecido pelas afecções nervosas! Basta dizer‑lhes que entre nós a histeria é ainda um mistério; a sugestão magnética é um divertimento!! as suas singularíssimas manifestações escapam ao médico e são exploradas pelo clero, que as explica como obra do diabo e receita para todos os casos os milagres de Saint‑Médard! Estamos mais atrasados que nas épocas empíricas de Platão; mas, tempo virá, meus amigos, em que esta mesma França, ignorante de hoje, há de dar sobre este assunto as mais belas lições de ciência. O futuro vingará minha obra, tão ferozmente amaldiçoada pela Sorbona e pelo Parlamento! Juro‑lhos que a histeria, com todo o seu carnavalesco e brilhante cortejo de loucuras, não será um mistério no século XIX!
—E quanto tempo levará este homem sem dar acordo de si?. . . quis saber Artur.
—Não sei... respondeu Cobalt. Ainda não posso dizer ao certo, se o que ele tem é uma crise cataléptica, ou se caiu em letargia histérica. Se for catalepsia, pode a síncope durar pouco e pode também durar muito; pode durar apenas algumas horas, como igualmente pode durar meses...
—Meses?...
—Pois não! Há casos observados de prostração cataléptica, que duram mais de cem dias. .. Espere! Vou fazer uma experiência. . .
E foi buscar um frasquinho de éter, que levou ao nariz de Ângelo. Este conservou‑se imóvel.
—Não! não pode ser simples catalepsia. . . declarou o médico. Com a ação do éter, os catalépticos põem‑se em movimento e reproduzem inconscientemente, por mímica, a cena que lhes determinou a crise.
—Então é letargia?. . . disse o outro.
—Creio que sim. . . E, se for. . . Oh! os senhores
.
não imaginam que sonhos extravagantes, que visões, que fantasias, pode ele experimentar durante esse estado!. . . Foi isso o que no outro tempo levou muita gente à fogueira; tais cousas viam os histéricos nos seus delírios e tais cousas juraram ter presenciado, que os santos padres resolviam queimá‑los, convencidos de que os infelizes eram feiticeiros ou tinham o diabo no corpo. E, mesmo agora, todas essas convulsionárias, que infestam Paris, protegidas pelos jansenistas, e que pretendem cair às vezes em estado de inspiração divina, para conversarem com os espíritos e outros seres sobrenaturais, o que mais são do que histéricas sinceras ou fingidas?. . .
Pobre moço!... lamentou Bouvier, considerando a pálida figura de Ângelo estatelada sobre o divã. Aí está em que deu tanta pureza de corpo e alma!. . .
—Agora o que convém, tornou o médico, é afastá‑lo daqui, e proibir que lhe falem no ocorrido. A presença daquele cadáver agravaria o seu estado e poderia ser‑lhe fatal. É preciso poupar‑lhe esse perigo. O melhor será que desperte da letargia já em casa, deitado no seu próprio leito; e, como já não sou necessário neste lugar, encarrego‑me de acompanhá‑lo a Monteli. Ficam os senhores para tratar do enterro.
—Mas, doutor, observou o conde, permita que lhe lembre que a noite está horrível e que o padre Ângelo, se me não engano, não mora tão perto!
—Não importa! sei onde é. . . Levo‑o na minha carruagem. Os cavalos são bons e o cocheiro conhece bem o caminho! Daqui a pouco estarei lá.
—Como quiser... Uma vez que se interesse
tanto pelo padre Ângelo. . .
—Não é o homem que me interessa, declarou o médico, enfiando o seu longo capote de jornada; é o doente. O conde não ignora que eu tenciono apresentar ainda este ano à Academia umas memórias a respeito de certas enfermidades nervosas, que não foram estudadas em França. . . Preciso deste enfermo como de pão para a boca!
E foi chamar os criados, e ordenou‑lhes que levassem Ângelo para o seu carro, o que ele mesmo ajudou a fazer, com uma solicitude de namorado a raptar a amada desfalecida.
—Cuidado, hein! gritou ele a Amílcar, quando o negro se apoderou do pároco. Adeus, conde! Adeus, Bouvier!
E saiu, acompanhando de perto o seu tesouro.
Durante a viagem não tirou a mão do pulso do histérico e, por várias vezes, debruçou‑se sobre ele, auscultando‑lhe o peito.
Continuava a letargia.
Salomé, quando viu seu amo entrar em casa carregado a braço por dois homens, levou as mãos à cabeça, e desandou numa terrível imprecação, contra todos os que tinham contribuído para fazê‑lo sair àquela noite, fora de horas e por um temporal de morte.
—Malditos sejam! exclamou ela; que me obrigaram o pobre homem a cometer tamanha loucura! Agora, está aí! Vejam como ele volta! Que digam se eu tinha ou não tinha razão!
O médico tapou‑lhe a boca com uma moeda de ouro, enquanto depunham o desfalecido no quarto, sobre o leito.
—Tome lá para o seu rapé... disse aquele, e não precisa afligir‑se, tiazinha! O pároco não está abandonado, nem corre o menor perigo. Sou médico e não o deixarei enquanto ele precisar dos meus socorros. Apenas desejo que a senhora me ajude naquilo que for preciso. . .
—Estou às suas ordens, senhor doutor...
—Bom! Pois então, em primeiro lagar, nada de gritaria, que isso só serve para fazer mal; em segundo: vai a senhora contar‑me minuciosamente como tem vivido aqui, até hoje, o nosso vigário, o que tem feito ele, e quais os incômodos que tem sofrido.
E Cobalt, enquanto ela dava conta da existência de Ângelo, escutava‑a com os olhos fitos no chão, e só a interrompia para lhe pedir novos esclarecimentos sobre algum ponto que não ficara logo bem explicado.
Depois, tirou a sua carteira, tomou algumas notas a lápis, e em seguida foi assentar‑se à cabeceira do leito do doente, consultando o relógio de instante a instante.
Assim esteve até pela manhã, quando percebeu que Ângelo ia voltar a si.
Ergueu‑se na ponta dos pés e foi ter com a criada, que dormia a um canto da sala de jantar, sentada num banco de pau.
—Olhe! disse‑lhe em voz baixa. O vigário vai despertar... É preciso ter todo o cuidado com ele, entende?... Observe‑o com atenção para me dizer depois o que se passar. Convém que ele me não veja e que não desconfie sequer que eu cá estive. . . É preciso não deixá‑lo perceber que está doente, porque senão ficará pior e talvez perdido. . . A respeito de tudo que se deu aqui esta noite—nem palavra, ouviu? Isto é o principal! A menor palavra a esse respeito po‑lo‑ia doido! Todo o cuidado é pouco!
Salomé, de boca aberta e olhos arregalados, ouvia‑o sem pestanejar.
—Mas, disse ela, e se o senhor vigário me fizer alguma pergunta a respeito do que se passou à noite?
—Finja que de nada sabe. Assim é preciso se a senhora não o quer ver doido varrido! Adeus. Não se descuide, hein!.. . E tome lá de novo para o seu rapé! Até logo. Eu voltarei mais tarde.
Deu‑lhe outra moeda e saiu, andando cautelosamente, como se receasse acordar alguém.
Ângelo, entretanto, acabava nesse momento de voltar a si.
Abriu os olhos, passeou‑os estranhamente em volta da cama, depois tornou a fechá‑los, deixou cair de novo a cabeça sobre o travesseiro e começou a dormir, como se continuasse um sono, apenas por um instante interrompido.
Eram duas da tarde quando se ergueu do leito.
Entre a vida e o sonho
Depois daquele imenso temporal da noite inteira, o dia abriu formoso e resplandecente de luz. A areia dos caminhos brilhava, secando ao sol; as chaminés das cozinhas atiravam para o ar penachos cor de pérola, que se agitavam suavemente às brisas refrescadas pela chuva.
A aldeia parecia sorrir. Os pardais saltavam por toda a parte e grasnavam por entre as ripas dos telhados. As borboletas saíam do mistério dos seus casulos, e vinham peraltear à grande claridade dos vergéis alegres e floridos.
Ângelo, entretanto, continuava a dormir profundamente, como um enfermo que acabasse de escapar à morte, depois de ter atravessado muitas noites em claro. Não sonhava, não se movia no leito. Era um sono de pedra.
Quando acordou às duas horas, fez as suas orações, tomou um copo de leite, que lhe haviam posto à cabeceira da cama, e deixou‑se ficar no quarto até ao momento de ir rezar às Trindades na capela.
Saiu em silêncio, em silêncio atravessou por entre os aldeões, e foi colocar‑se defronte do altar, com os braços abertos, e olhos perdidos no vago, imóveis, a desfiarem lágrimas.
Já não eram lágrimas de sacerdote, era o seu ferido coração de homem que sangrava.
Por esse tempo, Jerônimo e Salomé conversavam lá fora, sob o velho parreiral que havia em frente à pobre vivenda do pároco.
Falavam em voz baixa, como se conspirassem
—Ora, segredou o hortelão, muito me conta a tia Salomé a respeito do nosso vigário!... Bem me dizia vossemecê ainda ontem que o homem às vezes parecia apatetado!...
—Não estou nada satisfeita, mestre Jerônimo. Durante o tempo do defunto padre René nunca vi cousa assim! O padre René contava‑me tudo, tudo que se passava com ele ao passo que este agora, nem só nada diz, como ainda por cima o médico me proíbe de lhe fazer perguntas!. . . Tem lá jeito!
—Ah! o Dr. Cobalt proibiu de lhe falar, hein?
—É exato! Jurou‑me que, se o senhor vigário ouvisse uma só palavra do que se passou de ontem à noite para hoje, ficaria doido varrido...
—E o que foi que se passou, tia Salomé?
—Sei cá o que se passou! E, ainda que o soubesse, não o diria, porque o médico proibiu!
—O médico proibiu de contar ao senhor vigário e não a mim. . . Ora essa!
—Não sei! Prometi de não contar, não conto a ninguém!
—A tia Salomé terá receio de que eu também fique com a bola virada ao ouvir a tal história?. . . Se o caso é esse perca o receio e desembuche, que eu cá respondo por mim!
—Mas é que eu de nada sei, homem de Deus!
—Não sabe?. . . Então a que vem a recomendação do doutor?. . .
—Naturalmente cuida que estou a par de tudo. . . E confesso que já agora não se me dava de saber que história é essa, que põe a gente com o juízo transtornado . . .
—O que me parece, tia Salomé, é que para o vermos doido, não é preciso que vossemecê lhe conte a tal história!.. .
—Para longe o agouro, mestre Jerônimo!
—Ora! Um homem que anda sempre como se estivesse dormindo em pé!... Suponho que nem dá pelo que se passa em redor dele. . .
—É um santo!
—É! por isso anda sempre lá pelo céu, com a lua.
—Credo, mestre Jerônimo! Isso não se diz. Você está ficando ateu!
Foram interrompidos pelo Dr. Cobalt, que surgiu por entre moitas de verbena, a olhar misteriosamente para todos os lados.
—Onde está ele?... perguntou ao ouvido de Salomé. Saiu para a rua?. . .
—Não, Sr. Doutor, está rezando às Trindades. O senhor vigário, sempre que não diz missa, reza às Trindades.
—Você nada lhe disse, hein?. . .
—Não trocamos palavras. Ele só saiu do quarto para ir direitinho para a capela.
E, como o sino principiasse a tocar, a criada acrescentou:—Acabou a reza! O senhor vigário vai voltar naturalmente.
—Bom! bom! disse o médico, apressando‑se. Vou, antes que ele chegue. Não lhe diga que estive aqui, percebe?
—Sim, Sr. Doutor.
E Cobalt resmungou contrariado:
—E eu que tenho de partir esta noite para
Paris... Diabo!
Voltou‑se para Salomé e falou‑lhe de carreira:— Olhe, minha amiga, preciso afastar‑me daqui, não sei por quanto tempo. . . você fica encarregada de, quando eu voltar, dar‑me conta de todos os passos do nosso doente. Tenha todo o cuidado com ele, que a recompensarei. Não o contrarie nunca, ouviu?... Não o apoquente, e principalmente não lhe dê uma palavra a respeito do que se tem passado. Observe‑o bem. Adeus. Saio aqui pelos fundos da casa, para me não encontrar com ele Tome para o rapé!
E fugiu, depois de atirar‑lhe na mão uma nova moeda.
—Deus lhe pague, Sr. Doutor.
E acrescentou para o hortelão:
—Muito gosta este homem de dar dinheiro para rape. . .
—É um médico esquisito, observou aquele; tem medo de encontrar‑se com o seu doente. . .
—Bem, mestre Jerônimo, vou lá para dentro cuidar da merenda do Sr. vigário.
—Eu também me vou chegando, tia Salomé. Boas noites.
—Deus lhe dê as mesmas!
E Salomé afastou‑se para recolher‑se à casa.
Ângelo, nesse instante, acabava de sair da capela e atravessava o jardim.
Entrou na sala de jantar como um sonâmbulo, sem olhar para os lados, e foi assentar‑se no banco ao lado da mesa, fitando inalteravelmente o teto.
Estava muito mais pálido e mais abatido que na véspera.
A criada aproximou‑se para lhe dar boa noite. Ele não respondeu, nem fez com a cabeça o menor gesto.
Ela saiu da sala, demorou‑se um pouco lá dentro, e voltou com o candeeiro aceso.
Ângelo durante esse tempo conservou‑se na mesma imobilidade.
—O senhor vigário quer tomar já a sua sopa?. . . perguntou a boa velha.
E, como não recebesse resposta, chegou‑se mais para ele, segurou‑lhe o braço com brandura e repetiu a pergunta.
Ângelo tomou‑lhe as mãos e fixou‑a.
—Diga‑me uma cousa, minha boa amiga... pediu ele. Que horas eram, quando ontem à noite vieram chamar‑me aqui?...
—Aqui?... repetiu Salomé, desviando a vista. E acrescentou de si para si: — Agora é que são elas!. . .
—Sim, insistiu o pároco; refiro‑me àqueles dois homens que vieram buscar‑me à noite. . .
—Que homens?. . .
—Ho! Aqueles com quem eu saí a cavalo...
Salomé engoliu em seco, estalou várias vezes a língua contra o céu da boca, e declarou afinal, tomando uma resolução:
—Vossa reverendíssima ontem à noite não saiu de casa!
—Não saí?!. ..
E Ângelo ergueu‑se, abrindo muito os olhos. Como não saí?!. . .
—Não saiu, não senhor. Vossa reverendíssima recolheu‑se ontem ao seu quarto e só apareceu hoje à tarde para rezar às Trindades. . .
O pároco tornou a segurar‑lhe as mãos, e perguntou, deveras abismado:
—Pois eu não saí ontem com duas pessoas que vieram chamar‑me?... Pois não foi a senhora, tia Salomé, quem me acordou?. . . Não me disse até que era temeridade sair com o tempo que fazia?. . .
—Eu?! Eu, não senhor!. . .
Ângelo levou as mãos à cabeça e exclamou: Ó meu Deus! eu estarei louco?. . .
Salomé abaixou os olhos, dizendo consigo mesma:
—Quanto mais se eu confessasse a verdade!. . .
O padre pôs‑se a cismar, passeando ao longo da sala.—Seria um sonho?. . . pensou ele. Ela em verdade não teria morrido?.. . Estará viva?. . .
—Posso trazer a merenda, Sr. vigário?. . . perguntou a criada.
E acrescentou para si, vendo que ele não dava resposta:—Coitado, se eu pudesse, dizia‑lhe tudo!. . .
E saiu.
—Foi um sonho! . . . não há dúvida. . . Logo eu, de fato, não pequei!. . .
E respirou aliviado, encaminhando‑se para a mesa.
—Mas, é estranho!... continuou ele a pensar; nunca sonhei assim!. . . Seria capaz de jurar que não sonhei—que vivi. . . Verdade é que nem tudo aparece claro e lúcido no meu espírito... (E procurou recordar‑se). Não consigo lembrar‑me do que eu fazia ontem à noite antes de adormecer. . . Recordo‑me que pensava muito em Alzira, tanto que me pus a rezar defronte da Virgem, mas. . . a Virgem transformou‑se em Alzira. . . Estaria já sonhando, ou tudo isto já seriam alucinações do meu delírio?.. . Depois era Alzira que tomava as feições da Virgem. . . Sim! lembro‑me perfeitamente. . . Depois, sonhei que bateram lá fora e sonhei que Salomé me acordara... Surgem‑me dois homens vestidos de negro e pedem‑me para ir dar a extrema‑unção a um moribundo... Vou... A noite era tenebrosa e só os relâmpagos nos iluminavam a estrada... Galopamos não sei quanto tempo. . . afinal paramos defronte de um velho castelo; subo... Receberam‑me três cavalheiros... Aproximei‑me de um cadáver... reconheci
Alzira... Apertei‑a nos meus braços. . . Ela voltou à vida... pediu‑me um beijo e... morreu! Depois... (E procurava recordar‑se.) Depois... nada mais me lembro, senão que acordei já tarde, naquele quarto, sobre a minha cama... Foi tudo um sonho, não há dúvida! . . .
—E, no entanto... acrescentou ele, apalpando a fronte e as mãos; no entanto, dir‑se‑ia que ainda conservo o frio que me comunicou o cadáver!... É singular! muito singular!. . .
Despertou deste devaneio com a voz de Robino, que acabava de aparecer à janela, metendo a cabeça para dentro da sala.
—O senhor vigário deixa‑me entrar por aqui?. . . exclamou ele.
—Quem é?
—Sou eu, senhor vigário. A tia Salomé, de má, fechou‑me a porta! O senhor vigário consente que eu entre?. . .
—Sim.
Robino saltou a janela e foi ter com o padre, que continuava entregue à sua profunda meditação.
—Boa noite, senhor vigário, disse ele. A tia Salomé não tinha razão para me fechar hoje a porta! . . . Eu não estive na taberna do Bruxo!. . . Eu fui ver o enterro da tal moça de Paris, que estava na avenida de Blancs‑Manteaux . . .
—Hein?! Que dizes tu?! exclamou o pároco, voltando‑se para ele com súbito interesse.
—É verdade, senhor vigário, que lindo enterro! Parecia uma procissão!. . .
—De quem era o tal enterro?. . .
—Da tal moça que veio doente para o castelo de Aurbiny. . . Ia na frente um carro com o caixão, todo enfeitado de plumas pretas e amarelas, depois. . .
Ângelo interrompeu‑o:
—Estás dizendo a verdade?. . .
—Pois se venho agora mesmo de lá, a correr, para não encontrar a porta fechada?. . . A tia Salomé disse‑me que não me deixaria entrar, se eu viesse depois das Trindades!...
—Como se chamava a morta?. . .
Rabina fez um esforço para lembrar‑se.
—Chamava‑se... Ora! estou com o nome debaixo da língua!... Chamava‑se... Ah! Condessa Alzira!
—Não era um simples sonho!... murmurou Ângelo, deixando‑se cair na cadeira, a sacudir tristemente a cabeça. Não era um simples sonho!. . .
Mais forte que a morte
Salomé, que entrava trazendo na mão a bandeja com a merenda estacou, ao dar com Rabina
—Por onde entrou este mariola?.. .
—Pela janela, disse o rapaz.
—Pela janela?!
—Foi o Sr. vigário que me deu licença. . . acrescentou Rabina coçando a nuca e passeando o olhar entre a criada e o padre.
—Pois o Sr. vigário fez muito mal!.. . declarou a mulher, depondo a bandeja sobre a mesa. Fez muito mal em deixar este tratante saltar a janela! Assim ele, nunca tomará caminho! Não sei o que quer dizer um biltre que. ..
Ângelo cortou‑lhe a frase, segurando‑lhe uma das mãos com ambas as suas.
—Minha boa Salomé, interrogou vivamente interessado; diga‑me com franqueza uma cousa: está bem certa de que eu ontem à noite não saí de casa?... Vamos! responda‑me lealmente!
—Pior vai o negócio! . . . pensou a criada, e acrescentou em voz alta:—Como quer que lhe diga que não, Sr. vigário?...
Ângelo voltou‑se para o pequeno:
—E tu, perguntou‑lhe, estás bem certo de que viste o enterro da. . .
—Da Condessa Alzira?. . . acabou Rabina Ora se estou! Pois se de lá venho!
—Eu cada vez entendo menos... resmungou Salomé.
E disse, de si para si:—Muito custa a mentir, mesmo por conta alheia!. . .
Depois, continuou em voz alta, falando ao cura, que parecia muito preocupado:—O verdadeiro, Sr. vigário, é tomar a sua merenda, que está esfriando, e deixar‑se de querer saber de cousas que se não explicam! . . . Boa noite! Vou acender o altar da Virgem. . . Agora, veja se se deixa ficar aí, a cismar, em vez de fazer a sua refeição. . .
E, dando uma palmada na cabeça de Rabina
—Anda tu também, daí, ó coisa‑ruim!...
—Boa noite, senhor vigário!
Ângelo ao ficar só, cruzou as mãos sobre o ventre e fechou as sobrancelhas fixamente, no mais intenso ar de interrogação e de pasmo.
—Com que. . . pensou ele; sonhei que a vi morta, e ela com efeito morreria, justamente nessa ocasião. . . Logo, Deus não me abandonou de todo, e, ao contrário, protege‑me, envolvendo‑se neste meu amor pecador e profano!. . . Ah! sim, recordo‑me agora que, no estranho sonho dessa noite, a própria Alzira me dizia que o Criador é o grande e nutriente manancial de ternura, que noite e dia se derrama sobre o mundo, para o fecundar, como o sol fecunda a terra!... Sim! sim! agora tudo compreendo! É Deus que vem em meu socorro! é Deus que me acode e me aparece em sonhos, como fazia antigamente com os eleitos do seu amor!. . . Sim! é que o pai misericordioso, reconhecendo a minha inocência e a pureza do meu desespero, enviou‑me por um dos seus anjos o beijo de paz! . . .
E, abrindo ambas as mãos sobre o peito, respirou desabafadamente, e, cousa que havia muito não fazia, sorriu.
—Ah! suspirou; que dose tranqüilidade sinto agora invadir‑me a alma!. . . Obrigado meu bom pai! meu bom senhor! meu bom amigo!
E deixou‑se cair de joelhos no chão, com os braços abertos e os olhos erguidos para o céu, na favorita postura dos seus êxtases.
—Meu protetor e meu abrigo, disse contritamente; às vossas sacrossantas mãos me entrego todo, para que me protejais contra as cousas vis e torpes deste lameiro de lágrimas!... Minha alma já não sente o frio que a torturava; sente‑se aquecida e agasalhada no aconchego do vosso peito de amor e perdão, sente‑se fortalecida na fé e na confiança da vossa infinita bondade! Meu coração, pai dos desamparados, já me não quer saltar encandecido de dentro do peito em brasa, e meu sangue já me não ameaça sufocar o cérebro com uma terrível e infernal onda de fogo... Obrigado, meu Deus!
E acrescentou, depois de respirar de novo, sorrindo para o espaço:
—A luz da vossa divina graça principia a iluminar‑me, como nos primeiros tempos da minha virginal pureza d’alma. Vou adormecer como dantes, como um justo, como um dos vossos servos bem‑aventurados. . . Amanhã poderei enfim celebrar o sacrifício da missa, sem o menor escrúpulo de consciência. . . Já não recearei que meus lábios queimem a hóstia consagrada com o fogo que os abrasava. . . Obrigado, meu Deus!
E fez o sinal‑da‑cruz, ergueu‑se, e recolheu‑se à cama.
Daí a pouco dormia tranqüilidade, sorrindo
como uma criança.
A casa adormeceu também. Só se ouvia o vento da noite sussurrar nas folhas dos castanheiros lá fora na estrada.
Ângelo principiou a sonhar:
Um coro etéreo descia dos céus e vinha cantar‑lhe ao ouvido o epialâmio dos anjos. O nicho da Virgem iluminava‑se de fogos cambiantes, derramando no aposento uma doce claridade de luar multicolor, e a Santa sorria para ele, banhada de ternura, toda de branco e coroada de flores de laranjeira, como uma noiva.
Ângelo volta‑se todo para ela e sonha que lhe estende os braços, pedindo‑lhe que desça do seu altar e venha colocar‑se ao lado dele.
Mas a Virgem começa a tomar as feições de Alzira. A sua branca roupa de noiva transforma‑se em longa túnica mortuária, soltam‑se‑lhe os cabelos c caem‑lhe pelas espáduas, como os da morta do castelo de Aurbiny.
Os olhos tingem‑se‑lhe de uma sinistra sombra cadavérica, e os seus lábios fazem‑se roxos e tiritantes de frio.
Ângelo tem medo e volta‑se todo contra a parede, cosendo‑se aos travesseiros e tremendo aflito.
Mas o espectro de Alzira desce do nicho, e dirige‑se para a cama dele.
Ângelo, frio de terror, sente‑lhe os passos no chão, e ouve o estranho pisar daqueles pés duros e ossificados pela morte.
Retrai‑se, encolhe‑se, e arqueja com o rosto escondido.
Mas Alzira vai até à cama, verga‑se sobre ele e toca‑lhe no ombro com a mão gelada.
O mísero quer gritar e não pode.
Ela senta‑se ao lado dele. e beija‑lhe os cabelos.
Ângelo estremece, mas um voluptuoso fluido percorre‑lhe o corpo inteiro, acorda‑lhe o coração do sobressalto em que estava, e o seu medo vai a pouco e pouco desaparecendo.
—Ângelo!... disse‑lhe ao ouvido o espectro, com a voz mais doce e amorosa que um suspiro de saudade; Ângelo, amado de minha alma! . . . Ouve! . . . Volta‑te para a tua Alzira!... Escuta‑me!...
—Alzira? exclamou ele, voltando‑se.
— Sim, meu amado, sou eu...
—Que desejas de mim?... De onde vens?...
—Venho de muito longe... venho da outra margem da vida, que tu ainda não conheces. . . venho do mundo dos mortos, mundo de sombras e de sonhos!. . . venho de onde nada se conserva desta vida senão a memória de ser aqui que amamos!...
—E que desejas de mim?. . .
—A tua companhia. Venho buscar‑te.
—Buscar‑me?...
—Sim. Com a força do meu amor, consegui vencer o abismo que nos separava e chegar até aqui. Minha alma foi arrojar‑se aos pés de Deus e pedir‑lhe, pelo muito que sofri em vida por amar‑te em segredo, que lhe concedesse a graça de aparecer‑te todas as noites durante o sonho. Deus, apiedado, porque eu te não possuí na vida dos sentidos, consentiu que me pertencesses nesta existência espiritual, melhor que a outra. Aqui me tens, e todas as noites, mal adormeças, eu virei buscar‑te.
Ângelo escutava‑a atentamente.
—E para onde tencionas levar‑me?. . . perguntou depois do primeiro abalo.
—Para toda a parte, respondeu Alzira, onde possamos esquecer as dores que já sofremos, e fruir as delícias que ainda não gozamos! Para toda a parte, onde cada lágrima derramada pelos nossos olhos, seja resgatada por um beijo de nossos lábios. . .
E deu‑lhe um beijo na fronte.
Ângelo soltou um gemido e retraiu‑se.
—Que tens?. . . indagou ela com meiguice.
—É que teus beijos são frios como as gotas da noite! . . . Parecem beijos de uma estátua gelada!. . .
—Sim! Enregelei na viagem. . . Ah! São tão frias as paragens que percorri!. . . Mas tu me aquecerás com os teus ardentes lábios de moço! tu me darás um pouco de calor do teu sangue!
Ângelo retraiu‑se ainda.
—Não tenhas medo, prosseguiu ela; este frio é todo exterior, meu coração arde‑me dentro do peito, como um vulcão sob a neve. Não fujas de mim! Vamos! Ergue‑te! Principiemos a nossa existência feliz! Vem, que só poderemos estar juntos até ao raiar do dia! Não há tempo a perder!. . .
E a sua túnica mortuária transformou‑se por encanto num rico vestido de castelã da época, e o seu porte readquiriu a primeira graça fascinadora.
Ângelo ergueu‑se deslumbrado, e viu com surpresa que a sua pobre sotaina também se transformava nas belas roupas de um cavalheiro nobre, e que seu corpo readquiria destreza e força.
— Que é isto? exclamou ele.
—É uma das vantagens da nova existência que te ofereço. Agora já não és um miserável cura de aldeia, és um homem, és livre, és senhor do teu corpo e de tua alma! Correrás comigo o mundo inteiro! Ao meu lado conhecerás todos os gozos, todas as paixões, tudo enfim que na outra vida representa os prazeres que te são vedados!
Ângelo passou‑lhe o braço na cintura.
—Sim! sim! disse. Eu irei contigo! Quero gozar! Quero viver!
E uma larga estrada maravilhosa abriu‑se defronte deles, onde dois negros cavalos, esplendidamente ajaezados, impacientes os esperavam relinchando.
—Vamos! Vamos!
Ângelo e Alzira montaram e partiram a galope.
O mundo dos mortos
O sonho continuou.
Ângelo, ao lado de sua fantástica companheira, deixou‑se arrebatar na vertigem de um galope tão lesto, que lhe dava a sensação de um vôo contínuo e rápido.
A floresta fugia em torno deles como duas faixas de treva compacta, que se rasgava de vez em quando ao súbito bruxulear dos relâmpagos.
Depois sentiram‑se dentro de uma estreita e profunda galeria toda de pedra, onde o tropel das patas dos cavalos ressoava como um frenético martelar de ferreiros infernais. E afinal acharam‑se defronte de um estranho palácio erguido em abóbada, cujo átrio solenemente se abria em arcadas, iluminado por um sinistro luar fosforescente.
Os animais estacaram desalentados, soprando forte pela boca e pelas ventas.
—Apeemo‑nos, disse Alzira, dando um salto em terra.
O companheiro imitou‑a.
—Onde estamos?. . . quis ele saber.
—Verás. Caminha comigo.
E penetraram numa extensa galeria toda formada de ossos.
Ângelo olhava para os lados, considerando aquelas longas colunas feitas de caveiras e de tíbias, por entre as quais perpassavam fugitivas sombras silenciosas, que o perturbavam.
Às vezes queria parar para ver melhor, mas Alzira arrastava‑o pela cintura, segredando‑lhe que se não detivesse ali um só instante.
—Vamos! Vamos! dizia ela, impaciente.
É só deteve o passo ao chegar a um enorme salão, singularmente ornado de estátuas em esqueleto e iluminado por milhares de piras bruxuleantes. Uma vasta galeria perdia‑se ao fundo, multiplicando as colunas a perder de vista.
Ao centro um grande órgão, em que velho e carcomido esqueleto, todo vergado sobre o teclado, tocava, com os seus movimentos demoradíssimos, uma arrastada harmonia funerária.
Ao lado do órgão outros esqueletos dançavam estranhamente, requebrando‑se por entre sombras e fantasmas vaporosos.
Sobre cochins de veludo negro, enfeitados de lágrimas de prata, damas e cavalheiros, que pareciam ter saído naquele instante das sepulturas, bebiam e conversavam meio abraçados, trocando sorrisos e beijos.
Por toda a parte viam‑se, passeando aos pares, espectros de homens e de mulheres; uns com os ossos à mostra, outros envolvidos em longas túnicas sombrias. Aqui declamavam versos de amor, ali carpiam saudade eternas, e todos surdamente e lentamente se agitavam, se confundiam e se baralhavam.
—Companheiros! disse um espectro no meio de um grande grupo, empunhando a sua taça, de onde saía um tênue vapor fosforescente. É preciso aproveitarmos bem as horas de que dispomos! A noite vai adiantada!. . . A aurora não tarda aí. . . Bebamos e folguemos!
—Bebamos e folguemos! responderam os outros, erguendo cada um a sua lívida taça.
E ouviu‑se um coro entoando surdamente uma canção de prazer.
Alzira aproximou‑se do grupo, acompanhada por Ângelo.
—Oh! exclamaram com surpresa, ao vê‑la chegar. Sê tu bem‑vinda!
—Eis Alzira que volta! Viva a formosa Alzira!
—Sim, respondeu ela; eis‑me de novo convosco, meus queridos e eternos camaradas! venho de novo reclamar o meu lugar e a minha taça nos vossos belos e misteriosos festins!
— Supúnhamos que não voltasses, observou um esqueleto.
—Mal havias chegado, fugiste logo. . . acrescentou outro.
—Ausentas‑te de nós tão chorosa e tão triste!. . . interveio um terceiro.
—Mas volto alegre como vêem!. . . declarou ela.
—De onde vens?
—Do mundo dos vivos.
—Da terra?... exclamaram todos.
—E verdade, amigos, venho da terra. . .
—E que foste lá fazer?. . .
—Buscar o meu amante. Cada um de vós tem junto de si a pessoa amada; eu precisava também ir buscar aquele por quem minha alma se apaixonou. Ei‑lo!
E tomando Ângelo pela mão, apresentou‑o à roda.
Ângelo saudou‑os com um amável movimento de cabeça. Mas os espectros mediram‑no com um revesso olhar de desconfiança.
—Parece um vivo!... objetou um deles, considerando‑o da cabeça aos pés.
—É, infelizmente é um vivo!... confirmou Alzira com ar de tristeza. E por isso mesmo mais me custou a trazê‑lo comigo. . .
—E como o conseguiste?. . .
—Indo a suplicar a Deus que mo confiasse durante as horas consagradas ao sono.
—E o Criador cedeu ao teu pedido?. . .
—Não! Cedeu às minhas lágrimas, cedeu à sinceridade do meu desespero, cedeu à eloqüência da minha dor! Quando minha alma, recendendo o aroma do primeiro beijo que recebi de Ângelo, penetrou nos céus e foi arrojar‑se aos pés de Deus, todos os seus anjos choraram com a minha mágoa de amor, e uniram as suas vozes celestiais à minha súplica terrestre.
E, recuperando o ar de satisfação com que entrara:
—Ah! mas agora estou resplandecente de alegria.
E passou os braços em volta do pescoço do seu companheiro, e perguntou‑lhe com a boca junto aos lábios dele.
—Não é verdade, meu Ângelo, que todas as noites, mal o sol se esconda, serás meu, só meu, para sempre, como aqueles dois velhos amantes de três mil anos que ali vão abraçados?. . .
—Quem são eles?... perguntou Ângelo, observando as duas sombras que ela indicava.
—Esope e Rodope. Mas, responde, amado da minha alma; não é verdade que durante as doze horas do dia pertencerás à outra vida, mas durante a noite serás todo desta, onde estaremos juntos?. . . Fala!
E, como percebesse que Ângelo se intimidava com a presença dos espectros:
—Confundem‑te os nossos companheiros?... criança que és tu! pensas que ainda estás na outra vida! Aqui o amor não é um mistério ou um pecado... ninguém aqui dissimula o que sente, porque ninguém sabe fingir!. . . Olha! Não vês além, junto daquelas colunas, como aqueles dois se beijam?... Anda! Beija‑me tu também!
—Sim, Alzira! respondeu Ângelo com transporte. Eu te amo, e estou disposto a nunca mais me separar de ti!
—Bravo! exclamou um espectro. Agora sim, Alzira, já não desconfiamos do teu amante. Ele pode ficar conosco!
—Foi a tua última paixão?... perguntou à condessa uma dama sepulcral.
—Ultima não—única!—respondeu aquela. Só a este amei na outra vida! este será o meu amor eterno! Desde a vez primeira em que o vi, minha alma voou logo para ele. Pertenço‑lhe!
—Minha alma és tu! exclamou Ângelo. Sou todo teu! Só a ti amarei sempre!
—Bravo! Bravo! gritaram os outros. Ao amor! Ao amor! Ao amor!
E as taças tocaram‑se freneticamente.
—Ao amante de Alzira! brindou um. Ao primeiro vivo que se animou a penetrar em nosso mundo ideal! Ao temerário Ângelo!
—A Ângelo!
—A Ângelo
—Agora, amigos, acrescentou o espectro, continuemos os nossos idílios. Deixemos Alzira em liberdade com o formoso amante!
E o grupo dispersou‑se, formando‑se diversos pares, que se afastaram, segredando palavras de ternura.
Alzira passou o braço nas espáduas de Ângelo, e os dois começaram a percorrer o estranho lugar em que se achavam.
Penetraram na extensa galeria que se desdobrava ao fundo.
—Onde estamos nós agora, minha querida?... perguntou Ângelo, penetrando na galeria de ossos e olhando em torno de si. Que estranhas sombras são estas que se cruzam em volta dos nossos passos?... Quem são aqueles espectros que conversava n conosco? . . .
Alzira chegou a boca ao ouvido dele. para dizer‑lhe: — São as minhas iguais e os seus respectivos amantes . . .
—As tuas iguais?. . .
—Sim, confirmou a condessa; são as cortesãs de todos os tempos e de todos os lugares da terra. Nesta, como na outra vida, cada uma de nós procura o lugar que lhe compete. Achamo‑nos agora em uma das seções da grande região das amorosas; esta é a seção das infelizes que, como eu, prostituíram o corpo na outra vida!... Todas elas vem ter aqui após o seu passamento, e a cada uma só acompanha o homem que no mundo a amou deveras e foi por ela correspondido.
E apontando para duas sombras que atravessavam nesse momento por defronte dos seus olhos:—Olha! Vês esse par que aí vai, conversando em segredo?... E' Cleópatra e Marco Antônio. Assim conversam há vinte séculos!. . . A outra que os sucede, enternecida e chorosa, é a imperatriz Teodora; a sombra que lhe beija os cabelos, é a sombra de Adriano. Amam‑se ainda!. . .
—E aquela outra?. . . indagou Ângelo, mostrando um belo espectro coroado de rosas vermelhas.
— E Valéria, explicou Alzira.
—Valéria?...
— Sim, a infame e formosa Messalina. Supunhas talvez que a infeliz não tivesse ninguém para a acompanhar neste mundo ideal do amor!... Enganas‑te; aquele que a segue, de olhos baixos, e cujo coração vês ainda palpitar sangrento através das brancas cavernas do peito, é o seu gentil escravo Ismael, a quem ela deu a virgindade do corpo, justamente na primeira noite do seu casamento com Cláudio.
E voltando‑se para outro lado, acrescentou:
—Olha lá Aspásia e Alcibíades, Dido e Enélas, Safo e Faon. Vê como cada qual desliza esquecido no seu amor. . . Ali vem, prosseguiu ela, a linda e desditosa Gabriela; anda à procura da sombra de Henrique IV! Aquela outra é Laís; acompanha‑a o esqueleto de Diógenes, trazendo ao pescoço a sua lanterna para sempre apagada. . .
Nesse instante desfilaram diante deles Marion de Lorme ao lado de Didier, e a pálida Margarida de Valois de braço dado com o duque de Guise.
Alzira segredou o nome deles ao ouvido de Ângelo.
—E aquele par que se beija tão apaixonadamente?... perguntou‑lhe este.
—Rizzio e Maria Stuart... A outra que diz agora um segredo ao seu cavalheiro, é Bianca Capelo.
—E essa que aí vem tão soberana?
—Impéria. Conheces aqueles dois?... Helena e Páris...
—E o outro par?
—Catarina da Rússia. O soldado que a acompanha, ninguém sabe quem é. . .
—E esta, quem será? olha o seu porte carrancudo e altivo!
—Lucrécia Bórgia, segredou‑lhe Alzira.
Mas uma geral agitação começava a apoderar‑se de todos aqueles casais de espectros. A música do órgão, até aí arrastada e lenta, principiou também a fazer‑se nervosa, acelerando o seu andamento, até transformar‑se num infernal galope, que arrebatava o turbilhão das sombras numa vertigem doida.
E, freneticamente, puseram‑se todas a dançar, aos beijos e aos abraços passando e perpassando no delírio de uma dança sensual.
— Que é isto agora?. . . perguntou Ângelo, prendendo o braço na cintura de Alzira. Por que é que todos se agitam deste modo?
—Ah! explicou ela com um espreguiçamento voluptuoso. É um frenesi de amor...
E suspirou luxuosamente.
—Não compreendo. . .
—É que Deus, elucidou a cortesã, nos seus bons momentos de ternura afaga os mundos, e essa carícia lhes produz lascivos estremecimentos. Neste instante um súbito espasmo sensual percorre toda a natureza. Em cada corpo animado há um sobressalto de amor. Neste instante toda a criação se predispõe a procriar; as feras e as borboletas, os homens e as boninas, acoitam‑se e beijam‑se, para garantia da interminável cadeia da vida! Olha! Vê! Todos se afagam! Todos se abraçam! . . .
—Sim! sim! exclamou Ângelo. Eu mesmo sinto percorrer‑me o corpo um sobressalto estranho!
Alzira atirou‑lhe os braços em volta do pescoço, e arrastou‑o para o turbilhão das sombras que giravam aos pares.
E ouviu‑se um coro de vozes, entrecortado de suspiros, a cantar, dançando:
Tenhamos amores! Ó feras! Ó flores! Condores! Panteras!
Amai‑vos! Amai‑vos!
E seguia‑se um crepitante estribilho de beijo
Cruzai vossas
graças,
Ó entes
De raças
Diferentes!
Ó gentes,
Amai‑vos! Amai‑vos!
E novos beijos se estalavam.
E o frenesi chegou ao auge do delírio, e as vozes e os suspiros perderam‑se todos num só grito, prolongado e agudo, um ai supremo, que resumia todas as vozes da natureza.
Houve um instante de espasmo, em que todos aqueles espectros fremiram consultivamente, chocalhando os ossos uns com os outros. Depois a música foi de novo enfraquecendo, e os gemidos foram‑se apagando, como as derradeiras notas de uma cantante caravana que se afasta.
E um desfalecimento geral empalideceu mais ainda a trêmula chama das piras, e os espectros começaram a dissolver‑se à fulgurante luz da aurora, que ralava lentamente, atravessando a imensa abóbada fantástica.
E brancas figuras esbatiam‑se, vaporosas como as cambraias da manhã, que o sol desfia e esgarça com a dourada ponta dos seus raios.
Ângelo mal podia já distinguir a sua amada.
—Alzira? disse ele.
—Adeus. . . respondeu o eco fugitivo de uma voz de mulher. Aí chega o dia'.. . separemo‑nos!...
— Quando voltas?
—À noite, sem falta! Às mesmas horas de
ontem . . .
E o murmúrio de um beijo esvoaçou‑lhe nos lábios.
—Adeus...
E Ângelo abriu os olhos.
Acordara.
Ergueu‑se com um salto. O dia entrava‑lhe já pelas vidraças da janela, o sino da igreja repicava chamando para a missa.
Ela! Sempre ela!
Pobre Ângelo! Sua alma tinha remorsos daquela noite passada em companhia de Alzira. Travava‑se dentro dele. uma pungente revolta contra o misterioso inimigo, que assim o arrancava à doce e honesta tranqüilidade do leito, para levá‑lo de rastos, como um perdido, pelos barrancos da fantasia, obrigando‑o a percorrer antros sensuais, ao lado do fantasma de uma cortesã, que o ameaçava de voltar todas as noites.
—Maldita sejas tu, imunda fantasia! pensava ele, maldita sejas tu, danosa imaginação! Ah! se pudesse eu fechar‑vos entre os dedos e reduzir‑vos a pó!. . . entretanto, governa ainda os meus sentidos e perturba ainda a minha consciência!. . . O pó e a lama dos sepulcros não são menos poderosos do que a carne palpitante, quando os reanimam a nossa saudade e o nosso amor!. . . Não há mulher que de nós desapareça para sempre, quando nós deveras a amamos!... Foge‑nos dos olhos, foge‑nos dos braços, foge‑nos dos lábios; mas da alma, ah! da alma, nunca mais, nunca mais desaparecerá a mulher amada!
E Ângelo voltou os olhos para o céu, interrogando‑o. E exclamou:
—Meu Deus, teria eu pecado com o sonho desta noite?. . . O sonho, bem sei, é produto do pensamento, e por pensamento se peca tanto como por palavras e por ações; mas o sonho não obedece à vontade de quem sonha, porque, se obedecesse eu só construiria meus sonhos com as cousas que vos pertencem... Deveis saber que sou bem intencionado e que sou sincero!. . . Ah! Maldita sejas tu, minha louca e desvairada fantasia, que me fazes revoltar contra mim mesmo!. . .
Se o velho Ozéas estivesse ali, ao lado dele. Ângelo teria ao menos a quem consultar o que devia fazer contra aquele inimigo terrível e traiçoeiro.
Mas só, como se achava, o mísero vacilara perplexo. Devia penitenciar‑se pelos desvarios da sua imaginação, ou devia deixar que o sonho continuasse a correr à solta, cometendo todos os desatinas que lhe aprouvesse?
Entretanto o sino lá fora o chamava para junto do altar. O sino o chamava para que fosse ele erguer a hóstia consagrada acima da sua atordoada cabeça, oferecê‑la a Deus em sacrifício!
Deveria ir?...
Sua alma estaria em suficiente estado de pureza, para arrastar‑se até ao supremo trono do Criador, ou deveria a mísera arrojar‑se por terra, envergonhada e corrida, à espera que as lustrais águas do tempo perpassassem bem por cima dela e a limpassem de todo?
Mas se ele em tudo aquilo não tinha a menor culpa?... Mas se o seu coração era puro, e só, em consciência, se preocupava com as causas divinas?...
Que deveria, pois, fazer?...
E o sino tocava, tocava, chamando‑o com insistência.
Ângelo preparou‑se, saiu do quarto e dirigiu‑se para a capela, em silêncio e aligeirando o passo.
—Sim, sim! pensava ele pelo curto caminho. O meu lugar é lá, junto do altar!. . . O meu lagar é aos pés da Divindade!. . . Que importa que as bruxas do sonho maquinem e conspirem durante a noite, furtando‑me a alma a Deus?. . . Eu sou da Igreja, só à Igreja pertenço, e é lá que devo estar como um marinheiro a bordo do seu navio, principalmente em dias de tempestade!
E entrou na capela.
Os aldeões o esperavam ajoelhados na nave, contritamente. Alguns tinham ao lado as ferramentas que deviam servir ao seu trabalho desse dia. Mulheres amamentavam os filhos, com os olhos fitos nas imagens dos santos. Velhos, secos e nodosos como esqueletos de árvore ressequidas pelo inverno, vergavam a cabeça sobre as trêmulas mãos apoiadas no bordão.
Os pardais e os melros chilreavam por entre as frestas das altas paredes da capela, caiada de cima a baixo.
As velas do altar derretiam‑se tristemente, consumidas pela surda chama que a sanguínea luz da manhã tornava desluzida e lívida.
Ângelo atravessou a igreja, de olhos baixos, e foi colocar‑se de joelhos nos degraus do altar.
A sua oração preparatória nesse dia durou mais tempo que nos outros. Notaram que as lágrimas lhe corriam pelas faces, quando ele se ergueu para celebrar o sacrifício.
E seus lábios tremeram na ocasião de receber a hóstia consagrada. Naquela alma, imaculada e sincera, um doloroso escrúpulo tolhia a confiança na sua própria pureza.
Mas celebrou.
E depois voltou‑se, de braços abertos para os crentes, abençoando‑os em nome do Pai de todos os homens.
Os sinos repicaram de novo.
Ângelo, mais sucumbido ainda que antes do sacrifício, retirou‑se da igreja cabisbaixo e concentrado.
À saída, um cavalheiro saiu‑lhe ao encontro e tirando o chapéu, disse‑lhe cortesmente:
—Perdão, Sr. vigário; tenho que desempenhar uma sagrada missão ao lado de vossa reverendíssima. . . Sagrada, porque é voto de uma pobre criatura que já não existe. . .
Esse cavalheiro era o conde de Saint‑Malô.
Ângelo convidou‑o a entrar em casa.
—Tenho um companheiro comigo. . . observou o conde, chamando com um gesto Artur Bouvier, que o esperava a certa distancia.
Depois de trocados os cumprimentos, entraram os três na modesta sala de jantar do pároco. Bouvier não se fartava de olhar para este como se observasse um fenômeno precioso pela raridade.
Naquela pobre casa desfavorecida do menor conforto, a elegante roupa de seda bordada a ouro dos dois cavalheiros destacava‑se escandalosamente. Ângelo, defronte deles pálido e mal vestido, parecia um esfarrapado cadáver saído naquele instante da vala comum dos miseráveis.
Uma idéia o preocupava todavia, desde o momento em que os considerou de perto. É que, ao vê‑los assim, cheios de saúde, gentilmente vestidos e empoados, levantando entre as abas da casaca a petulante ponta do florete, lembrava‑se da sua própria figura essa noite ao lado de Alzira, e seria capaz de jurar que já em sua vida, ou nos seus sonhos, tinha visto aqueles dois homens.
Salomé trouxe‑lhe pão fresco e leite fervido.
O pároco deu às visitas os melhores assentos que havia na casa, e ofereceu‑lhes do seu almoço.
Enquanto comiam, o conde expôs o motivo da sua viagem a Monteli.
—Venho, senhor cura, disse ele, entregar‑lhe um cofre e uma carta, que encontramos no espólio da falecida condessa Alzira... Aqui estão. Trazem o seu nome.
—O meu nome?. . . balbuciou Ângelo, a tremer, visivelmente perturbado, mas. . .
— Testamenteiros dela, como somos, acrescentou o conde, indicando ao mesmo tempo Bouvier, cumpre‑nos fazer entrega desses objetos. Ei‑los.
E apresentou‑lhe um pacote de pouco mais de um palmo de tamanho, cuidadosamente embrulhado e lacrado. Tenha a bondade de recebê‑los.
Ângelo, sumamente pálido, estendeu a mão, hesitante.
E tal era o seu tremor, que o conde teve de ajudá‑lo a quebrar o selo do pacote e tirar de dentro a carta, que lhe passou incontinenti.
—Leia, disse. Creio que esse papel explica a razão de ser do cofre. ..
Ângelo abriu a carta e leu o seguinte:
"Respeitável Cura de Monteli.—Desejo e peço a Vossa Reverendíssima que se encarregue de distribuir pelos infelizes da sua pobre paróquia, ultimamente tão vitimada pela peste, a quantia que acompanha esta carta e que se acha dentro de um cofre, por minha mão fechado e sobrescritado a Vossa Reverendíssima. Outrossim, peço que nas suas orações de santo interceda algumas vezes junto a Deus por minha triste alma pecadora arrependida e contrita."
Assinava "Alzira".
Com a leitura daquelas palavras, que pareciam vir do outro mundo, que pareciam vir do fundo nebuloso dos seus sonhos, Ângelo estremeceu todo e fez mais lívido que a própria Alzira, no momento em que ela pela primeira vez lhe surgiu da sepultura. Aquela carta, que um frio sopro de morte lhe arrojava às mãos, vinha obrigá‑lo a pensar nessa mulher já extinta, que tanto aliás o procurava ainda.
Oh! Aceitando aquela missão teria que pensar nela eternamente. . . Teria que envolver seu nome impuro nos sagrados dizeres das suas fervorosas orações!... Teria que falar a Deus a respeito dessa misteriosa cúmplice, de quem ele se não queria recordar nunca, e teria de a fazer conhecida e abençoada por todos os pobres da aldeia, enquanto durasse aquele dinheiro, fruto da prostituição!
E repeliu o cofre, disposto a não aceitar o encargo.
Mas pensou, antes de proferir a recusa; teria ele porventura o direito de assim proceder?.. . Teria ele o direito de privar os miseráveis de Monteli daquele utilíssimo socorro, que uma alma, sedenta de perdão, lhes enviava do seu leito de morte?. . .
E não seria fraqueza de sua parte, temer tanto ao traiçoeiro inimigo, que o vinha surpreender à noite durante o sono, quando justamente a sua consciência não era responsável pelos seus pensamentos?. . . Pois então a sua fé e a sua confiança em si próprio eram tão frágeis e tão mofinas, que assim covardemente fugia da luta, antes mesmo de começar o combate?
—Não! pensou ele, resoluto, pondo‑se de pé e estendendo a mão sobre o cofre. O meu dever será cumprido! Se mais sofrimentos me estão reservados por isso, tanto melhor! tanto melhor, porque mais completa será a minha provação! Maria sofreu muito mais, quando lhe arrancaram o filho dos seus amorosos braços de mãe, para atirá‑lo aos cruentos braços de uma cruz!
E, voltando‑se tranqüilamente para os outros dois, disse‑lhes sem hesitar:
—A vossa comissão, cavalheiros, está terminada. este dinheiro será discretamente distribuído pelos necessitados, e eu pedirei a Deus pela alma de quem lhes envia a esmola...
O conde e Artur Bouvier fizeram as suas despedidas. Ângelo foi acompanhá‑los até à porta, e depois recolheu‑se ao quarto, colocando o cofre sobre a mesa.
Despejou‑o. O conteúdo elevava‑se à quantia de cinqüenta mil francos em várias espécies. O pároco separou logo algumas placas de ouro e prata, para nesse mesmo dia principiar a distribuição de socorros.
Oh! ele, sabia melhor que ninguém aonde aquele dinheiro deveria encontrar o seu destino!. . . Quantas vezes, pensando em certas desgraçadas famílias de jornaleiros, reduzidas à fome pela poste, não chorou amargamente por nada mais de seu ter para lhes dar?... Quantas vezes não se privou do mais que restritamente necessário, para que não faltasse o leite a um desgraçadinho a quem já faltava mãe?. . . Quantas vezes não levou a sua esfarrapada batina à casa dos ricos do lugar, e não lhes estendeu a mão, esmolando para os que choravam de penúria e de frio?. . . Quantas vezes não se privou dos lençóis da cama, para cobrir com eles o corpo dos que gemiam na enxerga nua?. . .
Sim! Aquele dinheiro ia ser manancial de consolações!... Alzira, se durante a vida cometera muitos crimes, praticara na sua última hora uma ação boa lembrando‑se dos desamparados da fortuna.
Mas Ângelo, ao repor as cédulas no fundo do cofre, notou que um longo fio de cabelo louro envolvia‑se nos seus dedos.
Tomou‑o pelas extremidades e ergueu‑o até à altura dos olhos.
Era sem dúvida um cabelo de Alzira!. . . considerou ele, perturbando‑se. Era um triste e perdido raio de um sol que para sempre se apagara!. . .
E deteve‑se a fitá‑lo, embevecido de saudade.
Oh! por que Deus fizera assim longos os cabelos da mulher?. . . Por que lhos dera tão grandes e tão abundantes, se ela já não precisava deles, como outrora a Eva no Paraíso, para esconder a nudez de seu pudor?. . .
E continuava a fitar o tênue fio de ouro, perdido num dédalo de cogitações, que o arrebatavam para o mundo ideal das suas loucuras. Mas um sopro de brisa entrou pela janela do jardim e arrebatou‑o dos dedos.
Ângelo acompanhou‑o com a vista. O dourado fio de cabelo ondeou no ar, espreguiçando‑se, e subiu ainda, para depois voltar de novo lentamente, até ir cair afinal sobre os brancos pés da imagem de Maria.
O pároco não se animou a reavê‑lo, nem enxotá‑lo daquele sagrado asilo.
Quem saberia, pensou ele, se Alzira, que já não tinha lábios, nem olhos, para suplicar, não houvera, do fundo do seu eterno desterro, mandado um fio dos seus cabelos transmitir à Virgem o voto do seu arrependimento?
E voltou à mesa, assentou‑se, e, tomando o cofre entre as mãos, começou a considerá‑lo atentamente. Era um lindo objeto de luxo, uma boceta de ébano com incrustações de ouro, e guarnecida de artísticas miniaturas em marfim, que representavam assuntos mitológicos.
Em cima, na tampa, havia o nome da cortesã, cercado de flores e borboletas.
Ângelo continuou a admirar o bonito estojo, voltando‑o de todos os lados, abrindo‑o e fechando‑o repetidas vezes.
Mas de repente, estremeceu e repeliu‑o, torcendo o rosto para não vê‑lo.
Tinha descoberto, entre um grupo de anjinhos e cupidos cor-de-rosa, um pequeno oval de meia polegada com um delicadíssimo retrato de Alzira, primorosamente trabalhado, e de uma semelhança inexcedível.
Não quis vê‑lo; voltou as costas ao cofre. Mas seus olhos instintivamente procuravam a formosa miniatura.
E o mísero compreendeu e pressentiu que aquele retrato, era mais um inimigo que lhe invadia traiçoeiramente o espírito.
Misérias do coração
O resto desse dia passou‑o Ângelo em piedosas visitas aos pobres de Monteli. Só ao cair do sol tornou à casa, prostrado de fadiga e torturado pelas suas favoritas agonias.
Salomé trouxe‑lhe o jantar, em que ele, como de costume, mal tocou, para recolher‑se logo às suas orações defronte do altar da Virgem.
Às sete horas deitou‑se cansado e adormeceu logo, precipitando‑se no sonho, como se acordasse da vida.
Alzira esperava lá por ele.
—Ah! enfim! exclamou ela, abrindo‑lhe os braços e apresentando‑lhe os lábios. Tremia com a idéia de que te demorasses! . . . Não imaginas como estava impaciente por tornar a ver‑te!. . . A imobilidade a que me vejo condenada durante as horas do dia, é para mim indefinível tormento!. . . Maldita seja a sepultura!. . .
—Mas eu me não demorei!. . . observou Ângelo. Adormeci pouco depois de anoitecer... Não seriam mais de sete horas quando. . .
—Tens razão. Não percamos tempo! Partamos. Os cavalos chamam‑nos à montaria, escarvando a terra . . .
—Onde vamos nós?. . .
—A um lugar esplêndido. Sigamos!
Montaram e partiram desenfreadamente como na véspera, varando a alma trevosa da noite.
Galoparam! Galoparam!
No fim de algum tempo, Alzira chamou a si as rédeas do seu cavalo.
—É aqui, disse. Chegamos afinal!
Os dois apearam‑se.
Achavam‑se na estreita garganta de uma sombria serra, onde nenhum rumor de folhas se escutava.
—Andemos, disse ela.
Ângelo obedeceu.
E seguiram caminho avante, por entre um pedregal de serros e cabeços silenciosos, que se perdiam no céu, escondendo‑lhe as estrelas.
O caminho fazia‑se cada vez mais escuro, mais penhascoso e íngreme. Era já necessário aos dois ampararem‑se um no outro, para que não rolassem juntos por aqueles precipícios.
Afinal, penetraram num vale, fechado entre rochas negras e gigantescas, em torno das quais giravam aflitivamente sinistras aves, que corvejavam e gemiam, como se a cada instante rasgassem o peito nas arestas da pedra.
Era um convulso redemoinhar sem tréguas, lembrando um irrequieto bando de gaivotas, a doudejarom sobre as águas, no alto mar, quando a tempestade se aproxima, abrindo as longas asas prendes e agoureiras.
—Que diabo vimos nós buscar aqui?! perguntou o sonhador, intimidado por aqueles loucos gemidos que singravam no espaço.
—Viemos buscar dinheiro. . . respondeu Alzira.
—Dinheiro?... Para que dinheiro?...
—Ora essa! Para tudo! com dinheiro teremos prestígios nos lugares que vamos percorrer!
E avançando alguns passos, mostrou ao companheiro uma grande pedra encravada no rochedo.
—Vês esta pedra? disse ela. É a porta das cavernas do Ouro. Nesta misteriosa gruta acha‑se encerrada toda a riqueza dos avarentos já mortos, entesoura‑se aí todo o ouro desses miseráveis, que em vida sofrem as mais duras privações, para acumular dinheiro sem proveito de ninguém!
—E como vieram parar aqui todas essas riquezas?... indagou Ângelo.
A cortesã explicou:
—Por intermédio dos herdeiros pródigos e das mulheres da espécie a que pertenci no mundo dos vivos. Por minhas mãos passaram muitos e muitos milhões, que aqui caíram, derramados em longas e ruidosas noites de orgia. Esta esplêndida caverna é o tormento das almas amarelas dos usurários. . .
—E ao mesmo tempo é o teu banco. . . faceciou Ângelo.
—Justamente, tornou Alzira. Quando preciso de dinheiro, venho buscá‑lo aqui.
—E estas aves, porque esvoejam em torno da montanha, e por que soltam assim uivos tão tristes?. . .
—São as almas dos avarentos. . . Rondam, noite e dia, sem cessar, o tesouro que já não podem possuir e que ainda cobiçam. Atrai‑as o cheiro do dinheiro! Deixa‑as lá, míseras que são!
E Alzira encaminhou‑se para o pedregulho que fechava a gruta, e tocou sobre ele com a sua linda mão cor de nove.
A pedra afastou‑se incontinenti, e uma fulgurante abertura fez defronte da cortesã, jorrando luz como a boca de uma fornalha.
As aves que rondavam a montanha, assanharam‑se e logo se puseram a rodopiar com mais fúria, multiplicando os uivos e os gemidos.
Ângelo adiantou‑se deslumbrado, olhando para dentro daquela esplêndida galeria de ouro e pedras fulgurantes.
—É maravilhoso! exclama ele. É surpreendente! Oh! quanta riqueza! Que interminável tesouro!
E olhava, fascinado.
A galeria, plana embaixo e por cima abobadada, firmava‑se em colunas de ouro. O chão era calçado de moedas de todos os países; de espaço a espaço erguia‑se um repuxo também de ouro, donde espipava ouro líquido que se derramava, entre rocas de esmeralda, formando reluzentes lagos nunca secos. Do teto pendiam estalactites de ouro, de coral e de topázio. As paredes cintilavam num delírio de fogos multicores, em que fulguravam diamantes, safiras, rubis, opalas e cornalinas.
— Oh! Que deslumbramento! exclamou Ângelo, sem desviar os olhos da refulgente caverna. Que grande maravilha!
—Não tão grande, opôs‑lhe Alzira, procurando com os lábios alcançar‑lhe a boca; não tão grande como o amor que me inspiraste!
Ângelo não lhe ouviu as palavras, nem recebeu a carícia que ela lhe oferecia. Toda a sua atenção era para a sedutora caverna.
—Não me escutas, meu querido amor?. . .
Ele, em vez de responder, perguntou avidamente:
—Eu também posso levar daqui o ouro que quiser, não é verdade?. . .
—Não, disse Alzira entristecendo; não podes carregar daqui com um grão de ouro. . . Eu, sim!
—Por quê?
—Porque nunca foste perdulário... Ah! mas descansa que nada te faltará!. . . Estarei sempre a teu lado, e sempre terás à mão a minha bôlsa.
Ângelo abaixou os olhos, empalidecendo.
— Que tens, meu amor?. . . interrogou a amante. Sentes‑te mal? . . . Fala.
—Nada!...
E cerrou os punhos, rilhando os dentes.
—Oh! cala‑te! Terrível sentimento apodera‑se do meu coração! Sinto‑me ambicioso e ávido de riquezas! Desejo ser o único dono de todos aqueles tesouros que ali estão acumulados! E esta cobiça me faz estalar o cérebro' Tenho o sangue a escaldar! Tenho febre! Tenho febre!
—Empalideces! Ó Ângelo! Ângelo! não te preocupes com o ouro! Pensa em mim, que sou a tua riqueza!
Ele, afastou‑a com o braço.
—Sofro! sofro neste instante! acrescentou. Faz‑me mal a vista de tanto ouro! Tenho vertigens! Desejava agora ser mil vezes milionário e ter todas as grandezas da terra!
—Ângelo! Ângelo!...
—Oh! deixa‑me! Afinal não passo de um pobre aventureiro, sem o menor prestígio, sem ter sequer um nome de família! não passo de um miserável, sem passado e sem futuro, uma sombra de homem, sem esperanças e sem saudades! Não sou ninguém! ninguém!
—És muito, és tudo, meu amor, és tudo, pelo menos para mim! exclamou Alzira, tentando inùtilmente chamá‑lo a seus braços. Que te importam o futuro e o passado, se tens o presente, que sou eu?. . . Riquezas e grandezas! mas tudo isso não vale o ser amado como eu te amo, meu Ângelo!
—Não! Não! Quero ir morrer lá dentro, afogado naquelas voragens de ouro!
E, desprendendo‑se dos braços dela, precipitou‑se para a caverna.
Mas uma resplandecente figura, de longas barbas e cabelos de ouro vivo, cortou‑lhe a passagem, colocando‑se à entrada da grata.
—Era o Demônio de Ouro.
Vinha cintilante da cabeça aos pés, e o diadema, que lhe guarnecia a fronte, refulgia como um sol.
—Para trás! disse ele a Ângelo. E presta toda a atenção ao que vais ouvir!
O ambicioso abaixou o rosto e recuou dominado.
O opulento gênio avançou alguns passos e disse, tocando no ombro da cortesã:
—Alzira! continuas então a vagar durante a noite pelo mundo dos vivos, em vez de jazeres tranqüllamente na tua sepultura?. .
—Cala‑te, por amor de Deus, que essas palavras desconsolarão o meu amante, se as ouvir...
—Volta de vez para o túmulo! . . .
—Não! A minha sepultura é tão fria e eu morri tão moça... que, à noite, quando os vivos dormem, preciso vir aquecer‑me nos braços de Ângelo. .. Não é assim, meu amor?. . . acrescentou ela, indo ter com o companheiro.
Este, porém, não respondeu, nem desviou os olhos das riquezas da caverna.
—E ele te ama?... perguntou o demônio à cortesã.
—Adora‑me! afirmou a interrogada; e por mim ama a vida e os prazeres.
—Queres dinheiro, já sei, tornou aquele. Entra e enche‑te à vontade. Leva o que quiseres; tudo o que levares, voltará multiplicado!
Alzira entrou na gruta. Ângelo quis acompanhá‑la; o gênio de Ouro deteve‑o de novo.
—Espera! Ouve! disse.
E tomou‑o amigàvelmente pelo braço, acrescentando:—Que te falta, ambicioso?.. . Que te falta para seres feliz?... Tens mocidade e dispões da bôlsa de Alzira, a quem é permitido fartar as mãos neste inesgotável tesouro! . . .
—O que me falta? volveu Ângelo. Falta‑me tudo! falta‑me o poder absoluto! Queria ser um homem tão poderoso, que a um gesto meu o mundo inteiro se curvasse submisso e escravo!
—Por pouco que desejavas ser Deus!
—Oh, não! Não me fale em Deus! Não lhe invejo a grandeza! Queria uma glória mais humana, queria ter as conquistas de César e Alexandre, ligadas ao genial prestígio de Homero e Dante!
O demônio sorriu, mostrando os seus dentes de ouro luminosos, e replicou depois, fechando de novo a fisionomia:
—Não posso satisfazer tanta ambição!... Conquistam‑se tronos, como verá teu espírito no século futuro, porque um homem virá ao mundo, e mesmo em França, tão atrevido, que com a ponta de sua espada descobrirá as régias frontes, para guarnecer a sua cabeça de soldado com uma coroa de imperador. . . Sim! conquistam‑se coroas de rei, mas não se conquista a coroa de louros do mendigo de Tebas, porque essa não cabe em nenhuma outra cabeça. Falaste em Dante!. . . faze tua alma tão grande como a dele, e serás o mais desgraçado dos homens... Abre‑lhe o cérebro, abre‑lhe o peito, abre‑lhe os intestinos! encontrarás nessas três regiões do pensamento, do amor e da animalidade, o modêlo dos círculos do inferno, que ele traçou no seu lancinante poema. E nesses círculos só uma força há que os iguala e nivela, é a dor! A dor de quem pensa, a dor de quem ama e a dor de quem tem fome! Queres ser feliz?. . . Vive bestialmente! opõe os teus sentidos ao teu cérebro e ao teu coração! Sê bruto, meu filho! A natureza é um pasto de bêstas—espoja‑te nele, se quiseres gozar a vida!
E tirou da cinta um punhal de ouro, que apresentou ao seu interlocutor, acrescentando:
—Guarda esta arma! Defende‑te com ela e vencerás sempre!
Ângelo apoderou‑se do punhal.
—Obrigado! exclamou. Obrigado! Com esta arma poderei dominar os meus semelhantes!
—Se fôras deveras um ambicioso!. .. Mas não o és, pois ao contrário principiarias por tentar vencer a mim próprio, para te apoderares dos meus tesouros. . . Adeus! Não passas de um ambicioso vulgar!. . .
E recolheu‑se à gruta.
Alzira saiu logo em seguida, fechando‑se sobre ela o pedregulho da entrada.
Fez‑se de novo escuridão completa. As aves recomeçaram a doudejar desesperadas, perseguindo agora a cortesã, como se lhe fariscassem o dinheiro que ela levava consigo.
Alzira, com efeito, vinha carregada de ouro e pedras preciosas.
—Vamo‑nos daqui! disse ao companheiro.
E puseram‑se a subir a montanha, com os braços na cintura um do outro.
Ângelo ia preocupado e triste.
—Que tens tu?... perguntou‑lhe a amante ao fim de algum tempo de caminho.
—Nada! tartamudeou ele.
—Tremes, meu amigo!. . .
—É do frio da noite. ..
E nesse instante saiu‑lhes em frente meia dúzia de salteadores armados, cortando‑lhes a passagem.
O amante de Alzira mal teve tempo de puxar o seu punhal e passar a amada para trás de si.
—Matem o homem e prendam a mulher, que a quero para mim! ordenou o chefe da quadrilha.
Mas os primeiros bandoleiros que se precipitaram sobre o viajante, caíram apunhalados, rolando a montanha.
—Matem‑no, com um milhão de raios! exclamou furioso o chefe, levando a arma ao rosto e fazendo pontaria sobre o assaltado.
O tiro partiu, alcançando um dos bandidos, enquanto mais dois caíram aos pés de Ângelo.
—Ah! bradou o chefe, desembainhando o seu sabre; agora somos apenas um homem contra outro homem, pois veremos qual dos dois fica com esta mulher!
E atirou‑se de um salto sobre o adversário, que o esperou na ponta da sua arma invencível.
—Maldito sejas! bramiu aquele já ferido. Hei de matar‑te!
—Hás de morrer! tornou o outro, abrasado de cólera. Nunca mais terás olhos para cobiçar a minha amante!
E arrancando contra ele, coseu‑lhe o peito a punhaladas.
—Ai! gemeu o salteador agonizando.
—Fujamos! segredou Alzira, puxando pelo braço o companheiro.
—Não! Hei de beber‑lhe primeiro o sangue! Hei de beber o sangue de todo aquele que pretender arrancar‑te de meus braços!
E vergou‑se sobre o cadáver, colando‑lhe os lábios a uma ferida do peito que sangrava.
—Ângelo! Ângelo! partamos! Olha que aí vem o dia! exclamou a cortesã.
Ângelo ergueu então a cabeça e notou que, com efeito, em volta dele tudo começava a esbater‑se à luz da aurora. O próprio cadáver de cuja ferida acabava ele de despregar a boca cheia de sangue, nada mais era do que uma transparente sombra, estendida a seus pés.
E as montanhas foram‑se dissolvendo, e outros objetos se acentuando por detrás delas.
E Ângelo, de olhos bem abertos, foi a pouco e pouco distinguindo e reconhecendo o seu modesto aposento de Monteli. Através da tenebrosa paisagem que fugia, viu ele surgirem lentamente as velhas estantes pejadas de livros santos, viu o seu genuflexório de madeira escura e viu surgir o altar, onde a Virgem sorria com o coração atravessado de punhais.
E ergueu‑se a meio sobre a cama, tateando os olhos e apalpando a enxerga.
Levou a mão aos lábios e consultou‑a depois, tal era o enjoativo gosto de sangue que ainda sentia na boca.
Os sinos tocavam lá fora, chamando para a missa. Levantou‑se, abriu a janela, olhou um instante o aia recém‑nascido, e em silêncio preparou‑se para sair.
Daí a pouco, o seu trêmulo e negro vulto atravessava a capela, e ia cair ajoelhado nos degraus do altar, arquejando, que nem um libertino depois de uma larga noite de dissipação.
Seus olhos amortecidos, quedavam‑se como que indiferentes à própria imagem defronte da qual ia ele celebrar. A sua triste figura, sombria e vacilante, já não era a de um fervoroso crente, a de um sacerdote contrito, mas sim a de um cansado ascético, que não pode nem sabe chorar nem rir.
E os fiéis começavam até a murmurar contra ele, principalmente depois que alguns pares da vizinhança se achavam de passagem em Monteli, aproveitando o tempo para conspirar contra o vigário do lugar.
—Olhe você para aquilo! segredou um dos tais a outro que tinha ao lado! Veja só se aquilo são modos de estar ao altar!... Parece um ébrio! Não é debalde que todos nós estamos prevenidos contra este esquisitão! . . .
—Creio que ele não regula bem da cabeça. . .
—É pancada, ou finge que o é!. . . Mas inclino‑me a acreditar que, no fim de contas, é nada menos que um grande velhaco... Você não conhece a história que por aí corre, a respeito deste santinho com a brejeira viúva do morgado de Thevenet?. . .
—Não! Não sei de nada... respondeu o eclesiástico, já arregalando gulosamente os olhos e cheirando sorrateiramente uma pitada.
—Pois deixe acabar a missa, que eu lhe contarei tudo. . . Você vai ficar abismado! ...
Ó louco! Ó louco!
Ângelo nunca fora amado por grande parte dos seus colegas, e a razão disso estava na inconsciente fortuna com que se iniciou Ele, na vida pública, e no prestígio de santo que logo lhe deram os seus paroquianos.
É assim sempre em todas as classes sociais. Os nossos confrades estão sempre bem dispostos a nosso favor, enquanto não lhes tomamos a dianteira. Todas as flores são poucas para nos atirarem; desde o momento, porém, que os deixamos para trás—não há pedras no chão que cheguem para satisfazer a sua avidez de quebrar‑nos a cabeça e as pernas.
Os padres a Ângelo invejavam, menos no que este realmente era, naquilo que, por moto próprio ou por sugestão de Ozéas, ele desdenhava ser.
Mas o coração de um homem paro é como o sândalo, que perfuma o machado que o decepa. O coração de Ângelo embalsamava a boca dos caluniadores que o mordiam.
Prova‑o a tal famosa história, que o padre na capela prometeu contar ao outro, envenenando‑a sem dúvida, e a qual tinha afinal a sua base na mais legítima bondade cristã, como se pode ver pela seguinte exposição do próprio fato:
A viúva do morgado de Thevenet era mulherzinha de má nota. Em Monteli falava‑se, à boca pequena, a respeito dos seus desregramentos amorosos. Constava mesmo que certa rapariga morrera de desgosto, porque o seu noivo cairá um dia nos braços da maldita, e nunca mais conseguira despregar‑se deles, senão para ser enterrado.
Entretanto, Ângelo, logo nos seus primeiros tempos de Monteli, uma vez, depois de uma das prédicas da quaresma, fora surpreendido em casa com a visita da
viúva.
Recebeu‑a amàvelmente, como a todos recebia.
A mal reputada senhora não procurou rodeios para confessar a profunda impressão que sentira, ouvindo as simples e sinceras palavras do eloqüente pregador, e, tal fora a súbita vergonha que lhe veio pelas impurezas do seu passado, que àquele pediu encarecidamente para ajudá‑la na obra da sua regeneração.
Chorou. E o presbítero compreendeu que aquelas lágrimas não eram fingidas, e que ali estava a seus pés uma alma capaz de convicto arrependimento.
Não hesitou um instante, pôs‑se logo à disposição dela, pronto a servir‑lhe de guia espiritual. O primeiro conselho que lhe deu, foi que alijasse de si, e de uma só vez, todos os seus antigos pensamentos, e procurasse criar novos, inspirados na moral cristã e no exemplo dos justos, porque, desde que os pensamentos fossem bons, as ações seriam boas conseqüentemente.
Ela prometeu obedecer.
Depois aconselhou‑a a que procurasse, antes de entrar na prática da piedade, exercer sinceramente a caridade, como um salutar curso preparatório e caminho mais curto e mais seguro para aquela.
—A piedade, dizia ele, é flor mimosa e exigente; só pode ser exercida com bom proveito, quando o coração de quem a pratica se acha em absoluto estado de paz, e quando se sente feliz e satisfeito consigo mesmo. Sem a inteira harmonia de todos os atos e de todas as intenções, ninguém pode, minha irmã, ser piedoso e justo. A piedade é o perfume da moral religiosa, é o lírio branco e místico do amor pelos seus semelhantes. Sede virtuosa convosco mesma e sede boa para todos sem distinção de ninguém, que a piedade derivará dos vossos atos, como a paz deriva da consciência reta e cônscia do cumprimento dos seus deveres. Ah! se não fora esse inquebrantável apoio, como seria eu o mais desgraçado dos homens! E, no entanto. . . não sou dos mais criminosos. . .
Ela perguntou por onde devia principiar a exercer a caridade.
—Não poderia ninguém desejar melhor ocasião, nem melhor lugar do que este, respondeu Ângelo. Monteli presentemente é um vale de lágrimas, que clamam socorro. Ide ter com os miseráveis que não têm quem lhes leve aos lábios o crucifixo na hora da morte, ide ter com os órfãos sem regaço que os acolha, e com as donzelas sem defesa e sem forças para guardar a sua virgindade. Socorrei‑os a todos, socorrei os desgraçados, indeterminadamente, que, entre os vossos favorecidos, será a vossa própria alma a primeira e mais socorrida pela vossa caridade!
E o presbítero foi em pessoa ensinar‑lhe os frios caminhos do desalento e da fome, e conduziu pela mão aquela arrependida ao lugar do sacrifício, da humildade e do verdadeiro amor, isto é, à cabeceira dos que gemiam na miséria e no abandono.
A viúva aprendeu o caminho que lhe ensinara o presbítero. Apaixonou‑se pelo bem, dedicou‑se de corpo e alma à mais praticante e religiosa caridade e, dentro de muito pouco tempo, oferecia com as suas ações belíssima exemplo de moral e virtude.
E todos começaram a respeitá‑la.
Ângelo, encantado com tão completa transformação, dedicava‑lhe já uma estima sem limites, e muitas vezes a acompanhava em suas piedosas romarias à casa dos pobres mais remotos.
Mas um dia, dois meses depois que a viúva começara a sua reabilitação, um fato, que precedia de época anterior, veio enchê‑la de infinita tristeza e colocá‑la no mais vivo embaraço.
Sentia‑se grávida.
O último cúmplice de seus passados desvarios sensuais, e a quem ela devia agora aquela dolorosa situação, era um pobre diabo de um boêmio, rico e libertino, que um belo dia lhe fugiu dos braços e nunca mais lhe deu notícias suas.
Ângelo, ao ouvir‑lhe a confissão, não teve um gesto de censura, nem de repugnância; era antes a compaixão o que se revelava na sua fisionomia.
—Resigne‑se... disse‑lhe ele tranqüilamente; e seja boa mãe de seu filho. Não o desampare! Oh! por cousa nenhuma desta vida o desampare! sofra com energia as conseqüências do seu êrro, aceite as represálias sociais que daí procedam, como elementos novos de sacrifício, e continue na obra da sua reabilitação.
E não alterou em nada a estima e o respeito que lhe votava; ao contrário, depois que a infeliz sentia crescer o fruto da sua culpa, Ângelo parecia mais compassivo e mais atencioso para com ela. Ia vê‑la, dava‑lhe notícias dos seus pobres, encarregava‑se de a estes levar socorros em seu nome e, quando orava, pedia a Deus que poupasse à mísera os dissabores que ainda lhe reservava.
Foi naquela célebre noite da tempestade, em que Salomé o esperava com impaciência, que a viúva deu à luz o filho.
Ângelo veio então da casa dela, supondo‑a livre de perigo; mas agora, justamente nos últimos dias em que o pároco era vítima dos sonhos com Alzira, a parturiente fora acometida de febre e achava‑se em risco de vida.
O fato, logo que transpirou, tornou‑se escandaloso. Não se falou noutra cousa em Monteli durante esses dias.
A viúva, depois de uma noite de delírio, em que repetia sem cessar o nome do presbítero, faleceu nos braços deste.
Outros padres estavam presentes e cochichavam à socapa, felizes por terem afinal descoberto bom pasto para a sua campanha de difamação. Ângelo, de todo desprevenido contra o mal que pudessem julgar dele, dava ampla expansão às lágrimas que a morta lhe merecia e rezava de joelhos ao lado do cadáver.
Depois do enterro, o presbítero pensou no pequenito, que assim tão tristemente se orfanava logo ao entrar no mundo, e resolveu, visto que a falecida não deixava parentes, carregar com ele para a casa de uma família pobre, que se quisesse encarregar da sua criação.
Imagine‑se o que não fizeram os seus adversários com todo este, combustível para a intriga.
Por tal modo tramaram e conspiraram contra Ângelo, que o público começou a prevenir‑se contra ele, e afinal, quando depois viam atravessar lentamente pela estrada o seu triste vulto contemplativo e enfermo, segredavam já em voz brejeira:
—Anda apaixonado!... Não se consola da morte da viúva!. . .
Ângelo seguia em silencio, indiferentemente, sem distinguir o murmúrio da calúnia que lhe esvoaçava em torno dos pés.
Mas os seus contrários rosnavam, ameaçando‑o:
—Ah! Finges pouco caso?. . . Pois deixa estar que te mostraremos quem pode mais: tu ou nós!
Era bem singular esta luta de alguns padres, apercebidos com todas as armas da intriga, contra aquele pobre cura indiferente à maldade humana, caminhando abstrato pelo seu destino, com a alma inconscientemente caída por terra, e os olhos da razão postos no céu.
E, não obstante, os padres lá iam para a frente, ganhando terreno contra Ângelo e agitando de Monteli até Paris os seus estandartes de difamação. Quanto aos romeiros, quanto aos que vinham à casa do presbítero arrastados pela fé no milagre, a esses o sincero pároco falava francamente e dizia‑lhes que—Milagres, só Deus os podia realizar, porque a tanto chegava o seu infinito poder; mas que ninguém devia levar tão longe a vaidade, que se julgasse digno de provocá‑los ou merecê‑los, sem incorrer em desagrado aos olhos do Senhor, que só amava aos simples e despretensiosos.
Que voltassem para os seus lares! exortava‑lhes Ângelo, que voltassem para os seus lares!... Os homens para o trabalho que dá o pão de cada dia, e as mulheres para junto dos seus filhos e dos seus deveres de esposa.
—Ah! dizia abertamente, sem armar ao menor efeito. Ah! meus irmãos! quando o lar é abençoado e honesto, não precisa que venham buscar Deus aqui tão longe; Deus irá lá ter espontâneamente e far‑se‑á lembrado a cada instante. Sejam bons e leais, e Deus será convosco! Não o ofendam, pretendendo que eu faça o que só ele tem o direito de fazer!
Este modo de proceder era a pior arma que Ângelo podia vibrar contra os seus adversários, porque nentralizava o pábulo da maledicência; mas os molinistas, assim que deram com isso, mudaram de tática e começaram a persegui‑lo por outra face.
Um dia o presbítero ficou muito surpreendido, quando na rua gritaram atrás dele:
— Ó louco! Ó louco!
E, desde então, convenceu‑se de que não era amado, nem respeitado, por uma parte da população de Monteli.
De outra vez, depois de ouvir aquelas mesmas palavras, recebeu nas costas uma pedrada.
Voltou‑se, abaixou‑se e apanhou a pedra.
A certa distancia havia um grupo de rapazes e raparigas, foi até lá e perguntou se era algum deles, que tinha arremessado a pedra.
Ninguém respondeu.
—Meus filhos, disse Ângelo então; aos loucos não devemos apedrejar, que são eles capazes de cair em raiva. Alguns tenho eu visto aí pela aldeia, a quem até dão pão e dão leite. . .
E passando a mão na cabeça de um dos pequenos, perguntou‑lhe, sem cólera:
—Por que me atiraste tu a pedra?
—Era para aquele cachorro! . . . disse o rapazito, apontando um cão.
—Mentes, meu filho; mas ainda que dissesses a verdade, serias pecador, porque é pecado apedrejar aos cães. . . Perdôo‑te por esta vez e aconselho‑te a que não cometas igual delito.
Afastou‑se, e quando tinha feito algum caminho, ouviu de novo atrás de si:
— Ó louco!
Talvez tenham razão!... disse Ele, consigo, sacudindo os ombros.
E, com efeito, para quem só julgasse pelas aparências, Ângelo figurava um louco. Na terrível palidez do seu rosto, brilhavam‑lhe os olhos sinistramente com desvairada expressão; seus lábios, que nunca sorriam, denunciavam fria e profunda angústia, que se não traduzia por palavras; um mistério de sofrimentos havia nas rugas precoces da sua fronte mais branca que o mármore das sepulturas, e os seus gestos eram lentos e como que mal governados, e o seu andar vacilante e frouxo, como o de quem caminha lentamente para a morte. Todo ele era apenas uma estranha sombra que atravessava pela terra, sem se comunicar com ela.
Estava cada vez mais fraco e mais abatido.
E não podia ser senão assim, porque Ângelo sofria muito e não tinha um momento de repouso. Durante o dia era dos seus misteres religiosos e dos seus deveres de piedade, e à noite, quando se recolhia à cama, em vez de descanso, tinha para o martirizar o tormento do sonho.
À noite, ele pertencia a Alzira. A cortesã vinha buscá‑lo ao leito, e carregava‑lhe o espírito com ela até a manhã seguinte.
E o mais curioso era que, naquelas duas existências, tão opostas e até tão inimigas, o cavalheiro amante da condessa Alzira conhecia o cura de Monteli e ria‑se ìntimamente das ingenuidades dele ao passo que Ângelo, em mente, detestava o outro e não lhe perdoava as libertinagens e os crimes.
Com o correr dos sonhos, formou‑se uma secreta rivalidade entre o padre casto e o licencioso boêmio. Odiavam‑se. Cada qual desejava a extinção do rival.
O presbítero, entretanto, a ninguém confiara até aí o segredo das escapulas do seu espírito, e principiava a habituar‑se àquele duplo viver de sacerdote virtuoso e de folião profano.
Alzira vinha invariavelmente buscá‑lo, mal fechava ele os olhos, e levava‑o de cada vez a um novo lugar de prazeres.
O último passeio maravilhoso daquelas noites deixara‑o profundamente impressionado, porque fora de todos o mais comovedor e transcendente, como vai ver o leitor.
Foi assim esse terrível sonho:
Luta de Ângelo com a própria sombra
Ângelo, ao adormecer, viu‑se logo à margem de uma formosa baía, cercada de misteriosos arvoredos, por entre os quais se destacavam ao luar os mármores de velhos palácios talhados em estilo veneziano.
Alzira veio buscá‑lo numa gôndola cor de prata, guarnecida de brilhantes lanternas verdes. Ele embarcou e sentou‑se ao lado dela.
A gôndola começou a deslizar indolentemente sobre as águas, onde o céu se espelhava todo azul, borrifado de estrelas, e onde as luzes dos barcos e das janelas ogivais vinham perder‑se em trêmulos reflexos de mil côres.
A noite era serena e transparente. Alzira pousou a cabeça no ombro do seu amante, tomou um bandolim e começou a cantar:
As águas tem mil lampejos, Se a brisa cantando vai... Ó mar! bebei nossos beijos! Ó brisas! murmurejai!... Ai! ai! O mar tem alma, É belo o mar! A noite calma Convida a amar! Ai! ai!
Um coro longínquo respondeu noutro tom da margem aposta: Vivam os amantes Cantando aos pares! Voem distantes Negros pesares!
Alzira continuou a cantar, e Ângelo cantou depois de beijar‑lhe a boca:
As águas dormem, querida; A lua brilha nos céus.. . Eu quero beber a vida Num beijo dos lábios teus!... Ai! ai!
E ambos repetiram:
O mar tem alma É belo o mar! A noite calma Convida a amar! Ai! ai!
O coro respondeu agora mais perto, porque a gôndola se aproximara dele:
Vivam os amantes
Apaixonados,
Morram as dores
E vãos
cuidados!...
E Ângelo achou‑se defronte de um lindo alpendre, construído à beira‑mar e coroado de verdura e de flores.
— Saltemos! disse a cortesã, indicando a longa e branca escadaria de pedra batida pelas águas.
E os dois saltaram, galgaram os degraus de mármore, e penetraram num doce e vasto recinto, frouxamente iluminado por balões venezianos.
Ao centro havia um esplêndido tapete desdobrado no chão, com uma ceia servida em baixelas de prata e ouro.
Aí três cavalheiros e três damas, ricamente vestidos e negligentemente reclinados em coxins orientais, bebiam e comiam, em boa camaradagem, a rir e conversar, e meio abraçados uns com os outros.
Mais adiante três damas e um cavalheiro, assentados sabre macias e felpudas peles, jogavam as cartas, entre beijos e gargalhadas.
De outro lado, três moços trajados à napolitana e estendidos por terra, fumavam em volta de um grande cachimbo arábico, e bebiam vinho cor de topázio, que uma bela rapariga de colo nu lhes derramava nos copos de ouro.
Sobre o cais que dominava a baía, um casal deitado, de peito para o ar, contemplava a lua, ambos quase adormecidos, com a cabeça pousada nos braços um do outro.
Cantavam a meia voz em tom de barcarola:
Tem a vida mil
encantos,
Quando a gente sabe
amar...
Os gozos são tantos,
quantos
Murmúrios há no mar...
Deixa‑me a boca
Tua beijar!
A vida é pouca
Para te amar!.. .
Ângelo parara à entrada com Alzira.
—Que bela cousa é o prazer!... disse um dos cavalheiros que ceavam.
E acrescentou, abraçando preguiçosamente as duas damas que tinha ao seu lado:
—E pensar que há por esse mundo gente que fala em tristezas!.. . As mulheres, as flores, a música, o jogo, o vinho e os bons manjares, eis o nosso elemento da vida!. . .
E tomando as mãos da sua vizinha da direita:
—Não é verdade, minha bela, que o prazer é a melhor cousa da vida?. . .
A dama respondeu‑lhe com um beijo, quebrando os olhos voluptuosamente.
—Ganhei! disse outro cavalheiro no grupo dos jogadores. Paga!
—Aqui tens! volveu a dama, oferecendo‑lhe os lábios, que ele beijou com delícia.
E ela exclamou logo em seguida:
—Agora ganhei eu!
Ele tirou da cinta um punhado de moedas que lhe atirou ao colo.
E continuaram a jogar.
—Entremos! segredou Alzira, penetrando no recinto do alpendre.
—Que lugar encantador!. . . considerou Ângelo, que até aí estivera a olhar para todos os lados, deveras surpreendido.
E fazendo a todos um rasgado cumprimento:
—Boa noite, cavalheiros!
—Vivam, rapazes! exclamou Alzira ao mesmo tempo.
Foram correspondidos indolentemente pelos circunstantes.
Só um dos cavalheiros da ceia voltou‑se para eles, e disse‑lhes em ar amável:
—Boa noite, gentis namorados. Andais gozando a vida, não é verdade?. . .
—Sim, respondeu Alzira. Temos mocidade e dinheiro: queremos gozar!...
—Sede bem‑vindos! volveu aquele; não podereis escolher sítio melhor! Aí tendes o que comer e o que beber. .. Tomai assento conosco e sereis dos nossos! Bebei e embriagai‑vos, caríssimos:
Ângelo e Alzira assentaram‑se juntos num coxim, e o cavalheiro prosseguiu, mal podendo abrir os olhos:
—Aqui as horas correm ligeiras e felizes! Escorregam como um bom vinho!. . .
—Mas quem sois vós?... perguntou Ângelo, levando aos lábios a taça que acabara de encher.
O interrogado explicou logo:
— Somos sectários da religião do prazer: nossa única ambição, nosso único ideal—é gozar! A Sensualidade é o nosso Deus!
— O gozo pelo gozo! Eis aí a nossa divisa! interveio um dos outros cavalheiros que ceavam.
E o terceiro acrescentou, emborcando o copo:
—Não conhecemos outra moral, nem outra filosofia!. . . O amor antes de tudo!. . .
—Perdão, objurou Ângelo, tomando interesse na conversa; isso não e amor, e lascívia. . .
—Oh! replicou o que recebera a objeção. Nada de sentimentalismo!. . . Queremos as idéias etéreas vivamos pura e exclusivamente para os sentidos. Nada de amores platônicos ou exclusivistas! Nada de ciúmes e nada de egoísmos! Entre nós, as mulheres, seja qual for, é um instrumento de prazer, de que cada um se serve como melhor gosta e lhe apraz. Aqui, neste feliz recinto, as mulheres não têm dono; são como as flores do caminho: pertencem ao primeiro que se debruça sobre elas para lhes sorver o aroma. . .
E derreando‑se entre as duas mulheres que estavam ao lado dele, passou‑lhes o braço na cintura e perguntou‑lhes, beijando‑as, uma e depois outra:
—Não é verdade, encantadoras amigas, saborosas flores, cujo perfume nos embriaga de prazer? Não é verdade que não guardais egoisticamente, só para um homem, o vinho dos vossos lábios e os tesouros dos vossos corpos adoráveis?. . .
Uma das mulheres respondeu sorrindo:
—Somos altruístas... Com os encantos que possuímos, poderíamos, por interesse, dar a felicidade a um homem... preferimos dá‑la a muitos. É mais generoso. . .
—Decerto! confirmou o cavalheiro que falara por último. A castidade não passa de uma torpe especulação! . . .
—A mulher, reforçou o outro, só é verdadeiramente sublime, quando se dá a todos, sem preferência de nenhum. . .
—Não concordo convosco! declarou Alzira.
Ângelo sentiu‑se irritado com aquelas idéias, e disse, erguendo‑se:
—Degradante filosofia é a vossa, escravos da luxúria! Desvirtuastes o amor, prostituístes a mulher! Amaldiçoais assim a melhor obra de Deus!
—Ou do demônio... corrigiu com uma gargalhada um dos comensais.
—Não! teimou Ângelo. O demônio inventou o ódio e não o amor, descobriu a inveja e não a ambição, descobriu o desespero e não a felicidade, descobriu a luxúria, que é o desespero da carne, e não o amor, que é o orvalho da alma!
—Ou estás muito ébrio já, disse aquele; ou és um poeta!
—Não! sou um homem que ama, e nada mais, repontou o amante de Alzira.
—Eis um sonhador!. . . interveio outro com uma nova gargalhada. Um amante das estrelas!... Mau lugar escolheste tu para os teus idílios sentimentais!. . .
—Segue o teu caminho, visionário! aconselhou outro. A tua loucura faz‑nos pensar, e nós não queremos dar‑nos a esse trabalho. . . Vai‑te embora!
—Enxotam‑me?! exclamou Ângelo.
E puxou um punhado de moedas de ouro, que atirou sobre a mesa, acrescentando:—Tenho o direito de cá estar! Pago os meus prazeres! E, se alguém há entre vós, que a isso se queira opor, fale, que imediatamente lhe taparei a boca.
Um dos convivas ergueu‑se, encaminhou‑se tranqüilo para ele e disse‑lhe, com os olhos meio fechados pela embriaguez:
—Tens o direito de estar aqui, não há dúvida alguma. . . mas o que não tens, desgraçado, é o direito de incomodar‑nos. ..
—Desgraçados sois vós, míseros sensualistas! replicou Ângelo.
—Deixa‑me! tornou o outro desdenhosamente. A tua moral enjoa‑me! Se quiseres seguir o nosso exemplo, aí tens o teu copo, é beber até caíres ébrio nos braços da mulher que te ficar mais perto; qualquer destas. . . Não temos ciúmes!. . . E se isso não te convém, toma então de novo a tua gôndola e segue adiante, que trazes ao teu lado uma mulher formosa e não prometemos respeitá‑la mais que às outras.
—Ai daquele que lhe tocar com um dedo! exclamou Ângelo no auge de cólera.
Alzira interveio.
—Acalma‑te disse ela, dando‑lhe um beijo. A noite é curta, meu amor; não vale a pena perdê‑la com outra cousa que não seja o prazer!
E, voltando‑se para os que estavam à ceia:
—Encham‑me a taça, amigos, que a noite ainda é melhor assim regada com o capitoso e dourado moscato italiano!
— Tens muito mais espírito que o teu sentimental amante!... observou rindo um dos convivas. E és formosa demais para pertencer a um só homem!
Ângelo deu um salto sobre o libertino que acabava de falar e, desembainhando a sua espada, exclamou, pondo‑lhe a mão esquerda fechada em frente do rosto:
—Mais uma palavra e arranco‑te a alma, miserável!
—Acalmem‑se! suplicou Alzira, colocando‑se entre eles. Acalmem‑se por quem são! Bebamos e folguemos, antes que o sol venha de novo tirar‑me a carne de cima dos ossos!. . .
—A beleza, disse o contendor de Ângelo, esvaziando ainda uma vez a sua taça espumante; a beleza é uma divindade! E uma divindade deve ser adorada por todos!
—Bravo! bravo! gritaram os que se tinham deixado ficar no chão. Adoremos a divindade da beleza!
—À Beleza! À Beleza!
E entre risos, as taças chocaram‑se, tilintando.
—É demais! gritou Ângelo desprendendo‑se dos braços de Alzira, e saltando em meio do banquete. E demais! Este miserável deve morrer!
A cortesã procurou detê‑lo.
— Ângelo! Ângelo!
—Deixa‑me! bradou este. Quero punir aquele; infame! quero esmagar aquele; estúpido libertino!
Houve um geral sobressalto. Ergueram‑se todos. Puxaram pelas espadas, e as damas empalideceram, soltando gritos de pavor.
Ângelo parecia possesso. A lamina do seu aço florentino reluzia no ar, ameaçadoramente. E ele sem deter‑se um instante no mesmo lugar, varria aos pontapés os estorvos que encontrava nos seus saltos de esgrimista.
—Venham todos! bradava, sacudindo os cabelos. Venham todos, cáfila de brutos sensuais! Venham, que os rejeitarei na ponta deste ferro!
— Ângelo! Ângelo !
—Com a vida o pagarás! exclamou um hércules veneziano, que acabava de erguer‑se sacando o punhal.
—Morrerás como um javali! gritou outro, acudindo de arma em punho.
E ouviu‑se um coro de imprecações e frases de terror.
—Um conflito?! . . .
— Calma! calma!
—Diabos levem os intrusos!
—Morra quem perturba o nosso gozo!
— Matem‑no e lancem o cadáver ao mar!
— Fiquemos com a mulher, que é bonita!
Entretanto, um cavalheiro colocara‑se defronte de Ângelo, com a espada em desafio.
Mediram‑se as laminas, os ferros cruzaram‑se no ar: os dois fizeram uma rápida oração entre os dentes cerrados pela cólera, e o combate começou feroz.
Abriu‑se um instante de silencio, em que o retintim metálico das duas espadas era o único que se ouvia.
Os contendores arfavam, desesperado cada qual pela destreza e galhardia do seu adversário.
—Agora! bramiu Ângelo, caindo a fundo contra o inimigo.
E atravessou‑o de lado a lado.
—Oh! gritaram todos, correndo para o lagar do duelo.
E cercaram Ângelo numa trincheira de espadas nuas.
—O meu punhal! berrou o perseguido, desembainhando a terrível arma, que lhe dera o Demônio do Ouro. Assim o querem?... Assim seja!
E abriu aos pulos para todos os lados, cravando unia punhalada a cada salto.
Um a um, iam caindo todos em volta dele, expirando cada qual entre gritos de agonia e uivos de cólera sequiosos de vingança.
Do meio para o fim desta singular hecatombe, os que não tinham recebido o golpe fatal, fugiram, lançando‑se do cais às águas da baía. As mulheres rolavam pelo chão, estrebuchando espavoridas, ou jaziam sem sentidos, pálidas e estateladas como cadáveres.
Ângelo viu‑se afinal senhor do campo e, ofegando de cansaço, limpou o punhal tinto de sangue nas roupas de uma das suas vítimas.
—Fujamos! disse Alzira, a enxugar‑lhe com o lenço de rendas a fronte ressumbrante de suor. Fujamos antes que amanheça!
—Não! opôs Ângelo. Vamos beber ainda, e esperamos a aurora abraçados os dois sobre estes coxins feitos para a volúpia!. . .
Mas, no momento em que levava aos lábios a ânfora de vinho, arromessou‑a para o lado, soltando um terrível grito de pavor.
Defronte dele, com os braços cruzados, os olhos faiscantes e o rosto fulo e sinistro como uma caveira, erguia‑se o espectro do macilento cura de Monteli.
Ângelo recuou fulminado.
E o pároco, sem descruzar os braços, caminhou para ele atravessando‑o com o seu claro olhar de sacerdote intransigente.
— Crápula! exclamou, chegando‑lhe a boca ao rosto. Assassino! Bêbedo! Ladrão!
O amante de Alzira pôs‑se a tremer.
O outro prosseguiu:
—Em que imundo esgôto perdeste tu a tua vergonha e a tua consciência, miserável?. . . para andares sem pudor a vagabundear ao lado de uma infecta prostituta? . . .
—E que tens tu com isto, hipócrita?. . . interrogou o Ângelo boêmio, recuperando o sangue frio. Acaso vou eu tomar‑te contas das ridículas pantomimices que levas a praticar durante o dia em Monteli?. . . Interrompo porventura a farsa das tuas missas, quando charlataneias o teu irrisório latim e ergues ao ar, espetaculosamente dois dedos de vinho e três de obreia, proclamando que é sangue e corpo de Cristo. . . o que vais ingerir?. . . Já fui eu lá dizer‑te ao ouvido que isso é uma truanice, tão digna de desprezo quanto de lástima?. . . Já fui eu lá insinuar aos teus devotos que os teus milagres são mentiras, como é mentira a tua fé, como é mentira a tua ciência, como é mentira a tua religião?. . . Não me venhas pois aborrecer, onde não és chamado, e volta para a tua pestilênta aldeia, que tens lá quem precise dos teus desvelos e dos teus conselhos. Dá‑los ao filho da viúva Thevenet!
O presbítero, ouvindo este nome, estremeceu por sua vez.
Sacudiu a cabeça e disse revoltado:
—Até tu, alma perdida! até tu finges não compreender a verdade a respeito dessa infeliz criança.
—Não sou eu quem te acusa; são todos! Nada mais faço do que repetir a voz do povo, que é a voz de Deus! Some‑te da minha presença!
—Sim! mas deixa essa mulher!
—Por que? Ah! compreendo! são os ciúmes que te agitam, hein? Magnífico!
—Deixa essa mulher, já disse!
—Queres que a deixe contigo, talvez!. . .
—Obedece‑me ou eu tomar‑ta‑ei à força!
—Não tentes experimentá‑lo, porque ficarias aqui mesmo estendido por terra com esses outros imprudentes que aí estão! Vai‑te embora, desgraçado!
O pároco foi ter com Alzira e tomou‑lhe as mãos.
—Acompanha‑me, disse, com ar de súplica.
A cortesã olhou para ele, olhou para o outro, e abaixou os olhos, hesitando perplexa.
—Não vens comigo?... interrogou o padre, arfando de cólera e ciúme.
—E ele? balbuciou a cortesã. Como deixá‑lo?. . . Bem vês que não posso!. . .
—Aqui! A meus braços! ordenou o outro Ângelo, batendo o pé. Já! Não dês ouvidos a esse embusteiro!
Alzira chegou‑se para o amante folgazão, obedecendo submissa.
Então o pároco, sem dominar a cólera, atirou‑se contra o rival, tentando estrangulá‑lo.
Alzira, percebendo que aquele arrancava o punhal da cinta, apoderou‑se do ferro traiçoeiramente e lançou‑o ao mar.
O desarmado soltou um formidável grito de desespero e engalfinhou‑se com o outro Ângelo, rolando ambos ao chão, por entre os cadáveres ensangüentados, enquanto um sino ao longe principiava a badalar, chamando para a missa, e a aurora acordava a natureza, cantando um hino de gorjeios e murmúrios de floresta.
O infeliz vigário acordou afinal, na vida real, banhado de suor, sufocado e aflito, a debater‑se no seu leito com a própria sombra, que o estrangulava.
A dúvida
A tarde sucumbia lentamente, enchendo a natureza com a sua triste alma lamentosa. As cigarras estridulavam nas sonolentos frondes dos arvoredos, como um contínuo gemido do crepúsculo que agonizava. O sol, cansado do seu esplendor, fugia ao longe, cambaleando por uma escadaria de púrpura real. Os lavradores recolhiam‑se à casa, com a ferramenta ao ombro, e crianças brincavam no eirado ouvindo às Trindades.
Entretanto, na modesta sala de jantar do cura de Monteli, a velha Salomé, com o queixo apoiado à mão, o olhar perdido ao acaso, meneava a cabeça defronte do Dr. Cobalt, e parecia deveras desconsolada.
O médico tomava notas na sua carteira.
—Ele não se queixa de nada?... perguntou depois de uma pausa, a estorcer nos dedos o lábio inferior.
—Não, senhor doutor, não se queixa de nada!. . . E é isso o que eu estranho!. . .
—Não tem dores de cabeça?. . . Vertigens, achaques nervosos?. . . insistiu aquele.
—Se tem, não sei. . . respondeu a criada, porque ele não se queixa nunca...É outra outra que eu estranho! . . .
—Come com apetite?. . .
—Tão pouco como dantes. . .
—Está mais expansivo?. . . Conversa?. . .
—Está na mesma. . . E isso também não deixa de causar‑me certa estranheza!
—Dorme bem?. . .
—Ah! Quanto a isso, acho que até dorme demais!. . . Ultimamente, mal toca às Trindades, já o senhor vigário está procurando a cama!... Só nisto mudou durante a ausência do Sr. doutor... Dantes levava às vezes acordado até que horas da madrugada, e agora, é anoitecer, e já ninguém o detém de pé! Deu para isso desde aquela célebre noite em que o vieram buscar para ir à Avenida de Blancs‑Manteaux.
O médico tomou novas notas e perguntou depois, sem desfilar o olhar de onde o tinha pregado:
—Ele anda muito durante o dia?... Fatiga‑se?...
—Não sai agora de casa senão para os seus deveres . . .
—Não passeia?...
—Agora, nunca. Dantes ainda o fazia algumas vezes, e quase sempre demorava‑se por aí, margeando o rio ou percorrendo a serra; mas depois da ida ao castelo d'Aurbiny, nunca mais fez desses passeios. Mal acaba o que tem de aviar aí por fora, volta logo para casa e, chegando a noite, deita‑se, haja o que houver! . . .
—E dorme logo?. . .
—É deitar‑se e pegar logo no sono.
—E o sono é sossegado?. . . é profundo?. . .
—Pode vir a casa abaixo, que ele não dá por isso! Só desperta na manhã seguinte, ao raiar do dia. E nunca vi procurar a cama com tamanha sofreguidão! . . . Até parece moléstia, Deus me perdoe!
—Singular!.. . muito singular!. . . resmungou o doutor, sem largar o lábio.
—Nem sei o que me parece aquele modo de dormir!... tornou a criada, com um suspiro em que denunciava toda a sua tristeza pelo estado do amo. Tenho meus receios de que haja praga! Virgem Santíssima! Há no mundo tanta boca danada, e o senhor vigário tem sido perseguido pelos padres que vieram de Paris!...
Cobalto, interrompeu‑a.
—Ele não lhe tem contado nada a seu respeito, minha boa amiga?. . . perguntou.
— Qual nunca esteve comigo tão fechado como agora. . .
—É singular!... resmungou o médico. É singular!... Os fenômenos que observo neste enfermo, desmentem as minhas experiências já feitas nos hospitais! . . . É um caso singularíssimo de histeria no homem! . . . Ah, meus colegas, meus colegas obstinados em que a histeria tem a sede no útero!. . . Queria vê‑los aqui, e haviam de confessar que ela não passa de uma nevrose encefálica!... Platão com o seu sistema de útero desesperado por conceber, com o seu útero que dana e faz cabriolas até ao cérebro, é um visionário, como todos os seus discípulos espalhados pelas nossas academias!... No século dezenove compreenderão talvez o que hoje negam tão obcecadamente! Caturras! Não percebem que o vasto mundo dos nervos é tão grande, tão complicado e tão extraordinário, como todo um mundo planetário!. . . Falam em psicologia, falam em intelecto, e não falam nessa cousa ainda hoje sem nome—a vida autônoma dos nervos; isso, cujo conjunto pressinto e vejo pelas suas fenomenais manifestações, e habita uma parte material de nosso corpo, tão importante que pouco conhecida e estudada até hoje! isso, que há de encher uma época no mundo dos sábios e produzir uma grande revolução científica! Ah! não poder eu viver daqui a cem anos!. . . ou não ter talento, gênio, para poder adivinhar o que os outros mais tarde descobrirão. Maldita seja esta minha cabeça inútil, e maldita seja a medicina! E maldita principalmente seja esta minha ausência de Monteli, durante a qual tantos progressos fez o meu doente na sua desconhecida moléstia!... Ah! mas hei de chegar a um resultado, ou enforco‑me no primeiro lampião ou na primeira árvore que encontrar pelo caminho! E, voltando‑se vivamente para a tia Salomé, a limpar, ofegante, o suor da testa, perguntou:
—E ele em que estado acorda?. . .
—Ora, Sr. doutor. . . Cada vez mais acabrunhado e abatido. . . respondeu a boa velha, sarapantada de todo com o ar perplexo do médico. As tais horas de sono do senhor vigário, em vez de lhe darem novas forças e fazê‑lo rijo, a modo que o deixam mais prostrado. . . Acorda cansado nem que se chegasse de uma viagem muito longa, ou que então largasse naquele instante um serviço muito forte!. . . Levanta‑se da cama quase cambaleando, as suas orações fá‑las ele tão fatigado como se passasse a noite em claro, barbeia‑se caindo de sono, e depois assenta‑se um bom tempo, descansando. Se eu não vier chamá‑lo para a missa, é capaz de ficar aí todo o santo dia, a cismar!. . .
—Diabo! exclamou o médico com uma palmada na perna. Diabo! esta minha ausência foi um transtorno infernal! A nevrose chegou a um ponto em que se torna quase incurável!. . . Ah! mas, haja o que houver, carrego‑o amanhã mesmo para o novo hospital de nevropatas que acabei de abrir, e vou fazer nele as minhas primeiras experiências da aplicação da água fria por meio de duchas graduadas! Está decidido! E é bem possível que eu, daqui a pouco tempo, esteja apresentando à Academia de Ciências o meu livro novo sobre o grande mundo dos nervos! . . .
E voltando a ter com Salomé:
—Não veio de Paris ninguém visitá‑lo, além dos devotos do milagre?. . .
—Ninguém. . . respondeu ela.
—Diga‑me uma cousa, tiazinha. . . mas fale com franqueza, que é para o bem do nosso doente. . . Nunca descobriu no vigário qualquer inclinação por alguma mulher? . . .
—Credo, senhor doutor!... exclamou Salomé, benzendo‑se. Credo, Pai Santíssimo! Pois então o senhor vigário seria lá capaz de?... Ele, que é um santo! Valha‑me a Senhora dos Aflitos, que até senti um engulho no estômago!
—Não há dúvida! Carrego‑o amanhã mesmo para o hospital!. . . Vou daqui tratar do que me falta para poder levá‑lo!
Salomé, que tinha ido até à janela, voltou para segredar apressada ao médico:
— Ele aí vem!. . .
Cobalto, pôs‑se logo em retirada, e disse precipitadamente à velha:
—Continue a observá‑lo. Volto em breve. Segredo, hein?... E tome lá para o seu rapé!
Atirou‑lhe uma moeda e fugiu; enquanto Salomé, indo abrir a porta, considerava de si para si:
—O vigário estará sofrendo da cabeça, mas este médico, pelos modos, não regula melhor que ele. . .
E abriu a porta a Ângelo, que entrou da rua, mais taciturno e mais sonâmbulo do que nunca.
A criada foi ter ao seu encontro e deu‑lhe as boas noites.
O infeliz não respondeu.
—Coitado!... pensou ela, considerando‑o da cabeça aos pos com um olhar de lástima. Como ele está hoje!. . . Nem deu pela minha presença!. . .
E tomou‑lhe o braço, para perguntar‑lhe, gritando, como se falasse a um surdo:
—O senhor vigário quer que eu vá buscar a sua refeição? . . .
E, como ele. ainda desta vez não respondesse, a boa velha afastou‑se lá para a cozinha, resmungando:
—É melhor mesmo que o doutor o leve, para ver se o endireita!. . .
A intriga dos invejosos vingara finalmente. Angelo era já pelos seus superiores considerado louco; o arcebispo suspendera‑lhe as ordens por tempo indefinido, e ameaçava de excomunhão todo aquele. que fosse a Monteli em romaria devota.
Entretanto, ele parecia indiferente e alheio a tudo isso, e continuava escravo dos seus dolorosos enlevos, como se o seu espírito vivesse com efeito em um outro mundo, um mundo só dele conhecido, um mundo longe da terra e longe das suas duras melancolias religiosas.
E, cada vez mais taciturno e sombrio, seu vulto, quando agora vagava pelas estradas, já se não detinha aos gemidos dos desgraçados, nem ao riso alvar dos imbecis que escarneciam dele.
Salomé tinha razão: a cousa única que o preocupava agora, era o sono. Ângelo queria dormir tanto quanto possível, para sonhar muito. O delírio conquistara‑o de todo. O sonho vencera a vida real.
Ângelo foi até ao seu quarto e parou junto à cama.
—Eis enfim o momento de dormir!... pensou ele. Dormir!—estranho modo de morrer! . . . Sonhar! —estranho modo de viver!. . .
E atirou o chapéu para o lado, desfez‑se do capote e continuou a meditar:
—Sim, murmurou, sacudindo a cabeça; sim, eu vivo nos meus sonhos, e mentiria se dissesse que os não desejo... Desejo‑os ardentemente; volto deles com a consciência aflita e dolorida, mas durante as longas horas do dia, nada mais faço que chamar pela noite, para poder correr aos braços de Alzira!... Será vida o sonho?. . . E por que não?. . . por que supor que esta é vida verdadeira e a outra não?. . . Por que, se ambas têm a mesma razão de ser? as mesmas dúvidas, as mesmas incertezas! . . . Não são ambas um mistério?. . . Saberei por acaso o que eu era antes de nascer e o que serei depois da morte?. . . De onde vim?. . . Para onde vou?. . . Eis o mistério!. . . A vida, qualquer que ela seja, não será sempre um ligeiro sonho que se esvai entre dois nadas? Sair de um ventre de mulher, para entrar no ventre da terra! . . . Eis tudo o que se sabe! . . .
E começou a espacear pelo quarto, gesticulando.
— Sim! Qual das duas vidas será a verdadeira?... Qual das duas será mentira e sonho?... Poderei afirmar que existo nesta?. . .
E começou a apalpar as mãos, e a estorcer, uns contra os outros, seus dedos magros e pálidos.
—Este meu corpo será com efeito meu, e será com efeito um corpo?. . . Ele com efeito existirá?. . . Eu o estarei vendo, ou tudo isto será ilusão?... (E apertou com força, entre os dedos, a carne do seu braço.) Todos estes objetos que me cercam, existirão com efeito?... Sim! Eu os vejo! eu os apalpo! Eu os sinto com o meu tato!
Salomé, que entrara com a merenda, estacou a olhar para ele. desconsoladamente.
—Que estará o senhor vigário a fazer às voltas com aquela cadeira?... resmungou ela, notando que Ângelo tinha uma cadeira erguida nas mãos e a examinava com suma atenção. Parece admirar uma raridade! . .
— Sim, exclamou o pároco. Isto existe!
E arremessou a cadeira ao chão.
—Mau! mau! resmungou a criada. Hoje está para quebrar as cousas!. . .
E foi ter com ele. carinhosamente, depois de largar sobre a mesa a bandeja da merenda.
—Por que não trata de comer alguma cousa e recolher‑se, senhor vigário?. . . Olhe que já são quase sete horas!. . .
Ângelo despertou:
—Sete horas? Já? Sim, sim, vou deitar‑me! Preciso dormir! dormir muito!
—Mas há de primeiro tomar a sopinha de leite com pão! Vamos! venha para a mesa! (E conduziu‑o até lá, puxando‑o pelo braço). Assim! Agora beba um trago de vinho!
Ângelo obedecia, como uma criança, sem dizer palavra.
—Bem, disse a criada, quando viu que não conseguia fazê‑lo comer mais nada. Agora pode recolher‑se. Boa noite!
E saiu, soltando um fundo suspiro de lástima.
O presbítero continuou perdido nas suas cismas.
—Sonhar!. . . Sonhar!. . . Estarei eu sonhando agora, para daqui a pouco acordar nos braços de Alzira? . . não! mas isto existe!
E tomou de cima da mesa o canjirão de vinho.
—Tanto existe. .. prosseguiu ele. que eu posso quebrar este objeto! destruí‑lo! (E despedaçou o canjirão contra a parede). Eu tenho um corpo que sente…tenho uma alma que dói! Ah! mas na outra vida palpita‑me também o sangue dentro das veias! na outra vida a minha boca beija, os meus olhos choram, a minha carne treme de prazer e de dor! na outra vida governo os meus membros, dirijo os meus pensamentos, e piso a terra, e repiso o ar, e como, e bebo, e amo!
Nisto abriu‑se surdamente a porta que dava para o interior da casa, e a veneranda figura do velho Ozéas desenhou‑se contra a sombra.
Vinha abatido pela sua longa enfermidade; parecia mais velho e macilento. Afundaram‑se‑lhe de todo as faces e cavaram‑se‑lhe os olhos, onde transparecia agora, em vez do brilho místico que o iluminava dantes uma triste luz de mortal desesperança.
Imóvel, de braços cruzados sobre o peito, quedou‑se a observar em silêncio o espectro do seu discípulo amado.
Ângelo que não dera por ele e continuava a monologar, gesticulando:
—Sim... sim... por que acreditar que esta miserável existência de cura de aldeia é a vida real, e a outra não? a outra que aliás é tão superior?. . . Sim! sim! Ou ambas são vida, ou são ambas sonho!... A única diferença é que lá eu vivo e gozo, ao passo que aqui. . . apenas choro o sofro. . . Ah! sonho por sonho, prefiro o outro! no outro sou feliz, sou livre, sou um homem como qualquer! não tenho senhor! não tenho Deus! Lá—eu amo—eu sou amado! Sim! sim! Prefiro a outra vida! Corramos aos braços de Alzira!
E encaminhou‑se para o quarto com avidez.
Mas frei Ozéas, que lentamente se aproximara do discípulo, fê‑lo estacar, interpondo‑se‑lhe na passagem.
—Oh! meu pai? . . . exclamou o pároco.
—Ângelo! disse o frade, abrindo os braços, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas longas barbas brancas.
—Meu pai aqui!
— Sim! Venho em teu socorro, meu filho!
E Ângelo atirou‑se‑lhe nos braços, soluçando.
A confissão
Passado o abalo da primeira impressão, um constrangido silêncio fez entre Ângelo e Ozéas.
O presbítero tinha os olhos baixos, como um criminoso, e o outro acompanhava‑lhe os menores movimentos, tremulando a cabeça.
—Sim, meu filho. . . disse o velho afinal, venho em teu socorro!... Dize‑me como estás e dize‑me o que sentes. . .
Ângelo não ergueu os olhos.
—Eu?... Nada!... tartamudeou. Creio que estou bom. . .
—E eu tenho a certeza do contrário, meu pobre Ângelo . . .
E Ozéas acrescentou a um gesto negativo do discípulo:
—Ah! Não tentes enganar‑me!... Tens, seja qual for, uma preocupação bem grave, que inùltimente procuras esconder aos meus olhos! . . . Há alguns instantes que te observo, que acompanho todos os teus movimentos, cheguei mesmo a ouvir muitas palavras do teu monólogo de louco! Ah, sim! tens uma dor secreta, e eu hei de arrancar‑te e destruí‑la, custe o que custar!... Vamos! É melhor que fales com franqueza!
—Nada! Não tenho nada!. . . insistiu o pároco, visivelmente perturbado.
—Negas?!... Desconheço‑te, Ângelo!... Já não és o mesmo casto discípulo, que eu cerquei durante vinte anos com a dedicação dos meus desvelos e da minha fé!. . .
—Creia que se ilude, meu pai!. . .
—Tu é que me queres iludir, Ângelo. . . Ah! mas não o conseguirás! Não suponhas que vim aqui às apalpadelas. . . Tenho‑te acompanhado de longe, desde que a enfermidade me obrigou a separar‑me de ti. . .
E recuperando de súbito o seu antigo ar enérgico, exclamou:
—Exijo que me confesses abertamente a causa deste teu estado atual!
—Mas...
—Exijo!
—Mas que lhe hei de dizer?. . .
—Fala‑me, por exemplo, das conseqüências daquele estranho sobressalto, que te aconteceu quando celebravas a tua primeira missa. . . Ainda até hoje não me deste conta disso!. . .
Ângelo estremeceu, balbuciando alguns sons ininteligíveis .
E Ozéas acrescentou:
—Sim, nunca me confessaste que ele foi provocado por uma mulher que se achava na igreja. . .
O pároco estremeceu ainda.
—E por que tremes agora?.. . bradou o velho. Por que abaixas os olhos?... Por que desse modo empalideces?. . . Por que as lágrimas estão a correr‑te pelas faces?. . . Ah! eram bem fundados os meus receios de então!... são bem certas as minhas desconfianças de agora!.. .
—Desconfianças?... De que?...
—De que Alzira te preocupa ainda!.
—Alzira já não existe. ..
—Sim, já não existe para o mundo... Quem sabe, porém, se ela não continuará a existir para a tua imaginação enferma e desvairada?...
O pobre maço tomou‑lhe as mãos.
—Por que diz isso, meu pai?. .
—Porque vejo e compreendo que uma idéia fixa te rói o cérebro e devora‑te a razão! Quero saber o que é! Fala!
Houve uma pausa.
Ozéas prosseguiu, mudando de tom:
—É a primeira vez que bato ao teu coração, e ele se não abre logo de par em par!. . . Compreendo: já te não possuo. . . já não és o mesmo que foste para mim... já não és o meu filho submisso e casto!... Perdi tudo! Paciência! Nada mais me resta a fazer aqui... Adeus.
Ângelo prendeu‑o nos braços.
—Perdoe! perdoe, meu pai!
—Então fala!
—Ah! se soubesses quanto eu sofro!.
—E não obstante ainda há pouco sustentavas o contrário. . . Bem vês que tenho razão!. . .
— Sim, mas, por amor de Deus, não exija que eu fale!...
—Ao contrário, quero que me abras o teu coração com toda a confiança, quero que mo despejes em confissão, como o fazias dantes!
—Mas é tão estranho o que se passa comigo!. . .
—Conta‑me tudo!
— Sou um imperdoável pecador!
—Maior serias se não me falasses com sinceridade! . . .
—Sou um desgraçado!. . .
—Não tanto, como se eu não estivesse agora a teu lado, disposto a salvar‑te!. . .
—Mas o meu crime é traiçoeiro. . . só se apodera de mim durante a inconsciência do sonho. ..
Ozéas, fixou‑o, e, concentrando a atenção, disse depois surdamente:
—Continua...
—Vou dizer‑lhe tudo com franqueza!...
E Ângelo olhou para os lados, e acrescentou, abafando a voz:
—Vou contar‑lhe tudo. . .
—Fala, meu filho. ..
—A perturbação que eu senti no dia em que me ordenei, era com efeito causada por uma mulher. . .
—Alzira...
—Sim. . . confirmou o pároco, meneando lentamente a cabeça. Sim. . . Alzira. . . Soube logo que esse era o seu nome, em volta de mim na igreja todos o repetiam quando ela me fitava da tribuna. . .
—Eu notei. E depois!...
— Só a tornei a ver naquela noite em que deixei Paris. . . E no dia em que ela veio procurar‑me aqui.
— Sei. Adiante.
— Sua imagem, porém, nunca mais me saiu da memória, até que, uma noite, sonhei que vinham buscar‑me para socorrer um moribundo. ..
—Não foi sonho, foi a realidade. . .
—A realidade?!... exclamou Ângelo, com os olhos pasmados. Então é real que a estreitei nos meus braços?. . . Então é real que a ressuscitei com os meus beijos?! . . .
—Isso é que já foi sonho, ou melhor, delírio!
—Meu Deus! onde começa o sonho?... onde termina a realidade?. . . Alzira teria com efeito vindo buscar‑me no dia seguinte ao seu enterro?.. . (Ozéas redobrou de atenção). Eu ter‑me‑ia transformado em um cavalheiro e ela em formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos, que nos levaram a mundos desconhecidos para mim?. . . Teria eu percorrido com ela todas essas paragens maravilhosas?. . . Teria eu provado de todos os venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?. . .
Ozéas apoderou‑se do braço de Ângelo.
—E ela continua a voltar?. . . exclamou, sobressaltado.
—Sim, sim, volta sempre! Ainda não faltou uma só noite até hoje! Mal adormeço, ela vem logo e carrega comigo! É ela a pessoa com quem eu mais convivo neste mundo.
—Neste, não! no mundo da tua loucura!
—E por que acreditar que este é o verdadeiro e o outro não?!... Ambos me ocupam longas horas o espírito, ambos palpitam de sentimento e de verdade, ambos tem as suas consolações e os seus desgostos!
—Mas, meu filho, não te lembras que cresceste a meu lado, que viveste sempre comigo?. . .
—Também no outro mundo tenho reminiscências de uma vida inteira. Lembro‑me do colégio, das férias passadas com parentes, dos afagos de meus pais... sim! porque lá não sou um miserável enjeitado.. . tenho família e tenho amigos... E' uma vida completa e perfeita! Esta outra existência obscura, de pároco de aldeia, apresenta‑se‑me então ao espírito como um sonho extravagante e ridículo!. . .
—É preciso que Alzira nunca mais te apareça! bradou o velho.
—Ah! disse Ângelo. Creio que só com a morte deixarei de vê‑la!. . . E, ainda assim, quem sabe?... Quem sabe se Alzira não virá ter comigo, quando esse outro sono me adormecer para sempre?... E quem poderá afirmar que eu vivo?. . . quem me dirá que não sou, como ela, um pobre espírito errante, um espectro, uma sombra, condenado a nunca repousar?. . .
—Cala‑te, louco! Não a verás hoje!
—Ela virá logo que eu adormeça!. . .
—Hoje não dormirás!
—Ela me espera!. ..
—Desgraçado! Já não és senhor de tua vontade?.. . Acaso negociaste tua alma?...
—Não, meu pai, minha vontade é a sua... minha alma pertence a quem ma confiou, pertence a Deus!
—Pois então, obedece‑me! Põe o teu capote e o teu chapéu, toma um alvião e uma enxada, e acompanha‑me!
—Aonde vamos?
—Depois o saberás. Ajoelha‑te e pede ao Criador que te proteja!
O discípulo obedeceu.
E o velho acrescentou, erguendo os braços e os olhos para o céu:
—Ó meu Deus! Ó senhor misericordioso! não nos desampareis nesta terrível excursão que vamos empreender! . . .
Cruz e calvário
Ozéas muniu‑se de uma lanterna furta‑luz e fez‑se acompanhar por Ângelo, que levava o alvião e a enxada.
Saíram.
A noite era bonita e frouxamente iluminada por um luar de abril. A aldeia dormia já, e apenas algumas árvores rumorejavam, sonhando talvez, ainda tontas da quente carícia do último sol que as sufocara com os seus beijos de fogo.
Cães ladravam, de pescoço estendido, provocando o céu. As estrelas bruxuleavam tristemente no azul da abóbada misteriosa. Não se ouvia o pio de uma ave noturna.
E os dois religiosos lá se iam pela estrada, silenciosamente, projetando longas sombras na areia dos caminhos.
Pareciam dois espectros filhos da mesma noite.
Andaram durante algumas horas. Atravessaram a aldeia, sem dizer palavra. E afinal chegaram a um cemitério, que já não pertencia a Monteli e sim a Blancs‑Manteaux.
—É aqui, meu filho. .. disse o velho, parando, extenuado de fadiga.
Ângelo nada respondeu. Encostou‑se ao sinistro moro da casa dos mortos e respirou descansando.
—O que viemos aqui fazer. . . perguntou depois.
—Entremos... deliberou o outro, procurando o lado mais baixo do muro para galgá‑lo.
E penetraram no cemitério.
Era um bem triste lugar aquele, com a sua dura simetria de túmulos enfileirados, branquejando ao luar. Canteiros de flores, mais fúnebres que as sepulturas, pareciam dizer na muda linguagem das perpétuas e das margaridas, todo o segredo das dores e das saudades, que ali gemeram junto aos que fugiram para debaixo da terra.
Mas agora, nem o eco de um soluço, nem a cintilação de uma lágrima!. . .
Mudo esquecimento e paz absoluta! A lágrima nasceu líquida para secar depressa, e o soluço não tem asas para acompanhar a memória dos que morrem!
Ozéas e Ângelo puseram‑se a andar vagarosamente por entre os mausoléus, até chegarem ao campo raso dos mortos anônimos, para os quais só há uma cruz de ferro, com um simples número, fria como o coração do coveiro que os sepultou.
O cemitério era grande, mas de aspecto miserável. Um vasto campo, que se estendia, subindo em rampa, até parar de súbito num formidável despenhadeiro, onde nunca descia a luz do sol nem das estrelas.
O frade, ao chegar a certo sepulcro, coberto por uma lousa de mármore, deu luz à sua lanterna, e alumiou a lápide.
—Lê!.. . disse ao companheiro.
—Ah! exclamou Ângelo, retraindo‑se.
Na laje funerária estava escrito "Alzira".
—Aqui jaz o que dela resta. . . segredou o velho.
E depois de um silencio, acrescentou:—Levanta a lousa. . .
—Profanar uma sepultura!. . . Eu?. . . protestou Ângelo, recuando. Não! Nunca!
—Assim é preciso! Obedece!
—Meu pai! . . .
—Obedece!
O presbítero hesitou ainda.
—Obedece, ou eu te amaldiçoarei para sempre! insistiu Ozéas.
Ângelo abaixou a cabeça e começou a levantar com o alvião a pedra sepulcral.
Conseguiu‑o no fim de algum esforço.
—Agora, tornou o velho, quando viu a tumba descoberta, tira com a enxada o que está lá dentro.
O pároco voltou o rosto, exclamando:
—Oh, não! não! por amor de Deus!
Ozéas tomou a enxada, e retirou com ela uma caveira de dentro da sepultura.
Limpou‑a ao hábito e levou‑a até aos olhos do discípulo, dizendo:
—Ve! Vê bem!.. .
—Uma caveira!
— Sim! Uma caveira! É tudo que resta da beleza da tua Alzira!. . . a terra comeu‑lhe os olhos, o nariz, a boca, as faces cor‑de‑rosa. . . Só ficaram os dentes, para se rirem de ti, louco!
Ângelo tomou a caveira entre as mãos, e ficou a contemplá‑la, abstrato e mudo.
Ozéas chegou‑se mais para ele e disse‑lhe, avizinhando a boca do seu ouvido e abafando a voz como quem conspira:
— Vê bem!. . . É uma caveira vulgar. . . confunde‑se com todas as outras!. . . Foram‑se‑lhe os encantos... foram‑se os cabelos com os seus perfumes sensuais, os lábios com os seus sorrisos sedutores, os olhos com as suas chamas de amor!. . .
—Meu Deus! soluçou Ângelo.
— Restam apenas ossos... insistiu Ozéas. É tudo que dela resta neste mundo!... O mais que suponhas que exista, o mais que vejas nos teus sonhos libertinos, é loucura! Compreende bem, Ângelo! — Loucura!
—Meu Deus! exclamou o moço, deixando cair a caveira dentro do túmulo, e sentindo fugir‑lhe a luz dos Olhos. Meu Deus, valei‑me.
E baqueou no chão, abraçando‑se à lápide.
Ozéas precipitou‑se sobre ele, para socorrê‑lo.
—Ângelo! chamou. Animo! animo, meu filho!
O pároco não deu acordo de si.
E o pobre velho apalpou‑lhe o rosto e o coração.
—Perdeu os sentidos! disse aflito. Valha‑me Deus! Valha‑me Deus! Como lhe hei de valer? Se eu tivesse ao menos um pouco de água. A sua fronte escalda de febre!
E correu os olhos em torno, desesperado por ver somente a morte em volta do seu desespero.
—Ah! exclamou com uma idéia. Na capela! Talvez encontre o guarda! . . .
E procurando estugar os seus cansados passos de ancião, afastou‑se deixando Ângelo abraçado à lousa de Alzira.
Ângelo ergueu a cabeça ao fim de algum tempo e contraiu‑se todo, ajoelhando‑se na terra.
Todo ele tremia.
Aos seus olhos desvairados, um terrível espetáculo se patenteada naquele instante.
Alzira surgia da cova, lentamente. Vinha toda de branco, no seu longo roupão funerário, em que ele a vira estendida no seu leito de morta, quando, louco de amor, a estreitara nos braços. Tinha os cabelos soltos sobre as espáduas, os olhos repreensivos e tristes, a boca entreaberta por um sorriso amargo, mostrando a embaciada pérola dos dentes.
—Ah! gritou o pároco, fitando‑a.
E um singular diálogo travou‑se entre os dois:
—Para que vieste profanar esta sepultura?... perguntou o branco espectro de Alzira.
Ângelo respondeu, sempre de joelhos e sem despregar o solhos dela:
—Para me convencer de que não és mais do que vil despojo! Para me convencer de que és pó e lodo! . . .
—E que lucraste com isso?. . .
—A razão, porque tu me enlouqueces. . . Tu és a minha loucura, sedutor demônio!
—Loucura! E conheces, por acaso, alguma cousa no mundo que não seja delírio e loucura?. . . O que é a tua virtude senão loucura?... o que é a tua ciência?... o que é a tua religião?... Tudo isso é insânia!... Tudo isso é a febre dos doidos!... é o desvairar dos loucos!.. .
Ângelo arrastou‑se para ela, exclamando suplicante:
—Então não me deixes viver outra vida senão esta em que eu te tenho ao meu lado, ao alcance dos meus lábios!. . . Leva‑me, como nas outras noites, para os teus palácios encantados, para as tuas grutas misteriosas, leva‑me para onde quiseres. Eu serei o teu pajem! o teu amante! o teu donzel!
—É tarde! replicou Alzira, desviando‑se dele, sem fugir de onde estava!
—Não! insistiu o pároco! não é tarde! Venha a minha espada de cavalheiro! Venha o meu fogoso ginete de longas crinas flutuantes! Arranca‑me desta abominável mortalha preta, em que me envolveram desde o berço! Arrancam‑me desta vida estúpida, e dá‑me a outra ideal e sonhadora! Vamos! quero ser de novo um aventureiro, quero as minhas paixões, quero o meu punhal, quero a formosa mulher que palpitava de amor nos meus braços! Vamos! Vamos, minha Alzira, meu doce enlevo, poesia e sonho de minha vida, encanto da minha alma! Vamos! atende‑me!
—É tarde!
—Ah! gemeu o mísero, deixando cair a cabeça entre as mãos, a soluçar.
—Ouve, desgraçado! tornou a sombra de Alzira, com uma voz triste e plangente. O amor que te votei era tão grande, que ninguém jamais amou tanto sobre a terra! . . . tão grande, que eu consegui, das invioláveis profundezas deste mundo dos mortos, criar um novo modo de viver contigo! Dei‑te a vida ideal do sonho, onde não terias nunca as tristes misérias dessa outra vida em que vegetas!. . . Mas tu, insensato! acabas de destruir o que eu com tamanho amor criei para a tua felicidade!. . . Que lucraste em desfazer a nossa vida fantástica?. . . Que vantagens descobriste nessa miserável existência que te resta agora, tão carregada de tédios e mesquinhas necessidades?... Onde melhor poderíamos gozar a suprema ventura de nos amarmos, de que em um mundo ideal inventado pelo nosso próprio amor? . . .
— Sim! sim! exclamou Ângelo. Eu quero viver eternamente contigo!. . . Eu quero continuar a ser uma sombra! Eu quero sonhar!
—É tarde! repetiu o espectro. Mira‑te na tua sombra! . . .
E o seu rosto começou a fazer‑se pálido, e mais pálido, até tornar‑se cor de osso, e os seus olhos foram‑se esfumando, a cobrirem‑se de sombra, até que nada mais eram do que dois negros buracos apagados, e seu nariz desapareceu, e os seus cabelos abandonaram o crânio amarelento e nu, e os seus lábios sumiram‑se, deixando a descoberto os dentes já sem brilho.
E a caveira ressurgiu afinal, sorrindo para Ângelo, pavorosamente.
E por debaixo do alvo roupão mortuário, foi, pouco a pouco, fugindo a carne que o enchia. Desfizeram‑se as voluptuosas curvas dos quadris e do colo. A túnica engelhou bamba como um sudário sobre um esqueleto.
E Ângelo ouviu um sinistro cascalhar de ossos, e, soltando um grito, viu cair e sumir‑se o desfeito espectro na aberta e tenebrosa boca do sepulcro.
Debruçou‑se sobre a cova, olhando lá para dentro.
Nada mais viu do que um punhado de lodo.
Ozéas acudira de carreira, e lançou‑se para ele com os braços abertos.
— Que tens, meu filho? Que tens. . . Fala! exclamou, erguendo‑o.
Ângelo pôs‑se de pé, passou a mão pela fronte, e disse, amargamente:
—Acabou‑se tudo. . . Nunca mais, nunca mais a verei!...
—Por Deus que nunca mais! confirmou o velho. Os céus ouviram minhas súplicas e acabam de restituir‑te à razão!. . .
O pároco olhou em torno de si, como um alucinado que em verdade recuperasse naquele instante o entendimento.
—Ah!... disse depois. Eu estava louco!... Sim... agora compreendo... Era tudo desvario... Era tudo ilusão!. . .
E calou‑se durante algum tempo.
—Sonhos!... sonhos!... prosseguiu quase em segredo, meneando a cabeça desconsoladamente. Sim eu existo…eu sou o seminarista Ângelo…o pupilo de frei Ozéas. . . a criança encontrada à porta do convento de São Francisco de Paulo... aquele. amor, toda aquela felicidade, eram sonho, eram loucura! . . .
E apontando para dentro da sepultura:
—Isto aqui... é a realidade... isto aqui é a verdadeira vida!. . .
— Sim! confirmou o frade.
Ângelo tomou‑lhe as mãos, perguntando‑lhe ansiosamente:
—Então, nunca mais a verei?.. . nunca mais a estreitarei nos meus braços, peito a peito, lábio a lábio?
—Não!
—Então, nesta vida real, nunca mais terei um raio de amor, que aqueça minha alma?. . .
—Tens o amor de Deus!
—Deus?... E onde está ele, que nunca o vi, apesar de lhe ter dedicado a vida inteira?. . .
Ozéas ergueu o braço, apontando para o céu.
—Lá? perguntou Ângelo, como uma criança, apontando também. Mas lá é tão longe, tão longe. . . que minha voz, nem o meu entendimento alcançam!
—Mas alcança tua alma!...
—Não! minha alma é irmã gêmea do meu corpo, e ambos são filhos da terra! Sou um homem!
Ozéas estremeceu ouvindo estas palavras, e bradou com energia:
—Não és um homem, és um padre!
Ângelo fitou‑o, aproximando o seu rosto do dele.
—E quem me tirou o direito de ser homem?. . . interrogou. Quem me obrigou a ser padre?. . . Qual bárbara violência foi essa de me trocarem um direito por uma responsabilidade?. . . Quem foi que cometeu este crime?!
E, segurando violentamente o braço de Ozéas, bramiu com os lábios trêmulos e os olhos ferrados sobre ele.
—Ah! ah! foste tu, bem sei!. . . Encontraste‑me pequenino, desamparado, sem ter nada no mundo, nem mãe ao menos!. . . e carregaste‑me para a tua sombria furna, tal a fera carrega com a mesquinha presa... Encerraste‑me naquele tenebroso convento, e aí me deformaste a alma, como um saltimbanco ao corpo do enjeitado que lhe cai nas garras!
E, cruzando os braços, interrogou com voz terrível, perfilado defronte de Ozéas:
—E quem te deu o direito de deformar minha alma?! Quem te deu o direito de fazer de mim um padre?! Quem?! Responde!
—As minhas sagradas convicções, as minhas crenças! . . . respondeu o egresso.
Ângelo sorriu irônicamente.
—Crenças! . . . convicções! . . . disse. E tudo isso de que me serve agora?!. . . Eu quero viver! eu quero o quinhão de vida a que tenho direito! Restitui‑me a minha mocidade, o calor do meu sangue, o meu talento! Entrega‑me o que me roubaste, ladrão!
Ozéas deixou‑se cair de joelhos e abriu os braços, volvendo para o céu os olhos lacrimosos.
—Ó meu Deus! suplicou. Ó meu Deus! piedade para ele! Socorrei‑o! Iluminai‑o com a vossa divina graça! . . .
—É tarde!.. . rouquejou Ângelo. A sombra de Alzira bem o disse!. . . É tarde, roubador de crianças, salteador de almas! Já nada tenho a perder, porque me roubaste afinal a última ilusão! Nada mais me resta a fazer neste mundo de nojentas misérias! Sê maldito! Adeus!
E lançou‑se de carreira para o abismo onde terminava o cemitério.
— Meu filho! meu filho! atende‑me, por amor de Deus!
—Não sou teu filho, não sou nada, sou um padre! respondia Ângelo, debatendo‑se para arrancar‑se dos braços dele. Deixei de ser um vivo entre os mortos, sou um morto entre os vivos!
— Que vais fazer, Ângelo!
— Completar naquele abismo a tua obra, bandido!
—‑ Não! gritou Ozéas, fazendo um supremo esforço para desviar o filho do precipício. Não te matarás!
E engalfinhados numa tremenda luta, rolaram até à sepultura de Alzira.
—Não hás de morrer!
—Pois morrerás tu! exclamou o pároco, ofegante, pondo‑lhe o joelho sobre o peito.
E arrancou uma cruz da terra.
—Vês?. . . disse, bramindo‑a com o braço erguido. É com a própria arma da tua religião que te vou ferir!
E cravou‑lha na garganta.
—Ah! gemeu Ozéas. Perdoai‑lhe, Senhor!
E vendo que Ângelo galgava a rampa do precipício,
tentou ainda arrastar‑se para lá, inutilmente. Gorgolhava‑lhe forte o sangue da ferida.
—Ângelo! meu filho! Atende! vagiu agonizando. Não procures a morte!
—Não é a morte, é o sono eterno! respondeu o pároco. Eu quero sonhar!. . .
E de um salto precipitou‑se no abismo.
Aluísio Azevedo
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